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ISBN: 978-85-87043-98-6

Discurso CIAD
UFRJ

Anais do
II Fórum Internacional
de Análise do Discurso:
do

Discurso, Texto e Enunciação

Homenagem a Patrick Charaudeau


II Análise
Fórum Internacional de

Organizadoras

Lúcia Helena Martins Gouvêa


Regina Souza Gomes

Faculdade de Letras
UFRJ
Setembro de 2010

www.letras.ufrj.br/ciadrio
ISBN: 978-85-87043-98-6

LÚCIA HELENA MARTINS GOUVÊA


REGINA SOUZA GOMES
(Organizadoras)

ANAIS DO II FÓRUM INTERNACIONAL DE


ANÁLISE DO DISCURSO:
DISCURSO, TEXTO E ENUNCIAÇÃO
HOMENAGEM A PATRICK CHARAUDEAU

1ª Edição

Rio de Janeiro
UFRJ – Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas
2010
Comissão organizadora
Presidente: Maria Aparecida Lino Pauliukonis

Ana Catarina Nobre-de-Mello / André Valente / Angela Corrêa / Beatriz Feres


Celina de Mello / Cláudia Fátima Martins / Fernando de Almeida
Leonor Werneck dos Santos / Lúcia Helena M. Gouvêa / Patrícia Neves
Pedro Paulo Catharina / Regina Angelim / Regina Souza Gomes
Rosane Santos Monnerat / Sigrid Gavazzi / Tânia Reis Cunha

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Reitor: Aloísio Teixeira
Vice-Reitora: Sylvia da Silveira de Mello Vargas
Centro de Letras e Artes
Decano: Léo Affonso de Moraes Soares

Faculdade de Letras
Diretor: Eleonora Ziller
Vice-diretor: Cláudia Fátima Morais Martins
Diretor Adjunto de Cultura: Carlos Scherer
Diretor Adjunto de Extensão: Danúsia Torres
Pós-graduação em Letras Vernáculas
Coordenadora: Maria Aparecida Lino Pauliukonis
Vice-coordenador: João Antônio de Moraes

CIAD – Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso


Coordenadora: Maria Aparecida Lino Pauliukonis

Fórum Internacional de Análise do Discursos (2. : 2010. : Rio de Janeiro, RJ)


F745 Anais do... / II Fórum organizações Lúcia Helena Martins Gouvêa e Regina
Souza Gomes. - Rio de Janeiro: UFRJ, 2010.
Ca1660p.
ISBN: 978-85-87043-98-6

Livro eletrônico
Modo de acesso: www.letras.ufrj.br/ciadrio

1. Análise do discurso – Congressos. I. Gouvêa, Lúcia Helena Martins.


II. Gomes, Regina Souza. III. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade
de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Título.

CDD 401.41
Sumário

Apresentação ...................................................................................................................................................... 20

Artigos de professores convidados

Por uma abordagem linguística do humor .......................................................................................................... 22


ALMEIDA, Fernando Afonso de (UFF)

Du discours à la langue, aller-retour


Remarques sur le phénomène culturel de figement/défigement sémiolinguistique et son intérêt pour
l’acquisition d’une compétence culturelle en FLE ............................................................................................... 30
BOYER, Henri (Université de Montpellier III)

O discurso da sedução ....................................................................................................................................... 36


CARVALHO, Nelly (UFPE)

Livros, quadros e crítica na constituição de um campo autônomo para a arte ................................................... 42


CATHARINA, Pedro Paulo (UFRJ)

Itinerário brasileiro de um analista do discurso


A enunciação a cada momento da vida .............................................................................................................. 52
CHARAUDEAU, Patrick (Université de Paris 13)

O gênero FILME-DOCUMENTÁRIO
(do documento ao ensaio fílmico; da narração à argumentação) ....................................................................... 57
GAVAZZI, Sigrid (UFF)

Argumentação sob um ponto de vista linguístico-discursivo .............................................................................. 65


GOUVÊA, Lúcia Helena Martins (UFRJ)

L’énonciation audiovisuelle
D’une approche sémio-linguistique à une approche sémio-pragmatique ........................................................... 75
LOCHARD, Guy (Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle)

Pseudonymie, discours littéraire, discours philosophique ................................................................................... 78


MAINGUENEAU, Dominique (Université Paris 12)

A construção de sentidos como operação discursiva na enunciação ................................................................. 86


MELLO, Renato (UFMG)

Publicidade e imagem: uma proposta de estudo ................................................................................................ 91


MENDES, Emília (UFMG)

As armadilhas da mídia: estratégias discursivas na publicidade ........................................................................ 102


MONNERAT, Rosane (UFF)

3
Aconteceu o diabo em Paris: esquetes teatrais e pitoresco urbano ................................................................... 109
MOREIRA DE MELLO, Celina Maria (UFRJ)

Construção de identidades:
estratégias enunciativas em notícias e reportagens impressas .......................................................................... 118
PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino (UFRJ)

Futuro do pretérito ............................................................................................................................................... 132


ROSA, Paulo Cesar Costa da (UERJ)

Argumentação e atividades de produção e compreensão de textos e ensino de gramática .............................. 139


TRAVAGLIA, Luiz Carlos (UFU)

Descrição e Ensino do Português:


sentidos da língua e do discurso na linguagem midiática ................................................................................... 168
VALENTE, André (UERJ)

Artigos de participantes de sessões individuais e coordenadas

Pathos: paixão e ação no discurso de autoajuda ............................................................................................... 179


AGUIAR, André Effgen (UFES)

Trabalho docente e escrita na alfabetização ...................................................................................................... 190


ALMEIDA, Patrícia Sousa (UFPA)

Operadores argumentativos em anúncios publicitários ...................................................................................... 201


ALVES, Giselle Mª Sarti Leal Muniz (UFRJ)

Uma análise semiolinguística de propagandas políticas do atual governo mineiro ............................................ 209
ALVES, Mariana Silva (PUC Minas)

Seleção vocabular e argumentação – análise de redações ............................................................................... 219


ALVES, Renata Calheiros (UERJ)

O gênero discursivo militar parte: ensino e linguagem ....................................................................................... 229


ANDRADE, Wagner Muniz (UERJ/EB/AMAN)

(Re)Descobrindo o Jornal Popular através do Modo de Organização


do Discurso Enunciativo ...................................................................................................................................... 237
ARANTES, Poliana Coeli Costa (UFMG)

As estratégias discursivas na construção do ethos em slogans da


campanha presidencial de 2010 ......................................................................................................................... 243
ARÃO, Lílian (CEFET-MG)

4
Sentidos oblíquos: entre textos e discursos ........................................................................................................ 250
ARAÚJO, Augusto Ângelo Nascimento (IFMA)

O Gênero Textual Ofício ..................................................................................................................................... 260


ARAÚJO, Siméia M. (PUC SP)

A seleção lexical e outras semioses para a construção identitária em anúncios publicitários ........................... 269
ARRUDA, Luciana Martins (UFMG)
LAZARINO, Dalcylene Dutra (UFMG)

Imagens discursivas de Lula: um presidente em enunciação ............................................................................. 279


AVALLE, Augusta (CEFET RJ - Unidade Nova Iguaçu)

Lei de LIBRAS: reconhecimento e negação ....................................................................................................... 287


BAALBAKI, Angela Corrêa Ferreira (UERJ)

Enunciados de curta extensão: aforização, mídia e política ............................................................................... 295


BARONAS, Roberto Leiser (UFSCar)

O trabalho docente na educação de surdos ....................................................................................................... 303


BENTES, José Anchieta de Oliveira (UFSCar/UEPA)

A redação como ato de linguagem ..................................................................................................................... 312


BISPO, Maria de Fátima Fernandes (EAC/EMERJ/UERJ)

Estratégias metacognitivas para leitura e revisão textual – O curso de Redação III .......................................... 318
BOTELHO, Patricia Ferreira (UFRJ)

Produção de textos na escola: uma amálgama de tipologia de texto e gênero discursivo ................................. 325
BRASILEIRO, Ada Magaly Matias (PUC Minas)
SILVA, Anita Maria Ferreira da (PUC Minas)
FONSECA, Janaína Zaidan Bicalho (PUC Minas)

O pseudoprefixo sem-: alguns aspectos morfológicos e discursivos


na produtividade lexical contemporânea ............................................................................................................. 335
BRAZ, Shirley Lima da Silva (UERJ)

Discurso jornalístico e a negociação de uma realidade de crise:


a representação de escândalos de corrupção política ........................................................................................ 346
BRENT, Gulherme Rocha (UFMG)

5
O traduzir no imaginário de professores de LE ................................................................................................... 355
CAMARGO, Flávia Cristina de Souza (Unicamp)

Monteiro Lobato e a língua “brasileira” ............................................................................................................... 363


CAMPOS, Giovana Cordeiro (PUC Rio/UFRJ)

Restrições situacionais discursivas e formais na caracterização do gênero


relato de orientação pedagógica ......................................................................................................................... 370
CARDOSO, Eveline Coelho (UFF)

Maternidade, parto e relações de poder entre os gêneros ................................................................................. 379


CARVALHO, Clarissa (UFPI)

Enunciação pictórica ........................................................................................................................................... 388


CARVALHO, Sônia de Fátima Elias Mariano (UFU/LEP)

Paráfrase e polissemia na discursividade dos manifestos dos pioneiros da Educação Nova ............................. 395
CASSANO, Maria da Graça (UFF/UVA/UNISUAM)

Eu sei, mas não devia: intertextualidade e interdiscursividade


nas crônicas de Marina Colasanti ....................................................................................................................... 405
CASTRO, Ângela Cristina Rodrigues de (UERJ)

Ferramentas do texto .......................................................................................................................................... 414


CHAVES, Charleston (UERJ)

Outros ethé para outro cinema ........................................................................................................................... 418


CHAVES, Fernanda Silva (UFMG)

O ethos feminino na “Revista Mulher” de “O Liberal” .......................................................................................... 426


COELHO, Fabiana dos Santos (UFPA)

O mecanismo de antecipação e as estratégias de argumentação nos


pronunciamentos de Fidel Castro ....................................................................................................................... 435
COLAÇA, Joyce Palha (UFF)

A modalização em Comunicação em prosa moderna ........................................................................................ 445


CONFORTE, André (UERJ)

6
Performance narrativa e identidade:
análise de narrativas em um fragmento de relato de uma agente de saúde
do Instituto Vila Rosário ...................................................................................................................................... 452
CORTEZ, Cinara Monteiro (PUC Rio)

A mulher, o casamento, a família: uma relação regulada por mandamentos ..................................................... 462
COSTA, Iraneide Santos (UFBA)

As manobras do sujeito na busca do fazer científico .......................................................................................... 472


COURA-SOBRINHO, Jerônimo (CEFET-MG)
TAVARES, Maria Luiza Rodrigues Rua Campos (CEFET-MG)

A atuação do conector quando na organização de episódios da sequência narrativa ....................................... 479


CUNHA, Gustavo Ximenes (UFMG)

Identidades em (trans)formação: um olhar para além do produto


da pesquisa científica .......................................................................................................................................... 488
DA ROSA, Marluza (Unicamp)

Informação midiática: uma encenação da realidade ........................................................................................... 495


DAVID-SILVA, Giani (CEFET-MG)

A multimodalidade em um gênero notícia na seção Ciência da Folha de S. Paulo ............................................ 504


DIAS, Luciene da Silva (UFV)

O discurso webjornalístico à luz da Semiolinguística ......................................................................................... 513


DOMINGUES, Michelle Gomes Alonso (UFRJ)

Estudos sobre a Intencionalidade:


o Twitter como espaço para a comunicação política .......................................................................................... 520
DUARTE, Alice Botelho (PUC MG)
MARQUES, Luciana Moraes Barcelos (PUC MG)

A construção do ethos em propagandas de café brasileiras e italianas ............................................................. 530


DUARTE, Andrea L. Belfort (UFF)

O lugar dos pais na clínica do autismo: reflexões em análise do discurso e psicanálise ................................... 543
DURANTE, Juliana Cáu (UFPE)

Escola: uma invenção da modernidade, mas ainda atual – a construção


discursiva da escola a partir de imagens ............................................................................................................ 555
DUTRA, Isabela (UFRGS)

7
“A voz que clama no deserto”:
estudo do ethos discursivo no folheto evangélico ............................................................................................... 564
FABIANI, Sylvia Jussara Silva do Nascimento (UFRJ)

Campos semânticos e publicidade: uma perspectiva discursiva ........................................................................ 573


FADUL, Barbara Ferreira (UFRJ)

A originalidade do carnaval de Paulo Barros: patemização e iconicidade .......................................................... 583


FERES, Beatriz dos Santos (UFF)

Credos e falares afros nas narrativas de Autran Dourado .................................................................................. 591


FERNANDES, Liduína Maria Vieira (UECE)

Os estudos acadêmicos e as atividades docentes dos estagiários de cursos de licenciatura em Letras:


por que a frequente dissociação entre a teoria e a prática? ............................................................................... 598
FERNANDES, Neusa de Araújo (PUC MG)

A divulgação científica por meio do blog ............................................................................................................. 606


FERREIRA, Rejane Ricardo (UNISINOS)

Análise do discurso de uma professora de Ciências/Química na vivência de uma Abordagem CTS


(Ciência-Tecnologia-Sociedade): delineando relações entre comportamentos enunciativos e o modo
de argumentar ..................................................................................................................................................... 614
FIRME, Ruth do Nascimento (UFPE)
TEIXEIRA, Francimar Martins (UFPE)

O discurso étnico-literário em Becos da memória .............................................................................................. 623


FRAGA, Maria Cristina Prates (UVA)

Da relação sujeito-professor e sujeito-aluno hiperativo:


análise das práticas discursivas sobre os sujeitos da educação na pós-modernidade ...................................... 629
FRANCESCHINI, Bruno (UEM)

Práticas linguageiras em situações de trabalho:


ethos discursivo em jornal interno de empresa ................................................................................................... 638
FREITAS, Ernani Cesar de (FEEVALE)

Discursos de relações de gênero na música sertaneja ...................................................................................... 647


FREITAS, Lúcia (UEG)

8
O discurso do outro no universo adolescente:
a teoria de Bakthin como perspectiva de análise da revista Capricho ................................................................ 654
FREITAS, Natasha Jorge (PUC RS)

Sujeitos enunciadores e contratos comunicativo em São Bernardo ................................................................... 660


FREITAS, Regina Celia Pereira Werneck (UFRJ/UBM)

A apropriação do discurso religioso na construção da imagem feminina


no blog de Ana Paula Valadão ............................................................................................................................ 667
GONÇALVES, Gisele Siqueira (UFV)

O ethos na carta pastoral .................................................................................................................................... 676


GONÇALVES, Rachel Camilla Rodrigues de Castro (UFV)

O ethos do compositor da música popular brasileira durante a ditadura militar:


uma leitura intertextual ........................................................................................................................................ 695
GOUVÊA, Maria Aparecida Rocha (UERJ/UniFOA)

O discurso jurídico .............................................................................................................................................. 704


GUEDES, Rosane Mavignier (UFRJ)

Transcendendo os limites de gênero: de carta pessoal a manifesto público....................................................... 712


HABIB, Paulo Paulinelli (CEFET MG)

Língua, discurso e memórias: a sociedade mineira nos anúncios publicitários oitocentistas ............................. 722
INÁCIO, Alice Meira (UFOP)

Uma abordagem discursiva da regra de Santa Clara de Assis .......................................................................... 731


JESUS, Edinha Maria de (UFS)

O discurso arquitetural de Oscar Niemeyer e suas filiações discursivas ............................................................ 739


JULIÃO, Raquel Manna (UFMG)

Abordando textos sincréticos em sala de aula .................................................................................................... 746


LARA, Glaucia Muniz Proença (UFMG)

Estratégias de referenciação na produção escrita de alunos surdos ................................................................. 756


LEAL, Christiana Lourenço (UFRJ/INES)

Estratégias discursivas acionadas em campanhas publicitárias do Conselho Nacional de Justiça ................... 763
LEAL, Virgínia (UFPE)
PIRES, Carolina (UFPE)

9
Representações do professor na mídia .............................................................................................................. 770
LEITE, Maria Alzira (PUC MG)

A subjetividade em discussão: a presença do eu no discurso do outro ............................................................. 780


LEMOS, Luana Santos (UFES – Faculdade Interativa COC)

Espaço associado e autoridade enunciativa:


o posicionamento da camaraderie do Pequeno Cenáculo ................................................................................. 787
LIMA, Fernanda Almeida (UFRJ)

Entre diálogos e vozes: a construção das crenças no ensino de línguas na perspectiva


Bakhtiniana – diálogos entre análise do discurso e linguística aplicada ............................................................. 793
LIMA, Fernando Silvério de (UFV/CAPES)

“Até não parar em pé”:


o consumo de bebidas alcoólicas abordado pela música sertaneja ................................................................... 802
LIOTO, Mariana (UNIOESTE)
CATTELAN, João Carlos (UNIOESTE)

Vozes no discurso: quem se faz presente nos editoriais do Correio Braziliense,


Folha de São Paulo e O Globo .......................................................................................................................... 809
LOPES, Denise (UFPI)

A interpretabilidade e a transgressão de espaços entre gêneros de natureza diversa ...................................... 815


MADEIRA, Ana Maria Gini (PBH-MG/UFMG)
MARTINS, Ana Lúcia M. R. Poltronieri (UERJ)

Análise do discurso (AD) sobre produtos de origem vegetal orgânica


(a trajetória acadêmica do discente de agroecologia do Colégio Técnico da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) .................................................................................................. 825
MAGIOLI, Tatiana (CTUR-UFRRJ)

O papel argumentativo das metáforas em anúncios publicitários ....................................................................... 830


MAIA, Suelen Nunes (UFF)

O estilo é o candidato: Buffon passaria no vestibular? ....................................................................................... 839


MALFACINI, Ana (UERJ/UniFOA/UGB)

10
Discurso publicitário, vozes e silêncio: a imagem da família construída pela margarina Qualy ......................... 849
MANZONI, Ahiranie Sales dos Santos (UFAL)
ROSA, Daniela Botti da (UFAL)
OLIVEIRA, Lisiane Alcaria de (UFAL)

A ação coadjuvante do leitor na produção do discurso midiático ........................................................................ 858


MARCHON, Amanda Heiderich (UFRJ)

A perspectiva da análise do discurso na cognição em redes virtuais:


a validade na relação entre ethos, logos e pathos no processo de sociabilidade .............................................. 868
MARINHO, Karla Azeredo Ribeiro (UERJ)

Tradução no ensino de FLE ................................................................................................................................ 876


MATIAS, Andréia Azevedo (UFRJ)

A figuratividade da linguagem ou a literaçodade da metáfora ............................................................................ 883


MATOS, Lucia Helena Lopes de (UFRRJ)

Sujeitos, enunciação, enunciado e ethos em um conto de Machado de Assis .................................................. 893


MEDEIROS, Luiz Claudio Valente Walker de (UFRRJ)

O discurso oficial sobre os profissionais da educação: silenciamento e consenso ............................................ 900


MELO, Kátia Maria Silva de (UFAL)

Estratégias argumentativas e procedimentos enunciativos em publicidades televisas ...................................... 908


MELO, Mônica Santos de Souza (UFV)

A organização relacional discursiva nos gêneros Artigo de opinião e Carta ao leitor ........................................ 917
MENDES, Fernanda Teixeira da Costa (UFMG)

O contrato de comunicação nas páginas de abertura das operadoras de telefonia móvel ................................ 936
MENDES, Renata dos Santos (FUNCEC/UEMG)

Ethos e cenografia no ensino superior privado ................................................................................................... 944


MENDES, Silma Ramos Coimbra (Unipinhal/PUC SP)

Patemização e relações socioculturais:


a formação do ethos do Brasil no cenário internacional ..................................................................................... 954
MENEZES, Clarice Cristine Ferreira (IBMEC-BH/UFMG)

11
Análise dos ethé de credibilidade legitimados por sujeitos testemunha no horário gratuito de
propaganda eleitoral 2008 .................................................................................................................................. 962
MESTI, Paula Camila (UEM-PR)
PASSETTI, Maria Célia Cortez (UEM-PR)

Autoria ou aporia? Discursos, práticas e representações da função-autor na cibermídia .................................. 968


MOMESSo, Maria Regina (UNIFRAN)
SILVA, Mauricio Junior Rodrigues (UNIFRAN)

Posicionamento e Projeto Estético no teatro de Alfred de Musset: da leitura à cena ......................................... 979
MONTEIRO, Luiz Paulo dos Santos (UFRJ)

Língua, discurso e identidade: quem é o jovem excluído para o PROJOVEM urbano ....................................... 987
MORAIS, Argus Romero Abreu de (UFC)

Modalidades alocutivas no discurso de uma professora-formadora:


uma identidade em (re)construção ..................................................................................................................... 998
MOREIA, Andréia Godinho (PUC MG)

Conotações e discurso: o sujeito como efeito de sentido ................................................................................... 1006


MOREIRA, Jorge de Azevedo (Colégio Pedro II)

O rap, uma rítmica? ............................................................................................................................................ 1014


MOTTA, Ana Raquel (PUC Campinas)

“Piauí: é feliz quem vive aqui” – efeitos de patemização na mídia ..................................................................... 1023
MOURA, João Benvindo de (UFPI/UFMG)
MELLO, Renato (UFMG)

A descoberta do Brasil urbano: a crônica e o campo literário ............................................................................. 1031


MOURA, Sérgio Arruda (UENF)

Carta dos leitores e interpretação de textos ....................................................................................................... 1039


MUNIZ, Valéria Campos (UERJ)

CHARACTER COUNTS:
práticas e representações discursivas construindo a ética do indivíduo ............................................................. 1048
NEGRÃO, Luiz Carlos Cardoso (UNIFRAN)
MOMESSO, Maria Regina (UNIFRAN)

Estudo do mediativo no Correio Braziliense de 1808 ........................................................................................ 1056


NEVES, Janete dos Santos Bessa

12
A construção enunciativa na cobertura da morte de Alberto Silva nos jornais de Teresina:
em busca do leitor ............................................................................................................................................... 1064
NORONHA, Elizângela (UFPI)

A expressão do ethos da revista Caros Amigos ................................................................................................. 1072


OLIVEIRA, Daniele de (UFMG)

A campanha “Muito prazer, sexo sem DST” do Ministério da Saúde:


analisando a representação masculina e feminina à luz do design visual .......................................................... 1081
OLIVEIRA, Luana Gerçossimo (UFV)

Um estudo das estratégias discursivas do planejamento estratégico


do CEFET-MG na constituição do seu ethos ...................................................................................................... 1090
OLIVEIRA, Maria Luiza Campos (CEFET-MG)
DAVID-DILVA, Giani (CEFET-MG)

Entre a recepção e a transmissão:


o sujeito e a construção de sentido em “Narradores de Javé” ............................................................................ 1099
OLIEVIRA, Renata de Souza Portella (UFRJ)

As pérolas do Desencannes: uma leitura pela análise do discurso .................................................................... 1109


OLIVEIRA, Simone Cruz de (UNEB)

O humor no discurso relatado infantil ................................................................................................................. 1116


OPITZ, Ana Cristina (UFRGS)

A representação da mulher na crônica de Chico Buarque ................................................................................. 1125


PACHECO, Siomara Ferrite Pereira (PUC SP/UNIP/FMU)

A polêmica como interincompreensão no discurso da política acadêmica da UFPA ......................................... 1134


PANTOJA, Benedito José Brabo (UFPA)

A heterogeneidade discursiva:
os modos de organização do discurso e o ato de linguagem como encenação:
um estudo do caso clínico Anna O. e a Psicanálise ........................................................................................... 1143
PARDINI, Raquel Jardim (UFMG)

A irreverência na ressemantização do uso efetivo da língua na designação


referencial em manchetes de jornais .................................................................................................................. 1150
PAULA, Deborah Gomes de (PUC SP/UNIP)

13
“Eu não mudo de opinião”:
estratégias para ler três canções brasileiras da década de 60 em sala de aula ................................................ 1159
PAULO, Lucineide Lima de (IFRJ/UFF)

“Você é?”: a construção de uma identidade gay em sites de relacionamento .................................................... 1169
PELLIM, Tiago (UFRJ)

Discurso jurídico: autoridade institucional e reconhecimento dos atores sociais ............................................... 1178
PEREIRA, Estael Aparecida (UFMG)

Os processos de referenciação e o mundo de nossos discursos:


a leitura de um texto pelo acompanhamento da construção de sua cadeia referencial ..................................... 1184
PEREIRA, Soraia Farias Reolon (FCRB/UERJ)

As práticas discursivas de incentivo ao consumo:


relações interdiscursivas na composição de periódicos empresariais ................................................................ 1194
PESSOA, Fátima Cristina da Costa (UFPA)

O não reconhecimento do outro em interlocuções entre médicos e pacientes:


simulacro e ethos na prática médica ................................................................................................................... 1200
PICCARDI, Tatiana (Unicamp/PUC SP)

A subjetividade na divulgação do conhecimento científico:


um estudo de estratégias enunciativo-discursivas .............................................................................................. 1208
REIS, Ana Carolina Gonçalves (UFMG)
OLIVEIRA, Jairo Venício Carvalhais (UFMG)

A relação de causalidade expressa pela conjunção quando .............................................................................. 1218


RELVAS, Vanessa Pernas Ferreira

João Cabral e Machado de Assis: o papel do substantivo na estética do discurso literário ............................... 1226
RIBEIRO, Anderson da Silva (UNISUAM)
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (UERJ)
CAMARA, Tania Maria Nunes de Lima (UERJ/UNISUAM)

A crítica como ato de fala: a força ilocucional ou efeito? .................................................................................... 1236


RIBEIRO, Lígia de Souza (PUC MG)
NASCIMENTO, Rosilene Maria (PUC MG)

A polêmica como interincompreensão:


construção e negação de simulacros no campo da surdez ................................................................................ 1245
RIBEIRO, Maria Clara Maciel de Araújo (UFMG)

14
Programas de teatro como protocolos de leitura ................................................................................................ 1252
ROCHA, Roberto Ferreira da (UFRJ)

Práticas de professores aposentados ................................................................................................................. 1257


RODRIGUES, Isabel Cristina França dos Santos (UFPA)

Educação de surdos e questões de política linguística ...................................................................................... 1266


RODRIGUES, Isabel Cristina (UERJ/UFF)

O uso expressivo de campos semânticos na mídia impressa ............................................................................ 1272


RODRIGUES, Tânia Maria Bezerra (UFRRJ)

Abordagem discursiva da comparação ............................................................................................................... 1280


RODRIGUES, Violeta Virginia (UFRJ)

A encenação dialógica como estratégia de adesão ao discurso ........................................................................ 1288


ROSA, Gerlice (UFMG)

Contribuições da análise do discurso para indexação do programa Rede Mídia


em um banco de dados audiovisuais .................................................................................................................. 1298
SABINO, Juliana Lopes Melo Ferreira (CEFET MG)
DAVID-SILVA, Giani (CEFET MG)
PÁDUA, Flávio Luis Cardeal (CEFET MG)

Multiletramentos digitais e discurso docente:


o dizer e o fazer dos professores dentro dos contextos das tecnologias de informação
e comunicação .................................................................................................................................................... 1307
SAITO, Fabiano Santos (UFJF)
SOUZA, Patrícia Nora de (UFJF)

O modo descritivo em reportagens: operações discursivas e patemização ....................................................... 1319


SANT’ANNA, Simone (UFRJ)

A construção do envelhecer pelas revistas Veja e IstoÉ:


enunciação e produção de sentidos ................................................................................................................... 1325
SANTANNA, Maria Lima de (UFPI)

Estratégias de produção de sentido na publicidade da Bom Bril ........................................................................ 1335


SANTIAGO, Maria Magda de Lima (Centro Universitário UNA)

15
Mecanismos do humor nas charges de Chico .................................................................................................... 1342
SANTOS, Adriano Oliveira (UFF)

Cartazes de procurados: enunciados de ontem e polêmicas de hoje ................................................................ 1352


SANTOS, Elmo (UFBA)

Uso de linguagem sincrética em exames nacionais de avaliação brasileira (ENEM e ENADE):


por uma semiologia histórica do discurso ........................................................................................................... 1361
SANTOS, Jocenilson Ribeiro dos (UFSCar)

As operações do discurso relatado no Le Monde Diplomatique ......................................................................... 1370


SANTOS, Priscila Azevedo Cesar dos (UFRJ)

A construção discursiva da identidade docente em uma escola de Viçosa-MG ................................................. 1378


SERRA NETO, Itamar Zuqueto (UFPA/UFV)

A cenografia enunciativa da pantomima Pierrot Sceptique ................................................................................ 1383


SERRA, Claudio (UFRJ)

Uma investigação enunciativa acerca de aspectos racializantes em telenovelas brasileiras ............................. 1390
SILVA, Adriana dos Reis (PUC MG/UEMG)

Discursos constituintes e Direito:


a construção de sentido do direito da sociedade a partir de decisões jurídicas ................................................. 1399
SILVA, Artur Stamford da (UFPE/CCJ/FDR)

Onde está a graça?


Uma análise pragmática do humor na publicidade impresas ............................................................................. 1409
SILVA, Conceição Almeida da (UFF)

Discurso literário/filosófico em Marguerite Yourcenar e Sören Kierkegaard ....................................................... 1418


SILVA, Nilson Adauto Guimarães (UFV)

Negociação da imagem, estratégias discursivas e novas tendências


nas práticas interativas em aulas de inglês como língua estrangeira ................................................................. 1435
SILVA, Pimentel Poliana (UFAL)

Bakthin e a estética da poesia:


uma análise discursiva do poema “Por que cantamos” de Mário Benedetti ....................................................... 1445
SILVA, Rita de Cássia Melém da (UFPA)

16
Construções metafóricas conceptuais atualizadas nas histórias maravilhosas
das minhas biblinhas (re)contadas para as crianças a partir de 04 anos ........................................................... 1453
SILVA, Sônia Maria Cândido da (UFPB/CCAE/DE)

Reorientação curricular para o ensino da língua portuguesa (RJ):


um discurso polifônico ......................................................................................................................................... 1461
SILVA, Vanessa Souza da (UERJ)

A interdiscursividade na construção da identidade profissional do professor de língua materna ....................... 1470


SILVEIRA, Hermínia Maria Martins Lima (PUC MG)

Linguagem e escrita de si ................................................................................................................................... 1477


SILVÉRIO, Nirce Aparecida Ferreira (UFU)

Gêneros textuais e Semiolinguística: proposições e debates ............................................................................. 1485


SIMÕS, Alex Caldas (UFV)

A estética polifônica na série de crônicas Bons dias! de Machado de Assis ...................................................... 1493
SOARES, Ivanete Bernardino (UFMG)
MELLO, Renato de (UFMG)

Sobre o discurso jornalístico em mensários da França e do Brasil:


Le Monde Diplomatique, Le Monde Diplomatique Brasil e Piauí ....................................................................... 1500
SOARES, Maria Juliana Horta (UFMG)
FARIA, Antônio Augusto Moreira (UFMG)

A identidade enunciativa na construção do imaginário nacional ........................................................................ 1509


SOARES, Thereza Maria Zavarese (UFRJ)

Análise do discurso e planejamento:


uma aproximação sob as perspectivas histórico-dialética e foucaultiana ........................................................... 1517
SOUSA, Jhonatan Uelson Pereira (UFMA)

O ensino de leitura crítica de textos multimodais nas aulas de Inglês


sob a perspectiva da linguística sistêmico-funcional .......................................................................................... 1525
SOUZA, Carla Cristina de (UERJ)

17
Material didático e Internet: um paralelo entre as linguagens utilizadas no ensino da EJA ............................... 1538
SOUZA, Carlos Henrique Medeiros de (UENF)
CARDOSO, Carla (UENF)
MOTHÉ, Angélica Andrade (UENF)
JACINTO, Joyce (UENF)

O processo de escolha e uso do livro didático de LP:


o que (e como) dizem os professores ................................................................................................................. 1548
SOUZA, Elisabeth Gonçalves de (UEMG/UFMG)

Sentidos opinativos multimodais no gênero editorial .......................................................................................... 1557


SOUZA, Maria Medianeira (UFPE)

Pensando linguagens verbais e não-verbais em termos de língua, discurso e ensino ...................................... 1565
SOUZA, Tania Conceição Clemente de (MUSEU NACIONAL/UFRJ)
PEREIRA, Rosane da Conceição (UFRJ/Unicamp/UNIVERSO)

Projeto político-pedagógico: a fundação de uma “Nova Escola” ........................................................................ 1573


STAUFFER, Anakeila de Barros (EPSJV/Fiocruz; SME/DC)

Os sujeitos processuais e seus conjuntos de gêneros:


estudo dos aspectos enunciativos de um caso de interação judicial .................................................................. 1582
TEIXEIRA, Maysa de Pádua (PUC MG)

O processo enunciativo do princípio da moralidade em Direito Administrativo:


análise de um parecer jurídico sob a perspectiva da teoria semiolinguística de Patrick Charaudeau ............... 1591
TERZI, Alex Mourão (PUC MG)

“Põe a Chapéuzinho Vermelho na tela!!!”:


análise da argumentação midiática a partir de uma paródia do programa “Brasil Urgente” ............................... 1600
VALE, Rony Petterson Gomes do (UFMG/UFV)

Análise do discurso do jornal político Em Questão:


o cotidiano no jornal eletrônico Em Questão editado pela Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República .............................................................................................................................. 1611
VIANA, Isabel Roque (UFC)
MAIA-VASCONCELOS, Sandra (UFC)

A intertextualidade como um fator de produção do humor no gênero “charge jornalística” ............................... 1617
VIEIRA, Daniele Fátima Caviare (UFF)

18
Turismo e ciência: notas em torno da construção de espaços nacionais ........................................................... 1626
VILELA-ARDENGHI, Ana Carolina (UFMS/Unicamp)

Parâmetros para a redação e a avaliação de uma tradução literária,


ou limites para a (re)criação – uma possibilidade? ............................................................................................. 1633
VINCIPROVA FONSECA, Maria da Conceição (AEDB/UFF)

Análise semiolinguística de textos publicitários produzidos por alunos do 5º ano


do ensino fundamental: os atos alocutivos e elocutivos ..................................................................................... 1642
XAVIER, Glayci Kelli Reis da Silva (UFF)

A violência na linguagem do rock:


aspectos sociais e seleção lexical ...................................................................................................................... 1651
XAVIER, Sandro (UnB)

19
APRESENTAÇÃO

O CIAD-Rio ( Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso) realizou de 08 a 10 de setembro de


2010, na Faculdade de Letras da UFRJ, o II Fórum Internacional de Análise do Discurso, que
apresentou como temática estudos sobre Texto, Discurso e Enunciação. A escolha do tema permitiu
abordar aspectos importantes desse campo de pesquisa e incentivar discussões sobre o
desenvolvimento e a contribuição da AD para os estudos dos usos da linguagem, nos últimos anos.
Com um número expressivo de participantes e mais de 300 trabalhos inscritos, o Fórum
possibilitou amplos debates sobre leitura e produção de discursos em diversas situações de
comunicação bem como ressaltou a importância da Análise do Discurso, disciplina que privilegia o
estudo da atuação dos enunciadores nas diversas operações linguístico-discursivas, durante os
eventos comunicativos.
O CIAD-Rio, Órgão vinculado aos Programas de Pós- Graduação das principais Universidades
do Rio de Janeiro, tem se consubstanciado como polo de formação científica, cujo principal objetivo é
congregar professores e alunos em atividades de pesquisa sobre língua, discurso e ensino, e promover
sua propagação, por meio de Congressos, Fóruns e Seminários e de publicações de suas atividades.
Tem mantido convênio com diversos pesquisadores de Universidades francesas e brasileiras que
estiveram presentes nesse Fórum e cujos trabalhos tem o prazer de divulgar, por meio destes Anais. O
II Fórum teve por intento prestar uma homenagem ao linguista/pesquisador Patrick Charaudeau,
coordenador do CAD (Centre d´Analyse du Discours/ Paris 13), pela parceria e incentivo aos trabalhos
do Grupo CIAD/Rio.
A abrangência temática dos trabalhos apresentados durante o Fórum e a contribuição de
especialistas de várias correntes da AD permitiram incrementar reflexões e metodologias de análise
que comprovam a vitalidade dessa área do conhecimento. Espera-se, pois, que mais pessoas possam
se beneficiar dos resultados das pesquisas aqui apresentadas.

Comissão organizadora

20
Artigos de
professores convidados

21
Por uma abordagem linguística do humor

ALMEIDA, Fernando Afonso de


(UFF)

Este texto faz parte da pesquisa intitulada “Análise da interação: para uma compreensão do humor”, cujo objetivo
geral é estudar o humor. Caracterizando sumariamente o discurso humorístico, pode-se dizer que ele se constrói a partir da
representação (ou apresentação) de um comportamento divergente daquele que seria considerado como padrão. Para se
identificar um desvio de comportamento é necessário possuir um conjunto de informações sobre o mundo a partir das quais
determinadas condutas seriam consideradas discrepantes. Ao salientar a discrepância, o cômico reforça, por outro lado, o
comportamento padrão que estaria sendo abandonado. Por isso ele é necessariamente econômico, pois aponta em duas
direções, salientando a regra e, ao mesmo tempo, a transgressão. O comportamento discrepante é, de alguma forma,
imprevisível, insólito, transgressor, e sempre mais ou menos produtivo do que o comportamento padrão. As regras que ele
transgride são as mais variadas e vão desde o princípio de economia na relação esforço/resultado até a norma de adesão
do comunicante ao conteúdo proposicional do seu enunciado.
Apesar dessa condição, é extremamente amplo o leque de conteúdos que podem ser explorados pelo humor. Na
verdade, o discurso humorístico pode dramatizar diferentes cenas, envolvendo situações, perspectivas e personagens muito
variados. Na parte final deste trabalho, será dado destaque a um texto cujo humor se constrói sobre um mal-entendido
intercultural, isto é, protagonizado por personagens pertencentes a culturas diversas. A propósito, é bastante comum haver,
nessas situações, engasgos, tropeços, equívocos, sobretudo porque duas línguas/culturas operam baseando-se em
práticas, valores e critérios distintos. Durante a interação intercultural, as características (linguísticas, identitárias,
ritualísticas, posicionais entre outras) de cada universo podem se traduzir por um certo número de desencontros ou
discrepâncias, que não raro conduzem a mal-entendidos, os quais, quando detectados, podem ser desfeitos através de
negociação.

Por que o humor?


Existe relativo consenso em torno da ideia de que a Academia é lugar de coisas sérias, e que o humor se encontra
do lado das coisas consideradas leves, sem gravidade, jocosas. Entretanto, sem deixar de reconhecer seu lado relaxante e
ridicularizador, defende-se aqui o entendimento de que o humor é “coisa séria”.
De fato, o humor tem sido visto como fenômeno menor. No âmbito da literatura, por exemplo, a tradição clássica
considerava a tragédia e, mais tarde, o drama, como gêneros de maior prestígio. Seus personagens assumiam
comportamentos exemplares em situações extremas, demonstravam determinação, coragem e audácia em episódios de
desafio e tensão. A comédia, por sua vez, era relegada ao segundo plano, como uma simples manifestação de escárnio, de
zombaria, onde eram representados vícios, baixezas e imperfeições, ou seja, o ridículo do ser humano.
Com o passar do tempo, porém, e diante do acúmulo de contradições e incoerências com que o homem teve (e
tem) de se confrontar, as bandeiras e os lemas que antes orientavam seu caminhar se esgarçaram, deixando um horizonte
sem referências. Essa crise de balizas seguras e positivas provoca uma busca por novos valores e reflete uma necessidade
de alternativas para as formas de organização e de gestão das diversas esferas sociais e seus desdobramentos. Diante de

22
fenômenos como as guerras, a acentuação da pobreza e das desigualdades, o crescimento desordenado, a violência, o
poder paralelo, a crescente escassez de água, o comprometimento do meio ambiente, o humor é, sem dúvida, um fator de
lucidez, um meio para se revelar a falta de sentido, o contra-senso, e para fazer aflorar uma certa consciência. Graças à
posição de recuo que ele traz, o humor oferece ao homem uma imagem pouco idealizada de si próprio. Tornando mais
visíveis ao homem suas fraquezas, suas inabilidades, seu ridículo, o humor facilita a tomada de consciência, aguça a
autocrítica, fornece uma visão renovadora.
O humor abala as certezas, questionando os limites entre o certo e o errado; redimensiona a temporalidade ao
salientar a finitude da existência; expõe o caráter arbitrário das regras, obrigando o homem a buscar um novo sentido para a
falta de sentido. Através do humor, o homem se torna um observador de si mesmo, relativizando assim seus valores e
reconhecendo suas imperfeições. O humor impede o homem de levar-se tão a sério. Por outro lado, ele nos faz aceitar os
acontecimentos infelizes como algo inevitável, que atinge a todos em algum momento, colocando-nos em contato com
aspectos inevitáveis da condição humana.
Numa visão bakhtiniana (BAKHTIN, 1993), o humor exalta o processo de renovação natural do ciclo da vida, ao
colocar o homem em contato com cenas representativas de fenômenos corporais tão essenciais à vida e cuja manifestação
é socialmente controlada: o nascimento, a morte, o coito, a gula, os fenômenos digestivos, a evacuação etc. Ele abre
espaço para uma dimensão mais fisiológica e instintiva do ser humano, interessando-se pelo funcionamento do corpo, sua
imperfeição e suas aberturas. Nesse sentido, é o humor que está ligado à fertilidade e à vida, não o sério.
Passando a uma perspectiva mais freudiana, o humor, à primeira vista ingênuo, dissimula, na realidade, um ataque
à ordem. Ao desviar a atenção consciente para sua camada superficial, ele cria uma cortina de fumaça que possibilita a
liberação de conteúdos reprimidos (sexualidade, agressividade), através de processos inconscientes, como a associação, o
deslocamento, a condensação (FREUD, 1988). Semelhante processo carrega uma gratificação, posto que fornece uma
dose de prazer.

A comicidade : desvio positivo e negativo


A comicidade pode estar situada em dois níveis
distintos: na enunciação e no enunciado (ALMEIDA, 1999). A
comicidade do enunciado se vincula à cena, ao conteúdo ou ao
personagem representado. Via de regra, evidencia um defeito,
uma inabilidade, um erro no âmbito da história contada. Trata-se
do desvio negativo. O personagem representado torna-se ridículo,
como ilustra a figura reproduzida abaixo.

A comicidade da enunciação, por sua vez, é sempre


fruto de uma organização particular dos recursos expressivos, o
que confere ao enunciado um grau de produtividade elevado. É o
desvio positivo. É o caso dos jogos de palavras, trocadilhos, como
ocorre, por exemplo, no seguinte aviso afixado em um ônibus:

Figura 1 (Claire Bretécher)

23
“Jogar papel no chão é sujeira”. No caso das narrativas, a comicidade da enunciação via de regra resulta da
observação de marcas vinculadas à instância discursiva do autor, que adquirem relevância apenas dentro do universo
extratextual. São menos perceptíveis à primeira vista, pois são opções a partir das quais é materializada a articulação dos
enunciados atribuídos às outras instâncias. Elas se qualificam como recursos inusitados ou produtivos da enunciação.

Representações da comunicação através do humor

Como se disse, o discurso humorístico pode tomar como alvo diferentes objetos, situações, episódios. Uma das
cenas representadas de forma mais recorrente é o próprio processo comunicativo. Nesses casos os personagens
interlocutores interagem de maneira insólita, protagonizando trocas que salientam desvios, do ponto de vista tanto da
produção quanto da interpretação dos enunciados. A encenação do desencontro comunicacional pode interessar ao
linguista não apenas porque o coloca diante do avesso da comunicação, salientando ao mesmo tempo os mecanismos
responsáveis pelo êxito e pelo distúrbio da interação, mas também porque o aproxima de uma visão mais realista da
comunicação, marcada pela instabilidade do sentido, pelo imprevisto e pela necessidade de negociação (LAFOREST, 2003)
. É uma oportunidade para se perceber a que ponto os estudos da linguagem estão impregnados pela ideia de que a troca
de palavras garante a transmissão de um conteúdo que seria o mesmo para todos os envolvidos.

Interpretação e sentido

Os desvios comunicacionais possuem evidentemente uma relação muito estreita com o cálculo interpretativo e por
conseguinte com o sentido. De acordo com Sperber & Wilson (1989) a atribuição de sentido a um enunciado é um processo
bastante complexo. Ao tentar extrair informações suficientes que lhe permitam ter êxito nas situações em que se encontra, o
indivíduo é inicialmente levado a formular hipóteses sobre aquilo que seria a intenção do comunicador. Geralmente ele
chega a inúmeras e variadas hipóteses, dentre as quais algumas podem se revelar compatíveis entre si. O segundo passo é
escolher e priorizar uma(s) das hipóteses, levando em conta para isso o grau de relevância (ou pertinência) que ela(s)
adquirir(em) dentro da situação de comunicação. Assim, passando pela porta de um cinema durante uma caminhada, ao
ouvir sua colega lhe dizer “Esse filme deve ser bom”, o rapaz poderia supor que a moça estivesse manifestando
indiretamente o desejo de ser convidada a ir ao cinema, ou que, por ser namorada de um conhecido seu, ela estivesse
apenas ansiosa para ver o filme e, certamente, com seu namorado. Naturalmente, a forma como ele irá interpretar o
enunciado estará apoiada, entre outras coisas, em seu conhecimento linguístico, enciclopédico, sócio-interacional, nas
características que atribui à moça e a si próprio, bem como na produtividade de seus processos cognitivos (capacidade de
produzir inferências, por exemplo).

Portanto, um enunciado não possui um sentido em si, que nele estaria enclausurado. Um enunciado quer dizer
aquilo que seus receptores acreditam que ele quer dizer e, para uma melhor compreensão do funcionamento da linguagem,
é fundamental admitir um princípio de incerteza e de diversidade no centro da atividade interpretativa.

Encadeamento

O recurso à noção de encadeamento, por sua vez, pode igualmente contribuir para o estudo do sentido, já que a
pluralidade ilocutória atinge grande parte dos enunciados, como se observa nas trocas a seguir.

24
- Você está de carro? - Estou sim, obrigado.

A troca inicia-se por um enunciado formulado sob forma de pergunta, mas que pode estar abrigando também valores de
pedido e de oferecimento de carona. A intervenção reativa do segundo locutor (L2) fixa o valor de oferecimento.

- Você não me telefonou ontem. - Desculpe.

O primeiro turno aponta para um feixe de valores: asserção, pedido de confirmação, manifestação de surpresa, crítica,
pedido de justificativa. A intervenção reativa com a qual L2 encadeia, por sua vez, destaca na intervenção iniciativa o valor
de crítica.

- Você dirige tão melhor que eu! - Obrigado.

Estaria L1 fazendo uma simples asserção, um elogio, um pedido para que L2 assumisse o volante? Ao reagir agradecendo,
L2 vincula seu encadeamento ao valor de elogio.

É ao reagir encadeando que L2 vai revelar qual (quais) dos valores ilocutórios potencialmente presentes no
enunciado iniciativo foi privilegiado na sua reação; o que não significa que não tenha percebido a presença de outros
valores. De fato, ao encadear, L2 pode optar por deixar “adormecidos” certos valores identificados no enunciado de L1, em
vez de mobilizá-los e trazê-los ao espaço de troca mutuamente compartilhado.

Kerbrat-Orecchioni (2005: 80) cita a seguinte troca extraída da peça Atenção ao trabalho, de Gildas Bourdet:

Ele – Quando estou ao lado de uma mulher bonita, fico intimidado.

Ela – O Sr. está me dizendo isso para me agradar.

O primeiro turno contém pelo menos quatro valores ilocutórios, sendo que os dois primeiros são mais evidentes: um valor
literal de asserção constativa, que informa sobre uma característica psíquica do próprio enunciador (fico intimidado),
precedido de uma asserção de valor explicativo (quando estou ao lado de uma mulher bonita), um valor derivado de
confissão, devido ao caráter íntimo do conteúdo assertado, e outro valor derivado de elogio dirigido à mulher (mulher
bonita). A reação poderia encadear-se a qualquer um desses valores; por exemplo, ao valor de confissão, se ela
respondesse tentando tranquilizá-lo: – Prometo não comentar esse assunto com ninguém, ou – Que bom que o Sr. está se
abrindo comigo. No entanto, o encadeamento proposto através do qual ela lança dúvida sobre a sinceridade do galanteador
(só para me agradar) indica que ela fixou o valor implícito de elogio.

Nesse sentido, em relação aos valores ilocutórios virtualmente presentes na primeira intervenção, como já se disse,
“é Ele que propõe, mas é Ela que dispõe” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005: 81), fixando com sua intervenção reativa um
desses valores (elogio).

De acordo com essa perspectiva, considera-se que a pluralidade ilocutória é um fenômeno extremamente frequente
na comunicação e que a interpretação de um enunciado geralmente pode conduzir a mais de um sentido. Assim, em vez de
conceber o fenômeno da incompreensão como um fato isolado e extremo, os estudos pragmático-interacionistas
consideram que o nível de coincidência entre o sentido pretendido pelo enunciador e o sentido atribuído pelo destinatário
dificilmente será total. A intercompreensão seria uma questão de grau, situando-se sempre em algum ponto entre os dois
extremos: a transparência total e a opacidade completa.

25
Em caso de incompreensão flagrante, o tropeço interpretativo (evidenciado via de regra por encadeamento
inadequado) pode ser de “responsabilidade” do enunciador (codificador) ou do destinatário (decodificador). O primeiro pode
falhar ao avaliar incorretamente a “legibilidade” dos sinais emitidos, e o segundo, ao explorá-los indevidamente. De todo
modo, como assinala Marty Laforest, “a interpretação imprevista não é necessariamente uma interpretação errada, trata-se
sobretudo de uma interpretação divergente da do outro” (2003: 7).

A pluralidade ilocutória e as diversas formas de encadeamento que ela torna possíveis vão constituir um terreno
muito propício ao surgimento de ambiguidades, mal-entendidos; fenômenos esses que frequentemente são explorados na
construção de situações e personagens humorísticos.

Tipos de desvio

Para se constituir enquanto tal, o propósito humorístico deve inevitavelmente organizar-se em torno de algum tipo
de desvio, desvio esse que será sempre relativo a algum parâmetro social reconhecível. Interessa-nos observar, neste
espaço de que dispomos, os relatos cujo alvo são cenas de comunicação. As balizas sociais então ignoradas podem
possuir relação com aspectos diversos do processo comunicacional. Listamos a seguir alguns deles para, em seguida,
examinar mais detalhadamente o caso do mal-entendido.

A) Lógica interpretativa

Um mendigo diz ao outro:


- Graças à minha flauta, estou muito rico.
- As pessoas lhe dão dinheiro para você tocar [a]?
- Não, elas pagam para eu não tocar [b].

A hipótese logicamente correta [a] é anulada pelo encadeamento proposto [b], o que faz prevalecer o contra-senso. Com
efeito, a gratificação que o personagem recebe não é docorrente do prazer que ele propicia aos ouvintes; ao contrário, ele
ganha para não incomodá-los com sua “performance”. A economia do relato decorre da implicitação da informação segundo
a qual o personagem toca muito mal.

B) Valor ilocutório

Durante a consulta, o médico pergunta ao paciente alcoólico:


- O que é que o sr. bebe [a]?
- Normalmente, bebo pinga, mas pode ser o que o sr. tiver [b].

O desvio configura-se da seguinte forma: ao enunciado do médico [a], que, de acordo com o contexto “consulta médica”,
possui o valor ilocutório de pergunta, é atribuído o valor de oferecimento [b] pelo personagem alcoólico.

26
C) Implicitação

Ao chegar em casa, o filho diz ao pai:


– Pai, um menino na escola disse que eu me parecia com você.
- E o que foi que você disse?
- Nada, ele era maior do que eu [a].

A última réplica do filho, traz, de maneira implícitada, informações* que obrigam a uma releitura do texto e que
desqualificam a figura do pai.

* O pai é feio; é insultante para o filho ouvir dizerem que se parece com o pai; o filho não pôde reagir.

Mal-entendido intercultural

Examinaremos a seguir um relato humorístico intitulado “Polidez”, que nos permitirá evidenciar aspectos do mal-
entendido intercultural.

Polidez

No restaurante de um transatlântico dois passageiros, um francês e um americano, são


colocados na mesma mesa. Cada um deles fala apenas sua própria língua.

Quando o americano chega, o francês, que já estava sentado, se levanta amavelmente


e diz: - Bom apetite! Acreditando que este se apresenta, o americano lhe dá um aperto de mão e
diz seu nome: - Howard Blake. Em seguida os dois homens almoçam sem trocar uma palavra.

No jantar, a mesma coisa se reproduz: o francês diz: - Bom apetite! E o americano, um


tanto desconcertado, responde: - Howard Blake.

No almoço do dia seguinte, a mesma cena. Dessa vez é demais para o americano, que
vai até o comissário e lhe diz: O Sr me colocou à mesa com um maníaco, um tal de Sr Bom
Apetite. A cada refeição ele tem de se apresentar!

O comissário, divertindo-se, lhe explica seu erro. Então, à noite, o americano se dirige
à mesa e cumprimenta seu comensal com um cordial “bom apetite”.
O francês, encantado, não quer passar por menos educado. Levanta-se então e, para
devolver a saudação em inglês, lhe diz: - Howard Blake!

27
A história se organiza em torno de dois personagens de culturas diferentes que vão dividir a mesma mesa. Nenhum
deles fala a língua do outro. Quanto ao quadro espaço-temporal, uma vez que o texto não indica qual seria a bandeira do
transatlântico, pode-se considerar que a ação está situada em território “neutro”, em alto mar. Porém, veremos adiante que
a narrativa confere maior ridículo a uma das nacionalidades.

Observa-se, em primeiro lugar, o fato de que seus comportamentos são orientados por premissas culturais
radicalmente díspares. Na cultura francesa é uma manifestação de gentileza expressar votos de “bom apetite” a seu
comensal, o que não ocorre na cultura americana. Assim, para interpretar a atitude do francês, - e é aí que nasce o mal-
entendido, ou seja, esta é sua fonte - o americano aplica o princípio de reversibilidade: “ele quis comunicar aquilo que eu
teria querido comunicar se eu tivesse dito a mesma coisa”. Como na cultura americana é uma marca de polidez apresentar-
se diante do desconhecido com quem se vai entrar em relação, o americano privilegia a hipótese de que o francês estaria
se apresentando. Resultado: naturalmente impregnado pelas balizas fornecidas por sua cultura de origem e, portanto, sem
a distância necessária para poder enxergar o outro, o americano dá início a um processo interpretativo equivocado, que se
reforça nos encontros seguintes e que culmina com a ideia de que o francês seria um “maníaco”. Diante de sua
incapacidade de reformular suas hipóteses sobre o comportamento do francês, o americano tenta resolver essa situação
incômoda recorrendo ao comissário, que assume a função de árbitro pacificador. Ao intervir, o comissário lhe revela seu
mal-entendido. Fecha-se assim a primeira parte da história: dissipou-se o mal-entendido, pelo menos na ótica do
americano.

O francês, por sua vez, agiu o tempo todo de forma semelhante à do americano: supôs que, quando este
pronunciava “Howard Blake”, era para lhe devolver os votos de “bom apetite” em sua língua materna. Ele também se
revelou incapaz de enxergar na atitude do americano outra coisa que não aquilo que sua cultura lhe sugeria. Entretanto, a
narrativa parece dar menos destaque à falha interpretativa do francês. Com efeito, há duas atenuantes para o francês, cuja
imagem fica preservada na história como um todo. Primeiro, foi ele de fato quem assumiu a intervenção iniciativa da
primeira troca ao dirigir a palavra ao outro. Assim sendo, foi o americano que desencadeou o mal-entendido, quando fez a
primeira falsa inferência, e, a partir desta, produziu uma intervenção reativa inadequada, ao replicar ao “bom apetite”
apresentando-se. Segundo, o relato não salienta incômodo algum por parte do francês, uma vez que o mal-entendido lhe
teria passado despercebido. O ônus do mal-entendido recai totalmente sobre o americano: foi ele quem se irritou com o
comportamento “maníaco” do francês, foi ele que se deu ao trabalho de ir se queixar junto ao comissário, foi ele que foi
obrigado a reconhecer seu erro e reavaliar tanto o comportamento (coerente) do francês quanto o seu próprio (equivocado).

Verifica-se assim uma forte assimetria no que diz respeito aos papéis atribuídos aos personagens, os quais
poderiam parecer, à primeira vista, em posição de equilíbrio. Além disso, a história se fecha com o esforço por parte do
americano para restabelecer harmonia e cordialidade na relação, que resulta num retumbante fracasso: com efeito, quando,
num gesto de extrema gentileza, ele assume a língua e a atitude de seu interlocutor desejando-lhe em francês “bom
apetite”, ele se dá conta de que o francês não percebeu o mal-entendido e continua a pensar que “Howard Blake” singifica
“bom apetite” em inglês. O americano frustrou-se em sua tentativa de desfazer o mal-entendido.

Considerações finais

Essa breve incursão no terreno do humor colocou em evidência o fato de que o mal-entendido, constitui, juntamente
com os outros tipos de desvio, um campo muito fértil para o exame de diferentes aspectos da interação, como o cálculo
interpretativo, as pressuposições, as implicitações, as inferências, os atos de linguagem e seus valores ilocutórios, a

28
indiretividade expressiva, o processo de encadeamento, o princípio de cooperação, a teoria das faces, os scripts, o
processo de negociação etc.
O humor, como a poesia, os jogos, os afetos e os mal-entendidos, são territórios que merecem ser explorados,
apesar – e, por que não, em virtude – do desafio que representam. Certamente o próprio fato de se inscrever num certo
avesso da comunicação e de suscitar uma leitura ao mesmo tempo transversal e atenta à emergência de sentidos
imprevistos faz do humor um excelente meio para se entender o processo de interpretação e os mecanismos que ele põe
em funcionamento.

Referências

Almeida, F. A. de. 1999. Linguagem e humor. Niterói: EdUFF.

Bakhtin, Mikhaïl. 1993. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo – Brasília: EdUnB – Hucitec.

Freud, S. 1988. Le mot d’esprit et sa relation à l’inconscient. Paris, Gallimard.

Kerbrat-Orecchioni, Catherine. 2005. Os atos de linguagem no discurso: teoria e funcionamento. Niterói: EdUFF.

Laforest, Marty. 2003. Le malentendu: dire, mésentendre, mésinterpréter. Laval: Nota bene.

Sperber, Dan e Wilson, Deirdre. 1989. La pertinence: Communication et cognition. Paris: Minuit.

29
Du discours à la langue, aller-retour
Remarques sur le phénomène culturel de
figement/défigement sémiolinguistique et son intérêt pour
l’acquisition d’une compétence culturelle en FLE

BOYER, Henri
(Université de Montpellier III | DIPRALANG-EA 739)

Qu’est-ce qui fait qu’un étranger ayant appris de manière tout à fait satisfaisante la langue française peut être exclu
d’une conversation entre Français, se trouver en difficulté devant tel titre de journal ou tel message publicitaire et ne pas
comprendre des propos apparemment intelligibles tenus dans telle émission de télévision ? Ce n’est pas forcément une
maîtrise déficiente de l’écrit ou de l’oral. Certes, il s’agit là d’un handicap non négligeable qui ne peut que contribuer à
exclure notre étranger de la communication en français. Mais même si cet Étranger réunit toutes les aptitudes linguistiques
requises pour une bonne participation aux échanges entre Français, l’accès au sens peut tout de même lui échapper.
Pourquoi ? Parce qu’il n’a peut-être pas la maîtrise des implicites codés, des représentations partagées sur lesquels repose
la signification de tel titre de presse, de telle publicité, de telle séquence télévisuelle.

On aurait tort de penser qu’il ne s’agit là que d’un fonctionnement marginal de la communication intra-communautaire,
en particulier française. Pour ce qui concerne telle ou telle allusion particulière peut-être. Mais sûrement pas pour ce qui
concerne le mode de production de sens en discours qui est ainsi révélé. Un mode de production de sens dont sont friands
les discours des médias : du reste il s’agit là de l’un des ressorts du spectacle médiatique auxquels cependant ne sont pas
étrangers les échanges conversationnels «ordinaires».

On peut regrouper ces diverses représentations partagées dans deux grandes strates (qui s’interpénètrent) : l’une à
dominante patrimoniale (les grandes dates, les «lieux de mémoire», les personnages célèbres...), l’autre qui relève pour une
large part de la socioculture : les grandes images du vécu communautaire, plus ou moins soumises au stéréotypage.

Si la strate patrimoniale est celle qui recueille un consensus maximal, qui soude l’identité de la communauté (en
particulier, face aux autres communautés) par sa stabilité sur la longue durée (voir par exemple pour la France la
permanence de l’unanimité autour de la figure de Jeanne d’Arc et de ses hauts faits), plus on pénètre dans la socioculture la
plus actuelle, plus on trouve des faits de mode : l’air du temps (la «rhétorique d’époque» selon Barthes) et plus on découvre
1
des clivages, de l’instabilité et la manifestation d’identités de groupes qui s’affrontent plus ou moins clairement.

Les médias sont par nature (par obligation d’empathie, de connivence avec l’opinion publique, régulièrement sondée)
d’excellents vecteurs de ces représentations (avec une prédilection pour le consensus ou à défaut, la neutralisation des
clivages) qu’ils n’hésitent pas à l’occasion à mettre en scène, de manière parfois spectaculaire, comme lors de célébrations
et commémorations communautaires par exemple (anniversaires de faits historiques, «grand-messes» sportives, culturelles,

1
Ces représentations partagées constituent à mes yeux la composante essentielle d’une compétence culturelle (qui constitue le cœur
d’une compétence de communication, la plus difficile à acquérir pour un étranger, parce que fonctionnant en discours sur le mode de
l’implicite codé (Charaudeau 1988, Boyer 1995). En relation étroite avec les autres composantes comme les dispositions/schèmes
/principes d’ordre interactionnel, comportemental qui inspirent les pratiques sociales (et donc les pratiques communicatives) et les
dispositions/schèmes/principes d’ordre sémiotique qui inspirent les productions linguistiques (comme la création néologique par exemple).
Ces dispositions/schèmes/principes sont autant de ponts entre l’imaginaire collectif dont il est question et les composantes langagières
d’une compétence de communication : compétence sociopragmatique en tout premier lieu mais aussi compétence discursive textuelle et
compétence sémiolinguistique (sur mon inventaire des composantes d’une compétence - complexe - de communication voir H. Boyer,
M. Butzbach, M. Pendanx, Nouvelle introduction à la didactique du FLE, Paris, CLE International, 1990, p. 47-51). Par ailleurs, j’ai exposé
ma distinction entre compétence ethnosocioculturelle et compétence référentielle dans Boyer 1995.

30
2
politiques ...). Et il est clair que c’est dans l’ordre du patrimonial que le figement est le plus important. Mais ce processus
sociocognitif réducteur est également bien présent dans l’ordre de la socioculture, (à un degré moindre cependant) : dans la
communication sociale se construisent et circulent des stéréotypes concernant divers aspects du vécu collectif (stéréotypes
intra et intercommunautaires). Par ailleurs, cette communication sociale s’adonne régulièrement à l’emblématisation
(cf.» »Zizoiu », Zinedine Zidane, l’emblème d’une intégration réussie par le sport …et l’honnêteté) , à la mythification (cf.
l’Abbé Pierre, saint laïue tout autant que prêtre défenseur des sans-logis) et à un figement d’ordre sémiolinguistique, la
lexématisation, avec «une certaine idée de...» ou avec «bouter X hors de Y» : il en sera question plus loin. Les produits de
ces opérations de figement dans l’ordre de la socioculture sont soumis à l’épreuve de la durée : emblèmes, mythes,
stéréotypes, lexématisations ne s’intègrent pas aussi facilement dans la strate patrimoniale.

Mais c’est cependant le phénomène de défigement sémiolinguistique qu’affectionne particulièrement un certain


discours médiatique : celui de la presse écrite singulièrement: Libération mérite une mention spéciale en la matière. Ainsi un
mode de distinction ethnosocioculturelle concerne le défigement médiatique dont est l’objet un énoncé, une expression,
investis d’une teneur représentationnelle plus ou moins ancienne et à ce titre figés depuis plus ou moins longtemps. Le
produit est alors un «palimpseste verbal» (Galisson 1995). Pour P. Fiala et B. Habert (Fiala et Habert 1989 : 89), le
«défigement dans les titres [de la presse quotidienne française]» est en fait «la reprise d’un figement, visant à faire remplir
tout ou partie du sens originel de ses éléments». Libération, on l’a dit, mais aussi Le Canard enchaîné sont particulièrement
friands de ce genre de jeu sémioculturel, auquel s’adonnent cependant d’autres organes de presse dans leur titrage.

Certaines lexématisations sont plus prisées que d’autres par le processus de défigement médiatique. Outre «Paris vaut
bien une messe», d’autres figements du même type (patrimonialisé, pourrait-on dire) sont à l’origine de palimpsestes
verbaux : par exemple «Une certaine idée de la France» (De Gaulle) ou, plus récent, «Touche pas à mon pote»
(SOS Racisme) ou «Métro, boulot, dodo». La provenance n’est pas seulement le discours/slogan politique mais également
les titres de chansons, les proverbes, etc. Exemples : «La vie en bleue» (Titre à la une de Libération du 13 juillet 1998,
accompagnant une photographie du capitaine de l’équipe de France de football, vainqueur de la Coupe du Monde,
palimpseste de «La vie en rose »).

Je propose à présent l’observation de ce phénomène qui met en évidence la synergie langue-discours/texte à


propos d’énoncés (de nature le plus souvent scripturale) qui, autonomes en discours ont donc fait de longue date ou font
sous nos yeux l’objet d’un figement sémiolinguistique.

Le figement en question intègre ipso facto les énoncés concernés dans le domaine spécifique du lexique d’une
langue-culture composé d’unités à plus-value ethnosocioculturelle (ou à Charge Culturelle Partagée selon les termes de
R Galisson) qui sont investies par les représentations patrimoniales composantes de l’imaginaire collectif de la
communauté. Et les médias, parce qu’ils sont devenus dans nos sociétés médiatisées les vecteurs et promoteurs privilégiés
de cet imaginaire ont quelque responsabilité en la matière. Impératif d’empathie oblige : ils ont surtout une grande
responsabilité dans la mise en évidence du phénomène, au travers du processus de défigement sémiolinguistique dont ils
font l’objet.
Ce phénomène peut être illustré par des titres empruntés à divers organes de presse, titres qui défigent le
même énoncé figé : « Touche pas à mon pote », slogan de l’association SOS Racisme :
« Touche pas à ma télé» (Aujourd’hui en France)
« Touche pas à mon ADN » (Libération)
« Touche pas à ma Région » (Libération)

Ou encore « Métro-boulot-dodo » (revisité en Mai 68) :


«Ados, porno, bobo»
«Resto-boulot-dodo »
Où est exploité par ailleurs le suffixe très populaire (et productif) [o] (ex : exo, dirlo, hosto, véto –pour vétérinaire-, clodo…)

[Voir les documents reproduits ci-après]

2
Comme en 1998 la coupe du monde de football organisée par la France.

31
On constate ainsi que ce phénomène, qui correspond à une patrimonialisation, opère une sorte d’aller-retour
entre discours et langue , qui met par ailleurs en évidence leur synergie fondamentale :

« Touche pas à mon pote» Touche pas à mon pote Touche pas à [mon/ma X] «Touche pas à mon ADN/ma télé…. »

(SOS Racisme-discours militant) (figement-patrimonialisation) (défigement-discours médiatique )


(discours socio-politique ‘contestataire’)

« Métro-boulot-dodo» Métro-boulot-dodo - X[o]-Y[o]-Z[o] «Ados, porno, bobo»…

On peut sûrement mesurer la prégnance ethnosocioculturelle de tel ou tel énoncé figé à la quantité des discours
médiatiques au travers desquels on se livre à son défigement sémiolinguistique,.

Du point de vue de l’acquisition d’une compétence culturelle en langue-culture étrangère, ce phénomène


mérite qu’on s’y intéresse de près car il est pourvoyeur d’entrées (à exploiter) dans l’imaginaire ethnosocioculturel de la
langue-culture cible et cela dans l’optique d’un accès (toujours difficile) aux représentations partagées par l’Autre.

Références bibliographiques :

BOYER H . (1995), « De la compétence ethnosocioculturelle », Le français dans le monde, 272

CHARAUDEAU P. (1988), « L’interculturel, une histoire de fou », Le français pour demain, 32

FIALA P., HABERT B. (1989), La langue de bois en éclat : les défigements dans les titres de presse quotidienne française »,
Mots. Les langages du politique, 21

GALISSON R. (1995), « Les palimpsestes verbaux : des révélateurs culturels remarquables, mais peu remarqués… », Les
Cahiers de l’ASDIFLE, 6

32
33
34
35
O discurso da sedução

CARVALHO, Nelly
(PG Letras/UFPE)

“O transeunte
foi feito para ver
(e se convencer)
mas quem vê a face
do anúncio
não lhe vê a outra face
da lua
O sol de metal que está
atrás do anúncio”.
Cassiano Ricardo. Jeremias sem-chorar

1-Introdução

No mundo da publicidade não se começa por criar o discurso e sim por estudar o efeito que deve provocar.Cria-se a causa
depois de haver estudado a conseqüência.Os poetas simbolistas já conheciam esta regra: para escrever um poema era
necessário conhecer o efeito que se desejava provocar- determinando o conteúdo e a forma.
Edgar Allan Poe ensinara esta técnica "publicitária " a Baudelaire em seu estudo sobre os princípios de poesia.
Isto nãp faz equivaler os versos de Keats ao aogam I Like Ike, mas a dizer o que Jakobson quis significar : a preocupação da
forma prevalece
O que se quer enfatizar é que se programa o discurso publicitário visando ao efeito que deve causar no receptor.

2-Funcionamento do discurso

Segundo Gérard Lagneau, estudioso francês da linguagem publicitária, três caminhos explicam seu funcionamento, todos
buscando fundamentos científicos Produto para justificar o sucesso dos jogos de palavras nas mensagens publicitárias.Buscam
o porquê da força comunicativa do discurso publicitário por três vias:
A via psicológica, reconhecida a partir de Freud, revela que a eficácia publicitária do jogo de palavras resulta do fato de ser
este, para o receptor do anúncio ,erótico no sentido psicanalítico do termo.Notava Freud que o ouvinte obtém com muito pouco
esforço o prazer que lhe proporciona a palavra.Ele alcança este prazer de forma quase gratuita.
Kristeva (1974) observa que “Freud foi o primeiro a pensar o trabalho constitutivo da significação anterior ao sentido
produzido e/ou ao discurso representativo”, ao estudar o mecanismo do sonho; assim, “Freud desvenda a própria produção
enquanto processo, não de toca (ou de uso ) de um sentido (de um valor), mas de jogo permutativo, modelador da própria
produção”.
A obliteração do valor-de-uso através da incidência do processo de codificação no valor-de-signo representa um processo de
deslocamento. Em psicanálise, o termo designa“o fato de a acentuação, o interesse, a intensidade de uma representação ser

36
susceptível de se soltar dela para passar a outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à primeira por uma
cadeia associativa”.
A via antropológica parte da proclamação da irracionalidade do receptor.O jogo simbólico dos signos reaviva arquétipos
coletivos ocultos mas fundamentais , de tal modo que um verbo aparentemente insignificante conduz à compra, escamoteando a
barreira da consciência.
A via sociológica parte do fato que não se dirigindo a ninguém em especial, dá a cada um a ilusão de que a mesma lhe é
dirigida e faz o receptor ter noção de ser membro de uma pólis.
Acentua-se a eficácia cultural do discurso publicitário pelo apelo constante aos laços frágeis e simbólicos ,tecidos entre os
participantes de uma sociedade industrial. Serve assim à dupla e necessária ilusão de comunhão íntima no interior de uma
mesma sociedade e da incomparável singularidade da pessoa humana.
Assiste-se no anúncio a uma diferença de centragem, semelhante à apontada por Freud no sonho onde “elementos essenciais,
carregados como se acham de intenso interesse, podem ser tratados como se fossem de pequeno valor, e seu lugar pode ser
ocupado no sonho por outros elementos sobre cujo pequeno valor nos pensamentos oníricos não pode haver nenhuma dúvida.”
Também a figurabilidade é favorecida pelo deslocamento.
Os processos de deslocamento e condensação, como trabalhados por Freud e constituindo um dos processos
primários da Psicanálise, encontram como se sabe, correspondência na metonímia e na metáfora..
No discurso publicitário, eles não traduzem, como no sonho, a fala do inconsciente. São processos de codificação também
presentes no anúncio. Quando ao fato de se associarem a conteúdos psíquicos inconscientes, aos chamados fantasmas dos
consumidores, é outro aspecto da questão..
A publicidade e o consumo são formas através das quais o sistema não só veicula os valores básicos através
dos quais se sustenta, como também tenta recriar, por meio da palavra, da imagem e da posse do objeto, a identidade
perdida,com a dose imprescindível de lirismo, sonho e fantasia.

.3-Ação da Publicidade

O anúncio não se limita a simplesmente informar o consumidor sobre o produto. À função informativa agregam-se traços
persuasivos visando compelir à compra, à aquisição do que não se necessita, relegando a segundo plano o produto antigo,
trocando-o sob a mística do novo.
A propaganda exerce sobre os indivíduos a ela expostos efeitos que vão desde a simples aquisição do produto
anunciado à adesão e assimilação da ideológica social que o produz. À ação comercial se acrescenta uma ação ideológica e
cultural.
Na função estética, o jogo das cores e formas, palavras e imagens exorbita o plano puramente informativo, criando em
torno do anúncio mecanismos de sugestão e evocação, um campo estético cujo resultado principal é a criação de uma aura de
beleza que responde por boa parte do envolvimento emocional realizado pelo anúncio. Nele, conteúdos de artisticidade estão a
serviço da promoção de toda uma estrutura social, conseqüentemente, voltados à manutenção de uma relação de dominação.
Em última instância, a função do anúncio é a de reprodução do sistema social vigente e os componentes estéticos
funcionam como elementos de encantamento e sedução que envolvem o receptor de forma semelhante à mãe que, enquanto

37
conta estórias atraentes e cheias de peripécias, faz com que a criança engula passiva e imperceptivelmente a comida
apresentada e de que nem sempre necessita.
O caráter maciço da mídia implica o fato de que, mesmo quando dirigida a um segmento do mercado, a
publicidade acaba por atingir tanto aos diretamente visados, quanto àqueles que não têm meios para adquirir o produto; por isso,
ela “vende de tudo a todos, suscitando vontade e frustração entre os pobres, os subdesenvolvidos, os economicamente fracos”.
“Detém aqui o teu navio para escutares a nossa voz. Ninguém, até agora, passou com sua escura nau sem ter escutado o melífluo
canto que sai de nossos lábios. Quem o ouve, parte mais alegre e instruído”.
HOMERO, Odisséia.
A despeito de toda personalização – fazer o que todos fazem é uma forma paradoxal de se distinguir - , subjaz à
mensagem publicitária um arcabouço coletivo, a presença de um sentimento de solidariedade e segurança originário do fato de
se pertencer a um grupo, falar uma mesma linguagem, participar de sentimentos e necessidades comuns, possuir certos
objetos, adotar determinados comportamentos. A publicidade se vale dessas necessidade e carências, canalizando-as para o
produto.

4-Construção ideológica do receptor

Com uma visão crítica do tema, Fairclough julga haver correspondência entre análise do discurso e análise da sociedade, pois
há características da sociedade capitalista moderna que se refletem na ordem dos vários discursos que por ela transitam.Estas
sociedades são marcadas por um alto grau de integração das instituições sociais para manter a dominação das elites,tendo este
fato sua correspondência no discurso.
Quando o discurso legitima esta dominação existente nas relações sociais, ele está legitimando também a colonização de uma
classe por outra.
O discurso publicitário seria um exemplo , posto que informa a população sobre os bens de consumo da sociedade capitalista,
servindo de elo entre ambos ,com uma função incentivadora.
Confirmando as massas no papel de consumidor,torna este mesmo papel , legítimo e desejável.
Sendo uma das formas de discurso de controle social, ele realiza esta função simulando igualitarismo, removendo da estrutura
de superfície os marcadores de desigualdades, amenizando os marcadores de autoridade e poder, substituídos pelos
elementos provocadores da sedução.
O funcionamento ideológico opera em três direções:
---na construção das relações entre produtor, anunciante e público.
---na construção da imagem do produto.
---na constução do consumidor como membro de uma comunidade.
Para Fairclough , esta última é a maior tarefa da publicidade:
- Como a imagem do produto contribui para posicionar o receptor como consumidor?
A resposta é definida em termos de aceitar como natural o esquema para entender e interpretar a mensagem publicitária.O
receptor ideal (imaginado) pertence a uma comunidade cujos valores, necessidades e gostos estão contidos nestes esquema:
uma comunidade de consumidores.

38
A publicidade constrói o tipo ideal do consumidor pela mudança operada no cotidiano e na visão do mundo, pelos modelos
persistentes e coerentes de necessidades e comportamentos consumistas divulgados e baseados no senso comum.Isto reforça
a tese de ser a publicidade considerada,como já foi dito, um elemento colonizador.
O crescimento do volume de anúncios nas últimas décadas facilitou a penetração da mensagem, inclusive modificando
aspectos não- econômicos. A família ,como instituição, e a vida familiar cotidiana foram "colonizadas" pelo fator econômico e
pela ideologia das classes dominantes.
Esta "colonização" modificou-lhe a estrutura e a escala de valores.
Baseado nesses pressupostos, a mensagem publicitária constrói a imagem do receptor, impondo à realidade o estereótipo
criado e fazendo acreditar que corresponde à verdade.

5-Sedução e consumo
Foi a partir de fins do século passado que o consumo se transformou em “valor que rege os modos do ser”, adquirindo
uma significação essencial para a sociedade contemporânea.
A mudança e a moda estão intimamente relacionadas e levam a uma permanente renovação dos objetos que trazem
em si, como característica inerente a seu próprio design, os traços de sua duração. Aquele objeto, feito para durar a vida
inteira, desaparece em favor de uma permanente mudança; os estímulos de troca fundam-se na proposta de substituição por
modelos tecnologicamente mais avançados, mais modernos, bonitos e eficientes. O conforto e a comodidade do usuário, bem
como o status associado à posse do último modelo, são a forma mais freqüente sob a qual essas características
disfarçadamente se corporificam nos apelos publicitários.
Toda a representação montada em torno do produto se estrutura a partir de uma lógica própria que tem na sedução
sua mola mestra. O anúncio, ao promover o produto, objetiva seduzir o consumidor e levá-lo conseqüentemente a aderir à
mensagem proposta. Para tanto, apresenta uma visão parcial e deformada, onde jogos de luz e sombra, ângulos de focalização
e superposição de planos manipulam fragmentos de realidade e privilegiam objetos antes que pessoas – estas são
coadjuvantes, componentes secundários, embora importantes enquanto testemunhas do efeito de determinado produto. O
anúncio se recorta de uma seqüência metonímica maior num processo que gera ambigüidade e estimula a fantasia do receptor
que se vê incitado a preencher o antes e o depois da cena apresentada, a compor a vida das personagens retratadas. Esse
procedimento é eficaz também na medida em que permite a ênfase em determinados momentos, omitindo outros que poderiam
comprometer a positividade que deve emanar do anúncio.
Na medida em que recorta a faixa de realidade que necessita ou deseja abordar, a publicidade dilui a percepção do
todo e mantém com o momento histórico relações parciais e incongruentes. O jogo operado entre a realidade e a necessidade
de colocação dos produtos no mercado resulta na criação, segundo Quesnel (1974), de um “mundo ideal, purificado de toda
tragédia, sem bomba nuclear, sem explosão demográfica e sem guerra. Um mundo inocente e cheio de sorrisos, de luzes,
otimista e paradisíaco”.

6- Arte e Marketing
Se os vestígios da publicidade podem ser detectados na arte, é em nossos hábitos, tem rituais como presentear, receber, vestir,
alimentar-se e em formas de lazer e cultura física que ela fundamentalmente se faz sentir. Sem medo de errar, podemos afirmar
que nossa vida é hoje, mediada pela publicidade, parte integrante do complexo universo da comunicação de massa.

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Todos os homens têm necessidades ou carências. Essas necessidades ou carências proporcionam impulsos, isto é,
uma disposição para agir no sentido de acabar com a sensação de falta física ou psicológica. Ao marketing cabe criar
incentivos corretos a esses impulsos com o propósito de provocar a ação de consumo dos produtos ou serviços que se quer
vender.
Ao canalizar para o produto os impulsos voltados para a satisfação das necessidades e do desejo, as estratégias de
marketing fazem com que o produto se apresente como algo cuja posse irá magicamente resolver indagações, demandas em
outras esferas da vida pessoal e social, elas não têm, no consumo de bens e produtos, sua solução. Entre instância social,
consumidor e produto estabelece-se uma relação imaginária, aspecto que veremos mais adiante.
São dois os tipos básicos de abordagem feitos pelo anúncio: o factual e o emocional. No primeiro caso, lida-se
diretamente com a realidade, fala-se sobre o produto, o que ele é, como é feito, quais suas características técnicas, etc. No
segundo, os dados factuais cedem lugar ao apelo a valores que são extraídos do próprio universo do consumidor. Da
informação técnica, objetiva e mensurável, passa-se ao plano da experiência e da vivência.

7-Conclusão
A determinação social dos vários discursos produzidos por uma dada sociedade define a compreensão da noção de
contexto e a leitura desses discursos conduz a uma leitura da própria sociedade. A ideologia se apresenta como o conceito que
permite articular, no plano analítico, sistemas simbólicos e sistemas sociais.
Compreender uma sociedade e os diversos discursos que ela produz é, pois, decodificar a ideologia subjacente. A
perspectiva é a de uma ciência crítica que se manifesta como leitura ideológica e denuncia as contradições sociais “resolvidas”
pela ideologia.
Sujeita às mesmas regras do sistema produtivo e visando basicamente ao lucro, boa parte da produção simbólica de
nossa sociedade se transforma em instrumento de reprodução e sustentação do modo de produção que a origina, de
manutenção de um quadro de dependência econômica e cultural.
“Todos os homens têm necessidades ou carências. Essas necessidades ou carências proporcionam impulsos, isto é, uma
disposição para agir no sentido de acabar com a sensação de falta física ou psicológica. Ao marketing cabe criar incentivos
corretos a esses impulsos com o propósito de provocar a ação de consumo dos produtos ou serviços que se quer vender”.
Dentro dessa perspectiva, o anúncio não é focalizado como um arranjo eficaz de palavras, imagens, sons e cores
destinado a promover a venda de produtos e serviços, mas como um “fato social total”, evento social das formas da
representação social, estruturando-as de forma persuasiva e sedutora. À beleza e sedução do jogo das imagens, cores, formas
e objetos, subjaz uma visão do mundo, uma proposta de relação do consumidor consigo mesmo, com os objetos e as pessoas,
com a própria estrutura social, enfim.

-Referências

BAUDRILLARD,Jean.1968.Le Système des Objets. Paris .Gallimard.

BEHAR,Lisa Block.El Lenguage de la Publicidad. 1977.Madrid.Tercera edición. Siglo XXI.

40
CHARAUDEAU,Patrick.1983. Langage et Discours .Paris.Hachette.

FAIRCLOUGH,Norman.1990. Language and Power.2a. ed. London/ New York.Longman.

