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S586 Silva, Tadeu Tomaz da

O que produz e o que reproduz em educação : ensaios de sociologia da


educação. — Porto Alegre : Artes Médicas, 1992. -*
lEducação — Sociologia LTítulo.

CDU 37.015.6

Bibliotecária responsável: Mônica Ballejo Canto — Cl/B Provisório 10/91


O p r o c fM Z
^ O f ^ p f O íÍ M Z

.Socío/ogía ^ ^JífMcarp^o

! DEDALUS - Acervo - FE
37.047(81) O que produz e o que reproduz em educacao :
O Editora Artes Médicas Sui Ltda., 1992
Capa.'
Mário Rõhneit
.Supervisão eãitona/.'
Leda Kiperman

Aquisição .p^o- / L--


O rigem T L v ^ c ^ c . _______
Sojicitants
Proc. t 2 . ! . 3 0 & U 3 0
C r$ )^Q ÇOO^QQ Data 3 / & j^ g
N.° de C. atr.ada PesSHWÍSMO& inieiigência, Oiimismo & POniaãe.
3? 5. <9^/* *bs Antonio Gramsci
€- f
Não bá naãa mais oiimisia ^ae orna cowprooMsão sisiemáiica ãas reaiiãaães.
Não bá naãa, ao/inai, mais ãeprimenfe t^ae am erro nossa compreensão ãepião a
ama romanfiza^ão ãesia reaiiãaãe a serviço ãe am/aiaro espáreo. Como
conseqáência ãisso, em minba obra raramenie bá recomenãações, receiias,
ãecíara(iães< sobre as conãiçães ãe ama maãança peãagógica raãicai.
A esperança essencial para a maãança sarge não ãa própria esperança, mas ãa
compreensão ãos ãiversos moãos ãe regaiação ãa consciência e ãe saa relação
com as ãi/ereníes bases sociais.
Basil Bernstein
Não se iraia simpiesmenie ãe ensinar a nossos jaiãros pro/êssores o manejo ãe
am cerio námero ãejeiizes receiias.
Émile Durkheim
Assim, a socioiogia ãa eãacação é am capüaio, e não ãos menores, ãa socioiogia
Reservados todos os direitos de pubiicação à- ão conbecimenio e iambém ãa socioiogia ão poãer (..J.íongeãe ser esse iipo ãe
EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA. ciência apiicaãa, porianio in/êrior, eia se siiaa na base ãe ama aniropoiogia
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IMPRESSO NO BRASIL Pierre Bourdieu
PRINTED IN BRAZIL
Sumário

Prefácio 7
I A dialética de uma tradição:
produção e reprodução em Sociologia da Educação 11
1 A Sociologia da Educação:
entre o funcionalismo e o pós-modemismo 13
2 Em favor da teoria da reprodução 29
3 O que produz e o que reproduz em educação 59
II No recôndito da caixa-preta: o conhecimento escolar 73
4 Currículo, conhecimento e democracia:
As lições e as dúvidas de duas décadas 75
5 A economia política do currículo oculto 94
6 Distribuição do conhecimento escolar, e reprodução social 113
III No outro lado do currículo oculto: o trabalho 137

7 Produção, conhecimento e educação: a conexão que falta 139


8 Divisão social do trabalho - divisões educacionais:
Qual é a relação? 151
9 O trabalho docente: um processo de trabalho capitalista? 174
Referências Bibliográficas 184
S
PreRcíò

Este livro reúne alguns dos ensaios que escreví nos últimos anos, alguns
deles publicados em outros locais, outros, inéditos (o leitor encontrará as
indicações bibliográficas das publicações originais ao final do livro). Os
nove capítulos que o constituem giram em torno de alguns temas
fundamentais e que foram aqueles que mais me ocuparam nesse período:
a Sociologia da Educação e as teorias da reprodução, a teorização crítica em
torno do currículo (Sociologia do Currículo) e as relações entre educação e
trabalho.
Na primeira parte, intitulada A dialética & ama tradiçdo; prodnçdo e
rcprodMçdb em Sociologia da Edncaçdo, reúno três trabalhos que giram em
torno dos temas centrais da tradição crítica em Sociologia da Educação. No
capítulo 1, A Sociologia da Edncaçdo; entre oyhncionaiís?no e o pós-modernismo,
tento fazer uma síntese das preocupações e dos problemas principais da
tradição crítica em Sociologia da Educação. O capítulo 2, Em_/ânor da teoria
da reprodnçdo, constitui ao mesmo tempo uma síntese das teorias da
reprodução e uma defesa da utilização deste conceito e deste paradigma.
No capítulo 3 ,0 (?Meprodaz e o <?Mereproduz em edMcaçdo, procuro incorporar
algumas das teses mais recentes em Sociologia da Educação, isto é, aquelas
que enfatizam os seus aspectos produtivos. Os dois primeiros capítulos
tinham sido anteriormente publicados em forma de artigo, o terceiro é
inédito e constitui uma reformulação da prova escrita para o concurso de
professor titular para o Departamento de Ensino e Currículo da Universi­
dade Federal do Rio Grande do Sul.
Na segunda parte, No recÕKdiYc da calxa-prefa; o conhecimento escolar,
incluo trabalhos que pertencem a outra das minhas áreas de pesquisa, o
currículo. No capítulo 4, CnrrícMio, conhecimento e democracia; as lições e as
dáoidas de dnas décadas, busquei sintetizar de forma didática as compreen-
sões e também os problemas remanescentes daquele campo da Sociologia
da Educação conhecido como Sociologia do Currículo. No capítulo 5, A
economia po/íí/ca tio CMrríCM/o ocaiio, retomo um conceito, o de currículo
oculto, um tanto relegado ultimamente, buscando revisá-lo. O capítulo 6,
Disfn&aípio de con/tecimenio esco/ar e reprotiaç3o sociai, é minha tentativa de
explorar empiricamente algumas das teses das teorias da reprodução. Com
exceção do capítulo 5, publicado aqui pela primeira vez, estes capítulos
íoram original mente publicados em outros locais. O capítulo 6, além disso,
constitui uma síntese da minha tese de doutorado apresentada à Universi­
dade de Staníord.
Na terceira parte, No OMiro /ado tio cMrrícMic ocM/io: o íra&a//to, busco
explorar a conexão entre educação e trabalho, uma conexão que julgo
fundamental no âmbito da Sociologia da Educação. No capítulo 7, ProdM-
{#o, con/zccimenío e edMca{rdo.a conexdo /ãifa, reviso algumas proposições
fundamentais da tradição crítica em Sociologia da Educação a respeito
daquela conexão, buscando contestar algumas de suas suposições. No
capítulo 8, D/u/sdo socrn/ do traba//M - Díu/sões educac/ona/s; Qaa/ é a re/a^do?,
busco ampliar algumas das teses defendidas no capítulo anterior. Final­
mente, no capítulo 9,0 íraMAo docente.' nm processo de /ra&a//:o cap/fa/Zsfa?,
contraponho-me um pouco a algumas das teses correntes a respeito do
processo de trabalho docente. Com exceção do capítulo 7, já publicado em
outros locais (sua publicação novamente aqui é justificada por sua ligação
com o capítulo 8), os outros são trabalhos inéditos.
Não podería deixar de agradecer ao CNPq - Conselho Nacional de
Desenvolvimento CientíficoeTecnológico pelo apoio financeiro. Os traba­
lhos que deram origem a este livro foram realizados enquanto bolsista
daquela instituição, primeiro como bolsista de doutorado, depois como
bolsista-pesquisador.
O livro é dedicado à Guacira e ao Pablo. Sem seu afeto e compreensão
talvez tivesse-sido possível escrevê-lo, mas certamente com muito menos
graça e sentido.
I

A dialética de uma tradição:


produção e reprodução
em Sociologia da Educação
í

<(
_____________________ 1 _______________________

A Sociologia da Educação:
entre o funcionalismo e o pós-modemismo
'3'r

A Sociologia da Educação é hoje um campo tã&Q u ü o ^ ão,indeterminado)


que qualquer tentativa de apreender-lhe as principais perspecHvãsLdm
análise e temas de pesquisa torna-se bastante difícil. Embora boa párte dos
estudos e pesquisas em educação reivindique a utilização de alguma
perspectiva sociológica, poucos pesquisadores, sobretudo no Brasil,
realmente se identificam como fazendo Sociologia da Educação. Que
campo científico, então, é este, ao mesmo tempotãqonipresentÈe tão pouccL

sem pretender descrever o desenvolvimento e a evóluçã^^B isciplina^


Estaremos limitados aqui a uma síntese de como se apresema a situação
neste campo hoje.
Sociologia da Edacação; tfwa oa várias?
Aquilo que hoje consideramos como sendoSocioiogia daEduraçãoestá tão-
identificado com um referencial crítico dos arranios sociais e educacionais
' existentes, principalmente no Brasil, que se toma difícil pensar que este
nem sempre foi o paradigma dominante e que ainda não o é em países como
os Estados Unidos, por exemplo. E muito difícil traçar-lhe a origem e a
consolidação. Mas seja lá onde as situarmos, vamos encontrar uma disci­
plina acadêmica altamente envolvida numa aceitação e numa justificação
da ordem existente. Este é ojcaso se remontamos sua fundação a Durkheim,
por exemplo, que tinha uma avaliação altamente positiva da relação entre—
educáção e sociedade-Ocorre o mesmo se preferirmos fazer coincidir sua

O que proáMZ e o que reproduz em educação 13


institucionalização com o auge do predomínio do paradigma íuncionalista
em Sociologia nos Estados Unidos, cujos exemplos paradigmáticos são o
ensaio de Parsons (1959), Scliooi as a Social Sysíem: some ofla n c h o u iw
American Socieíy, e o iivro de Dreeben (1968), On wlMf is ieamed in scRooi.
E mesmo hoje ainda convivem, lado a lado, uma Sociologia da Educa­
ção extremamente cética com relação à ordem existente, baseada em geral
nalgum modelo marxista (mas não exclúsivamente), e uma outra, ainda
íortemente inspirada pelo paradigma íuncionalista e baseada em metodo­
logias de pesquisa declaradamente empiricistas, isto para não íalarmos de
perspectivas que rejeitam ao mesmo tempo uma e outra abordagem, como
as Sociologias da Educação de inspiração interaci<násla^ímQBienqlógiíLa—
oífètnomêtõdológícâ. Para se ter uma idéia da distância entre estes dois
l^ d n c íp ã ís í^ comparar, por exemplo, dois periódicos da área:
o BritisT: /oMrrMi q^Socioiogy q^E^Hcaíion e o norte-americano Socíoiogy of
EdMcatíow. Como disse um dos íundadores da nova sociologia da educação,
Michael Young, por ocasião de um Encontro Internacional de Sociologia da
Educação, realizado alguns atrás no Rio de Janeiro, diante da apresentação
de alguns dos trabalhos de pesquisadores norte-americanos: ''Nalnglater-
ra dificilmente reconheceriamos isto como sendo Sociologia da Educa­
ção".' Não por acaso, nos Estados Unidos, as principais contribuições ao
que ficou sendo identificado como Sociologia da Educação de orientação
mais crítica vieram de estudiosos de fora do campo da Sociologia da
Educação institucionalizada (Bowles e Gintis, Apple, Giroux, Carnoy,
Lewin). .
De uma forma similar, quando se fala em Sociologia da Educaçao
pensa-se imediatamente no estudo das grandes relações entre processos
sociais amplos e resultados amplos dos processos educacionais, como, por
exemplo, entre certas características da economia capitalista e a produção
de desigualdades sociais via escolarização. Existem entretanto setores no
campodaSEcujapreòcupaçãoprincipaleexclusivanãotemnadaavercom
esses procesSos sociais mais gerais, mas com processos sociais produzidos
no nível de pequenas unidades sociais, como a sala de aula^e seus efeitos
neste nível, como o demonstra toda uma linha de estudos dq inspiração
interacionista ou íenomenológica, de resto muito presente ná gênese da
própria nova sociologia da educação.
Isto mostra como é difícil falar de uma Sociologia da Educação. As
diferenças entre os referenciais teóricos, os temas tratados e a orientação
política são tão grandes, que talvez fosse mais correto falarmos de Sóciolo-
gias da Educação^a^ueámplicajiaxiamcterizaMada^ima^ e stas^ erspec^
ti vas e discutir os problemas deue^guisa.postos por cada uma dessas

14 TowiRz Ta&M & Silva


tradições. No âmbito mais modesto deste trabalho, entretanto, esta adver­
tência serve apenas para situar o campo no qual estarei me movendo No
que se segue, estarei circunscrito àquela Sociologia da Educação que de
certa forma se tornou dominante e que secaracteriza por uma perspectiva
eminentemente crítica çom relação aoslinãnids sociais e
- Ján§Sãáâ.ÊXRÍÍS3^ões causais situadas na
?ais amplos ú gerais, Á descrição ddslmpor-
tantes temas de pesquisa e preocupação dessa tradição, tentada abaixo,
servirá para tornar mais clara esta restrição.
Aíopeudo-se wo campo.* as rc/ércacias principais
Pode-se dizer que o grande tema desta Sociologia da Educação é o dos
-7 mecanismos pelos quais a educaçãõTou mais concretamênte, a escola ""
^Çõn^bnLpara^produçãpeamproducão de um asõcied^edK lãssesTEsT^"
é o tema unificador desta tradição te ó ricã^ êm ^ i^ ,o R jd eT j^ ã^ en tre
estudos que,deresto,podemsemostrarbastantedivergentes.Seriamesmo
^ to u ^ e ^ ig ín a que se poderiadentanuma-definição da rta
JEduçaçao^ q e. Más o que é mais importante é que os estudos que marcaram
e delimitaram o campo da Sociologia da Educação nos últimos 20 anos
centram^em -torpo dessa problemáticato Mcoio^r ri uppureds idMomoKa;
d ^ u ^ ^ th u s s e r ( ^ 7 0 ) ,o S c ^ ^ m C a p t^ M w e r ic H d ^ ^ ^ ^ h & ?
(1976),o D r^ ^ ^ tM W ^ ^ ^ ^ e ^ ^ s s è r< ^ )(1 9 7 0 ), oZ/Ecõíícapitaiisie
eu france d ^ a u d g lb t^ ta ^ t{ 1 9 7 1 ), e oKnowiedge and coníroi de Michael
Young (W lI3nuitas vezes englobados sob o titulo, impróprio edepreci-
ativqpde reprodutivista^ Naturalnipnip eles têm muita coisa a separá-los
e são estasitliferenças que nos vão permitir fazer um desdobramento deste
temagerab] .
Antes de entrar nessas diferenças, entretanto, é preciso mencionar uma
outra característica que os une. De uma forma ou de outra, esses estudos
fundadorg&pastulam que a contribuição específicaederisiva ria
j3ãra-.a.produção,e^:eproducão das classes reside na sua raparid^rtn de
J&anÍPHÍã^o ejmoldâgem^das consciências, j É na p rep ararãr^. tipos *"
diferenciados de subjetiyidadâíde acordo comas diferentes classes sociais^
quea escolaparticipa na^prmaç^Êí^nsoHdacãodajordem social P a ra i sm
é decisiva a transmissão einculcação diferenciada dêcer^s ídêías valores.
EMlÉqs^perçepção^estiios de vida, em geral sintetizados na nõçãJdé
ideologia (naturalmente, resguardadas as evidentes diferenças^entre os
diferentes estudos na definição deste conceito tão central, como veremos
mais adiante)??

O que produz e o que reproduz em educação 15


fM as para além desta problemática unificadora, há muitas diferenças _
conceituais e metodológicas. Temos, por um lado, os ensaios dcclarada-
nrnntrnmarxistas como os de[^ lth u sseg^Bówtès) eijGihtis,: e^Baudeiot e
Establet/para os quais a divisão social decisiva é aquela entre ciasses
^êconômicaí e para os quais d papeí da escola consiste em preparar às
pessoas para os diierentes papéis de trabalho nessa divisão. E por outro, o
famoso estudo de Bourdieme Passeron, para os quais .adíiyisão sociãR
centralmente mediada por um processo de reprodução cultural. Num
outro eixo, temos de umlado esses quatro estuSos mencionados, centrados
nos mecanismos amplos de^epróduçãõsdciaj via escola e os estudos da
nova sociologia da pducacãíy preocupadõíêmdescrever as minúciasjlo
funcionamento do currículo escolar e de seu papel na estruturação das
"desigualdades soei ai s e para a descrição dos argumentos centrais de cada
um desses estudos que nos voltamos agora, tentando fazer, através disso,
um mapeamento mais preciso dos principais temas da SE.
A divisão capitalista ão trabalho; ponto de partida e ponto de clegado
í Nos três grandes estudos de inspiração marxista que estamos percorrendo
(Althusser, Bowles e Gintis, Baudelot e Establet) é a divisão da sociedade
entre proprietários e não-oroorietários, em conjunção com a divisão entre
Trabalhointel echial e trabalho m anual.e suã^^ r o d ü ç ã ^ ^ problema que
necessita ser explicado, com ênfase para o paperdãeãcSla nesse processoj)
Da mesma forma, o papel específico da escola, para essRS^s tudnsJgnoran-
do por enquanto suas diferenças, consiste em preparar técnica e subjetiva^
mente as diferentes classes sociais para ocuparem seus devidos lugares..
naquelas divisões. - /
i_Em Althusser isto passa por uma teorizacão a respeito do papel do
Estado na reprodução dás classes sociais, através do conceito de Aparatos
Ideológicoíde EstaSõfe da atnbuição de um lugar privilegiado para a
instituição escolar nessa rede de instituições encarregadas de fornecer as
condições ideológicas ideais para o processo de acumulacão-capitalista. A
obra adequada, quer formando subjetivamente as diferentes classes soci­
ais, através da inculcação e transmissão diferenciadaTlã/ideolõgià/i^to é,
daquelas idéias, valores e formas de agir apropriadas a cadsrclasse socia 1.
Como se sabe, Althusser não entra nos detalhes deste processo, contentan­
do-se em mencioná-lo quase que apenas de passagem.^
(jBaudelot e Establet, praticamente retomando o modelo fornecido por
Althusser, são mais explícitos a respeito do funcionamento do processo

16 To?fMz Taãea ãa Silva


fundamentai pelo qual a escola produz essas ditertmtes subjetividades.
Eles fornecem alguns dos detalhes que faltam ao esquema de Althusser.
Para eles, o sistema escolar está dividido em canais separados e incomuni-.
cáveis, seeregados em termos de classe. Esses canais, através d&currículos.
diferenciados - de um lado, constituído por um conhecimento de status
superior para as classes dominantes e, de outro, por um conhecimento de
segunda classe para as classe subordinadas - voltam a reproduzir as
mesmas classes sociais existentes na entrhdaj
<(Ho modelo de Bowles e Ginhs^ embora a raiz das desigualdades
escolares também esteja localizada na estrutura da economia capitalista, e
aquelas contribuam para alimentar esta, reproduzindo assim sem cessar o
circuito dareprodução (como em Althusser e como em Baudelot e Establet),
é sobretudo a vivência delum contexto escolar que se constitui na imagem
especular do contexto do local de trabalho (o mesmo tipo de relações
sociais, uma forma similar de alienação, a mesma fragmentação e com pe­
tição entre os di fercntes grupos sociais) queproduzoLtipode personalidade
adequada às divisões existentes na produção capitalista^ na hierarquia do
O esquema é praticamente o mesmo. Mas há uma
declarada ênfase na experiência resultante de se viver num contexto como
o das relações sociais na escola, em detrimento da importância da inculca-
ção oral de mensagens ideológicas e da diferenciação social produzida via
conteúdos cognitivos diferenciados- Há aqui uma ênfase nos aspectos
práticos da ideologia (mas não se pode esquecer que Althusser já havia
chámáõõ áát éhçàõ para isso na sua famosa fórmula: "a ideologia tem uma
existência material").
^Podem os neste ponto questionar estes estudos quanto a uma possível
e importante deficiência, cuja busca de superação, aliás, tem de certa forma
moldado ós estudos que se lhes seguiram desde erftão. Eles partilham a
característica de concederem pouca atenção aos fatores que medeiam entre
a estrutura social e econômica mais ampla e o contexto escolar para
produzir os processos aí descrito3&Não por acaso essas teorias têm sido
acusadas de íuncionalistas. De acordo com essas críticas, elas partiriam do
axioma da existência de um requisito, uma demanda do sistema, como, por
exemplo, a necessidade que tem o sistema de produção capitalista de uma
mão de obra com certas características técnicas e atitudinais e de uma
população em geral dócil e favorável e deduziríam disso a necessidade da
existência de uma instituição como a escola que produza esse resultadol
^hjão há, de acordo com essas críticas, uma consideração de como essás
necessidades são produzidas, em primeiro lugar, nem uma descrição de
quais são os mecanismos pelos quais essas necessidades e as ações reaiiza-

O ÇMgpro&tz g o ÇMg reproduz gm gtÍMcação 17


das para satisfazê-las se transmitem ao longo da cadeia de instituições,
grupos e pessoas envolvidos ou, se quisermos, ao longo dos diferentes
elementos da estrutura. Ou seja, dadas as necessidades do sistema, uma
instituição tal como a escola so funcionar dessa forma. Ou, de forma
inversa, a escola funciona assim porque o sistema assim o exige. Há pouco
lugar aqui para uma consideração dos fatores qüe em algum ponto inter­
mediário contribuem para produzir os resultados em questãoj
BoMrdieM c PnsscroM.* os processos CMÍtorais em evidência
De uma forma ou de outra, para esses autores que enfatizam a determina­
ção dos processos escolares pelas características da produção econômica
capitalista, o papel da escola consiste em transmitir a ideolomadominante,
àqueles aos quais processa. Com Bourdieu e Passeron, temos uma .descri-
ção íundanaentãlmente diferente do processo de reprodução cultural e
Sôciab Para esses, a escola não fnculca valores e modos de pensamento
dominantes. Ela se limita, ao usar um código de transmissão cultural no
qual apenas as crianças e jovens da classe dominante já foram iniciados no
ambiente da família, a permitir a continuação desses no jogo da cultura e
à confirmar a exclusão dos filhos de pais das ciasses subordinadas.
É naturalmente central ness^q?fScessoudiTtnsnTissãfídãldéi^de qüe
essa exclusão não se dápor nenhmnãto de imposição bruta e visível, mas
jpor incapacidade de alguns de. vencer numa corridameritocrá tica,a_da^
^arreira escolar,._que é íundamenialmeniequHa .e igualitária. O processo
ideológico fundamental em ação é o de ocultaçaó das reais relações de força
que estão na base da imposição da definição de uma cultura particular
como sendo "a" cultura. Excetuando-se isso, entretanto, não é impondo os
valores da classe doráinante que a escola chega a cumprir sua função. Ao
contrário, seu êxito está exatamente na medida do êxito do processo de
exclusão que ela realiza.
Podemos apenas imaginar como este processo de exclusão cultural
acabapor contribuir para a reprodução das classes sociais, definidas como
posições distintas no processo de produção, pois Bourdieu e Passeron nos
dão poucas indicações a respeito disso. Sua ênfasee stá no processo de
transmissão entre-gerarôps dò capital cultural, vale dizer. noj3rc^essode^
reprodução cultural da classe dominante. Supõe-se que õ fracasso das
"ciasses subordinadas em ter acesso ao capital cultural faz com que se
resighem a ocupar os postos mais baixos da hierarquia social. Mas em
virtude de um corte conceituai pelo qual a sociedade fica dividida em torno
de Culturas diferentes (a cultura dominante e a cultura dominada), pouco

Tomaz Ta&M & Silva


^ \!y
í- ' fM
/
ficamos sabendo sobre o processo ^ tqual se dá a aceitação de um papei
pelo
subordinado na ordem social.
De qualquer forma, vemos presente, também aqui, o tema central da
classes. A teorização da estrutura social é distinta, a descrição dó papel da
escola é diferente, mas o problema permanece o mesmo, o de explicar como
se produz e reproduz a estrutura social e qual o papel da educaçãó nesse
processo. Mas ainda falta vermos como lidou com este problema uma outra
corrente dentre aquelas fundadoras da atual SE.
A probfewmtização do conhecimento escolar
(Embora tenha tido muito pouca repercussão no Brasil, a corrente que ficou
conhecida como nova sociologia da educação teve umainfluênciá decisiva
sobre o perfil que tem hoje a SE. O marco inicial dessa importante aborda­
gem é constituído pela publicação em 1971 do livro Kwowledge and Confróf,
organizado por Michael Young. Embora sua influência principal tenha se
dado na Inglaterra, onde se iniciou, ela se estendeu depois a outros países,
sobretudo aos Estados Unidos, e um pouco tardiamente, à França, através
do trabalho de divulgação de J.-C.Forquin (1989)7]
Já muito se escreveu sobre as condições sociais de surgimento da nova
sociologia da educação, sobretudo sobre seu aspecto de reação à chamada
sociologia aritmética da educação que se fazia então na Inglaterra e em
outros países. Para o que nos interessa aqui, entretanto, importa destacar
aquilo que a distingue fundamentalmente dos outros ensaios e estudos
fundadores. Embora acabe havendo mais tarde uma convergência e uma
reacomodação entre essas diversas correntes, e é exatamente essa recombi-
nação que vem a dar na atual SE, a NSE se distingue dos outros estudos
centrais em importantes aspectos.
(Em primeiro lugar, a N$E coloca no r^ph-o rta fspálisp soriológicaAa .
çducação a problematizacão dos currículos escolares. Em vez de tomar
aquilo que é considerado como currículo escolar como um dos fatos
aceitáveis da vida, um dado natural, a NSE coloca em questão o próprio
processo pelo qual um determinado tipo de conhecimento veio a ser
considerado como digno de ser transmitido via escola._Aquela divisão e
organização do conhecimento escolar que nos acostumamos a ver como
natural constitui o resultado de uma sedimentação temporal aolongocfa
^ qual houve conflitos e lutas em torno da definição que devia ser adotada\
Ao contrario das outras orientações, nas quais o que é central é o processo
de estratificação social, aqui o processo fundamental a ser examinado é o
----j/* ^
O <?Meproduz e o ^ue reproduz em educação 19
da estratificação do conhecimento escotar. Qual é a hierarquia entre as
diferentes disciplinas escolares? Como essa hierarquia veio a ser estabele­
cida, através de quais processos de luta e negociação?
Metodologica e teoricamente, essas manifestações iniciais da NSE
estão também um tanto distantes de nossos outros estudos centrais, embora
partilhem uma mesma rejeição de certas suposições positivistas. Aqui o
pano de fundo teórico écdnteracionismo simbólico ç afenomenolosia, com
sua ênfase nos processos de constAição sociál dá realidade, e de negocia-
jção. Daí a importância que adquire o estudo dos processos de interação em
sala de aula e dos processos pelos quais atores sociais tais como professores
e alunos vivem uma realidade social que é construída e negociada na
interação social. A implicação prática e política desta conceptualização
teórica era de que a mudança educacional e social ficava bastante depen­
dente da possibilidade de alunos e professores (sobretudo esses últimos)
compreenderem este processo de construção social e a forma pela qual ele
contribuía para produzir identidades sociais dentro da sala de aula e da
escola que levavam à desigualdade e à estratificação social.
Ironicamente, uma das promessas da NSE, a da análise pela qual as
disciplinas escolares vieram a se constituir socialmente não chegou a ser
cumprida. Com sua ênfase demasiada nos processos de interação na sala
de aula, a NSE mostrou-se incapaz de analisar os processos mais amplos
pelos quais o conhecimento escolar apresenta-se na configuração existente
e não noutra, uma importante tarefa que parece começar a ser realizada por
umaIu^óriadas_disciplinas(Chervel,1990; Goodson,1990).
O legado dos/nudadores e os temas centrais hoje
Apesar do franco deáenvolvimento da SE nesses vintes anos que transcor­
reram desde o aparecimento desses estudos pioneiros, a problemática
central continua fundamentalmente a mesma e mesmos são os temas que
estão sendo pesquisados. Numa espécie de síntese do que revisamos
acima, poderiamos dizer qu e o paradigma da SE tal como estabelecido por
aqueles ensaios gira em torno do papel da educação na produção e
reprodução de uma sociedade de classes. Este grande tema, por sua vez,
desdobra-se nos temas do papel da ideologia nesse processo, da natureza
do Estado capitalista e de sua participação central na institucionalização e
continuação de um sistema educacional que mantém uma relação estreita
com as exigências da produção capitalista, da contribuição decisiva da
organização da distribuição do conhecimento escolar no processo de
construção das desigualdades educacionais, da estreita relação entre os

20 Towiaz Ta&M & Sifpa


processos de reprodução cultura! e de reprodução social, da contribuição
da escola para a reprodução da divisão social do trabalho.
Mas muitas das temáticas introduzidas pelos fundadores permanecem
pouco desenvolvidas. Entre os temas cujo desenvolvimento ainda está para
ser feito podemos listar o da relação entre uma teoria do Estado e a
educação, o da conexão entre os níveis micro e macro-sociológico, o das
conexões entre agência e estrutura, o das complexas relações entre ideolo-
giá e cultura, o das relações entre a divisão social do trabalho e a educação
e, finalmente, o da questão das relações de gênero e de raça, sobre os quais
me estendo um pouco mais no que se segue.
Um esboço de uma teoria do Estado que levasse em conta o papel ^
educação estava evidentemente presente em pelo menos dois d esses^ ^
trabalhos, no de Bowles e Gintis e no de Althusser, sobretudo nesse último, <^, *
mas de uma forma muito pouca desenvolvida. Em Althusser, por exemplo, ^
isto não vai além da famosa fórmula dos aparelhos ideológicos de Estado,^
não entrando nunca \ ra análise de todas as implicações do fato-dc. aj/^ Às- -
educação, em todos'Os países, ser hoje totalmente controlada pelo Estado.
À ausência de uma maior teorização sobre as conexpes entre Estado e
educação é tanto mais inexplicável quanto esta conexão é exatamente um
dos fatos mais notáveis a respeito da educação moderna. Os educadores (e
os sociólogos da educação?) talvez tenham estado demasiadamente envol­
vidos com o Estado para poderem teorizar com uma certa distância a esse
respeito. Mas parece evidente que será muito difícil compreender o funci­
onamento da educação, quanto menos transformá-la, sem uma teorização
adequada do papel do Estado nesse processo. Algumas tentativas,íconto a
de Dale (1988), por exemplo, podem servir de ponto de partida, mas é
preciso muito mais.
Desde há muito a SE vem buscando superar uma aparente negligência
dos primeiros e principais estudos em relação àquilo que acontecemo.,
interior daescola e das salas de aula. É o famoso problema da caixa-preta.
"De acordo com a avãlíâção que se faz daqueles estudos, eles deixaram de
descrever e explicar as minúcias do cotidiano das escolas e das salas de
aula. É evidente que isto não se aplica à nova sociologia da educação, que
tinha como um de seus objetivos justamente explorar esses detalhes, mas
é verdadeiro a respeito dos outros ensaios principais. Desde então muitas
tentativas foram feitas de preenchimento dessa suposta lacuna.
Certamente não há dificuldade alguma na descrição dos eventos do
cotidianoescolarenemmesmoemencontraralgumtipodeexphcaçãopara
essa ocorrência. As dificuldades começam quando a explicação pretendida
centra-se na busca da relação entre esses eventos e processos sociais mais

O que produz g o que rgproíÍMZ gm gí?Mcação 2Í


amplos, tais como o da reprodução da estrutura social. É fácil ver que esta
dificuldade não existe para quem trata das relações entre a estrutura social
mais ampla e processos educacionais também mais amplos, tal como, por
exemplo, o fizeram Baudelot e Establet ao analisarem o papel da divisão do
sistema escolar francês na reprodução das classes sociais (o fato de terem
para isso examinado os programas escolares das duas redes não prejudica
o argumento: tratava-se, de qualquer forma, dos programas escolares das
redes, não de uma sala de aula ou de uma escola). Mas isolar uma sala de
aula ou escola, selecionar aí certos eventos e tentar fazer a partir daí uma
ligação com processos tais como o da permanência da estratificação social
tem-se constituído na grande busca a quê se vêm dedicando muitos
sociólogos da educação. \
Uma dessas tentativas foi a realizada por Paul Willis (1991), num
estudo que se tornou um dos mais citados em SE desde sua publicação
original em 1977: íearuiM# to latonr. Embora não explicitamente planejado
para buscar esta conexão entre processos micro e inacro-sociológicos e
embora seja notável tambémpor outras características)a pesquisa de Willis
claramente tentava estabelecer uma conexão entre aqueles dois níveis.
Neste estudo, Willis procurou mostrar como involuntariamente, mas de
forma decisiva, um grupo de adolescentes masculinos originários da classe
operária e concluindo um ciclo da educação secundária, determinava,
através da rejeição dos valores escolares e do trabalho mental, seu próprio
encaminhamen to paraotrabalho manual. Oresultadofinalénaturalmente
a reprodução da classe operária como classe operária e, como consequên­
cia, das relações sociais existentes. Mas o que interessa aqui é menos
descrever os detalhes do estudo de Willis e mais fornecer um exemplo de
uma forma de solução dessa busca de articulação entre os níveis micro e
macro de análise.
No caso de Willis, a sequência do raciocínio que leva de um a outro
nível pode ser descrita da seguinte forma. Primeiro, define-se o processo
amplo cuja decifração está-se buscando. Neste exemplo, a reprodução
social, que é definida como a permanência, entre uma geração e outra, na
mesma classe social, ou como diz o próprio subtítulo da edição original do
livro: how ciass Mis geí worUn^ dass /o&s (isto parece evidente, mas
a reprodução social poderia ser definida de alguma outra forma e, o que é
mais importante, num nível ainda mais abstrato e superior por exemplo,
como o conjunto das relações sociais, políticas e econômicas entre as classes
sociais). Com esta operação o nível macro é trazido para o nível micro por
definição. Vê-se como é fácil a partir daí estabelecer a relação entre os dois
níveis, que se torna na verdade, uma falsa relação, pois, por definição, o

22 Tomaz Ta&u tfa S:Vpa


nível macro (da forma como é definido) praticamente coincide com o nível
micro. Isto é, a rejeição dos valores escolares por parte dos rapazes encami­
nha-os para empregos de classe operária (nível micro), resultado que por
definição constitui_exatamen.te o nível macro. Em outras palavras, temos aí
um típico caso d&raçipcínio circ u)ab. Obviamente isto não invalida o estudo
de Willis, de resto valioso soFmuitos outros aspectos. E ps processos que
ele descreve certamente fazem parte do processo de reprodução social, mas
não coincldem comlde. Todo o problema reside na ambição exagerada das
pesquisas que buscam a tão ansiada articulação entre os dois níveis.
O erro reside essencialmente em tentar reduzir um processoumplo.a—..
^omplexQ aos detalhes isolados de um evento qualquer.da vida cotidiana.
Nem se trata de um problema de generalizacão (como se apontou no caso
de Willis, por exemplo), mas de conceptualização. A articulação apropri­
ada entre amplos processos sociais e um conjunto qualquer de eventos da
vida cotidiana não pode ser feita pela redução daqueles a estes, mas pela
inscrição cuidadosamente realizada dos últimos nos primeiros. Evidente­
mente, o problema da articulação entre os níveis micro emacronãose reduz
às questões aqui apontadas. Mas elas servem para dar uma idéia das
dificuldades aí existentes. Seria já um grande passo se pesquisadores e) ^
estudiosos (e principalmente estudantes) se sentissem desobrigadosadârj ^
conta, através de^uãrpêsqmsas, da tõtalidade da vida social. . '
Um tema correlato ao da arficulação que acabamos de examinar é o das
conexões entre(agência e estruturajMuitos dos estudos fundadores foram
acusados de concederem demasiada importância aos aspectos estruturais
dãvidasõHãlTêmdêhimehtddapârE&pacãodoagehtehâdinâmicá social
(o estudo de Althusser é o que melhor representaria essa orientação).
Também aqui tem havido .uma busca desesperada de-articulação^Esta
busca tem resultado na maioria das vezes no desenvolvimento de algum

Aqui, mais uma vez, o estudo de Willis tem sido apontado como um
dos primeiros a.fornecer os parâmetros que teriam possibilitado pensar
essa operação e os elementos para o desenvolvimento de uma teoria da
resistência em educação. Mas, à parte o fato de que Willis não pretendeu
desenvolver aí uma teoria da resistência, nem parece ter havido um tal
desenvolvimento em estudos posteriores, esta tentativa de articulação
agência/estrutura tem permanecido amplamente problemática. Nesta di­
reção, a tentativa provavelmente mais promissora é a realizada por Bour-
dieu através de seuconceito de habitu&e dqdesenvolvimento de uma teoria-
da prática(ver Harker, 1990), mas paradoxalmente tém-se dado pouca

O <?MCproduz c o rcproJMZ cm cífucaplo 23


importância no campo da educação a esse aspecto da obra de Bourdieu.
Devem ser mencionados também os estudos que tentam fazer uma conexão
entre movimentos sociais e educação. Mas, em geral, os esforços no sentido
de realizar essa conexão têm-se limitado a proclamar de forma romântica
a importância do ator social sem que isso se traduza numa teorizáção
adequada.
Nenhum outro conceito identifica tanto as novas orientações em SE e
em educação de modo geral quanto o de ideologia, nisto equiparando-se
apenas ao de reprodução social. Nestes últimos anos, buscou-se encontrar
a ideologia em toda a parte dentro da educação. Analisou-se a ideologia do
livro didático e a ideologia das políticas educacionais, buscou-se a ideolo-
gianos currículos escolares e nas mensagens e atos dos professores. A frase
"a ideologia que perpassa...", onde o complemento do verbo poderia ser
quase qualquer coisa tornou-se um dos clichês de maior circulação no
campo educacional.
Entretanto, de forma paradoxal, numa época em que mais do que
nunca presenciamos o reinado da ideologia, as análises em torno do
conceito se desvaneceram. Parece que se aceitou a decretação (ideológica)
do fim da história e do fim da ideologia. Mas a dificuldade das esquerdas
de entenderem como os populismos de direita conseguem empolgar o
imaginário popular mostram quão distantes estamos de ter esgotado uma
análise da ideologia. O problema talvez esteja no fato de que nesses anos
todos tenhamos nos detido nos aspectos menos importantes da ideologia,
ao enfatizarmos a ideologia como uma fabricação das classes dominantes,
em vez de nos concentrarmos no aproveitamento por parte das classes
dominantes daqueles elementos de mistificação presentes na cultura po­
pular (contando, nisto, com uma pequena ajuda daqueles que preferem
santificá-la). Embora essa conexão entre cultura e ideologia tenha se
realizado em outros campos das ciências sociais, ela foi pouco aproveitada
no campo da educação. A tão proclamada influência de Gramsci nas
análises educacionais na realidade tem sido pouco efetivada. Suas lições
sobre as conexões entre folclore, senso comum e ideologia estão longe de
ter sido plenamente aproveitadas. A utilização do conceito de ideologia
numa análise sociológica da educação está longe de ter-se esgotado. O que
precisamos é de uma revitalização e uma reorientação desse conceito,
desenvolvendo sobretudo sua articulação com os aspectos culturais. Nisto
o estudo de Willis já referido apontá algumas direções nas quais uma tal
reorientação poderia ser tentada.
Ao não reduzir os aspectos reprodutivos do milieu cultural dos adoles­
centes de classe operária que estudou à ideologia recebida, WiHis rhamaa,

24 TowMZ Ta&u & SRpa


^tenção.pata a.im poríâodAj^^pacidade de criação ereelaboração.exis-
icnte not.próprio nível cultural. Mas ao mesmo tempo, Willis supreende
esse momento de criadvidade e de elaboração como um momento não
totalmente lúcido, um momento da^misdficação ê; ao íim e ao cabo,
(reprodudvõrEstamos longe daqui da noção imposta de ideologia qu.e nos....
acostumamos a ver, E nesta direçãõlque poderiamos retomar a utilização
do cónceito de ideolõgiá; -
^Uma oütrã área que esteve quase sempre no centro da problemádca dos
estudos fundadores, mas que tarnbém.acaboupor.receber um tratamento
inadequado, é a da relação entréeducação e trabalho. Nessas formulações,
essa relação é apresentada quase sempre com a educacão constituindo o
local apropriado para a preparação apropriada, técnica e atitudinal, da
^força de trabalho para a produção capitalista. Mas como tento apontar em
outro capítulo deste Evro, o estabelecimento da natureza precisa da cone­
xão entre a divisão social do trabalho e a organização da educação tem sido
deixado um tanto de lado (constitui uma brilhante exceção o pouco
valorizado ensaio dePoulantzas [1978] na introdução de seu livro Tis classes
sociais no capitalismo a!eTzo/e). Esta negligência deve-se sobretudo a uma certa
resistência por parte dos analistas a se centrarem na natureza do trabalho
capitalista, concentrando-se, em vez disso, no reinoddeahsta-e-idealizado—
do educacional, Isto explica, por exemplo, por que praticamente não há
estudos snhrp íipspmprpgn. subempregCL,sobre a escassa relação entre-
qualificação e remuneração, sobre a gama de qualificações ,enrelação disso__
tudo com a educação: Fala-se muito, entretanto, sobre o trabalho como
princípio educativo, deixando-se de examinar, contudo, quê tfãbãlho ê
esse^em primeiro lugar. Há, obviamente exceções, mas no geral uma
exploração mais profunda dessa relação fundamental ainda está para ser
feita. -
Finalmente, mas não de menor importância, nesta lista de temas e
problemas centrais da SE está a questão das relações de raça e de gênero.
Quase que totalmente ausentes da literatura pioneira, esses temas têm
ganho uma importância crescente nos últimos anos. Mas, sobretudo no
Brasil, apesar dos esforços importantes de algumas pesquisadoras e pes­
quisadores, esses temas estão longe de ganhar aimportância que merecem,
carregando um status inferior na hierarquia da pesquisa. Numa área
fortemente dominada por uma análise de classes, geralmente de orientação
marxista, há uma forte resistência contra a introdução de perspectivas que
concedam uma igual importância às relações de raça e de gênero. Em geral
quando se admite introduzir alguns fatores relacionados a essas dinâmi­
cas, isto se limita a procurar deduzi-las da dinâmica de classes. ^

O ÇHg prodnz e o que rrproíÍMZ cm 25 , -'7


Esta é uma situação tanto mais estranha se pensarmos na importância
empírica que essas dinâmicas adquirem no Brasil. Quanto às relações de
gênero, é um dado evidente que a educação é feita majoritariamente por um
dos sexos, o feminino, sendo este, portanto, um fato central da constituição
da educação moderna, um fato a ser explicado e cujas implicações precisam
ser exploradas. Numa época em que tanto se fala na volta do ator, é
inexplicável que um dos atores principais da cena educacional seja deixado
de fora. Talvez ainda mais estranho é o fato de termos tão poucos estudos
sobre as relações de raça no Brasil e suas conexões coma educação. De novo,
as exceções existem,mas sua raridade está em flagrante desproporção com
a importância que tem o tema. Como acontece com outros temas de
pesquisa, é muito possível que o estabelecimento de um status adequado
para esses temas ainda dependa de muita luta por parte das pesquisadoras
e pesquisadores com eles envolvidos. A própria reformulação do título
dèssas áreas possa talvez fazer parte dessa luta. Não seria estudos sobre
gênero ou estudos sobre relações de gênero, por exemplo, um nome melhor
que estudos sobre mulher e educação? Obviamente, uma tal reformulação
passa por considerações conceituais que não desejo levantar aqui. Em
síntese,asituaçãoétalqueaprópriamarginalização do tema deveria talvez
ser submetida a um escrutínio analítico. Por que o campo da pesquisa em
SE (e o da pesquisa em educação em geral) é tão machista e tão racista?
O/ütt da história, o pós-moderwisM!o e a Socioioyia da Educação
Com a derrocada dos regimes do Leste Europeu, proclama-se o fim da
história, marcado pelo triunfo do capitalismo. Em cima disso, embora com
alguns anos de atraso em relação a seus símiles britânicos e norte-america­
nos, presenciamos, finalmente, no Brasil, o predomínio da nova direita,
aqui encarnada numa versão mais jovem de Ronald Reagan. No domínio
mais propriamente simbólico e cultural, anuncia-se o fim da modernidade
e a entrada no período da pós-modernidade. Declaram-se em crise as
ciências sociais e os métodos tradicionalmente aceitos de análise da reali­
dade. Estamos em pleno reino da mistificação pós-moderna.
A Sociologia da Educação não podería ter ficado de fora desta suposta
crise. Ao menos na versão que aqui tentei caracterizar, â Sociologia da
Educação tem-se constituído numa disciplina com vocação eminentemen­
te crítica, sendo esta vocação inclusive um de seus traços centrais. Mas
repentinamente parece que essa crítica tinha es tadocentrada sobre um alvo
errado: o das relações entre os pérfidos aspectos da educação capitalista e
a perversa organização da economia capitalista. Dizem-nos agora princi-

26 Towaz Taãeu ãa Sãca


palmente duas coisas. Por um lado, que afinal não há nada de perverso no
capitalismo, coincindindo este tipo de organização econômica com a
própria modernidade, com o próprio fim da história, com o desenvolvi­
mento máximo das possibilidades humanas. Por outro lado, somos adver­
tidos de que tudo aquilo que havia de mais sólido em nossos referenciais
de análise e em nosso mapeamento da realidade e da vida social desman­
chou-se no ar. Noreinodopós-moderno não há nenhuma diuâmiçajçentml^
nenhuma estrutura fundamental a explicaf õ funcionamento global da
vida social. O eixo da dinâmica social está em toda parte e em parte
Inenhuma. Nossos referenciais habituais, aí incluídos aqueles que nos
acostumamos a desenvolver em SE - anunciam-nos sem aviso prévio -
deixaram de ser válidos. Esses dois processos aparentam ser independen­
tes, mas é impossível deixar de ver uma ligação entre o anúncio do triunfo
do neoliberalismo e a proclamação do advento do pós-moderno.
Como fica a Sociologia da Educação nessa encruzilhada? É talvez a
hora de se reafirmar sua vocação crítica e, por que não, iluminista, moder­
nista, começando por tentar desmanchar os nós mistificadores da onda
neoliberal e da onda pós-modemista A Sociologia da Educação, na versão
que focalizamos neste trabalho, deve sua vitalidade e fecundidade à
denúncia dos-asBeetos=de=iniusticae desigualdade constitutivos da socie-
"dade em que yiKSntos.. Apesar do proclamado triunfo do capitalismo e do
"neoliberalismo, esses aspectos estão longe de terem desaparecido. Na
verdade, não estamos presenciando o triunfo do neoliberalismo e do
capitalismo, mas de spadaeologia^? esta talvez uma oportunidade única
para a Sociologia da Educãçãõréáfirmar sua vocação crítica, denunciando
travestido de vanguarda cultural que atende pelo nome dcRÓSjmodcrnis-
mo.Essas maisrêcentes versões do véu ideológico apenas demonstram que
a tarefa de uma Sociologia de Educação está longe de ter sido esgotada; é
possível, ao contrário, que tenha apenas começado.
Notas
1. Comunicação pessoal.
2. A propósito da noção de ideologia, deve-se notar que a definição implícita que
Althusser dá de ideologia naprimeira parte de seu ensaio está em franca divergên­
cia com a definição mais elaborada que ele faz na segunda parte. Enquanto na
primeira parte a ideologia é entendida vagamente como valores, atitudes, formas
de agir, etc., na segunda parte a ideologia é formalmente definida como uma
'representação' da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de

O çue produz o o que reproduz em educação 27


existência. Isto é, convencionaimente a ideologia é pensada como uma representa­
ção falseada da realidade (das condições reais de existência). Mas o que Althusser
está dizendo é que o faiseamento fundamental é aqueie que os homens fazem de
sua reiação com suas condições reais de existência. Ou seja, a reiação reai, não
falseada, dos homens com as condições de existência é uma reiação de dependên­
cia, de determinação do homem e de suas representações por aqueias condições.
Mas na ideologia, os homens tendem a representar esta reiação de determinação
como uma relação de autonomia, de liberdade, e é nisto que se constitui o
faiseamento, não das condições de existência, mas da reiação com essas condições.
Nessa concepção, pois, a ideologia não tem conteúdos, mas um único conteúdo.
Isto remete para uma consideração diferente a respeito do papel da escola na
transmissão da ideologia daquele que foi desenvolvido na primeira parte do
famoso ensaio.

