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21
ISSN 2318-9282
número 21
ano 6
out — dez 2018
realização
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out-dez2018
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temas em destaque
destaque
apresentação
equipe editorial DESIDADES é uma revista eletrônica de divulgação
científica na área da infância e juventude. É uma publicação
EDITOR A CHEFE
EQUIPE TÉCNIC A
DESIDADES significa, como escolha do título da revista,
Arthur José Vianna Brito que as idades, como critérios fixos que naturalizam
Julia Oliveira Moraes comportamentos, habilidades e modos de existência
Leticia Rosa Machado
segundo uma temporalização biográfica linear, precisam
Maria Clara Teldeschi
ser problematizadas de modo a permitir novas abordagens,
Maria Luiza Vianna Werneck Pereira
Maryssol Monteiro Fernandes do
perspectivas e diálogos sobre as relações entre os grupos
Nascimento geracionais.
Matheus Ferreira Apolinário
Túlio Ferreira Fialho
REVISOR
TR ADUTOR A S
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CONSELHO CIENTÍFICO NACIONAL
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Nair Teles Fundação Oswaldo Cruz/ Universidade Eduardo Mondlane
Patrícia Pereira Cava Universidade Federal de Pelotas
Rita de Cassia Fazzi Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Rita de Cassia Marchi Universidade Regional de Blumenau
Rosa Maria Bueno Fischer Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rosângela Francischini Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Silvia Pereira da Cruz Benetti Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Solange Jobim e Sousa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Sonia Margarida Gomes Sousa Pontifícia Universidade Católica de Goiás
Telma Regina de Paula Souza Universidade Metodista de Piracicaba
Vera Vasconcellos Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Veronica Salgueiro do Nascimento Universidade Federal do Cariri
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índice
EDITORIAL 8
TEMAS EM DESTAQUE
Garotas da colônia:
aprender e trabalhar na infância rural 33
Ana Padawer
ESPAÇO ABERTO
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INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
resenha
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editorial
As crianças do/no campo não são uma presença frequente nas pesquisas sobre infância.
Como resultado de uma convocação pública sobre o tema, a revista DESIDADES tem
o prazer de trazer nesta edição o dossiê “Infâncias no/do campo na América Latina”
organizado por quatro pesquisadoras, do Brasil e da Argentina. Esta edição traz
também a entrevista “Educação democrática – sem medo e sem mordaça”, duas
resenhas e a pesquisa bibliográfica de 32 publicações sobre infância e/ou juventude
na América Latina lançadas no último trimestre. Boa leitura!
Equipe editorial
José de Souza Martins certa vez lançou uma crítica às Ciências Sociais afirmando que
comumente nos interessamos apenas pelos “[...] informantes que estão no centro dos
acontecimentos, que têm um certo domínio das ocorrências, que têm, supostamente uma
visão mais ampla das coisas”, notadamente, os adultos (Martins, 1993, p.53). Destarte, o autor
desafiou os pesquisadores a trabalharem com a noção de que as crianças são cada vez mais
sujeitos do processo histórico. Se bem temos visto nas últimas décadas uma emergência das
crianças e das infâncias na pesquisa social, a qual representa um avanço significativo para
o campo dos estudos da infância, há um grupo de crianças que ainda carecem de atenção,
sobretudo pelos pesquisadores das Ciências Sociais: o das crianças que residem no campo
ou são consideradas do campo. Se as crianças são marginalizadas nas pesquisas científicas,
as crianças no e do campo sofrem multiplamente esse processo. É preciso antes de mais
nada definir que ao nos referirmos às crianças do campo estamos salientando as condições
de vida das crianças rurais que estão ou não atualmente morando na zona rural e quando
nos referimos às crianças no campo estamos dando ênfase ao seu local de moradia.
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O mundo rural tornou-se objeto de estudo e de interesse dos sociólogos
rurais pelo “lado negativo”, por aquilo que parecia incongruente com as
fantasias da modernidade. Não por aquilo que as populações rurais eram
e, sim, por aquilo que os sociólogos gostariam que elas fossem (Martins,
2000, p. 06).
Essa depreciação pode ser entendida, dentre outras coisas, pela precariedade dos
modos de vida no campo, tendo em vista que o mundo rural carece de um olhar mais
atento por parte de políticas sociais e dos governantes, o que contribui para que seja
tomado como um lugar atrasado, rude, não civilizado (Tassara, 2007). Assim como
durante muito tempo as crianças e as infâncias foram colocadas de lado na pesquisa
científica e acopladas a objetos sociológicos clássicos, como a família e a escola,
a infância no/do campo, na literatura das Ciências Sociais, foi inicialmente restrita
às discussões sobre o trabalho infantil ou sobre a escola. Deste modo os trabalhos
sobre infância rural apareciam em geral em discussões sobre a exploração do trabalho
infantil, ressaltando seu caráter exploratório e usurpador da infância, ou em relação
com programas de erradicação do trabalho infantil, sem nunca considerar outras
possibilidades de experiência com o trabalho infantil como a socialização (Sousa,
2004). Por sua vez, quando não era restrita ao trabalho infantil, a infância no campo
era sempre vista a partir da ótica da educação escolar, em que o destaque está na sua
precariedade.
Se infância pode ser entendida como “a primeira parte do ciclo da vida” ou “os arranjos
institucionais que separam crianças de adultos” ou ainda “o espaço estruturado criado
por esses arranjos que são ocupados pelas crianças” (James; James, 2012:14, tradução
nossa), a infância rural pode ser entendida como o espaço sócio-estrutural ao qual as
crianças do campo pertencem. Embora Qvortrup (1994) insista que a infância é uma
variável universal em todas as sociedades a despeito das crianças que dela fazem parte,
tomamos partido de um entendimento plural das infâncias, na medida em que os espaços
estruturados criados por arranjos institucionais, como definem James e James (2012),
modificam-se ao sabor das variações históricas, sociais e culturais. A “política cultural
da infância” para James (2007) dá conta de compreender os aspectos que unificam as
crianças enquanto categoria geracional pensadas a partir de um recorte universalista e
ao mesmo tempo a diversidade das formas de ser criança ao redor do planeta, dentre
elas as crianças rurais. Nesse sentido, podemos pensar com Qvortrup (2010; 2011) que
as crianças formam um grupo minoritário frente ao grupo dominante, os adultos,
independentemente do seu lugar de moradia. No entanto, parece-nos útil trazer a
discussão dos marcadores sociais da diferença para compreender especificidades na
forma de ser criança entre essas populações. Mas, podemos nos indagar até que ponto
o elogio à diversidade pode colocar em risco os ganhos da categoria infância como uma
variável macrossocial e estrutural.
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campo e para as pesquisas que as tomam como sujeitos. Aspiramos mostrar que as
crianças das áreas rurais se relacionam com os seus pares e com os adultos “[...] ao
mesmo tempo em que convivem com seus outros papéis, suas funções dentro da
comunidade familiar, o cumprimento de suas tarefas. Ela constrói e vive o hoje, vive a
sua história” (Leite, 1996, p.175). Esperamos através desse trabalho, quebrar a imagem
engessada que ainda há da infância e da criança no/do campo. É importante fugir dos
estereótipos e destacar, outros tipos de aprendizagens que não passem pela escola
formal, mas a aprendizagem agrícola, outros modos de produzir conhecimento, ou
de produção do corpo, outras formas de experimentar a ludicidade, a relação com a
natureza e os animais, outros modos de leitura de si mesma, como criança, e do mundo;
sua religiosidade e parentesco, dentre outros, para que possamos compreender de que
infâncias estamos falando.
Em definitiva, especialmente nas Ciências Sociais, ainda hoje há uma lacuna em relação
à infância no campo dedicado aos estudos rurais (Stropasolas, 2011; Silva et al, 2013).
Isso se reflete no fato de que, apesar dos esforços de divulgação do dossiê que foram
feitos, a submissão de artigos para avaliação e possível publicação não foi numerosa.
Contrariamente, os estudos sobre juventude rural aparecem em grande quantidade
de produção, relacionados, sobretudo aos temas da migração, aos problemas
sociais referentes à sucessão geracional da terra (Brumer; Anjos, 2008). Ainda assim,
acreditamos, como Stropasolas (2011), que a “origem dos problemas que afetam os
jovens rurais deve ser buscada ainda na infância” (p. 56). É preciso lembrarmos que
nem o rural e nem a infância são estáticos, ambos são dinâmicos e estão em constante
processo de transformação. Dessa forma, um dos nossos objetivos com este Dossiê é
apresentar aos leitores um panorama sobre as sucessões de mudanças ocorridas pelas
infâncias no/do campo.
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contrapõem a narrativa imagética adulta que desfoca os movimentos de luta por terra
e moradia, perdendo seu caráter lúdico ou poético, excluindo sensibilidade estética de
crianças, homens e mulheres assentados.
O artigo de Joel Orlando Bevilaqua Marin, “Infância rural e trabalho infantil: concepções
em contexto de mudanças”, analisa concepções de infância e de trabalho da criança
expressas na legislação vigente no Brasil e na visão de pais de crianças que vivem em
unidades de produção familiar. A pesquisa se realizou através da análise às leis de
proteção da infância e de entrevistas dirigidas para dezesseis agricultores familiares
de Itapuranga-Goiás, com filhos de idade entre seis e catorze anos de idade. As leis
de proteção à infância que categorizaram como “trabalho infantil” certas atividades
executadas por crianças em unidades de produção familiar desencadearam mudanças
nas formas de socialização e de transmissão dos saberes-fazeres às crianças, reduzindo
a importância educativa dos pais.
Patrícia Ames apresenta-nos o texto “Los aprendizajes de los niños rurales en grupos
multiedad y su uso en la experiencia escolar multigrado”. Este trabalho configura
parte de sua etnografia na Amazônia peruana, cuja investigação de um grupo de
famílias rurais com crianças de diferentes idades, identificou quatro características
centrais da aprendizagem em casa: o desenvolvimento de um senso de autonomia e
responsabilidade; a importância de observação; a prática como meio de desenvolver
habilidades; e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. Nesta pesquisa
verificou-se a experiência de meninas rurais em grupos de idades mistas como uma
importante fonte de aprendizagem para outras crianças. No âmago do artigo está a
discussão sobre a escola multisseriada, em que crianças de várias séries dividem a sala
de aula sob a responsabilidade de um único professor.
O artigo “Invertendo a ordem geracional: a relação das crianças da zona rural de Orobó
(PE) com as novas TIC’s”, escrito por Patrícia Oliveira S. dos Santos e Maria de Assunção
Lima de Paulo, discute o crescente uso do acesso à internet pelas crianças da zona rural
e uma inversão da ordem geracional, uma vez que as crianças ensinam aos adultos como
fazer uso das novas TIC’s. Destaca-se aqui o acesso à internet por meio do smartphone,
ganhando destaque a relação com as redes sociais do whatsapp e o youtube. Trata-se de
uma investigação etnográfica por meio da observação participante.
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adulto, rural e urbano. Assim, os autores demonstram como, conforme os sujeitos
da pesquisa, ser criança é entendido como uma substância que atravessa não só as
crianças como também os adultos. Rejeitando uma alteridade fundamental entre
crianças e adultos, o texto defende a pesquisa com crianças de forma a dar conta de
suas múltiplas ontologias, tomando como inspiração a proposta teórica-epistemológica
de Archie Mafeje e a sua crítica às taxonomizações feitas pela Antropologia.
Por fim, mas não menos importante gostaríamos de tecer algumas palavras de
agradecimento para todos que junto conosco contribuíram para a realização deste
trabalho. Somos gratas aos autores de cada artigo enviado para a avaliação, pela
disposição em contribuir para a publicação dessa rara coletânea. Agradecemos a todos os
pareceristas convidados que dedicaram seu tempo cooperando para o aperfeiçoamento
de cada trabalho aqui apresentado. Agradecemos também a Elizângela Ferreira da Silva,
Toni Martins, Wanderlan da Silva Alves, também por nos disponibilizarem um pouco do
seu tempo nos ajudando com as traduções para o português e para o espanhol. Somos
gratas ainda aos editores e a todos que fazem a Revista DESidades: Revista Eletrônica
de Divulgação Científica da Infância e Juventude, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa
e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas – NIPIAC, pelo paciente e
dedicado trabalho de lançar esse dossiê sobre crianças no campo e do campo. Ao mesmo
tempo em que parabenizamos a Revista Desidades pela sua publicação trimestral e
bilíngue, esforço heroico em tempos de escassos recursos e breves entusiasmos.
Referências Bibliográficas
BRUMER, A.; ANJOS. G. dos. Gênero e reprodução social na agricultura familiar. Revista NERA
(UNESP), v.11, p. 1-12, 2008.
JAMES, A.; JAMES, A. Key concepts in Childhood Studies. 2. ed. Sage, 2012.
JAMES, A. Giving voice to children’s voices: practices and problems, pitfalls and potentials.
American Anthropologist, Flushing, v. 109, n.2, p. 261-72, 2007.
MARTINS, J. de S. (Org.). O Massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo:
Hucitec, 1993.
______. O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural. Revista
Estudos Sociedade e Agricultura, n. 15, p. 5-12, out., 2000.
QVORTRUP, J. A tentação da diversidade e seus riscos. Educação & Sociedade, v.31, n. 113, p. 1.121-
1.136, out./dez., 2010.
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SOUSA, E. L. de. “Que trabalhais como se brincásseis”: trabalho e ludicidade na infância capuxu.
2004. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2004.
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Com os agradecimentos da Equipe Editorial da DESidades
Ana Cláudia de Azevedo Peixoto – Brasil, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Antônio Hilário Aguilera Urquiza – Brasil, Universidade de São Paulo /Ribeirão Preto
Denise Maria de Carvalho Lopes – Brasil, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Imagem: PxHere
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Fotografias produzidas por um grupo de crianças (acervo das autoras)
1 Vale destacar o retrocesso que está sendo imposto à população brasileira e às conquistas relativas à
democracia e outras de caráter social e econômico. Segundo relatório da Comissão Pastoral da Terra: desde
2003, a violência no campo no Brasil não era tão alta quanto foi em 2017. O número é 16,4% maior que em
2016, quando aconteceram 61 assassinatos, e quase o dobro de 2014, com 36 vítimas. A análise consta no
relatório Conflitos no Campo Brasil 2017, Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Achille Mbembe (2016) tem inspirado a pensar sobre a presença soberana daqueles
que agem como se tivessem o direito de matar e escolher quais grupos devem viver e
quais podem ser exterminados. Morte não apenas do corpo físico, mas de propostas e
projetos de determinados grupos, de ações e relações com o outro, de jeitos de estar
e se posicionar no mundo. Refletir sobre essa asserção permitiu-nos compreender os
lutadores pela terra, seu direito a nela viver e tirar dela seu justo sustento como prática
que freia, prende e altera, ainda que com vagar, as intempestivas formas e técnicas de
morte atualmente em curso, em que “exercitar a soberania é exercer controle sobre a
mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder” (Mbembe,
2016, p. 123). Ressalta-se que as crianças estão compreendidas nesse processo e, por
isso, acreditamos que suas presenças são fundamentais como marcos a registrar suas
existências e formas de compreender o mundo, um forte e sublime modo de resistir.
Saskia Sassen (2016) aproxima-se dessa reflexão incluindo outro elemento. O que
temos, segundo ela, é uma lógica de expulsões de pessoas e grupos sociais de seus
lugares de origem, derivando, por vezes, em sua completa exclusão do mapa. A autora
levanta uma importante tese: a de que estamos diante de formações predatórias, e
não mais de uma elite predatória, que domina partes do mundo e impõe seus modos
de gerir, diríamos aqui, não apenas a economia, mas, com ela, modos de pensar e agir,
formas de organizações sociais e culturais. Assim, afirmamos que o MST encontra-se na
contramão dessa lógica capitalista que centrifuga ideias e práticas sociais igualitárias,
e o que nos interessa, aqui, envolvendo as crianças como grupos que não podem ser
esquecidos, cujas vozes engrossam e adensam reivindicações.
A Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno situa-se a 45 quilômetros da cidade de São Paulo,
sendo município de Franco da Rocha. É desta Comuna do MST — como são definidos
os assentamentos dentro de grandes cidades — que partimos para a escrita deste
ensaio, convidando leitores e leitoras a participarem conosco do que está representado
como um recorte da pesquisa Ser menina e ser menino no assentamento MST: o que
as crianças registram em suas máquinas fotográficas?2, que buscou conhecer relações
cotidianas entre meninas e meninos assentados, porém, na luta pela terra, pela reforma
agrária e pela organização dos trabalhadores rurais nesse mesmo assentamento, junto
a adultos e adultas, familiares ou não.
As câmeras são feitas em latas reutilizadas de diferentes tamanhos. Brincar com a lata
e buscar o objeto a ser fotografado compõem um jogo entre todos os participantes,
num rico processo que envolve conhecer a cena fotografada e reconhecê-la, ao mesmo
tempo que a todo o percurso de revelação, em que se experimenta a fotografia,
confeccionando a lata e revelando a fotografia num local escuro. É válido ressaltar que,
junto às crianças, temos, nesse momento, um dos pontos altos desse caminho.
Ao longo de seis oficinas, foram criadas 30 fotos, numa média de duas a três por grupos
de crianças. É apresentada aqui apenas uma mostra de seis fotografias que julgamos
representativas do conjunto3. No decorrer do percurso feito em caminhadas para se
captar em sentidos diversos o espaço físico/ambiente do assentamento, foram se
constituindo grupos de crianças de idades variadas. A observação e feitura de câmeras
para, posteriormente, elaborar e revelar as fotos resultaram em fotografias coletivas,
ou seja, realizadas por grupos de crianças fotografando ao longo do percurso. Optamos
por não colocar o nome de um único autor para não nos arriscarmos a deixar alguém
de fora sem a devida referência nominal, mas informamos que todos os grupos
foram formados por meninas e meninos e que os mesmos se faziam e desfaziam
constantemente, a depender da proposta e das motivações sugeridas no próprio
campo de pesquisa.