GRÜNIG, Blanche.1990.Les Mots de la publicité; l architeture du Slogan. Paris.Presses du CNRS.

LAGNEAU, Gérard. 1974.Prolegômenos de uma Análise Publicitária in Os Mitos da Publicidade.Petrópolis. Vozes.

VESTEGAARD, T. e SCHRODER, K.1998.A Linguagem da Propaganda.Tradução de João Alves dos Santos.São Paulo.Martins

Fontes.

41
Livros, quadros e crítica na constituição de um campo
autônomo para a arte

CATHARINA, Pedro Paulo


(UFRJ)

A divisa "Pictoribus promiscum obicetum atque poetis" ("As mesmas coisas são oferecidas aos pintores e aos
poetas”) figura na imagem que acompanha o quarto diálogo, dedicado à mimese, do livro de Vicente Carducho Diálogos de
la Pintura, publicado em Madri, em 1633. Nesta gravura alegórica, pintura e literatura possuem o mesmo objeto a imitar: a
Natureza, representada pela deusa Diana e seus símbolos: os seios da fertilidade, o abutre da corruptibilidade, a cornucópia
da abundância. À esquerda está a Pintura, amordaçada. À direita, a Poesia, coroada de louros, acompanhada pelo cisne,
símbolo do poeta. Nota-se o intercâmbio entre as duas atividades, pela permuta dos suportes: enquanto a Pintura pinta
sobre um livro, a poesia escreve segurando uma paleta. Pelo chão, estão espalhados objetos do ofício: livros para Poesia,
régua e esquadro para a Pintura.

"Pictoribus promiscum obicetum atque poetis", de Francisco Fernández.


Diálogos de la pintura, de Vincente Carducho. Madrid, 1633.

A representação das relações entre a pintura e a literatura do livro de Carducho se insere numa antiga tradição em
que ora essas artes são vistas como rivais, ora como irmãs. As palavras de Horácio em sua Carta aos Pisões “ut pictura
poesis” (“a poesia é como a pintura”) pontuaram, ao longo dos séculos, esse debate. A fórmula atribuída a Simônides “a
pintura é uma poesia muda, a poesia uma pintura que fala” pode ser notada na gravura acima através da oposição entre a
Pintura amordaçada e a Poesia livre para se expressar.

42
Essas citações foram manipuladas ao longo dos séculos, sobretudo pelos pintores e teóricos do Renascimento,
desejosos de atribuir à pintura, considerada então como uma arte manual, a importância institucional de uma arte liberal.
Assim, apropriaram-se dos tratados de poética da Antiguidade, aplicando à pintura os conceitos fundamentais de outra arte,
tentando, desse modo, suprir uma lacuna teórica que antes dificultaria o reconhecimento da pintura como uma arte irmã da
literatura. Por seu lado, a literatura, para dar conta de objetos e seres no espaço, através da descrição, entra em
concorrência com as artes visuais, enquanto que a pintura, durante muito tempo, pagou seus tributos à literatura, ao texto
bíblico e à história, de onde extraiu muitos de seus temas (Cf. JURT, 1988, 168-169).
A leitura deturpada das passagens dos tratados ocorre quando pintores, teóricos e críticos as dissociam de seus
contextos originais, articulando-as ao projeto de constituição de uma arte intelectualizada, capaz de fundar-se em
academias com funções normativas e perpetuadoras de conhecimentos, para além das técnicas e dos métodos (Cf. LEE,
1998, 13-14; JURT, 2003, 83-85).
Nosso olhar se volta, aqui – a partir do ponto de vista do sociólogo Pierre Bourdieu sobre o processo de
autonomia do campo literário, na França, no século XIX (Cf. BOURDIEU, 1992) –, para um momento em que esse
movimento duplo e por vezes dúbio, de rivalidade e amizade, ganha um especial contorno.
Trata-se de um período anterior aos anos 1890, fase em que os pintores sentem a necessidade de emancipação
da tutela da crítica literária, que os apoiava contra as coerções institucionais e a favor de uma arte nova e independente.
Nos anos 1890, cada arte buscará sua especificidade e sua legitimação, reclamando o direito de produzir uma crítica mais
especializada (Cf. JURT, 2003)
Antes da década de 1890, ao menos no grupo de que trataremos, vemos, sobretudo, a solidarização contras as
funções normativas e perpetuadoras, num movimento contrário ao que mencionamos há pouco. Em ritmos de emancipação
distintos, como nos lembra Joseph Jurt,
os artistas que haviam rompido com a norma acadêmica encontravam apoio nos escritores que haviam
reagido contra a ordem burguesa desde a era romântica. Os escritores podiam, no entanto, tirar uma
lição dos pintores “heréticos” que, como Manet, haviam recusado qualquer hierarquia de temas e ao
mesmo tempo qualquer instrumentalização didática, moral ou política da arte – um modelo para os
escritores que, embora libertos há tempos das regras da Academia, eram, enquanto mestres da
palavra, mais expostos às exigências de uma “mensagem” [...]. (JURT, 2003, 86. Tradução nossa)

Uma série de quatro quadros-manifestos de Henri Fantin-Latour (1836-1904) coloca em evidência esse processo
de solidarização entre as artes, num lapso de aproximadamente vinte anos, estreitando as relações entre a pintura, a
literatura e a música.
Em 1864, num retrato de grupo intitulado “Homenagem a Delacroix”, Fantin-Latour reúne em pose dez
personalidades em torno do auto-retrato de Delacroix, morto um ano antes. Sentados estão Duranty, crítico de arte e
romancista, defensor do realismo e do impressionismo; o próprio Fantin-Latour; Champflery, também crítico de arte e
escritor realista; e o poeta Charles Baudelaire, que publicara o Pintor da vida moderna no ano anterior. Em pé, vemos o
geólogo Louis Cordelier, o pintor, gravador e escultor francês Alphonse Legros, o pintor e gravador americano Whistler,
tendo vivido em Paris e Londres e se aproximado dos impressionistas, o pintor Édouard Manet, o pintor, litógrafo e
aquafortista francês Félix Bracquemond, amigo de Edmond de Goncourt e o também pintor e gravador francês Albert de
Balleroy.
Em 1870, um outro retrato de grupo chamado “Um ateliê em Batignolles”, coloca Édouard Manet no ato de pintar
em seu ateliê no bairro de Batignolles (atual 17º distrito de Paris) rodeado pelo pintor alemão Otto Scholderer, Auguste
Renoir, Frédéric Bazille, Claude Monet, Zacharie Astruc, crítico de arte, poeta, pintor e escultor, Émile Zola e Edmond
Maître, diletante amigo dos artistas e escritores.

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Henri Fantin-Latour. Um ateliê em Batignolles.
1864, óleo sobre tela, 204 cm × 273,5 cm, Museu d’Orsay.

Em 1872, no terceiro retrato de grupo, Fantin-Latour pinta o fim de uma refeição que havia reunido dramaturgos,
jornalistas e poetas como Verlaine, Rimbaud, Pierre Elzéard, Léon Valade, Émile Blémont, Jean Aicard, Ernest d’Hervilly e
Camille Pelletan.
Em 1885, no último retrato de grupo, “Em torno do piano”, Fantin-Latour pinta além de Edmond Maître, diletante
que já aparecera no retrato de 1870, os compositores Emmanuel Chabrier, Camille Benoît, Vincent d’Indy, o crítico, poeta e
jornalista Amédée Pigeon, o historiador e folclorista Adolphe Julien e o magistrado Antoine Lascoux, todos admiradores da
música de Richard Wagner.
Dos quatro espaços apresentados nos quadros de Fantin-Latour, destacamos, no retrato de 1870, o ateliê (ou
estúdio do artista). O ateliê, que numa certa tradição da pintura é representado como o espaço da intimidade do pintor em
seu ambiente de trabalho, transmuta-se em um espaço de socialização, tal como é apresentado no quadro de Fantin-
Latour. Frédéric Gaussin, em seu livro O pintor e seu atelier, sublinha essa passagem de um espaço de recolhimento para o
lugar das reuniões, das reivindicações e dos complôs (Cf. GUASSEN, 2006, 8).
Assim como Dominique Maingueneau considera os salões do século XVII e XVIII e os cafés do século XIX como
lugares privilegiados do processo da criação literária, podemos também pensar o ateliê do artista como o local onde se
reúne a tribo, como um espaço fronteiriço entre o íntimo, o restrito reservado ao grupo, aos familiares e à vida social (Cf.
MAINGUENEAU, 2004, 74-77). Distante da idéia romântica da criação ideal e solitária do gênio, o ateliê do pintor é
frequentado por modelos e amigos e, servindo-me do que Maingueneau fala dos salões e da produção literária, trata-se de
um lugar no qual é possível discutir questões de estética, encontrar os camaradas e outros artistas, saber das novidades
sobre os salões de arte, falar do mercado. Além disso, o ateliê é o lugar onde as obras concluídas são apresentadas antes
de serem exibidas ao público; mas também são mostradas aquelas em elaboração, para que o artista tenha opiniões

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prévias sobre seu trabalho, pela crítica de pares e amigos. Enfim, trata-se de um espaço de elaboração, execução, pré-
difusão e, até mesmo, em alguns casos, de comercialização (Cf. MAINGUENEAU, 1993, 33).
Na tela de Fantin-Latour, Édouard Manet pinta provavelmente o retrato de Zacharie Astruc, crítico de arte, poeta,
pintor e escultor, sendo observado por Edmond Maître, pelos pintores Auguste Renoir, Frédéric Bazille e Claude Monet,
pelo pintor alemão de paisagens e de natureza morta Otto Scholderer e pelo escritor Émile Zola.
“Um ateliê em Batignolles”, distante da representação alegórica e monumental do Ateliê do pintor, de Gustave
Courbet – em que vemos, à direita, as figuras do poeta Charles Baudelaire e do escritor Jules Champfleury, nas quais o
pintor emblematiza o movimento realista, e que também aparecem no “Homenagem a Delacroix”, de Fantin-Latour –, traz a
idéia da tribo em um espaço mais íntimo e cotidiano.

Gustave Courbet. O ateliê do pintor, 1855.


Óleo sobre tela, 3,59 m x 5,98 m. Paris, Museu d’Orsay
© Photo RMN / Hervé Lewandowski

O grupo que frequenta o ateliê de Manet, na rua Guyot, também é assíduo dos cafés do bairro de Batignolles,
sobretudo o café Guerbois. Bazille, membro da tribo, possui igualmente um ateliê bem próximo, na rua La Condamine.
Émile Zola, no início de carreira, mudara-se com Alexandrine (com quem se casará em 1870) para o bairro de Batignolles,
no mesmo ano em que publica seu primeiro romance de sucesso, de fatura naturalista, Thérèse Raquin, em 1867.
Uma série de quadros de ateliês de Frédéric Bazille ilustra bem a trajetória de um jovem pintor já tendo deixado de
ser um aprendiz, mas ainda lutando para se firmar no campo da arte. Nos quadros de 1865 e 1866 vemos dois ateliês
vazios, sem a presença do pintor, mas repletos de objetos do ofício e de quadros, do próprio Bazille ou de Monet, que
morou com ele por um certo período (GUASSEN, 2006, 94-100). A modéstia do lugar representado é testemunha da
posição que o pintor ocupa no campo. Renoir, também da tribo, faz um retrato de Bazille pintando em seu ateliê, em 1867 e
Bazille retribui com um retrato de Renoir.

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À esquerda: Frédéric Bazille. Ateliê da rua Furstemberg, 1865. Óleo sobre tela, 80 cm X 65 cm.
Montpellier, Museu Fabre.
À direita : Frédéric Bazille. Ateliê da rua Visconti, 1866. Óleo sobre tela, 64 cm X 49 cm. Richmond,
Virginia Museum of Fine Arts, coleção Mellon.

Frédéric Bazille. Ateliê da rua La Condamine, 1870.


Óleo sobre tela,1870, 97cm x 127cm, Museu d’Orsay.

Já no quadro de Bazille “Ateliê da rua La Condamine”, de 1870, a situação é um pouco diferente. O ateliê, dividido
com Renoir, é um espaço amplo e luminoso, como exige a nova pintura que se elabora. Edmond Maître toca piano, as
paredes são decoradas com as obras dos artistas. Bazille trabalha diante do cavalete, sendo observado por Manet e Monet;

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Renoir, na escada, conversa com Zola. Todos os personagens da tela de Fantin-Latour se encontram na pintura de Bazille
(ambas são feitas no mesmo ano), como que para reafirmar este espírito de grupo que luta para conquistar seu lugar ao sol.
Émile Zola é um elemento comum em algumas dessas pinturas, e retribuirá na forma de crítica de arte,
defendendo seus amigos que compartilham as mesmas inquietações estéticas. A relação de Zola e Manet é intensa. Zola,
aproximando Manet do naturalismo, escreve uma série de críticas defendendo o pintor; primeiramente em 1866, no Meu
Salão, publicado no Événement; em 1867, volta a defendê-lo na Revue du XIXe siècle, num artigo originalmente intitulado
“Uma nova forma de pintura. Édouard Manet” (Cf. ZOLA, 1991). O primeiro artigo de Zola, então publicado em forma de
brochura no ano seguinte, aparecerá no retrato do escritor feito por Manet, em forma de agradecimento, assim como uma
reprodução da Olympia, tela do artista admirada por Zola, tendo provocado grande escândalo no Salão de 1865, e que
vemos decorando o ateliê do pintor, ambiente do retrato.

Édouard Manet. Émile Zola, 1868. Óleo sobre tela 146,5 cm x 114 cm. Museu d’Orsay ©
photo RMN, Hervé Lewandowski

Sobre a mesa, há pena e tinteiro, instrumentos do ofício do escritor. Assim fazendo, Manet associa definitivamente
o nome dos dois, neste momento de suas trajetórias, o que não se confirmará mais tarde, quando Zola se aproxima mais
dos impressionistas.

Detalhes de Edouard Manet. Émile Zola, 1868.

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Tela recusada no Salão de pintura de 1877, a Nana de Manet é provavelmente inspirada na personagem
homônima de Zola, surgida no romance L’Assommoir, publicado nesse mesmo ano, e que ganharia um volume só para ela,
em 1880. Se Manet não se inspirou diretamente na Nana de Zola, Zola certamente recorreu ao quadro de Manet para
compor uma das mais célebres descrições do personagem, no capítulo VII do romance, no qual seu amante, o conde
Muffat, lê um artigo publicado sobre ela no Figaro, intitulado “A mosca de ouro”. Essa passagem é fundamental para a
compreensão do romance e para a afirmação das teorias naturalistas de Zola, que publicava ao mesmo tempo seu texto
crítico O romance experimental.

Édouard Manet. Nana, 1877. Óleo sobre tela, 154 cm x 115 cm. Kunsthalle de Hambourg.

Como se pode constatar, nesse fim da década de 1860 e na de 1870, nesse bairro, à margem do centro de Paris,
esses pintores e escritores se encontravam em cafés e ateliês para trocarem ideias e elaborarem teorias em questões de
arte e literatura, de maneira bastante intensa; aí germinaram e se desenvolveram as estéticas impressionista e naturalista.
Dessa associação nascerá a “Sociedade Anônima cooperativa de artistas pintores, escultores, gravadores e litógrafos”, em
17 de janeiro de 1874. Em 15 de abril, ocorrerá a primeira exposição do grupo no atelier do fotógrafo Nadar, considerada a
primeira exposição impressionista.
Poderíamos afirmar então que, naquela fase, e com aquele grupo, os campos das artes plásticas e da literatura se
aproximam de maneira a constituir um espaço de interseção bastante significativo, no qual os rituais da vida dos artistas se
cruzam com aqueles da vida dos escritores e dos críticos, fazendo de questões estéticas questões comuns a todos.
Não é à toa que notamos uma profusão de retratos de escritores e pintores feitos por amigos e também de auto-
retratos. Nas décadas de 1870 e 1880 escritores como Émile Zola, Joris-Karl Huysmans e tantos outros erguem a pena
para defender a nova pintura que se elaborava.

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Édouard Manet. Retrato de Stéphane Mallarmé, 1876, 27,5 cm x 36 cm.
Museu d’Orsay.

Dominique Maingueneau, em O discurso literário, ao discorrer sobre o “surgimento das obras”, atenta para o fato
de que devemos “considerar o espaço que lhes dá sentido, o campo no qual se constroem os posicionamentos: doutrinas,
escolas, movimentos [...] Esses posicionamentos não são somente doutrinas estéticas mais ou menos elaboradas; são
indissociáveis das modalidades de sua existência social, do status dos seus atores, dos lugares e das práticas que elas
investem e que as investem” (MAINGUENEAU, 2004,118).
Para além das críticas de arte, em que as questões estéticas levantadas estruturam homologamente as questões
literárias – pensemos, por exemplo, na crítica de Huysmans em Arte Moderna, de 1883 –, a pintura se torna elemento
constituinte da cenografia dos romances naturalistas. Muitos são os exemplos de romances de pintor, ou em que há um
personagem pintor: Manette Salomon (1867) dos irmãos Jules e Edmond de Goncourt, As irmãs Vatard (1879) de
Huysmans, L’OEuvre (1886) de Zola, Fort comme La mort (1889) de Guy de Maupassant.
Há também romances naturalistas em que os escritores trazem para as passagens descritivas, em geral
hipertrofiadas para dar conta do que se pode ver e analisar, todo o universo e técnicas apreendidas na convivência com os
pintores, caso atestado nos romances de Huysmans, escritor que queria fazer com sua pena o que os pintores faziam com
seus pinceis.
Neste sentido, poderíamos falar das descrições de Paris feitas por Zola em l’OEuvre, romance de 1886, em que o
pintor Claude Lantier é o protagonista (desenvolve-se também a amizade entre o pintor e o escritor Sandoz, emblemática
dessa relação entre pintura e literatura). Lantier luta por impor uma nova forma de pintura, renegando os ditames
acadêmicos. Ora, neste caso clássico e conhecido de romance de pintor, não é apenas pelo tema do romance que se
evidencia a relação com a pintura, mas também através das próprias descrições picturais da cidade de Paris, que
estudamos em um outro momento, como sendo descrições impressionistas.
Mas já em 1878, com Une page d’amour, romance que se situa entre l’Assommoir (1877) e Nana (1880), na saga
dos Rougon-Macquart, percebemos, nas descrições de Paris que fecham cada uma das partes do romance, esse desejo,
realizado pela pena de Zola, de fazer seus os valores da pintura impressionista.
A personagem Hélène, olhando pela janela, do alto de seu quarto, vê, no final de cada parte do romance,
descortinar sob seus olhos toda Paris. Revela-se então uma paisagem móvel e fugidia, em que se destacam o céu e seus
tons, suas formações de nuvens, vapores, irisações; a paisagem, que inclui elementos da arquitetura da cidade, se renova

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em vários momentos do dia e em diferentes estações, como executara Monet entre 1876 e 1878 com a série da Gare Saint-
Lazare e como fará mais tarde com a série da Catedral de Rouen, entre 1892 e 1894. Zola, nessas descrições, num
romance que não trata do tema da pintura, nem como pano de fundo, constituirá nesses paineis, pela escolha vocabular e
pela sucessão de imagens imprecisas e em movimento, uma verdadeira sequência de telas impressionistas.
Em um dado momento de uma dessas cenas, ao admirar Paris pela janela ao lado de sua filha Jeanne, Hélène,
oriunda de Marselha, deve admitir sua ignorância sobre a cidade que ora habita:
Jeanne, sem se mexer, enfim perguntou baixinho:
- Mamãe, está vendo lá perto do rio essa cúpula toda rosa... O que é?
Era a cúpula do Instituto. Hélène, por um instante, olhou, parou para pensar. E disse calmamente:
- Não sei, minha filha.
[...] Jeanne, no entanto, insistia às vezes.
-Ah! Agora você vai me dizer! perguntou. Aquelas vidraças completamente brancas ? É grande demais,
você deve saber.
Ela apontava para o Palácio da Indústria. Hélène hesitava.
- É uma estação de trem... Não, acho que é um teatro. (ZOLA, 1878, 74-75)
Dessa maneira irônica, Zola mostra a pouca importância que esses dois templos da tradição da arte – a sede das
academias (o Instituto) e o espaço que acolhia as exposições oficiais (o Palácio da Indústria) – podiam ter diante da vida
quotidiana e miserável dos personagens do povo que retratava, que circulavam nas estações de trem e nas imensas
paisagens impressionistas que acabara de pintar. Se a pintura moderna buscava sua autonomia em técnicas e em temas,
negando a educação do olhar codificada academicamente e restrita a um público seleto, a literatura, por uma busca
semelhante, se fazia pintura, paisagem impressionista oferecida à admiração de todos.

REFERENCIAS

BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art; genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992.

GONCOURT, Edmond & Jules de. Manette Salomon. T. I, 2e éd. Paris: Librairie Internationale, 1868.

GUASSEN, Frédéric. Le peintre et son atelier; les refuges de la création. Paris, XVIIe-XXe siècles. Paris : Parigramme, 2006.

HUYSMANS, Joris-Karl. Les soeurs Vatard. In : ___. Romans I. Paris : Robert Laffont, 2005.

______. Écrits sur l’art. 1867-1905. Paris : Bartillat, 2006.

JURT, Joseph. Les arts rivaux. Neophilologus. Wolters-Noordhoff, nº 72, 1988, p. 180-190.

______. Champ littéraire et champ artistique en France (1880-1900). Terceira Margem. Revista do Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura. UFRJ/FL, ano VII, n° 8, 2003, p. 82-102.

LEE, Rensselaer W. Ut Pictura poesis. Humanisme & Théorie de la peinture. XVe-XVIIIe siécles. Paris : Macula, 1998.

MAINGUENEAU, Dominique. Le contexte de l’oeuvre littéraire. Paris : Dunod, 1993.

______. Le discours littéraire ; paratopie et scène d’énonciation. Paris : Armand Colin, 2004.

MAUPASSANT, Guy. Fort comme la mort. Paris : Paul Ollendorf, 1889.

ZOLA, Émile. Thérèse Raquin. Paris : Flammarion, [s.d.].

______. Une page d’amour. Paris : Charpentier, 1878.

______. L’OEuvre. Paris : Charpentier, 1886.

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______. Nana. In : ___. Les Rougon-Macquart. Paris: Seuil, 1970.

______. Écrits sur l’art. Paris : Gallimard, 1991.

PEDRO PAULO CATHARINA é Doutor em Letras (UFRJ) e Professor Associado de Língua e Literatura Francesa (UFRJ).
Membro do comitê da Société J.-K. Huysmans (Paris), é, com Celina Moreira de Mello, líder do grupo de pesquisa ARS
(CNPq-FBN). Publicou Quadros literários fin-de-siècle (2005) e organizou Crítica e movimentos estéticos (2006) e Cenas da
literatura moderna (2010), todos pela editora 7Letras.

e-mail: pp-conde@uol.com.br

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Itinerário brasileiro de um analista do discurso
A enunciação a cada momento da vida

CHARAUDEAU, Patrick
(Université de Paris 13 - Professeur Émérite - Chercheur au CNRS)

Faz muito tempo, um Francês foi comido por habitantes autóctones deste país.
Vários séculos depois, um outro Francês chegou a esta terra convidado por outros sujeitos, oriundos de vários
momentos de imigração.
Este Francês não foi comido (bom, depende em que sentido), mas completamente absorvido, fagocitado pelo
sentimento/ afeto brasileiro.

Ao chegar pela primeira vez ao aeroporto de São Paulo, perguntou a um carregador se ele podia levar sua mala até um
táxi. Ele respondeu “Eu acho que sim”. “Acho que”, ato de modalização enunciativo.
Ele, o Francês, pensou : esta gente sabe o que é a enunciação.

Depois, pegou um táxi e perguntou se a praça da República, onde ficava seu hotel, estava longe. O motorista
respondeu : “Está pertinho”.
Depois de uma hora, perguntou novamente se ainda estava longe, e novamente o motorista lhe respondeu “pertinho”.
Mas teve que rodar por mais meia hora.
O Francês pensou: esta gente não tem o mesmo sentido do tempo que o nosso, ainda mais porque o motorista falou
numa modalização afirmativa.

Finalmente esse Francês chegou ao hotel, e lá, perguntou se era possível ter um apartamento com uma cama grande.
“Não vai ser possível, disse o recepcionista, porque o hotel está lotado”, e desapareceu.
Mas, um minuto depois ele voltou e disse : “Eu acho que vai ser possível, se o senhor aguardar uns minutinhos.”
Bom, foram uns minutinhos transformados em minutões, mas conseguiu um apartamento com cama grande, e mais
uma vez, observou duas coisas: que o sentido do tempo também não era o mesmo que o seu, e que as pessoas aqui
costumam modalizar.
Isto foi confirmado durante toda sua estadia, porque ouvia que nas conversas entre brasileiros as pessoas diziam «ach'
que sim, ach' que não» ; «o que é que você acha ? Eu ach' que...» Os Brasileiros devem ser os campões da modalização
“elocutiva”.

Depois do Seminário que nosso Francês fez na USP (porque era professor na Universidade de Paris), devia vir aqui ao
Rio, para fazer umas conferências, convidado pelo professor Celso Cunha.
Quando se apresentou na Universidade, a secretária com que falou disse para ele que não havia nada em seu nome,
que não havia conferência prevista, ou seja, que ele não existia.
O Francês pensou: aqui a comunicação não deve funcionar bem.
Agora, no momento em que não sabia o que fazer, apareceu um outro professor (que está aqui presente) e que, num
piscar de olhos, resolveu todos os problemas: a conferência, o hotel, o pagamento da conferência, para o qual tinham que
chegar ao banco antes das 5 da tarde.
E como já eram 5 da tarde, chegaram no momento em que estava fechando, tendo mesmo que mergulhar sob a porta
que estava fechando.
Ele pensou: decididamente, aqui as pessoas não têm a mesma maneira de resolver os problemas. O que é possível
aqui em pouco tempo é impossível na França. Além disso, começam sempre dizendo que não é possível e depois dizem
que acham que é possível.
Ele pensou que o verbo “achar” era mágico, ou que, pelo menos, produzia efeitos mágicos. Tudo questão de
enunciação.

Nessa mesma ocasião, no Rio, alguém lhe aconselhou ir ver um espetáculo bem brasileiro no Canecão, onde então
estava Sargentelli com suas mulatas. Foi sozinho.
Que pode fazer uma pessoa sozinha num lugar como esse se não ficar bebendo cachaça?
Então, depois de dez ou doze cachaças, não se lembrava de nada. Somente que num momento estava dançando ao
ritmo de «O Rio de Janeiro continua lindo», em meio às mulatas, e depois acordou na sua cama do hotel, todo vestido, e

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com todo seu dinheiro no bolso.
Que pode ter acontecido? Vocês imaginam se ele esteve com uma mulata e que ela dissera "Eu acho que sim.." ? Uma
perda de enunciação...

Poucos dias mais tarde, quatro sujeitos assaltaram nosso Francês nas ruas do Rio para lhe tirar seu dinheiro.
Isso se resolveu com um ato de enunciação radical, porque ele disse para os assaltantes : «eu ach' que vou me
zangar». E deu um grito tão forte, (um grito de karatê), que eles saíram correndo.
Depois, quando chegou ao hotel e contou para o recepcionista sua aventura, o recepcionista disse assim : «Eu ach' que
o senhor teve muita sorte, porque agora pode contar sua aventura. Boa noite senhor».

Nos anos noventa, esteve outra vez no Rio. Então, estava escrevendo a “Grammaire du sens et de l’expression” (da
qual vocês têm uma parte no livro Linguagem e discurso: modos de organização, traduzido e adaptado por um grupo do
CIAD e um grupo do NAD).
Pensou que, para ter inspiração, tinha que ir ao país do «ach' que sim, ach' que não».
Por isso, ele diz que essa gramática, apesar de tratar da língua francesa, tem algo de brasileiro, particularmente no
capítulo das modalidades enunciativas.

Mais tarde, na metade dos anos noventa (1994), foi quando começou um programa de cooperação científica
(CAPES/COFECUB) com a UFMG, em Belo Horizonte.
Esse programa teve tanto sucesso que foi prolongado duas vezes pelas instâncias administrativas da França e Brasil, o
que foi um caso excepcional. Nessa ocasião se criaram o "Núcleo de Analise do Discurso" (NAD) na UFMG, e o "Círculo
Interdisciplinar de Analise do Discurso" (CIAD) na UFRJ.
Assim, tendo a oportunidade de ir regularmente a Belo Horizonte, e paralelamente ao Rio, começaram (ele e os colegas
da UFMG e os da UFRJ) todos juntos a elaborar teorias de análise dos discursos em torno de uma concepção
semiolinguística da linguagem, com os seus componentes enunciativos, comunicativos e pragmáticos.
E ele, aproveitou para observar e estudar as características de identidade do “sujeito brasileiro” através da observação
dos seus comportamentos e da sua maneira de falar, os chamados "rituais sociolinguageiros".

Alguns exemplos :
- As pessoas têm uma maneira de se relacionar umas com as outras muito efusiva (como quando se saúdam, se
balançam como se estiveram dançando o samba). Tão efusiva ao demostrar amizade, que, em contraste, têm dificuldade
em protestar ou expressar um desacordo frente a frente com o interlocutor. Então, desenvolvem umas estratégias
enunciativas muitos sutis para evitar de o agredir verbalmente.

- Uma vez, nosso sujeito Francês estava numa farmácia do Bulevard Saint-Michel em Paris. E entra um grupo de
brasileiros (os brasileiros se reconhecem imediatamente quando estão num país estrangeiro), e um deles perguntou onde
ficava a rua Cujas. E o farmacêutico respondeu : «aqui não é uma agência de turismo».

Os brasileiros ficaram abismados. Felizmente, o Francês abrasileirado estava lá e, como o Zorro do filme, logo resolveu
a situação.
Um mês mais tarde, encontrava-se nas ruas de Belo Horizonte na mesma situação, e perguntou a um cabeleireiro que
estava trabalhando num salão aberto na rua, onde ficava a rua Sant’Ana e se era longe.
O cabeleireiro respondeu que era pertinho e, com a tesoura e o pente na mão, abandonando seu cliente, o acompanhou
até a rua Sant’Ana (que era bastante longe).
O Francês pensou : «aqui, os rituais de relação não são os mesmos que na França, e o sentido do tempo e das
distâncias também não.

- Outro exemplo dessa questão das relações sociais : uma vez veio ao Rio para animar um seminário com alguns
colegas da UFRJ, convidado (uma vez mais) pelo amigo professor Celso Cunha. Mas a universidade estava fechada, em
greve. Ele pensou, que problema !
Pois não foi problema. Reuniram-se na casa particular de um dos professores, e fizeram o seminário no seu salão, bem
sentados, com petiscos e cachaça.
Vocês podem imaginar que o ambiente foi muito caloroso, e isso durante três ou quatro dias. Ou seja, aqui as relações
privadas e profissionais podem se misturar sem nenhum problema.
Mas, mais tarde, o Francês descobriu que quando os Brasileiros organizam um congresso, o fazem tão perfeitamente
que nem os Americanos que se dizem os campeões da organização, não estão a altura. Perfeição, mas sempre com uma
pitada de fantasia.

53
Da Enunciação

Agora, falando de mistura, vocês veem como o processo de enunciação linguageiro se mistura com o próprio
enunciado. Finalmente, o que é a enunciação ?

Há duas concepções de enunciação, segundo o ponto de vista em que a considerarmos, da língua ou do discurso,
embora as duas estejam intimamente ligadas (ver no Dicionário de Análise do Discurso, o verbete "Enunciação" por
Dominique Maingueneau & Patrick Charaudeau).

Do ponto de vista da língua, a enunciação foi definida pelos textos de Emile Benveniste, considerados como fundadores.
Este postula a presença dos sujeitos Eu e Tu como determinante do próprio ato de linguagem, na medida em que falar,
é sempre para um locutor Eu dirige-se a um interlocutor Tu (individual ou coletivo, presente ou ausente), o qual pode, por
seu turno, tomar a palavra.
Estabelece-se assim, entre eles, uma relação de reciprocidade assimétrica: não há Eu sem Tu, não há Tu sem Eu.
A partir desse princípio de funcionamento da linguagem – que determina a presença do « homem na língua » –,
Benveniste descreve o que ele chama de « aparelho formal da enunciação », isto é, o conjunto das marcas linguísticas que
exprimem, de uma maneira ou de outra os diferentes posicionamentos do sujeito falante em relação com seu interlocutor e
com o que ele diz.
Assim, acham-se no centro desse aparelho formal :

- os pronomes pessoais de 1a e 2a pessoas (posicionamento dos locutores),


- os tempos dos verbos e os advérbios de tempo (posicionamento no tempo),
- os dêiticos (posicionamento em relação ao espaço),
- os verbos e advérbios de modalidade
- o discurso relatado (configurando um posicionamento com relação ao enunciado),
- e, por fim, os adjetivos afetivos (posicionamento em relação à subjetividade do locutor).

Essas marcas são descritas e estudadas em nosso livro Linguagem e discurso: modos de organização.

Do ponto de vista do discurso, a enunciação engloba a totalidade do ato de linguagem. A enunciação é o processo pelo
qual um sujeito falante encena o seu dizer, em função de diversos parâmetros :

- a situação de comunicação em que se encontra,


- a imagem que ele faz de seu interlocutor para calcular os efeitos que quer produzir,
- o universo de saber que presume compartilhar com seu interlocutor e aquilo que, a partir desse universo,
pretende transmitir (interdiscurso e dialogismo).

Este conjunto de parâmetros constitui um dispositivo comunicacional que dá instruções discursivas ao sujeito falante, e
é em função dessas instruções que encenará sua organização enunciativa.
Entretanto, não se deve confundir esse dispositivo com o ato de encenação do discurso. O dispositivo faz parte das
condições contratuais de produção do ato de linguagem, com as instruções que fornece ao sujeito, mas não corresponde à
sua totalidade.
É por isso que convém distinguir ato de comunicação (englobante) e ato de enunciação (especificante), que
correspondem à situação de comunicação e à situação de enunciação.
A primeira é constituída pelos parâmetros do dispositivo socio-comunicacional que dão instruções ao sujeito falante.
A segunda é o resultado da maneira pela qual o sujeito falante utiliza essas instruções para pô-las em cena.

Vê-se então como se articulam a concepção comunicacional e discursiva, e a concepção linguística da enunciação.
A concepção comunicacional e discursiva é a que predomina, pois é ela que determina o ato de linguagem em situação,
através das instruções discursivas.
A partir daí, o sujeito pode se valer das marcas linguísticas da enunciação que lhe fornece o aparelho linguística para
expressar-se.

É com base nessa distinção que se pode diferenciar a situação de comunicação midiática e a situação de enunciação
jornalística:

- a primeira concerne às características do dispositivo, o qual implica uma instância de produção midiática e uma
instância público, ligados por uma visada de informação ;
- a segunda corresponde à maneira pela qual o enunciador jornalista põe em cena o discurso de informação
dirigido a um destinatário que, mesmo sendo imposto pelo dispositivo, é imaginado e construído por esse enunciador.

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O dispositivo da situação de comunicação midiática atribui ao sujeito jornalista um certo número de papéis:

- é aquele que busca informações, o que o leva a organizar-se para ir até as fontes dessas informações (em rede
com as Agências de imprensa, com os correspondentes in loco, enviados especiais, informantes) ;
- o papel de fornecedor de informações, pois seleciona as informações conseguidas em função de um conjunto de
critérios (ver abaixo a dupla finalidade estratégica) ;
- o papel de transmissor de informações, o que o leva a encenar as informações selecionadas em função de
visadas de efeito, jogando com diferentes maneiras de descrever e de contar ;
- o de comentarista dessas informações, o que o leva a produzir um discurso explicativo que tenta estabelecer
relações de causa e efeito entre os acontecimentos (ou as declarações) relatados ;
- enfim, o de provocador de debates destinados a confrontar os pontos de vista de diferentes atores sociais.

Esses papéis são desempenhados em função da dupla finalidade que define a comunicação jornalística :

- uma finalidade ética de transmissão de informações em nome de valores democráticos : é preciso informar o
cidadão para que este participe da vida pública ;
- uma finalidade comercial de conquista do maior número de leitores, ouvintes, telespectadores, pois o organismo
de informação é submetido à concorrência e só pode viver (sobreviver) sob a condição de vender (ou granjear receitas
publicitárias).

A finalidade ética obriga a instância de produção a processar a informação, a relatar e comentar os acontecimentos com
a maior credibilidade possível: está sobre-determinada por uma condição de credibilidade.
A finalidade comercial obriga a instância midiática a processar a informação de modo a captar o maior número possível
de receptores : acha-se sobre-determinada por uma condição de captação.

Esses dados do dispositivo midiático atribuem ao sujeito jornalista, na qualidade de enunciador, algumas instruções
discursivas que podem variar segundo privilegiem a condição de credibilidade ou a de captação :

- Primeiramente, instruções sobre o posicionamento enunciativo, levando em conta o possível «engajamento» do


sujeito enunciador: a condição de credibilidade exige que este não tome partido – daí uma modalidade delocutiva da atitude
enunciativa que deve apagar o Eu sob construções frásticas impessoais e nominalizadas, ou objetivas.
Não se trata da objetividade propriamente dita, mas do jogo da objetividade pelo apagamento enunciativo. Entretanto, a
condição de captação o levará, por vezes, a tomar posição.
- Segundo, uma vez selecionado o acontecimento, trata-se, para o jornalista, de relatar os fatos da maneira mais
precisa possível, com um ponto de vista de narrador externo que procura descrever fielmente a sucessão dos fatos.

O mesmo acontece com a atividade que consiste em relatar pronunciamentos, declarações, discursos e as reações que
estes provocam.
A encenação do chamado « discurso relatado » ou «discurso reportado» deverá satisfazer, igualmente, a um princípio
de distância e de neutralidade que obriga o relator jornalista a apagar-se, e cuja marca essencial é o emprego das aspas,
destacando o que é relatado.
Isso corresponde à submissão à condição de credibilidade. Entretanto, esses princípios de distância e de neutralidade
nem sempre são respeitados, quando predomina a submissão à condição de captação.

Agora, o discurso jornalístico não pode contentar-se em apenas relatar fatos e discursos.
Seu papel vai além: é também o de explicar o porquê e o como, com a finalidade de esclarecer o cidadão.
Daí decorre uma atividade discursiva que consiste em propor um questionamento, em elucidar diferentes posições e
tentar avaliar cada uma delas.
Uma vez mais, a condição de credibilidade exige que o jornalista enunciador – que é, muitas vezes, especialista ou
cronista – que explique sem tomar partido e sem intenção de influenciar seu leitor em tal ou qual direção.
Trata-se, no entanto, de um exercício quase impossível, pois esse discurso não poderá ser nem didático, nem
demonstrativo nem persuasivo.
Sem contar que a condição de captação desvia, muitas vezes, essas explicações para tomadas de posições e para
explicações que se mostram bem mais dramatizantes do que esclarecedoras.

Enfim, como a vida em sociedade num regime democrático se caracteriza por alimentar o espaço público de discussão
para melhor deliberar e decidir de sua ação cidadã, a instância jornalística assume a iniciativa de animar esse debate,
através da organização de encontros de personalidades políticas, de debates entre políticos e diferentes instâncias cidadãs,
de entrevistas concedidas por essas pessoas, de tribunas de opinião, etc.

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Segundo as formas tomadas por esse debate social, o papel do jornalista é variado :

- pode ser completamente apagado quando passa a palavra a pessoas externas ao jornal nas tribunas de opinião,
ou quando se contenta em desempenhar o papel de “cronômetro”, de distribuir o tempo de fala nos debates televisivos ;
- pode se fazer presente na maneira de conduzir uma entrevista e de interpelar os atores da vida social.

Aqui, os princípios de distância e de neutralidade são ainda mais difíceis de manter, pois é o jornalista que se encarrega
da seleção dos convidados externos, da distribuição das falas, e é ele que, com suas perguntas, impõe os enquadres de
questionamento.
Muitas vezes, a condição de captação pode levar o jornalista a exacerbar os antagonismos de maneira a provocar uma
polêmica que tem mais a ver com um espetáculo de pugilismo do que com um debate de opiniões.

Assim, quando se pretende analisar o discurso das mídias, é necessário levar em consideração essas diferentes
características situacionais e enunciativas, visto que o discurso jornalístico não deve ser avaliado apenas pelo critério das
marcas explícitas da enunciação. Seria uma atitude ingênua do analista do discurso, limitar-se a isso.
O posicionamento do sujeito enunciador, assim sendo, nem sempre é manifesto de maneira explícita, podendo até
aparentar apagamento no momento exato em que impõe seu ponto de vista ao atribuir lugares e posições a seu
destinatário.
Seu posicionamento depende de um conjunto de procedimentos discursivos (descritivos, narrativos, argumentativos) e
de um conjunto de palavras (nomes e verbos, advérbios) cujo semantismo é revelador de seu posicionamento com relação
a determinados valores, estando tudo relacionado com as condições situacionais de produção.
O linguista do discurso, nisto, difere do linguista da língua :

- deve conceder uma confiança relativa às marcas verbais, pois sabe que deve buscar o sentido para além do
emprego das palavras e das construções frásticas ;
- deve buscar, por detrás da máscara do apagamento enunciativo, a máscara do posicionamento discursivo.

*
*
*
Não vou prolongar essa exposição sobre a enunciação. Só queria lhes mostrar, através da história deste Francês, que a
enunciação não é somente questão de marcas linguísticas, mas sim um fenômeno mais geral da encenação do discurso,
em cada momento da vida.

Quero terminar homenageando todos os que me permitiram descobrir este magnífico país e seu povo: primeiramente ao
professor Celso Cunha, graças a quem vim pela primeira vez ao Rio, e a todos os colegas do Rio, de Belo Horizonte e de
São Paulo, assim como a todos os alunos que conheci, todos os colegas e alunos que se tornaram meus amigos. Não vou
nomeá-los porque são muitos, mas agradeço a todos.

E agora? «Eu sei que vou te amar, eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver, mas com a espera de viver ao
lado teu, povo brasileiro, e voltar muitas vezes ao Brasil»

Rio de Janeiro 08 de setembro de 2010

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O gênero FILME-DOCUMENTÁRIO
(do documento ao ensaio fílmico; da narração à argumentação)

GAVAZZI, Sigrid
(UFF/CIAD-Rio)

1. Objetivo
O presente artigo apresenta, como objetivo precípuo, delinear (mesmo que sucintamente), a encenação discursiva
proposta pelos sujeitos comunicantes, realizadores de determinada película – produtor, diretor e roteirista -, transformando
o que seria, a priori, um documento (daí, filme documental/documentário) em ensaio fílmico, projetado, formatado,
roteirizado. Porém, como recorte teórico-metodológico, ateremos nossa análise ao eixo linguístico-contextual, que
apresenta, como pano de fundo uma narrativa, que, em termos sucintos, representa o texto que apresenta uma história (um
“enredo”, ou, no caso específico deste documentário, três histórias com três enredos diversos), contada pelos
protagonistas (“personagens”), em determinados “espaços”, no decorrer de nove meses (em 96 minutos de projeção/
“tempo”).
Como o documentário tenta, na maioria das vezes, provar uma TESE, utilizamos o cenário narrativo apenas como
estopim para processos argumentativos, estes, sim, fulcro de nosso trabalho. Entretanto, como opção metodológica,
deixaremos de lado, pela exigüidade espacial deste artigo, não só o próprio detalhamento da narrativa, como modo de
organização discursiva, mas também os elementos audiovisuais específicos do fazer cinematográfico (como closes,
sequências, tomadas, luz, som, trilha sonora, entre outros itens) – embora reconheçamos seu grau de importância no
convencimento/na persuasão do tu-interpretante e do tu-destinatário.

2. Pressupostos teóricos
Adotaremos, como base teórica, os postulados preconizados no contrato comunicativo proposto por Charaudeau
(1996; 2007; 2008), como um conjunto de condições em que se realiza um ato de comunicação, para que se consiga
vislumbrar, de forma mais contundente (e menos empírica) a mis-en-scène proposta, em que a verdade eleva-se ao
patamar da verossimilhança – aliás, como a própria modalidade argumentativa pressupõe.
Os atos de linguagem resultam, portanto, de regras implícitas estabelecidas socialmente, partilhadas pelo
interlocutores. Em decorrência disso, o contrato tem de definir, a priori, tais normas, tanto no campo do texto quanto do
contexto que o gerou. Com as regras, advêm as restrições – o que pode e o que não pode ser dito, como se pode e como
não se pode agir.
Claro é que os sujeitos que encenam o ato da linguagem desempenharão seus papéis em dupla dimensão
(externa e interna). De acordo com Charaudeau (1996), atuam na primeira instância os chamados interlocutores,
responsáveis de fato pela produção do ato de linguagem (sujeito comunicante ou EUc) e por sua interpretação (sujeito
interpretante ou Tui). Já na dimensão interna, agem os intralocutores, ou seres discursivos, hipotéticos, projeções
estrategicamente elaboradas pelo sujeito comunicante em relação a si próprio e ao outro. Trata-se, respectivamente, do
sujeito enunciador (EUe) e do sujeito destinatário (Tud), a imagem visualizada pelo sujeito anteriormente.
No caso do cinema, o produto a ser analisado recairia, em princípio, na materialização de um filme. O ensaio
fílmico, na verdade, constituiria o dispositivo principal (suporte físico) para que haja a comunicação, ou seja, entendendo-

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se, por “dispositivo”, a articulação entre vários elementos que formariam um conjunto estruturado, pela solidariedade
exploratória que os liga (Charaudeau, 2007, p. 104). Entretanto, todo dispositivo “.... formata a mensagem e, com isso,
contribui para lhe conferir um sentido” (idem, p.105).
Tal sentido, no tipo de filme sob crivo (“documental”) prima pelo uso dos mais variados (e atuais) recursos
audiovisuais e pela primorosa montagem das sequências (Lins & Mesquita: 2008, p.10-3), sobretudo em sua produção após
os anos 90, em que se destacam mundialmente os DBCs (Documentários Brasileiros Contemporâneos). Estes são
resultado dos primeiros documentários produzidos no Brasil, em plena ditadura militar, conhecido como “moderno”,
evidentemente, por razões ideológicas, não vingou nos “anos de chumbo”, mas deixou as sementes para o atual, a partir da
década de 90. O contemporâneo, portanto, tem em comum, o fato de tentarem abarcar a realidade dos menos favorecidos
e instigar questões ligadas a práticas sociais que ainda podem ser melhor discutidas. Assim, abordam
problemas e experiências das classes populares, rurais e urbanas, nos quais emerge o outro
de classe – pobres, desvalidos, excluídos, marginalizados, presença constante em nosso
documental desde então, sob diversos recortes e abordagens.” (LINS & MESQUITA, op.cit.,
p.20-1)

Tende, agora, à linha mais neorrealista, marcada pelo uso de personagens advindos da própria
sociedade, sem formação sistêmica como atores. Aliás, a película sob crivo é ícone desse fato: foi a primeira a
utilizar o recurso “discurso direto”, em que as três pessoas/personagens retratatadas não são entrevistadas, suas
falas são praticamente espontâneas. Além disso, não há um roteiro anteriormente realizado para ser seguido à
risca e o filme segue, pois, o rumo das três vidas retratadas, ora transformadas em três subenredos.
De qualquer forma, nos DOCs contemporâneos, criam-se edições não lineares e todos os recursos de
filmes (longametragens) de qualidade internacional começam a ser utilizados.

3- METODOLOGIA
Dividiremos a metodologia em três etapas: resumo do filme (já que a história é desconhecida para a
maioria dos leitores) e o construto característicos da modalidade discursiva enfocada: o dissertativo.

3.1 – O documentário sob crivo

A- Linhas gerais
O documentário FALA TU (2004; roteiro e direção de Guilherme Coelho e Nathaniel Leclery) foi
originalmente produzido de forma quase artesanal: constituiu uma produção da A. Matizar (dos próprios
realizadores), sendo inicialmente captado em formato DVCam. Pela associação com a Videofilmes, foi ampliado
para 35 mm. Entretanto, arrebatou o prêmio de MELHOR FILME NO FESTIVAL DO RIO (2003) e foi indicado, pela
crítica nacional, como melhor filme documentário brasileiro, tanto para o Festival de Berlim quanto para o de Milão
(ambos em 2004). Os próprios realizadores resumem a película de sua autoria:
...acompanha o cotidiano de três moradores da Zona Norte carioca que, em comum, têm a
paixão pelo rap. O filme é testemunha dos sonhos, dramas e transformações vividas pelos
personagens durante os nove meses de filmagem. (...) É um olhar sobre três personagens
cariocas e sobre o que eles têm a nos dizer. Faz-se assim uma crônica de um Rio de Janeiro
de hoje, composta pelo cotidiano dessas pessoas, das letras de suas músicas e de seus
dramas pessoais (COELHO, Guilherme & LECLERY, Nathaniel. www.adorocinema.com.br,
2004)

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Assim, MACARRÃO, 34, é compositor e cantor de rap do Morro do Zinco, no Estácio. Ganha seu sustento
como apontador do jogo do bicho. Vive com a mulher e suas duas filhas, sendo ferrenho torcedor do Fluminense.
TOGUM, 32, por sua vez, é rapper de Cavalcante e um dos pioneiros do movimento rap no Rio. Budista e calmo no
dia a dia, seu estilo agressivo de cantar esconde sua real personalidade. Vende produtos esotéricos de porta em
porta. Seu pai, sambista e motorista de ônibus aposentado, adoeceu com câncer e é a referência pessoal do rapper.
Abandonado na infância pelo genitor, tenta, pela música, também dele se reconciliar. COMBATENTE, 21, mora com
sua família na Penha e atua como operadora de telemarketing no centro. É rapper em Vigário Geral. Confiante no
poder transformador do rap, suas letras – e das duas outras moças que com ela ensaiam um grupo musical - versa
sobre saúde sexual, paz e igualdade.
Todos os três personagens vivem em extrema penúria financeira. No decorrer da história, alicerçada em
“motes” – definição de sua música, apresentação de seus parentes, atuação como rappers, convicção religiosa etc –
os enredos vão-se delineando contrastivamente, mas em paralelo. Diferentemente, porém, o clímax é praticamente
idêntico para todos os intérpretes: a derrota pessoal e profissional. Não encontrando mais repercussão para sua
arte (inclusive pela entrada do funk nas comunidades), estão dela desistindo, nem nas rádios coletivas conseguem
mais se expressar.
Além disso, ocorrem-lhes tragédias pessoais: a esposa de Macarrão falece no parto e o pai de Togum, de
anomalia neoplásica – e eles eram seus referenciais pessoais. Combatente, a seu turno, passa a viver uma crise
existencial, encaminhando-se para uma doutrina religiosa que – ao contrário de sua música - nada questiona.
Abandona o trabalho e seu grupo de RAP, para “repensar seus valores”.
De qualquer forma, a filmagem durou nove (09) meses, entre 2002 e 2003, retratando fidedignamente o
dia-a-dia dessas três pessoas/três personagens da Zona Norte, que, embora não se conheçam entre si, acreditam
na força do rap como elemento transformador da sociedade e sonham em ganhar o seu sustento com sua música.
Com a realização desse sonho, adquiririam certamente a credibilidade que lhes falta para poderem, então, firmar
seu contrato comunicativo com sua comunidade e, posteriormente, com a sociedade como um todo.
Infelizmente, isso não acontece.

B- O subgênero RAP
O subgênero denominado RAP consiste, segundo estudiosos, uma das modalidades do gênero “hip hop” e, no
dizer de Bentes (2004), configuraria uma canção que aliaria ritmo e poesia (tradução do inglês rythym and poetry),
resultando, pois, do somatório entre linguagem verbal e musical. Caracteriza-se, de fato, pela verborragia e seu intérprete,
criador das letras, normalmente precisa de um DJ – sigla que identifica o responsável por tocar e criar a base musical para
elas. Daí, esse tipo de canção articula o oral com o escrito, porém a fala se apresenta sempre ritmada e rimada.
Ainda segundo alguns autores, expressaria um discurso político, ligada a jovens da periferia que, historicamente,
vêem-se excluídos da sociedade. Sob esse prisma, sua temática abordaria conflitos diários enfrentados pela população
pobre, como a repressão e os massacres policiais, a dura realidade dos morros, favelas, o racismo, mostrando um Brasil
hierarquizado e autoritário. (LINDOLFO FILHO, 2004, p.11).
Interessante notar que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais já recomendavam o incentivo de sua
manifestação por parte dos estudantes, para que pudessem melhor socializar sua vida, seus problemas e angústias,
refletindo sobre sua realidade hodierna.
Não faltam, portanto, educadores que o preconizam como estratégia docente, como é o caso de BARROS (2009),
mesmo reconhecendo as letras desse tipo de música podem surgir “.... agressivas e questionadoras, contra as imposições

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das leis, as injustiças sociais, a violência nas favelas, a desvalorização do negro na sociedade, sexo, drogas, dentre outros”.
Para ela, tal tema serviria, ainda, de palco para discussões de ordem sociológica, histórica ou filosófica, com questões que
versariam sobre movimentos sociais, as divisões da sociedade em classes, os direitos e deveres dos cidadãos.
É exatamente essa a proposta defendida por cada um dos intérpretes focalizados na película em estudo.

4- O ESCOPO ARGUMENTATIVO

Como linha exploratória, faremos uso dos postulados de Charaudeau (2008, 220-47) para esse tipo de
modalidade textual-discusiva. Porém, para um recorte mais minucioso para este artigo, vamo-nos concentrar nos
componentes da encenação discursiva de ordem argumentativa(dispositivo argumentativo e tipos de configuração e nos
seus procedimentos de realização. Nestes últimos, apenas focalizaremos os de ordem semântica - domínios de avaliação e
valores (cf. Charaudeau, idem, 220-47).
Passa-se, então, pela análise dos dados à luz dos referidos vetores, à verificação da HIPÓTESE que norteia este
trabalho: caso haja, realmente, uma encenação argumentativa, a narrativa fílmica ora analisada configuraria mais um
exemplo do que denominamos “cinema de tese” – filmagem em que há uma proposta argumentativa clara, alinhavada
cuidadosamente, utilizando, como pano de fundo, uma narrativa.

4.1 – Componentes da encenação

4.1.1- O dispositivo argumentativo

A- Proposta
Por consenso, o gênero musical denominado RAP refletiria a inquietude social das camadas populacionais mais
desfavorecidas economicamente, sendo, inclusive, um de seus porta-vozes. Daí, sua aceitação deveria ser total pela
comunidade que quer (ou que diz) representar.
B- Proposição
Como se manifesta cada um dos intérpretes acerca de seu próprio fazer musical ? Em que se baseia sua
proposição, no que se refere ao seu trabalho social, necessário e desejável para o gênero em questão ?
Togum, por exemplo, pretende transformar as pessoas carentes (econômica e socialmente), em seres produtivos,
voltados para o estudo e para o “lado certo” da vida que se ancora em atitudes de caráter e em que o estudo sistêmico
(escolar) assume lugar de importância.
Só depende de você, irmão/ achar sua direção/ Dê uma virada certa na vida,/ Serás pessoa bem
sucedida./ Larga esta vida de perigos/ Tira a cara das drogas,/ Mete a cara nos livros

Já a preocupação de Mônica (a “Combatente”) e suas companheiras de grupo (o “Negativa”) é diversa.


Pretendem conscientizar a mulher de seu real lugar na sociedade, deixando de lado os próprios estereótipos que os
homens lhe impingem e que a mulher aceita, passivamente.
Dominada, otária, você é/ não sobe no salto/ não age como mulher./ não é nem guerreira/ como muita
mãe solteira/ só dá mole/ só dá mole/ você sabe como é/ você só está por cima quando o cara está de
pé/ se liga no bagulho/ mina de bandido,/ você sabe como é/ se o cara cismar que vc é X9/ se liga
vacilona/ morreu por dinheiro/ quem era seu banco,/ agora é seu coveiro”.

Macarrão, finalmente, ao ser perguntado (in off) se sua música “era de bandido”, responda rápida e
conscientemente que

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Minha música não é de bandido, não. Ela vai ser considerada música de bandido porque é o que
acontece por aí, é a agonia que ninguém quer escutar [...] eu não faço música de protesto,eu faço é
crônica do cotidiano.

C- Persuasão
Entretanto, uma tese e sua proposição – as diversas facetas que uma opinião pode adquirir no texto fílmico –
precisa ser aceita pelo público. Para isso, alguns movimentos argumentativos devem ser realizados para que se chegue ao
convencimento do Tu-interpretante e a persuasão se realize.
O primeiro deles é a refutação. Vejamos como os personagens enfrentam tal movimento.
Togum reconhece, do começo ao final da película, sua humílima condição financeira acrescida a sua imensa (e
inesgotável) solidão. Com isso, e com o advento, à época, do movimento funk, que já tomava a periferia e as comunidades,
declara logo que agora não saberia o que iria fazer e se “... não fosse esse cara aí [aponta o DJ] me chamar para fazer um
back pra ele, eu não voltava nunca mais, eu não voltava, não, eu ia ficar só estudando, me fortalecendo.... ”.
Ou, então, é o próprio Macarrão que, embora venerando sua comunidade no Morro do Zinco, reconhece que, se
pudesse, de lá sairia, indo
morar mais embaixo, estão sempre em guerra, é tiro pra lá, tiro prá cá, nada mais justo que você sair,
se tiver condições, deixar a guerra pra quem quiser guerrear, tenho minha mulher, minhas filhas...

Entretanto, após qualquer refutação, há sempre uma justificativa. Melhor ainda se ela adentrar pelo bem-estar
social, utilizando argumento de ordem humanitária, priorizando valores como merecimento, verdade, justiça, dignidade. É o
que faz a Combatente, explicitando a razão de ainda se sacrificar, apesar de todas as agruras e dificuldades por que passa.
É maravilhoso de você [sic] levar o hap para uma rádio comunitária, para uma comunidade carente, é
assim... é como se vc chegasse na casa das pessoas e fosse bem recebida, sabe ? E quantas vezes a
gente já receu carta de mãe que tem seus filhos presidiários, dizendo “ah, se eles tivessem ouvido
vocês.... não estavam lá onde estão.... então vale a pena, sabe ? mesmo que eu tenha de dar calote,
sei lá, arrumar uma grana, mas eu venho, sabe ?

Ou, ainda, Macarrão que, ao comentar sobre sua própria música, afirma que, mesmo não sendo “música de
bandido”, o próprio bandido “vai gostar, sabe que é o certo, o trabalhador também vai gostar, playboy é que não vai, a não
ser que queira entrar no barato do morro, polícia é que não vai gostar, né, parceiro ?”, ou seja, mesmo que condene, em
suas letras, o banditismo (que vive da venda do tóxico) e os moradores de classe média e alta (que adentram na
comunidade em busca de drogas), acredita que, até eles, podem vir a apreciar suas letras – inclusive porque as considera
verídicas. Nesse caso, a ponderação leva em conta o valor de verdade do enunciado e o privilégio de determinada
organização lógica que o rapper imagina que os outros segmentos citados possuam.

4.1.2 - Tipos de configuração : o monólogo e a argumentação explícita

O documentário alinha três monólogos (a fala dos três rappers), intercalando-os, e, em 70% das cenas,
predominam suas vozes, seus conceitos e suas concepções acerca do mundo. A bem da verdade, inclusive, FALA TU
representou o primeiro documentário contemporâneo que utilizou a fala “direta” sem a entrevista convencional. Porém,
inovou também ao seguir o percurso dos personagens – e suas famílias – mesmo que os resultados não constituíssem o
que fosse esperado, já que, como anteriormente referido, não há “final feliz”.
Os diálogos, entretanto, quando ocorrem, mesmo que coloquem em cheque a figura dos rappers (sobretudo no
seio familiar, nos casos de Macarrão e Togum) em nada interferem na sua decisão de continuar compondo. Até o
desfecho, portanto, o contrato comunicativo funciona explicitamente e se encontra ancorado em falas engajadas, sem
dúvidas ou hesitações.

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4.2 - Procedimentos de encenação discursiva: o eixo semântico

Neste momento, analisaremos que procedimentos usam os sujeitos discursivos para a manutenção da validade de
sua proposta acerca do gênero musical – que inclui, evidentemente, posturas pessoais suas em relação à sua vida
hodierna.
Aliás, essa é uma das características que ressalta na composição do “cinema de tese”: o envolvimento do
espectador tem de se dar na empatia que ele deve sentir pelo “personagem” enfocado. Assim, nas pequenas histórias
vivenciadas (e filmadas) de seu dia a dia, um universo argumentativo vai-se sedimentando paulatinamente. Charaudeau os
divide em três categorias primaciais. Para este estudo, optou-se pelo campo dos domínios argumentativos e dos valores a
ele ligados, ou seja, pelo eixo semântico.
Tais procedimentos atuam em montagem reduplicativa: consistem na firmeza de determinada tese, apoiando-a em
um domínio (consenso do segmento social de que os membros-argumentadores fazem parte), apoiados em determinados
valores, também ratificados pelo ideário social.
Ora, como a proposta dos três rappers baseia-se na tentativa de validação do RAP como gênero musical válido, o
domínio da VERDADE se sobrepõe sobre os demais, ou seja, suas falas são normalmente centradas na dualidade “bem X
mal” ou “certo X errado”. Vejam-se os exemplos:
Thogum: Esta filosofia budista nos ensina isto. A gente pede para reverter nosso carma para algo
melhor. Então eu tenho a minha vida e a minha música para mudar o meu meio”.
Macarrão: Deus cansou da humanidade, ele existe, existe, sim, mas ele cansou. O fato é que o diabo
domina e é mais fácil você cair para o mal do que cair para o bem, Deus cansou.
Combatente: Ah, sei lá, estou cansada, senti que precisava de um caminho melhor pra mim, e o Daime
me completa, minha música é importante, mas preciso de paz para encontrar um caminho que seja
realmente do bem para poder fazer minha música ainda melhor

Como a música em questão adentra pela trilha da mudança e da transformação social, evidentemente a
VERDADE tem de ser parceira de outro domínio – o ÉTICO -, no postulado do que seriam os comportamentos “corretos” (os
deles) contrariamente aos dos outros. Um dos exemplos mais contundentes desse escopo encontra-se em uma canção de
Macarrão, que, depois de descrever o ritual de humilhação por que passariam os visitantes de parentes presos, acrescenta
que “mas nem todo mundo é igual, se você for peludo [=com dinheiro], tratamento personalizado, visita especial”. Ocorre,
ainda, quando Togum afirma que “A gente toca essa música que fala de droga pro cara ali, pra ele se ligar, pra ele não ser a
próxima vítima”. Combatente também tem seu ideário moral bem acirrado. Veja-se:
Então o cara está tão longe do poder, tão longe que não tem em quem se espelhar.... então o cara que
ele admira mesmo é o que está mais próximo dele... é o gerente da boca, que está de Nike, sacou? O
cara tem um monte de mulher (...) e aí a gente canta, mostra a ele que ele pode ser alguém, mostra a
ela que ela pode escolher diferente.

Isto posto, sobressaem-se os valores – julgamentos subjetivos, advindos da experiência, reconhecidos como
positivos pelo segmento interessado. Alinhavam e fornecem sustentáculo aos domínios argumentativos a que se
relacionam.
Portanto, ligados à verdade (e à ética), a voz dos intérpretes reafirma determinados julgamentos, como, por
exemplo:
a) Consciência de sua própria realidade
Discuto demais com ela por isso.... fico achando que a casa que a gente mora não é boa para ela, ou
que ela é boa demais para mim, sei lá.... A mãe dela tem condição, né? Pode fortalecer ela e deixar ela
de acordo. Eu não tenho porra nenhuma . Não é querer dizer que eu não seja alguém, eu sou alguém,
parceiro, só que eu não tenha nada, bolso vazio, né ?

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b) Honestidade
O meu bolso tá vazio, tá ligado? Tu, não. Tu é um cara que tem futuro. Essa parada de cinema dá
dinheiro, pensa bem, você é bom no troço, você é honesto, vai dar certo, parceiro !

c) Solidariedade
Mas não é também querer ser derrotista, é apenas analisando a realidade, não sou derrotista, se eu
pudesse vencer, eu venceria, mas agora não estou vendo, está tudo obscurso agora, mas eu continuo
ajudando os amigos, podes crer, mesmo estando tudo sinistro, eu continuo ali, do lado deles.

d) Humildade
Se me julgar merecedor, Senhor, retire de mim o rancor

e) Sacrifício
Ninguém imagina a luta do pessoal da rádio pra colocar o programa no ar, ninguém imagina, a gente
faz porque a gente ainda acredita....

f) Esforço e superação
Tamos junto ! Eu não me incomodo de passar por otário, eu não sou otário não, eu sou é abnegado,
eu me esforço, de manhã à noite, às vezes só como um pastel por dia, mas continuo no movimento...

5- CONCLUSÃO
Mesmo sem esgotar todo o escopo argumentativo proposto pelo estudioso a quem recorremos, é inequívoco que
a narrativa fílmica (e de ordem documental) analisada, estabelece um contrato de comunicação muito mais de ordem
avaliativa do que seqüencial propriamente dita. A narrativa, na verdade, é utilizada como pano de fundo (e recurso de
dissimulação) para uma proposta clara advinda dos diretores e roteiristas. O ensaio que chega às telas, então,
ultrapassa em muito os seres humanos nela envolvidos, na medida em que os alça à categoria discursiva. O público,
ao assistir à película, vai com os personagens se identificando, PRESENCIA sua luta, sua resistência, sua boa vontade
para com sua comunidade, apesar de todos os problemas que lhes ocorrem.
É a presentificação que promove, de início, o convencimento. Fornece ao telespectador a intimidade necessária
para aceitar, de forma mais participante, o arcabouço que começa a se formar. E, pouco a pouco, cena após cena,
sequência após sequência, o eu-interpretante vai sendo coaptado para com eles concordar. Porém, uma série de
depoimentos sustenta essas histórias visuais. De início, as cenas apenas situam o espectador e se mostram sem
maiores pretensões. Mas, com o decorrer dos fatos, mesmo que hodiernos, as falas alçam-se à categoria de valores,
que podem, inclusive, ser entendidos – e sentidos – por segmentos sociais que jamais tiveram contacto com o RAP ou
que não fazem parte da sociedade estigmativa ou excluída.
O próprio desfecho – lamentável para dois deles e trágico para Macarrão – comove a plateia. A solidão dos três
incita à piedade, pois, sem sucesso em suas empreitadas, conhecem a rejeição social à sua música, advinda até de
seus próprios familiares e segmentos populacionais. Cantar em uma rádio comunitária já seria um “presente” para
eles, embora raramente aconteça.
Claro é que o fato em si constitui o grande contraste cinematográfico a ser mostrado, a tese existencial de que, ao
contrário do que ocorre nos contos de fadas, “nem sempre os bons vencem”: afinal, não deveriam ser valorizados
pelas comunidades e valores sociais que defendem ? Por que são sempre motivo de riso disfarçado, de chachota
dissimulada ? Todavia, até o último minuto fílmico, orgulhosos, ainda insistem em querer dizer algo, mesmo para um
tu-comunicante indiferente, mesmo para um tu-destinatário desconhecido. Suas vozes insistem em falar – e resultam

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em um produto dolorido (e doloroso) da situação daqueles que se reconhecem excluídos, desprestigiados,
descrebilizados. A última cena, no close parado de uma porta fechada e de uma cadeira vazia, constituem a última
cena da película, metaforizando os caminhos ora oferecidos aos três intérpretes – trilhas encobertas, lugares sem
ninguém, meros utensílios a que ninguém presta atenção. Um contrato comunicativo às avessas, em que a dor supera
qualquer argumentação. Não há RAP que resista.

REFERÊNCIAS
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http://www.educador.brasil/escola.com/estratégias-ensino/hip-hop-rap-na-sala-de-aula.htm. Acessado em 07 de outubro
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SIGRID GAVAZZI é Mestra e Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ. Desenvolve suas atividades de
docência como Professora-Associada do Instituto de Letras da UFF e integra a equipe de pesquisadores
do GRUPO CIAD-Rio. Atualmente, desenvolve projetos voltados para o fazer cinematográfico, analisando
seus ícones argumentativos sob o escopo semiolinguístico. Coordena o Projeto PIBID-UFF, em seu vetor
de Língua Portuguesa.

64
Argumentação sob um ponto de vista linguístico-
discursivo

GOUVÊA, Lúcia Helena Martins


(UFRJ)

1. Introdução

Este artigo tem como proposta a apresentação de alguns conteúdos linguístico-discursivos que podem ser
trabalhados em sala de aula com a finalidade de despertar a atenção do aluno para o ato de argumentar.
Oswald Ducrot (1981) diz que uma das principais funções da linguagem é argumentar, afirmativa que pode ser
constatada nos mais variados momentos e atividades do ser humano.
Quando um menino, na escola, dirige-se a um colega e lhe diz (1) “me empresta um lápis, que eu esqueci o meu
em casa”, ou quando um empregado diz ao patrão (2) “hoje eu me atrasei, mas isso raramente acontece”, ou ainda quando
a filha diz à sua mãe (3) “eu quase tirei a nota máxima na prova, então mereço ficar vendo televisão até mais tarde, não é,
Mãe”, estão, em situações banais de sua vida, realizando atos de argumentação.
Em (1), o menino, ao dizer que esqueceu o seu lápis em casa, justifica o pedido de empréstimo, conduta que leva o
coleguinha a concluir “devo emprestar o lápis a ele”; em (2), o funcionário reconhece que cometeu um deslize, mas, ao
afirmar que raramente se atrasa, orienta o raciocínio do chefe para conclusões do tipo “então não preciso ficar aborrecido
com ele” ou “não há razão suficiente para demiti-lo”; em (3), a filha, ao dizer que quase tirou a nota máxima, conduz o
raciocínio da mãe para uma conclusão como esta: “então ela obteve um grau bem alto, o que a faz merecer ficar vendo
televisão até mais tarde”.
Todo falante é dotado de uma competência argumentativa, em maior ou menor grau, mas a necessidade de
desenvolvê-la cada vez mais, a fim de se tornar capaz de adequá-la as variadas situações de comunicação, requer que os
professores de português trabalhem com conteúdos direcionados a essa finalidade.
Com o objetivo de mostrar um dos diversos meios pelos quais se pode despertar o interesse do aluno para a
argumentação e desenvolver sua competência argumentativa como agente e como paciente do ato de argumentar, a
temática será focalizada, aqui, levando-se em conta os aspectos macro e microtextual.
Do ponto de vista macrotextual, será apresentada uma tipologia argumentativa que tem como apoio teórico a
Semiolinguística do Discurso, de Patrick Charaudeau (2008). Do ponto de vista microtextual e tendo como fundamentação
teórica a Semântica Argumentativa, de Oswald Ducrot (1987), e estudos de Ingedore Koch (2004) sobre modalização, serão
abordadas algumas estratégias que se atualizam por intermédio de marcas linguístico-enunciativas como operadores
argumentativos, orações modalizadoras e índices de atitude subjetiva do locutor em face de seu enunciado.
Pretende-se, com este artigo, chamar a atenção dos leitores-professores para a importância do trabalho sobre
argumentação em sala de aula, na medida em que esta é um lugar físico de troca em que se tem a oportunidade de
preparar o indivíduo para o mundo.

65
2. Argumentação sob os aspectos macro e microtextual

Argumentar é apresentar justificativas convincentes para as próprias convicções acerca do mundo; é valer-se da
língua, considerando a situação de interação; é dominar estratégias de caráter macro e microtextual, visando a atingir o
alocutário de tal sorte que ele acabe concordando com o ponto de vista do locutor e possivelmente mudando o próprio
comportamento.
Segundo Charaudeau (2008, p. 205), para que haja argumentação, a existência destes componentes é
indispensável: sujeito-argumentante, proposta, tese, argumento e sujeito-alvo.
O sujeito-argumentante é a entidade que tem determinadas convicções sobre o mundo, que tem uma opinião
formada sobre um dado assunto e cuja veracidade pretende provar. A proposta corresponde à opinião de outrem acerca do
mesmo assunto, opinião essa que pode originar-se de um ou vários indivíduos, ou do próprio senso-comum; opinião que
provoca, no sujeito-argumentante, um questionamento quanto à sua legitimidade; enfim, opinião com que ele pode
concordar, de que ele pode discordar ou em que ele pode encontrar prós e contras, não tomando, inclusive, uma posição
definitiva, isto é, deixando que o destinatário escolha o caminho que lhe convém. A tese diz respeito à opinião mesma do
sujeito-argumentante sobre o assunto em pauta; opinião de cuja pertinência ele quer convencer alguém; opinião que surge
da sua necessidade de estabelecer uma verdade sobre a proposta. O argumento é a estratégia lingüístico-discursiva
utilizada pelo sujeito-argumentante para convencer o destinatário da veracidade de sua opinião. O sujeito-alvo é a pessoa a
que se dirige o sujeito-argumentante com a finalidade de fazê-lo compartilhar de sua verdade.
Levando-se em consideração esses cinco componentes, observe-se o trecho abaixo retirado de uma crônica de
Zuenir Ventura, intitulada “Cariocas gostam de bandalha”, publicada no jornal O Globo, em 26/11/2008:

A pesquisa publicada domingo pelo GLOBO, mostrando que só 9% dos motoristas respeitam sinal de
trânsito, confirma o que já se sabia observando o nosso dia-a-dia e o que Adriana Calcanhotto cantou
na sua canção de amor ao Rio e ao seu povo: "Cariocas não gostam de sinal fechado."
Gaúcha, ela foi generosa. Ao defeito apontado, contrapôs 15 qualidades positivas que enumera em
graciosos versos: "Cariocas são bonitos/Cariocas são bacanas/Cariocas são sacanas/Cariocas são
dourados" e por aí vai. Ela os chama ainda de modernos, espertos, diretos, alegres, sexys, que não
gostam de dias nublados etc. Talvez por delicadeza de forasteira, ela não quis apontar uma verdade
incômoda que explica todo o comportamento transgressor dos cariocas. Eles gostam de bandalha.
E não apenas no trânsito, embora nesse quesito eles sejam imbatíveis. Gostam de fechar os cruza-
mentos, de se debruçar sobre a buzina sem necessidade, de estacionar nas calçadas, de parar em lu-
gar proibido, de excesso de velocidade (...), de falar ao celular enquanto dirigem, de andar na
contramão e de xingar quem insiste em se manter dentro da lei (me lembro de uma senhora ao
volante esperando a luz verde, e um sujeito histérico gritando atrás: "Pensa que tá na Suécia,
perua?").
Assim, além de responsáveis por um dos mais caóticos trânsitos do planeta, os cariocas também são
especialistas em delitos menores, para não falar nos grandes, como assaltos e homicídios. Costumam
urinar em lugares públicos, desrespeitar filas (...).

No que diz respeito aos conceitos há pouco expostos, observa-se que o sujeito-argumentante da crônica é seu
autor, Zuenir Ventura. A proposta, isto é, a opinião de outrem – neste caso, de Adriana Calcanhotto – a respeito do
comportamento dos cariocas é “cariocas não gostam de sinal fechado”. A partir da referência à declaração da cantora,
Ventura se posiciona, concordando com ela numa certa medida. Ele diz que Adriana foi generosa e delicada, pois não quis
apontar uma verdade incômoda – a de que “os cariocas gostam de bandalha” –, o que significa que, para o cronista, o

66
comportamento do povo carioca é mais transgressor do que declara a cantora. Assim, a tese de Ventura, ou seja, a sua
própria opinião sobre a temática é “os cariocas gostam de bandalha”, vale dizer, gostam de transgredir, e não somente no
trânsito.
Os argumentos utilizados por Zuenir Ventura para convencer o leitor de sua verdade, isto é, para defender a tese de
que os cariocas gostam de bandalha são variados: a referência a uma pesquisa publicada pelo GLOBO, mostrando que só
9% dos motoristas respeitam sinal de trânsito; a declaração de que os cariocas gostam de fechar os cruzamentos, de
estacionar nas calçadas, de xingar quem insiste em se manter dentro da lei; o relato de uma cena que presenciou e
segundo a qual uma senhora, no volante, esperava que o sinal abrisse e, por essa razão, foi xingada por um outro motorista
que gritou “pensa que tá na Suécia, perua?”; a declaração de que são também especialistas em delitos menores, para não
falar nos grandes, como assaltos e homicídios; de que costumam urinar em lugares públicos etc. O sujeito-alvo é o leitor do
jornal o Globo, mais especificamente, das crônicas de Zuenir Ventura.
Como se pode perceber nas relações estabelecidas entre proposta, tese e argumentos no trecho em estudo,
argumentar é uma atividade discursiva que apresenta duas importantes características: uma busca de racionalidade que se
aproxima de um ideal de verdade no que diz respeito a explicações apresentadas sobre fenômenos do mundo; uma busca
de influência que se aproxima de um ideal de persuasão, ideal que consiste em compartilhar com o interlocutor ou
destinatário certo universo de discurso com a finalidade de fazê-lo comungar das mesmas convicções (CHARAUDEAU,
2008, p. 206).
O sujeito-argumentante, através das explicações apresentadas – as pesquisas mostram que só 9% respeitam sinal
de trânsito, os cariocas xingam quem respeita, urinam nas calçadas etc. –, procura estabelecer relações verossímeis entre
tese – asserção sobre o mundo – e argumentos – asserções sobre a tese –, conduta que caracteriza a busca pelo ideal de
verdade e, consequentemente, pelo ideal de persuasão. Por meio de relações possíveis dentro do seu universo cultural e
do universo cultural do sujeito-alvo, o sujeito-argumentante procura convencer o outro de que a sua opinião é correta, é
verdadeira.
No caso em apreço, o leitor poderia fazer a seguinte pergunta: “por que Zuenir Ventura diz que cariocas gostam de
bandalha?”. Como resposta obteria: “Zuenir Ventura diz que os cariocas gostam de bandalha porque as pesquisas mostram
que só 9% respeitam sinal de trânsito, porque os cariocas xingam quem respeita, porque urinam nas calçadas etc. A
relação entre a asserção sobre o mundo, isto é, entre a tese – “cariocas gostam de bandalha” – e as asserções sobre a
tese, ou seja, os argumentos – “as pesquisas (...) só 9% (...); os cariocas xingam (...), urinam (...)” – faz que o destinatário
estabeleça o seguinte raciocínio: se as pesquisas mostram que só 9% respeitam sinal de trânsito; se os cariocas xingam
quem respeita os sinais; se os cariocas urinam nas ruas; então os cariocas gostam de bandalha. É justamente a este ponto
que o sujeito-argumentante pretende que o sujeito-alvo chegue, o que caracteriza o resultado do ato de argumentar.
Assim, os primeiros conceitos que envolvem o fenômeno da argumentação a serem apresentados e trabalhados
com os alunos são os de sujeito-argumentante, sujeito-alvo, proposta, tese e argumentos.
O professor deve, porém, mostrar que conceber idéias, formar opiniões, verbalizar uma tese sobre um dado tema é,
a princípio, uma tarefa fácil, se não houver o desejo nem a necessidade de refletir sobre a questão ou o desejo nem a
necessidade de convencer alguém – até a si próprio – de que se está certo. Dizer, por exemplo, (4) “as cidades grandes são
perigosas” acerca do tema “a violência nas grandes cidades” ou a partir da visão de uma cena de assalto numa cidade
grande; dizer (5) “devemos cuidar do nosso Planeta” acerca do tema “a preservação do Planeta” ou diante de uma cena de
derrubada de árvores, não requer nenhum esforço. Chegar, no entanto, às razões que provocaram o surgimento da opinião
sobre a temática, ou ainda necessitar convencer o outro de que o que se está declarando procede, são tarefas mais
complexas.

67
Cabe ao professor dizer ao aluno que existem formas de entender por que se passou a ter dada concepção sobre
um tema, ou ainda formas de se montar uma argumentação, dentre as quais se valer da pergunta (6) “por que eu digo que
devemos cuidar do Planeta?”, cujas respostas constituirão os argumentos que defenderão a tese “devemos cuidar do
Planeta”.
(7) “Eu digo que devemos cuidar do Planeta porque, se não o fizermos, respiraremos um ar muito mais poluído do
que respiramos agora; porque, se não o fizermos, catástrofes bem maiores do que as que já ocorreram serão cada vez
mais frequentes; porque não temos o direito de deixar o Planeta inabitável para os nossos filhos, netos e gerações
subsequentes”. Tem-se, assim, formulada a argumentação.
Depois desta fase de aprendizagem sobre o ato de argumentar, chega o momento de apresentar ao aluno uma
tipologia de argumentos. Introduzem-se, entretanto, aqui, dois conceitos importantes para a compreensão da tipologia que
será adotada.
Serão chamados de “argumentos do ponto de vista microestrutural” aqueles que consistem, segundo Adam (2008),
em um período argumentativo – série de proposições ligadas por conectores argumentativos. Serão identificados como
“argumentos do ponto de vista macrotextual” aqueles que se formam a partir de uma sequência argumentativa – porções
textuais maiores em que se identificam premissas (fatos, dados, raciocínios) que não seriam admitidas sem se admitir
determinada conclusão.
Vale registrar que são variadas as tipologias argumentativas, dentre as quais a de Perelman (1996, p. 219, 297, 399)
e a de Toulmin (2001, p. 176). Perelman, por exemplo, apresenta os argumentos quase lógicos, os baseados na estrutura
do real e os que fundamentam a estrutura do real; Toulmin apresenta os argumentos analíticos e os substanciais. Neste
artigo, porém, será considerada a tipologia de Gouvêa (2002, p. 72), tipologia que se fundamenta nos modos de
organização do discurso, de Charaudeau (1992, p. 641).
Patrick Charaudeau distingue tipos de textos, gêneros textuais e modos de organização do discurso. São tipos de
textos o jurídico e o jornalístico, por exemplo; estão inseridos nesses tipos os gêneros textuais petição e sentença, v.g., e
reportagem e crônica jornalística, v.g.; são modos de organização do discurso o descritivo, o narrativo, o argumentativo e o
enunciativo.
Apoiando-se no valor desses modos de organização, Gouvêa apresenta uma tipologia argumentativa que consiste
em argumentos do tipo fatos, dados e raciocínios.
O argumento do tipo fatos está relacionado ao modo narrativo, cuja característica central é relatar um
acontecimento, com uma dada intenção, para um destinatário e de certa maneira, e cujos constituintes são: os agentes, que
representam determinados papéis, os processos, que ligam os agentes, e as sequências, que ligam processos e agentes.
Observe-se o trecho abaixo em que Zuenir Ventura narra uma cena que presenciou no trânsito:

(8) Gostam (...) de xingar quem insiste em se manter dentro da lei (me lembro de uma senhora ao volante esperando a luz
verde, e um sujeito histérico gritando atrás: "Pensa que tá na Suécia, perua?).

Para defender a tese de que “cariocas gostam de bandalha” (intenção), isto é, para convencer o leitor (destinatário)
de que a visão que tem do carioca é procedente, Ventura arrola uma série de comportamentos típicos de um carioca no
trânsito. Dentre esses comportamentos, está o ato de xingar as pessoas que respeitam as regras de trânsito e, para ilustrar
o que está declarando (intenção), diz que se lembra de um fato ocorrido diante de um semáforo (relato do acontecimento e
realizado de uma dada maneira).