2% TC77MZ d# Stlíw
2
Em favor da teoria da reprodução

Para quem gosta de comemorações, aqui temos uma: a ampla utilização do


conceito de reprodução na análise das relações entre educação e sociedade
completa vinte anos, se aceitamos o ensaio de Althusser (1970), f&ologle et
appareiis tWéoiogáyMes á'étaí, como o ponto inicial da longa e frutífera carreira
do conceito. Neste período o conceito e seus cultivadores passaram de uma
situação de amplo uso e alto prestígio a uma situação de abandono e
desprezo generalizado. É uma tendência internacional dos analistas
educacionais de esquerda tentar evitar qualquer elemento que possa levar
à suspeita de que eles sejam a favor do conceito de reprodução:
As irorias da rrprodapao rm sociologia da cducapao aclMm-se SM&M!oiidas a Mm
intensoyógo cruzaáv porparfe da^aelos <?MÇas acasamdendo izaver visto a existência
de con/litos e resistências dentro e em torno das institMiptes educacionais e daçueies
<yMeas acusam de ado Iwver deixado espapo algum para a atividade Humana. Sdo
taclMílas incessantemente de mecanicistas, economicistas, redacionistas, estratMra-
listas, marcadas pelo/nncionalistmo) etc. Florescem sem cessar as posi^des alterna­
tivas e, em particular, á/irma-se o ^ue se veio a clmmar de teoria da resistência
(ínguila, 1990, p. 103).
No Brasil, em particular, já muito cedo o conceito e o paradigma
subjacente tinham sido descartados como inadequados, sendo substituí­
dos em muitos círculos por um certo paradigma pedagogista pobre e sem
potência analítica, com pretensões a ser o ponto culminante de uma
evolução sem história de uma linhagem artificialmente construída de
tendências pedagógicas. Mas esta é uma outrahistória. De qualquer forma,
nesses círculos, ser alcunhado de reprodutivista significava, e significa, o
máximo do opróbrio. Podeser interessante fazer uma revisão desse desen­
volvimento. Revisar essa história e especular sobre as razões da ascensão
e queda do conceito equivale, de certa forma, a revisar a própria história

O proA /z r o rrprmfMZ rm eA/cação 29


das disciplinas que, da perspectiva das ciências sociais, centram sua análise
na educação. Este é um dos objetivos deste capítulo. Mas pretendo, ao
mesmo tempo, talvez solitária e ingloriamente, íazer uma defesa do concei­
to e do paradigma da reprodução.
QMHwdo a reprodação reinava, jforiosa e soberana
A história da utilização do paradigma da reprodução em educação
passa necessariamente por três trabalhos centrais: Meo/ogíe ei appareiis
idéoi(%!<7Mes d'état (Althusser, 1970); ha reproífMCÜOH (Bourdieu e Passeron,
1970); ScbooüHg in capiiaiisi America (Bowles e Gintis, 1976), obras respecti­
vas de um filósofo, uma dupla de sociólogos e uma dupla de economistas.
A devida contextualização da gênese desses estudos não pode deixar de
observar alguns fatos notáveis e interessantes.
Em primeiro lugar, não terá sido talvez por mera coincidência que
essas três pesquisas, que representaram uma ruptura radical com as
perspectivas dominantes em educação, tenham feito sua aparição aproxi­
madamente na mesma época, sem nenhuma influência mútua, ou melhor,
ignorando-se mutuamente. Não faltou quem quisesse fazer a ligação dessa
coincidência com o desencanto em relação às possibilidades de transforma­
ção da sociedade capitalista que se seguiu às revoltas de 68.
Em segundo lugar, tampouco constitui mera coincidência o fato de
que nenhum desses cinco homens fosse um pedagogo ou teórico educaci­
onal. As condições sociológicas desse último ofício talvez tornassem
impossível que adviesse daí qualquer ruptura com o paradigma tecnoló­
gico epró-sistema, dominante então, e ainda agora, nocampo da pedagogia
e dos estudos educacionais. A perspectiva necessariamente naturalizante
de uma disciplina voltada para a prática parece ser incompatível com a
possibilidade de colocar em questão os próprios fundamentos da prática e
do ofício. É perfeitamente compreensível que essa ruptura tenha vindo do
exterior.
Finalmente, nessa lista de notáveis coincidências, não se pode deixar
de fora o fato de que esses três estudos tiveram sua origem em países
centrais do capitalismo. Éverdade que pela mesma época cientistas sociais
depaíses periféricos,pelo menos no querespeitaà América Latina, vinham
produzindo estudos críticos da educação capitalista, sobretudo no que
tange à universidade. Mas o fato de que eles tenham se originado no centro
do capitalismo, numa época de consolidação desse modo de produção, não
pode deixar de levantar especulações sobre a relação entre essa circunstân­
cia e o fato de eles estarem centrados no conceito de reprodução. Também

30 Tomaz TadgM da Silva


aqui, não faltou quem visse na gênese e florescimento do conceito nos
países centrais um fenômeno semelhante ao que ocorreu com a origem e
condições de existência da Escola de Frankfurt com relação à ascensão dos
estados nazi-fascistas.
Ainda uma vez; as teorias da reprodução
Inúmeras vezes nesses anos de reinado e depois decadência foram as
diversas versões da teoria da reprodução em educação interpretadas e
resumidas das mais variadas formas. Esta seção não pretende ser apenas
mais um resumo deste tipo. Tendo em vista os propósitos deste ensaio
estarei focalizando três dos mais influentes estudos, o de Bourdieu-Passe-
ron, o de Althusser, e o de Bowles-Gintis, não propriamente através de um
resumo, mas de uma análise comparativa, tendo como eixos três elementos
que considero serem centrais para uma compreensão mais global das
referidas teorias: o que é reproduzido, como e onde se dá a reprodução e
como observar a reprodução.
O <7MCé reproãMzião
Para Bourdieu-Passeron, são reproduzidas no processo de reprodução
social as relações de força entre os grupos ou classes sociais. É isto, pelo
menos, o que eles declaram. Esta noção apontaria para uma correta
conceptualização relacionai do processo de reprodução. Infelizmenté, eles
hão dizem em A rcproãMÇão, nem Bourdieu em suas obras individuais, em
quê, exatamente, consistem essas relações de forças.
Da parte empírica de A rcproãnção, mais que de sua parte teórica, e
também dos estudos empíricos individuais de Bourdieu, podemos inferir
uma outra conceptualização. Se examinamos atentamente essas passagens
veremos que essas relações são definidas sobretudo pela posse, em quan­
tidades diferentes pelas diferentes classes sociais, de certos atributos que
estabelecem vantagens imediatas (o capital propriamente dito, isto é, ó
capital econômico) ou que são, por definição ( definição possibilitada
exatamente pela posse do capital econômico), socialmente valorizados:
Na verdade, as referidas relações de força, que estariam na origem de
todo o processo de reprodução social, para Bourdieu-Passeron, são cons­
tituídas, pelas diferenças na posse de bens materiais, isto é, naquilo que
Bourdieu chama de campo econômico. É essa posição de força, possibilita­
da pela posse diferencial de bens econômicos, que permite que os grupos
assim privilegiados confiram um valor diferencial àposse de bens simbó-

O <?M
eproãaz e oqae reproãMZe?neãMcnção 31
iicos (cultura, educação, maneiras, etc.), a qual, por sua vez, permitirá que
se transmutemem naturais e justas aquelas diferenças econômicasiniciais.
Mas com isto já estamos entrando na forma como se dá o processo de
reprodução social. Neste ponto o importante a reter é que a teoria de
Bourdieu-Passeron diz respeito essencialmente à transmissão, entre gera­
ções, de bens simbólicos. Isto é, bens simbólicos são, aqui, o objeto principal
do processo de reprodução. A reprodução das desigualdades econômicas
em si não ocupa um lugar central nessa teoria. Não temos aqui uma teoria
de como essas desigualdades são estabelecidas, originalmente, mas apenas
de como são legitimadas uma vez estabelecidas.
Mesmo quando há uma referência explícita e de direito próprio à
repródução de desigualdades econômicas, este processo se dá, sobretudo,
através de mecanismos de transmissão de vantagens entre gerações. Com
isto voltamos ao início. Por definição, o processo de reprodução social, em
Bohrdieu-Passeron, refere-se à reprodução das relações de força entre as
classes, supostamente ligada à posse diferenciada de bens materiais.
Entretanto, no fundo hão são essas relações de força o objeto do processo
de reprodução em Bourdieu-Passeron. Seu verdadeiro objeto são as desi­
gualdades simbólicas que servem de legitimação para aquelas outras
desigualdades.
Já para Bowles-Gintis o objeto da reprodução são desigualdades na
esfera econômica, mas surpreendentemente não desigualdades na propri­
edade de bens econômicos, mas na posição dentro da produção. Para eles,
o processo de reprodução refere-se essencialmente às desigualdades hie­
rárquicas dentro do processo de trabalho.
Também aqui há uma referência enganosa a relações sociais, pois
essas relações sociais são reduzidas a relações interpessoais resultantes de
diferenças hierárquicas dentro da empresa. Embora toda a sua conceptu-
alização venha envolvida numa linguagem marxista, conectando a existên­
cia dessas relações hierárquicas desiguais no interior da produção ao
processo de valorização, na verdade sua preocupação se dirige para a
reprodução desse tipo de desigualdade. É como se o motor da reprodução
das relações de classe fosse a reprodução dessas relações hierárquicas
desiguais e não o contrário. Em suma, aqui o objeto da reprodução é
constituídopelas relações hierárquicas desiguais nointerior do processo de
produção.
Em Althusser, temos um esquema bastante fielàteorização da repro­
dução em Marx. Aqui, a reprodução das relações sociais de produção,
centralizadas em seus elementos materiais, está no centro do processo São
as relações diferenciadas dos homens com seus meios de produção que

32 To?naz & StítM


constituem o objeto privilegiado do processo de reprodução. Entretanto,
como já observamos, Althusser, em seu famoso ensaio, como que realiza
uma certa inversão, ao focalizar essencialmente a reprodução de relações
ideológicas entre os homens, que seriam necessárias para aquela outra
reprodução. Aqui, como nos nossos outros teóricos, a reprodução econô­
mica é postulada como central, para então ser abandonada em favor da
descrição de processos que a tornam legítima ou mais fácil de ser condu­
zida.
Em Althusser, ademais, como diversos críticos assinalaram, a repro­
dução das relações sociais de produção é postulada como um a priori
necessário, como uma exigência fu ncional do modo de produção capitalis­
ta e como tal fica-se dispensado da necessidade de explicar por que ela
ocorre, originalmente.
Como e oude se da a reprod?;ção
Em Bourdieu-Passeron, como vimos, a reprodução dá-se, sobretudo, no
campo cultural. São formas de relação com a cultura dominante que são
reproduzidas. Assim, é aí que atuam os mecanismos da reprodução. Por
uma definição arbitrária, permitida por uma posição de força inicial, a
cultura dominante é definida como sendo "a" cultura,o que a transforma,
por isso mesmo, em capital cultural, ou seja, sua posse confere valiosa
vantagem ao possuidor na relação entre os grupos ou classes. Todo o
segredo da reprodução reside, pois, na forma como esse capital cultural é
transmitido de geração para geração.
Mas esta transmissão só é eficaz na medida em que as propriedades
culturais assim transmitidas transformam-se em disposições duradouras,
isto é, na terminologia de Bourdieu-Passeron, constituem-se em habitus, o
que só se realiza sob condições de uma longa imersão num ambiente em
que estejam presentes esses itens culturais. O ambiente que apresenta estas
características em nossa sociedade é, naturalmente, a família.
Obviamente, também as crianças das classes dominadas passam por
um tal processo. A diferença é que a inculcação a que estão sujeitas refere-
se a propriedades culturais da cultura dominada e, portanto, sem valor no
mercado do capital cultural. Qual o papel da escola neste processo? Ele é
secundário na inculcação e transmissão cultural. Embora ela contribua
para reforçá-la, sua função reside sobretudo em legitimar as desigualdades
produzidas no âmbito da família, transmutando-as em diferenças nos
esforços de aquisição perante a cultura escolar. Isto é, ela faz com que
pareça que as desigualdades não se devam às injustiças socialmente

O íyne produz e o <yue reproduz em educação 33


produzidas, mas à falta de capacidade e taiento na aquisição escolar da
cultura.
No modelo de Bowles-Gintis, aquelas características atitudinais e
ideológicas necessárias para o funcionamento adequado da produção,
distribuídas de forma diferencial de acordo com os diversos níveis da
hierarquia dentro da produção, são produzidas em diversos locais da
sociedade, tendo papel privilegiado a família e a escola. Entra em funcio­
namento aqui seu famoso princípio da correspondência, pelo qual a
estrutura das relações sociais (para eles, sempre entendida no sentido
interpessoal, como assinalei acima) em locais como a família e a escola
espelha a estrutura das relações sociais no local de trabalho.
O tipo de relações sociais vividas nesses locais, por ter propriedades
semelhantes às das experimentadas na produção, propiciaria a formação
de personalidades dotadas dos traços atitudinais apropriados ao bom
funcionamento da economia. Neste modelo, o importante não é a transmis^
são de idéias falsas sobre o funcionamento da sociedade ou da produção,
mas a prática de determinadas relações sociais (interpessoais).
No caso do sistema escolar, a vivência de relações sociais diferencia­
das seria propiciada pelo contato diferencial com os diferentes graus de
ensino, em combinação com a experiência diferencial proporcionada pelos
diferentes tipos de escola. Quanto mais se sobe no sistema de ensino, mais
as relações sociais se tornam menos autoritárias, proporcionando a forma­
ção de atitudes mais auto-reguladas e menos exteriormente controladas.
Como, naturalmente, o acesso e a permanência no sistema de ensino
dependem da classe social, as coortes de estudantes que dele saem nos
diferentes níveis têm a oportunidade de experimentar relações sociais
diferentes, de acordo com sua classe social. De forma similar, diferentes
tipos de escolas enfatizam diferentes tipos de relações sociais, de acordo
com um padrão pelo qual as escolas às quais têm acesso as crianças das
classes destinadas ao trabalho manual enfa tizam relações sociais de subor­
dinação. Inversamente, em escolas frequentadas pelas crianças das classes
dominantes predominariam relações sociais que enfatizariam o auto­
controle. O efeito combinado dessas duas características estruturais (nível
do ensino, tipo de escola) é que teria como resultado final a produção de
diferentes tipos de personalidade, em correspondência com as diferentes
posições na hierarquia ocupacional.
Em Althusser, a reprodução da ideologia dominante que vai contri­
buir para a reprodução das relações sociais de produção dá-se nos famosos
Aparelhos Ideológicos de Estado (que, na verdade, não estão todos locali­
zados no Estado, nem pertencem todos ao Estado), como a família, a Igreja,

34 ÍOHMZ Ta&M & SiftM


a escola, os meios de comunicação. Esses aparelhos estão encarregados de
transmitir a perspectiva de sociedade que interessa às classes dominantes,
fazendo-o tanto através doconteúdo das idéias quanto dos rituais e práticas
inscritos nesses aparelhos.
O sistema escolar destaca-se, dentre esses aparelhos, tanto por sua
universalidade quanto pelo tempo pelo qual as pessoas ficam nele envol­
vidas. A escola é, para Althusser, o Aparelho ideológico de Estado domi­
nante. Ela transmite as idéias dominantes tanto através dos conteúdos
escolares que mais se prestam a isto (como Estudos Sociais, Educação
Moral e Cívica, etc.) quanto através de matérias aparentemente menos
suspeitas, como Matemática, por exemplo, ou ainda através de rituais e
práticas que corporificam a perspectiva dominante de sociedade.
Naturalmente, essas idéias dominantes têm uma versão para as
classes dominantes e outra para as dominadas. A transmissão apropriada
de acordo com essas classes é conseguida por uma distribuição diferenci­
ada de acordo com os níveis escolares. Os níveis escolares mais baixos
transmitem apenas a versão destinada às classes dominadas. Como essas
vão ficando pelo caminho, são-lhes inculcadas apenas aquelas idéias que
reforçam uma posição subordinada nas relações sociais de produção.
Como o&serpar a reprovação
Para compreender melhor como as diferentes abordagens teorizam a
reprodução é interessante ver como elas a tratam empiricamente, isto é,
onde elas supõem ver a reprodução agindo. Num trabalho muito esclare­
cedor, Elsie Rockwell assim coloca esta questão:
Como o&servar a ríproãM(Ro? Isto ê.- Quê, dessa realidade à que temos acesso,
mediado por diferentes prãtKMSConcrefas ãe construção ãe dadòs(...), se pode tornar
inteligível sob a couceptualização da reprodução? Quê, daquilo que oüzo, é evidência
da reprodução e quê não o ê? Ou meliior.- como pode a couceptualização teórica
adquirir o poder analítico que me permite o&servar o pertinente ao processo de
reprodução ali onde antes não se via? Que categorias e reiaçóes permitem distinguir,
dentre os/ènómenos o&seroãveis, aquilo que ê reprodução do que não é? (Rocbvell,
1990, p. 67).

Dos nossos autores, as duplas Bourdieu-Passeron e Bowles-Gintis nos


fornecem bastante elementos para interpretarmos como eles abordam esta
questão. Para Bowles e Gintis, por exemplo, a questão de como observar a
reprodução se deduz diretamente de seu princípio da correspondência.
Constituem evidências dó processo de reprodução através do processo

O que produz e o que reproduz em educação 35


educacional aquelas instâncias da vida escolar que mimedzam a vida no
trabalho.
Assim, num primeiro momento, a tareia consiste em observar quais
processos constituem exigências para o perfeito funcionamento do proces­
so produtivo dentro da empresa capitalista. Tendo constatado que no
centro desse funcionamento estão as relações hierárquicas, que por sua vez
exigem um certo tipo de personalidade e de consciência, eles tentam
investigar precisamente quais os traços que constituem a personalidade
melhor adaptada a essa estrutura hierárquica.
O passo seguinte consiste em observar a estrutura escolar para detec­
tar quais elementos dessa estrutura são isomorfos à estrutura hierárquica
da empresa capitalista e que, portanto, contribuem, para formar a persona­
lidade e a consciência mais adequadas ao funcionamento dentro da estru­
tura original. O processo de reprodução, para esses autores, portanto, pode
ser observado dentro da instituição escolar, naquelas instâncias em que a
estrutura desta é paralela à estrutura do local de trabalho capitalista.
Para a nossa outra dupla, Bourdieu-Passeron, o processo de reprodu­
ção, no que toca à educação, pode ser visto atuando naquelas instâncias em
que a cultura dominante é reconhecida e afirmada pela instituição escolar.
Neste caso, é o fato de a cultura escolar ser isomorfa à cultura dominante
que está no âmago do processo de reprodução via educação.
A primeira tarefa do observador neste modelo consiste em descrever
os elementos dessa cultura dominante (maneiras, preferências estéticas,
comportamentos, etc ), tarefa à qual, aliás, Bourdieu tem se dedicado com
particular aplicação. Na fase seguinte, então, tenta-se divisar aquelas
práticas da instituição escolar (rituais, formas de transmissão e de avalia­
ção, linguagem e outras formas de expressão) que estão sintonizadas com
os elementos dessa cultura dominante.
Neste modelo, a pedagogia da instituição educacional é uma espécie
de enigma, de mensagem cifrada, escrita numa linguagem que só pode ser
decifrada por aqueles que receberam a chave de decifração noutro local, a
família. O processo de reprodução para Bourdieu-Passeron, portanto, pode
ser observado naquelas práticas pedagógicas da instituição escolar que
usam esta linguagem cifrada.
Embora Althusser não tenha se dedicado a nenhuma pesquisa empí­
rica com relação à sua teoria dos aparelhos ideológicos de estado, seu
famoso ensaio fornece pistas, conquanto escassas, de onde se deve procu­
rar o processo de reprodução em ação. Na primeira parte do ensaio, as
indicações são bastante diretas e óbvias. O processo de reprodução eíetu-
ando-se por meio do convencimento ideológico, através de idéias cujo

36 Towraz Ta&M & Silva


conteúdo induz à aceitação do lugar atribuído a cada um na estrutura de
ciasses da sociedade capitalista, ele deve ser buscado precisamente naque­
las instâncias nas quais o aparelho ideológico em questão efetua a transmis­
são da ideologia nesses termos.
No casoparticular do aparelho ideológico principal, a escola, isto se dá
através das mensagens transmitidas por matérias escolares ideal e especi-
almente voltadas para esta tarefa (como Moral e Cívica, por exemplo) ou,
de forma menos explícita, por meio de mensagens oblíquas e menos
evidentes embutidas em conteúdos aparentemente menos ideologizados
de matérias como Matemática e Física, por exemplo. A tarefa do observador
da reprodução neste modelo, portanto, é razoavelmente fácil e trivial.
Entretanto, na segunda parte do ensaio citado, a questão complica-se
consideravelmente. Em primeiro lugar, a ideologia já não é tomada aí no
seu sentido mais óbvio, de idéias expressas em mensagens, mas como
estando embutida em práticas e rituais (a ideologia tem uma existência
material).
Em segundo lugar, a ideologia já não atua tanto através da crença em
idéias falsas acerca do funcionamento da sociedade, como na primeira
parte, mas através da formação de uma certa subjetividade (a ideologia
interpela os indivíduos enquanto sujeitos). E por último, e de forma mais
importante para o que nos interessa, a ideologia não se define por um
conteúdo, mas pela representação de uma relação (a ideologia é uma
'representação' da relação imaginária dos indivíduos com suas condições
reais de existência).
Esta última fórmula pode ser assim interpretada: Os indivíduos
imaginam que sua relação com as condições reais de existência é urna
relação de livre determinação, mas isto não é realmente assim, isto é, aquilo
que os indivíduos pensam e fazem é função das circunstâncias em que
vivem e não de sua livre vontade. Quer dizer, num lado da relação está o
indivíduo, no outro as suas condições de existência. A ideologia, segundo
essa interpretação de Althusser, consistiría em representar esta relação de
forma falsa.
Estas qualificações da segunda parte do ensaio de Althusser introdu­
zem sérias complicações na questão de como observar o processo de
reprodução via ideologia. Se as questões da interpelação e da ideologia
como tendo existência material ainda são equacionáveis, através de uma
investigação das práticas e rituais que formam a subjetividade, a definição
mais refinada aí introduzida não parece conduzir facilmente a nenhum
protocolo empírico, pois, por definição, os indivíduos vivem a relação aí
concep tualizada, isto para não falar da questão de quem estaria em posição

O <yugproduz g o <yug reprotfuz em educação 37


de observá-la de íora da relação. Trata-se mais de um axioma que de uma
proposição empiricamente verificável. Simplesmente não há o que obser­
var.
O dossiê das acasações contra as teorias da reprodaçao

Ao longo desses vinte anos, a utilização do conceito de reprodução como


instrumento de análise das relações entre educação e sociedade tem sofrido
todo tipo de críticas e restrições, que se estendem desde sua reformulação
(Apple, 1989, p. ex.) até sua total rejeição (Cormell, 1990, p. ex.), passando
pela ambiguidade. Num outro eixo, essas críticas se dividem entre as que
se dirigem a formulações específicas do conceito (tais como a de Bourdieu,
Althusser, etc.) e as que são endereçadas ao conceito de modo geral. Tendo
em vista o objetivo deste capítulo, vou resumir aqui apenas aquelas críticas
gerais ou que, embora dirigidas a uma formulação particular, atingem
globalmente o conceito. Por outro lado, não pretendo fazer um balanço do
estado da arte em reprodução, razão pela qual não percorrerei as diversas
críticas, uma a uma, optando por uma tipologia das várias objeções
levantadas.
O que surpreende numa revisão das várias críticas formuladas à
utilização do conceito de reprodução com relação à educação é o amplo
consenso existente quanto aos problemas que ela apresentaria, o que pode
indicar tanto que ela é de fato inadequada, quanto uma certa preguiça dos
críticos. Mas vou me abster, neste momento, de fazer essa avaliação.
Também surpreende que não se possa encontrar na montanha de artigos
escritos sobre o tema praticamente nenhuma tentativa de fazer uma
conexão com o conceito de reprodução em Marx (de novo preguiça dos
críticos?).
De qualquer forma, as diversas críticas podem ser agrupadas em torno
das acusações de que as teorias da reprodução:
l)São mecanicistas, reducionistas e economicistas. 2)São íuncionalis-
tas. 3)Supõem uma total passividade dos atores sociais. 4)Ignoram o
conflito, a contradição e a resistência. 5)São a-históricas. 6)Ignoram ou
teorizam inadequadamente as possibilidades de transformação social.
Além disso, como consequência de uma ou mais das restrições
listadas acima, as teorias da reprodução:
7)Seriam simplistas, pessimistas e derrotistas. 8)Não corresponderí­
am àquilo que realmente ocorfe (numa versão regional, a crítica afirma que
elas não seriam adequadas à teorização daquilo que acontece em países do
Terceiro Mundo). Vejamos cada uma dessas objeções com mais detalhes.

3% ToHMz Tadeu da Siiua


l.As teorias da reprodução são mecanícisías, redftcionísfas e economicístas.
A acusação de mecanicismo é uma daquelas rotuiações que o rotulador
raramente sente necessidade de explicar, contentando-se com enunciá-la.
Mas de forma gera), o que se quer dizer com essa expressão é que as teorias
da reprodução supõem uma determinação direta, sem mediações, da
economia sobre as outras esferas da vida socia). Dizer isto não supõe negar
a determinação, de resto sempre admitida em algum grau, mas afirmar sua
complexidade.
Essa determinação, segundo os críticos, no que diz respeito ao proces­
so de reprodução, não se daria automaticamente (um evento ou caracterís­
tica da economia tendo um efeito certo e pré-determinado sobre a educa­
ção, em termos reprodutivos). Esses efeitos, se é que se dão de todo, não
podem ser deduzidos direta e imediatamente do funcionamento da econo­
mia. Em suma, a acusação de mecanicismo dirige-se à suposta postulação,
pelas teorias da reprodução, de um nexo causai direto e automático entre
a economia e o processo de reprodução através da educação.
Esta acusação geralmente vai de par com as acusações de economicis-
mo ereducionismo, mas estas últimas se referema algo um tanto diferente.
Com reducionismo quer-se expressar a característica de que as teorias da
reprodução tendem a reduzir a complexidade das relações entre educação
e sociedade a apenas um dos fatores em jogo, a economia. Mais especifica­
mente, essa redução à economia é tachada de economicismo.
De acordo com os críticos, há muito mais coisas envolvidas do que
simplesmente a determinação pela economia. A dinâmica social é consti­
tuída por um complexo que não pode ser reduzido a apenas um de seus
componentes. Uma tal redução não somente caracterizaria uma análise
científica errônea, mas, além disso, teria implicações políticas desastrosas.
Nas palavras de um dos teóricos que tem postulado uma abordagem mais
refinada das teorias da reprodução:
Aqui fnas teorias da reproduçãol o que era gH/ãtizaão eram os e/èitos determinantes
das relações capitalistas de produção sobre a natureza da escola e da consciência nas
sociedades capitalistas. Como consequência, de certaJõrma, menos ên/áse era posta
no poder deJõrmas culturais dentro das escolas. Uma teoria assim mecanicista não
podia, claramente, sustentar-se por muito tempo e em seu lugar desenvoloeu-se uma
orientação marxista mais estruturaüsta. Ao invés de ver a economia como determi­
nando tudo mais, com as escolas tendo pouca autonomia, uma Jvrmação social era
descrita como sendo constituída de uma totalidade complexa de práticas políticas,
econômicas e culturais-ideológicas (Apple, 1936, p. 2#).

O que produz e o que reproduz em educação 39


Em suma, neste item as teorias da reprodução eram condenadas por
suporem um vínculo direto, automático, não mediado, e exclusivo, das
relações sociais da educação e na educação com as relações sociais da
produção capitalista.
2.As teorias tia reprodução são/uncionaiistas.
Este é outro daqueles estigmas pouco explicados. Apesar da importância
e da complexidade da explicação funcionalista em ciências sociais, a
imputação de funcionalista é quase sempre feita de forma leviana e
simplificadora. Não obstante a clara oposição entre o paradigma funciona­
lista e o paradigma marxista, o rótulo tem sido aplicado çom freqüência a
mais de uma das versões marxistas da teoria da reprodução em educação
(às de Althusser e Bowles e Gintis, p. ex.), um estigma obviamente indese­
jável, exatamente por causa da referida oposição.
Vale a pena fazermos uma breve digressão para caracterizar o funci­
onalismo, antes de passarmos à sua discussão no âmbito de nossas teorias.
O paradigma f uncionalis ta, amplamente u sado na sociologia e na antropo­
logia anglo-saxônicas, caracteriza-se sobretudo por conceber a sociedade à
maneira de um organismo biológico, com seus órgãos e elementos funci­
onando de forma integrada para permitir seu funcionamento apropriado.
As propriedades de cada elemento ou órgão são explicadas por sua função
nesse processo global de manutenção e sobrevivência do organismo intei­
ro. Assim, por exemplo, o coração nos mamíferos tem a função de efetuar
a circulação do sangue, que por sua vez tem as funções de levar oxigênio
e nutrientes para os tecidos, e assim por diante. A automanutenção do
organismo exige que cada elemento ou órgão realize apropriadamente sua
função. Sem isso o organismo morre ou tem suas chances de sobrevivência
diminuídas.
O funcionalismo em ciências sociais está bastante ligado a essa
analogia. A analogia evidentemente implica em que todo o processo é
avaliado de forma positiva, isto é, as funções exercidas pelos diferentes
elementos do organismo são vistas como desejáveis, pois contribuem para
uma finalidade desejável e necessária: a manutenção e sobrevivência do
organismo inteiro.
Baseado nesse esquema, o cientista social funcionalista procura então
identificar aqueles itens numa sociedade que parecem estar ligados a
alguma função, isto é, a alguma característica sem a qual a sociedade não
poderia sobreviver. A presença de um determinado item é explicada então
por sua função no funcionamento global da sociedade. Assim, por exem

40 To?7MZ TaãfM& Sí/p#


pio, as chamadas danças da chuva de certas sociedades primitivas teriam
a função (latente, porque diferente da explicação expressa pelos próprios
atores) de estreitar os laços de solidariedade entre seus membros, sem a
qual a sobrevivência da sociedade estaria ameaçada. Nas sociedades
atuais, para dar um outro exemplo, a família nuclear teria sua presença
explicada por permitir a mobilidade ocupacional e espacial exigida por
uma sociedade baseada na indústria.
Há, naturalmente, muito a ser discutido em relação à explicação
funcionalista e discuti-la levar-nos-ia a entrar no próprio âmago da natu­
reza das explicações em ciências sociais, de forma geral. Entretanto, do
ponto de vista da discussão que nos interessa aqui, o principal problema
com a explicação funcionalista é que ela implica numa perspectiva conser­
vadora da sociedade. A sociedade tal como existe e vista ai como um
sistema globalmente desejável, com suas partes e elementos cumprindo
funções que devem ser olhadas de forma positiva, dada sua positiva
contribuição para seu adequado funcionamento global.
De forma relacionada, ela implica na ausência de transformações
radicais. Além disso, a explicação funcionalista supõe a presença determi­
nante de uma finalidade que transcende os motivos e as ações dos membros
da sociedade e que é sua própria manutenção e sobrevivência, minimizan­
do com isto o papel de qualquer ação consciente de sua parte.
Naturalmente o epíteto de funcionalista aposto às teorias da reprodu­
ção em educação supõe uma avaliação negativa do funcionalismo, sinteti­
zada nos problemas que acabei de descrever. Ele é tão forte e indesejável
que o próprio Aithusser se deu ao trabalho de elaborar uma resposta a essa
acusação:
A crítica que mais jreqúentementejói dirigida contra meu ensaio & 1969/70 sobre
os AÍE/óia dejúncionaüsmo. Quiseram ver, emminhas notas teóricas, uma tentativa
& recuperar, em jãvor do marxismo, uma interpretação que de/inisse os órgãos
somente por suasjúnçóes imediatas,/ixaHÓo, desse modo, a sociedade no interior de
certas instituiçães ideoMspcos, encarregadas de exercer ajunção de su&metimento,
em última análise, uma interpretação não dialética, cuja lógica mais pro/únda
excluísse toda possibilidade de luta de classes (Aithusser, 1963, p. 109).

3. As teorias da reprodução supõem uma total passividade dos sujeitos sociais.

Esta objeção dirigida às teorias da reprodução toca numa daquelas ques­


tões centrais, polêmicas e recorrentes em ciências sociais, a questão do
objetivismo e do subjetivismo, da estrutura e da ação (agência). De certa
forma, as grandes contribuições teóricas em ciências sociais podem ser

O que produz e o que reproduz em educação 41


classificadas conforme a ênfase que dão a um desses fatores. Houve e há
várias tenta ti va sde superação dessa divisão,mas ela permanece, entretan­
to, atual e não resolvida. É irônico que um dos mais conhecidos teóricos da
reprodução eut educação, Pierre Bourdieu, seja justamente um dos que
fizeram uma das tentativas mais sérias de superação dessa divisão (Bour­
dieu, 1972}.
Naturalmente esta acusação toma como referência aquelas versões
mais fortes das teorias da reprodução, como a dè Althusser, por exemplo,
sendo inclusive muito citada nesse contexto uma das passagens de seu
famoso ensaio:
Peço áesculpas aos pro/èssores que, cm conáipôes assustadoras, tentam voltar contra
a ideologia, contra osistema e contra as práticas que os'aprisionam, as poucas armas
que podem encontrar na história e no saber que ensinam. S#o uma espécie de heróis.
Mas eles sdo raros, e muitos (a maioria) náo têm nem um principio de suspeita do
trabalho que o sistema (que os ultrapassa e esmaga) os obriga afazer (...) (Althusser,
1933, p. 30).
De qualquer forma, esta espécie de crítica é dirigida contra as teorias
dareprodução em gerai. Ela é uma daquelas críticas que apelam àquilo que
o senso comum mais facilmente Concebe como correspondendo ao funci­
onamento da sociedade (que dependería, basicamente, da vontade e da
ação dós sujeitos, individual ou coletivamente). É difícil não aderir a uma
posição que enfatize, contrariamente àquilo que as teorias da reprodução
supostamente postulam, a primazia da ação humana, a precedência do
sujeito sobre as estruturas sociais. A crítica que Giroux (1986) faz a
Althusser representa bem esta acusação que é, geralmente, dirigida, às
várias versões das teorias da reprodução:
(..JAlfhMsscr &senvolvcMuma nop?o áe poáer que parece eliminar a apio humana.
A no(#ó áe que osseres humanos náosáo nemsujeitos homogeneamenfeconstituíáos,
nem atores passivos}ica peráiáa na análise áe Althusser. (...) No esquema reáucio-
nista áe Althusser, os seres humanos sáo relegaáos a atores estáticos, portaáores áe
significaáos pré-áe/iniáos, agentes áe iáeologias hegemônicas inscritas em seu
psiquismo como cicatrizes irremovíveis (Giroux, 1936, p. 115).
Foi exatamente para superar uma tal limitação das teorias da reprodu­
ção que se procurou desenvolver aquilo que passou a se chamar de teorias
da resistência. Não está bem claro ainda em que consistida exatamente uma
tal teoria, se ela rejeitaria totalmente o esquema da reprodução ou se
constituiría um seu refinamento (embora na sua versão máis conhecida, a
de Paul Willis, a resistência acabe por servir à reprodução - não na forma
42 Tomaz Taáeu áa Silva
esperada, é verdade). De qualquer forma, as teorias da resistência procu­
ram se contrapor às teorias da reprodução no que diz respeito à importância
da atividade humana na constituição da vida social.
4.As teorias da reprodução :^norám o co7if íto, as contradições e a resfstêncM.

Este tipo de acusação está naturalmente relacionado ao anterior, mas


enfatizando agora não tanto a autonomia da ação humana, mas a existência
de conflitos, contradições e resistências nas relações sociais do capitalismo.
De acordo com este tipo de crítica, as teorias da reprodução supõem uma
sociedade em que os interesses e a ideologia da classe dominante são
impostos sobre a classe dominada quase sem nenhuma oposição ou
resistência de parte desta última. Essa descrição não correspondería ao que
de fato ocorre na realidade, em que o triunfo dos desígnios da classe
dominante nunca é definitivo, porque eles são continuamente contestados,
estão permanentemente em conflito com os da classe dominada.
Em contraposição, os críticos, dependendo de sua extração, propõem
enfatizar processos variados. Assim, uma linha mais fiel às origens marxi-
anas postula restaurar o primado da luta de classes na constituição da
sociedade.
Numa versão mais sofisticada, baseada sobretudo em Gramsci, intro­
duz-se o conceito de hegemonia, que conota a luta e conflito constantes pelo
predomínio social, que estariam ausentes das teorias da reprodução. Na
sua versão mais leve, a crítica procura enfatizar, em suposta contraposição
às teorias da reprodução, as resistências e oposições de todo tipo, não
apenas aquelas relacionadas ao choque entre as classes, como na versão
marxiana.
Deste último tipo de crítica é que nascem as chamadas teorias da
resistência em educação, atualmente predominantes entre os educadores
críticos anglo-saxônicos. É natural que ao criticar as teorias da reprodução,
esses críticos destaquem sua suposta negligência da ausência de luta e
conflito sobretudo no âmbito da educação, apontando portanto, emcontra-
posição, para aqueles processos e eventos conflitivos aí existentes:
Eu qaero me dirigir, em parte, d çaestão^Mudamenfai do çae deve ser/êito a/im de
se entender os escolas não apenas como locais de reprodapTo sócio-caltaral, mas
tam&ém como lugares envolvidos em contestação e lata. Esta tare/ã implico em nada
menos do %aeencontrar am novo tipo de discarso e ama nova maneira de pensar soàre
a natareza, o signifcado, e ãs possibilidades para se ataar dentro eJõra das escolas
(Giroax, 19#6, p l 56).

O <yaeprodaz e o çae reprodnz em educação 43


Conceitualmente ligado aos conceitos de conflito, luta e resistência,
mas deles distinto, o conceito de contradição também é apontado como
estando ausente das teorizações da reprodução.
5.As teorias da reprodução são a-tn'sfóricas.

Esta é uma crítica raramente feita, embora esteja, em minha opinião, entre
as mais certeiras. Segundo a perspectiva deste tipo de crítica, as teorias da
reprodução, ao se basearem num esquema altamente abstrato, tendem a
congelar e a ignorar a história, focalizando e isolando um momento
específico de seu incessante fluxo. As classes e as relações entre elas não são
reproduzidas através de um esquema abstrato e dedutivo que as transcen­
de. Elas são feitas e construídas historicamente, dé formas que dependem
das condições concretas e particulares em que estão situadas, e que têm que
ser descritas, não supostas como dadas.
A crítica mais completa e severa, neste sentido, situa-se fora do âmbito
da educação: trata-se da crítica empreendida por E.P.Thompson a todo o
edifício teórico de Althusser (Thompson, 1981). Mas não faltam críticos
dentro da própria área da educação para apontar essa limitação das teorias
da reprodução. Uma das críticas mais convincentes a este respeito é a feita
por C cn n e ií (1990, p. 51):

A teoria ãa reprodução (...) está baseada mefoãoiogicaMente num isoiamenfo ãa


%isféria que (..) suprime a agência das pessoas na criação ãa história, na criação ãas
próprias estruturas cuja reprodução estã senão examinaãa (...) A ciasse é, desde o
começcj umJâtc cultural. A luta cultural (..) é parte ão processo pelo qual as pessoas
constituem classes e reiaçóes ãe classe como a bistoriogro/ia ãe Tlzompson, Guinam
e outros nosJazem lembrar, mesmo ^uanão a teoria não ojãz (...) NosJazemos análise
ãe classe não por que temos certezaJüosó/ica çueuiuemos num munão ãe classes (...),
mas porque, como uma questão ãe Jato, no munão real as classes estão senão
constantemente construídas ao reãor ãe nós, as pessoas estão constantemente
Jázenão classe (...) EsteJazer ãa ciasse é impossívelãeseJõrmular precisamente como
o é a reprodução ãe uma relação.

6 .As teorias ãa reprodução (gnoram ou teorizam inaãequaãameníe as possibilida­


des de fraHS/õrmação socõd.
Esta é certamente amais óbvia das críticas que se pode fazer às teorias da
reprodução. Afinal, é da persistência epermanência da estrutura social que
se está falando quando se trata do conceito de reprodução. Mas segundo
esta crítica, ao enfatizar essa persistência da estrutura social, as teorias da

44 Tomaz Tadeu da Silva


reprodução tanto deixam de levar em conta processos de mudança e
transformação que, afinal de contas, como prova a história, ocorrem de fato,
como tambémpodemcontribuir, ao teorizar inadequadamenteasociedade
e sua dinâmica, para inibir a ação política que poderia levar justamente à
sua transformação. Desta perspectiva, portanto, as teorias da reprodução
seriam duplamente incorretas.
De forma derivada, no campo específico da educação, as teorias da
reprodução, ao enfatizarem suas funções reprodutivas estariam, natural­
mente, minimizando seu papel no processo de transformação e mudança
social. Segundo o ponto de vista dos que subscrevem esta crítica, a
dinâmica educacional pode, na verdade, contrapor-se, em certas circuns­
tâncias, à dinâmica reprodutiva, contribuindo, desta forma, para uma certa
transformação da sociedade.
7.As fcorías & reprodução são simplistas, pessimistas e derrotistas.

As acusações contidas neste item servem de conclusão para as críticas


contidas nos itens anteriores, isoladamente, combinadas, ou em conjunto.
Assim, as teorias da reprodução constituiríam uma simplificação da dinâ­
mica social por teorizarem uma relação mecânica, por ignorarem o conflito
e a contradição e por postularem a passividade dos atores sociais.
For essas mesmas razões, acrescidas de sua a-historicidade e da
ausência de uma teorização das possibilidades de transformação, as teorias
da reprodução implicam numa visão pessimista e derrotista da dinâmica
social, contribuindo até mesmo para inibir as lutas e os movimentos pela
mudança da sociedade.
g.As teorias ãa reproãução não correspondei ã<yK%o <yue reaiwenfe ocorre.

Novamente, como conseqüência de uma ou mais das críticas anteriores, as


teorias da reprodução constituiríam uma descrição inadequada daquilo
que realmente ocorre na vida social. Os atores sociais não são passivos,
como essas teorias o supõem. A dinâmica social é feita de mais conflito, luta
e contradição do que as teorias da reprodução querem admitir. E a história
demonstra que a constituição da sociedade não se dá da forma por elas
supostas. Em suma, o relato feito pelas teorias da reprodução está longe de
corresponder àquilo que de fato se passa na estruturação e no funciona­
mento das sociedades.
Mas há também uma variante regionalista desta crítica, segundo a
qual as teorias da reprodução em educação, refletindo sua origem, até

O ÇMCproãMZ c c çMg rcproãMZ cm eJucação 45


poderíam constituir uma descrição adequada daquilo que se passa nos
países do capitalismo avançado, mas teorizariam inadequadamente a
dinâmica social de sociedades do Terceiro Mundo, como os países da
América Latina, por exempio:
(...) é sghiáo que toda tforia respondo sempre a certos determinantes histéricos. (...)
é preciso recordar que as teorias reproánf iuisfas tentam responder as qaestJes acerca
de çomo se constroem o consenso e a dominação no marco de sociedades caracteriza­
das por ama/ôrte esfa&iiiáaáe iáeoMgica. Sen ponto de partida está constituído peia
perynnta acerca do consenso, da hegemonia e da dominaçdo ideoiógica. Na América
Latina, em troca, o pecniiar sáo a crise hegemônica, a iHSfa&iííáaáe e a heteregoneí-
dade estrntnrai e caitarai. Neste marco, amayárwaiaçáo teérica centrada exciasioa-
mente nos mecanismos de reprodaçdo corre o risco de deixar/õra do_/óco de anáiise
os acontecimentos principais çae se estdo prodazindo dentro da estratara sociai em
gerai e no piano ideoiógico em particaiar (Tedesco, 19%3, p. 62).

De voita à reprodaçdo ew Marx


É estranho que, excetuando Aithusser no famoso artigo sobre os AIE e
mesmo assim um tanto de passagem, os trabalhos que primeiro propuse­
ram a análise da educação via reprodução não tenham sentido a necessida­
de de se reportar diretamente ao tratamento do conceito em O capitai. Nem
as reformulações, qualificações e matizações que vieram depois tiveram
essa preocupação. Nem mesmo um artigo de Willis (1986), cujo sugestivo
título (ReprodMçáo é di(èrenfe de reprodMçdo sociai é di(êrenfe de prodMçdo...)
parecia prometer uma revisão do conceito com base em Marx, chegou a
fazê-lo.
Trata-se de uma omissão incompreensível, se pensamos que O capitai
pode ser considerado exátamente como sendo um tratado sobre a reprodu­
ção. Uma das dificuldades na utilização do conceito de reproduçãoestáno
caráter polissêmico da palavra, tal como acontece com muitas outras em
ciências sociais. Na verdade, no caso de reprodução, o problema não está
tanto na palavra em si, cujo sentido tem pouca ambigüidade e coincide com
o significado da linguagem corrente, quanto naquilo que a complementa:
o que é que está sendo reproduzido?
No próprio capítulo 21 do Livro Primeiro de O capitai, onde o conceito
é apresentado de forma sistemática por Marx, reprodução é aplicado a
diferentes complementos. Trata-se, antes de mais nada, de reprodução das
relações sociais de produção, mas esta é precedida temporal e logicamente
pela reprodução de outras coisas.E estas outras coisas são constituídas
pelas características materiais do processo de produção capitalista.

46 TcwMZ Ta&a & Süca


Contrariamente às teorias da reproduçãó/educação (Bourdieu e
Passeron, Bowles e Gintis, Althusser), que colocaram como ponto de
partida o processo de reprodução social, ou seja, de reprodução das
relações sociais, e deduziram daí a centralidade da reprodução da consci­
ência e do papel da educação nesse processo, em Marx, evidentemente, a
reprodução social (=reprodução das relações sociais) começa na reprodu­
ção dos elementos materiais do processo de produção.
Esta inversão, que reprisa noutra clave o anterior itinerário idealista
dos pedagogos e educadores, foi efetuada até mesmo por Althusser em seu
breve mas seminal trabalho. Aí a primazia da reprodução material é
relegada a uma simples nota. A passagem que acentua a centralidade do
processo de reprodução ideológica no processo de reprodução social:
Podemos então responderá nossa questão central, mantida em suspenso portanto
tempo; como é assegurada a reprodução das relaçóes de produção? Na linguagem
meta/orica do tópico (fn/ra-estrutura, Superestratara) diremos: eia é, em grande
parte, assegurada pela superestrutura jurídico-poiítica e ideológica (Aitiwsser,
1933, p. 73). (A ên/ãse é miniM).
é assinalada com uma nota que é, de certa forma, contraditória com a
asserção principal que acabamos de transcrever:
Em grande parte. Pois as relaçóes de produção são antes de mais nada reprodu­
zidas pela materialidadedoprocesso deprodução edoprocesso de circulação. Mas ndo
devemos esquecer que as relaçóes ideológicas estão presentes nestes mesmos proces­
sos (Aitimsser, 1933, p. 73, nota 11). (A ên/ãse é miniMi.
O que é mais forte; "em grande parte"ou "antes de mais nada"? Mas
não se trata aqui de discutir os argumentos de Althusser, mas de ressaltar
que a inversão que assinalei está presente também aí, de certa forma, e de
retornar à argumentação de Marx. No capítulo já referido de O capitai (cap.
21), reprodução (simples) refere-se à repetição das mesmas condições
materiais do processo de produção existente no momento anterior:
Qualquer que seja ajórma do processo de produção, ele deve ser contínuo, ele deve
periodicamente repetir as mesmas /ases. Uma sociedade ndopode deixar de produzir,
assim como ndo pode deixar de consumir. Quando visto, portanto, como um todo
relacionado, e no jluxo constante de sua incessante renovação, todo processo de
produção é, ao mesmo tempo, um processo de reprodução. As condiçóes de produção
são, ao mesmo tempo, as condiçóes de reprodução. Nenhuma sociedade pode continu­
ar produzindo, emoutras palavras, nenizuma sociedadepode reproduzir, a menos que

O que produz e o que reproduz em educação 47


constaníemenfe rccouprrfa uwa parte áe seas proáutos em meios & proáM^o, ou
eiemeníos áe nooos proáMfos fMarx, 19d5a, o. 11, p.I53).

Mas isto vaie para qualquer modo de produção. São as características


específicas do processo de produção do capitalismo que fornecem as
características do processo de reprodução capitalista:
Se a proáupáo tem/õrma capitalista, então a terá a reproáMçáo. Como no moáo áe
reproáaçáo capitalista o processo áe tra&aliio só aparece como am meio para o
processo áe valorizapáo, assim a reproáuçáo aparece apenas como nm meio para
reproáazir o calor aáiantaáo como capital, isto é, como calor <yaese caloriza (Marx,
1935a, c. 11, p.153).

É a repetição (na mesma escala) das mesmas condições materiais que


inicialmente puseram em movimento o processo de trabalho capitalista
que define o processo de reprodução (simples). Mas vejamos em mais
detalhes esse processo.
A produção de valor, a transformação de dinheiro em capital, como
ensina Marx no capítulo IV de O capital, não pode se originar meramente
na produção simples de mercadorias, nem no ato de troca (circulação). Ela
depende, sim, do encontro de dois possuidores de mercadorias especiais.
De um lado, possuidores de dinheiro ou valor; de outro lado, possuidores
exclusivamente da única coisa que pode criar valor, a força de trabalho. São
essas duas condições que constituem o cerne das relações capitalistas de
produção: a separação inicial entre aqueles que podem criar valor e os
meios de trabalho e sua reunião posterior, tornada possível pelo capitalista
(ao comprar força de trabalho, meios e objetos de trabalho), no processo de
trabalho. Isto é o que define as relações sociais capitalistas. São essas
relações sociais que são reproduzidas através da reprodução das condições
materiais de produção.
Mas como se dá o estabelecimento e, posteriormente, a reprodução
dessas duas coisas: das condições materiais de produção e, através delas,
das relações sociais de produção? Como estamos preocupados aqui com a
reprodução, podemos passar ao longo da discussão de como inicialmente
se constituíram as condições iniciais pelas quais as duas classes fundamen­
tais se dividem: o processo de acumulação primitiva, a eliminação progres­
siva de modos alternativos de vida, etc. Podemos partir, como aliás faz
Marx no capítulo sobre a reprodução simples, do fato de que essas relações
sociais já estão estabelecidas e limitar a discussão à sua reprodução.
Essas relações sociais iniciais (de um lado, o capitalista, de outro, o
trabalhador) são reproduzidas simples e exclusivamente pela mera repeti-

43 Totnaz Taáea áa Sáua


ção do processo ide produção capitalista, ou seja, o próprio processo de
produção capitalista faz com que o capitalista saia dele como entrou, isto
é, como detentor de valor que se valoriza, enquanto o trabalhador sai desse
mesmo processo também tal como nele entrou, isto é, como possuidor
apenas de sua força de trabalho. No processo de produção, o próprio
trabalhador produz não apenas mercadorias, mas capital, valor, que,
apropriado pelo capitalista, produz de novo o capitalista, isto é, o reproduz.
No mesmo movimento, pela alienação daquilo que produziu, estabelecida
já no momento de entrada no processo pela alienação de seu trabalho, o
trabalhador é outra vez produzido como trabalhador Essa reprodução do
capitalista de um lado, do trabalhador do outro, nada mais é que a
reprodução das relações sociais de produção.
Mas o uso e o consumo da força de trabalhopelo capitalista dependem
não apenas da existência das condições sociais necessárias (a exis tência de
uma classe despossuída), mas também das condições objetivas e subjetivas
necessárias para sua adequada realização. Ou seja, é necessário que a
própria força de trabalho seja reproduzida. As condições básicas para sua
reprodução física já estão dadas pelo próprio processo de produção e
reprodução acima descrito. Isto é, as condições para a reprodução física da
força de trabalho estão dadas pelas próprias características do processo de
produção, no qual o trabalhador produz também aquela parte do valor que
é destinada à sua própria subsistência, em forma de salário.
Neste sentido, a reprodução física da força de trabalho é uma compo­
nente do processo global de reprodução, é uma consequência desse proces­
so global num primeiro momento, uma condição necessária no momento
subsequente, e assim por diante. O consumo dosmeioS de subsistência atua
duplamentenessareprodução, ao reproduzir aíòrçade trabalho e ao lançar
de novo o trabalhador nos braços do capitalista, na busca renovada
daqueles meios.
Mas qual o papel e o lugar, nessa reprodução, daquele componente
subjetivo da força de trabalho constituído pelas habilidades e qualificações
do trabalhador? Marx parece ter pouco a dizer sobre isto. No capítulo de O
capital dedicado à reprodução simples, ele faz uma breve referêncià a essa
questão, mas no contexto de um comentário a respeito de como os capita­
listas dão inclusive esse aspecto da força de trabalho como contado, como
propriedade sua:
A reprodução da ciasse traimiliadora impiica, ao mesmo tempo, a transmissão e a
acamniapío & ÍM&didade de ama geraçdo páracaíra. A extensão em que o capitaiista
conta a existência áe iai ciasse trai^ailanlora Mni entre as condiçães áe produção a eie

O que prodaz e o que reproáaz em educação 49


pertencentes, consxíernHíio-H, &/õto, a exístêHciHreal & seu capital varidvel, réveia- o capitalista d comprd-la para se enriquecer, jó não e a casualidade que contrapõe
se assim que uma crise ameaça causar SM perda (Marx, 1585a, vil, p. 158). capitalista e trabalhador como comprador e vendedor no mercado. E a armadilha do
próprio processo que lança o último constantemente de novo ao mercado como
Ao que parece, também Marx dá esse aspecto da reprodução da força vendedor de sua/õrça de trabalho e sempre transforma seu próprio produto no meio
de trabalho por contado, não se preocupando de forma mais séria com os de compra do primeiro/...)
mecanismos pelos quais essas habilidades são reproduzidas, contentando- O processo de produção capitalista, considerado como um todo articulado ou como
se em transcrever, sem maiores comentários, uma citação de Hodgskin, processo de reprodução, reproduz por conseguinte não apenas a mercadoria, não
aposta como nota de rodapé à primeira frase do parágrafo citado acima: apenas a mais-vaiia, mas produz e reproduz a própria relação capital, de um lado o
capitalista, do outro o trabalhador assalariado (Voi. 11, p. 161).
A única coisa que sc pode dizer que é armazenada e preparada com anfecipapto é a
habiliddde do trahaUiador. (...) A acamuiapto e o armazenamento de tra&aiho húbil, A descrição desse processo de reprodução está sintetizada de forma
essa importantíssima operoção reaiiza-se, no que se refere d grande massa de admirável, de resto, numa das seções do chamado Capítulo Vf Inédito de O
trabalhadores, sem nenhum capitai (Voi. li, Mota 12, p. 158). capital:
Mas num capítulo anterior de O capitai, o capítulo IV, Marx inclui o O trabalho produz as suas condições de produção enquanto capital, o capital produz
custo da formação subjetiva da força de trabalho entre os custos necessários o trabalho enquanto trabalho assalariado, como meio de realização enquanto capitai.
para sua produção: A produção capitalista não éapenas reprodução da relação; na sua reprodução a uma
escala cada vezmaiorena mesma medida emque, comomodo de produção capitalista,
Para modificar a natareza humana gerai de tal modo que ela alcance habilidade e se desenvolve a /õrça produtiva do trabalho, cresce também perante o operdrio a
destreza em determinado ramo de trabalho, tomando-se/orça de trabalho desenvol­ riqueza acumulada, como riqueza que o domina, como capital; perante ele expande-
vida e especi/ica, épreciso determinada/õrmação oa edacaçdo, que por saa vez, casta se omundo da riqueza como um mundo alheio eque odomina; e na mesma proporção
ama soma maior oa menor de eqaivaientes mercantis. Conforme o cardter mais oa se desenvoZve a sua pobreza, a sua indigéncia e a sua sujeição sub/etivas (Mdrx,
menos mediato da/orça de trabalho, os seas castos de/õrmação são diferentes. Esses 1585b, p. 135).
castos de aprendizagem, ínfimos para a/õrça de trabalho comam, entram portanto Face a essa ênfase que Marx coloca na compulsão econômica, é o caso
no âmbito dos calores gastos para a saa produção (Voi. 1, p. 142).
de se perguntar onde fica o processo de convencimento e inculcação
No contexto da fase do desenvolvimento do capitalismo que Marx ideológica, que passou a ser o ponto central das nossas teorias da reprodu­
estava analisando esse gasto devia ficar circunscrito à esfera familiar, à ção em educação. Afinal, para Marx, o modo de produção capitalista se
transmissão de habilidades e qualificações entre gerações. Mas sua brevi­ distingue preçisamente por não precisar recorrer a formas extra-econômi-
dade em relação a este ponto não é tão surpreendente quanto a total cas de compulsão:
ausência, ao menos neste ponto de O capital, de uma discussão da reprodu­
ção das condições subjetivas ideológicas das relações sociais capitalistas. Mesmo seu consumo individual fda classe trabalhadora/, dentro de certos limites, é
Qual seu papel e seü lugar no contexto dessa análise de Marx? Vamos apenas um momento do processo de reprodução do capital. O processo, porém,/âz
deixar para mais adiante a discussão dessa questão. No momento, o que com que esses instrumentos de produção autoconscientes não /újam ao remover
constantemente seu produto do pólo deles para o pólo oposto do capital. O consumo
individual cuida, por um lado, de sua própria manutenção e reprodução, por outro,
mediante destruição dos meios de subsistência, de seu constante reaparecimento no
de produção: mercado de trabalho. Oescravo romano estava presopor correntes a seuproprietdrio,
o trabalhador assalariado o estd por/ios invisíveis (Marx, v. 11, p. 158).
O processo de produção capitalista reproduz, portanto, mediante sen préprio proce­
dimento, a separação entre/orça de trabalho e condições de trabalho. Ele reproduz e Como ligar, então, este aspecto do processo de reprodução, o das bases
perpetua, com isso, as condições deexploração dotrabalhador. Obriga constantemen­ materiais do processo de reprodução social, tão enfatizado por Marx, com
te o trabalhador a vender-isou/õrça de trabalho para viver e capacita constantemente aquele outro, o das condições ideológicas necessárias àquele processo, tão

50 Tomaz Tadeu da Silva O que produz e o que reproduz em educação 51


enfatizado por nossas conhecidas teorias? Parece evidente que neste
particular as teorias da reprodução em educação desenvolveram-se numa
direção bastante diferente daquela traçada por Marx em O Capital.
Naquelas teorias o processo de reprodução social parece ser equacio­
nado ou reduzido ao processo de reprodução cultural ou ao processo de
formação de uma consciência inclinada à aceitação dos arranjos econômi­
cos e sociais da sociedade capitalista. Aqui, reprodução social é quase
sinônimo de reprodução cultural. Mesmo quando os dois processos não
são equacionados, dada a importância que assumem os mecanismos de
convencimento ideológico nessas teorias, parece que é a reprodução cultu­
ral que leva à reprodução social.
Em Marx, por outro lado, as inversões ideológicas no capitalismo são
produto das próprias características materiais do processo de produção. A
chave para a compreensão dessa relação parece estar na famosa seção 4 do
capítulo I de O Capital, "O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo".
Omecanismo ideológico essencial não está constituído por uma discrepân­
cia entre uma realidade verdadeira e sua falsa representação na consciên­
cia, mas pela percepção, por parte da consciência, de uma inversão que
existe na própria realidade e que advêm da própria natureza do processo
capitalista de produção:
De on<fe provem, então, o caráter enigmático áo proánto <to traMAo, tao logo ele
assume a /õrma mercaáorla? Evtáentemente, áessa /õrma mesmo. A igMaMaáe áos
proáutos áos traÍMli?os Inimanos assume a^rma material áe Igual oiiyetioiáaáe áe
valor áos proáutos áe tra&aMo, a meáiáa áo áisp^náio áe/orça áe trabalho áô Aomem,
por meio áe sna áaraçao, assnme a /õrma áagránáeza áe valor áos proáutos <ie
tra&á!Ao,/inaZmente, as relaçJes entre os proáatores, em çue açaelas características
soclalsáeseustra&all:óssáoatlvaáas,assumema/órmaáeumarela{áosoclaleHtre
os proáutos áe tra&a!i:o fAíarx, 1955a, v. E p. 71).