3 Em algumas poucas passagens optamos por repetir algumas fotos com o objetivo de ressaltar imagens
e reflexões delas advindas.
As disputas pela terra, pela reforma agrária e por uma sociedade mais justa e fraterna
têm composto o cotidiano do MST ao longo de décadas. Segundo o site oficial do
MST4 (www.mst.org.br), atualmente, há em torno de 350 mil famílias assentadas em
24 estados. Movimento Social de maior relevância, o MST tem constantemente nos
apresentado formas de luta pela reforma agrária e combate à ausência de políticas
públicas para o uso de terras no meio rural e, em especial, para aquelas que não
cumprem sua função social, tal como consagrado na Constituição Federal de 1988. A
busca constante pela garantia de justiça social está embutida nas vias de luta política
em ações locais e globais, que visam a assentar centenas de milhares de trabalhadores
e trabalhadoras, bem como objetivam questionar e alterar relações de classe, gênero,
étnicas e ambientais cujo caráter ostensivamente desigual exclui e procura calar
inúmeros grupos sociais.
Se é possível afirmar que o morador adulto dos assentamentos traz consigo a resistência
e seus dissabores e guarda a prática urgente da luta e suas conquistas, como nos
informam Catarucci (2014) e Raggi (2014), resta a pergunta: o que sabemos sobre esses
espaços a partir do morador-criança? São criados e transformados em ambientes com
marcas infantis, cujas vozes são ouvidas e atendidas? Após a permanência em campo,
observamos que há lugares criados por elas e que, embora possam parecer banais a quem
veja apressadamente, têm grande força agregadora de grupos infantis. Assim, brincar
é uma palavra-chave que não podemos descartar. Acreditamos que o assentamento
4 O grupo Usina de Arquitetura foi convidado pelo MST para finalizar o projeto de habitação na Comuna
da Terra Dom Tomás, aprová-lo para financiamento e executar a obra. Foram aprovadas seis tipologias –
casas de barro em bloco de cerâmica aparente, com 70m² aproximadamente. Teve uma associação de dois
financiamentos públicos para a construção das casas: INCRA e Caixa Económica Federal.
Como afirma Ana Paula Soares da Silva (2017), é preciso encarar e debruçar-se sobre
enormes desafios— coletivamente— “uma vez que a produção acadêmica acerca da
oferta/demanda e das práticas pedagógicas da educação infantil nos territórios rurais
ainda é bastante incipiente” (p. 297). Considera-se, e não de modo solitário, que o
movimento que se traduz em texto-imagem-escritura se junta àqueles que buscam
debater e desmontar crises de desestabilização que têm se apresentado como intensa
tormenta que atinge proporções gigantescas em que muitas das conquistas dos
trabalhadores estão sendo dizimadas no Brasil e na América Latina. O texto escrito,
assim como o imagético, também nos traz a existência de um potencial de luta que
se comporta como campo de explanação e disputa de diferentes pontos de vista,
conflitos e contradições que lhes são intrínsecos. As crianças não surgem como meras
coadjuvantes num cenário criado por outros, mas como agentes no processo de luta,
vozes que deslocam tempos e espaços, não apenas nos assentamentos, como também
nas marchas do MST em disputa e reivindicação de terras.
Um grupo composto por três mulheres e um homem, sendo dois estudantes e duas
docentes universitárias, estrangeiros no assentamento, passou a tomar contato com as
crianças frequentadoras das Cirandas, cujas famílias aceitaram suas participações em
pesquisa via conversa prévia e declaração de termo de aceite em participar. A Ciranda
Infantil, que será apresentada mais adiante, ofereceu-se como importante ponto para
o estabelecimento de conversas, propostas e a realização de oficinas para a feitura de
câmeras artesanais.
Lá de cima, no topo da estrada que leva à Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, vê-
se parte da estação de trem da cidade de Franco da Rocha. O assentamento está na
confluência entre o anteriormente denominado Hospital Psiquiátrico do Juquery, criado
no século XIX, atual Complexo Hospitalar do Juquery, e a Penitenciária do Estado, que leva
o nome da cidade. Temos notadamente uma vizinhança relevante para a constituição do
assentamento e suas relações, gerando certas representações relativas ao ser morador
desse espaço. Destaca-se que, depois da entrada, nada mais se vê dessa vizinhança.
Concernente às crianças, algumas pessoas sugeriram, de modo bastante brando, certo
receio quanto à entrada e saída em dias de visitas aos presidiários e demonstraram
temer as manifestações destes. Embora o assunto não tenha retornado, sequer nas
fotografias, infere-se, contudo, que podem marcar a vida de todos os moradores e
moradoras, cultivando suas práticas sociais.
A Ciranda Infantil na Comuna da Terra Dom Tomás é um espaço amplo, com duas salas,
sendo uma para leitura e estudos e outra para eventos, cozinha e área aberta em que é
possível se reunir para conversar ou brincar. Deve ficar claro que Cirandas Infantis não
são escolas. Edna Rosseto (2008) define-as como espaço de educação não formal dentro
dos assentamentos, que não está vinculado ao sistema educacional do país. As Cirandas
seriam espaços de aprendizagens, trocas, brincadeiras, “espaços em que elas (crianças)
aprendem a viver coletivamente” (op. cit.). As Cirandas Infantis, de modo geral, são
entendidas como espaços educativos, cujas atividades devem ter como objetivo as
crianças em suas várias dimensões: dos valores, do lúdico, da imaginação, das fantasias,
da cultura, da história, do trabalho, entre outras. A Ciranda não pode ser vista apenas
como um direito das mães e pais, mas, sobretudo da criança, que tem a possibilidade de
acompanhá-los em cursos e outras atividades, favorecendo sua participação.
Observa-se o profundo caráter político existente nas práticas e presença dos Sem
Terrinha. Há, inegavelmente, a construção de uma infância em organização e luta
política. Em atividades com os familiares e/ou demais crianças, elas são agentes que
reconfiguram o movimento como componente dentro de outro maior, o MST, que parece
se ver motivado e preocupado com a forma como meninas e meninos vivem dentro dos
assentamentos e acampamentos.
A técnica pinhole nos remete ao princípio básico da fotografia: uma caixa escura com
um pequeno orifício em que é possível controlar a entrada de luz, tal como o obturador
de uma câmera fotográfica convencional. A quantidade de luz que entra é a condição
para a captação da imagem. O importante e, diríamos, fantástico nesse processo é a
manutenção de estreito contato com o entorno a ser fotografado. O escurecer do dia,
uma nuvem intrusa que ousa encobrir o sol, assim como constantes movimentações de
pessoas ou coisas repercutem na qualidade e composição da foto. O fotógrafo atento
e sensível ao entorno fotografa com todos os seus sentidos a postos, não é só o olho a
funcionar, mas ele na relação com o corpo e este em sintonia com o que está à sua volta.
Diante disso, as crianças interagiam de modo sensível e surpreendente, contrariando,
por vezes, concepções pedagógicas predefinidas em que se afirma a incapacidade
infantil em se ater por longo tempo a determinadas atividades.
“Vamo tirar foto dali?” Sugere uma das meninas. “Dali onde? O que tem lá?” Pergunto.
Lúcia, a menina, pega em nossas mãos — minha e de outra pesquisadora, Carolina —,
leva-nos ao local em que estão os brinquedos e logo diz: “Tem os brinquedo. Agora
aqui tem brinquedo, vem ver.” O brinquedo mostrado foi fotografado por um grupo
composto por três crianças, menos Lúcia, curiosamente.
As histórias das latas se misturavam às suas histórias de vida e aos lugares eleitos para
serem fotografados. O gira-gira não era somente um gira-gira em meio a um local
gramado. Percebemos pelas falas que se tratavam de doações ou compras de um
equipamento reivindicado por meninas e meninos, como expressão do direito de brincar
com as demais crianças, ainda mais, o equipamento e o local concentravam pessoas e
simbolizavam um dos locais de relações de amizade, cuidados dos adultos em relação às
Pudemos encontrar certa regularidade nas escolhas feitas pelas crianças: a substância
do vivido nos brinquedos e ao redor, acumulada e movimentada pelas experiências no
assentamento e nas relações com as demais crianças e colegas. O cotidiano encontra-se
presentificado nas gangorras, gira-gira e balanços que compuseram a maior parte das
imagens captadas pelas meninas e meninos. Somando-se às imagens das paisagens com
carros, ruas, flores e árvores, esses eram os protagonistas da imagem fotográfica.
Recuperamos aqui a pergunta: quem fotografa quem e o quê? Que narrativas são
elaboradas sobre o assentamento? Pelas crianças, o resultado de uma luta incessante se faz
ver pelos brinquedos, e a dimensão brincalhona se faz corrente em reivindicações nem tão
comuns, mas que insistem em nos afirmar que as crianças estão por lá, como moradoras e
lutadoras, que revolvem a terra e a seus desejos e lhe configura outro ambiente.
Há uma existência exibida por aqueles que vivem nesse espaço que irrompe o cotidiano e
sua versão mais rotineira e dão sentido, ainda que nas brechas, às suas experiências diárias
expressas em lutas constantes, modificando-as. A imaginação vai se desenvolvendo,
alimentando-se e fazendo-se presente nas escolhas e composições. Como sublinha Sarlo
(2015), há, nessas escolhas, e no que se mostra a partir delas, um sentido social que é a
condição mínima e necessária para que possam se desenvolver os processos ligados ao
imaginário de forma metafórica e metonímica da arte, do romance, da poesia, ou mais
ainda, para que eles sejam apreciados por todos, reconhecidos ao mesmo tempo como
sedutores e, então, não destituídos de sentido.
São vários os testemunhos da conquista, como nas fotos em que distintos brinquedos
foram registrados. Importa aqui compreender que a luta pelo assentamento, ainda que
ofuscada pelo tempo ou por informações que excluem movimentos sociais, pode se
materializar nessas imagens-lembranças que, ainda sem rostos, têm histórias a contar
pelas crianças assentadas.
Georges Didi-Huberman (2017) define as imagens como espaços de luta. Partimos dessa
afirmação e refletimos sobre a ideia de que as fotografias elaboradas pelas crianças
carregam também essa dimensão, somando-as a suas características documentais
O que se registra quando imagens são arroladas? Quem produz as imagens de quem? Elas
guardam grande força formativa e informativa em suas narrativas, porém, afirmando pontos
de vistas, por vezes, únicos. Majoritariamente, temos os adultos sobre eles mesmos ou sobre
temáticas convencionadas por eles. Quanto às crianças moradoras em assentamentos do
MST, ainda nos resta saber tantas coisas. Fica, portanto, o convite para olhar novamente as
imagens criadas coletivamente por elas e seguir refletindo e adensando diálogos.
ACHILLE, M. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios, (PPGAV/EBA/UFRJ), n. 32, dez., 2016.
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Cortez, v. 1., 2012
RESUMO Este artigo apresenta reflexões que buscam, de modo amplo, aproximações com o cotidiano
infantil no assentamento Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno e, de forma mais estrita,
conhecer alguns aspectos das lutas e suas conquistas pelas e com as crianças. O método
compreendeu a busca de indícios nas imagens fotográficas criadas por crianças em contexto de
pesquisa, afirmando-as como fontes documentais e agentes. Visamos a adotar o ponto de vista
das crianças, porém, esse se encontra junto a informações dadas e consideradas pelos adultos.
As imagens se ofereceram como orientadoras das reflexões, bem como as conversas com a
criançada durante a feitura das câmeras, captação de imagens e caminhadas. As imagens de
brinquedos e paisagens comuns registradas pelas crianças se contrapõem à narrativa imagética
adulta que, frequentemente, desfoca os movimentos sociais, sobretudo, de luta por terra e
moradia, deixando descoberta a presença de seu caráter lúdico ou poético, somado à prática
política, excluindo sensibilidade estética não apenas das crianças, mas também de homens e
mulheres assentados.
Paula França
Pedagoga - Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR),
Brasil, do curso Pedagogia da Terra. Militante e
coordenadora regional de Educação do Movimento dos/as
Trabalhadores/as Rurais sem Terra (MST), Brasil.
E-mail: pauladasilvafranca@gmail.com
Imagem: PxHere
Garotas da colônia:
aprender e trabalhar na infância rural
Ana Padawer
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Apresentação1
Era uma tarde fresca de maio de 2009, e Sonia2, uma menina de 11 anos, estava caminhando
com sua mãe e comigo pelo sítio, logo depois do almoço. Enquanto percorríamos as
estufas de tomate, as plantações de milho, os campos onde pastava o gado bovino,
elas me contavam como haviam voltado para a zona rural quando a menina ainda era
um bebê e seu pai herdou uma propriedade de 12 hectares. O pai de Sonia foi criado
no campo, mas havia migrado para a cidade e trabalhava como carpinteiro. A mãe, ao
contrário, foi criada em uma pequena cidade, tendo que, ao estabelecer-se “na colônia3”,
aprender as tarefas rurais, nas quais se incorporaram Sonia e seus irmãos, desde
pequenos. Foi assim que a mãe e as crianças tiveram que aprender como se nivelava o
solo de uma estufa, que quantidade de agrotóxico usar, como controlar a temperatura
para evitar que as mudas se queimassem, como prender as vacas durante a ordenha
para evitar os coices, etc. Sonia e sua mãe assumiam diariamente muitas destas tarefas,
além dos afazeres domésticos, logo depois do almoço, quando a menina voltava da
escola; realizavam todas as tarefas à tarde, devido ao fato de que a mãe acompanhava
a filha pelos vários quilômetros de atalhos até chegar à escola, para evitar que ela
percorresse sozinha uma estrada deserta e sem transporte público. Ela geralmente
ficava na escola esperando que Sonia terminasse, para não ter que realizar duas vezes
essa longa caminhada. Apesar de todas as atividades rurais que desenvolviam, Sonia
e sua mãe se viam como “ajudas” para o marido e para os dois irmãos mais velhos,
os quais alternavam o trabalho no sítio com uma carpintaria que tinham na cidade.
Enquanto percorria seu sítio, a mãe de Sonia me falava do sacrifício e do orgulho de ser
da colônia, de ter abandonado as comodidades da cidade em busca de uma vida que lhe
havia proporcionado benefícios morais, porque tinha podido transmitir a seus filhos o
valor do trabalho (visita ao sítio da família Costas, julho 2009).
Sonia foi a primeira “garota da colônia” que conheci quando comecei meu trabalho de
campo etnográfico em San Ingnacio, um município localizado na província de Misiones,
extremo noroeste da Argentina. O trabalho de campo incluía observações participantes
em escolas, sítios e aldeias indígenas, assim como entrevistas abertas, análises de
estatísticas e de dados geo referenciados. Seguindo a perspectiva de E. Rockwell (1997),
aproximei-me dessas famílias com o objetivo de estudar as experiências formativas
das crianças dentro e fora das escolas, entendendo que a participação periférica
nas atividades diárias constitui, recuperando a Lave e Wenger (2007), uma forma de
aprender e, ao mesmo tempo, construir o mundo social.
1 Este artigo baseou-se em uma pesquisa etnográfica iniciada em 2008, como parte de uma pesquisa que
estuda experiências de identificação em diferentes grupos étnicos na Argentina (Novaro, 2011).
2 Os nomes das pessoas aqui apresentados são fictícios para preservar o anonimato, mas as localizações
são reais.
3 As colônias agrícolas argentinas são povoados, ou vilas, fundados em fins do século XIX com o objetivo
de assentar imigrantes europeus para o desenvolvimento
Através do trabalho de campo com famílias como a de Sonia, pude analisar a participação
gradual das jovens gerações na reprodução social das famílias, e seu lugar central na
construção histórica de identificações contrastantes (Briones, 1996). Dessa forma, as
meninas crioulas e agricultoras iam reconhecendo-se como “gente do sítio”, enquanto
suas companheiras de escola e brincadeiras se definiam como mbyá-guarani: “gente da
serra”. As meninas iam assumindo certas formas propriamente femininas de habitar o
espaço rural, mas também marcadas por distinções étnicas e de posição social. Essas
identidades contrastantes iam-se configurando de acordo com as transformações
históricas no espaço social agrário, já que a estrutura social baseada em grandes
latifúndios e assentamentos no noroeste da Argentina se encontrava em redefinição
há três décadas, a partir da expansão da indústria florestal e o consequente êxodo da
população rural.
Essas pequenas transformações tinham lugar pelo mero fato de que as experiências
formativas não constituem uma transmissão de conhecimentos idênticos de uma
geração à outra, através da imitação, sendo que implicam apropriações do conhecimento
disponível em seu entorno social e histórico imediato (Rockwell, 1997). As garotas,
como aprendizes, “mergulhavam” naqueles conhecimentos que dispunham aqueles
que detinham tais experiências em seu entorno imediato, mas nesse “mergulhar”,
transformavam também as formas de fazer e entender o mundo (Padaise e Rogoff,
2009). Tratava-se de um processo em que o que se podia ver era uma heterogeneidade
de práticas de garotas e garotos que tentavam participar das atividades, e não a
homogeneidade de crianças que meramente copiavam.
Neste último aspecto, ocupava um lugar especial a escola, espaço onde as meninas da
colônia tinham acesso a uma cultura legitimada socialmente. Devido à sua condição de
mulheres de famílias agricultoras, elas ocupavam um lugar subordinado nas estratégias
de acumulação de capital do grupo doméstico e, em geral, não herdavam a propriedade
(Stolen, 2004). Nesse sentido, poder frequentar a escola constituía para essas meninas uma
possibilidade de futuro diferente do de suas mães, que escassamente haviam terminado
sua escolaridade e dependeram de um casamento para adquirir um meio de vida.