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Neste recorte, observam-se os agentes – o homem, falando do lugar de um sujeito histérico, e a senhora,
aguardando o sinal abrir –, os processos – as ações de xingar e de esperar a abertura do sinal, relacionando os dois
agentes – e as sequências – de início, a senhora aguardando o sinal abrir e, em seguida, o homem, dirigindo-se a ela com
gritos. Assim, se Ventura presenciou uma cena em que um motorista xingava uma senhora porque ela esperava que o
semáforo abrisse para dar movimento ao carro que dirigia, então é verdade que cariocas gostam de bandalha. Tem-se,
portanto, um argumento do tipo fatos.
No que se refere aos argumentos do tipo dados, encontra-se uma relação íntima com o modo descritivo de
organização do discurso, modo que consiste, segundo Charaudeau (2008), em deitar sobre o mundo um olhar estático que
faz existirem os seres, nomeando-os, localizando-os e atribuindo-lhes qualidades que os singularizam. É um modo que atua
sobre os modos narrativo e argumentativo: em relação ao narrativo, o modo descritivo dá-lhe sentido, pois as ações
somente significam algo se relacionadas às identidades e às qualificações de seus agentes; em relação ao argumentativo, o
modo descritivo permite-lhe estabelecer certas relações lógicas, pois essas relações só podem realizar-se a partir da
existência de seres que têm determinada identidade e qualificação.
Observe-se o trecho abaixo, em que Ventura, com a finalidade de defender a tese de que “cariocas gostam de
bandalha”, lista alguns de seus comportamentos:

(9) (Cariocas) (...) Gostam de fechar os cruzamentos, de se debruçar sobre a buzina sem necessidade, de estacionar nas
calçadas, de parar em lugar proibido, de excesso de velocidade (...), de falar ao celular enquanto dirigem, de andar na
contramão e de xingar quem insiste em se manter dentro da Lei (me lembro de uma senhora ao volante esperando a luz
verde, e um sujeito histérico gritando atrás: “Pensa que tá na Suécia, perua?”). São especialistas em delitos menores, para
não falar nos grandes, como assaltos e homicídios. Costumam urinar em lugares públicos, desrespeitar filas (...).

Neste recorte, verificam-se características do modo descritivo como identificação dos seres que têm determinado
comportamento – cariocas –, localização desses seres – nas ruas, no trânsito – e atribuição de qualidades que os
singularizam – gostam de fechar cruzamentos, de se debruçar sobre a buzina sem necessidade etc.
Constata-se, igualmente, a relação desse modo com os demais: as ações de gritar e esperar (modo narrativo) têm
sentido porque estão relacionadas às identidades – o motorista carioca e a senhora – e às qualificações dos agentes –
motorista histérico e senhora que respeita as leis de trânsito (modo descritivo); a relação lógica entre os dados “gostar de
fechar cruzamentos”, “falar ao celular enquanto dirigem”, por exemplo, e a conclusão de que “cariocas gostam de
bandalha” se realiza porque existem seres com uma determinada identidade – cariocas – e qualificação – “gostam de falar
ao celular enquanto dirigem” etc.
Têm-se, assim, na listagem de condutas do carioca, argumentos do tipo dados.
Finalmente, no que concerne aos argumentos do tipo raciocínio, identifica-se uma relação com o modo
argumentativo de organização do discurso, modo cuja principal característica é estabelecer laços de causalidade entre o
conteúdo das asserções, e cuja função é permitir a construção de explicações sobre asserções feitas acerca do mundo
(teses), com o objetivo de atuação sobre o sujeito-alvo.
Veja-se o trecho abaixo:

(10) A pesquisa publicada domingo pelo GLOBO, mostrando que só 9% dos motoristas respeitam sinal de trânsito, confirma
o que já se sabia observando o nosso dia-a-dia e o que Adriana Calcanhotto cantou na sua canção de amor ao Rio e ao
seu povo: "Cariocas não gostam de sinal fechado." (...). Talvez por delicadeza de forasteira, ela não quis apontar uma

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verdade incômoda que explica todo o comportamento transgressor dos cariocas. Eles gostam de bandalha.

Para convencer o sujeito-alvo de que “os cariocas gostam de bandalha” (tese), Ventura utilizou-se de um argumento
do tipo raciocínio. Ao dizer que a pesquisa publicada pelo Globo mostrou que só 9% dos motoristas respeitam sinal de
trânsito (argumento), o cronista estabeleceu um laço de causalidade entre as duas asserções: se só 9% respeitam sinal de
trânsito, então pouquíssimos cariocas obedecem às leis de trânsito; por outro lado, se pouquíssimos cariocas obedecem às
leis de trânsito, então é possível dizer que os cariocas gostam de bandalha.
Observe-se que é neste ponto, ao se tratar do argumento do tipo raciocínio, que se volta o olhar para a
microestrutura textual e se aborda o tema operadores argumentativos. É neste ponto, ainda, que se desvia o foco de
observação do conteúdo informacional para os mecanismos lingüísticos.
Ducrot, o codificador da Semântica Argumentativa (Semântica da Enunciação), criou o termo operadores
argumentativos para designar certos elementos da gramática de uma língua que têm por função indicar a força
argumentativa dos enunciados. Esses elementos são responsáveis pelo encadeamento dos enunciados, estruturando-os
em textos e determinando sua orientação argumentativa. São operadores morfemas como e, aliás, pois, também, já, só,
inclusive, até mesmo etc.
Para explicar o funcionamento dos operadores, Ducrot utiliza-se de duas noções básicas: classe argumentativa, que
ele define como um conjunto de enunciados que constituem argumentos de mesmo peso para uma dada conclusão; e
escala argumentativa, que ele define como um conjunto de enunciados que se apresentam em gradação de força crescente
no sentido de uma dada conclusão. A partir desses dois conceitos, entende-se o funcionamento dos operadores, articulando
os enunciados e construindo a sequência argumentativa.
Veja-se um exemplo em que os enunciados têm o mesmo peso (11), e o exemplo correspondente com os
enunciados articulados por operador argumentativo cuja função é somar argumentos de peso equivalente, a favor de uma
dada conclusão (12):

(11) Os cariocas gostam de bandalha (tese). (a) Gostam de fechar os cruzamentos, (b) de se debruçar sobre a buzina sem
necessidade, (c) de estacionar nas calçadas, (d) de parar em lugar proibido, (...), (e) de falar ao celular enquanto dirigem, (f)
de xingar quem insiste em se manter dentro da lei (argumentos de mesmo peso).

(12) Os cariocas gostam de bandalha (tese). (a) Gostam de fechar os cruzamentos, (b) de se debruçar sobre a buzina sem
necessidade,(...) e (além disso) (f) de xingar quem insiste em se manter dentro da lei

O que se constata em (11) são diversos enunciados servindo de argumento para a conclusão “os cariocas gostam
de bandalha”. Diz-se que os argumentos fazem parte de uma classe argumentativa porque, por meio do conteúdo
proposicional, verifica-se que as condutas listadas se equivalem quanto ao nível de gravidade e segundo a cultura que
regula o modo de viver do povo brasileiro.
Em (12), têm-se os mesmos argumentos, mas o último está introduzido pelo operador argumentativo e, operador
cuja função é justamente somar argumentos de mesmo peso com vistas a uma determinada conclusão. Ventura poderia ter
usado outros cuja função é a mesma e que dariam mais destaque aos argumentos (além disso, não só ... mas também,
tanto ... quanto etc.); preferiu, porém, usar o operador e, justamente para transmitir a idéia de que, na sua opinião, todas as
infrações são graves.
Observem-se, agora, os exemplos (13) e (14):

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(13) Os cariocas gostam de bandalha (tese). (a) Gostam de se debruçar sobre a buzina sem necessidade; (b) gostam de
xingar quem insiste em se manter dentro da lei; (c) uma pesquisa publicada pelo Globo, domingo, mostrou que 9% dos
motoristas respeitam sinal de trânsito. (argumento mais forte)

(14) Os cariocas gostam de bandalha (tese). Gostam de se debruçar sobre a buzina sem necessidade e de xingar quem
insiste em se manter dentro da lei. Inclusive uma pesquisa publicada pelo Globo, domingo, mostrou que só 9% dos
motoristas respeitam sinal de trânsito.

No exemplo (13), observam-se três argumentos que defendem a tese de que “os cariocas gostam de transgredir”.
Dentre os três, o mais forte é o último (uma pesquisa publicada pelo Globo, domingo, mostrou que 9% dos motoristas
respeitam sinal de trânsito), e é possível dizer isso porque pesquisa tem caráter científico. O argumento apoiado em uma
pesquisa tem um nível de credibilidade maior do que um argumento construído a partir de cenas observadas por um único
indivíduo (o sujeito-argumentante).
É importante destacar ainda que a ausência de operadores argumentativos, estabelecendo as relações, dificulta, a
princípio, a identificação do argumento mais forte. Neste caso, conta-se apenas com o conteúdo proposicional (informativo)
dos enunciados, o que faz que se tenha de refletir sobre esse conteúdo para perceber que argumento tem mais peso.
No exemplo (14), porém, observam-se os argumentos relacionados e introduzidos por operador argumentativo,
desvendando as relações semântico-discursivas e chamando a atenção do leitor para o argumento mais relevante.
O operador e soma argumentos de mesmo peso, como já foi abordado. O operador inclusive tem a função de
introduzir o argumento mais forte de uma escala de argumentos que apontam para uma mesma conclusão (se inclusive
uma pesquisa publicada pelo Globo mostrou que só 9% dos motoristas respeitam sinal de trânsito, então realmente os
cariocas gostam de bandalha). O operador só funciona, apontando para a negação da totalidade, ou seja, a totalidade de
motoristas são 100%, e o só indica que o percentual de motoristas conscientes é mínimo – 9%. Assim, se só 9% respeitam
os sinais, então o cronista tem razão quando diz que os cariocas gostam de bandalha.
Ainda do ponto de vista microtextual, é importante trabalhar com os alunos o valor argumentativo dos modalizadores
e dos índices de atitude subjetiva do locutor em face de seu enunciado. Seguindo a conduta de Koch (2004a), “consideram-
se modalizadores todos os elementos lingüísticos diretamente ligados ao evento de produção do enunciado e que
funcionam como indicadores das intenções, sentimentos e atitudes do locutor com relação ao seu discurso”. A propósito,
estão-se considerando, neste artigo, como modalizadores, também os operadores argumentativos, anteriormente
estudados.
No recorte “A pesquisa confirma que (...) cariocas não gostam de sinal fechado”, tem-se uma oração modalizadora,
“A pesquisa confirma que”. Ao se valer dessa oração, o locutor (Ventura como ser discursivo) recorre à argumentação por
autoridade polifônica, isto é, dá peso à sua argumentação em favor da tese de que “cariocas gostam de bandalha”.
Trazendo para o seu texto a voz da pesquisa publicada pelo O Globo, está provando, cientificamente, que os cariocas
gostam de transgredir, ou ainda, está permitindo o encadeamento “A pesquisa confirma que (...) cariocas não gostam de
sinal fechado”  (logo) os cariocas gostam de bandalha.
Destaque-se que o locutor também se vale do fenômeno da polifonia, ao introduzir, no trecho “Adriana Calcanhotto
cantou na sua canção de amor ao Rio e ao seu povo: ‘Cariocas não gostam de sinal fechado’”, a oração modalizadora
“Adriana Calcanhoto cantou”. A argumentação de Zuenir Ventura consiste no seguinte raciocínio: a cantora adora o Rio e o
povo carioca – e isso se percebe pelo fato de ela ter introduzido, na música, quinze versos elogiando os cariocas –, mas,

71
mesmo adorando, disse que o carioca não gosta de sinal fechado, então realmente o carioca gosta de transgredir; ou
ainda, se uma pessoa que ama o Rio e o povo carioca diz que o carioca não gosta de sinal fechado, então realmente o
cronista tem razão: o carioca gosta de transgredir.
Observem-se, a seguir, alguns índices de avaliação usados pelo locutor, significando a sua atitude subjetiva em face
dos enunciados que produziu. É importante salientar, especialmente neste momento, que se está procurando trabalhar
também a competência argumentativa do aluno na condição de paciente do ato argumentativo. Em outras palavras,
procura-se chamar a sua atenção para as estratégias de convencimento que o sujeito-argumentante usa, estratégias que
constituem marcas de subjetividade e não obrigatoriamente marcas da verdade.

(15) (a) Gaúcha, ela foi generosa. (b) Talvez por delicadeza de forasteira, ela não quis apontar uma verdade incômoda
que explica todo o comportamento transgressor dos cariocas. (c) (...) além de responsáveis por um dos mais caóticos
trânsitos do planeta (...).

Os índices de avaliação – adjetivo, substantivo, advérbio – revelam que, aquilo que está sendo dito, está sendo dito
da perspectiva do sujeito da enunciação. Ventura, ao dizer que (a) a cantora foi “generosa”, quis significar que o carioca, do
seu ponto de vista de sujeito-argumentante, transgride muito mais do que ela apontou. Por outro lado, se se ficar atento e
perceber que a qualidade de generosidade apontada à cantora é considerada pelo locutor e que não necessariamente ela
tenha sido generosa, mas, verdadeira, entende-se que nem tudo quanto é dito pode ser levando em conta. O sujeito-
argumentante faz o jogo do verdadeiro, como diz Charaudeau (2008, p. 206), mas o sujeito-alvo tem de ter competência
para avaliar as idéias que lhe são propostas.
O mesmo raciocínio pode ser elaborado com relação à “verdade incômoda” em (b) “ela não quis apontar uma
verdade incômoda”´(que os cariocas gostam de transgredir, e não é só no trânsito). Que os cariocas gostam de transgredir,
e não só no trânsito, é uma “verdade” e é “incômoda” para o sujeito-argumentante, mas não necessariamente para o leitor.
A (c) “responsabilidade” “por um dos trânsitos “mais caóticos do Planeta” também é segundo sua concepção.
Com relação ao trecho (b) “uma verdade incômoda que explica todo o comportamento transgressor dos cariocas”,
para dizer que os cariocas têm um comportamento “transgressor”, Ventura encontra fundamentação teórica nas leis de
trânsito e nas leis de Direito Civil e Penal, mas o fato de usar o adjetivo “transgressor” em vez de “rebelde”, por exemplo, é
uma característica do modo como ele encara a situação.
Por fim, em (b) “Talvez por delicadeza de forasteira, ela não quis apontar uma verdade incômoda”, observa-se a
modalidade da dúvida veiculada pelo advérbio “talvez”. O cronista usa o modalizador a fim de se proteger de possível erro
que possa estar cometendo, já que não pode afirmar que Adriana Calcanhotto não tenha dito “o carioca gosta de bandalha”
por não ser carioca e por ter a delicadeza que se espera de alguém que nasceu em outra cidade. Existe a possibilidade de
a declaração feita pela cantora – “carioca não gosta de sinal fechado” – não ter a extensão significativa que Ventura deu.
Considerando-se todos os pontos discutidos, veja-se, a seguir, a conclusão.

3. Conclusão

Este artigo tratou da temática “argumentação e seu ensino em sala de aula”. Por intermédio dele, buscou-se
provocar no professor-leitor o entendimento de que, para aperfeiçoar a competência do aluno como agente e alvo do ato de
argumentar, é necessário apoiar-se numa teoria e trabalhar com seus conteúdos em sala de aula. Só dessa forma o

72
estudante poderá desenvolver sua competência argumentativa, sabendo adequá-la às variadas situações por que passará
ao longo de sua vida.
Para contribuir com a tarefa do professor, foram apresentadas duas teorias – a Semiolinguística do Discurso e a
Semântica Argumentativa – que deram conta do estudo do ato de argumentar do ponto de vista macro e microestrutural. A
primeira ofereceu os constituintes indispensáveis para que haja argumentação – sujeito-argumentante, proposta, tese,
argumentos e sujeito-alvo –, bem como deu apoio à tipologia argumentativa proposta. A segunda participou com o conteúdo
“operadores argumentativos”.
Da perspectiva da macroestrutura, acenou-se com uma tipologia argumentativa constituída de argumentos do tipo
fatos, dados e raciocínios e com exemplos colhidos de uma crônica jornalística. Da perspectiva da microestrutura, mostrou-
se a função e o poder dos operadores argumentativos para o processo da argumentação, levando-se em conta os domínios
lingüístico e discursivo. O conteúdo “modalização” também foi trabalhado, com o intuito de destacar os modos por meio dos
quais o sujeito-argumentante diz aquilo que é dito, vale dizer, com o objetivo de mostrar que aquilo que o sujeito diz nem
sempre é informação, mas, opinião, subjetividade. Com respeito à exemplificação, a mesma crônica serviu de corpus.
É importante registrar que, quanto mais estudos sobre argumentação forem apresentados, quanto mais pesquisas
sobre a temática surgirem, mais os professores terão condições de, a partir de suas escolhas, preparar os alunos para o ato
de argumentar.

4. Referências

ADAM, Jean-Michel. A lingüística textual: introdução à análise textual dos discursos. Tradução de Maria das Graças Soares
Rodrigues et alii. São Paulo: Cortez, 2008.

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______. Para uma nova análise do discurso. Tradução de Agostinho Dias Carneiro. In: O discurso da mídia. Rio de Janeiro:
Oficina do Autor, 1996.

______. Linguagem e discurso: modos de organização. Tradução e adaptação de Aparecida L. Pauliukonis e Ida Lúcia
Machado (orgs.). São Paulo: Contexto, 2008.

DUCROT, Oswald. Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas. Tradução de Maria Aparecida Barbosa, Maria de
Fátima G. Moreira, Cidmar Teodoro. São Paulo: Global, 1981.

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______. Perspectivas argumentativas pela concessão em sentenças judiciais. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ,
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KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. La enunciación: de la subjetividad en el lenguaje. Tradução para o espanhol de


Gladys Ânfora e Emma Gregores. Buenos Aires: Edicial, 1980.

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73
______. A inter-ação pela linguagem. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2004b.

MENEZES, Willian Augusto. Faces e usos da argumentação. In: MARI, H., Ida L. Machado, Renato Mello (orgs.). Análise do
discurso: fundamentos e práticas. Belo Horiaonte: FALE/UFMG, 2001.

PLANTIN, Christian. Essais sur l’argumentation: introduction à l’etude linguistique de la parole argumentative. Paris:
Éditions Kimé, 1990.

Lúcia Helena Martins Gouvêa pertence à categoria de Professor Adjunto de Língua Portuguesa da UFRJ, atuando no
Departamento de Letras Vernáculas e no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. É membro do CIAD-Rio,
círculo em que desenvolve a Pesquisa intitulada “Modalidades e tipos de lexicalização: um estudo em gêneros
informativos midiáticos”.

e-mail: lhluar@yahoo.com.br

74
L’énonciation audiovisuelle
D’une approche sémio-linguistique à une approche sémio-
pragmatique

LOCHARD, Guy
(Université Paris 3-Sorbonne Nouvelle)

Je voudrais m’interroger ici sur les propriétés spécifiques de l’énonciation audio-visuelle par rapport à l’énonciation
linguistique. Je vais pour cela parcourir à grands pas les grandes étapes de la réflexion entreprise depuis trente ans sur ce
point en développant deux interrogations. Peut-on simplement transférer un certain nombre de notions forgées dans le
champ des sciences du langage à propos du langage iconico-visuel ? Quels ont été les facteurs de déplacement de cette
réflexion et avec quels effets au plan théorique ?
I. Pour répondre à la première interrogation, je dirais qu’une première attitude en la matière consisterait à essayer de trouver
un certain nombre d’équivalences fonctionnelles entre l’énonciation linguistique et l’énonciation audiovisuelle et c’est bien en
effet cette attitude qui a prévalu en la matière quand on revisite la généalogie de la théorisation de l’énonciation
audiovisuelle. Certains chercheurs se sont efforcés en effet de retrouver dans l’expression audiovisuelle des formes
homologues à celles mises en opposition et en évidence par Emile Benveniste avec sa fameuse différence canonique entre
Discours et Récit. Je fais référence là aux travaux de sémiologie audiovisuelle qui se sont développés en Europe
principalement dans les années 70 et qui étaient uniquement centrés sur le cinéma, depuis peu légitimé à l’Université. Ces
chercheurs ont insisté sur le fait que ce qui faisait la force symbolique et idéologique du cinéma fictionnel hollywoodien,
c’était bien sa capacité à mettre en place un récit empathique en créant l’illusion que « l’histoire semble se raconter elle
même » et ils ont montré que c’est principalement dans le montage désigné comme « narratif classique » que résidait le
pouvoir de captation de ce type de cinéma industriel dénoncé par certains courants critiques comme un lieu d’aliénation
spectatorielle.
Une exemple canonique nous est fourni par cette séquence d’un western célèbre : Rio Bravo (Howard Hawks, 1954).
On voit bien que tous les plans de cette scène célèbre sont soigneusement liés, articulés les uns aux autres par des figures
de raccord caractéristiques de ce que l’on peut appeler la grammaire cinématographique classique : le raccord sur le regard,
le raccord sur l’écoute, le raccord sur le mouvement, le raccord sur le geste etc..Il est manifeste que l’écriture audiovisuelle
de cette séquence est fondamentalement animée par une recherche de fluidité, de continuité et de naturalisation des liens
et des enchaînements entre les images successives, ce que commentait ainsi Alain Bergala1 dans un ouvrage didactique :
« L’un des moyens privilégiés de cette stratégie du montage classique, c’est de diégétiser le raccord, le passage d’un plan à
un autre en le faisant assumer par un personnage de la fiction, en justifiant ce raccord par la logique naturelle de l’univers
diégétique lui même».
A ce type de récit cinématographique reposant sur un effacement de toute marque énonciative, on pouvait et on peut donc
opposer en creux et a contrario un autre dispositif énonciatif relevant du régime du Discours. On peut donner comme
exemple à cet égard des classiques comme les films de Serguei Eiseintein. Par delà leur qualité artistique, ils avaient bien
une visée propagandiste et pour atteindre celle-ci, ils reposaient sur un autre type de montage, dénommé par Eisentein
« montage-collision ». Un bon exemple, évoqué par Alain Bergala est celui de la fameuse scène de la répression de La
Grève où se succèdent d’une part des plans donnant à voir des grévistes frappés par la policeet relevant donc clairement
de l’univers diégétique et d’autre part, des plans extra-diégétiques de type métaphorique, à savoir des plans de bœuf qu’on
égorge. Cette séquence, Alain Bergala la commente ainsi : «Ces plans d’abattoir ne sauraient être perçus par le spectateur
comme appartenant à l’espace-temps diégétique, à l’univers du récit. Ils relèvent manifestement d’un autre ordre, celui du
discours..Ce n’est pas la logique interne de l’univers diégétique qui peut justifier leur présence dans la séquence mais
seulement de façon tout à fait affichée un coup de force de l‘énonciation » 2.
Pour clore sur ce premier stade de la réflexion sur l’énonciation audiovisuelle qui illustre aussi pour l’expression filmique, la
fameuse différence opérée par François Recanati3 entre transparence et énonciation, il faut signaler que ces analyses
immanentistes se sont accompagnées d’une réflexion sur les effets produits sur le spectateur par le cinéma narratif
dominant. Elle portait sur les effets de projection-identification dans la fiction et c’est là dans la théorie psychanalytique

1 Alain Bergala, Initiation à la sémiologie du récit en images, Paris, p.46


2 Op. cité p.48.
3 François Recanati, La transparence et l’énonciation, Paris le Seuil ? 1979.

75
que le réponse a été trouvée, principalement sous l’influence de Christian Metz 4 reprenant et en redéfinissant pour le
cinéma les notions d’identification primaire et d’identification secondaire.
Je ne vais poursuivre au delà pour évoquer le basculement paradigmatique qui se produit au débit des années 80. Il
s’explique non pas seulement par des raisons théoriques mais tout autant pour des raisons disons pratiques, à savoir la
confrontation de ces chercheurs avec un média audiovisuel de plus en plus dominant, la télévision, progressivement
reconnue comme un objet digne d’intérêt dans le champ scientifique. Cette rencontre et cette difficile mais effective
légitimation académique de la télévision sont à mon sens déterminantes car elles vont mettre les chercheurs en présence
d’une plus grand variété de genres. Des genres fictionnels mais aussi informatifs, explicatifs qui se fondent sur des régimes
énonciatifs très diversifiés. Un de ces genres est privilégié au plan de la recherche : le Journal télévisé auquel Eliséo Véron
consacre une étude très connue dont le titre est significatif : Il est là il me voit il me parle5. Véron y montre que ce genre
informatif repose sur un procédé énonciatif transgressif dans le cinéma classique à savoir l’adresse, l’allocution explicite du
téléspectateur à la caméra et au spectateur, un procédé prohibé on le sait dans le cinéma classique car censé introduire
une rupture diégétique et produire des effets de défictionnalisation.
C’est le moment donc où nombre de chercheurs se proposent de repérer et de mettre en évidence différentes modalités
énonciatives dans le discours audiovisuel. On peut évoquer par exemple celui des images dites « subjectives » ( banalisées
alors par la miniaturisation des caméras) qui font adopter le point de vue des reporters ou des acteurs en action tels que par
exemple dans le domaine du sport ces caméras « embarquées » dans les voitures de course invitant à épouser le point de
vue du conducteur
Si on procède là aussi et à nouveau par transfert et par analogie, on peut considérer que l’on peut sans difficulté transférer
dans le domaine de l’expression audiovisuelle la fameuse distinction entre grandes modalités énonciatives : Elocutif /
délocutif/ allocutif.
-Seraient élocutifs tous les énoncés audiovisuels marqués par la présence de marques de subjectivité (bougé, tremblé, de
la caméra) ou encore les fondus-enchainés introduisant un flash-back mémoriel. Autant de procédés qui renvoient la source
de l’image et de la voix non pas à la caméra et à un énonciateur omniscient et anonyme mais au regard d’un individu réel
ou imaginaire inscrit dans la situation relatée.

-Seraient délocutifs tous les énoncés, caractéristiques du cinéma narratif classqiue marqués au contraire par un
effacement de tous les indices de subjectivité.

-Seraient en fin allocutifs ces énoncés structurants dans la discursivité télévisuelle dans lesquels, moi spectateur, je
suis explicitement adressé tant verbalement que visuellement par un individu ( le présentateur, l’animateur) qui m’interpelle
par la voix et par le regard que ce soit ceci dans la publicité , les genres informatifs, explicatifs ou de divertissement

II. Comme le laissait entendre mon titre dans lequel j’annonçais un déplacement de la réflexion, je voudrais maintenant
questionner cette première approche de l’énonciation audiovisuelle marquée par une posture immanentiste et qui relève, je
le redis, d’une démarche de transfert de notions forgées pour le verbal dans le domaine de l’expression audiovisuelle.
Cette démarche soulève deux interrogations :
a)Elle fait problème fondamentalement dans la mesure où elle pose comme une évidence qu’il existe une énonciation
audiovisuelle, autrement dit que cette approche théorique conçue pour l’expression linguistique en situation dialogique
pourrait s’appliquer mécaniquement à des productions langagières, d’une part artefactuelles ou non humaines puisque
engendrées par des outils technologiques et d’autre part ,unidirectionnelles.

b) Cette démarche marquée par les présupposés théoriques de méthodologiques de la sémiologie de première génération
fait abstraction par ailleurs de la question de l’énonciataire mais aussi du contexte d’énonciation.
Ce sont ces deux questions que je vais tenter d’examiner en faisant appel à des travaux, très intenses sur ce sujet en
Europe dans les années 80 et au début des années 90 et qui correspondent globalement au tournant pragmatique et
communicationnel qu’a connu ce domaine d’études.
Le premier point d’interrogation, c’est donc : quelles sont les conditions de possibilité de l’énonciation audiovisuelle? Peut-
on considérer qu’il y a énoncé et énonciation dès qu’il y a enregistrement et restitution en direct ou en différé d’un espace –
temps ?
C’est la question qu’avait soulevée Christian Metz dans un ouvrage tardif 6. Dialoguant avec plusieurs chercheurs, il émet
des doutes quant à l’existence même d’une énonciation audiovisuelle : « Si ça parle, nous dit-il, c’est que quelqu’un parle :
tel est le sentiment général, même s’il s’agit d’un livre. Mais l’équivalent filmique de cette certitude intérieure et immédiate
est loin d’être assuré. S’il y a des images à voir, c’est que quelqu’un les a arrangées : voilà qui ne recueille pas l’adhésion
des foules ».
C’est donc une position radicale qu’adopte Christian Metz puisqu’il considère qu’il y a énonciation verbale non pas quand il y
a présence dans l’énoncé de marques déictiques mais seulement quand interviennent dans le discours audiovisuel des

4 Christian Metz, Le signifiant imaginaire, Paris, 10/18, 1977.


5 Eliseo véron , « Il est là, il me voit, il me parle », Communications N° 34 Enonciation et cinéma, 1983
6 Christian Metz, L’énonciation impersonnelle ou le site du film, Paris , Klinsieck, 1990.

76
constructions réflexives, ie lorsque le texte audiovisuel « se plisse » pour se manifester comme en train de s’énoncer.
L’énonciation, nous dit-il, est l’acte sémiologique par lequel certaines parties d’un texte nous parlent de texte comme acte,
« le film dans le film » étant la modalité la plus connue.
Cette position radicale a été discutée et on a évolué vers une conception plus convaincante et plus consensuelle qui rejoint
certains présupposés de l’Analyse du Discours fondée sur un paradigme interactionniste. Elle consiste à considérer qu’il n’y
a énonciation audiovisuelle que lorsque le destinataire peut présupposer qu’il y a une intention communicative de la part
d’un sujet communiquant doté d’une intentionnalité stratégique et donc lorsque, moi spectateur, je peux construire celui-ci
comme un sujet énonçant. Dans cette conception, on doit considérer que des images enregistrées mécaniquement par
exemple par une caméra dont j’ai oublié d’interrompre le fonctionnement n’engendre pas une énonciation audiovisuelle. Ce
terme doit être réservé à des images portées par une intention communicative et il faut donc différencier les images
mécaniques des images « intentionnelles ».
Le second point de réflexion est le suivant. Si l’on se situe dans le cadre non pas d’une sémiologie audiovisuelle restreinte
mais élargie, on ne peut pas en rester au seul critère de telle ou telle marque formelle pour déterminer le régime énonciatif
de tel ou tel énoncé. Ce critère n’épuise en rien la question et il n’est nullement discriminant comme on l’a trop rapidement
avancé. En effet, certains genres fictionnels usent du regard adressé sans pour autant rompre l’effet de fictionnalisation. En
d’autres termes, telle ou telle marque peut induire des effets de sens différents en fonction des conventions de genres.
Ainsi, des approches sémiopragmatiques de l’audiovisuel telles que celle développée par Roger Odin7 ont progressivement
invité à considérer que les effets visés et supposés par l’insertion dans le discours audiovisuel de telle marque énonciative
ou plus généralement de tel ou tel procédé restent toujours conditionnels. Car ils sont irréductiblement tributaires du mode
de réception et de lecture opérés par le destinataire ou plutôt par le sujet interprétant qui peut mettre en oeuvre différentes
modes de lecture. Conformément à ce qui est escompté par les instances de production, celui-ci peut certes face à un film
comme Rio Bravo que je vous ai présenté tout à l’heure pratiqué une lecture documentarisante ou au contraire et face à un
documentaire adopter une lecture fictionnalisante pour reprendre deux grandes distinctions opérées par Roger Odin.
Autrement dit le visionnnement d’une production audiovisuelle peut donner lieu à des formes de « déphasage » selon le
terme de Roger Odin, de décrochage spectatoriel en suscitant d’autres modes de lecture que celles présupposées par
l’instance de production.
D’aucuns disent que certains téléspectateurs pratiquent une lecture fictionnalisante du Journal télévisé et considèrent que
c’est à eux-mêmes et en personne que le présentateur s’adresse. Je ne me prononcerai pas sur ce cas de figure marginal
et quelque peu pathologique. Je vais prendre l’exemple inverse d’une expérience beaucoup plus banale que nous avons
tous vécue et qui est celui de la mise en œuvre d’une lecture documentarisante d’un film de fiction. Face à un film censé me
projeter dans un monde imaginaire mais ayant pour cadre des lieux que je connais, je peux en effet, plutôt que de rentrer en
phase avec son discours narratif et son régime fictionnel, décrocher de ceux-ci pour m’attacher à tel ou tel élément du décor
qui m’est familier, tel ou tel acteur ( / personnage) dont je constate le vieillissement. J’en ai fait l’expérience il y a peu en
regardant un film d’espionnage parodique qui met en scène un agent secret français à Rio8. Je commence à connaître un
peu cette ville et je n’ai pu m’empêcher d’essayer de reconnaître des lieux où j’étais passé ( la montée vers le Corcovado
par exemple). En d’autres termes, et pour reprendre les termes de Roger Odin, j’ai été progressivement conduit ainsi à me
« déphaser » par rapport au régime fictionnel présupposé par ce film pour mettre en oeuvre une lecture documentarisante
de ce récit audiovisuel pourtant censé me projeter dans un univers imaginaire.

Conclusion :

Je vais conclure maintenant en soulignant ce que l’on pu observer en revisitant de façon cursive les grandes étapes de la
réflexion sur l’énonciation audiovisuelle. Ce parcours nous ramène à des questions qui se sont posées dans la recherche sur
l’énonciation verbale mais en les exacerbant peut être davantage considérant le mode d’expression audiovisuelle qui est
plus hétérogène. Il plaide par ailleurs et une fois de plus, pour une approche contextualisante et situationnelle du
fonctionnement des signes et du discours.

7 Roger Odin, De la fiction , Paris Klinsieck, 2000.


8 OSS 117, Rio ne répond plus, Michel Hazanavicius (2009)

77
Pseudonymie, discours littéraire, discours philosophique

MAINGUENEAU, Dominique
(Univer. Paris 12)

Introduction

L’énonciation littéraire est communément attribuée à deux instances hiérarchisées : l’énonciateur et l’auteur. C’est
ce dernier qui va m’intéresser ici à travers une réflexion sur le pseudonyme. Dans cette communication, je ne vais pas
m’interroger sur la définition de la pseudonymie ni sur ses variations au fil de l’histoire. Je vais adopter une approche qu’on
pourrait dire « faible », qui consiste seulement à comparer les pratiques du discours littéraire et du discours philosophique,
considérés à travers la problématique des discours constituants.
Le problème de la pseudonymie ne se pose pas de la même manière selon que le pseudonyme est attribué par
des tiers ou par les producteurs eux-mêmes. Mais ici je me contenterai d’envisager la pseudonymie prototypique, celle du
producteur : en signant ses textes d’un nom qui n’est pas celui qui figure sur son état-civil, un individu marque une
séparation entre l’appartenance à un certain espace discursif, littéraire ou philosophique, et l’appartenance à la vie sociale.

Auteur et pseudonymie

La réflexion sur la pseudonymie implique la figure de l’auteur, qui n’est réductible ni à l’énonciateur du texte ni à
l’écrivain, que celui-ci soit appréhendé comme acteur du champ littéraire ou comme individu doté d’une biographie, d’un
état-civil. Pour clarifier mon exposé, je rappelle que je distingue (Maingueneau, 2010) trois usages distincts, mais
étroitement liés, du terme « auteur », qui associe étroitement assignation d’origine (X est la cause de l’énoncé) et
dimension éthique (X doit pouvoir « en répondre »).
1) Le premier type d’emploi appréhende l’auteur comme l’instance qui assume la responsabilité d’un texte, de
quelque type qu’il soit. L’auteur-responsable opère sur une frontière : ce n’est ni l’énonciateur du texte ni un individu en
chair et en os, mais une instance hybride qui déjoue cette distinction. Il entretient un lien privilégié avec le péritexte :
préface, titre, épigraphe, etc. D’ailleurs, une préface n’est en général signée ni par l’énonciateur ni par l’écrivain, mais par
« l’auteur », qui l’assume face à la société. De fait, la préface est un genre qui gère l’introduction du texte dans le monde.
2) Dans le second type d’emploi, « auteur » désigne un acteur de la scène littéraire. Il réfère à un statut
socialement identifié auquel sont attachées certaines représentations stéréotypées, historiquement variables. L’auteur
entre dans des réseaux d’écrivains, a des relations avec des éditeurs, des critiques, etc.
3) Selon le troisième type d’emploi, l’auteur est le corrélat d’une œuvre, un « auctor ». Sa fonction ne consiste pas
à répondre d’un texte singulier, mais d’un groupement de textes qui sont censés « exprimer » sa personnalité. Les auctors
les plus notoires appartiennent à un Thésaurus de « grands auteurs ». Si par définition tout texte a un responsable, seul un
nombre restreint d’individus accède au statut d’ « auctor ». L’une des singularités de la production littéraire par rapport à
d’autres comme le journalisme ou la politique, est que toute personne qui y publie est « auctor » en puissance. Mais pour

78
qu’un individu soit pleinement « auctor, il faut que des tiers l’instituent comme tel, en produisant des énoncés sur lui et sur
son œuvre, bref en lui conférant une « image d’auteur ».

Pseudonymie, discours littéraire, discours philosophique

Je rappelle que les discours constituants sont des discours qui « font autorité », qui donnent sens à l’existence de la
collectivité. Pour ne s'autoriser que d'eux-mêmes, ils doivent se poser comme liés à une Source légitimante et leur existence
pose dans toute leur acuité les questions relatives au charisme, à l'Incarnation…. Ces discours ont ainsi un fonctionnement
singulier : zones de parole parmi d'autres et paroles qui se prétendent en surplomb de toute autre, discours placés sur une
limite et traitant de la limite, ils doivent gérer à travers leur énonciation même les paradoxes qu'implique leur statut. À travers
les dispositifs énonciatifs qu’ils rendent possibles, ils articulent textualité et espace institutionnel. Ils lient leur travail de
légitimation à la détermination d'un lieu pour un corps d'énonciateurs consacrés, et à l’élaboration d’une mémoire.
Or, en ce qui concerne la pseudonymie, on constate une divergence intéressante entre ces deux discours
constituants que sont le discours littéraire et discours philosophique. Pour le dire vite, les auteurs qui relèvent du discours
philosophique répugnent à la pseudonymie, alors qu’elle prolifère dans la littérature. Il suffit de jeter un œil sur une liste de
grands écrivains et de grands philosophes pour que la différence saute aux yeux. Même des philosophies tels que Nietzsche
ou Derrida qui placent pourtant au centre de leur réflexion le masque et la fiction ne signent pas leurs œuvres de
pseudonymes.
Cela n’exclut nullement l’anonymat. Il existe un certain nombre de textes philosophiques importants qui ont été
publiés de manière anonyme. Mais il s’agit en général d’une protection contre la censure, non d’un jeu de l’auteur avec son
nom patronymique.
Il existe également des noms d’auteurs philosophiques qui contiennent l’élément pseudo-. C’est par exemple le cas
du « Pseudo-Denys », qui est l’auteur de traités en grec de théologie mystique d'inspiration néo-platonicienne, l'une des
sources majeures de la spiritualité chrétienne. En réalité, ce n’est pas un auteur pseudonyme, mais un auteur à qui des tiers
ont auparavant attribué une identité erronée : pendant longtemps on a pris l'auteur de ce corpus pour un disciple que saint
Paul avait converti lors de son sermon à Athènes sur la colline de l'Aréopage (Acte des apôtres 17, 34). On a aujourd’hui la
certitude que les écrits en question datent du Ve ou du VI° siècle. D'où le nom de "Pseudo-Denys" qui lui fut ensuite accolé.
On ne peut pas non plus considérer comme pseudonymes les innombrables noms de philosophes antiques ou
médiévaux qui associent un nom et un lieu, ou un attribut : « X de Corinthe », « Y de Pavie », « Z le vénérable », etc. Ces
noms d’auteur ont une double fonction : ils permettent surtout de distinguer des homonymes (« X l’ancien » n’est pas « X
d’Alexandrie ») ou ils marquent une affiliation doctrinale, un lieu d’enseignement.
L’exception la plus notable que je vois pour le discours philosophique est S. Kierkegaard, chez qui la pseudonymie
est au centre de l’œuvre. Mais il s’agit précisément d’un auteur qui se plaît à brouiller les frontières entre philosophie, religion
et littérature. Le recours à divers pseudonymes fait partie intégrante de sa doctrine kierkegaardienne, qui ne fait qu’un avec
la contestation des formes classiques de la philosophie.
Une autre exception apparente, beaucoup moins prestigieuse, serait le philosophe français Emile Chartier (1868-
1951), connu sous le pseudonyme d’« Alain ». En réalité, le choix de ce pseudonyme ne s’est pas fait dans l’espace
philosophique, mais journalistique. Son premier ouvrage, publié en 1900 et consacré à Spinoza, était signé « Emile
Chartier ». Mais de 1903 à 1914 il a publié dans un journal, La Dépêche de Rouen et de Normandie, des chroniques qu’il

79
intitulait « Propos» et qu’il signait d’un pseudonyme, « Alain », comme c’était l’usage à l’époque dans le journalisme. Dans la
mesure où c’est à travers ce pseudonyme qu’il s’était fait connaître du grand public, il l’a utilisé dans les écrits qu’il a publiés
par la suite. Mais ce choix n’était pas dépourvu d’arrière-pensées philosophiques : c’était aussi une manière de marquer qu’il
occupait un statut de marginal dans le champ philosophique, celui d’un humaniste professeur de lycée qui ne proposait pas
un système philosophique mais enseignait seulement à réfléchir et à penser rationnellement en évitant les préjugés.
A priori, pourtant, le discours philosophique aurait de bonnes raisons de favoriser la pseudonymie. J’en dégagerai
trois :

1) La nature même d’un champ, dans la perspective de Bourdieu, est qu’il est relativement autonome, que les
producteurs de textes sont soumis à une autre logique que celle de la vie sociale « ordinaire ». La
pseudonymie contribue à marquer cette autonomie relative.
2) Le statut de l’auctor implique une distinction entre les êtres sociaux définis par la filiation, et les êtres
discursifs qui sont le corrélat d’une œuvre. D’une certaine façon, c’est l’œuvre qui engendre l’auteur. Le
« Pseudo-Denys » n’est qu’un nom associé à un groupe de textes.
3) La situation en quelque sorte « chamanique d’un énonciateur relevant d’un discours constituant le place à la
jointure entre le monde ordinaire et des forces transcendantes, ce qui favorise la pseudonymie : celui qui
parle ainsi ne peut pas être réduit à sa filiation « terrestre ».

Pour jeter quelque lumière sur cette divergence a priori surprenante entre discours littéraire et philosophique, on
peut revenir à un passage célèbre du Phèdre de Platon, consacré aux méfaits de l’écriture :

SOCRATE : C’est que l’écriture, Phèdre, a, tout comme la peinture, un grave inconvénient. Les œuvres picturales paraissent
comme vivantes ; mais, si tu les interroges, elles gardent un vénérable silence. Il en est de même des discours écrits. Tu croirais
certes qu’ils parlent comme des personnes sensées ; mais, si tu veux leur demander de t’expliquer ce qu’ils disent, ils te répondent
toujours la même chose. Une fois écrit, tout discours roule de tous côtés ; il tombe aussi bien chez ceux qui le comprennent que
chez ceux pour lesquels il est sans intérêt ; il ne sait point à qui il faut parler, ni avec qui il est bon de se taire. S’il se voit méprisé
ou injustement injurié, il a toujours besoin du secours de son père, car il n’est pas par lui-même capable de se défendre ni de se
secourir. (Πληµµελούµενος δὲ καὶ οὐκ ἐν δίκῃ λοιδορηθεὶς τοῦ πατρὸς ἀεὶ δεῖται βοηθοῦ· αὐτὸς γὰρ οὔτ᾽ ἀµύνασθαι οὔτε
βοηθῆσαι δυνατὸς αὑτῷ.) (Phèdre, 275d-e, trad. Mario Meunier, 1922)

Ce qui gêne Platon dans l’écriture, c’est qu’elle met en question l’opposition même vrai/faux sur laquelle, pour lui,
s’appuie toute philosophie légitime. Elle est en effet un supplément paradoxal de la pensée vivante, tout à la fois un parasite
et l’élément dans lequel s’articule la philosophie. Platon oppose le texte écrit qui circule n’importe où et n’a pas de « père »,
de responsable, et la dialectique vivante de l’oralité philosophique. Il se refuse à autonomiser le texte, à le dissocier et le
Sujet qui en est responsable et peut « expliquer ce qu’il dit ». Or la pseudonymie met inévitablement au premier plan
l’irréductibilité du discours à la pensée d’un Sujet.
L’énonciation philosophique ne peut pas être nomade, errer sans « père » : elle est nécessairement ancrée, à divers
titres :
- a) Elle doit fonder à traves son énonciation le fait même qu’elle puisse dire la vérité en tel lieu et à tel moment.
Ce travail de fondation passe par une cartographie du champ et de l’histoire de la philosophie : la parole du
philosophe n’a de validité que si elle peut construire son lieu et son moment, en le situant par rapport à d’autres.
- b) Elle est fondamentalement liée au débat, à la discussion. La joute implique la responsabilité d’un Sujet
juridique qui se soumet à des normes partagées avec ses adversaires. Exemplaire à cet égard le cas de

80
Descartes, qui a publié avec ses Méditations métaphysiques sept séries d’objections de divers penseurs
contemporains, avec ses propres réponses.
- C) Elle entretient des relations de défiance à l’égard des images et des récits. Or la pseudonymie est à la fois
un activeur d’images et d’histoires. Idéalement, pour l’auteur philosophique le lien entre la pensée et son support
doit être arbitraire pour être nécessaire. L’idéal est que la démonstration philosophique convainque par ses
opérations, de manière autonome, sans qu’il soit nécessaire de référer au nom propre qui en est le support.
Admettre un nom d’auteur fictif, choisi pour ses connotations, ce serait contaminer le monde de la pensée par
des images incontrôlées.
- D) Le philosophe est inévitablement un exemplum vivant, sa vie se doit d’être garante des normes qu’implique
son œuvre. C’est ce que montre de manière emblématique la mort de Socrate, que Platon, et bien d’autres à sa
suite, instituent en événement fondateur de la philosophie. Socrate meurt pour être conforme à sa propre
philosophie, et sous son nom de famille, qui est son nom de philosophe inscrit dans la Cité. La pseudonymie
viendrait brouiller ce lien entre la « vita philosophica » et la pensée.

Ces trois caractéristiques ne se retrouvent pas dans le discours littéraire, qui n’est pas un discours « ancré ». Cela ne
signifie pas que l’énonciation littéraire n’a pas besoin de fonder son droit à la parole, qu’elle n’est pas prise dans un dialogue
constitutif avec d’autres positionnements, ni que la vie de l’écrivain ne soit pas à la mesure de son œuvre, mais ces
contraintes passent par d’autres voies, qui favorisent la pseudonymie. Cette dernière est indissociable de la mascarade, du
spectacle, de la parure, de l’illusion, de la circulation...
Une divergence du même ordre entre discours littéraire et philosophique se retrouve à propos l’aphorisation. Le
philosophe entretient une relation consubstantielle avec la sentence, et l’écrivain avec le texte. La littérature, par le fait
même qu’elle déploie des signifiants pour construire un univers sensible ne peut se glisser dans le format d’une
aphorisation. L’aphorisation en philosophie, en revanche, fonctionne à la fois comme résumé doctrinal, comme support
didactique de commentaire, comme formule qu’on peut mettre dans sa mémoire et emporter avec soi partout, comme
opérateur d’affiliation à une école ou à un maître.

Donner à voir un écrivain, un philosophe

Une manière de rendre sensible la divergence entre nos deux discours en ce qui concerne la pseudonymie est de
s’interroger sur la manière de représenter le corps des auteurs : qu’est-ce qu’une photo « de philosophe » ? une photo
« d’écrivain » ? Je ne parle pas, bien entendu, de n’importe quelle photo de l’individu qui a écrit les œuvres, mais de celles
qui illustrent l’auctor : ces photos qu’on retrouve dans les encyclopédies, les manuels scolaires, les textes commémoratifs…
Nous n’allons pas nous lancer dans une recherche d’envergure sur ce sujet, mais à titre d’illustration mettre en
contraste quelques photos du philosophe Alain (Emile Chartier), dont nous avons déjà parlé, et de son contemporain le
romancier pseudonyme Pierre Loti (1850-1923) dont le « véritable » nom était Julien Viaud.
La première photo de Pierre Loti a été faite lors d’une fête qu’il avait organisée chez lui en 1888, un « dîner Louis
XI ».

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Cette photo n’est pas là par hasard. Elle fait partie de la dizaine de clichés faits par un studio photographique qui a été
convié pour la circonstance. L’écrivain avait en outre invité à sa fête quelques journalistes parisiens qui ont fait des
reportages dans la presse nationale, en particulier dans Le Figaro et Le Monde illustré. Certaines de ces photos ont été
converties en gravures pour des journaux, en particulier dans L’Illustration.

La seconde image, due au photographe Dornac, est une des innombrables photos qui montrent l’écrivain habillé en
arabe dans sa maison de Rochefort qu’il avait décorée en style oriental. Elle figure sur le site du ministère de la culture
français, à la rubrique « célébrations nationales » (http://www.culture.gouv.fr/culture/actualites/celebrations2000/ploti.htm,
site consulté le 3/8/2010).

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Les photos d’Alain sont bien différentes. La première figure sur le site consacré au philosophe (alinalia.free.fr/, consulté
le 20/8/2010), à la rubrique « portraits ». On le voit au milieu de quelques camarades de l’Ecole Normale Supérieure.

La seconde photo circule largement. Elle figure en particulier sur l’article de l’Encyclopédie Universalis en ligne
(www.universalis.fr/, consulté le 20/8/2010). Elle montre Alain dans son activité d’enseignant de philosophie au lycée.

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La comparaison est éloquente. Les photos emblématiques d’un philosophe, fût-il exceptionnellement pseudonyme
comme c’est le cas d’Alain, sont bien différentes de celles d’un écrivain, et l’on retrouve certaines caractéristiques mises en
avant à propos de la pseudonymie.
Le philosophe n’est pas présenté dans son univers doctrinal : on voit mal quel lien établir entre la photo et sa pensée :
qu’Alain soit un rationaliste, un idéaliste, un spiritualiste ou un sceptique, cela ne changerait pas fondamentalement les
photos. En revanche, le philosophe apparaît inscrit dans deux communautés. La première est celles des camarades, unis
par la philia, dans une institution de type scolaire. L’autre est celle des élèves : le philosophe est un maître, aux deux sens
du terme. Outre ces deux communautés, le discours philosophique implique celle, invisible, des auteurs de l’archive
philosophique : à cet égard, la photo prototypique serait celle du philosophe dans sa bibliothèque, un type de photo que la
presse affectionne particulièrement.
Pierre Loti peut sembler un cas particulier, puisqu’il se met délibérément en scène dans les photos (les romans de
Loti, qui était officier de marine, sont foncièrement une littérature de voyage, d’exotisme). En fait, il pousse à l’extrême une
caractéristique du discours littéraire, dont la société attend qu’ils soient contaminés par les fictions qu’ils créent. Il ne peut
donc être question de chercher un « vrai » Pierre Loti derrière la diversité des mises en scène. L’écrivain se met en scène
comme un personnage de ses propres scénographies et des fictions qu’il crée. Détail significatif : le carton d’invitation à la
fête médiévale était adressé par « Messire et Dame Pierre Loti », c’est-à-dire le pseudonyme de l’écrivain. Par un geste
subversif, l’épouse de l’écrivain se voit attribuer le nom d’auteur ; ce qui implique un brouillage entre l’être social, l’écrivain
comme acteur du champ et l’auteur comme responsable de fictions exotiques. Le pseudonyme même « Pierre Loti » est le
nom d’une fleur tropicale qu’a donnée la reine de Tahiti au jeune officier de marine. Celui-ci l’a adopté comme nom de plume
dès 1876 et en a fait le nom du personnage principal d’un roman qui se passe à Tahiti (Le mariage de Loti (1880)).

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Conclusion

La pseudonymie, en tant qu’elle porte sur cette instance frontière qu’est l’auteur, donne accès à l’ensemble des
contraintes des divers discours constituants. Pour le discours littéraire comme pour le discours philosophique, le
mouvement de la paratopie exige qu’il y ait enveloppement réciproque entre le contenu des œuvres et les conditions
biographiques qui les rendent possibles, mais pas selon le même mode. La pseudonymie en philosophie affaiblit le lien entre
le Vrai et l’homme qui en répond, alors qu’elle n’affecte pas le discours littéraire, où l’écrivain ne cesse de jouer des
frontières entre « la vie » et « l’œuvre ».

Références

Maingueneau D. (2010), Doze conceitos de analise do discurso, São Paulo, Parabola.

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A construção de sentidos como operação discursiva na
enunciação

MELLO, Renato
(Universidade Federal de Minas Gerais)

Este artigo propõe uma reflexão sobre a construção de sentidos como uma operação discursiva na enunciação,
visto que, como afirma Guimarães (1995, p.11) “... o sentido deve ser considerado a partir do funcionamento da linguagem
no acontecimento da enunciação”. Acrescento à citação que a linguagem deve ser vista sob o ponto de vista de uma prática
social geradora de sentidos. Chamo a atenção para o que estou designando por sentido. Não pretendo, aqui, tratar, por
exemplo, dos sentidos físicos – as formas de receber sensações, segundo os órgãos destas – nem tampouco dos vários
sentidos e das várias aplicações da noção de sentido. Minha perspectiva é lingüística e minha proposta de reflexão é sobre
o sentido discursivo ou, se quiserem, sobre a significação, ainda que esse termo possa trazer algumas complicações para a
discussão.1
Para ancorar essa reflexão em uma base teórica, optei pela Semiolingüística, de Patrick Charaudeau, e dentro
dela, mais especificamente, pelo quadro do processo comunicacional.

NÍVEL SITUACIONAL

NÍVEL DISCURSIVO
EUc EUe TUd TUi
CIRCUITO INTERNO

CIRCUITO EXTERNO
QUADRO 1

Esse quadro é bastante operacional, visto que, a partir dele, pode-se discutir sobre praticamente qualquer questão
proposta pela Análise do Discurso, incluindo, evidentemente, o conceito de sentido. Percebe-se que a questão do sentido
perpassa todo o quadro do processo comunicacional: as quatro instâncias enunciativas, os níveis semiolingüístico,
discursivo e situacional, as expectativas, as restrições, o próprio contrato, os princípios e as leis do discurso etc.
E quando se trata de produção de sentido, dentre uma multiplicidade de questões possíveis e pertinentes, me
proponho levantar apenas uma, estruturada de três formas diferentes, a que, muito rapidamente, tentarei responder:

1 Há aqueles que marcam a diferença entre sentido e significação. Ducrot, por exemplo, propõe o termo significação para se referir à frase
e o termo sentido para se referir ao enunciado. Prefiro não entrar, aqui, nesse tipo de discussão. Desse modo, o termo sentido, neste
texto, será usado no sentido global de uma produção de linguagem.

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- Como se dá a estrutura e o processo de produção do sentido? ou
- Como o sentido se constrói e quais os elementos o compõem? ou
- O que é que conta na produção de sentido?

Para justificar essa proposta de reflexão neste artigo e o uso do quadro do processo comunicacional, posso dizer de
imediato que o sentido é um acontecimento sócio-histórico-enunciativo, ou seja, é um processo comunicacional que conta
com um nível externo, o situacional e com um nível interno, o discursivo. O sentido discursivo se faz, ou é construído, por
indivíduos social e historicamente instituídos e em uma dada situação de enunciação, ou seja, a enunciação é vista como o
local desse acontecimento. Penso, assim, que o sentido é uma construção social, uma operação discursiva na enunciação
que, por sua vez, envolve a língua e o discurso. O discurso é a produção de sentidos entre os sujeitos:

O sujeito pode ser considerado como um lugar de produção de significação linguageira, para o qual
esta significação retorna, a fim de constituí-lo. O sujeito não é, pois, nem um indivíduo preciso, nem um
ser coletivo particular: trata-se de uma abstração, sede da produção/interpretação da significação,
especificada de acordo com os lugares que ele ocupa no ato de linguagem. (CHARAUDEAU, 2001, p.
30)

Retomando o quadro do processo comunicacional, temos o nível situacional que é o lugar do fazer psicossocial,
que corresponde às circunstâncias de produção do discurso, nas quais encontramos sujeitos empíricos dotados de
intencionalidade e inter-ligados por uma situação de comunicação concreta. Tais sujeitos são seres empíricos,
historicamente determinados, que Charaudeau chama de parceiros. Em virtude de suas funções, obrigações e intenções,
decorrentes de uma situação de comunicação específica, eles realizam, respectivamente, um projeto de fala e uma
expectativa de interpretação. O nível situacional ainda não é, portanto, o discurso, mas é determinante para a sua
configuração. Nesse nível, reúnem-se as condições de produção do discurso.
No nível discursivo, encontram-se dois seres de fala, que Charaudeau nomeia protagonistas: o sujeito enunciador
e o sujeito destinatário. Eles constituem o resultado da encenação do dizer realizada pelo sujeito comunicante, a qual será
interpretada pelo sujeito interpretante. De acordo com a situação de comunicação, o sujeito comunicante deverá se valer de
estratégias discursivas apropriadas em relação ao que se deve, se pretende e se espera dizer. Para tanto, ele acionará a
instância de enunciador, responsável por materializar, lingüisticamente, suas estratégias. Esse sujeito enunciador é,
portanto, uma imagem de si que o indivíduo constrói através da linguagem. Essa imagem, segundo as situações de
enunciação, é constantemente re-construída pelos falantes. Já o sujeito destinatário pode coincidir ou não com o sujeito
interpretante. Nesse sentido, o ato de linguagem torna-se uma expedição rumo a um interlocutor, do qual não se pode
prever a reação exata: esta nem sempre coincide termo a termo com a prevista ou idealizada.
Ainda segundo Charaudeau (2001), a relação contratual estabelecida pelos sujeitos não se baseia apenas nos
estatutos sociais que estes ocupam fora do ato comunicacional. Ela depende tanto do “desafio” construído no e pelo ato
comunicacional quanto de componentes mais ou menos objetivos, pertinentes às expectativas que envolvem tal ato. São
três tipos de componentes descritos por Charaudeau (2001, p. 31):

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- O comunicacional, que é o quadro físico da enunciação, ou seja, a presença ou não dos parceiros, o
canal – oral ou gráfico – utilizado por eles na interação, entre outros.
- O psicossocial, que são os estatutos que os parceiros são suscetíveis de reconhecer um no outro,
como idade, condição social, cultural, ideológica, relação de parentesco etc.
- O intencional, que diz respeito aos saberes supostamente partilhados. Componente que se apóia
sobre duas questões que constituem os princípios de sua realização: “o que está sendo colocado em
questão, com qual intenção de informação?” e “de que maneira isso está sendo veiculado, ou, qual
será a intenção estratégica de manipulação?”.

Reparem que tenho usado palavras como indivíduos, sujeitos, parceiros quase sempre no plural. Isso porque o
sentido só se constrói na coletividade. E na coletividade em inter-ação. Essa afirmação traz consigo conceitos já bastante
trabalhados por lingüistas, por analistas do discurso: polifonia, dialogismo, intertexto e interdiscurso, além do conceito de
intersubjetividade para ficarmos somente com alguns que nos interessam mais de perto neste momento. Tendo em vista a
proposta de refletirmos sobre a construção ou a estrutura do sentido, me proponho tratar, ainda que suscintamente, dos
conceitos arrolados acima.
É sabido que conceito de polifonia surgiu com Bakhtin, foi desenvolvido por Ducrot, que buscou mostrar que em um
mesmo enunciado é possível (para não dizer que é certo) haver mais de uma voz. Tal conceito foi aos poucos adaptado
pelos lingüistas em geral e pelos analistas do discurso em particular. Tornou-se, em conseqüência disso, um conceito muito
maleável. De qualquer forma, é fato que a polifonia designa as diferentes vozes instauradas no discurso e, desse modo,
está literalmente associada à coletividade, aos protagonistas e parceiros da comunicação, ou seja, ela se situa no nível da
língua, da enunciação, da produção e da recepção dos sentidos. Polifonia é, na verdade, o sentido construído no e pelo
texto.
O conceito de dialogismo também tem sua origem em Bakhtin. O autor propõe o conceito de dialogismo como fonte
de intertextualidade. A enunciação é vista como o produto da interação de dois ou mais indivíduos socialmente organizados:
o locutor e o(s) alocutário(s). Entretanto, o termo (e o conceito), assim como o termo e o conceito de polifonia, traz consigo
uma pluralidade de sentidos. Sabemos que para que haja comunicação é preciso pelo menos duas pessoas. Sabemos
também que para que haja sentido é preciso pelo menos duas pessoas. Dialogismo refere-se exatamente a essa estrutura.
O conceito de intertexto está intimamente ligado ao conceito de interdiscurso. Assim sendo, abordaremos os dois ao
mesmo tempo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que todo texto e todo discurso são atravessados por outros textos e por
outros discursos, são regiões de encontros e de confrontos de sentidos. Vale também lembrar que intertexto e interdiscurso
dizem respeito, por sua vez, aos conceitos de polifonia e dialogismo, visto que todo discurso e todo texto são perpassados
por vozes de diferentes sujeitos e diferentes enunciados.
Para Maingueneau (1997, p. 26),

L’énonciation ne se développe pas sur la ligne d’une intention fermée, elle est de part en part traversée
par les multiples formes de rappel de paroles déjà tenues ou virtuelles, par la menace de glissement
dans ce quil ne faut surtout pas dire.

Acrescentaria à citação que, desse modo, a enunciação é, de parte a parte, atravessada também pelos sentidos.
Assim, inter-textos e inter-discursos são, na verdade, as múltiplas (para não dizer as infinitas) possibilidades dos sentidos se
concretizarem na enunciação.
Com o conceito de intersubjetividade é possível refletir sobre a possibilidade de se atribuírem aos sujeitos em
interação modos de presença específicos, dependendo ao mesmo tempo das forças impostas pelas formas do discurso e
da percepção subjetiva orientada que um sujeito tem de si mesmo e do(s) outro(s). Na enunciação, o sujeito mostra sua
identidade, sua subjetividade. Subjetividade que se mostra na linguagem, que, por sua vez, é constitutiva do sujeito. Como

88
não há sentido sem a presença do sujeito, sem uma intencionalidade, é fato que ele usa a língua e consegue, através dela,
dizer sua subjetividade. Se pensarmos que na enunciação temos, no mínimo, duas pessoas, logo temos duas
subjetividades em interação. Daí o termo intersubjetividade.
Resumindo o que foi dito, a produção de sentido é uma prática social dialógica e polifônica, interdiscursiva e
intersubjetiva que implica a linguagem em uso. O sentido ou a construção do sentido se dá em mão dupla: na produção do
discurso, do texto, do enunciado e nas possibilidades de recepção, de leitura, de interpretação, assim como proposto no
quadro do processo comunicacional de Charaudeau. Isso explica inclusive a presença das setas no quadro comunicacional.
Vale lembrar também que a relação entre esses sujeitos da enunciação não é linear e nem simétrica. A relação é dinâmica,
na qual nada está definitivamente determinado ou fixado de uma vez por todas. Assim, nada garante que o que for
enunciado por um será exatamente o que o outro interpretará.
Percebe-se, então, que, no quadro do processo comunicacional, os elementos que o compõem dependem de
fatores psicossociais e históricos. O que acabo de dizer também serve para o conceito de língua e de sentido. Ambos são
algo construído socialmente, coletivamente. Assim como a língua, não existe sentido sem sujeito e tampouco fora de
contexto. A língua entra em ação como discurso produzindo sentidos. O sujeito, ao usar a língua, ao transitar pela
linguagem, no discurso, produz sentidos, ou seja, o sentido vai se fazendo no uso que o sujeito faz da língua, da linguagem,
ao mesmo tempo que ele, o sujeito, também vai se fazendo, está sempre em processo. Desse modo, pode-se afirmar que
não existe sentido fora da linguagem, fora do discurso, nem discurso ou linguagem sem o sentido como parte de sua
estrutura.
Isso me faz lembrar Barthes (1987, p. 266), que diz que a língua é “fascista”, visto que somos obrigados a usá-la,
estamos condenados a falar, ou seja, não podemos não usar a língua, não temos essa liberdade. Podemos dizer que
também o sentido é “fascista”. Não podemos não construir sentidos, estamos condenados aos sentidos, não podemos não
nos valer dos sentidos, não podemos não usá-los. Essa comparação também me faz lembrar que os sentidos, assim como
as palavras nos dicionários, sofrem mutações. O sentido, assim como as palavras, é algo que muda com o tempo, com a
cultura, com o espaço. Os sentidos vão e vêm, se renovam, é algo vivo e dinâmico e, ao mesmo tempo, transitório e fugaz.
Desse modo, podemos dizer que o sentido lingüístico muda de um lugar para outro, de um tempo para outro, de
uma língua para outra, de uma sociedade para outra, até mesmo de uma comunidade para outra, de uma classe para outra.
Mas não podemos dizer que muda de uma pessoa para outra. É preciso que haja uma comunidade, uma coletividade que
partilhe a mesma língua, os mesmos recursos semânticos para se comunicarem, caso contrário não haverá comunicação
nem tampouco compreensão, o que um disser não fará sentido para o outro. É interessante notar que tudo o que eu disse
até aqui sobre sentido serve para a língua. Estamos falando, na verdade, dos saberes partilhados e das limitações
(contraintes) previstas no quadro do processo comunicacional.
Podemos, então, dizer, que, de certa forma, o sentido está na língua. Ora, se o sentido está na língua, quem lhe
dá vida, quem a usa, quem a modifica, quem é constituído por ela também deve ser parte integrante desse processo todo: o
sujeito, o falante. Não existe língua sem sujeito. Não existe sentido fora da língua e tampouco da linguagem. Não existe
sentido sem sujeito. Poderíamos, então, dizer que o sentido está no sujeito? É ele quem cria a língua e é criado por ela. Sob
esta lógica, podemos dizer que o sujeito constrói os sentidos e é construído por eles. Entendo que não se pode falar de
sentido sem falar de sujeito e que ambos se produzem, se constroem, se constituem no discurso. Entretanto, a discussão é
mais complexa do que se supõe, como atesta Orlandi (1999, p. 37),

89
... o sentido não é algo que se dá independente do sujeito. Os mecanismos de produção de sentido são
também os mecanismos de produção de sujeitos. Nem os sujeitos nem os sentidos, nem o discurso já
estão prontos e acabados. Eles estão sempre se fazendo. Havendo um trabalho contínuo, um
movimento constante do simbólico e da história.

Por mais paradoxal que possa parecer, a língua, a linguagem e o sentido não se submetem a um padrão de
regulação social, ou seja, uma sociedade não tem competência para interferir na língua, na linguagem e no sentido, caso
contrário teríamos o caos. E, apesar de sermos regidos pela língua, pela linguagem e pelos sentidos, somos nós que os
usamos e o uso os transforma, ainda que essa ação (e as modificações que acontecem com o uso) não seja voluntária.
Assim, o sentido se submete às normas, às leis da sintaxe e da semântica e do discurso. Essas submissões, essas
restrições se dão tanto na codificação (produção) quanto na decodificação (recepção) de sentidos inscritos nos enunciados.
Os sujeitos não atuam nem em um espaço de absoluta determinação e nem de total liberdade.
O sentido discursivo se constrói, na verdade, no interdiscurso. O interdiscurso funciona como uma espécie de rede
onde os sujeitos inter-agem, re-montam as enunciações, os enunciados, as leituras, os sentidos. Daí podermos dizer que o
sujeito que constrói o sentido nunca é o mesmo o tempo todo, nem nas instâncias de produção nem nas de recepção. Para
produzirmos sentidos precisamos entrar nessa rede interdiscursiva. Partimos do que já foi dito, do que tem sido dito, dos
sentidos postos, para podermos enunciar, nos comunicar. O princípio é o mesmo, se tratamos de texto. Ao lermos um texto,
o colocamos, e nos colocamos, em rede, interdiscursiva e intertextual para re-construirmos os sentidos. Se pensarmos no
quadro comunicacional, e levando em consideração a série de elementos que influenciam a comunicação, tanto no nível
situacional quanto no nível discursivo, podemos afirmar que cada enunciação é única, que cada sujeito em cada enunciação
é único, que cada produção e cada leitura é única.
À guisa de uma conclusão nem um pouco conclusa, tendo em vista a extensão da questão, afirmo que há muito o
que refletir sobre a produção/compreensão dos sentidos. O que temos, nós analistas do discurso, publicado sobre o
assunto é, a meu ver, pouco, diante de tamanha complexidade. Percebo que, ao estudarmos os sentidos, estamos,
querendo ou não, re-visitando toda uma série de conceitos próprios da Linguística, da Análise do Discurso, tais como o
processo comunicacional, do enunciado à enunciação do significado ao significante e ao referente, o tempo e o espaço, o
sujeito e a linguagem...

Referências

BARTHES, Roland. O Rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, H. MACHADO, Ida & MELLO, Renato. Análise do
discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2001. p.23-38.

GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995.

MAINGUENEAU, Dominique. L’Analyse du discours. Paris: Hachette, 1997.

ORLANDI, Eni. P. Análise do Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.

Renato de Mello possui graduação em Letras pela UFMG (1990), mestrado em Estudos Literários pela UFMG (1994) e
doutorado em Estudos Lingüísticos pela UFMG (2002) e Pós-doutorado por Paris XIII (2004). É professor Associado na
Graduação e na Pós-graduaçao e representante na Congregação. ufmgrenato@hotmail.com.

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Publicidade e imagem: uma proposta de estudo

MENDES, Emília
(FALE/UFMG)

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à organização de evento pelo gentil convite, é sempre um prazer estar
aqui com nossas colegas do CIAD, sobretudo em uma homenagem ao nosso querido mestre, Patrick Charaudeau.
O discurso publicitário tem sido estudado pelo CIAD - RIO e pelo NAD- FALE/UFMG desde os anos 90, prova
disso é livro organizado por Carneiro (1996), "O discurso da mídia". Esta tradição torna a minha tarefa aqui, no mínimo,
difícil. Venho aqui na esperança de poder dar alguma contribuição para os estudos sobre este discurso, sabendo que em
muitos casos a esperança é sempre maior que a experiência.
Gostaria de mencionar a importância da colaboração de todos os colegas do NAD, do CIAD e do CAD de Paris,
pois são muitas as pesquisas desenvolvidas por estes grupos a respeito do discurso publicitário, ajudando não só a
compreensão deste discurso como também contribuindo para uma expansão da Teoria Semiolingüística. Espero que, de
alguma forma, possa representar algumas destas vozes neste espaço que me é gentilmente cedido.
Assim sendo, a apresentação que farei aqui tem por objetivo tratar de, pelo menos, três dimensões sobre o
discurso publicitário:
1. Num primeiro momento, tecerei breves considerações impressionistas sobre o discurso publicitário;
2. Num segundo momento, apresentarei um modelo de grade de análise para o tratamento da imagem fixa, que deve
ser aliada à análise de texto;
3. Num terceiro momento, farei um estudo sobre duas publicidades de água, uma dirigida ao homem e outra à
mulher, veiculadas na revista Boa forma de maio de 2010.

1- BREVES CONSIDERAÇÕES IMPRESSIONISTAS SOBRE O DISCURSO PUBLICITÁRIO

Gostaria de começar esta exposição, não pelo que pensa a Análise do discurso sobre a publicidade, mas pela
representação que um publicitário faz da publicidade. Refiro-me aqui ao trabalho de Oliviero Toscani, "A publicidade é um
cadáver que nos sorri". Embora tenha sido publicado em 1995, não deixa de ter a sua atualidade, pois muitas de suas
críticas ainda continuam sendo aplicáveis ao discurso publicitário atual, com algumas poucas ressalvas.
Na visão de Toscani ([1995]2009) a publicidade é socialmente inútil, é mentirosa, burra, pratica "persuasão
oculta", é excludente e racista, é sem criatividade, tediosa, dentre outras coisas. Enfim, nas suas próprias palavras:

A publicidade é um cadáver perfumado. Sempre se diz a respeito dos defuntos: 'ele está bem-
conservado, parece até que sorri'. O mesmo vale para a publicidade. Acha-se morta, mas continua
sorrindo". Toscani ([1995]2009, p. 40)

Assim sendo, para Toscani, a publicidade mantém uma aparência de algo que não é, cria a encenação de uma vitalidade
que na verdade não mais possui.

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Na minha opinião, e acredito na de alguns outros pensadores do assunto, é bem verdade que a publicidade atual
é pouco criativa, que repete exaustivamente modelos, que parece ter se esquecido da arte da persuasão e querer se impor
ora pela via da poluição visual [pelo excesso], ora pela poluição sonora, haja visto a diferença de volume entre a publicidade
e a programação na televisão brasileira. No entanto, esta mesmice da publicidade pode trazer regularidades que valem a
pena ser estudadas, como, por exemplo, os estereótipos que nela são ora referendados, ora questionados. Por uma opção
teórica, não falaremos de estereótipo, mas de imaginários sociodiscursivos, tal qual os define Charaudeau . Para ele,

os imaginários são engendrados pelos discursos que circulam nos grupos sociais, se organizam em
sistemas de pensamento coerentes criadores de valores - desempenhando o papel de justificação da
ação social - e se depositam na memória coletiva. Charaudeau (2007, p. 53) [tradução nossa].

Verificamos estes mecanismos no discurso publicitário e é por esta razão que este discurso é um rico depositário de
imaginários que ora são reafirmados, ora são refutados. Assim como propunha o pensamento do círculo bakhtiniano, é
preciso pensar que os discursos possuem uma espécie de equilíbrio instável, que dura pouco e se desestabiliza para
novamente se equilibrar, continuamente. A concepção de imaginários acima descrita dialoga muito bem com esta
mobilidade dos discursos.
Como exemplo cito o caso de uma publicidade da Ambev veiculada na revista Piauí de setembro/2010.

Se de um lado, questiona-se o imaginário de uma pretensa inaptidão feminina para lidar com cervejas, de outro, reforça-se
um imaginário sociodiscursivo que a publicidade mostra já há algum tempo: aquele da juventude vencedora e bem-
sucedida.
A meu ver, há um outro campo de discurso que começa a se estabelecer: aquele dos movimentos anti-consumo,
ou pelo consumo consciente, que vão se dar também pela via da propaganda, ou do que alguns denominam
"contrapublicidade". Embora alguns grupos tenham uma sede física, é no espaço virtual da internet o local onde ganham
mais forças. Como exemplo podemos citar a espanhola Consume hasta morir e a canadense Adbusters.

92
Fonte: http://www.letra.org/spip/article.php?id_article=118 [acesso em 17/06/2010]

Dentre as várias produções da Consume hasta morir, destacamos a releitura de clássicos da arte. No exemplo
acima, temos à esquerda o "Cristo crucificado (1632) de Velázquez e à direita o " McCristo]" de Alfonso Aguilar.
No caso da Adbusters é interessante ressaltar a crítica que é feita à Benetton. Embora Toscani critique a
publicidade como foi mencionado acima, não deixa de fazê-la, de usar de suas estratégias e contratos. É por esta razão
que penso haver transgressão de valores sociais nas publicidades da Benetton e não transgressão de gênero, como alguns
acreditam. O contrato publicitário permanece o mesmo, as estratégias é que são realmente criativas e ousadas, mas não
deixam de ser publicidade.

93
Fonte: http://www.adbusters.org/ [acesso em 17/06/2010]

Na imagem acima, é possível observar que no lugar das cores vibrantes que são uma característica da Benetton, temos os
tons pastéis que seguem a mesma palheta de cores do dólar americano. As feições do ator indicando agressividade são
também importantes de serem notadas, pois nas publicidades da referida marca não seria possível afirmar que haveria este
tipo de expressão. Assim, por mais que Toscani critique a publicidade, suas produções continuam seguindo o mesmo
contrato de venda de um produto, a diferença é que ele faz a opção pela via da polêmica.
Atualmente, há os que defendem que a era da "persuasão clássica, via argumentos" já se esgotou e que agora o
que está no centro das estratégias de sedução do discurso publicitário seria o design. No seu livro "A linguagem das
coisas", Deyan Sudjic (2010) parte de uma proposta que retomaria o "Mitologias" [1957] do Barthes e "O sistema dos
objetos" [1967] de Baudrillard, demonstrando como o design, por si só, pode lançar argumentos de forte poder persuasivo.
De fato, é possível observar algumas publicidades nas quais somente o produto é apresentado sem maiores informações;
ou seja, a forma, por si só, dispensa as palavras. Em alguns casos também temos o corpo ao lado do produto, como se o
corpo adquirisse também um design. Percebemos esta tendência sobretudo nas publicidades de automóveis e de
perfumes. Trata-se da sedução dos objetos através da imagem, vista aqui numa dupla dimensão: como imagem etótica e
como imagem icônica. É por esta razão que julgo, no atual momento da Teoria Semiolingüística, ser necessário a adoção
de um quadro metodológico que apresente subsídios para a análise da imagem, evidentemente, este procedimento
metodológico deve considerar a relação imagem/texto como etapa final da análise.
É notório que sempre se considerou a imagem como um componente para o tipo de discurso em questão, como é
possível ver em Soulages (2002, 2008), Lysardo-Dias & Gomes (2005), Pauliokonis (2010), Monnerat [2010 - no prelo] e
acredito que após tantas obras publicadas sobre o estudo da publicidade, a profa Nelly aqui presente também tenha se
deparado com a questão da imagem. Poderíamos elencar tantos outros trabalhos, mas nos ateremos a estes.
Acredito que por uma questão de amadurecimento mesmo da Teoria Semiolinguística, o estudo dos dados
icônicos acabaram por ficar segundo plano em função de uma exploração maior do texto. Percebe-se, como uma tendência
da publicidade atual, um certo império da imagem e é por esta razão que os estudos sobre a imagem reclamam seu espaço
no momento atual da teoria, pelo menos é o que penso. Eis a minha proposta.

94
2- UM MODELO DE GRADE DE ANÁLISE PARA O TRATAMENTO DA IMAGEM FIXA E DO TEXTO:

Esta é ainda uma proposta inicial, ajustes podem vir a serem feitos no decorrer de nossas análises. A seguir,
descreveremos as categorias mostradas em nossa grade:

Dimensão situacional:
1. Sujeitos do discurso - aplicação do quadro dos sujeitos da linguagem concebido por Charaudeau (2008).
Relembro o fato de que a instância produtora da publicidade é sempre compósita, há o anunciante, a agência de
publicidade e, em alguns casos, pode haver alguém mais envolvido na produção que mereça destaque, como é o
caso do fotógrafo nos ensaios fotográficos de moda, por exemplo; O uso de celebridades também deve ser levado
em conta, pois possuem identidades sociais e discursivas que interferem na recepção da publicidade, eles
"emprestam" sua imagem para compor uma outra, relacionada ao produto.
2. Gênero - na concepção de Charaudeau 2004, o gênero é situacional, por esta razão encontra-se nesta dimensão.
3. Estatuto factual ou ficcional do gênero - é uma identificação importante, pois determina a leitura que se terá da
imagem. No caso da publicidade, de acordo com as pesquisas sobre a ficcionalidade que venho desenvolvendo,
há o que denomino ficcionalidade colaborativa (cf. MENDES, 2005). Ou seja, gênero é factual, mas temos o uso
de uma simulação de um mundo possível na sua composição.

Dimensão técnica da imagem


A base teórica desta dimensão são as obras: (i) "A imagem" de Jacques Aumont (1993) e (ii) "A cor como informação" de
Luciano Guimarães (2000).
1. Elementos plásticos - Análise dos elementos plásticos [relevantes] (superfície da imagem [composição], gama
de valores [luminosidade]; gama de cores [quais cores são predominantes, quais são secundárias, o que,
culturalmente e na situação dada, estas cores significam [Guimarães 2000]] e matéria da imagem [textura,
pincelada, granulação, pixel])
2. O papel do close. (se há uma relação de metonímia ou de metáfora; se há o efeito de aumentar a dimensão do
objeto ou não). Disposição dos objetos (centralizado, à esquerda, à direita, etc.); O que o ponto de vista da
imagem designa (um local real ou imaginário, particularização de uma questão, opinião ou sentimento a respeito
de uma questão) [ele é a orientação de um percurso do olhar]

95
3. Análise das funções da moldura (qual tipo de moldura: concreta, abstrata; quais de suas funções ficam
evidentes [visual, econômica, simbólica e representativa & narrativa])

Dimensão discursiva da imagem

1. Modos de organização do discurso: a imagem descreve, narra, argumenta? Para maiores informações,
consultar Charaudeau (2008).
2. Imaginários sociodiscursivos: são engendrados a partir dos saberes de conhecimento e de crença; os
imaginários se constroem através de sistemas de pensamento coerentes a partir de tipos de saberes que são
investidos tanto de: pathos (o saber como afeto); de ethos (o saber como imagem de si); quanto de logos (o
saber como argumento racional). Na concepção de Charaudeau (2007), o sintoma de uma imaginário é a fala.
Neste caso, podemos dizer que é também como as imagens são criadas. Para maiores detalhes: Charaudeau
(2006, 2007)
3. Categorias etóticas: são os tipos de ethé que vemos projetados na imagem. Nesta dimensão pode-se estudar
outras perspectivas do ethos, como as noções de ethos prévio, ethos discursivo, ethos intencionado e ethos
mostrado, de Maingueneau (2005). Temos várias categorias para o Discurso político levantadas por Charaudeau
(2006), como ethos de chefe, de inteligência, de potência, etc, que podem perfeitamente serem adaptados para
outros discursos. Nesta dimensão, acredito, as categorias são sugeridas pelos corpora analisados.
4. Categorias patêmicas: que tipos de efeitos patêmicos são visados? É importante ressaltar que, para Charaudeau
(2010), em AD podemos falar somente de efeitos visados.

Dados de apoio e/ou para-imagéticos -

São dados que vão auxiliar na análise da imagem, mas que devem ser buscados em outras fontes, são dados que
complementam a análise da imagem. É relevante dizer que a imagem não pode nos oferecer categorias semânticas e
sintáticas precisas como nos oferece o texto. Por esta razão, é importante a pesquisa em outras fontes e também
estabelecer, quando possível, uma relação inter-imagética, da mesma forma que temos as relações intertextuais. Por
exemplo, muitas vezes a publicidade se vale de obras da pintura como pano de fundo, a pintura original seria um dado de
apoio, pois depende de um conhecimento de mundo, de uma memória discursiva destas imagens para ser identificada.