Infelizmente, na confusão terminológica de nossas teorias, em que as


expressões reprodução, reprodução social e reprodução cultural são
indistintamente usadas para se referir essencialmente aos mecanismos de
formação de uma consciência mistificada pela ideologia, a relação entre
esses vários processos, tal como concebida por Marx, ficou relegada a
segundo plano. No afã de descrever o processo de reprodução cultural,
talvez se tenha esquecido um pouco o fundamento material do processo de
reprodução social. Não residiría aqui talvez um caminho mais produtivo
para o refinamento das teorias da reprodução, que aquele que pretende
salvá-las mediante uma suposta teoria da resistência?

52 Towaz Taáéu áa Silva


Em/avor do conceito õrre;^odM(õo; as razões
Tendo percorrido as principais teorias da reprodução em educação, sinte­
tizado as críticas que se lhe fizeram nos últimos anos e realizado uma
. retomada do conceito em Marx, é hora de passarmos a um dos propósitos
deste trabalho, que é o de argumentar em favor da centralidade, da
importância e da necessidade da utilização do conceito de reprodução, de
modo geral e, em particular, na análise da educação.
Em primeiro lugar, umaperspectiva analítica em educação supõe uma
teoria da dinâmica social. Isto é, épreciso partir de algumas premissas sobre
quais são os processos que movem a sociedade, quais as forças que
contribuem para sua estabilização ou para suamudança e quais as relações
entre esses processos, em suma, todas aquelas qualidades das teorias
sociais clássicas, como as de Durkheim, Weber, Marx, por exemplo, que as
tornam explicativas.
Naturalmente, nenhum método servirá como substituto de uma tal
teoria. Ela deve ter um conteúdo,uma substância, o que significa que a voga
atual do método dialético é vazia e sem sentido. Mesmo a dialética de Marx
pouco valería sem o conteúdo de sua detalhada análise da sociedade
capitalista em O capital, por exemplo, a menos que se tome a dialética como
um atributo da dinâmica social, mas aí já estamos falando de outra coisa e
que, mesmo assim, necessita de explicitação, o que nos leva de volta ao
problema do conteúdo.
Mas reconhecer a necessidade de uma teoria da dinâmica social não
é a mesma coisa que optar por uma. Uma vez feito este reconhecimento,
entretanto, gostaria de sugerir que a análise que Marx faz da sociedade
capitalista em O capital ainda continua, em suas linhas gerais, não apenas
válida, no sentido de corresponder ao seu real funcionamento, mas como
aquela que encerra maior potencial analítico.
O fracasso do socialismo real não constitui nenhuma prova do fracas­
so da análise marxiana da sociedade capitalista. Os próprios argumentos
neoliberais a respeito das razões pelas quais se deve adotar uma economia
de mercado convergem, no essencial, com a descrição dos mecanismos da
dinâmica social capitalista, feita por Marx, embora certamente não quanto
ao postulado daqueles de que a organização econômica capitalista consti­
tua o fim da história.
Ora, no âmago da análise de Marx está o processo de reprodução das
relações sociais de produção^ como procurei demonstrar numa seção
anterior. Segundo esta análise, a dinâmica da sociedade capitalista é posta
em movimento pelo processo de autovalorização do capital. Neste proces-

O çMe produz e o çne reproÕMZ e?n educação 53


so, a reprodução das relações sociais de produção, isto é, do capitalista
como capitalista e do trabalhador como trabalhador, nos termos em que
vimos anteríormente, constitui tanto uma exigência quanto um resultado
desta busca de autovalorização. Ou seja, a noção de reprodução é indisso­
ciável da teorização marxiana da sociedade capitalista.
Assim, abandonar a noção de reprodução na análise da dinâmica
educacional na sociedade capitalista significa simplesmente renunciar a
uma análise marxista da educação, o que é, obviamente, uma atitude
nerfeitamente legítima. Mas o que é difícil de ver é como se pode descartar
essanoção e ainda assim continuar operando dentro do universo marxiano.
De qualquer forma, meu objetivo aqui é lidar com aquelas objeções
que se fizeram dentro do campo crítico ou radical de análise da educação
e que, de uma forma ou outra, reclamam pelo menos alguma parte da
herançateóricamarxiana. Neste caso,o grande equívoco temconsistidoem
apontar problemas com as teorias da reprodução em educação sem, no
entanto, chegar à questão central que é a de decidir se a noção de reprodu­
ção tem poder explicativo ou não. Entram nessa rubrica todas aquelas
críticas que imputam às teorias da reprodução uma visão pessimista da
mudança social e um papel político desmobilizador, sobretudo no que se
refere à ação dos educadores.
Antes de mais nada, uma teoria social não é um programa político que
possa ser julgado por sua eficácia ou pela falta dela, embora isto não queira
dizer que um programa político não deva estar embasado numa boa teoria.
Umá teoria social deve ser avaliada pelos critérios de ajuste à realidade e de
sua potência para explicar a dinâmica social e não por seu poder de fazer
nossos desejos se tomarem verdadeiros.
Além disso, não há nenhum indício de que uma perspectiva mais
otimista vá contribuir óu tenha contribuído para m udar na essência o
funcionamento das nossas escolas du da nossa sociedade, como tão bem
assinalou R Brosio (1990). A despeito da ardenteretórica otimista de alguns
educadores, a educação e os outros mecanismos continuam a produzir os
elementos básicos de uma sociedade injusta e desigual. Nenhuma retórica
será um bom substituto de uma sólida teoria.
Outra das objeções comuns à utilização do conceito de reprodução,
como descreví anteriormente, refere-se à suposta falta de ênfase nos
processos de conflito e resistência e na ausência de contradições. Como
acontece com outras objeções, pode ser que isto seja verdade com relação
a alguma das teorias da reprodução em educação que revisei numa seção
anterior, mas não é inerente ao conceito de reprodução, tal como descrito
por Marx em O capital.

54 Tomaz Ta&M & Silva


Nenhuma leitura de O capitai pode deixar de registrar a centralidade
do conflito, expresso através da luta de classes, e das contradições estrutu­
rais, na análise que Marx faz da dinâmica social capitalista. Há a contradi­
ção inerente às próprias categorias básicas do modo de produção capitalis­
ta: entre valor de uso e valor, entre trabalho abstrato e trabalho concreto,
entre processo de trabalho e processo de valorização.
Mas há também a contradição fundamental entre as relações sociais de
produção e o desenvolvimento das forças produtivas:
A indústria moderna nunca encara nem trata ajôrma existente de um processo de
produção como dçdnitiva. 5 na base técnica é, por isso, revolucionária, emyaanto a de
todos os modos de prodapto anteriores era essenciaimente conservadora. (...) Com
isso, eia reooinciona de modo igualmente constante a divisão do tra&aÜM no interior
da sociedade e lança sem cessar massas de capitai e massas de trabalhadores de am
ramo de prodat#o para oatro. (...) Por oatro lado, reprodaz em suaJõrma capitalista
a velha divisão do trabalho com suas particularidades ossi/icadas (Marx, 1935a, v. 11)
p. 39).

O mesmo processo é descrito de forma mais engajada, e por isto muitomais


viva, no Aíawi/êsfo Comunista:
As reiaçáes baronesas de produção e intercâmbio, as reiaçáes de propriedade
baronesas, a sociedade burguesa moderna que desencantou meios tão poderosos de
produção e de intercâmbio, assemelha-se aofeiticeiro quejá não consegue dominaras
forças ocuitas que trouxe á luz. De há decênios para cd, a história da indústria e do
comércio é apenas a história da revolta das modernas jõrças produtivas contra as
modernas reiaçdes de produção, contra as reiaçdes de propriedade que são as
condiçães de vida da burguesia e do seu domínio (Marx & Pngeis, 1937, p. 39).

Mas, para o que nos interessa, há a contradição que se inscreve no


próprio processo de reprodução, que é a da reprodução de uma classe que
é antagônica, por natureza, ao capital, isto é, oprocésso de reprodução é ele
próprio contraditório, ao reproduzir as classes cujos interesses antagônicos
vão colocá-las em constante conflito. Nas palavras de Marx, numa auto-
citação do Mani/êsto Comunista, feita em nota de rodapé de O capitai:
O progresso da indústria, cujo portador involuntário e não-resistenfe éa burguesia,
coloca no lugar do isolamento dos trabalhadores, pela concorrência, sua unido
revolucionária, pela associaçdo. Com o desenvolvimento da grande indústria, a
burguesia vê, pois, desaparecer sob seus pés ojÚHdamento sobre o qual ela produz e
se apropria dos produtos (Marx, 1935a, v. 2, p. 294, nota 252).

O que produz e o que reproduz em educação 55


Ou ainda, nas palavras do Capítulo Ví fnéáifo & O capital:
Com hase nesta rolado m oscada áesenaolae-se contaáo am moáo & proáaçáo
especi/icamente írans/õrmaíío çae, por am laáo, gera nooas põrças proífadoas
maíerMM o, por oatro, nõo se áesenooloe senão com ôase nestas, com o çne cria áe)ãto
nonas conáições reais, inlcla-se assim ama reoolaçáo econômica total çae, por am
laáo, proáaz pela primeira nez as conáições reais para a hegemonia áo capitai soôre
o trabalho, as aper/eiçoa e lhes áá amaybrma aáe^aaáa e, por oatro, gera nasJòrças
proáafinas áo frabalAo, nas conáições áe proáaçáo e circalaçõo, por elas áesennoloi-
áas em oposipTo ao operário, gera, áizíamos, as conáições reais áe am nono moáo áe
proáaçáo çae elimina a /õrma antagônica áo moáo capitalista áe proánçáo e lança
áesta ybrma a base material áe am processo áe viáa social con/ormaáo áe maneira
nona e, consequentemente, áe ama jitrmaçáo social nova (Marx, 19#5b, p. 13#).

Não há sentido, portanto, ém opor contradição e reprodução, como íazem


as várias críticas que se tem feito ao uso deste último conceito, se se entende
o processo de reprodução no sentido em que o desenvolveu Marx. Como
destaca Enguita:
Afarx nác se iimitoa a áesnelar qae, par trás áesaa aparência meramente cb/etina,
o trabalho assaiariaáo, o capitai, a áinisõo áo trabalho, a competido e oatras maitas
categorias çae a economia política burguesa tomara por eternas, por natarais, eram
relações históricas e transitórias. Também mostroa que eram relações sociais contra-
áitórias, çae o capitalismo é am moáo áe proáaçõo pleno áe contraáições, oa, melhor
áito, atraressaáo pela contraáiçõo capital-irabaiho, pela contraáiçáo áo trabalho
álienaáò, que se manilêsta áe formas áirêrsas. A reproáaçõo áas relações sociais é
pois, necessariamente, reproáaçõo áe saas contraáições (Engnita, 1990, p.115).

Da mesma forma, não se pode dizer que o conceito de reprodução, tal


como usado por Marx, implique numa desconsideração da atividade do
sujeito humano. A famosa terceira das Teses sobre Tearhacíz sintetiza admi-
ravelmente como Marx concebia á inextricável relação entre as condições
recebidas ê aquilo que os homens podem fazer com estas condições. Como
vimos acima, o processo de reprodução restabelece a cada momento as
classes fundamentais do capitalismo e, portanto, as condições básicas para
seu funCiónaménto, mas as classes assim produzidas e reproduzidas não
permanecem indiferentes a esse processo. Elas se defrontam, exatamente
como resultado desse processo, como atores em conflito.
É possível que em certas versões da teoria da reprodução em educação
realmente haja uma ênfase exagerada no poder da estrutura e uma conco­
mitante negligência com a ação humana, coi$a de que acusam Althussser,
por exemplo, citando a famosa passagem sobre os professores, anterior­

56 Tomaz Taáea áa Siioa


mente transcrita. Entretanto, mesmo neste caso, uma leitura mais atenta
mostra que Althusser não está desconsiderando a ação humana, pois
ressalta a reação de alguns professores, mas se limita a fazer uma observa­
ção empírica que, de resto, não se demonstrou, desde então, ser falsa.
Entretanto, o importante aqui não é opor atividade humana e estrutu­
ra, mas construir uma teoria social que demonstre e explique como elas se
relacionam. Não é mesmo esta a principal motivação de uma teoria
sociológica e não foi a isso que se dedicaram clássicos como Marx, Weber,
Durkheim? Esta é, evidentemente, uma oposição falsa, na medida em que
é impossível separar agência e estrutura. O problema central consiste em
saber como agência e estrutura se determinam mutuamente, tarefa, aliás,
a que se tem dedicado um dos mais importante teóricos da reprodução,
Pierre Bourdieu (1972; ver também Harker, 1990).
Assim como opõemreprodução e contradição, reprodução eatividade
humana, certos críticos também opõem reprodução e resistência, tendo até
mesmo florescido neste contexto uma suposta teoria da resistência.
Na maior parte dessas teorizações o conceito de resis tência existe num
vazio teórico, consistindo mais numa perspectiva voluntarista e otimista e
num apelo romântico à oposição que numa verdadeira teoria, como em
Giroux (1986), por exemplo. Descobrir que as pessoas resistem a situações
de opressão não nos diz nada sobre como estas situações se originam, em
primeiro lugar, nem como são mantidas, e por este motivo não nos diz nada
também sobre como elas podem ser transformadas.Simplesmente verificar
e documentar a existência de resistências, que é o que se faz nessas teorias
que pretendem se opor às teorias da reprodução, não é o mesmo que
explicá-las. E sem explicação, como sabemos, não há teoria.
Além disso, dentro do marco teórico marxista, fica difícil de se ver
como se pode falar de resistências, com o estatuto teórico que lhe preten­
dem dar e não como simplesmente uma categoria descritiva, sem articulá-
la com a dinâmica do conflito de classes. Nessas teorias seria o conflito de
classes apenas uma subcategoria de resistência? Ou uma teoria da resistên­
cia viria á substituir uma teoria social baseada no conceito de luta de
classes?
Ironicamente, um dos estudos que deu origem à presente voga das
teorias da resistência em educação,ode Willis (1991),comumente interpre­
tado como fornecendo os fundamentos para uma tal teoria, na verdade está
centrado no processo de reprodução, como uma leitura mais atenta o
demonstrará. Além disto, o conceito de resistência, tal como usado por
Willis nesse estudo, está cuidadosamente ancorado numa análise marxista
de classes, o que não acontece com a maioria das especulações que se dizem

O que produz e o que reproduz em educação 57


inspiradas por ele. Evidentemente, uma análise mais aprofundada desta
questão das chamadas teorias da resistência está além dos objetivos deste
trabalho, mas é certamente uma tarefa urgente a ser realizada.
Em suma, a rejeição das teorias da reprodução não tem sido acompa­
nhada por nenhuma teorização mais abrangente ou apropriada das rela­
ções entre educação e sociedade. Sua rejeição também não tem sido feita
com base em uma argumentação decisiva, mas, na maior parte das vezes,
através dequalificações ematizações queconstituemmais umrefinamento
de seus postulados básicos que sua desconsideração pura e simples. No
balanço global, o conceito de reprodução continua sendo um conceito de
grande importância analítica e de um alcance teórico bastante amplo na
tarefa de se compreender a dinâmica da relação entre educação e sociedade.
Sua rejeição definitiva, se é que ela deve se dar, está ainda para ser
demonstrada com argumentos mais sólidos do que os que foram até aqui
apresentados.

53 Tonigz Ta&u da S%pa


3 _____________________
O que produz e o que reproduz em educação

O impulso inicial da teoria crítica em educação desenvolvida nos últimos


vinte anos tendia a eníatizar os elementos reprodutivos da educação. A
educação contribuiría, de uma forma ou outra, para reproduzir uma
estrutura social fundamentalmente desigual. Como sabemos agora, esta
iria se tornar uma proposição central e influente das análises que seriam
feitas nesse período, como, aliás, tentei demonstrar em outro capítulo deste
livro.
Entretanto, a história da teoria crítica em educação nesse período tem
sido também a de uma tentativa de refinamento das afirmações demasia­
damente categóricas queinicialmente foram feitas sobre os aspectos repro­
dutivos da educação. Afinal, passou-se a dizer, nem tudo na educação
contribui para reproduzir o existente, fazendo com isto a sua parte na
manutenção de relações sociais assimétricas e de exploração. A educação
famMm gera o novo, cria novos elementos e novas relações, gera resistências
que vão produzir situações que não constituem mera repetição das posi­
ções anteriores. Em suma, teorizava-se que a educação não apenas repro­
d u z-ela também produz.
A educação seria, então, ao mesmo tempo, produção e reprodução,
inculcação e resistência, continuidade e descontinuidade, repetição e
ruptura, manutenção e renovação. Seria justamente a tensão constante
entre esses dois pólos que caracterizaria o processo de funcionamento da
educação. Este capítulo é uma tentativa de desenvolver esta proposição:
que a educação produz e reproduz e de tentar vislumbrar aquilo que em
educação produz e aquilo que reproduz, ou seja, quais elementos em
educação contribuem para produzir o novo e quais elementos contribuem
para manter o existente.
Naturalmente, observamos na teorização crítica em educação aquela
mesma tensão que caracteriza a dinâmica social, ou seja, a tensão entre

O que produz e o que reproduz em educação 59


reprodução e produção. Em alguns momentos desse processo de elabora­
ção teórica é o aspecto reprodutivo que é enfatizado; em outros, ressalta-se,
pelo contrário, o aspecto produtivo da educação. Que em alguns momentos
se privilegie um desses pólos em detrimento do outro talvez apenas reflita
o fato de que é realmente esta a dinâmica da sociedade, é nessa dialética
entre a reprodução do existente e a invenção do novo que se move a
sociedade. Será talvez numa junção entre essas duas perspectivas, numa
visão global ou numa síntese, que residirão as possibilidades de uma teoria
crítica da educação que seja capaz de fazer com que vejamos sentido em
nossas milhares de ações cotidianas aparentemente desconexas?
Talvez seja ainda muito cedo para termos uma resposta mais satisfa­
tória para esta questão, mas enquanto não chegamos lá, podemos ao menos
reunir algumas das compreensões fundamentais a partir das análises que
foram feitas pelos que nos antecederam. Que processos e dinâmicas na
sociedade e na educação são reprodutivos, servem para ajudar a manter o
existente esuas estruturas? E quais, inversamente, contribuem para modi­
ficá-la? No que se segue tentarei sintetizar algumas das importantes
contribuições que as teorias críticas nos ofereceram sobre esses dois aspec­
tos conexos da dinâmica social e da dinâmica educacional.
O a edacação reproduz; o ^ué, em educação, reproduz
As chamadas teorias da reprodução cansaram-se, nestes últimos vinte
anos, de nos ensinar quais elementos a educação e a escola ajudam a
reproduzir. Fundamentalmente, elas contribuem para manter as divisões
sociais existentes, ou na linguagem marxista, predominante em tantos
estudos sobre areprodução, a educação e a escola têm um importante papel
na reprodução das relações sociais de produção, ocupando um lugar
central nesse processo a manutenção da divisão social do trabalho: num
pólo o trabalho mental, no outro o trabalho manual.
Esta fórmula pode ter sido expressa em diferentes linguagens nas
diferentes teprizações: reprodução de relações de força através dareprodu-
ção da dominação simbólica e cultural em Bourdieu, reprodução das
relações hierárquicas no trabalho em Bowles e Gintis através da produção
de subjehvidades apropriadas, reprodução das relações de classe em
Althusser e em Baudelot e Establet através da inculeação da ideologia
dommante: trata-se sempre, entretanto, da reprodução de relações de
dominação e de poder. Ficamos sabendo, portanto, o que é que é reprodu-
zido através da educação e da escola. Mas as teorias da reprodução nos
mostraram também o quê, na educação e na escola, faz com que elas tenham

60 Tomaz la& u & Sifua


esse tão importante papel no processo de perpetuação de estruturas sociais
assimétricas.
Em primeiro lugar, entre aqueles elementos que contribuem para
reproduzir as estruturas sociais, estão aquelas divisões do sistema escolar
que, correspondendo às divisões sociais, contribuem para reproduzi-las.
Podemos começar por aqueles que mais nos chamaram a atenção para as
divisões escolares, Baudelot e Establet (1975), que nos mostraram que, por
detrás da aparente unidade, esconde-se uma profunda e fundamental
divisão: de um lado, uma escola que produz o trabalhador manual; de
outro, uma escola, em quase tudo juridica e formalmente igual à outra, que
produz o trabalhador mental.
Esta divisão pode ser mais ou menos aparente epode semanifestar nos
diferentes países de diferentes formas. Ela pode se apresentar na forma de
diferentes tipos de escola pública para as diferentes classes, ou ela pode se
definir através da localização das escolas públicas e consequente recruta­
mento diferencial, ou ainda, como no caso do Brasil, entre escolas públicas
e escolas particulares. Ou ainda, de forma mais sutil, através de diferenci­
ações internas nos currículos e métodos de ensino. Estas divisões são,
entretanto, um elemento fundamental e persistente dos sistemas educaci­
onais contemporâneos e, parao que aqui nos interessa, estão estreitamente
ligadas à manutenção de fundamentais divisões sociais.
Ainda no mesmo capítulo das divisões, não podemos deixar de lado
as lições de Bourdieu e Passeron (1975) sobre as divisões causadas por um
currículo escolar expresso no código dominante. Trata-se aqui já nãó mais
de uma divisão estrutural da escola, mas de uma divisão produzida pelo
processo escolar: entre aqueles que foram preparados, no interior da
família,paradecifrarocódigoe aqueles que não o foram.
Da mesma forma, Bowles e Gintis (1976) também nos forneceram
alguns elementos fundamentais para compreendermos como são produzi­
das divisões escolares que, por sua vez, contribuem para reproduzir
divisões sociais mais amplas. Neste caso, eles nos chamaram a atenção para
o fato de que divisões importantes são produzidas pela formação diferen­
cial de subjetividades através da uiuêwctH de diferentes tipos de relações
sociais na escola. Isto é, não são propriamente os elementos do currículo
formal ou os aspectos verbais do currículo que produzem as diferentes
subjetividades que correspondem às diferentes classes, mas antes à estru­
tura das relações práticas vividas no ambiente da escola.
Não é muito diferente alição de Althusser (1983) com sua conceptu-
alização da ideologia como tendo uma existência material, como estando
inscrita nos rituais e nas práticas, E naturaímente, é fundamentalmente esta

O ÇMgproduz e o çue reproduz em educação 61


mesma compreensão que faz parte essencial da noção de currículo oculto,
como procurei mostrar em outro capítulo deste livro.
Mas para além dessas divisões por assim dizer "externas" do sistema
educacional, há muitos outros elementos que têm sido destacados como
fazendo parte de sua matriz reprodutora. Foi um dos grandes méritos da
chamada "nova sociologia da educação" o ter-se voltado para o interior da
escola e da sala de aula, isto é, para aquilo que se convencionou chamar de
caixa-preta, precisamente porque antes raramente examinado e problema-
tizado. Foi neste olhar para o recôndito do processo educacional, para o seu
coração, que se revelaram muitas coisas que fazem com que esse processo
adquira algumas de suas perversas características de contribuir para a
perpetuação de fundamentais desigualdades sociais.
Foi nesse voltar-se para o interior da caixa-préta daquilo que se passa
no interior da escola e da sala de aula que essa teorização assumiu talvez
sua face mais lúcida e iluminadora. Foi aqui que se descobriram de novo
aquelas divisões mais externas - veladas e maquiadas por sucessivas
reformas educacionais que procuravam, num contínuo processo de legiti­
mação, atenuá-las - agora reproduzidas numa outra escala. Até então não
apenas a educação e a escola eram consideradas como benignas e desejá­
veis, como seus mecanismos internos, relativos a conteúdos e a modos de
ensino, não eram absolutamente questionados. Aqui se dá uma ruptura
impor tante: aquilo que está no coração da escola e da sala de aula é colocado
sob exame e o resultado não é nada edificante.
O conhecimento escolar não é o resultado de uma seleção neutra. Ele
é a sedimentação de uma tradição seletiva, pára usar a expressão de
Raymond Williams (1965, p. 67), em que outras possibilidades acabaram
descartadas. Ao mesmo tempo, o conhecimento escolar não é um produto
homogêneo, em que um mesmo conteúdo é transmitido de üm mesmo
modo a todas as classes e grupos sociais.
O conhecimento escolar na sua forma codificada, o currículo, e as
formas pelas quais ele é transmitido está também estraúficado e é através
dessa estratificação que ele volta a reproduzir aquelas desigualdades com
que os diferentes grupos sociais chegam ao processo escolar. A estratifica­
ção do conhecimento escolar é ão mesmo tempo resultado e causa da
estratificação social É um dos elementos principais através do qual a
educação rcproíÍMZ a estrutura social.
Mas a educação e a escola também reproduzem uma série de elemen­
tos que fazem parte de sua própria definição e que talvez por serem o
serem problematizados. Uma vez que, obviamente, nascemos dentro dos

62 Tomaz Ta&M daSiiua


arranjos institucionais existentes, somos quase incapazes de perceber sua
historicidade, o que vaie dizer, sua arbitrariedade.
Por isto é extremamente útil adotar uma perspectiva histórica, no
sentido de encarar o sistema educacional e a escola e todos aqueles
elementos que os caracterizam como moenções sociais. Isto é, como disposi­
tivos que têm uma gênese histórica, que foram o resultado de escolhas e
opções sociais, de um desenvolvimento histórico, no decorrer do qual
outras possibilidades foram descartadas em favor daquela que acabamos
por herdar. Infelizmente a história da educação tradicional, demasiada­
mente centrada, de forma idealista, numa história das idéias educacionais
e pedagógicas e muito pouco nos dispositivos materiais (como a sala de
aula e os métodos pedagógicos reais) pouco tem contribuído para aumentar
nossa compreensão desses processos histórico-genéticos.
A falta de uma tal perspectiva faz-nos facilmente esquecer quanto
estamos conformados, limitados e determinados em nossas ações educa­
cionais e pedagógicas por elementos pertencentes à definição da educação
institucionalizada, uma compreensão que escapou até mesmo aos ensaios
fundadores das teorias dareprodução em educação. Imersos como estamos
nas definições legítimas de educação, escola, ensino, currículo, seremos
incapazes de perceber os efeitos reprodutivos desses aspectos se não os
surpreendemos em sua gênese histórica, na longa duração de sua gestação
e desenvolvimento. Para isso será necessário também nos afastarmos um
pouco da tradição prinçipal da Teoria Crítica em educação, aquela que tem
sua base na sociologia, eaproximarmo-nos da análise histórica.
É necessário aqui socorrer-se daqueles estudos históricos —iníeliz-
mente ainda poucos - que têm procurado desvendar como foram sendo
criadas aqueles características da educação institucionalizada que hoje
tomamos como naturais, estudos como o clássico de Ariès (1973) ou a
original con trib uição de Hamilton (1989). Como ocorre com outros elemen­
tos do processo reprodutivo, a perspectiva naturalizante que ignora o papel
determinante dessas características estruturais apenas acrescenta a força
reprodutiva que resulta da ignorância à força reprodutiva original
São elementos e características essenciais da educação institucionali­
zada contemporânea -e elementos de :npenç#o muito recente e quenempor
parecerem óbvios são de menores conseqüências - aqueles que vamos
discutir a seguir. Em primeiro lugar, a educação moderna é um dispositivo
a)institucionalizado,b)demassa c)estatalmentecontrolado eregulado. Isto
hoje nos parece óbvio, natural, inevitável e irreversível. Pode ser que assim
seja, mas são essas características que, antes de qualquer outra coisa,
determinam e conformam aquilo que po&MMS^ãxer no âmbito de nossas

O que pro&iz g o qag reproduz em edMcação 63


ações educacionais e pedagógicas, são elas que restringem e limitam a
gama de nossas possibilidades; em outras palavras, elas constituem os
elementos reprodutivos primeiros, em ordem lógica e de importância.
Aqui, além da perspectiva histórica, que nos mostra como essas
características são uma ínnenção sociai e portanto arbitrárias, é extremamen­
te útil o ensaio de Ivan Illich (1973) sobre a desescolarização, tão incompre-
ensivelmente rejeitado mesmo pela esquerda educacional. Para além das
propostas ingênuas que desenvolvia, é necessário reter da análise de Illich
sua lúcida compreensão de que uma educação institucionalizada, de
massa e estatal es tá inevitavelmente determinada aproduzir determinados
resultados e apenas esses. '
Para se entender a extensão na qual essas características conformam
o que pode acontecer no interior da educação institucionalizada pode ser
instrutivo refletir-se sobre o destino das muitas inovações educacionais
que explodiram nos anos sessenta, como a escola sem muros, a escola livre,
e outros experimentos do gênero. Simplesmente desapareceram, tragados
pela inevitabilidade da educação institucionalizada ou foram absorvidos
no próprio interior do sistema educacional convencional por aquelas
frações privilegiadas que viram alguma vantagem em alguns desses ele­
mentos.
Mas essa tradição inueniada - para usar uma expressão de Hóbsbawn
(1985, p. 1) - que é a educação institucionalizada, ou seja, a escola, possui
também outras características mais prosaicas e cotidianas, além dessas
macro-caracerísticas estruturais discutidas acima e que nem por isso são
menos reprodutivas e determinantes daquilo que podemos fazer em seu
interior. Refiro-me aqui a elementos como a arquitetura da escola eda sala
de aula, a definição do espaço e a configuração da sala de aula tal como a
concebemos, a divisão em séries, a administração do tempo através de
períodos, a divisão e classificação do conhecimento pelas diferentes disci­
plinas ematérias, etc. De novo, estamos tão mergulhados nesses elementos,
tomamo-los como tão naturais, que somos praticamente incapazes de vê-
los como apenas uma possibilidade entre tantos outras e também de
perceber quanto aquilo que podemos fazer está conformado e limitado por
essas definições.
E o efeito determinante e limitante desses elementos é tanto mais
eficaz quantoelesfuncionamde forma invisível,istoé,aninguémocorreria
contestá-los porque sua definição é tranquilamente aceita por todos nós. É
aí que está a principal força reprodutiva de elementos estruturais como
esses. É possível resistir a uma determinação de um secretário Ou conselho
de educação para incluir este ou aquele elemento no currículo escolar, por

64 Towmz Tú&u & S:it%


exemplo. A fonte desta determinação é facilmente identificável, sua origem
e emissão nos é contemporânea e podemos identificá-la com uma pessoa
ou grupo de pessoas. Nada disso é possível fazer com um elemento
estrutural, tal como a definição e configuração legítima daquilo que
constitui uma sala de aula, por exemplo, ou uma educação institucionali­
zada, para falar de forma mais geral. Sua origem está num passado
suficientemente remoto para que possamos tê-lo visto "nascendo", não
sabemos como nasceu, nem tampouco podemos vê-lo como tendo sido
determinado por alguma pessoa ou grupo facilmente identificável. Está
simplesmente aí e sempre esteve, faz parte do mundo.
Naturalmente, seria necessário realmente aprofundar a gênese e o
desenvolvimento histórico de elementos como os que listamos acima para
captá-los em toda sua arbitrariedade e historicidade e para, por assim dizer,
atenuar sua força reprodutiva. Não é objetivo deste ensaio fazer isto. Aqui
quis apenas chamar a atenção para o fato de que sua força reprodutiva
reside exatamente no fato de que funcionam como determinações invisí­
veis a deter nossos melhores esforços de transformação. E que se não
compreendermos melhor a história matéria/ da escola (em oposição a uma
história das idéias pedagógicas) estaremos condenados a permanecer pri­
sioneiros das tradições e invenções que nos legaram e, portanto, de sua
dinâmica mais reprodutiva.
Depois desse necessário des vio na história, podemos voltar àquilo quê
de melhor a Sociologia da Educação nos ensinou sobre os aspectos repro­
dutivos do processo escolar. E uma de suas melhores lições está em nos ter
chamado a atenção para os elementos mais invisíveis da situação de ensino,
ou seja, para aquilo que se resolveu chamar de "currículo oculto". Embora
estanoção estejarelacionada a perspectivas específicas dentro do campo da
Sociologia da Educação, podemos dizer que algo aparentado com o espírito
desse conceito está presente em várias das teorizações críticas fundadoras.
É este o caso, por exemplo, de Althusser com sua tese de que a
ideologia tem uma existência material, de que ela está inscrita nas práticas,
nos rituais, que ela não é necessariamente veiculada através de verbaliza­
ções ou do discurso. Ou de Bowles e Gintis, para os quais aquilo que a
escola ensina de forma crucial e mais eficaz é através da vivência de suas
relações sociais hierarquizadas e não através de seus conteúdos explícitos.
Ou mesmo de Bourdieu e Passeron,para os quais a contribuição da escola
para a reprodução consiste na confirmação do Aa&:'tus dominante, isto é da
estrutura interiorizada, e que só pode ser o resultado de uma imersão
profunda e duradoura numa instituição como a família, ou seja, que é
produzido pela piuêncM num determinado contexto.

O que produz e o çue reproduz em educação 65


Enfim, são todos aspectos de uma mesma concepção central: de que
não são apenas nossas idéias e manifestações verbais que são reprodutivas;
também o são, e talvez até de forma mais decisiva, nossos atos, nossas
relações, os rituais a que aderimos e que praticamos, em uma palavra, nossa
prática. Naturalmente, seria necessário fazer um mapeamento de todos
aqueles elementos que podem fazer parte do currículo oculto, para extrair­
mos toda a utilidade de um tal conceito, tarefáque deixo de fazer aqui, por
tê-la desenvolvido em outro capítulo deste livro. De qualquer forma, esta
é uma compreensão que tem importantes implicações para o ensino e o
currículo, uma vez que focalizam exatamente aquelas ações que estão
concretamente no centro de nossa atividade educacional (em contraste com
as estruturas amplas, que apenas abstratamente podem ser concebidas,
embora se traduzam, de certa forma, em elementos intermediadores, tal
como o próprio currículo oculto).
E de novo, a outra face da força reprodutiva de um elemento tal como
ò que se designa por currículo oculto (ou ideologia prática, ou outro nome
que se queira dá-lo) é apossibilidade de desarmar o mecanismo que o toma
operativo e portanto reprodutivo. Como sabemos, a força de um mecanis­
mo como esse está exatamente na sua invisibilidade a "olho nu", se
podemos dizer assim. Constitui uma conquista importante da ciência
social moderna justamente o ter nos mostrado que é na invisibilidade dos
mecanismos de dominação dos sistemas políticos que reside sua eficácia.
Desmontá-los, expor seus aspectos reprodutivos, os interesses que os
mantêm, deveria constituir uma das principais tarefas de uma teoria crítica
da educação e dos educadores envolvidos na construção de uma educação
e de uma sociedade mais justas e igualitárias.
Esta síntese daquilo que reproduz em educação naturalmente não
esgota todas os elementos e possibilidades. Uma revisão da riquíssima
literatura sobre reprodução cultural e social em educação, desenvolvida
nesses últimos anos, certamente apontaria para muitos mais elementos do
que aqueles que brevemente discuti aqui. Não analisei aqui, por exemplo,
o importante papel exercido pela linguagem no processo de reprodução
cultural e social, na análise do qual são importantes os trabalhos de
Bourdieueos de Bernstein,apenas para citar dois dos autores mais centrais
a esse respeito.
Não discuti mais especificamente, para dar um outro exemplo, o papel
do livro didático na conformação do currículo e na produção de consciên­
cia. Creio, entretanto, que os elementos que foram aqui sintetizados são
suficientes para ilustrar a idéia da importância de se focalizar os aspectos
dereprodução cultural e social da educação. Conhecer os mecanismos que

66 Towaz Ta&M <fa Siíua


reproduzem pode não ser condição suficiente para a mudança, mas é
certamente um primeiro passo necessário naqueia direção. Mas se não
quisermos apenas agir reativamente, é necessário conhecer também aque­
les mecanismos e processos que, em educação, diretamente produzem,
mudam e transformam. É para esta tarefa que nos voltamos agora.
O prodMZ em
Não há dúvida: a ênfase da teorização crítica em educação tem sido
colocada nos seus aspectos reprodutivos. Entretanto, mesmo naquelas
teorizações que mais enfatizaram aquilo que, em educação, reproduz, está
ao menos implicitamente colocada a possibilidade de rupturas, contradi­
ções, transformações, enfim, a possibilidade de que existam também
elementos que produzam e não apenas elementos que reproduzam. E
existem mesmo teorizações mais recentes, como a de André Petitat (1982),
ou adePaul Wiliis (1991),por exemplo, que secentram nas potencialidades
de produção da educação.
Contrariamente àquilo que acabou sendo tomado como a tese central
das teorias da reprodução, graças a certas versões simplificadas de segun-
da-mão, nenhuma delas postulou que a educação estava inexoravelmente
e para todo o seinpre condenada a tocar o moinho da reprodução. Nas
teorizações marxistas, por exemplo, esteve sempre presente a possibilidade
da existência de contradições entre elementos diversos da estrutura social
capitalista, a solução da qual traria necessariamente como resultado uma
estrutura diferente, ou seja, uma transformação do estado anterior.
Em Bowles e Gin tis, por exemplo, é central a contradição entre a ênfase
nos aspectos democráticos existente na esfera política e o caráter autoritário
e despótico da produção. De rnódo geral, está colocada nas análises neo-
marxistas uma contradição essencial entre as necessidades de legitimação
e as necessidades de acumulação do capitalismo, processos nos quais a
escola está centralmente implicada. É nas brechas abertas por este tipo de
contradição que existiríam possibilidades de uma intervenção política que
podería fazer a educação e a escola funcionarem de forma contrária aos
interesses do capitaledas classes dominantes (Apple, 1989; Dale, 1988). A
conceptualização dessas contradições e de suas possibilidades transforma-
tivas pode ter sido feita de forma vaga e poucaprecisa, mas ela esteve quase
sempre presente nas formulações das teorias da reprodução.
Mas é naquelas teorizações e pesquisas que se concentraram mais
especificamente sobre as possibilidades produtivas da educação que va­
mos encontrar uma formulação mais precisa desta sua outra face. Citare-

O ÇMg pwdMZ r o ÇMg rrprcíiMZ íw 67


mos aqui dois autores cujos enfoques parecem bastante divergentes, mas
que no entanto ressaltam, cada um à sua maneira, o aspecto produtivo da
educação, a possibilidade que ela apresenta de gerar o novo e não apenas
de repetir o já existente.
É já bastante conhecido no Brasil o importante estudo de Willis (1991)
sobre um grupo de adolescentes britânicos que, terminando a fase obriga­
tória de escolarização, estão prestes a entrar no mundo do trabalho. A
contribuição importante de Willis consiste em ter demonstrado a existência
de umadialéticaimportante entre os aspectos reprodutivos eos produtivos
existentes no campo da educação e da escola. Willis mostrou, através de
uma cuidadosa etnografia, a existência de uma região autônoma de criação
e produção cultural, pela qual esses jovens manipulavam os materiais
culturais existentes, dando-lhes seus próprios significados, de forma autô­
noma e criativa.
Nessa teorização, Willis desenvolve a idéia de que as pessoas não
recebem simplesmente os materiais simbólicos e culturais tais como são
transmitidos. Existe um espaço cultural no qual elementos e materiais
simbólicos são transformados, reelaborados e traduzidos de acordo com
parâmetros que pertencem ao próprio nível cultural das pessoas envolvi­
das. Não existe nunca reprodução pura. É verdade - e aqüi entra a dialética
entre produção ereprodução -que, ironicamente, ao final, era essa autono­
mia e independência em relação aos valores e ao conhecimento escolar que
acabava por levá-los ao trabalho manual Ponto para a reprodução!
Mas a possibilidade e a potencialidade da ruptura e da lucidez com
relação aos arranjos sociais existentes estão, não obstante, presentes e
poderíam ser usados para fins mais politicamente subversivos. É verdade
também que não são processos produzidos pela educação, mas etwreação à
educação. São processos, no entanto, produzidos na educação, na escola,
isto é, no interior dos arranjos proporcionados pela moderna educação
institucionalizada.
Quem certamente demonstrou mais cabalmente que a educação é, ao
mesmo tempo, produção e reprodução foi André P etitat. Em seu importan­
te livro Produção da escola - produção da socieãade (ver também Pedtat, 1989),
através de uma minuciosa pesquisa histórica, analisando o estabelecimen­
to dos colégios no século XVI, Petitat mostra como a educação serviu
historicamente para a "emergência de estruturas e grupos sòciais", neste
caso, da classe burguesa. Isto é, nesta perspectiva,a escola não serve apenas
como um "instrumento de corpos pré-estabelecidos"; historicamente, ela
serviu também para constituir e legitimar certos grupos sociais antes
relegados.

63 7c??MZ Tadea da Silua


É certo que falta à análise de Petitat examinar as possibilidades pelas
quais a escola Ao/g podería apresentar essa possibilidade. Uma coisa é
demonstrar que a escola historicamente a cultura e os valores de
um determinado grupo, como a burguesia no século XVI. Outra, muito
diferente, é demonstrar que a escola tal como está hoje constituída pode
ainda ser capaz dessa proeza. De qualquer forma, é importante a luz
lançada pelo tipo de perspectiva histórica adotada por Petitat.
/ Pois, certamente, uma das mais sérias deficiências das teorias da
reprodução em educação consiste em sua perspectiva essencialmente
diacrônica, isto é, no terem analiticamente realizado um corte temporal na
dinâmica social, focalizando-a portanto estaticamente. Elas fazem como
que um retrato instantâneo da realidade, sendo portanto incapazes de
verem a dinâmica social em movimento, operação somente tomada possí­
vel com uma perspectiva histórica de longa duração. As estruturas se
modificam para dar lugar a outras, mas este movimento só é visível se
examinamos a história num período suficientemente longo. E não estou
falando de revoluções, necessariamente pontuais, mas elas mesmas produ­
tos finais de minúsculas e cumulativas mutações imperceptíveis no olhar
dacurta duração. A adoção de uma perspectiva histórica, como a feita por
Petitat, por exemplo, certamente permitiría acrescentarmos mais elemen­
tos produtivos e transformativos à contribuição da educação para a dinâ­
mica social.
Não poderiamos esquecer, com respeito às possibilidades produtivas
da educação, da importante contribuição de Foucault (1977). Lembremos
qué Foucault, ao documentar o nascimento dos dispositivos disciplinares,
entre os quais está a escola, em Vigiar g Punir ressalta não seu aspecto
negativo, de repressão,mas justamente seu aspecto positivo, de pro<ÍM{#ode
certos efeitos desejados, tais como corpos dóceis e disciplinados. Isto é, as
disciplinas não são dispositivos que proíbem, negam, reprimem compor­
tamentos indesejáveis, mas mecanismos planejados para permitir a produ­
ção de certos resultados visados, necessários para a instauração de uma
nova ordem e de novas relações sociais.
De novo, não podemos negar que, também neste caso, a produção está
a serviço da dominação e, portanto, embora constitua uma ruptura com
relações sociais anteriores, ela é reprodutiva num sentido mais amplo. Mas
também de novo, o fato de que se apresente a possibilidade da produção
também indica que esta possibilidade podería ser usada para produzir
outros resultados e não esses. Vislumbramos aí uma brecha pela qual a
potencialidade produtiva da educação poderia ser usada para outros
propósitos que não os da dominação, da submissão e da desigualdade. Isto

O <?Hg proíÍMZ g o <yug rgprodMZ g?n educação 69


mostra que uma boa teoria política - e uma boa ação política - deve ter
também uma teoria da produção e não apenas da reprodução.
Finalmente, nesta breve síntese das possibilidades produtivas da
educação, não podemos deixar de lado seu aspecto de produção de
conhecimento. Este talvez seja um dos aspectos menos analisados no
âmbito de uma teoria crítica da educação, como tentei demonstrar noutro
capítulo deste livro. Estamos acostumados a ver as instituições educacio­
nais como apenas transmitindo conhecimento, produzindo através desse
processo subjetividades apropriadas. O que tem sido menos examinado é
a conexão que existe entre a produção de conhecimento novo, a pesquisa^
e a manutenção de relações de poder na sociedade - e o papel da educação
nesse processo. O conhecimento e a pesquisa constituem elementos impor­
tantes de composição do capital, envolvendo, portanto, profundos interes­
ses.
Mas será talvez nesse processo, nessa conexão, em que os aspectos
produtivos e reprodutivos estejam mais indissoluvelmente ligados. Como
nos mostrou admiravelmente Foucault, o conhecimento produz principal­
mente poder, é verdade, mas também o seu inverso, resistência e contesta­
ção. A compreensão dessa conexão entre conhecimento e poder, juntamen­
te com tudo aquilo que nos ensinou a melhor sociologia da educação sobre
a constituição do conhecimento escolar, pode nos levar à formulação de
propostas educacionais que utilizem justamente este potencial produtivo,
transíormativo, do conhecimento, para propósitos subversivos e de forta­
lecimento com relação aos poderes estabelecidos.
Produção/Reprodução e Teoria Crftica da Edacação
Como procurei demonstrar, a tensão entre produção e reprodução está
presente na dinâmica social e íam&ém na teorização que procura analisar a
educação de uma perspectiva crítica. Podemos dizer que nisto, precisa­
mente, consiste a tarefa de uma teoria crítica da educação: a de desenvolver
uma teoria da reprodução e da produção em educação. Certamente é nisto
que ela tem-se concentrado e é no refinamento de um referencial analítico
que lhe permita avançar nessa direção que está um programa de pesquisa
para os próximos anos.
Uma teoria crítica deve estar sempre atenta para as conexões entre
teoria e prática. Mesmo quando somos rigorosamente analíticos, não
estamos fazendo teoria puramente desinteressada. Queremos conhecer os
mecanismos que movimentam a dinâmica social para poder, de alguma
forma, manipular pelos menos alguns desses mecanismos. É por isto que

70 Tomaz Ta&a & Stiua


não estamos interessados apenas naquilo que mantém uma sociedade no
seu lugar, naquilo que faz com que a estrutura de amanhã seja a mesma de
hoje, na reprodução, enfim. Queremos também saber quais processos e
ações podem fazer com que haja rupturas, mudanças e movimento, produ­
zindo assim estruturas novas e situações e posições modificadas.
Uma teorização crítica em educação, enfim, deve ser capaz de teorizar
sobre a reprodução e a mudança, a manutenção das estruturas e a possibi­
lidade de modificá-las, sobre o estático e o dinâmico, se é que ela tem
alguma pretensão de iluminar nossa prática e nossa ação. Sem uma teoria
da reprodução, estaremos cegos, agindo de forma errática, e inconscientes
sobre o que determina nossas ações. Sem uma teoria da produção, estare­
mos incapacitados, ignorantes de nosso papel numa dinâmica social que
estará se movimentando, produzindo ou reproduzindo, de qualquer for­
ma. É no cruzamento de ambas que reside a promessa de uma teoria crítica
em educação que não nos torne nem prisioneiros da ideologia da livre
determinação, nem amarrados pela camisa-de-força daidéia de que somos
apenas e inexoravelmente portadores das estruturas.