4 No Brasil, os grupos ocupantes argentinos seriam algo semelhante às ocupações dos Sem-Terra.
As garotas na colônia
Durante meu trabalho de campo, pude concluir que as experiências formativas das
garotas da colônia em San Ignacio incluíam praticamente todas as tarefas cotidianas
da propriedade familiar. Nestes espaços, as situações de diversão, aprendizagem
e trabalho se entrelaçavam na cotidianidade dos meninos e meninas, que usavam
ferramentas adultas para seus jogos. Assim se iniciavam, a partir de encenações
lúdicas (Larricq, 1993), na participação progressiva das atividades domésticas de
reprodução social (Lave; Wenger, 2007), a qual repetia um padrão básico de divisão
sexual do trabalho. Enquanto as meninas se ocupavam do cuidado dos irmãozinhos, a
limpeza da roupa, da cozinha, do trato dos jardins e hortas, seus irmãos mais velhos se
incorporavam às tarefas do sítio de maior exigência física, no manejo de ferramentas
e do maquinário agrícola.
Certo dia, quando visitei o sítio dos Soares, pude observar em detalhes o papel de
guias, no processo de aquisição de habilidades e ensino do cuidado, que realizavam
os irmãos mais velhos, diferenciado em termos de gênero. Enquanto percorríamos o
sítio da família, os meninos mais velhos distinguiam plantas isoladas entre os vegetais
da capoeira (terreno do sítio com mato roçado), enquanto que a intenção dos mais
novos, de abordarem esse conhecimento, se via quando reclamavam a atenção dos
mais velhos sobre alguma planta que havia passado inadvertida.
Damián era o responsável pela explicação sobre a organização dos cultivos (“aqui
plantamos milho porque a terra é melhor”). Foi o garoto que se encarregou de plantar,
tinha contabilizadas as filas de mandioca plantadas (“são 9”) e podia identificar mais
facilmente os brotos; por isso, sua irmã o consultava a respeito (“esta planta, como
se chama Damián?”). O jovem sabia de formas, espaços e também de períodos e
processos: em que momento se fizeram as plantações (“a cebola é do ano passado”)
e quando iam poder colher (“aos três meses volta a sair”), de acordo com a variedade
(“este milho é de três meses”).
No percurso pela horta, sua irmã Irene também intervinha com o que sabia, mas
perguntando ao seu irmão mais velho, e sempre estava atenta ao que faziam seus irmãos
mais novos: advertia-lhes que não pisassem as ramas de mandioca, que desviassem um
broto de melão (“olhe a plantinha, vocês!”); ou seja, cuidava deles, mas, ao mesmo
tempo, os orientava para que percebessem aspectos inadvertidos do entorno. Também
sua irmã mais nova, Martina, com 5 anos, ia identificando, já sozinha, alguns cultivos
(“olha a mandioca”; “aí tem feijão”). A detecção de plantas “perdidas na capoeira”
permitia às crianças desenvolverem suas capacidades de percepção de formas, cores,
texturas e processos que haviam adquirido, apropriando-se dos conhecimentos de seus
irmãos. É importante advertir como, no caso das crianças mais novas, as diferenças de
gênero não estavam tão marcadas como nas mais velhas: as meninas mais novas, como
Martina, brincavam e aprendiam em igualdade com os meninos.
Essa construção de gênero, organizada a partir das influências adultas, era rapidamente
assumida pelas crianças. Pude ver isso quando visitava a família Estrella, ao percorrer
o seu sítio acompanhada por Luciano e Patricia, de 9 e 8 anos, respectivamente.
Enquanto a menina carregava nos braços uma bebê, seu irmão levava um pequeno
facão na cintura. Durante nossa conversa sobre as atividades do sítio, voltei a perceber
que era o irmão mais velho quem sabia quais eram os diferentes setores semeados;
assim, Luciano sabia onde estava plantado o melão, que mal nascia no solo, uma vez
que estava presente quando seus pais o plantaram. Embora Patricia tivesse só um
ano a menos que Luciano, por sua posição na escala de irmãos e também por sua
condição de gênero, tinha um acesso menor a essas experiências formativas no sítio,
o que se podia ver quando seu irmão a corrigia na identificação ou no uso de certas
plantas. Ainda que executassem atividades sancionadas socialmente, em razão de
idade e gênero (“quando estou entediada, minha mãe me manda lavar roupa”, dizia a
menina), as atividades próprias dos homens eram, em parte, compartilhadas por suas
irmãs; por isso, Patricia sabia lidar com o facão que o seu irmão carregava na cintura.
Na região da colônia em San Ignacio, era possível encontrar numerosas pequenas escolas
primárias, mas as escolas secundárias se encontravam na cidade; os estudantes deviam
percorrer diariamente longas distâncias, o que dificultava sua frequência regular. Por
outro lado, eram caminhos pouco transitados, o que implicava em situações de perigo,
especialmente para as meninas e, para protegê-las no seu percurso às escolas, as famílias
desenvolviam diferentes estratégias: desde acompanhá-las diariamente (tarefa a cargo
das mães, como no caso da família Costa, apresentada no começo), até mandá-las para
morar com parentes ou amigos na cidade, em alojamentos estatais ou religiosos.
Mas se, no sítio, as garotas da colônia eram subordinadas, em virtude de seus atributos
“naturais”, a escola era um espaço onde as propriedades da feminilidade lhes resultavam
particularmente valiosas: a “aplicação” das meninas resume uma série de atributos,
como a tranquilidade, o estudo e o interesse na aula (Stanley, 1995), prática e valores em
que as garotas da colônia eram também socializadas. Esses valores eram reconhecidos
pelos professores e prediziam uma permanência maior das meninas na escola, em
relação aos seus irmãos homens. Dessa forma, a possibilidade de concluir os estudos se
complementava com as estratégias familiares de acumulação, já que as jovens tinham
outra opção de busca de recursos de reprodução social, procurando empregos urbanos
a partir de sua maior qualificação.
As meninas pareciam, por sua condição de gênero “aplicada”, candidatas para estudar.
No entanto, esta não era uma conclusão automática, já que o pai reconhecia também
um aspecto ligado à inteligência e à perseverança de cada uma (“Elas são garotas, são
estudiosas; mas, terminar a escola... depende de sua capacidade e empenho”), no que
concordava a mãe, apresentando sua experiência como contraponto (“eu nunca gostei
de estudar, mas elas sim; estão procurando estudar para no futuro serem professoras”).
Para as famílias rurais de San Ignacio, a escola não tinha relação exclusivamente com o
acesso à alta cultura ou ao progresso social, mas era associada à questão do gosto; no
entanto, como já defendido por diferentes autores, compartilhar o gosto pelo estudo
implica identificar-se com a cultura legitimada através da escola, que historicamente tem
respondido os valores da classe média e alta (Bourdieu, 2002). A importância do esforço
para o êxito escolar foi recuperada por um professor da escola secundária, quando visitou
a família Kurz, certo dia, enquanto os pais e as meninas punham também na balança os
ritmos das atividades do sítio. Para o professor, as meninas eram “aplicadas, educadas”,
e propunha uma cumplicidade adulta a respeito (“digo isso para a sua tranquilidade”):
por isso, visitava a família para incentivar as meninas a fazerem as avaliações pendentes.
A mãe concordava com esses objetivos (“isso espero, que façam as provas, disso eu
cuido”), mas, no diálogo com o professor, os pais tentavam negociar “uma exceção”
para que as filhas pudessem acompanhar o pai na venda dos produtos da horta.
Embora a conversa se realizasse entre adultos, uma das falas das meninas foi um indício
de seu interesse em participar da principal atividade dos pais, a partir de habilidades que
a própria escola lhes dava, nesse caso, para lidar com uma contabilidade básica (“nós
vamos com papai porque vendemos fiado, e assim vamos anotando o que as pessoas
devem a ele”). No mesmo sentido, interveio o professor (“nós entendemos, queremos
melhorar a questão da colaboração das famílias”), de modo que a proposta da escola não
se apresenta como uma via alternativa, mas complementar às necessidades familiares.
A via do estudo era um projeto das meninas, mas também uma aposta dos pais (“no
sítio, não é fácil a coisa”), que não viam outra alternativa para suas filhas, mais além do
casamento (“apoiá-las, se quiserem continuar estudando; depois, se desistirem, que se
casem e fiquem no sítio do marido”).
O gosto pelo estudo, que pode ser entendido como influência de modos de ser, próprios
das classes dominantes, implicava, de fato, algumas mudanças nas identificações das
garotas da colônia que se viam interessadas por trabalhos próprios da cidade. No entanto,
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RESUMO Neste trabalho, analiso, a partir de posições regulacionistas a respeito do trabalho infantil,
as participações das meninas nas atividades agrícolas em San Ignacio (Missões, Argentina). A
partir de referências a um trabalho de campo etnográfico iniciado em 2009, considero como
sua incorporação nos fazeres cotidianos dos sítios pode entender-se como experiências
formativas, isto é, como parte de um processo de aquisição progressiva de autonomia para
o próprio sustento, onde as distinções étnicas, de gênero, de idade e posição social definem
certas atividades e saberes como próprios das garotas do campo. Esses conhecimentos sobre o
mundo são os que lhes permitem entender, mas também transformar imperceptivelmente e em
seu fazer quotidiano, o mundo que as rodeia.
Ana Padawer
Doutora em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires
(UBA), Argentina. Pesquisadora Categoria Independente
do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas
(CONICET), Argentina. É professora adjunta regular do
Departamento de Ciências Antropológicas da Universidade
de Buenos Aires. Ministrou cursos de pós-graduação em
Educação e Antropologia em várias universidades na
Argentina, bem como cursos de formação em sindicatos de
professores e no Ministério da Educação Nacional.
E-mail: apadawer66@gmail.com
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No Brasil, desde as últimas décadas do século XX, múltiplos agentes sociais, vinculados
às instituições nacionais e internacionais, públicas e privadas, comprometidos com as
causas da infância, passaram a problematizar e combater o trabalho infantil em relações
assalariadas, relacionando-as à exploração, violência, degradação e ao aviltamento
das crianças. As providências para enfrentamento desse problema social foram a
garantia da educação escolar e a institucionalização de programas de distribuição de
renda. Na primeira década do século XX, mudanças nos dispositivos legais passaram a
tipificar como trabalho infantil diversas atividades realizadas por crianças em unidades
de produção familiar. Sob a perspectiva de agricultores familiares, o trabalho de
crianças no âmbito domiciliar integra processos de socialização e formação de futuros
herdeiros e trabalhadores. Porém, algumas mudanças jurídicas, a valorização da escola
e determinadas políticas de combate ao trabalho infantil interferem nas formas de
socialização e nas concepções de infância no meio rural.
Todavia, o fato de o trabalho da criança no meio rural ser considerado trabalho infantil,
portanto, legalmente proibido, impôs ao pesquisador cuidado ético e responsabilidade para
Sob essa orientação, as pessoas são consideradas iguais pela natureza humana, mas
diferentes na diversidade de suas condições, necessidades e concepções sociais. Nesse
sentido, como destacou Bonnet (1999), a Declaração Universal dos Direitos da Criança,
promulgada pela ONU em 1959, procurou fundar concepções universais de infância e
de direito da infância, enfatizando o papel dos Estados, da sociedade e da família na
promoção e garantia dos direitos da criança.
Nos primeiros anos da década de 1990, diversos agentes sociais, públicos e privados,
comprometidos com o combate das formas perversas de exploração de trabalho
infantil, criaram espaços para o debate, conscientização e mobilização da sociedade
para o enfrentamento desse problema social. Por conseguinte, foram instituídas
políticas de combate ao trabalho infantil e de valorização da escola sob o pressuposto
de que o “lugar de criança é na escola e não no trabalho” (Neves, 1999; Marin, 2005).
A obrigatoriedade da escolarização e o cumprimento da legislação operam como
marco referencial para construir concepção consensual, normas de enquadramento
social e ações de erradicação do trabalho infantil. Outra providência encaminhou-se
para a concessão de renda mensal às famílias em situações de pobreza, condicionada à
matrícula e permanência escolar (Marin; Marin, 2009).
Vale ressaltar que a Convenção 182 da OIT, de 1999, trouxe importantes especificações
de modalidades de trabalho infantil socialmente condenáveis, que repercutiram sobre
concepções de trabalhos realizados por crianças em unidades de produção familiar
no Brasil. Essa Convenção definiu as “piores formas de trabalho infantil”, divididas
em quatro principais categorias: a) as formas de escravidão ou práticas análogas
à escravidão; b) utilização, demanda e oferta de criança para fins de prostituição,
produção de materiais ou espetáculos pornográficos; c) utilização, demanda e oferta de
criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas; d)
trabalhos que, por sua natureza ou circunstância de execução, são prejudiciais à saúde,
segurança e moral da criança. Pelos gravíssimos riscos às crianças, essas categorias de
trabalho infantil deveriam ser erradicadas.
A destinação de trabalhos para crianças passa por diversos critérios restritivos. Na visão
de agricultores entrevistados, não é moralmente aceitável a destinação de trabalhos
a crianças sem o devido crescimento físico e cognitivo, nem mesmo a transferência
de responsabilidades de adultos. A partir dos trabalhos praticados em suas unidades
produtivas, condenam situações em que as crianças devem “pegar na enxada para
fazer capina”, “bater veneno na roça com bomba [pulverizador] nas costas”, “carregar
arrastando mangueira [equipamentos de irrigação]”, “ficar o dia todo no sol”, “moer
cana [para alimentar bovinos], porque é um serviço perigoso”, “carregar muito peso”,
“trabalhar o dia todo em serviço pesado”. Nesse entendimento, condenáveis são aqueles
trabalhos que suplantam a capacidade física e cognitiva da criança e que representam
perigos de acidentes e riscos à saúde. As crianças devem, portanto, ser protegidas de
tarefas que dilapidam prematuramente o trabalhador e podem inviabilizar o seu futuro.
A definição de trabalhos das crianças rurais também passa pelos critérios da divisão
sexual do trabalho e dos papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres. Na
contemporaneidade, tais diferenciações espaço-laborais continuam orientando as
relações de gênero no interior da família e os processos de socialização das novas
gerações. A destinação de diferentes tarefas às crianças também reproduz a divisão
O trabalho das crianças rurais também integra a ordem moral da família. Em sentido
abstrato, os agricultores relacionam o trabalho à dignidade humana pelo trabalho, ao
desenvolvimento do senso de responsabilidade e ao disciplinamento do corpo e da mente
da criança. Os pais atribuem-se a missão de educar e transmitir princípios morais necessários
Os pais sabem que a instituição escolar qualifica os filhos para ocupações laborais que
demandam maior especialização e proporcionam melhor remuneração. Não obstante
as dificuldades de deslocamento cotidiano do meio rural para as escolas situadas na
cidade de Itapuranga, os pais acreditam que seus filhos podem conseguir bons empregos
fora da agricultura por meio da escolarização prolongada. Assim, a escola configura-se
importante agente civilizador, uma vez que proporciona conhecimentos fundamentais
para o futuro das crianças. A escola cumpre, então, o papel de socialização das novas
gerações para a vida urbana, dotando-as de qualificação para ocupações laborais
urbanas e domínio dos novos códigos impostos pela sociedade globalizada.
Considerações finais
A categoria trabalho infantil foi introduzida por orientações legais e enquadramentos
de políticas públicas, sendo, portanto, externa aos agricultores pesquisados.
Fundamentadas em princípios de gerações passadas, as famílias de agricultores
defendem a prerrogativa de educadores dos filhos, valendo-se da “ajuda” para
socializar e transmitir saberes e valores morais às crianças. Contudo, reconhecem a
importância da educação escolar, não somente em decorrência da imposição de leis e
políticas públicas, mas por ser o meio privilegiado, senão único, de requalificar os filhos
para ocupações laborais fora da agricultura.
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RESUMO Este artigo analisa concepções de infância e de trabalho da criança expressas na legislação
vigente no Brasil e na visão de pais de crianças que vivem em unidades de produção familiar. A
pesquisa combinou levantamento documental, especialmente relacionado às leis de proteção
da infância, e entrevistas dirigidas para dezesseis agricultores familiares de Itapuranga - Goiás,
Brasil, com filhos de idade entre 6 e 14 anos. As leis de proteção à infância passaram a categorizar
como trabalho infantil certas atividades executadas por crianças em unidades de produção
familiar, por considerá-las prejudiciais à saúde. A intervenção do poder público, por meio de leis
e políticas públicas, desencadeia mudanças nas formas de socialização e de transmissão dos
saberes-fazeres às crianças, reduzindo a importância educativa dos pais.
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Introdução
O trabalho de pesquisa em escolas rurais tem frequentemente nos confrontado com
a ideia generalizada, entre professores e funcionários, de que as crianças rurais têm
oportunidades de aprendizagem limitadas fora da escola. Essa ideia não se sustenta
se as atividades das crianças são examinadas cuidadosamente. As experiências de
aprendizagem das crianças rurais estão profundamente ligadas às atividades domésticas
e produtivas que elas desenvolvem como parte de sua participação como membros ativos
de suas famílias. Essas experiências, no entanto, são frequentemente ignoradas, apesar
de conterem chaves importantes para alcançar uma melhor aprendizagem na escola.
Neste artigo, quero destacar algumas das características da aprendizagem que consegui
identificar através de um estudo etnográfico entre crianças ribeirinhas da Amazônia
peruana. Interessa-me ressaltar um caso em particular, no caso a aprendizagem em
grupo de idades mistas ou multi-idade. Esta tem uma importância fundamental para o
tipo de experiência escolar mais comum nas zonas rurais: a escola multisseriada, aquela
em que um professor atende a duas ou mais séries de uma vez (Little, 2006).
Aproximação conceitual
Parto de uma compreensão da aprendizagem como uma prática socialmente situada
ou construída, que envolve uma participação progressiva do aprendiz nas práticas
culturais de sua comunidade (Lave; Wegner, 1991; Rogoff, 1990), aproximação que se
tem usado frequentemente em outros contextos latinoamericanos (Padawer; Enriz,
2009; Paradise; Rogoff, 2009). Assim, reconhecem-se as crianças como atores sociais
e agentes ativos de seu próprio desenvolvimento, alinhada com as correntes atuais
da nova sociologia e da antropologia da infância (James; Prout, 1997; Cohn, 2000).