96
3- ESTUDO DE CASO: MINALBA
PUB 1 PUB 2

Ambas as publicidades foram publicadas na revista "Boa forma" de maio/2010. A referida revista tem como
público-alvo o público feminino. No entanto, nas duas publicidades selecionadas podemos ver um direcionamento para um
público feminino e para o público masculino. Notamos a construção de imaginários sociodiscursivos cristalizados nas duas
publicidades, como veremos a no decorrer de nossa análise.
Do ponto de vista da dimensão situacional, teremos as mesmas características nas duas publicidades. A instância
comunicante é composta pelo anunciante grupo Edson Queiroz e pela marca Minalba de um lado e, de outro, pela agência
Acesso. O gênero situacional é publicidade e não encontramos nenhuma quebra de contrato ou transgressão de gênero. O
estatuto do gênero é factual. Embora a publicidade recorra sempre à ficcionalidade colaborativa para a concepção de seus
conceitos e modos de consumo dos produtos, o gênero é factual, pois encontramos o produto no mundo real.
Em relação à dimensão técnica da imagem, podemos observar algumas diferenças. Na PUB1 observamos as
cores da natureza retratadas vivamente. Há o predomínio do azul, do branco e do verde, sem muitas criações de matizes. A
luminosidade recai sobre o produto e não na personagem. Há uma aproximação do espaço em direção ao leitor da
publicidade. Na PUB2, As cores da natureza são em tons pastéis pelo efeito de distanciamento proposto pela imagem,
trata-se de mostrar o mais distante possível que vista pode alcançar. A luminosidade recai sobre o homem, ele está diante
da luz, que ilumina seu corpo. O produto é colocado no canto direito da página, não tão em evidência quanto na PUB1. É
notória também a diferença de design entre as garrafas de água.
O close e o ponto de vista mostrados também se diferenciam. Na PUB1 o corpo feminino está em uma relação
metonímica, é um fragmento sem rosto, despersonalizado. Já o corpo masculino na PUB2 aparece por inteiro, além de
estar iluminado, como já foi dito. O corpo feminino está numa posição de meditação, ou seja, de estagnação. Já o corpo
masculino está numa relação de movimento, de exploração e conquista do ambiente. A roupa feminina é branca, cor que
em nossa cultura simboliza pureza e a luz, ou seja, a religiosidade. A relação entre o feminino e natureza também pode ser
percebida no verde e no azul do céu, este também com nuvens brancas. Trata-se de um fragmento de ser que parece

97
buscar a integração entre o humano e o natural/divino. Não se pode deixar de pensar na figura da "mãe natureza" na
construção desta imagem de feminino. A roupa masculina possui uma palheta de cores muito próxima daquela usada nas
roupas do exército que têm como motivo a camuflagem, seria possível pensar, mas não sem questionamentos, que se trata
de uma roupa para aventura e a conquista. A imagem na PUB2 permite um percurso do olhar, é possível ver o espaço
contemplado/conquistado pelo personagem masculino. Na perspectiva do seu olhar, observamos dois mundos que se
mesclam: o mundo da natureza e o mundo da cidade que vemos no meio do vale, criando então relação axiomática
natureza x cultura. O personagem masculino circula entre os dois eixos enquanto que o personagem feminino fica
circunscrito a um único espaço, aquele de sua "religação" com a natureza.
Nas duas publicidades analisadas, a moldura possui uma função abstrata, com função de delimitação da
narrativa.Vale dizer que as duas publicidades se valem da mesma paisagem, só o enquadramento é que muda.
A dimensão discursiva da imagem pode nos trazer também muitas informações. Na PUB1, percebemos o modo
de organização argumentativo na imagem, o que é corroborado pela estagnação observada na dimensão técnica da
imagem. Podemos depreender um encadeamento do tipo "se A, então B": se você deseja a pureza da alma e a proximidade
com a natureza, logo, tome Minalba. A nosso ver, este tipo de estrutura argumentativa é muito próximo de preceitos
religiosos do gênero: "se você acredita em deus, logo terá a salvação", ou "se você acredita em deus, logo será uma das
eleitas para o seu reino". É preciso pensar que este tipo de argumento cria uma idéia de coletividade, mas ao mesmo tempo
opera uma exclusão, somente as eleitas que tomarem Minalba vão para o céu, ou seja, é o discurso religioso que perpassa
a publicidade. Na PUB2, pelo caráter de movimento também mencionado na dimensão técnica, observamos a presença do
modo de organização narrativo: o personagem-herói sente uma falta e sai em busca de uma conquista, temos um efeito de
temporalidade na imagem e de deslocamento no espaço.
Podemos observar, nos imaginários socio-discursivos, dois saberes: os saberes de conhecimento e os saberes de
crença. Na PUB1, como já o mostramos acima, são os saberes de crença que predominam por verificarmos uma relação
estreita com o discurso religioso. Já na PUB2, percebemos que os saberes de conhecimento é que são preponderantes: o
homem passa pela experiência de exploração do espaço. A parte textual das duas publicidades corrobora o que acabamos
de dizer, conforme transcrição abaixo:

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PUB1 PUB2

Minalba você no topo Cinco quilômetros


Duas horas e mil calorias
No topo, você está acima, superior 300 ml recompensam tudo.
Isolado por uma bela paisagem.
Entre rochas vivas, entre vales. A Minalba premium tem todas as
propriedades para dizer que é a mais pura.
Intocado. Isso porque ela nasce em um lugar único:
Campos do Jordão, a 1.700 metros de altura.
É contemplar do alto e sentir O local confere características singulares,
Que todos querem chegar lá, como riqueza de minerais benéficos à saúde.
Exatamente onde o in natura está. Beba uma água superior. Afinal, com tanta
pureza, não vai ser difícil se sentir próximo do
O topo é mais puro, céu.
Fica a alguns passos do céu
E distante do lugar comum. Minalba, você no topo

Você também pode estar no topo.


É só olhar pra cima.

Minalba, você no topo.

Na PUB1 o texto é em forma de um pretenso poema, ativando um imaginário ligando o feminino à poesia. Não
observamos dados técnicos, há o predomínio de saberes de crença no texto também: o "poema" poderia estar no campo da
opinião sobre algo, no campo das sensações que não podem ser refutadas, pois não se refuta uma emoção. Na PUB2
vemos, como na imagem, a preponderância dos saberes de conhecimento: existem dados do tempo, do percurso feito pelo
personagem e de seu gasto calórico. As propriedades da água são citadas, a localização de sua fonte e suas contribuições
para a saúde. Há uma menção ao céu que interpretamos como ambígua: seria possível pensar o céu como um espaço para
mais conquistas [usa-se a expressão "o céu é o limite" para quem não quer fronteiras], como sinônimo de liberdade; por
outro lado, o céu poderia fazer uma menção à religiosidade tal como foi exposta da PUB1; pessoalmente, tendo a adotar a
primeira opção como a mais próxima, já que dialoga com os outros elementos já mostrados aqui.
Ao observarmos estes imaginários sobre o feminino e o masculino mostrados no texto e na imagem, percebemos
que há uma recorrência a um imaginário bastante cristalizado em nossa sociedade: o feminino estaria ligado à emoção e á
estagnação e o masculino à razão e ao movimento.
Nas categorias etóticas percebemos um ethos de religiosidade e de resignação [temos: "Você também pode estar
no topo./É só olhar pra cima." ]; já na PUB 2 temos projetado um ethos de conquistador, de herói que vence os obstáculos.
Vemos também nestas categorias o reflexo dos imaginários cristalizados que citamos no parágrafo anterior.
Em relação aos efeitos patêmicos visados pelas publicidades, podemos afirmar que seja a empatia uma
dominante para os dois casos. É preciso que o leitor da publicidade se identifique com os personagens para que a
empreitada comunicacional proposta seja bem-sucedida. Evidentemente, os efeitos produzidos são outros e teríamos que
fazer uma análise da recepção para poder determiná-los.

99
4- CONCLUSÃO

Acredito ter podido dar uma pequena contribuição para o estudo da imagem via categorias da semiolinguística. No
entanto, muitos caminhos ainda precisam ser trilhados até que tenhamos algo mais definitivo.
Não deixa de ser intrigante o fato de que publicidades veiculadas numa revista dedicada ao público feminino
mostrem imaginários tão cristalizados sobre o feminino e o masculino, infelizmente, não é possível desenvolver melhor este
tema no momento.
São estas indagações que a publicidade pode nos trazer, contribuindo para que possamos entender melhor os
discursos que perpassam nossa contemporaneidade. Digamos que, em uma perspectiva semiolinguística, a publicidade é
um corpus que nos sorri.

5- REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas: Papirus, 1993.

CARNEIRO, A. O discurso na mídia. Rio de Janeiro: Oficina do autor, 1996.

CHARAUDEAU, P. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: MACHADO, I. L. & MELLO, R. (orgs.)
Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. p. 13-41

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.

CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes, c´est bien, les imaginaires, c´est mieux.In : BOYER, H. Stéréotypage, stéréotypes :
fonctionnements ordinnaires et mises en scène. Langue(s), discours. Vol. 4. Paris, Harmattan, 2007.p 49-63

CHARAUDEAU, P. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. In: MENDES, E. & MACHADO, I. As
emoções no discurso. Vol II. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 23-56

GUIMARÃES, L. A cor como informação: a construção biofísica, lingüística e cultural da simbologia das cores. São Paulo:
Annablume, 2000.

LYSADO-DIAS, Dylia & GOMES, Maria Carmem Aires. Teoria semiolinguística na análise da publicidade. In: MACHADO,
I.L., SANTOS, J.B.C. & MENEZES, W. (Orgs.). Movimentos de um percurso em Análise do Discurso. Belo Horizonte: Núcleo
de análise do Discurso/ Faculdade de Letras, 2005, p. 117-131.

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. IN: AMOSSY, R. As imagens de si no discurso. São Paulo:
Contexto, 2005. P. 69-92

MENDES, Emília. O conceito de ficcionalidade e sua relação com a Teoria Semiolinguística. In: MACHADO, Ida, L. et alii.
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MONNERAT, Rosane A imagem no discurso publicitário: Texto verbal e não verbal podem estar em conflito? In: MENDES,
E.; MACHADO, I.L. LIMA, H. Discurso e imagem. [no prelo].

PAULIOKONIS, Maria Aparecida Lino. Persuasão, sedução e topoi no discurso publicitário. In: MENDES, E. & MACHADO,
I. As emoções no discurso. Vol II. Campinas: Mercado de Letras, 2010. p. 81-94

SOULAGES, Jean-Claude. A formatação do olhar. In: Ensaios em Análise do Discurso. MACHADO, Ida Lúcia et. al. (org.).
Belo Horizonte: NAD/POSLIN/FALE, 2002, p. 267-281.

SOULAGES, Jean-Claude. Instrumentos de análise do discurso nos estudos televisuais. In: LARA, Gláucia Muniz Proença,
et al. (orgs.). Análises do Discurso Hoje, Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Lucerna, 2008, p. 254-277

100
SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Rio de janeiro: Ediouro, 2009

Emília Mendes

E-mail: emilia.mendes@ymail.com

Possui graduação em Letras, mestrado e doutorado em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2004) e pela Universidade de Paris XIII (dout. sanduíche). Atualmente, é professora adjunta da FALE-UFMG. site:
http://www.letras.ufmg.br/profs/emilia/

101
As armadilhas da mídia:
estratégias discursivas na publicidade

MONNERAT, Rosane
(UFF)

1) Apresentação

Este trabalho representa uma síntese das ideias discutidas no minicurso “As armadilhas da mídia: publicidade e
jornalismo”, ministrado por mim e pela Profª Lygia Trouche, no II Fórum Internacional de Análise do Discurso.

Apresentaremos, a seguir, algumas questões relativas às estratégias discursivas empregadas pelo discurso da
publicidade na tentativa de captação do público-alvo consumidor.

2) Por que as pessoas compram um produto?

Basicamente para experimentar um tipo qualquer de satisfação. Por isso, o produto deve ser apresentado de
maneira que o consumidor perceba a satisfação e o proveito que dele pode tirar.

A publicidade mais eficaz diz ao público não só o que ele precisa saber, mas, sobretudo, o que ele quer ouvir; é
um apelo - laço sensível entre um emissor (fabricante) e um receptor (o comprador), que estabelecem entre si um contrato
de comunicação.

A mensagem publicitária, como todo ato de comunicação social, supõe um contrato. Originário do domínio jurídico,
o conceito de contrato de comunicação ocupa posição central na Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso. Segundo
Charaudeau; Maingueneau (2004, p. 132), o contrato de comunicação define-se como “o conjunto das condições nas quais
se realiza qualquer ato de comunicação (qualquer que seja a sua forma, oral, escrita, monolocutiva ou interlocutiva)”. Nesse
contrato de comunicação que se instaura entre os sujeitos em interação, há sempre, portanto, uma intencionalidade
condicionada não só a um espaço de restrições, que constitui as condições que não podem ser infringidas pelos parceiros
sob pena de não haver a comunicação, como também e, ao mesmo tempo, a um espaço de estratégias, que compreende
os diferentes tipos de configurações discursivas de que o sujeito comunicante dispõe para satisfazer as condições do
contrato e atingir seus objetivos comunicativos.

O discurso publicitário está sempre às voltas com dois tipos de contrato, conforme as condições de produção em
que se encontra: o contrato do sério e o contrato do maravilhoso (CHARAUDEAU,1983).

No primeiro caso, supõe-se que se está diante de um público racionalista; por isso, será preciso desenvolver certa
argumentação para convencê-lo de que o produto é um auxiliar eficaz. É o caso dos anúncios das revistas especializadas.
Já no contrato do maravilhoso, parte-se da premissa de que o público é menos racionalista, mais inclinado ao sonho. Será
preciso desenvolver o aspecto narrativo do texto, fazendo com que o produto assuma um papel quase mágico. Tal
estratégia discursiva consiste em fazer-crer ao sujeito interpretante que há uma carência (o que desencadeia de sua parte

102
um querer-fazer) que pode ser solucionada graças a um auxiliar (o que desencadeia, por seu lado, um poder-fazer) e que,
portanto, ele não pode deixar de querer satisfazer seu desejo (o que finalmente desencadeia um dever-fazer).

3) Qual o papel das estratégias no discurso da publicidade?

O conceito de estratégia, termo derivado da linguagem militar, oriundo da arte de conduzir as operações de um
exército sobre um campo de ação, corresponde às possíveis escolhas que os sujeitos podem fazer na mise-en scène
comunicativa para alcançar seus objetivos. As estratégias discursivas, portanto, definem-se em relação ao contrato de
comunicação. Para o sujeito, trata-se inicialmente de avaliar a margem de manobra de que dispõe no interior do contrato,
para jogar com as restrições situacionais e as instruções de organização discursiva e formal. Essas estratégias são muitas e
dependem dos princípios de influência (o sujeito se pergunta: Como devo falar, para influenciar o outro?) e de regulação (o
sujeito se pergunta: Como devo fazer para manter a troca comunicativa?), podendo ser agrupadas em três espaços, cada
um correspondendo a um tipo de condição para a mise-en-scène discursiva. São as estratégias de legitimação, de
credibilidade e de captação, que não se excluem umas às outras, mas que se distinguem por sua finalidade.

A legitimidade determina a posição de autoridade que permite ao sujeito tomar a palavra, e depende da posição
que o sujeito ocupa nos domínios do Saber e do Poder. O domínio do Saber é o espaço dos discursos de verdade e de
crenças dos grupos sociais, e o domínio do Poder confere autoridade ao sujeito. A legitimidade pode ser resultado de um
processo que passa pela autoridade institucional, ou pela autoridade pessoal sendo, portanto, externa ao sujeito falante e
resultando da adequação entre a posição social do falante, a situação e o ato de fala. A credibilidade, por outro lado, resulta
de um julgamento feito por alguém sobre o que vê ou ouve e, por consequência, sobre a pessoa que fala. Consiste,
portanto, para o sujeito falante “em determinar uma posição de verdade de maneira que ele possa ser levado a sério”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 143).

A credibilidade depende do Saber Fazer do sujeito nos quatro tipos de atividade da linguagem: incitação (fazer
fazer, ou seja, levar o outro a fazer sem que ele perceba isso como uma ordem), informação (fazer saber algo ainda
desconhecido), persuasão (fazer crer, ou melhor, fazer com que o outro participe da mesma opinião do sujeito falante) e
sedução (fazer prazer ao outro, transferir-lhe seu estado eufórico). Vale dizer que o argumento publicitário repousa
largamente sobre o princípio do dever e não mais sobre o do poder, ou seja, faz-nos compreender que “devemos” comprar
o produto da marca X.

As estratégias de captação surgem quando o sujeito falante não está para seu interlocutor numa posição de
autoridade, porque se assim o fosse, bastaria dar uma ordem para que o outro a cumprisse. A captação, portanto, advém
da necessidade, para o sujeito, de assegurar-se de que seu parceiro na troca comunicativa percebe seu projeto de
intencionalidade, isto é, compartilha de suas idéias, suas opiniões e/ou está “impressionado” (tocado em sua afetividade).
Deve, então, responder à questão: “como fazer para que o outro possa ‘ser tomado’ pelo que digo?”.

A captação consiste, assim, em seduzir ou persuadir o interlocutor, provocando nele certo estado emocional. Com
esse objetivo, de acordo com Charaudeau (2006, p.347- 348), o sujeito pode escolher três tipos de atitudes discursivas:

- uma atitude polêmica, tentando antecipar, para eliminá-las, as possíveis objeções que outro(s) poderia(m) apresentar, o
que levará o sujeito falante a questionar certos valores defendidos pelo interlocutor ou por um terceiro. Trata-se de “destruir
um adversário” questionando suas ideias e, até mesmo, sua pessoa.

103
- uma atitude de sedução, propondo ao interlocutor um imaginário no qual desempenharia o papel de herói beneficiário.
Essa atitude manifesta-se quase sempre por meio de um relato no qual os personagens podem funcionar como suporte de
identificação ou de rejeição para o interlocutor.

- uma atitude de dramatização, que leva o sujeito a descrever fatos que concernem os dramas da vida, em relatos cheios de
analogias, comparações, metáforas etc. A maneira de contar apoia-se largamente em valores afetivos socialmente
compartilhados, pois se trata de fazer sentir certas emoções.

No discurso publicitário, as estratégias de convencimento do possível consumidor podem assim ser sintetizadas
(Brown,1976):

• uso de estereótipos (AMOSSY;PIERROT, 2004) - esquemas, fórmulas já consagradas que impedem qualquer
questionamento acerca do que está sendo enunciado, visto ser algo de domínio público, uma verdade
consagrada;

• substituição de nomes, com o intuito de influenciar positiva ou negativamente certas situações, como ocorre com
os eufemismos;

• criação de inimigos - o discurso persuasivo costuma criar inimigos mais ou menos imaginários (o sabão se
justifica contra a sujeira (BARTHES, 1964); o creme dental, contra as cáries etc.);

• apelo à autoridade - o chamamento a alguém que dê validade ao que está sendo afirmado (uso que a publicidade
faz do dentista, do médico, do atleta, para tornar mais verídica a mensagem);

• técnica de todo o mundo, segundo a qual se todo o mundo está fazendo isso, então, vamos fazer também;

• afirmação e a repetição são também estratégias largamente utilizadas no texto publicitário: no primeiro caso, tem-
se a certeza, o imperativo, já que a vacilação e a dúvida são inimigas da persuasão; no segundo, a possibilidade
de aceitação, pela reiteração constante. Uma variação dessa técnica é o uso de slogans e palavras-chave.

Na publicidade, há uma preocupação constante com a comparação do produto anunciado com os dos
concorrentes (CHARAUDEAU, 1994). Trata-se, muitas vezes, de uma comparação implícita, que é preciso perceber. Mas é
preciso dizer que, hoje em dia, a maioria dos produtos tem uma desagradável tendência a se assemelhar. Ao se proceder à
análise do produto em face de seus concorrentes, chega-se, às vezes, à total identidade entre dois ou mais deles. O caso
habitual é a banalidade do produto, que se acentua com a “estandardização”, a multiplicação das marcas e das campanhas
publicitárias: pão, leite, vestuário, refrigeradores, transportes aéreos, bancos, ou o que se quer, parecem todos fisicamente
indiferençáveis. E, no entanto, cada vez mais é necessário garantir a venda do produto individualizando-o, tornando-o mais
desejável que qualquer outro. Nos casos mais difíceis, a argumentação publicitária muda de natureza, procura fazer uma
representação psicológica original do produto, criando uma imagem que o distinga dos outros, dando-lhe uma
personalidade que já não é racional, objetiva, mas afetiva e subjetiva. Daí, a importância da estratégia da singularização.

104
4) As estratégias de singularização

De modo geral, a singularização pode ser explícita ou implícita. A primeira é expressa linguisticamente por meio da
qualificação do melhor: recurso ao grau, no caso, o grau superlativo relativo de superioridade (“Se P é o melhor, então P é o
único”), da qualificação do modelo, ou tipo do produto e, ainda, por meio da qualificação do novo: ideologia da modernidade
(o que é novo é único no seu gênero), muito usada em comerciais de automóveis. A segunda, por sua vez, é expressa
linguisticamente por meio de torneios lógicos, ou seja, de torneios
sintáticos inesperados, que despertam estranhamento e,
consequentemente, chamam a atenção do destinatário, como ocorre,
por exemplo, na peça publicitária seguinte, em que o “e” de contra-
expectativa, ou adversativo introduz um segmento – o adjetivo
axiológico afetivo (KERBRAT-ORECCHIONI,1980) “linda” - que causa
impacto, em relação ao segmento anterior, constituído por uma
sequência de atributos negativos.
Isto É, 18 de outubro de 1995.

Essa classificação de tipos de singularização, no entanto, está longe de esgotar o assunto. Em pesquisa recente,
com um corpus expressivo de peças publicitárias (MONNERAT, 2008), identifiquei outros mecanismos de singularização,
quais sejam:

• a relevância garantida ao Nome Próprio, nas publicidades de “marca”;

• a superposição da mensagem icônica à verbal (sobretudo no emprego da cor como elemento diferenciador);

• a singularização por seleção lexical;

• a estratégia de dizer uma coisa para significar outra, indo ao encontro do objeto de busca do consumidor;

• o recurso a inferências, na interseção entre o dito e o não dito, projetando a marca do produto acima de outras
semelhantes;

• a recategorização e a ressignificação de atributos vinculados ao produto;

• a definitivização na singularização do nome;

• os mecanismos de estranhamento;

- tudo isso na busca da formação de uma atitude, por parte do provável consumidor, que o leve à adoção de novos hábitos,
o que poderá implicar a compra do produto oferecido.

A publicidade dos nomes próprios, ou publicidade de marca, sempre foi mais satisfatória e eficaz que a publicidade
coletiva – publicidade dos nomes comuns. Conforme Péninou (1974, p. 101), “o nome próprio varre o caráter geral do nome
comum”, já que se superpõe à generalidade do nome comum, não apenas pela passagem do não nomeado (no sentido de

105
anônimo) ao nomeado, mas, sobretudo, pela passagem do realismo da matéria (nome comum) ao simbolismo da pessoa
(nome próprio). Senão vejamos, quando a geladeira é Brastemp, a cerveja é Brahma, a palha de aço é Bombril e Bic, a
esferográfica, a espécie investiu o gênero e o nome aderiu ao mercado.

As características do produto são, assim, apresentadas recorrendo-se à ligação do nome próprio a seus atributos:
traços de virtudes (reconhecimento da qualidade), de força (reconhecimento da autoridade) ou de singularidade
(reconhecimento da originalidade). Os nomes próprios dão vida aos produtos, já os adjetivos e substantivos comuns lhes
conferem o seu caráter.

Já dizia Péninou (op. cit, p. 95) que a função publicitária primordial visa à imposição de um nome, articulado a uma
marca. A marca não é uma criação gratuita, depende do cálculo de interesse da firma em fazer do consumidor um aliado.
Há uma clivagem nítida entre a venda de produtos com marca e a de produtos anônimos. A marca facilita, assim, a
formação de julgamentos de valor; cria um valor de referência, pois suscita comparações. Empresta ao produto, além de
sua realidade material, uma realidade psicológica, uma imagem formada de um conteúdo preciso, carregado de afetividade.
A “imagem da marca” confere ao produto a sua identidade - como fator de identificação - atribuindo-lhe seus traços
distintivos. Reafirma a noção de garantia e de responsabilidade, pois aquele que cria a marca e que vende seu produto sob
essa marca a assina. Por exemplo, a marca NESTLÉ implica segurança e qualidade. Passa-se da publicidade do nome
próprio à publicidade do atributo; do sujeito, ao predicado; do suporte do ser, ao portador do valor. A “personalidade” da
marca garantirá a sua individualidade e a impedirá de desaparecer no coletivo anônimo.

A articulação da mensagem verbal à visual, sobretudo, com o destaque às cores


(GUIMARÃES, 2004), é outro mecanismo de singularização relevante. No exemplo seguinte,
o contraste cor/ausência de cor faz toda a diferença.

Veja, 7 de fevereiro de 1996.

A definitivização é também marca linguística coadjuvante da singularização.

De modo geral, o artigo definido, funciona como anafórico (isto é, faz remissão à informação que o precede no
texto (ao passo que o indefinido, por remeter à informação subsequente,
funciona como catafórico). Weinrich (1973) mostra que o artigo definido
pode não só remeter a informações do contexto precedente, como
também a elementos da situação comunicativa e ao conhecimento prévio
culturalmente partilhado. No exemplo seguinte, o artigo definido introduz
a metáfora, cujo desvelamento se dá na interseção entre o dito e o não
dito, com base no conhecimento de mundo compartilhado dos
interlocutores.
Cláudia, janeiro de 2002.

106
Outro mecanismo bastante eficaz na singularização de um produto é o
recurso do estranhamento, já que a técnica do discurso publicitário, nos seus
melhores exemplos, parece baseada no pressuposto informacional de que uma
mensagem mais atrairá a atenção do espectador quanto mais violar as normas
comunicacionais adquiridas. O exemplo seguinte ilustra a questão:

Cláudia, setembro de 2006.

Das análises das peças publicitárias aqui apresentadas, podem-se deduzir


as características essenciais da mensagem publicitária. Primeiramente, a sua expressividade e, como um corolário, a sua
indiferença em relação às leis de linguagem normalmente admitidas, a sua liberdade total, temperada, ao mesmo tempo, de
certa preocupação estética.

Haveria, ainda, muitas questões interessantes (discutidas no minicurso) que poderiam ser aqui exploradas,
entretanto, a exiguidade de tempo e espaço, não o permitem. Apenas citaremos, como exemplo, os mecanismos de
intensificação da linguagem publicitária, que lhe garantem/conferem o caráter hiperbólico. Como processos de
intensificação na referência a P (produto), apontam-se, portanto, além da singularização, os seguintes mecanismos
(MONNERAT, 2004): a adjetivação, o recurso ao grau, o emprego intensivo de advérbios, a repetição, as construções em
gradação, o emprego da metáfora e da metonímia e o recurso a diferentes processos de formação de palavras, com ênfase
à derivação do tipo prefixal e sufixal, como marcas enunciativas dos sujeitos discursivos, num processo de construção de
identidades – ethos - que assegura a legitimidade e a credibilidade da palavra publicitária.

5) À guisa de conclusão

Estamos constantemente sendo submetidos a uma avalanche de produtos, que pouco, ou quase nada
significariam para nós não fosse a auréola que a publicidade lhes confere. Valendo-se do poder das palavras, ela garante a
esses objetos um status especial, mitificando-os: um relógio pode transformar-se em uma joia; um carro, em símbolo de
prestígio etc.

A publicidade é um modo de apreensão e de apropriação do objeto: se conversamos sobre objetos comuns (o


cigarro, o perfume, os detergentes etc.), forçosamente serão veiculados conteúdos publicitários, seja para designar, seja
para qualificar, já que não podemos desprezar a relação de intertextualidade que une o texto publicitário ao discurso do
cidadão comum, quando este se refere ao produto que adquiriu, ou que pretende adquirir. Falamos, então, inevitavelmente
das marcas, quer dizer, de um “construto” publicitário. A publicidade contribui, então, para o conhecimento dos objetos do
cotidiano, uma vez que é um instrumento de categorização do real. Selecionando, ela categoriza, a seu modo, o mundo.

No discurso publicitário, identifica-se um “jogo de máscaras” na interação que se estabelece entre os parceiros do
contrato comunicativo. Um é o encarregado de exaltar o produto, objetivando êxito no circuito comercial; o outro tem
conhecimento de que se procura suscitar nele o desejo de apropriação do produto elogiado. Em suma, os dois parceiros
sabem que estão implicados num tipo de ritual de “falso/aparência” (MONNERAT, 2003).

107
A partir do momento em que o consumidor, em função do jogo publicitário, deixa de perceber a comercialização do
produto, ou melhor, o jogo de interesses do anunciante, será capaz de pagar até mesmo um preço elevado, em troca dos
benefícios anunciados e isso porque a venda é uma operação emotiva. Vender e comprar são operações místicas.

6) Referências

AMOSSY, Ruth ; PIERROT, Anne Herschberg. Estereótipos y clichés. Buenos Aires: Eudeba, 2004.

BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Éditions du Seuil, 1964.

BROWN, J. A. C. Técnicas de persuasão. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

CHARAUDEAU. Patrick. Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compètence communicationelle. In:
Gragoatá, Niterói, no. 21, p. 339-354, 2. sem. 2006.

______. Les discours publicitaire, genre discursif. In: La publicité: masques et mirroirs, Mscope no 8, CRDP de Versailles,
1994.

______. Langage et discours. Eléments de sémiolinguistique (théorie et pratique). Paris: Hachette, 1983.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação: a construção biofísica, lingüística e cultural da simbologia das cores. 3aed.
São Paulo: Annablume, 2004.

KERBRAT-ORECCHIONI, C. L’enonciation dans le langage. Paris: Colin, 1980.

MONNERAT, Rosane Mauro. A publicidade pelo avesso. Niterói/Rio de Janeiro: EDUF, 2003.

______. “Não siga tendências. Siga suas idéias”. Publicação do XV Congreso Internacional da ALFAL, Montevideo, 2008.

______. “Vai levar a garantidona, a garantidaça, ou a garantidésima?” Mecanismos de intensificação no texto publicitário e
processos de formação de palavras. In: Revista Lingua(gem) / Instituto Latino-Americano de Pesquisas Científicas –
ILAPEC. Santa Maria:Pallotti, 2004.

PÉNINOU, Georges. O sim, o Nome e o Caráter. In: MARCUS-STEIFF, Joachim e outros. Os mitos da publicidade.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1974.

WEINRICH, H. Lenguage em textos. Madrid:Gredos, 1973.

Rosane Santos Mauro Monnerat, Doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ e com Pós-Doutorado na UFMG. É
Professora Associada III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFF. Atua na graduação e na pós-
graduação em Estudos de Linguagem, na linha de pesquisa “Teorias do texto, do discurso e da interação”. Desenvolve sua
reflexão teórica na interface linguagem/mídia; linguagem e sociedade, interessando-se, sobretudo, pela construção de
imagens sociais nos diferentes gêneros textuais. Possui trabalhos publicados nessas áreas de interesse, dentre os quais o
livro A publicidade pelo avesso (2003).

Email: rosanemonnerat@vm.uff.br

108
Aconteceu o diabo em Paris:
esquetes teatrais e pitoresco urbano

MOREIRA DE MELLO, Celina Maria


(UFRJ-CNPq)

A Análise do Discurso traz um espaço de reflexões e um conjunto de ferramentas de ordem teórica e metodológica que
têm feito avançar o conhecimento na pesquisa em literatura. Destaca-se o quadro teórico-metodológico desenvolvido por
Dominique Maingueneau, que permite interrogar os processos sócio-históricos de construção do literário e, sobretudo,
problematizar um objeto extremamente complexo, que recebe o nome provisório de Discurso literário.
Ao fazer um contraponto com as contribuições do formalismo, do estruturalismo e do pós-estruturalismo, destas se
destacam, entre outras, a autorefencialidade da função poética e as leituras do texto literário, como as da semiologia bathesiana
e da teoria lacaniana do sujeito, que privilegiam sua tessitura e o modo como se produz o significante único que me diz como
sujeito desejante. Podemos, neste caso, falar de uma atenção que privilegia a auto-refencialidade, e é fundamentada no modo
do dito e no dizer da singularidade. Trata-se de um caminho ainda bastante produtivo no que se refere à pesquisa na área de
literatura, mas não é o único.
A tensão que se produz entre os recursos e os limites linguageiros impostos pela coletividade e o dizer da
singularidade – e identificamos a oposição sociedade/indivíduo e ecos do binômio saussuriano langue/parole – pode ser
resolvida, ao se construir o objeto discurso. As problemáticas de investigação trazidas pelo trabalho de Dominique Maingueneau
(2004) sobre o discurso literário, nos levam a interrogar o recorte de territórios textuais e estéticos, o estatuto do autor e dos
artistas, a escolha dos gêneros discursivos, assim como o valor interpretativo dos espaços sociais de produção, de circulação e
recepção de bens culturais. E nos levam, igualmente, a questionar, no que se refere à literatura brasileira, as abordagens
fundamentadas nos parâmetros de modelo/cópia, influência/influenciado.
Para ilustrar tal afirmação, apresento alguns resultados do projeto que desenvolvo atualmente, com apoio do CNPq,
intitulado Do literário & do prosaico; interrogações sobre o realismo, o qual traz uma leitura de traços da estética realista, em
obras do romantismo francês, publicadas no período da Monarquia de Julho (1830-1848). A proposta é a de romper com a lógica
de estilos de época que se sucedem; romantismo e realismo são vistos enquanto integrantes de uma episteme moderna, como a
define Foucault em As palavras e as coisas (1966), coexistindo no mesmo espaço-histórico, em que escritores e artistas buscam
novas cenas genéricas. O objeto da pesquisa é constituído pelas cenas genéricas construídas por textos e imagens, em obras
em prosa ilustradas, que chamo provisoriamente de formas literárias experimentais, problematizando a estética realista na
literatura, na pintura e na gravura.
Ao interrogar o estatuto da ilustração, nestes livros, vemos se esboçar a busca de uma nova cena genérica, a de uma
narrativa curta, em prosa, com situações do cotidiano e personagens ordinários, que pode ser lida à luz de uma tipologia de
gêneros dramáticos e pictóricos. Esta cena genérica instaura um gênero narrativo que corresponderia, no teatro, ao vaudeville,
pequena comédia popular, e à comédia de costumes, e na pintura, à cena de gênero, ou seja, cenas de costumes, que
representam personagens e situações da vida cotidiana.

109
No espaço-histórico da Monarquia de Julho, registra-se uma crescente demanda por imagens, o que contribui para o
sucesso destes livros junto a um público que vê estimulada sua curiosidade por gravuras que alimentam seu imaginário e, como
todo imaginário, o constituem. Por outro lado, estes livros respondem a uma demanda por leituras que constroem, junto com
imagens da cidade moderna, um pitoresco urbano que serve de moldura a uma galeria de tipos, e um conjunto de situações com
os quais o leitor/ou a leitora podem se deparar rotineiramente.
O traço comum, ao vaudeville no teatro, à cena de gênero na pintura e à gravura, que encontramos na composição
desta cena genérica, é a trivialidade, o prosaismo. Justamente aquele traço que Hegel, em sua Estética, ao definir o romance
como "moderna epopeia burguesa", aponta como o vulgar, o perigo que espreita o romantismo quando tenta conciliar a prosa
com seu programa estético de busca da beleza sublime. O filósofo adverte que:

O que falta ao romance, contudo, é o estado geral, originariamente poético, do mundo, do qual procede a
verdadeira epopéia. O romance, no sentido moderno da palavra, pressupõe uma sociedade prosaicamente
organizada [...] Assim, um dos conflitos mais comuns e que melhor convêem ao romance é o conflito entre a
poesia do coração e a prosa das relações sociais e do acaso das circunstâncias exteriores. [...] aqui, deve-
se conceder ao poeta uma grande liberdade, pois lhe será difícil introduzir a prosa da vida real em suas
descrições, sem com isso permanecer ele próprio no prosáico e no vulgar. (HEGEL, 1998, p.135.)

Como conciliar as exigências da criação estética, a busca da beleza artística, "mais elevada do que a beleza da
natureza", a imitação da realidade e a "prosa das relações socais" , a "prosa da vida real" do mundo burguês? (HEGEL, 1998,
pp. 11 e 135).
A litografia de Monnier1 (1799-1877), intitulada Madame est encore sortie (A madame saiu de novo), que pertence à
série das Distractions (Distrações), publicada em 1832, representa uma temática presente em gravuras que geram um modo de
escrita literária, voltado para a apresentação dramatizada (mise en spectacle) de um pitoresco urbano constituído de cenas da
sociabilidade parisiense, comparáveis ao que vemos em cenas de vaudeville, no teatro. Para Champfleury (1821-1889), seu
biógrafo, é como um curto entremez que poderia ter sido encenado no teatro de Madame (também chamado de Gymnase),
estabelecimento em que os alunos do conservatório representavam peças de um ato, ou no teatro Montansier, especializado em
variedades e vaudevilles (CHAMPFLEURY, 1879, pp.31-32). Champfleury destaca a relação entre este tipo de ilustração, um
gênero dramático e uma sala de espetáculo, relação de que o próprio Monnier, aliás, era perfeitamente consciente; a gravura
compartilha valores de gênero, com o teatro : "Um esboço, uma indicação valem por uma comédia de costumes."
(CHAMPFLEURY, 1879, pp. 31-32).

1 Autor de teatro e de narrativas curtas, que se dedicou igualmente à pintura e à ilustração, e até mesmo à crítica de arte

110
Se eu destacar de uma folha coberta das prodigalidades desenhadas a lápis pelo humorista o esboço: a
Madame saiu de novo, estarei assistindo no teatro da Montansier a um incidente de vaudeville – nitidamente
desenhado e de uma comicidade achada sem esforço. Normalmente não é de meu feitio epilogar sobre as
imagens e escrever inutilmente uma página quando o lápis se expressa mais visivelmente com alguns
rabiscos; mas esta cena me seduz e vou tentar precisar bem seu espírito.
O protetor de uma jovem beldade é recebido por uma camareira cuja atitude decidida e ar esperto deveriam,
com certeza, fazê-lo pressentir que ele não era esperado. Moça terrível vinda não se sabe bem de onde. O
personagem é solene: ou um alto funcionário, ou um magistrado. Sua capa tem uma dignidade que é
admirável. A expressão do homem "bem conservado" permanece digna, apesar da desagradável decepção;
tanto assim que o protetor não acredita muito no que lhe responde a desaforada: - A Madame saiu de novo.
Atrás do biombo, vemos um chapeú maculino e garrafas vazias. Em um quarto ao lado, provavelmente
Julie se inebria com champanhe
É um senhor muito desapontado que havia imaginado passar, na companhia de Julie, alguns momentos
agradáveis, e que vai descer envergonhado (?) as escadas, dizendo com seus botôes a cada degrau: - A
Madame sai muito!
Este pequeno esboço dramático, que recomendamos pelo tratamento cuidadoso não parece uma cena do
teatro de Madame?
(CHAMPFLEURY, 1879, pp. 31-32).

Henry Monnier confunde-se, para seus contemporâneos, com a personagem de Monsieur Prudhomme, que ele criou
na coletânea de Scènes populaires dessinées à la plume par Henry Monnier (Cenas populares desenhadas a bico de pena por
Henry Monnier, 1831) e, por muitos anos, representou no teatro. Ora, As Cenas populares apresentam, em forma de curtos
diálogos ilustrados, uma defesa do ut pictura poesis. O prefácio destaca a liberdade na escolha dos gêneros, que, para o autor,
deveria ser permitida aos pintores que escrevem e aos escritores que pintam. Monnier evoca os desenhos de Hogarth (1697-
1764) e os quadros de Greuze (1725-1805), para apresentar narrativas e desenhos que remetem às peças de teatro do
Gymnase e de Variétés, destacando a circulação de gêneros entre a literatura (leia-se o teatro), a pintura e a litografia:

Que semelhança, que afinidade em certos esboços da sociedade dos senhores Scribe e Horace Vernet, nas
litografias tão ingênuas e espirituais dos Senhores Charlet, Eugène-Lami, Bellangé, Grenier, Decamp,
Grandville, e as peças do Gymnase e das Variétés. Ut pictura poesis, nunca esse provérbio encontrou uma
aplicação mais feliz.
(MONNIER, 1831, p. xj-xij)

Desenhando a partir de modelos ("sur nature"), sua atividade seria apenas a de um "editor" que mostra a vida de
personagens, que pertencem ao povo e à pequena burguesia, e expõe para o olhar do leitor, as alegrias e as "misérias da vida
privada". Falando de si na terceira pessoa, Monnier destaca que "[....] o autor é apenas o editor das ações e gestos das
personagens, ele quis dar a conhecer a linguagem familiar da pequena burguesia, reproduzir a cor e a energia da classe mais
humilde do povo." (MONNIER, 1831, p. xiij) O livro resultaria de um conjunto de observações e estudos, composições
acompanhadas de litografias.
O teatro não somente serve de comparante e modelo genérico, no que se refere ao tema, mas empresta sua estrutura
dialogada a muitas "narrativas". E é exatamente a forma dialogada das Cenas populares que caracteriza tais cenas e constitui,
para Champfleury, "um traço de união entre o livro e o teatro" (CHAMPFLEURY, 1879, p.64). Mas de que tipo de livro e de que
tipo de teatro? Como já foi referido, trata-se de teatro de vaudeville, muito próximo ainda dos jogos de sociedade que Monnier
praticava, nos salões que frequentava.
Seu biógrafo tenta, então, explicar o porquê do triplo fracasso da carreira de Monnier. Ele teria fracassado, enquanto
ator, por representar cenas que o público identifica como sendo de comédia, mas sem os traços exagerados do cômico.
Fracassou como contista do humor, pelo excesso de cenas "representadas" nas séries litografadas. Para seus críticos, "o leitor

111
se afoga em um oceano de banalidades cansativas" (CHAMPFLEURY, 1879, p.228). Ele foi, ainda, acusado de pintar com
distanciamento e sob um ângulo feio (en laid), os tipos do povo e da burguesia. Sua obra pictural consiste em aquarelas e
retratos de pessoas sem projeção, o que não lhe permitiu ser considerado um artista. Monnier circulou entre a literatura, a
pintura e o teatro, sem conseguir se projetar com sucesso, em nenhuma dessas esferas de atividade, não somente por não
poder ser classificado em uma única rubrica, hipótese de Champfleury e de seus contemporâneos, mas sobretudo por praticar
gêneros considerados de pouco valor pelos cânones de seu tempo.
No que se refere ao tipo de livro, chamo a atenção para este gênero híbrido, coletânea de contos/gravuras
dramatizados, que, explorando as novas técnicas de ilustração, associa uma observação satírica com o interesse pelos
costumes mais banais, em uma brevíssima leitura comparativa de três livros: Paris ou le livre des Cent-et-un. Publié chez
Ladvocat, libraire de S.A.R. le duc d'Orléans, 1831-1834 (Paris ou o livro dos cento e um); La grande ville nouveau tableau de
Paris; comique, critique et philosophique. Paris, Bureau Central des publications nouvelles, 1843 (A cidade grande novo quadro
de Paris; cômico, crítico e filosófico) e Le diable à Paris; Paris et les Parisiens. Paris, Hetzel, 1845 (O diabo em Paris; Paris e os
parisienses).
Paris ou o Livro dos cento e um é uma coletânea de cento e um contos, publicados entre 1831 e 1834, em 15 volumes,
cujos capítulos foram compostos graciosamente por cento e um autores, com a intenção de ajudar o editor Ladvocat, em uma de
suas várias falências. O editor informa que o livro fora anunciado com o título de Le diable boiteux à Paris (O diabo coxo em
Paris), mas que os autores haviam decidido que se chamaria simplesmente Paris ou le livre des cent-et-un (Paris ou o Livro dos
cento e um). O título, inicialmente previsto, reúne os dois fiadores da obra, que são Lesage (1668-1747), autor do Le diable
boiteux (O diabo coxo), romance picaresco de 1707, em que Asmodeu levanta os tetos de Madrid (na verdade Paris), para expor
o que ali ocorre no segredo das alcovas, e Sébastien Mercier (1740-1814), o autor dos primeiros Tableaux parisiens (Quadros
parisienses), publicados entre 1781 e 1800. No mesmo aviso do editor lemos:
O plano deste livro é muito simples. Devemos examinar a Paris moderna; devemos mostrá-la tal como é,
incerta, caprichosa, enraivecida, impaciente, pobre, entediada, ainda ávida de arte e de emoções, mas difícil
de se emocionar, muitas vezes absurda, às vezes sublime; devemos fazer para a Paris de hoje aquilo que
Mercier fez para a Paris de seu tempo, com uma diferença, é que desta vez os quadros/ as cenas de
costumes serão raramente escritos em um frade de pedra. (Paris ou le livre des cent-et-un, 1831-1834, p.VI)

Os quinze volumes de contos, cujos autores são escritores em sua maioria consagrados, não são ilustrados com
litografias, mas com a técnica da xilogravura de topo, que em 1831, era "usada para frontispícios, vinhetas de título, ornatos
marginais, letras capitulares, fundos de lâmpada, vinhetas inseridas no texto ou em páginas destacadas." (MELLO, 2010, p. 74).
Contudo, o texto ainda assume o papel central.

112
Ilustração 1 – Paris ou le livre des cent-et-un. Monnier.
Xilogravura de topo. 1831

A vinheta de título, desenhada por Monnier, traz alguns detalhes, bastante significativos:
1) no topo do mundo, o diabo Asmodeu marca bem que o livro não se filia a correntes da literatura fantástica ou
satânica, nem à exploração do sobrenatural do romantismo frenético. Asmodeu era, no romance de Lesage, apenas um diabo
coxo, "o diabo do inferno mais vivaz e mais operoso" (LE SAGE, 1819, p. 4), aquele que promove os casamentos rídiculos, "o
luxo, a luxúria, os jogos de azar e a química" (LE SAGE, 1819, p. 5), e se diverte com as situações que provoca. Asmodeu é,
também, em Paris ou o Livro dos cento e um, o título do primeiro conto de autoria de Jules Janin, que descreve a personagem
como "o diabo da observação, que se ocupa da crítica de costumes" (JANIN, 1831, p.4) e que hoje inaugura "uma nova maneira
de escrever comédias" (JANIN, 1831, p.10).
2) à esquerda de Asmodeu, vemos a lista dos autores que compõem a tradição literária a que se filia este livro: Joseph
Addison (1672-1719), Laurence Sterne (1713-1768) autor do Tristam Shandy – 1759-67), Henry Fielding (1707-1754) autor de
Tom Jones (1749), Goldsmith (1728-1774), todos da literatura inglesa, M. de St Foix (1698-1776) historiador e autor de
pequenas comédias e Jacques-Antoine Dulaure (1755-1835), historiador da cidade de Paris, e, finalmente, o já mencionado
Louis-Sébastien Mercier. São autores que circulam entre a novela, o teatro e a representação histórico-literária do cotidiano.
Além de mostrar claramente em que tradição literária se insere o livro, a menção ao Diabo coxo de Lesage, no aviso do editor, e
a vinheta de título envolvem o leitor em um tour simpático mas pouco edificante pela realidade "escondida" parisiense.
3) o terceiro detalhe é a lanterna mágica, caixa ótica, inventada no século XVII, que projeta em uma superfície cenas
coloridas em uma placa de vidro, passada invertida diante da luz de uma vela ou lâmpada de petróleo. A lanterna mágica passa,
rapidamente, do domínio da ciência ótica para o âmbito do espectáculo, sobretudo no século XVIII, com a projeção de
animações, a partir de placas mecanizadas. Esse espetáculo é visto como uma exibição proporcionada por um aparelho ótico
que "precede" o cinema (Cf. SILVA, 2004). A lanterna mágica foi muito usada por charlatães, em espetáculos de projeção de
imagens chamado de fantasmagorias, que exploram a fascinação pela morte, mas que também podem combater a credulidade
do público, ensinando a diferença entre ser e parecer. E depois passa a ser utilizada em espetáculos de feira, envolvendo um
intenso trabalho de artesãos, pintores e gravadores, capazes de jogar com efeitos de luz e sombra (Cf. SILVA, 2004, p.2).

113
Correndo o risco de um excesso de simplificação, poderíamos dizer que, a presença da lanterna mágica na vinheta de
título de Paris e o livro dos cento e um é o índice de um posicionamento estético de equilíbrio entre os temas do cotidiano e sua
representação teatral "fantasmática", graças ao trabalho dos desenhistas, na arte da gravura. Ficamos tentados a conferir a esta
vinheta um papel de comentário figurado daquilo que espera o leitor, em um jogo entre o visível e o escrito, a ilusão e a
realidade. Mas a gravura, por assim, dizer está nas margens e é marginal, como anunciam, na vinheta de título, o lugar que
ocupam, fiadores e lanterna mágica, na oposição alto/baixo, equerda/direita. À direita do leitor, a mão esquerda de Asmodeu, e
em sua mão direita, à esquerda do leitor, a bengala de "mestre de cerimônias". E também a oposição entre a aparência e a
identidade das figuras que se distribuem a sua volta: figuras respeitáveis, vestidas, de peruca, o escritor; uma figura meio
despida, um cadáver? atrás dela a morte.
Alguns anos depois, revemos o diabo e a lanterna mágica, em um livro cujos referentes principais não são mais
aqueles do século XVIII. Trata-se, igualmente, de uma coletânea de contos, voltados para a representação de cenas do
cotidiano parisiense e as persongens que circulam por Paris. Como descreve Michel Melot, a imagem adquire um outro estatuto:
"a imagem por sua vez obriga [o escritor] a modificar a inflexão do texto" (MELOT, 1990, p. 334). Para nos limitarmos à vinheta
de título, temos aqui algo bastante inusitado: uma litografia de Gavarni, situada na página oposta (página par) à folha de rosto
(página ímpar), que habitualmente não deve ter uma mancha sobrecarregada, para não desequilibrar aquela da folha de rosto
(ARAÚJO, 1986, p.432). O livro foi publicado por Hetzel, em 1845, e tem como título Le diable à Paris (O diabo em Paris) e
como subtítulo Paris et les Parisiens, moeurs et coutumes, caractères et portraits des habitants de Paris, tableau complet de la
vie privée, publique, politique, artistique, littéraire, industrielle, etc, etc. (Paris e os Parisienses, hábitos e costumes, caráteres e
retratos dos habitantes de Paris, quadro completo de sua vida privada, pública, política, artística, literária, industrial, etc, etc). É
um livro de autoria coletiva, publicado em forma seriada em 1844 e em dois volumes em 1845-1846, que retoma a fórmula do
Livro dos cento e um, mas dando-lhe um fio condutor que articula todas as narrativas, a missão que Satã dá a um de seus
demônios, Flammèche. Este deve dar conta semanalmente por escrito a seu mestre, o mais exatamente possível, de tudo o que
ocorre em Paris: "Pretendo saber por você tudo o que ali ocorre e que, uma vez suas anotações enviadas, saibamos de Paris
tudo o que há de bom, tudo o que é possível saber a respeito, diabolicamente falando" (STAHL, 1845, p. 23).2

2
J.P. Stahl é o pseudônimo do editor Pierre Jules Hetzel, quando este assume o papel de escritor.

114
Ilustração 2 – Le diable à Paris. Gavarni. Litografia. 1845

O diabo representado na vinheta não é mais Asmodeu, mas Flammèche, um diabo preguiçoso, secretário particular de
Satã, que em vez de cumprir pessoalmente sua missão, recolhe em uma gaveta, A gaveta do diabo, todas as contribuições dos
vários escritores que o ajudarão na tarefa. O livro, que traz a menção à contribuição dos desenhistas em sua folha de rosto, teve
imenso sucesso, devido em grande parte a seus dois ilustradores, Bertall, anagrama de Albert d'Arnoux (1820-1882), ilustrador
das obras completas de Balzac e Gavarni, pseudônimo de Sulpice Guillaume Chevalier (1804-1866) (cf. MILNER, 2007, p. 651).
Gavarni representa Flammèche como um diabo disfarçado de dandy, usando fraque, que segura uma lanterna mágica
na mão esquerda, enquanto examina com uma luneta em sua mão direita, o mapa de Paris. Nas costas carrega a cesta de
palha, em que recolhe os textos escritos por seus "colaboradores". Max Milner, em seu tratado sobre Le diable dans la littérature
française (O diabo na literatura francesa, 2007), registra que Flammèche seria o próprio editor Pierre Jules Hetzel (1814-1886), o
mesmo J.P. Stahl do Prólogo, enquanto Satã seria uma charge representando o rei Luis Filipe (cf. MILNER, 2007, p. 651).
O que aconteceu? entre as duas coletâneas, a gravura assumiu um estatuto comparável ao da literatura, ou pelo
menos, comparável a um certo tipo de literatura industrial. As edições ilustradas se acumulam e o leitor exige cada vez mais a
presença de imagens. Isto se torna explícito na apresentação de um livro anterior, que compartilha a mesma cena genérica, a

115
mesma temática e que se insere na mesma tradição literária. Trata-se do segundo volume de La grande ville nouveau tableau de
Paris; comique, critique et philosophique (A cidade grande; novo quadro de Paris, cômico, crítico e filosófico). Sua Advertência
ao leitor (Avis au lecteur) pontua o fato:
Para concluir algumas palavras sobre a execução material. A ilustração é doravante um luxo necessário.
Neste segundo volume, ela foi reduplicada por meio de uma gravura destacável que acompanhará cada
capítulo, ou por um frontispício que trará um tema com grandes dimensões (SOULIÉ & alii,1843, p.4)

REFERÊNCIAS

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BERALDI, HENRI. Bertall. In: ___. Les graveurs du XIXe siècle; guide de l’amateur d’estampes modernes. Vol. II Paris, Librairie
L. Conquet, 1885. p. 45-49 [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado em 20/10/2010]

CHAMPFLEURY Henry Monnier, sa vie, son oeuvre, avec un catalogue complet de l'oeuvre et cent gravures fac-similé. Paris,
Dentu, 1879. [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado em 1/04/2010]

FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris, Gallimard, 1966.

HEGEL. Esthétique. Textes choisis par Claude Khodos. Paris, PUF, 1998.

JANIN, Jules. Asmodée. In: Paris ou le livre des Cent-et-un. T.1 Publié chez Ladvocat, libraire de S.A.R. le duc d'Orléans, 1831.
p.1-15 [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado em 16/02/2010]

LE SAGE. Le diable boiteux augmenté des béquilles du diable boiteux. Paris, Dabo, Tremblay, Feret et Goyot, 1819.
[Documento eletrônico, Google.books, consultado em 22/02/2010]

MAINGUENEAU, Dominique. Le discours littéraire; paratopie et scène d'énonciation. Paris, Armand Colin, 2004. (Discurso
literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo, Contexto, 2006).

MELLO, Celina Maria Moreira de. A xilogravura romântica em L'Artiste (1831-1838). In: NOVA, Vera Casa; ARBEX, Márcia;
BARBOSA, Márcio Venício. Interartes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 72-91.

MELOT, Michel. Le texte et l’image. In: CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean. Histoire de l'édition française; le temps des
éditeurs. Paris, Fayard, 1990. p. 329-348.

MILNER, Max. Le diable dans la littérature française; de Cazotte à Baudelaire 1772-1861. Paris, José Corti, 2007.

MONNIER, Henry. Scènes populaires dessinées à la plume par Henry Monnier, augmentée de deux scènes et de deux vignettes.
2ed. Paris, Levavasseur, 1831. [Documento eletrônico, New York Public Library, Google.books, consultado em 06/04/2010]

Paris ou le livre des Cent-et-un. Publié chez Ladvocat, libraire de S.A.R. le duc d'Orléans, 1831-1834. [Documento eletrônico,
gallica.bnf.fr, consultado em 16/02/2010]

SILVA, Maria Cristina Miranda da Silva. Lanterna Mágica: fantasmagoria e sincretismo audiovisual. In: XIII Encontro Anual da
Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em comunicação, 2004, São Bernardo do Campo. Caderno
de Texto: GT Produção de Sentido nas Mídias. Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches - FASA, 2004. p. 85-92.
[Documento eletrônico, http://www.unicap.br/gtpsmid/pdf/CD-MariaCristina.pdf/ consultado em 07.09.2010]

116
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publications nouvelles, 1843. [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado em 28/06/2010]

STAHL, J.P. & alii. Le diable à Paris; Paris et les Parisiens. Paris, Hetzel, 1845. [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado
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STAHL, P.-J. Prologue, comment il se fit qu'un diable vint à Paris et comment ce livre s'ensuivit. In: ___. Le diable à Paris; Paris
et les Parisiens. Paris, Hetzel, 1845. p. 1-30 [Documento eletrônico, gallica.bnf.fr, consultado em 12/04/2010]

CURRÍCULO DO AUTOR E E-MAIL.

Celina Maria Moreira de Mello é Professora Titular de Língua e Literatura Francesa da UFRJ, atuando no Departamento e no
Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, onde coordena, juntamente com Dominique Maingueneau, Acordo de
Cooperação com a Universidade de Paris XII. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, desenvolvendo o projeto
Do literário & do prosaico; interrogações sobre o realismo.

e-mail: celina.mello@pesquisador.cnpq.br

117
Construção de identidades: estratégias enunciativas
em notícias e reportagens impressas

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino


(UFRJ/CIAD-RIO)

Introdução
Este trabalho contempla uma análise qualitativa, com base em dados quantitativos, sobre o acidente aéreo com o
avião da TAM, ocorrido em Congonhas /São Paulo, em julho de 2007, veiculado em três jornais do Rio e de São Paulo, por
meio de uma comparação horizontal do mesmo fato noticiado pelos veículos midiáticos e uma comparação vertical, que
recobre a data do acidente até o arrefecimento da notícia na primeira página. A pesquisa ainda em andamento tem como
continuidade a observação de notícias e reportagens sobre uma mesma temática, publicadas em dois veículos cariocas- os
Jornais O Globo e o Jornal Extra, durante determinado espaço de tempo.
Uma das hipóteses iniciais é a de que o índice de ocorrências de marcas de subjetivemas presentes em cada
jornal permite observar o grau de maior ou menor engajamento dos enunciadores em relação aos fatos e, ao mesmo tempo,
constitui fonte para a criação de identidades dos leitores dos jornais analisados. Tendo por objetivo verificar como se dá,
enfim, o evento enunciativo por meio de índices observáveis que deixa no enunciado, analisam-se as operações de
identificação e atribuição mais subjetivas que evidenciam a construção da identidade dos atores discursivos (ethos), com
base em estereótipos e valores aceitos socialmente (topoï). Como aparato teórico, adotam-se princípios de base sócio-
comunicacional da Teoria Semiolinguística, buscando compreender como se dá a inserção da subjetividade na língua e
como os sujeitos sociais e discursivos movem-se em espaços de restrição e de manobras, em determinadas situações, com
o fim de construírem juntos o ato de comunicação midiático.
A proposta leva em consideração a necessidade de se analisar a complexa rede de produção de sentido, por meio
do jornalismo escrito, fundamentando-se na hipótese de que é possível descrever-se o processo de apreensão do seu
significado, por parte do receptor, pelo reconhecimento das operações enunciativas utilizadas na co-produção de um texto,
o qual deve ser visto como uma operação discursiva.

2. Justificativa da pesquisa

Partindo-se do fato de que os os educandos hoje comportam-se mais como telespectadores ou internautas que
leitores, propriamente ditos, de livros ou de revistas especializadas, salienta-se a necessidade de o meio escolar
preocupar-se em formar os alunos no sentido de serem bons intérpretes dos símbolos da cultura midiatizada, o que justifica
a escolha do corpus - (reportagens sobre o acidente com a avião da TAM, em São Paulo, em julho de 2007) - e a análise
contrastiva de publicações do mesmo fato por três periódicos: Jornal Folha de São Paulo e O Globo e Jornal do Brasil
(Rio de Janeiro); a pesquisa fundamenta-se nas propostas da Teoria Semiolinguística do discurso e propõe-se a analisar os
dispositivos estratégicos utilizados pelos jornais com o fim de aferir legitimidade e credibilidade a uma imagem dos
enunciadores veiculada pela mídia informativa jornalística; objetiva-se, assim, poder contribuir para as atividades
profissionais de docentes, no objetivo de formar a consciência crítica do alunado, quanto à apreensão da significação das

118
operações discursivas, utilizadas na construção do fato noticioso, e do significado ideológico que subjaz aos textos
informativos da imprensa escrita.
Dessa forma, numa era de comunicação globalizada, como a que estamos vivenciando, torna-se necessário e
produtivo compreender a forma como se estrutura discursivamente cada sociedade e como o discurso se constitui um
espaço de operações estratégicas para expressões individuais. Os atuais enfoques teóricos relacionados ao estudo do
discurso interligam-se, de certa forma, pois todos tiveram suas bases comuns no desenvolvimento das recentes teorias da
Enunciação. Esse conceito tornou-se central na atual campo de pesquisa da Análise do Discurso, por se referir
preferencialmente às modalidades verbais advindas da situação discursiva e da interação entre os participantes do ato
enunciativo. Essas colocações justificam a escolha do aparato teórico, que embasa a presente pesquisa.
Configura-se a AD hoje como uma disciplina que, embora dialogue com outros recortes teóricos, apresenta um
quadro teórico próprio, que lhe permite abordar diferentes aspectos da comunicação social com rigor metodológico. Seu
procedimento interpretativo tem como base a comparação entre discursos institucionalizados, produzidos por grupos sociais
diferentes. (cf. Dicionário de Análise do Discurso, edição pela Editora Contexto, 2002). Para tanto, dispõe de uma
metodologia de análise que se fundamenta na comparação entre gêneros e entre situações de comunicação e pode,
assim, colocar em confronto discursos de diferentes sociedades. Essa é a condição mesma para seu trabalho de
interpretação que tem como base a descrição e a comparação entre discursos, aparentemente similares, produzidos por
grupos sociais diferentes e caracterizados por contratos comunicativos bem delineados.
Um dos aspectos fundamentais desse tipo de análise é o foco nos diferentes gêneros de discursos. Com efeito,
as produções linguageiras dos membros de uma comunidade linguística fundam-se em um certo número de contratos - que
participam das normas sociais e discursivas que imperam na comunidade. Mas essas normas não são as mesmas em
cada cultura. Daí a necessidade de uma análise comparativa, como a que se delineia aqui em uma investigação de
periódicos do Rio e de São Paulo em um determinado espaço de tempo, i.é, mês de julho de 2007.

3. Síntese bibliográfica
Constituem-se como embasamento teórico desta pesquisa as noções de intersubjetividade de Benveniste (1976),
aliadas aos princípios da Pragmática Enunciativa (Austin e Searle) e aos avanços das teorias do Texto visto como discurso,
ou em outros termos, como resultante da co- construção dinâmica de um ato de comunicação linguageira, conforme pregam
os princípios da teoria Semiolinguística, uma das recentes correntes da Análise do discurso.
Destacam-se, assim, como de fundamental relevância, as contribuições mais recentes dos linguistas Patrick
Charaudeau (2005, 2006, 2008) e Dominique Maingueneau (2003, 2006). Aquele pela visão da dinamicidade do ato
comunicacional, como uma troca linguageira entre parceiros portadores de um propósito de influência e dirigidos por um
contrato específico de comunicação e este, por considerar a intersubjetividade dos atores envolvidos em uma determinada
cena enunciativa, e todos também restritos a um comportamento linguístico – discursivo.
Uma das hipóteses que fundamentou esta pesquisa é a de que não se pode construir uma teoria do discurso,
como jogo de comunicação, sem se levar em conta um espaço externo e um espaço interno de construção do sentido –
fatores que conduzem às dimensões situacional e linguística da significação discursiva.
Em termos gerais, as perspectivas teóricas permitiram analisar a importância do ato da enunciação em si, numa
abordagem do discurso mais preocupada com o fenômeno das interações sociais e com a descrição da problemática
argumentativo/persuasiva da comunicação humana. Ao colocar em relevância as relações entre os protagonistas da
enunciação, a construção de sua imagem (identidade) e função social (ethos), a Análise Semiolinguística do Discurso
instaura a reconstrução do espaço interativo como um dos elementos significativos mais importantes e até fundamentais do

119
ato de linguagem.
Nesse quadro teórico interdisciplinar, dentro do qual cada enunciado deve adquirir sentido, é de fundamental
importância, para a Teoria Semiolinguística, a noção de contrato de comunicação, responsável pela estruturação da matéria
linguística, em vários tipos de textos, funcionalmente subdivididos em gêneros textuais, manifestos em quatro modos de
organização discursiva, a saber: modos enunciativo, narrativo, descritivo e argumentativo.
Primeiramente, define-se a noção de contrato comunicativo como o conjunto de requisitos a serem observados em
uma determinada situação, para que todo ato de linguagem se realize. Esse contrato pressupõe a existência de um
instância subjetiva formada por um sujeito comunicante e por um sujeito interpretante, que devem se reconhecer como
parceiros de comunicação e se comprometer com o princípio de alteridade (Bakhtin, 2001); para tanto, devem partilhar um
saber de base comum aos dois, como reza o princípio da pertinência. Esses parceiros constituem-se também como seres
discursivos, ou sujeitos enunciador e destinatário, que se caracterizam como atores/protagonistas ou entidades do discurso.
Cada um desses sujeitos do ato de linguagem busca influenciar o comportamento do outro para atingir seu objetivo, que
pode ser tanto o de informar, como o de persuadir, ou de incitar, por exemplo, conforme o princípio de influência. A não
aceitação dessa primazia ou da interação por parte de um dos parceiros pode ocasionar quebra do contrato. Para que isso
não ocorra, os parceiros utilizam-se de operações estratégicas que visam a estabelecer a comunicação, que fica
assegurada pelo princípio de regulação, ou de restrições linguístico-discursivas de variados tipos, segundo a organização
dos discursos.
Um outro princípio básico em que se assenta o contrato de comunicação é o do direito à palavra, que o sujeito
interpretante concede a seu interlocutor, seguido pelo reconhecimento de sua capacidade de saber, de poder e de saber
fazer. São esses alguns fatores básicos responsáveis pela legitimidade e credibilidade das ações, só aceitas porque
reconhecidas pelas diversas competências situacionais, semântico-discursivas e pragmáticas dos interagentes.
Para completar esse quadro enunciativo, exige-se o reconhecimento e a obediência de ambos a um sistema
comum de valores (topoï) que podem ser de ordem linguística e situacional. Assim todo discurso, por sua própria
manifestação, institui uma “mise-en-scène" enunciativa que também o legitima. No âmbito dessa cena discursiva
constroem-se imagens dos ethé das entidades subjetivas, que também devem ser consideradas como resultantes de
operações enunciativas, realizadas com finalidades argumentativo-persuasivas. A partir do reconhecimento desses ethé
dos interagentes e dos topoï presentes nos discursos, são analisadas as operações discursivas de transformação
(identificação, caracterização/atribuição, processualização e relação) e de transação ou de organização textual, realizadas
pelos enunciadores na construção de notícias e reportagens jornalísticas; os objetivos desta pesquisa buscam delinear as
imagens dos enunciadores, que estarão refletidas nos sentidos dos discursos analisados.

4. Delimitação do objeto de estudo


Objeto de estudo: análise da configuração lingüístico-discursiva de notícias e reportagens publicadas em três
jornais – dois cariocas e um paulista –, no do mês de julho de 2007, tendo como foco principal o acidente com o avião
Airbus da TAM, e as notíciase reportagens, publicadas pelo s Jornais O Globo e o Extra, sobre uma mesma temática,
durante o mês de março de 2010, sob a perspectiva da Teoria Semiolingüística de análise do discurso.

5. Objetivos principais:

- descrever o mecanismo dos processos de designação, de atribuição e de processualização utilizados nos


processos de semiotização do mundo pelos três jornais;

120
- analisar as operações enunciativas estratégicas usadas com finalidade persuasiva, a fim de identificar aspectos
convergentes e divergentes das duas culturas brasileiras em foco e que permitem generalizações descritivas e/ou
explicativas de processos enunciativos em textos da mídia;
- pretende-se, também, contribuir para o desenvolvimento de uma metodologia de ensino de leitura, interpretação e
produção de textos da mídia impressa.

6. Hipóteses
Entre as várias opções teóricas em Análise do discurso, optou-se pela Teoria Semiolinguística, porque esta tem
por fim estudar o discurso como resultante da realização de contratos restritivos impostos por um grupo social e por um
projeto de comunicação do sujeito comunicante, ligado e restrito a esses contratos.
Isso implica, consequentemente, considerar as hipóteses seguintes:
a) os discursos produzidos no grupo social são sempre os discursos de atores sociais que se dirigem a atores
sociais. Essa perspectiva desenvolve-se em uma problemática da alteridade: todo sujeito define-se na medida em que se
dirige a um outro, o que faz disso um processo constituinte de si mesmo. Trata-se da hipótese bakhtiniana do “ato de
linguagem” que se constitui como dialógico e interdiscursivo. (Bakhtin 2001)
b) esses discursos são produzidos por um sujeito que possui uma dupla identidade: uma externa do tipo social e
psicológico e uma interna, do tipo discursivo. Assim, postula-se que o ato de linguagem depende de um sujeito que possui
dupla identidade, entre as quais se estabelece um jogo de correspondências, de máscaras e de simulação para se
construir os lances /expectativas - os “enjeux”- dos sentidos sociais.
c) os objetos construídos por esse tipo de análise são do tipo empírico constituídos -concretizados em textos
reais produzidos em situações específicas de comunicação. Desse modo, essa AD situa-se numa problemática do
reconhecimento, problemática essa que, partindo dos traços enunciativos da superfície de um texto (índices
semiológicos), busca produzir interpretações sobre os sistemas de significação que estão subjacentes a esses índices, por
meio de operações inferenciais.
d) o texto resulta, então, das características da situação na qual se inscreve e de uma certa “mise-en-scène” dos
modos de organização do discurso (o enunciativo, o narrativo-descritivo e o argumentativo).

A situação é definida primeiramente tanto pelo conceito de ”contrato de comunicação”- o qual determina a
“finalidade “ do ato de comunicação, a “identidade “ dos parceiros da troca linguageira, assim como os "papéis" que eles
devem representar, para serem legitimados no ato de linguagem, e também pelo conteúdo “proposto”, sobre o qual
repousa a troca linguageira e o dispositivo no qual se inscreve. A situação de comunicação constitui, assim, o fundamento
de uma teoria dos “gêneros do discurso ”, cuja base é sua funcionalidade social.
Os modos de organização discursiva são:
- o modo enunciativo, que marca e define os lugares dos sujeitos da linguagem em interação, é uma categoria de
discurso que aponta como o sujeito falante age na encenação do ato de comunicação;
- os modos descritivo-narrativo que contam um fato e testemunham os acontecimentos do mundo e as
necessidades (faltas) que eles preenchem pelo desencadear da lógica narrativa;
- e o modo argumentativo, que organiza o racional e insere os argumentos em um sistema social de valores
sociais, e que consiste em efetuar operações abstratas de ordem lógica, destinadas a explicar ligações de causa e efeito
entre fatos e acontecimentos;
- fundamentado nesses contratos, o sujeito comunicante constrói sua “intenção particular” relacionada a um

121
propósito de influência sobre o destinatário. Dessa feita, o sujeito reveste-se de singularidade e manifesta sua liberdade por
meio de operações estratégicas de discurso, das quais a análise aqui pretendida deve prestar conta. Dessa forma, pode
se postular que todo texto é também singular e que os atores sociais procuram influenciar uns aos outros através dos
diferentes atos de discurso.
- Enfim pode ser estabelecido que não se pode realizar qualquer ato de comunicação sem que os parceiros
partilhem um mínimo da “saberes”, que dizem respeito ao conhecimento comum partilhado e ao sistema de
valores/crenças sobre o mundo em que atuam. A Análise do Discurso procura, então, recuperar os “universos de discurso”
contidos nos textos analisados e no ethos dos enunciadores. Constitui-se essa uma das hipóteses básicas desta pesquisa,
que busca delinear imagens dos enunciadores, transmitidas por operações realizadas na e durante a co-enunciação.

7. Metodologia da análise
1. - Constituição do corpus

Primeira parte da pesquisa: o corpus da pesquisa constituiu-se por textos de notícias e reportagens dos Jornais
O Globo, Jornal do Brasil e Folha de São Paulo, coletados no mês de julho de 2007- para fins comparativos entre o
tratamento de assuntos nacionais e de interesse das sociedades carioca e paulista, nessa época. Foram escolhidos
gêneros midiáticos informativos, para uma melhor compreensão dos processos de fabricação do lugar social e do ethos
discursivo dos enunciadores, tendo em vista avaliar estratégias de sua construção e oferecer subsídios para uma
metodologia de ensino de leitura e interpretação das mídias em línguas materna e estrangeira.
Para a análise foram estabelecidos critérios contrastivos: primeiramente por contrastes internos a cada contexto
sociocultural, - entre os jornais do Rio e de São Paulo-, nos diferentes dias do mês de julho, em que se deu maior
cobertura ao acidente; depois, por contrastes externos, permitindo-se comparar exemplos iguais / semelhantes aos do
Brasil, por outras pesquisas feitas, por exemplo, na França, pelo CAD - (Centre d´Analyse du Discours)- Paris XIII. (cf.
bibliografia).

2. O ponto de vista na formação do corpus


Consciente de que é o ponto de vista que cria o objeto de estudo, partiu-se do princípio de que todo veículo
jornalístico inscreve-se em um processo midiático cuja finalidade, prevista em um contrato comunicativo, é a informação e a
captação dos leitores e, para isso, conta com dispositivos discursivos que perseguem os seguintes objetivos:

- determinar os papéis dos atores das instâncias informativa e da recepção em face de um acontecimento do
mundo, -no caso presente, o acidente com o Airbus da Tam em São Paulo-, selecionado dentre tantos outros e apresentado
de um determinado modo;
- construir o fato noticioso de forma que cumpra uma dupla função: garantir credibilidade da informação e ao
mesmo tempo conseguir a captação do publico, sendo essa a força motriz da instância jornalística: a credibilidade dos
“atores” discursivos;
- realizar a enunciação midiática com ajuda de diferentes recursos significantes: verbal e iconográfico -
figurativizados na reconstituição da verdade dos fatos.

3. Etapas da pesquisa

122
1. Numa primeira etapa, fez-se a coleta de Manchetes da primeira página dos três periódicos, durante todo o
mês de julho de 2007, para situar o contexto onde se deu o acidente com o avião da TAM, que ocorreu em meados de
julho, dia 17.
A coleta dos dados nos dias anteriores ao acidente teve por finalidade averiguar quais os acontecimentos mais
importantes tratados pela mídia nas duas cidades e que resultaram serem os seguintes:
a- Violência nas grandes capitais: no Rio houve a notícia do embate entre a polícia Federal e a Força Nacional
enviada para enfrentar o tráfico e o poder dos traficantes alojados nas favelas, como um poder paralelo, que ameaçavam a
realização do PAN- RJ- ( Jogos Pan-americanos) , com invasões ou sequestros de atletas e /ou turistas. O ataque ao Morro
do Alemão, zona norte da Capital ficou famosa- resultaram 19 mortes em um só dia. A ação da polícia foi eficaz: as
principais lideranças forma presas, mortas ou expulsas dos morros, naquele momento; os jogos se realizaram sem o menor
problema, e o Brasil sagrou-se como campeão, com um recorde de medalhas. A ostensiva presença da polícia Federal
inibiu qualquer inciativa violenta dos traficantes no Rio. Os jornais cariocas e paulistas deram muito destaque ao fato.
b- Corrupção no Senado: no âmbito da Política Nacional, as notícias giraram em torno do escândalo, envolvendo o
presidente do Senado, Renan Calheiros, acusado de corrupção: ele teria se beneficiado com dinheiro da empreiteira
Mendes Júnior e recebido pagamento em espécie com que pagou a pensão alimentícia de sua filha, tida fora do casamento,
com a jornalista Mônica que o processou por atraso da pensão. Foi aberta uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito)
para examinar e julgar o caso e o assunto foi predominante em todos os informativos.
c- Apagão aéreo: também como acontecimento importante, que ficou bastante em evidência no noticiário, foi o
que se chamou de apagão aéreo; os problemas nos aeroportos provocaram atrasos, cancelamentos de voos e filas
enormes nos aeroportos; a causa principal apontada para o caos aéreo foi a greve dos controladores de voo, que
alegavam más condições de trabalho, falta de segurança e má conservação das pistas de aeroportos. A situação tornou-se
caótica, apesar de toda a soma de dinheiro gasto na reforma do aeroporto de São Paulo, Congonhas, e de outros
aeroportos do país.
O objetivo desta primeira parte da pesquisa foi mostrar como era noticiada a grave crise da aviação brasileira, antes
do acidente: notou-se que havia denúncia, mas sem o mesmo grau de emotividade com que o problema foi noticiado, após
o acidente com a TAM.

II. Segunda etapa: análise dos acontecimentos

1- O acidente com o Airbus da TAM em São Paulo, do dia 18 /07/ 2007 ao dia 31/07/2007)

- Nesta segunda etapa, compararam-se as narrativas dos três periódicos, desde o dia do acidente até o final do
mês de julho. Nos primeiros dias subsequentes ao acidente, o foco era a tragédia que passou a ocupar grande parte do
noticiário; quando o fato já tinha saído do foco principal, restavam apenas comentários mais analíticos e a notícia passou a
concorrer com outras novidades (resultados do Pan, por exemplo). Tal fato comprova a hipótese de que há um
esgotamento do noticiário, quando o veículo informativo passa da narrativa de fatos novos para a análise, assim, a notícia
se esgota até sair das manchetes, no caso de não haver fato relevante.
- Método utilizado: análise quantitativa do número de ocorrências das operações de identificação, atribuição e
processualização/modalização, envolvendo o acidente e dois tipos de atores: parentes, de um lado e culpados pelo
acidente, de outro. Pelo levantamento quantitativo foi possível determinar como cada Jornal tratou o acidente em si e como

123
era o teor das denúncias. A contagem de ocorrências também teve por fim, averiguar o grau de envolvimento de cada
veículo midiático, por meio da presença de operações atributivas e de processualiação/ modalização mais subjetivas
sobre o mesmo fato.

2. Encenação da Emoção:

Constitui a emoção um dos recursos utilizados na encenação midiática. Dentre os processos mais utilizados estão:
- narrativização, com apoio de imagens, gráficos e de desenhos que explicavam o acidente;
- uso de fotos das consequências da tragédia: fogo, destruição, corpos carbonizados; e entrevistas com relatos de
testemunhas e de especialistas sobre o tráfego aéreo;
- uso hiperbólico da adjetivação subjetiva: com o uso de termos no grau superlativo: o maior acidente da aviação brasileira,
uma tragédia das mais anunciadas; enfim repetição da modalização avaliativa nos testemunhos relatados e nos artigos de
opinião;
- mobilização de valores ou "topoï" já consagrados da pathemização: fotos das vítimas, antes do acidente, imagens
retratando o choro e o desespero dos familiares e os relatos emocionados; foco no trabalho incansável de bombeiros
(heróis), na remoção dos escombros e o relato de críticas contundentes às autoridades responsáveis e ao Governo,
segundo sempre a visão dos vítimados pelo acidente e/ou de testemunhas oculares.

Uma análise quantitativa dos fenômenos subjetivos ( índices de subjetivemas) permitiu vislumbrar os Jornais que
mais se ativeram à emoção, com destaque para os jornais O Globo e Folha de São Paulo. No quesito número de
ocorrências, o Jornal Folha de São Paulo enfocou o fato com mais detalhes, destinando um caderno especial- o Caderno
Cotidiano - para retratar a tragédia, que ficou no foco principal, durante o restante do mês. O mesmo aconteceu com o
Jornal O Globo, que apresentou amplas reportagens acompanhadas de muitas fotos e especificação de detalhes sobre a
tragédia, em uma Sessão especial - denominada O País. O Jornal do Brasil optou por analisar o acidente com menor
número de reportagens, pois seu foco de atenção foram os Jogos do Pan -Americano que se realizavam no Rio, à época.
Em número de ocorrências o Jornal Folha foi o que mais forneceu detalhes técnicos.

3. Os atores:
A identificação dos lugares e dos papéis dos diferentes parceiros que constituem a instância de enunciação
permitiu contraponto com a recepção midiática, ou seja, o leitor virtual.
Na quantificação de ocorrências relativas aos atores do acidente, obteve-se um número maior de ocorrências,
nos dias subseqüentes (18, 19 e 20), na descrição das vítimas e na reação dos parentes e amigos; as reportagens
preocuparam-se com o processo de identificação e de atribuição dos atores envolvidos, com expressiva presença de
operações de denominação e de adjetivação axiológica (caracterização mais avaliativa e emocional).

Tal fato demonstra o objetivo de se legitimar a parte que mais sofreu com o acidente, o destaque maior era sobre
parentes e amigos das vítimas e o sofrimento dos que ficaram. Também é notória a presença de acusações contra os
possíveis culpados, além de se aventarem várias hipóteses sobre as causas da tragédia: problemas no aeroporto,
desorganização do tráfego aéreo, greve dos controladores de voos, desmandos e desencontros de autoridades do
governo.

124
4. Estratégias de construção do Real pela emoção
Fez-se a análise de como cada Jornal procurou adquirir credibilidade e conseguir a captação do leitor, por meio de
várias estratégias de objetividade e de subjetividade:
a- objetividade: as estratégias de “construção do real”- deram-se por meio de descrições objetivas e bem detalhistas
da tragédia, com inúmeras citações referentes ao número exato de mortos, com imagens e notícias que eram
acompanhadas de muitos dados sobre a vida das pessoas acidentadas, ao lado de relatos de especialistas e testemunhas
do acidente, sobre os problemas da aviação no país.
b- subjetividade: por sua vez, a emergência da emoção e da subjetividade evidenciou-se também quando se colocou,
enfaticamente, no segundo dia, o impacto dramático do acidente, com as inúmeras fotos de parentes das vítimas em
desespero, acompanhadas do relato apaixonado de amigos e testemunhas oculares que se revezavam ao dar entrevistas.
Tudo convergia para o desencadear de emoção nos leitores.

III- Terceira etapa: operações discursivo-enunciativas analisadas

A análise quantitativa das operações teve por fim observar os índices que se deixam representar no enunciado como
marcas de “projeção” dos enunciadores da enunciação. Foram destacadas e analisadas as regularidades discursivas que
caracterizam as operações discursivas de identificação, caracterização e processualização.
A metodologia da análise de operações discursivas conjugou dados da enunciação “restrita” e da enunciação
“ampliada” (Orecchioni, 2001), em dois níveis: pela comparação entre diferentes dias do relato por cada um dos Jornais, em
um eixo temporal e pela comparação entre as reportagens e o tratamento dado em cada dia, pelos três Jornais, num eixo
horizontal.
Assim, foram registrados, pelo número de ocorrências- os processos de identificação (designação e atualização),
processos de atribuição (caracterização e avaliação axiológica) e de processualização (atuação e modalização), - que
ajudaram a definir o ethos de cada enunciador e os lugares sociais (topoï) em que se inscrevem. Essas análises tiveram
por fim confrontar os dados mais objetivos com os mais subjetivos. – relacionados à reconstituição do fato e à imagem dos
atores discursivos. Esses atores sociais foram divididos em dois campos semânticos: de um lado, vítimas (parentes e
amigos das vítimas), com a referência aos heróis (bombeiros e voluntários)- e, de outro, “possíveis culpados”: autoridades,
Ministério da Aeronáutica e o Governo, além da própria TAM, todos apresentados como vilões.