O que produz o o que reproduz em educação 71


No recôndito da caixa-preta:
o conhecimento escolar
4
Currículo, conhecimento e democracia:
As lições e as dúvidas de duas décadas

Após vinte anos de intenso debate e profundas críticas, o que realmente


sabemos sobre construção, seleção, organização,representaçãoe distribuição
do conhecimento em educação? A resposta a esta questão exige uma breve
consideração a respeito da situação da área de estudos de currículo no
Brasil. Durante alguns anos absorvemos e consumimos de forma
constrangedoramente acrítica* as formulações americanas sobre currículo
(representadas pelo modelo de Tyler), mas presunçosamente ignoramos os
desenvolvimentos posteriores. A importante corrente iniciada por Michael
Young na Inglaterra, e que ficou conhecida como nova sociologia da
educação (centradaemquestões deorganizaçãoe seleção de conhecimento),
por exemplo, permanece até hoje quase desconhecida no Brasil, para não
falar das reações e reformulações que a ela se seguiram. Perdemos até
mesmo a continuidade dos debates e críticas que se sucederam ao predomínio
inicial de uma contribuição que aquirepercutiu intensamente, as chamadas
teorias da reprodução em educação (Althusser, Bourdieu e Passeron),
incompreensível e precocemente relegadas ao limbo das teorias inúteis e
ultrapassadas.
E quando retomamos o contato com essa literatura, ele é de novo
realizado de forma mimética e acrítica, como acontece, por exemplo, com
o conceito de resistência. Mas dizer isso tudo não significa desvalorizar ou
ignorar os desenvolvimentos aqui ocorridos. Eles foram e são importantes,
mas raramente estiveram explicitamente centrados em questões de currí­
culo, com as importantes exceções das elaborações de Paulo Freire e das
discutíveis contribuições da chamada pedagogia dos conteúdos. Mas o que
nos interessa aqui é discutir qual a situação hoje de uma teoria crítica do
currículo e quais suas contribuições para a análise dos atuais processos de

O (?ue produz e o que reproduz em educação 75


criação e transmissão de conhecimento escolar e para uma prática que
tenha como objetivo transformar os arranjos existentes.
Apesar do pouco prestígio da área de currículo dentro do campo
intelectual mais amplo da educação, a maior parte das questões educacio­
nais pode ser traduzida numa discussão sobre criação, seleção e organiza­
ção do conhecimento escolar, isto é, sobre currículo, o mesmo podendo-se
dizer sobre a maior parte dos conflitos concretos em torno da organização
do sistema escolar. No fundo, o que se discute sempre são questões
relacionadas ao conteúdo e à forma do currículo escolar, mesmo quando a
discussão parece estar muito distante dessa esfera de preocupações, quan­
do se trata, por exemplo, do papel do estado na educação. É importante por
isso, ao menos por uma vez, tratar explicitamente de questões de currículo.
É para isso que nos voltamos agora.
CMttfcwlo e Democracia
Quais os temas e as questões centrais de uma área de estudo chamada
currículo no Brasil atual? Após vinte anos de debates, críticas, reformula­
ções, reorganizações de áreas e de campos dentro do pensamento educaci­
onal, em que ponto estamos no que se refere à criação, organização, seleção
e transmissão de conhecimento escolar? E naquilo que mais nos interessa
neste capítulo, quais ênfases devem ser dadas por uma área de estudo
chamada currículo, na construção de uma sociedade democrática, justa,
igualitária? O que realmente aprendemos nesses vintes anos de crítica
sobre o processo de criação, seleção e transmissão de conhecimento? Essas
são algumas das questões que pretendo discutir neste trabalho.
Começando com as primeiras críticas dos teóricos da reprodução
(Althusser, Bourdieu e Passerort, Bowles e Gintis, Baudelot e Establet) no
final dos anos sessenta^ início dos anos setenta, passando pela nova
sociologia da educação (Young), por todas às críticas e reformulações que
se lhes seguiram, por Paulo Freire e tóda a crítica à política educacional dos
governos militares, e terminando com as atuais preocupações com as
chamadas teorias da resistência e com as referências ao pós-modemismo
e ao pós-estruturalismo, o que realmente sabemos sobre os vínculos entre
currículo e democracia, entre transmissão e seleção de conhecimento e
construção de üma sociedade mais justa eigualitária? O que caracterizaria
uma visão progressista e socialista em questões de currículo?
Como se sabe, a visão convencional sobre os vínculos entre educação
e democracia tem sido construída com base na ênfase sobre o acesso ao
sistema escolar e permanência e êxito no mesmo. No Brasil esta é uma

76 TowMZ Ta&M& Siiua


tradição que começa com os Pioneiros e a Escola Nova e tem sido a principal
bandeira educacional de grupos progressistas desde então. Esta preocupa­
ção refletia-se tanto nas reivindicações relativas à política educacional
quanto nos temas predominantes na pesquisa educacional.*-As relações
entre acesso, permanência e êxito no sistema escolar, por um*lado, e
variáveis ligadas à classe social, por outro, constituíram-se durante muito
tempo na preocupação central não só da sociologia da educação, mas da
pesquisa educacional em geral. Não era esta a principal ênfase de um dos
livros que abre a crítica à política educacional do regime militar, o Educação
g DgsgHPoiuÚHCMto Social no Brasil, de L. A. Cunha (1975)7^j
Por detrás dessa ênfase estavam vários pressupostos do credo social
liberal e da tradição iluminista relativamente à educação. Nessa perspec­
tiva, a educação escolar generalizada contribuiría para a construção de uma
sociedade democrática tanto pelo poder modernizante, desmistificador e
racionalista de seu conteúdo, quanto pela sua capacidade de aplainar e
nivelar diferenças sociais recebidas. Isto é, em primeiro lugar, a educação
escolar amplamente distribuída contribuiría para formar consciências não
apenas compatíveis com o modo democrático de organização social, mas
também capazes de construi-lo e reforçá-lo. Em segundo lugar, a distribui­
ção igualitária de educação escolar numa sociedade baseada no mérito e na
valorização das credenciais educacionais servida para compensar desvan­
tagens sociais devidas ao nascimento.
Não se pode dizer que esses ideais tenham sido sequer minimamente
realizados. No Brasil não chegamos nemmesmo arealizar oprimeiro termo
da equação, o acesso e a permanência. Nos países centrais do capitalismo
não se pode dizer que a realização do primeiro termo da equação tenha
contribuído para efetivar o segundo. Mas embora esses ideais continuem
presentes nos discursos e propostas do imaginário educacional em geral e
ainda possam ser considerados uma bandeira progressista, há muito
perdemos a inocência e a ingenuidade com relação aos seus principais
pressupostos.
A perspectiva que se inaugura com as críticas das teorias da reprodu­
ção e da nova sociologia da educação, em outros países, e com as idéias de
Paulo Freire, no Brasil, e tem sequência com as reformulações posteriores^
coloca sob suspeita a maioria desses pressupostos. Essa crítica começa por
atacar pela base o edifício ideológico construído pela tradição liberal em
educação, ao denunciar a iatrogenia do tratamento prescrito. Ela descobria
que a escola estava implicadana produção de algumas daquelas mesmas
coisas que supostamente deveria evitar como, por exemplo, o fracasso
escolar e a conseqüente permanência no mesmo nível da hierarquia social,

O <?ue prodaz e o <yue reproduz e?n educação 77


ao invés da prometida mobilidade, ou a fabricação de trabalhadores dóceis
e conformistas, ao invés de cidadãos conscientes e participantes. Prescrever
mais educação escolar sem examinar o seu conteúdo e mapear cuidadosa­
mente seus possíveis efeitos perniciosos significava reforçar, ao invés de
eliminar, as manifestações tidas como indesejáveis. Em outras palavras, a
educação não contribuía, como se pensava, para eliminar divisões e
injustiças sociais. Ela servia, ao contrário, para reforçá-las e reproduzi-las.
De forma radicalmente diferente da visão liberal em educação e da
antiga sociologia da educação, aqui se questionava a própria substância da
educação escolar. De uma forma ou de outra, o conteúdo da educação
escolar, o currículo declarado ou o currículo implícito, o conhecimento
oficialmente transmitido e as atitudes explicitamente cultivadas ou o
conhecimento subjacente e as virtudes ocultamente inculcadas, tudoisto se
tornava agora problemático e problemãtizável.
São as descobertas acumuladas por esses anos todos de pesquisa e
teorização que constituem hoje o núcleo de nosso conhecimento sobre o
funcionamento da escola e, particularmente, do processo de criação, sele­
ção, organização e transmissão do conhecimento escolar. É verdade que
ainda restam muitas dúvidas e questões. Mas antes de fazer um exame das
incertezas, passemos em revista algumas das principais lições das críticas
da educação escolar, com ênfase especial sobre questões de currículo. A
próxima seção está organizada em torno de proposições que sintetizam
algumas das questões centrais abordadas nos últimos anos pelas teorias
críticas daeducação. A cada proposição se segue um breve comentário, que
estende e contextualiza de alguma forma aquilo que nela está contido.
As Lições
O processo & criação, seleção, organização e ífisiribaição & conlzecimento escolar
está esireifamenie reiacionaão com os processos sociais mais ampios de acamnlação
e legitimação da sociedade capitalista.
Ao contrário do pensamento convencional sobre currículo, as teorias
críticas enfatizaram desde o começo as estreitas ligações do processo de
criação, seleção e organização dos currículos escolares com a dinâmica de
produção e reprodução da sociedade capitalista. Apesar das qualificações
e refinamentos posteriores, o núcleo dessa descoberta permanece como o
ponto forte das análises críticas da educação.
Nessa perspectiva, o pressuposto do caráter necessariamente benigno
de todo conhecimento, que está por detrás das concepções educacionais

7% Tomaz Ladea da Silva


que se preocupam tão-somente com os aspectos técnicos de organização e
seleção curricular (centrados em questões relativas ao "como", ao invés de
em questões relativas ao "por que") é rejeitadoem favor de uma análise qúe
vincula conhecimento e currículo com controle e poder. Para isto foi
necessário abandonar as visões idealistas dominantes no campo educaci­
onal, para desenvolver uma análise firmemente enraizada nas caracterís­
ticas centrais da dinâmica de produção e reprodução da sociedade capita­
lista.
De forma sintética, pode-se dizer que o modo dominante de educação,
o escolar, está implicado, quanto ao que aqui nos interessa, nos processos
de legitimação, acumulação, e produção dé conhecimento técnico, neces­
sários para o funcionamento adequado da sociedade capitalista (Apple,
1989) . A educação institucionalizada contribui para esses processos: (l)ao
transmitir conceitos e visões que induzem à aceitação do modo presente de
organização econômica e social (processo de legitimação); (2)ao produzir
pessoas com as características cognitivas e atitudinais apropriadas ao
processo de trabalho capitalista (processo de acumulação) e (3)ao estar
envolvida no processo de produção do conhecimento científico e técnico
necessário para a contínua transformação do processo de produção capita­
lista.
Naturalmente, como vários analistas críticos enfatizaram ao longo
desse período, esses não são processos cujos resultados sejam garantidos.
Ao contrário, eles próprios estão sujeitos às contradições e conflitos envol­
vendo os grupos e classes em jogo. Mas descrevem, não obstante, tendên­
cias que, se ignoradas, apenas tenderiam a ser efetivamente realizadas e a
sereforçarem. A escola e o currículo não garantem a reprodução social, mas
estão, não obstante, implicados de várias formas nesse processo. A comple­
ta compreensão dà dinâmica aí envolvida deveria impedir qualquer retor­
no áo estado de inocência anterior em questões de currículo.
Afídio í?MC é de/iÍHtdo como sendo conbec:menio escolar consíiíMí uma seleção
parflcííiar e arbitrária áe um nniuerso mulfo mais amplo de possibilidades.
Esta é uma das principais lições do movimento de crítica em educação e
comum a várias das teorizações. Foi a nova sociologia da educação que
talvez mais enfatizou essa afirmação, fazendo inclusive dela seu tema
central, mas de uma forma ou de outra ela esteve presente em vários dos
desenvolvimentos teóricos e de pesquisa desse período. O importante e
influente trabalho dé Bourdieu, por exemplo, pode ser lido sob essa
perspectiva. Aí o co ihecimento transmitido através das instituições edu-

O ífíve produz e o que r<produz cm educação 79


cacionais é visto como uma seleção arbitrária de um quadro cultural
particular, apenas tornada possível por uma relação assimétrica entre as
diferentes classes. Por outras vias, nisso está a força de boa parte das lições
de Paulo Freire, ao proclamar a parcialidade ideológica de toda ação
educacional.
Ao contrário do que nos faz crer a visão liberal, nem o conhecimento
em geral, nem o conhecimento escolar, constituem absolutos, produtos de
um processo incessante e desinteressado de busca da verdade. Como nos
mostrou Foucault, conhecimento e poder estão estreitamente entrelaçados.
A importância dessa constatação adquire mais força com relação ao currí­
culo escolar, esfera privilegiada de circulação e transmissão de conheci­
mento. Aqui estáplenamente emaçãoaquilo que Raymond Williams (1965,
p.67) chamou de a tradição seletiva, que vai ao longo do tempo cristalizan­
do como alternativa única aquilo que não passava, no início, de uma
seleção particular e arbitrária de um universo muito mais amplo de
possibilidades.
Nesse processo de tradição seletiva as relações assimétricas entre
classes e grupos conflitantes atuam para valorizar um determinado tipo de
conhecimento e desvalorizar o de outros, para incluir ás tradições culturais
dos grupos e classes dominantes entre os tipos de conhecimento dignos e
válidos de serem transmitidos e para excluir as tradições culturais de
classes e grupos subordinados. A definição daquilo que é considerado
como sendo o conhecimento, e particularmente, como sendo o conheci­
mento escolar, nunca é um ato desinteressado e imparcial. É sempre o
resultado de lutas e conflitos entre definições alternativas, em que uma
delas conseguiu se impor.
O que ainda não sabemos é como fazer esse processo funcionar de
modo inverso, isto é, de modo a incluir outras tradições no currículo
escolar.
O poder socMÍízaífor da escola ndo deve ser baseado ído-somente na<pn!o <?ae é
o/tcia!meníe prociatMaílo como sendo seu cMrríctdo explícito, mas íam&ém (e talvez
principalmente) no cMrrícnlo ocnlfo expresso pelas práticas e experiências %ae ela
propicia.
Esta talvez seja a segunda mais importante lição das teorias críticas em
educação. Nisso reside um dos méritos de Althusser, mesmo que se possa
criticá-lo por outras razões, o de nos ter chamado a atenção para a força
ideológica das práticas em geral e das práticas escolares em particular.
Num campo Onde as idéias e sua manifestação verbal são tão valorizadas,

30 Towiaz Tadea da Silva


como é o campo educacional, é necessário sublinhar com muita ênfase o
poder que tem a ideologia inscrita nas práticas e nos rituais escolares para
moldar e fabricar consciências. Mas essa importância da experiência, em
contraste com a importância da ideologia transmitida através da lingua­
gem, foi destacada por mais de um crítico educacional.(Bowles e Gintis
(1976), por exemplo, chegaram até mesmo a desconsiderar aquilo que se
toma tradicionalmente como sendo o currículo escolar, sua parte cognitiva,
na produção de personalidades devidamente adaptadas às condições do
trabalho capitalista, colocando toda a carga na aprendizagem das atitudes
apropriadas ao trabalho através da vivência de relações similares propici­
adas pelo currículo oculto na escola^vlesmo Bourdieu, com toda a ênfase
colocada na linguagem, não deixa de sublinhar a importância das práticas,
através de seu conhecido conceito de habitus.
A importância da estruturação das experiências escolares no processo
de socialização escolar foi destacada mesmo por uma corrente tão oposta
às teorias que aqui estamos considerando, como é a sociologia funcionalis-
ta norte-americana. Dreeben (1968), em seu importante Wiiat is /earned in
scftooí, analisava como certas características estruturais da escola propici­
avam certos tipos de experiências que estavam ausentes em outros contex­
tos sociais, como a família, por exemplo. Essas características estruturais,
como o tamanho e a homogeneidade da classe escolar, facilitariam o
desenvolvimento de certas atitudes, tidas como necessárias para a convi­
vência numa sociedade democrática, tais como universalismo e especifici­
dade, por exemplo.
É talvez essa propriedade do currículo escolar, sua materialidade, que
constitui uma das razões pelas quais a escola não pode ser substituída pelos
meios de comunicação de massa como a televisão. Apesar de toda sua
proclamada força, a televisão não propicia .experiências, vivências, práti-
:as. Embora ela também possa ter seu próprio curríc ulo oculto (inscrito, por
exemplo, no formato dos noticiários, que leva as pessoas a conceberem a
realidade de forma fragmentada e não relacionada), ele não é constituído
de elementos embutidos em práticas, pela simples razão de que ela não
propicia nenhuma forma ativa de engajamento.
Mas a efetiva compreensão e alcance dessa descoberta das teorias
críticas não têm correspondido à sua importância e à sua potencialidade
analítica. Quando passamos da crítica à formulação e planejamento de
currículos alternativos não damos a devida consideração aos possíveis
elementos de currículo oculto que podem estar inscritos nas práticas
correspondentes e que podem mesmo estar em contradição com as inten­
ções explícitas. E o que é talvez ainda mais sério: não concebemos ainda

Q produz e o que reproduz em educação dl


nenhuma maneira de fazer o currícuio oculto funcionar em favor de
objetivos mais democráticos e igualitários.
O poí&r & sccM%2Mp&7 ác CMrrfcKlo ser sMpereshWMífo. Boa parte
íig seus e/èifos pode residir, ao inoés disso, na saa capacidade de de/inir identidades
peio simpies^âto do poder ^ae a escoia tem de, iegitintanzenfe, a/irar aw determi­
nado rótaio decerti^capdo na^aeies <jae eia consagra.Ma mesma iiniza deraciocfnio,
a escoia estd impiicada na reprodaçdo da dioisdo sociai do trabailto (entre manaai
e inteiectaai) ndo somente atraoés da socM/izapJo direta para am dos páios dessa
diuisdo, mas tamMm por^ae ajada a reprodazir a de/ini^do dessa dioisdo em oirtade
de saa simpies existência.
Boa parte dos efeitos socializadores da escola não. pode ser atribuída ao
contato direto dos estudantes com elementos quer do currículo explícito
quer do currículo oculto. A própria existência da instituição escolar,
estatalmente controlada e regulamentada e socialmente reconhecida, im­
plica na construção e definição de certas categorias sociais. Essa definição,
por sua vez, atribui às pessoas alocadas a essas categorias certas caracterís­
ticas que elas passam a viver, independentemente de qualquer processo
direto de inculcação e socialização.
Num primeiro nível está, por exemplo, a categoria de estudante.
Independentemente daquilo que lhe foi ensinado ou aprendeu, um estu­
dante pensa e age como um estudante deve pensar e agir. É como se a
definição da categoria carregasse consigo a pessoa assim categorizada.
Funcionam da mesma forma as subcategorizações da categoria estudante,
isto é, os portadores dos diversos níveis ou diplomas escolares carregam
consigo as propriedades atribuídas a esses diversos níveis ou diplomas.
Num segundo e mais alto nível, temos a instituição escolar envolvida
na categorização mais importante da sociedade capitalista, aquela da
divisão social do trabalho. Naturalmente, as raízes dessa divisão estão na
própria organização material da produção, mas a própria existência da
escola e seu poder de distribuir as pessoas pelos diferentes pólos dessa
divisão fazem parte essencial de sua definição (Poulantzas, 1978). É óbvio
que não é necessário ter passado pela escola para se ficar definido por essa
categorização. É uma definição tão forte que ultrapassa as próprias frontei­
ras da divisão do trabalho, afetando a própria definição de cidadania, como
pode ser comprovado pelas reservas feitas ao fato de um operário metalúr­
gico se candidatar a presidente do país.
Essas verificações nos alertam quanto ao otimismo de se efetuar
quaisquer transformações através de intervenções curriculares sem que ao

82 towMZ Ta&u Ja S%ua


mesmo tempo se busquem formas de se quebrar a estrei ta correspondência
entre a divisão social do trabalho e as divisões efetuadas pela instituição
escolar. Essas formas ainda estão por ser inventadas, mas sem elas nossos
esforços demudanças em ou tras áreas podem serevelar totalmenteinúteis.
E importante, portanto, estarmos atentos para aquilo que um sociólogo
americanoque nãopertence ao universo que estamos revisando chamou de
"efeitos da escola como uma instituição" (Meyer, 1991).
O gscoiar é &/orna? ^ acordo cow as dz/cronfos
ciasses e grapos sociais.
Diferentemente das visões tradicionais, que constatavam, no máximo, um
acesso desigual aos bens escolares, o que as pesquisas e teorias críticas
passam a afirmar éque, sob um mesmo rótulo, a escola oferece um produ to
diferente aos diferentes grupos e classes sociais. Essa constatação vai além
das antigas denúncias das profundas e visíveis divisões do aparelho
educacional (entre ensino clássico e ensino técnico, por exemplo). Na
maioria dos países, sucessivas reformas extinguiram ou vão extinguindo
essas óbvias divisões e nominalmen te se oferta agora a todos os estudantes
um mesmo ensino. Na verdade, as diferenças se tornam mais sutis; sendo
transferidas para o interior do aparelho escolar.
Essas diferenças podem se manifestar já na relação de itens a serem
transmitidos, ou seja, no currículo oficial, dependendo da localização da
escoia, da dependência administrativa, etc. Mas de forma aindamais sutil,
ela usualmente se manifesta através das modificações que se efetuam no
currículo oficial por força de condições locais diferentes, que variam de
acordo com a classe social dos grupos atendidos. Como são produzidas ao
nível da escofá, através de complexas mediações e não determinadas por
um Escritório Central Encarregado da Reprodução Social Através da
Escola, elas são mais difíceis de serem detectadas.
Amais evidente dessas condiçõesédada pela diferença entre escolas
públicas e escolas particulares. Mas mesmo no interior das escolas públicas
há outros fatoreS que determinam uma diferenciação interna de acordo
com a classe social dos grupos que as freqüentam. A própria percepção que
têm os professores das diferentes classes sociais e de suas chances educa­
cionais e de vida é um desses fatores, dentre outros. De qualquer forma, o
resultado final é uma nítida desigualdade no tipo de produto educacional
distribuído às diferentes classes.
Mas a maior ênfase da literatura crítica reiativamente a essa injusta
distribuição não está na transmissão de conhecimento propriamente dito,

O produz r o reproduz em edHcação &3


mas naincuicação dediíerentes atitudes e características de personahdade,
isto é, na distribuição de um currículo oculto diferenciado, de acordo com
a classe social. Assim, os grupos subordinados seriam treinados, através
desses elementos do currículo oculto, das devidas práticas escolares, para
ocuparem as posições subordinadas na organização produtiva e política da
sociedade, enquanto os estudantes dos grupos dominantes seriam sociali­
zados por esse meio a ocuparem sua posição no pólo intelectual da divisão
social do trabalho. Estamos no nível máximo de sutileza.
Unt corolário disso é que se deve reivindicar uma equalização na
distribuição do currículo escolar, o que soa como uma reivindicação da
perspectiva que colocamos sob suspeita noinício deste trabalho. A diferen­
ça é que não se postula aqui que uma distribuição igualitária seja um meio
para a justiça social ou para a transformação da sociedade. A igualdade na
distribuição dos bens educacionais é, nesta perspectiva, um elemento de
justiça social por si só, no mesmo sentido em que o é, por exemplo, a
distribuição igualitária de atendimento de saúde.
A ífe/tHÍçáo social cristalizada da<?MÜo conslilucrnJbrwms íegíhMias de escola,
sala deanla, etc., e a estreita regulamentando estatal dos modos de edacaçdo limitam,
coH/bnnawi e determinam as possíoeis transformações dos arranjos educacionais
existentes, parítCMÍanneníc os referentes a currículo.

Contrastando com o idealismo do pensamento educacional tradicional ou


com o Utilitarismo da visão liberal de tendência mais tecnocrática, a
tendência crítica que estamos revisando ancora sua análise num exame
detalhado das relações entre a estrutura e o funcionamento da instituição
escolar, e a estrutura e o funcionamento das organizações econômicas e
políticas. Nem a escola, nem o currículo, existem livremente, modificáveis
segundo a vontade de educadores e professores, ou de qualquer outro
grupo. O modo educacional na sociedade moderna está rigida e detalhada­
mente controlado e regulamentado pelo Estado. Como tal, ele está organi­
zado como uma burocracia (não no sentido popular e depreciativo, mas no
sentido weberiano), segundo regras e normas cuidadosamente especifica­
das. ' . _
Esse controle e regulamentação estatal se misturam com as definições
há muito cristalizadas no senso comum daquilo que significam, por
exemplo, escola e sala de aula, pára tornar quaisquer modificações muito
difíceis de serem realizadas. Há uma definição cristalizada (nos regula­
mentos e na imaginação popular) de um formato chamado escola, com
especificações muito estreitas com respeito à organização do espaço, à

84 Tomaz 7a&M & Síína


organização do tempo, à organização das categorias escolares, etc. Falar em
escola significa falar no espaço organizado de uma determinada maneira,
no tempo organizado segundo anos letivos, os alunos categorizados por
séries, etc. O mesmo pode-se dizer de qualquer outro elemento dentro da
escola, sobre a sala de aula, por exemplo,a própria definição de sala de aula
fazendo parte da definição de escola.
Essas regulamentações e definições tornam extremamente difícil
efetuar quaisquer modificações. Por um lado, a lei e a tradição não
permitem que se mexa nessas definições, nesse formato tradicional. Por
outro lado, as modificações que se podem fazer sem mexer nisso, são
superficiais e mesmo assim sujeitas ao fracasso por carregarem o peso da
determinação daquelas definições.
Obviamente, o currículo é um desses elementos mais sujeitos não
somente às definições consensuais e às regulamentações estatais, mas
também ao peso de suas determinações.
Exatamente como nenltum carrícMÍo é centraimente responsáuei pelo processo de
reprodução social, Mentam currículo uai garantir a írans/brmação social.

Embora a ênfase inicial de boa parte das teorizações a respeito das relações
entre escola e sociedade estivesse colocada nos aspectos reprodutivos da
educação escolar, uma leitura mais atenta, sobretudo daquelas de orienta­
ção marxista, mostraria que isso não passava de um recurso retórico para
chamar a atenção para aspectos até então descuidados daquelas relações.
Na verdade, o centro do processo de reprodução social era colocado onde
devia estar: na reprodução das próprias condições materiais de funciona­
mento do modo capitalista de produção. Para citar apenas um exemplo, é
assim que se* pode ler o famoso ensaio de Althusser(1983), ideoiogút e
Apareiltos ideológicos de Estado. Na seção Sobre a Reprodução das Relações
de Produção, ele diz no texto principal:
Como éassegurada a reprodução das relações deprodução ?Na linguagem meta/orica
do tópico fln/ra-estrutura, Superestruturaj diremos; eia é, emgrande parte, assegu­
rada pela superestrutura jnrídico-poiítira e ideológica Mititasser, 1933, p. 731.
Mas a nota de rodapé correspondente a essa passagem diz:
Em grande parte. Pois as relações de produção são antes de mais nada reproduzidas
pela materialidade do processo de produção e do processo de circulação Ó4!t%nsser,
19113, p. 731.

O çue produz e o çue reproduz em educação 35


Seria mais iógico que esta nota constituísse o texto principal e todo o
ensaio não passasse de uma nota de rodapé aposta a esse pequeno trecho.
Isto daria ensejo a uma outra leitura, bastante diferente daquela que
comumente se faz desse pequeno ensaio.
Mas o importante a reter, neste momento, é que mesmo que a ênfase
inicial tivesse sido no papel centralmente reprodutivo da escola, as refor­
mulações ematizações posteriores se esforçaram em abrandá-laequalificá-
la. O que sabemos hoje é que a escola cumpre sua função no processo de
acumulação e legitimação do modo de produção capitalista, mas está longe
de ser seu motor central.Por um raciocínio inverso, isto faz com que a escola
não tenha também o poder de transformar aquilo pelo qual ela não é
centralmente responsável. Mesmo que as escolas se tornassem hoje, repen­
tinamente, da noite para o dia, aquele lugar democrático que todos quere­
mos que ela sejam, isto pouco afetaria a estrutura do modo capitalista de
organização.
Obviamente, tudo isto vale para esse elemento central da organização
escolar que é o currículo. Não podemos achar que podemos transformar a
sociedade através de mudanças curriculares. O currículo não pode ser
pensado como uma alavanca de mudanças.
Mas isto não significa adotar uma atitude derrotista e imobilista.
Verificar que um elemento social, como a escola, ou o currículo, não é o
motor da história, não implica em renunciar amelhorá-lo. Tornar aprópria
escola um ambiente mais democrático e igualitário é um objetivo tão
legítimo quanto o de usá-la como instrumento de transformação da socie­
dade. E de certa forma, melhorar a escola e o currículo já significa, por si só,
transformar a sociedade. Não renunciaríamos a trabalhar por melhores
condições de saúde, por exemplo, porque isto não levaria a uma derrubada
do modo capitalista de organização.
NSo é possível entender o currícnlo e/eíivameníe em ação sem compreender a^Milo
qne acontece qnando o cnrrícnlo pretendido interage com as condições presentes na
escola e na sala de anla.

Umadas mais importantes contribuições para a compreensão daquilo que


realmente acontece dentro das salas de aula, isto é, para a compreensão do
[currículo real, tem sido dada pelas pesquisas e teorizações dosinteracionis-
ijtas simbólicos-e doS-SQcioiógicos fenomenologistas. Seu postulado meto­
dológico básico de não tomar comõdãdó aquilo que está na superfície dos
fenômenos e de prestar atenção ao processo de construção social da
realidade, leva-os a uma descrição sutil e sensível do que realmente se

86 Tomaz Taden dd Silva


passa dentro de um espaço como o da escola ou da sala de aula. Infelizmen-
te, sua incapacidade para realizar conexões entre o niveí microsociai e a
estrutura social mais ampla tem levado a uma desconsideração de suas
análises por parte das teorizações e pesquisas de orientação marxista.
Mas pelo menos parte dessas preocupações tem sido incorporada sob
outras formas em análises que têm uma orientação mais política. Isto está
representado no campo marxista pelas teorias que fazem do conceito de
resistência um instrumento analítico central e que enfatizam os aspectos
culturais (emoposiçãoaos econômicos ediretamentepolíticos) dos proces­
sos sociais em geral e dos educacionais, em particular (Willis, 1991).
Embora essas teorizações e pesquisas tenham sido lidas como uma forma
de refinamento e de reformulação das teorias da reprodução e como
apontando uma saída política do círculo da reprodução através das resis­
tências informais dos estudantes ao processo escolar, elas também podem
ser lidas de outras formas.
Numa primeira leitura alternativa, podemos interpretá-las como cha­
mando a atenção para o fato de que há uma grande distância entre aquilo
que se postula como sendo o currículo e o que realmente acontece quando
isto desce ao nível da prática em sala de aula. Há uma complexa interação
entre as intenções expressas num determinado currículo e os muitos fatores
presentes numa situação real de sala de aula que fazem com que o currículo
efetivo esteja situado a uma longa distância daquele pretendido pelo
professor ou pela escola, já para não falar daquele proclamado em níveis
mais altos da burocracia educacional.
Numa segundaleitura alternativa,essas pesquisas nos levamarefletir
sobre a importância de aspectos comumente desprezados em discussões
educacionais e curriculares. Na melhor tradição racionalista e cognitivista,
colocamos toda a ênfase nos aspectos cognitivos do processo de criação,
distribuição e transmissão do conhecimento, relegando a um desprezado
último lugar todas as questões relacionadas com a fantasia, o desejo, o
corpo, a imaginação, o irracional, o prazer. Voltar a atenção para isto não
significa aderir ao hedonismo alienante transmitido pela publicidade
televisiva, por exemplo, mas sim levar em consideração uma parte impor­
tante daquilo que se passa num espaço coletivo como a escola oü a sala de
aula. Existe aí um outro lado da sala de aula e da escola, que não constitui
propriamente um currículo oculto, mas que todos nós sabemos que abran- ,
ge uma parte importante da vida escolar. A literatura e o cinema têm !
prestado muito mais atenção aisto que a Sociologia da Educação. Focalizar !
este espaço significa estabelecer uma via de comunicação que pode romper
algumas das divisões atualmente existentes.

O que produz e o que reproduz cm educação 37


Quando se pensa em carrícMÍo, ndo se podem separar^orma e conteúdo. O conteúdo
esíá sempre enooioido numa certaybrma, e os ejéitos desta podem ser tdo importan­
tes os comumenfe desíacados ç/èitos & conteúdo.

De certo modo, já chamamos a atenção disso quando falamos do currículo


oculto. O currículo oculto é, em grande parte, uma questão de forma
causando certos efeitos. Mas a questão da forma tem um alcancemaior que
' este. A forma em que vem embalado um determinado conteúdo estrutura
o pensamento e a consciência numa determinada direção, independente-
j mente do conteúdo que ela transmite. Já demos acima o exemplo de certos
noticiários da TV. Independen temente da mensagem expressa nas notícias
(falseamento, omissão, etc.), um noticiário como o Jornal Nacional, por
exemplo, tem um determinado formato (notícias rápidas, fragmentadas,
não relacionadas, o anúncio de algo dramático seguido de uma trivialidade
qualquer, fatos acontecidos em diferentes lugares e em diferentes setores
sucedendo-se sem qualquer relação) que conforma uma determinada
maneira de ver a realidade, o mundo, a sociedade.Uma análise semelhante
pode ser feita a respeito do currículo escolar. Podemos tomar o exemplo do
livro didático, por exemplo. Grande parte das análises do livro didático tem
se concentrado no exame do conteúdo de suas possíveis mensagens
ideológicas, do sexismo ou do racismo de suas mensagens, por exemplo.
Pouco se tem explorado, por outro lado, as possíveis conseqüências das
formas envolvidas na elaboração de um livro didático. Não se tem levado
em consideração, por exemplo, que tipo de consciência e pensamento é
estruturado pelos exercícios do tipo preenchimento e assinalar, maciça­
mente predominantes nos livros didáticos.
Isto nos leva a considerar o importante papel que tem o livro didático
na estruturação do currículo escolar. Mais que especificações e listas de
itens de conteúdo, é talvez o livro didático o maior determinante do
currículo escolar atualmente. Essa importância não tem tido correspondên­
cia em termos de análises e pesquisas, nem em termos de intervenção
política nesse nível.
N3o tem sentido as tentatioas & se construir um currículo crítico, unioersal,
abstrato, o mesmo podendo-se dizer das tentatíuas de se construir uma pedagogia
crítica, dialética, aniuersaimeuíe udifda.

Apesar das várias tentativas de se fundar a pedagogia crítica ou de se


deduzir os princípios definitivos de um currículo progressista, aprende­
mos o suficiente para saber que esta é uma tarefa impossível e sem

33 Tomaz Tadeu da Siiua


significado (Wexier, 1987, p. 86). É na intersecção da teoria com as várias
práticas educacionais existentes, historicamente localizadas, quese podem
plantar as bases do desenvolvimento dos vários currículos críticos e
progressistas ou das várias pedagogias críticas.
As tentativas de se construir uma pedagogia crítica (ou dialética, no
jargão vago e vazio da moda), abstratamente, deduzida de modo lógico e
formal, e universalmente válida, tendem a ignorar o caráter histórico e
concreto das várias práticas educacionais e suas conexões com importantes
movimentos sociais. Pelos mesmos motivos, essa busca frenética daquela
que constituiría, finalmente, A Grande Pedagogia Crítica, delineada em
torno de alguns poucos princípios aparentemente lógicos e simples e
inclusive com a antecipação de alguns passos a serem seguidos (cinco,
seis?), faz tábula rasa de toda tradição progressista e socialista em educa­
ção.
A s D uridas
Esta lista de coisas que sabemos a respeito do currículo não é exaustiva.
Pode ser facilmente complementada. Mas certamente constituem algumas
das coisas mais importantes que conseguimos desenvolver sobrea constru­
ção, seleção, organização e distribuição do conhecimento educacional. Mas
como adiantei em alguns dos tópicos acima, restam ainda muitas dúvidas
e questões. No que se segue tentarei esboçar alguns dos principais proble­
mas a serem enfrentados
Antes* de mais nada, apesar da penetrante lucidez das proposições
acima sintetizadas, elas continuam bastante distantes dos problemas prá­
ticos queprofessoras eprofgssores enfrentam no seu cotidiano. Mesmo que
não se possam prescrever princípios gerais, abstratos e universalmente
válidos de uma prática educacional progressista, como destaquei acima, é
possível e necessário desenvolver melhores conexões entre nossas análises
e teorias críticas e as possibilidades abertas para a nossa prática cotidiana
em nossos locais de trabalho como educadores. Essas conexões não devem
se dirigir ao traçado de uma pedagogia e de um currículo crítico, tarefa
tanto inútil quanto sem sentido/ mas à antevisão de possibilidades que
podem ser derivadas daquelas teorias e análises e que respondam às
necessidades concretas dos educadores envolvidos com os complexos
problemas do cotidiano educacional.
Mais especificamente, não sabemos como efetivar mudanças curricu­
lares reais em nossos sistemas educacionais de massa. Sabemos já o
bastante sobre quais são os fatores que impedem essas mudanças, como

O <?ue produz e o çue reproduz em educação 89


destaquei acima. Mas apesar disso, ainda ignoramos como lidar com esses
fatores para fazer as mudanças que queremos. Nossos movimentos de
mudança continuam se enredando nas malhas da burocratização, da
centralização, das regulamentações, dos conceitos consolidados e das
tradições estabelecidas, como mostram muito bem as várias experiências
de educadores progressistas que se envolveram na administração de
secretarias estaduais e municipais de educação nos últimos anos.
Ainda não equacionámos corretamente qual combinação curricular
seria mais compatível com os ideais de construção de uma sociedade
verdadeiramente justa e democrática. Não sabemos ainda como combinar
utilidade, relevância, valorização de diferentes tradições culturais, crítica
ideológica e distribuição igualitária dos conhecimentos que significam
poder e controle, para construir um currículo que represente não apenas
uma educação igual para todos, mas que pré-figure, ainda que numa esfera
limitada, a sociedade igualitária de nossos sonhos.
Sabemos, como descreví acima, de que forma a educação escolar está
implicada na divisão social do trabalho. Mas continuamos perplexos sobre
o que fazer, em termos educacionais, para romper com isso. Falamos muito
agora na ligação entre educação e trabalho como uma das formas de se
romper com a reprodução dessa divisão. Mas continuamos imobilizados
quanto a formas efetivas de realizar este princípio numa sociedade onde o
trabalho, mais que alienante, é escasso, precário e mal remunerado. Em
termos curriculares, ainda não sabemos como vincular educação e trabalho
de forma que essa vinculação represente uma possibilidade de transforma­
ção da organização existente e não seu reforçamento.
Temos ainda muitas dúvidas em relação ao que constitui conhecimen­
to útil e válido, quando tomamos como referência a construção de uma
educação e uma sociedade democráticas. Sabemos muitas coisas a respeito
dos conhecimentos que representam um obstáculo a esses ideais, mas
muito pouco sobre a introdução de formas alternativas . Não temos nenhu­
ma crítica sistematizada das formas dominantes de currículo, que apesar
das críticas e das sucessivas reformas, continuam, ao menos formalmente,
fundamentalmente os mesmos de décadas atrás, isto é, baseados nas
disciplinas tradicionais (Moreira, 1990, p. 296). Temos, é verdade, pessoas
discutindo isoladamente as várias disciplinas que constituem os currículos
atuais, fazendo críticas às formas existentes e elaborando possíveis alterna­
tivas. Mas os pressupostos maiores continuam todavia inquestionáveis,
exatamentepor falta de uma crítica global dessa base. As teorias mais gerais
sobre a estrutura e o funcionamento da educação e as elaborações teóricas
e as práticas dentro das diversas disciplinas constituem dois mundos

90 TOHMZ Tn&M t%HSí/tM


separados e incomunicáveis. Esta é uma barreira que precisa ser rompida
se quisermos submeter os fundamentos dos atuais currículos escolares a
uma crítica e a uma mudança efetivas.
Numa sociedade em que cada vez mais o conhecimento è a informa­
ção tornam-se eles mesmos mercadorias e cujo controle significa poder e
dominação, sabemos muito pouco sobre como esse controle é estabelecido,
em primeiro lugar, e como as instituições educacionais estão implicadas
nesse processo. Naturalmente sabemos menos ainda sobre como vincular
o currículo com esse novo ambiente, de forma a romper com o processo pelo
qual o monopólio e controle do conhecimento técnico e científico reforça e
modifica a dominação social.
Temos ainda muito a discutir com relação à integração entre a téori-
zação crítica em educação e currículo e os movimentos sociais mais amplos.
De um lado, as análises críticas têm se restringido à área acadêmica,
influindo na formação de professores, na melhor das hipóteses, ou ainda,
têm tentado se efetivar praticamente em intervenções através da burocracia
educacional. Por outro lado, embora as reivindicações populares com
relação à educação sejam evidentes e tenham até sido bastante documen­
tadas, elas tendem a estar centradas em questões de acesso e expansão do
sistema existente de ensino. Embora essas reivindicações sejam legítimas
em si mesmas, elas tendem, por outro lado, a reificar e a legitimar os modos
dominantes de educação e de currículo, o que pode ser regressivo e
prejudicial a longo prazo, se não se leva em conta que os ganhosimediatos
tendem a ser anulados pela dinâmica do processo de re-transformação
contínua da atribuição de prestígio e valor às certificações escolares, além,
é evidente, dos outros efeitos indesejáveis dos currículos existentes. Temos
ainda que descobrir como romper o isolamento da esfera teórica e acadê­
mica, se quisefmos que nossas teorias e elaborações sobre educação e
currículo não se limitem a descrever círculos em torno de si mesmas, num
movimento de auto-satisfação. Essa integração deveria envolver uma
cooperação mais estreita entre pesquisadores e professores universitários,
professores de primeiro e segundo graus, e organizações populares tais
como sindicatos e associações de moradores.
Não conseguimos, sobretudo, romper com o modo de educação
dominante, aquele representado pela educação escolar, estatalmente con­
trolada. Não que a intervenção aí não seja importante. Mas dadas as
limitações desse modo de educação, temos que considerar outras formas
educacionais. Apesar da experiência acumulada nesse campo, ainda esta­
mos por investir mais seriamente na elaboração de formas educativas que
signifiquem superação do modo escolar e estatal de educação.

O produz e o <yue reprotfMZ em educação 91


A introdução de uma educação política no currículo é outra daquelas
questões pouco desenvolvidas e mal resolvidas. Paradoxalmente, após
tantos anos de discussão sobre as possibilidades de um currículo crítico,
ainda não sabemos exatamente como lidar com um currículo que possibi­
lite aos estudantes uma crítica política articulada dos arranjos existentes,
que examine criticamente as diversas divisões sociais existentes, a explo­
ração e as misérias de uma sociedade de classes, machista, racista. Nossas
idéias a esse respeito continuam vagas e indeterminadas. -
Certamente havería ainda muitas outras questões e dúvidas a serem
levantadas. Esta pequena lista constitui apenas uma indicação e um ponto
de partida para uma discussão mais ampla e que inclua as muitas outras
questões que não foram aqui discutidas.
CoucÍMsáo
Este capítulo não teve a intenção de traçar um estado da arte na área de
currículo. Em vez disso, teve o objetivo mais limitado de tentar realizar uma
síntese, numa elaboração bastante pessoal, daquilo que as várias pesquisas
e teorias críticas educacionais têm destacado com relação ao currículo e de
listar algumas das dúvidas e problemas ainda existentes. Apesar do tom
necessariamente categórico das asserções destacadas na primeira parte
deste trabalho, é evidente que, como quase tudo em educação, elas estão
sujeitas a uma ampla contestação e questionamento. De qualquer forma,
elas podem servir como um ponto de referência em relação ao qual
possamos efetuar uma discussão sobre algumas das importantes questões
envolvendo o currículo e o conhecimento escolar.
Para finalizar, o tom teórico deste capítulo pode ter dado a impressão
de que acho possível deduzir princípios curriculares gerais de uma educa­
ção progressista a par tir da teoria. Como destaquei acima, não acredito que
se possa pensar num currículo progressista ou crítico em termos absolutos
e abstratos. Ao invés disso, devemos pensar em formas e variedades de
currículos críticos e progressistas, os quais surgiram e vão surgir apartir do
encontro de educadores, estudantes e das outras pessoas envolvidas na
educação com as situações concretas de suas lutas específicas. O que as
lições da teoria, como as que resumi acima, podem fazer é ajudar ailuminar
essas múltiplas experiências, como resultado de elaborações, também elas,
de práticas educacionais passadas. É no encontro da teoria com a história
que residem nossas esperanças de uma educação e de uma sociedade mais
democráticas.

92 Tomaz Ta&M da Silva


1. Veja, entretanto, uma interpretação diferente (e mais cuidadosa) no exceiente
livro de Moreira (1990).
2. Sob pena de fazermos como a chamada pedagogia do conteúdo, determinada a
ir pesquisar no passado uma linha de evoluçãoo, que por etapas gradativas, vai
desembocar, adivinhem onde?, exatamente na sua pedagogia, estágio final de uma
história construída por encomenda e sob medida para fazer encaixar como o ápice
dessa evolução sua visão educacional, apenas por decreto declarada dialética e
encarnando, finalmente, todas as virtudes de que careciam as pedagogias anteri­
ores. Exultemos!

O que produz eo que reproduz e?n educação 93


______________________________________ 5______________________________________
A economia política do currículo oculto

A noção de currículo oculto tem exercido uma particular atração sobre


aqueles que analisam o funcionamento da educação e sobre os educadores,
demodo geral. E,apesar deseurelativodeclínio em anos recentes,ela ainda
não perdeu sua potência analítica, que a tornou tão utilizada nos vinte
últimos anos em que floresceu uma perspectiva crítica em educação. Neste
capítulo pretendo fazer uma retomada do conceito e discuti-lò no contexto
das atuais questões em educação, ampliando algumas das idéias esboçadas
em outro capítulo deste livro.
A pesar de sua conotação crítica, foi provavelmente um eduCador
americano da ala conservadora, Philip Jackson, quem primeiro usou o
termo no sentido em que ficou conhecido Num livro publicado em 1968,
in CiassrooMís, em que analisava certas características estruturais da sala
de aula que contribuíam para o processo de socialização, ele assim sinteti­
zava o sentido que dava à expressão que depois ia se tomar moeda corrente
nos círculos educacionais!^
os grandes grupos, o utilizapTo do eiogio o do poder que se combinam para dar
um sabor distinto d vida de saia de auia coietioamenteJormam um curríctdo ocuito,
que cada estudante fe cada pro/èssor) deoe dominar se quiser se dar bem na escoia.
Ás exigências criadas por estas características da vida de sala de auia podem ser
contrastadas com as exigências acadêmicas - o currículo o/iciai, por assim dizer ao
qual os educadores tradicionaimente têm concedido mais atenpto (JacKson, 196%, p.

Numa passagem anterior, Jackson descrevia o significado do currícu­


lo oculto com um pouco mais de precisão, destacando sobretudo aqueles
elementos que distinguem uma sala de aula de outros locais ou instituições
sociais:

94 Tomaz Tadeu da Siipa


(...) as saias Jeavla s3o lugares especiais. As coisas t)ae acontecem aí e as/ormas em
^ae eias ocorremse combinam para tornar estes lugares Ji/èrentes & toííos os oatros.
(...)
As coisas %ae tomam as escoias di/érentes de oatros lugares ndo sdo constitaídas
apenas das para/êrn^lías da aprendizagem e do ensino e do conteádo edacacionai dos
didiogos qae se dao aí, embora essas sejam característicos <yae sOo asaaimente
destacadas <yaando tentamos retratar como é a uida na escoia. Mas essas caracterís­
ticas obvias ndo constitaem tndo ^ue erisíe de síugular com respeito a esse ambiente.
EMoutras características, muito menos óbvias, embora igaaimente onipresentes, ^ue
contribuem para tomar a rida o qae ela é e às ^aais os estadantes devem se adaptar.
Do ponto dê vista da compreensão do e/èito da vida escoiar sobre o estadante aigamas
características da saia de aa!a <yae ndo sdo imediatamente visíveis sdo tdo importantes
quanto as <yae o sito.
(Estas características) ndo sito comamenfe mencionadas peios estadantes, ao
menos ndo diretamente, nem sdo eias aparentes ao observador casaai Jackson, 1 96^,
p- 9).

Como menciona na primeira citação acima, Jackson divide estas


características em três categorias:
1)A saia de auia, em contraste com a família, por exemplo, é um local
de convivência de uma pequena multidão&er de viver num grande grupo
como este implica a aprendizagem de habilidade^ e atitudes que diferem
essencialmente daquelas que são necessárias num pequeno grupo como a
famíiia, por exemplo.
2^À sala de aula é um ambiente eminentemente avaliativo, não no
sentido de aí se realizarem atividades formais de avaliação, mas no sentido
de que o tempo todo oprofessor distribui recompensas e castigos, com base
numa avaliação constante do desempenho e do comportamento do estu­
dante. Isto, de novo, contrasta, com o ambiente familiar, por exemplo, em
que a criança não está sendo julgada a cada passo. De novo, também, isto
implica numa certa aprendizagem que,também difere essencialmente
daquela que se dá no ambiente familiar.^
3)CAs escolas e as salas de aula são locais em que há uma nítida
separação entre quem manda e quem obedece, em que, em suma, há uma
nítida divisão do poder e da autoridade, institucionalmente definida.
Aprender a se adaptar a um ambiente assim organizado constitui uma
experiência singular, com consequências importantes no campo da socia­
lização, diferindo nisto de outros ambientes sociais.
Mas se quiséssemos recuar um pouco mais na genealogia da noção de
currículo oculto, poderiamos citar o trabalho do antropólogo americano
Jules Henry, que descreve num dos capítulos do livro CMÍíHrg againsf MMH,
a dinâmica interna do funcionamento da sala de aula da escola primária

O <yue produz e o que reproduz em educação 95


americana e sua conexão com o funcionamento da cuitura sociai mais
ampla. É apenas natural que tenha sido um antropólogo a fazer este tipo de
observação, como pessoas acostumadas a se preocuparem com os aspectos
sutis da socialização cultural. Henry não usa a expressão "currículo ocul­
to", utilizando em vez disso a expressão "ruído", mas o sentido geral é o
mesmo:
Lh?M sala & aula poúe comparar-se a um sistema de comunicapOes, pois M sem
dúvida uma corrente, de mensagens entre o pro/èssor (transmissor) e os alunos
(receptores) e entre os alunos (...). Adas M também outra interessante característica
dos sistemas de comunicares que é apreciave! nas saias de au!a, que é a de sua
tendência a gerar ruído. O ruído na teoria das com unicais é o termo que designa
todas estas/intuaisJôrtMiías do sistema que ndo podem ser controladas. Sdo os sons
que háo/ormam parte da mensagem (,..). Em uma %%v de aritmética, por exemplo,
tal ruído estaria constituído pela competipto entre os alunos, a qualidade da voz do
pro/èssor, pelo som que /azem os pés dos alunos ao serem arrastados, etc. O
surpreendente é que a criança, fHHtamrnle com sua aritmética, suas mensagens
acerca da aritmética, aprende todo o ruído dosistema também. (...)í isto o que/áz com
que um observador objetivo ndo possa dizer ò que é que se estd aprendendo em
qualquer !i(#o.* o ruído ou a matéria de estudo. Mas, observe-se bem, não é
primordialmente a mensagem (a aritmética ou a ortografia, drgamos) o que constitui
a matéria mais importante que se deve aprender, mas o ruído! Ás aprendizagens
culturais mais significativas, primordialmente, os impulsos culturais, comunicam-
se como ruído (Henry, 1973, p. 263).

Podemos aproveitar está contribuição de Henry, para introduzir um


aspecto importante da noção de currículo oculto. Obviamente, esta noção
não teria nenhuma importância se ela não estivesse analiticamente relaci­
onada com seus efeitos eín termos de socialização. O currículo oculto é
importante porque contribui para adaptar o estudante a certos aspectos da
vida social, como se deduz, por exemplo, da descrição que Jackson faz das
características da vida escolar.
Neste ponto, há uma nítida separação entre os analistas que vêem a
forma tal como a sociedade é atualmente constituída como sendo essenci­
almente benigna e desejável, categoria à qual pertencem principalmente
sociólogos íuncionalistas americanos oü pedagogos filiados a uma tal
perspectiva, como Jackson, e aqueles que vêem o currículo oculto como a
preparação para viver numa sociedade que eles consideram essencialmen­
te injusta, categoria à qual pertencem sobretudo os críticos marxistas da
escola.
de Robert Dreeben, cujo títülo sugere exatamente a existência de um

96 Tomaz Ta&M íia Silva


currículo oculto operando nas franjas do oficiai: Ou IWmt is ÍMrne<i :'uscizooi.
Dreeben parte do postulado funcionalista segundo o qual, para que a
sociedade opere adequadamente, suas diferentes partes devem levar a
efeito suas funções de modo apropriado. Uma das exigências para este
funcionamento é que seus membros sejam capazes de cumprir certos tipos
de normas.
Na sociedade industrial contemporânea, estas normas podem ser
classificadas em quatro categorias: ajlndependência: as pessoas devem ser
capazes de agir de forma independente e autônoma, aceitar a responsabi­
lidade por seus atos e serem responsabilizadas por suas conseqüências;
b)Realização: elas devem poder realizar as tarefas de forma ativa e dominar
o ambiente de acordo com certos padrões de excelência; c)Universalismo
e especificidade: os membros da sociedade devem ser capazes de reconhe­
cer o direito que têm os outros de tratá-los como membros de categorias e
como tal passíveis de igual tratamento (universalismo), com base em
algumas poucas e específicas características (especificidade), ao invés de
com base na totalidade de características que constituem a pessoa inteira.
Como diz o próprio Dreeben, "eu trato dessas quatro normas porque elas
constituem partes integrais da vida pública e ocupacional nas sociedades
industriais ou porque constituem domínios institucionais adjacentes ao da
escola"(Dreeben, 1968, p. 64).
Agora entra a parte da escola neste quadro. O ambiente escolar e,
particularmente, o da sala de aula, está idealmente talhado, através de
certas características estruturais, para formar esta pessoa adaptada a estes
quatro tipos de normas. Dreeben compara as características estruturais da
escola sobretudo com as da família e conclui que elas diferem ao longo das
seguintedimensões: l)Limitesetamanhodosambientessociais;2)Duração
das relações sociais; 3)Número relativo de adultos e não-adultos; 4)Com-
posição de características não-adultas: homogeneidade-héterogeneidade;
5)Composição das características adultas: homogeneidade-heterogenei-
dade; 6)Visibilidade entre não-adultos.
Obviamente, ò que Dreeben faz é tentar demonstrar como estes
elementos estruturais da escola contribuem para produzir pessoas com
aquelas características desejáveis do ponto de vista do funcionamento
social. Resumi-las aqui nos tomaria demasiado espaço, mas o que nos
interessa reter no momento é que neste caso se postula uma consistência
funcional entre escola e sociedade, uma consistência que é, naturalmente,
avaliada de forma positiva__
Qlomo contraste a esta posição, podemos discutir a posição de Bowles
e Gintis (1976), por exemplo, que descrevem o currículo oculto, embora sem

O produz e o repro&;z em etÍMcação 97


usar a expressão, e sua conexão com elementos da sociedade mais ampla,
de uma forma claramente negativa. No modelo de Bowles-Gintis, aquelas
características atitudinais e ideológicas necessárias para o funcionamento
adequado da produção, distribuídas de forma diferencial de acordo com os
diversos níveis da hierarquia dentro da produção, são produzidas em
diversos locais da sociedade, tendo papel privilegiado a família e a escolar
Entra em funcionamento aqui seu famoso princípio da correspondên­
cia, pelo qual a estrutura das relações sociais (para eles, sempre entendida
no sentido interpessoal, como assinalei acima) em locais como a família e
a escola espelha á estrutura das relações sociais no local de trabalho. O tipo
derelações sociais vividas nesses locais,por terem propriedades semelhan­
tes às das experimentadas na produção, propiciariam a formação de
personalidades dotadas dos traços atitudinais apropriados ao bom funci­
onamento da economia. Neste modelo, o importante não é a transmissão de
idéias falsas sobre o funcionamento da sociedade ou da produção, mas a
prática de determinadas relações sociais (interpessoais).
No caso do sistema escolar, a vivência de relações sociais diferencia­
das seria propiciada pelo contacto diferencial com os diferentes graus de
ensino, em combinação com a experiência diferencial proporcionada pelos
diferentes tipos de escola. Quanto mais se sobe no sistema de ensino, mais
as rSláçõès sociais se tornam menos autoritárias, proporcionando a forma­
ção de atitudes mais auto-reguladas e menos exteriormente controladas.
Como, naturalmente, o acesso e a permanência no Sistema de ensino
depende da classe social, as coortes de estudantes que dele saem nos
diferentes níveis tiveram a oportunidades de experimentar relações sociais
diferentes, de acordo com sua classe social. De forma similar, diferentes
tipos de escolas enfatizam diferentes tipos de relações sociais, de acordo
com um padrão pelo qual aS escolas às quáis têm acesso as-cnanças das
classes destinadas ao trabalho manual enfatizam mais relações sociais de
subordinação
Inversamente, em escolas frequentadas pelas crianças das classes
dominantes predominariam relações sociais que enfatizariam o auto­
controle. O efeito combinado dessas duas características estruturais (nível
do ensino, tipo de escola) é que teria comó resultado final a produção de
diferentes tipos de personalidade, em correspondência com as diferentes
posições nà hierarquia ocupacional. Em resumo, para o que aqui nos
interessa, aS relações hierárquicas presentes na escola, relações estas qüe
espelham àquelas do local de trabalho, constituem um currículo oculto
que, no modelo de Bowles e Gintis, tem efeitos muito maisimportantes que
o currículo oficial.

9% ToHMZ Ta&M & Süpa


Outro teórico marxista que chamou a atenção para a existência de um
currículo oculto, embora também sem usar esta expressão foi Althusser
(1983 ) no seu famoso ensaio A íáeoiogia f os apare/Eos i&oiógicos & Estado,
ao enfatizar a ideologia como tendo uma existência material:
Uma ideologia sempre existe em am aparelho e em saa prática oa práticas (p. #9).

O sajeito portanto ataa ençaanto agente do segainte sistema (...).* a ideologia


existente em am apareiim ideológico material, çae prescreve práticas materiais
regaladas por am ritaal material, práticas estas çae existem nos atos materiais de am
sajeito, qae age conscientemente segando saa crença (p. 92).