Leva-se em conta também que, nas sociedades rurais latinoamericanas, é frequente
que meninos e meninas se socializem no mundo dos adultos, porém separados desse
mundo, dado que os adultos realizam suas atividades imediatamente na comunidade
ou em casa e as crianças estão ao seu redor na maioria dessas atividades (Gaskins;
Paradise, 2009; Padawer; Enriz, 2009).
Aproximação metodológica
A investigação foi realizada pela autora em um povoado ribeirinho da Amazônia
peruana. O estudo, de caráter etnográfico, envolveu diversos métodos: um censo sócio-
demográfico; visitas às famílias; observação participante da vida cotidiana; entrevistas
O contexto do estudo
No Peru, 75% das escolas primárias são rurais, aproximadamente a metade delas são
multisseriadas (Defensoría del Pueblo, 2016), e essa porcentagem é ainda maior em
algumas regiões. É o caso da região de Ucayali, a segunda maior região da Amazônia
peruana, na qual 85% das escolas primárias são multisseriadas. É nessa região que se
encontra San Antonio, o lugar onde o estudo foi realizado. San Antonio é uma cidade
rural nas margens do rio Ucayali. Sua população (304 habitantes) é mestiça ribeirinha,
isto é, descende de povos indígenas misturados ao longo de décadas com a população
não indígena. Os habitantes de San Antonio vivem da pesca, da agricultura e da criação
de animais menores. Parte de sua produção se dirige ao autoconsumo, e outra parte se
vende no mercado da capital da região, especialmente a pesca. Os moradores dispõem
de um posto de saúde, escola inicial, primária multisseriada (com três professores
para atender a seis séries) e secundária, porém, não há serviços de eletricidade, água
potável, nem de esgoto.
Quais são as atividades que as crianças realizam? Meninas e meninos ajudam quase
igualmente em tarefas domésticas, carregando água e madeira do rio para a cozinha,
cuidando e alimentando pequenos animais domésticos (galinhas, porcos), lavando
pratos, fazendo pequenos serviços e pequenas compras, varrendo a casa, levando
coisas para o porto e cuidando de seus irmãos mais novos. Eles também participam da
agricultura (capina, apoio em atividades de colheita e semeadura) e na pesca (carregar
peixe, redes e ferramentas, verificar redes e pescar). Após os 12 anos, as atividades
entre meninos e meninas são claramente diferenciadas de acordo com os padrões de
gênero de trabalho entre adultos. As meninas estão mais ocupadas com atividades
domésticas e com o pomar, enquanto os meninos passam mais tempo na agricultura,
pescando ou fazendo e consertando ferramentas para atividades produtivas. Aos 12
anos, uma criança geralmente conhece a maioria das técnicas de pesca e agricultura
(embora a prática de algumas delas ainda espere até que se torne forte o suficiente
para realizá-las). O mesmo vale para as meninas, que são especializadas em muitas
tarefas domésticas e agrícolas realizadas por mulheres.
Um grupo de crianças tenta ajudar Oddy a desenrolar o fio usado para reparar as
redes. Edu (9) o faz bem e eu pergunto:
Patricia: Quem te ensinou?
Edu: Ninguém, (eu aprendi) apenas olhando como meu pai faz.
(Notas de campo, casa de Rosa)
Em contraste, em famílias pequenas, os pais têm mais tempo para cuidar dos filhos.
Famílias grandes, no entanto, implicam na presença de irmãos mais velhos que podem
ser responsáveis por crianças mais novas, dando-lhes atenção e apoio. A interação
com membros de diferentes faixas etárias também é estimulada pelas famílias inter-
relacionadas que vivem na aldeia (avós, tias, tios etc.). Na maioria das vezes, meninos e
meninas interagem com parentes de diferentes idades.
Nas várias atividades de aprendizagem que puderam ser observadas em casa, deve-se
notar que essas foram caracterizadas por fornecer um propósito claro para a atividade
e que isso tinha um significado para as crianças. Embora as crianças realizassem apenas
uma ação no meio de várias outras, elas recebiam o apoio necessário dos adultos nas
outras ações necessárias ou para orientá-las até que a sua aprendizagem terminasse.
O jogo é uma atividade comum e frequente entre as crianças, que não o realizam
apenas em momentos particulares, mas também no meio de seu trabalho. Quando
vão pescar ou transportar água, já que o fazem com outras crianças, aproveitam para
brincar um pouco ou fazer o trabalho enquanto brincam. Os adultos são permissivos
com brincadeiras infantis e as consideram uma atividade natural para eles.
Embora importante, o jogo não é a única atividade em que grupos de idades mistas
participam. Entre irmãos e parentes, o cuidado é uma atividade regular (por exemplo,
vestir uma menina, dar banho numa criança, alimentar um irmão mais novo). Através
de brincadeiras e cuidados, as crianças também aprendem sobre si mesmas. Ao tomar
banho no rio, por exemplo, observei Sandy (6 anos) ensinando Melina a nadar (4). Em
outra ocasião, um grupo de meninos pescava no lago e ensinava o que sabiam sobre
pesca enquanto estavam juntos. Ajudando sua mãe com a cozinha, uma criança mais
velha mostra a uma mais jovem como fazer certas tarefas. As crianças também gostam
de ensinar aos bebês novas palavras e identificar progressos no desenvolvimento de
sua linguagem oral. As crianças mais velhas, às vezes, brincam com as crianças na
escola, como Paula (10) faz com suas irmãs mais novas (6 e 4). Ao fazer o dever de
casa, as crianças recebem ajuda não apenas de suas mães, mas também de seus irmãos
mais velhos.
Também ressaltamos que meninos e meninas levam suas variadas formas de aprender
à sala de aula e as aproveitam para enfrentar o trabalho escolar: em seu trânsito de um
espaço para outro, meninos e meninas usam todas as suas estratégias para desenvolver
seu aprendizado, mostrando as fronteiras porosas entre os mundos da escola e da vida
cotidiana. A resposta flexível de alguns professores facilita esse processo, enquanto
em outros casos, a ideia de trabalho individual prevalece e essas estratégias são
interrompidas. Em ambos os casos, no entanto, são as crianças que fazem uso de seus
recursos, mas estes passam despercebidos pelos professores.
No entanto, a experiência anterior em faixas etárias mistas pode ser um recurso para
professores e para experiências de treinamento nessas salas de aula, pois permite
implementar estratégias como grupos de alunos responsáveis por um monitor (aluno
mais experiente), atividades sem apoio direto do professor, estratégias de aprendizagem
entre pares etc.
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RESUMO Com base em um estudo etnográfico na Amazônia peruana, que examina detalhadamente um
grupo de famílias rurais com crianças de diferentes idades, identificam-se quatro características
centrais da aprendizagem em casa: o desenvolvimento de um senso de autonomia e
responsabilidade; a importância de observação; a prática como meio de desenvolver habilidades;
e a natureza multi-idade do processo de aprendizagem. Em particular, a experiência de meninos
e meninas rurais em grupos de idades mistas é destacada, onde elas são reveladas como fontes e
agentes de aprendizagem para outras crianças. O artigo discute como essa experiência constitui
um recurso para a situação escolar mais frequente em áreas rurais: a escola multisseriada, onde
crianças de várias séries dividem a sala de aula a cargo de um único professor.
Imagem: PxHere
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2018 temas em destaque
Introdução
Neste trabalho, desdobramento de uma pesquisa realizada entre as crianças rurais
de Orobó (PE), Nordeste Brasileiro, temos como propósito verificar quais elementos
se apresentam como marcadores sociais da infância rural hoje. Através da pesquisa,
percebemos como a expansão das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação
(TIC’s) têm se constituído fenômeno crescente entre as pessoas que vivem nesse meio.
Vimos nesse contexto um aumento significativo do número de famílias que possuem
smartphones, computadores, tablets e que fazem uso da internet tanto pelos dados
móveis do aparelho celular, quanto por instalação própria em suas residências. Isso
nos mostra que o rural, apesar de ser tomado por muitos como um lugar do atrasado,
do rústico, do não tecnológico, é um espaço da “diversidade de dinâmicas e atores
sociais” (Carneiro, 2012), um espaço em constante construção e transformação. Por
isso, para Ribeiro et al. (2015, p. 16), “pessoas da cidade, em geral, têm uma vaga ideia
do que é viver no campo”.
Livingstone et al. (2008) afirmam que as famílias que possuem filhos são aquelas que
mais rapidamente se convertem às novas tecnologias, fazendo-as comuns em seus
lares. Mas o que nos chama a atenção é a existência de uma relação intergeracional,
na qual as crianças assumem papel de agente e invertem a ordem geracional familiar,
tradicionalmente existente no meio rural, onde o adulto é também o “dono do saber”
(Woortmann, 1990). Aqui, são as crianças1 que ensinam aos adultos como fazer uso
das novas TIC’s. Essa relação nos mostra, dentre outras coisas, “que as infâncias do
campo são múltiplas porque também são múltiplos os campos que compõem o rural
brasileiro” (Silva; Pasuch; Silva, 2012). Como diz Silva (2017) sobre o sertão, acreditamos
que também não podemos pensar nem a infância, nem o rural, como aquela imagem
1 As crianças que observamos fazendo uso das novas TIC’s possuíam entre 7 e 11 anos de idade.
O rural está se conectando cada vez mais. Quando comparamos as redes sociais, o
youtube é a mais acessada pelas crianças e o whatsapp, pelos adultos. Essa última tem
um profundo significado nesse contexto, pois ameniza, ainda que simbolicamente,
a distância física e geográfica existente entre os que “saíram pra fora” (migraram)
e os que ficaram, sobretudo, pela possibilidade das chamadas de áudio, vídeos e do
compartilhamento em tempo real de imagens. Assim, buscaremos mostrar como as
novas TIC’s têm sido um elemento transformador do mundo rural através de um processo
mais facilitado de comunicação e informação. Defenderemos que, nesse processo, as
crianças assumem um papel categórico, explorando, descobrindo e também ensinando
os usos e as vantagens de se estar conectado.
Para facilitar a leitura, além desta introdução, dividimos o trabalho em várias partes.
Dando continuidade, destacaremos o caminho metodológico feito. Em seguida,
contextualizaremos o lócus de pesquisa que dá sustentação a esse processo
metodológico. Depois, destacaremos a relação das pessoas nesse contexto com a
internet, apresentando a relação das crianças com as TIC’s, e como elas invertem a ordem
geracional, ensinando aos adultos. Concluiremos enfatizando que o uso não mediado
da internet pode acarretar não apenas vantagens, mas também problemas. Por isso,
chamamos a atenção para a necessidade de realizações de políticas educacionais que
envolvam o tema em questão.
Questões Metodológicas
A pesquisa2 que sustenta este trabalho está pautada no método etnográfico, no qual
a observação participante se apresenta como metodologia base, mas não exclusiva.
Fizemos uso da etnografia por acreditarmos que ela se apresenta como um dos meios
mais eficazes quando desejamos acessar as experiências vividas pelas crianças em seu
cotidiano (Sousa, 2015; Martins; Barbosa, 2010; Carvalho; Nunes, 2007). Acreditamos,
assim como Sousa (2015, p. 152), que a etnografia: “[...] é uma relação entre os objetos,
pessoas, situações e sensações provocadas no próprio pesquisador, torna-se, pois,
muito mais do que captura do visível; a descrição etnográfica é por sua vez, a elaboração
linguística desta experiência”.
Utilizamos também técnicas como conversas informais, confirmando que elas “viram
grandes aliadas do pesquisador que investiga a infância por poder se desenrolar
enquanto se brinca com eles, se trabalha ou se aprende, em qualquer ambiente e
sem formalismos” (Sousa, 2014, p. 53). Utilizamos fotografia, desenhos temáticos,
2 A pesquisa que originou este trabalho teve início no ano de 2017 e encontra-se em fase de finalização,
mas algumas questões como as que são aqui apresentadas já puderam ser analisadas pelas autoras. Nesse
processo, as idas a campo ocorreram mensalmente, e a permanência em campo tinha duração de 10 a 15
dias, nos quais a pesquisadora ficava residindo no local.
Desde a primeira vez, meu celular havia sido alvo de observação por algumas pessoas
da comunidade. Era um modelo Samsung Galaxy S III Mini. Estava também um pouco
sucateado, o que era visível a todos. Por esse motivo, fui presenteada por uma pessoa
próxima ao meu convívio com um aparelho mais moderno. Em meu retorno ao campo,
meu novo celular não passou despercebido, e também foi logo reconhecido como um
J7. Fui até parabenizada por agora ter um celular “de vergonha”. O reconhecimento
do meu novo celular foi percebido e comentado tanto por alguns adultos quanto por
algumas crianças.
Era uma terça-feira do mês de julho, o ano 2017. Fui convidada para uma festa
na casa da sogra da pessoa que tem me ajudado em campo. A comemoração
não tinha outro motivo senão o mês de festejos juninos. Fazia muito frio, o que
é comum nessa época do ano nessa área do município, apesar de esse ser um
clima atípico no Nordeste. Na casa havia muita comida, bebida, um trio de forró
e algumas crianças. Aproveitei a oportunidade para conhecer e fazer amizade
com as crianças que estavam por lá. Tentei iniciar a conversa entre elas, o diálogo
surgia, mas tímido ainda, até que uma delas pegou meu celular e perguntou:
“Filma?” Respondi: “Quer que eu ligue a câmera pra filmar?” Liguei a câmera do
celular e, em segundos, nossa interação já havia mudado. Fui aceita no grupo pela
intermediação de um aparelho smartphone. Ficamos brincando de filmar e rever a
filmagem durante boa parte da noite (Diário de Campo, 18/07/2017).
Não há algo na fala das crianças que seja excepcional ou diferente (apesar de
que pode casualmente até haver), mas a criança ao falar, faz uma inversão
hierárquica discursiva que faz falar aquelas cujas falas não são levadas em conta
(...) (Abramowicz, 2011, p.24).
Lócus de Pesquisa
A cidade de Orobó localiza-se na região do Agreste Setentrional do Estado de Pernambuco,
distanciando-se cerca de 120 km da capital, Recife. Encontra-se na microrregião do Médio
Capibaribe, fazendo divisa, ao Norte, com o Estado da Paraíba, ao Sul, com a cidade de
Bom Jardim (PE), ao Leste, com Machados (PE) e São Vicente Ferrer (PE) e, a Oeste, com
Casinhas (PE).
Segundo dados do último censo (2010), o município conta com uma população de
23.878 habitantes. Todos esses habitantes estão distribuídos em uma área territorial de
138.662 km². 75,1% da população vive em áreas rurais, o que faz de Orobó um município
predominantemente rural. Porém, as pessoas que moram na zona rural de Orobó não
vivem “isoladas em suas pequenas comunidades” (Paulo; Wanderley, 2006, p. 263). Em
Orobó, as pessoas circulam, sendo comum se deslocarem dos sítios à sede municipal ou
mesmo às cidades vizinhas, como Umbuzeiro (PB), em dias de feira.
A pesquisa vem sendo desenvolvida na zona rural, mais especificamente na vila Feira
Nova e seu entorno. Feira Nova é uma vila rural, referenciada por seus moradores como
comunidade. Ela abarca aproximadamente 200 famílias. Muitos de seus moradores são
agricultores familiares camponeses, parte deles aposentados rurais, mas que ainda
desenvolvem atividades na agricultura, sobretudo, para subsistência, negociando aquilo que
plantam sempre que possível. A comunidade tem alguns poucos comerciantes que, em geral,
possuem seu comércio na extensão de alguma parte de sua casa (quarto, sala, terraço).
Seus moradores, assim como a maior parte da população rural de Orobó, são pluriativos,
alguns com emprego pela prefeitura, outros desenvolvendo os chamados “bicos”. Alguns
homens são motoristas de toyotas, fazem transportes de passageiros dos sítios à sede
municipal e às cidades vizinhas. As mulheres que não possuem nenhum tipo de comércio
em sua casa vendem cosméticos, produtos de revistas, fazem serviços de manicure,
cortam cabelo, fazem barbas, desenvolvem serviços de corte e costura. Outro fato
que contribui para a economia das famílias é o de muitas delas receberem as chamadas
bolsas de governo, o benefício do Programa Bolsa Família e, em alguns casos, também o
Benefício de Prestação Continuada.
Nessa época, nem todas as famílias conseguiam adquirir um aparelho celular, devido
ao seu alto custo. Somente por volta de 20023 , segundo os moradores locais, é que
em Feira Nova começou a ser instalada uma cabine telefônica. Essa instalação foi de
responsabilidade da então gestão municipal em parceria com a TELPE (empresa de
telecomunicação do estado). Quem desejasse fazer uso desse tipo de comunicação,
pagaria um valor x por cada minuto utilizado. O valor cobrado era alto, sobretudo,
considerando as condições financeiras dos moradores locais e, por isso, nem todos
conseguiam fazer uso da cabine telefônica. Em 2003, a comunidade começou a receber
instalações de telefones públicos, popularmente conhecido como orelhões. Através
deles, se realizavam chamadas telefônicas e se recebiam ligações.
Hoje, com a expansão e o barateamento dos celulares, eles se propagaram pela zona
rural de Orobó. Raramente encontraremos uma casa cujos moradores não possuam
celular. A operadora mais utilizada pelos moradores é a Vivo, por ter o melhor sinal
local. As demais nem sempre funcionam ou pegam em lugares específicos, como em
um determinado quarto da casa, alguma área do quintal, etc. Isso não chega a ser um
problema, embora já tenha sido, pois dado o avanço tecnológico, os aparelhos celulares,
hoje, apresentam várias utilidades.
A internet atrelada às redes de comunicação tem sido cada vez mais utilizada pelos
moradores da zona rural, ao ponto de ouvirmos das pessoas: “antigamente não existia
isso e todo mundo vivia sem, agora a gente não consegue mais viver sem ele, né” (S., 53
anos – em relação ao whatsapp). Os smartphones são os aparelhos mais comuns entre
os habitantes dessa região. Crianças, jovens, adultos e idosos fazem uso deles, obtendo
as vantagens que eles podem lhes proporcionar.