- Observação 1. essa análise quantitativa dos resultados teve por intuito visualizar percentualmente o número de
ocorrências e o tratamento dado a elas por cada um dos jornais. Dessa forma, foi possível fazer a comparação entre as
escolhas lexicais, as semelhanças e diferenças de cada veículo. O Jornal Folha de São Paulo apresentou o maior número
de ocorrências, decorrente do fato de manter a notícia em várias páginas, nos principais dias de cobertura do acidente, o
mesmo ocorreu com O Globo do Rio. O Jornal do Brasil apresentou menor número de ocorrências.
Outras estratégias, no entanto, não foram passíveis de quantificação, pela sua própria natureza, entre elas, a
relação entre as instâncias subjetivas, a realização do contrato comunicativo e a própria situação interativa entre os atores
enunciativos; nesse caso, a análise feita foi qualitativa, por análise e amostragem de exemplos mais representativos.
Observação 2. Como uma outra etapa da pesquisa, sugere-se uma proposta de aplicação pedagógica deste
estudo que demonstra ser possível o ensino de gramática de língua portuguesa, articulado aos textos, com o fim de se
desenvolver a competência comunicativa dos alunos, no sentido de se reconhecerem os recursos linguísticos utilizados, de
forma adequada a cada situação interativa. Tais procedimentos estão consoantes com os princípios dos Parâmetros

125
Curriculares Nacionais (PCN, 1998)), preconizados pelo MEC para o ensino fundamental e médio.

8. Resultados obtidos:
- O levantamento das ocorrências de todas as operações - identificação, caracterização, processualização-
modalização - no processo de narrativização do acidente da TAM - data do início dia 18 - dia subsequente ao desastre-
até o final do mês - 31-07-2007. O número de ocorrências de cada veículo, em comparação com o número total de dados,
permitiu verificar o grau de informatividade dos veículos, destacando-se o Jornal Folha de São Paulo, com maior número
de ocorrências. (cf. Quadro 01)
Num segundo momento, compararam-se, horizontalmente, os dados dos Jornais, verificando-se ocorrências das
operações de caracterização e processualização/modalização mais subjetivas o que permitiu analisar o posicionamento
político -ideológico de cada veículo em relação ao mesmo evento. Foi possível, por esse meio, destacar dados que
comprovaram o grau de subjetividade e a construção do ethos de cada veículo, bem como o teor de acusações aos
supostos culpados, (cf. Quadro 02), como se pode ver a seguir, na demonstração dos números.

I- Quadro 01:
Total de ocorrências de operações discursivas e percentuais de cada Jornal
Total Geral dos dados obtidos: computaram-se 4682 ocorrências, dentre as operações de
identificação, caracterização e processualização – modalização.

1- O GLOBO
TOTAL GERAL DE DADOS: 1753 - (37,4 % ) do total de ocorrências (4682)

POR PROCESSO:

Identificação: 744 42,4 %

Caracterização: 527 30 %

Processualização: 455 25,9 %

Modalização: 27 1,5 %

2- FOLHA DE SÃO PAULO

TOTAL GERAL DE DADOS: 1603 - 34,2 % do total de ocorrências (4682)

POR PROCESSO:

Identificação: 696 43,4 %

Caracterização: 509 31,7 %

Processualização: 377 23,5 %

Modalização: 21 1,3 %

126
3- Jornal do Brasil

TOTAL GERAL : 1326 - 28,3% do total de ocorrências ( 4682)

Por Processo:
Identificação - 662 49%

Caracterização 391 30%

Processualização 249 19%

Modalização 23 2%

2- Quadro II-

Ocorrências e percentuais de subjectivemas nas operações de caracterização (avaliação


axiológica) e de processualização (modalização subjetiva):

1- O GLOBO
Do total geral de dados: 1753 - (37,4 %) do total de ocorrências (4682)

Caracterização: 527 30 %

Processualização: 455 25,9 %

Total do dois processos: 982

Total de subjectivemas: 346 - percentual de 34 %


2- FOLHA DE SÃO PAULO

Do total geral de dados: 1603 - 34,2 % do total de ocorrências (4682)

Caracterização: 509 31,7 %

Processualização: 377 23,5 %

Total de dados 886

Total de subjectivemas: 398 - percentual de 45%

3- Jornal do Brasil

Do total geral de dados: 1326 - 28,3% do total de ocorrências ( 4682)

Caracterização 391 30%

Processualização 249 19%

127
Total de dados 640

Total de subjectivemas: 213 - percentual de 30%

Comparação do número de ocorrências de subjectivemas somente nos dias: 18, 19 e 20


de julho

O Globo
Total de ocorrências em dois processos: 346

Presença de subjectivemas em três dias: 18, 19 e 20

Caracterização Fato Vítimas Culpados


e
Processualização 47 56 53 Total: 156 - 45% do total de 346)

Folha de São Paulo

Total em dois processos: 398


Presença de subjectivemas em três dias: 18, 19 e 20

Caracterização Fato Vítimas Culpados


e
Processualização 46 68 73 Total: 187 - 47% do total de 398

Jornal do Brasil

Total em dois processos: 213


Presença de subjectivemas em três dias: 18, 19 e 20

Caracterização Fato Vítimas Culpados


e
Processualização 70 38 43 Total: 151 - 70% do total de 213

Resultados relativos de subjectivemas ( apenas nos dias 18, 19 e 20)


Comparando-se o total de ocorrências de subjectivemas, nos três dias subseqüentes ao acidente, ressalta-se
que o Jornal Folha de São Paulo apresentou o maior número (187), priorizando seu enfoque nos culpados e nas vítimas,
com um total de 73 e 68 subjectivemas, respectivamente relacionados;
O Globo (156) equilibrou-se em relação ao número de ocorrências relativas aos culpados e às vítimas: 53 e 56;
O Jornal do Brasil ( 151) priorizou o acidente, com um maior número de ocorrências voltadas para o fato (70) e
menos ocorrências relacionadas aos culpados e às vítimas: 43 e 38. respectivamente.

9 - Conclusão geral

128
Como conclusão, poderíamos acrescentar que, embora fazer uma pesquisa quantitativa não fosse o objetivo
principal desta pesquisa, os resultados nos ajudaram a detectar diferenças relevantes de cada um dos Jornais quanto a
orientação ideológica a respeito da modalidade enunciativa escolhida para expressar sua ideologia e a construção da
identidades enunciativas. Eis a razão por que fomos examinar a frequência do uso de meios axiológicos (operações
enunciativas e modalizadores) pois são esses os que mais claramente expressam a posição dos sujeitos no discurso.
Quanto ao fato de que todos os enunciados estão de certa forma marcados subjetivamente, podemos acrescentar que
essa é uma das razões da existência do próprio discurso, concluindo-se pela impossibilidade de existência de total isenção.
Destaque-se também que o grau de maior objetividade/subjetividade de um enunciado não pode ser avaliado a não ser com
relação à situação particular em que se realiza; por isso optamos por comparar os resultados dos três veículos,
considerando -se o mesmo fato ocorrido e as circunstâncias de enunciação; assim, esses fatores nos permitiram concluir
que:

1- O Jornal O GLOBO, nas Manchetes, mostrou-se o mais contundente nas críticas ao governo e nas denúncias à omissão
das autoridades em relação ao caos nos aeroportos e ao apagão aéreo. Foi o que explorou mais, emocionalmente, a
tragédia sobretudo com predominância de ocorrências de atributos axiológicos relativos ao sofrimento das vítimas e às
denúncias aos culpados- e, ao ater-se a uma visão apreciativa e bastante pontual dos fatos, demonstrou um ethos
emocionalmente engajado e comprometido com as reações de seu leitor à tragédia.

2- A Folha de São Paulo também explorou o acidente emocionalmente, com enfoque no sofrimento das vítimas e nos
culpados, sobretudo nos dias subsequentes ao acontecimento. Foi mais detalhista e o jornal que mais apresentou dados e
explicações técnicas, sobre as causas do acidente; pretendeu fazer uma análise mais ampla e interpretativa dos fatos, o
que significou fornecer muitas hipóteses baseadas em uma sucessão de causas anteriores ao acidente , bem como
justificativas para os efeitos. Nesse sentido, passou a imagem de um ethos preocupado com a "verdade" histórica,
conseguindo maior isenção quanto ao julgamento dos culpados diretos ou indiretos. A forma delocutiva (objetiva) de
apresentar os acontecimentos também permitiu o apagamento de marcas de subjetividade, o que resultou um
posicionamento mais neutro nas análises.

3- O Jornal do Brasil, nos três dias imediatos ao acidente, também deu prioridade ao acontecimento, fornecendo análise
engajada e comparativa com outras situações de caos e com os problemas que ocorreram no país, sobretudo fatos
políticos da conjuntura nacional -como o Caso Renan Calheiros. Os fatos relacionados ao acidente receberam um
tratamento secundário, - salvo nos primeiros dias da tragédia - em face de outros problemas da conjuntura nacional, foco
de atenção do jornal naquele mês. Posteriormente, voltou a focalizar mais as notícias do Rio: a realização do PAN, o
combate à violência e o triunfo do Brasil na conquista de medalhas nos esportes, deixando-se o acidente aéreo também
em segundo plano.

Na fase atual da pesquisa, comparam-se notícias e reportagens de dois veículos informativos cariocas: O Globo e
Extra, direcionados a públicos diferentes e, portanto, com propostas diversas em suas estratégias enunciativas. O “corpus”
de análise são os jornais publicados no mês de março de 2010, em que se analisam as manchetes e os subtítulos de
notícias e reportagens, as fotos, as legendas e o enfoque dado pelos dois veículos às notícias publicadas no mesmo dia,
mas que apresentam enfoques diferentes nas manchetes, bem como fotos, legendas e subtítulos diversos, já que são
direcionadas a distintos públicos. Uma das hipóteses a ser demonstrada é a de que o leitor receptor- sujeitos destinatários-

129
influencia na escolha das estratégias dos jornais na apresentação da realidade, além do fato de as legendas e as imagens
escolhidas, para ilustrar as notícias, terem um peso informativo e emocional muito relevante.

10. Referências

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LOCHARD, Guy & SOULAGES, Jean. Les scénarizations visuelles. In : La télévision et la guerre.Déformation ou
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MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2003.

130
________. L'ethos, de la Rhétorique à l'Analyse du Discours, extrait de “ Problèmes d'ethos”, Pratiques, no. 113-114, juin,
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2005, com 2a. ed. 2007.

__________________________________. Texto e discurso: mídia, literatura e ensino Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, com
2a. ed. 2007

___________________& WERNECK, Leonor. Estratégias de leitura: texto e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

Maria Aparecida Lino Pauliukonis, professora associada de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Vernáculas da
UFRJ, atuando na Pós- Graduação em Letras Vernáculas, como Coordenadora do Programa e do Projeto Integrado de
pesquisa CIAD-Rio(Círculo Interdisciplinar de Análise do discurso). Coordena, juntamente com Patrick Charaudeau, do CAD
(Centre d´Analyse du Discours), Acordo de Cooperação científica entre a UFRJ e a Universidade Paris 13. Desenvolve
atualmente projeto de investigação sobre modalidades na mídia jornalística impressa.
email: aparecidalino@gmail.com

131
Futuro do pretérito

ROSA, Paulo Cesar Costa da


(UERJ)

Introdução

Nossa posição aqui tem um caráter metonímico. Quer dizer, nossa defesa da nomeação de um tempo verbal é a
defesa da pertinência da nomeação de diversos outros fatos da língua pela Nomenclatura Gramatical Brasileira, que com-
pletou 50 anos de vigência ano. Como sabemos, a NGB surgiu, por conta de uma demanda no ensino de língua portugue-
sa, no final da década de 1950, suscitada pelo número excessivo de termos que eram empregados pelos professores de
cada instituição de então.
A crença na pertinência da NGB (em boa parte de seu acervo de termos) a que nos referimos vem de uma experi-
ência de mais de 25 anos ininterruptos de aulas no Ensino Fundamental e Médio. Ao longo desse tempo, cansamos de
ouvir que o português é complicado, cheio de regras e contradições: “uma coisa pode ser uma coisa, mas a mesma coisa
pode ser outra coisa em sentido inverso”. Ora, o mesmo não se ouve a respeito da química ou da matemática – e duvida-
mos de que aqueles teoremas e ligações iônicas são postos em dúvida constantemente pelos estudiosos dessas áreas. A
NGB é uma mostra parcial de nossas reflexões a respeito de fatos concernentes à língua, e não partilhamos da opinião de
que ela é uma camisa de força para o estudo ou ensino de língua: quem quiser que dê o nome que lhe aprouver àquilo que
estuda. Mas entendemos que a sala de aula já está bem servida de terminologia. Não acreditamos, por exemplo, que rea-
grupar os objetos indiretos em “complementos relativos” e “objetos indiretos” vá melhorar em nada o ensino desse aspecto
da língua. É fato que a NGB, por ter nascido sob a égide do reducionismo, deixa de oferecer nomes para diversos fatos
notáveis da língua. Mas o fato é que ela – embora se omita em vários pontos e se sofistique desnecessariamente em outros
–, ainda é válida como a temos atualmente. De urgente, com relação à NGB, creio ser a inclusão da “Quarta parte” (está
dividida em “Primeira parte”, fonética; “Segunda parte”, morfologia; “Terceira parte”, sintaxe.) Essa “Quarta parte” seria a
terminologia concernente à Análise do Discurso, à Linguística do Texto: contexto, cotexto, situação discursiva, elipse, subs-
tituição, coesão sequencial, referencial, enfim, é preciso pôr mãos à obra. Mas é necessário que se faça isso com equilíbrio
e sensatez, para não “trocar seis por meia dúzia” – ou, o que é pior, trocar seis por menos seis. Para dar um exemplo disso,
reportemo-nos à categoria sintática caso. Essa expressão muitos conheceram no primário ou ginásio, por conta dos prono-
mes do “caso reto ou oblíquo”. Depois, nos cursos de Letras, aprendemos a flexão de caso do vetusto latim. E eis que hoje,
o termo caso é usado em estudos sofisticadíssimos de sintaxe. Portanto, ao pensarmos em sugerir uma mudança de nome,
façamos, como dissemos, com lucidez, afinal, como já dizia Chico Buarque em seu artigo em 1968, defendendo-se, ao se
chamado de apegado ao passado, “nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha.”

1. Ensino de língua e nomenclatura

É bom fazer a ressalva – sempre necessária – de que não achamos que uma aula de português seja uma aula de
gramática. Ensinar o aluno a ler e escrever – ou melhor, a compreender o que leu e o que escreveu – a ter aquilo que se
convencionou chamar de “competência comunicativa” e de ter consciência das variantes linguísticas e respeito a elas, isso
é o objetivo maior do ensino de língua materna. É neste ponto que surge uma confusão que se desdobrará em muitas ou-

132
tras: o senso comum identifica a norma padrão à própria língua, gerando uma equivocada noção de língua certa e língua
errada. A moderna linguística de Saussure (e tudo que dela originou) atentou para o fato. Porém, a despeito de estarmos
perto de completar um século de sua divulgação, uma boa parcela de interessados pela questão linguística ainda promove
tal identificação, eventualmente, substituindo o par “certo e errado” pelo binômio “adequado/inadequado” – o que funciona
mais como o emprego de uma expressão “politicamente correta” do que como demonstração de convicção de quem a em-
prega.
Se essa mistura de noções ficasse só no plano do empirismo leigo, a tarefa de ensinar a norma padrão seria facili-
tada, pois o professor de língua materna teria como estabelecer limites entre a norma e a língua para uma clientela ligeira-
mente mais familiar à questão. O problema é que a própria tradição descritiva insiste no equívoco. Não se trata de um pro-
blema grave em si, mas grave pelo fato de ser atávico. A descrição tradicional se baseia – como se sabe – em um modelo
greco-latino de descrição: normativo e com base na modalidade escrita. Ocorre que, embora em um caso ou outro se mani-
feste a crítica a esse modelo, autores tradicionais de compêndios que descrevem a língua insistem na busca de uma des-
crição da língua portuguesa. Assim, temos “gramáticas da língua portuguesa”, descritivas, normativas, reflexivas, ou qual-
quer outro nome que se lhes dê, as quais prometem uma tarefa tão grandiosa que talvez seja impossível implementá-la:
descrever a língua portuguesa em todos os seus aspectos.
O que as gramáticas tradicionais decerto fazem é descrever a norma padrão. É verdade que eventualmente gra-
máticas mais abrangentes abordem fatos gramaticais que ocorrem em outras normas, porém isso é tão raro quanto assis-
temático. O corpus que essas gramáticas descrevem é a modalidade escrita da norma padrão. Isso não seria problemático,
se não se confundisse esse corpus com a própria língua portuguesa: uma língua não é essencialmente escrita nem se
identifica totalmente com sua norma mais valorizada. Na medida em que se propõe descrever uma norma que comumente
apresentará fatos gramaticais que não frequentam outras normas, a tendência é afirmar preconceituosamente que aquilo
que se verifica fora do corpus “não é português”.
Uma língua é um conjunto de coocorrências de normas, cuja descrição, por completo, é uma tarefa por demais
ambiciosa. Um idioma como o português tem hoje, no século XXI, multifacetadas realizazões, em função de dialetos de
toda ordem, sejam sociais, geográficos, etários, etc. Observe-se que estamos dando aqui apenas um exemplo de variação
diatópica/diastrática. Ainda que esgotássemos todas as ocorrências, descrevendo-as, analisando-as, ainda assim dificilmen-
te lograríamos êxito na empreitada.
O português não existe apenas no presente, na atualidade: trata-se de uma língua com tradição literária e regis-
tros escritos e impressos no passado.
Por exemplo, quando se afirma que a mesóclise é uma colocação pronominal em extinção, foca-se apenas na lín-
gua do presente, esquecendo-se de que essa estrutura ocorre em textos passados. Nesse sentido, não há extinção da
mesóclise. Será um equívoco, no ensino do português, ignorar essa realidade. Nosso temor é o de que se intensifique o
cada vez maior distanciamento entre o estudante de língua materna e a norma com que se expressaram autores do passa-
do – seja em obras literárias, seja na imprensa, seja em documentação, enfim todo o acervo escrito em língua portuguesa, o
qual pouco a pouco pode tornar-se ininteligível, caso a escola não reveja certas interpretações equivocadas que foram
feitas da linguística moderna nas últimas décadas.
Diante desse quadro, percebemos que o professor de língua portuguesa que comunga da crença de que dar aula
de estruturas linguísticas de norma padrão é purismo ou elitismo vive uma situação paradoxal: torna-se o próprio agente do
esvaziamento de sua disciplina no campo do sistema escolar.
Não é correto que ignoremos viver em uma sociedade que desenvolveu um mercado linguístico, que tem na nor-
ma padrão a fatia mais importante do seu capital linguístico.

133
Reiteramos que não se trata aqui de propor uma volta às práticas antiquadas da sala de aula do século passado,
mas de reafirmar a evidência de que vivemos em uma sociedade letrada, alheia a preciosismos teóricos de nossa área, e
que solicita o ensino dessa norma. E não podemos dar as costas a essa realidade.
Reconhecemos, dessa forma, que, sempre que for necessária uma metalinguagem em sala de aula, precisamos
ser firmes em nossa exposição. Nesse sentido, uma Nomenclatura oficial (como se fosse uma língua de intercurso) – ainda
que por vezes esquemática – é crucial.

2. O futuro do pretérito

Como dissemos no início, vamos tomar a expressão “futuro do pretérito” como um exemplo que – esperamos –
ilustre essa nossa opinião. Dizemos isso, porque, como se sabe, ele já teve o nome “condicional”, mas os responsáveis pela
NGB ficaram com o termo “futuro do pretérito” como um tempo verbal do modo indicativo. Observe-se ainda que a No-
menclatura Gramatical Portuguesa considera condicional como um dos cinco modos verbais, ao lado de conjuntivo (nosso
subjuntivo), imperativo, indicativo e infinitivo pessoal. Mas, sem dúvida, o melhor é esse nome, “futuro do pretérito”. É o que
se costuma chamar de “termo grão-de-bico”. Explicamos. Um grão-de-bico tem esse nome porque é um grão, que tem um
bico. Mais descritivo e preciso, impossível. Diferente de feijão, por exemplo, que tem esse nome, mas nem de longe lembra
o grão propriamente. A origem é controversa, mas a que eu mais gosto é a de que teria vindo do latim “fabianu”, da expres-
são “granu fabianu” (“grão da fava”). A vantagem é que nos remete à ironia de Graciliano, num romance em que os nomes
dos personagens são eivados de ironia, como Baleia, Vitória... Enfim, futuro do pretérito tem esse nome porque é futuro, e
do pretérito.
Num primeiro momento, passemos a examinar a forma verbal em -ria como um modo verbal.
Entendemos que o modo verbal é uma formalização da categoria conceitual que é a modalização, a que Pratrick
Charaudeau se refere em sua Gramática. Neste momento, vale a pena relembrar as considerações que ele faz acerca de
enunciação e modalização. Para o autor, enunciação é um fenômeno relacionado à maneira como o falante se apropria da
língua para organizá-la em discurso. Nesse processo de apropriação, o falante é levado a se situar em relação ao interlocu-
tor, ao mundo a sua volta e em relação àquilo que ele mesmo diz. Enfim, o discurso se constrói através da enunciação.
Linguisticamente, ela exibe diversos índices dessas diferentes posições do falante – índices estes que eventualmente cons-
tituem sistemas formais (pronomes pessoais, demonstrativos, tempos, modos, etc.); eventualmente tomam forma de um
adjetivo ou advérbio; ou ainda se encontram na própria organização do discurso (CHARAUDEAU:1992, p.572). A modaliza-
ção, portanto, faz parte do fenômeno da enunciação: trata-se de seu aspecto mais importante, na medida em que é ela que
permite explicitar o que são aquelas posições do falante a que aludimos no parágrafo anterior. A modalização é uma cate-
goria conceitual, que é englobada pela enunciação, e se encontra no implícito do discurso. Nesse sentido, diversos índices
discursivos (verbais ou paraverbais) vão denunciar as posições do sujeito falante. Dessa maneira, não será absurdo identifi-
car numa ou noutra sequência discursiva o emprego de uma forma em futuro do pretérito a serviço das intenções do enun-
ciador, até porque este elege formas lexicais e gramaticais na “organização enunciativa”. De fato, a referência ao futuro, em
contraste com a referência ao passado e ao presente é, geralmente, se não sempre, matizada pela expressão de incerteza
ou expectativa (Lyons, 1995, p. 319). Portanto, se considerarmos que essa expressão é uma tomada de posição da parte
do enunciador, é razoável pensar em termos de modo verbal.

Por outro lado, se considerarmos que essa noção de modo pode se manifestar para além das formas normalmen-
te destinadas a sua expressão, para ser práticos, escolhemos nos alinhar à descrição tradicional, que considera a existência

134
de três modos (e corroborados pela NGB): indicativo, imperativo e subjuntivo. Apenas entenderemos que esses modos se
manifestam sintaticamente, por estarem subordinados ou não. O subjuntivo se caracteriza por estar sempre subordinado
(normalmente, subordinados a conjunções subordinativas; eventualmente ao advérbio talvez anteposto). O imperativo será
sempre não subordinado, apresentando forma do presente do subjuntivo e, em menor número, do presente do indicativo
(apenas as segundas pessoas, sem o s final). O indicativo não é marcado: pode tanto ser subordinado quanto não subordi-
nado.
Passemos, neste momento a examinar o que Bechara afirma sobre o futuro do pretérito (BECHARA, 2005)

O futuro do pretérito se emprega ainda para denotar:


a) que um fato se dará, agora ou no futuro, dependendo de certa condição:
“A vida humana seria incomparável sem as ilusões e prestígios que a circundam” [MM].
“Se pudéssemos chegar a um certo grau de sabedoria, morreríamos tísicos de amor e admiração por
Deus” [MM].

b) asseveração modesta em relação ao passado, admiração por um fato ser realizado:


Eu teria ficado satisfeito com as tuas cartas [RV].
Nós pretenderíamos saber a verdade.
Seria isso verdadeiro?

c) incerteza:
Haveria na festa umas doze pessoas.

Quanto ao primeiro sentido considerado por Bechara, “que um fato se dará, agora ou no futuro, dependendo de
certa condição” (grifo nosso), façamos algumas considerações. A nosso ver, a ideia de condição não emana da forma
verbal em -ria, mas parte da própria conjunção condicional (neste caso se). Além disso, concordamos com Weinrich, quan-
do ele diz que a denominação condicional para a forma verbal em -ria é uma “denominação desafortunada e equívoca. O
condicional é um tempo como qualquer outro que com as orações condicionais não têm mais que ver do que com os outros
tempos. Nem sequer é o que apareça com mais frequência nessas orações” (WEINRICH: 1968, p.176). Dessa forma, qual-
quer emprego da forma verbal em -ria se inscreverá no eixo dos tempos do mundo narrado, e, portanto, será uma sequên-
cia narrativa eventualmente empregada como aquilo que Weinrich chama de metáfora temporal. O conector se ativa a
noção de condição que se constrói pela projeção de uma causa para um mundo hipotético. A construção desse mundo
hipotético só é possível, por conta de experiências já vividas pelo enunciador. Concordamos com Azeredo (AZEREDO,
2002) quando diz que “a diferença entre a causa propriamente dita e a condição baseia-se numa distinção de atitudes do
enunciador em relação à ‘realidade’ da informação contida na oração adverbial: a atitude de certeza se expressa com os
conectores causais; a atitude de incerteza, de suspeita, de suposição, se expressa com os conectivos de condição”. (Op.
Cit. p. 225). Ora, o futuro do pretérito é acima de tudo o tempo prospectivo do mundo narrado. Considerando que o pretérito
imperfeito é tempo-zero desse mesmo mundo, a correlação temporal se dá em perfeita harmonia, como se vê no exemplo
dado acima.

(1) “Se pudéssemos chegar a um certo grau de sabedoria, morreríamos tísicos de amor e admiração por Deus”.

135
Trata-se de uma sequência narrativa, em que as ações descritas (chover e ir) se organizam no eixo temporal da
narração assim:

Tempo retrospectivo tempo-zero tempo prospectivo

|________________________|______________________________|

pudéssemos morreríamos

O exemplo acima é a projeção para um mundo hipotético de um mundo real que se observa num período como
“Como podemos chegar a um certo grau de sabedoria, morreremos tísicos de amor e admiração por Deus”. Ela se inscreve
no eixo temporal do comentário:

Tempo retrospectivo tempo-zero tempo prospectivo

|__________________________|______________________________|

podemos morreremos

Quanto à noção de “asseveração modesta em relação ao passado, admiração por um fato ser realizado”, em que
dá como exemplo “Eu teria ficado satisfeito com as tuas cartas.”, ampliaremos o que o autor propôs, incluindo o que aí nos
parece pertinente: a polidez. Em frases como a do exemplo acima, nota-se como o enunciador lança mão do distanciamen-
to próprio dos tempos da narração para não assumir diretamente a responsabilidade pela ideia introduzida por teria. Trata-
se daquilo que se pode chamar de “ato de linguagem indireto”. O deslocamento para o passado, isto é, para um tempo de
narração desobriga o enunciador de assumir uma postura, uma atitude imediata e engajada; pelo contrário, a transferência
da enunciação para o mundo narrado ajuda a preservar sua face, já que é uma estratégia suavizante (aducisseur). A frase
estudada tem implícita uma continuação que seria algo como “se você me enviasse [as cartas]”. Observe-se que se infere o
pretérito imperfeito do subjuntivo enviasse, pelas seguintes razões: pretérito imperfeito por ser tempo-zero; do subjuntivo,
por estar subordinado.
E teríamos a seguinte distribuição temporal:

Tempo retrospectivo tempo-zero tempo prospectivo

|__________________________|______________________________|

enviasse teria
Com respeito à última denotação listada por Bechara – a incerteza – acreditamos ser uma estratégia semelhante à
da polidez: o distanciamento típico do tempo do mundo narrado auxilia o enunciador a não comprometer-se com aquilo que
se apresenta em frases como “Haveria na festa umas doze pessoas.” A dúvida latente em haveria se justifica por estar
implícita uma relação com uma outra forma verbal de narração, em tempo-zero. Algo como “Haveria na festa umas doze
pessoas, se eu não estivesse enganado, com relação a esse número.”

136
Isso daria uma distribuição temporal desta ordem:

Tempo retrospectivo tempo-zero tempo prospectivo

|_______________________|______________________________|

estivesse haveria

3. Conclusão

Vimos aqui que Portanto, a despeito de a forma verbal em -ria ser chamada por muitos de tempo ou mo-
do condicional, entendemos que o melhor termo a nomear essa forma é futuro do pretérito, talvez pela essência quase
tautológica de sua justificativa: é futuro, e do pretérito. não será absurdo identificar numa ou noutra sequência discursiva o
emprego de uma forma em futuro do pretérito a serviço das intenções do enunciador, já que a referência ao futuro, em
contraste com a referência ao passado e ao presente relaciona-se à expressão de incerteza ou expectativa. É razoável,
pois, pensar em termos de modo verbal. Em contrapartida, entendemos que essa noção de modo pode se manifestar para
além das formas normalmente destinadas a sua expressão, mas se realiza sistematicamente por intermédio da flexão mo-
do-temporal do português, resultando, assim em três modos: indicativo, imperativo e subjuntivo.
Portanto, a despeito de a forma verbal em -ria ser chamada por muitos de tempo ou modo condicional, entende-
mos que o melhor termo a nomear essa forma é futuro do pretérito, talvez pela essência quase tautológica de sua justificati-
va: é futuro, e do pretérito.

REFERÊNCIAS

AZEREDO, J. C. Fundamentos de gramática do português. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

BOURDIEU, Pierre. Interventions- science sociale et action politique. Paris: Agone, 2002.
______. Langage et pouvoir symbolique. Paris: Seuil, 2001.
______.Réponses. Paris: Seuil, 1992.

LYONS, John. Linguistic Semantics: an introduction. New York: Cambridge University Press, 1995.

MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina.

PALMER, F. R. Mood and Modality. In: Cambridge textbooks in Linguistics. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.

PONTES, Eunice. Verbos auxiliares no português. Petrópolis: Vozes, 1973.

SANTOS, Josete Rocha. Os verbos modais e uma análise do futuro. Disponível em


http://www.filologia.org.br/iiijnlflp/textos_completos/pdf/Os%20verbos
%20modais%20e%20uma%20an%C3%A1lise%20do%20futuro%20-%20JOSETE.pdf. Acesso em: 24/05/2010.

137
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 6.ed. São
Paulo: Cortez, 2001.

WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madri: Gredos, 1968.

Professor Adjunto da UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. Doutor em Letras Vernáculas pela UFRJ (2006).
Coordenador do Setor de Língua portuguesa do Instituto de Letras da UERJ e Coordenador do Centro Filológico Clóvis
Monteiro. Coordena ainda a pesquisa REVISÃO DO MODELO TRADICIONAL DE DESCRIÇÃO GRAMATICAL. Atua no
Ensino Fundamental, Médio e Superior, desde 1987. E-mail: pauloevictor@hotmail.com

138
Argumentação e atividades de produção e compreensão
de textos e ensino de gramática

TRAVAGLIA, Luiz Carlos


(UFU/ILEEL)

1) Introdução – O ensino de argumentação.

Não há mais dúvidas de que a argumentação é uma das dimensões constitutivas da linguagem e está presente
em todo e qualquer texto, oral ou escrito, seja num plano “lato sensu” seja num plano “stricto sensu”. Vamos neste texto
abordar a argumentação “stricto sensu”, focalizando a questão da transposição didática das teorias linguísticas sobre
argumentação para as atividades de ensino aprendizagem em sala de aula. O conhecimento linguístico sobre
argumentação se estende hoje a um grande número de tópicos: texto do tipo argumentativo e sua caracterização;
argumento; conclusão ou tese; classe e escala argumentativa; locutor e auditório na argumentação; acordos ou pontos de
partida da argumentação; lugares da argumentação; tipos de argumentos; o uso de recursos linguísticos diversos na
argumentação tais como: operadores argumentativos, pressuposições, figuras, modalidades, estabelecimento de relações
(causa e consequência, oposição, concessão, conjunção, conformidade, etc.), repetições, pausas e silêncios, etc. Todo
esse conhecimento gera para o professor um compromisso do tratamento argumentativo da língua. Como fazer isto é a
grande pergunta que sempre é feita pelo professor e pelo lingüista aplicado. No pequeno espaço de que dispomos
buscamos mostrar a essência básica da exploração desse conhecimento sobre argumentação no ensino e evidenciar sua
necessidade e importância e como se pode e deve trabalhar a argumentação.
Como pré-requisito dessa empreitada, vamos apresentar alguns pontos que julgamos fundamentais no ensino de
língua.
Em primeiro lugar a questão de para que se ensina língua. Nossa proposta tem sido que o objetivo prioritário de
ensino de língua, especialmente de língua materna em que o aluno já usa a língua, mas também no ensino de língua
estrangeira, seja desenvolver a competência comunicativa do aprendiz. A competência comunicativa é entendida aqui como
a capacidade de usar os recursos lingüísticos de modo adequado para produzir o efeito de sentido pretendido (no caso do
produtor do texto) ou perceber esse possível sentido do texto, seja ele o pretendido ou não pelo produtor do texto (no caso
do recebedor/compreendedor do texto) em uma situação específica e concreta de interação comunicativa. O
desenvolvimento dessa competência será obtido à medida que o aluno consiga usar cada vez um maior número de
recursos da língua de forma adequada para tal produção de efeito de sentido. Ou seja, o aluno passará a ser capaz de usar
(tanto na produção quanto na compreensão de textos) recursos da língua que antes não dominava. Esse objetivo surge
como prioritário ao se considerar que a comunicação, que se faz por meio de efeitos de sentido, é o propósito maior do uso
da língua.
A adequação do recurso envolve certamente a capacidade de escolha dos recursos lingüísticos mais
apropriados como pistas e instruções de sentido para produzir um determinado efeito de sentido, considerando-se não só o
que se quer dizer, o objeto do dizer, mas também todos os fatores envolvidos na situação de interação comunicativa em
termos não só de situação imediata de comunicação que é o contexto de situação (quem diz o que para quem, onde, em

139
que momento, por que razão, etc.), mas também em termos do contexto sócio-histórico-ideológico de funcionamento
discursivo da língua. A adequação terá que dar conta, por exemplo:
a) da escolha da variedade linguística apropriada em termos de dialetos e registros, mas também de modalidade
oral ou escrita;
b) da escolha do recurso cuja instrução/pista de sentido leva à ativação do sentido mais próximo possível do que
se quer dizer;
c) da escolha do elemento mais apropriado também ao cotexto.

Em segundo lugar está a questão de em qual plano e nível da língua devemos focar o ensino. Estamos
considerando como planos da língua o fonológico, o morfológico, o sintático, o semântico e o pragmático e teríamos três
níveis: o lexical, o frasal e o textual.
Se o objetivo do ensino é desenvolver a competência comunicativa, e uma vez que a comunicação se efetiva
apenas quando um interlocutor atribui um sentido, um efeito de sentido ao que o outro disse, a uma sequência linguística
proferida, que pela atribuição de sentido se torna texto, creio que este fato deve nos levar a uma outra opção em termos de
ensino de língua que é a de que devemos trabalhar mais com a significação. Portanto trabalhar com os significados e
sentidos, ou seja, discutir sempre com o aluno que elementos de significação os recursos linguísticos podem pôr em jogo
em um texto, conforme a situação em que o texto é usado. Desse modo a teoria envolvendo a classificação dos recursos
linguísticos e a correspondente nomenclatura, as regras, a descrição de funcionamentos será usada mais como subsídio
para montagem de atividades de ensino aprendizagem do que como objeto de ensino. Devemos, pois, trabalhar mais
detidamente com o como os recursos linguísticos (unidades dos diferentes planos e níveis, construções, categorias,
recursos suprasegmentais, etc.) significam nos textos, ou seja, devemos nos concentrar nos planos semântico e pragmático
e no nível textual. Os planos fonológico, morfológico e sintático e os níveis lexical e frasal importam na medida em que os
recursos (unidades, construções, categorias, etc.) neles identificados têm uma possibilidade significativa.
Para configurar a proposta de trabalho no ensino de argumentação que queremos propor, é preciso lembrar ainda
que geralmente o ensino de língua se organiza em quatro blocos distintos de atividades de ensino/aprendizagem:
a) as de compreensão de textos;
b) as de produção de texto;
c) as de ensino de vocabulário;
d) as de ensino de gramática.
As atividades de ensino de gramática hoje são também chamadas de atividades de reflexão linguística ou de
conhecimento linguístico, e nelas geralmente se trabalhava teorias com classificação de elementos da língua ou explicação
de fatos por regras diversas (como as de concordância, por exemplo). O que estamos propondo é que nesse bloco, como
nos demais, a ênfase seja na reflexão voltada para a significação (planos semântico e pragmático), inclusive para a reflexão
sobre a questão da argumentação. Seriam atividades do tipo que Travaglia (1996) propôs com o nome de gramática
reflexiva.
A proposta que se pretende configurar neste texto por meio de exemplificação é que o trabalho para desenvolver
as habilidades de argumentação nos textos pode e deve ser feito dentro desses quatro blocos de atividades. Para
evidenciar que isto é possível serão apresentados alguns exemplos de atividades de ensino/aprendizagem para elementos
envolvidos na argumentação, usando o subsídio dos conhecimentos desenvolvidos pela Semântica Argumentativa.

140
A exemplificação apresentada foi tomada às atividades propostas por Travaglia, Rocha e Arruda-Fernandes
(2009a, b, c, d) – volumes 6 a 9 em seu livro didático A AVENTURA DA LINGUAGEM - Língua Portuguesa (6º a 9º anos do
Ensino Fundamental). As atividades serão apresentadas tal como aparecem no livro didático, sem a formatação final e o
projeto gráfico. Isto será feito em todos os exemplos.
Começamos com exemplos de atividades de compreensão de textos. Continuamos com as de produção de texto
e terminamos com as de ensino de vocabulário e gramática.

2) Argumentação em atividades de compreensão de texto.

Exemplo 1.

O exemplo 1 foi extraído do volume destinado ao 6º ano, unidade 4 (Vida na Terra), capítulo 10 (Amigos.
Amigos? Amigos!) da seção “Dialogando com o/outro texto” que traz exatamente as atividades de compreensão de textos.
(Travaglia, Rocha e Arruda-Fernandes, 2009a, p. 197 e 198).
Neste capítulo, além do texto publicitário de ossinhos para cães apresentado aqui, havia outro texto intitulado “O
coelho e o cachorro” de autoria de Mário Prata que vai aparecer numa das perguntas para compreensão do texto
publicitário. No texto de Mário Prata há uma história usada como argumento para a conclusão de que as pessoas devem
dar menos atenção às aparências.
Neste exemplo, a partir da publicidade, que é um texto argumentativo stricto sensu e foi apresentado na seção
“Dialogando com outro texto 1” do capítulo, trabalha-se com o aluno a identificação da conclusão (ao pedir os objetivos na
pergunta 5), dos argumentos usados (na pergunta 6A) e de como eles estão expressos pelos recursos linguísticos (na
pergunta 6B).

DIALOGANDO COM OUTRO TEXTO 1


Leia o texto abaixo e, a seguir, responda as questões.

141
5. A publicidade e a história têm o mesmo objetivo? Se sim, diga qual é o objetivo comum
dos dois textos. Se não, diga o objetivo de cada um.
Não.
Texto 1: O coelho e o cachorro: Mostrar que as pessoas devem prestar menos atenção às
aparências, porque isto pode levá-las a cometer equívocos/enganos.
Texto 2: Publicidade: Levar as pessoas a comprarem para os cães o ossinho de determinado
fabricante.

6. A) A publicidade, ao tentar nos persuadir a comprar ossinhos da marca anunciada, só não


usa como argumento:

a) X o bom preço do produto.


b) nosso amor pelos animais.
c) a qualidade do produto.
d) a longa experiência do produtor.
e) X a beleza do produto.
f) a característica do produto de fazer bem aos cães.

B) Comprove com elementos da publicidade:


a) que o produtor tem experiência na produção de alimentos para os animais.
40 anos dando saúde para seu animal de estimação / é o resultado de muita
experiência e estudo.
b) que o amor pelos animais aparece como argumento.
Viver feliz é bom / Dê BEMBOM a seu amiguinho / A atitude da menina
abraçando o cachorro.
c) que o produtor diz fazer um produto de boa qualidade.
Se foi a C&G que fez é bom / é natural e atóxico, feito de aparas de couro bovino,
tratadas para oferecer o sabor ideal e a consistência certa

Exemplo 2:

O exemplo 2 foi extraído do volume destinado ao 8º ano, unidade 3 (Essa nossa vida),
capítulo 7 (A ciência da felicidade) da seção “Dialogando com o texto” que traz, como já dito,
as atividades de compreensão de textos (Travaglia, Rocha e Arruda-Fernandes, 2009c, p. 216
a 223).
Neste exemplo é trabalhada a questão dos tipos de argumentos: a) por autoridade
(citação de estudiosos, especialistas, pesquisas realizadas) (Cf. perguntas 13A e 13B); b) por
prova concreta, seja pela apresentação de depoimentos de vida (Cf. pergunta 15) ou de dados
de pesquisa (Cf. pergunta 17). Além disso, chama a atenção para a manipulação na
argumentação pela citação apenas de elementos favoráveis a uma conclusão (Cf. pergunta
14). Trabalha também a identificação de conclusões, como na pergunta 15 ao pedir ao aluno
que identifique qual a idéia que o exemplo de vida ajuda a sustentar.
No caso da argumentação por autoridade pode-se trabalhar na parte da reflexão
linguística as construções de conformidade (muito usadas na introdução de argumentos por
autoridade) e observar outras funções dessa mesma construção (por exemplo, eximir-se de
responsabilidade, conforme o tipo de texto – uma notícia – para dizer que determinada
afirmação se deve a outrem).
No capítulo do livro didático aparece a reportagem que reproduzimos a seguir. A partir
dessa reportagem são feitas as perguntas de compreensão na seção “Dialogando com o texto”,

142
das quais reproduzimos aqui apenas as que se relacionam de algum modo com a
argumentação.

A nova ciência da felicidade

Os psicólogos sempre se preocuparam com a doença. Agora voltam sua atenção para uma questão mais
desafiadora: o que nos torna felizes?

David Cohen e Aida Veiga


colaboraram Renata Leal e Tânia Nogueira

Há 2.400 anos, um sujeito chamado Sócrates, que perambulava pelas ruas de


Atenas, na Grécia, iniciou um debate que dura até hoje: o que é felicidade? Como atingi-
la? Até então, as pessoas acreditavam que dependiam basicamente dos desígnios dos
deuses - como explica o professor de História da Universidade da Flórida Darrin
McMahon, autor do recém-lançado livro Happiness: a History (Felicidade: uma História).
A própria origem da palavra denota isso. Happiness vem do anglo-saxão happ, acaso.
Felicitas, o termo latino que dá origem a felicidade, significa também ventura, sorte, algo
que lhe acontece.
O grande avanço de Sócrates foi tornar a busca da felicidade uma tarefa de
responsabilidade do ser humano, e não do acaso. Nos dois milênios que se seguiram, a
questão foi abordada por inúmeros pensadores, de Aristóteles aos grandes filósofos
cristãos, e a noção de felicidade oscilou entre várias tentativas de conciliar a conduta individual e a ordem divina. 'Tudo
mudou com o Iluminismo', afirma McMahon. 'No século XVIII, felicidade passou a ser algo a que todos temos direito como
seres humanos.' Um dos conceitos básicos da Revolução Francesa, marco da moderna sociedade ocidental, é que o
objetivo da sociedade deveria ser a felicidade geral. Na Constituição americana, já na segunda linha está escrito que todo
homem tem o direito inalienável à vida, à liberdade e à busca da felicidade. No Brasil, um exemplo da força desse apelo foi o
mote da campanha eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1989, Sem Medo de Ser Feliz.
Nos últimos dois séculos, portanto, felicidade tem sido um dos principais parâmetros para conferir sentido à vida
humana. E, agora, todo o nosso conhecimento sobre o assunto vem sendo virado do avesso.
Novas pesquisas mostram que não são as nossas conquistas, o nosso esforço, as
nossas realizações que nos tornam felizes. É o oposto. É a felicidade que, em grande parte,
Não é o sucesso que determina nossas conquistas. 'Fiz uma revisão dos 225 estudos mais importantes sobre felicidade
nos torna felizes. É a sob várias perspectivas, tanto em laboratório como em entrevistas', diz a psicóloga Sonja
felicidade que traz Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia, que está escrevendo um livro sobre o assunto. “Cheguei
sucesso à conclusão de que, ao contrário do que
muitos imaginam, é a felicidade que leva ao sucesso - e sucesso tanto no trabalho quanto na vida
pessoal, na escola, em tudo”, afirma.
“Pessoas felizes têm mais capacidade de perseguir seus objetivos e adquirir os meios de conquistá-los”, diz
Sonja. “Elas também costumam ser mais confiantes, otimistas, energéticas e sociáveis, e estão mais preparadas para

143
enfrentar situações difíceis”. Além disso, pessoas felizes tendem a ter relacionamentos mais longos, casamentos melhores,
ser mais saudáveis e viver mais.
O sucesso no trabalho decorre principalmente de seus laços sociais, segundo Sonja. “Pessoas felizes são mais
queridas, recebem mais tarefas, são mais bem avaliadas”, diz. Elas também trabalham com mais energia e são mais
criativas. “No mundo competitivo em que vivemos, a agressividade é muitas vezes uma característica importante. Mas
felicidade conta mais.”

Os estudos que dão base a essas conclusões são dos mais diversos tipos. Num deles, milhares de estudantes foram
entrevistados na década de 70 e, depois, nos anos 90. Aqueles que se consideravam mais felizes nos anos 70 continuavam
sendo mais felizes 20 anos depois - e ganhavam, em média, US$ 15 mil por ano a mais que os outros.
Num segundo estudo, borrifou-se um spray com vírus de gripe em centenas de voluntários. O número de pessoas
que ficaram resfriadas no grupo das mais felizes era a metade das pessoas menos felizes. Ou seja, seu sistema
imunológico era melhor. Outro estudo acompanhou um grupo de freiras desde que tinham 22 anos. As mais felizes viveram,
em média, dez anos a mais.
A psicóloga Laura Kubzansky, da escola de saúde pública de Harvard, acompanhou os dados de 1.300 homens
durante dez anos. Aqueles que se consideravam otimistas tiveram a metade dos índices de doenças do coração. “É um
efeito muito maior do que esperávamos encontrar”, disse, numa entrevista à revista Time. “Tão grande quanto a diferença
entre fumantes e não-fumantes.’

O psicólogo Edward Diener, da Universidade de Illinois, um pesquisador do


assunto tão prolífico que foi apelidado de Doutor Felicidade, resume as benesses em
sete pontos:
1. Pessoas felizes têm sistema imunológico melhor, e há alguma evidência
de que vivem mais;
2. Elas são mais criativas, pelo menos em laboratório;
3. Ajudam mais os outros e faltam menos ao trabalho;
EVOLUÇÃO
4. São mais bem-sucedidas (ganham mais, têm casamentos melhores);
A alegria de torcer é
5. Têm relações sociais mais profundas;
uma característica
6. Lidam melhor com situações difíceis;
herdada de nossos
7. Gostam mais de si mesmas e dos outros, e os outros gostam mais
ancestrais
delas.
O único ponto negativo é que as pessoas felizes são em geral piores na tomada de decisões: tendem a se guiar
mais por estereótipos e ser menos lógicas. Mesmo isso, no entanto, Diener põe em dúvida. “O exame minucioso de todas
as coisas, feito pelas pessoas infelizes, tem um custo substancial no longo prazo”, escreveu Diener em seu site
(www.psych.uiuc.edu/~ediener). “Esses indivíduos podem gastar tempo demais em problemas triviais, e portanto não agir
com eficiência.”

144
Certo, então os cientistas concluíram que é ótimo ser feliz. Como se ninguém desconfiasse. E o que eles têm a
dizer sobre como chegar lá? Algumas coisas muito interessantes. Para começar, vários estudos comprovam dados da
sabedoria popular: ter amigos, por exemplo, faz uma tremenda diferença para o bem-estar de uma pessoa. Segundo o
psicólogo Jonathan Haidt, autor do livro The Happiness Hypothesis (A Hipótese da Felicidade), precisamos fazer parte de
um grupo, algo que a vida moderna tem tornado difícil. Saúde, como era de esperar, também importa muito. Quando seu
time ganha, há uma explosão de felicidade (segundo o psicólogo Robert Cialdini, uma sensação similar à que nossos
ancestrais sentiam quando derrotavam inimigos em uma batalha). Conquistar coisas, por outro lado, dá mais prazer se você
tem de se esforçar por elas (estão certas, aparentemente, as moças que se fazem de difíceis para ser mais valorizadas).
Mas o senso comum também costuma se equivocar. É freqüente, por exemplo, a crença de
Professor(a),
que a beleza ajuda a ser feliz. “Diante de uma mulher muito bonita, a tendência é pensar que o universo
se o aluno perguntar, conspirou para que ela fosse feliz”, diz o psicanalista Jorge Forbes, presidente do Instituto de
explique que Análise Lacaniana e autor do livro Você Quer o Que Deseja?. “Mas poucos sabem como é difícil A euforia de
Lacaniana refere-se suportar uma qualidade que é tão evidente para todos. Vejo muitas mulheres que fazem análise ganhar na
àqueles que seguem a loteria não dura
justamente porque são muito bonitas e têm dificuldade de lidar com isso.”
proposta de Lacan, mais que alguns
meses
psicanalista francês.

Outra crença comum é que ganhar na loteria resolve a vida de qualquer um. Mas uma pesquisa dos
psicólogos Philip Brickman e Donald Campbell, amplamente replicada, demonstrou que a felicidade obtida com o
bilhete premiado não dura mais que alguns meses. Alguém em posição para entender isso é Valmir Amorim, que
ganhou na Sena, em 1988, o equivalente a R$ 12 milhões em dinheiro de hoje.

“Eu tinha 23 anos, era solteiro e trabalhava como pedreiro na reforma da LOTERIA
penitenciária do Estado”, diz Amorim. Ele comprou uma fazenda e gado e foi morar
Valmir Amorim
com a família no interior de São Paulo. “No começo, era infeliz porque não me ganhou na Sena.
deixavam em paz. Todo mundo pedia ajuda. Tive até de contratar segurança.” Amorim Comprou fazenda e
diz que, com o tempo, voltou a seu nível de satisfação anterior. Afirma que, gado. Mas diz que
recentemente, começou a “sentir um vazio”. “Como tinha as noites livres e os ainda não é feliz
três filhos crescidos, decidi voltar a estudar. Quero cursar a faculdade de Veterinária. É um sonho que me anima. Vou ficar
felicíssimo no dia em que me formar veterinário.”
O mesmo ocorre para o lado negativo. Estudos com paraplégicos mostram que, no intervalo de poucos meses,
eles relatam ter voltado a um nível de satisfação com a vida próximo ao que tinham antes de sofrer o acidente. O estudante
paulista Júlio Teruyu, vítima de uma bala perdida que causou a amputação de uma de suas pernas há seis anos, quando
tinha 14, concorda com a tese. “Fiquei revoltado,
xingava todo mundo, entrei em depressão quando tudo aconteceu”, afirma. “Melhorei ADAPTAÇÃO
quando comecei a fazer fisioterapia e vi outros tipos de deficiência piores que a minha. Com 14 anos, Júlio
Hoje, trabalho como analista de apólices e faço faculdade. Gosto muito de dançar e, Teruyu levou um tiro e
como uso prótese, faço o que quero. Tenho um grupo de dança e já participei até de teve a perna amputada.
concurso.” Teruyu diz que se tornou uma pessoa mais feliz. “Antes do acidente, eu era Hoje, diz ser mais feliz
que antes, porque 'dá
feliz, mas só dava importância para os bens materiais. Hoje, dou valor ao que realmente
valor ao que realmente
merece.”
importa'

145
Brickman e Campbell cunharam a expressão 'esteira hedonista' para explicar a situação.
Professor(a),
Segundo eles, as pessoas se adaptam aos prazeres, mais ou menos como você se acostuma à água
se o aluno perguntar, fria de um rio e, depois de alguns minutos, o que conta não é a temperatura em si, mas a variação da
explique que
temperatura. O termo ajuda a explicar o círculo vicioso que prende os consumistas: eles compram,
hedonista é a pessoa
que se dedica ao mas o produto que levam para casa perde a capacidade de satisfazer rapidamente. O psicólogo
prazer como estilo de evolucionista Geoffrey Miller, que pesquisa o comportamento de consumidores, afirma
vida. que todos os produtos não-essenciais deveriam vir com o seguinte aviso: “Cuidado! Pesquisas científicas advertem que
este produto vai aumentar seu bem-estar apenas no curto prazo, se tanto, e não afetará seu nível geral de felicidade”.
Por isso estaria correto aquele ditado, tão ironizado, de que dinheiro não traz felicidade. É o que indica um
levantamento feito pelo Target Group Index - Ibope Media especialmente para ÉPOCA: os brasileiros mais ricos têm os
menores índices de satisfação (leia o quadro ‘números da felicidade´”). Para eles, talvez valha a lição de Severino Pereira
da Silva, de 63 anos, morador de Lagoa Seca, município do Agreste paraibano: “Quem tem saúde, um teto para morar,
alguém para gostar e ainda reclama… só pode ser soberba”. Biró, como é chamado, é conhecido pelo sorriso largo e pelo
eterno otimismo. “Planto feijão e milho. Passo o dia na enxada. O trabalho é duro, mas a vida é boa. Quero mais o quê?
Tem comida em casa e minha véia para fazer um dengo de vez em quando.”
Outro problema no estudo da felicidade é que o termo não comporta definições precisas. É bem-estar? É satisfação?
É êxtase? É a serenidade da contemplação? Martin Seligman, presidente da Associação de Psicologia Americana (APA),
faz distinção entre três tipos de felicidade. A primeira é a vida prazerosa, o modo Hollywood de enxergar a felicidade. A
segunda é a 'boa vida', como a que Aristóteles pregava: a contemplação e as boas conversas, estar totalmente imerso em
uma experiência - que o psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi define como 'flow'. Para Csikszentmihalyi, atividades
esportivas, música, leitura, são atividades típicas de 'flow'. Mas o trabalho também pode ser. Ele cita os empreendedores
como uma classe especialmente propensa à felicidade, por entregar-se à atividade completamente.
Paulo Barosi, dono de restaurantes especializados em sushi em São Paulo e no Rio de Janeiro, é um exemplo.
“Sou irrequieto e, quando era criança, isso sempre foi um problema”, diz. 'Eu me sentia rejeitado porque não tinha liberdade
para fazer nada. Quando tomei o prumo de minha vida, os problemas acabaram. Interferir no mundo de uma maneira
positiva me traz uma felicidade incomensurável.
A terceira forma de felicidade é ter um sentido de vida, a sensação de ligar-se a algo maior que si mesmo. Pode ser
religião, pode ser um trabalho voluntário, uma missão. A psicóloga Flávia Bochernitsan afirma que só passou a se sentir
feliz quando se envolveu com o Projeto Felicidade, um programa de auxílio a crianças com câncer. “Eu era superocupada,
precisava cumprir uma série de metas impostas por mim mesma”, diz. “Sempre achei que o próximo fosse tarefa do
governo. Até que me envolvi sem perceber. Hoje, vejo que fazer uma criança com câncer sorrir é como um milagre. E isso
desabrochou em mim um milagre chamado felicidade.”
O acelerado avanço nos estudos sobre felicidade vem ocorrendo por causa de uma revolução no terreno da
psicologia. Em 1998, quando Martin Seligman se tornou o presidente da APA, ele assumiu a bandeira de mudar a ênfase
dos trabalhos acadêmicos na área. “Até hoje, a psicologia se preocupou em tratar as doenças”, escreveu Seligman no site
de ciência Edge (www.edge.org). “E foi muito bem-sucedida. Catorze grandes doenças mentais são hoje tratáveis.” O custo,
afirma ele, é que, ao pôr tanta ênfase no lado negativo, deixa-se de prestar atenção no positivo. “Como estávamos tentando
desfazer as patologias, não desenvolvemos intervenções para tornar as pessoas mais felizes”.

146
NÚMEROS DA FELICIDADE

DE BEM COM A VIDA

A maioria dos brasileiros diz estar satisfeita


com seu estilo de vida

Muito satisfeito 31%

Satisfeito 21%

Insatisfeito 18%

Muito insatisfeito 14%

Neutro 13%

Não sabe 3%

RIQUEZA TRISTE

Os mais ricos são os mais infelizes. A renda


média familiar mensal das pessoas que estão
totalmente satisfeitas é de R$ 1.694

Entre R$ 600 e R$ 1.499 39%

Até R$ 599 27%

Entre R$ 1.500 e R$ 2.999 16%

Entre R$ 3.000 e R$ 8.999 10%

Não declarou 6%

147
SUA VIDA ESTÁ MELHOR DO QUE
NO PASSADO?

Separados e viúvos têm índices de


satisfação menor

Casados 67%

Solteiros 66%

Separados 58%

Viúvos 49%

Fonte: Ipsos

R$ 9.000 ou mais 2%

148
(Parte de reportagem publicada em Época, 10 de abril de 2006, seção Sociedade.

Disponível em: < http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT1174471-1664,00.html>


>. Acesso 22 de abril de
2008)

DIALOGANDO COM O TEXTO

13 . A) Por que, em muitos momentos (Veja alguns exemplos abaixo), o repórter cita a fala de especialistas no assunto que
são pesquisadores, professores universitários, autores de livro ou relata pesquisas já desenvolvidas?

a) “Até então, as pessoas acreditavam que dependiam basicamente dos desígnios dos deuses - como explica o
professor de História da Universidade da Flórida Darrin McMahon, autor do recém-lançado livro Happiness: a
History (Felicidade: uma História).”
b) “Segundo o psicólogo Jonathan Haidt, autor do livro The Happiness Hypothesis (A Hipótese da Felicidade),
precisamos fazer parte de um grupo, algo que a vida moderna tem tornado difícil.”
c) “'Fiz uma revisão dos 225 estudos mais importantes sobre felicidade sob várias perspectivas, tanto em laboratório
como em entrevistas', diz a psicóloga Sonja Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia, que está escrevendo um
livro sobre o assunto.”
d) “'Tudo mudou com o Iluminismo', afirma McMahon.”
e) “O psicólogo Edward Diener, da Universidade de Illinois, um pesquisador do assunto tão prolífico que foi
apelidado de Doutor Felicidade, resume as benesses em sete pontos: [...]”

A reportagem está apresentando idéias sobre a felicidade. Para dar credibilidade ao que diz e influenciar as pessoas a
aumentarem sua adesão a estas idéias, o repórter apresenta estas idéias não como dele, mas como propostas por
especialistas, pesquisadores, estudiosos, que trabalham em universidades e são autores de livros sobre o assunto e,
portanto, autoridades cujo pensamento deve ser respeitado. É o argumento por autoridade.

Professor (a), durante a discussão dessa questão indique para os alunos que este é um modo de argumentar, usando
a autoridade de alguém, um especialista, alguém como muita experiência e, portanto, alguém reconhecidamente com
competência em dado assunto para dar opiniões bem fundamentadas e que por isto mesmo merecem/devem ser
acatadas como corretas. O mesmo com relação aos estudos científicos, as pesquisas.

B) Em muitos momentos o repórter cita pesquisas e estudos científicos realizados. Encontre alguns e explique
porque o repórter cita tais pesquisas e estudos científicos.
A resposta é semelhante à da questão A: é uma argumentação por autoridade, mas agora não de uma pessoa
apenas, mas a autoridade e credibilidade dos estudos científicos.

149
14. Na reportagem só ocorrem depoimentos, citações e resultados de pesquisa favoráveis à idéia de que o sucesso traz
felicidade ou de que a felicidade é obtida nas coisas simples.

a) Com base nisso, pode-se afirmar que não há pessoas, estudiosos ou resultados de pesquisa contrários a essa idéia?
b) Por que o autor utilizou-se apenas de fatos favoráveis?
a) Não. Muito provavelmente há pessoas com opiniões divergentes.

b) Para reforçar a sua posição sobre o assunto. Ele poderia ter colocado os fatos divergentes e rebatido as idéias que
não coincidem com o que ele propõe.

15. O que você observou na questão 13 é um modo de argumentar, para que as pessoas aceitem idéias apresentadas.
Outro modo de argumentar é apresentar fatos, acontecimentos ou casos que confirmam que o que se diz é realidade.
Assim, por exemplo, nos parágrafos 14 e 15, a história de vida de Valmir Amorim foi usada para mostrar que ganhar
dinheiro não traz felicidade e que a alegria de ganhar na loteria passa logo. Encontre na reportagem trechos em que o
repórter utilizou histórias reais, casos concretos para ajudar a aceitação de uma idéia pelo leitor. Diga qual a idéia que a
história ou caso sustenta.

No parágrafo 16, o exemplo de Júlio Teruyu para mostrar que a tristeza também passa rápido. No parágrafo 18, o exemplo
de Severino Pereira da Silva, para a idéia de que dinheiro não é necessário para ser feliz. No parágrafo 20, o exemplo de
Paulo Borosi, para mostrar que a imersão em uma atividade (o flow) traz felicidade. No parágrafo 21, o exemplo de Flávia
Bochernitsan, para mostrar que ter um sentido de vida, o estar ligado a algo maior traz felicidade.

17. Um outro modo de levar as pessoas a aceitarem idéias que se está apresentando é apresentar dados que comprovem
algo que se diz. Que dados são apresentados para:

a) Mostrar que os brasileiros tendem a se sentir satisfeitos.


Os dados da tabela com o título “De bem com a vida”.

b) Que a riqueza, o dinheiro não é suficiente para trazer felicidade.


Os dados da tabela com o título “Riqueza triste”.

c) Que as pessoas que perderam alguém acham que antes se sentiam melhor.
Os dados da tabela com o título “Sua vida está melhor do que no passado”.

3) Argumentação em atividades de produção de textos orais e escritos

Passamos agora aos exemplos de atividades de produção de textos. Para esta área de atividades apresentamos os
exemplos 3 e 4

Exemplo 3 (Produção de texto oral – uma discussão sustentada por argumentos):

150
O exemplo 3 foi extraído do volume destinado ao 6º ano, unidade 2 (Mundo social: eu, tu, ele), capítulo 4 (Dizer
como é). Este capítulo trabalha a descrição. A atividade aqui apresentada foi retirada da seção “Discutindo” que trabalha a
produção de textos orais, geralmente argumentativos, a partir de idéias sugeridas nos textos trabalhados. (Travaglia, Rocha
e Arruda-Fernandes, 2009a, p. 66 a 68).
Neste capítulo a partir do texto “Edmundo, o céptico” de Cecília Meirelles, a argumentação em produção de texto
oral é trabalhada, fazendo com que o aluno levante argumentos a favor de posições (conclusões) contraditórias e depois
verifique se os argumentos permitem fechar questão sobre algo polêmico. Desse modo se faz o aluno perceber que as
opiniões podem ser defendidas, sustentadas, mas nem sempre se pode comprovar que uma opinião é a que deve ser
considerada a única válida.

DIALOGANDO COM OUTRO TEXTO 2

Edmundo, o Céptico

Cecília Meireles

Naquele tempo, nós não sabíamos o que fosse cepticismo. Mas Edmundo era céptico. As pessoas aborreciam-se
e chamavam-no de teimoso. Era uma grande injustiça e uma definição errada.

Ele queria quebrar com os dentes os caroços de ameixa, para chupar um melzinho que há lá dentro. As pessoas
diziam-lhe que os caroços eram mais duros que os seus dentes. Ele quebrou os dentes com a verificação. Mas verificou. E
nós todos aprendemos à sua custa. (O cepticismo também tem o seu valor!)
Disseram-lhe que, mergulhando de cabeça na pipa d'água do quintal, podia morrer afogado. Não se assustou com a
idéia da morte: queria saber é se lhe diziam a verdade. E só não morreu porque o jardineiro andava perto.
Na lição de catecismo, quando lhe disseram que os sábios desprezam os bens deste mundo, ele perguntou lá do
fundo da sala: "E o rei Salomão?" Foi preciso a professora fazer uma conferência sobre o assunto; e ele não saiu
convencido. Dizia: "Só vendo." E em certas ocasiões, depois de lhe mostrarem tudo o que queria ver, ainda duvidava.
"Talvez eu não tenha visto direito. Eles sempre atrapalham." (Eles eram os adultos.)
Edmundo foi aluno muito difícil. Até os colegas perdiam a paciência com as suas dúvidas. Alguém devia ter tentado
enganá-lo, um dia, para que ele assim desconfiasse de tudo e de todos. Mas de si, não; pois foi a primeira pessoa que me
disse estar a ponto de inventar o moto contínuo, invenção que naquele tempo andava muito em moda, mais ou menos
como, hoje, as aventuras espaciais.
Edmundo estava sempre em guarda contra os adultos: eram os nossos permanentes adversários. Só diziam
mentiras. Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto escuro,
passando por várias etapas muito variadas). Edmundo reconhecia a sua inutilidade de lutar; mas tinha o brio de não se
deixar vencer facilmente.
Numa festa de aniversário, apareceu, entre números de piano e canto (ah! delícias dos saraus de outrora!), apareceu
um mágico com a sua cartola, o seu lenço, bigodes retorcidos e flor na lapela. Nenhum de nós se importaria muito com a
verdade: era tão engraçado ver saírem cinqüenta fitas de dentro de uma só... e o copo d'água ficar cheio de vinho...
Edmundo resistiu um pouco. Depois, achou que todos estávamos ficando bobos demais. Disse: "Eu não acredito!" Foi
mexer no arsenal do mágico e não pudemos ver mais as moedas entrarem por um ouvido e saírem pelo outro, nem da

151
cartola vazia debandar um pombo voando... (Edmundo estragava tudo. Edmundo não admitia a mentira. Edmundo morreu
cedo. E quem sabe, meu Deus, com que verdades?)

(Texto extraído do livro "Quadrante 2", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, p. 122.)

DISCUTINDO
1. Agora você já pode ter uma opinião. Ser um céptico é bom ou ruim? Será que sua opinião é a mesma de seus
colegas?
2. Escolha uma das duas posições:

SER CÉPTICO É BOM


ou
SER CÉPTICO É RUIM

Faça uma lista de razões ou motivos para sua posição. Depois, discuta isto com a sala toda.
3. A turma divide-se em dois grupos:
Grupo 1: Aqueles para quem ser céptico é bom.

Grupo 2: Aqueles para quem ser céptico é ruim.

a) O quadro deve ser dividido em 2 e um representante de cada grupo vai registrando os argumentos que justificam
a opinião de cada grupo.
b) Após conhecer os argumentos de cada grupo, a turma discute se é possível decidir se ser céptico é bom ou ruim.

Exemplo 4:

O exemplo 4 foi extraído do volume destinado ao 8º ano, unidade 3 (Essa nossa vida), capítulo 9 (Viva feliz sem
drogas). A atividade foi retirada da seção “Produzindo.......” em que geralmente se trabalha com a produção de textos
escritos. (Travaglia, Rocha e Arruda-Fernandes, 2009c, p. 266 a 271).
Neste exemplo trabalha-se a produção de um texto escrito argumentativo, seguindo uma estrutura argumentativa
já vista em texto lido: narrativas (que funcionam como argumentos por exemplos – prova concreta) que sustentam uma
conclusão. A estrutura a ser imitada é a do terceiro texto que aparece no capítulo: “A menina dos fósforos” de Lídia
Rosenberg Aratangy que transcrevemos a seguir. Como se pode ver a autora apresenta uma história para argumentar
sobre a perda da realidade pelos usuários de drogas. A atividade leva também o aluno a tomar uma ideia como conclusão
ou tese que quer defender (Cf. 1º passo) e correlacionar com esta ideia fatos que podem sustentá-la (Cf. 2º passo). A
atividade começa a alertar o aprendiz de que deve considerar o seu auditório e que o texto pode ter de ser construído de
determinado modo em função das características do auditório (Cf. 3º passo).
O exemplo evidentemente trabalha outras habilidades não diretamente relacionadas com a argumentação, como
por exemplo: a) saber que um texto, além da estrutura argumentativa básica vista acima, tem uma estrutura tópica e que
portanto é preciso dar uma estrutura desse tipo ao texto (Cf. 4º passo – itens 1º a 3º); b) a necessidade e importância do

152
título do texto (Cf. 4º passo – item 4º); c) como estruturar um livro (esta parte da atividade não foi transcrita aqui, por não
estar diretamente relacionada com a argumentação); etc. Além disso chama-se a atenção para a necessidade de revisar os
textos que escrevemos em vários aspectos (Cf. 5º passo)

TEXTO 3:

A MENINA DOS FÓSFOROS

Lídia Rosenberg Aratangy

Era véspera de Ano Novo, e a menina (tão pequena, coitadinha!) que vendia fósforos estava com muito frio e com
muita fome. Seu estoque de fósforos coloridos estava intacto, ninguém tinha comprado nada. Ainda por cima, ela tinha
perdido seus chinelos na neve e seus pezinhos estavam enregelados.
Ela sabia que não podia voltar para casa, pois tinha certeza de que iria levar a maior surra do pai, com quem vivia
sozinha, desde a morte da mãe. Ele batia nela constantemente e contava com o dinheiro da venda dos fósforos para
comprar comida e bebida. A menina não podia chegar de mãos vazias.
O frio aumentou e ela resolveu acender um só dos fósforos coloridos, para se aquecer um pouco.
A pequena chama azulada trouxe mais do que um pouco de calor. Na luz bruxuleante do fósforo, seus olhinhos
chorosos vislumbraram um fogareiro de ferro, onde a lenha crepitava e esquentava tanto, tanto, que ela estendeu também
os seus pezinhos, para que se aquecessem.
Mas, muito depressa, a chama se extinguiu, o fogareiro desapareceu, e a menina se viu sentada no mesmo lugar,
no chão gelado, tendo nas mãos o resto apagado do fósforo.
A noite, no entanto, parecia agora mais escura, mais fria, mais assustadora do que antes, quando ela ainda não
tinha visto a luz mágica da pequena chama colorida.
Riscou rapidamente um segundo fósforo. Desta vez, seus olhos se depararam com a visão de uma sala de jantar,
com a mesa posta, tendo ao centro uma enorme travessa com um peru assado, rodeado de ameixas, uvas e maçãs.
Apagou-se o fósforo. De novo, a menina se viu no frio da noite, enregelada e faminta, diante de uma parede
escura e triste, que agora lhe parecia ainda mais escura, ainda mais triste.
Mais que depressa, a menina acendeu um terceiro fósforo. Desta vez, ela se viu diante da figura carinhosa de sua
mãezinha, morta há tanto tempo.
Com medo de que a imagem querida também se desvanecesse no ar, como o fogareiro, como a comida, ela se
põe apressadamente a acender um fósforo atrás de outro, até queimar todo o pacote. A luz assim produzida tinha uma
claridade mais brilhante do que o dia, seu calor parecia mais quente do que o Sol.
E a um aceno sorridente de sua mãe, a menina deixou-se conduzir, segurando com suas mãozinhas frias as mãos
quentes e macias que sua mãezinha lhe estendia. Seguiu-a, em direção às mais brilhantes estrelas do firmamento.
Quando clareou a fria manhã do Ano Novo, os passantes encontraram a menina sentada no chão, cercada pelos
restos de fósforos queimados. Com as faces arroxeadas, ainda com um sorriso nos lábios. Morta de frio.
— Quis aquecer-se, coitadinha! Disse alguém, ao passar.

153
♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦♦

Muitas vezes, a realidade em que a gente vive é tão ruim, tão feia e tão triste, que dá vontade de escapar dela,
mesmo a qualquer preço.
O problema é que, em geral, as drogas fazem com que as pessoas acabem se esquecendo de que havia uma
realidade da qual queriam fugir — e as pessoas passam a acreditar que não foram elas que fugiram, mas que foi a
realidade que mudou. Isto é, acabam acreditando que conseguiram provocar alguma mudança no mundo e resolver algum
problema, quando o que conseguiram foi apenas colocar uma espécie de lente para mudar o seu jeito de ver um mundo que
continua tão ruim, tão feito e tão triste como antes. Só que mais perigoso.
Essa espécie de sinal de realidade, essa capacidade de distinguir entre o real e o imaginário — que se perde com
a droga — é um dos mecanismos responsáveis pela sobrevivência humana.
Quando um bebê recém-nascido está com fome, é provável que ele crie, em sua fantasia visões do seio da mãe,
farto de leite. Esse fenômeno ajuda o bebê a tolerar a privação por algum tempo: permite que ele se acalme e não caia no
maior desespero, enquanto a mãe não vem atendê-lo.
No entanto, se não houvesse algum sinal que identificasse aquilo como irreal, se o bebê acreditasse mesmo que
estava sendo alimentado por aquele seio fantasma e se sentisse saciado com isso, acabaria por morrer de fome.
Como a Pequena Vendedora de Fósforos.
ARATANGY, Lídia Rosenberg. Doces venenos: conversas e desconversas sobre drogas. São Paulo:
Editora Olho d’Água, 1991, p. 173-175.

A seguir a atividade de produção de texto em que se trabalha o que dissemos antes do texto.

PRODUZINDO UM TEXTO ARGUMENTATIVO

Uma pessoa pode ou não ajudar outra a ser mais feliz?

Qual resposta você daria a esta pergunta? Você escreverá um texto argumentativo, com uma organização
semelhante à do texto escrito pela psicóloga Lídia Rosenberg Aratangy, para mostrar sua opinião sobre este assunto. Seu
texto e o de seus colegas deverão compor um livro que poderá ficar na biblioteca para ser lido por toda a comunidade
escolar. Para isso siga os passos apresentados abaixo.

1º passo: deixar claro sua opinião sobre o assunto

Você viu no Capítulo 6 que argumentar é tentar influenciar o outro em relação a um modo de pensar ou agir. Por
isso, primeiro, você precisa saber com clareza qual o seu ponto de vista sobre o assunto. Há diversas formas de responder
a pergunta acima. Veja algumas possibilidades:

Uma pessoa pode ajudar outra a enfrentar um problema, superar dificuldades e,


conseqüentemente, ser mais feliz.

ou

A pessoa precisa aprender a se virar, sem depender dos outros. Muito ajuda quem não
atrapalha.

ou

154
Ninguém pode ajudar o outro a enfrentar um problema ou superar dificuldades, muito
menos a ser mais feliz. O máximo que se pode fazer é dar apoio moral.

Qual ponto de vista ou tese você acha mais real? Se você não concordar com os pontos de vista acima, pode criar
outro, desde que responda de alguma forma a pergunta Uma pessoa pode ou não ajudar outra a ser mais feliz?

2º passo: buscar depoimentos, casos reais que sirvam de argumentos para sua tese.

No texto “A menina dos fósforos”, a autora utiliza-se de um conto como argumento. Você utilizará de casos reais.
Você sabe de algum caso real que comprove a sua opinião sobre este assunto? Por exemplo:
Se você for sustentar a tese de que um amigo pode ajudar uma pessoa a encontrar a solução para um problema,
procure se lembrar de um caso em que isto realmente aconteceu com você ou com uma pessoa conhecida. Ou ainda, de
um caso em que, por falta de ajuda, uma pessoa sofreu muito ou entrou em um caminho muito perigoso.
Se você for sustentar a tese de que ninguém ajuda o outro a resolver problemas pessoais, procure se lembrar de
um caso em que uma pessoa foi ajudar outra, e isto só trouxe problemas; ou de alguém que, com seus próprios esforços,
conseguiu superar um período muito difícil de sua vida.

Se não se lembrar de nenhum caso que possa ilustrar sua posição, converse com parentes, amigos,
professores, conhecidos. Antes pense como será essa conversa e como registrá-la.

3º passo: imaginar o leitor.

Antes de escrever o texto, você precisa pensar nas pessoas que irão lê-lo. Imagine como será o leitor do livro, o
que pensa sobre o assunto. Se seu texto argumentativo deverá influenciar o leitor, então encontre a melhor forma de
apresentar suas idéias para conseguir seu objetivo. Por isso, procure criar uma imagem deste leitor e, ao escrever, imagine
como ele irá reagir ao ler o que você está escrevendo.

4º passo: escrever o texto

Você já tem:
- a tese
- argumentos
- imagem de seu leitor

Agora, mãos à obra. Não se esqueça que seu texto deverá ter a seguinte estrutura:

(1º) depoimentos ou casos reais – relate um ou mais casos escolhidos entre os que você já conhecia ou entre os
depoimentos que você ouviu.

(2º) exposição de seu ponto de vista - a partir do(s) caso(s) relatado(s), desenvolva suas idéias sobre o assunto. Seja
convincente!

(3º) conclusão – elabore uma conclusão para seu texto: pode ser um resumo das idéias apresentadas ou uma sugestão
para seu leitor de como agir. Ou ainda a citação de algum trecho que você leu ou palavras que você ouviu que reforçam sua
opinião.

155
(4º) título – se ainda não deu um título a seu texto, está na hora de fazê-lo. Você pode utilizar a pergunta que motivou a
produção do texto ou criar um novo. Se resolver produzir seu próprio título, saiba que um título deve ser atraente e
sugestivo: ao mesmo tempo em que deve dar uma idéia do que será tratado no texto, deve despertar o interesse do leitor.
Seja criativo!

5º passo: revisar o texto.

1. Terminada a primeira versão de seu texto, releia-o para ver se é preciso corrigir ou acrescentar algo. Verifique:

• se os depoimentos ou casos foram relatados claramente;

• se as idéias expostas realmente se relacionam com os depoimentos ou casos;

• se o texto atende ao objetivo: convencer o leitor de que sua opinião está adequada ou, pelo menos, deve ser
considerada.

• se as palavras e construções foram empregadas adequadamente, de acordo com a situação comunicativa, a


norma padrão e as convenções ortográficas.

• se os sinais de pontuação foram empregados adequadamente, facilitando a leitura e ajudando, quando for o caso,
a tornar o texto mais expressivo.

2. Reúna-se com um colega para concluir a revisão: você faz a revisão do texto de seu colega e ele faz a do seu texto.
Sigam as mesmas orientações do item anterior.
 O objetivo desta revisão é ajudá-lo a produzir um bom texto, por isso aceite as sugestões de seu colega e, por
outro lado, seja gentil e respeitoso ao fazer a apreciação do texto de seu colega.

4) Argumentação em atividades de ensino de vocabulário e gramática.

Passamos agora aos exemplos de atividades de ensino de vocabulário e gramática. Para esta área de atividades
apresentamos os exemplos 5 e 6

Exemplo 5

O exemplo 5 foi extraído do volume destinado ao 7º ano, unidade 3 (Essa nossa vida), capítulo 9 (Vamos malhar?) da
seção “Pensando a língua” que traz exatamente as atividades de ensino de vocabulário e de gramática. (Travaglia, Rocha e
Arruda-Fernandes, 2009b, p. 196-198 e 203-204)
Nas atividades deste exemplo o objetivo é que o aluno aprenda sobre o funcionamento e valor dos operadores
argumentativos até, nem, apenas e quase a partir de passagens do texto “A noite de glória de J-Mac” que aparece na
seção “Dialogando com outro texto”. É preciso registrar que os autores já exploraram o uso de até como operador
argumentativo em outras atividades que antecederam a esta, pois aparecem no volume do 6º ano. Aqui se exploram novos

156
aspectos inclusive a sua oposição a nem. As atividades levam os alunos a aprender o significado destes operadores e a
saber quando usá-los e como o mesmo valor ou significação pode ser usada como positiva ou negativa dependendo da
situação de uso e do texto.

A noite de glória de J-Mac

Garoto autista brilha em jogo de basquete de sua escola, recebe visita de Bush e já está na mira de Hollywood

Marcelo Musa Cavallari

Jason McElwain é o mais improvável dos heróis. Autista, falta-lhe a capacidade de


entender a linguagem corporal e emotiva, que é a base dos relacionamentos sociais. Mesmo
assim, tornou-se uma celebridade na escola de ensino médio em que estuda. Jason é
baixinho. Mede apenas 1,67 metro. Mas o maior feito de sua vida, exatamente aquele que o
tornou célebre em sua escola, foi obtido numa quadra de basquete. Sua experiência é um
típico exemplo de histórias de superação individual que encantam os americanos há décadas.
E ninguém conhece melhor o apelo desse tipo de história que Hollywood.
Vários estúdios já procuraram a família do rapaz de 17 anos para tentar comprar o
direito de levar sua aventura para o cinema. Entre eles os gigantes Disney e Warner Bros. O
que, afinal, Jason tem de tão especial que justificou até uma visita do presidente George W.
Bush? VITÓRIA
A fama dele surgiu no que era para ser apenas um gesto simpático do treinador do
Jason arremessa
time de basquete da Greece-Athena High School, uma escola de ensino médio em Greece, para marcar uma de
subúrbio de Rochester, Estado de Nova York. Jason adora basquete. Mas é pequeno demais suas cestas de três
para a seleção da escola. pontos
A solução foi torná-lo assistente do técnico. Jason passou as duas
'Eu não me
últimas temporadas distribuindo água e toalhas para os jogadores, incentivando o time, ajudando
importo com
nos treinos e dando dicas. Era o mais animado membro da equipe. Como recompensa, o treinador
essa condição
Jim Johnson disse que talvez o pusesse em quadra no último jogo em casa da temporada. Os
de autista, é só
Trojans, nome do time da Greece-Athena, disputavam o título estadual de sua categoria e,
minha maneira
portanto, não havia espaço para brincadeiras. Mas o pequeno ginásio estava lotado de colegas de
de ser'
Jason que foram lá só para vê-lo.
Quando o time da casa abriu uma vantagem confortável, Johnson chamou Jason para
entrar em quadra. Faltavam quatro minutos para o fim da partida. A primeira bola que Jason recebeu e arremessou passou
longe da cesta. A segunda também. Havia decorrido um minuto de jogo. Aí começou a noite de glória do garoto autista. Nos
três minutos restantes, Jason fez seis cestas de três pontos e uma de dois. Desempenho impressionante para qualquer
jogador.

157
O ginásio veio abaixo. Jason foi carregado pelos colegas, que
invadiram a quadra. Um deles havia filmado tudo. Aí começou a segunda parte
da aventura de Jason. O filme com suas cestas foi mostrado nas principais redes
de TV dos EUA e comoveu muita gente. Entre elas o presidente Bush.
Na sexta-feira 19, a caminho de um compromisso em Canandaigua,
também no Estado de Nova York, Bush mandou que seu avião, o Air Force One,
parasse por algum tempo num aeroporto nas imediações de Rochester. Lá,
encontrou Jason e sua família. “Posso te chamar de J-Mac?”, perguntou Bush ao
Jason é carregado pelos fãs na
menino, querendo usar o apelido pelo qual Jason é conhecido na escola. “Você quadra da escola
pode me chamar de George Dubya”, disse o presidente, autorizando o garoto a
usar o apelido com que é conhecido entre os amigos.
“Nosso país ficou comovido com uma emocionante história ocorrida numa quadra de basquete”, disse Bush. “É a
história de um jovem que encontrou seu momento em uma quadra de basquete e tocou o coração de cidadãos por todo o
país.” Bush confessou que ele mesmo chorou ao ver Jason jogar, no noticiário noturno.
Para o diretor-atlético da escola de Jason, o que aconteceu é especialmente significativo. “Temos obrigação,
como sociedade, de encontrar um jeito de incluir pessoas com habilidades diferentes”, disse Randolph Hutton. “Tenho
esperança de que o que aconteceu ajude a abrir portas, ajude a abrir alguns olhos.” Hutton sabe do que está falando. É pai
de um garoto autista de 12 anos.
O autismo ainda é pouco compreendido. Com causas neurológicas surgidas ainda durante a gestação, a síndrome
tem uma variedade grande de manifestações. O que há de comum entre todas elas é a dificuldade da pessoa em se
relacionar com outras. Alguns autistas jamais saem de seu próprio mundo. Outros, como Jason, são capazes de superar as
barreiras e viver uma vida normal, embora convivam sempre com dificuldades de entender sinais emocionais nos gestos e
na fala de outras pessoas.
Jason não começou a falar antes dos 5 anos. Hoje, aos 17, está no fim do
ensino médio. Junto com colegas da mesma idade, portanto. Ele ainda não
consegue interpretar gestos ou o tom de voz das pessoas. Fala alto demais às
vezes. Ou ri excessivamente e por muito tempo em algumas situações sociais.
Mas quem o conhece sabe que basta avisá-lo disso. “Não me importo muito com
essa condição de autista', diz Jason. 'É só minha maneira de ser. O conselho
que dou a outros autistas é que continuem se esforçando, continuem sonhando,
vocês vão ter sua chance e vão se realizar.”