Partindo também de uma perspectiva bastante crítica, embora não


marxista, Bourdieu e Passeron (1975) também detectam elementos ocultos
no modelo que eles traçam do papel da escola no processo de reprodução
cultural e social. Primeiramente e acima de tudo, está invisível no seu
esquema o fato de quea dominação de força que está na origem das divisões
sociais é precisamente isto, uma relação de força. Ela está disfarçada sob
uma relação diferencial perante a cultura dominante, relação esta que é
apenas função das diferentes chances de adquiri-la, mas estas chances,
diferentemente duma relação de força nua e crua, são, evidentemente,
vistas como legítimas.
É este mesmo mecanismo de ocultação que permite que os herdeiros
das classes dominadas sintam seu fracasso escolar como um fracasso
individual, e não como um fracasso socialmente provocado pelo fato de
que a instituição escolar usa um código do qual eles não possuem a chave,
isto é, a cultura dominante. Embora Bourdieu-Passeron também deixem de
usar a expressão currículo oculto, pode-se interpretar seu modelo como
dizendo que o fracasso escolar das crianças das classes dominadas é
produzido por uma espécie de currículo oculto de exclusão da compreen­
são do código do currículo escolar.
Temos aqui, com Bourdieu-Passeron, um sentido mais amplo da
noção de currículo oculto, uma conotação que o leva além dos limites da
sala de aula. Trata-se, na verdade, da ocultação de um mecanismo de
funcionamento da sociedade e da escola que condiciona nosso comporta­
mento, que nos ensina a ver a sociedade de uma certa maneira.
Talvez seja levar a noção de currículo oculto um pouco longe demais,
mas é exatamente neste sentido que ela é usada por um dos primeiros e mais
decisivos críticos do funcionamento da escola, Ivan Iilich. Para ele, é a
existência mesma da escola, e nada mais que isso, que leva as pessoas a
aprenderem suamensagem mais importante (e oculta): que a escolarização

O çagproáaz e o que rgproáaz em eáacação 99


é absolutamente necessária e a identificar aprendizagem com escolarização
(Illich, 1973, p. 21):
O aluno é, desse modo, escolarizado a con/undir ensino com aprendizagem, ohienpto
de graus com edacapto, dipioma com competência,yingncia noJálar com capacidade
de dizer algo novo.

Quer dizer, este tipo de currículo oculto não é propriamente uma


propriedade da sala de aula, como nos nossos primeiros exemplos, mas
uma propriedade da existência institucional da escola. Estamos aqui frente
a uma conotação um tanto diferente daquela noção, uma conotação que é,
talvez, mais complexa, mas provavelmente também mais potente analiti-
camente. Foi talvez o sociólogo americano John Meyer quem mais desen­
volveu esta idéia, mas ela está também presente nos desenvolvimentos
marxistas sobre o conceito de divisão do trabalho, como veremos mais
adiante, com Poulantzas, por exemplo.
Para Meyer, embora seja verdadeiro que a escola processa indivíduos,
no sentido de socializá-los diretamente, também é verdade que há outros
efeitos da educação, que derivam da sua existência como instituição. Para
ele, esses efeitos macrosociológicos da educação têm sido largamente
ignorados: ^
Entretanto, nas sociedades modernas a educapio é uma insíiíuiçdo altamente (
desenvolvida. Ela tem uma rede de regras que criam classi/ica^es públicas de pessoas (-
e de conhecimento. Ela de/ine quais indivíduos pertencem a estas categorias e
possuem o conhecimento apropriado. E de/ine quais indivíduos têmacesso ds posipOes
valorizadas na sociedade. (...) Lima tal insiituipTc claramente tem um impacto sobre
a sociedade acima e alêm das experiências imediatas de socializap?o que o/èrece aos
Jovens (Meyer, 1991, p. 43).

Em resumo, para Meyer, o que importa não é apenas aquilo que a


escola ensina diretamente, mas é também o fato de a instituição educacio­
nal estar envolvida na definição de categorias de pessoas (graduados do
segundo grau, portadores de diploma universitário, analfabetos, etc.) e
também do que significaqáertencer a estas categorias, isto é, as pessoas são
definidas como tendo certas qualidades e características não por que as
aprenderam num processo de socialização direta, mas apenas por defini­
ção, por pertencerem a uma ou outra dessas categorias. A pertinência a
essas categorias passa a determinar como esta pessoa se vê a si mesma e,
portanto, como se comporta, e como as outras pessoas a vêem, afetando
ássim, suas oportunidades dc vida. Na medida em que este é um efeito

100 Tomaz Tadeu & Silva


WÃ6 MLDA3 E es EDUCAÇÃO - U8 t*
BtBUOTECA
geralmente pouco visível, poderiamos considerá-lo como uma espécie de
currículo oculto, naquele sentido mais macrosociológico e mais amplo de
que falei antes.
Embòra partindo de uma outra perspectiva, não é muito diferente a
interpretação dada por Poulantzas ao funcionamento dainstituição escolar
na sociedade capitalista. Apesar de largamente ignorado nas discussões
relativas às teorias da reprodução, na introdução de seu livro As ciasses
sçcMÍs 7Mcapitalismo de /zq/e, Poulantzas (1978) traça uma análise da educa­
ção que representa um ins;g%f importante e uma contribuição talvez mais
valiosa à nossacompreensão de seu funcionamento que as mais difundidas
análises de Althusser e Bourdièu-Passeron, por exemplo.
Ao dividir a reprodução social em reprodução dos lugares, das
posições, e reprodução dos agentes, Poulantzas concede um papel impor­
tante de inculcação ideológica à instituição escolar neste último processo,
mas talvez o que seja mais difícil de perceber é como a escola está implicada
naquele primeiro processo, de reprodução dos lugares, da estrutura, ou
seja, da própria divisão estrutural do trabalho, entre trabalho intelectual e
trabalho manual. Embora a escola não crie a divisão social do trabalho ela
contribui para esta divisão, ao fazer parte central de sua definição, isto é, a
posse ou não decertos títulos escolares passaa ser um parâmetro emrelação
ao qual se faz a divisão do trabalho.
Num sentido muito similar ao de Meyer, a instituição escolar está
implicada na criação e manutenção dessas importantes categorias da
sociedade capitalista, trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais,
definindo as pessoas e sua posição na estrutura social. Mais uma vez, isto
não se dá por nenhum efeito socializador ou ideológico direto, mas por um
efeito macrosociológico mais sutil: os aparelhos de Estado, entre os quais
está a escola como aparelho ideológico, não criam a divisão em classes, mas
contribuem para tal divisão e, assim, para sua reprodução ampliada (Pou­
lantzas, 1978, p. 30). Não teriamos também aí um currículo oculto em ação?
Como vemos, o significado do conceito de currículo oculto acaba por
adquirir umadimensãoinsuspeitada. Será talvez hora de voltarmos àquele
seu sentido mais comum, o de elementos presentes na arquitetura da sala
de aula, o que nos faz lembrar das contribuições de Foucault em Vigiar e
punir. Como sabemos, aoinvés de enfatizar a existência do poder como uma
entidade centralizada e nitidamente localizada, ele o vê como uma presen­
ça capilar em todo o tecido social, formando uma rede de micropoderes.
Exercem aí importante papel a disciplina, a normalização, e a avaliação
como meio de coletar informações sobre os sujeitos, tudo isto com o objetivo
de se obter um controle mais eficiente e econômico.

O que pro^MZ e o que reproduz em educação 101


Embora a anáiise de Foucault (1977) e a de seus seguidores (Querrien;
Bouillé, 1988; Varelae Alvarez-Uria) refiram-sea um determinado período
histórico (séculos XV1I-XIX) e se baseiem em documentos normativos
sobre a escola e não no seu real funcionamento, ela pode revelar muitas
coisas sobre a forma como a escola opera ainda hoje. Para Foucault, a
utilização produtiva dos corpos pelas instituições, entre as quais a escola,
exige o uso de certas estratégias.
Estas estratégias envolvem uma detalhada distribuição do tempo e do
espaço, uma observação e vigilância constantes e onipresentes e hierarqui­
camente organizadas (panopticismo) e dispositivos de exame, arquivos e
registros destinados a fornecer um conhecimento detalhado dos sujeitos,
entre outras estratégias. Tudo isto forma uma teia de dispositivos de poder
relativamente invisíveis que mantém os indivíduos presos aos objetivos de
produtividade do sistema. Mais uma vez, não podemos resistir à tentação
de ver nisto uma descrição de um currículo oculto em ação.
Evidentemente Foucault não foi o primeiro nem o único a chamar a
atenção para a importância dos dispositivos de avaliação que são aspectos
centrais do funcionamento da instituição escolar. Este elemento do currí­
culo oculto é tantas vezes citado que merecería um tratamento à parte.
Aqui, entretanto, não podemos mais que mencionar o processo de avalia­
ção educacional como uma das fontes mais importantes do currículo
oculto.
Como vemos, apesar de todos chamarem a atenção para a existência
de um currículo oculto, teóricos funcionalistas e teóricos marxistas, analis­
tas foucauldanos e pedagogos de várias extrações diferem não apenas
quanto à avaliação de seu significado, mas também quanto àquilo que
efetivamente constitui o currículo oculto e quais seus efeitos. Isto indica
que necessitamos uma maior clarifição conceituai antes de prosseguirmos.
As múltiplas/aces do currículo oculto
Um conceito aparentemente tão simples e direto esconde muitos proble­
mas e facetas. Como identificar realmente o currículo oculto? E quem
escondeu o currículo oculto, já que o particípio passado "oculto" sugere
alguma ação de esconder por parte de alguma agência? De forma relacio­
nada, quando o currículo oculto se tornou oculto? O que é que o torna
oculto e para quem ele está oculto? Quais as fontes e os conteúdos do
currículo oculto? Que fazer, quando encontrarmos um elemento do currí­
culo oculto) na feliz expressão de Jane Martin (1976), a quem, aliás, devo
algumas das direções da discussão abaixo.

102 ToHMZ Tadcu da Silva


Primeiramente há a questão do que deve ser incluído no conceito de
currículo oculto. De forma inicialmente bastante frouxa, podemos dizer
que estão incluídos àí todos os efeitos de aprendizagem não intencionais
que se dão Como resultado de certos elementos presentes no ambiente
escolar. Isto claramente exclui, e este é o propósito da expressão, todas
aquelas aprendizagens explicitamente buscadas por algum dos agentes
educacionais.
Temos aí um primeiro tipo de dificuldade, pois os propósitos dos
diferentes agentes educacionais podem evidentemente diferir e serem até
mesmo radicalmente divergentes e, o que é mais importante para nossa
discussão, podem diferir também o grau e o objeto de intencionalidade.
Assim, tomemos como exemplo um item do currículo oficial, de um
sistema educacional, que se proponha explicitamente a cultivar valores
democráticos e dois professores cujas práticas se coloquem em pólos
opostos em relação a este amplo objetivo: um estimulando e fornecendo
experiências que levem à aprendizagem daqueles valores e outro agindo de
forma oposta.
Evidentemente, no primeiro caso, com relação a este item do currículo
não há nada de oculto (supondo que as práticas democráticas sejam
intencionais), mas no segundo temos ainda que conhecer as intenções do
professor. Se a intenção proclamada do professor é promover objetivos
contrários àqueles declarados no currículo oficial, também não havería
aqui nada de oculto, caso contrário, sim. Mas ainda assim, nesta última
hipótese, poderiamos dizer que, mesmo não existindo algo de oculto em
relação aos propósitos do professor, existe, sim, em relação aos objetivos do
sistema. É certamente neste último sentido que mais comumente usamos
a expressão "currículo oculto", isto é, a ocultação é sempre relativa àqueles
objetivos mais visíveis do sistema. -
Além disso, devemos distinguir entre aquilo que é declarado e ãs
verdadeiras intenções. Assim, o currículo oculto não seria definido por sua
intencionalidade ou não, mas por estar sua intenção explícita ou não.
Certamente constitui uma questão difícil a de saber quem sustenta a
intençãooculta,seoprofessor, os administradores educacionais,aburocra-
cia educacional do estado, o sistema social como um todo, ou um outro
agente, questão à qual voltarei mais adiante. Mas de qualquer forma, é
importante fazer esta distinção, entre intencionalidade e ocultação da
intencionalidade.
Voltando à nossa conceituação inicial, além da intencionalidade,
embora pareça óbvio, é necessário chamar a atenção para o fato de que o
currículo oculto, como o oficial, refere-séa aprendizagens e não a qualquer

O <?ue produz e o <yue reprodvz em educação 103


outro tipo de efeito não intencional do ambiente educacional. Assim, por
exemplo, pode ser um efeito não intencional de um determinado ambiente
educacional que alguns estudantes apanhem um resfriado, mas isto não
constitui, evidentemente, um item do currículo oculto.
Um outro aspecto do currículo oculto é o da desejabilidade. De forma
geral, a expressão carrega uma valoràção negativa, embora este não seja o
caso, como vimos, de algumas análises mais conservadoras. Mas não é
necessário adotar um ponto de vista conservador, para se ver que há certos
efeitos não intencionais da escolarização que são, entretanto, desejáveis.
Mas de forma geral, não nos preocupamos com isto, porque se somos nós
os educadores em questão, então consideramos que tudo que é digno e
válido de ser aprendido está enunciado explicitamente.
Caso estejamos analisando os currículos de outros, interessa^nos ver
a discrepância entre os supostamente benignos objetivos explicitamente
declarados e aqueles efetivamente praticados, evidentemente indesejáveis,
já que se trata de uma inconsistência. Isto pode se constituir numa limitação
da análise e dos benefícios práticos que dela poderíam advir, pois podemos
estar deixando de ver como o currículo oculto podería trabalhar a nosso
favor.
Um corolário da questão anterior: está implícito na noção de currículo
oculto, naquele sentido negativo, que o currículo oficial, este sim, é até
desejável e elogiável, seu único problema consistindo em que é mentiroso,
no sentido de que o currículo oculto, supostamente mais poderoso (veja o
próximo parágrafo), acaba contradizendo-o. Neste sentido, o currículo
explícito fica identificado com aquilo que é desejável, mas não praticado,
e o currículo oculto com o indesejável erealmente praticado. Isto obscurece
o fato de que certos objetivos tidos como indesejáveis, de uma determinada
perspectiva, uma perspectiva progressista, por exemplo, se viéssemos a
concordar sobre o que isto significa, podem realmente fazer parte do
currículo explícito. Ou seja, certos efeitos tidos como fazendo parte do
currículo oculto podem não estar absolutamente ocultos, sendo explicita­
mente declarados.
Para usar um exemplo evidente, a ideologia educacional do regime
a aprendizagem de certas idéias, atitudes e valores que usualmente tende­
mos a identificar com o currículo oculto. Isto não quer dizer que certos
objetivos indesejáveis (sempre de uma determinada perspectiva) e explici­
tamente declarados não venham a se tornar ocultos num outro momento,
como muito bem demonstra Elizabeth Vallance (1977) em relação à história
educacional norte-americana. De qualquer forma, isto mostra o perigo da

104 Tomaz Ta&M & Sifpa


identificação "currículo oculto=objetivos indesejáveis realmente pratica­
dos" e o seu implícito corolário "currículo oficial=objetivos edificantes,
mas não praticados". Aqueles temidos efeitos indesejáveis da educação
podem simplesmente não estar absolutamente ocultos, como aliás de­
monstraram certas análises da política educacional do regime militar.
Mas pode haver também efeitos do currículo oculto que não são
desejáveis, nem indesejáveis, mas simplesmente irrelevantes ou inócuos,
ou insignificantes, evidentemente quando considerados de uma determU
nada perspectiva.
Uma outra implicação do conceito do currículo oculto, uma implica­
ção evidentemente implícita, é seu poder. Parece que se atribui ao fato da
invisibilidade de seu propósito um efeito mais poderoso que aquele do
currículo explícito. Talvez isto não seja propriamente um efeito de sua
natureza oculta, quanto do fato de que sua fonte é geralmente tida como
sendo as práticas, em oposição a mensagens explícitas, mas evidentemente
nem só de práticas é constituído o currículo oculto, como veremos mais
adiante, mas também de mensagens implícitas, como em certas mensagens
dos livros didáticos, por exemplo.
Se este poder superior do currículo oculto realmente existe, então
estão em questão todas as nossas melhores teorias educacionais e as nossas
mais bem intencionadas ações pedagógicas. Mas mesmo que não sejamos
tão radicais, isto aponta para uma certa direção, a de usarmos as proprie­
dades do currículo oculto de uma forma positiva. Não estariam pensando
nisto certos ecologistas que se posicionam contra a inclusão formal da
ecologia no currículo escolar?
A questão do poder do currículo oculto nos leva a uma questão
relacionada: de quem está oculto o currículo oculto? Supõe-se, em geral,
que o currículo oculto está oculto para o estudante, já que há uma intenção
oculta por trás dele, intenção evidentemente conhecida por parte do agente
que o ocultou, seja es te um professor, o sistema, etc. O processo de ocultação
é sempre relativo. Esta é uma consideração importante se pensamos que o
processo de desocultação de um item indesejável do currículo oculto faz
parte central da desativação de seus efeitos, com a condição de que ele deixe
de ser oculto para quem o era antes. Assim, por exemplo, uma coisa é
revelar analiticamente as implicações sexistas implícitas num livro-texto.
Uma outra, embora aquela seja uma condição desta, é que o estudante se
torne consciente deste processo de ocultação/desocultação fazendo com
que o item perca pelo menos parte de sua força. \
Um dos fatores que tornam complexa a questão do currículo oculto é
que a escola não é evidentemente o único local de aprendizagem, seja ela

O que produz e o çue reprotÍMZ e?n educação 105


explícita ou não. E certamente a proporção entre os componentes implícitos
e explícitos é muito maior nesses outros locais que na própria escola. Isto
é, por não serem locais, em geral, explicitamente dirigidos para o ensino,
como a escola, 0 que se aprende aí não é, em geral, algo que seja declarado
como tal.
Além disso, grande parte da força do currículo oculto vem exatamente
do fato de sua conexão com as habilidades e atitudes que são exigidas
noutros locais (no local de trabalho, no campo político, etc.) e que são,
portanto, não apenas fontes de inspiração para o currículo oculto da escola,
mas fontes de aprendizagem de um currículo oculto de direito próprio.
Como ninguém vive isolado num ambiente escolar, fica difícil atribuir tal
ou qual efeito a um elemento determinado daquele ambiente.
Para tomar um exemplo caro aós analistas críticos da educação,
aprende-se tanto sobre a organização do trabalho capitalista (no sentido
subordinado, evidentemente) através de características paralelas da orga­
nização escolar quanto do fato de se ter nascido dentro de um tal quadro
econômico e social e de se conviver diariamente com os fatos da vida assim
dispostos. Quer dizer, ignorar esta complexidade e fazer uma análise que
procurasse isolar os componentes escolares do currículo oculto torna
qualquer mudança meramente educacional mais possível de fracassar.
Na tarefa de clarificâção, é certamente de central importância a
questão das fontes e do conteúdo do currículo oculto. Em geral, pensa-se
nos veículos do currículo oculto como sendo àqueles não explicitamente
tidos como meios de aprendizagem.
Assim, estariam aí incluídos: a)rituais e práticas, naquele sentido de
Althusser, como as formações de filas antes da entrada para as aulas ou o
hasteamento da bandeira, por exemplo; b)as relações hierárquicas e de
poder presentes no ambiente educacional, *uma constante nas análises
críticas, de Bòwles-Gintis a Paulo Freire; c)régras e procedimentos, desde
como se vestir ou se apresentar na escola até como se sentar na carteira ou
se dirigir ao professor; d)características físicas do ambiente escolar, como
a distribuição dos diversos espaços escolares ou da estruturação física de
cada um destes espaços, como a da sala de aula, por exemplo; e)características
da natureza do agrupamento humano que se reúne no ambiente escolar,
como o número de crianças dá mesma idade, ou a proporção adultoS/não-
adultos, por exemplo.
Mas também são consideradas fontes do currículo oculto alguns
daqueles mesmos veículos usados para o currículo explícito. Estas fontes
vão desde as mensagens implícitas nas intervenções verbais do professor
(gestos, entonações, etc.) até os livros-texto.

106 Tomaz Ta&u & S:/ua


Quanto ao conteúdo, os candidatos são muitos, como mostra qualquer
rápida revisão da literatura relevante. Em geral, os efeitos do currículo
oculto são colocados na categoria das atitudes, dos resultados afetivos, de
formação da subjetividade, dos valores, mas não ficam de fora componen­
tes cognitivos, uma separação de resto impossível de se fazer.
Considere-se, por exemplo, toda a aprendizagem envolvida na trans­
missão e absorção ideológica, tal como descrita pela literatura marxista
sobre a educação. Embora a ênfase seja usualmente colocada em compo­
nentes afetivos do processo (a moldagem de um determinado tipo de
subjetividade,inclinada a afetivamente acreditar na ideologia dominante),
estão evidentemente presentes também elementos de manipulação de
informação que caracterizam o domínio cognitivo, como todas as aprendi­
zagens que envolvem crenças e opiniões com relação a alguma idéia ou
conjunto de idéias.
Mas afora esta classificação ampla, os resultados educacionais tidos
como causados por algum elemento do currículo oculto cobrem uma ampla
gama. Eis apenas uma lista deles, que está longe de ser exaustiva: docilida­
de, obediência, consumismo, autoritarismo, reprodução de relações de
autoridade e poder, competição, conformismo, racismo, sexismo, concep­
ções de sociedade e concepções de conhecimento, preconceitos de vários
tipos, chauvinismo, normas e atitudes para funcionar adequadamente
numa sociedade injusta e desigual e num local de trabalho hierárquico e
autoritário, categorias evidentemente nem todas exclusivas entre si
Tudo reunido, o resultado é um quadro bastante complexo. De forma
geral, os resultados educacionais, pertençam ou não ao domínio do currí­
culo oculto, constituem o efeito composto de um emaranhado de fontes e
influências. Grande parte de nossa engenhosidade e esforço deve ser
aplicada na tarefa de identificar os elementos constituintes desta comple­
xidade, buscando destacar quais elementos do ambiente escolar causam
quais efeitos e resultados. Do sucesso desta análise depende também o
sucesso de nossa intervenção educacional.
Qugnt escondeu o currículo oculfo? Por %ue é oculfo o currículo oculto?
As perguntas que dão título a esta seção não têm um interesse puramente
analítico e especulativo. Respondê-las contribu i também para a importante
tarefa de efetuar mudanças não apenas no ambiente educacional mas, se as
nossas teorias sobre as conexões escola/sociedade estão corretas, também
na sociedade mais ampla. Na seção anterior mencionei de passagem a
importante questão de onde buscar o agente do currículo oculto e as razões

O <yue produz g o çug rgproduz gui educoção 107


para ocultá-lo. Nesta seção quero tentar discutl-la com um pouco mais de
detalhes.
Uma das razões pelas quais a noção de currículo oculto exerce tanta
atração é porque ela parece prometer uma explicação para certos eventos
educacionais. Há uma série de coisas que ocorrem na cena educacional e
que não compreendemos e de repente um conceito como este parece
acender uma luz e acender ou aumentar nossa compreensão.
E é certamente neste sentido que se desenvolveram muitos dos
trabalhos sobre o currículo oculto. Há uma série de efeitos e resultados da
ação escolar que não podem ser explicados pelos objetivos declarados dos
agentes educacionais (professores, sistema, etc.), ao menos pelos objetivos
aiMaltHSHis declarados, devendo-se buscar então outra causa para sua
ocorrência que não aquela. Ou, alternadvamente, pode-se partir também
das intenções explícitas dos agentes, verificar-se que não apenas aquelas
intenções não estão se realizando, mas que até mesmo estão ocorrendo
resultados que a elas se opõem, e então se buscar explicações para esta
discrepância.
Seja qual for o ponto de partida, a linha de raciocínio é a mesma: está-
se buscando uma explicação para a ocorrência de certos eventos que difira
daquela fornecida pelos agentes. O paralelo com a clássica explicação
sociológica íuncionalista é evidente e não é por nada que o conceito tenha
sido desenvolvido por um sociólogo da melhor extração funcionalista
como Robert Dreeben ou por um pedagogo filiado ao funcionalismo como
Philip Jackson, ou que, por outro lado, tenham sido acusados de funciona­
lismo aqueles marxistas que desenvolveram o conceito, mesmo sem usar
diretamente a expressão, como Bowles-Gints ou Althusser.
A questão da explicação funcionalista é uma das mais debatidas em
ciências sociais e não é objetivo deste trabalho entrar neste debate. Eia nos
interessa aqui apenas na medida em que a explicação sociológica implícita
na noção de currículo oculto é muito similar à explicação funcionalista. O
currículo escolar e seus efeitos são aqui os itens funcionais a exigir
explicação.
Alguns destes efeitos (os estudantes estão aprendendo a escrever
corretamente, por exemplo) podem ser traçados às intenções manifestas
dos agentes e constituem portanto sua função manifesta (que os estudantes
aprendam a escrever corretamente, por exemplo). Mas ocorrem também
outras aprendizagens (a aprendizagem da regra do universalismo, por
exemplo, como em Dreeben) que não têm relação com aquelas intenções
declaradas, mas que podem ser explicadas, entretanto, por alguma neces­
sidade funcional do sistema (neste caso, a necessidade que tem a sociedade

10% Tomaz Ta&a íla Sí/ua


industrial de indivíduos que sejam capazes de identificar os outros como
membros de categorias) e constituem, portanto, sua função latente.
Têm certa razão os críticos quando assinalam um raciocínio seme­
lhante em certas descrições marxistas do currículo oculto. Em algumas
destas descrições há realmente um certo sabor fu nc ionalista, na medida em
que ós efeitos da escola são atribuídos a certas exigências do sistema e da
estrutura.
Mas não creio que isto esteja na raiz do tipo de explicação que Marx
dá para a dinâmica da sociedade capitalista. Embora ao final e ao cabo,
criem-se realmente forças que adquirem algum movimento próprio, no
centro da explicação marxiana estão agentes e forças humanas em luta pela
promoção de seu auto-interesse e não alguma necessidade abstrata do
sistema, como no paradigma funcionaüsta.
De qualquer forma, os dois paradigmas diferem essencialmente,
como já assinalei anteriormente, quanto à valoração que fazem do currículo
oculto. Num caso, o funcionalista, esta valoração é positiva; no outro, o
marxista, ela é negativa. Para o que nos interessa aqui, os dois paradigmas
se assemelham, sim, ao atribuir a origem do currículo oculto a forças que
fogem ao controle dos agentes imediatos.
Em ambos os casos, ficamos sem saber quem realmente ocultou o
currículo oculto! No caso do paradigma funcionalista, esta talvez nem seja
uma questão importante, pois afinal os efeitos do currículo oculto são
considerados desejáveis. Mas no caso do modelo marxista, esta parece uma
evidente desvantagem, na medida em que o currículo oculto é visto de
forma negativa. Isto é, se o raciocínio explicativo aponta para causas
estruturais que escapam à iniciativa das pessoas envolvidas, então há
pouco a fazer.
Não é o caso de se entrar aqui no importante debate da interação entre
estrutura e agência, entre sujeito e sistema, que está no centro mesmo da
questão das explicações em ciências sociais. Será suficiente registrar que
em seus momentos mais iluminados, como em Marx, por exemplo, não se
busca estabelecer a precedência de um pólo destas dicotomias sobre o
outro, mas de buscar suas conexões, suas causações mútuas, suas intera­
ções. E mesmo quando parece haver uma ênfase sobre o poder da estrutura,
esta é quase sempre vista como limite, como uma delimitação, e quase
sempre como produto ela própria de ação h umana anterior, e quase nunca
como destino implacável e resultado de alguma força abstrata.
É neste quadro que se-deve inscrever uma teoria explicativa do
currículo oculto. São claramente importantes todas as teorizações, como as
que descreví numa seção anterior, sobre as determinações estruturais do

O produz oo reprodMZ emeducaçõc 109


currículo oculto, como as que traçama origem de alguns de seus elementos,
por exemplo, à estrutura da organização do trabalho na sociedade capita­
lista. Mas é insuficiente qualquer explicação que não descreva qual o papel
das pessoas envolvidas nessa estruturação. Só assim, poderemos respon­
der melhor às perguntas: por que o currículo oculto existe, quem oculta ou
ocultou o currículo oculto, e estaremos, então, em posição de fazer alguma
coisa a respeito.
Que /azer com Mm CMWíCMÍo oculto guando acharmos Mm?
Nossa discussão até aqui esteve centrada na identificação do currículo
oculto. Suponhamos agora que, graças a nossas artes analíticas aumenta­
das, estejamos em condições de detectar certos itens do currículo oculto.
Põe-se, então, a pergunta: o que fazer com relação a isto?
A resposta depende sobretudo de nossa posição teórica e política.
Como já disse, da perspectiva funcionalista clássica não existe problema
algum, a não ser talvez o de reforçá-lo, já que os efeitos do currículo oculto
são vistos como benignos e funcionais ao funcionamento ótimo da socie­
dade. Mas deixemos esta hipótese de lado e suponhamos que estejamos de
acordo em que o currículo oculto promova resultados indesejáveis, a partir
de nossa perspectiva.
Mesmo assim, ainda ficamos enredados em certos dilemas. Se consi­
deramos que os efeitos do currículo oculto são decorrentes da estrutura
inerente do sistema atual e de suas conexões com as divisões estruturais de
uma sociedade injusta, anti-democrática, etc., talvez estejamos inclinados
a propor algo tão radical quanto o que propôs lllich, por exemplo. Ou seja,
a abolição pura e simples do sistema escolar e sua substituição por alguma
outra forma de aprendizagem (as redes de aprendizagem de lllich, por
exemplo). Não vamos discutir aqui os problemas, teóricos e práticos, que
apresenta esta solução, mas independentemente disto, parece inviável que
uma instituição tão universal e arraigada possa ser simplesmente abolida
de um dia para o outro.
Acho que é mais realista e provavelmente mais produtivo ater-nos
àquelas mudanças no próprio currículo educacional que tenham relação
direta com o currículo oculto. Uma coisa importante que se pode fazer com
um item do currículo oculto, quando acharmos um, é aquilo que está
implícito na sua própria definição. Isto é, o conceito é potente, tanto
analítica quanto praticamente, na medida em que nos torna cônscios de
processos que éramos antes incapazes de perceber. Oesócultá-lo constitui
parte da operação de desativá-lo, desde que, como já discuti acima, esta

no Tomaz Ta&M & SMua


conscientização se estenda àqueles que supostamente sofrem seus efeitos,
os estudantes.
Uma boa parte da justificativa da necessidade da existência de uma
ciência sociai é dada, de Marx a Bourdieu, por sua capacidade de revelar
mecanismos da dinâmica social pouco aparentes ao senso comum e, de
neste processo, permitir uma intervenção humana mais consciente e infor­
mada e, portanto, com mais probabilidade de efetivamente mudá-la. Como
assinala Passeron, com relação ao papel da sociologia, mas num raciocínio
que pode ser estendido a toda ação humana bem informada:
Como todo írabalho cienííjico, o socioiogta, se descobre algema coisa, traz à iaz
relações ocultas; mas, no caso da sociologia, pode-se sempre apostarjórfe, seguros
de ganhar, em que a ndo visibilidade social de mecanismos ou de relates joga um
papeljàncicna! nojMMcionamenío, material ou simbólico, dosjenómenos; o oculto é
aqui ademais um segredo, um não-dito quejãvorece sempre a algum dos grupos
sociais ou a alguma coisa (um /MncíonameMío que seria perturbado se a versdo
sociológica de seus mecanismos e de suas junçóes substituísse a sua versão social)
(Passeron, 19% p. #3).
Um raciocínio similar pode ser aplicado ao caso do currículo oculto.
Conhecer é condição para mudar.
Mas embora tornar-se consciente de um elemento do currículo oculto
possa significar um primeiro passo na desativação de seus efeitos, pois
parte de sua potência está na insconsciência de sua existência, isto não é,
evidentemente, suficiente. Se concebemos o currículo oculto de forma
negativa, suas manifestações devem, é.claro, ser extirpadas. Assim, não
bastaria descobrir e denunciar, por exemplo, que certos livros didáticos
transmitem sub-reptícias mensagens sexistas. Seria necessário deixar de
usar tais livros e substitui-los por outros que não promovessem perspecti­
vas que contribuem para perpetuar a dominação de unâ sexo sobre outro.
E isto nos leva talvez à coisa mais importante que se pode fazer com
o currículo oculto: fazê-lo trabalhar a nosso favor. Se existe algo de tão
poderoso no fato de se ensinar algo de forma não declarada, então temos
aí um. instrumento valioso em nossas mãos, que pode ser mais bem
aproveitado. É possível, talvez, argumentar que existe algo de eticamente
condenável em educar desta forma, sub-reptícia, que isto constituiría uma
espécie de manipulação. Mas não é necessário que os objetivos a serem
perseguidos em termos de aprendizagem sejam secretos, mas apenas que
substituamos aqueles outros indesejáveis por estes nas nossas práticas, nas
características estruturais do ambiente escolar, nos elementos não explíci­
tos do livro didático, etc.

O que prodxz e o que reproduz em edMcaçao HI


Estas características em si não podem ser extirpadas, eias carregam,
por assim dizer, um determinado conteúdo que pode, este sim, variar, mas
elas, em si, constituem veículos essenciais do mecanismo de transmissão
educacional. Mesmo que as façamos visíveis em determinado momento,
no decorrer de nossa vida cotidiana, elas acabam por serem dadas por
contado, e mergulham outra vez na sua natureza de coisas com as quais não
nos preocupamos explicitamente. Mas seus efeitos continuam lá. Melhor,
portanto, que carreguem nossos objetivos desejáveis, sobre os quais haja
amplo consenso e democrático acordo, que os perversos objetivos de um
sistema ou de uma estrutura orientado pelos interesses de grupos particu­
lares.
Ao menos esta lição podemos aprender dos íunçionalistas: a de que o
currículo oculto não precisa ser necessariamente indesejável. Nosso obje­
tivo deveria ser não apenas o de descobrir e denunciar o currículo oculto
existente, mas o de construir um outro que esteja dirigido para a construção
de uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e igualitária.
Um currículo oculto que ensinasse a cooperação em vez da competi­
ção; a convivência democrática em vez do autoritarismo e da hierarquia; a
consciência crítica em vez do conformismo, da docilidade e da submissão;
a compreensão das diferenças humanas em vez das várias categorias de
preconceito; os valores da solidariedade e da convivência humana em vez
daqueles da acumulação e do consumismo; os valores da igualdade e da
justiça em vez dos valores do poder, da dominação e do controle. É,
certamente, dadas as atuais características da sociedade e da instituição
educacional, um objetivo difícil, mas, também, com certeza, um objetivo
digno dos nossos melhores esforços e imaginação.

U2 ToffMZ Tadru da 5 dva


6
Distribuição do conhecimento escolar
e reprodução social

As teorias sobre as relações entre a escola e os processos de reprodução


cultural e social sugerem que, a despeito da uniformidade estrutural dos
sistemas escolares, o que existe, na realidade, é um processamento
diferenciado dos alunos pertencentes a classes sociais diferentes. De acordo
com essas teorias (Bowles&Gintis, 1976, por exemplo), esse processamento
diferenciado está relacionado a processos mais amplos de reprodução
social que ajudam a perpetuar a estrutura econômica e social existente.
Crianças e jovens de classes sociais diferentes são diferenciadamente
processados nas escolas e esse tratamento diferenciado, por sua vez,
predispõe-nos aocuparposiçõescorrespondentesnaestruturaocupacional.
De forma esquemática, às classes subordinadas ensinam-se, através
dos currículos manifesto e oculto da escola, as "virtudes" do conformismo
e da submissão a ordens diretas, externãmente emitidas. Em contraste, as
crianças e jovens das classes dominantes são socializados nas escolas para
serem independentes, autônomos e para internalizarem o controle. Além
disso, enquanto estes recebem um conteúdo cognitivo de sfaíMs mais
elevado, àqueles se ensina um conhecimento de natureza "prática", quan­
do muito.
O estudo descrito neste capítulo foi concebido dentro do amplo marco
teórico fornecido por essa literatura. Ele foi planejado, entretanto, também,
para tentar preencher algumas das lacunas existentes. Essencialmente o
que está faltando nessas "grandes" teorias (Althusser, 1970; Bourdieu/
Passeron, 1970, entre outros) é uma descrição e uma compreensão dos
processos específicos no interior das escolas que fazem a mediação entre
elementos da estrutura social mais ampla e os outros resultados da escola-
rízação supostamente conectados com processos de reprodução social. O
estudo buscou também verificar algumas suposições dessas teorias.

O çMeproíÍMZ g o reproduz gwi e^Mcação 113


Esta investigação, por outro lado, foi metodologicamente inspirada e
guiada por um grupo de pesquisadores que têm tentado estabelecer as
conexões entre os processos de transmissão de conhecimento nas escolas
e a estrutura social mais ampla. Começando com alguns estudos realizados
no âmbito do marco estabelecido pela "nova" sociologia da educação
(Keddie, 1971, por exemplo), essa abordagem tem sido reforçada recente­
mente por estudos tais como os de Anyon (1981), Connell et alii (1982) e
Popkewitz et alii (1982). Whitty (1985) faz um bom balanço das questões
teóricas, analíticas e metodológicas que têm preocupado os investigadores
dessa abordagem e fornece um útil sumário das pesquisas e dos estudos
nessa área.
A questão central que orientou esse estudo pode ser formulada da
seguinte forma: Que pedagogias diferentes são distribuídas em escolas
frequentadas por classes sociais diferentes? Mais especificamente: Que
padrões diferentes de trabalho escolar e de controle predominam nas salas
de aula de escolas frequentadas por crianças de diferentes classes sociais?
Qual é anatureza e alógica do pensamento pedagógico dos professores que
dá coerência e suporte ideológico a esses diferentes padrões? Quais são as
suposições e os significados por detrás dos credos pedagógicos visíveis e
dos credos pedagógicos ocultos?
Em um nível intermediário de análise, o estudo buscou responder à
questão das origens das diferentes pedagogias em uso nas escolas estuda­
das. Ele procurou localizar aqueles fatores situacionais, organizacionais e
estruturais que pudessem explicar a distribuição desigual de pedagogia.
Em um nível mais teórico, o estudo tentou responder às seguintes
questões: Que tipo de implicações podem ser extraídas de seus resultados
para a compreensão das relações entre a escola e o processo de reprodução
cultural e social? Quais são as consequências da distribuição desigual de
pedagogia entre as diferentes classes sociais, se é que ela existe, para os
processos de reprodução cultural e social?
Para o propósito deste estudo, selecionei três escolas em Porto Alegre,
capitai do Estado do Rio Grande do Sul. Duas das escolas selecionadas são
escolas públicas estaduais; a terceira escola é uma escola administrada por
uma fundação particular formada por pais de alunos. Uma dás escolas
públicas, que será chamada de Escola A, é freqüentada predominantemen­
te por filhos de pais de renda média emédio-alta; a outra escola pública,
aqui chamada de Escola B, é freqüentada exclusivamente por filhos de
moradores da vila periférica popular onde a escola está situada. A escola
particular, aqui chamada de Escola C, é freqüentada por filhos de pais de
renda médio-alta e alta.

H4 POHMZ Ta&M & Sifpg


Duas ciasses, uma de terceira e uma de quinta série, em cada uma das
escolas, foram intensamente observadas. Nas terceiras séries uma única
professora era responsável por todas as disciplinas. Nas quintas séries cada
disciplina era ensinada por uma professora específica. Observei somente as
professoras de Português, Matemática, Ciências, História e Geografia. No
total, gastei 147 horas observando as seis classes.
Durante o período de observação, entrevistei cada uma das professo­
ras cujas classes eu observava. Procurei saber das professoras a respeito de
suas percepções sobre o enfoque pedagógico usado na escola, sobre as
visões das situações familiares dos alunos e sobre suas perspectivas a
respeito do currículo, do controle de disciplina, métodos de ensino e
avaliação.
Nas seções que se seguem apresentarei um sumário e uma análise dos
padrões de trabalho escolar e de controle de comportamento encontrados
nestas escolas. As perspectivas das professoras são também sumariadas e
analisadas e suas relações com aqueles padrões serão examinadas. Na parte
final do capítulo esses resultados serão interpretados tendo em vista a
literatura pertinente.
Padrões de pedagogia was três escolas
Os padrões dominantes de trabalho escolar e de controle nessas escolas
apresentam certas características diferenciadoras, sugerindo que, a despei­
to de uma mesma aparência, os alunos de cada uma delas experimentam,
na verdade, tipos diferentes de escolarização. A adoção do mesmo formato
escolar externo (classe e séries, aulas e professores, duração do ano escolar,
horário escolar, etc.) oculta o fato de que as experiências educacionais
oferecidas às crianças das diferentes classes sociais que frequentam essas
escolas são de natureza e qualidade distintas.
Os filhos de pais de renda alta que frequentam a Escola C, por
exemplo, experimentam um modo de ensino e aprendizagem que enfatiza
processos de conhecimento ao invés da mera memorização de partes
isoladas de informação. O conteúdo é visto como o resultado da interação
dos alunos com uma variedade de materiais e experiências, em oposição a
um conteúdo que é simplesmente transmitido pela professora ou pelo
livro-texto. Concede-se nas classes observadas na Escola C uma ampla
oportunidade para a expressão oral e para outras foimas de auto-expressão.
Essa modalidade pedagógica predomina amplamente sobre os exercícios
mecânicos e solitários. De forma similar, esse tipo de exercício é muito
menos enfatizado que a solução de problemas e tarefas abertas.

O produz r o rqvoJüz cm edurapão 115


Nessas classes usa-se uma gama variada de formas de execução do
trabalho escolar e de aquisição do conhecimento. Embora o uso do diálogo
entre professoras e alunos pareça ser levemente favorecido em relação a
outros métodos, as professoras frequentemente lançam mão de outras
atividades de aprendizagem, tais como excursões, projetos de pesquisa,
jogos, manipulação de materiais concretos e experimentos.
O processo de criação, recriação e descoberta de conceitos e princípios
é enfatizado em detrimento do mero armazenamento de fatos e informa­
ção. Da mesma forma, a experimentação e a investigação, a observação e a
extração de conclusões,e a organização e o relato de resultados são usados
com mais freqüência que os exercícios de preenchimento relativos a
questões factuais e fragmentadas, do tipo comumente encontrado nos
livros didáticos e cadernos de exercício. Os propósitos e procedimentos de
cada atividade são integralmente apresentados às crianças eelas têm ampla
oportunidade de discuti-los.
A própria natureza do padrão de trabalho escolar predominante nas
classes observadas garantia que as crianças obtivessem informação imedi­
ata e íreqüente sobre o resultado de seus trabalhos. Uma vez que elas
freqüentemente tinham que relatar os trabalhos na frente da turma ou fazer
alguma outra forma de apresentação pública dos resultados dos projetos
que estavam realizando, ou tinham que dialogar com a professora, a
oportunidade para o/èetí&Hdt estava de certa forma embutida nas próprias
atividades que elas tinham queexecutar. Nas ocasiões em que um tipo mais
convencional de trabalho escolar era exigido, a oportunidade para que os
alunos corrigissem suas respostas era prontamente fornecida.
AS estratégias e práticas usadas pelas professoras nas classes observa­
das nà Escola C para controlar o comportamento dos alunos eram congru­
entes com os padrões dominantes de trabalho escolar nesta escola. Embora
exemplos de tentativas das professoras em obter obediência através de
modos imperativos de controle não estivessem ausentes, a atitude predo­
minante entre elas era a de usar a negociação e o raciocínio para assegurar
a ordem e o controle. Com muita freqüencia, as professoras tendiam a
apresentar razões e justificações quando ocorriam casos de ruptura da
ordem, para trazer os alunos de volta à conduta desejada. Uma estratégia
freqüentemente usada era a de fazer as próprias crianças enunciarem as
regras e as normas a serem seguidas na classe e a dar razões para usá-las.
Havia uma suposição implícita de que a responsabilidade e o controle
interno resultariam dessa prática. Outra prática resultante dessa crença era
a de deixar as crianças discutirem as consequências de certos atos de "mau
comportamento".

116 Tornaz Ta&a <fa Sííua


Na Escola B havia um padrão completamente diferente de controle e
de trabalho escolar. Nessa escola havia muito pouca interação oral entre
professoras e alunos em relação a questões de conhecimento. O tipo
dominante de tarefa escolar era constituído de trabalho solitário em livros-
texto, livros de exercício, cadernos e folhas mimeografadas. Os alunos eram
freqüentemente solicitados a fazerem exercícios do tipo "preenchimento"
que exigiam respostas curtas a questões factuais. Esse tipo de tarefa era
precedido por uma introdução curta e verbalmente econômica de algum
tópico novo pela professora. Em geral, as crianças faziam seus exercícios
sem nenhum tipo de monitoramento e sem assistência individual. A
interação verbal entre professoras e alunos limitava-se a questões de
procedimento, controle e econômicas sequências pergunta-resposta.
Havia poucas ocasiões para Em geral, as respostas das
crianças aos exercícios (mecânicos) permaneciam sem verificação. Havia
uma disfunção entre o que estava sendo ensinado e aquilo que suposta­
mente estava sendo aprendido.
O uso generalizado de exercícios solitários excluía o uso de outros
modos de ensino e outros tipos de atividade. Observava-se uma impressi­
onante monotonia no tipo de trabalho escolar usado nessas classes. Além
de crianças trabalhando individualmente em suas carteiras, curtíssimas
apresentações de novos tópicos pela professora e diálogos ocasionais entre
a professora e os alunos, pouco mais que isso, em termos de trabalho
escolar, podia ser observado aí.
As professoras das classes estudadas na Escola B tinham poucos
problemas de controle, uma vez que as crianças, em geral, se mostravam
dispostas à aquiescência. A tarefa das professoras na manutenção da
ordem era facilitada pelo padrão dominante de trabalho escolar. Manter as
crianças ocupadas em tarefas individuais fazia parte da estratégia de
controle. Quando alguma ruptura ocorria, modos imperativos de controle,
com o uso de comandos para que as crianças em questão a ela retornassem,
constituíam a forma predominante de controle verbal. O domínio abrangi­
do por esses comandos estava limitado a umas poucas áreas de comporta­
mento e atitudes, na maior parte relacionadas a normas de postura e
silêncio. Podia-se observar uma tendência a considerar essas normas como
valores intrínsecos, isto é, havia pouco esforço em conectar a observância
dessas regras a preocupações morais e afetivas mais amplas.
Na Escola A, os padrões de trabalho escolar predominantes nas classes
estudadas eram similares, em muitos aspectos, aos encontrados na Escola
B. A mesma ênfase no uso de livros-texto e livros de exercício podia ser
observada aqui. Crianças trabalhando individualmente em seus cadernos

O çue produz g o rgprodMZ cm aÍMcapão H7


e livros de exercícios, respondendo a questões factuais e praticando exer­
cícios mecânicos era o cenário predominante nessas ciasses. A ausência de
modos de ensino que não fossem essas atividades solitárias e apresentações
econômicas de tópicos peia professora era também uma característica
notável do padrão encontrado.
Embora houvesse alguma interação verbal entre professoras e alunos,
ela era bastante limitada em sua abrangência e em seu conteúdo. Quando
não estavam restritas a trocas verbais a respeito de questões de procedi­
mento ou controle, essas interações raramente envolviam discussões mais
prolongadas sobre questões abertas ou ambígüas. Mais freqüentemennte,
elas se constituíam de seqüências curtas de pergunta-e-resposta a respeito
de segmentos de informação, nas quais, em geral, os alunos não tinham a
iniciativa.
O que distinguia essas classes daquelas observadas na Escola B,
entretanto, eram a urgência e diligência exigidas das crianças na realização
das tarefas atribuídas. Os conteúdos eram transmitidos e as tarefas eram
passadas e cobradas num ritmo extremamente rápido, uma característica
que estava ausente na Escola B Em geral, as professoras pareciam estar
altamente preocupadas com a transmissão eficiente da matéria, embora
numa forma convencional e desprovida de imaginação.
Uma característica distintiva adicional do padrão de trabalho escolar
encontrado nessas classes, relacionado à anterior, era a preocupação com
a correção dos exercícios. Usualmente, as respostas das crianças aos
exercícios eram prontamente verificadas e corrigidas de uma forma ou
outra, uma preocupação que raramente existia na Escola B.
Em contraste com as crianças observadas na Escola B, as crianças na
Escola A apresentavam freqüentes problemas de controle para as professo­
ras. Esses problemas eram manejados de forma diferente pelas diferentes
professoras. Mas o padrão mais comumente encontrado era aquele no qual
as professoras usavam modos imperativos de controle verbal para obter a
aquiescência às normas de conduta em sala de aula.
Manter as crianças ocupadas era também aqui visto por algumas
professoras como central à sua estratégia de controle, mas ficava óbvio,
observando-se o comportamento das crianças, que isto não era suficiente
para manter a ordem em classe. Nas ocasiões em que havia ruptura das
normas, o que ocorria com uma certa frequência, a emissão de ordens
diretas às crianças envolvidas para que interrompessema conduta "pertur­
badora" era a estratégia mais comumente usada. Somente de forma excep­
cional as professoras recorriam ao raciocínio ou à exortação para restaurar
a ordem em classe.