3 De igual modo, segundo os moradores, em 1992, foi instalada na comunidade de Matinadas uma cabine
telefônica da TELPE, mas demorou ainda uma década para que esse sistema de comunicação chegasse à Vila
Feira Nova e aos sítios.
O whatsapp é uma das redes sociais mais utilizadas pelos moradores da região e frases
como “Eu passo um zap pra tu”/“Passa um zap pra mim” é comum de se ouvir. O uso do
whatsapp como ferramenta de comunicação proporciona aos moradores rurais outra
realidade. Através dele, já não é difícil falar com aquele filho ou parente que migrou
para o Rio de Janeiro, ou mesmo para outras cidades. Mais do que isso, o avanço dessa
nova TIC permite fazer, além da chamada de voz, uma chamada de vídeo, através da
qual, além de conversar, é possível também ver a pessoa, enviar fotos em tempo real e
falar infinitas vezes com aquele que está próximo ou distante sem acréscimo financeiro.
As TVs de plasma também estão presentes na maioria das residências. Nas vilas ou nos
sítios, é comum encontrarmos, hoje, casas com TVs de LED e não mais a antiga TV de
tubo. Praticamente todas as casas já possuem instalações para TV digital, mostrando
assim como a zona rural vem acompanhando o avanço tecnológico. Algumas casas, por
exemplo, possuem inclusive um modelo de TV que possibilita o acesso à internet.
Quando perguntamos a alguma pessoa adulta, em geral acima dos cinquenta anos de
idade, como ela aprendeu a usar seu aparelho smartphone e a internet, recebemos como
São as crianças que comumente iniciam os adultos no uso das novas TIC’s. Elas, por sua vez,
afirmaram quase sempre terem aprendido sozinhas. “A entrada massiva de equipamento
tecnológico em casa veio reavivar na família um estatuto de lugar de produção e
transmissão de saberes entre gerações – digitais, neste caso” (Almeida et al., 2013, p. 354).
De fato, as crianças possuem uma relação muito próxima com a internet. Na verdade,
uma das pesquisadoras foi ensinada por uma delas a como encontrar os chamados GIF
que existem no aplicativo do whatsapp e, mesmo depois de ensinada, quando tentou
encontrar sozinha, não teve a mesma facilidade que a criança.
Pensamos que essa relação denote uma das várias formas de manifestação da criança
no meio social no qual se encontra inserida, pois “as crianças constituem, justamente,
coortes que permanentemente entram e reciclam a vida social” (Almeida et al., 2013,
p. 343). Acreditamos na capacidade de agência das crianças, que elas atuam tanto
como criadoras de culturas próprias, quanto como coprodutoras do seu processo de
socialização. Não podemos negar que em uma relação geracional como a de crianças e
adultos exista sempre um teor de domínio das crianças pelos adultos, considerando a
relação tutelada da criança por suas limitações.
Contudo, o que temos observado é que são elas quem mais detêm conhecimento
e manejo sobre as novas TIC’s, ensinando aos adultos e também inserindo-os nesse
mundo mais tecnológico. Isso se apresenta como uma mudança importante no meio
rural, dada a relação tradicional de transmissão do conhecimento que é passada do
adulto às crianças. Nesse sentido, há uma clara inversão geracional de transmissão de
conhecimento e também de poder, uma vez que são as crianças que detêm o maior
domínio em relação às novas TIC’s.
Na zona rural de Orobó, o uso mais comum é dos smartphones e, em alguns poucos
casos, de aparelhos notebooks e tablets. Quase sempre o smartphone é do pai, da mãe
ou de outra pessoa adulta próxima à criança. Raramente encontramos crianças que
são detentoras desse tipo de aparelhos, embora tenhamos visto uns poucos casos,
mas isso não é empecilho para que elas tenham relação com o aparelho. Geralmente, o
uso é negociado, as crianças pedem para utilizar o celular e os adultos consentem. Essa
relação também é compartilhada entre pares, as crianças compartilham o conteúdo
consumido entre elas.
Um fato interessante é que mesmo aquela criança que faz parte de uma família cuja
situação econômica não permite ainda a aquisição de tais aparelhos não fica sem
consumir aquilo que a internet fornece. Foi assim que vimos duas crianças na calçada
assistindo pelo celular um vídeo do comediante Tirulipa pelo canal do youtube. Sabíamos
que uma delas não possuía acesso ao aparelho smartphone, por já conhecermos as
condições socioeconômicas de sua família. Mas, mesmo em casos como esse, as
crianças não deixam de ter acesso ao conteúdo disponível na internet, elas o detêm
através da relação de generosidade que há entre seus pares. Por isso, acreditamos que:
Outro fato interessante nessa cena onde uma criança compartilhava o vídeo com
outra, é que elas o assistiam na calçada, porque estavam utilizando o wifi de uma
terceira pessoa. Essa relação de generosidade nos parece interessante, pois esse
compartilhamento permite o acesso à internet sem que a senha seja fornecida
diretamente. Isso ocorre da seguinte maneira: a proprietária da rede coloca, ela
mesma, a senha no aparelho da pessoa que pediu para usar seu wifi. De qualquer
modo, compartilha-se o acesso à internet, mas a senha que permite o acesso a ela,
não. Essa é mantida no mais absoluto sigilo.
Apesar disso, as novas TIC’s são compartilhadas e consumidas entre as pessoas, que
as usam nas calçadas, na praça, na rua ou mesmo em casa. Isso nos mostra que a
internet é para a criança da zona rural um meio de sociabilidade, não ocorrendo nesse
contexto o que Cardoso (2012) chamou de “cultura de quarto”, onde as crianças se
enclausuram em seus quartos, vivendo cada vez mais conectadas e isoladas devido ao
uso excessivo da internet.
O título deste tópico aponta para a rede social mais utilizada pelas crianças da zona
rural de Orobó, o youtube. Talvez, pela diversidade que essa rede proporciona, pois ali
se pode encontrar diversos vídeos sobre músicas, filmes, desenhos, vídeos de comédias,
tutoriais sobre variados temas. Percebemos então que o uso da rede social para as
crianças se apresenta muito mais como um entretenimento. A partir do momento em
que se conectam, uma gama de informações culturais passa a fazer parte do universo
da criança: ela conhece outros lugares, outras culturas, outras práticas e costumes. Essa
conexão faz com que as crianças vivam em universos multiculturais (Friedmann, 2012).
Apesar de o youtube ser a rede mais acessada pelas crianças, há uma distinção entre aquilo
que é visto por meninas e meninos, e há ainda outras redes que são acessadas com menor
frequência. As meninas geralmente assistem a vídeos de músicas, desenhos, tutoriais de
maquiagem. Um dos canais também bastante mencionado foi o “Bela bagunça” 4, um
canal onde uma menina de aproximadamente 10 anos de idade, juntamente com seu
irmão mais novo, produz vídeos sobre vários assuntos. Os meninos, em sua maioria,
assistem a filmes, vídeos de comédia, jogos.
A expressão “oi, galerinha do youtube” foi reverberada por algumas crianças quando,
em conversa com uma das pesquisadoras, descobriram seu aparelho celular e logo
perguntaram se filmava. Quando a câmera foi ativada, as crianças falaram “oi, galerinha
do youtube”, fato que nos chamou a atenção. Entre os adolescentes, o youtube também
é uma rede muito acessada, mas as redes sociais como facebook já começam a se fazer
presentes, o que não ocorre entre as crianças.
Poucas são as crianças que usam a internet para fins educacionais como pesquisar
algum trabalho da escola. Em geral, seu uso encontra-se muito mais relacionado com a
socialização e a sociabilidade do que com questões educativas.
Outro fator importante é que, embora esse avanço tecnológico venha ganhando espaço
na zona rural, sobretudo entre as crianças, elas não estão voltadas exclusivamente
para essa relação. As crianças continuam brincando nas ruas, nas praças, e os novos
elementos que vão surgindo como a introdução das novas TIC’s vão sendo incorporados
e acrescentados com a prática já estabelecida. É como se houvesse uma fusão entre
elementos novos e tradicionais.
4 O Bela Bagunça é um canal no youtube que apresenta atualmente 3 milhões e 900 mil inscritos. No
instagram, a página Bela Bagunça conta com 275 mil seguidores, a maioria crianças. Alguns dos vídeos
possuem mais de 4 milhões de visualizações.
Reafirmamos que, nesse contexto, o uso das novas TIC’s pelas crianças não contribui
para o individualismo, produzindo a chamada “cultura de quarto”, mas, pelo contrário, as
crianças, além de fazerem até mesmo o uso coletivo das novas TIC’s em lugares públicos
como praça e calçadas, continuam brincando nas ruas. Brincadeiras com bola e o andar
de bicicleta são as mais comuns, mas outros tipos também podem ser vistas, como
brincar no balanço, brincar de roda, pega-pega e até mesmo brincar com alguns animais
de pequeno porte como, por exemplo, a galinha, também são brincadeiras comuns e
presentes. O uso lúdico das novas TIC’s não exclui, nesse contexto, as brincadeiras mais
tradicionais como parece acontecer na visão de alguns autores que afirmam que tais
brincadeiras parecem estar cada vez mais raras, tendo em vista o aumento do uso das
novas TIC’s (Paiva; Costa, 2015).
Por fim, alertamos para a necessidade de se produzir políticas educacionais que ensinem
e incentivem as crianças a usar a internet de forma educativa, que alertem as crianças para
os possíveis perigos de um mau uso. E isso, certamente, pode contribuir positivamente
para a continuidade das mudanças e avanços no mundo rural. Finalizamos, afirmando
que, dada a limitação que a elaboração deste trabalho acarreta, acreditamos que as
lacunas aqui existentes possam ser futuramente preenchidas em trabalhos vindouros.
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RESUMO O presente trabalho, desdobramentos de pesquisas sobre a infância rural na cidade de Orobó
(PE), objetiva discutir um fenômeno relativamente recente na região e que nos tem chamado
a atenção: o crescente uso do acesso à internet pelas crianças da zona rural e uma inversão da
ordem geracional, através da qual as crianças ensinam aos adultos a como fazer uso das novas
TIC’s, contribuindo para um processo de subversão da ordem do processo de transmissão do
conhecimento no mundo rural. Nesse cenário, destacamos, sobretudo, o acesso à internet por meio
do smartphone, ganhando destaque a relação com as redes sociais como o whatsapp e o youtube.
Metodologicamente, o trabalho se enquadra numa perspectiva qualitativa, na qual a etnografia foi
a base para o desenvolvimento da pesquisa atrelada ao uso da observação participante.
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Chico Bento é um famoso personagem criado pelo cartunista Maurício de Sousa. A
personagem foi inspirada no tio-avô do cartunista, que morava em uma zona rural no
interior de São Paulo1. Nos quadrinhos, Chico leva uma vida que seria “típica” de uma
criança caipira, termo ligeiramente derrogatório para se referir a quem é da roça, da
terra: anda de pés descalços, cria galinhas e porcos, tira notas ruins na escola, rouba
goiabas do vizinho. As histórias de Chico Bento trazem de maneira lúdica alguns lugares-
comuns tematizados pelas Ciências Sociais em se tratando das infâncias experienciadas
no campo: o trabalho infantil, a defasagem escolar e outras precariedades da vida rural.
Não é propósito deste artigo fazer uma taxonomia de uma infância típica dos contextos
rurais, uma etnografia do Chico Bento. Este artigo se propõe a narrar trânsitos entre o
rural e o urbano, entre crianças e adultos, questionando algumas das fronteiras usadas
por nós, cientistas sociais. Por um lado, nossa proposta tem por bases reflexões sobre
infância nos lugares em que fazemos pesquisa. Por outro, somos fortemente inspirados
pelas contribuições epistemológicas do antropólogo sul-africano Archie Mafeje, que
aposta no conceito de formação social para romper com o conceito de alteridade e
outras distinções taxonômicas que separam diferentes formas de vida com o fim de
torná-las cognoscíveis.
1 https://super.abril.com.br/cultura/turma-do-mauricio/
Ariès (1981) argumenta que a infância moderna foi fruto de um processo histórico
particular ocorrido na Europa ocidental. Com muita perspicácia, o autor vai mostrando
como a concepção de infância foi mudando ao longo dos séculos na França, até
chegar a ser uma fase separada do mundo dos adultos. A pesquisa de Ariès fortalece
a antropologia da criança, que refuta uma concepção universal de infância. Todavia,
um viés pouco explorado na leitura do historiador diz respeito às transformações que
a concepção de adulto também sofreu na Europa no mesmo período. Ariès não só
diz que a escola foi se tornando o lócus da educação das crianças por excelência, mas
também fala que os adultos foram deixando de frequentá-la ao longo desses séculos.
Ariès não só diz que as brincadeiras foram cada vez mais consideradas próprias do
mundo das crianças. Ele também diz que os jogos dos adultos se diferenciaram das
brincadeiras infantis.
Neste artigo, a escolha por não tratar de infâncias rurais não advém de uma recusa
em dialogar com meninas e meninos que caibam na gaveta do rural, oriundas das
classificações da sociologia rural ou de etnografias sobre campesinato. A intenção
é bem mais escapar de um enquadramento do problema sustentado duplamente em
uma noção de alteridade – entre crianças e adultos, entre rural e urbano – que reduz
a plasticidade das formações sociais a uma taxonomia baseada em um universalismo
civilizatório. Se há diferenças entre a roça e a cidade, ou entre uma criança e um adulto,
essas devem ser demonstradas analiticamente, a partir de uma interlocução autêntica
entre as partes. Não se deve assumir uma diferença a priori que nos impeça de desconfiar
de uma artimanha muito comum nas ciências sociais – a de ocuparmos simultaneamente
um lugar na relação com o outro e um lugar que lhe é exterior, ou seja, um ponto de
vista que garante a nossas limitadas considerações o poder da totalidade. Nossa
experiência de pesquisa indica que tratar de “infâncias rurais” como um objeto a priori
pode incorrer em um erro de circunscrever nossa atenção a recortes supostos como
universais (certa idade, certa localização geográfica não-urbana), deixando intactos
problemas desafiantes para a lógica científica eurocêntrica com pretensão universalista.
Distinções entre urbano e rural, moderno e tradicional, por exemplo, podem ser assim
relacionadas ao que Mafeje chamou de ideologia do tribalismo, ou seja, um modo de
produção de conhecimento que impõe a concatenação de partes que comporiam a
sociedade, em vez de um olhar voltado ao que ele chama de formação social, para
sua imbricação dinâmica e, portanto, plástica, móvel, nada afeita a modelos analíticos
estanques e a abordagens condicionadas a priori (Borges et al, 2015).
Essa proposta teórica de Mafeje inspira a escrita deste artigo por dois vieses. Primeiro,
o argumento que pretendemos aqui desenvolver é o de que a experiência de ser criança
aqui descrita não se restringe ao limite do rural, em oposição ao urbano. A partir da
pesquisa em um contexto denominado rural, pretendemos traçar reflexões sobre
diferentes maneiras de se conceber ser criança sem fazer desta um tipo ideal rural. O
conceito de formação social de Mafeje também contribui para pensar ser criança como
uma produção de diferenças que convivem, sem necessariamente criar distinções de
classes etárias ou uma contraposição necessária entre adultos e crianças.
Bianca: Você vai estudar? Você tá nos ônibus dos menores por quê?
Gustavo: É. Eu sou criança – disse em tom de brincadeira, curioso para ver
aonde ela levaria.
Bianca: Criança? Cadê sua mochila de ir para a escola?
Ao chegar à escola, na saída do ônibus, Bianca voltou a levar a sério o que eu tinha dito.
“Você fica na fila dos meninos!”, indicando-me que, para ser criança, teria que agir como
uma: desfazer-me da carteira, do bigode, usar mochila e entrar na fila. No ônibus dos
menores, eu deveria usar o cinto.
Mais do que uma classificação que permite identificar crianças e adultos baseada em
uma concepção cultural, Bianca sugeriu que ser criança dependia de um fluxo que a
relacionava a um conjunto de objetos, de características. A mochila, o cinto e o ônibus
carregavam consigo uma substância infantil. A carteira e o bigode continham o ser adulto
em sua composição. Os atributos de adultos e de crianças não implicavam para Bianca
uma consequente classificação estanque, em uma taxonomia. Eu poderia ser adulto e
estar no ônibus dos menores e, possivelmente, uma criança que tivesse uma carteira não
seria menos criança. O fluxo entre coisas de criança e de adultos transpunha a barreira
do que era concebido como ser criança e ser adulto.
Essa ideia de que um conjunto de coisas possui propriedades “de criança” também
apareceu em uma das visitas que fiz a Laura, uma das moradoras do Canaã. Na ocasião, sua
mãe, que mora no interior do Piauí, estava visitando a filha e os netos no acampamento
e aproveitando a estadia na capital para fazer consultas no hospital. A mãe de Laura
tinha por volta de 60 anos. Laura a apresentou para mim:
Como para Bianca, para a mãe de Laura, ser criança é uma propriedade que emerge
na relação que se tem com objetos, com necessidades, em suma, com outras coisas
além de si mesmo. As fraldas comportam algo de criança. A necessidade específica de
cuidados também é característica de crianças. No entanto, nem a fralda nem a ajuda
dos outros para tomar banho ou trocar de roupa são exclusivos das crianças. Velhos
também desfrutam desse fluxo de cuidados similar aos que se destinam para crianças.
“Ser criança”, portanto, não seria uma característica exclusiva de crianças.
Quando chegamos à igreja, estavam todos sentados. Rosa e Eliana estavam lá. Enquanto
fui montar o projetor, Eliana disse que ia estourar a pipoca. Alguns minutos depois, Eliana
voltou com duas bacias de pipoca e as colocou no chão, entre as cadeiras e a imagem
projetada do filme. Assim que ela regressou, coloquei o filme para começar. A animação
do dia era O Menino e o Mundo, uma produção brasileira de 2014. O filme conta a história
de um menino que deixa a aldeia onde vive para encontrar seu pai, que foi tentar ganhar
a vida na cidade. Algumas crianças acompanharam atentamente o filme, reagindo às
ações do menino e rindo. Victor, a todo o momento, levantava para pegar a pipoca da
bacia no meio e parecia pouco se interessar pela animação. Leonardo e Caetano ficaram
vidrados no filme.