VISITA (Fotos: Eric Sucar/AP, Charles Dharapak/AP)


Ao lado do pai e da mãe, J-
Mac recebe George Dubya no (Época, 27 de março, 2006 p. 47- 48)

aeroporto de Rochester

158
PENSANDO A LÍNGUA

Aprendendo mais sobre as palavras

3. A) “O que, afinal, Jason tem de tão especial que justificou até uma visita do presidente George W. Bush?”

Entre as declarações abaixo, escolha a que melhor explica o emprego de até neste trecho, do texto “A noite de
glória de J-Mac” e copie-a em seu caderno.

• até indica um movimento com um limite no espaço, como em “Fomos até a casa de Pedro, buscar a bola”.
• até introduz o argumento mais forte (visita do presidente americano) para mostrar que Jason era uma pessoa
realmente muito especial.
• até introduz um movimento com um limite no tempo, como em “Esperamos até 10 horas para começar o jogo.”
Resposta: Até introduz o argumento mais forte (visita do presidente americano) para mostrar que Jason era uma pessoa
realmente muito especial.

B) Se o jornalista tivesse dito:

“Ninguém deu importância para o feito de Jason. Nem sua mãe o parabenizou”,

qual palavra indica exatamente o contrário de “até” na reportagem sobre Jason? Por que aqui teríamos uma “direção
contrária” no pensamento expresso? Explique.

A palavra “nem”. É um pensamento contrário porque o máximo do desprestígio é nem a mãe de alguém lhe dar os parabéns
pelo que fez.

4. Observe os trechos abaixo do texto “A noite de glória de J-Mac”.

• “Mesmo assim, tornou-se uma celebridade na escola de ensino médio em que estuda. Jason é baixinho. Mede
apenas 1,67 metro. Mas o maior feito de sua vida, exatamente aquele que o tornou célebre em sua escola, foi
obtido numa quadra de basquete.
• “A fama dele surgiu no que era para ser apenas um gesto simpático do treinador do time de basquete da Greece-
Athena High School, uma escola de ensino médio em Greece [...]”

Professor(a), perceber os valores de “apenas” e “quase”, que são discutidos aqui, não é fácil. Ajude os alunos, promovendo
uma discussão com a turma.

Agora responda:

159
A) O uso de apenas nos trechos acima, indica que “ter uma altura de 1,67m” e “ser um gesto simpático do treinador”
é algo visto como positivo ou negativo? Por quê?

Negativo, tanto que é relacionado com o jogo de basquete de que J-Mac gostava e em que é preciso ser alto para ser um
jogador. Então ter 1,67m é algo que atrapalha, impede seu sonho de ser jogador de basquete. “Apenas” indica que a altura
(uma quantidade) é pequena, pouca. Por outro lado o gesto do treinador não era um gesto que mostrava que ele acreditava
no potencial de Jason, mas apenas foi uma condescendência para dar um prazer a um menino com problemas.

B) (i) Observe os dois trechos a seguir e diga qual a diferença entre eles.

a) Faltavam apenas quatro minutos para o fim da partida, nada mais podia ser feito para reverter o
resultado do jogo.
b) Faltavam quase quatro minutos para o fim da partida e muito podia ser feito para reverter o resultado do
jogo.
Em a) há “apenas” e “nada mais”; em b) “quase” e “e muito”.

(ii) O que aconteceria se trocássemos os dois segmentos finais dos trechos (a) e (b), como feito abaixo?
Alguém usaria períodos como estes?

a´) * Faltavam apenas quatro minutos para o fim da partida, muito podia ser feito para reverter o resultado
do jogo.

b´) *Faltavam quase quatro minutos para o fim da partida, nada mais podia ser feito para reverter o
resultado do jogo.

Os períodos são estranhos, ficam meio sem sentido. Dificilmente alguém usaria períodos como estes.

(iii) Observe novamente os trechos (a) e (b) e responda: que diferença de sentido você percebe nos dois
trechos de (i)?

Com “apenas” o tempo que falta para o final do jogo (quatro minutos) é visto como pouco tempo, o que é percebido como
algo negativo para fazer alguma coisa para reverter o resultado do jogo. Já com “quase” o tempo de 4 minutos é visto
positivamente, pois é visto como muito tempo, como tempo suficiente para alterar o resultado do jogo. “Quase” indica a
quantidade como próxima de uma totalidade, o que acarreta a idéia de muito.

C) Diga que palavra (apenas ou quase) substitui o símbolo  nos trechos abaixo, de acordo com o exigido pelo
sentido.

a) Esse menino tem 8 anos, mas já tem  1,67m de altura.


b) João é jogador profissional de vôlei, mas tem  1,67m de altura.
c) Ele não pode apanhar as goiabas, porque ele tem  1,50 m e, por isto, não pode alcançá-las.
d) Seu irmão pode limpar as prateleiras, não terá problemas para alcançá-las, pois tem  1, 70m.
a) quase b) apenas c) apenas d) quase.

D) Observe os textos abaixo.

160
a) Rafaela não é gulosa. Ela foi à festa e comeu apenas dez salgadinhos.
b) Depois da festa João sentiu-se mal, pois comeu quase trinta salgadinhos.
Apenas e quase continuam com o mesmo valor básico visto em A, B, C: apenas dá idéia de que se está falando de pouco
ou de pequena quantidade e quase, ao contrário, dá idéia de muito, grande quantidade. Aqui as quantidades
acompanhadas por “apenas” e “quase” são vistas como positivas ou negativas? Esse valor coincide com o que vimos em B
e C?

A quantidade de 10 salgadinhos acompanhada por “apenas” é vista como positiva tendo como parâmetro a gula e a
quantidade de 30 salgadinhos acompanhada por “quase” é vista como negativa, por provocar mal estar, portanto o valor de
positivo e negativo é o inverso do que vimos em B e C. Isto mostra que ser muito ou pouco será positivo ou negativo
dependendo da circunstância, da situação.
NÃO ESQUEÇA

• A palavra apenas marca a quantidade que acompanha como pequena, pouco, o que
pode ser visto como positivo ou negativo, conforme as circunstâncias.
• A palavra quase marca a quantidade que acompanha como próxima de uma
totalidade, o que acarreta a idéia de muito, o que pode ser visto como positivo ou
negativo, conforme as circunstâncias.

Exemplo 6

O exemplo 6 foi extraído do volume destinado ao 8º ano, unidade 2 (Mundo social: eu, tu, ele), capítulo 4 (A África no
Brasil) da seção “Pensando a língua” que, como vimos no exemplo 5, traz as atividades de ensino de vocabulário e
gramática. (Travaglia, Rocha e Arruda-Fernandes, 2009c, p. 124-127 e 131-132).
Neste exemplo as atividades trabalham com o uso argumentativo dos adjetivos, da adjetivação e outros recursos para
caracterização dos seres, das entidades. O objetivo é levar o aluno a perceber que a escolha dos recursos linguísticos (no
caso os recursos de caracterização: adjetivos, particípios, locuções adjetivas, orações adjetivas e outros recursos como os
próprios substantivos usados com essa função) se relaciona diretamente com os objetivos do produtor do texto, com a
sustentação da idéia que ele quer defender. Isto é feito pela análise de recursos de caracterização que aparecem no texto
“O continente é um dos maiores do planeta, a África” que aparece na seção “Dialogando com outro texto 3”, cujas questões
1 e 6 são apresentadas aqui, por se relacionarem de algum modo com a argumentação. A questão 1 porque pede ao aluno
para dizer o provável objetivo do autor ao escrever o texto, o que como vimos é a identificação da conclusão ou tese da
argumentação. A questão 6, na compreensão do texto, chama a atenção para efeitos argumentativos de modalidades
usadas, aproveitando o conhecimento que o aluno vem acumulando sobre modalidades, inclusive nos volumes anteriores.

DIALOGANDO COM OUTRO TEXTO 3

161
Texto 4

O CONTINENTE É UM DOS MAIORES DO PLANETA, A ÁFRICA

O continente é um dos maiores do planeta, a ÁFRICA, e no seu interior o grande conjunto de etnias formou uma
Cultura milenar — anterior à chamada cultura ocidental cujo marco inicial é a Grécia — forte a ponto de deixar marcas em
vários países, entre os quais o Brasil. A cada período histórico que a “civilização branca” tomou contato com a “civilização
negra”, a vitória pelas armas resultou sempre numa derrota ante as influências que a Cultura Negra lavrou na trajetória de
cada nação confrontada.

Assim foi com o Brasil, onde a chegada dos escravos negros representou algo muito maior e mais rico do que a
mão-de-obra barata. Com esses negros – muitos deles nobres e guerreiros em suas terras de origem – desembarcou aqui
também uma Cultura que soma mais de 3.000 anos antes de Cristo, seja na língua falada e grafada, seja nos valores, nos
deuses, na medicina, na culinária, até na música que nascia dos mágicos e famosos tambores africanos.

É inegável que a face do brasileiro está marcada por todos esses traços e que é preciso, necessário e urgente
valorizá-los, a começar pelo reconhecimento de que a população negra que aqui aportou, trazida pelos portugueses, não
era oriunda de “tribos” ou “grupos étnicos” simplistas, mas representantes de uma civilização importante, forte e sábia.
Tomemos alguns exemplos, como a brava e guerreira Nzinga Mbandi Ngota Kiluanji, a Rainha Nzinga, também
Rainha Ginga, que governou Ndongo, atual Angola, e de seu trono, com altivez e sabedoria, enfrentou os portugueses que
ali chegavam como invasores dispostos a escravizar seu povo. Em pleno século XVII (1623), essa mulher soube usar força
e meios estratégicos para manter seu povo livre e soberano, como também estabelecer alianças e acordos diplomáticos
que mantiveram seu reino.

Foi dessa força que se alimentaram os quilombos no Brasil, cujo exemplo maior está em Palmares e na figura de
Zumbi, que temos de olhar como um herói e não como um transgressor da ordem na época estabelecida pelo poder branco
e colonizador. Temos também de reconhecer mulheres importantes nessas lutas, como Aqualtune, princesa na África,
porque filha do Rei do Congo, aqui uma das líderes importantes em Palmares, organizando, ao lado de Ganga Zumba, a
fuga de negros visando fundar o Estado de Palmares. Importante também foi Teresa do Quariterê, rainha do Quilombo
Quariterê, que liderou durante duas décadas no século XVIII.

Com os africanos que desceram das caravelas lusas, veio também o saber científico, que o homem branco não
reconhece por não estar grafado na escrita, mas que soma mais de 3.000 anos antes da nossa era. A medicina que até
hoje se pratica nas beberagens, infusões, banhos, etc., com ervas, raízes, folhas era “rústica”, mas concorreu para dar
origem à medicina alopática de hoje.

Estudiosos como Cheikh Anta Diop já reconheceram conquistas que incluem domínios e técnicas da mineração e
metalurgia, agricultura e criação de gado, ciências como a matemática, engenharia, astronomia e medicina. Em 1879, um
cirurgião inglês visitando Uganda registrou a prática de uma cesariana feita por médicos do povo banyoro, demonstrando
profundo conhecimento dos conceitos e técnicas de assepsia, anestesia, cauterização.

162
Já se praticava a remoção de cataratas oculares, tumores cerebrais, e isso há cerca de 4 milênios! Esse saber
que nos foi legado pelos negros adultos que aqui chegaram e traziam o saber de astronomia, porque há mais de seis
séculos os povos africanos conheciam o sistema solar, a Via Láctea, as luas de Júpiter e até mesmo os anéis de Saturno.
A África produziu também uma vigorosa expressão de arte que ainda hoje se sobressai nos mais diferentes
centros e países. E não foi uma arte de posse e individualista, mas uma expressão coletiva e de rituais. As esculturas em
madeira e pedras, as máscaras, as peças que eram colocadas sobre as cabeças de vigorosos guerreiros, heróis em seus
núcleos, para a realização de danças que celebravam os solstícios de plantações e colheitas, caça e das estações. As
esculturas foram “descobertas” em Paris no início do século XX, ainda classificadas como Antropologia, e reconhecidas
como obras de arte por pintores como Pablo Picasso, George Braque, André Derain. Picasso colocou máscaras africanas
em sua “Demoiselle de Avignon”, célebre obra que marca o início do Cubismo, e Derain chegou a afirmar que uma escultura
feminina africana era mais bela do que a Venus de Millo.
Some-se a essa expressão, os tecidos estampados com a mesma geometria da pintura corporal e também
grafada em relevos e pinturas na cerâmica, nas peças utilitárias. Jóias e adornos ornados com pedras preciosas, os
elementos corporais. Peças como essas em madeira, pedra, ferro, trançados, aqui se somaram aos elementos da terra –
nossas matérias primas – e esconderam-se sob outras imagens das severas perseguições dos portugueses católicos,
sobrevivendo pelas que hoje representam a Cultura Negra e a Cultura Brasileira, da qual ela faz parte.

Os tambores de África trouxeram também os cantos e danças, dando origem ao samba, que domina o Brasil de
ponta a ponta e ganha avenidas no Carnaval com a grande e bela presença negra predominando, ao Maracatu, Congada,
Cavalhada, Moçambique. Sons e ritmos que vão de Parintins ao Rio de Janeiro, para se construir uma imagem, passando
por todas as comunidades brancas e negras.

A presença negra é marcante também (e fundamental) na mesa deste país com o vatapá, acarajé, caruru,
mungunzá, sarapatel e a tão celebrada feijoada e, não bastasse, também na baba de moça, a cocada e a bala de coco.

E, fundamentalmente, vieram os Orixás, protetores de seu povo – Oxalá, Iansã, Ogum, Oxossi, Iemanjá, Omulu,
Exu. Com cantos, preces e cultos hoje protegem milhões de pessoas em todo o país, e precisam ser reconhecidos cada vez
mais como religião e não como divindades alternativas. É preciso reverenciar as grandes mães de santo, que conduzem
seus terreiros e se ocupam de propagar a paz, a união, a fé.
Mas se reconhecermos que nossas tranças nos cabelos invadiram o mundo, nossos tecidos coloridos e
geométricos já passaram dos nossos corpos para passarelas internacionais. Se tivermos orgulho e reconhecermos que não
há mulatos, pardos, cafuzos, morenos, mas sim que somos todos Negros, vamos estar muito mais perto das conquistas que
buscamos. Só a Cultura vai nos resgatar.

(Disponível em:

<http://www.casadeculturadamulhernegra.org.br/quem_somos_frameset.htm>. Acesso em: 14 nov. 2007)

1) Sempre que alguém escreve um texto, tem um objetivo. Qual é o objetivo do autor neste texto?

Mostrar que a “civilização negra” possui uma Cultura milenar e que a população negra que veio para o Brasil trouxe
grandes contribuições em vários setores, procurando levar os leitores a valorizar e respeitar os negros e sua cultura.

163
6) Em várias passagens do texto, pode-se perceber o modo como o autor defende seu ponto de vista. Nos trechos abaixo,
quais modalizadores indicam esse ponto de vista, mostrando a atitude do autor em relação ao que diz e o modo como
quer que seus leitores percebam o assunto?

a) “É inegável que a face do brasileiro está marcada por todos esses traços e que é preciso, necessário e
urgente valorizá-los [...]”
b) “É dessa força que se alimentaram os quilombos no Brasil, cujo exemplo maior está em Palmares e na
figura de Zumbi, que temos de olhar como um herói [...]”.
c) “Temos também de reconhecer mulheres importantes nessas lutas [...]”.
d) “É preciso reverenciar as grandes mães de santo, que conduzem seus terreiros e se ocupam de
propagar a paz, a união, a fé.”
a) é inegável - é preciso - necessário
b) temos de olhar
c) temos de reconhecer
d) é preciso
Professor (a), se os alunos não se lembrarem dos modalizadores, reveja com eles a seção “Pensando a língua:
Aprendendo mais sobre modalidades” do Capítulo 3, Unidade 1.

A) O que estes modalizadores indicam?


São modalizadores que indicam: certeza; necessidade; obrigação.

B) Diante disto, qual é a atitude do autor do texto em relação ao que está apresentando?
Atitude de certeza, de mostrar necessidades e obrigações por parte de quem lê o texto.

C) Qual seria a conseqüência para a leitura do texto, caso o autor não tivesse utilizado esses modalizadores?
O texto perderia a força argumentativa, uma vez que não conseguiria sustentar o objetivo do autor.

PENSANDO A LÍNGUA

Aprendendo mais sobre adjetivos e substantivos

1. Releia os trechos a seguir extraídos de “O continente é um dos maiores do planeta, a África”.

• “[...] a população negra que aqui aportou, trazida pelos portugueses, não era oriunda de “tribos” ou
“grupos étnicos” simplistas, mas representantes de uma civilização importante, forte e sábia.”

• “Temos também de reconhecer mulheres importantes nessas lutas, como Aqualtune, princesa na África,
porque filha do Rei do Congo, aqui uma das líderes importantes em Palmares, organizando, ao lado de
Ganga Zumba, a fuga de negros visando fundar o Estado de Palmares.”

Para caracterizar essa civilização, no primeiro trecho, e, para caracterizar Aqualtune, no segundo trecho, o autor se

164
utiliza de adjetivos, locuções, orações e substantivos. Veja, por exemplo, de que elementos o autor se utiliza para
caracterizar essa civilização e Aqualtune.

civilização

Adjetivos
importante,
forte, sábia

Aqualtune

Adjetivo Locução substantiva

importante líder importante em


Palmares.
Substantivo

princesa

A) Mostre, em diagramas, os elementos que o autor utiliza para caracterizar:

Zumbi – Teresa do Quariterê – expressão de arte – mães de santo.

Zumbi – herói (5º parágrafo)

Teresa do Quariterê – importante, rainha do Quilombo. (5º parágrafo)

expressão de arte – vigorosa, expressão coletiva e de rituais. (9º parágrafo)

mães de santo – grandes, que conduzem seus terreiros e se ocupam de propagar a paz, a união, a fé. (13º
parágrafo)

B) Considerando o objetivo do texto, explique por que o autor se utiliza dessa caracterização.
Professor(a), sugira aos alunos que recordem a resposta dada à questão 1 do Dialogando com o texto

A caracterização foi utilizada para dar mais força à argumentação desenvolvida no texto de que a cultura
negra deve ser respeitada e admirada, pois apresenta apenas características positivas dos elementos
caracterizados.

165
NÃO ESQUEÇA!

Para caracterizar os seres, podemos usar:

• Adjetivos
• Substantivos
• Locuções substantivas
• Locuções adjetivas
• Orações.

4 - Considerações finais

Cremos que os exemplos apresentados deixam evidente o que propomos e que é possível fazê-lo e, em certa
medida, como fazê-lo: usar todos os campos de atividades de ensino de língua (atividades de compreensão de textos,
de produção de textos, de ensino de vocabulário e de ensino de gramática), para trabalhar a argumentação com os
alunos, desenvolvendo sua competência comunicativa e domínio da língua neste particular. Evidencia-se ainda que há
sempre uma correlação entre estes quatro blocos de atividades, pois com freqüência o que se faz em um depende do
que é feito no outro.
Como se pode perceber há também uma correlação entre o ensino de teoria que serve apenas de base e
mediação para a discussão da significação que orienta o uso dos recursos da língua em situações concretas de
interação comunicativa.
Gostaríamos de acrescentar que é nosso pensamento que esta forma de atuar em sala de aula é possível
para o trabalho com, se não qualquer tópico de ensino que se queira abordar em sala de aula, pelo menos com a quase
totalidade deles.

Referências

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação - Uma proposta para o ensino de gramática. São Paulo: Cortez,
1996.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos; ROCHA, Maura Alves de Freitas e ARRUDA-FERNANDES, Vania Maria Bernardes. A Aventura
da Linguagem (Língua Portuguesa) – 6º ano: manual do professor. Belo Horizonte: Dimensão, 2009a. 328 p.
(ISBN: 85-7319-734-1)
TRAVAGLIA, Luiz Carlos; ROCHA, Maura Alves de Freitas e ARRUDA-FERNANDES, Vania Maria Bernardes. A Aventura
da Linguagem (Língua Portuguesa) – 7º ano: manual do professor. Belo Horizonte: Dimensão, 2009b. 360 p.
(ISBN: 85-7319-735-8)
TRAVAGLIA, Luiz Carlos; ROCHA, Maura Alves de Freitas e ARRUDA-FERNANDES, Vania Maria Bernardes. A Aventura
da Linguagem (Língua Portuguesa) – 8º ano: manual do professor. Belo Horizonte: Dimensão, 2009c. 424 p.
(ISBN: 85-7319-736-5)

166
TRAVAGLIA, Luiz Carlos; ROCHA, Maura Alves de Freitas e ARRUDA-FERNANDES, Vania Maria Bernardes. A Aventura
da Linguagem (Língua Portuguesa) – 9º ano: manual do professor. Belo Horizonte: Dimensão, 2009d. 376 p.
(ISBN: 85-7319-737-2)

167
Descrição e Ensino do Português: sentidos da língua e do
discurso na linguagem midiática

VALENTE, André
(UERJ/CLUP)

Com base nas noções formuladas por Patrick Charaudeau, pode-se, a partir da frase “Eu tenho trinta anos”,
estabelecer a distinção entre sentido da língua e sentido do discurso:
1. Sentido da língua: a um actante (eu) é atribuída uma propriedade (anos), quantificada (trinta), e o todo no ato de
enunciação reportado pelo próprio sujeito falante;
2. Sentido do discurso:
(a) Frase como réplica a uma asserção anterior; no caso, quem a profere se considera velho para exercer
atividade esportiva;
(b) Frase como réplica a uma asserção anterior; quem a profere se considera jovem em relação a exigências
vinculadas a experiências de vida no campo profissional ou afetivo.
O estudo aqui apresentado procura combinar questões relativas a sentido do discurso com outras próprias da
intertextualidade e da interdiscursividade.

O Globo, 23/03/2010

Na charge acima, pode-se reconhecer tal combinação na abordagem das linguagens verbal e não verbal. As duas
frases remetem-nos a jogos intertextuais: a 1ª, “Corra que os Ibsen vêm aí!”, com o filme “Corra que a polícia vem aí!”; a 2ª,
“Dize-me com Ibsen e eu te direi com quem vais...”, com o provérbio “Dize-me com quem andas e te direi quem és”. O trabalho

168
de Chico Caruso remete-nos à proposta do deputado Ibsen Pinheiro para distribuição dos royalties do petróleo, considerada
prejudicial ao Rio de Janeiro. No plano linguístico, “Ibsen” substitui “polícia” na primeira passagem e, na segunda, assume valor
verbal ao substituir “andas”. Tais substituições se articulam com o plano não verbal, em que se destaca a cegueira do deputado -
ressaltada pelos signos “bengala e óculos escuros – na sequência imagética, e revelam aspectos negativos no procedimento do
parlamentar.
Já na canção “Havana-me”, há um sentido da língua e – acrescento eu – um sentimento da língua no que respeita à
percepção de “Havana-me” como forma verbal.

HAVANA-ME
Joyce & Paulo Cesar Pinheiro

Havana-me
Não esqueço teu povo em momento algum
Cabana-me
Me convida a dançar, quebra o meu jejum
Serena-me
Me lambuza de cana, tabaco e rum, havana-me

Havana-me
Bota uma cuba-libre, limão e sal
Cabana-me
Me carrega em teu ritmo sensual
Irmana-me
Nossa música em sangue tropical, havana-me

Tira-me pra bailar


Quero ouvir teu som caribenho
Por ti, mestiço, eu tenho amor
Me pega pelo quadril
Teu par ainda é o Brasil, havana-me

No título da canção, ocorre uma neologia semântica conforme aponta Guilbert em seu estudo. Ele destaca três casos
por mim exemplificados:
- o 1º com base nas figuras de linguagem (Aquele sujeito é um mala);
- o 2º com base em emprego do termo em outra área (Vou deletar aquela menina da minha vida);
- o 3º por conversão (O não é fundamental para educar jovens).

169
Ao transformar o substantivo “Havana” em verbo, acrescido do complemento verbal “me”, os autores optam pela 2ª
pessoa do singular do Imperativo, como atesta o uso do possessivo “teu” logo no 2º verso. É um caso de neologia semântica por
conversão.
Maingueneau observa, ao tratar de pessoa e não pessoa, que

“todo enunciado implica um enunciador em relação ao qual é definido o você, constituído como tal pelo
enunciador. Se esse enunciador, suporte do ato de comunicação, coincide com o sujeito da frase, ele é
representado sob a forma “eu”; se coincide com o objeto direto, sob a forma “me”...”(2001, p.125).

Em “Gênese dos discursos”, Maingueneau lembra que todo discurso é precedido de um interdiscurso, o que se pode
comprovar na canção. A referência a Cuba, a partir da sua capital, tem valor positivo ou negativo? É uma crítica ou um elogio? A
par da organização textual em que as escolhas lexicais revelam simpatia pelo povo e pela cultura da Ilha, há uma
interdiscursividade na Música Popular Brasileira com manifestações de apoio, de compositores como Chico Buarque e Caetano
Veloso, à causa cubana. Joyce e Paulo César Pinheiro, por suas trajetórias na MPB, podem ser incluídos nesse grupo, o que se
pode confirmar no apelo do último verso da letra da canção: “Teu par ainda é o Brasil, havana-me”.

Ainda em relação a sentido da língua e sentido do discurso, creio que também se pode distinguir um do outro
considerando-se que aquele é marcado pela interioridade no plano frasal, enquanto este, pela exterioridade.
No que respeita a universo de discurso, cabe ressaltar as considerações de Eugenio Coseriu (1979), após estudo
detalhado sobre contexto (idiomático, verbal e extraverbal):

Por universo de discurso entendemos o sistema universal de significações a que pertence um discurso (ou
um enunciado) e que determina sua validade e seu sentido. A literatura, a mitologia, as ciências, a
matemática, o universo empírico, enquanto “temas” ou “mundos de referência” do falar, constituem
“universos de discurso”. Uma expressão como: a redução do objeto ao sujeito tem sentido em filosofia, mas
não tem nenhum sentido na gramática; frases como: a viagem de Colombo, como dizia Parmênides e como
dizia Hamlet, pertencem a diferentes universos de discurso. O humorismo baseia-se amiúde na confusão
intencional de universos de discurso, no mesmo enunciado; cf., por exemplo no bosque dois jovens
matemáticos extraíam as raízes quadradas das árvores; pela janela vejo um homem que está descendendo
do macaco.

Sobre humorismo, Sírio Possenti, na obra “Humor, língua e discurso”, diz-nos que ele não é cultural. Se o fosse, não
entenderíamos nem riríamos das histórias de Quintiliano. Teve confirmação de sua ideia ao ler texto do autor romano “porque
estão lá quase todas as teses sobre o que deve ocorrer num texto para que ele provoque o riso e quais são as situações em que
ele funciona ou não.” (p.8). Dá como exemplo o que já se lia em Quintiliano, “Assim, o que não é dito fica subentendido; a
essência de toda frase risível está nisto: dizê-la em um modo diverso do lógico e do verdadeiro.” Concordo com Possenti e
acrescento que o humor deve ser observado numa perspectiva linguístico-discursiva.

170
Folha de São Paulo, 14/04/2009

No caso da charge de Angeli, o que não é dito e o que é subentendido? Cabe, também, observar em que universo do
discurso se insere o tema. O chargista remete à polêmica provocada pela construção de muros em algumas comunidades
cariocas. A imagem denuncia as marcas das péssimas condições de sobrevivência e o caráter separatista do muro, que
esconde as mazelas sociais, mas exibe o sintagma nominal – CIDADE MARAVILHOSA -, título da canção e signo identificador
da cidade do Rio de Janeiro. O contraste entre o caráter apologético da expressão e a sofrida realidade dos moradores
corresponde a um “dizer de modo diverso do lógico e do verdadeiro”. Há uma quebra de expectativa, traço inconfundível de
expressivas construções humorísticas.
Para a leitura do trabalho de Valentin Druzhinin, também se devem combinar as questões de sentido do discurso e de
universo do discurso com as de interdiscursividade.

171
Valentin Druzhinin, sem título. Porto Cartoon World Festival: o riso do mundo.

O autor do cartum remete-nos a uma contextualização de atividades consideradas terroristas. Tal universo é
depreendido pelos signos vestuais e pelo armamento que dá um caráter bélico à indumentária. Além da burca, signo de uma
cultura identificada, no mundo ocidental, como opressora da condição feminina, outros signos deste universo – o sapato de bico
fino, a bolsa e, principalmente, o batom – enfatizam a propalada vaidade da mulher, capaz de manifestar-se até em condições
adversas e extremas. No rosto escondido pelo véu, encontram-se as marcas da mulher que, independentemente das
peculiaridades culturais, jamais deixará de cuidar de si, da sua beleza, mesmo que caminhe para a morte.

Na distinção de signo linguístico de língua e signo linguístico de discurso, Charaudeau (2005, tradução minha) aponta
uma tripla dimensão naquele e uma dupla dimensão neste, conforme se pode constatar na sua didática exposição:

Em se tratando do signo, seremos levados a distinguir, numa relação de complementaridade, um signo


linguístico de língua e um signo linguístico de discurso:
O signo linguístico de língua, conforme uma tradição agora bem estabelecida, se define segundo uma tripla
dimensão: estrutural, pois ele se informa e se semantiza de modo sistêmico no cruzamento das
coocorrências e das oposições possíveis sobre os dois eixos sintagmático e paradigmático: contextual, na
medida em que é investido de sentido por um contexto linguístico que deve assegurar uma certa isotopia;
referencial na medida em que todo signo refere a uma realidade do mundo do qual ele constrói a
significância.
O signo linguístico de discurso se define segundo uma dupla dimensão: situacional, pois ele depende para
seu sentido de componentes da situação, interdiscursivo, pois seu sentido depende igualmente dos
discursos já produzidos que constituem domínios de saber. (p. 64)

172
As considerações de Charaudeau sobre signo linguístico do discurso aplicam-se tanto ao cartum de Valentim
Druzhinin como às charges abaixo:

Nani

Jornal do Brasil, 03/06/2005

173
Na primeira, a polissemia da palavra “futuro” diz respeito ao signo linguístico da língua e ao signo linguístico do
discurso. Pode-se entender que há referência à flexão gramatical do tempo futuro (trabalharei, trabalharás, etc.), na expectativa
da professora, e à falta de perspectiva de trabalho, na visão do aluno. No campo da interdiscursividade, existe uma constatação
de desemprego, o que também se verifica na segunda charge. O jogo linguístico também se manifesta por meio de signo
polissêmico – “empregando” – que permite associações com os signos abordados por Charaudeau. Pode-se entender que não
se empregou gramaticalmente o pronome como também que não se empregam pessoas.

Os textos seguintes tratam do fim da versão impressa do Jornal do Brasil. O último número foi publicado em 30 de
agosto de 2010, como se constata na ilustração da coluna de Joaquim Ferreira dos Santos. Há um processo metafórico e
prosopopeico na imagem que trata do enterro do JB.

O Globo, 30/08/2010

174
O Globo, 31/08/2010

Já o assunto tratado na primeira página de O Globo, em 31/08/2010, exige uma leitura permeada pela intertextualidade
e pela interdiscursividade. Inicialmente, verifica-se um diálogo com a obra de Jorge Amado, “A morte e a morte de Quincas Berro
D’água”. Nos dois textos – o literário e o jornalístico -, há referência a uma dupla morte. A de Quincas para a família e para os
amigos da vida boêmia. A do Jornal do Brasil, segundo O Globo, ocorre nos momentos de crise e no fim da versão impressa.

O compositor Caetano Veloso assina uma coluna aos domingos em O Globo.

175
O Globo, 05/09/2010

Na sua declaração de voto, destaca-se a sequência textual com adjetivos antepostos a nomes próprios: “do tolo
Fagner, do inteligente Lobão, do genial Tom Zé, do absurdete Macalé”. A ordem dos adjetivos pressupõe uma gradação
elogiosa, a partir do segundo, o que daria valor positivo ao termo absurdete. Este adjetivo poderia ser lido, inicialmente, com
valor negativo, como chegou a imaginar o compositor Macalé. Na coluna seguinte, Caetano procurou explicitar o sentido dado. A
referência dele aos quatro compositores constituiu uma espécie de resposta às críticas feitas por eles ao próprio Caetano. É um
caso em que os fatores extralinguísticos interferem na leitura e na construção do sentido do texto.

176
Referências

CHARAUDEAU, P. Sémantique de la langue, sémantique Du discourse. De la rupture à une communauté de pensée. In:
CARREIRA, M. H. A. (Org.) Travaux et documents. Université Paris 8 Vincennes Saint-Denis: Paris, 2005.

COSERIU, E. Teoria da linguagem e lingüística gera:cinco estudos. Rio de Janeiro: Presença, 1979.

GUILBERT, M. L. La créativité lexicale. Paris: Larousse, 1975.

MAINGUENEAU, D. Análise de texto de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

____. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005.

POSENTI, S. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

André C. Valente é professor adjunto de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da UERJ. É membro do CIAD e de um GT da
ANPOLL. Tem pós-doutorado pela Universidade do Porto. Atualmente, coordena o doutorado em Língua Portuguesa da UERJ.
É autor de “A linguagem nossa de cada dia” e organizador, dentre outros, de “Aulas de Português: perspectivas inovadoras”.
E-mail para contato: prof.acvalente@gmail.com

177
Artigos de
participantes de sessão coordenada
e sessão individual

178
Pathos: paixão e ação no discurso de autoajuda

AGUIAR, André Effgen


(UFES)

INTRODUÇÃO

Há tempos percebe-se que a evolução da sociedade fez com que os sujeitos se tornassem cada vez mais
individualizados. Vivemos num mundo em que o caos do cotidiano rege as relações interpessoais. A extensa jornada de
trabalho, o acúmulo de funções, a violência urbana, dentre outros fatores têm sufocado cada vez mais a população, que
tenta sobreviver em um mundo globalizado e cada vez mais individualizado, onde o verdadeiro “mal do século” é o stress e
a depressão.
Nesse contexto emerge, na sociedade atual, um tipo de discurso em que as vontades do indivíduo são a única
preocupação: o discurso de auto-ajuda. Empiricamente a autoajuda é a literatura que trata da busca pela felicidade, tomada
como o grande objetivo da raça humana.
Caracterizando melhor o discurso de autoajuda, percebe-se que há nele uma grande quantidade de sugestões,
muitas vezes incompreensíveis, apoiadas no senso comum, superstições, generalizações, redundâncias ou suas
proposições apóiam-se em teorias inovadoras e polêmicas, valendo-se, em alguns casos, da ignorância do leitor/ouvinte.
Mesmo assim, atualmente, percebe-se que esse discurso está invadindo o cotidiano em diversas áreas como: livros,
programas de TV e rádio, revistas, palestras, e-mails, etc.
Assim, não negando esse ponto de vista social e psicológico do discurso de autoajuda (o qual usaremos como
base para explicarmos determinados fenômenos), justifica-se essa pesquisa, que visa analisar, num corpus extraído das
revistas Claudia e Nova do ano de 2007, que o pathos torna-se uma ferramenta de manipulação eficaz no discurso de
autoajuda à medida em que auxilia o orador a concretizar a missão de conquistar a adesão do auditório, fazendo com que
esse aceite as proposições daquele como verdadeiras e aja de acordo com os seus preceitos. Pelas análises feitas neste
artigo é possível afirmar que o despertar do pathos leva os sujeitos à ação, o que é fundamental no discurso pesquisado.

PATHOS COMO FERRAMENTA DE MANIPULAÇÃO NO DISCURSO DE AUTOAJUDA

Ao orador, não basta somente passar uma imagem favorável da sua pessoa para conseguir a adesão do auditório,
pois

O objetivo do orador não consiste apenas em convencer pelos argumentos. É necessário também que ele
toque a mola dos afetos, e utilize os movimentos da alma que prolongam certas emoções. (LEBRUN, 1987,
p.19)

Vê-se que ele precisa também influenciar o estado de ânimo dos ouvintes provocando-lhes as emoções e paixões
compatíveis com a sua argumentação. Desse modo, a paixão torna-se um recurso persuasivo essencial, pois, conforme os
sentimentos despertados no ouvinte num dado momento, criar-se-á a predisposição para que ele se decida num sentido ou
em outro.

179
Reboul (2004), inspirado na retórica aristotélica, define pathos como “o conjunto de emoções, paixões e
sentimentos que o orador deve suscitar no auditório com o seu discurso”(p.48). Portanto, através do pathos, o orador
poderá despertar no auditório paixões com o intuito de causar mudanças nas pessoas, fazendo-as variar o seu julgamento,
contribuindo para adesão do auditório às propostas do orador.
Como já mencionamos, o homem moderno encontra-se em uma época de crise, desamparado num mundo
instável, em que fixar-se como indivíduo e criar sua própria identidade são seus maiores desafios. Esse indivíduo precisa de
coragem para vencer os obstáculos impostos pelo cotidiano, que quase sempre não são fáceis de resolver, por isso tornou-
se fundamental na sociedade atual a criação de um mecanismo que consiga aliviar as dores e ao mesmo tempo dar um
encaminhamento para a realização pessoal. O discurso de autoajuda surge para desempenhar exatamente esse papel,
através do conforto de um pensamento, um estímulo ou uma sugestão, aliviando a pressão social imposta pela
modernidade.
Para que esse discurso possa dar conta desse papel é necessário que a argumentação esteja coerente com o
estado de alma do auditório. Assim é que o desejo de convencer através de argumentos traduz o objetivo do discurso, mas
para isso deve mobilizar os afetos, interferir nos movimentos da alma de tal modo que prolongue determinadas emoções.
Entra-se, assim, nos domínios das paixões.
É no uso dessas paixões que o orador vai embasar o seu trabalho, através de uma interpelação afetiva ele irá
jogar com os impulsos emotivos do auditório, uma vez que seu objetivo é convencer não apenas através de argumentos,
mas mobilizar os afetos para prolongar certas emoções. Isso porque a persuasão, na concepção aristotélica, diz respeito
não apenas ao caráter do orador e aos argumentos apresentados por ele, mas trata da disposição da audiência em direção
ao que é dito. E essa disposição só será obtida através da habilidade do orador em mobilizar os afetos do seu público. O
discurso de autoajuda mobiliza as paixões usando técnicas argumentativas, pretendendo desenvolver uma ética e uma
terapêutica sem o apoio de psicólogos ou psicanalistas.
Aristóteles, na Retórica das paixões (2000) refere-se ao pathos como

todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são
seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas, assim
como os seus contrários. (p.5)

Ao se pensar as paixões de acordo com a retórica aristotélica, vê-se que as paixões refletem, na verdade, as
representações que fazemos dos outros, considerando o que eles realmente são para nós, ou no domínio de nossa
imaginação. São catorze as paixões que Aristóteles apresenta: cólera, calma, temor, confiança, inveja, impudência, amor,
ódio, vergonha, emulação, compaixão, favor, indignação e desprezo.
Meyer (2000), em seu prefácio na Retórica das paixões, comenta que

A paixão é decerto uma confusão, mas é antes de tudo um estado de alma móvel, reversível, sempre
suscetível de ser contrariado, invertido; uma representação sensível do outro, uma reação à imagem que ele
cria de nós, uma espécie de consciência social inata, que reflete nossa identidade tal como esta se exprime na
relação incessante com outrem. Reequilíbrio que assegura a constância na variação multiforme que o Outro
assume em sociedade, a paixão é resposta, julgamento, reflexão sobre o que somos porque o Outro é, pelo
exame do que o Outro é para nós. Lugar em que se aventuram a identidade e a diferença, a paixão se presta
a negociar uma pela outra; ela é momento retórico por excelência. (grifos do autor, p. XXXIX)

Compreendendo-se essa colocação de Meyer, tendo a paixão como uma categoria retórica por excelência,
constata-se que os argumentos vão mobilizar reações, diferentes a cada situação, fixando as imagens da natureza do “eu” e

180
do “outro”. Portanto há um jogo de imagens no qual o espelhamento se dá a partir do que o outro experimenta a nosso
respeito e vice-versa.
Chagas (2001) classifica o orador do discurso de autoajuda como um sedutor, o qual através de seu discurso
“fascinante” tem o dom de despertar nas pessoas aqueles sonhos e fantasias que já estavam adormecidos, dizem que o
gozo é possível, deleitável e legítimo, autorizando seus leitores a viverem sem culpa. Através do uso das paixões, o orador
despertará no auditório o sentimento de serem “amáveis”, no sentido pleno da palavra, e providos de todas as qualidades,
criando uma sensação de segurança e bem-estar. Percebe-se que o pathos transforma-se numa ferramenta fundamental
para que o orador do discurso de autoajuda concretize a missão de conquistar a adesão do auditório, para que este aceite
as proposições daquele e, posteriormente, aja de acordo com os seus preceitos. A análise a seguir mostra como o orador
faz uso, estrategicamente, do pathos para conseguir a adesão das leitoras.
(1) A verdade é que não se sente capaz de conquistar um trabalho no qual seja valorizada. A
melhor maneira de combater a auto-estima baixa é usar a raiva como motor para a mudança.
Quando bem dirigida, essa emoção arranca você de várias barcas furadas. Se alguém ousar
dizer que você não é ótima o bastante para querer mais, use a regra do “dane-se”: dê de
ombros e caminhe a passos largos para o futuro. Além de abrir a mente, enxergará a si
mesma maravilhosa. (Fantasmas da alma – Nova)

Em (1) é notório que a intenção do orador é despertar no auditório a paixão da cólera, o que fica evidente no trecho: A
melhor maneira de combater a auto-estima baixa é usar a raiva como motor para mudança. Para Aristóteles (2000) a
cólera é
o desejo acompanhado de tristeza, de vingar-se ostensivamente de um manifesto desprezo por algo que diz
respeito a determinada pessoa ou a algum dos seus, quando esse desprezo não é merecido. (p.7)

Essa idéia de vingança ostensiva, citada por Aristóteles, começa a aparecer no discurso do orador quando ele
sugere aos ouvintes que se alguém ousar dizer que você não é ótima o bastante para querer mais, use a regra do
dane-se. Nesse excerto, com o propósito de promover a cólera, o orador usa palavras com um sentido um pouco
“agressivo” como ousar, palavra que conota uma atitude de audácia, de insolência por parte de outra pessoa e dane-se,
expressão muito usada no sentido de não dar a mínima para o que os outros dizem.
Aristóteles, na Retórica, afirma que
A cólera é seguida necessariamente de certo prazer, proveniente da esperança que se tem de se vir a vingar.
Com efeito, sente-se prazer em pensar que se obterá o que deseja. Aliás, nenhum ser humano deseja o que
se lhe afigura impossível, o homem encolerizado deseja igualmente o que se lhe afigura possível. (p.99)

Tal fato pode ser percebido no final do argumento do orador, quando ele diz: dê de ombros e caminhe a passos
largos para o futuro. Além de abrir a mente, enxergará a si mesma maravilhosa. A noção de vingança parece estar
embutida de forma mais branda no trecho dê de ombros e caminhe a passos largos para o futuro, pois aqui o orador
parece dizer às ouvintes para não darem mais atenção às pessoas que põem para baixo a sua auto-estima, desprezá-las e,
em seguida, mostrar que, sem elas, as ouvintes irão progredir e ter um futuro brilhante. O prazer fica evidente quando o
orador mostra que, seguindo suas dicas, essa mulher irá abrir a mente e finalmente alcançar o seu objetivo de ser feliz,
sentindo-se maravilhosa.

181
(2) APRENDA A VIVER NO CAOS: ok, a carreira é sua prioridade número 1. Por isso, não
consegue ir para a academia três vezes por semana, como prometeu a si mesma. Fica
péssima se chega em casa sem pique para transar com o namorado. Sente-se culpada por
ver que seu armário continua uma bagunça e ainda não teve tempo de arrumar. Afinal está
trabalhando demais. Mas nada de sofrer por não ser perfeita. “uma mulher verdadeiramente
ambiciosa sabe que no mundo do trabalho não se deve esperar uma rotina de constante
tranqüilidade e estabilidade. Ao contrário, precisa aceitar que as coisas não serão sempre
iguais o tempo todo. Em algum momento elas tendem a ficar desordenadas – é normal”, fala
a consultora. Seu conselho: cultive uma nova forma de pensar (“Sabe de uma coisa? Vou
organizar isso mais tarde”). Nas palavras de Debra: “Você sentirá uma redução enorme do
desgaste físico e mental decorrente da corrida insana e desnecessária para atingir o
equilíbrio”. (A escalada da ambição – Nova)

No trecho (2), após enumerar, de maneira sufocante, situações que atrapalham o cotidiano da mulher que coloca a
carreira em primeiro lugar, como não conseguir ir à academia, não ter ânimo para transar, não ter tempo para arrumar suas
próprias coisas, o orador tenta despertar no ouvinte uma sensação de calma. Aristóteles (2000) diz que a calma é “a
inibição e o apaziguamento da cólera”(p.17), e realmente é a intenção de apaziguar que o orador demonstra quando diz
Você está trabalhando demais. Mas nada de sofrer por não ser perfeita, com essas palavras ele parece tirar um “peso
das costas” das leitoras, que parecem estar eternamente cobrando de si mesmas um melhor desempenho na vida. Na
continuação de sua argumentação ele usa um argumento de autoridade, o qual veremos adiante que reforça o ethos de
pessoa culta do orador, e através das palavras da consultora da revista, uma especialista no assunto, ele consegue
transmitir segurança para as leitoras, deixando-as mais tranqüilas em relação ao problema que estão vivenciando.
A argumentação usada pelo orador nesse excerto faz com que as leitoras pensem que, para as mulheres que se
dedicam à carreira, é normal não ter tempo para realizar outras atividades, ou seja, isso acontece com todas, assim, agora,
se sentindo parte de um grupo, essa mulher se sentirá mais forte, pois perceberá que o seu problema, na verdade, é o
problema de todas. Outra coisa interessante que percebemos no discurso do orador é fato de, com o propósito de
proporcionar realmente a calma e a tranqüilidade nas leitoras que estão aflitas por enfrentar tal problema, ele chega a dar
pronto para elas o que deverão pensar (cultive uma nova forma de pensar (“Sabe de uma coisa? Vou organizar isso
mais tarde”)). Dessa maneira, demonstrando preocupação com as leitoras, inteligência e inspirando confiança através de
seu discurso, o orador conseguirá despertar a paixão da calma no auditório.

182
(3) Eu não sirvo de exemplo para nada, mas se você quer saber se isso é possível, me ofereço
como piloto de testes. Sou a miss Imperfeita, muito prazer. Uma imperfeita que faz tudo o que
precisa fazer, como boa profissional, mãe e mulher que também sou: trabalho todos os dias,
ganho minha grana, vou ao supermercado três vezes por semana, decido o cardápio das
refeições, levo as filhas no colégio e busco, almoço com elas, estudo com elas, telefono para
a minha mãe todas as noites, procuro minhas amigas, namoro, viajo, vou ao cinema, pago as
minhas contas, respondo a toneladas de e-mails, faço revisões no dentista, mamografia,
caminho meia hora diariamente, compro flores para casa, providencio os consertos
domésticos, participo de eventos e reuniões ligados a minha profissão e ainda faço escova
toda semana – e as unhas! E, entre uma coisa e outra, leio livros. Portanto, sou ocupada,
mas não uma workaholic. Por mais disciplinada e responsável que eu seja, aprendi duas
coisinhas que operam milagres. Primeiro: a dizer NÃO. Segundo: a não sentir um pingo de
culpa por dizer não. Culpa por nada, aliás. (Mulher nota 9 – Claudia)

(4) Sabidas, de grão em grão ganhamos terreno. Na vida pública, por exemplo, há casos
marcantes da nossa maior visibilidade no século 21. Cinco mulheres são primeiras-ministras,
dando cartas em países como Alemanha (Ângela Merkel encabeça a lista das 100 mulheres
mais poderosas do mundo da revista Forbes), e seis estão na Presidência da República.
Ocupamos ministérios (inclusive o da Defesa, na França). Nos Estados Unidos,a secretária
de Estado Condoleezza Rice só perde em poder para o presidente Bush. (Tá dominado –
Nova)

Nesse grupo de excertos percebemos que o orador tentou provocar no auditório a mesma paixão: a emulação.
Aristóteles (2000) diz que a emulação nada mais é que
certo pesar pela presença manifesta de bens valiosos que nos é possível adquirir, sentido com respeito aos
que são por natureza nossos semelhantes, não porque esses bens pertencem a um outro, mas porque não
nos pertencem também. (p.71)

Essa paixão não provoca a vontade de tirar os bens de alguém, mas provoca no indivíduo a reflexão de por que
ele, sendo semelhante ao outro, não possui esse bem também. Aristóteles (s/d) afirma que “pela emulação tornamo-nos
dignos de obter esses bens” (p.125), pois ninguém irá ambicionar bens que lhe sejam inacessíveis. Para o filósofo essa
paixão é digna de pessoas decentes e honestas.
Em (3) o orador se coloca como exemplo e expõe às leitoras o seu cotidiano no intuito de mostrá-las que é
possível conciliar trabalho, família, vida afetiva e amizades, tendo tempo para realizar as demandas do cotidiano feminino,
deixando o sentimento de perfeccionismo de lado. No capítulo anterior, vimos que nesse trecho, utilizando essa estratégia
de ser uma espécie de “exemplo vivo”, o orador cria para ele uma imagem de bonzinho, amigo que expõe sua vida para que
os outros possam melhorar, além de, através do discurso utilizado, reforçar uma imagem de responsável e cumpridor de
suas tarefas. Porém, por ser semelhante à leitora, uma mulher que possui inúmeras tarefas para realizar no dia-a-dia, com a
sua argumentação, o orador desperta a paixão da emulação nas leitoras, pois mesmo sendo igual a todas elas, passando
pelas mesmas dificuldades que elas enfrentam, ela consegue sucesso no trabalho, no amor, na família, enfim, em tudo que
está ao seu redor (seu ethos constrói uma imagem de quase-perfeita para ela). Desse modo, ao ler esse discurso as
mulheres pensarão: “Se ela, uma mulher comum como eu, conseguiu, eu também posso conseguir!”, sentindo-se dignas de
também realizarem tal feito, as leitoras irão se inspirar no exemplo de vida do orador e, a partir daí, buscar o sucesso e
realização merecido por elas.
No trecho (4), o orador coloca como exemplos mulheres que alcançaram postos de notoriedade internacional
como ministras, primeiras-ministras e até presidentes da república, ou seja, apresenta pessoas dignas de admiração,
despertando, assim, a emulação nas leitoras. Apresentando casos como os de Ângela Merkel, Condoleezza Rice, o
orador não pretende criar nas mulheres a expectativa de que elas possam, de uma hora para outra, tornar-se presidentes

183
ou algo do gênero, mas podemos inferir que sua intenção com o uso de tal exemplo é mostrar a mulher que com estudo,
sabedoria e esforço ela também pode chegar longe em sua carreira.
Assim, percebe-se que despertar emulação através do discurso de autoajuda é essencial para atingir o objetivo desse
discurso, pois a partir dessa paixão o auditório se sentirá incitado a sempre querer mais do que possui, pois perceberá que
é possível, espelhando-se na figura do outro, conseguir mais, superando-se. Nota-se que ao mesmo tempo em que o
orador leva as leitoras à reflexão (“se ele conseguiu, eu também posso”) ele atinge a tônica do discurso de autoajuda, que é
levar o indivíduo à ação e conseqüentemente à transformação.

(5) FANTASMAS DA ALMA – Você morre de pavor da idéia de ficar sozinha? De nunca
encontrar o verdadeiro amor? Do que os outros pensam a seu respeito? Nós explicamos
como deixar de ser refém desse sentimento autodestrutivo e que faz a sua vida andar na
marcha à ré. Existem maneiras de dominar esse sabotador e dar uma guinada no próprio
destino. (Fantasmas da alma – Nova)

(6) Notícia quente: o século 21 é todo seu. Especialistas garantem que a energia da mulher vai
prevalecer, sobretudo no mercado de trabalho. Você está preparada para aproveitar esse
momento pra lá de favorável? (Tá dominado! – Nova)

(7) A hora é de comemorar. Afinal, estamos com a faca e o queijo na mão. E não dizemos isso
só porque somos otimistas de carteirinha. Especialistas nas áreas de sociologia, da
psicologia e dos recursos humanos garantem que as condições do novo século, com a
valorização do trabalho intelectual, os avanços da medicina reprodutiva, a robotização das
tarefas domésticas, o crescimento do setor de serviços na economia, a busca de diversidade
por parte das empresas e o aumento da expectativa de vida favorecem – e muito – as
mulheres. Somos nós que regeremos as notas que dominarão o mercado de trabalho. A
Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, publicada no fim do ano
passado, comprova isso preto no branco. O estudo mostra, por exemplo, que, de cada dez
empregos criados, de seis a sete são ocupados por nós. Alem disso, a Pnad revela que,
espertas, estudamos mais: o número de profissionais de batom com curso superior
incompleto já é 33% maior que os de engravatados com o mesmo nível de instrução. (Tá
dominado! – Nova)

(8) Em três ocasiões, a bióloga Mariana, 32 anos, separada, duas filhas, buscou refúgio nos
antidepressivos. A primeira vez foi quando o psiquiatra do marido lhe receitou fluoxetina
(princípio ativo de medicamentos como o Prozac). Os dois tinham uma relação difícil, ela foi
ao consultório para fazer terapia de casal e saiu com a receita do remédio. “Tomei por quatro
meses, me sentia bem. Mas, quando algo me irritava, a explosão era desproporcional.” Na
gravidez da segunda filha, enfrentou uma depressão leve, e seu obstetra lhe prescreveu
cloridrato de sertralina (Zoloft). Tomou na gestação e nas primeiras semanas após o parto.
“Como o nenê chorava o dia inteiro, o pediatra desconfiou que fosse irritação pela droga.
Preocupada, parei de uma vez. Durante 15 dias passei mal.” Mariana procurou outro
psiquiatra, que prescreveu escitalopram (Lexapro). “Usei por um ano. Fiquei passiva, nada
me abalava. Soube que meu marido me traía e nem reagi. Com a ajuda da psicanálise fui
percebendo que vivia de mentirinha. Estava anestesiada. Resolvi por um ponto final; larguei o
remédio aos poucos. Quando voltei a ser eu mesma, pedi a separação. Dói, mas quero sentir
essa emoção. Em vez de lidar com as dificuldades, apelava para os remédios. Chega de me
iludir!” (Coquetel da Felicidade – Claudia)

O orador para angariar a adesão do auditório precisa criar uma atmosfera de amizade e cumplicidade através de seu
discurso. Para tal, é muito comum que, no discurso de autoajuda, o orador necessite despertar no público a paixão da
confiança, até mesmo para dar um status de verdade àquilo que ele profere. Aristóteles (2000) diz que a confiança é

184
o contrário do temor; o que inspira confiança é o contrário do temível, de sorte que a esperança é acompanhada
da suposição de que os meios de salvação estão próximos, enquanto os temíveis não existem, ou estão
distantes. (p.35)

Para o filósofo, para inspirar confiança o orador deverá afastar os medos do auditório e mostrar para o público que
todos os seus problemas têm solução e a paixão da confiança será despertada com mais eficácia se o orador conseguir
mostrar, através de seu discurso, que é ele o detentor dessa solução do problema.
É o que acontece em (5), pois o orador começa seu discurso fazendo uso de perguntas retóricas, as quais servem
para induzir o público a pensar exatamente o que o orador quer que eles pensem, sendo uma forte ferramenta de
manipulação (Você morre de medo da idéia de ficar sozinha? De nunca encontrar o verdadeiro amor? Do que os
outros pensam a seu respeito?), para que em seguida ele se mostre como a única salvação da leitora para se livrar desse
infortúnio: Nós explicamos como deixar de ser refém desse sentimento autodestrutivo e que faz a sua vida andar na
marcha à ré. Outro ponto interessante nesse trecho é o uso do pronome nós, usado como um elemento de inclusão, ou
seja, o orador quer com isso mostrar que ele não estará sozinho nessa tarefa, ele contará com a ajuda de outras pessoas.
Tal fato se confirma ao lermos o texto na íntegra, pois o orador usa casos de mulheres comuns (sua amiga Tânia; Cristina,
29 anos; Silvia, 27anos) e de atrizes conhecidas nacionalmente (Paola Oliveira, Camila Rodrigues, Giselle Itié e Gabriela
Duarte) para mostrar como elas venceram seus medos, ao mesmo tempo em que aconselha e orienta as leitoras a
afugentarem esse mal. No final de seu discurso, o orador promete a fórmula para que a leitora consiga solucionar o seu
problema quando diz Existem maneiras de dominar esse sabotador e dar uma guinada no próprio destino. Desse
modo, ao afirmar que o problema da leitora tem solução e que o sofrimento irá acabar, o orador faz com que o público se
tranqüilize e cria uma atmosfera de confiança, pois o público irá pensar: “meu problema é fácil de resolver e com essa ajuda
irei conseguir”. Essa sensação de socorro, de ajuda é essencial para despertar a paixão da confiança em qualquer
auditório.
Em (6) e (7), trechos extraídos de uma mesma matéria da revista Nova, para inspirar confiança nas leitoras o
orador fala das vantagens de ser mulher no século 21, garantindo que, atualmente, é mais vantajoso ser mulher do que
homem. Para isso ele eleva a auto-estima das mulheres dizendo que a energia da mulher vai prevalecer, somos nós
quem regeremos as notas que dominarão o mercado de trabalho, estudamos mais. Desse modo, como no excerto
anterior, o orador cria na mulher um ar de superioridade e, sentindo-se superior, a mulher, sem ter nada do que temer, se
sentirá confiante. O orador faz uso do argumento de autoridade, dando status de verdade ao seu discurso, pois pessoas
que são especialistas no assunto (especialistas nas áreas de sociologia, da psicologia e dos recursos humanos)
confirmam o que ele está dizendo, dando credibilidade ao seu discurso, gerando confiança nas leitoras. Na retórica,
Aristóteles afirma que teremos confiança “se as pessoas que se beneficiam das mesmas vantagens que nós são mais
numerosas”(p.111). É o que parece acontecer nesse caso, pois falando das vantagens de ser mulher para as mulheres, o
orador cria uma idéia de grupo, um grupo grande, forte e repleto de qualidades positivas, o que fará com que a leitora se
sinta integrante desse grupo, despertando a paixão da confiança em cada uma delas.
Em (8) percebemos um fato interessante. Ao mesmo tempo em que o orador despertará a confiança nas leitoras,
ele irá despertar a paixão do temor. Ao narrar o caso da bióloga Mariana, que se tornou dependente de antidepressivos, o
orador poderá despertar o temor em um grupo de leitoras que estão propícias a passar pelo mesmo problema, ou seja,
aquelas mulheres que eventualmente recorrem a medicamentos para dormir, aliviar a tensão ou enfrentar algum sofrimento.
Aristóteles (s/d) define temor como “uma espécie de pena ou de perturbação, causada pela representação de um mal futuro
e suscetível de nos perder ou de nos fazer sentir pena” (p.110).

185
O orador despertará temor no auditório quando disser aos ouvintes que eles poderão sofrer algum mal e mostrar-
lhes que pessoas como ele sofrem ou sofreram algum infortúnio. É o caso do trecho em análise: as leitoras que também
dependem de remédios, ao ver a verdadeira via-crucis vivida por Mariana, sentirão medo de passar pelas mesmas mazelas
que ela e não conseguir se livrar desse mal – a dependência.
Em contrapartida, o caso narrado também irá inspirar confiança nas leitoras a partir do momento que elas
perceberem que esse caso tem solução, pois, com ajuda da psicanálise, Mariana conseguiu se livrar do problema. Ao
mostrar a solução através da vitória da bióloga sobre a dependência, o orador dá esperança para as leitoras salvarem-se
desse mal, o que despertará confiança nas mesmas, levando-as, conseqüentemente, à ação.

(9) Quando tomar: Luto, tristeza e irritação devem ser medicados quando a situação se arrasta
indefinidamente, sinal de que pode estar sendo complicada pela depressão, informa o
psiquiatra Leonardo Gama Filho. “O que vai determinar se alguém precisa ou não de
tratamento é a intensidade das manifestações”. Ficar arrasado por que terminou um
casamento é natural. Mas, com o tempo, a pessoa tende a elaborar a perda, e a vida segue
adiante. Quem está deprimido continua imobilizado: a tristeza é desproporcional e toma conta
da vida, mexendo com o apetite, o sono, a memória e a capacidade de concentração. Isso é
depressão, quarta causa de incapacitação, segundo a Organização Mundial de Saúde. No
quadro, há ainda pessimismo, perda de prazer, sensação eterna de vazio. Nos casos mais
graves, diz Gama Filho, a medicação é necessária para afastar o risco de suicídio. (Coquetel
de Felicidade – Claudia)

(10)Empacada num trabalho que a entedia? Cercada por amigos ou homens que a põem para
baixo? Se a resposta for sim, encontra-se paralisada pelo medo de não ser boa o suficiente
para merecer algo melhor. É o caso de Sílvia, de 27 anos. O chefe dela grita quando não
recebe o trabalho do jeito que gostaria e ameaça demiti-la. Depois recua, e Silvia aceita as
desculpas. “Faço isso porque preciso do emprego”, justifica-se. (Fantasmas da alma – Nova)

Nos trechos acima, veremos que o orador despertará no auditório a paixão da compaixão. Aristóteles (2000) afirma que
compaixão é
certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou penoso, e atinge quem não o merece, mal que poderia
esperar sofrer a própria pessoa ou um de seus parentes, e isso quando esse mal parece iminente. (p.53)

É o que acontece em (9), quando o psiquiatra descreve o que sofrem as pessoas acometidas pela depressão.
Sendo essa doença muito comum na atualidade (quarta causa de incapacitação, segundo a Organização Mundial de
Saúde), nota-se que qualquer um está à mercê desse mal, portanto caracteriza um problema que a própria leitora poderia
estar vivenciando. Sente-se compaixão das pessoas que são nossas semelhantes. O orador mostra em seu discurso todos
os problemas enfrentados por quem tem depressão, expondo toda a dor e sofrimento dessas pessoas, afirmando que tal
doença pode levar à morte (risco de suicídio). Para Aristóteles, são essas coisas destrutivas (dor, sofrimento, morte) que
são dignas de compaixão. Em (10) o orador desperta a compaixão no auditório quando ele começa a relatar o caso de
Silvia, uma trabalhadora que é sempre maltratada pelo chefe. Ocorre ai uma questão de identidade, pois a leitora ao ver o
mal sofrido por outra mulher pode sentir que o mesmo poderá acontecer com ela e esse risco de mal iminente, como vimos
anteriormente, é o primeiro passo para sentirmos compaixão. Ao interar-se do caso, é inevitável que as leitoras pensem:
“ela não merecia ter que passar por essa humilhação”, o que converge com o que Aristóteles afirma na Retórica quando diz
que a compaixão é um sentimento causado por um mal capaz de nos aniquilar e afligir, “que fere o homem que não merece
ser ferido por ele”(p.118), e o orador usa o caso de Silvia exatamente para mostrar que ela e nenhuma das leitoras
precisam vivenciar tal situação, provocando, assim, a compaixão do auditório.

186
Entretanto, o caso narrado não irá provocar somente a compaixão nas leitoras, pois, de acordo com Aristóteles
(s/d) “em face das desgraças imerecidas, devemos compartilhar a dor daqueles que a sofrem, compadecer-nos delas e nos
indignarmos perante os êxitos injustificados”(p.120). No trecho (10), a atitude do chefe de Silvia irá despertar a indignação
das leitoras, pois “indignamo-nos vendo os maus beneficiarem da riqueza, do poder, e das vantagens análogas, das quais,
para tudo dizer numa palavra, são dignas as pessoas de bem” (Retórica II, p.121). Nota-se que o chefe mencionado usa do
poder de seu cargo para humilhar e ameaçar sua funcionária, que acuada, não tem outra opção a não ser aceitar suas
desculpas, pois, segundo Silvia, “faço isso porque preciso do emprego”. Certamente as leitoras, já sensibilizadas e
compadecidas, irão imaginar: “quem ele pensa que é para tratá-la dessa maneira?”, sentindo-se indignadas porque odeiam
injustiças.
(11)Apesar dos passos de gigante que demos no mercado, as pesquisas mostram que, para um
mesmo cargo, as mulheres ainda têm o salário menor que o dos homens. Elas recebem, em
média, 83% do salário pago a eles. Essa diferença, apurada pelo IBGE em 2005, varia com o
grau de instrução. Entre os 10% mais ricos, que têm nível de escolaridade maior, o
contracheque feminino encolhe para 68% da remuneração masculina. “A maior diferença
salarial entre os sexos está nessa faixa”, observa a economista Lena Lavinas, professora
associada do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Você sabe
negociar o seu valor no trabalho? Claudia)

No trecho (11), através de seu discurso, o orador despertará nas leitoras a paixão da inveja. Aristóteles (2000) diz que
a inveja

É certo pesar pelo sucesso evidente dos bens já referidos, em relação aos nossos iguais, não visando ao
nosso interesse, mas por causa deles. Tais pessoas sentirão inveja das que são iguais a elas ou parecem sê-
lo. (p.67)

É o que acontece no excerto acima, pois numa época em que se busca a igualdade de sexos, a desigualdade
sexual no mercado de trabalho parece realmente detonar nas mulheres esse sentimento de inveja. Desse modo, a mulher
deveria ter os mesmos direitos e as mesmas vantagens que os homens, como tal fato não ocorre, é inevitável provocar a
inveja das mulheres, pois esse sentimento reveste-se de força particular “quando pensamos ter direito a essas vantagens,
ou quando a posse destas últimas nos dá uma leve superioridade ou uma leve inferioridade.” (Retórica II, p.123)
Falando de igualdade entre homens e mulheres, percebe-se que receber, em média, 83% do salário pago a
eles, cria nas mulheres o desejo de mudança, de luta, de ambição e quem é ambicioso por uma coisa, sempre mostra
inveja. Pesquisas recentes, como o Pnad (IBGE, 2006), revelam que as mulheres estudam mais que os homens: o número
de mulheres com curso superior é 33% maior que o de homens, porém tal fato parece não se refletir no mercado de
trabalho, já que a maioria dos grandes cargos e os maiores salários estão nas mãos dos homens. É evidente que essa
realidade é a grande produtora da inveja feminina a cerca desse tema, pois segundo Aristóteles (s/d)

Invejamos os que facilmente triunfam, quando nós temos dificuldade em triunfar ou fracassamos. [...] Os que
possuem as vantagens que deviam caber-nos. Os que tiveram que fazer copiosos gastos para conseguiram
uma vantagem que outros conseguiram por pouco custo. (p.124)

Nota-se que o orador consegue despertar essa paixão através do uso estratégico da velha rivalidade homem x
mulher, fazendo, assim, com que as leitoras sintam-se incitadas a continuar lutando pelos seus direitos de igualdade e
maior espaço no mercado de trabalho.
Tudo que foi mencionado acima se encaixa no próximo exemplo:

187
(12)Você sabe negociar o seu valor no trabalho? Os homens sabem! A mulher é pouco ousada
para mostrar quanto vale numa entrevista de seleção. E sente-se numa terrível saia-justa
quando precisa dizer que merece um aumento. No que se refere a vender o próprio peixe,
temos muito a aprender com os colegas do sexo masculino. (Você sabe negociar o seu valor
no trabalho? – Claudia)

Esse trecho consiste na introdução do texto anterior, portanto ambos abordam o tema da luta travada entre homens e
mulheres no mercado de trabalho. Aristóteles (2000) diz que invejamos aqueles que nos envergonham por seus êxitos, pois
assim fica claro que por falha nossa não obtemos o mesmo bem. Isso fica claro quando o orador diz Você sabe negociar o
seu valor no trabalho? Os homens sabem! ou No que se refere a vender o próprio peixe, temos muito a aprender
com os colegas do sexo masculino, demonstrando, através de seu discurso, a maior desenvoltura que os homens
possuem nesse ramo e a deficiência que as mulheres precisariam suprir através da ajuda dos mesmos. Desse modo,
mostrando a suposta superioridade masculina na hora de conseguir um bom emprego e de negociar o seu salário, o orador
cria uma atmosfera de resignação, fazendo com que a mulher/leitora, levada pela paixão da inveja, deseje cada vez mais
alcançar o mesmo sucesso dos homens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a intenção de provocar mudanças no indivíduo e levá-los à ação, podemos afirmar que o pathos é uma
ferramenta fundamental para o discurso de autoajuda. Meyer (2000, p.XXXVII) afirma que se há paixão há ação, portanto é
importantíssimo para um discurso que visa atitude da parte do interlocutor, criar mecanismos que despertem nos ouvintes o
ânimo da mudança e os levem a por em prática os planos “ensinados” pelos pregadores da autoajuda.
As paixões servem para classificar os homens e descobrir se o que sentem é necessário para que quem quer
convencê-los aja sobre eles, pois já sabemos que ao orador não basta apenas argumentar, ele deverá deixar o auditório
disposto a encarar suas proposições como verdades. Desse modo, para o orador, despertar as paixões certas, no auditório
certo, juntamente com a construção de um ethos elaborado para conquistar o auditório, seria um grande passo para
conseguir a adesão de seus ouvintes. Para tal, parece que o pathos, além de ser “a fonte de onde se tiram os argumentos
retóricos”1, servirá, como vimos nos exemplos analisados neste artigo, como um reservatório de ditos espirituosos em que
se juntam o particular e certa forma de universalidade, o bom senso ou o senso comum.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antonio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, (s/d).

______. Retórica das paixões. Prefácio Michel Meyer, trad. Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

BARTHES, Roland. A retórica antiga. In: COHEN, Jean et al. Pesquisas de retórica. Trad. Leda Pinto M. Iruzun. Petrópolis:
Vozes, 1975. p. 147-221.

CHAGAS, Arnaldo Toni Sousa das. A ilusão no discurso de auto-ajuda e o sintoma social. 2 ed. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2001.

_____ . O sujeito imaginário no discurso de auto-ajuda. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2002.


DAYOUB, Khazzoun Mirched. A ordem das idéias: palavra, imagem, persuasão: a retórica. Barueri, SP: Ed. Manole, 2004.

1 Retórica das paixões, 2000, p.73.

188
LEBRUN, Gerard. O conceito de paixão. In: CARDOSO, Sérgio [et al.]. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987. p.17-33.

MARAFIOTI, Roberto. Los patrones de la argumentación: La argumentación en los clásicos y en siglo XX. Buenos Aires:
Bíblios, 2005.

PERELMAN, Chaim. [1987] Retóricas. Trad. Mª Ermantina de A. P. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. Trad. Mª Ermantina de A. P. Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 1996.

REBOUL, Olivier. [1925] Introdução à retórica. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

RÜDIGER, Francisco R. Literatura de auto-ajuda e individualismo. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1996.

André Effgen de Aguiar é Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), estuda
Análise do Discurso com foco na Retórica e Discurso de Autoajuda. Atualmente é professor de Língua Portuguesa da rede
municipal de Vitória/ES.
e-mail: aeffgen@terra.com.br

189
Trabalho docente e escrita na alfabetização
ALMEIDA, Patrícia Sousa
(Universidade Federal do Pará)

Introdução

Este trabalho equivale a um recorte do resultado obtido por ocasião de nossa pesquisa de Mestrado em Letras,
inserida na área de estudos linguísticos da Universidade Federal do Pará, que se propôs a investigar o modo com que uma
professora de 1ª série do ensino fundamental transformava objetos de ensino em objetos ensinados. O trabalho docente a
ser examinado estava inserido no conjunto de atividades pedagógicas regulares de uma escola municipal de ensino
fundamental localizada no bairro Curuçambá, periferia de Ananindeua/PA, portanto em um contexto sócio-educacional
peculiar. A investigação pretendeu descrever e analisar uma prática docente, cujos resultados demonstravam (a nosso ver)
eficiência na apropriação pelos alunos do código linguístico escrito, para explicitar os caminhos que conduziam a tal êxito.

1. O caráter enunciativo-discursivo da pesquisa


É na perspectiva de uma Linguística preocupada com os problemas interativo-discursivos que ocorrem em
contextos sociais imediatos como o escolar que nos propomos interpretar o modo com que uma professora-alfabetizadora
ensina o objeto escrita, a partir da descrição e análise dos modos de circulação de tal objeto em sua prática didática, sob
um ponto de vista sócio-histórico. Para tanto, convocamos o conceito bakhtiniano de linguagem e a teoria vigotskiana de
desenvolvimento enquanto pressupostos teóricos.
A identificação com a filosofia marxista desenvolvida por Bakhtin/Voloshinov ([1929] 2006) reside na noção de
linguagem como fenômeno social, que considera a interação verbal como a realidade fundamental da língua. Assim, é no
processo dialógico ao qual o signo está submetido que nos apropriamos da palavra e é ainda dialogicamente que a
tornamos variável, conforme nossos propósitos em relação à situação concreta imediata, em um processo de reconstrução
constante e ininterrupto tanto do próprio signo quanto do contexto social.
No que diz respeito à teoria do desenvolvimento de Vigotski (1993), em consonância com a concepção
bakhtiniana de linguagem, ela toma a fala como indissociável do intercâmbio social, que pressupõe o uso de signos. Daí ser
imprescindível a linguagem para o desenvolvimento do pensamento; é graças à experiência sociocultural proporcionada
pela linguagem no curso das interações sociais que a criança desenvolve seu pensamento.
Nessa perspectiva teórica, a descrição e a análise de um processo de ensino singular, neste estudo, serão
realizadas levando-se em conta as particularidades do contexto social e cultural no qual ocorreram as interações encetadas
pelos participantes, de maneira a compreender como questões discursivas operam na constituição de sujeitos sociais em
um contexto de ensino e de aprendizagem específico.

2. As nuanças do trabalho docente


A atividade docente é concebida aqui como um trabalho, na acepção marxista do termo (cf. TARDIF & LESSARD,
2007; SCHNEUWLY, 2000): aquilo que se realiza em função de transformar um objeto, com o auxílio de um instrumento, e
que transforma também o próprio trabalhador. Do ponto de vista vygotskiano (SCHNEUWLY, op. cit.), tal trabalho tem como
objeto os modos de pensar, fazer e falar dos alunos, que serão transformados por meio da utilização, pelo docente, de

190
sistemas semióticos (instrumentos), para que se tenha como resultado aqueles modos de pensar, fazer e falar
transformados (produto).
Outra noção cara a esta análise é a de gestos profissionais docentes, que correspondem aos movimentos
observáveis no quadro do trabalho do professor que contribuem para a realização de um ato de ensino, visando a
aprendizagem de um objeto pelos alunos (AEBY DAGHÉ & DOLZ, 2007, p. 1).

3. Os sujeitos participantes da pesquisa


Quando a investigação foi realizada, a docente era funcionária efetiva da Prefeitura Municipal de Ananindeua, há
três anos ocupando o cargo de Professor e exercendo a função de Professor Pedagógico em uma escola situada no bairro
Curuçambá, nos turnos da manhã e da tarde. Pela manhã, atuava no anexo da escola em uma turma de 1ª série − que
constituiu o lócus da pesquisa − e, à tarde, no prédio da própria escola, em uma turma de 2ª série. Estava com
quarenta e nove anos de idade, lecionava nas séries iniciais há oito anos1, é graduada em Pedagogia pela Universidade
Federal do Pará e cursava pós-graduação lato-sensu na área de Letramento na Universidade Estadual do Pará.
A turma de 1ª série era constituída por 22 (vinte e duas) crianças entre oito a onze anos de idade, todas com
experiência escolar (e todas repetentes, de uma a três vezes, na referida série), sendo a maioria pré-silábica. A situação
social e econômica de suas famílias era a mesma de praticamente toda a comunidade na qual estão inseridos: marcada por
privações materiais. O bairro apresentava alto índice de violência, da doméstica à pública.

4. A natureza da pesquisa
A investigação foi de natureza etnográfica, visto que estivemos em campo gerando os dados, e colaborativa no
sentido de discutirmos com a professora sobre o que ela efetivamente realizou em sala de aula, de questionarmos por que
fez de uma forma e não de outra, de esclarecermos conceitos e aspectos concernentes à área dos estudos linguísticos,
entre outras coisas dessa ordem, sugerindo, de forma dialógica, mudanças quando necessário. A opção pela pesquisa
colaborativa foi reflexo de uma convicção: a de que a universidade cumpre com duas funções e dois objetivos de igual
importância social − um acadêmico (o de colaborar com as reflexões científicas) e um didático (o de intervir nas práticas de
ensino e aprendizagem, de forma a proporcionar melhorias ao seu processo).

5. O gênero calendário em um ambiente escolar


A atividade do dia primeiro de abril, segundo a professora, teve como conteúdo “o tempo” e como objetivo o
desenvolvimento das habilidades de contar e de medir; a aula, portanto, seria de matemática.

P: a nossa atividade de hoje... a outra que nós vamos começar agora... e hoje também
vocês tem aula de educação física ( )... a nossa atividade é sobre... o tempo... nós
temos um calendário ali na parede que nós não terminamos de preencher né?

Em uma das paredes da sala de aula havia um calendário incompleto, confeccionado em uma folha de cartolina
pela professora. Além dele, a turma iniciara a produção individual de um calendário do mês de março no caderno e nesta
aula a professora resolve constatar se o preenchimento dele fora realizado, com sucesso ou não, pelas crianças. Assim, o
fragmento abaixo indica o modo com que se deu a regulação neste episódio.

1 Desde o ano 2000 em instituições escolares, mas há alguns anos antes em projetos sociais de alfabetização.

191
P: (...) cada um de vocês também tem um calendariozinho no caderno né?
An: tia... eu fiz tia ((levantando um dos braços))
A?: eu fiz tia
P: quem lembrou de preencher o calendário todo dia?... quem já terminou e
preencheu até o último dia?
AA: E::U tia eu
P: deu até que dia?
A?: (o que é pra fazer) tia?
P: deu até o último dia o teu?
A?: deu
P: quem preencheu todo?
A?: eu
A?: eu
P: deu até que dia?
A?: ( )
P: o teu deu até que dia?
A?: o meu de:u ( )
P: então tá quando vocês voltarem da educação física a gente vai ver... vai tentar fazer o
calendário de vocês no caderno
P: ((após a aula de educação física)) (vamos lá) no calendariozinho de vocês no
caderno... ei GU:... te SENta aqui na tua cadeira... pega o calendário do teu caderno...
( ) eu acho que eu vou passar olhando... deixa eu ver o Ads ((os alunos procuram o
calendário no caderno))... cadê o teu An?

Primeiramente, Lúcia recorda o fato de as crianças já terem começado a produzir um calendário (apelo à
memória), para, em seguida, regular a realização da tarefa. Isto se fez por meio de perguntas (“deu até que dia?”; “deu até o
último dia o teu?”), cujas respostas indicariam o estado de conhecimento da turma a respeito do preenchimento daquele
calendário. Provavelmente, as respostas tenham revelado problemas quanto à produção, pois a tarefa foi proposta mais
uma vez, conforme descrição adiante, a ser desenvolvida em classe.
Em consequência da dificuldade encontrada pela professora para que as crianças obedecessem ao comando
“(vamos lá) no calendariozinho de vocês no caderno”, ela altera a estratégia de intervenção, passando a solicitar
individualmente que o calendário fosse observado.
Após esse movimento de regulação, os participantes da interação didática reúnem-se diante do calendário afixado
na parede para concluir seu preenchimento, obedecendo ao critério de distinção de cores, que parece ter sido estipulado
anteriormente: os dias letivos são registrados com caneta de tinta preta e os não-letivos, com caneta de tinta verde.

P: ((junto ao calendário afixado na parede, produzido por ela em uma cartolina branca,
acompanhada dos alunos)) ei An... ( ) An... guarde An por favor que não é hora de (
)... nós paramos em qual dia? ((haviam parado no dia 24))
A?: vinte e quatro
P: Iz... nós paramos em qual dia no calendário de preencher?
A?: VINTE E QUATRO
A?: vinte e quatro ( )
P: qual é o que vem depois?
A?: vinte e cinco
A?: vinte e nove
P: se vocês ficarem aqui em cima quem tá lá não vai poder ver
A?: tiA... eu posso ir no banheiro tia?... tia eu posso ir no banheiro?
P: qual é o dia que vem agora?
AA: vinte e cinco
P: ela vem escrito de preto ou de verde? ((referindo-se à cor da tinta de caneta a ser
usada para registrar o dia em questão))

192
AA: de pre::to
P: (ela é preto porque tem aula) né?
A?: deixa eu ir no banheiro
P: quem tiver de pé... vocês que tiverem de pé se abaixem (pra quem tá lá atrás
poder ver)... quem tiver de pé se abaixe senão quem tá lá não vai conseguir ver...
abaixa (Gu)... qual é o dia que vem depois?
A?: vi:n... vinte e seis
A?: vinte e seis
Iz: vinte e sete... vinte e oito... vinte e nove
P: vinte e nove foi um dia que teve aula?
A?: nã::o
P: vinte e nove foi qual dia da semana?... aqui foi segunda ((apontando para o
calendário))
A?: terça
P: terça
AA: quarta quinta sexta
Ads: ((para a documentadora)) ei tia tia olha ali o passarinho tomando banho tia... tia o
passarinho tomando banho tia
P: pra vocês abaixarem senão ( )... eu quero saber em que dia PSI:U ei... dia vinte e
nove foi que dia?
D: eu quero saber da aula não quero saber do passarinho
A?: é:... (foi feriado)
Ads: passari::nho... sai voa::ndo
P: mas foi qual dia da semana?
A?: SÁbado
P: olha aqui foi segunda terça quarta sexta
A?: SÁbado tia?
P: e sábado né? aqui foi sábado

Houve certa dispersão durante a atividade, talvez causada, ao menos em parte, pela metodologia utilizada. O
espaço em torno do calendário era restrito, considerando a quantidade de crianças na turma, portanto seria difícil tê-las
todas de pé diante do objeto de estudo. Acreditamos que, apesar de ser interpretada como tradicional e inadequada a uma
metodologia de cunho interacionista, a disposição das carteiras em filas indianas diante do objeto seria apropriada à cena
em questão, pois ampliaria o campo visual do calendário, possibilitando a todos acompanhar visualmente a atividade.
Enquanto as datas eram registradas, as crianças que não se aproximaram da cartolina preocupavam-se em sair
de sala para ir ao banheiro ou com o passarinho que pousara na área exterior à sala. Ainda outras continuaram em suas
carteiras, distanciadas do calendário, não acompanhando efetivamente seu preenchimento, apesar das solicitações
constantes da professora aos que estavam de pé para se abaixarem.
Concluído o preenchimento do calendário, os alunos retornam aos seus lugares para iniciar a produção no
caderno. Lúcia escreve com letras de fôrma maiúsculas os nomes dos seis primeiros meses do ano, com a indicação da
ordem ao lado de cada um, em seguida anuncia que “o mês três”, março, acabara no dia anterior. O intento era introduzir a
idéia de que o mês seguinte, abril, estava começando e que um novo calendário seria produzido para ele a partir de seu
início, isto é, do dia em que se realizou esta aula.