11% Tomaz Tadeu dá Sifpa


As perspectivas &!s pro/essoras: Os temas ífomiwawtes e
a lógica de sea discarso peda^ó^ico
Uma análise das entrevistas com as professoras demonstra que o discurso
educacional era diferente nas três escolas estudadas. A elaboração ideoló­
gica de suas práticas era guiada por lógicas diferentes, enfatizava diferentes
temas e dava significados diferentes às categorias escolares.
/' A diferença mais óbvia e saliente entre os discursos ideológicos
predominantes nas três escolas era dada pela existência de um credo
educacional comum e explícito na Escola C e pela ausência concomitante
de um ideário desse tipo nas outras duas escolas. Enquanto as professoras
e os outros membros da equipe da Escola C tinham a seu dispor um
conjunto explícito de valores, conceitos e princípios aos quais podiam
recorrer para dar coerência, propósito e senso de segurança a suas ações
educacionais, as professoras e as outras pessoas entrevistadas da equipe
das outras duas escolas eram guiadas basicamente por um entendimento
consensual implícito a respeito dos objetivos e da natureza do ensino que
deveriam oferecer. Esse entendimento parecia estar baseado no senso
comum, nas visões idiossincrátias de cada uma sobre escola e educação e
nas pressuposições partilhadas e implícitas sobre o tipo de educação que
melhor convinha às características de classe das crianças sob sua respon­
sabilidade.
O credo educacional explícito adotado pela equipe da Escola C não
pode ser analisado sem alguma compreensão de Suas origens. A escolafoi
criada como uma escola "ativa ", ideologicamente baseada na doutrina
humanística da Igreja Católica pós-Concílio Vaticano II e em certos princí­
pios do pensamento educacional da Escola Nova. Ela foi fundada por um
grupo de educadores que pareciam estar insatisfeitos tanto com a qualida­
de do ensino nas escolas públicas, quanto com os métodos convencionais
de ensino que predominavam nas escolas particulares.
As raízes do credo pedagógico adotado na Escola C são facilmente
identificáveis. Certos de seus princípios têm estado presentes no pensa­
mento educacional brasileiro desde os anos 30, nas idéias e na obra de
educadores brasileiros filiados à Escola Nova (Anísio Teixeira, Fernando
de Azevedo e outros), muito influenciados por John Dewey A maior parte
dos elementos da pedagogia da escola, entretanto, pode ser mais imedia­
tamente identificada com certos princípios educacionais derivados da
psicologia desenvolvimentista de pesquisadores tais como Piaget.
O pensamento pedagógico predominante na Escola C, entretanto, tem
outras fontes e origens, cuja localização pode ser apenas adivinhada. Um

O í?Meproduz e o <?Me reprodaz cm edacação 119


tema insistente de seu discurso educacional - a crença na eficácia de suas
práticas educacionais para tornar os alunos agentes de transformação
social, por exemplo - pode ter sua origem no compromisso ideológico da
escola com a doutrina social da Igreja Católica tal como expressa em
algumas encíclicas papais, em que noções de solidariedade e justiça social
são bastante enfatizadas.
A percepção que têm as professoras a respeito da "riqueza" do
ambiente de seus alunos certamente tem um papel, senão na gênese, ao
menos na manutenção de tal pedagogia. Elas tendem a vê-lo como um
ambiente no qual a disponibilidade de recursos educativos e a adoção de
práticas liberais de tratar as crianças tornariam ouso de métodos pedagó­
gicos convencionais altamente problemático. Os métodos tradicionais de
ensino, com sua ênfase na aprendizagem mecânica e em modos imperati­
vos de controle, certamente iriam se chocar com os tipos de valores e
disposições nos quais as crianças são socializadas na família.
Em contraste, exceto por alguns objetivos gerais e vagos, a ausência de
um conjunto explicitamente partilhado de princípios pedagógicos é a
característica mais saliente do pensamento e das visões das professoras da
Escola B. Podemos, não obstante, identificar alguns temas e significados
comuns no discurso educacional dessas professoras.
Antes de tudo, as visões dessas profesoras estavam baseadas numa
teoria implícita que atribuía a maioria dos problemas que elas enfrentavam
no seu cotidiano às característias de classe das crianças e suas famílias.
Num contraste nítido com a atitude predominante na Escola C, onde a
singularidade e as necessidades individuais de cada criança eram enfati­
zadas, aqui os problemas e as características das crianças como um coletivo
eram o foco das preocupações das professoras. Havia a construção de uma
imagem de um tipo social, cujas características eram mais abrangentes e
salientes que as necessidades individuais tão cultivadas pelas professoras
das crianças "bem postas na vida". A mesma teoria que forja essa imagem
das crianças como portadoras de uma constelação indistinguível de proble­
mas (má conduta, pouca motivação, pouco rendimento), tende a atribuir a
causa disso às supostas condições de deterioração material e moral da vida
da família dessas crianças - habitação precária, insalubridade, violência,
famílias separadas, etc.
Essa explicação é provavelmente uma explicação realista no que
concerne a vários de seus elementos e está baseada na experiência de
primeira mão dessas professoras. O que existe de problemático com essa
visão, entretanto, é, primeiro, o equacionamento implícito de deficiências
materiais com deficiências morais e culturais. Uma falta real de recursos

220 TowMZ Ta&u & Süra


materiais tende a ser equacionada com uma falta de valores morais, de
"bons hábitos", de afeto, de motivação e habilidades linguísticas. Embora
algumas dessas suposições possam ser verdadeiras para casos individuais,
exis te aí uma inclinação aatribuir um rótulo de déficit cultural a uma classe
inteira, uma implicação que é problemática por diversas razões.
O segundo problema com esta visão é que ela pára aí. Afirmar que as
famílias dessas crianças são "carentes" fornece toda aexplicação necessária
para todos os problemas que as famílias, e por implicação, as professoras
enfrentam. Há uma aceitação implícita do estado existente de coisas tais
como são, cóm base num raciocínio circular: as crianças e suas famílias
apresentam essas "más" características porque elassão "carentes" e elas são
"carentes" porque elas têm essas "más" características. As circunstâncias
sociais e econômicas que estão na raiz desses déficits materiais (que são,
sem dúvida, responsáveis por algumas injúrias afetivas) permanecem sem
exame no pensamento dessas professoras. É um paradoxo que, enquanto
os déficits materiais acarretam julgamentos morais negativos para essas
professoras, elas são incapazes de ver algumas dessas características
culturais distintas dessas pessoas como respostas realistas e adaptativas a
problemas de sobrevivência econômica.
Finalmente, a visão negativa e patológica a respeito do ambiente das
crianças tem uma contraparte nas visões predominantes das professoras a
respeito da escola, seu papel e função. Ao deprimente cenário de condições
domésticas deterioradas e famílias separadas, estas professoras contra­
põem um cenário da escola como um local de abrigo protetor temporário,
onde as crianças podem encontrar um refúgio durante um parte do dia e
durante parte de suas vidas, nas quais elas frequentam a escola. As
professoras parecem consolar-se com o fato de que podem fornecer alguns
momentos felizes, nas, fora disso, miseráveis vidas dessas crianças.
Mais importante, entretanto, é a implicação que esta visão patológica
de déficit tem para o tipo de educação que essas professoras pensam deva
ser dada a essas crianças. Como a supervisora pedagógica e a diretora tão
insistentemente afirmaram, a escola deveria adaptar-se à "realidade" des­
sas crianças. Esse entendimento é freqüentemente traduzido no pensamen­
to das professoras num rebaixamento das expectativas acadêmicas e no
inculcamento dessas mesmas virtudes e valores morais que tanto faltam
nos ambientes familiares.
A lógica desse raciocínio é, em parte, responsável pela definição
extremamente estreita dada por essas professoras a certas categorias esco­
lares tais como currículo, avaliação, métodos de ensino. Excetuando talvez
a professora de Ciências, o trabalho escolar para essas professoras é

O produz g o <?ngrrproíÍHZgmgrÍMcação 121


adequadamente descrito por uma imagem fornecida peia professora da
terceira série: "Crianças sentadas nas suas ciasses com um caderno em suas
mãos". Currículo, avaliação, experiências educacionais são limitadas a
uma gama bastante restrita. Na realidade, a natureza das experiências
educacionais favorecidas por essas professoras é revelada exatamente pela
quase completa ausência de qualquer proposição mais ampla sobre prin­
cípios e conceitos de aprendizagem e ensino. Ironicamente, apesar da
percepção das professoras arespeito da deficiência de recursos culturais no
ambiente familiar dessas crianças, a escola oferece uma gama correspon­
dentemente limitada de experiências educacionais.
Finalmente, as visões dessas professoras são formadas tanto pelo
futuro que elas imaginam serão dessas crianças, como pelas circunstâncias
presentes de suas vidas. O fato de que a maioria dessas crianças vai
abandonar a escola antes de completar a oitava série é o outro lado daquela
realidade tão freqüentemente mencionada pela diretora e pelas outras
professoras Como disse uma das orientadoras educacionais: "Por que
sujeitá-los a esses testes vocacionais se nós sabemos que eles vão vender
verduras ou colocar tijolos? Esta é a nossa realidade social".
As outras professoras parecem ter expectativas similarmente baixas a
respeito do futuro dessas crianças. Elas também tendem a aceitar isso, sem
questionar, como um fato natural da vida. Com duas exceções, essas
professoras satisfazem-se em apenas listar suas futuras ocupações como
consistindo principalmente de trabalho manual. Ver suas predições toma-
rem-se verdadeiras ano após ano impede-as de sustentar qualquer ilusão
arespeito da transformação dessa situação através da educação. Elas nem
mesmo tentam apresentar qualquer explicação para esses fatos, que elas
vêem tão claramente, além de sugerir que as características de classe das
crianças podem ser acausa de seu fracasso. "Isto acontecépor causa dà vida
de família deléá: eles não se interessam por nada", diz a professora de
geografia.
Podemos agora examinar os temas e suposições principais do discurso
educacional das professorase outras pessoas entrevistadas naEscola A. Em
alguns aspectos, seu pensamento educacional está próximo ao das profes­
soras da Escola B. O tipo de escolarização que elas defendem é definido por
omissão. O significado que elas dão às diferentes categorias escolares
(currículo, avaliação, métodos de ensino) deve ser buscado mais naquilo
que é deixado de fora de seu discurso do que naquilo que é efetivamente
dito. Uma vez que elas não professam nenhuma pedagogia explícita em
comum, a escolarização para essas professoras é aquilo que elas normal­
mente fazem em suas salas de aula. E isto é tão "natural'e tido como normal

122 Tomaz TadeM dá Sdua


que,em geral, elas não sentem a necessidade de destacar aquilo que parce
tão "óbvio" e "natural".
A percepção de que um dos principais elementos de seu ofício é
transmitir eficientemente o conteúdo da matéria, tendo em vista o exame
vestibular (mesmo que este ainda esteja bastante distante no horizonte da
vida educacional destas crianças), distingue-as das professoras da Escola
B, mas isso não é suficientepara fazê-las adotar uma definição mais ampla
de escola e de pedagogia. Ao contrário, essa pressão serve apenas para
reforçar a aderência a um entendimento convencional e de senso comum
do tipo de escolarização que elas devem fornecer.
Quando perguntadas sobre educação, pedagogia, avaliação, essas
professoras freqüentemente referiam-se a expressões e conceitos tais como
"distribuição e seqüência de conteúdos", "transmissão de conteúdo e
matéria", "avaliação por objetivos". Ou então limitavam-se a mencionar e
a descrever qual era o procedimento formal oficial da escola em relação a
um determinado elemento pedagógico. Em suma, seu discurso pedagógico
era bastante limitado tanto em abrangência quanto em conteúdo.
Diferentemente das professoras da Escola B, as professoras da Escola
A têm, em geral, uma avaliação bastante positiva das crianças e de suas
famílias. Elas vêem a maioria das crianças como vindo de lares onde têm
uma variedade de recursos, que correlacionam com um alto grau de
educabilidade e de conhecimento do mundo. Elas se queixam, entretanto,
da existência de crescentes problemas de disciplina e de falta de motivação,
que parecem atribuir a anomalias familiares, principalmente às tensões
causadas por pais separados ou à negligência de pais demasiadamente
ocupados. Compare-se a conotação psicológica desta visão patológica da
família com a conotação moral dada pelas professoras da Escola B. O
julgamento das professoras da Escola A não é feito a partir da avaliação de
uma cultura global, mas constitui-se numa explicação psicológica para
uma "disfunção" bem localizada e específica. Como disse a orientadora
educacional: "Em outras escolas públicas o problema é mais econômico.
Aqui é emocional, é um problema de inversão na hierarquia de valores".
Finalmente, essas professoras cultivam uma expectativa bastante alta
a respeito do futuro das crianças, fazendo um cálculo bastante positivo a
respeito de suas futuras vidas educacionias e ocupacionais. Elas calculam
que a maioria delas continuará até o segundo grau e depois até a universi­
dade. Éesta expectativa, na minha opinião, que as faz colocar tanta ênfase
na transmissão eficiente da matéria. Na ausência de qualquer outra dire­
triz, é, em última instância, essa expectativa que fornece significado e
coerência a suas práticas pedagógicas.

O co rcprolMZ cm 123
FoMÍes Jas dí/êranfes pedajoyias
Tendo mapeado as diferenças entre as pedagogias em funcionamento nas
três escofas tanto em termos de padrões de trabalho escolar e de controle
quanto em termos do pensamento das professoras, podemos agora explo­
rar alguns fatores que podem explicá-las. Já mencionei algumas das
possíveis origens dessas pedagogias. No que segue tentarei desenvolver
isto um pouco mais.
Um dos fatores envolvidos é a estrutura organizacional do sistema
educacional. A divisão mais importante, no que respeita à classe social, é
a divisão entre escola pública e escola particular. O setor público, servindo
predominantemente à classe trabalhadora, está organizado de uma forma
tal que responde principalmente a uma burocracia educacional distante e
centralizada cuja preocupação principal é com os aspectos formais e
ritualísticos da escola mais do que com questões educacionais substanti­
vas. O setor particular, por outro lado, que atende às classes médias e altas,
embora restringido em alguma medida por determinações estatais, respon­
de atentamente às demandas feitas pelas classes às quais ela serve, por
modos específicos de pedagogia. Este setor tem também a opção de adotar
diferentes estruturas organizacionais internas.
A estrutura organizacional da Escola C é uma boa ilustração dessa
possibilidade de diferenciação. Organizacionalmente, a Escola C é um
fundação privada, administrada pelos pais e professores. Seus estatutos
foram feitos para garantir a participação de pais e professores na adminis­
tração escolar. "Participação da comunidade" é uma expressão central nas
atividades de relações públicas da escola.
A participação de pais e professores, entretanto, não é feita sem
conflito. Existe uma tensão constante entre pais e professores a respeito de
quem tem a última palavra sobre a educação das crianças na escola. Um
elemento diferente do profissionalismo docente aparece aqui, um elemen-
toque busca proteger coletivamente os professores da intromissão dos pais.
Os professores estão sempre prontos a tornar claro, sempre que têm a
oportunidade, que a pedagogia é seu domínio exclusivo. Este processo de
reserva de domínio profissional tem sua correspondência num notável
processo de coordenação interna. A escola tem uma doutrina educacional
clara e explícita e está organizada para assegurar que essa doutrina seja
realmente praticada.
As duas escolas públicas do meu estudo são representativas da
organização interna de muitas escolas públicas brasileiras. Paradoxalmen­
te, embora elas sigam um modelo burocrático no que concerne aos aspectos

124 Tomaz Tadcu & Siiua


externos da escolarização (suas operações administrativas sãò regulamen­
tadas em detalhe), sua operação pedagógica fica inteiramente ao critério de
cada professor, individualmente.
Excetuando algumas caracterís ticas comuns, devido à mesma ligação
com a burocracia educacional do Estado, as duas escolas públicas exami­
nadas no meu estudo diferem em relação a alguns elementos organizaci­
onais. A mais visível dessas características diferenciadoras é o grau de
eficiência e diligência aplicadas em assuntos administrativos. Enquanto a
Escola A está muito preocupada com a operação dessas atividades exter­
nas, na Escola B observa-se um certo clima de "afrouxamento" em questões
de administração e organização. Das filas ordenadas de alunos antes da
entrada nas salas até a distribuição cuidadosa das tarefas administrativas,
da organização extremamente cuidadosa dos arquivos e dos serviços
secretariais até o funcionamento ordenado das aulas, o funcionamento e a
organização externas da Escola A passam uma imagem de ordem e
eficiência. Em contraste, uma troca frequente de professores e de horários,
uma alta taxa de ausência dos professores e falta de pontualidade, o que
freqüentemente encurta o dia escolar, dão à Escola B um aspecto de
irregularidade e de falta de organização.
Essas duas escolas públicas partilham, entretanto, uma característica
organizacional que é relevante para a análise de sua pedagogia oculta.
Nenhumadas duas apresenta uma coordenaçãoestreitanoquedizrespeito
às suas atividades pedagógicas. Além da sua preocupação com aspectos
externos das atividades de ensino (formulários, testes, boletins, por exem­
plo), as professoras têm como referência para suas ações pedagógicas
apenas suas visões idiossincráticas de educação, definições de senso
comum do trabalho escolar e um conjunto de expectativas baseadas nas
suas percepções da classe social das crian c a s ^ ^
" * T o m o mostrei, as experiências imediatas cotidianas das professoras
com as crianças das diferentes classes sociais moldam de forma diferente
seu pensamento pedagógico e suas práticas escolares. Elas tendem a
fornecer soluções diferentes parà as diferentes características situacionais
de seu trabalho cotidiano. Apesar das diferenças individuais entre as
professoras, são essas respostas que, em última instância, formam uma
cultura docente específica, no sentido de um repertório de respostas
comuns a problemas comuns. É essa cultura que, em cada escola, molda a
pedagogia invisível específica.
Em resumo, então, a pedagogia explícita professada pela Escola C é
uma resposta direta às necessidades e interesses de certos setores das
classes altas por certos modos específicos de socialização, os quais são

O produz e o çMg rgproAvz em KÍacação 125


funcionais, ou percebidos como tais, para a manutenção de seus privilégios
e posições de ciasse. A existência de escolas oferecendo pedagogias diferen­
tes daquela oferecida na Escola C apenas mostra que diferentes frações das
classes dominantes têm diferentes percepções a respeito das disposições e
habilidades que devem ser desenvolvidas por seus filhos a fim de confir­
mar suas posições na estrutura social. É também possível que, para além
das aparências diferentes entre as várias pedagogias sendo oferecidas às
classes dominantes, haja alguma valorizada disposição comum que esteja
sendo fornecida por todas. É muito possível que tal disposição seja uma
certa relação com a linguagem: as crianças das classes dominantes adqui­
rem uma facilidade na manipulação da linguagem, a qual não está dispo­
nível para as crianças das classes dominadas. Em termos de credenciais
(diplomas) educacionais estritas, entretanto, essa medida comum é o grau
de sucesso obtido por essas escolas (e suas pedagogias) na preparação de
seus alunos para o vestibular e, portanto, para a universidade e, ao fim e ao
cabo, para o trabalho mental.
Nos poucos casos em que uma escola pública primária é frequentada
por crianças das classes médias e altas, como na Escola A parece que os pais
podem influenciar, em alguma medida, a pedagogia da escola em seu
favor. No caso particular da Escola A, a sua pedagogia invisível é, em parte,
resultado da pressão direta dos pais. A influência da classe social, entretan­
to, é bastante filtrada através do efeito de expectativas sociais amplas e
difusas sobre o pensamento e a ação das professoras.
Por outro lado, a maioria das escolas públicas primárias é freqüentada
prioritariamente por crianças das classes trabalhadoras. A natureza da
relação subordinada entre a classe trabalhadora e as instituições do Estado
e seu difícil acesso ao poder político e a outros recursos impedem-nas de
influenciar diretamente o funcionamento e a organização das escolas
frequentadas por seus filhos. Assim, o que dá forma à pedagogia invisível
real é aquela cultura docente de senso comum desenvolvida pelas profes­
soras no seu encontro cotidiano com os problemas surgidos das más
condições de vida das crianças sob sua supervisão.
Esses problemas estão na raiz das perspectivas e das práticas das
professoras. Minha análise do pensamento e das práticas das professoras
das classes trabalhadoras pode ter sugerido que suas visões são imaginá­
rias e frutos de mero preconceito. Entretanto, mesmo que essas imagens
possam estar baseadas num conjunto complexo de representações e con­
cepções distorcidas, elas têm, não obstante, um referente real. Os proble­
mas que as professoras têm que enfrentar nos seus encontros cotidianos
resultam de pobreza real e são, de fato, enormes e complexos. As soluções

126 TowMZ Tadeu & S#ua


individuais podem variar da benevolência e compaixão à hostilidade e à
indiferença. Elas representam, entretanto, estratégias para lidar, dentro da
sala de aula, com enormes problemas econômicos e sociais, cujas causas
essas professoras, compreensivelmente, talvez não percebam. Vale a pena
notar que os professores e professoras das crianças das classes trabalhado­
ras constituem uns dos poucos membros de outras classes a ter contato
diário com algumas das disfunções resultantes da lógica da desordem
urbana de um desenvolvimento capitalista dependente.
Os problemas sociais aos quais as práticas e as elaborações ideológicas
das professoras da Escola B são respostas educacionais não são, obviamen­
te, específicos do entorno habitacional daquela escola. Eles são um exemplo
não apenas da configuração inteira de desigualdades e disfunções do
desenvolvimento urbano da área metropolitana de Porto Alegre, mas de
muitas outras áreas metropolitanas e urbanas do Brasil.
Pedagogia e reprodução social
É hora de reunir os elementos principais de meu estudo e relacioná-los ao
quadro teórico da reprodução cultural e social. O que eu apresentei até
agora pode ser assim resumido: l)As escolas examinadas no meu estudo
fornecem de fato diferentes modos pedagógicos. 2)Essas diferentes peda­
gogias podem ser atribuídas, entre outros fatores, às características de
classe social das crianças que freqüentam essas escolas. No que segue
tentarei relacionar essas constatações a questões levantadas pela literatura
relevante a respeito das relações entre educação e processos de reprodução
social.
As teorias de reprodução social foram desenvolvidas sobretudo atra­
vés de deduções cr posf /âcfo.-Raramente elas tratam dos processos medi­
adores pelos quais os arranjos institucionais existentes que contribuem
para a reprodução social foram originalmente estabelecidos ou pelos quais
eles persistem. Elas usualmente supõem uma classe capitalista e um Estado
oniscientes que fazem o sistema educacional funcionar para servir eficien­
temente às necessidades do capital.
Embora o resultado final seja um sistema escolar funcional às neces­
sidades da classe capitalista, não é assim tão óbvio que esse sistema tenha
sido tão cristalinamente e propositadamente planejado para isso. Nem é
verdade que os planos do Estado para fazer com que a educação funcione
a favor das necessidades da produção efetivem-se tão facilmente como
algumas dessas formulações pressupõem. Ver o funcionamento e a estru­
tura, a forma e o conteúdo da escola como reações e respostas diretas e

O <?Heproãaz c o que reproduz cm rãacação 127


mecânicas aos interesses e necessidades do sistema econômico, mediadas
embora pela intervenção do Estado capitalista, é dar uma ênfase exagerada
ao papel da estrutura em moldar a vida social, em detrimento dos muitos
processos e fatores mediadores. Ademais, esse estilo de raciocínio também
tende a fornecer uma visão estática da sociedade, na qual as possibiliddes
para a mudança e a transformação estão ausentes.
É verdade que tudo aparece como se o resultado final estivesse na
intenção de um Estado sintonizado com os interesses da classe capitalista.
Um exame da estrutura da força de trabalho na área metropolitana dePorto
Alegre, por exemplo, mostraria um ajuste estrutural nítido entre a escola e
o trabalho. Por um lado, o sistema escolar parece estar produzindo um certo
número de pessoas com credenciais superiores e médias de educação para
preencher os postos mais altos e os intermediáriosdo sistema de produção.
Por outro lado, a grande massa de jovens analfabetos, semi-analfabetos e
sem qualquer qualificação que é expulsa precocemente do sistema escolar
parece ser um resultado conveniente e funcional para amaioria dos lugares
ocupacionais oferecidos por essa economia capitalista dependente, na
medida em que fornece um grande exército de reserva de mão-de-obra nãó
qualificada.
Observar esse ajuste, entretanto, não é o mesmo que explicar os muitos
fatores mediadores que levaram a esse resultado. Tentarei no que segue
descrever alguns desses fatores tais como eles emergem da minha pesqui­
sa.
Como tentei demonstrar, um dos fatores mais importantes na molda-
gem da pedagogia efetiva usada pelas escolas é a forma com que o sistema
educacional é organizado. A existência de umarede de escolas particulares
que querém para seus filhos. Por outro lado, o sistema público que serve
predominantementeàs classes trabalhadoras,dadaaestrutura existente de
poder, tende a fornecer um produto pedagógico padronizado. Enquanto o
produto educacional distribuído às classes dominantes está talhado para
se ajustar à SMH percepção do que é bom para suas crianças, o produto
oferecido às classes trabalhadoras é moldado de acordo com a percepção
da escola sobre qual é o seu mandato.
Não é a existência de um plano pedagógico organizado, elaborado
pelo Estado ou qualquer outra agência, que permite a distribuição diferen­
cial da pedagogia de acordo com a classe social. Paradoxalmente é exata­
mente a suposição de que um produto uniforme, "escolarização", está
sendo oferecido a todas as crianças, independentemente de sua classe
social, que permite sua distribuição desigual.

128 Tomaz Ta&a <fa Silva


Dada essa suposição e a estrutura organizacional que descreví, é uma
interação de íatores no nível da escola que, em última instância, determina
a forma e o conteúdo efetivos da escolarização que é oferecida às diferentes
classes sociais. Como mostrei, a pedagogia eíetivaé feita no nível da escola,
é produzida pelos atores que participam das atividades escolares, não
obstante estar delimitada por fatores estruturais.
Assim, no caso da Escola C, por exemplo, a pedagogia existente é o
resultado de uma interação dos seguintes fatores: 1)A existência de um
grupo de profissionais da educação, professando uma pedagogia elabora­
da, cuja origem pode ser atribuída às frações médias da classe dominante
(Bernstein, 1977); 2)A autonomia relativa da escola particular; 3) A deman­
da feita por uma fração das classes dominantes por um tipo de escolariza­
ção que ela percebe levar a vantagens no setor econômico; 4)Uma coinci­
dência entre a pedagogia da escola e a da família.
Ao contrário, a estrutura organizacional das duas escolas públicas
examinadas em meu estudo impõe limitações mais estreitas sobre as
respostas locais. Elas são, não obstante, dentro desses limites, também
produzidas nas próprias escolas. Como vimos, a mesma estrutura organi­
zacional que conduz a uma ausência similar de uma pedagogia explicita­
mente professada na Escola B e na Escola A tende a produzir de fato duas
pedagogias diferentes. Os fatores que produzem essas pedagogias podem
ser assim resumidos: l)Uma estrutura organizacional na qual a preocupa­
ção com uma pedagogia explícita está ausente; 2)Umapressão de parte dos
pais por um resultado específico (dominínio da matéria, na Escola A), ou
a ausência de uma tal pressão (Escola B); 3)A adoção pelas professoras de
uma pedagogia efetiva baseada nas suas percepções dos ambientes fami­
liares das crianças e do futuro ocupacional esperado. i
A áistrt&niçáo dí/èrenc:'a! & pedagogia ca
repro%Mç#o das relações sociais & produção
O propósito principal deste estudo era o de examinar a distribuição
diferencial de pedagogia e os fatores que a poderiam explicar. O outro lado
dessa equação, os efeitos dessa distribuição sobre a reprodução das rela­
ções de produção, permaneceu implícito ao longo do artigo. Um exame
explícito desse aspecto deve agora ser tentado.
A literatura sobre escola e reprodução social sugere que a contribui­
ção da escola para a reprodução das relações sociais de produção é
efetivada através dos seguintes efeitos: 1)A escola forma diferencialmente
as subjetividades das diferentes classes sociais, isto é, ela prepara as classes

0 çue prodaz e o çae reproduz em educaçao Í2 3


subordinadas para serem seguidoras passivas de regras e diretivas e as
classes dominantes para ativamente formulá-las e impô-las e, ao mesmo
tempo, para, de forma autônoma, controlar o seu próprio comportamento
(Bowles e Gintis, 1976, por exemplo). 2)A escola prepara as crianças das
classes subordinadas para aceitar passivamente a interpretação dominante
da sociedade, a ideologia dominante, enquanto as crianças das classes
dominadas são preparadas não apenas para aceitar aquela interpretação,
mas também para reproduzi-la ativamente e para impô-la. 3)A escola
distribui uma cultura e um conhecimento dominante, os quais são parte
constitutiva do "habitus" da classe dominante: esta cultura é consistente
com o capital cultural acumulado por aquela classe, enquanto a classe
dominada é excluída dela pelo próprio processo do "habitus" diferencial
cultivado no domínio da família (Bourdieu e Passeron, 1970). 4)A escola
transmite diferentes tipos de conhecimento às diferentes classes: um
conhecimento de síaías alto às classes dominantes; um conhecimento de
baixosfaias às classes dominadas (BaudeloteEstablet,1975). 5)No processo
de identificação da escola com o trabalho intelectual, o trabalho manual é
definido pela simples exclusão do conhecimento escolar e em oposição a ele
(Poulantzas, 1978).
Esses constituem efeitos individuais da escolarização, isto é, efeitos
queincidem diretamente sobre características psicológicas dos indivíduos.
Dos autores revisados acima, somente Poulantzas chama a atenção parà os
efeitos da escola como uma instituição. Ele vê a existência da escola e sua
separação da prc dução como sendo central para a reprodução das relações
capitalistas de produção, ou seja, a divisão entre o trabalho mental e
manual. Ele distingue entre a reprodução dos agentes e a reprodução dos
lugares. Os efeitos que listei acima seriam, de acordo com essa distinção,
-relacionados à reprodução dos agentes. Para Poulantzas, a escola, por ser
*separada da produção e ao equacionar seu resultado com o trabalho
intelectual; reforça a divisão entre trabalho mental e manual, o que legitima
as relações políticas e ideológicas de dominação na esfera econômica.
Na minha opinião, a ênfase dada pela literatura aos processos sócio-
psicológicos de internalização do controle e à formação das subjetividades
apresenta alguns problemas. Primeiro, esta literatura parte de uma visão
subordinação, através dos quais as relações com a autoridade e a hierarquia
são internalizadas como disposições e atitudes psicológicas duráveis e
permanentes.
Essa parece ser uma descrição errônea de como as relações de domi-
nação/subordinação são criadas e mantidas. A imposição de uma certa

130 Tomaz Tadea & Siica


visão e de uma certa interpretação do mundo e da sociedade não é nunca
um processo tão fácii quantoalgumas dessas perspectivas teóricas querem
fazer parecer. Nem é tampouco uma questão resolvida para sempre, como
a noção de internalização parece supor. Os processos de estabelecimento de
relações de dominação/subordinação e de sua continuidade pode ser
melhor pensado como um processo de conflito e negociação permanentes,
no qual nenhum dos lados pode antecipar uma vitória completa e defini­
tiva. E sempre uma consideração, de parte do lado dominado, de todos os
fatores envolvidos numa dada relação, possíveis ganhos e perdas, qüe
determinará o estabelecimento e a continuação da relação de dominação,
não um consentimento internalizado, consolidado, da parte do possível
dominado.
Outro problema com uma análise que vê a relação diferencial com as
estruturas de autoridade da escola como fontes de disposição internaliza­
das diferenciais é a suposição de que as atitudes desenvolvidas em resposta
às ações da escola são transferíveis para outros locais. Uma objeção que se
pode fazer a essa argumentação é a de que um exame da história da escola
mostrará que relações autoritárias predominaram na escolarização das
crianças das classes dominantes. Não é a relação dos indivíduos de uma
classe com uma instituição que fazem com que suas subjetividades sejam
dominantes ou dominadas. E antes a natureza de suas relações globais com
um conjunto de instituições, incluindo principalmente suas relações com
os meios de produção, que determinam sua posição em relações de
dominação/subordinação. A subordinação temporária nas relações de
autoridade frente a uma instituição educacional pode mesmo ser o preço
a pagar para garantir uma posição dominante na esfera econômica.
Por outro lado, como observei antes, o equilíbrio das relações depoder
é sempre instável e altamente dependente das condições particulares de
uma dada situação. É meu argumento que as relações na escola, por
exemplo, são de natureza bastante diferente das relações no local de
trabalho. Não podemos predizer o resultado das relações no local de
trabalho (sejam de conflito e rebelião ou de aceitação e conformidade) a
partir das relações na escola.
Finalmente, a passividade e a conformidade às normas e aos valores
da escola podem ser apenas uma estratégia conveniente para lidar situaci-
onalmente com os elementos de poder da instituição. O processo, de
incorporação e integração tem que ser refeito a cada vez. Como Foucault
(1977) observou tão bem^é exatamente por que uma internalização bem
sucedida não pode nunca ser garantida que dispositivos e estratégias
disciplinares são necessários. /

O tyneproduz e o í?ue reproduz e;n educação 131


É dentro deste contexto que quero discutir os meus resultados sobre
os padrões de controle nas três escolas estudadas. Como mostrei, modos
imperativos de controle, nos quais a obediência incondicional à autoridade
das professoras era esperada, eram predominantes na Escola B, embora a
execução das normas e regras fosse raramente feita com rigidez excessiva.
As crianças eram, como observei, usualmente cooperativas e obedientes.
Podemos interpretar isso como um treinamento para o obediência e a
subordinação? E, no caso de resposta positiva, podemos perguntar se esse
resultado está sendo eficientemente produzido, contribuindo assim para
um aspecto da reprodução das relações sociais de reprodução. Podemos
apenas especular a respeito das respostas a essas questões.
Os modos de controle de comportamento são homólogos aos proces­
sos envolvidos no papel de agentes subordinados nas relações de domina­
ção/subordinação que ocorrem em outros locais. Mas essa homologia é
muito limitada. Traçar um paralelo direto e completo entre o papel que
essas crianças de classe trabalhadora exercem nas relações sociais na escola
e o papel que elas exercerão nas relações sociais nolocalde trabalho implica
uma falta de compreensão da natureza bastante diferente das relações
nesses dois locais. O exercício do controle na sala de aulae na escola objetiva
apenas conservar uma certa aparência de ordem e do que é comumente
entendido como "escola". Como vimos, na Escola B a pressão sobre os
alunos em termos de rendimento escolar era bastante frouxa. Além disso,
o custo da desobediência é bastante baixo. Por outro lado, a natureza do
controle no local de trabalho é guiada por um objetivo claro e sem ambigui­
dade por parte da gerência, ou seja, o de extração damais-valia. Além disso,
a desobediência tem consequências imediatas e de longo alcance. Nesse
sentido, então, algumas das professoras da Escola B estavam corretas ao
afirmar qüe aquelas crianças estavam aproveitando, possivelmente, os
únicos momentos felizes de suas vidas.
Argumento que os modos de controle predominantes na escola po­
dem ser melhor entendidos como um reflexo da posição global da classe
trabalhadora nas relações sociais de produção mais que como uma prepa­
ração para elas. Embora aqueles modos possam estar dialeticamente
relacionados à rede global de relações sociais vivenciadas pela classe
trabalhadora numa sociedade capitalista, elas são mais um efeito que uma
causa, mais um resultado daquelas relações que sua íonte. Todas as escolas
poderiam mudar hoje para formas mais brandas e abertas de controle e,
outras coisas permanecendo constantes, nada mudaria em termos da
reprodução das relações sociais de produção, como Bernstein (1977) tão
corretamente observou.

132 TC77MZ Ta&H íia


Por outro lado, a submissão fácil demonstrada por essas crianças à
ordem escolar pode significar não que elas tenham internalizado disposi­
ções subordinadas, mas apenas que já calcularam (inconscientemente)
suas chances contra uma ordem social adversa. Elas podem ter apenas
desénvolvídoestratégias convenientes para lidar da formamaís econômica
possível com essa situação, o que pode incluir uma aceitação temporária
das normas da escola.
, É o que acontece na Escola A, qu e oferece uma perspectiva melhor para
compreender o papel das relações sociais na sala e na escola nos processos
de reprodução social. As relações sociais nas quais essas crianças estão
envolvidas são claramente inconsistentes, tanto com suas relações sociais
na família, quanto com seus lugares futuros prováveis na produção. E,
contudo, a maioria delas certamente será bem sucedida em ocupar postos
privilegiados na estrutura ocupacional.
Finalmente, parece que, no que respeita ao controle, existe uma
perfeita homologia entre os modos de controle predominantes na Escola C
e os lugares prováveis daquelas crianças na estrutura social. Eu argumen­
taria, entretanto, que isso deve ser visto mais como uma conseqüência de
sua bem sucedida dominação de classe do que como uma causa dela. Essas
crianças estão tendo o benefício desses modos de controle porque eles são
valorizados por uma fração da classe dominante, a qual foi bem sucedida
na "fabricação" de uma pedagogia para acomodá-los.
Há, entretanto, um aspecto do modo de controle predominante na
Escola C que está relacionado com a reprodução cultural e social. Mas eu
argumentaria que isso tem mais a ver com a aquisição de uma tecnologia
que com a moldagem de alguma característica psicológica associada com
posições dominantes. A ênfase em processos de negociação e raciocínio,
elementos centrais dos modos de controle predominantes na Escola C,
envolve principalmente uma preocupação com amanipulação da lingua­
gem e da auto-expressão com o objetivo de manipular o comportamento
interpessoal. O uso de processos de negociaçãopararesolver problemas de
ordem na sala de aula e na escola deveria ser visto como uma prática em
habilidades hngüíshcas, as quais são essenciais para o bom desempenho
nos lugares dominantes na produção. É conhecimento incorporado na
linguagem que está sendo transmitido aqui.
Isto me leva ao meu argumento central. O que realmente distingue
essas escolas, no que respeita a processos de reprodução social, é sua
distribuição diferenciai de conhecimento. Como mostrarei, sob o. disfarce
de um formato escolar uniforme, o conhecimento e as habilidades transmi­
tidas nas três escolas são de natureza bastante diferente.

O <?MCpr<M?MZ C 0 rq77-(K?MZ CM 133


Primeiramente, devemos considerar aquela concepção distintiva do
conhecimento e das habilidades, predominante na Escola C. As crianças
não estão apenas sendo eficientemente introduzidas aos conteúdos de
corpos formais de conhecimento tais como história, matemática e portu­
guês. Elas estão também aprendendo uma relação especial com o conheci­
mento. Elas aprendem não apenas os conhecimentos, mas os princípios por
detrás de sua produção. Ademais, elas são iniciadas num conjunto de
habilidades tais como: facilidade na manipulação da linguagem, auto­
confiança em termos de expressão pessoal e uma relação crítica com o
conhecimento recebido. Essas são habilidades essenciais no desempenho
daqueles papéis na estrutura ocupacional associados com o controle de
outros: elaboração e planejamento (em oposição à execução), o controle do
conhecimento existente e a criação de novo conhecimento.
Naturalmente, a condição essencial para que todo o potencial incor­
porado nesse JtHOW-how seja realizado é permanecer no sistema escolar, a
fim não apenas de receber mais quantidade do mesmo produto, mas
também de obter a credencial oficial que é o que, em última instância, vai
sancionar aquele Anow-how adquirido.
Ascrianças d a Escola A, como vimos, aprendem um conjunto bastante
diferente de significados, habilidades e relações com o conhecimento. A
definição extremamente estreita de escolaiização imposta sobre essas
crianças certamente as deixará em desvantagem em relação às crianças da
Escola C, por exemplo. Mas como elas provavelmente vão permanecer no
sistema, terão chances adicionais de compensar essas possíveis desvanta­
gens. Ademais, a própria ecologia oferecida pelas suas relações globais de
classe provavelmente fornecerá aqueles conhecimentos e habilidades que
a Escola C intencionalmente cultiva nos seus alunos.
Às crianças da Escola A, de qualquer forma, está sendo ensinado
algum conhecimento, embora de natureza bastante limitada. Através de
sua ênfase no domínio eficiente do conhecimento contido nos livros-texto
e na aprendizagem mecânica, aquelas crianças estão extraindo não apenas
álgum significado a respeito da importância do conhecimento escolar, mas
também adquirindo alguma informação e algumas habilidades de estudo,
o que pode se mostrar valioso na sua carreira educacional subseqüente.
Finalmente, em contraste com as outras duas escolas, as crianças da
Escola B não podem extrair de sua experiência de escolarização mais que
o significado de uma relação subordinada com o conhecimento, uma vez
que a elas não se ensina qualquer coisa que possa ser substancialmente
equacionada com conhecimento E contudo elas estão aprendendoa aceitar
a legitimidade de um conhecimento que sempre estará em outro lugar.

134 ToMMZ TH&M & Silva


Uma vez que os signos exteriores e os rituais do conhecimento escolar estão
também obviamente presentes aqui (professores, saias de aula, quadros-
negros, iivros-texto, folhas de exercício), o sfufus legítimo de um conheci­
mento que não lhes está sendo oferecido está sendo graduaimente estabe­
lecido.
Na minha opinião, o elemento mais importante da pedagogia da
Escola B, aquele que implica nas consequências mais sérias para processos
dp reprodução social, é o fato de que a essas crianças está sendo dado
apenas um arremedo de conhecimento, uma versão do conhecimento
escolar do qual toda substância foi extraída. Se é verdade que todo
conhecimento é transformado na sua passagem para o conhecimento
escolar, nós estamos observando aqui o último estágio nesse movimento
em direção à entropia.
Essa observação coloca em questão algumas interpretações que ten­
dem a atribuir o baixo rendimento escolar das crianças das classes trabalha­
doras a uma discrepância entre os valores e o conhecimento dominantes e
os próprios valores e recursos da classe trabalhadora. É verdade que os
valores e os recursos culturais dessas crianças são, em geral, desconsidera­
dos pela pedagogia escolar- O que é oferecido em seu lugar, entretanto, não
é conhecimento dominante, mas uma versão muito diluída e degradada
dele.
Enquanto as crianças da Escola C estão sendo reforçadas nas posições
dominantes herdadas, sobretudo através da aquisição ativa de valorizados
recursos culturais, a criança que está agora frequentando a Escola B tornar-
se-á o futuro trabalhador manual através da privação desses bens culturais.
O processo que está acontecendo aqui é de socialização por negação mais
que por imposição ativa. Essa privação, juntamente com a privação de
credenciais,-ã qual ela está obviamente conectada, está na raiz da divisão
mental/manual do trabalho, como Poulantzas (1978) tão corretamente
observou. A escola cria o trabalhador manual não tanto ao ensinar habili­
dades manuais num sentido positivo,mas, ao invés,aodefiniromanual em
oposição à apropriação doconhecimento que caracteriza o trabalho mental.
Essa visão contribui para lançar alguma compreensão sobrearazãopor que
tantos trabalhadores manuais têm pouco ou nenhuma escolarização nas
formações capitalistas dependentes contemporâneas, um fato que as teo­
rias queenfatizam opapelideológicoda escola, oumesmo sua contribuição
positiva em distribuir .cértas habilidades, na formação da força do trabalho,
não podem explicar.
Finalmente, cabe lembrar que, embora aquelas características e habi­
lidades mais diretamente associadas com uma dada posição nas relações

O que produz e o que reproduz em educaçõo 135


sociais de produção tenham que ser aprendidas, e a escola certamente
contribui para isso, não devemos enfatizar demasiadamente o papel da
escola na formação do trabalhador subordinado. Embora a escola exerça
um papel decisivo na formação do trabalhador menta/, o trabalhador
subordinado, ao menos em formações capitalistas dependentes como o
Brasil, é, em última instância, formado através de outros mecanismos, tais
como a exclusão da propriedade e do poder, das péssimas condições de
vida resultantes do desemprego e do subemprego, dos baixos salários e da
instabilidade no local de trabalho. O papel de outros processos que contri­
buem para a reprodução cultural e social do trabalho não pode ser também
negligenciado: os meios decomunicação, a repressão política e os meios de
coerção direta como a polícia e o sistema judiciário.

Í36 Tomaz Ta&M & Si/ua


__________________________ m _________________________

No outro lado do currículo oculto:


o trabalho
7
Produção, conhecimento e educação:
a conexão que falta

As teorias crí ticas da educação nos ensinaram muita coisa sobre as conexões
entre as divisões sociais eas divisões educacionais. Eias carecem, entretanto,
de uma análise das formas pelas quais o conhecimento que é importante
para a economia é produzido e distribuído. Embora o conhecimento seja
reconhecidamente incorporado pelo capital como uma força produtiva e
desenvolvido emanipulado como um dos principais elementos do processo
de valorização, isto tem sido geralmente ignorado pelas teorias marxistas
da educação. O objetivo deste capítulo é discutir as limitações dessas
teorias e propor uma forma alternativa de análise das relações entre
educação, conhecimento e sociedade. Argumento que uma das formas
pelas quais podemos fazer avançar nossas análises é através da utilização
dos conceitos e elementos desenvolvidos pelos estudos marxistas do
processo de trabalho capitalista. Uma vez que tais estudos têm analisado
o desenvolvimento da ciência e do conhecimento em relação à produção e
ao processo de trabalho, eles podem ajudar a fornecer às teorias críticas da
educação aquela base verdadeiramente materialista que lhes falta.
A relação entre a educação e a sociedade tem sido exaustivamente
analisada em anos recentes, tanto teórica quanto empiricamente em disci­
plinas tais como Sociologia da Educação e Economia da Educação. Da
teoria do capital humano a formulações marxistas, passando por teoriza-
ções weberianas, todas essas tentativas têm tentado descrever e explicar as
conexões entre processos que se dão na esfera educacional e processos que
ocorrem na sociedade em geral. De forma similiar, e como consequência,
essas teorias têm apresentado propostas para modificar, reformar qu
revolucionar seja a educação, a sociedade, ou ambas, dependendo da
perspectiva particular adotada. Uma das formas pelas quais essas diferen­
tes teorias têm tentado fazer a conexão entre educação e sociedade é pelo

O produz e o reprodaz em educação 139


exame das formas através das quais as instituições educacionais distribu­
em conhecimento. A quantidade e a qualidade do conhecimento tomado
disponível, o tipo de pessoas ou grupos aos quais o conhecimento é
distribuído, são exemplos de alguns dos problemas abordados por essas
teorias. Essas diferentes perspectivas têm também se interessado por
descrever e explicar as várias formas pelas quais variações na quantidade,
qualidade, forma, etc., da distribuição do conhecimento afetam as várias
pessoas e grupos e qual é o correspondente impacto na sociedade em geral.
O ponto importante a ser enfatizado é que todas essas teorias, sejam
liberais ou marxistas, focalizam as instituições educacionais tão-somente
como íhsfn&MÍdoras de conhecimento, afetando iníHmthüdwMnie aquelas
pessoas às quais o conhecimento é distribuído (ou não). No que se segue
tento discutir esta forma de abordagem eproporüma alternativa de análise
das relações entre educação, conhecimento, e sociedade.
Embora as várias teorias acima referidas deixem de abordar adequa­
damente, na minha opinião, aquelas relações, neste capítulo tratarei so­
mente das perspectivas marxistas, críticas, ou radicais (na terminologia
anglo-saxônica). Inicio resumindo alguns dos elementos principais das
teorias marxistas sobre a relação em causa, naquilo qüe tenham a ver com
a produção e distribuição do conhecimento, apontando também as razões
pelas quais considero que elas deixam de tratar adequadamente o proble­
ma.
Todos os estudos sobre a relação entre educação e sociedade, desde o
agora famoso artigo sobre os ApareiTios Meológicos & Estado, de Althusser
(1971), enfatizam o papel da escola na produção de indivíduos, com a
finalidade de servir às necessidades do setor econômico da sociedade
capitalista. De acordo com essa perspectiva, a escola produz os indivíduos
apropriados para a sociedade capitalista ao equipá-los còm: a)uma subje­
tividade apropriada (traços de personalidade, atitudes, inclinações ideoló­
gicas, etc.); e b)uma certa quantidade do tipo adequado de conhecimento.
E a distribuição diferencial desses elementos entre as diferentes classes que
contribui para a divisão e a reprodução sociais.
Podemos deixar de lado no momento, dado o objetivo deste capítulo,
o fato de que as várias teorias deinspiração marxistas discordamémrelação
a qual elemento dar maior importância: a formação da subjetividade ou a
distribuição diferencial de conhecimento, um problema do qual tratei em
outro capítulo deste livro. Minha atenção estará aqui circunscrita ao
problema do conhecimento.
O que é importante observar a respeito dessas perspectivas é que elas
tendem a tomar o conhecimento como um dado, sem questioná-lo, desta

140 ToMMZ Ta&M Ja S:/pa


forma abordando o problema tão-somente do ponto de vista de sua
distribuição. A despeito das drásticas mudanças que estão ocorrendo na
produção e na apropriação da ciência e da tecnologia e das conseqüências
óbvias que isto tem para a conceptualização da relação entre a escola e a
sociedade, as análises até agora feitas têm fracassado na tentativa de
incorporar e integrar uma formu!ação(ãdequada da conexão entre produ­
ção de conhecimento, produção econômica e educaçãpjTanto quanto sei,
entre os autores de inclinação marxista/spmente Apple tentou chamar a
atenção para a importância de uma tal tarefa, inspirado em parte pelo
importante trabalho histórico de Noble (1979)^
Assim, os escolas não atuam "meramente "como mecanismos poro a distribuição &
um comento oculto e & <fisíri&oi(#o das pessoas pefos seus fogares "apropriados "
Jóra delas. Elas sdo elementos importantes do modo de produção de mercadorias
...fsomente atraoés dessa compreensão) podemos começar a descobrir algumas das
conexáes entre o conhecimento escolar, a reprodução da dioisão do trabalho e o
processo de acumulação. ParaJazer isto; precisamos entender como o conhecimento
técnico/administratioo érealmente utilizado. Precisamos situá-lo nas relaçães estru­
turais que auxiliaram a produzi-lo, porque o conhecimento técnico não é necessari­
amente uma mercadoria neutra numa economia capitalista... há uma monopoüzação
quase total do conhecimento técnico e da inteligência tecnológica por parte das
grandes empresas capitalistas (Apple, 1939, p.63).

Entretanto, tanto quanto eu saiba, o próprio Apple deixou de desen­


volver mais profundamente esta indicação e seu apelo em favor de mais
estudos sobre o problema ficou sem resposta. É verdade que aqui e ali
podemos detectar alguns indícios de quanto este problema é central.
Wexler, por exemplo, num trabalho recente, faz alguns comentários sobre
a importância do estudo do processo de produção do conhecimento e suas
transformações. Mas esta observação é feita quase de passagem, no fechar
do livro:
Uma limitação dessa descrição... é que ela olha primordialmente para a distribuição
e consumo do conhecimento. O processo de produção do conhecimento, o caráter
especifico daquele conhecimento, a organização do local de sua produção, a relação
daquele local com o campo no qual ele opera, tudo isso tem sido negligenciado
(Wexler, 1937, p. 136).

Existe, portanto, uma consciência entre os analistas da educação a


respeito da urgência dessa integração. O próprio "pai" da "nova sociologia
da educação", Michael Young, recentemente (Spours & Young, 1988), tem
dado indicações nessa direção, embora a partir da perspectiva limitada da

O que produz e o que reproduz em educação 141


construção de currículo. No Brasil, essa consciência manifesta-se, por
exemplo, nos trabalhos de Gomez (1987) e Salgado (1988). Apesar desse
interesse genérico, entretanto, a investigação nessa área é praticámente
inexistente (veja, porém, Alaluf, 1986, para uma exceção recente).
Mas antes que enfrentemos a tarefa de desenvolver uma alternativa
apropriada de análise, existem algumas questões que precisam ser discu­
tidas. As suposições correntes sobre a produção e a distribuição do conhe­
cimento é uma das questões cruciais á serem tratadas neste contexto. As
análises críticas da relação entre educação e sociedade até agora realizadas
fazem uma série de suposições a respeito da produção, distribuição e
consumo de conhecimento que são problemáticas sob vários aspectos.
Entre essas, estão as seguintes, que serão discutidas adiante com mais
detalhes: 1)0 conhecimento é geralmente concebido como dado, isto é, não
problematizado; as definições correntes do conhecimento são aceitas tais
como são, sem questionamento. 2)A unidade de análise no que concerne à
distribuição do conhecimento é o indivíduo. 3)A alocação de indivíduos na
estrutura social (gerálmente equacionada com reprodução social) é vista
como o resultado principal da manipulação do conhecimento, tendo em
vista interesses de classe. 4)As escolas são concebidas como as únicas
instituições distribuidoras de conhecimento. 5)0 conhecimento escolar é
equacionado com conhecimento em geral. 6)A disponibilidade imediata
do conhecimento e seu acesso livre e fácil por parte da sociedade em geral
são características supostas de sua natureza.
Tratemos, portanto, cõm um pouco mais de detalhe cada um dos
pontos acima listados. Em primeiro lugar, é surpreendente observar como.
as teorias críticas da educação deixam de problematizar o conhecimento
existente. É verdade que algumas dessas teorias levam em consideração a
existência de urna estratificação do conhecimento (por exemplo, Althusser,
1970; Baudelot e Establet, 1975), mas isto é tudo. Onde e como o conheci­
mento é produzido, quais são as condições que permitem sua apropriação
privada, antes que seja transformado em conhecimento escolar (isto para
aquele conhecimento que logra chegar à escola), as diferentes formas
assumidas pelo conhecimento, essas são questões jamais discutidas. Isto
acontece mesmo com osiníluentes textos da "nova sociologia da educação"
(Young, 1971), uma perspectiva que levou tão a sério a questão da constru­
ção social do conhecimento. Mesmo esses autores deixam de questionar a
suposição de que o conhecimento que a escola distribui aos grupos
privilegiados é equivalente ao conhecimento que realmente conta na
sociedade (em certo sentido isto é verdadeiro, mas não constitui o quadro
inteiro, como veremos em um momento).