Quando acabou a projeção, perguntei “O que vocês acharam?”, com o propósito de saber
as impressões sobre a animação. Minha postura, naturalizada pelos vícios acadêmicos e
pedagógicos, revelava uma ansiedade para promover um inquérito com tons dialógicos,
a fim de avaliar se a atividade tinha sido produtiva ou não. A resposta à minha crença
desenvolvimentista veio com o grito de Lucas, de doze anos: “Guerra de pipoca!”. Lucas
encheu a mão com a pipoca da bacia e jogou em Cleonice, de 11 anos. A menina respondeu
com o mesmo gesto. As outras crianças entraram rapidamente na brincadeira. As pipocas
eram lançadas para todos os cantos. As crianças riam. Em meio às nuvens de pipoca
que entrecruzavam a igreja, olhei para Eliana e Rosa com a expectativa de que elas
interrompessem a brincadeira. Ainda não me dera por vencido, em meu afã de educador
popular de fim de semana. As duas mães, sem titubear, encheram a mão com pipoca da
bacia e participaram da guerra como as outras crianças. A pipoca da bacia espalhou-se
toda pelo chão da igreja. Eliana, Rosa, Verônica (16 anos) e eu varremos o chão depois da
guerra, enquanto as demais crianças foram jogar futebol no campinho lá fora.
Assim como Bianca e a mãe de Laura, para Rosa, ser criança não tem a ver com uma
classificação estanque que parte de um conceito ao qual a experiência deve reverência.
Em parte, porque passa longe de ser mensurável – não é uma diferença etária e nem
de tamanho. Ademais, a brincadeira da criança pode impregnar o adulto. Mexe com a
criança que nele pode vir a ser. Tem a ver com um fluxo que conecta pessoas, coisas,
brincadeiras e desenhos animados. Ser criança vem acompanhado dos movimentos da
guerra de pipoca, da queimada, do pique-cola. Deixar se afetar por músicas e desenhos
animados também faz parte do fluxo. Tornam-se crianças por pegarem o ônibus dos
menores e por usarem mochila, como Bianca. Eliana se faz criança cantando as músicas
do MST e jogando pipoca em outras crianças. Rosa é criança também. Esse fluxo criança
– ou devir, na acepção de Deleuze e Guatari (1997/1980) – não exclui adultas ou idosas no
seu movimento.
O fluxo-criança, no entanto, não apaga as diferenças que se estabelecem entre ser adulto
e ser criança, pois assim como o ser criança, o ser adulto tampouco corresponderia a
uma categoria taxonômica rígida. Ser adulto também é um fluxo. Em vez de conectar as
pessoas com desenhos animados e brincadeiras, o adulto é feito com carteira, com bigode,
com bebida alcoólica2, talvez com trabalho. Existe um movimento em sentido diverso do
ser criança, que é o movimento de ser adulto. E este movimento de tornar-se adulto
tampouco é exclusivo das pessoas adultas, uma vez que crianças também trabalham,
também bebem bebidas alcoólicas, também podem ter carteira. Em suma, existe um
devir-adulto que também pode atravessar as crianças. Entre as concepções estanques
do que é criança e do que é adulto cabem muitas figuras: a criança trabalhadora; o adulto
analfabeto; a criança mãe; a adolescente em conflito com a lei; a liderança sem-terrinha;
a mãe na guerra de pipoca ou o vizinho adulto no jogo de queimada, divertindo-se com
as crianças pequenas, como veremos na próxima seção.
A guerra de pipoca da qual Rosa e Eliana participaram não deveria ser reduzida a uma
lembrança da criança que elas foram3 . Não é uma regressão a um estágio anterior de
sua vida. Rosa e Eliana se fizeram criança no presente, simultaneamente ao movimento
da guerra de pipoca. Assim como a criança que trabalha na roça não necessariamente
preconiza ou antecipa seu futuro como adulto. Ela se faz adulta no presente, no
movimento de seu trabalho. Criança e adulto convivem e se sucedem em um tempo
2 Dona Rita disse uma vez a Caetano que cachaça não era bebida para criança.
3 Sobre a distinção entre devir-criança e a criança como memória, ver Deleuze e Guatari, 1997, p. 81.
Considerações finais
A experiência no Canaã ensina não só sobre a importância de incorporar os adultos nas
pesquisas com crianças, mas a importância de pesquisar as diferentes concepções e
formas de ser adulto. Adultos e crianças são produzidos um a partir do outro, como
demonstram as pesquisas que incorporaram os adultos em suas investigações com
crianças. Pires (2007), por exemplo, relata o atrito que teve com uma vizinha durante sua
pesquisa em Catingueira. Quando as crianças a visitavam, a pesquisadora lhes permitiu
fazer coisas que, em geral, um adulto não deveria assentir. Em sua casa, as crianças
podiam pular no sofá, fazer barulho e brincar de uma forma em que, nas suas próprias
casas, não seria permitido. A “irresponsabilidade” da pesquisadora por não colocar
limites nas crianças chegou ao ponto de uma vizinha fazer reclamações (Pires, 2007).
A investigação das concepções de adulto pode afetar outras pesquisas para além da
antropologia da criança. Não separar os fenômenos tidos como parte do “mundo das
crianças” de fenômenos do “mundo das adultas” implica não separar as pesquisas com
crianças das pesquisas sobre o Estado, religião, economia ou com os movimentos sociais.
Sem abandonar a atenção para as vozes das crianças nas pesquisas, a discussão sobre as
influências de diferentes concepções de adulto e de criança podem ser relevantes para
muitos outros contextos de pesquisa.
Referências Bibliográficas
ARIES, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Editora Guanabara S.A, 1981.
BELISÁRIO, G. Brincando na terra: tempo, política e faz de conta no acampamento Canaã (MST
– DF). 2016. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade de Brasília, Brasília 2016.
______. Sem pai, sem mãe. Cadernos de Campo, (USP), v. 24, p. 140, 2016.
BORGES, A.; KAEZER, V. O Recanto dos Meninos. In: MILSTEIN, D. et al. Encuentros etnográficos
con niñ@s y adolescentes. Entre tiempos y espacios compartidos. Buenos Aires: Miño y Dávila,
2011.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Vol. 4 e 5). Rio de Janeiro: Ed.
34 Letras, 1997 (Original de 1980).
DELEUZE, G. O que as crianças dizem? In: Deleuze (Org.), Crítica e clínica. Rio de Janeiro: Ed. 34
Letras, 1997. p. 73-79.
______. Bergsonismo. Tradução Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34 Letras, 1999.
MAFEJE, A. The ideology of “Tribalism”. The Journal of Modern African Studies. v. 9, n. 2, p. 253-
261, 1971.
______. The theory and ethnography of african social formations. The case of the interlacustrine
kingdoms. London: Codesria book Series, 1991.
TASSINARI, A. Múltiplas Infâncias: o que a criança indígena pode ensinar para quem já foi à escola
– ou a sociedade contra a escola. Encontro Anual da Anpocs, 33. Caxambu, 2009. Disponível
em <https://anpocs.com/index.php/papers-33-encontro/gt-28/gt16-24/1935-antonellatassinari-
multiplas/file>
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Andréa Martello Professor Gaudêncio, agradeço sua disponibilidade para esta entrevista e vou pedir
para o senhor falar um pouco da sua trajetória e por que se tornou relevante a
abordagem desse movimento do Escola sem Partido em suas pesquisas.
Gaudêncio Frigotto No plano mais remoto, eu acho que a gênese disso está na minha própria formação.
Eu sou formado em Filosofia e Pedagogia. Fiz o Mestrado na Fundação Getúlio
Vargas (FGV), Brasil, em pleno período de ditadura, 1974. Paradoxalmente, a
ditadura se acomodou no Instituto de Estudos Avançados de Educação da FGV,
que foi criado para acomodar pessoas não gratas à ditadura, mas que não podiam
ser simplesmente presas ou expulsas do país. Cito o ex-ministro da Educação do
Governo Castelo Branco, Raimundo Muniz de Aragão, Anísio Teixeira e Durmeval
Trigueiro. Ali, eu fiz o meu Mestrado e debatia muito com o professor Claudio
de Moura Castro que, desde aquela época (1974) e até atualmente, é um dos
profissionais mais consultados nas reformas e contra-reformas de educação, dentro
de uma posição conservadora. Ele foi meu orientador de dissertação de mestrado.
Fiz a dissertação sobre a pedagogia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI), Brasil, cuja filosofia, desde aquela época, é de uma educação que serve aos
industriais. Tive a oportunidade de conhecer os fundamentos desse pensamento
liberal conservador e da visão meritocrática da educação. Minha tese de Doutorado
foi uma crítica a esse pensamento. Desde aí, a gente vai percebendo o ideário liberal
centrado no individualismo, sem analisar as relações sociais e, portanto, imaginar
que o indivíduo fora destas relações pode escolher o que quer. Uma visão, ao
mesmo tempo, que ignora a nossa especificidade como sociedade de capitalismo
dependente e super autoritária. Os colonizadores vieram aqui impondo sua cultura
e sua religião. Os deuses dos povos primevos não valiam, tinha que ser o Deus único
dos colonizadores. Depois veio a escravidão, onde os escravos eram considerados
animais que falavam e não podiam, também, ter seu culto. Soma-se a cultura
colonizadora e escravocrata ao fundamentalismo religioso autoritário, pensamento
liberal conservador desde nossa origem como sociedade colonizada.
O interesse para abordar o Escola sem Partido vem, do ponto de vista imediato, das
pesquisas que a gente tem desenvolvido sobre a mercantilização crescente da
educação. De um lado, o controle ideológico, com a ideia de que a escola tem que
ser neutra e, por outro, cada vez mais se relacionando com dimensões da privataria
empresarial do mundo laico, mas que é, também, atualmente das empresas-igrejas.
Só que as empresas-igrejas, hoje, unem o fundamentalismo de interesse econômico
– portanto, essa questão da neutralidade – acrescido do criacionismo, e isso dá um
amálgama complexo.
E o Escola sem Partido une as duas coisas. Ele surge em 2004, tão logo o presidente
Lula da Silva tinha assumido a presidência da república e, logo em seguida, em
Outra ideia que vem do criacionismo e não da ciência é a de que nascemos homem e
mulher. Não nascemos homem e mulher, apenas nascemos e nos tornamos homem ou
mulher. Não existe uma natureza fora da história. Não podemos misturar criacionismo
com ciência. E o fato de existir homossexuais ou transexuais e a identidade de gênero
é um fato histórico desde os primórdios da humanidade. E, portanto, à ciência não
compete julgar moralmente. Ela tem que julgar cientificamente e explicar o que é
determinado pela natureza ou biologicamente e/ou pela relação dialética natureza-
cultura ou cultura-natureza. Mas não há razão plausível nenhuma de discriminar
ou incitar ódio pela diversidade de gênero ou pela escolha sexual. Então, esse
movimento Escola sem Partido junta teses muito perigosas e nefastas ao convívio
humano. Porque a história já conhece isso, do ponto de vista da Inquisição, que
mandou muita gente ao sacrifício e à morte por esses fundamentalismos.
Jane Santos da Silva Dentro dessas questões que o senhor vem colocando, praticamente já foram
apresentados os argumentos do que seja o Escola sem Partido. Mas em relação ao
Projeto de Lei que hoje vem se fortalecendo de novo e entrando na discussão, como
o senhor vê os argumentos que são colocados em defesa desse projeto? Porque
neste caso já não é mais um movimento, se quer torná-lo uma política pública
educacional.
Gaudêncio Frigotto O Projeto de Lei surge, diria, de um cínico oportunismo político. Não por acaso, quem
o inicia é exatamente um dos filhos do atual presidente da república. E se a gente
olha quem o apresenta nos estados e municípios, são vereadores ou grupos de
pouca expressão social e política, mas que se utilizam da exploração da boa fé de
uma população grandemente iletrada, – para a qual se negou a possibilidade de
ter aquilo que eu denomino a cidadania política, ou aquilo que Paulo Freire tanto
insistia: capazes de efetivar uma leitura autônoma e crítica do mundo. Por um lado,
isso. Então essas forças – que são ainda bastante obscuras – se juntam com os
interesses empresariais, inclusive, desse pensamento conservador.
1 Organização não-governamental criada em 2005 por um grupo de líderes empresariais e composta por
diversos setores da sociedade brasileira, cujo objetivo declarado é de assegurar o direito à Educação Básica
de qualidade para todos os cidadãos até o ano de 2022.
O que está por trás do Projeto de Lei é algo extremamente violento porque autoriza
o poder a julgar como crime, ou com a possibilidade de suspender contratos, por
exemplo. Isso, que na prática já vem sendo feito, mas não ainda com efeito de lei.
Eles próprios sabem e dizem que, mesmo que a lei não seja aprovada, o seu objetivo
está sendo atingido. Trata-se de negar a pedagogia da esperança, a pedagogia do
diálogo, a pedagogia da autonomia sobre as quais Paulo Freire tanto insistiu. Não por
acaso, ele é considerado inimigo a ser banido das escolas. No lugar dele, teremos a
pedagogia da desconfiança, do dedo-duro e a pedagogia do medo. Por isso também
que a gente ouve até o próprio presidente falando – isso depois de eleito – que
Paulo Freire não vai ter vez nas escolas. Então nós não podemos imaginar que esse
projeto volte na próxima legislatura e seja aprovado.
Andréa Martello Na sua trajetória, então, o senhor acha que esse movimento é um movimento que se
repete no Brasil? É uma abordagem com uma nova cara?
Gaudêncio Frigotto Eu acho que ele tem uma reiteração com doses de letalidade diferentes daquilo que
referi antes da cultura colonizadora e escravocrata e o fundamentalismo religioso.
Utilizo uma categoria do Raymond Williams para entender o que vivemos atualmente
no Brasil. Ele sinaliza que a dominação se faz sempre pelo poder se for necessário.
Poder da lei, poder das armas. Ele está se referindo a isso. E sempre, necessariamente,
para defender a propriedade privada. Mas, também se faz pela cultura do vivido,
aquilo que é reiterado de geração a geração2. Nós temos na nossa cultura o DNA
escravista e colonizador. Ambos são autoritários, ambos são violentos. Temos uma
cultura autoritária e tivemos pouquíssimos momentos de democracia relativa. E, toda
vez que existe uma ascensão de interesses amplos da população, vem um golpe ou
uma ditadura. Francisco de Oliveira diz que nós estivemos um terço do século XX
sob ditaduras. Porque foi de 1937 a 1945, são sete anos. E depois 21 anos da ditadura
empresarial militar de 1964. Mas também golpes institucionais seguidos.
Jane Santos da Silva Se a gente não contar os períodos dentro da Primeira República.
Entretanto, como afirmou o sociólogo Roberto Dutra3, tão logo houve a eleição: pela
primeira vez, nós temos forças de extrema direita legalizadas pelo voto. E eu diria
o seguinte: o fundamentalismo religioso cresce com aquilo que o próprio Raymond
Williams fala num outro livro4: ele analisa que toda vez que existe um momento de
pouca visibilidade, de insegurança em relação ao futuro, surgem os mais diferentes
novos profetas, novas seitas etc. E, se você perceber, as igrejas neo-pentecostais,
essas que não têm corpo teológico, são vendilhões do templo, são – como dizia
o ex-governador Leonel de Moura Brizola – adoradores de bezerros de ouro que
querem uma rádio ou uma televisão para poder ganhar dinheiro. Então, isso –
lembrando os teólogos da morte de Deus, os protestantes da morte de Deus dos
anos 70, 80 – são seitas contra o cristianismo, contra exatamente quem tem uma
fé de fato. Manipulam sobre as categorias de exorcismo, prosperidade e milagre a
boa fé do povo. A chamada teologia da prosperidade, que não tem nada de teologia,
é “mercado da prosperidade”. Isto nós não conhecíamos e está relacionado às
próprias crises, cada vez mais agudas, às crises do próprio sistema capitalista, as
quais se resolvem hoje pela violência: violência simbólica, violência de guerras,
violência de genocídios, como nós vivemos aqui no Brasil, especialmente contra os
jovens pobres e negros.
Jane Santos da Silva Professor, do ponto de vista internacional – para a gente pensar o fora do Brasil –,
nesse tempo histórico que a gente está, estamos vendo também situações iguais ou
semelhantes? E como elas estão se dando?
Gaudêncio Frigotto Sim, do ponto de vista daquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina de um
clima de fascismo societal. Trata-se de um fenômeno que se alastra no mundo
com o crescimento de forças sociais e partidos de extrema direita. A hipótese que
desenvolvo dentro das leituras que faço é a de que isso está relacionado a formas
cada vez menos viáveis, dentro da democracia real, de resolver a crise do capitalismo.
3 Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/584206-a-maior-vitoria-da-direita-na-historia-politica-
brasileira-entrevista-especial-com-roberto-dutra>. Acesso em: 30 out. 2018.