193
P: ((depois que escreveu os meses janeiro, fevereiro, março, abril, maio e junho no
quadro, enumerando-os)) mês três é o mês que acabou ontem... terminou ontem
A?: e abril tia?
P: Po... Re... esse mês de Março aqui foi o mês três que terminou ontem... que vocês
preencheram no caderno de vocês no calendário pequenininho preencheram e nós
preenchemos lá no... quadro... lá na parede... hoje começou esse mês aqui hoje é o
primeiro dia... tu tá ouvindo o que eu tô falando?... tu tá ouvindo o que eu tô falando?...
e o que era que eu tava falando? ((dirigindo-se a Dav, que estava conversando))... o
que era Jo? ((dirigindo-se a Jo))... não tava prestando atenção nera Jo (tava
conversando)... hoje vai começar esse mês aqui ó o primeiro dia desse mês aqui
((a professora mostra o mês de abril, que está escrito no quadro)) qual é o mês que
vai começar?
A?: março
P: tá escrito aqui olha ( )
A?: março... março
P: não... março foi o mês que terminou ((apontando para a palavra março, no quadro)) eu
quero esse aqui ((apontando para a palavra abril, no quadro))
AA: abril... aBRIL
P: hoje começa o mês de abril... se o mês tá começando hoje qual o dia do mês de
abril?
A?: abril
Iz: primeiro
A?: primeiro... primeiro
P: como?
A?: primeiro
P: eu vou repetir a pergunta pros outros tentarem entender... o mês tá começando
hoje... q/ qual é o dia desse mês?
AA: primeiro... primeiro... primeiro
P: primeiro dia não é?... então vocês vão fazer o calendário no caderno de vocês
maior do que o que vocês fizeram antes... vocês vão usar ((dirigindo-se a sua mesa,
onde estava uma caixa que tinha dentro, entre outras coisas, tarjetas feitas de papel-
cartão com o nome de cada aluno))... vocês vão usar a tarjeta como régua tá pra
marcar o calendário

O discurso que pode ser recuperado do fragmento transcrito acima denota uma incongruência em relação ao
contexto didático no qual se deu. Sendo a turma pré-silábica em sua maioria, é previsível que as crianças não
correspondam à sugestão de Lúcia para que o nome do mês seja lido (“tá escrito aqui olha”; “eu quero esse aqui”). A
professora poderia ter-se valido da oportunidade, que ela mesma criou, para ensinar uma estratégia de identificação do
código escrito, que exige alto grau de abstração para ser aprendido (VIGOTSKI, 1993), ao estabelecer relação entre o som
e a primeira letra da palavra abril, conforme um princípio acrofônico/alfabético (CAGLIARI, 2007) cujo conhecimento exige
uma ação analítica deliberada (VIGOTSKI, op. cit.). A menos que se baseassem em conhecimento de mundo, as crianças
ainda não conseguiriam corresponder à expectativa da docente, de que elas lessem a palavra escrita. É necessário, porém,
retomar o objetivo da professora ao desenvolver este trabalho com calendário, pois talvez ele explique o fato de as
oportunidades de trabalho com a linguagem não terem sido plenamente aproveitados: a atividade era voltada para saberes
matemáticos (tempo, contagem), não para saberes linguageiros. Logo, a ação docente pode ser interpretada também como
coerente com seus propósitos.
A repetição da pergunta sobre o dia corrente foi motivada pela resposta de um aluno, que continuava a responder
à pergunta anterior (“qual é o mês que vai começar?”). A atitude docente de reformular ou de repetir construções
linguísticas por ela proferidas, devido a reações da turma, é comum no ambiente investigado, conforme se pode observar
na subseção anterior (quando da passagem a respeito da autoria do texto Zeca) e nas análises subsequentes.

194
A asserção “então vocês vão fazer o calendário no caderno de vocês maior do que o que vocês fizeram antes”
sinaliza o gesto de formulação da tarefa. A tarjeta, citada pela professora, é um instrumento de uso recorrente no cotidiano
da turma, apesar de não ter sido utilizada nos episódios selecionados para esta análise. Lúcia fez uma tarjeta para cada
aluno, em cartolina, com o nome completo das crianças; todas elas sabiam identificar a sua tarjeta e escrever seu nome.
Nesse episódio, o instrumento foi usado para fazer as linhas do calendário.
Devido ao fato de as crianças não terem conseguido produzir adequadamente o calendário de março, Lúcia
resolve colocar no quadro um “modelo” a ser seguido quando da produção no caderno; é o momento em que ela tenta
explicitar o “como” fazer. Para tanto, ela profere consecutivos apelos de espera, conforme grifos na transcrição abaixo.

P: cada um pega o seu... ((os alunos Adt e Gu levantam e tentam pegar as suas das mãos
da professora)) licença senta senta... senta lá que eu vou chamar por nome... Re...
passa lá pro Iv ((falando com Jo))... Re... Ma... De... Da... Dav Ra... ( ) ainda não
comecem ainda por que eu vou orientar vocês... Pa... ( )... Li... An... Jo Gle... pra
fazer (lá numa página nova) que vocês vão fazer grande hoje... ( ) Adr... Dav Edu...
Iz... Fla... Od... Od... ainda não comecem ainda que eu vou orientar a fazer o
calendário desse mês... Po... Lu... Ads... Adt... Gu... ((depois de colocar dentro da
caixa a tarjeta de Me)) alguém de vocês mora perto da casa do Me?
Od: Eu ((levantando o braço))
P: pra avisar pro Me vim pra aula que ele tá faltando muito... vocês vão usar a tarjeta de
vocês de régua tá?... ((encostando uma tarjeta no quadro e passando uma linha, com
giz, sobre a borda superior)) pra marcar a linha tá?... ( ) de vocês
Ma: professora ( )
P: vocês vão fazer quantas linhas... eu ainda vou explicar como é pra fazer... Ma te
acalma... tô falando que eu aINda vou explicar... o calendário do mês de março nós
vamos colocar o nome do mê:s os dias da semana e o espaço pra preencher os
números tá?... então esperem que eu coloque o modelo aqui no quadro... eu tô
dizendo pra vocês esperarem primeiro vocês não tão conseguindo nem esperar...
né An?... eu já coloquei o modelo aqui no quadro?
A?: Já
A?: ainda não
P: ainda não... eu vou colocar o modelo agora quando for no próximo mês aí vocês
vão fazer sozinhos o calendarinho de vocês já... ainda não façam pra vocês
contarem certo as linhas ((começa a produzir um calendário no quadro e, enquanto
ela o faz, os alunos conversam))... ( )

A indicação do que será feito no modelo (“nós vamos colocar o nome do mê:s os dias da semana e o espaço pra
preencher os números tá?”) justifica-se na medida em que tal modelo difere, em termos de elementos característicos, do
calendário de março afixado na parede: neste, só há os “espaços para preencher os números”, enquanto que, naquele,
serão acrescentados dois elementos que compõem os calendários que circulam socialmente: a indicação do mês e dos dias
da semana. Provavelmente tenha sido esta a razão de os alunos não terem conseguido produzir adequadamente o texto de
um gênero que pertencente ao domínio do letramento ambiental2, portanto conhecido por eles: o calendário da parede da
sala de aula não corresponde à estruturação dos calendários da vida social. A nosso ver, mesmo a turma ainda não tendo
se apropriado da tecnologia da escrita, e exatamente por se encontrarem em processo de sua aprendizagem, seria mais
adequado que no calendário de março constassem as referências tanto aos dias da semana como ao mês.
Depois de desenhar as linhas e colunas do calendário no quadro, Lúcia desperdiça mais uma oportunidade de
lançar mão do princípio acrofônico/alfabético, pois poderia ter estabelecido relação entre o som e a primeira letra dos dias

2Empresto de Kleiman (1998) este termo, para designar “a leitura de textos curtos informativos e/ou propagandísticos sobre assuntos do
cotidiano, como outdoors, placas, manchetes de jornais locais, avisos (...)” (p. 186).

195
da semana, em vez de regular os saberes das crianças, pedindo-lhes que dissessem os nomes dos dias com base no
conhecimento de mundo delas.

P: aqui o nome do mês na primeira linha o nome do mês... o nome dos dias da semana
((apontando para a segunda linha do calendário)) quais são os dias da semana?...
quais são os dias da semana? eu quero que vocês me digam
Ma: ( ) ((muito barulho))
P: não... eu quero ( )... a semana começa com qual dia? assim ó a/ a semana ( )...
nome do dia da semana segunda terça quarta quinta SE:Xta e sábado... qual é o
primeiro dia da semana? qual o primeiro nome?
A?: Sexta
Adr: Quinta
A?: sábado sábado
P: não... qual é o dia de hoje da semana?
A?: terça... TERça?
P: terça... não é? hoje é terça ((escreve "terça" na terceira coluna, segunda linha do
calendário))... terça... antes da terça qual é o dia que vem que foi o dia de ontem?
A?: Quarta
P: an:tes... o dia de ontem aquele que já passou
A?: Segunda
Adr: Segunda
P: ((depois de ter escrito "segunda" na segunda coluna)) ainda não é pra vocês fazerem
é pra vocês prestarem atençã:o ( ) e antes da segunda-feira qual é o dia que vem?
Adr: domi:ngo
P: que é o primeiro dia da semana como se chama?
Adr: domi:ngo
P: domingo né? ((escreve "domingo" na primeira coluna)) (...)

A resposta do aluno Ma à pergunta “quais são os dias da semana?” parece não ter sido a esperada pela
professora, que reage com uma negação seguida de uma reformulação textual, desdobrada em três perguntas: “a semana
começa com qual dia?”, “qual é o primeiro dia da semana?” e “qual o primeiro nome?”. Minha hipótese a respeito do que
motivou um aluno não identificado a responder “sexta”, não “domingo”, relaciona-se à construção textual e ao movimento
prosódico da fala de Lúcia.
Primeiramente, a construção “segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado”, ao que o contexto indica, foi
proferida objetivando ser completada com a palavra “domingo”; contudo, ao usar a conjunção e, normalmente usada para
indicar o encerramento de uma enumeração, seguida da palavra “sábado”, Lúcia acaba por sugerir a completude da
construção.
Em segundo lugar, a pronúncia diferenciada da palavra “sexta” na estrutura em questão, com elevação de tom e
alongamento da primeira sílaba, pode ter conduzido à interpretação, revelada pela resposta do aluno não identificado, de
que a docente lançara mão de um índice de contextualização prosódica3 (SIMON & RONVEAUX, 2006), para sugerir que
era essa a resposta. É provável que a criança tenha entendido que a ênfase dada à palavra “sexta”, não dada aos demais
nomes da construção textual, tenha sido uma forma de a professora mostrar à turma que a resposta estava sendo dita
naquele instante e que a turma poderia fazer eco à sua fala para responder à pergunta.
Ao perceber que a estratégia de dizer os nomes dos dias da semana, com exceção do domingo, também não
conseguira corresponder aos seus propósitos, a docente reformula novamente a pergunta: “qual é o dia de hoje da

3 De acordo com Simon e Ronveaux (op. cit.), a prosódia constitui-se em um dos instrumentos semióticos utilizados pelo professor para

presentificar e topicalizar/elementarizar objetos de ensino, permitindo a interpretação do que está sendo feito tanto pelo professor quanto
pelos alunos.

196
semana?”, ao que uma criança responde satisfatoriamente: “terça”. Para chegar ao ponto que almeja (o domingo), continua
a elaborar perguntas. A resposta “quarta”, dita por um aluno não identificado, pode ser justificada pela observação do trecho
grifado da pergunta “antes da terça qual é o dia que vem que foi o dia de ontem?”. Atento somente a esse trecho, o aluno
não percebe as palavras antes e ontem, que sinalizam o dia anterior, não o vindouro; por isso, Lúcia repete a palavra
antes e enfatiza que ontem é o dia que já passou.
Somente após algumas mudanças de estratégias, conforme descrição acima, é que se chega ao ponto almejado
pela docente: o primeiro dia da semana se chama domingo. Aproveitando que a maioria da turma já conhecia a letra “d”
maiúscula, Lúcia poderia ter partido de um conhecimento linguístico, de forma a conjugar os eixos do uso – relativo ao
saber sobre o gênero calendário – e da reflexão sobre a língua – relativo ao saber sobre o fonema e a letra “d” –, para
atingir o propósito em questão.
Ainda na aula do dia primeiro de abril, teve início a tarefa de fazer um calendário no caderno. Muitos alunos não
conseguem fazê-lo; desenham mais linhas e/ou colunas que o necessário. Foi essa dificuldade que motivou a professora a
retomar a atividade com o gênero na aula do dia seguinte, dia dois de abril.
Conforme trecho transcrito abaixo, o primeiro gesto docente é o da memória didática, que permite a retomada do
objeto.

P: qual foi a atividade que nós estávamos fazendo?


A?: ((a turma conversa, alguns alunos estão levantando de suas carteiras))( )
P: ei... ei E/ ei Ev... ei Me umbora ( )... já?... posso continuar?
A?: pode
P: psi::u... Ev... ei An posso já?... tira essa fita da boca Me... Me qual era a atividade que
a gente tava fazendo ontem que a gente teve que parar?... tu veio ontem Me?... e
qual é An a atividade?
An: ( ) ((vira-se e aponta para o calendário afixado na parede da sala))
P: calendário não é? eu vou colocar de novo a atividade no quadro pra gente concluir
hoje tá? ((vira-se para o quadro e começa a produzir um calendário))

Retomado o objeto, Lúcia produz novamente um calendário no quadro, solicitando aos alunos que aguardassem
sua explicação para concluírem a atividade. Assim que termina de fazer a produção, ela presentifica o objeto de um modo
que nos remete à teoria vigotskiana sobre aprendizado e desenvolvimento.
Segundo Vigotski (1993), a essência do desenvolvimento psíquico encontra-se nas mudanças ocorridas na
estrutura interfuncional da consciência e é o aprendizado escolar, por meio do trabalho com conceitos científicos, que
permite a conscientização da criança de seus processos mentais em torno de um pensamento ou de um ato. No fragmento
transcrito a seguir, analiso a intervenção da docente como um trabalho de construção da consciência reflexiva, visando à
aprendizagem do objeto de estudo.

197
P: primeiro vocês vão esperar eu terminar de colocar aqui... depois eu vou explicar uma
coisa pra vocês e só depois é que vai terminar de fazer (...) o que mais? ((a
professora havia perguntado aos alunos o que eles precisavam para fazer um
calendário))
A?: lá:pis borra:cha
P: precisa do lá:pis precisa da borra:cha... mas pra saber a quantidade de
quadradinhos a gente precisa de quê?... ((a turma conversa e faz muito barulho na
sala)) pra fazer a quantidade de quadrados certa a gente precisa conTA:r... eu tava
olhando ontem alguns fizeram MU:itos quadradinhos mais do que/ eu acho que... dava
pra fazer o calendário do ano todinho e outros fizeram POucos quadradinhos então a
primeira coisa que a gente tem contar é quantos que:... quantas linhas eu tenho
aqui nessa ( ) vamos contar ((vai apontando para as linhas horizontais do calendário
desenhado no quadro))
AA: Uma duas três quatro cinco seis sete oito
P: eu tenho Oito linhas nessa direção que vai formar quantos espaços?
A?: um:
P: prestem atenção quantos espaços vão formar?
AA: um dois três quatro cinco seis sete ((a professora vai apontando para os espaços entre
as linhas do calendário))
P: eu tenho oito linhas que formou sete... espaços... agora tem que contar quantas
linhas eu tenho nessa posição ((a professora mostra as linhas na vertical))... ei De...
quantas linhas eu tenho nessa posição aqui?... vamos lá... Gu... quantas linhas eu
tenho nessa direção aqui?
A?: NOve... Nove
P: não essas que estão ((apontando para uma linha horizontal)) Gu:... ei Gu... não são
essas linhas desta direção aqui são essas aqui ((indicando a primeira linha vertical))
(quantas são) Gu?... vamos contar
AA: um: do:is trê:s qua:tro cinco seis sete oito

Lúcia, ao perguntar o que era preciso para fazer um calendário, tinha por objetivo motivar o processo mental
necessário à produção do gênero. As crianças respondem citando materiais didáticos e então a professora se encarrega de
explicitar a atividade mental a ser acionada quando da realização da tarefa: “pra fazer a quantidade de quadrados certa a
gente precisa conTA:r”. Mostrando como contar, Lúcia tenta induzir a turma à percepção dessa atividade mental, ao como
da ação de contar; é à consciência do como de uma ação que Vigotski (op. cit.) chama de consciência. O sujeito
plenamente consciente, portanto, é aquele capaz de perceber suas operações mentais.
Sabendo que alguns alunos apresentariam mais dificuldades para fazer a tarefa, a professora orienta as crianças
a tentarem produzir seus calendários sem sua ajuda; isso possibilitou a intervenção individual com relação àquelas que não
conseguiam produzir sem a colaboração docente. De acordo com Erickson (1987 apud KLEIMAN, 1998), a privatização da
instrução4 conduz à aprendizagem. Para Lúcia, alfabetizar em turmas numerosas é difícil justamente porque, ao emitir
comandos para todo o grupo, os alunos têm dificuldades de compreender, demandando ensino individualizado ou para
grupos menores; isso, no entanto, requer também uma quantidade menor de alunos na classe.

6. Considerações finais
A sequência de trabalho em torno do gênero calendário que foi descrita e analisada aponta para uma prática
docente que: 1) articula atividades de alfabetização, no sentido de ser este o processo de aquisição do código linguístico
escrito, com atividades de letramento e de numeramento, que compõem um todo voltado para o ensino da escrita,
acontecendo de maneira sedimentada (ROJO, 2006; SCHNEUWLY, 2002-2003; SCHENUWLY, CORDEIRO & DOLZ,

4A privatização da instrução corresponde à “criação de contextos de interação diádica com cada um dos alunos” (KLEIMAN, op. cit., p.
177).

198
2005) no trabalho de Lúcia; e 2) oportuniza aos alunos uma participação manifestadamente ativa, em decorrência do
consentimento e da motivação da professora-alfabetizadora. Em função deste segundo apontamento, é possível afirmar que
o estilo de docência prevalecente na prática em questão é o internamente persuasivo (MORTIMER & SCOTT, 2000 apud
ROJO, 2007) e esse estilo, por permitir réplica e interpenetração de discursos, favorece o processo de apropriação e
conduz à aprendizagem significativa (ROJO, op. cit.), podendo ser interpretado como um dos fatores que desencadeiam o
sucesso do trabalho analisado.
Nessa troca dialógica que se operou durante as aulas, as escolhas discursivas da professora foram modificadas
pelas respostas das crianças, que também fizeram parte do contexto sócio-histórico-cultural imediato. O confronto dessas
escolhas com os fatores sociais, históricos, culturais e ideológicos que as motivaram permitiu interpretar a complexidade da
atividade docente, e tal confronto foi possível por conta do tipo de pesquisa empreendida. Inserir-me (e ser inserida pela
turma) ativamente no contexto da pesquisa e intervir no sentido de buscar compreender a prática da professora segundo
uma perspectiva dialética e reflexiva em que prática e teoria se fazem e se desfazem (cf. HORIKAWA, 2004), favoreceu a
percepção de que
O professor é também produtor de conhecimentos, na medida em que elabora um saber a partir de sua
experiência no enfrentamento dos problemas que surgem na sua prática cotidiana. O professor, na sua
ação pedagógica, ativa seus recursos intelectuais para, diante de uma situação problemática,
diagnosticá-la, escolher estratégias de intervenção e prever o curso futuro dos acontecimentos. A
questão que se coloca é que o professor constrói e reconstrói esse saber num processo empírico, para
atender às necessidades práticas imediatas, sem uma investigação mais metódica e uma conseqüente
sistematização desse saber. (idem, p. 123).

Referências
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l’enseignement/apprentissage du texte d’opinion. In: D. Bucheton & J. C. Chabanne (Ed.). Les gestes professionnels de
l’enseignant de français. Paris: PUF, 2007.

BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV) Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 12. ed. São Paulo:
Hucitec, [1929] 2006.

CAGLIARI, L. C. O essencial para saber ler e escrever no processo inicial de alfabetização. Um mundo de letras: práticas
de leitura e escrita – Salto para o futuro – Boletim 3. TV Escola/SEED-MEC, 2007.

HORIKAWA, A. Y. Interação pesquisador-colaborador: por uma relação colaborativa. In: MAGALHÃES, M. C. C. (org.) A
formação do professor como um profissional crítico: linguagem e reflexão. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

KLEIMAN, A. B. Ação e mudança na sala de aula: uma pesquisa sobre letramento e interação. In: ROJO, R. (org.)
Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998, p. 173-203.

ROJO, R. H. R. Alfabetização e letramento: sedimentação de práticas e (des)articulação de objetos de ensino. Perspectiva,


v. 24, n. 2. Florianópolis, 2006b, p. 569-596, jul./dez. Disponível em:
<www.perspectiva.ufsc.br/perspectiva_2006_02/09_Roxane_Rojo.pdf>. Acesso em: 23/10/2008.

________. Práticas de ensino em língua materna: Interação em sala de aula ou aula como cadeia enunciativa?. [s/l]:
IEL/UNICAMP, 2007, p. 1-22 (mimeo.).

SCHNEUWLY, B. Les outils de l’enseignant – un essai didactique. Université de Genève, Repères, n. 22, 2000.
SIMON, A. C. & RONVEAUX, C. La gestualité prosodique au service de l'objet enseigné. Génève: UNIGE, 2006 (mimeo).

TARDIF, M. & LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações
humanas. Trad. João Batista Kreuch. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

VIGOTSKI, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

199
Currículo da autora:

Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2004), Mestrado em Linguística/Ensino-aprendizagem de
línguas (2009) e Especialização em Ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa (2006), ambos pela Universidade Federal
do Pará. Atualmente é professora assistente da UFPA.

pat-alm@hotmail.com

200
Operadores argumentativos em anúncios publicitários

ALVES, Giselle Mª Sarti Leal Muniz


(UFRJ)

A autora Ingedore Villaça Koch, em sua obra A Inter-ação pela Linguagem (Contexto, 2004), justifica que a
linguagem seja vista como uma atividade finalística e essencialmente argumentativa, permeada pela atuação de sujeitos
uns sobre os outros:

Quando interagimos através da linguagem (...), temos sempre objetivos, fins a serem atingidos; há
relações que desejamos estabelecer, efeitos que pretendemos causar, comportamentos que queremos
ver desencadeados, isto é, pretendemos atuar sobre o(s) outro(s) de determinada maneira, obter
dele(s) determinadas reações (verbais ou não verbais). (p. 29)

Nessa perspectiva, esta pesquisa tem como proposta analisar o texto publicitário, um importante instrumento
propagador de ideologias e formatos culturais, mediante sua organização discursiva segundo os princípios argumentativos –
seja explícita ou implicitamente.
Foram selecionados anúncios veiculados em diferentes revistas, sendo examinados sob o ponto de vista da
Análise Semiolinguística do Discurso, preconizada por Patrick Charaudeau, além de alguns conceitos relacionados à
Semântica Argumentativa de Oswald Ducrot e à Lingüística Textual.
O objetivo deste trabalho é voltar a atenção para uma das estratégias de persuasão utilizada no discurso
propagandístico, que diz respeito ao uso dos operadores argumentativos – elementos linguísticos que revelam a direção
argumentativa dos enunciados. Elegemos 2 tipos de operadores, que se mostraram mais produtivos: aqueles que
introduzem o argumento mais forte numa escala argumentativa apontando para determinada conclusão – até, até mesmo,
mesmo, inclusive (KOCH, 2004b), e aqueles que apontam para a negação da totalidade – só, somente, apenas.
Ainda que em fase inicial, espera-se que o presente trabalho possa contribuir para a reflexão acerca do
funcionamento dessas marcas discursivas – os operadores argumentativos –, os quais carecem de uma apreciação mais
acurada.

A Análise Semiolinguística do Discurso


Pode-se afirmar que a teoria da Análise Semiolinguística do Discurso, preconizada, especialmente por Patrick
Charaudeau, se configura como o eixo em torno do qual gira a presente pesquisa.A proposta dessa teoria é analisar

a linguagem em ação, os efeitos produzidos por meio de seu uso, o sentido social construído e que
testemunha a maneira pela qual os grupos sociais instauram seus intercâmbios no interior de sua
própria comunidade e com outras comunidades estranhas. (CHARAUDEAU, 1996)

Assim, ela contribui para apresentar como o social é construído por meio do discurso, entre espaços de restrições
e de estratégias, por onde transitam os sujeitos do intercâmbio linguageiro.
Todo ato de linguagem é considerado uma encenação na qual atuam os seus participantes mediante um contrato
de comunicação. Esse contrato se configura como um conjunto de princípios construídos socialmente e, para que a
comunicação seja bem-sucedida, faz-se necessária a obediência a tais princípios, socialmente partilhados e reconhecidos
(PAULIUKONIS, 2006).

201
A Análise Semiolinguística lança o olhar sobre o modo como as relações sociais são construídas via linguagem,
preocupada com o seu significado. Charaudeau (2008) explicita que, na encenação do intercâmbio linguageiro, há uma
dimensão interna – a dimensão linguística da interação dos sujeitos – e há uma dimensão externa – a extralinguística,
relativa à situação de comunicação. Nesses espaços, encontram-se os sujeitos bipartidos da interação.
Na dimensão externa, há o sujeito comunicante (EUc), aquele responsável pela produção da fala, portador de uma
intenção comunicativa; e há também um sujeito interpretante (TUi), o “alvo” da fala de EUc, responsável por sua
interpretação. Vale ressaltar que ambos, EUc e TUi são seres sociais, marcados psico-socio-historicamente. Já na
dimensão interna da troca linguageira, há um sujeito enunciador (EUe) e um sujeito destinatário (TUd), construídos por EUc
em consonância com sua intencionalidade discursiva. Ambos, EUe e TUd são sujeitos discursivos, projetados na e para a
enunciação.

No caso do discurso publicitário, EUe se configura como um “benfeitor”, em conformidade com a intenção
comunicativa de EUc, qual seja, a de persuadir, seduzir o consumidor para que este compre o produto anunciado. Da
mesma forma, TUd é idealizado como um “beneficiário”, que tirará proveito das vantagens oferecidas pelo produto
(SOULAGES, 1996). O sujeito comunicante, por sua vez, constitui-se da combinação da empresa anunciante, interessada
na venda do produto, com a agência de publicidade, interessada na venda do anúncio. Já o sujeito interpretante é o
consumidor do texto publicitário, a quem EUc pretende transformar em consumidor efetivo da mercadoria (SOULAGES,
1996; PAULIUKONIS, 2006).
Um outro conceito pertinente para a realização desta análise é o de contrato de comunicação. Charaudeau (1996)
postula que a significação discursiva resulta da combinação de 2 componentes, a saber: o lingüístico e o situacional e a
análise de qualquer evento discursivo não pode prescindir de um ou de outro. O contrato de comunicação é determinado
pelo segundo componente, e pode ser definido como um “ritual sociolinguageiro (...) constituído pelo conjunto das restrições
que codificam as práticas sociolinguageiras, lembrando que tais restrições resultam das condições de produção e de
interpretação (circunstâncias de discurso) do ato de linguagem”. (CHARAUDEAU, 2008).
O contrato de comunicação sobredetermina e liga os sujeitos psicossociais do intercâmbio linguageiro (EUc e
TUi), posicionando-os num mesmo espaço de conivência linguística, permitindo que produzam e interpretem os enunciados.
Assim, como se pode ver no esquema acima, no contrato da publicidade, EUc idealiza um TUd em quem há uma carência
que só pode ser preenchida pelo produto anunciado; ou seja, TUd é o beneficiário da produção. Logo, para que seu projeto
de fala seja bem-sucedido, EUc depende de persuadir TUi, fazendo-o identificar-se com TUd, deixando, então, de ser o
consumidor da mensagem publicitária, e passando a ser o consumidor da mercadoria.
Além dos conceitos do ato de linguagem como encenação e do contrato de comunicação, os modos de
organização do discurso configuram-se como um pressuposto teórico subjacente à presente pesquisa. Em seu livro
Linguagem e Discurso: Modos de organização (Contexto: 2008), Patrick Charaudeau aponta a existência de 4 princípios de
organização da matéria linguística, dependentes da finalidade comunicativa do falante, a saber: os modos enunciativo,
descritivo, narrativo e argumentativo. Cabe, aqui, discorrer sobre o modo argumentativo, pois percebe-se que, embora
implicitamente, é possível depreender um intencionalidade argumentativa no discurso publicitário.
A função de base do modo argumentativo é “expor e provar causalidades numa visada racionalizante para
influenciar o interlocutor” (op. Cit.). Logo, a finalidade discursiva desse modo é persuadir o enunciatário da troca linguageira.
Visto que o discurso publicitário é permeado pela intenção de persuadir, de seduzir o consumidor, levando-o à aquisição do
produto anunciado, ele deve ser compreendido em função do esquema argumentativo que define esse gênero, mesmo que
o anúncio não traga esse esquema de maneira explicita, mas dissimulada.

202
Ainda segundo o autor, para que haja argumentação, é fundamental a existência de três elementos: 1) uma
proposta – explícita ou implícita – acerca do mundo, passível de questionamento quanto à sua validade; 2) uma proposição
ou tese por parte de um sujeito que, ao questionar a proposta, posiciona-se, desenvolvendo, assim, um raciocínio para
estabelecer uma verdade referente a ela; e 3) um outro sujeito, alvo da argumentação. O sujeito que argumenta expressa
uma convicção e uma explicação que tenta apresentar ao interlocutor a fim de persuadi-lo a mudar seu comportamento.
Quanto aos fatores situacionais que contribuem para configurar um texto argumentativo, o autor afirma serem de
duas ordens, a saber:
a) a situação de troca, que pode ser monologal ou dialogal. No caso do texto publicitário, trata-se de uma situação
monologal, uma vez que o próprio sujeito argumentante constrói a totalidade do texto argumentativo, colocando
em evidência a proposta, a proposição que questiona a proposta e, então, desenvolve o ato de persuasão.
b) O contrato de comunicação, detentor das chaves que permitem a interpretação do texto. O texto pode remeter ao
contrato – a argumentação explícita –, ou pode dissimular esse contrato – a argumentação implícita. Como já foi
mencionado anteriormente, é este segundo o caso do texto publicitário, no qual se faz necessário, muitas vezes,
interpretar asserções aparentemente simples, como participantes de uma proposta, proposição e ato persuasivo.

A linguística Textual
A contribuição fundamental da Lingüística Textual para os estudos da Linguagem foi tomar o texto como unidade
básica de investigação, ultrapassando os limites da frase, até então, tida como o centro das atenções. De acordo com esse
ramo da Linguística, o texto é considerado a “forma específica de manifestação da linguagem” (KOCH, 2005).
Primeiramente, faz-se necessário mencionar a concepção de língua com a qual se está lidando – a concepção
interacional, “na qual os sujeitos são vistos como atores/ construtores sociais” (KOCH, 2006) e, dessa forma, o texto se
configura como espaço de interação entre os sujeitos, bem como a manifestação do discurso, o produto do ato de
comunicação (KOCH, 2005; CHARAUDEAU, 1992 apud AZEREDO & ANGELIM, 1996). Assim, nosso corpus se constitui
de textos que manifestam o discurso publicitário, no qual interagem três tipos de sujeitos socialmente marcados: a empresa
anunciante, o publicitário e o consumidor em potencial.
Em segundo, é também na Linguística Textual, a partir da elaboração da Gramática do Texto, que podemos
encontrar fundamentação para o estudo dos operadores argumentativos, uma vez que a Gramática da Frase não
contemplava certos fenômenos lingüísticos que somente poderiam ser explicados no nível textual (KOCH, 2005). As formas
lingüísticas nomeadas hoje de operadores argumentativos estavam tradicionalmente diluídas entre o grupo dos chamados
“conectivos”, ou “palavras denotativas”, ou “denotadores de inclusão, exclusão, retificação e situação”, ou até mesmo
tratadas como “palavras essencialmente afetivas”. No entanto, pouco ou nada fora aludido acerca do funcionamento desses
elementos no texto, até porque a preocupação da gramática dita tradicional não está em descrever o texto, mas a frase.
Um dos aspectos da textualidade que tem sido exaustivamente investigado pelos gramáticos do texto diz respeito
à coesão, na maioria das vezes conjugada à coerência textual. Koch (1992; 2004) afirma que os operadores argumentativos
fazem parte do grupo de palavras responsáveis por dotar o texto de “força argumentativa”, contribuindo para sua
progressão sequencial e, consequentemente, para a coesão textual. Por exemplo, no caso dos operadores selecionados
para a presente análise, temos em até, mesmo e inclusive, introdutores de argumento mais forte em direção a determinada
conclusão.
Assim, a elaboração de uma Gramática do Texto – buscando compreender e descrever o funcionamento deste –
lançou luz sobre esses elementos, cuja classificação e entendimento pareciam confusos e obscuros, ocasionando
problemas no processo de ensino-aprendizagem. A Linguística Textual abriu, então, espaço para um exame mais detalhado

203
de marcas linguísticas como as que analisaremos, cujo estudo “pode ser mais bem compreendido se o texto, como um
todo, for levado em consideração” (GOUVÊA, 2006).

O Texto Publicitário
Antes de mais nada, é necessário esclarecer qual classificação de tipo e de gênero textual é utilizada aqui: é
aquela delineada por Charaudeau, na qual um tipo é uma categoria que engloba vários gêneros. Neste caso, o tipo
publicitário pode se realizar em gêneros, tais quais o outdoor, o encarte, o anúncio de revistas, dentre outros. Lança-se o
olhar sobre este último gênero nesta pesquisa.
A publicidade tornou-se um poderoso discurso da contemporaneidade, propagador de uma ideologia capitalista de
consumo, construindo discursivamente estilos de ser e representações de identidades. Para tal construção, contribuem os
aspectos semióticos, o vocabulário, a coesão (incluindo o uso dos operadores argumentativos), a modalidade, a
intertextualidade e a interdiscursividade (MAGALHÃES, 2005). Na realidade, o discurso publicitário produz necessidades e
desejos, apresentando o produto anunciado como um aliado do consumidor, responsável por satisfazê-los. Dentre as
estratégias de persuasão do texto publicitário comercial, destacam-se algumas, que serão citadas abaixo.
A primeira delas é o seu “hibridismo inerente na relação entre escrito, oral e visual” (MAGALHÃES, 2005). Além da
combinação de elementos verbais e imagéticos, esse tipo de texto se configura como uma combinação de diversos fatores,
psicológicos, econômicos e sociais, bem como do uso de efeitos retóricos e icônicos, dentre os quais podemos citar as
figuras de linguagem, as estratégias argumentativas e os mecanismos de persuasão (PAZ, 2002).
Em Brown (19712 apud PAZ, 2002) encontram-se outras estratégias, a saber: o uso de estereótipos; a
substituição de nomes; a criação de inimigos; o apelo à autoridade; a afirmação e a repetição.
Quanto às estratégias argumentativas, Pauliukonis (2006) constatou algumas delas; valorização do veículo
propiciador do suprimento das necessidades do consumidor; uso de cores e clima de festa, ressaltando o prazer de
comprar; o cuidado com a forma de apresentação do produto, valorizando sua utilidade e beleza; imagem do público-alvo,
normalmente apresentada de forma idealizada como um modelo, juntamente com o anúncio; uso adequado do léxico, como
fundamento de toda a argumentação, orientando o destinatário para uma imagem positiva do produto. A mesma autora
ainda cita Monnerat (2003), que afirma ser a finalidade econômica normalmente dissimulada no anúncio publicitário:

Utilizando, pois, estratégias de mascaramento do circuito socioeconômico e por meio de estratégias de


sedução, o sujeito comunicante vai tentar dissolver sua identidade de vendedor e a do destinatário real,
como mero consumidor, em favor da identidade dos seres discursivos, estabelecendo, assim, uma
relação benfeitor-beneficiário, por intermédio de um produto, agora transmudado em instrumento, ou
ferramenta, capaz de preencher a carência desses destinatários virtuais.

Por fim, podemos destacar que a intencionalidade é extremamente marcada no texto publicitário, uma vez que o
sujeito comunicante, além de informar, orienta, pela própria estrutura do enunciado, o interlocutor a determinadas
conclusões, utilizando “estratégias de captação que, ocultam, na maior parte das vezes, a finalidade acional e comercial do
projeto de fala” (SOULAGES, 1996).

Os Operadores Argumentativos
Visto que os sujeitos sociais, ao interagirem por meio da linguagem, objetivam agir sobre o outro, seus enunciados
estarão sempre orientados para determinadas conclusões, quer de forma explícita ou implícita (KOCH, 2004b). Desta
forma, pode-se afirmar que os enunciados são sempre dotados de força argumentativa. Ou seja, a argumentatividade está

204
inscrita na língua, como afirma Oswald Ducrot, evidenciada pela existência de elementos,dentre os quais destacou aqueles
a que nomeou de “operadores argumentativos”, presentes na gramática da língua, cuja função é indicar a força
argumentativa das asserções (GOUVÊA, 2006).
Essas marcas lingüísticas são responsáveis por estabelecer vínculos causais entre o conteúdo das asserções,
permitindo a construção de teses, visando à atuação sobre o sujeito-alvo da argumentação (IDEM).
Em seu livro Argumentação e Linguagem (Cortez: 2008), Koch menciona as marcas linguísticas da argumentação,
a saber: a) as pressuposições; b) as marcas das intenções; c) os modalizadores; d) os operadores argumentativos; e) as
imagens recíprocas entre os interlocutores e as máscaras assumidas na encenação da troca linguageira.
Acerca dos operadores discursivos, ou argumentativos, a autora afirma que funcionam como encadeadores dos
enunciados, “estruturando-os em textos e determinando sua orientação discursiva”. Como já mencionado anteriormente,
trata-se de elementos considerados como morfemas relacionais pela gramática tradicional (os conectivos). A NGB não os
inclui em nenhuma das classes de palavras; são nomeados como “palavras denotativas” ou “denotadores” por Rocha Lima
e Bechara, respectivamente; Celso Cunha afirma tratar-se de palavras “essencialmente afetivas”, sem nome especial dado
pela NGB. Tanto na gramática tradicional, quanto na estrutural ou gerativa, esses elementos carecem de um exame mais
acurado.
Koch afirma que “é a macrossintaxe do discurso – ou semântica argumentativa – que vai recuperar esses
elementos”, determinantes do valor dos enunciados. E, para examiná-los, é relevante fazer referência ao conceito de escala
argumentativa desenvolvido por Ducrot. Esse conceito diz respeito à presença de vários argumentos apontando para a
mesma conclusão num ato persuasivo. Tais argumentos, no entanto, podem vir a ser posicionados numa escala, a
depender de sua força argumentativa. Nessa perspectiva, os operadores discursivos podem funcionar como os indicadores
da sua posição.
Nesta análise, lida-se com dois tipos de operadores: aqueles que introduzem argumento mais forte numa escala
orientada para determinada conclusão, e aqueles que apontam para a negação da totalidade.
Embora esteja ainda em sua fase inicial, pode-se afirmar que se trata de uma pesquisa de cunho qualitativo e
quantitativo, utilizando-se o método empírico-dedutivo, na medida em que nosso corpus se configura como a língua em uso
e, a partir dele, a análise é realizada por dedução, ou seja, pela descrição dos fatos da linguagem presentes nos textos.
O corpus, ainda em construção, constituir-se-á de anúncios de revistas diversas de grande circulação. Foram
selecionados dois deles para uma amostra de dados. Cada anúncio foi analisado segundo o modo de organização
argumentativo do discurso, procurando-se depreender a proposta, a tese ou proposição e os argumentos, bem como a
orientação discursiva dada pelos operadores em cada contexto.

Análise dos Textos


Passa-se agora à análise dos anúncios publicitários selecionados, dos Embora se saiba que não só os
enunciados, mas também os elementos icônicos e imagéticos contribuem para a construção dos sentidos do texto, nossa
análise será focada no material linguístico presente nos anúncios, que será transcrito à medida que procedemos à sua
apreciação, fazendo menção dos aspectos semióticos sempre que necessário.
Veja-se um anúncio com o operador mesmo: “Com o novo SBP automático, você protege a sua casa sem parar.
Mesmo quando você está longe dela. Chegou SBP automático. Proteção dia e noite contra insetos”.
No exemplo acima transcrito, há um anúncio em que o operador mesmo é utilizado. Podemos perceber que
mesmo confere aos enunciados em que aparece certo caráter enfático, mostrando-se como um elemento decisivo para a

205
confirmação da veracidade e conferindo ao argumento por ele introduzido um status de superioridade na escala
argumentativa.
Trata-se de anúncio de um inseticida já bastante conhecido no mercado – o SBP – mas oferecido agora com um
dispositivo automático, que ativa microsprays a cada 15 minutos. Aqui percebemos a estratégia de criação de inimigos,
frequentemente usada pela publicidade – neste caso, os insetos. Assim, a proposta implícita nesse texto é a de que os
insetos são seres nocivos. A tese, que vai ao encontro da proposta, é que você deve comprar SBP Automático para
proteger sua casa dos insetos. Logo, o produto é apresentado como a solução para a necessidade de proteção. Podem-se
observar, nesse anúncio, dois argumentos pró-tese:
p) “Com o novo SBP automático, você protege a sua casa sem parar”.
p’) “Com o novo SBP automático, você protege a sua casa mesmo quando você está longe dela”.
Ambos apontam para a mesma conclusão (r): Se SBP automático protege sua casa sem parar, mesmo quando
você está longe dela, então você deve adquiri-lo! Entretanto, o argumento introduzido pelo operador mesmo se apresenta
como o que melhor conduz à conclusão tencionada, uma vez que a importância do inseticida automático é percebida,
especialmente, quando os donos da casa estão “longe dela” e os insetos podem “passear” livremente pela casa sem serem
“incomodados” pela presença humana.
Agora, Observe-se um anúncio em que ocorrem os operadores só e até: “Alcançamos a perfeição. Foi só
combinar potência e estilo. VERACRUZ. Perfeito até nos detalhes.”
Sabe-se que, assim como mesmo, o operador até funciona no texto como um ordenador da escala
argumentativa, apresentando o argumento que mais fortemente orienta o enunciado para a conclusão desejada,
equivalendo, semanticamente, em muitos contextos, aos outros dois. Tradicionalmente, o vocábulo encontra-se inserido na
classe das preposições, funcionando como um demarcador de limite. De certa forma, esse valor semântico pode ser
estendido ao uso de até enquanto operador discursivo, já que o argumento por ele introduzido pode ser considerado o
máximo, causador de maior impacto do que os apresentados antes dele. Poder-se-ia ousar afirmar que até introduz o
argumento limítrofe do ato persuasivo, dentro da escala argumentativa.
No exemplo dado, tem-se um anúncio de carro – o Veracruz, da empresa Hyundai. Segundo o texto, esse carro é
considerado o alcance da perfeição, uma vez que une potência e estilo, isto é, trata-se de um carro cujo motor é potente, e,
além disso, é bonito. Inferimos daí, que o anúncio parte do pressuposto que potência e estilo ainda não haviam se
combinado em nenhum outro carro, por isso é afirmado: “Foi só combinar potência e estilo”, como se ninguém tivesse tido
essa “brilhante ideia” antes. Essa asserção funciona como um primeiro argumento para defender a tese de que a perfeição
foi alcançada no modelo de carro anunciado. Assim, utilizou-se o operador só, de forma a singularizar a empresa fabricante
do automóvel, bem como para excluir todos os esforços para se produzir um carro perfeito: basta combinar potência e
estilo.
Para valorizar ainda mais essa dita “perfeição”, é apresentado como argumento mais forte, o fato de o modelo
Veracruz ser “perfeito até nos detalhes”. Essa asserção parte também de um pressuposto de que os detalhes não
precisariam, necessariamente, ser perfeitos para que algo fosse considerado perfeito. No entanto, o carro Veracruz se
constitui como a expressão da verdadeira perfeição, pois até os seus detalhes são bem delineados. Mais uma vez, o
operador até hierarquiza a escala argumentativa, posicionando o segundo argumento como dotado de maior força
persuasiva: Se um carro perfeito tem que ter potência e estilo, e Veracruz é perfeito até nos detalhes, então você deve
comprá-lo!
Mesmo em caráter inicial, a presente investigação permitiu observar que a presença dos operadores discursivos
merece atenção cuidadosa, pois são marcas linguísticas usadas no discurso publicitário, como estratégia argumentativa,

206
revelando a intencionalidade do projeto de fala por parte do sujeito comunicante e contribuindo para a construção dos
sentidos dos textos.
Uma vez que esses operadores são responsáveis por evidenciar a orientação dos enunciados a determinadas
conclusões, seu estudo se torna de extrema relevância, principalmente se assume-se que a argumentatividade esteja
inscrita na língua e se tencionamos compreender o processo de enunciação.
Mediante a análise dos anúncios selecionados, com foco no uso dos operadores mesmo, até e só, foi possível
perceber que o emprego de tais marcas linguísticas constitui-se como uma estratégia de bastante peso para o ato de
persuasão. Pode-se dizer que maximizam a força argumentativa das asserções, tornando-as decisivas para levar o sujeito
interpretante a identificar-se com o sujeito destinatário idealizado pelo EU - comunicante, de modo que venha a aderir à tese
defendida, passando da posição de mero consumidor da mensagem publicitária, a consumidor do produto de fato.
Verificou-se, igualmente, que os operadores investigados podem acentuar o caráter enfático dos enunciados,
confirmando, assim, a veracidade da tese; podem destacar alguma característica considerada imprescindível ao produto,
singularizando-o e excluindo os outros; podem viabilizar inferências e pressuposições, contribuindo para a interpretação da
mensagem veiculada.
Desta forma, espera-se que esta proposta de investigação tenha colaborado para um maior aprofundamento no
estudo das estratégias argumentativas, proporcionando e ratificando a necessidade de reflexão sobre os processos sociais
contemporâneos, com as transformações que eles trazem consigo às nossas manifestações culturais via linguagem. “É no
contexto dessa discussão que a Análise do Discurso tem uma grande contribuição a oferecer” (MAGALHÃES, 2005).

Referências
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fls. Dissertação de Mestrado.

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GOMES, Mª Carmen Aires. Análise Linguístico-discursiva da representação da figura masculina em publicidades brasileiras.
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A autora é mestranda em Letras Vernáculas, Língua Portuguesa, na UFRJ, orientanda da Profª Drª Lúcia Helena Martins
Gouvêa. É especialista em Língua Portuguesa pela Universidade do Grande Rio e pelo Liceu Literário Português. Leciona
na rede pública estadual e municipal de Duque de Caxias, RJ. E-mail: gicalealves@hotmail.com

208
Uma análise semiolinguística de propagandas políticas do
atual governo mineiro

ALVES, Mariana Silva


(PUC Minas)

1- INTRODUÇÃO

A gestão dos governadores mineiros Aécio Neves/Antonio Anastasia é muito bem avaliada desde o seu início em
2002. E, segundo dados do Instituto DATATEMPO, em pesquisa registrada no Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais,
sob o número 6927, neste final de mandato, continua com boa avaliação.
Segunda pesquisa supracitada, dentre as pessoas pesquisadas, questionadas sobre a aprovação ou não
aprovação do referido governo quanto à maneira que ele administra o Estado, 76,42% responderam de forma positiva a
esse questionamento e, apenas, 19,73% desaprovam o governo (os outros 3,85% não souberam ou não quiseram
responder).
A pesquisa de número 6927 ainda traz dados que revelam que 18,05% da população entrevistada credita ao
governo o título de “Muito Bom”, 46,05% de “Bom” e 13,33% de “Regular Positivo”. Esses são bons números, para um
governo que completa em 2010 oito anos de mandato.
O que faz um governo ser tão bem avaliado? Seu trabalho ou a divulgação que é feita sobre ele? É fato que ainda
que seja feito um bom trabalho, se ele não for divulgado, algumas pessoas sequer darão conta do que foi realizado.
Obviamente, em um estado grande como é o de Minas Gerais (quarto maior Estado do Brasil, com extensão territorial de
586.528 km², equivalente à da França), uma obra ou investimento realizados, para que sejam conhecidos de todos os
mineiros, devem ser divulgados, apresentados à população. Essa seria, na melhor das hipóteses, uma explicação para a
utilidade da divulgação política, mas, é fato, que muitas vezes, a divulgação de obras, realizações e investimentos são
formas de manipulação ideológica; realizadas por meio de propagandas.
Segundo Garcia, em apresentação para o livro “A Propaganda Política” de Domenach, existe grande discussão
sobre a definição do que seria uma Propaganda, uma vez que esse conceito, às vezes, se confunde com o de Publicidade:

“Há um problema em português. Em várias línguas há uma distinção linguística bem


clara entre os tipos de comunicação persuasiva. Geralmente a palavra Propaganda se refere à
transmissão de idéias, políticas ou religiosas. Publicidade se refere à difusão de produtos, serviços
ou candidatos políticos. Em francês há “Propagande” e “Publicité”; em inglês “Propaganda” e
“Advertising”, espanhóis distinguem entre “Propaganda” e “Publicidad”. Em português não, Propaganda
e Publicidade são utilizadas indistintamente (...). A palavra propaganda se refere à transmissão de
idéias políticas, nada tem a ver com promoção de sabonetes, shampoos, fraldas ou políticos
descartáveis.” ” (GARCIA, versão digital. In: DOMENACH, Jean-Marie)1

No presente artigo, usaremos para Propaganda o conceito de “transmissão de idéias políticas” e o corpus a ser
analisado constitui-se de dez diferentes propagandas, coletadas durante os meses de fevereiro e maio de 2010 e retiradas
de um jornal popular veiculado em Minas Gerais. Essas propagandas são divididas em:

1 Grifo meu.

209
• Propagandas sobre a Cidade Administrativa de Minas Gerais “Presidente Tancredo Neves”: Tratando dos
benefícios trazidos por essa obra em gestão pública; no desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte; em
meio ambiente; na geração de empregos; na economia para os cofres públicos etc.

Exe Figura 1. Fonte: Super Notícia 01.03.10

• Propagandas sobre realizações e projetos do atual governo estadual: Tratando dos benefícios em segurança;
cultura; qualidade de vida etc.

Exe Figura 2: Fonte: Super Notícia 24.04.10

Nosso principal objetivo é, por meio desta análise, avaliar o momento político mineiro sob a ótica de uma teoria
linguística que se alimente de diferentes áreas do conhecimento e reconheça que análises de fenômenos linguísticos são
indissociáveis da situação de uso real da língua. Dessa forma, usaremos neste trabalho, a teoria Semiolinguística de Patrick
Charaudeau (2001, 2008, 2010) e tentaremos observar a importância dessa teoria para a compreensão do processo

210
discursivo presente nessas propagandas; para que possamos, a partir da presente análise, pensar na possível relação entre
as propagandas, suas estratégias e o momento social do qual elas partem e o qual elas refletem.

2- DA SEMIOLINGUÍSTICA

Segundo Freitas (2008), algumas áreas da linguística têm, nos últimos anos, se valido de outras disciplinas,
alimentando diferentes áreas do conhecimento e reconhecendo que as análises dos fenômenos linguísticos são
indissociáveis da situação de uso da língua. Ainda em acordo com o estudioso anteriormente referido, estudos na área da
linguagem têm contribuído muito para uma melhor compreensão da vida social e para um maior auxílio na resolução dos
problemas de comunicação de uma sociedade moderna e altamente complexa, como é a nossa.
A teoria Semiolinguística é uma das precursoras dessa linha de estudo e tem o objetivo de estudar a linguagem
levando em conta sua dimensão psicossocial, além de mostrar que uma teoria do discurso não pode prescindir uma
definição dos sujeitos do ato de linguagem (CHARAUDEAU, 2001). Essas ideias evidenciam também a influência da teoria
da Enunciação nas ideias da Semiolinguística; uma vez que a Enunciação trata da presença dos responsáveis pelo ato de
linguagem, suas identidades, seus estatutos e seus papéis e é “o pivô da relação entre a língua e o mundo”
(CHARAUDEAU & MAINGUENAU, 2006, p.193), supondo a conversão individual da língua em discurso; uma vez que,
segundo Benveniste:

“Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é
efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte
e que suscita uma outra enunciação de retorno.” (BENVENISTE,1989, p.82)

Para a análise de um ato de linguagem, visto sob a ótica da Semiolinguística como uma encenação do discurso, leva-
se em conta as circunstâncias que envolvem esse discurso, que é visto como um evento de produção e de interpretação.
Por isso, os saberes supostos que circulam entre os sujeitos da linguagem, suas intenções de fala e as construções de
interpretação, a partir de experiências pessoais, são caras à interpretação do ato de linguagem. Por isso, cabe ao analista
do discurso sua inserção sociopolítica para que haja compreensão da condição de produção de um discurso, uma vez que
recorremos a elementos fora de um enunciado para interpretá-lo; levando em conta, é claro, a heterogeneidade de um
discurso, permitindo-lhe várias interpretações.
O ato de linguagem, produto da ação de seres psicossociais, testemunhas mais ou menos conscientes das práticas
sociais e das representações imaginárias da comunidade a qual pertencem, combina o fenômeno do dizer e o do fazer:

• Fazer (Circuito externo): lugar da instância situacional - espaço que ocupam os responsáveis por este ato (os
parceiros).
• Dizer (Circuito interno): lugar da instância discursiva – espaço da encenação da qual participam seres de palavras
(os protagonistas).

211
O esquema abaixo resume bem o processo de interação linguageira a partir da perspectiva dos sujeitos de linguagem.

Fazer- Situacional

Circuito Externo - Fazer


Parceiros

Circuito interno – Dizer

EUe TUd
EUc Protagonistas TUi

Relação Contratual

2.1: Instância Situacional: os componentes da situação comunicativa

2.1.1: Domínio temático

As propagandas aqui analisadas são relativas às ações, obras e atividades do Governo Neves/Anastasia.
Portanto, os principais sujeitos envolvidos neste ato são o próprio governo e os cidadãos a quem elas se destinam. No
entanto, veremos a seguir que na teoria Semiolinguística o ato de linguagem é realizado entre quatro (e não dois) sujeitos.

2.1.2: Identidade dos sujeitos do ato

A Identidade que está presente em um ato de linguagem refere-se à posição social do Eu/Tu, sujeitos de
linguagem, que poderá ser institucional ou pessoal; o que dependerá das inferências dos sujeitos envolvidos nesse ato.
Um sujeito de linguagem pode ter várias identidades e usar apenas uma, ou quantas forem preciso em um
determinado ato. Isso porque durante um processo discursivo, os sujeitos nele envolvidos e socialmente inseridos
constroem para si imagens de seu interlocutor, que nem sempre coincidem com as imagens que o outro interlocutor
construiu para si e também para o outro. Por isso, devemos estar atentos àquilo que chamamos de as Circunstâncias de
Discurso, pois elas estão ligadas aos saberes supostos que circulam entre os sujeitos envolvidos no ato de linguagem, tanto
no processo de produção como no de interpretação. Esses saberes supostos relacionam-se àquilo que está implícito e ao
que está explícito em um ato de linguagem (CHARAUDEAU, 2008)
Para Charaudeau (2008) o ato de linguagem é visto como um encontro dialético, de produção e de interpretação,
realizado entre quatro sujeitos assim descritos:

• Processo de Produção: criado por um EUc e dirigido a um TUd.


• Processo de Interpretação: criado por um TUi, que constrói uma imagem EUe do locutor.

Chamados de Parceiros o EUc e o TUi são inseridos no jogo por uma relação contratual dependente da situação
interacional que os envolve, suas identidades e intenções que possuem ou constroem sobre as intenções comunicativas um
do outro. Os parceiros, seres empíricos, detêm a iniciativa no processo de produção e de interpretação do ato; o EUc
produz “o Dizer” e o TUi constrói uma interpretação para “o Dizer” do primeiro.

212
Os Protagonistas, EUe e TUd, são seres de fala, de encenação do dizer; que é produzida pelo EUc e
interpretada pelo TUi. Os protagonistas assumem diferentes faces de acordo com os papéis que lhes são atribuídos pelos
parceiros do ato de linguagem, em função da relação contratual. Assim, podemos falar da identidade dos sujeitos
envolvidos no ato da seguinte forma:

• EUc Governo (ser empírico):


1) Deseja ser visto como um EUe de Governo ético, comprometido, responsável etc.;
2) Projeta uma imagem de TUd que esteja em acordo com suas intenções comunicativas e que aceite a imagem de EUe por
ele pretendida (embora não tenha certeza de que isso aconteça).
• TUi cidadão/(e)leitor (ser empírico):
1) Independente das intenções do EUc, pode ou não, vê-lo com a imagem por este desejada;
2) Se o TUi vir o EUc da forma que este intenciona, automaticamente o TUi se identifica com a imagem de TUd vislumbrado
pelo EUc.

Nesta análise, os sujeitos envolvidos referem-se na instância situacional aos sujeitos empíricos Governo
Neves/Anastasia (EUc) e aos (e)leitores do jornal (TUi) e, na instância discursiva, está o EUe e o TUd, projetados, ambos,
por imagens feitas pelo EUc.

2.1.3: Finalidades

Em Propagandas Políticas vende-se a imagem de um político. Elas têm a finalidade persuasiva; de fazer o outro
crer em algo, levando-o a aderir ao projeto de fala do locutor/sujeito falante e, por extensão, ao universo discursivo por ele
construído.
No entanto, há nas propagandas analisadas a estratégia de tentar escamotear/mascarar o “fazer-crer persuasivo”,
típico de propagandas, sob a forma de suposta informação (“fazer-saber”); através de um suposto objetivo informativo típico
do discurso didático.
Nas propagandas analisadas faz-se uso de um formato de questão de prova, com alternativas de múltipla-escolha,
trazendo informações sobre obras e realizações do atual governo; ousando pensar que há um cidadão/(e)leitor que precisa
ser informado sobre as ações governamentais.

2.1.4: Circunstâncias materiais de realização

As circunstâncias materiais de realização referem-se às interferências ocorridas na enunciação sempre que elas
tenham uma pertinência na situação real de comunicação. Nesse tópico é importante observar e analisar questões que
apresentam se o ato é monolocutivo, interlocutivo, oral, escrito etc. A figura abaixo apresenta um esquema geral das
circunstâncias materiais de alguns gêneros textuais2.

2 a) Situar gêneros dentre atos monolocutivos não nega a possibilidade dialógica desses; principalmente em uma teoria que lança mão da importância interacional dos sujeitos de linguagem, em seu
processo de construção/interpretação.
b) Os esquema anterior é melhor interpretado quando leva-se em conta a circulação de gêneros discursivos, em que um gênero pode ter características enunciativas diferentes a depender da situação
comunicativa que o envolve.
c) O (*) refere-se às nossas inserções.

213
ORAL
Conferência
Conversação
Exposição
Discussão
Conto oral
Debate
Discurso (Gênero textual)* Rádio
TV

Situações

MONOLOCUTIVAS INTERLOCUTIVAS
Imprensa Chats / Fóruns

Publicidade Bilhetinhos

Artigo Científico
Mensagens SMS*
Informes
Resenhas Twitter*

ESCRITO
Fonte: Charaudeau-Colóquio UFMG(2010)

O Corpus a ser analisado constitui-se de propagandas políticas escritas retiradas de um jornal mineiro, nomeado Super
Notícia. Esse jornal é destinado a um público popular, o que pode ser confirmado pelo preço de R$ 0,25, formato tabloide,
reportagens e notícias de fácil leitura, uso intenso de imagens, dentre outras características. O fato de ser líder de vendas
em Minas Gerais3 garante que as propagandas cheguem a um grande público e seja lida pela população que é o eleitorado
político a quem elas se destinam.

3- DAS ESTRATÉGIAS USADAS NAS PROPAGANDAS

Charaudeau afirma que “a encenação do dizer depende de uma atividade estratégica (conjunto de estratégias
discursivas) que considera as determinações do quadro situacional” (CHARAUDEAU, 2001, p.29). Nosso corpus faz uso de
uma estratégia discursiva bastante interessante: o uso do discurso didático (um discurso que tem por finalidade informar,
levar à construção do conhecimento etc.) nas propagandas. Dessa forma, podemos pensar que há um mascaramento da
finalidade usual do discurso propagandístico, que é persuadir o cidadão por meio de um “fazer-crer”, nas propagandas
políticas apresentadas. Essas propagandas, como já apresentado, tentam escamotear o “fazer-crer” na medida em que
pretendem levar seu (e)leitor a um “fazer-saber” sobre os trabalhos do governo.
Quanto à organização das propagandas, podemos destacar seu texto de perguntas diretas que pressupõem o
enunciado como verdadeiro, já que nele se afirma algo como “Por que x leva a y?” e o que se pretende é, apenas, confirmar
o enunciado por meio das alternativas. Estas últimas são afirmativas e apresentam ações valorativas do governo que
confirmam e respondem ao enunciado de maneira positiva. Todas as alternativas são marcadas verdadeiras na opção
“Todas as alternativas anteriores estão corretas”, confirmando as intenções da propaganda. Vejamos então o exemplo
abaixo transcrito:

4 O jornal Super Notícia é o jornal mais Vendido em Minas Gerais e foi, neste ano de 2010, o jornal mais vendido no Brasil, com uma média de 303.269 exemplares/dia segundo o próprio jornal do dia 27 de
abril de 2010 (com base em pesquisas do IVC - Instituto Verificador de Circulação - órgão que mede a circulação de jornais no país).

214
POR QUE A CIDADE ADMINISTRATIVA VAI GARANTIR MAIS EFICIÊNCIA NA GESTÃO
PÚBLICA?
( ) Desde o seu projeto, a Cidade Administrativa foi planejada para permitir uma gestão mais
eficiente no setor público e melhorar a qualidade dos serviços prestados à população.
( ) A economia do Governo de Minas com gastos de aluguéis, transporte, manutenção e serviços
gerais será de mais de R$ 90 milhões por ano.
( ) Os servidores estaduais terão condições mais adequadas de trabalho, possibilitando uma maior
ordenação, integração e eficiência nos serviços prestados.
( X ) Todas as alternativas anteriores estão corretas.

Esse excerto obedece a ideia “Por que x leva a y?” em que x é a Cidade Administrativa de Minas Gerais e y a
garantia de mais eficiência na gestão pública. É interessante observar que já no título tenta-se creditar uma imagem positiva
ao governo e às suas obras, já que o enunciado é tomado como algo verdadeiro e afirmativo; ou seja, pressupõem-se no
enunciado que a Cidade Administrativa vai garantir, realmente, aquilo a que ela pretende. Podemos observar também, por
exemplo, a palavra “garantir”, modalizadora do enunciado, que pretende dar uma ideia muito mais efetiva àquilo que é dito;
uma vez que a palavra “garantir” dá uma ideia de maiores chances de se realizar algo do que, por exemplo, “trazer (ou
prometer) ‘mais eficiência na gestão pública’”.
As alternativas seguem o mesmo padrão do enunciado: uma afirmação onde promessas não aparecem, mesmo
que a ação descrita seja uma ação futura. Assim podemos ler sentenças como “planejada para permitir uma gestão mais
eficiente”, “A economia do Governo (...) será de mais de R$ 90 milhões”, e “os servidores estaduais terão condições mais
adequadas de trabalho”, em que as palavras anteriormente destacadas apresentam como comprováveis, ainda que no
futuro, as ações do governo.

4- CONFIGURAÇÃO DO QUADRO SEMIOLINGUÍSTICO NAS PROPAGANDAS

4.1: Algumas considerações sobre os sujeitos do ato


A criação das propagandas políticas envolve muitas pessoas e processos, que vão desde o momento em que se
teve a necessidade de criá-las, passando pelo de contratação da empresa de publicidade (suas ideias, formatação etc.) até
o que elas foram veiculadas em jornais, para serem lidas. E esse percurso é levado em conta neste processo de análise.
Essas propagandas são relativas ao governo Peessedebista Neves/Anastasia, sujeitos sociais institucionais e
historicamente determinados, que possuem intenções ao realizarem uma propaganda (divulgar obra ou campanha, explicar
gastos etc.). Isso representa as intenções comunicativas do discurso, pois um governo sabe que as propagandas podem
ajudar na formação de opinião que os eleitores têm sobre ele. Podemos falar a partir daqui, sobre o público-alvo de uma
propaganda; se será a classe trabalhadora ou os grandes empresários, se serão os professores ou a sociedade de uma
maneira geral; definindo-se também a identidade dos sujeitos envolvidos no discurso. Por outro lado, a situação interacional
é observada quando a intenção é a escolha do código semiolinguístico a ser usado (icônico, verbal etc.), onde será
veiculada a propaganda (em jornal impresso ou TV etc.), se será um texto engraçado, ou científico, se um provérbio etc.,
dentre outras questões pertencentes à comunicação.

215
Como anteriormente apresentado, tomamos o governo Neves/ Anastasia como os Sujeitos Comunicantes dessa
encenação do ato de linguagem, o EUc do quadro de Charaudeau.4 No entanto, o Governo Neves/Anastasia não é o único
responsável pela encenação do ato de linguagem como EUc. Sabemos que o Governo tem intenções relativas à
materialização de propagandas, mas não sabemos se todas as ideias relativas à formatação, layout, escrita etc., partem
dele. Sabemos que, por meio de licitações, há a contratação de empresas de publicidade responsáveis por utilizar as ideias
e intenções do governo, materializando-as em propagandas, trabalhando-as no que diz respeito ao nível textual, gráfico etc.
É possível falar na presença de uma empresa de publicidade nesse processo de construção do ato e os publicitários são
responsáveis pela criação e elaboração desse processo. O publicitário, ou grupo de publicitários, enfim, a empresa de
publicidade, transpõe as ideias do Governo para o nível discursivo da propaganda que chegará ao público/TUi, no nível
situacional.
Tomamos então as propagandas como um produto de uma atividade realizada em equipe, sendo pertinente
afirmar que se trata de um ato em que o EUc pode ser plural, pois além do Governo Neves/Anastasia, como já indicado, são
constituídas pela subjetividade de cada integrante do grupo da empresa de publicidade que trabalhou em sua produção.
Vale lembrar que, no contexto situacional, Governo/EUc e empresa de publicidade se confundem e, embora a empresa de
publicidade estivesse submetida às intenções do Governo, cada publicitário traz suas ideias para o projeto; embora, no
produto final da propaganda, não seja possível, ao leitor, saber a quem pertence cada ideia.
Ainda na instância do fazer, o segundo parceiro desse circuito, o Sujeito Interpretante (TUi), embora seja o sujeito
que, de fato, tem acesso ao discurso, é impossível defini-lo a priori, pois pode ser qualquer indivíduo que lê a propaganda
no jornal e aceita o contrato proposto pelo governo e pela empresa de publicidade; ele é tomado nesta análise como
qualquer sujeito leitor do jornal que tenha contato com a propaganda.
No entanto, quando passamos para análise dos protagonistas do ato linguageiro, o Sujeito Enunciador e o Sujeito
Destinatário (EUe e TUd), creditamos ao primeiro a imagem almejada pelo EUc de um governo ético, credível, etc., usando
para si uma imagem professoral e, ao segundo, uma imagem de um leitor ideal, apto a aceitar o contrato proposto pelo EUc
de um leitor que deve ser informado das ações do governo. Assim, a composição do quadro conceitual proposto na
presente análise é o seguinte:

NÍVEL SITUACIONAL
NÍVEL DISCURSIVO
EUc EUe TUd TUi
[Gov. Neves/ Autoimagem Imagem de [(e)leitores
Anastasia + sua intencionada (e)leitor ideal, do jornal –
Secret. de pelo Governo. que deve ser seres
Comunic.- seres Imagem informado empíricos]
empíricos] professoral pelo governo.
Equipe de
PUBLICIDADE
CIRCUITO INTERNO

CIRCUITO EXTERNO

4 Ao colocarmos o Governo Neves/Anastasia como o EUc do discurso, o definimos como sujeito institucional e acreditamos na presença de uma secretaria de comunicação implicada nesse processo de
produção das propagandas. Assim, fica subentendido que, obviamente, o governador não faz nada sozinho e que há toda uma comissão (uma Secretaria de Comunicação) responsável por esse processo.
Não enfatizaremos essa questão, pois acreditamos que isso fique implícito ao leitor deste artigo.

216
5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diversas estratégias são criadas para que um EUc, ser real, atinja suas intenções e finalidades linguísticas. A
principal estratégia usada nas propagandas aqui analisadas é o uso do discurso didático professoral objetivando informar o
(e)leitor sobre as atividades e ações realizadas pelo governo. Essa estratégia reflete a intenção de um possível
mascaramento do lugar social do EUc, iniciador do processo comunicativo, em uma tentativa de apresentar como
verdadeiras, credíveis e supostamente comprováveis (tal como apresenta o discurso didático) essas afirmações.
Essas propagandas permitiram-nos observá-las como um fenômeno discursivo que envolve sujeitos socio-
historicamente inseridos e observá-las em seu contexto de produção; o que nos ajuda a reconhecer o momento social vivido
e, consequentemente, nos inserir neste momento político como seres sociais que dele participam.
Logo, fica evidente a importância de uma Teoria linguística que leve em consideração os aspectos psicossociais
para a compreensão do fenômeno linguageiro. Sendo possível dizer que a escolha pela configuração textual dessas
propagandas, em que existem afirmações com pretensão de serem tomadas como verdadeiras, refletem uma tentativa do
governo de justificar atitudes tomadas e divulgar projetos realizados; tudo isso com a finalidade de propor para si uma
imagem positiva.

6- REFERÊNCIAS

ALVES, Carolina Assunção e. Narradores de Javé: uma análise semiolingüística do discurso fílmico. 2006. 104 f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte.

BENVENISTE, Émile. A natureza dos pronomes. In: Problemas de Linguística Geral I. 4ª ed. Trad. Maria da Glória Novak
e Maria Luiza Néri. Campinas, SP: Pontes - Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995, p.277-283.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos Sujeitos da Linguagem. In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lúcia; MELLO, Renato
de. Análise do discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Letras, 2001. 359p.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008. 256 p.

CHARAUDEAU, Patrick. O Sujeito do Discurso (minicurso). In: II COLÓQUIO Interinstitucional em Análise do Discurso.
Belo Horizonte: UFMG, 17-21/05/2010.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2006. 555p.

DOMENACH, Jean Marie.A Propaganda Política. Ed.Ridendo Castigat Mores. Versão para eBooks. Fonte
Digital.Disponível In.www.jahr.org.Copyright ©.

EMEDIATO, Wander. Um olhar da Semiolingüística sobre manuais didáticos de Língua Portuguesa.Fonte


Digital.Disponível In:http://www.fflch.usp.br/dlcv/enil/pdf/94_Wander_E.pdf .

FREITAS, Ernani Cesar de. A semiolinguística no discurso: práticas de linguagem em situações de trabalho. In: Revista
do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 4 - n. 2 - 262-283 - jul./dez. 2008.
Disponível em: http://www.upf.tche.br/seer/index.php/rd/article/viewFile/693/451. Acesso. 27/07/2010

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Minas Gerais. Disponível In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Minas_Gerais. Acesso em


23.08.2010.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Aécio Neves. Disponível In: http://pt.wikipedia.org/wiki/A%C3%A9cio_Neves. Acesso em:
23.08.2010.

217
7- CURRÍCULO DA AUTORA:
Graduada em Letras pela PUC MG em 2009. É aluna do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa da PUC MG e
bolsista CAPES. Atua na linha de pesquisa “Enunciação e processos discursivos” e é pesquisadora do grupo: COMPLEX
COGNITIO - uma visão integrada da cognição humana: corpo, cérebro, mente, linguagem, significação. E-mail:
mari.alves9@gmail.com

218
Seleção vocabular e argumentação – análise de redações

ALVES, Renata Calheiros


(UERJ)

Introdução

No interior dos estudos linguísticos aplicados ao ensino de Língua Portuguesa, várias são as vozes em defesa do
ensino do léxico entendido para além da simples ampliação de repertório. Estudiosos de sólida atuação vêm demonstrando
que é tarefa essencial das aulas de língua levar o aluno a desenvolver a habilidade de selecionar e empregar vocábulos
adequadamente, em relação ao gênero textual produzido e ao contexto de produção, entre outras variáveis implicadas no
seu projeto comunicativo, como parte determinante da sua competência comunicativa.
Com base nas orientações de Oliveira (2006) e de Pauliukonis (2007), este estudo objetiva investigar, num corpus
de 10 (dez) redações produzidas por candidatos ao exame de seleção para ingresso nos cursos de graduação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2008 (corpus gentilmente cedido pelo Departamento de Seleção
Acadêmica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a pertinência do emprego vocabular, numa tentativa de observar,
ainda que numa amostragem de pequenas proporções, se o objetivo de facultar ao aluno uma “competência lexical” vem
sendo alcançado. A partir dos dados obtidos na análise, pretende-se apresentar sugestões didáticas que contribuam para
que essa meta seja atingida.

Ensino do léxico e projeto comunicativo

Já se tornou consensual a máxima de que o ensino de Português na Educação Básica deve objetivar a
instrumentalização do indivíduo para sua inserção e atuação em práticas letradas várias, requeridas por uma noção mínima
de cidadania. Nesse sentido, voltam-se os olhares para a dimensão textual do ensino de língua, motivo pelo qual os
docentes dessa área são permanentemente instados a realizar atividades centradas no texto. Entretanto, a falta de
compreensão sobre como abordar textualmente as questões da língua, por parte dos profissionais em atividade, leva a
distorções tão comprometedoras quanto eram as produzidas pela desconsideração das dimensões textuais e contextuais de
que se acusa o ensino praticado outrora.
De fato, veem-se com frequência textos servindo de mero pretexto para que se continue a praticar os mesmos
modelos que já se provaram insuficientes na formação que se pretende propiciar aos alunos. Um dos desdobramentos
desse problema revela que não se tem clareza ainda sobre a natureza do texto. Aspectos microtextuais têm recebido pouca
atenção nas aulas de língua portuguesa, por não terem reconhecida sua atuação na construção do todo textual.
Insere-se nesse lapso o ensino do léxico precariamente feito nas salas de aula brasileiras. Essa precariedade se
mostra no desprestígio do uso do dicionário, que recebe tratamento de “antiguidade”, com certa reverência, mas cuja
funcionalidade é raramente demonstrada e incentivada. No segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio,

219
deixadas de lado as listas de coletivos, o ensino do léxico quase sempre se resume ao estudo de parônimos e sinônimos,
com raras incursões na hiperonímia e na função coesiva desses recursos.
Essas constatações não têm a intenção de responsabilizar parte dos docentes em atividade por suas dificuldades
na abordagem do léxico. De fato, são eles próprios, em grande parte, carentes de formação mais sólida nessa área. Nas
palavras de Oliveira (2006):
O professor às vezes, sendo um usuário maduro da língua escrita, intui como inadequada
uma determinada combinação de palavras empregada pelo aluno, mas tem dificuldade para
persuadi-lo de que se trata de impropriedade, porque lhe falta uma teoria sobre propriedade
vocabular. (Grifo do autor)

De um modo geral, faltam disciplinas nos currículos dos cursos de graduação, cursos de formação continuada e
até material didático em consonância com as demandas do ensino produtivo do léxico. No entanto, a necessidade de
facultar aos alunos uma competência lexical, como parte de sua competência textual e comunicativa, já emana até mesmo
dos textos oficiais sobre as diretrizes do ensino nacional. Conforme Pauliukonis (2007, p. 103),
Os PCN apregoam que a Escola deve incentivar práticas linguísticas que propiciem o
aumento do repertório lexical do aluno, de modo a permitir que ele realize: a escolha da
palavra mais apropriada ao contexto, o emprego produtivo de sinônimos – palavras
genéricas e específicas -, de acordo com o referente pretendido e a organização das
palavras, consoante o tema escolhido, o acontecimento ou o gênero textual.

Como se pode depreender das palavras da autora, muito além da simples ampliação do repertório lexical do
aluno, para o que há práticas institucionalizadas, entre as quais a da leitura, o ensino do léxico deve facultar-lhe a
habilidade de empregar com propriedade os itens lexicais, o que requer a capacidade de selecionar as palavras mais
adequadas ao seu projeto comunicativo.
É sabido que a seleção vocabular deve considerar, entre outras variáveis, as características do gênero textual que
se pretende produzir. Dependem desse critério ajustes de tom, registro, campo semântico, entre outros. Há gêneros que
permitem maior liberdade no emprego do léxico e gêneros que, estabelecidos ao longo de um continuum, restringem mais
as opções do produtor.
O gênero que pretendemos analisar neste trabalho é o da redação escolar que, de um modo geral, tem certo
compromisso com a variedade padrão da língua, visto que um dos objetivos da escola é exatamente o de promover o
domínio dessa variedade. Se essa assertiva não é tão verdadeira para a produção de textos de propaganda em sala de
aula, ela é, sem dúvida, precisa no que diz respeito à produção de dissertações argumentativas, que são o foco deste
estudo.
Ainda Pauliukonis (2007, p.105) apresenta:
as características principais desse tipo de texto, que podem ser resumidas em alguns
requisitos clássicos: concisão, clareza, objetividade, formalidade e impessoalidade. A
observação de tais requisitos tornará o texto mais facilmente compreendido pelo leitor e, por
conseguinte, será julgado pelo receptor como bem escrito.
Sendo assim, observaremos, na próxima seção, o emprego do léxico em dissertações de vestibular, analisando
sua propriedade em relação ao projeto comunicativo de cada texto.

220
Análise de redações

A primeira providência a se tomar, para a análise do corpus deste trabalho, é buscar o entendimento do seu
contexto de produção, o que passa por analisar a situação comunicativa em que os textos se inserem e a proposta de
redação pela qual se produziram.
Inicialmente se pode pensar que o principal objetivo de uma dissertação argumentativa é o de convencer o leitor
da veracidade de uma tese, meta de qualquer evento argumentativo. Entretanto, o contexto de produção de um vestibular
torna um tanto opaca essa máxima, uma vez que se trata, como a maior parte das situações de produção escolares, de
uma simulação.
Não é difícil concluir que, muito mais do que convencer o avaliador da validade da tese defendida, o produtor
desse gênero textual tenciona comprovar sua habilidade no emprego da variedade padrão da língua, sem desconsiderar, é
claro, as especificidades do gênero em questão. Sabendo-se, então, num contexto duplamente avaliativo, o produtor tem de
reforçar os cuidados com seu projeto comunicativo.
Ainda com Pauliukonis (idem, ibidem):
Quando se tratar de um texto escrito, portanto cujo padrão é a norma considerada formal, a
exigência de um modelo justifica-se. A desobediência a padrões estabelecidos pode trazer
sérias conseqüências para o Autor do texto, inclusive a desqualificação de sua imagem
social. Escrever de acordo com as regras vigentes é passaporte de garantia social.

Isso posto, passemos à apreciação da Proposta de Redação do vestibular UERJ 2008:

221
Pela leitura da proposta, pode-se depreender que se esperava que os candidatos produzissem dissertações
argumentativas que defendessem tomadas de posição face à temática da censura aos meios de comunicação. Dado que a
tomada de posição é obrigatória, os textos produzidos por ocasião do certame oferecem excelente oportunidade para
observarmos a adequação das escolhas lexicais ao ponto de vista do enunciador.
Sobre esse importante aspecto, recorremos ainda uma vez a Pauliukonis (2007, p.126):

Pela escolha vocabular, o autor de um texto busca expressar seu ponto de vista em relação ao mundo
que o cerca, emitindo juízos de valor. Assim, na cadeia referencial do texto, o objeto vai sendo
construído pela seleção lexical, pelas retomadas, por sinonímias e hiperonímias, e por caracterizações
de cunho subjetivo, que expressam uma avaliação positiva ou não do objeto construído
discursivamente.

Num universo de dez redações, serão analisadas mais detidamente aquelas que oferecerem material mais rico à
reflexão. 1
Redação nº. 1:
Tese: “A censura não significa acabar com a liberdade de expressão.” (l.4-5)
Estratégia argumentativa: construção de imagem negativa da imprensa.
Léxico “engajado”:
• Imprensa do Horror (título);
• induziram (l.2);
• horrores, imprensa sensacionalista (l.10);
• querendo impressionar (l.12);
• alienação (l.13);
• lixo virtual e cultural (l.14).
Comentário: A seleção vocabular está de acordo com a orientação argumentativa do texto, porém, ao tratar a
imprensa de forma tão depreciativa, colabora para construir uma imagem imatura do produtor do texto.

Redação nº. 2
Por conter apenas cinco linhas escritas, não forneceu material suficiente para a análise.

Redação nº. 3:
Tese: “O controle de tão poderosa ferramenta não pode ser feito por uma única organização.” (l.4-5)
Estratégia argumentativa: valorização do poder de influência dos meios de comunicação de massa Léxico
“engajado”:
• ditaduras (título);
• poderosa ferramenta (l.4);
• ferramenta de manipulação (l.8);
• ditadura informacional (l.15);
• ganância (l.18);

1 Todas as redações, porém, estão disponíveis para consulta mediante solicitação por e-mail à autora (renatacalheiros0@gmail.com),

uma vez que limitações de espaço impedem a reprodução do corpus no corpo deste trabalho

222
• máquina de alienação e total ignorância (l.20-21);
• ditaduras veladas (l.25-26).
Comentário: O texto contém um caso de impropriedade vocabular responsável por um efeito de incoerência
devido à mudança na orientação argumentativa. O emprego da palavra única na introdução permite inferir que o produtor
do texto não é totalmente contra a censura, desde que não fique sob a responsabilidade de uma só instituição. Entretanto,
na linha 23 do texto, ele afirma que é “necessário que se dê total liberdade a esses meios”. O emprego da palavra total
exclui qualquer possibilidade de controle, o que está em conflito com a inferência da introdução.

Redação nº. 4:
Tese: “É indiscutível que os meios de comunicação devem sofrer algumas formas de controle.” (l.1-2)
Estratégia argumentativa: desqualificar o uso exagerado dos meios de comunicação de massa.
Léxico “engajado”:
• Aparelhos alienantes (título);
• uso exacerbado (l.2);
• vício (l.5);
• escravos do computador (l.7);
• sacrificam (l.8);
• atentado a si próprio (l.20).
Comentário: A seleção vocabular está de acordo com a orientação argumentativa do texto, porém, produtor do
texto fugiu do tema ao interpretar o “controle” sugerido no título não como censura, como sugere a proposta de redação,
mas como controle do quanto se usam os meios de comunicação. Um índice interessante desse mal-entendido se encontra
no emprego do vocábulo aparelhos no título do texto. Numa primeira leitura, influenciados pela temática da censura, somos
levados a entender a expressão aparelhos alienantes com referência aos aparelhos ideológicos, entidades subjetivas,
imateriais. Contudo, ao avançarmos na leitura, percebemos que o produtor se referia a aparelhos enquanto equipamentos
mesmo, o que se percebe nas insistentes referências a computadores e televisão.

Redação nº. 5:
Tese: “A sociedade deve, para transformar a realidade atual, apoiar toda forma de comunicação.” (l.15-16)
Estratégia argumentativa: construção de imagem negativa dos meios de comunicação, relacionando-o ao domínio
das classes desfavorecidas pela elite.