142 Tomaz Ta&a tia Silva


O que está faltando nessas teorias é uma discussão dos diferentes tipos
de conhecimento, uma contextualização das condições de sua produção e
de sua utilização tendo em vista interesses privados (além de seu uso na
transmissão escolar). As análises (críticas) convencionais têm-se mostrado
inclinadas a tomar as definições existentes do conhecimento acadêmico
estabelecido como seu ponto de partida. Isto é uma consequência do fato
de que as perspectivas marxistas têm permanecido, de forma paradoxal,
extremamente idealistas, carecendo de uma base realmente materialista
para analisar as ligações entre a produção de conhecimento, seu uso na
produção, e a educação.
Este paradoxo vem do fato de que essas análises, a despeito de
protestos em contrário, têm tido a tendência a refletir pontos de vista
eminente e exclusivamente educativos/educacionais. A produção, se al­
guma vez é levada em conta, é sempre olhada do ponto de vista da
educação. Uma consequência disto é que a discussão sobre a natureza do
conhecimento, as condições de sua produção e uso, e as transformações
radicais por que está passando, são questões que não têm tido o desenvol­
vimento devido em análises críticas da educação. Essas análises têm sido
incapazes de deixar o terreno estreito e limitado da educação e da escola.
A segunda limitação das teorias críticas da educação é sua excessiva
ênfase nos efeitos individuais da distribuição diferencial de conhecimento.
De acordo com essas perspectivas, o conhecimento é distribuído difefen-
cialmente através da escola aos diferentes grupos na sociedade. Esse acesso
diferencial, por sua vez, produz diferentes tipos de indivíduos, que são
então distribuídos pelos diferentes postos da produção econômica.
Esta é, em certa medida, uma descrição correta do processo pelo qual
a educação produz sujeitos adaptados à estrutura existente. Esse foco
excessivo na transmissão inter-individual do conhecimento; entretanto,
impede uma análise das outras várias formas pelas quais o acesso ao
conhecimento é tornado possível ou não. Uma boa parte do conhecimento
envolvido na produção, por exemplo, está protegidopor patentes e licenças
e sua disponibilidade está sujeita a transações monetárias entre os grupos
interessados.
Uma outra ilustração interessante das limitações envolvidas numa
perspectiva que enfatiza a transmissão individualé a forma assumida pelo
conhecimento que é incorporado na maquinaria. Obviamente a dinâmica
da utilização desse tipo de conhecimento não pode ser detectada por um
quadro de referência baseado na transmissão individual. É interessante
observar, entretanto, que a importância dessa dinâmica já tinha sido
enfatizada pelo próprio Marx. Como veremos mais adiante, a conexão

'O çue produz e o tyue reproduz em educação 143


desse processo com a educação deve ser buscada através das noções de
qualificação/desqualificação, mas isto não esgota suas possibilidades.
Um terceiro problema com as teorias que venho discutindo é sua
ênfase na alocação como o principal efeito da escola (e presumivelmente,
do nexo produção/distribuição de conhecimento), uma limitação já obser-
vadapor Apple (1989) no livro previamente citado. Ao produzir indivíduos
diferencialmente equipados, através da distribuição diferencial de co­
nhecimento, a escola contribui, de acordo com essas teorias, para distribui-
los pelas diferentes posições na estrutura social. Este é, de fato, um de seus
demonstrados efeitos. Mas uma das conseqüências dessa ênfase na aloca­
ção é uma ausência quase total de uma análise dos processos de utilização
do conhecimento adquirido pelos indivíduos alocados depois que eles
deixam o terreno do sistema educacional e entram no da produção.
Isto explica, em parte, porque as análises críticas da educação não têm
dado atenção aos processos de qualificação/desqualificação, conceitos
que são tão centrais nas análises marxistas da organização do processo de
trabalho. Além disso, uma ênfase no processo de alocação faz parecer que
esta é a única contribuição do circuito "produção-distribuição do conheci­
mento" para relações de desigualdade. Diga-se de passagem que foi essa
ênfase no processo de alocação que fez com que autores como Bowles e
Gintis (1976) minimizassem o aspecto cognitivo em sua análise da escola
capitalista. De novo, isto contribui para deixar de problematizar as muitas
outras formas pelas quais o conhecimento é manipulado pelo capital tendo
em vista os objetivos de valorização e acumulação. Isto, por sua vez, reforça
as desigualdades que têm um referente material real.
As teorias de alocação adotam, portanto, uma visão muito limitada da
dinâmica da produção e distribuição do conhecimento. Elas focalizam,
talvez, o menos importante de seus efeitos. Uma perspectiva alternativa
deveria estar menos preocupada com os efeitos da distribuição do conhe­
cimento sobre a distribuição dos indivíduos no sistema de estratificação, e
mais com a produção/distribuição do conhecimento na produção econô­
mica e seus efeitos sobre a distribuição da riqueza material.
O quarto problema com as teorias que estou discutindo já ficou
implícito na minha argumentação anterior. Elas tendem a ver as institui­
ções educacionais Mo-somenfe como instituições distribuidoras e como as
MHtcas instituições distribuidoras. Aquela primeira suposição tende a obs-
curecer d íãto óbvio de que as universidades estão ativamente engajadas na
produção de conhecimento. Uma tal suposição impede que se extraiam
todas as conseqüências desse envolvimento. Um dos aspectos mais impor­
tantes desse envolvimento são as conexões entre às atividades de pesquisa

144 TowMZ Ta&M Si/pg


das instituições de educação superior e os empreendimentos de pesquisa
e produção das empresas privadas e do Estado.
Por outro lado, a suposição de que as instituições educacionais são as
únicas distribuidoras de conhecimento tem o efeito de deixar sem análise
as outras formas pelas quais o conhecimento é distribuído e manipulado.
Em resumo, uma consequência dessas duas suposições é que ficamos sem
nenhuma noção dos locais onde o conhecimento é realmente produzido. E
como se as escolas distribuíssem um conhecimento que não é produzido
em lugar algum.
Uma quinta limitação de nossas teorias, uma limitação que se segue
dos pontos acima discutidos, é que elas tendem a equacionar conhecimento
escolar com conhecimento em geral. Obviamente, esta é uma consequência
de sua já mencionada localização no terreno idealista da teorização edu­
cacional. As (nocivas) implicações analíticas dessa perspectiva são óbvias.
Aquele conhecimento que não se traduz em conhecimento escolar e as
condições e conseqüências de sua utilização nunca chegam a ser discuti­
das. Dadas a velocidade e a extensão da assim chamada revolução técnico-
científica, por exemplo, uma parte substancial e substantiva da cadeia
"produção/distribuição de conhecimento" é deixada fora da análise. A
menos que se queira adotar uma compreensão demasiado estreita do que
significa educação, tem-se que admitir que esse processo tem obviamente
algo a ver com educação e sua relação com a sociedade em geral.
Finalmente, um outro problema de nossas teorias é sua suposição de
que o conhecimento, em geral, está prontamente disponível e é de livre
acesso através das instituições educacionais e seus meios. Esta é uma
conseqüência do segundo e do quarto pontos, discutidos acima. Uma vez
que as instituições educacionais são vistas como as únicas instituições
distribuidoras-de conhecimento, elas são também as que têm a chave do
acesso. E uma vez que o acesso ao estoque de conhecimento é feito através
da transmissão individual, é suficiente que o indivíduo se conforme às
regras e aos rituais estabelecidos da transmissão educacional paira chegar
a conhecer aquilo que a instituição guarda. Não há lugar algum nessa
perspectiva para uma descrição de como o conhecimento é manipulado
como propriedade privada, e como o conhecimento é objetivado (o que
equivale a dizer que não está disponível para ser prontamente transmitido
através da interação inter-individual).
A discussão feita até agorapode ser assim resumida. As teorias críticas
da educação não têm nenhuma descrição ou análise das formas pelas quais
o conhecimento que é importante para a produção econômica é produzido
e distribuído. Embora o conhecimento tenha sido, reconhecidamente,

O qMeprodMZ e o reproduz em edMMpM 145


incorporado peio capital como uma força produtiva e desenvolvido e
manipulado como um de seus principais elementos no processo de valo­
rização e acumulação, esse fato tem sido amplamente ignorado pelas
teorias marxistas da relação entre educação e sociedade. Essas teorias têm
omitido de seu aparato intelectual aqueles processos que Apple (1989)
chamou de "o outro lado do currículo oculto".
Meu argumento é o de que uma forma proveitosa de avançar nossas
análises é através dos :ns:g%ts fornecidos pelas análises marxistas do
processo de trabalho capitalista e do desenvolvimento da ciência e da
tecnologia e sua incorporação pelo capital (para um ótimo sumário veja
Brighton Labour Process Group, 1991). Uma vez que essas análises têm
estudado o desenvolvimento do conhecimento e da ciência em relação à
produção e à organização do processo de trabalho, elas podem fornecer às
teorias críticas da educação aquela base verdadeiramente materialista que
lhes falta atualmente, possibilitando-lhes assim superar a visão idealista e
idealizada do conhecimento que elas agora sustentam.
Por sua vez, entretanto, as análises do processo de trabalho capitalista
têm amplamente ignorado o papel da educação e das escolas ou têm sido
incapazes de ver o que fazer com ele. Poder-se-ia fazer de tais análises uma
crítica paralela àquela que eu fiz das teorias da educação. Elas tratam do
conhecimento incorporado nas pessoas, na maquinaria e no bmw-lMW
envolvidos na produção como se a educação não tivesse nada a ver com
isso. A suposição paralela é a de que todo conhecimento que realmente
importa é gerado e "transmitido" no contexto da produção. Tome-se, por
exemplo, a discussão que é feita nessas análises sobre qualificação e
desqualificaçãò. O papel da educação naquele processo é rarámente men­
cionado, e quando o é, os autores não sabem como fazer as conexões
apropriadas. Em resumo, as duas análises não são nunca apropriadamente
integradas.
O que necessitamos é de um quadro de referência que possa fazer essa
integração. Este quadro deveria estar organizado em torno da questão de
como o conhecimento e a ciência que são essenciais para o capital são
produzidos, apropriados, objetivados e "distribuídos". As questões a
serem feitas seriam, então, bastante diferentes das questões que são agora
formuladas pelas teorias críticas da educação. Que tipo de conhecimento
e de ciência é essencial para a acumulação capitalista? Onde e como esse
conhecimento é produzido? Qual é o papel das instituições educacionais
na produção e distribuição desse tipo de conhecimento? Quais são as
conexões entre o conhecimento que é gerado e usado na produção e o
conhecimento que é organizado e transmitido pelas instituições eduçacio-

Í46 ToHMZ Ta&M & Silua


nais? E qual é o papel de tudo isso no processo de reprodução cultural e
social e de manutenção da hegemonia de classe? Ao tentar responder essas
questões, começaríamos a construir um quadro teórico de análise das
relações entre educação e sociedade que é analiticamente mais potente que
as teorias existentes. Naturalmente, as linhas principais em torno das quais
esse quadro deveria ser organizado necessitam ser totalmente desenvolvi­
das. No restante deste artigo, tentarei listar alguns dos elementos que, em
minha opinião, deveríam fazer parte desse quadro.
Necessitamos primeiramente e acima de tudo de uma descrição mais
completa e detalhada de como a ciência e o conhecimento são produzidos
e utilizados para os objetivos de valorização do capital e qual é o papel das
instituições educacionais nesse processo. Naturalmente o ponto de partida
deve ser a análise feita por Marx, especialmente nas Seções 3 e 4 do Livro
1 de O Capitai, mas também as passagens relevantes dos GruMdrisse. É
também útil aqui o trabalho agora clássico de Braverman (1974), assim
como as outras análises marxistas da organização dó processo de trabalho
capitalista, e do desenvolvimento da ciência e da tecnologia (por exemplo:
Coriat, 1976; Brighton Labour Process Group, 1991; Nòble, 1977; Cruz,
1987). Mas naturalmente há ainda muito trabalho a ser feito que leve ém
conta o que Braverman disse em sua obra pioneira:
A reuoiMpro McHKO-denf%fKH... não pode ser entendida em termos & inooaçãss
especí/icas... mas deve ser entendida, ao invés, em sua fotaiãiaíte, como Mmmoda de
proí?Mp7o no quai a ciência e a engenimria Mm sido integradas como parte do
/ancionamento normai. A inovando chave não deve ser baseada na química, na
eletrônica, na ma^Minaria aMtomdtica... oa em qMaisqaer dos produtos dessas
ciPncias-tecHoiogMS, mas ao invés na trans/ôrmapão da prdpria ciéncM em capital
(Braverman, 1974, p. 166).
O processo de transformação da ciência em capital, as condições de
produção e incorporação do conhecimento como capital, as formas pelas
quais o conhecimento assim produzido é transformado em mercadoria,
objetivado, monopolizado, tudo isso necessita ser mais pesquisado antes
que possa ser integrado num quadro teórico que conecte esse processo à
educação. Naturalmente,uma questãodeihteresséimediatoaesse respeito
é o papel das instituições educacionais nesse processo. Quais são as
conexões entre as instituições educacionais e as empresas capitalistas para
a produção de ciência e tecnologia e de sua incorporação como capital?
Atenção particular deveria ser dada às transformações introduzidas
na produção e no uso do conhecimento pela automação e pela informática.
Estamos bastante distantes daincipiente dinâmica entre ciência e capital da

O que produz e o que reproduz em educação 147


época de Marx, em que a "A ciência, Mando de forma genérica, nada custa
ao capitalista, fato que não o impede de explorá-la" (Marx, 1976, p. 508).
Desde então a ciência transformou-se em algo que é ativamente desenvol­
vido pelo próprio capital para sua incorporação como força produtiva. De
forma ainda mais notável, na era da informática o próprio conhecimento
tornou-se uma mercadoria (Morris-Suzuki, 1984,1986).
A dinâmica da produção e distribuição do conhecimento naquilo que
Wexler (1987, p. 186) chamou de "sociedade pós-industrial,informacional
ou semiótica" e sua relação com a educação deveria constituir, portanto,
uma parte central do quadro teórico que estou propondo. As drásticas
transformações na natureza da produção do conhecimento que estamos a
presenciar e sua utilização nas atividades produtivas introduz a questão da
caracterização dos diferentes tipos de conhecimento envolvidos.
Embora istopareça, à primeira vista, um mero exercício classificatório,
é um primeiro passo necessário na tarefa de entender a dinâmica da
produção e da apropriação do conhecimento. Um exemplo da importância
desta caracterização são as conseqüências trazidas pelas já mencionadas
transformações relacionadas ao uso da automação e das tecnologias base­
adas na informática. É a própria forma como a ciência é usada que é
transformada com a introdução dessas novas tecnologias (Morris-Suzuki,
1986) O conhecimento e a ciência não são usados agora exclusivamente
como úiptds para a produção. O conhecimento, na forma de informação,
tornou-se ele próprio uma mercadoria.
O conhecimento incorporado na maquinaria e nos equipamentos é
outra de suas metamorfoses (Janossy, 1980, p.58), cujas conseqüências,
apesar de sua presença nas análises de tradiçãomarxista do processo de
trabalho capitalista, têm sido pouco exploradas. Uma das implicações mais
óbvias de sua relação com a educação deveria ser feita através dos conceitos
de qualificação e desqualificação. Em resumo, o que necessitamos é de um
mapeamento dos vários tipos de conhecimento envolvidos na produção a
fim de estudar a dinâmica da relação entre sua produção e apropriação, e
a educação.
Certamente essa relação deve ser o elemento mais importante e central
de nosso quadro. As análises marxistas do processo capitalista de trabalho
têm analisado de maneira bastante adequada e de forma extensiva o papel
central da ciência, da tecnologia e do conhecimento na conformação do
local de trabalho para os propósitos de valorização do capital. No centro
dessas análises está o exame dos processos da divisão social do trabalho, da
desqualificação, da fragmentação do trabalho, etc. O que é surpreendente,
entretanto, a respeito dessas análises é que elas raramente mencionam a

148 TowMZ Ta&H & SiiuH


educação e a escoia, apesar das teorias críticas da educação terem apontado
o papel essencial exercido pela escola na formação de pessoas apropriada­
mente ajustadas ao local de trabalho. Como observei antes, existe um
divórcio quase total entre as duas literaturas (veja, entretanto, Apple, 1987,
para uma importante exceção nó que concerne ao trabalho docente). Tome-
se, por exemplo, o processo de desqualificação, que tem sido uma presença
constante na literatura sobre a organização do processo de trabalho desde
a clássica análise de Marx no Livro I de O Capitai.
A própria noção de desqualificação envolve a consideração de vários
tipos de conhecimento: conhecimento que foi desenvolvido pelos próprios
trabalhadores (como nas experiências de Taylor); conhecimento objetivado
na maquinaria; conhecimento incorporado pelos trabalhadores através de
várias formas, incluindo a escola. Parece óbvio que a educação está
envolvida em várias das fases dessas manipulações de conhecimento
implicadas na noção de desqualificação, seja naprodução, seja na transmis­
são. Não obstante, para as análises do processo de trabalho a existência de
sistemas educacionais e de escolas não faz qualquer diferença. É essencial,
portanto, pára o quadro que estou propondo aqui mapear em detalhe as
conexões entre a organização do processo capitalista de trabalho e os
processos que ocorrem na esfera da educação, no que concerne à produção
e à utilização do conhecimento.
Outro elemento importante no nosso quadro é uma compreensão do
circuito "produção-apropriação-distribuição-consumo" do conhecimento
técnicp. Como eu observei em minha crítica das análises existentes, a
suposição usual é a de que todo tipo de conhecimento está prontamente
disponível para distribuição através da educação. O currículo é então
reduzido a um problema de seleção. Naturalmente, esta é uma visão
idealista do moderno processo de produção da ciência e da tecnologia e de
sua utilização, uma visão tornada possível somente por causa do isolamen­
to dos educadores do mundo real da economia. O conhecimento e a ciência
produzido sob as condições do capital não estão imediatamente disponí­
veis para livre distribuição. Ao invés, estão protegidos pór patentes e
licenças que garantem o monopólio de seu uso e "distribuição". Nosso
quadro deveria então tomar em consideração todo o circuito que vai da
produção de conhecimento a seu uso, e o correspondente papel das
instituições educacionais nesse.processo.
Finalmente, o quadro deveria integrar uma análise dopapel do Estado
nesses processos. O papel dõ Estado no fornecimentode uma educação que
seja essencial para os processos de legitimação e acumulação do capital já
foi bastante documentado e analisado (veja, por exemplo, Dale, 1988, para .

O produz e o que reproduz cm educação 149


uma excelente análise). De íorma similar, seu papel no estabelecimento e
na manutenção da relação social central do capitalismo, o trabalho assala­
riado, também tem sido bastante analisado (veja, por exemplo, Aumeeru-
ddy et alii, 1978). Entretanto, outra vez, as interconexões entre esses dois
processos têm sido raramente feitas. Precisamos de uma descrição do papel
do Estado que leve em consideração essas interconexões. Precisamos um
descrição, por exemplo, das formas pelas quais o Estado está envolvido no
financiamento de instituições educacionais que estão direta ou indireta­
mente comprometidas em desenvolver conhecimento e ciência orientados
pelas necessidades do capital. Da mesma íorma, necessitamos analisar o
papel do Estado no financiamento das instituições privadas de pesquisa.
Essas são as principais linhas em tomo das quais um quadro teórico
para analisar a conexão produção/educação, até agora surpreendente­
mente negligenciada pela literatura relevante, deveria ser desenvolvido.
Mas há ainda muito trabalho a ser feito. Antes de mais nada, o quadro que
eu sugeri precisa ser muito ampliado. Precisa ser trabalhado em detalhe
antes que possa ser usado de forma útil e produtiva na investigação
empírica. O isolamento dos estudos do processo de trabalho das análises
críticas da educação resultou numa falta de estudos empíricos que inves­
tigassem as relações entre educação e produção. O quadro que sugeri acima
podería fornecer umá base a partir da qual problemas empíricos poderíam
ser deduzidos. Finalmente, a mudança de paradigma que estou propondo
aqui tem tanto implicações políticas quanto práticas. Não tratarei delas
aqui. Mas como um princípio geral, elas vão na direção de fornecer uma
compreensão da conexão entre educação etrabalho que auxilie na tarefa de
intervir politicamente para romper cornos padrões existentes de desigual­
dade no processo de produção e "distribuição" do conhecimento.
Nota
l.Desde que escrevi o trabalho que originou este capítulo, modifiquei meu pensa­
mento a respeito da utilidade dos conceitos de qualificação/desquaiificação para
uma análise das relações entre educação e trabalho. Esta compreensão modificada
aparece no capítulo seguinte.

150 ToMMZ Tadea da Sdva


8
Divisão sociai do trabalho —divisões educacionais:

A relação entre educação e trabalho tem-se constituído num importante


tema de pesquisa e de teorização em anos recentes. Ao mesmo tempo, a
própriaintervençãópolíticaepráticano campo da educação brasileira tem-
se centrado muitas vezes em torno dessa relação. De uma forma ou de outra,
há uma crescente consciência a respeito da centralidade das relações entre
educação e trabalho tanto para a teoria quanto para a prática no campo
educacional.
Entretanto, essa importância não tem sido acompanhada por uma
teorização clara e adequada. Há de um lado, uma total falta de clareza na
própria conceituação dessa relação, como demonstram, por exemplo, as
vagas e imprecisas alusões ao trabalho como princípio educativo, em geral
baseadas numa perspectiva idealista do trabalho e da educação. De Outro,
mesmo as propostas e os estudos considerados mais críticos não conse­
guem sair da esfera das idéias e conceitos convencionais no tratamento
dessa questão. É um dos argumentos do presente trabalho que uma das
formas de se superar isso é através da retomada do conceito de divisão
social do trabalho. Em outras palavras, argumento que o que deveria estar
no centro das discussões entre as relações entre educação e trabalho é a
forma pelas quais a divisão social do trabalho e as divisões educacionais
estão mutuamente implicadas.
No capítulo anterior, tentei chamar aatenção para o divórcio existente
entre a literatura crítica sobre o processo de escolarização e a literatura
marxista sobre o processo de trabalho capitalista. O objetivo do presente
capítulo é ampliar aquela análise, através de uma discussão das relações
entre a divisão social do trabalho, o processo de qualificação e as divisões
educacionais.

O <?ue produz e o que reproduz e?n educação 151


Divisão ão trabailto e ^aah/icação was teorias criticas ãa eãacação
A demonstração de que existe uma conexão entre a divisão capitalista do
trabalho e a estrutura e o funcionamento da educação tem sido apontada
como um dos pontos fortes das chamadas teorias críticas da educação,
desenvolvidas nos últimos vinte anos. Embora mais explicitamente pre­
sentes nas chamadas teorias da reprodução, a postulação da existência de
alguma conexão entre essas duas estruturas tem estado presente, em maior
ou menor grau, também em perspectivas nas quais o conceito de reprodu­
ção não é central, como, por exemplo, nas manifestações iniciais da
chamada nova sociologia da educação, tal como desenvolvida por Young
e colaboradores no início dos anos 70.
Mas qual é, precisamente, a natureza dessa conexão, e quais são,
exatamente, os mecanismos pelos quais ela se efetua? Na teoria crítica de
inspiração marxista, que é a que estaremos focalizando neste trabalho,
parte-se da existência de uma sociedade capitalista que se caracteriza pela
divisão central entre duas classes definidas por uma relação econômica:
proprietários e não-proprietários dos meios de produção. No centro da
dinâmica que move esta sociedade está a luta em tomo de objetivos opostos
entre essas duas classes. De um lado, a busca de auto-valorização de seu
capital e sua expansão pelos capitalistas, o que acarreta extrair o máximo
possível de mais-trabalho da força de trabalho contratada; de outro, a
oposição que movem contra esse processo os trabalhadores.
A divisão do trabalho efetuada pelo capital no processo de trabalho é
uma exigência do processo de auto-valorização, na medida em que essa
divisão transfere o controle do processo de trabalho dos trabalhadores para
o capitalista, facilitanto desta forma o processo de extração da mais-valia.
Embora esta divisão possa se aprofundar até os menores detalhes, seu
aspecto mais importante é aquele que separa funções de concepção e
planejamento, de um lado, e funções de execução, de outro. Ou, de umlado
o trabalho manual, e de outro o trabalho intelectual.
De que forma a educação institucionalizada está implicada nesse
processo, de acordo com as teorias críticas da educação? A instituição
educacional não cria essa divisão, que tem origem, como vimos, nas
necessidades de valorização do capital/ mas ela tem um papel nesse
processo, que é o de produzir pessoas com as características adequadas
àquela divisão. Assim, o sistema escolar está constituído de forma a
fornecer uma população dividida de acordo com aquelas exigências, isto
é, a produzir, de umlado trabalhadores intelectuais, e de outro trabalhado­
res manuais (mesmo quando estes são definidoSe produzidos por falta de

Í52 TouMz Taãeu & Silva


escola). O sistema escolar está dividido em níveis que refletem a divisão
central entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Através do controle do acesso a esse sistema e dos modos de se sair
dele (sair, fracassado, antes de passar por todo o ciclo ou ir até o fim),
produz-se uma força de trabalho com características distintas, que se
encaixam, não por coincidência, nas exigências da divisão trabalho intelec­
tual/ trabalho manual na esfera da produção. Não importa se essa divisão
é produzida tão-somente pelo rótulo que é atribuído aos diferentes seg­
mentos dessa população por efeito do processo de certificação, com o
certificado servindo como uma sinalização, independentemente de quais­
quer efeitos socializadores diretos do processo de escolarização (Meyer,
1991), ou se pela transmissão diferencial de habilidades e inculcação de
atitudes, de acordo com os diferentes níveis do sistema educacional. Em
qualquer dos casos, a instituição educacional fornece um meio pelo qual a
distribuição na divisão trabalho intelectual/ trabalho manual na produção
é tornada possível sem maiores problemas.
Na maior parte dessa literatura, entretanto, a ênfase tem sido na
contribuição da instituição educacional para a produção de pessoas com
características de socialização adequadas à divisão social do trabalho. Estas
teorias têm diferido quanto à ênfase dada aos resultados específicos do
processo de escolarização adequados àdivisão social do trabalho. De forma
geral, elas têm enfatizado os aspectos de preparação ideológica da força de
trabalho, em detrimento do treinamento em habilidades técnicas específi­
cas. Apesar de se admitir a necessidade desse treinamento, como em
Althusser (1983), por exemplo, em geral, essa necessidade é minimizada
em função precisamente das exigências técnicas diminuídas de um proces­
so de trabalho dividido, fragmentado, trivializado. Imprescindível, sim, é
que a força de trabalho seja ideologicamente moldada de acordo com seu
futuro posto no processo de produção, tarefa para a qual está precisamente
voltada a escola.
Neste quadro genérico de caracterização das teorias críticas da educa­
ção, pode-se dizer que há pouca preoc upação com a noção de qualificação,
no sentido de um saber técnico específico, tal como desenvolvida na
literatura marxista sobre processo de trabalho. Supõe-se que a instituição
educacional prepara para um trabalho manual genérico e indiferenciado,
para o que são suficientes certas habilidades mínimas, como saber ler e
escrever, e certas características atitudinais apropriadas. Mesmo quando
trata daqueles ramos do sistema educacional direta e explicitamente envol­
vidos na formação de uma força de trabalho portadora de certas qualifica­
ções técnicas, o que se ressalta são os aspectos ideológicos dessa educação.

O que produz e o que reproduz cm educação 153


Em suma, diferentemente da literatura marxista sobre o processo de
trabalho, que supõe a existência de um trabalho qualificado no âmbito do
processo de trabalho capitalista (implícita até mesmo na noção de desqua-
lificação - só se desqualifica aquilo que é qualificado), as teorias críticas da
educação analisam o trabalho manual de forma global, como sendo, por
suposição, necessariamente desqualificado, genérico, abstrato, indiíeren-
ciado. Isto talvez explique porque a noção de qualificação/desqualificação
seja uma noção amplamente ausente desta literatura. Aqui a qualificação
é um conceito bipolar, alheio à conotação que tem na literatura sobre o
processo de trabalho, de uma escala contínua, condição mesma de se falar
num processo de desqualificação, que é a tônica daquela literatura. A rigor,
qualificado é o trabalho mental, associado com as profissões universitárias.
O resto se dissolve na categoria de trabalho manual, supostamentedesqua-
lificado.
Há aqui, estranha e paradoxalmente, apesar de tudo que a literatura
crítica da educação representa de denúncia à estrutura e ao funcionamento
do sistema educacional, uma espécie de pacto entre ela e o ideário educa­
tivo liberal que tem moldado o discurso educacional moderno. Evidente­
mente este discurso jamais admite, a não ser em circunstâncias excepcio­
nais, como na política educacional do regime militar brasileiro de 1964, por
exemplo, que a educação deve preparar ou prepara uma força de trabalho
diferenciada. Neste discurso a educação visa preparar o cidadão, desenvol­
vê-lo pessoalmente, e formá-lo para uma profissão, mas esta profissão é
sempre idealmente uma profissão de nível universitário, constituindo
apenas um detalhe, um acidente, a ser atribuído a características individu­
ais, que a pessoa acabereãlmente numa profissão manual. Um pressuposto
similar pareceestar por detrás das teorias críticas da educação,em contraste
com a literatura marxista sobre o processo de trabalho.
Em suma, as teorias críticas da educação ignoram amplamente o
conceito de qualificação. Na seção final voltarei a esta questão. Vejamos
agora como a questão da qualificação é tratada pelo próprio Marx.
Divisão ão trabalho e qwaii/icação em Marx
Uma discussão da noção da qualificação deveria incluir: (a)Qual o conteú­
do da qualificação; (b)Como a qualificação é adquirida e transmitida;
(c)Qual seu papel no processo de valorização e acumulação do capital e
consequentemente na divisão social do trabalho e na subordinação do
trabalho ao capital. No que seguepretendo discutir estas questões com base
na descrição que Marx faz do processo de trabalho, com ênfase no Capitai.

154 Tomaz Taãea ãa Silva


Evidentemente, Marx não faz no Capitai nenhuma discussão prolon­
gada do conceito de qualificação que lhe precise o conteúdo. Apesar da
importância que tem o conceito na discussão que ele faz do processo de
trabalho capitalista, sua definição permanece todo o tempo implícita. Em
contraste com a complexidade que ganhou posteriormente na literatura
marxista sobre o processo de trabalho, para Marx sua definição mesma não
é nunca tornada problemática.
Numa primeira aproximação, o trabalho qualificado ou complexo é
equacionado como um múltiplo do trabalho simples. Ou melhor, na teoria
do valor desenvolvida por Marx no Capital, é o mecanismo do mercado que
realiza esse equacionamento:
Assim como na sociedade burguesa umgeneral ou banqueiro desempenha um grande
papet, enquanto o homem simples, ao contrdrio, desempenha um papel ordindrio,
assim é também aqui com o trabalho humano. Ele é dispéndio da /orça de trabalho
simples que em média toda pessoa comum, sem desenvolvimento especial, possui em
seu organismofísico. Embora o próprio trabalho médio simples mude seu caráter, em
di/êrentes países ou épocas culturais, ele é porém dado em uma sociedade particular.
Trabalho mais complexo vale apenas como trabalho simples potenciado, óu antes,
multiplicado, de maneira que um pequeno quantum de trabalho complexo é igual a
um grande quantum de trabalho simples. Que essa redução ocorre constantemente,
mostra-o a experiência. Lima mercadoria pode ser o produto do trabalho mais
complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho simples e, por isso, ele mesmo
representa determinado quantum de trabalho simples. As di/êrentes proporçóes, nas
quais as di/êrentes espécies de trabalho são reduzidas a trabalho simples como
unidade de medida, sãoJixadas por meio de um processo social por trás das costas dos
produtores e lhes parecem, portanto, ser dadas pela tradipio. Para e/êitos de
símpli/icação valerá a seguir cada espécie de^orpa de trabalho, diretamente, como
Jõrça de trabalho simples, com o que apenas se poupa o es/ôrço de redução (Marx,
1935, v. 1, p. 51/.

Esta solução é reiterada, até com mais ênfase, numa passagem


posterior:
Observamos anteriormente que para o processo de valorizapio é totalmente indi/ê-
rente se o trabalho apropriado pelo capitalista é trabalho simples, trabalho social
médio ou trabalho mais complexo, trabalho de peso especi/icosuperior. O trabalho que
vale como trabalho superior, mais complexo emJãce do trabalho social médio, é a
exteriorizapio de uma^rp: de trabalho na qual entram custos mais altos de/òrmação,
que a/orça de trabalho simples: Se o valor dessa/orça é superior, ela se exterioriza,
por conseguinte, em trabalho superior e se objetiva nos mesmos períodos de tempo,
em valores proporcionalmente mais altos. Qualquer que seja, porém, a di/êrença de
grau entre o trabalho do/iandeiro e o do joalheiro, a porpio de trabalho com que o

O que produz e o que reproduz em educação 155


joaMdro apenas rrpóf o paior de saa própria jbrp: de tra6aiizo ndo se distingue
qualitatipamenfe, & modo algum, da por^do de tra6aiito adicionai, com <?ue gera
mais-paiia. Depois, como antes, a mais-paiia restdta somente de um excesso quanti­
tativo de irabaii:o, da darapdo proiongada do mesmo processo de frabaii;o, qae é em
um caso o processo da produpto de jios, em oairo, o processo da prodapío de jóias
(Marx, 1965a, o. I, p. 162).
Mas embora isto resolva o problema de como o trabalho complexo ou
qualificado entra no cálculo do valor de umamercadoria,isto é, no âmbito
do processo de valorização, não resolve o problema de definir qualificação
ou trabalho qualificado no âmbito do processo de trabalho (isto é no âmbito
do trabalho concreto, onde os trabalhos aparecem como qualitativamente
diferentes), se concebemos, com o faz Marx, o processo de produção
capitalista como sendo a unidade desses dois processos. Para ver como
Marx resolve (ou não resolve) isto, temos de acompanhá-lo em sua descri­
ção das transformações por que passou (em sua época), em termos de
processo de trabalho, o processo de produção capitalista, muito embora a
nota de rodapé afixada ao parágrafo que acabo de citar possa levar a crer
que Marx minimize a diferença entre trabalho simples e trabalho qualifica­
do até mesmo na esfera do valor de uso: "A diferença entre trabalho
superior e trabalho simples, sMfed e unsMied iabour, baseia-se, em parte, em
meras ilusões, ou pélo menos diferenças que há muito tempo cessaram de
ser reais e só perduram em convenções tradicionais..." (Marx, 1985a, v. 1,
p. 162). Esta observação, entretanto, deve ser lida como uma constatação de
fato sobre a situação a que chegou a divisão do trabalho na grande
indústria, tal como ela se afigurava no tempo de Marx, ponto final de um
desenvolvimento que iremos discutir a seguir, e não como a negação da
existência de uma escala de qualificação.
E bastante conhecida a análise que Marx faz do desenvolvimento do
processo de trabalho capitalista, principalmente a parte que se refere às
etapas da cooperação, manufatura e maquinofatura, nos capítulos XI, XII
e XIÍI do livro 1de O Capital. De forma geral, as leituras que se fazem desses
capítulos, sobretudo a partir de Braverman (1977), descrevem-no, no que
se refere ao processo de qualificação/desqualiíicação da força de trabalho,
como um processo de desqualificação crescente. Nesta interpretação, o
artesanato é tomado como o ponto original demáxima qualificação de uma
força de trabalho que, utilizada pelo capital nas formas sucessivas nas quais
vai reorganizando a produção, desemboca no operário parcial e desquali­
ficado da maquinofatura. No centro desta suposta degradação estaria
naturalmente a separação entre concepção e execução, isto é, entre trabalho
intelectual e trabalho manual. Na interpretação corrente, o processo todo

156 Tomaz Taden da Silva


constitui-se num processo de expropriação, por parte do capital, do saber
possuído pelo trabalhador.
Este tipo de interpretação supõe que haja uma definição precisa do que
constitui trabalho qualificado, o que por sua vez exige um ponto de
referência, uma espécie de marco zero a partir do qual se pudesse avaliar
o grau de des-qualificação da força de trabalho. Nas leituras que comumen-
te se fazem desses textos de Marx, este ponto de referência é o trabalho do
artesão, tomado como paradigma do trabalhador completo e integral,
existindo mesmo um certo tom de glorificação deste tipo de trabalhador.
Mas isto quase nunca é feito de forma explícita. Além disso, o ponto de
referência é freqüentemente móvel, mas nunca exatamente localizável, só
se sabendo que está sempre no passado. Vêm daí provavelmente as
inúmeras dificuldades para se definir precisamente o conceito de qualifi­
cação, como veremos mais adiante.
Mas dificilmente esta interpretação pode ser inferida da leitura dos
capítulos pertinentes de O Capital. Não se pode localizar nesses capítulos
qualquer trecho queautorize ainterpretação deque aanálise de Marx esteja
centrada num processo contínuo de degradação da força de trabalho que
partisse de um suposto pólo de máxima qualificação. Nomínimo, não é este
o eixo da análise de Marx, contrariamente ao que nos faz crer a interpretação
corrente.
Embora, evidentemente, Marx descreva a progressão "cooperação
simples-manufatura-maquinofatura" como acarretando mudanças im­
portantes no processo de trabalho, e mesmo nas habilidades exigidas dos
trabalhadores e na mutilação que a divisão detalhada do trabalho implica
para o trabalhador, esta análise não é nunca feita com referência a algum
ponto máximo de qualificação que tenha existido no passado e de forma
independente das outras características do processo de produção. Não se
pode inferir daí nenhuma espécie de glorificação do trabalho artesanal ou
de formas de trabalho passadas. Muito pelo contrário, Marx chega a
ridicularizar explicitamente este tipo de nostalgia:
O das contradiçães & ama yórma histórica & provação é, ao
entanto, o único caminho de soa úissolapao e estrataraçJo de ama nona. Ne sutor
ultra crepidam, o nec plus ultra da sapi&tcia artesanal tornoa-se ama tremenda
ho&agem a partir do momento qae o relojoeiro Watt inventou a mdq.uina a vapor, o
barbeiro Arhívright, a máçaina de/iar, o joalheiro Eulton, o navio a vapor (Marx,
19#5a, v.2, p. 90)

É característico que até o século X VJff inclusive, os o/icios específicos se chamassem


mysteries (misteres), em cujos arcanos só o empírica e pro/issionalmente iniciado

O que produz e o que reproduz em educação Í57


podia peneirar. A grande indústria rasgoa o péu que ocultava aos Aomens soa próprio
processo de produpto sociai e que trans/órmaoaos óioersos ramos da proda^o, que
se Aapiam Maiaraimenie pariicaiarizaóo, em enigmas & ans para os oatros e até
mesmo para o iniciado em cada ramo (Marx, 1985a, o. 2, p. 88).

Mas examinemos em mais detalhes o desenvolvimento da exposição


que Marx faz dos diversos estádios da produção capitalista. Na descrição
da primeira etapa daquela progressão, a cooperação simples, o que ele
destaca são as vantagens que advém para o capital de se reunir nummesmo
local vários trabalhadores: a dissolução das diferenças individuais no
trabalho médio; as economias de escala; o resultado advindo do trabalha­
dor coletivo, que é diferente (em quantidade e qualidade) da simples soma
dos trabalhos individuais; a emulação e estímulo advindos do trabalho em
conjunto. Mas não existe nenhumamodificação importante no processo de
trabalho em si, além da reunião dos trabalhadores no mesmo local:
A atipidade & nm mimem maior & tra&a!!zadores,ao mesmo tempo, no mesmo ÍMgar
(...), para produzir a mesma espécie de mercadoria, so& o comando do mesmo
capitalista, cónstitai Aistórica e conceitMalmente o ponto de partida da produpto
capitalista. Com respeito ao próprio modo de prodMpío, a manK/atara, por exemplo,
mal se distingue, nos seus comemos, da indústria artesanal das corporaçóes a ndo ser
pelo maior número de traAalAadores ocapados simultaneamente pelo mesmo capital.
A o/icina do mestre-artesdo é apenas ampliada.
De inicio, a di/èreH(% é, portanto, m eram ente ^Mantitatioa (Marx, 1985a, p. 1, p.
257).

Com o desenvolvimento da manufatura, entretanto, introduz-se uma


importante modificação no processo de trabalho: atividades antes execu­
tadas por um único trabalhador são subdivididas entre diversas atividades
executadas por vários trabalhadores. Não há, entretanto, nenhuma modi­
ficação essencial no processo de trabalho, além dessa divisão:
Para o entendimento correto da dipisdo do traAaZAo na manu/ãtura é essencial atentar
para os seguintes pontos.- antes de mais nada, a anúlise do processo de produto em
suas Jáses particulares coincide inteiramente com a decomposto de uma atipidade
artesanal em suas dipersas operapóes parciais. Composta ou simples, a execupdo
continua artesanal e portanto dependente da Jôrp:, AaAilidade, rapidez e seguranya
do traAalAadpr indipidual no mane/o de seu instrumento (Marx, 1985a, p. l.,p.268).

Essá divisão tem, isto sim, implicações para o trabalhador individual,


na medida em que o faz executar repetidamente uma e mesma atividade
unilateral:

158 Tomaz Tadeu da Silva


A manu/ãtura propriamente dita não só submete ao comando e á disciplina do capitai
o trabalhador antes autônomo, mas cria também amagra%Ma(%o i:ier<irqMÍca entre os
próprios frahaÜMíiores. En<yaanto a cooperação simpies emgerai não modi/ica o modo
& tra&aii:o do indivíduo, a manu/ãtnra o reooíuciona pela base e se apodera da /orça
individual de trabalho em saas raízes. Eia aleija o írahaÜMdor convertendo-o numa
anomaiia, ao /õmentar arii/iciaimenie sua ÍM&iiidade no pormenor mediante a
repressão de impulsos e capacidades produtivas, (...) (Marx, 19#5a, o. 1, p. 233).

Nesta análise que Marx faz do processo de trabalho na manufatura,


está a base das discussões mais recentes sobre o processo de desqualifica-
ção do trabalhador. Embora ele não use explicitamente os conceitos de
qualificação e de desqualificação, é sobre esses conceitos que ele está
falando quando diz:
Os conhecimentos, a compreensão e a vontade, que o camponês ou artesão autônomo
desenvolve mesmo que em pequena escala, (...), agora passam a ser exigidos apenas
pela q/icina em seu conjunto. As potências intelectuais da produção ampliam sua
escala, por um lado, porque desaparecem por muitos lados. O que os trabalhadores
parciais perdem, concentra-se no capitai com que se confrontam. E um produto da
divisão manu/âtureira do trabalho opor-lhes as /orças intelectuais do processo
material de produção como propriedade alheia e poder que os domina (Marx, Í9#5a,
v. 1, p. 233).

E Marx descreve a seqüência desse processo, que se estende à maqui-


nofatura:
Esse processo de dissociação começa na cooperação simples, em que o capitalista
representa em/ácedos trabalhadores individuaisa unidadeea vontade do corpo social
de trabalho. Ó processo desenvolve-se na manufatura, que mutila o trabalhador,
convertendo-o em trabalhador parcial. Ele se completa na grande indústria, que
separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a /orça a servir
ao capital.
Na manu/ãtura, o enriquecimento do trabalhor coletivo e, portanto, do capitai em
/orça produtiva social é condicionado pelo empobrecimento do trabalhador em/orças
produtivas individuais (Marx, f935a, v.f, p. 233).

É esta separação entre os componentes intelectuais e manuais do


processo de trabalho que parece estar na base do processo de desqualifica­
ção do trabalhador descrito por Marx. A tendência à intensificação desta
separação, iniciada com a simples divisão do trabalho na manufatura,
acentua-se no desenvolvimento da maquinaria na fábrica capitalista, em
que há uma modificação essencial nos meios de trabalho e não apenas na
organização da força de trabalho, como na manufatura:

O que produz e o que reproduz em educação Í59


Ala manufatura, a articulação áo procasso social áe trabalbo é puramente subjetiva,
combinação áe trabalhadores parciais; no sistema & meninas, a grande indústria
tem um organismo <ie proáução inteiramente objetivo, que o operário já encontra
pronto, como contiipTo de proziapto materiai (Marx, 19á5a, v. 2, p. 17).

Com a maquinaria o capital tem à disposição um meio eficiente para


vencer a barreira oposta por um certo saber que o trabalhador da manufa­
tura ainda detém, apesar da divisão do trabalho que se efetua aí:
Com oferramenta de trabalbo, transfere-se também a oirtnosiziaíie, em sen manejo,
do trabalhador para a menina. A eficácia tiaferramenta é emancipada das limitações
pessoais (ia força de trabalbo humano. Com isso, supera-se o fiendamento técnico
sobre o qual repousa a divisão do trabalbo na manufatura. No lugar da inerarqnia de
opérários especializados que caracteriza a manufatura, surge, por isso, na fabrica
automática, a tendência à igualação ou uiveiação dos trabalhos, que os anziiiares da
maquinaria precisam executar, no iugar das di^renças artificiais criadas entre os
tra&aiÍMdores parciais surgem de modo preponderante as diferenças naturais de
idade e sexo (Marx, 19<?5a, v.2, p. 41).

Mas há, para Marx, um lado positivo na introdução da maquinaria. Ela


possibilita que o trabalhador não fique restrito a uma única atividade por
toda a vida, que possa mudar de função, como na divisão de trabalho da
manufatura, namedida em que as funções sãointercambíáveis. Entretanto,
esta possibilidade técnica não se implementa, devido às necessidades do
capital:
Embora a maquinaria descarte agora, tecnicamente, o velho sistema da divisão do
trabalbo, este persiste iniciaimente como tradição da manufatura, por hábito, na
fabrica, paro ser, depois, reproduzido e consolidado sistematicamente peio capital
como meio de exploração da força de trabalbo defôrma ainda mais repugnante. Da
especialidade por toda a vida em manejar uma ferramenta parcial surge, agora, a
especialidade por toda a vida em servira uma máquina parcial (Marx, 1935a, v. 2,
p. 43).

Na subordinação do trabalhador ao sistema de máquinas, ocorre,


como diz Marx, um esvaziamento do conteúdo do trabalho (Marx, 1985a,
v.2,p.43) . E ele reitera aqui a descrição do processo de separação queocorre
com a introdução da maquinaria:
Mediante sua transformação em autômato, o próprio meio de trabalbo se confronta,
durante o processo de trabalbo, com o trabalhador como capital, como trabalbo morto
que domina e suga aforça de trabalbo viva. A separação entre as potências espirituais
do processo áe proáução e o trabalbo manual, bem como a transformação áas mesmas

160 Tomaz Tadeu da Silva


em poderes do capitai sobre o trabalho, se completa, como ;áyõi indicado antes, na
grande industria erguida sobre a base da maquinaria. A habilidade pormenorizada
do operador de máquina individual, esoaziado, desaparece como algo ín/imo e
secundário perante as enormesybrpzs da Natureza e do trabalho sociai em massa que
estdo corpori/icadas no sistema de máquinas e constituem com eie o poder do patráo
(master) (Marx, 19#5a, o. 2, p. 43).

Não há talvez nenhuma passagem que descreva melhor o processo de


desqualiíicação que esta:
Viu-se como a grande indústria supera tecnicamente a divisáo manu/aiureira do
trabalho, (...), enquanto, ao mesmo tempo, a/orma capitalista da grande indústria
reproduz ainda mais monstruosamente aquela divisão dq trabalbo, najabrica
propriamente dita,por meio da trans/ormaqdodo trabalhador em acessório consciente
de uma máquina parcelar e, em todos outros lugares, em parte mediante o uso
esporádico das máquinas e do trabalbo das máquinas, em parte por meio da
introdução de trabalboyéminino, inlãHtil e não quali/icado como nona base da divisão
do trabalbo. (..JNasgrá^cas inglesas de livros, por exemplo, ocorria anttgamente a
passagem, correspondente ao sistema da velha manu/átura e do artesanato, dos
aprendizes de trabalhos mais leves para trabalhos de mais conteúdo. Eles percorriam
as etapas de uma aprendizagem, até serem tipógra/òs completos. Saber ler e escrever
era uma exigência do q/icio. Tudo isso mudou com a máquina impressora. Ela
emprega duas espécies de trabalhadores.- um trabalhador adulto, o supervisor da
máquina, e mocinhos, em geral com 11 a 17 anos de idade, cuja tare/ã consiste
exclusivamente em colocar uma yblha de papel na máquina ou retirar dela a yblha
impressa (Marx, 19#5a, v. 2, p. 67).

Para Marx, entretanto, há um lado positivo no desenvolvimento da


grande indústria. Embora ela reproduza a velha divisão capitalista do
trabalho, còm suas especialidades detalhistas rigificadas, ela também
permite a:
variação do trabalho, yiuidez da Junção, mobilidade, em todos os sentidos, do
trabalhador. (...) Idas se a variação do trabalho agora se impãe apenas como lei
natural, que se de/ronta com obstáculos por toda parte, a grande indústria torna, por
suas catástro/ès mesmo, uma questáo de vida ou morte reconhecer a mudança dos
trabalhos, e portanto, a maior polivalência possível dos trabalhadores, como lei geral
e sociai da produção (...). Eia torna uma questáo de vida ou morte substituir a
monstruosidade de uma miserável população trabalhadora em disponibilidade,
mantida em reserva para as mutáveis necessidades de exploração do capital, pela
disponibilidade absoluta dohomem pardas exigências do trabalho; o indivíduo-
Jragmen to, o mero portador de umaJunção social de detalhe, pelo indivíduo fotalmen-

O que produz e o que reproduz em educação 161


ie tlesenvolválo, para o çaa! di/êrenfesjançôgs sociais s^o moílos íie atívãla& ^ac se
alternam (Marx, 1 9Ma, o. 2, p. #9).

É esta possibilidade positiva do sistema fabril que permite que Marx


enuncie sua célebre fórmula da combinação de educação com trabalho
produtivo:
Do sistemajábril, como se pode ver detalhadamente em Ro&ert Owen, hrotoa ogerme
da edacapto dojataro, çaehdde conjugar, para todas as crianças acima de certa idade,
trabalho prodativo com ensino e gindstica, ndo só como am método de elevar a
prodaçdo social, mas como ánico método de prodazir seres hamanos desenvolvidos
em todas as dimensóes (Marx, ed. Abril, v. 2, p. á7).
Se a legislaptofabril, como primeira concessdo penosamente arrancada ao capital, só
conjuga ensino elementar com trabalho jãbrii, ndo hd dávida de %ae a inevitdvel
conquista do poder político pela classe operdria hd de conquistar também para o
ensino teórico e prdtico da tecnologia sea lagar nas escolas dos trabalhadores. Mas
tampoaco hd dávida de que ajõrnta capitalista deprodaçdo e as condiçóes econômicas
dos trabalhadores que lhe correspondem esMona contradiçdo mais diametral comtais
/érmenfos revolaciondrios e sea objetivo, a saperaçdo da antiga divisdo do trabalho
(Marx, 39S5a, v. 2, p. 90).

Como adiantei no início desta seção, não há em Marx nenhum


tratamento sistemático do conceito de qualificação. Sua definição, entre­
tanto, está implícita na descrição que ele faz do desenvolvimento do modo
de produção capitalista e do que isto implica em termos de desqualiücação
do trabalhador. Qualificação, então, implicaria o domínio completo, envol­
vendo habilidades manuais e intelectuais, de um determinado processo de
trabalho. A busca de auto-valorização por parte do capital leva a uma
crescente divisão do trabalho e ao desenvolvimento de um sistema de
máquinas que, pouco a pouco, leva a uma separação entre o trabalho
manual e o trabalho intelectual, entre funções de concepção e de execução
e, além disso, à estreita especialização numa tarefa reduzida ao mínimo
necessário.
Estes desenvolvimentos são inerentes à necessidade que tem o pro­
cesso de produção capitalista de constantemente revolucionar os meios de
produção, devido ao mecanismo da concorrência. Para isto é necessário
exercer o domínio real do processo de trabalho, isto é, é preciso que o
trabalho esteja realmente subordinado ao capital, no que são essenciais a
divisão do trabalho é a fábrica capitalista com seu sistema de máquinas.
Isto, naturalmente, leva à degradação, em termos de habilidades, dos
postos de trabalho. Este processo de crescente desqualifiçaçãó tem a
vantagem adicional de acarretar menores custos de reprodução da força de

162 Towiaz Ta&u tia Silva


trabalho, ao diminuir o tempo de treinamento, e portanto rebaixando,
assim, seu preço e aumentando a taxa da mais-valia relativa. Mas aquilo
que Marx descrevia como o ápice desse processo de degradação do trabalho
seria ultrapassado com o desenvolvimento posterior do capitalismo, con-
íorme querem demonstrar os estudos relativamente recentes sobre o
processo de trabalho.
Os esiudos sobre o processo <áe írobalbo e o conceito íle ^Moh/icoçõo
Apenas com o agora clássico estudo de Braverman (1977) é retomado o
estudo do processo de trabalho capitalista nos moldes realizados por Marx.
Existe um hiato entre o estudo do próprio Marx e este novo marco
estabelecido por Braverman, mas desde então este hiato tem sido mais que
compensado por um grande número de estudos sobre o processo capitalis­
ta de trabalho desenvolvidos sob um ponto de vista marxista.
De forma geral, estes estudos caracterizam o processo de produção
capitalista como descrevendo uma trajetória que reproduz de perto aquela
demonstrada por Marx. Istoé, os desenvolvimentos posteriores do proces­
so de trabalho capitalista, nalógica dabusca de auto-valorização do capital,
têm apenas acentuado aquelas tendências à divisão do trabalho e à trãnS-
íerência crescente dos conhecimentos e habilidades, do trabalhador, para
o sistema técnico.
AsSim, por exemplo, Braverman (1977) descreve o taylorismo, o
sistema de análise e decomposição do processo de trabalho concebidopor
Frederick Taylor, como mais uma etapa daquela tendência à divisão e ao
controle do processo do trabalho perseguido pelo capital na sua busca de
auto-valorização. Com o taylorismo, o processo de trabalho é subdividido
nos seus mínimos componentes, o conhecimento que tem o trabalhador
desse processo é expropriado pela gerência capitalista, e o trabalhador
passa a ser controlado por essa especificação detalhada de seu posto de
trabalho.
Além disso, segundo Braverman, esta tendência não se limita àqueles
postos dé trabalho do setor secundário da economia, mias se estende aos
trabalhos de escritório e do setor de prestação de serviços, numa proletari-
zação crescente do trabalho assalariado. O próprio trabalho mental toma-
se subdividido e esvaziado de qualquer conteúdo intelectual.
Naturalmente, nesta argumentação, a importância do conceito de
taylorismo está não apenas no método específico concebido por Taylor e
aplicado talvez numas poucas indústrias em sua própria época. O tayloris­
mo descrevería, pelo contrário, uma tendência e um estádio generalizado

O que produz e o que reproduz em educação 163


do capitalismo monopolista, e como tal, vale como descrição do desenvol­
vimento do processo de trabalho capitalista nesta fase, mesmo que não se
remeta diretamente aos métodos específicos de Taylor.
Dentro desta mesma linha, descrevem-se outras fases desse processo
de degradação constante dos postos de trabalho dentro da produção
capitalista. Assim, ao taylorismo se seguiria o íordismo, caracterizado pela
introdução da linha de montagem e pela produção em massa, num proces­
so que implicaria numa ulterior desqualificação do posto de trabalho e
numa intensificação adicional do trabalho (Coriat, 1982). As variadas
tentativas de modificação da organização do trabalho (enriquecimento de
tarefas, círculos de qualidade, relações humanas, ilhas de produção, etc.)
constituiría uma nova manifestação da mesma tendência, sendo às vezes
agrupadas sob o rótulo de neofordismo, falando-se também em pós-
fordismo. A relativamente recente tendência à automatização, à informa­
tização e aos métodos flexíveis de fabricação constituiría a mais nova
manifestação do mesmo desenvolvimento, como estratégias de que lança
mão o capital para fazer face à crise econômica e que não podem ser
enfrentadas com os antigos métodos de produção.
Nocentro destes estudos está, naturalmente,anoção de qualificação/
desqualificação, embora as avaliações sobre a extensão e o significado do
processo de desqualificação variem bastante. Elas podem descrever, como
faz talvez a maioria desses estudos, este desenvolvimento simplesmente
como um processo de pura desqualificação dos postos de trabalho, com,
num lado uma grande maioria de trabalhos desqualificados e, no outro, um
número cada vez menor de trabalhos qualificados. Ou podemos ler uma
variação dessa tese, segundo a qual há um processo de polarização. Sim, é
verdade que há um aumento do número de postos de trabalho cada vez
mais desqualificados, mas há também no outro pólo, uma qualificação
ampliada (Freyssenet, 1980). Mas a discussão toda gira sempre em torno da
questão: está havendo ou não um processo de desqualificação?
Embora estes estudos se façam tendo em vista sempre suas possíveis
implicações políticas, sobretudo em termos das lutas operárias em tomo
dessas questões, tem-se a impressão de que no global a discussão gira em
torno de um problema que se tornou trivializado, a ponto de se perder de
vista o objetivo que tinha Marx ao colocar a questão nestes termos, ou seja,
de contestar a divisão do trabalho instituída pelo processo de produção
capitalista. A própria discussão da noção de qualificação, feita de forma
dissecada, é uma demonstração desta tendência do estudo do processo de
trabalho capitalista de voltar-se para dentro de si mesmo, perdendodc vista
o quadro de referência mais amplo. É para estas tentativas de definição que

154 ToMMzTa&M
me volto agora, remetendo para a última seção deste trabalho a discussão
mais aprofundada da questão de uma certa tendência à trivialização deste
campo de estudos.
O significado da noção de ^Maii/icação
Na maior parte da literatura sobre o processo de trabalho, a definição da
noção de qualificação permanece implícita, tal como, aliás, ocorreu em
Marx. Têm havido, entretanto, umas poucas tentativas de precisar-lhe
melhor o significado: Michel Freyssenet, por exemplo, lista sete possíveis
significados do termo, procurando, depois, uma forma de superar esta
indeterminação. Na lista de Freyssenet (1980, p. 53), o termo qualificação
carrega os seguintes diferentes significados: (a)A qualificação real exigida
para assegurar corretamente o posto de trabalho atribuído, isto é, o conhe­
cimento que supõe a tarefa para ser executada, segundo os critérios de
qualidade do capital, (b)A qualificação real do trabalhador, que se decom­
põe na: qualificação real útil no processo de valorização do capital; nos
outros conhecimentos que não entram no processo de trabalho atual. (c)A
qualificação atribuída oRcialmente aos postos de trabalho para serem
ocupados, (d) A qualificação que se atribui oficialmente a um trabalhador,
depois de receber uma formação, (e) A qualificação exigida paraser contra­
tado e ocupar um posto dado. (f)A soma de qualificações reais que supõe
um processo de trabalho dado. (g)A qualificação atribuída pelos organis­
mos oficiais de estatística, tanto aos empregos como aos trabalhadores.
Partindo dessas múltiplas significações, Freyssenet propõe então
centrar a noção de qualificação no tempo de reflexão sobre a prática:
F esta atiúiãaãé infelectnã!, inseparável ãe qaalçMer tra&aMzo, que é o elemento
comam a toáos os empregos. E o çne ái/êrencia os empregos entre si é o tempo
necessário ãe re/!ex3o sobre a prática (Freyssenet, 19#0, p. 57).
Freyssenet, entretanto, depois de discutir as dificuldades para se
calcular este tempo de reflexão sobre a prática, em função do qual se
determinaria a qualificação, em seu esquema, parece não chegar à solução
alguma para o problema que ele mesmo tinha colocado. Além disto, como
assinala Pierre Rolle (1989, p. 85), a função da formação (isto é, do qualifi­
car-se) é justamente a dereduzir o tempo de reflexão, o que coloca a solução
de Freyssenet em sérias dificuldades.
Pierre Rolle (1989), por sua vez, também incursiona por este árido
terreno, num texto cujo título é precisamente "O que é a qualificação do
trabalho?". Rolle parte duma distinção comumente feita entre qualificação

O tync proánz e o qne reproánz cm eáncação 165


do posto d e trabalho e qualificação d o trabalhador, em torno d a qual aliás
se poderiam agrupar as sete distinções de Freyssenet sintetizadas acima,
para argum entar em favor de u m a concepção m ais d in âm ica d e qualifica­
ção. N esta concepção, a qualificação não é um m odo d e reconhecim ento e
de codificação social das q u alid ad es de trabalho, m as u m a m aneira de
m obilizar, d e reproduzir e d e adicionar as diversas form as d e trabalho
(R olle,198 9,p. 87).
M as ao rejeitar a noção tradicional de qualificação, R olle advoga a
u tilização d e um a outra conceptualização, que, no entanto, ele deixa de
desenvolver:

Em vez da qua!i/ica{#o, seria assim uecgssario descrever um conjunto & mecanismos


coordenados, que transmitem conhecimentos de ama gerapío a oatra, regalando o
emprego ao longo de toda ama vida de trabalho, compondo-os a cada instante em
coletivos de trabalho mais oa menos estdveís (Rolle, 1969, p. 67).