4 WILLIAMS, Raymond. Towards 2000. London: Chatto & Windus, 1983.
Gaudêncio Frigotto É, também, mas não apenas o acesso. Há determinações mais profundas. A partir do
fim do socialismo real e com a apropriação privada de um salto tecnológico que muda
a forma de se relacionar com a matéria, enfim, o capitalismo já não acredita que
seja possível integrar a todos. Então, existem partes do mundo que o capitalismo já
abandonou: parte da África, por exemplo. Mas também abandonou à própria sorte
milhões de refugiados e os que vivem abaixo do nível de pobreza absoluta. Por isso, o
vocabulário pedagógico mudou. A gente queria uma educação de qualidade, agora,
quer qualidade total. A gente queria gente qualificada, agora, quer um indivíduo
competente. A gente discutia emprego, agora, falamos em empregabilidade. Nesse
contexto, com a crise dos povos imigrantes, da pobreza – não só da África, mas
do Oriente Médio etc. –, há um oportunismo de forças de extrema direita dizendo
que o problema são os pobres. E, portanto, na Alemanha, agora, há poucos dias,
teve uma grande manifestação antinazista. Mas a questão do criacionismo não está
posta nesses países, embora a Igreja Universal, que é marca brasileira, esteja em
vários países do mundo, exatamente junto aos pobres, ou dominantemente junto
aos pobres. Entendo que o fenômeno é mundial e que a forma de enfrentar a crise
do capital e do capitalismo é cada vez mais violenta e cada vez mais excludente
e, portanto, as teses de extrema direita ganham força. No Brasil, estas teses se
manifestaram de forma crescente a partir de 2013.
Gaudêncio Frigotto Absolutamente. E essa questão do capital humano foi aplicada, sobretudo, nos países
pobres, mas não só. Ela nasceu nos países centrais, Estados Unidos, Inglaterra etc.,
mas com vistas aos países da periferia. Com a própria crise do capitalismo, elas
ressurgem. Há um grupo de pesquisadores de uma universidade alemã que elege a
cada ano uma não-palavra para dizer algo que degrada o ser humano. É a criação de
uma palavra que tenha as características de degradar a vida humana. Em 2004, se
eu não me engano, foi eleita a palavra capital humano. Existe então um componente
de mercantilização da educação. Aqui no Brasil, agora com as contrarreformas do
golpe de estado de 2016, a mercantilização é total.
Andréa Martello Eu estou pensando aqui nesse movimento de mercantilização do saber, que é algo
da nossa era tecnológica. O senhor está falando de uma forma como se a educação
tivesse antes um propósito emancipador, de criar sujeitos de direito, cidadãos e a
educação passa a ser algo de um saber reduzido, um saber que vai ser somente
operacional.
Gaudêncio Frigotto Sim, é um saber pragmático, um saber trabalhado de forma diversa de acordo com
os grupos sociais. Ou seja, nós voltamos a uma espécie de visão malthusiana da
sociedade. Malthus6 dizia que era necessário controlar a natalidade dos pobres
ou então estimular as pragas para facilitar o aumento de sua mortalidade, e assim
os filhos da classe dele poderiam casar cedo e ter filhos e, mesmo assim, poucos
morreriam de fome. Ou como dizia Desttut de Tracy 7, no final do século XVIII, que
todo sistema educacional bem administrado deveria ter dois sistemas: um restrito,
prático e rápido, para aqueles que deveriam aprender logo o duro ofício do trabalho
e que estavam destinados à dureza do trabalho. E outro amplo e demorado, para
quem tinha tempo de estudar e que estava destinado a ser dirigente.
Jane Santos da Silva E como que o senhor vê os impactos dessa situação, desse modelo, não só do projeto?
O senhor já afirmou que mesmo que o projeto não seja considerado válido como
lei, ele já está causando alguns impactos. Quais seriam estes impactos na vida da
comunidade escolar e, principalmente, na figura do docente, do professor?
Gaudêncio Frigotto Esse impacto, assim como colocava na questão anterior, vem crescendo sob
diferentes aspectos. Até a década de 1950, como Florestan Fernandes nos
mostrava, mesmo os professores que vinham da classe popular eram considerados
funcionários da burguesia. Ou seja, você tinha uma escola pública para poucos,
mas era uma escola de qualidade para esses grupos. Na medida em que a escola
se universalizou ou tendeu a se universalizar – especialmente o ensino das
primeiras quatro séries, depois o Ensino Fundamental –, também mudou o perfil
do professor. O professor é cada vez mais oriundo de classe média baixa e de
classe popular. Nós que trabalhamos nas licenciaturas sabemos disso. Então, do
ponto de vista da sociedade, este é um trabalhador menor. Tanto que se você olhar
a curva de salários até os anos 40, 50, um professor ganhava o mesmo que um
economista, um contador, um profissional liberal. Hoje, o salário está lá embaixo.
E a justificativa é que são muitos. Mas isto gerou um problema. Na medida em que
esses professores provenientes das classes populares foram se formando, fazendo
especialização, fazendo Mestrado e Doutorado, eles foram tendo outra leitura da
realidade política, social e econômica de nosso país. Isto se reflete na emergência
de sindicatos docentes, de associações científicas e culturais onde se disputa a
visão de mundo dominante.
O que temos que tomar consciência é que a burguesia brasileira ou classe dominante
nunca se importou de fato em construir uma nação autônoma, o que exigiria forte
investimento em ciência, tecnologia e universalização da educação básica de qualidade.
Nossa burguesia é antinação, antipovo, anticiência e por isso nega sistematicamente o
direito à educação pública. Isso fica evidente quando o poderoso Ministro da Educação
do Governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Renato de Souza, afirmava que não
precisávamos ter muitas universidades, pois poderíamos comprar. Nós podemos
comprar lá fora a ciência e a técnica. E isso, dizia ele, fica mais barato.
Agora, o que postula o movimento Escola sem Partido é controle ideológico e moral:
“cala a boca, professor! Você não tem o direito de ter autonomia de falar”. O que dá
alguma esperança é que, quando se avança ao nível irracional, há reação na sociedade.
Um exemplo disso é a reação feita pelo poder judiciário e pela grande mídia à atitude de
grupos favoráveis a Bolsonaro, na véspera do segundo turno da eleição presidencial,
que diziam que se não ganhassem era porque seria fraude. E, como manifestação de
força irracional e orquestrada, entraram em vinte ou trinta instituições universitárias
ameaçando dirigentes e professores para criar na opinião pública que aí estava o
antro da conspiração. Nós nunca aparecemos como universidades públicas assim
defendidos pela grande mídia empresarial. A TV Globo fez extensas matérias nos
principais noticiários nacionais em defesa da livre expressão e da universidade.
Pensadores e jornalistas ultraconservadores defendendo a liberdade de expressão –
até porque futuramente poderia pesar para eles também. Então, aí houve um recuo.
Isso nos dá um alento pelo menos. Isso mostra o teor do que se quer: é tornar o
professor um robô e isso corresponde ao que é a fábrica.
Andréa Martello Eu ia perguntar isso, professor. Até que ponto esses professores se veem, não digo
seduzidos, mas compactuando com essa visão que vem da mercantilização do saber?
Gaudêncio Frigotto É, acho que isso diferencia muito de região para região e eu diria que tem a ver com
uma sociedade ultraconservadora. A questão da religião pesa muito. Determinada
forma de religião, não a religião em si. Religião é uma escolha privada e legítima,
assim como o fato de ser agnóstico ou ateu. Mas percebo, por um lado, o
conservadorismo e, de outro, pouca cultura política. Não no sentido de partido,
mas no sentido sociológico. Como diz Rancière, política é a luta, é a consciência de
que você está sendo lesado em um direito e, portanto, você se organiza para pôr
na agenda a conquista desse direito. Creio que nós deveríamos fazer uma profunda
revisão, nas universidades, na forma como estamos formando esse professor.
Talvez a gente tenha dado pouca base, seja ainda uma formação em que falta aquilo
que o Florestan Fernandes diz, sobre dar os instrumentos para que esse professor
analise a realidade onde ele está. Talvez, o nosso discurso seja progressista, mas
os instrumentos para ler a realidade ainda não. A questão coletiva que talvez
tenhamos que ter presente é: o que o professor tem que dominar do ponto de
vista de sua formação, para ter uma leitura crítica da realidade? Entendo que os
sindicatos também devem ter um papel importante em relação ao professor. Por
exemplo, não por acaso, o Paraná é um dos estados que mais avançou e onde
também as ocupações das escolas foram extensivas. Por quê? Porque lá o sindicato
tem um importante papel político por todo o estado, eles têm amplo material de
formação política.
Gaudêncio Frigotto Recentemente, fui ao Mato Grosso dar uma conferência pós-eleição. O tema era
sobre ensino médio integrado, mas, de imediato, mostrei que as contrarreformas
na educação e o que sinalizam as forças sociais eleitas para governar o país a
partir de 2019 têm dois focos fundamentais: acabar com o integrado e acabar com
Acabo de divulgar a publicação do livro por mim organizado a partir de uma pesquisa
ao longo de cinco anos – Os institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia,
relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. O
livro mostra, como assinalei acima, que se trata da mais ampla política pública que
houve no Brasil de interiorização do ensino médio para cima. O que significa acabar
com isso, do ponto de vista do direito de milhares de pessoas? Lá em Roraima,
existem 20 comunidades de povos originários dentro do Instituto Federal, falando
dialetos diferentes. Você vai acabar com isso? Querem acabar, e vão acabar se
deixarmos! Então, o estrago está feito, porque é a pedagogia da exclusão e do medo
que querem impor. Mas não será sem embate, sem luta, sem resistência.
O Noam Chomsky, numa conferência em Havana, em 2006, disse que o mundo hoje
é governado pela violência e o medo. E o Antônio Cândido tem um texto, de 19728,
“O caráter da repressão”, que foi reeditado agora no contexto do golpe, onde ele
cita ao final o pensador Alfred de Vigny que, na prisão, dizia: “Não tenha medo da
pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”.
É interessante que o Mia Couto escreve um pequeno texto, “Murar o medo”, onde
cita Eduardo Galeano ao final, que diz: “os civis têm medo dos militares, os militares
dos civis, os militares têm medo que faltem armas, as armas têm medo da falta de
guerras, quem tem emprego tem medo de perder o emprego. E se calhar, em bom
português, há aqueles que têm medo que o medo acabe”9. Em minhas conferências,
sempre lembro que individualmente a gente tem medo e, por isso, nós temos que
reforçar o coletivo, as instituições. Isso que a filósofa Marilena Chauí disse na USP
recentemente: “nós não podemos cair na cilada de agora ir para rua gritar. Não é
a hora! É hora de nos recolhermos e de nos protegermos na institucionalidade”10.
Sindicatos têm que ter força jurídica, as instituições têm que ter força jurídica.
Andréa Martello Professor, eu fico sempre me perguntando: que efeitos isso vai ter para a infância e
para a juventude? Dado que virá esse novo governo, haverá um apoio político mais
forte a essas ideias. Como o senhor vê essa cultura do medo? É uma cultura do medo
que vai se propagar? Que efeitos em termos psíquicos ou subjetivos isso tem para
infância e para juventude?
Gaudêncio Frigotto Esse é um tema que temos que levar a sério. Vejo duas, em especial para a juventude,
mas que já atingem a infância. A cultura da prepotência tem surgido mais do que o
Gaudêncio Frigotto Isso são ovos de serpente. Mark Bray11, historiador americano, escreveu cinco lições
para os antifascistas. Acho até que ele pesquisa na área de educação. Ele disse que
é preciso ver, nos sinais menos evidentes, o fascismo. O racismo nosso que está
presente já é um elemento estrutural! Mas também o desprezo e ódio aos grupos
LGBT, aos pobres e às opções políticas de comunistas, socialistas ou ao pensamento
crítico em geral.
Jane Santos da Silva Nós teríamos três elementos que são muito fortes no fascismo: primeiro o racismo,
o segundo é a questão do machismo e da perseguição à mulher, e o terceiro é a
homofobia. Esses três parecem que viraram três pilares para o fascismo.
Gaudêncio Frigotto Um elemento, que também estava em Hitler, era o ódio ao imigrante. Começou por ali.
Podemos pensar, no caso do Brasil, que isso se apresenta em relação ao nordestino,
Andréa Martello Sim, nós estamos criando pilares para o fascismo. Professor, e se o Projeto de Lei
for aprovado, qual seria o papel do Supremo Tribunal Federal, considerando suas
recentes decisões sobre a autonomia universitária? A gente pode entrar em um
processo de judicialização da vida educacional e de grandes discussões no tribunal
sobre essa forma de ver a educação?
Gaudêncio Frigotto Sem dúvida! Não acredito que o Supremo vá cometer essa indecência e essa
insensatez caso um dia este projeto seja aprovado. Agora foi barrado. Até pela
prerrogativa, pelo parecer do Luís Roberto Barroso, não acredito. Mas, como nós
ouvimos o Eduardo Villas Boas falar ao jornal o Estado de São Paulo que houve
uma interferência militar para que o Supremo Tribunal Federal não concedesse
liberdade a Lula da Silva, pois seria o caos, tudo é possível. E o presidente do
Supremo “colocou” lá um militar general como assessor! Este general será, pelo
que se informou, ministro da defesa. Mas foi substituído por outro para estar junto
ao presidente do Supremo. Também uma tutela perigosa para a sociedade e para a
instituição militar. Há, nisto, uma inversão do Estado democrático de direito.
Mas como me referi acima, também há uma reação forte da sociedade. O editorial
do Globo de domingo, por exemplo, é surpreendente nesse sentido, defendendo
pluralismo. Por isso, não acredito que isso prospere indefinidamente. O Supremo
vai se pronunciar em breve, do ponto de vista de interpretação da Constituição.
Evidentemente, neste caso, teria que mudar a Constituição e dizer que não existe
liberdade de expressão no Brasil.
De todo modo, acho também que está se criando uma conscientização. Existe um
movimento da escola democrática com um site organizado pelo professor da
Universidade Federal Fluminense Fernando Penna. Este professor, Felipe Queiroz
e eu organizamos o livro: Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido. A
violência do lado de lá despertou e acendeu um sinal do lado de cá. A não aprovação
do Projeto de Lei que legalizava o Escola sem Partido na atual legislatura prova
o vigor dessa resistência. Nós temos que continuar e ampliar o trabalho com os
alunos e os pais e a sociedade. Aqui na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Brasil, temos feito isso. Mostrar o quanto isso é perigoso para a sociedade.
Andréa Martello Professor, estamos nos encaminhando para o fim da entrevista, mas gostaria de
apresentar mais algumas perguntas. Como estamos no curso de Pedagogia da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, Brasil, o tempo todo
estamos debatendo certas questões. Como fica para o senhor a questão da formação
do professor? Ou ainda, qual o papel dos movimentos sociais nesse processo? Por
fim, quais trabalhos e pesquisas o senhor indica que auxiliem e possam contribuir
para entender esse fenômeno?
Gaudêncio Frigotto Isso está ligado àquilo que a gente falava em relação a como essa massa de professores
que formamos – hoje, grande parte à distância – percebe sua formação e como
esta os prepara para uma leitura crítica da realidade. Os movimentos sociais sempre
tiveram grande papel nas lutas prodireitos, mas no momento, parece-me que há
uma espécie de paralisia que revela que ainda não nos damos conta da gravidade
do momento que vivemos em relação ao retrocesso em todas as áreas que dizem
respeito a direitos e, portanto, à vida digna. Entendo que o grande desafio é o
de buscar uma agenda de tarefas, lutas e formas como pauta permanente. Uma
dessas é exatamente de como está sendo liquidado o espaço público, o trabalhador
público e o espaço público, de tal sorte que tudo aquilo que é direito universal
some. O historiador Eric Hobsbawm sublinha que nem a igreja, nem as empresas ou
nenhuma organização não-governamental pode garantir direitos universais. Só o
Estado pode fazer isso, ainda que não esse Estado, pois nós temos que democratizá-
lo mais para que efetivamente garanta esses direitos. Então, essa é uma agenda
dos movimentos sociais, das organizações docentes, das instituições científicas
e culturais pelo resgate do espaço público, dos direitos universais e a garantia de
satisfazer as necessidades básicas.
Em relação a essa agenda, vejo hoje alguns caminhos. No campo mais amplo, acho que
a Frente Brasil Popular tem essa característica, pois congrega, aproximadamente,
E nas nossas instituições, na linha que eu coloquei antes, nós temos que organizar um
currículo que viabilize a formação de gerações de professores que tenham o domínio
para entender, na expressão de Antônio Gramsci, como funciona a sociedade das
coisas (mundo físico, biológico, etc.), mas também como funciona a sociedade dos
seres humanos. Neste particular, o estudo da sociologia, economia, psicologia,
filosofia, literatura, arte etc., são imprescindíveis. O capitalismo está destruindo as
duas bases da vida: a natureza e o trabalho. Sim, é um diálogo muitas vezes difícil,
porque a academia também formou igrejas que quase não se falam. Então é essa
questão de isolar a subjetividade da objetividade. Tem um texto que eu gosto
muito, do Karel Kosik12, em que ele diz: como se constitui o ser social? O ser social se
constitui primeiro, necessariamente produzindo a sua existência para o trabalho. É
pelo trabalho que o ser humano produz os bens e produz as instituições. E nessas
relações sociais de produzir a sua subsistência e as instituições, dependendo das
relações sociais que você está posto aí, se são escravistas, se são capitalistas etc.,
você vai construindo a subjetividade. Então, ele vai dizer que não tem sentido os
sujeitos sem as coisas, mas não tem sentido também as coisas sem o sujeito. Então
o que é a realidade humana? É a unidade do objetivo e o subjetivo! Percebo que esse
é o grande problema de determinadas posturas chamadas pós-modernas, ou do
pós-modernismo. Para mim, o fio para aprofundar isso é dado por Fredric Jameson,
quando ele indica que o problema não é condenar ou celebrar o pós-modernismo,
mas de entender o porquê de seu surgimento e o que significa política, social,
econômica e culturalmente.
Entendo que o que se apresenta hoje na sociedade brasileira tem que nos colocar não
em nocaute, paralisados, mas numa profunda reflexão no campo acadêmico, no
campo político, no campo das nossas crenças, etc. E não abrirmos mão do horizonte
daquilo que é fundamental: lutar para que se construam relações sociais onde haja
efetivamente oportunidades para que as pessoas desenvolvam as suas capacidades
RESUMO Nesta entrevista, o Projeto de Lei “Escola sem Partido” é abordado por diversos aspectos, por
exemplo, ao analisar os efeitos da chamada pedagogia do medo. A reflexão vai se desdobrar
em discussões sobre a corrosão que a educação, os partidos, a sociedade e o povo brasileiro
têm sofrido diante das investidas neoliberais e do avanço do ultraconservadorismo no
Brasil contemporâneo. A exploração tão pertinente desse tema não foge à complexidade
das encruzilhadas ético-morais e teóricas que ora paralisam ora revitalizam os educadores
brasileiros nesse contexto. Assim, a entrevista traz contundentes reflexões sobre a propagação
do discurso de ódio entre crianças e adolescentes na escola, a crescente redução da educação
aos interesses do mercado privado e o fundamentalismo religioso.