M as a solu ção de Rolle parece m ais contornar o p rob lem a que resolvê-
lo, pois p rop or um a nova conceptualização não vai fazer co m que se deixe
d e u sar o conceito de qualificação. A lém disto, isto colocaria em questão
toda a construção em torno d o desenvolvim ento do p rocesso d e trabalho
capitalista, incluindo a análise d o próprio Marx. R olle parece não ter
resposta p ara isto.
Entretanto, as discussões d e Rolle são im portantes p a ra a m inha
própria análise, porque é u m a das poucas, neste tipo d e literatura, a se
preocupar com a questão d a form ação de um a força d e trabalho qualifica­
da, j á n u m trabalho anterior, R olle cham ara aatenção para esta importante
lacun a n os estudos do processo d e trabalho:

Um exemplo.- ns remunerares na indústria ordenam-se de maneira reiativamente


amHoga á durapto dos períodos defòrmapto seguidos pelas correspo ndentesfbrp:s de
trabalho. Sem dúvida, esta relap?o pode ser interpretada de di/êrentes maneiras. O
certo é que existe equeéa regtdadora do conjunto dos mecanismos da educado e da
relapToentrea educaplo e o emprego. Mas a sociologia datrabalho acha-se constituída
de tal fôrma que náo pode ocupar-se destefenômeno. Os esquemas tradicionais que
questionam a evoiupto técnica, a divisão do trabalho, a cultura, ou os mecanismos de
opinião na hierarquia da fôrp: de trabalho, exigem que se eliminem realidades
externas dfábrica. Dito em outros termos, a relapío entre a educapáo, o mercado da
forp: de trabalho e a situapáo do trabalhador ndo pode ser abordada pela sociologia do
trabalho. Esta disciplina estuda classicamente o operário em sua empresa sem
perguntar-se sobre os mecanismos sociais que ofizeram operário, que oformaram e
que lhe atribuíram o emprego que tem (Rolle e Tripier, 1960, p. 104).

166 Tbmaz Tadeu t^a Silva


Como vemos, a questão da definição dos conceitos de qualificação/
desquaiificação continua altamente problemática. Não é meu objetivo
apresentar uma solução para este impasse. Meu argumento é precisamente
mostrar que talvez estes conceitos sirvam mais para obscurecer a análise
das transformações do processo de trabalho e de suas conexões com a
educação que para esclarecê-la. Espero que esta breve revisão dos conceitos
tenha servido como um primeiro passo nessa direção.
Noras tecnologias, noras /brutas do organização
do íra&aífto o ães^Mallficação
No capítulo anterior, eu destacava as deficiências das teorias críticas da
educação com relação à divisão do trabalho, ao conhecimento técnico e à
qualificação. Nesta seção gostaria de questionar um dos pressupostos
principais por detrás da literatura marxista sobre o processo de trabalho,
sobretudo no que se refere à questão da qualificação.
Como adiantei acima, nesta literatura há uma excessiva preocupação
com o processo de desquaiificação dos trabalhadores manuais, em detri­
mento de uma discussão da divisão mais importante entre trabalho intelec­
tual e trabalho manual. Isto é, toda a discussão se dá quase que exclusiva­
mente no âmbito do trabalho manual, descrevendo de que forma e em que
grau determinados trabalhos manuais se desqualificam cada vez mais: As
pesquisas sobre os efeitos das novas tecnologias e das novas formas de
organização do trabalho sobre o processo de qualificação-desqualificação
são exemplares a esse respeito e é para elas que nos voltamos como uma
forma de ilustração da tendência que venho descrevendo.
As modificações no processo de trabalho capitalista, ocorridas através
da introdução de novas tecnologias e de novas formas de organização do
trabalho, têm dado lugar a uma série de pesquisas e especulações. Natural­
mente, também tem havido, embora sejam raras, tentativas de relacionar
essas modificações com a educação.
Naturalmente, a referência básica naliteraturarecente sobre o proces­
so de trabalho é a obra de Braverman, TraMAo e capital wonopollsfa (1977),
já comentada anteriormente. Como se sabe, Braverman realiza neste livro
uma análise da tendência à desquaiificação dos trabalhadores, presente na
lógica do desenvolvimento do capital. É claro que essa análise já estava
presente em Marx naqueles capítulos em que ele analisa a evolução do
trabalho fabril capitalista. A novidade introduzida por Braverman consiste
em estender essa análise para outros setores do trabalho capitalista, como
o de serviços e dos trabalhos burocráticos de escritório, por exemplo.

O proãaz r c rrproãaz cw edacapro M7


A partir desse marco de referência constituído pelo livro de Braver-
man é que se tem desenvolvido a discussão em torno das tendências de
modificação do processo de trabalho capitalista. Basicamente, essa discus-
sãocentra-seemtornodaquestãodanaturezaedaintensidadedoprocesso
de desqualificação do trabalho. A questão consiste em determinar se a
introdução de novas tecnologias, como resultado da dinâmica da concor­
rência capitalista, tem levado concomitantemente a uma maior fragmenta­
ção e perda de conteúdo do trabalho e em que grau isso tem ocorrido.
Apesar da enorme quantidade de estudos que têm explorado essa questão,
eles podem ser reunidos em três simples categorias, de acordo com as
respostas que dão a essa questão.
Em suma, como observa Spenner (1985, p. 125), os argumentos se
desenvolvem em torno de uma destas três conclusões: l)Tem havido uma
tendência crescente à degradação do conteúdo do trabalho com a introdu­
ção de novas tecnologias; 2)As novas tecnologias têm o efeito de enriquecer
o conteúdo das tarefas do trabalho, ao suprimir tarefas repetitivas e
rotineiras e introduzir tarefas que exijam maior capacidade de decisão e
pensamento; 3)0 efeito da introdução das novas tecnologias não é unifor­
me ao longo de todo o espectro da economia, por um lado, e por outro, esse
efeito depende de outros fatores, como o nível de organização dos trabalha­
dores, por exemplo.
Não nos interessa neste trabalho o detalhamento dessa discussão, nem
uma revisão dos estudos empíricos que se alinham ao lado de uma ou outra
dessas categorias. Sínteses úteis desse debate, tendo em vista as implica­
ções educacionais, podem ser encontradas em Spenner (1985) e em Carnoy
(mimeo). Uma síntese do debate alemão sobre a questão pode ser encontra­
da em Paiva (1989), numa perspectiva, aliás, estranhamente conformista.
Entrar nessa discussão significaria aceitar a forma pela qual o problema é
aí definido e é justamente o questionamento dessa definição que constitui
o objetivo central desta seção.
Pois embora uma descrição acurada dos efeitos da introdução das
novas tecnologias possa ser importante para a luta política dos trabalhado­
res afetados, a questão nos termos em que está colocadamostra-se extrema­
mente trivializada, seu âmbito e abrangência demasiado estreitos. Seja lá
qual for a resposta dada à questão "qualifica ou desqualifica?" - e esta
resposta está longe de ser conclusiva (veja-se, por exemplo, Spenner [1985])
-Testa ver quais são suas implicações. E é no traçado dessas implicações
que a maior parte da literatura sobre o processo de trabalho fracassa.
E é meu argumento que esse fracasso consiste em se ter perdido de
vista a moldura teórica mais ampla em que essa discussão deveria estar

163 TowMZ Ta&M & Silva


inserida, isto é, a da divisão sociai do trabalho. Como vimos em outra seção
deste capítulo, a discussão sobre a desqualificação dos trabalhadores em
Marx parte da discussão da divisão social do trabalho e a ela retorna. Ao
deixar de fazer esse mesmo movimento, a discussão atual sobre o processo
de qualiíicação-desqualificação existe num vazio ao mesmo tempo teórico
e político.
A questão mais ampla e mais importante não é a da qualiíicação-
desqualificação, mas a da divisão mental-manual. É nesta última que
aquela outra se inscreve e é apenas no âmbito desta última que aquela outra
faz sentido. A questão última consiste em se saber como e por que se
constitui e perpetua a divisão social entre trabalho mental e trabalho
manual. Naturalmente a questão de se saber em que medida as novas
organizações e tecnologias do trabalho contribuem para o processo de
desqualificação são também importantes, mas apenas no interior da ques­
tão maior. Isto é, é crucial saber-se se há ou não desqualificação e qualo seu
grau apenas na medida em que isso permite avaliar o grau e as razões do
aprofundamento ereprodução da divisão social do trabalho. É interessante
observar como as discussões sobre o processo de qualificação-desqúalifi-
cação se dão, em sua maior parte, no interior do pólo manual daquela
divisão, uma demonstração a mais de como se perdeu de vista a perspectiva
mais ampla.
Isso nos leva à questão da educação. Pois é notável a ausência quase
total nessa literatura de qualquer menção ao papel da educação e da escola.
Como ressalto noutra parte deste trabalho, a educação e a escola pouco têm
a ver, nessas discussões, com o processo de qualificação-desqualiíicação
que se está descrevendo. E isso é apenas natural, tendo em vista/ como disse
acima, que a discussão fica circunscrita, em sua maior parte, ao pólo
manual da divisão social do trabalho ou, na melhor das hipóteses, ao pólo
proletarizado daquela divisão, tal como o trabalho de escritório, por
exemplo (Braverman, 1977). Isto é, a escola parece ter pouco a ver com as
transformações no interior do pólo manual da divisão do trabalho, acarre­
tadas pela introdução de novas tecnologias e de novas organizações do
trabalho. Mas a discussão seria diferente se estivesse centrada, como
deveria, na questão mais ampla da divisão social do trabalho, pois aí é
crucial o papel da educação e da escola, como tem procurado demonstrar
toda a literatura sobre a relação entre educação e reprodução social, por
exemplo.
O mais grave é que essa trivialização tem-se transmitido àqueles
trabalhos que, a partir da educação, têm procurado investigar e teorizar os
efeitos da introdução de novas tecnologias enovas organizações do traba­

O que produz e o í?Ke reproí?MZem edacação 169


lho. Contrariamente à tradição reproducionista, estudos mais recentes,
como os de Carnoy (mimeo), Appay (1989), Levin e Rumberger (1987),
tendem a permanecer na órbita estreita das recomendações sobre como a
educação poderia contribuir para diminuir os possíveis efeitos nocivos da
introdução de novas tecnologias. As conclusões de Levin e Rumberger são
típicas desse tipo de discussão:
Ha três Jbrmas pdas <yaa:'s a basca & políticas ódibírcóas podería ajadar a obter
resaítados mais dese/áoeis das novas tecnologias. Umayórma consiste em encorajar
maispesçaisas sobre as possibilidades esaas conseçaências. (...). A pesquisa poderia
ajadar a identificarJbrnMs alternativas de organizar o trabaibo e de utilizaras novas
tecnologias para criar empregos, elevaras exigências de qualificaplo e de utilizar ?nais
plenamente a educado e o treinamento dos trabalhadores; (...). Um segando papel
para a ybrmtdapTo de políticas é o de ÍKfõrwar os empregadores, os sindicatos, os
trabalhadores e as agências governamentais sobre as possibilidades alternativas e
suas consequências. Em alguns casos os empregadores podem estar dispostos a
organizar o trabaibo e a empregar novas tecnologias sob Jórmas que sejam mais
benéficas para os trabalhadores. (...). Um terceiro papel diz respeito à educapio.
Entretanto, nós vemos um papel diferente daquele que é comumente esperado. A
maior parte dos educadores e das pessoas que tomam decisócs vêm o sistema
educacional como exercendo um papel reativo comrespeito ao trabalho. Em sua visdo,
o sistema educacional deve simplesmente reagiras necessidades/ataras do mercado
de trabalho (...). (...). Em contraste, nós vemos um papel mais ativo em moldar o
.futuro, para a educapdo. Em nossa visdo, a educapio mio apenas responde ás
necessidades do local de trabalho, ela também tem o poder de moldar aquelas
necessidades. Consequentemente, as escolas eas universidades deveríam mioapenas
/õrnecer a educado e o treinamento que os educadores e osjõrmuladores de políticas
pensam que os seusjúturos empregos exigem, mas deveriamJõrnecer a educapio e o
treinamento que ajaóar#o os estudantes assim como os trabalhadores, os emprega­
dores e os técnicos governamentais a moldar as exigências do trabalho (Levin e
Rumberger (1957, p. 349).

Naturalmente, há muito de recomendável numa tal visão. Mas, por


outro lado, em certo sentido, ela constitui exatamente a imagem especular
daquela visão que critica. Ou seja, a visão oficial é a de que a educação deve
responder estreitamente às necessidades de mão de obra do capital. Na
visão que se lhe contrapõe, a educação deve contribuir para afetar aquelas
exigências que lhe são comumente colocadas. Há, por um lado, uma fé
ingênua no poder da educação para alterar características da organização
do trabalho que têm determinantes mais profundos na própria lógica da
organização econômica. E, por outro, uma implícita aceitação dos elemen­
tos essenciais da atual organização da economia e do trabalho e, particular­
mente, da divisão básica entre trabalho mental e trabalho manual. Em

170 Towmz Ta&a & Silva


outras palavras, não há lugar nessa perspectiva para um questionamento
mais radical das raízes da divisão social do trabalho.
Na minha opinião, a investigação, quer do processo de trabalho, quer
das relações entre educação e trabalho, continuará atolada na trivialidade
e na irrelevância se não se ancorar firmemente numa teoria que tenha a
divisão social do trabalho como seu centro e dinâmica mais importante. A
divisão essencial da sociedade não é aquela que no interior do processo de
trabalho separa qualificação e desqualificação, mas aquela que na organi­
zação social e econômica separa trabalho manual e intelectual. A análise e
a superação dessa divisão estão no próprio centro da tradição marxista e
socialista em educação. A famosa fórmula marxiana da combinação entre
educação e trabalho produtivo não aponta pára outra coisa.
A tarefa essencial de uma teoria crítica da relação entre educação e
trabalho não deve, portanto, ser a de apenas conceber uma relação menos
estreita entre essas duas esferas, como sugerem Levin e Rumberger na
passagem acima, mas a de desvendar os mecanismos essenciais pelos quais
a divisão centrai entre trabalho mental e manual é gerada e mantida e o
papel central exercido pela educação nesse processo e as formas pelas quais
se poderia postular uma nova relação entre educação e esfera produtiva.
Como diz Stuart Hall:
CerfanMHte que a inundarão prq/issMHaHsta que atualmente se estd produzindo,
tanto nas escoias como nos setores da educap?o superior eJôrmapto, esíd especi/ica-
mente pianejada para perpetuar a divisão do trabalho existente entre as classes, entre
o trabalho intelectual e o manual entre a coaceppto e a execução, como dizia Aíarx
AUs isso tudo não é sendo rea/irmar o que jd sabíamos: que a educapto é um
elemento decisivo para a manutenção ou a trans/ôrmação da divisão social do
trabalho. Lfma_/brpa política decidida a Jazer algo para acabar com exploração das
pessoas em seus universos separados deveJõrmular novas relapies entre a educação
e o sistema produtivo (Hall, 1937, p. 32). -

Mas naturalmente, isso pressupõe também sair um pouco do âmbito


educacional e pedagógico e colocar o problema de forma mais ampla.
Certamente as divisões educacionais devem ser analisadas e a busca de sua
superação deve constituir um objetivopolítico central de luta, naquilo que
elas têm de perpetuadoras da divisão social do trabalho, mas em última
análise as raízes desta última divisão devem ser combatidas diretamente.
Como diz outra vez Stuart Hall:
Alas oJim estratégico-odesmaHtelameHtodaatua! divisão do trabalho, o pôr término
d desigualdade emeducação- é um objetivo político, não educacional. È uma meta que
deve pôr-se d educação, não estabelecer-se a partir de seu interior (Hall, 1937, p. 33).

O que produz e o que reproduz em educação 171


D ivisão do IrabalEo, ^Maii/ica^ão e edacação; ^aa! é a ^acstão?
Em suma, tanto na literatura sobre o processo de trabalho quanto naquela
que tenta relacionar as modificações no local de trabalho com a educação,
há um deslocamento da questão essencial. O centro da discussão da
questão mais importante, que é a divisão entre trabalho intelectual e
trabalho manual, a separação entre as potências espirituais do processo de
produção e o trabalho manual, nas palavras de Marx (1985, v.2, p. 43),
desloca-se dessa divisão cruciai para apenas um dos aspectos daquela
divisão. Isto é, discutem-se e coletam-se dados e fazem-se estatísticas sobre
como se efetua o processo de desqualificação num dos pólos daquela
divisão, o do trabalho manual, perdendo-se de vista a questão mais ampla
da separação entre concepção e execução, que erá o que estava no centro da
análise de Marx. É verdade que a noção de desqualificação e sua discussão
tal como se dá nessa literatura envolve uma ulterior separação entre
trabalho intelectual e trabalho manual no interior do próprio trabalho
manual. É verdade também que a discussão desse processo de desqualifi­
cação tem importantes implicações políticas, no sentido de os trabalhado­
res lhe oporem resistência. Entretanto, isto também contribui para deixar
em segundo plano a questão principal, a da separação entre a esfera da
produção e manipulação do conhecimento técnico e científico envolvido
na produção material e a esfera do trabalho de execução.
Isto talvez explique porque a questão da formação do trabalhador
manual está geralmente ausente desse tipo de literatura, como fez notar
Pierre Rolle. Não se trata nunca da questão do quê qualifica, apenas do quê
desqualifica. A suposição é de que o tipo de qualificação aí envolvido é
obtido em grande parte no próprio local de trabalho. A instituição escolar
permanece, portanto, fora deste esquema. Mas não só por isto. Ela não entra
neste quadro também porque ela não está envolvida de forma importante
na qualificação/desqualificação do trabalho manual, não importa quão
refinada seja esta escala de qualificação/desqualiíicação. Ou seja, a prin­
cipal função da instituição escolar como um todo não é a de formar o
trabalhador manual nos variados graus dessa escala de qualificação/
desqualificação (do trabalho 77MHMOÍ),mas a de marcar e legitimar a divisão
entre trabalho intelectual e trabalho manual. O trabalho manual, neste
quadro, é definido mais por fhita, que por intervenção positiva. Isto é, o
trabalhador manual é aquele para quem falta um determinado grau devido
de escolarização.
A existência de escolas técnicas e de esquemas de formação tipo
SENAI não constitui nenhuma demonstração da falsidade desta tese. De

172 Tcwaz Ta&a Silva


novo, este tipo de ensino não é nunca definido em função de alguma
positividade específica, mas por sua deficiência em relação àqueles tipos de
ensino identificados com o trabalho intelectual. Eles não são simplesmente
tipos diferentes deensino, eles são um tipo de ensino que é sempre definido
por jidía em relação ao outro, aquele que leva ao trabalho intelectual.
Em suma, não se trata apenas de que a literatura marxista sobre o
processo de trabalho ignora o papel da instituição educacional. Trata-se,
antes, de que ela ignora o papel da educação institucionalizada porque ela
tem uma conceptuaiização errônea do processo de trabalho e do processo
de qualificação/desqualificação, uma conceptuaiização que, em geral,
aponta para o alvo errado. Pode-se lançar a esses estudos o mesmo tipo de
objeção que fiz às teorias críticas da educação. Eles deixam de discutir os
processos pelos quais a tecnologia é produzida. Nesta literatura a tecnolo­
gia é geralmente tomada como um dado, que não é nunca questionado. A
questão começa aí, quando deveria ser feita daí para trás. Isto é, discute-se
como determinada tecnologia desqualifica ainda mais o trabalho/traba­
lhador manual, mas não como todo o processo de produção da ciência e da
tecnologia moderna prodMZ a divisão central entre trabalho intelectual e
trabalho manual.
A argumentação quê desenvolvi nesta seção certamente aponta para
uma discussão que tira do centro da análise as noções de qualificação/
desqualificação. Na minha opinião, a discussão nos termos em que é
colocada atualmente simplesmente deixa de focalizar a questão realmente
importante, a da separação entre concepção e execução, entre trabalho
intelectual e trabalho manual. Esta última deveria ser a questão central. O
problema,portanto,nãoécomoseproduzmaisoumenos qualificação,mas
como a produção da tecnologia para utilização no processo de produção
material está envolvida naquela divisão central.
Uma tal perspectiva permitiría integrar apropriadamente as duas
literaturas, como argumentei no capítulo anterior. É esta divisão entre
trabalho intelectual e trabalho manual a divisão central da sociedade
capitalista. É esta divisão que está no centro do processo de produção
capitalista. É na definição e legitimação desta divisão que reside a função
principal da instituição educacional. É o desenvolvimento das conexões
entre esses processos que deve orientar uma teoria crítica da educação
centrada na dinâmica do processo de produção material da sociedade.

O ÇMcpr<K?MZc o reproífHZ g?n aÍMcnção 173


O trabalho docente:
um processo de trabalho capitalista?

A teoria crítica em educação tem-se centrado em explicar o funcionamento


do sistema educacional e da escola a partir da dinâmica de classes da
sociedade capitalista. Nessa perspectiva, a escola, ao invés de servir para
aplainar diferenças sociais e compensar desvantagens de nascimento,
como pretende a ideologia liberal, estaria diretamente implicada na
reprodução das desigualdades sociais estabelecidas por uma organização
econômica cuja lógica consiste exatamente em manter uma sociedade de
classes. A partir dessa idéia básica, tem-se tentado explicar muitas e
variadas Características do sistema educacional por seus vínculos com
certas das necessidades do sistema capitalista.
Na tradição crítica dos ensaios fundadores o que se tem ressaltado,
entretanto, são os vínculos entre o proáwfo do sistema educacional e as
necessidades do capital. Assim, por exemplo, dadas as necessidades de
acumulação e de legitimação do capitalismo, a escola prepararia pessoas
com aquelas características técnicas e atitudinais necessárias ao funciona­
mento sem problemas tanto das relações produtivas quanto das relações
políticas capitalistas. A consideração das características infernas do funci­
onamento da escola só entra no quadro em função de sua funcionalidade
para a preparação das subjetividades apropriadas. Assim, em Bowles e
Gintis (1977), por exemplo, as relações sociais no interior da escola consti­
tuem uma imagem especular das relações sociais imperantes no local de
trabalho e essa correspondência serve ao propósito de melhor formar
personalidades ajustadas às exigências de funcionamento daquele local.
Coisa diferente é postular que a própria escola funciona como um locai
de trabalho capitalista. No caso descrito acima, o vínculo com o sistema

174 TOWMZ & Si/pa


capitalista serve para expiicar aquelas características da escola que são
funcionais para o funcionamento da organização capitalista. Neste segun­
do caso, ao descrever o processo de trabalho escolar como um processo de
trabalho capitalista, o que se procura explicar é a organização da escola per
se. Dito de outra maneira, na tradição predominante, a escola não éum local
de trabalho capitalista; algumas de suas características são íieterMHHmias
pelas necessidades do capital e se explicam por essas necessidades. Na
outra perspectiva, a escola é um local de trabalho capitalista e algumas de
suas características se explicam direfamenfe por esse fato.
Mas antes de avançar nesíã discussão, vamos tentar caracterizar
melhor essa segunda tendência. No momento, é importante reter que se
trata de duas formas de se conceber as relações entre escola e capitalismo
(mas não necessariamente excludentes). Mais adiante, voltaremos às im­
plicações desse fato para uma teoria crítica da educação.
Essa segunda tendência que, para simplificar, vamos chamar de
processo docente capitalista, tem estado muito presente na literatura crítica
sobre a educação e, particularmente, na literatura brasileira recente. Pode­
riamos citar muitos trabalhos que abraçam essa tese (ver a este respeito o
número 4 da revista Teoria & EíÍMcaç3o), mas duas citações, de resto típicas
dessa literatura, são suficientes para caracterizá-la:
(..)a.formação 4a classe (ra&a!?M4ora ou o Ua&allMíior em/õrmapR? é pro4azi4o por
yórça de trabalho. E essa/brçH de fra&al/Mque os íraiMÜiaáores 4o ensino pendem em
troCa 4e um saMrio é usada 4e ama 4eíermina4a yõrma, consoante o tipo de
organização do trabalho pedagógico. Éaestratara organizacional (...) qaecon4iciona
e determina a prdtàa docente.
H4, portanto, ama cisão entre os trabalhadores do ensino ea organização doprocesso
de trabalho, Uma cisão entre o trabalhador e os meios oa instrumentos 4e trabalho
(Santos, 1959, p. 27).
A história da educação, nestes áltimos cinquenta anos, tem sido a história da
radicalização da implantação de relaçOes capitalistas no trabalho pedagógico, a
agonia das relaçóesanteriores (caos) e ensaios desurgimento denovíssimas relaçóes.
O que se defende aqui, portanto, é oJáio de o sistema educacional estar efêtiuamente
transfõrmando-se, tendo na dipisdo de trabalho ou mudança no processo de trabalho
sua característica mais importante. Esse movimento é o processo de incorporação de
nopas determinaçóes ao aparelho escolar capitalista, como decorrência do desenvol­
vimento do capita! em esferas de atividade até então não incorporadas ao seu
movimento (Sd, 1956, p. 23).
O desenvolvimento da tese representada nessas duas citações pode
ser sobretudo encontrado em trabalhos e pesquisas que focalizam algumas

O que produz e o que reproduz em educação 175


das atividades especializadas do sistema escolar, como as de orientador
4educacional e de supervisor. Nessa literatura são comuns conceitos como
o de divisão social do trabalho, fragmentação e intensificação do trabalho,
divisão entre concepção e execução, apropriação do saber do professor, etc.,
conceitos esses extraídos diretamente da literatura sobre o processo de
trabalho capitalista. Assim, por exemplo, a atividade do supervisor é vista
como um desenvolvimento da necessidade de divisão do trabalho entre
concepção e execução, inerente ao processo de trabalho capitalista, e na
qual o supervisor figuraria então como um apropriador do trabalho de
concepção do professor, ficando esse último como mero executor de um
trabalho agora então desqualificado e esvaziado de suas propriedades de
planejamento. Vão numa direção semelhante - embora aqui as caracterís­
ticas do processo de trabalho sejam deduzidas da dinâmica do capitalismo
e iHMi&ém da dinâmica do patriarcado - as teses de Michael Apple (1987)
sobre o magistério como um trabalho feminino.
Embora boa parte da argumentação em favor da tese do caráter
capitalista do processo de trabalho docente simplesmente postule, como
axioma, que esse processo é um processo capitalista e passe então a
descrevê-lo à maneira do processo de trabalho fabril, há os que deduzem
aquele caráter a partir da evolução da profissão docente, inspirando-se
sobretudo no trabalho pioneiro de Braverman (1977). Isto é, como ocupa­
ção, o magistério vem adquirindo, de forma crescente, aspectos estruturais
similares aos do proletariado, isto é, vem se proletarizando Isto significa
que vem deixando de ter características próprias das pro/Issães, tais como
autonomia e controle sobre os meios, o objeto e o processo de seu trabalho,
para adquirir traços da situação estrutural próprios do trabalho assalariado
proletário (Enguita, 1991).
Na tese da proletarização, há natúralmente o pressuposto de que a
ocupação docente não era, em algum lugar do passado, uma atividade
proletarizada. Ela foi se tornando proletarizada à medida que a educação
foi se institucionalizando e se tornando uma instituição de massa, que o
estado foi aumentando progressivamente seu controle sobre essa institui­
ção, que esse controle foi se manifestando numa divisão crescente de
tarefas antes exclusivas do professor em sala de aula e que seu prestígio e
salário iam diminuindo em proporção inversa àqueles outros desenvolvi­
mentos. Entretanto, essas transformações hão parecem se dar, nessa tese,
como resultado de qualquer transformação mais profunda na lógica ou na
natureza da atividade docente, mas antes como conseqüência da extensão
das relações sociais capitalis tas a outros setores que não aqueles diretamen­
te produtivos. Ou seja, elas seriam resultantes da necessidade que tem o

176 TowMZ la&M da Sãva


capitalismo de moldar todas as relações sociais de acordò com alógica que
preside as atividades que estão no coração de sua estrutura e funcionamen­
to.
í rwcsfwo ca p italista o processo de frabadío docewfe?

Podemos descartar de imediato aqueles argumentos que assumem quase


que axiomaticamente a natureza capitalista do processo de trabalho docen­
te. Na necessidade de estabelecer uma conexão da estrutura educacional
com a estrutura econômica capitalista, essa linha de raciocínio transfere de
forma mecânica e automática para a análise do processo de trabalho escolar
todos aqueles elementos que caracterizam o processo de trabalho direta-
mente produtivo: tendência à divisão do trabalho, separação crescente
entre concepção e execução, expropriação do saber do trabalhador (neste
caso, naturalmente, o professor), fragmentação das atividades, perda de
controle, etc., sem nos mostrar através de quais mediações se processa essa
conexão.
A natureza proletarizada do trabalho docente é postulada por mera
tese analogicista).Esta forma de argumentação é muito comum naquela
literatura que analisa a natureza de atividades especializadas como a
supervisão e a orientação educacional.
Em primeiro lugar, é bastante duvidoso que haja apoio empírico para
a tese de que a atividade docente vem apresentando crescentemente essas
características. Mas vamos deixar de lado, por enquanto, este ponto. Mais
importante agora é anotar que nesse tipo de argumentação a suposta
tendência à divisão do trabalho não é resultado de nenhuma dinâmica
específica, como o é no caso do processo de trabalho produtivo, na análise
deMarx, por exemplo No caso da escola, o analista apenas aplica à escola
ás características do processo de trabalho produtivo, esquecendo-se de que
neste último caso elas rcsMÍíam da dinâmica do processo de formação do
valor. A descrição do processo de trabalho da escola que se faz nesse tipo
de análise baseia-se numa simples transferência daqueles elementos pre­
sentes no processo de trabalho diretamente produtivo. Não existe aqui
sequer um esforço para justificar essa transposição. É óbvio então que a
base na qual se apóia esse tipo de raciocínio para extrair suas conclusões é
extremamente frágil.
Ias características que definem o trabalho proletário e observando, então,
que a ocupação docente apresenta tendências a adquirir características

O ÇMCproduz c o çae reproduz cm educação 177


semelhantes, conclui que ela está se tornando proletarizada. No fundo, é
também um raciocínio analógico. É este, por exemplo, o raciocínio de
Enguita (1991):
A proíeíarizapTo é o processo pelo qw? um grupo & trabaihaáorgs perde, móis ou
menos SMcessivamenfe, o controle so&re seus meios de produplo, o o&jetioo de seu
trabalho e a organizado de sua atiuidade.
A urbanizado, a introáapáo das escolas completas e seriadas, as concentrados
escolares, a expansúo do setor público, a criado de escolas privadas para setores com
poder aquisitivo e sua generalizado pura todos com a política de snboendcs, e a
expansdo do setor público sdo os Stores que têm Jeito desaparecer o docente
autônomo, inclusive o mestre público semi-autônomo da zona rural. A criado e logo
o predomínio absoluto das escolas com vários grupos escolares supunha a divisdo e
hierarquizado dos docentes, com a aparido daJigura do diretor e outros intermedi­
ários.
Qutro aspecto a ser considerado é que a regulamentado do ensino passou, com o
tempo, da situado de limitar-se aos requisitos mais gerais para a de prescrever
especificações detalhadas aos programas de ensino. A administrado determina as
matérias que deverdo ser dadas em cada curso, os horas que serdo dedicadas a cada
matéria e os temas de que se comporá. Em outras palavras, o docente tem perdido
progressivámenfe saa capacidade de decidir qual será o resultado de seú trabalho,
pois já lhe chega previamente estabelecido naJbrma de disciplinas, horários, progra­
mas, ucrmasíte avaliado, etc.

Naturalmente, um raciocínio semelhante está presente em outros


autores que desenvolvem a tese da proletarização, como Apple (1987), por
exemplo. Mas o raciocínio básico é o mesmo. E este, na minha opinião, é
bastante defeituoso. Mas antes de entrarmos nesta questão, é importante
observar que na outra ponta dessa argumentação está a tese do processo de
trabalho docente como um processo de trabalho capitalista. Isto é, a
ocupação docente é uma atividade proletarizada. Logo, o processo de
trabalho em que estão envolvidos os docentes é um processo de trabalho
capitalista.
Denovo, encontramos aqui o mesmo problema já assinalado acima. O
processo de trabalho docente é um processo de trabalho capitalista não
porque isto resulte de sua natureza, mas porque a ocupação docente
apresenta algumas características comuns com o trabalho assalariado
diretamente produtivo. É compreensível que se proceda desta maneira,
porque seria difícil argumentar em favor da natureza especificamente
capitalista do processo de trabalho docente, exceto talvez no cáso das
escolas particulares,mas mesmo assim com cautelas. Aliás, não é por outro
motivo que se usa a expressão "proletarização", para indicar que aprofis-

178 Tomaz Ta&M áà Siiva


são de ensinar não é propriamente uma ocupação proletária, mas uma
ocupação que apresenta certas características do trabalho proletário.
A argumentação contrária que estou desenvolvendo não deve ser
contundida com a discussão em torno do trabalho produtivo/improduti­
vo, embora tenha alguma relação com ela. Não estou argumentando que o
processo de trabalho docente não é um processo de trabalho capitalista
simplesmente porque seja improdutivo, mas porque não envolvendo
diretamente a produção de valor (e aqui está a relação com a questão do
produtivo/improdutivo), suas características, essencialmente as relações
sociais no trabalho, não obedecem às mesmas determinações do trabalho
diretamente produtivo.
Explicando melhor. Tomemos, por exemplo, a questão da fragmenta-
ção das tarefas do trabalho e da tendência ao aumento da divisão entre
concepção e execução. Toda a análise do processo de trabalho capitalista
efetuada por Marx em O Capital é para mostrar que essas características
surgem da dinâmica do processo de valorização, isto é, na origem está um
processo centralmente econômico, e não político. Ou seja, o capital não
procede a essas modificações movido meramente por uma necessidade de
controle; o controle (com as características que isso implica) resulta da
necessidade de produção de valor (Brigthon Labour Process Group, 1991).
Ao transpor para a escola o modelo do processo capitalista diretamen­
te produtivo, a tese do processo docente capitalista está apenas apondo à
atividade do professor a face política do trabalho capitalista, esquecendo-
se de que ela não existe independentemente de sua origem num processo
econômico. O que tem que ser provado é a natureza essencialmente
capitalista da atividade docente, uma prova evidentemente impossível de
ser apresentada.
Mas mesmo que a atividade docente não seja essencialmente capita­
lista, poderia ser argumentado que ela vem apresentando crescentemente
características do processo de trabalho diretamente produtivo, como, aliás,
o fazem as elaborações anteriormente citadas. Isto é, independentemente
da questão de se o trabalho docente é capitalista ou não, ele vem se
mostrando cada vez mais com menos autonomia, com uma maior divisão
do trabalho, com mais intensificação e fragmentação.
Embora possam ser observadas algumas tentativas por parte do
estado para controlar as atividades docentes, o fato incontestável é que,
essencialmente, sua natureza não tem apresentado modificações muito
profundas. Embora o sistema educacional tenha se diferenciado enorme­
mente, desenvolvendo uma burocracia qüe apresenta uma minuciosa
divisão do trabalho, o trabalho de sala de aula continua a ser um trabalho

O que produz e o que reproduz cm educação Í79


essencialmen te imune e impermeável ao controle externo. A impossibilida­
de de controle e de vincular a atividade de ensino aresultados precisamente
especificados tem sido mesmo apontada como uma de suas características
centrais. Isto não significa que não haja tentativas de controle e de modifi­
cação do processo de trabalho de modo a torná-lo mais vulnerável ao
controle, mas é duvidoso que essas tentativas tenham modificado de forma
essencial a natureza do trabalho de ensinar.
É verdade que o prestígio e o status da ocupação docente, assim como
suas condições salariais, têm sofrido moficações profundas, mas isso não
tem resultado em modificações concomitantes nas relações sociais na
escola, ou seja, no processo de trabalho de ensino. Essas modificações nas
relações sociais mais amplas,pelas quais professores eprofessoras perdem
prestígio e poder não têm se traduzido, ao menos no caso do Brasil, em
transformações notáveis no local de trabalho.
A tese da proletarização implica num processo histórico, pelo qual
uma atividade que não apresentava essas características no passado,
progressivamente passa a adquiri-las. É duvidoso que se possa demons­
trar, por exemplo, que o trabalho em sala de aula vem sendo progressiva­
mente mais controlado. É até possível queocontrárioéqueseja verdadeiro.
De qualquer forma, esta é uma tese que tem que ser demonstrada empírica
e historicamente.
Obviamente essas modificações mais amplas têm implicações políti­
cas e práticas importantes, mas elas devem ser examinadas por direito
próprio e não por supostas conseqüências sobre uma outra esfera, que
dificilmente podem ser demonstradas.
Existe uma outra dificuldade com a tese que tenta aproximar o
processo de trabalho docente do típico processo de trabalho capitalista,
Independentemente das transformações pelas quais esse processo possa
estar passando, a atividade docente está situada no lado mental da divisão
social do trabalho. Esta separação fica evidente, por exemplo, nas dificul­
dades encontradas nas tentativas de alianças políticas entre oprofessorado
e categorias de trabalhadores manuais O professorado não apenas está
situado no lado mental daquela divisão; ele está diretamente implicado na
sua produção.
Se nãô é Miw processo c a p ífa lis fa de trabalho, então o <?Me é?

Uma das razões pelas quais se postula a natureza capitalista do trabalho


docente é para vincular de alguma forma a estrutura e o funcionamento da
educação à dinâmica de funcionamento do capital. Mão é necessário,

ISO Tomaz Taãea & Situa


entretanto, demons trar que a atividade de ensino é capitaiista para se fazer
essa conexão. Como bem o demonstraram os ensaios que estão na origem
da teorização crítica em educação (Althusser, Bowles e Gintis, por exem­
plo), a educação está implicada no processo capitalista de produção,
através de vínculos de natureza mais indireta com o processo de acumu­
lação e de legitimação, como os de formação de uma mão de obra com
características convenientes às relações sociais capitalistas e inclinada a
aceitar essas relações (Apple, 1989).
Mas a discussão sobre a natureza do processo de trabalho docente e,
de forma mais geral, sobre a situação de classe do professor e daproíessora
não teria sentido se não fosse por suas implicações políticas. Para que não
se esgote numa questão estéril e meramente formal, é necessário inseri-la
numa moldura mais ampla, na qual ela esteja vinculada com as possibili­
dades de ação na prática social concreta de todos aqueles que estejarh
envolvidos de uma forma ou outra com a educação. São acadêmicas, no
pior sentido, as discussões sobre se o trabalho docente é produtivo ou
improdutivo, se produz mais-valia ou não, se não estiverem vinculadas às
suas implicações políticas estratégicas. É exatamente por este motivo que
se põe a questão de qual é a situação de classe do professor e da professora
De forma geral, a conclusão extraída é de que, estruturalmente,
objetivamente, os professores estão situados numa posição ambígua, entre
características que os identificam com a classe operária, de um lado (daí a
proíefgrixação), e características que os situam ao lado das classes médias e,
sobretudo, das chamadas profissões liberais (Enguita, 1991). Esta posição
estrutural ambíguafaz com que, concretamente, subjetivamente, assumam
posições políticas também ambíguas, mas com que estejam presentes aí,
por isto mesmo, as possibilidades de alianças e tomadas de posições ao lado
da classe trabalhadora. Uma outra implicação dessa análise advém da
suposição que analisamos acima, ou seja, de que oprocesso deproletariza-
ção resulta num processo de trabalho docente que apresenta características
do processo de trabalho capitalista diretamente produtivo, ou seja^ apror
fundamento da divisão do trabalho, intensificação, etc. Se isto é verdade,
então teríamos aí um objeto para a luta política dos docentes, um campo dé
conflito, em tomo do qual os professores poderíam se organizar, em
contraposição.
Como tentei mostrar acima, esse tipo de análise apresenta sérios
problemas. E não vejo como se pode basear uma estratégia de ação política
numa teoria defeituosa. A compreensão da natureza da ocupação docente
é sem dúvida um objetivo importante. Mas a tentativa de entendêda apartir
do modelo do processo de trabalho capitalista diretamente produtivo tem

O que produz e o que reproduz em educação Í%1


se mostrado improdutiva e inútil, servindo mais para confundir que para
esclarecer.
Na minha opinião, precisamos de uma análise que procure compre­
ender, inicialmente, qual é a natureza específica das atividades ocupacio-
nais controladas diretamente pelo estado capitalista. Precisamos antes de
mais nada compreender como as características dessa imensa burocracia
instalada pelo estado moderno determina a natureza do trabalho que se
desenvolve sob sua esfera de influência. Para isto, precisamos de uma
análise que busque estabelecer antes as tú/rrmças que as scfncllMHÇHS com a
empresa capitalista. Na medida em que as duas esferas de atividades são
realmente regidas por objetivos e dinâmicas diferentes, a busca do estabe­
lecimento de uma suposta identidade e similaridade só pode nos afastar do
objetivo de determinar a natureza específica da atividade que se desenvol­
ve no local de trabalho da escola.
Para além dessas características estruturais, que advém do fato de a
instituição escolar moderna estar inteiramente sob o controle do estado, é
necessário também estabelecer com precisão aquelas características espe­
cíficas da atividade de ensino que a tomam peculiar e praticamente
impermeável às tentativas de controle. Para isto será necessário levar em
conta aqueles ins:gfhs da teoria sociológica que nos chamam a atenção para
a natureza de uma das coisas centrais que a escola produz, ou seja,
certificações; Não existe nenhuma forma precisa e controlável pela qual
vincular a produção de certificações com os presumíveis conteúdos dessas
certificações e, portanto, com as atividades que levariam à sua produção.
Seria preciso também examinar mais de perto, através de pesquisas
diretas, as condições sob as quais se dá o processo de trabalho docente, ao
invés de deduzi-las de uma suposta similaridade estrutural com a situação
de classe proletária. Essas pesquisas certámente revelariam certas caracte­
rísticas que podem ser muito mais importantes para o trabalho concreto e
para a ação política que as características que comumente se citam nas
análises do processo docente como processo de trabalho capitalista.
Conclusão
A análise das características da ocupação docente e do processo de trabalho
docente é, mais do que nunca, necessária e importante. As constantes
greves dó magistério, em todos os estados brasileiros, apontam para uma
situação aparentemente insolúvel e que resulta precisamente da natureza
da atividade educacional na sociedade contemporânea.
Aerençageneralizadananecessidadedaescola,alegitimidadequeela

2 F2 T077MZ & Si/PH


p''
i

alcançou na sociedade moderna (como talvez nenhuma outra instituição),


a atividade de massa em que se tornou (o que torna a atividade docente
também uma ocupação de massa), juntamente com a crise fiscal e de
acumulação do estado capitalista, contribuem para formar um quadro que
coloca no centro da discussão precisamente a natureza da atividade de
ensinar e a recompensa e o prestígio que a sociedade está disposta a lhe
conferir. (Aliás, são precisamente esses elementos ideológicos da natureza
da instituição educacional na sociedade capitalista que contribuem para
definir a natureza peculiar do trabalho docente, muito diferente, neste
aspecto, do trabalho diretamente produtivo ou fabril). Todos esses elemen­
tos contribuem para formar essencialmente um quadro de contradição e de
crise, cujas maiores vítimas são justamente os homens e mulheres que
escolheram este tipo de atividade.
De um lado, obviamente o estado capitalista necessita do sistema
educacional, não só por sua contribuição ao processo de acumulação e
legitimação, mas porque a própria educação é a instituição legítima, por
excelência, na sociedade moderna. Por outro, seu financiamento colide
com necessidades mais diretas de investimento e de fornecimento de
condições para o processo de acumulação. Tudo isto aponta pará a neces­
sidade de uma análise que se centre na compreensão da natureza da
atividade educacional numa sociedade capitalista e, centralmente, da
natureza do trabalho daqueles que contribuem de forma importante para
colocar em movimento essa atividade. Nossa compreensão não serámelho-
rada por análises que reduzam sua dinâmica à dinâmica de outras ativida­
des, sobretudo aquelas diretamente econômicas. A compreensão das com­
plexidades da atividade educacional e suas implicações políticas deve
passar, ao contrário, por uma análise daquelas características que a distin­
guem das outras atividades e que são, portanto, as que determinam aquilo
que vemos ocorrer com o sistema educacional e um de seus atores centrais,
o professor ou a professora.

O prodMZ e o ríprodMZ cm fdMCCp?o 133


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(A frase aparece ao final do item Graziadei a o EMoraíio do Apêndice IV, LorianistMO.
De acordo com uma nota da edição crítica dos Cadernos do Cdrcara, vol. 4, Einaudi
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Education, University of London, 1988.

188 Tomaz Tadeu tia Siloa


EDUCAÇÃO
Teoria & Crítica
Direção:
Tom az Tadeu da Silva
Com a publicação do presente volu-
m e, a série Edacapão: Teoria & C ríti­
ca, já consagrada entre os educado­
res brasileiros, dá sequência a seu
projeto de publicarjivros de qualida­
de na área de educação. Concebida
para conter livros que representem
avanços teóricos e críticos nesta área,
a série tem os seguintes livros já pu­
blicados:

APPLE, Michacl W.
Educapâo e poder
BAKUNIN e outros
Edacapão libertaria
COOK-GUMPERZ, Jenny (Org.)
A constraçõo sócia/ da ai/abeiizapão
ENGU1TA, Mariano F. '
7rabaiiíO, esco/a e ideoiogia
ENGUITA, Mariano F.
A /ace oca/ia do esco/a
FERREIRO, Emilia (Org.)
Gryii/tos do anai/àbetismo
MANACORDA, Mário
O princtpio educativo em Gramsci
NOSELLA, Paolo
A esco/a de Gramsc/
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.)
7ra&a//tQ, edacapão eprat/ca soc/a/.*
por amo teoria do formação bamana
SILVA, Tomaz Tadeu da
O ?ae prodaz e o çae reprodaz em
edacopão
WILLIS, Paul
Aprendendo a ser trado/bador. Esco-
/a, resistência e rqprodaçõo socia/
.1 /
^ ARÍÈS L!VROS EM PRODUÇÃO
r<VÍD§O^S
ABERNATHY — Segredos Cirúrgicos
APPLE — A Economia Poiítica cias Reiaçóes de Ciasse

LERENA. Carios — Reprimir e Liberar — Crítica Sociotógica


LEWiS &-WOLKMAN — Aspectos Ciinicos Evoiutivos infância

LUBORSKY — Princípios de Psicoterapia Psicanaiítica


CALK1NS. Lucy — Lições de uma Criança LURiA &- TSETKOVA — Atividade Menta! &, Lesão Cerebral
CHASSEGUET-SMtRGEL — O ideal do Ego MAHLER — O Nascimento Psicoiógico da Criança
COLEFTE CHiLAND — A Criança. A Família e a Escoia MANiCA. )ames — Anestesia — Teoria e Prática
MANNONi — Um Lugar para Viver
MANUAL de TERAPÊUTfCA MEDICAMENTOSA
MANUAL de TERAPÊUTiCA MEDtCAMENTOSA EM PEDiATRiA

MOORE & F)NE — Termos e Conceitos Psicanaiíticos


EXALTO. Françoise — Soüdão MOSCOVtC!. SERGE — Psicoiogia Socia!
DURKHE1M. Emite — A Evoiução Pedagógica
EDWARDS — A Natureza da Drogadependência

OMS — Cíd 10 — Critérios de Ciassiftcação e Dfagnósnco


OUTEiRAL. ]. (Órg) — O Adolescente Bordertine
PEGGY PAPP — O Processo de Mudança
PEREZ SANCHES — Observação de Bebês
FREITAS — Rotinas em Obstetrícia — 3f ed. PETÍTAT — Produção e Escota — Produção da Sociedade
PiAGET & tNHELDER — A Representação do Espaço na Criança
PiTTMAN — Laços íntimos
POLt & SiLVElRA — Ginecologia Preventiva
QUiNODOZ — A Sotidão Domesticada — A Angústia da Sepa-
GELLMAN &.TORDJMAN — O Homem e seu Prazer
G!OVACCH!NI — Táticas e Técnicas em Terapia Psicanaiítica
Voí- ni — W!NNiCOTT
GOMELLA & LEFOR — Manua) de Ptantão em Cirurgia ROGERS — Emergèncas em Enfermagem
GOMELLA. T. — Neonatotogia 2! ed. ROSSOLATO — O SacriFício
RUFFIOT &. E1GUER — Terapia FamÜiar Psicanaiítica
SHAFFER. Roy — A Atitude Anatítica
SCHATZBERG & COLE — Manuat de Psicofarmacoiogía 2f ed.
GREEN — Pediatria Ambufatoria! SHEfLER — Manua! de Pediatria (HSC)
GRENBERC & MíTCHELL — Retações Objetais na Teoria Psica- *StROTA — A Escoia Primária no dia-a-dia
naiítica SQUtRE & NOVEUNE — Fundamentos da Radioíogia
STERN — O Mundo !nterpessoat da Criança
STOLLER — Mascuiinidade e feminitidade — Apresentação
GROLNiCK — WiNNiCOTT — O Trabaiho e o Brinquedo —
TESTA. Mario — Pensar em Saúde
THOMA & KACHELE — Psicanáiise — Teoria & Prática
TORDJMAN. Giibert — A Muther e Seu Prazer
TUSTtN. Francês — A Concha Protetora em Crianças e Aduttos
TYSON — Teorias Psicana!íticas do Desenvoivimento
VAYER &. RONC!N — As Atividades Corporais nas Crianças
WALLON. H. — Desenho. Espaço e Esquema Corpora!
W!NN!COTT — Exptorações Psicanaiíticas
WOLFSTHAL. S. — Tratamento Médico Perloperatório
YALON &. V1NOGRADOV— Manua! de Psicoterapia de Grupo
KLAUS & MNNíí. — PjM & Hlhos YANN1CK, François — Françoise Doito
ZELAN. KAREN — Os Riscos do Conhecimento
Série
EDUCAÇÃO
Teoria & Crítica
Direção:
Tomaz Tadeu da Siiva

Livros em produção:

APPLE, Michae) W.
A ecoaomia poidica das re/apões de
ciasse e géaero em edaeapão
CONNELL, R.W.
Fazeado di/ereapa
D U R K H E IM , Emite
A evoiapão pedagógica
FORQLfIN, Jean-Ctaude
Escoia e çadara.' a .;oc;'o/ogio do co-
adecimeaio escoiar
G R A FF, Harvey J.
Os iaiariaios do aaai/adedsmo
GRAMSCI, Antonio
A a/ieraadva pedagógica
LERBNA, Carlos
Reprimir e iiderar.' crdica socioiogi-
ça da edaca^ão e da ca/iara coaiem-
porâaeas
PETÍTAT, André .
Prodação da escoia— prodapão da
sociedade. Aaaiise sdcio-^isiorica de
a/gaas momeaios decisivos da evoia-
pão escoiar ao Ocideaíe
SiROTA, Régine
A escoia primaria ao ^raoadiaao

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