Gaudêncio Frigotto
Graduado e Bacharel em Filosofia e graduado em
Pedagogia pela UNIJUI, Brasil, mestre em Administração
de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas
do Rio de Janeiro, Brasil, e doutor em Educação: História,
Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, Brasil. Professor associado na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, e professor
Titular (aposentado) em Economia Política da Educação da
Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
E-mail: gfrigotto@globo.com
A perspectiva das
crianças sobre a
infância no Chile
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“novo” paradigma1. Essa abordagem ressalta o direito de estudar essas temáticas
com as próprias crianças, considerando seus pontos de vista e buscando avançar em
metodologias para escutá-las em suas diversas linguagens, de forma a trazer visibilidade
e valorizar suas vozes no meio científico e social.
Esse movimento em busca de compreensão do papel das crianças e da infância no
mundo contemporâneo inicia-se com as produções europeias e norte-americanas,
influenciando significativamente a realização de investigações científicas nos países sul-
americanos, os quais vêm estruturando caminhos para as produções e teorizações da
infância no hemisfério sul (Voltarelli, 2017).
Segundo Moss (Moss, 2011, p. 4), é necessário prestar mais atenção nas construções
da infância e localizar os estudos e as análises das sociedades em que as crianças
vivem para compreender o que significa viver a infância em cada uma delas. Em outras
palavras, o autor afirma que “precisamos explorar o relacionamento entre infância e o
espaço histórico e contextual que cada criança vive” (p. 4).
A grande diversidade da América Latina, com seus diversos países e diversas histórias,
está mergulhada em uma variedade de contextos que mesclam linguagens, trajetórias
políticas, econômicas, sociais e composições étnicas que afetam a vida das crianças.
Essa característica certamente tem exigido um esforço dos pesquisadores que
focalizam as crianças como agentes sociais e produtoras de cultura, levando em
consideração a compreensão desses conceitos dentro de uma complexa e diversa
realidade sociocultural.
É nesta perspectiva que se inscreve a obra “Ser niño y niña en el Chile de hoy”, das
autoras Ibarra e Vergara del Solar, na qual retratam as transformações da pós-ditadura
e a legitimidade do pós-neoliberalismo no Chile como influências significativas para o
sistema educativo, o que reflete na hiper-escolarização e produtivização do tempo da
infância, enclausurando as crianças e as invisibilizando cada vez mais.
As autoras apontam que a visão de incompletude relacionada às crianças, reforçou
comportamentos paternalistas e protecionistas por parte dos adultos, o que dificulta a
legitimar a participação das crianças nos diversos âmbitos sociais em que estão inseridas.
Entretanto, a pesquisa realizada com as meninas e os meninos chilenos demonstrou, a
partir de seus discursos sociais, elementos que superam a percepção historicamente
construída sobre a incapacidade e fragilidade das crianças.
O livro apresenta as transformações mais significativas que vêm ocorrendo no Chile em
relação à infância, aprofunda a discussão sobre a investigação discursiva das crianças,
1 O novo paradigma para os estudos sociais da infância foi proposto por James e Prout, em 1990, e propõe
que: 1. A infância é uma construção social. 2. A infância é variável e não pode ser inteiramente separada de
outras variáveis como a classe social, o sexo ou o pertencimento étnico. 3. As relações sociais das crianças e
suas culturas devem ser estudadas em si. 4. As crianças são e devem ser estudadas como atores na construção
de sua vida social e da vida daqueles que as rodeiam. 5. Os métodos etnográficos são particularmente úteis
para o estudo da infância. 6. A infância é um fenômeno no qual se encontra a dupla hermenêutica das
ciências sociais evidenciada por Giddens, ou seja, proclamar um novo paradigma no estudo sociológico da
infância é se engajar num processo de reconstrução da criança e da sociedade (p. 8-9).
Assim, uma das grandes contribuições do livro refere-se à investigação dos discursos
das crianças, o que implica questionar “os modos como elas articulam a posição de
sujeito criança, mas, também, como elas vinculam essas posições com outras pessoas”.
2 Termo utilizado pelas autoras para se referir ao campo dos estudos sociais da infância. Este campo é
considerado interdisciplinar, iniciou-se com as contribuições da sociologia da infância, a qual inaugurou
um novo paradigma para os estudos das crianças e da infância, e demandou a articulação de um campo
maior de disciplinas, não apenas a sociologia, mas também outras disciplinas dedicadas ao estudo da
infância, como a antropologia da infância, a psicologia crítica, educação, geografia da infância, história
da infância, entre outros. O campo também é conhecido por “Estudos da Infância”, “Estudos sociais da
infância”, e Childhood Studies.
Cabe ressaltar que o aspecto ético na investigação com as crianças foi respeitado, e
as pesquisadoras trabalharam apenas com as que estavam interessadas em participar
da investigação, assim como solicitaram também a autorização dos pais e/ou adultos
responsáveis.
O processo de análise dos dados envolveu a transcrição da fala literal das crianças em duas
fases: preliminar e final. A primeira buscou abranger como as crianças compreendiam a
infância como noção abstrata; as crianças como sujeitos concretos; a adultez como noção
abstrata; os adultos como sujeitos concretos e as relações entre adultos e crianças. A
segunda consistiu em analisar o material de forma articulada, localizando os aspectos
comuns e divergentes nas falas das crianças, bem como considerar as categorias de
classe social e gênero atravessando os aspectos investigados, vinculando-os à discussão
teórica sobre a construção da infância.
Além disso, existem dois fatores que precisam ser considerados sobre a infância no
Chile, o primeiro refere-se à escolarização da infância, que tem sido uma tendência
frequente no país, por meio do aumento de jornadas escolares e deveres enviados
para casa, e que “acompanhada pela crescente privatização da vida cotidiana, tem
reduzido os tempos de ócio e transformado substancialmente os espaços de brincar,
principalmente nas grandes cidades” (Ibarra; Vergara-del Solar, 2017, p. 23). O segundo
refere-se às transformações na relação entre pais e filhos como um espaço que constitui
a infância contemporânea e que mostram tensões, concepções e práticas na organização
Entre as pistas que o livro nos oferta para compreender a perspectiva das crianças sobre
a infância, estão presentes aspectos como: a) o valor da brincadeira como experiência
da liberdade e felicidade; b) a infância como um momento intemporal; c) a escola como
trabalho em oposição à brincadeira e como perda da condição infantil; d) a infância
como dor ou como memória de dor.
A percepção das crianças sobre adultez indica fatores como: as desigualdades de gênero
na distribuição de tarefas domésticas; as relações hierárquicas e autoritárias; o peso
da responsabilidade financeira; a percepção e valorização de ações como cuidado
e educação; e a sobrecarga de trabalho das mães, temas que são aprofundados na
discussão do livro. Esses fatores também fornecem indicativos sobre a condição adulta,
sendo que tal entendimento é pontuado pelas autoras no seguinte excerto: “a adultez
implicava sobretudo coerção, subordinação e sobrecarga (...) e com o passar do tempo
o faz menos livre e feliz. Neste sentido crescer seria um retrocesso” (p. 79).
Dessa maneira, percebe-se que os discursos das crianças abordam perspectivas negativas
da escola, do trabalho assalariado, do trabalho doméstico e de cuidado a partir do que
vivenciam e observam nas experiências diárias com suas famílias. Conforme ressaltam as
autoras, essas compreensões sobre a infância e a adultez devem ser entendidas a partir
dos processos neoliberais crescentes na sociedade chilena, que acabam impactando
cotidianamente a vida das crianças.
IBARRA, P. C.; VERGARA-DEL SOLAR, A. Ser niño y niña en el Chile de hoy: la perspectiva de sus
protagonistas acerca de la infancia, la adultez y las relaciones entre padres e hijos. Santiago:
CeiboEdiciones, 2017.
JAMES, A.; PROUT, A. Constructing and Reconstructing Childhood. Contemporary issues in the
Sociological Study of Childhood. London: Routledge Falmer, 1990.
MIELES, M. D.; ACOSTA, A. Calidad de vida y derechos de la infancia: Un desafío presente. Revista
Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, v. 10, n. 1, p. 205-217, 2012.
MOSS, P. Beyond Early Childhood Education and Care. Early Childhood Education and Care.
Stockholm, 2011.
VERGARA, A.; PEÑA, M.; CHÁVEZ, P.; VERGARA, E. Los niños como sujetos sociales: El aporte de
los Nuevos Estudios Sociales de la infancia y el Análisis Crítico del Discurso. Psicoperspectivas, v.
14, n. 1, p. 55-65, 2015.
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Esse grito negro antilhano tem um eco insuspeitado nesse outro negro martiniquês
e psiquiatra, que lutou e denunciou e analisou muito profundamente o colonialismo
francês na Argélia. E o eco segue e segue e chega ao coração de outro negro atual,
haitiano e educador ambiental, que co-escreve essa obra junto com um brasileiro e
educador solidário.
É um grito ensurdecedor que nos diz, nessas páginas, que a pedagogia pode e tem de ir
muito mais além das técnicas e dos currículos, que necessita se enraizar nos combates de
uma nova sociedade, justa e solidária, se inspirar nos movimentos sociais, se alimentar
da responsabilidade e respeito às alteridades, superar para sempre a colonialidade do
outro. São gritos que nos vêm do fundo da nossa história africana, da nossa origem
humana comum na nossa Mãe África.
É tanta a nossa surdez instituída pela educação bancária denunciada por Paulo Freire,
pelos colonialismos de ontem e de hoje (Malvinas...), que nossas raízes e rizomas
continentais têm que gritar, sangrar, estourar para serem ouvidos. Se Fanon ainda é
pouco conhecido na nossa pobre América ainda colonizada, essa é a oportunidade para
conhecê-lo e reconhecê-lo; Fanon estuda psiquiatria e se especializa em Psicoterapia
Institucional como aluno de Tosquelles na França, nos anos da pós-guerra, sendo
designado diretor do hospital psiquiátrico em Blida: ali, continua com suas análises da
consciência colonizada que tinha começado na sua tese, inventando novos dispositivos
de cura que incluíam as dimensões socioculturais. Analisa os resistentes, vítimas de
tortura, e também alguns torturadores.
Quão pouco sabemos do Haiti, sua história e sua cultura, sua gente e seus sonhos... e
quanto temos de aprender desse povo irmão e mestre, das suas lutas, das suas tragédias,
das suas seculares resistências! Aqui, encontraremos alguns fatos importantes nos quais
nos inspirar. Da gesta revolucionária até a dívida re-colonial externa eterna, imposta
pela França como um primeiro bloqueio à expansão dessa primeira revolução pelo resto
1 FANON, F. Écrits sur l’aliénation et la liberté. Textes reunis, introduits et présentés par Jean Khalfa et
Robert Young. Paris: La Découverte, 2015.
Haiti como um espelho no qual podemos nos reconhecer... sua cultura está ao serviço
de quem? De quê? Nesse pequeno país, cresce a corrupção das classes políticas,
submetidas a décadas de sangrentas ditaduras e falsas democracias, situação resumida
no seu ditado popular: “a Constituição é de papel, as baionetas são de aço”, do qual nos
lembram os autores.
Como resolver esse dilema? Em primeiro lugar, também lembrando que esse, como
todos os dilemas, é falso: sempre há outras possibilidades escondidas, outras vias a
serem inventadas. Se nos lembrarmos daquela brincadeira infantil que todos jogamos
alguma vez, talvez possamos encontrar uma saída. Pedra, papel, tesoura... sim! O que
pode enfrentar e quebrar a baioneta é a pedra, uma dura e ancestral pedra feita dessa
resistência mineral dos povos colonizados, de todos(as) os(as) negros e índios rebeldes,
operários(as) e camponeses que, entre favelas e quilombos, greves e reivindicações
sociais, fazem crescer a inconformidade cultural que nos leva às tentativas de
descolonização educativa, às resistências de todos(as) apesar de tudo...
Essa pedra continental e multicolor só poderá ser embrulhada com o papel de uma
educação libertadora, irrigada por pedagogias alternativas que lhe darão as palavras
para dizer e gritar, os conceitos para pensar por si mesma, a organização autônoma
necessária para construir além do espontaneísmo, os caudilhismos populistas, as
pseudovanguardas, pseudoesclarecidas, os messianismos alienantes dos quais
desconfiava, com razão, Fanon.
Aos que acreditam que a cultura é mais fraca que as baionetas, perguntamos quantos
Francos serão necessários para enfrentar o pincel imortal do Guernica do Picasso... e
todas as forças da Arte estão sempre presentes, irrigando com seu sangue novo as
veias abertas que soube gritar Eduardo Galeano. Nunca esquecer que foi e é o suor
dos negros o que construiu a riqueza do primeiro mundo, martelava Fanon; ninguém
libera mais ninguém, ninguém se libera sozinho, só podemos nos liberar entre todos,
remartelava Freire em seu sempre presente chamado à criação dos Círculos Culturais.
Nosso querido pedagogo brasileiro enfatizava: temos de aprender a ler o mundo, não
só as letras do alfabeto. Essa é a base, a perspectiva de toda educação liberadora das
opressões. Ressoam nessas páginas esses golpes de consciência e lucidez, para nos
relembrar (em espanhol, a etimologia da palavra recordar implica voltar a passar pelo
coração) de que os movimentos sociais – muitas vezes por fora dos partidos políticos
– foram, na Argélia, no Haiti, em tantos outros lugares, os artesãos educativos do
anticolonialismo que sacudiu os aparatos estatais e derrubou ditaduras.
De quem aprender o quê? O que precisamos saber e para que, para quem? Essas e
outras questões são trabalhadas nesse livro, no qual não encontramos receitas, mas
Nada das cabeças vazias a serem preenchidas com os conteúdos feitos de fora e de
cima, com o olhar isolado e o espírito de concorrência ascendente; pelo contrário, no
envolvimento comunitário e seus movimentos históricos, suas necessidades sociais e
sua criatividade cultural é o fogo que acende os aprendizados cotidianos, a partir de
uma horizontalidade construtiva permanente e com um olhar virgem de manipulações.
Referências Bibliográficas
NOGARO, A.; PROSPERE, R. Educación y transformación social en/de Haití a la luz (de la
pedagogía obrera) de Frantz Fanon. 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: CLACSO; San
Pablo: Mercado de Lestras, 2018.
Levantamento Bibliográfico
Nesta seção, apresentamos o levantamento bibliográfico dos livros publicados na área das ciências
humanas e sociais dos países da América Latina sobre infância e juventude. O levantamento
contemplou obras publicadas no período de Setembro a Dezembro de 2018 cujas informações
puderam ser obtidas nos sites de suas respectivas editoras.
3 Análisis a nivel internacional del derecho de participación de niños, niñas y adolescentes en los
procedimientos de familia cláusula estándar: edad y capacidad, obstáculos para su participación
(ISBN 9788491778196)
Autora: Esther Susin Carrasco
Editora: Marcial Pons, Buenos Aires, 140 páginas.
4 De la escuela al trabajo y del trabajo a la escuela. Una economía simbólica de la vida escolar,
barrial y laboral de jóvenes de clases populares (ISBN 978-987-538-589-4)
Autor: Gonzalo Assusa
Editora: Noveduc, Buenos Aires, 176 páginas.
5 Derecho a la educación y pedagogías. Aportes para un pensamiento pedagógico del siglo XXI
(ISBN 978-987-3805-30-1)
Autoras: Alejandra Birgin, Florencia Finnegan, Rafael Gagliano, Marcelo Krichesky, Graciela
Misirlis e Myriam Southwell
Editora: UNIPE: Editorial Universitario, Buenos Aires, 104 páginas.
7 Educación Inclusiva. Teorías y prácticas de enseñanza en las escuelas primarias (ISBN 978-950-
892-562-6)
Autor: José María Tomé
Editora: Lugar Editorial, Buenos Aires, 174 páginas.
20 La violencia contra los niños y las niñas en el ámbito familiar (ISBN 9788491697930)
Autor: Malin Hellmér
Editora: Marcial Pons, Buenos Aires, 423 páginas.
23 Niñas, niños y jóvenes en dis-capacidad habitando el mundo común: derecho a ser con las
acciones de jugar (9789587834512)
Autoras: Dora Inés Munévar e Margarita María Fernanda Sierra Gil
Editora: Editorial de la Universidad Nacional de Colombia, Bogotá, 144 páginas.
24 Niños desconectados. Cómo pueden crecer nuestros hijos sanos y felices en la era digital? (ISBN
978-84-414-3843-9)
Autora: Elizbeth kilbey
Editora: EDAF, Buenos Aires, 256 páginas.
25 Nos trajeron miedo. Los rostros del daño: valoración, dimensiones, tipologías y actores del
daño. Adolescentes y jóvenes en territorios de conflito (ISBN 978-99967-776-6-0
Organizador: Rodolfo J. Elías Acosta
Editora: Serpaj, Asunción, 127 páginas.
26 Nuevos espacios alfabetizadores. Encuentros con el arte y los medios audiovisuales (ISBN 978-
987-538-571-9)
Organizadora: Liliana Waidler
Editora: Noveduc, Buenos Aires, 184 páginas.
30 Queremos seguir otro camino. Memorias del conflicto armado en niños y niñas en situación de
desplazamiento en popayán (ISBN 9789587322590)
Autores: Deiber Renè Hurtado Herrera, Marìa Andrea Simmonds Tabbert e Pedro Anìbal Yanza Mera
Editora: Editorial Universidad del Cauca, Popayán, 174 páginas.
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