223
Léxico “engajado”:
Pró-liberdade de Anti-Censura
expressão

• transformar (l. 15) • ameaça (l.8)


• transformadora • poder (l.9)
(l.18)
• liberdade humana • subjugasse os
(l.20) menos favorecidos (l.14)
• irrestrita liberdade • repressão (l.19)
(l.20)
• conquistaremos • afronta (l.20)
(l.21)
• esperança (l.23)

• mundo melhor
(l.23)

Comentário: A seleção vocabular está de acordo com a orientação argumentativa do texto, porém o emprego de
meliorativos no campo semântico da transformação lhe dá um tom romântico, o que não está consoante com a expectativa
de impessoalidade inerente ao gênero textual.

Redação nº. 6:
Tese: “... não se justificando qualquer forma de censura.” (l.22-23)
Estratégia argumentativa: desqualificar a censura e defender uma “forma racional de controle”.
Léxico “engajado”:
• um mal necessário (título);
• lavagem cerebral (l.11-12);
• censura indevida (l.10);
• alijada (l.17);
• seleção natural (l.8);
• extintos (l.28).
Comentário: Esse texto apresenta algumas ocorrências curiosas. Ele traz em seu cerne uma aparente contradição
ao se mostrar contrário a “qualquer forma de censura” e defender “uma forma racional de controle”, que mais adiante no
texto se transforma em “seleção natural” provocada pelo “grau de exigência” da sociedade. Ao que parece, o produtor do
texto identifica uma aura de autoritarismo na palavra censura, motivo pelo qual não a defende. Entretanto, o que é
censura? “Controle moral ou político de obras artísticas, publicações etc.”, diz-nos o MíniHouaiss (2004). Em outras

224
palavras, censura é controle. Outra curiosidade dessa redação foi o emprego de palavras do campo semântico da biologia,
como seleção natural e extintos, para se referir ao processo de controle dos meios de comunicação pelos próprios
consumidores.

Redação nº. 7:
Tese: “... é preciso uma fiscalização maior e mais rígido (sic) para controlar esse mal que abala a sociedade.”
(l.21-22)
Estratégia argumentativa: qualificar os meios de comunicação e desqualificar o mau uso que algumas pessoas
fazem deles.
Léxico “engajado”:
• meio indispensável (l.1-2);
• facilitar a vida (l.3);
• facilidade, rapidez (l.7);
• a comunicação é importante (l.24);
• mal (l.22)
• abala a sociedade (l.22).
Comentário: Foram impróprios os empregos de mal e abala, no contexto da frase “para controlar esse mal
que abala a sociedade”, visto que o produtor vinha enumerando os benefícios proporcionados pelos meios de
comunicação e mencionando o mau uso que se pode fazer deles. A expressão esse mal que abala abrange a todos,
benefícios e malefícios, o que não está de acordo com o projeto comunicativo desenvolvido ao longo do texto.

Redação nº. 8:
Tese: “... é importante sim, ter um controle sobre conteúdos inadequados na internet, todavia também tem que
existir um controle nos meios de comunicação para que os usuários não percam por completo a liberdade.” (l.24-26)
Estratégia argumentativa: criação de uma imagem negativa do cerceamento ao usuário da internet.
Léxico “engajado”:
• extrema importância (l.3);
• controlados (l.4);
• perigos (l.6);
• controle excessivo (l.15);
• privacidade visivelmente invadida (l.16)
• absurdo (l.19);
• controle imposto (l.19);
• acabam com a liberdade (l.23);
Comentário: O produtor do texto fez um desvio da discussão proposta. O vocabulário fortemente pejorativo
listado acima não as e refere à censura aos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação, mas às limitações que
a internet impõe aos usuários, em procedimentos de segurança. É contra esses procedimentos que se volta sua
argumentação. Uma interessante escolha lexical se encontra na linha 21, em que o produtor emprega a palavra
humanos no seguinte contexto: “Se por um lado as autoridades querem proteger os humanos, criando leis...”. O
emprego desse vocábulo pode ser considerado impróprio, uma vez que se insere no domínio técnico da biologia, ramo

225
que não se relaciona com a discussão sobre censura, mais diretamente ligada à área da sociologia, de modo que seria
mais adequado empregar “pessoas” ou “indivíduos”.

Redação nº. 9:
Tese: “... cabe a nós refletir sobre o que devemos ou não absorver e utilizar em nosso dia-a-dia.” (l.4-6)
Estratégia argumentativa: construção de uma imagem negativa da censura, fazendo menção ao período da
ditadura; valorização da autonomia do consumidor.
Léxico “engajado”:
• sofreu absurdamente (l.7);
• privou a população (l.8)
• alienar os consumidores e cidadãos (l.14).
Comentário: O produtor manteve a coerência entre suas escolhas lexicais e sua tese. Entretanto, em várias
passagens de seu texto, escolhas pouco acertadas resultaram em trechos comprometedores da qualidade textual. É o
que se nota logo na primeira linha, com o emprego da forma verbal grifada: “Os meios de comunicação aparecem
rotineramente (sic) em nossa vida...”. Seria mais adequado empregar “influenciam”, “atuam”, entre outras
possibilidades mais condizentes com o referente. Outro desajuste se encontra no emprego do adjetivo concreta para
qualificar opinião (l.10). Sendo “opinião” um conceito abstrato, provoca estranheza o emprego de tal adjetivo para
valorizá-lo. Resta comentar que perpassa todo o texto certo tom maniqueísta, o que contribui para a desvalorização da
imagem do produtor.

Redação nº. 10:


Tese: “... cada um mantendo o controle de si mesmo.” (l.4-6)
Estratégia argumentativa: construção de uma imagem positiva dos meios de comunicação e de imagem negativa
do exagero no uso desses meios.
Léxico “engajado”:

Pró-meios de Anti-exagero
comunicação

• visão ampla (l. 2- • vida (...) alienada


3) (l.8)
• um bem a (sic) • esquecem de
sociedade moderna (l.4) suas vidas (l.9)
• auxilia (l.4) • deixando de lado
o aprendizado (l.9-10)
• dia-a-dia mais • alienação virtual
prático (l.5) (l.20)

226
Comentário: Novamente verificamos que houve um desvio em relação ao debate proposto. Em vez de defender
seu ponto de vista acerca do controle de conteúdos, o produtor da redação nº. 10 se esforçou em validar a tese de que é
necessário autocontrole quanto ao tempo que se destina à internet e à televisão. Outra ocorrência digna de nota é a que se
verifica na expressão meios comunicativos (l.7). Trata-se de um exemplo de um tipo de impropriedade vocabular
identificado por Oliveira (2006) e classificado pelo autor como “substituição de palavras em expressões idiomáticas”, já que
claramente o produtor se referia aos meios de comunicação, de modo que sua escolha provocou estranheza.

Palavras finais
O corpus analisado demonstrou que a deficiência desses produtores, tomados como representantes do grupo de
concluintes do ensino médio, não se encontra em não empregar o léxico engajado de acordo com a orientação
argumentativa de seu texto. De fato, o conflito entre o emprego de meliorativos e de pejorativos e a orientação
argumentativa do texto se verificou poucas vezes ao longo da análise. Entretanto, certa inadequação de tom e de grau
pôde-se notar em praticamente todas as redações: excessos de radicalismo, maniqueísmo, romantismo, revelando as faces
de produtores ingênuos em projetos argumentativos facilmente refutáveis.
Essa carência demanda atividades didáticas específicas, dirigidas ao objetivo de facultar aos alunos um maior
nível de consciência textual, para que seus escritos resultem menos intuitivos e mais formais. Nesse sentido, destacam-se
as contribuições de Carneiro (2001 e 1996) no que concerne ao ensino do léxico. Em trabalho pioneiro, o autor propõe
atividades de adequação vocabular ao contexto, de manutenção do campo semântico, de exploração do binômio
hiponímia/hiperonímia, de sinonímia específica, de adequação de registro e de tom, entre muitos outros.
É bem verdade, porém, que nenhuma atividade supera em eficácia o trabalho com o material fornecido pelos
próprios alunos com que se está trabalhando, de modo que pode se mostrar muito produtiva uma análise dos próprios
textos desses alunos, como a feita neste trabalho.
Certamente, esforços nesse sentido podem nos levar mais perto da consecução daquele objetivo precípuo do
ensino de língua materna. Nas palavras de Oliveira (2006):
“Contribuir para que esses jovens adquiram o domínio da escrita é da maior importância social: mais
portas se abrem no mercado de trabalho para quem domina a língua padrão, entendida como
variedade formal culta do idioma.” (Grifos do autor)

227
Referências

CARNEIRO, Agostinho Dias. Redação em construção. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2001.

________________________. Texto em construção. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1996.

HOUAISS, Antônio & VILAR, Mauro de Salles. Minidicionário Houaiss da língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. “Conflito entre a natureza pejorativa ou meliorativa das escolhas lexicais e a orientação
argumentativa do texto”. In: HENRIQUES, C.C.& SIMÕES, D. (orgs.) Língua Portuguesa: educação & mudança. Rio de
Janeiro: Europa, 2008.

__________________________. “Gêneros textuais e conceitos afins: teoria”. In: VALENTE, André. (org.) Língua
Portuguesa e identidade: marcas culturais. Rio de Janeiro: Caetés, 2007. (pp. 79-92)

__________________________. Ensino do léxico: o problema da adequação vocabular. Matraga: Revista do Programa de


Pós-Graduação em Letras. Rio de Janeiro, 13(19): 49-68, jul./dez. 2006.

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino. “Ensino do léxico: seleção e adequação ao contexto”. In: PAULIUKONIS, M. A. L. &
GAVAZZI, S. (orgs.) Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

Renata Calheiros Alves é doutoranda em Língua Portuguesa, no Instituto de Letras da Uerj, com projeto de pesquisa
vinculado à linha de pesquisa 2 - Ensino de Língua Portuguesa: história, políticas, sentido social, metodologias e pesquisa,
orientada pelo Prof. Dr. Helênio F. de Oliveira. É professora das redes municipais de ensino das cidades do Rio de Janeiro
e de Duque de Caxias.

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E-mail: renatacalheiros0@gmail.com

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O gênero discursivo militar parte: ensino e linguagem

ANDRADE, Wagner Muniz


(UERJ/EB/AMAN)

1. Apresentação do gênero discursivo parte

Para iniciarmos o trabalho, precisamos apresentar o gênero a que nos propusemos estudar: a parte1. Segundo as
Instruções Gerais para a Correspondência, as Publicações e os Atos Administrativos no âmbito do Exército (IG 10-42), parte
é a “correspondência que tramita no âmbito de uma OM2, por meio da qual o militar se comunica com um de seus pares ou
superior hierárquico, em objeto de serviço, podendo ser utilizado suporte eletrônico (...), ou ser substituída por mensagem
eletrônica, sempre que houver meios físicos adequados.” (Brasil 2002, p. 18). Portanto, ele é um documento oficial de
circulação interna que exige uma linguagem formal para relatar fatos, solicitar ou informar algo a alguma autoridade, dentre
outras possibilidades, ou seja, o propósito comunicativo da parte, de maneira genérica, é relatar uma ocorrência, solicitar
algum direito, informar dados necessários para a confecção de algum outro documento etc.
Dessa forma, esse gênero está inserido no domínio discursivo militar. Segundo Marcuschi (2007, p. 23 e 24),

Usamos a expressão domínio discursivo para designar uma esfera ou instância de produção discursiva
ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de
discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso
jornalístico, discurso religioso etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um
gênero em particular, mas dão origem a vários deles. Constituem práticas discursivas dentro das quais
podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes lhe são próprios (em certos casos
exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas institucionalizadas.

Assim, a parte inclui-se entre os gêneros exclusivos, ou seja, o domínio discursivo3 a que esse gênero está
inserido é a militar, não sendo possível encontrá-lo fora desse domínio.
Outra característica desse gênero é que ele é redigido em primeira pessoa do singular, uma vez que o redator
tem que se dirigir diretamente à autoridade a que vai solicitar, participar ou informar algo.
Sobre o gênero, salientamos ainda que, segundo as IG 10-42 (Brasil 2002, p. 56),

a parte, quando relatar ocorrência, quer disciplinar, quer administrativa, será escrita com sobriedade,
registrando-se todos os dados capazes de identificar pessoas ou coisas envolvidas, caracterizando as
circunstâncias de tempo e de lugar sem comentários e sem apreciações estranhas ao caso, com a
finalidade de fornecer à autoridade destinatária base precisa para uma decisão.

1 Usaremos a fonte em itálico toda a vez que nos referirmos à palavra parte, quando estivermos tratando do gênero textual parte.
2Organização militar.
3 Segundo Oliveira (2007), “os teóricos têm proposto agrupá-los (os gêneros) segundo os ramos da atividade humana a que pertencem,

denominados esferas da comunicação por Bakhtin, tipos de textos por Charaudeau e domínios discursivos por Marcuschi.” Nesse
trabalho, adotaremos a terminologia proposta por Marcuschi.

229
Portanto, por se inserir no domínio discursivo militar, o que prescreve essa Instrução é a apresentação de um
texto em que enunciador não se posiciona em relação ao fato relatado, ou à solicitação feita. Ele deve ser “neutro” diante
dos fatos ou dos dados fornecidos, por ser um documento pelo qual alguém se dirige a uma autoridade ou par (entenda-se
por par aquele que é de mesmo posto ou graduação) para relatar algum fato.
Bakhtin (p. 304), no que diz respeito ao estilo, afirma que o estilo objetivo-neutro, em que a concentração do
enunciador está voltada para o objeto, a expressão do falante é mínima, ou seja, não há possibilidades de o enunciador
posicionar-se diante de algo ou algum assunto. Assim, no domínio discursivo militar, o estilo objetivo-neutro parece ser o
mais adequado para os gêneros que nele circulam.
Dessa forma, apresentaremos uma proposta para o ensino do gênero discursivo parte, tendo por base a obra
Gêneros orais e escritos na escola, organizado por Dolz e Schneuwly, mais especificamente o capítulo 4: sequências
didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. Analisaremos o ensino do gênero na Academia Militar
das Agulhas (AMAN), local onde são formados os oficiais combatentes de carreira do Exército Brasileiro, e apresentaremos
uma proposta para o ensino da parte. Encerrando, faremos algumas considerações sobre o trabalho.

2. O Ensino do gênero discursivo parte na Academia Militar das Agulhas Negras

Bakthin (2003), em sua obra Estética da criação verbal, afirma que

Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de
dado campo. Uma determinada função (científica, técnica, plubicística, oficial, cotidiana) e
determinada condição de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados
gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais
relativamente estáveis (p. 266)

Assim, para que um gênero possa ser de conhecimento do enunciador, é necessário que ele (o enunciador)
esteja inserido no domínio em que o referido gênero circula. Portanto, a fim de entendermos como se insere o discente no
domínio discursivo militar, precisamos discorrer, primeiramente, sobre a forma de acesso à AMAN.
Para ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, é necessário que o jovem, que tenha no máximo vinte
e um anos de idade na data da matrícula, preste um concurso público que lhe dá acesso à Escola Preparatória de Cadetes
do Exército. Após ingresso nessa escola, ele cursa o terceiro ano do ensino médio e, se alcançar êxito, será matriculado
automaticamente na AMAN.
Na Academia, ser-lhe-ão ministradas disciplinas, que são chamadas de acadêmicas, como: Língua portuguesa,
Matemática, Física, Química, Estatística etc., e as chamadas disciplinas militares, como: Técnicas Militares, Tiro,
Treinamento Físico Militar, dentre outras. Após a formação, o cadete (discente da AMAN) é promovido ao posto de
aspirante-a-oficial e recebe o diploma de bacharel em ciências militares. Dessa forma, o curso da AMAN é de nível superior
e é reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC).
Dentre as disciplinas chamadas acadêmicas, a de Língua Portuguesa, que é ministrada pela respectiva cátedra,
é voltada para a produção de textos, não havendo em seu currículo o ensino de conteúdo gramatical, já que se reconhece
que o cadete domina as estruturas da língua (morfossintaxe, ortografia etc.). Se ainda houver alguma dúvida sobre os
conteúdos gramaticais, esses casos são atendidos individualmente ou discutidos com toda a turma de aula.
Dessa forma, durante o curso, é ensinado ao cadete, basicamente, três modos de organização do discurso
(Oliveira 2004): narração, argumentação e descrição.

230
A parte inclui-se no tópico narração. Na verdade, inicia-se o estudo da narração com a distribuição aos cadetes
de contos de autores consagrados, para que eles analisem o material e discutam com a turma os aspectos e nuanças
relevantes dos textos. O cadete relembra como se estrutura uma narrativa e como ela é composta. Portanto, o estudo do
conto funciona como uma introdução ao gênero discursivo parte.
Como dito anteriormente, o aluno retoma conceitos que já são de seu conhecimento, uma vez que, nos ensinos
fundamental e médio, ele estudou a narrativa e, principalmente, os contos.
Na introdução do gênero discursivo parte, são discutidos, antes de sua apresentação, alguns aspectos sobre os
documentos militares, suas características, tendo por base as IG 10-42, uma vez que o cadete está sendo inserido no
domínio discursivo militar, e, portanto, ainda não conhece o contrato de comunicação que regula o gênero. Sobre o contrato
de comunicação, Oliveira afirma que

Na verdade cada gênero textual está associado a um contrato de comunicação, ou seja, a um


conjunto de “direitos” e “deveres” de quem produz o texto e de quem o interpreta. Cada gênero, de
acordo com o contrato de comunicação que a ele subjaz, aceita determinada temática, determinada
macroestrutura textual, certas estruturas sintáticas, certo vocabulário etc. e rejeita outros. (2007, p.4)

Assim, após a introdução ao gênero, é distribuída uma narrativa em que se relata um fato, normalmente uma
transgressão disciplinar, para que o aluno possa entender como se processa a transposição de uma narrativa (pode ser um
conto) para o gênero parte. Observemos um exemplo:

Pereira, Laranjeira e Mangueiras

Quinta-feira, 17 de maio de 2007 aproximadamente 17 horas e 30 minutos. Naquela época do ano, anoitecia por
volta das 18 horas.
Quando já voltava para o quartel, sede do 119º Batalhão de Infantaria Motorizado, o Tenente Pereira, Comandante
do Segundo Pelotão de Fuzileiros da Segunda Companhia de Fuzileiros, estranhou o fato de aquela viatura de 3/4 de tonelada estar ali,
na beira da estrada, sem ocupante algum.
Por hábito, Pereira corria pela área rural próxima de sua Unidade após o expediente, sempre que possível. Até
aquele momento, a corrida transcorria normalmente e nada de diferente lhe chamara a atenção, mas a viatura completamente
abandonada, naquele local, indicava algo anormal para um fim de tarde.
Parou de correr a uns trinta metros do veículo e aproximou-se cuidadosamente. A estrada, um tanto esburacada,
cortava uma plantação de abacaxis, no meio da qual havia um pomar. Era a estrada da fazendinha. Sentia-se no ar um tentador cheiro de
frutas maduras.
Todas as vezes que passava por ali, o Tenente Pereira sentia vontade de parar e aspirar melhor a fragrância
característica do ar. Em uma certa ocasião, parara e conversara com um humilde agricultor, que trabalhava e morava no local. O
simpático senhor chegara a oferecer-lhe frutas, mas o oficial recusara a gentileza meio sem jeito (divertiu-se pensando em sua chegada
ao quartel, em uniforme de educação física e com duas sacolas com suculentas mangas e doces abacaxis).
Lembrou-se, de repente, de algumas palavras do agricultor:
— Admiro muito vosmecês do Exército. São respeitadores e ordeiros, não como esses moleques que, às vezes,
invadem minha roça. Os "filhos da mãe" pisoteiam as plantinhas, quebram os abacaxis ainda verdes e roubam as frutas.
O Tenente Pereira chegou até a viatura que, para sua surpresa, constatou ser de sua Companhia (EB 2305421234),
não observando qualquer militar por perto. Enquanto enxugava o suor do rosto, ouviu um barulho de pedras sendo jogadas contra a
folhagem das árvores. Entendeu então o que devia estar acontecendo. Sorrateiramente, dirigiu-se ao pomar, distante uns cem metros da
estrada, embora o caminho até ele fosse tortuoso, porque teria de fazer uma curva entre os cortantes abacaxizeiros, para alcançá-lo pelo
lado oposto.
Aproximando-se do "objetivo", viu dois militares "atirando" pedras nas mangueiras. Apesar da distância e da pouca
luminosidade, reconheceu um deles: o Cabo 123, Laranjeira, motorista do Terceiro Pelotão da "Segundona". O outro, aparentemente
mais jovem, parecia ser um soldado. Laranjeira tinha na mão um saco VO, no qual colocava as frutas derrubadas no chão. O saco estava
quase cheio e era arrastado com esforço.
Os dois militares perceberam a aproximação daquele vulto que se esgueirava entre a vegetação. Num segundo,
olharam-se e, como se houvessem feito uma combinação telepática, saíram correndo pelo meio da plantação. O tenente pensou em
correr atrás deles, para admoestá-los, mas, tão rápido iam que, para alcançá-los, seria necessário pisar sobre as plantas, danificar
propriedade alheia. Pereira desistiu da perseguição.
Enquanto o Cabo Laranjeira e seu acompanhante (não identificado) alcançavam a viatura e sumiam encobertos por
uma nuvem de poeira, Pereira examinou e "contabilizou" os estragos no local. Levaram o saco VO, mesmo com dificuldade, "balizando" a
fuga por uma trilha que mostrava dezenas de abacaxizeiros destruídos. Mangas verdes recém-derrubadas completavam o ambiente de
destruição e vandalismo.

231
Pereira, então, dirigiu-se ao quartel. Logo que chegou, já fora do expediente, participou verbalmente o ocorrido ao
Oficial-de-Dia, para as providências cabíveis. Na manhã seguinte, após participar também verbalmente o fato a seu Comandante de
Companhia, o Capitão Pedreira, "muniu-se" dos inseparáveis Dicionário, Gramática, IG 10-42, C 21-30 e passou à redação de uma parte
escrita sobre o assunto a ser encaminhada à autoridade a que estava subordinado. Neste momento, uma voz sussurrava: "definição,
características e correção gramatical".

Feita a distribuição da narrativa, o cadete faz a leitura do texto, e, por meio das orientações do professor, ele faz a
seleção dos fatos que acha mais importante para que constem da parte, uma vez que as IG 10-42 orientam para que o
gênero seja conciso.
O professor distribui o possível gabarito para que o cadete compare com a seleção que fez das ideias mais
importantes da narrativa. Vejamos um possível gabarito do texto Pereira, laranjeira e mangueiras:

Rio de Janeiro, RJ, 18 de maio de 2007.


Parte Especial s/nº
Do Comandante do 2º Pelotão de Fuzileiros

Ao Sr Comandante da 2ª Companhia de Fuzileiros

Assunto: alteração de praça

1. O presente documento trata de alteração disciplinar de praça.

2. Participo-vos que, em 17 Maio 07, aproximadamente às 17h30min, encontrei a viatura 3/4 de toneladas, EB 230521234,
desta Subunidade, abandonada na estrada da fazendinha.

3. Presenciei também o Cb 123, Laranjeira, motorista do 3º Pelotão de Fuzileiros, apanhando frutas em uma propriedade
particular, localizada naquelas proximidades. O militar estava acompanhado de uma pessoa, aparentemente mais jovem, que parecia ser
um soldado, e ambos recolhiam as frutas que derrubavam de uma mangueira, colocando-as em um saco verde-oliva (VO).

4. Informo-vos que o Cabo Laranjeira e o outro indivíduo correram ao perceberem a minha aproximação. Levaram o saco com
as frutas, alcançaram a viatura e abandonaram o local. Os dois deixaram várias frutas pelo chão e, ao correrem arrastando o saco VO,
danificaram parte da plantação de abacaxis daquela propriedade.

5. O fato foi participado verbalmente ao oficial-de-dia, logo que cheguei à Unidade.

Após o primeiro contato com o gênero, o cadete passa a produzir partes, através de narrativas distribuídas pelo
professor, o qual, ao final de cada aula, recolhe a produção textual e devolve-a, em encontro posterior, corrigida.
Há algumas considerações sobre a forma como é dirigido o ensino do gênero discursivo parte, a saber: o cadete
tem pouco contato com o gênero, ou seja, após uma breve discussão teórica e uma apresentação de um modelo de parte,
ele deverá redigir um primeiro texto, o que nos parece prematuro. A linguagem e a forma utilizadas pelo gênero ainda não
são de domínio do aluno, uma vez que ele está sendo inserido no domínio discursivo militar, logo, ele precisa de mais
exemplos de textos do gênero, para que ele se aproprie da linguagem e da forma.
Após essas considerações, apresentaremos uma proposta para o ensino do gênero discursivo parte.

232
3. O ensino do gênero discursivo parte

3.1. Três tradições para o ensino de gênero


Antes de iniciarmos a apresentação de uma proposta para ensinar o gênero discursivo parte, trataremos,
sucintamente, de três tradições escolares voltadas para o ensino de gêneros, tendo por base Bunzen (2003) e Soares
(2010).
A primeira escola a ser apresentada é a Escola de Sidney, em que estudos sobre gêneros basearam-se na
perspectiva sistêmico-funcional, e eles (os gêneros) são compreendidos como cada tipo de atividade linguisticamente
realizada e que faz parte da cultura. A abordagem para o ensino é transdisciplinar, havendo uma preocupação com todas as
áreas do currículo escolar. Assim, os gêneros estão inseridos no contexto da cultura, e, portanto, os alunos devem produzir
os textos do domínio discursivo de que fazem parte.
Essa escola defende ainda o ensino explícito das características textuais e linguísticas dos gêneros, dando maior
enfoque ao papel do professor, sua prática pedagógica e os objetivos de ensino.
A Escola Norte-americana apresenta uma perspectiva sócio-retórica, ou seja, o enunciado apropriado para
qualquer circunstância. Nessa perspectiva, os gêneros são entendidos como ações tipificadas, isto é, formas de
comunicação reconhecíveis e auto-reforçadas socialmente. O estudo desta corrente está centrado muito mais nos
elementos de situação do que nas características formais dos gêneros. Por essa razão, os estudiosos dessa corrente não
propõem um modelo de ensino dos gêneros. Há uma crítica ao ensino prescritivo e explícito dos gêneros, reconhecido por
eles como o esvaziamento do sentido da atividade. Assim, os gêneros que serão abordados em sala de aula deverão ser
aqueles que os alunos já tiveram algum contato prévio. Dessa forma, não haveria uma seleção prévia dos gêneros para
serem estudados em sala de aula.
A Escola de Genebra, fundamentada em uma perspectiva sócio-interacionista, tendo por base os postulados
bakhtinianos e vygostskyanos, apresenta os gêneros como instrumento que se realiza empiricamente nos textos e que
possibilita a comunicação. Nessa corrente, o trabalho escolar com os gêneros considera o seu agrupamento para atender
os objetivos sociais atribuídos ao ensino, retomando certas tradições tipológicas já presentes em compêndios escolares e
que apresentam uma certa homogeneidade quanto às capacidades de linguagem. O ensino nessa perspectiva deve ser
feito por meio de sequências didáticas, que são organizadas da seguinte forma: uma apresentação da situação, em que os
alunos deparam-se com um problema de comunicação e que deve ser resolvido com um texto oral ou escrito; produção
inicial, uma tentativa de elaborar um primeiro texto do gênero que está sendo estudado; módulos, que têm por função
resolver os problemas apresentados durante a produção inicial e produção final.
Dessa forma, basearemos nosso trabalho, na perspectiva da Escola de Genebra, uma vez que seus
pesquisadores veem o gênero como instrumento para o ensino de língua materna e tal perspectiva tem sido muito produtiva
em escolas públicas de vários municípios brasileiros.
Precisamos considerar ainda, antes de abordarmos o ensino da parte na AMAN, que a perspectiva genebrina trata
apenas do ensino de língua materna no ensino fundamental. A AMAN, como afirmado anteriormente, é um estabelecimento
de ensino superior, porém, podemos observar que o cadete chega à Academia ainda com alguns problemas ligados ao
domínio da língua, e, principalmente, em situações diversas, ou seja, nos diversos gêneros discursivos. Portanto, parece-
nos ser adequada a visão proposta por essa Escola para o ensino específico de um gênero do domínio discursivo militar.

233
3.2. Proposta para o ensino da parte
O cadete chega à Academia Militar tendo pleno conhecimento dos diversos gêneros ensinados na escola. No
entanto, ao ter contato com um novo gênero, a parte, podemos verificar a sua dificuldade em dominá-lo. Uma das
justificativas possíveis é que ele ainda não está inserido no domínio discursivo militar, uma vez que é um discente e,
paulatinamente, começa a ser introduzido nesse domínio. Portanto, a parte é um gênero novo para o cadete.
Assim, partindo do conceito das sequências didáticas, apresentado pela Escola de Genebra, iremos organizar
uma maneira de ensinar esse gênero ao aluno da Academia Militar das Agulhas Negras.
Na proposta abordada pelo capítulo intitulado Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um
procedimento, produzido por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2007), a sequência didática divide-se da seguinte forma:
apresentação da situação, produção inicial, módulos e produção final. Segundo os autores,

Uma sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um
gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada
situação de comunicação (p.97).

Assim, a intenção desse trabalho é fazer que o cadete domine esse gênero, pois será de uso constante durante a
sua vida profissional. Em todo o currículo escolar da AMAN, a única oportunidade que tem de produzir textos pertencentes
ao domínio citado é nas aulas de Língua Portuguesa.
A primeira etapa da sequência didática é a apresentação da situação. No caso específico, é apresentado um
texto (normalmente uma narrativa) para que o cadete produza uma parte. Não existe, portanto, a possibilidade de haver
outros gêneros que possam ser escolhidos de acordo com a situação, o gênero já foi pré-estabelecido pelo professor: a
parte. Assim, a pergunta “Qual será o gênero escolhido?” (p. 99) não é pertinente, mas sim a situação de comunicação que
exigirá a utilização desse gênero.
As perguntas “A quem se dirige a produção? Que forma assumirá a produção? Quem participará da produção?”
(p. 99) também não se enquadram no trabalho com a parte. A primeira pergunta não é relevante porque a linguagem a ser
utilizada na produção deve seguir o registro formal da língua (Oliveira, 1999), não importando a quem se dirige o texto. A
segunda aborda a questão da forma, que, nesse gênero, é fixa, não apresentando variação alguma, mesmo que se alterem
os suportes. A última pergunta, também não é possível de ser realizada, porque há apenas um enunciador nesse gênero,
não sendo possível produzir-se uma parte em grupo.
Assim, a primeira fase da sequência didática resumir-se-á a apresentação de uma narrativa-problema em que seja
possível produzir uma parte.
Como esse gênero circula apenas no domínio discursivo militar, é preciso que os cadetes tenham um momento de
introdução, ou seja, um contato inicial com a parte. Por meio da leitura de vários exemplos do gênero4, ele vai se familiarizar
com ele. Podemos denominar essa fase, não prevista na sequência didática, de introdução ao gênero.
A fase seguinte é produção inicial. O professor, sem apresentar características linguísticas da parte, orientará o
aluno a produzir um texto baseado na narrativa distribuída a ele. Segundo os autores, nessa fase “os alunos tentam
elaborar um primeiro texto (...) escrito e, assim, revelam para si mesmos e para os professor as representações que têm
dessa atividade” (p. 101).

4 Quanto ao gênero discursivo parte, é necessário que seja feito um estudo sobre os sub-gêneros que o compõem, pois a parte pode

relatar, solicitar, informar, participar, dentre outras possibilidades. Assim, no estudo que estamos fazendo, apresentaremos essas
subcategorias.

234
Essa produção ainda vai apresentar alguns problemas em sua construção. Dessa forma, Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2007) afirmam que

a sequência começa pela definição do que é preciso trabalhar a fim de desenvolver as capacidades
de linguagem dos alunos que, apropriando-se dos instrumentos de linguagem próprios ao gênero,
estarão mais preparados para realizar a produção final. (p. 102)

O professor, ao corrigir essa primeira produção não deverá atribuir uma nota, será uma avaliação formativa, pois
esses momentos são “privilegiados de observação, que permitem refinar a sequência, modulá-la e adaptá-la de maneira
mais precisa às capacidades reais dos alunos de uma dada turma.” (op. cit., p 102).
A próxima sequência chama-se módulos. Nela “os problemas que apareceram na primeira produção” (p. 103) são
trabalhados e são dados aos alunos instrumentos necessários para a superação desses problemas.
Nessa fase, o professor deve organizar atividades que possam sanar as dificuldades dos alunos, e, por meio de
perguntas, que orientam essa fase, formuladas pelos teóricos citados, tais como: quais as dificuldades abordar? Como
construir um módulo para trabalhar um problema em particular? Como capitalizar o que é adquirido nos módulos? O
professor deverá orientar o (s) módulo (s) que achar necessário (s) para a orientação de seus alunos.
É importante lembrar que na parte o registro previsto é o formal, portanto, é possível que problemas ligados ao
não domínio por parte do aluno desse registro possam surgir. O professor deve, portanto, organizar exercícios e atividades
que corrijam essas dificuldades.
Outro dado importante é quanto às normas para a redação da parte. As IG 10-42 orientam no que diz respeito à
redação desse e de outros gêneros militares, assim, o professor pode criar um extrato com algumas orientações sobre ele.
Após essa sequência, o professor deverá propor ao aluno uma produção final, que é a última fase didática para o
ensino do gênero. Nesse momento, pode-se aplicar uma avaliação somativa, apresentando ao cadete uma tabela de
correção e explicando como cada item será trabalhado na correção.
Dessa forma, é possível utilizar a sequência didática proposta por Dolz, Schneuwly e Naverraz, mesmo com
alunos de nível superior, de acordo com a nossa vivência na Academia Militar das Agulhas Negras.

4. Considerações finais

A proposta apresentada nesse trabalho encontra-se em fase inicial de construção, trata-se de uma abordagem da
Escola de Genebra no que diz respeito ao ensino de um gênero do domínio discursivo militar. Futuramente, haverá
aplicação didática com o cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, o que nos conduzirá a novas adaptações e
reformulações.

235
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. SP. Martins Fontes, 2003.

BRASIL. Instruções Gerais para a Correspondência, as Publicações e os Atos Administrativos no âmbito do Exército (IG 10-
42), 2002.

BUNZEN, Clécio. O ensino de “gêneros” em três tradições: implicações para o ensino-aprendizagem de língua materna.
2004. Disponível em: <www.letramento.Iel.unicamp.br>. Acesso em: 07 Set 2010.

CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours : éléments de sémiolinguistique (théorie et pratique). Paris: Hachette, 1983.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Como e quando interferir no comportamento linguístico do aluno. In: JÚDICE, Norimar et
al., org. Português em debate. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 1999.

------. Os gêneros da redação escolar e o compromisso com a variedade padrão da língua. In: HENRIQUES, Cláudio Cezar
& SIMÕES, Darcília (orgs.). Língua e Cidadania: novas perspectivas para o ensino. Rio de Janeiro: Europa, 2004.

------. Gêneros textuais e conceitos afins: teoria. In: VALENTE, André (org.). Língua portuguesa e identidade: marcas
culturais. Rio de Janeiro: Caetés: 2007. p. 79-92.

MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: In: DIONÍSIO. A.P., MACHADO, A.R., BEZERRA, M.A.
(org) Gêneros Textuais & Ensino. RJ: Lucerna, 2003.

SOARES, Josiane de Souza. “Pra você ensinar, você tem que aprender”. Gêneros discursivos e ensino de língua materna:
o que dizem as professoras.Dissertação de mestrado. Universidade Federal Fluminense.Faculdade de Educação.2010.

O autor é professor de Língua Portuguesa na Academia Militar das Agulhas Negras, desde 2005. Graduado em Letras pela
Fundação Educacional Unificada de Campo Grande (FEUC), possui especialização em Literatura Brasileira, pela UERJ e é
mestrando em Língua Portuguesa pela mesma Universidade.

e-mail: wagnermun@ibest.com.br

236
(Re) Descobrindo o Jornal Popular através do Modo de
Organização do Discurso Enunciativo

ARANTES, Poliana Coeli Costa


(UFMG)

1. INTRODUÇÃO

A Análise do Discurso, pela natureza multidisciplinar que proporciona e agrega ao seu aparato teórico, tem se
mostrado bastante eficaz e determinante para o encontro de resultados e análises interessantes em campos do
conhecimento que lidam, direta ou indiretamente com a questão da linguagem. Nesse âmbito, citaremos os trabalhos
importantes do teórico Charaudeau e de outros tantos pesquisadores no Brasil que contribuem cada vez mais com o
crescimento desta disciplina reveladora. Neste sentido, pretendemos demonstrar a aplicação e surpreendente resultado do
M.O.D (Modo de Organização do Discurso) Enunciativo em um corpus constituído de jornais populares pertencentes à duas
realidades socioculturais distintas, a alemã e a brasileira. Através da análise deste M.O.D., descrito por Charaudeau (2008),
observamos que os estereótipos de jornalismo popular bastante conhecidos ainda atualmente, não mais se aplicam à
realidade em que estas mídias se inscrevem.
O objetivo da descrição dos atos Enunciativos, proposto por Charaudeau (2008), refere-se à capacidade de
ordenamento das categorias de língua que este Modo possibilita para a interpretação da posição que o Enunciador assume
em relação ao Destinatário, ao Dito e ao Mundo. Assim, é possível desenhar a relação de influência existente entre ambos
e, desta forma, revelar os pontos de vista imbricados nas manchetes jornalísticas, tornando possível a avaliação das
imagens de leitores que as instâncias de produção em questão admitem como sendo ideais. Para categorizarmos os atos
enunciativos de acordo com a proposta de Charaudeau, admitimos a necessidade em se realizarem alguns ajustes na
descrição teórica no que concerne à classificação destes atos em alocutivos, elocutivos e delocutivos. Tais ajustes se
justificam devido à dificuldade encontrada na categorização de determinados subjetivemas, bem como referências sintáticas
e semânticas responsáveis por configurações indiretas dos enunciados analisados.
O presente artigo pretende, portanto, analisar uma primeira página dos exemplares jornalísticos alemão e
brasileiro. Os resultados encontrados vão contra a visão de mundo estereotipada, comumente partilhada, de jornalismo
popular próximo a uma vertente que manipula informações e acontecimentos inventando-os ou caracterizando-os
demasiadamente subjetivos.

2. Fundamentação teórica

2.1 Os Jornais Populares

Como nosso objeto de estudo circunscreve a mídia impressa popular pertencente a duas realidades territoriais e
sócio-culturais diferentes, Alemanha e Brasil, torna-se relevante a discussão que esta seção propõe a fazer, uma vez que
essa mídia se caracteriza, por sua configuração, de forma aparentemente diferente nos países em questão. No Brasil, esse

237
tipo de mídia ganhou status diferente do que possuía há 20 anos, o que remonta e re-configura a maneira de analisá-la e de
considerá-la frente a nossa realidade contemporânea. Na Alemanha, esse tipo de jornalismo faz sucesso desde os anos
1950, mas também se modificou bastante e passou por diversas fases durante os 50 anos em que está no topo das
publicações diárias e que lhe confere o título de o maior jornal da Europa, considerando sua tiragem diária, e o terceiro
maior do mundo de acordo com o trabalho publicado em 2007 por Brechličukova. Embora apresentem tipografia, grafismos
e configurações de imagens diferentes, os dois jornais, enfocados na presente pesquisa parecem apresentar temáticas
semelhantes em seus dispositivos.
Os produtos jornalísticos teoricamente destinados às classes B, C e D, comumente, são condenados ao rótulo de
“sensacionalistas”. Não obstante esse fato, Amaral (2006, p. 15) prefere adotar a expressão “jornalismo popular” por
considerá-la menos preconceituosa, e porque o termo “popular” identificaria apenas um tipo de imprensa que se define por
proximidade e empatia com o público-alvo, por intermédio de algumas mudanças de pontos de vista, pelo tipo de serviço
que presta e por sua conexão com o local e o imediato (AMARAL, 2006, p. 15).
Ainda segundo Amaral, a noção de sensacionalismo, que durante anos se constituiu como explicação da
estratégia dos produtos populares, está agora ultrapassada, pois os novos jornais populares são fundados em diversas
características que deveriam ser vistas de forma não generalista. O sensacionalismo ficou relacionado ao jornalismo que
privilegiava a superexposição da violência por intermédio da cobertura policial, bem como da publicação de fotos chocantes,
de distorções e da utilização de linguagem chula composta por gírias e palavrões (AMARAL, 2006, p.22). Dessa forma, faz-
se necessário desvincular a ideia de que os jornais destinados às classes populares revelam apenas mau gosto e
degradação, para que seja possível compreender suas estratégias, uma vez que esse tipo de jornalismo já não apresenta
mais em sua configuração fórmulas estanques e características passíveis de classificações fechadas.
Em geral, o sensacionalismo liga-se ao exagero; à intensificação, à valorização da emoção; à exploração do
extraordinário, à valorização de conteúdos descontextualizados; à troca do essencial pelo supérfluo ou pitoresco e inversão
do conteúdo pela forma. Muitas são as estratégias utilizadas pela mídia baseada no sensacionalismo, tais como: a
superposição do interesse público; a exploração do sofrimento humano; a simplificação; a deformação; a banalização da
violência; da sexualidade e do consumo; a ridicularização das pessoas humildes; a ocultação de fatos públicos relevantes; a
fragmentação e a descontextualização do fato; o denuncismo; os prejulgamentos e a invasão de privacidade tanto de
pessoas pobres como de celebridades, entre tantas outras (AMARAL, 2006, p. 21).
Os setores populares, muitas vezes, preferem determinado tipo de jornal não simplesmente porque são
manipulados ou destituídos de bom gosto, e sim porque sua história de exclusão social, econômica e cultural criou
determinadas preferências e estilos de vida que são distintos daquele tratado na imprensa de referência. Assim, os jornais
populares baseiam-se na valorização do cotidiano, da fruição individual, do sentimento e da subjetividade. O jornal resgata,
assim, a cultura de almanaque e seu espírito lúdico e de serviço; além da linguagem menos rebuscada, esses jornais
acabam ocupando também a função de entretenimento e o ideal da objetividade, embora seja variável de jornal para jornal,
muitas vezes é abandonado e substituído por outras estratégias de credibilidade, como a proximidade e o testemunho.
Dessa forma, os ideais clamados pelos manuais institucionais que delimitam a atividade jornalística são substituídos por
outro discurso que interpelaria seu leitor não só ou primordialmente pela informação, mas também pela estética, pelo estilo
e temáticas supostamente relacionados historicamente ao universo considerado popular

238
2.2 O Modo de Organização do Discurso Enunciativo

O Modo de Organização do Discurso (M.O.D.) Enunciativo, cunhado por Charaudeau (2008), focaliza sua atenção
aos protagonistas, seres de fala que se encontram internos à linguagem. É, portanto, uma categoria de discurso que se
interessa por particularidades existentes na maneira de se expressar que o protagonista da fala utiliza para agir na
encenação do ato de comunicação. Para se expressar, tal sujeito de fala elege determinado (s) propósito(s) referencial(is)
para que norteiem seu ato de linguagem, uma vez que acreditamos que toda e qualquer espécie de expressão linguageira é
dotada de objetivos e finalidades, mesmo que elas pertençam ao domínio inconsciente.
Nesse sentido, quando enuncia algo, o sujeito de fala organiza as categorias da língua e ordena-as a fim de que
intercedam pelo objetivo do ato de linguagem e o faça concretizar; além de determinar a posição que tal sujeito falante
ocupa em relação ao seu interlocutor e ao que ele diz. É por este motivo que o teórico Charaudeau (2008) acredita ser
possível a distinção de três funções ao analisarmos o M.O.D Enunciativo: alocutiva, elocutiva e delocutiva. A função
Alocutiva se caracteriza por estabelecer uma relação de influência entre o Sujeito Comunicante (SC) e Sujeito Interpretante
(SI), pois quaisquer que sejam a identidade psicossocial e o comportamento efetivo do SI, este será levado, pelo ato de
linguagem do SC, a apresentar uma determinada reação: responder e/ou reagir (relação de influência).
A função Elocutiva revela a relação do SC consigo mesmo, pelo fato de enunciar seu ponto de vista sobre o
mundo (Propósito referencial), sem que o SI esteja implicado nesta tomada de posição. Tais Propósitos referenciais podem
ser percebidos de acordo com as especificações, intrínsecas aos atos de linguagens, de modos de saber, de avaliações
e/ou apreciações, de motivação, de engajamento e de decisão. (CHARAUDEAU, 2008, p. 83).
A última função descrita por Charaudeau é a Delocutiva, cuja característica se inscreve na relação do Enunciador
com um terceiro, ou seja, há um apagamento do Enunciador de seu ato de enunciação e uma não implicação do
Destinatário concomitantemente. O resultado desse tipo de enunciação seria aparentemente mais objetivo, dada sua
aparente desvinculação da subjetividade do Enunciador. Assim, o propósito dessa enunciação poderia ser visto de acordo
com as seguintes possibilidades configurativas:
- O propósito se impõe por si só, como no caso das modalidades de “evidência”, “probabilidade”
- O propósito é um Texto já produzido, onde o Enunciador relataria “o que o outro diz e como o outro diz”.

3. Análise e discussão

Com o auxílio da teoria proposta por Charaudeau (2008) acerca da Organização dos Modos do Discurso,
propomos uma aplicação prática do M.O.D Enunciativo com o objetivo de comparar as duas mídias que são objetos deste
artigo.
Para classificarmos os atos de linguagem circunscritos pelas manchetes de primeira capa dos jornais Bild e Super
procedemos com a análise de cada manchete em separado, observando se seu conteúdo discursivo, bem como as
categorias de língua presentes poderiam ser classificadas como modalidades alocutivas, elocutivas ou delocutivas. A
pergunta que norteou esta investigação partiu de uma análise a priori feita por nós que identificou o jornal Super como uma
mídia muito mais perseguidora dos ideais de mídia de referência que o Bild. Tal análise, superficial a priori, foi a
responsável pela formulação da hipótese de que o Jornal popular estaria tomando uma configuração diferente daquela dos
anos 80 no Brasil. Finalmente, ao elencar referenciais teóricos que nos auxiliariam na confecção da investigação, o M.O.D.
Enunciativo mostrou-se ideal para este fim.

239
Em detrimento do tamanho do artigo a ser exposto, trabalharemos com a análise de uma primeira capa de cada
jornal. Assim, as manchetes principais foram classificadas de acordo com o exposto por Charaudeau (2008). No trabalho de
classificação seguimos os procedimentos descritos pelo teórico em sua obra, no entanto percebemos que determinadas
classificações precisavam ser revistas, já que algumas peculiaridades interpretativas da manchete deveriam, a nosso ver,
ser exploradas e aprofundadas.
Assim, ao longo das análises, admitimos a necessidade de alguns ajustes na descrição teórica de Charaudeau
(2008) no que tange à classificação dos atos enunciativos em alocutivos, elocutivos e delocutivos, uma vez que nem
sempre estes atos apresentaram configurações explícitas como as exemplificadas pelo teórico em sua obra de 2008. Desta
forma, consideramos, por exemplo, que o ponto de exclamação utilizado em muitas manchetes do Bild seria uma forma de
interpelação, mesmo sem que houvesse a configuração explícita de interpelação dirigida a um Destinatário.
Para nos auxiliar nesta descrição recorremos à Searle (1981) e sua teoria dos atos de fala, pois de acordo com
este teórico, ao produzirmos afirmações, perguntas, ordens, promessas, dentre outros atos, o sujeito está a executar atos
ilocucionais. Além dos atos ilocucionais, Searle denomina mais dois atos de fala que seriam: atos de enunciação (enunciar
palavras) e atos proposicionais (refletir e predicar). A realização dos atos ilocucionais e proposicionais consistiria em
pronunciar palavras no interior de frases, em determinadas situações, sob certas condições e com certas intenções, o que
diferencia os dois atos em questão é que o primeiro seria um marcador de força proposicional, enquanto que o último seria
um marcador proposicional.
Assim, a pontuação estaria incluída como um processo utilizado para marcar determinada força ilocucional.

O marcador de força ilocucional indica o modo pelo qual é preciso considerar a proposição, isto é, qual será a
força ilocucional a atribuir à enunciação; ou ainda, qual é o acto ilocucional realizado pelo falante quando
profere a frase. Os processos utilizados em português para marcar esta força ilocucional incluem, pelo menos, a
ordem das palavras, o acento tônico, a entoação, a pontuação, o modo do verbo e os verbos chamados
performativos (SEARLE, 1981, p. 43)

Portanto, quando uma manchete traz o ponto de exclamação:

• Estrela da TV, Markus Lanz está feliz no amor! 2 anos após separação de Birgit Schrowange (BILD,
10/10/08)

Entendemos que esta manchete não poderia ser considerada como relatora de um ato delocutivo simplesmente por
conter a modalidade de constatação em sua construção semântica. O ponto de exclamação neste caso convida o leitor-
destinatário a significar sua presença, a reconhecer-se como alvo do apelo que o identifica. É por este motivo que não
consideramos plausível descrever como pertencentes da mesma categoria, as seguintes manchetes:

• Noite do ano no esporte: Artilheiro! Ballack promete vitória contra Rússia (BILD, 11/10/08)
• Atlético quer surpreender o Flamengo no Rio (SUPER, 11/10/08)

Ambas são apresentadas como modalidades assertivas, por apresentarem como o mundo se impõe, porém a primeira
manchete não apaga os vestígios de Interlocutor como faz a segunda manchete, pelo contrário, ela reafirma a presença de

240
um interlocutor que ainda, implica o leitor a compartilhar com ele, dentre outros possíveis sentimentos, o sentimento de
surpresa que o ponto de exclamação transmite.
Portanto, não julgamos irrelevante a presença do ponto de exclamação, que a nosso ver, funciona como elemento
de discurso, tanto quanto as organizações sintáticas e semânticas. Não poderíamos desta forma, desconsiderar este
importante elemento que modifica o status da manchete e a torna híbrida a partir da junção de um ato delocutivo com um
alocutivo, mas que a nosso ver sobressai a forma alocutiva, modificando a relação do que é noticiado com o leitor-
destinatário da manchete, implicando nesse sentido, uma relação viva e imediata entre Interlocutor e seu Destinatário. A
interrogação também contribui para ressaltar tal relação, uma vez que é uma enunciação construída para suscitar uma
“resposta”, por um processo linguístico que é ao mesmo tempo um processo de comportamento com dupla entrada.
(BENVENISTE, 1989)
O que se torna bastante presente nas configurações sintáticas e semânticas das manchetes nos dois jornais é que
há uma predominância, principalmente no jornal Super, do comportamento delocutivo, ou seja, aquele que é comumente o
mais presente nas mídias de referência e que costuma ser o ideal de informação perseguido pelos meios de comunicação
mais evidentes atualmente. Os motivos pelos quais tal comportamento seria o mais valorizado é o fato de que o sujeito
falante se apaga de seu ato de enunciação e não implica o interlocutor. Assim, ele seria uma espécie de “testemunha” dos
fatos e discursaria de forma “objetiva” e “neutra”. Porém, ressaltamos aqui que não acreditamos nesta possibilidade de
enunciar de forma imparcial, mesmo porque um locutor não dirá como o mundo existe, mas sim como ele existe de acordo
com a percepção que ele enquadra de mundo. Tendo este referencial como base, determinados atos podem se caracterizar
como mais ou menos objetivos, no que tange a sua aproximação da neutralidade.
No entanto, tal neutralidade conjuga estratégias de capatação bastante presentes nos jornais,uma delas seria a
desproporção de ações e agentes, como nas manchetes que se seguem:
• Dalai Lama no hospital (BILD, 10/10/08)
• Aluno leva revólver para matar colegas de sala (SUPER, 10/10/08)
As manchetes acima listadas desenham a relação desproporcional existente entre os sujeitos e as ações que a
eles são remetidas. Assim, causa-nos estranhamento que Dalai Lama esteja em um hospital, dado que sua figura está
relacionada, no imaginário social, ao estereótipo de saúde, de semi-santidade, muito contrária, portanto, às figuras que
populam um hospital como pacientes. Assim, o estranhamento seria o fato de que o estereótipo de Dalai Lama estaria se
chocando ao de uma figura comum e mortal, passível de acometimentos no âmbito da saúde.
Outra desproporção de agentes e atos aconteceu na manchete do Super, causada também pela quebra de
expectativas com relação ao que se espera de um estereótipo de aluno. Tal figura guarda proporções prototípicas de aluno
como aquele que freqüenta uma instituição de ensino para realizar outras tarefas que não “matar colegas de sala”. Daí a
desproporção do ato, que remete a uma contradição no reconhecimento de determinada ação realizada por determinado
grupo que não o remete prototipicamente.

4. Conclusão

Este artigo procurou demonstrar que a aplicação prática do M.O.D Enunciativo não pode se circunscrever a
apenas à observação de categorias de línguas que revelam, por exemplo no sentido alocutivo, interpelações explícitas
como as exemplificadas por Charaudeau (2008, p. 86) : “Ei! Você ai!” ou em “Bom dia!”. Muitas vezes as interpelações

241
podem ser reveladas a partir de uma modalização ou marcador lingüístico, como o ponto de exclamação ou até mesmo a
estrutura sintática e de ordenamento das categorias semânticas.
Observamos também que os estereótipos comumente vislumbrados pelos imaginários coletivos de jornalismo
popular já não pode ser mais visto como os exemplares das décadas de setenta, oitenta. O jornalismo popular tem se
modificado a cada dia e os espaços para prestação de serviços e informação cidadã tem conquistado a cada dia uma
parcela maior de seus leitores. Mesmo que as temáticas permaneçam quase polarizadas, no caso brasileiro, em violência,
futebol, fait-divers e mulheres, o jornal já não pode mais oferecer um produto baseado nas estruturas que ele continha em
décadas anteriores, pois seu leitor parece ser um leitor mais desconfiado e cuidadoso com relação à notícia que pretende
ler.
No caso alemão, o jornal parece configurar-se mais próximo dos moldes sensacionalistas, dado o notório apelo ao
exagero, às sensações, ao sentimento, percebidos inclusive através da maneira onomatopéica e modalizante de noticiar
suas manchetes.

REFERÊNCIAS

AMARAL, M. Jornalismo popular. São Paulo: Contexto, 2006.

BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989.

CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

SEARLE, John R. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra: livraria Almedina, 1981.

HALL,S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro:
DP&A, 2006.

LAGE,N. A estrutura da notícia. 6ª. Edição. São Paulo: Ática, 2006.


EMEDIATO, W. O problema da informação midiática entre as Ciências da Comunicação e a Análise do Discurso. In:
MACHADO,I.L; SANTOS, J.B.C.; MENEZES, W.A. Movimentos de um percurso em análise do discurso: memória
acadêmica do Núcleo de Análise do Discurso da FALE/UFMG. Belo Horizonte: Nad-Fale-UFMG, 2005.

Currículo resumido

Atualmente sou doutoranda em Estudos Lingüísticos da linha de pesquisa em Análise do Discurso da Universidade Federal
de Minas Gerais, onde também fiz o mestrado na mesma linha, orientada pelo professor Dr. Wander Emediato. Sou bolsista
pela CAPES e ministro disciplinas de língua alemã na graduação da UFMG.

e-mail : polianacoeli@yahoo.com.br

242
As estratégias discursivas na construção do ethos em
slogans da campanha presidencial de 2010
ARÃO, Lílian
(CEFET-MG)
Introdução
Segundo Charaudeau, todo ato de linguagem se realiza numa situação de comunicação que confere ao sujeito
falante instruções discursivas para organizar seu discurso. Nesse sentido, esse sujeito é sobre determinado pelas
condições do contrato em que se insere, mas se regulariza na maneira de falar e para isso vai implementar suas estratégias
discursivas. O slogan, do inglês antigo slogorn (grito de guerra), configura-se como uma expressão concisa, uma frase de
efeito de fácil memorização. Especificamente o slogan político, nosso objeto de análise, configura-se como uma fala que
circula no espaço público e que se inscreve numa cena política. Sendo assim, se por uma lado o enunciador não tem o total
domínio dos efeitos produzidos por essa fala de circulação pública e joga com uma suposição racional sobre as possíveis
maneiras de interpretá-la, por outro,ele buscará ser credível aos olhos da instância cidadã e atrativo, tendo em vista a
adesão do cidadão ao seu projeto de fala. Nesse trabalho, propomos analisar os slogans da campanha presidencial de
2010 a partir do quadro teórico de definido por Charaudeau, tendo em vista as estratégias discursivas e de persuasão
presentes nesse gênero. Caracterizado como um discurso cuja finalidade é fazer crer, no slogan político o enunciador
procura criar um ethos confiável, apelando para elementos do imaginário sócio-discursivo da opinião pública.
O discurso político
Sob a ótica da Semiolinguística, o discurso é entendido como um jogo entre interlocutores que, envolvidos num
contrato, se reconhecem mutuamente como parceiros de comunicação que são movidos por intenções. Para Charaudeau, o
contrato é entendido, então, como a condição básica para qualquer prática de linguagem.
Conforme Menezes (1999), centrado na instância de produção, o discurso político pode ser tomado como o
discurso do profissional de política, ou seja, trata-se de uma perspectiva centrada no ethos; deslocando-o para a instância
de recepção, ele pode ser entendido como aquele que é lido como político, o que em termos de retórica se trata de uma
perspectiva que leva em conta a dimensão do pathos, ou virtude do auditório. Já dentro da noção de contrato, apontada
acima, ou seja, levando-se em conta as duas instâncias envolvidas no ato de linguagem, produção e recepção, “podemos
dizer que se trata de um discurso referente aos assuntos da cidade [quer dizer que passam a ter uma dimensão pública] de
acordo com representações dos sujeitos comunicante e/ou interpretante numa dada situação (Menezes:1999:125). Nesse
sentido, é a situação de comunicação que torna o discurso político, “não é o conteúdo do discurso que assim o faz, mas é a
situação que o politiza” (Charaudeau:2006, 40).
Tomado como ato de comunicação, o discurso político concerne mais diretamente os atores envolvidos na cena
de comunicação política, cujo objetivo consiste em influenciar as opiniões como o propósito de obter adesões, rejeições ou
consensos.
Ele resulta de aglomerações que estruturam parcialmente a ação política (comícios, debates,
apresentação de slogans, reuniões, ajuntamentos, marchas, cerimônias, declarações televisivas) e
constroem imaginários de filiação comunitária, mas dessa vez, mais em nome de um comportamento
comum mais ou menos ritualizado, do que um sistema de pensamento, mesmo que este perpasse
aquele. Aqui, o discurso político dedica-se a construir imagens de atores e a usar estratégias de
persuasão e de sedução, empregando diversos procedimentos retóricos.(CHARAUDEAU:2006,41)

Segundo Charaudeau, as instâncias envolvidas no ato de linguagem que compreende o discurso político são: a
instância política que compreende a instância de governança e a instância adversária; a instância cidadã, ou seja, os

243
eleitores; e a instância midiática, que é o elo que une as duas outras por meio de diferentes modos de mediação- panfletos,
cartazes de rua, os veículos de informação etc.
O discurso político tem como objetivo a visée de incitação para responder a exigência da concorrência eleitoral
que faz com que esses discursos se dirijam ao maior número de eleitores com a intenção de captá-los. A visée de incitação
busca fazer fazer, mas como esse Eu, no caso aqui o candidato, não está em posição de autoridade, ele só pode incitar a
fazer. Ele deve, então, fazer crer por persuasão ou sedução ao Tu de que ele será o beneficiário do seu próprio ato; Tu
está, pois, em posição de dever crer que se ele age é para seu bem. Assim, Eu, o candidato, deverá fazer com Tu, o eleitor,
creia que ele será beneficiado com o seu ato de votar. Além do reforço ao caráter cidadão, uma vez que votar é participar
ativamente do processo cívico das eleições. Daí que o candidato político, como o discurso publicitário, mostra mais sua
encenação que a compreensão de seu propósito, nas palavras de Charaudeau (2006: 46) “os valores de ethos e de pathos
terminam por assumir o lugar de valores de verdade”.
O slogan político
Caracterizado como frase curta, de fácil memorização e destinada a ser repetida por um número ilimitado de
locutores, o slogan, originalmente entendido como “grito de guerra”, no início, segundo Reboul (1986:7-8), na França, tinha
um sentido pejorativo, designando doutrinamento, propaganda e reclame. Com o passar do tempo, na Inglaterra do século
XIX, o termo passou a designar a divisa de um partido político, de uma ideologia ou de uma linha filosófica. E foi nos EUA
que ele se tornou conhecido na acepção de divisa comercial. Vemos, então, que do campo de batalha, passando pelo
espaço político e atingindo o mundo dos negócios, o slogan atuou como artifício-chave para disseminar idéias.
Como estratégia de marketing, os antigos já tinham o conhecimento de que, para promover uma mudança de
comportamento numa grande massa, um discurso curto, plástico e direto tem sua funcionalidade. Iasbeck (2002:56-59)
remonta um percurso histórico sobre o slogan e nos atesta que já nas Escrituras sagradas encontramos fórmulas retóricas
“que primam pelo sincretismo lingüístico, repletas de imagens com claras intenções doutrinárias”.
Os slogans, segundo Maingueneau (2001:171), estão ancorados na situação de comunicação. Por exemplo, o
famoso “50 anos em 5”, de Juscelino so é compreensível tendo em vista o contexto da época em que foi criado e seu
projeto de construir a capital da nação. Entretanto isso não impede que slogans sejam reeditados. No caso do slogan “O
petróleo é nosso”, de Getúlio Vargas nos anos 50, foi novamente utilizado na época das recentes discussões sobre a
descoberta do pré-sal.
Ainda segundo Mangueneau, o valor pragmático do slogan se situa no campo da sugestão e se destina a fixar na
memória dos “consumidores potenciais” a associação entre uma marca, no caso de um produto, ou de um nome, no caso
de um candidato, e um argumento persuasivo para compra, no primeiro caso, e adesão ao seu projeto, no segundo. Quanto
à sua forma, não há uma rigidez. Ele se liberta de estruturas rígidas, como rimas e jogos de palavras, para transformar-se
num constituinte de um discurso com múltiplas dimensões.
A qualidade do slogan pode ser aferida pelo grau de pregnância, que nem sempre está associado a recursos
retóricos e poéticos muito sofisticados. Um bom exemplo disso é o slogan “Meu nome é Enéas” que entrou para história
como sinônimo de indignação com as campanhas eleitorais que destinam a partidos políticos minoritários um tempo restrito
no horário eleitoral. Como o candidato em questão dispunha de um minuto, ele simplesmente aparecia na tela, e com tom
contundente, proferia o seu ato declarativo de identificação.
Como um slogan político opera numa lógica de economia de texto, para ser eficaz, é recomendável que o texto
possibilite ao leitor uma interpretação mais direta, sem que seja necessário o pensamento reflexivo muito elaborado e a
localização de suportes de significação seja imediata. Como o que se busca com o slogan político é firmar a credibilidade do
candidato para que haja uma adesão total do eleitor, para alcançar isso, o locutor dispõe de estratégias discursivas e de

244
persuasão. No primeiro caso, quanto às estratégias discursivas, podemos identificar três distintos espaços de manobra: o
de legitimação, o de credibilidade e o de captação. No primeiro caso, o discurso volta para si mesmo, cria-se, então um
ethos; no segundo, o discurso está para o outro, temos, então o pathos; e, por último, o discurso está voltado para os
valores, ou seja, temos o logos.
Como estratégia de persuasão, teremos as imagens que visam criar uma identificação e passar uma credibilidade;
a interpretação se volta para as estratégias de captação; e a questão dos valores configura-se como um jogo com os
imaginários coletivos.
Nas palavras de Charaudeau (2006:118), “o ethos é bem o resultado de uma encenação sociolinguageira que
depende de julgamentos cruzados que os indivíduos de um grupo social fazem um dos outros ao agirem e falarem” ou
como afirma Mangueneau (2001: 83) “as idéias são construídas por maneiras de dizer que passam por maneiras de ser”.
Todo ethos, ainda segundo Charaudeau, se constrói em uma relação triangular entre si mesmo, o outro e um
terceiro ausente, portador de uma imagem ideal de referência. No caso do discurso político, o ethos está voltado para si
mesmo, para o cidadão e para os valores de referência. Podemos concluir que o ethos pertence ao domínio das
representações sociais, e sua valorização no domínio político depende das circunstâncias.
A construção do ethos nos slogans da campanha presidencial de 2010
Antes de partirmos para as análises, propriamente ditas, é conveniente justificar a escolha do gênero em questão
e a metodologia adotada. Compreendemos o slogan como um ato de linguagem que circula no mundo social e que
testemunha, de certa forma, os universos do pensamento de cada candidato e os valores que norteiam sua campanha.
Entendendo esse gênero tal como designava a sua origem escocesa, como um grito de guerra, ao, e ao elegê-lo como
objeto de análise, o que tínhamos em mente é que pelo conteúdo proposicional de cada um deles poderíamos diferenciar
um candidato do outro tendo vista, por assim dizer, o seu “cartão de visitas”. Configurado como um texto breve de fácil
assimilação, parecia-nos, pois, que tal gênero poderia ser tomado como uma síntese das propostas de cada um.
Como nos adverte Charaudeau (200:37), não é tarefa do analista do discurso o questionamento da racionalidade
política, dos mecanismos que produzem esse ou aquele comportamento político ou as causas disso. Sua atenção deve se
voltar para “os discursos que tornam possíveis tanto a emergência de uma racionalidade política quanto à regulação dos
fatos políticos”. Nesse sentido, buscamos, nesse trabalho, empreender uma análise enunciativa que evidencie os
comportamentos locucionais dos atores da vida política para além de sua filiação ideológica. Assim, diante do corpus em
tela, buscamos identificar as condições de produção, o contexto e as instâncias envolvidas no discurso e as estratégias
utilizadas pelos candidatos para levar a cabo seus projetos de fala.
Para concorrer às eleições presidenciais de 2010, nove nomes foram apresentados como candidatos. Abaixo
temos o quadro que sintetiza esse cenário:

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Slogans da campanha presidencial de 2010
Candidato Partido Slogan
Dilma Rousseff PT “Para o Brasil seguir mudando”
José Serra PSDB “O Brasil pode mais”
“”É a hora da virada”
Marina Silva PV “Seja + 1. Juntos pelo Brasil que queremos”
Ivan Pinheiro PCB “Vote PCB, vote 21”
Rui Pimenta PCO “Salário, trabalho e terra”
Plínio Arruda PSOL “Opção pela igualdade”
Sampaio
José Maria Eymael PSDC “Dignidade, a marca de uma vida”
José Maria PSTU “Contra burguês, vote 16. Operário e socialista
desta vez”
Levi Fidélix PRTB “Renova, Brasil”

Para efeito de análise, dividimos os slogans em três blocos. No primeiro, alojamos os slogans dos três primeiros
candidatos nas pesquisas de intenção de votos.
No slogan da candidata que lidera essas pesquisas, Dilma Rousseff, a conjunção adverbial logo no início, “para”,
explicita a finalidade de sua candidatura. Na forma perifrástica “seguir mudando”, o valor semântico do verbo principal nos
remete ao pressuposto do continuísmo que é reafirmado pela forma gerúndio “mudando”, que ao lado do verbo principal
indica uma ação simultânea, como a de um adjunto adverbial de modo. Embora, como nos atesta Houaiss (2001:2535), o
verbo “seguir” acompanhado da forma nominal gerúndio exprima continuação da ação, se tomarmos o sentido de cada
verbo de forma isolada, parece encontrarmos aí uma contradição intrínseca, já que “seguir” pode significar prosseguir, ter
como modelo, e “mudar” pode ser interpretado como afastar-se, desviar. Essa contradição pode ser interpretada como uma
estratégia para assegurar a distinção entre Lula, como modelo, e Dilma, como sucessora. Como não é conveniente a um
suposto líder da nação não ter identidade, não se individualizar, visto que isso denotaria a ação de um marionetista, é
preciso demarcar onde termina um e começa o outro. Assim temos a idéia de continuar as ações do governo atual, mas
sem deixar de marcar a autenticidade da sucessora.
Como no slogan anterior, em “O Brasil pode mais”, de José serra, há uma personificação do país. Tanto lá como
aqui, Brasil é uma forma generalizante na qual pode estar inserida a idéia de nação, de máquina do governo ou de uma
classe social. Ao recorrer a esse signo lingüístico que recobre, nesses casos, um vasto campo semântico, os enunciadores
com seu discurso atingem um universo amplo de interlocutores.
O conteúdo proposicional do assertivo “O Brasil pode mais” nos remete a um estado de coisas existente de forma
independente da sua enunciação, ou seja, atesta-se por esse dizeres a potencialidade do país e o intensificador “mais” é
que projeta esse estado de coisas para o futuro. Em outras palavras, esse slogan não nega o feito, apenas o potencializa.
Usado no lançamento da campanha do candidato do PSDB e designativo da coligação dos partidos que apóia a candidatura
Serra, esse slogan foi muito criticado pela oposição. Uma das críticas era a de que se tratava de uma cópia do slogan de

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Barack Obama para presidência dos EUA em 2008, o famoso “Yes, we can”. Outra crítica, usada tanto pelos adversários
quanto pelos correligionários, mas com propósitos diferentes, evidentemente, era a fraca delimitação entre o governo atual
e sua proposta como alternativa ao que já estava posto. Diante dessas críticas, esse slogan foi substituído pelo “É a hora da
virada” que faz referência à vantagem que a candidata da oposição tinha alcançado naquele momento, demandando, então,
uma reversão desse quadro.
O slogan da terceira candidata nas pesquisas, “Seja + 1. Juntos pelo Brasil que queremos”, constitui-se de um
diretivo sob a forma de pedido para que o eleitor adira ao seu projeto. O recurso semiótico usado – o sinal de adição e o
número 1- sintetiza a idéia cuja assimilação torna-se, assim, mais fácil. A interlocutividade é explicitada na forma imperativa,
já de início, e reforçada pelo adjetivo junto e pela primeira pessoa do plural. Esses recursos servem como estratégia para
criar um ethos de identificação entre candidata e eleitor. Esse “nós” aproxima essas duas instâncias nesse ato de
linguagem. Aqui também encontramos uma idéia generalizante de Brasil. Pelo conteúdo proposicional do slogan não temos
a idéia precisa sobre o referente de Brasil – é o país, mas qual? A mensagem, assim, torna-se vaga, e não encontramos
nela uma marca de oposição em relação aos outros candidatos que estão à frente nem tampouco quanto ao governo atual.
O segundo bloco de excertos analisados corresponde aos slogans de Ivan Pinheiro (PCB), Rui Pimenta (PCO),
Plínio Arruda Sampaio (PSOL) e José Maria Eymael (PSDC). Ao analisarmos seus respectivos slogans, percebemos que
eles se configuram numa estratégia de fixação da identidade de cada um desses partidos no imaginário dos eleitores e não
numa explicitação de oposição em relação ao governo atual os aos primeiros colocados na pesquisa.
A forma imperativa “Vote PCB, vote 21” faz referência direta ao partido e ao seu número de legenda, seguindo a
lógica do “dizer pouco, mas dizer muito”. Aposta-se, aqui, nos designativos como se eles bastassem para sintetizar as
propostas. Isso pode se justificar pela confiança na tradição – dos nove partidos aqui em disputa, o PCB é o mais antigo.
Decorre daí que suas propostas já circularam por um tempo mais estendido e, talvez, já sejam de domínio público. Assim, o
que se pretende com essa mensagem sintética é o acionamento dessas propostas por meio dos nomes.
Em “Salário, trabalho e terra”, do PCO, vemos que, sob o formato de uma divisa, o slogan resume o ideal do
partido e toca nas questões cruciais do imaginário do operário: a remuneração, a oportunidade no mercado de trabalho e a
realização do sonho da casa própria ou da posse de propriedades para o trabalhador rural.
Em “opção pela igualdade”, temos as palavras de ordem que denotam o fim das diferenças de classes sociais que
é a bandeira do socialismo- orientação ideológica que o partido segue.
Por fim em “Dignidade, a marca de uma vida”, identificamos a criação de um ethos de virtude por meio do
substantivo e do sintagma apositivo que o segue. Aqui também não se identificam marcas que instauram o adversário. A
mensagem é solipisista.
Já no terceiro bloco, agrupamos os slogans “Contra burguês, vote 16. Operário e socialista desta vez”, do PSTU; e
“Renova, Brasil”, do PRTB, por identificarmos neles, de forma explícita, a presença do adversário.
No primeiro deles, já de partida, vemos que a preposição “contra” marca a oposição e a locução adverbial “desta
vez” nos remete ao pressuposto de que ainda não tivemos no governo um operário socialista, crítica direta, pois, ao atual
presidente que foi metalúrgico e defende, segundo ideologia partidária, os princípios do socialismo. No segundo, “Renova,
Brasil”, o imperativo alude a idéia de substituição, mudança, troca para melhor, o que pressupõe um estado de coisas que
não está bom demandando, então, essa alteração. Constatamos, assim, a instauração da instância adversária.
Embora a opinião contrária seja constituinte do discurso político, o que predominou nos slogans, segundo nossas
análises, foi o apagamento da instância adversária. O momento eleitoral pelo qual passamos é caracterizado pela forte
adesão da instância cidadã à instância política que está no poder. Prova disso são os índices de popularidade do atual
presidente da República (segundo pesquisa do IBOPE, em 17/03/2010, apontava o índice recorde de 75% de aprovação).

247
Charaudeau (2006:85) afirma que para o político o ideal seria se transformar numa efígie que remetesse, na medida do
possível, a mitos universais. Reportando-se à história de seu país, ele ainda dá como exemplo dessa situação De Gaulle e
Mitterand. Como condições para transformar-se em efígie, ele aponta ser preciso ter “um temperamento marcado que entre
em correspondência com a fala e com o comportamento; uma circunstância histórica e um saber criar o acontecimento”. E
complementa “a efígie não é possível a não ser na medida em que deixa traços na história, de maneira indelével”. Ainda
não temos o distanciamento histórico para afirmar que isso possa acontecer com o atual presidente, mas alguns dados nos
levam a crer que ele é um forte candidato a efígie. Trata-se de uma figura emblemática: metalúrgico, nordestino cujo único
cargo público foi de líder da nação. A mídia já o compara a líderes que fizeram história no nosso país e chegam até a
afirmar que ele os superou-Carlos Augusto Montenegro, presidente do IBOPE desde 2009, afirmou em entrevista a Isto é,
de 1º de setembro de 2010 que “Lula vai sair como melhor presidente do Brasil. Um pouco acima até do patamar de Getúlio
Vargas e de Juscelino Kubitschek” (p. 10). O termo lulismo, corrente na mídia e no mundo acadêmico, não demora ser
dicionarizado como aconteceu com getulismo. Percebe-se, então, que diante de uma opinião pública favorável ao governo
de situação, resta aos outros candidatos construir um discurso que caminhe na direção “mais do mesmo”, nas palavras de
James Carville, do que baseado no mote da mudança.
Ainda na esteira de Charaudeau, todo ato de linguagem busca criar um ethos. E no caso do discurso político, essa
construção só encontra razão de ser se voltada para o público, pois esse ethos deve funcionar como suporte de
identificação, via valores comuns desejados. E ainda “o ethos político deve, portanto, mergulhar nos imaginários populares
mais amplamente partilhados, uma vez que deve atingir o maior número”. Desse modo, parece-nos que os que os slogans
candidatos nos revelam um ethos solidário à opinião pública, entendida aqui como a maioria que aprova o governo atual e
lhe confere índices recordes de aprovação. Eles nos revelam um ethos que não rivaliza com o imaginário mais amplamente
partilhado que, diante desse estado de coisas, leva a rubrica Lula.
Diante disso, o que parece estar acontecendo é o que Charaudeau denomina de fusão dos imaginários de
verdade em que não se percebe a distinção entre esquerda e direita. Essa situação, segundo o autor, advém de um
sentimento de impotência do Estado e das classes sociais em relação ao mercado. Na triangulação característica do
discurso político- instância política, instância adversária e instância cidadã- vê-se desaparecer a instância adversária por
parte dos partidos clássicos, enquanto os partidos mais extremistas colocam em evidência seus princípios que os
distinguem. Cabe aqui a ressalva de que, devido ao recorte que fizemos no universo do discurso político ao eleger o slogan
como corpus de análise, essa afirmação é precipitada se tomada de forma generalizante e absoluta. Não a aplicamos ao
programa de governo de cada um, já que esse não era nosso intento. Essa citação nos serve, pois, para dizer que, por meio
do material lingüístico dos slogans e de sua enunciação, o que identificamos nesse recorte foi essa fusão. Os slogans do
primeiro bloco apostaram num discurso do continuísmo; os do segundo, numa postura mais solipisista, centrada no
candidato, no partido ou no lema do partido; por fim, os do terceiro marcam mais a instância adversária. Entretanto, os
candidatos do primeiro bloco são os que alcançaram índices de intenção de votos, confirmando o que dissemos acima: não
se percebe uma distinção ideológica entre eles, já que seus discursos caminham na direção do continuísmo que é o que
corresponde ao desejo da opinião pública atual.

248
Considerações finais
Diante do exposto, parece que o discurso político, depreendido dos slogans, tem se pautado pelo princípio de que
não é o conteúdo das idéias que é dado a entender e que fará diferença, já que eles são parecidos, mas a sua encenação.
Parece que estamos vivendo um momento em que as imagens e o afeto se sobrepõem à razão e aos valores. No
dispositivo da comunicação política a instância política adversária não ocupa uma posição confortável, já que não encontra
caminhos claros para marcar suas diferenças frente a uma opinião pública tão marcada a favor do estado de coisas atual.
Por outro lado, no outro lado, a instância cidadã tem buscar ser crítica para conseguir identificar essas diferenças. Talvez
esse seja o grande desafio de viver uma democracia e fortalecê-la.

Referências
CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.
IASBECK, Luiz Carlos. A arte dos slogans. São Paulo: Annablume, 2002.
MENEZES, William A.Evento, jogo e virtude nas eleições para presidência do Brasil -1984 e 1999. Março, 2004. Belo
Horizonte. Faculdade de Letras – UFMG- Tese.
REBOUL, O. O Slogan. São Paulo: Cultrix, 1975.
<http://www.presidenteusa.net .Acesso em 30/08/2010. >
< http://www.carville.info/Acesso em 30/08/2010.>

Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Mestre e doutora em Linguística pelo Programa
de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.

249
Sentidos oblíquos: entre textos e discursos

ARAÚJO, Augusto Ângelo Nascimento


(IFMA)

1 APROXIMAÇÃO

Segundo Bakhtin (1992), o homem é um ser eminentemente de linguagem. É do exercício dessa condição que se
estabelece o processo de interação social através do qual o homem se constitui como sujeito. Cada sujeito é, por assim
dizer, situado historicamente, pertencente a um grupo ou classe social. Do interior do grupo ou da classe ao qual o sujeito
pertence, ele se define como discurso, ou seja, o sujeito se define como um lugar social na estrutura social. Esse lugar se
dá através das representações sociais que fundamentam a sua prática discursiva, condição fundamental da linguagem.
Dessa forma, através dessas representações é que o sujeito se personaliza, ou seja, que ele ganha identidade a
partir de uma formação discursiva determinada que lhe permite significar a partir de um campo semântico específico.
Segundo Fiorin (1990, p. 32):
uma formação discursiva (...) é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma
dada visão do mundo. Essa formação discursiva é ensinada a cada um dos membros de
uma sociedade ao longo do processo de aprendizagem linguística. É com essa formação
discursiva assimilada que o homem constrói seus discursos, que ele reage linguisticamente
aos acontecimentos.

Assim, trata-se de compreender como a matéria textual produz sentido a partir de sua formação discursiva. Essa
formação discursiva funciona como um sistema de regras sociais que determina o que o sujeito deve ou pode dizer a partir
de uma formação ideológica, ou seja, a partir das imagens sociais que seu grupo considera importante e privilegia:

Falar-se-á em formação ideológica para caracterizar um elemento (determinado aspecto de lutas nos
aparelhos) suscetível de intervir como força confrontada com outras na conjuntura ideológica
característica de uma formação social em momento dado; cada formação ideológica constitui assim um
conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais”, nem “universais”
mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas com as outras.
(PÊCHEUX apud MUSSALIM; BENTES, 2004, p.124).

Chamadas de condições de produção pela Análise do Discurso, essas imagens sociais determinam o sentido dos
discursos que são lidos e ouvidos sob a forma de textos. Assim, são os textos que centralizam, organizam e ordenam o
sentido dos discursos a partir da relação dos elementos linguísticos com os elementos contextuais. Nesse sentido,
consideramos que o discurso pode ser constituído por uma pluralidade de textos ou um texto pode ser atravessado, ao
mesmo tempo por vários discursos.
No texto, o encadeamento do sentido do discurso se dá a partir do enunciado que, para Foucault (apud
CARVALHO, 1999), é responsável pela unidade do discurso. Para esse autor, um discurso é um conjunto de enunciados
que pertencem à mesma formação discursiva. Cada enunciado tem uma realização única, podendo ser reiterado, a partir de
repetições ou de paráfrases. No entanto, o sentido por ele construído será inteiramente novo, graças ao processo de
enunciação pelo qual está condicionado. A enunciação é, pois, eminentemente social, ou seja, enuncia-se sempre para
alguém, de um determinado lugar ou de uma determinada posição sócio-histórica, valendo dizer que o tu também ocupa
uma determinada posição.

250
Esses conceitos compartilhados pela concepção de linguagem bakhtiniana e pela Análise do Discurso são
fundamentais para ler a intencionalidade dos sentidos oblíquos no texto publicitário – objeto de nossa análise neste estudo
– uma vez que o texto publicitário se constitui de enunciados que reiterados e relacionados com os signos imagísticos,
compõem a peça publicitária – um texto, que veicula, predominantemente, o discurso da propaganda.
Dessa forma, nosso propósito aqui é analisar os sentidos oblíquos do texto publicitário, tomando como ponto de
partida as condições de sua produção. Para tanto, inicialmente, enfocaremos a concepção de linguagem em Bakhtin,
concepção fundamental para a apreensão da noção de texto e de discurso. A seguir, discutimos a natureza do texto
publicitário e o seu caráter persuasivo. Por fim, analisamos a intencionalidade da ambiguidade – sentido oblíquo – em dois
textos publicitárias, destacando a intertextualidade e a interdiscursividade como princípios fundadores da constituição de
sentido do discurso nos referidos textos

2 SOBRE A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM

Segundo a concepção de linguagem bakhtiniana a compreensão verbal não pode ser entendida fora de sua
relação com uma situação concreta: “O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas
significações possíveis quantos contextos possíveis” (BAKHTIN, 1992, p.106). Dessa forma, para a dialogicidade são
necessários dois aspectos complementares: o linguístico, que é reiterativo e se refere a um objeto pré-existente, e o
contextual que é único, tendo como referência novos enunciados. Esse dialogismo da linguagem atinge sua concretude,
para Bakhtin (1992), através do enunciado. Enunciado é aqui entendido como unidade discursiva de comunicação, de
significação, necessariamente contextualizado. Ao enunciado Bakhtin (1992, p.123) soma a noção de diálogo:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas é verdade que das
mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido
amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas
toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.

Desse modo, o homem é um ser de linguagem porque é capaz de estabelecer diálogo com outros seres. No
entanto, nem sempre esses seres estarão presentes no momento da enunciação. O que importa é que, quando se fala ou
se escreve, trabalha-se com a idéia de interlocutor imaginário, ou seja, trabalha-se com a idéia de troca de relações
pessoais:

A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de
uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se
estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido). Não pode haver
interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem
no figurado. (BAKHTIN, 1992, p.112)

Essa troca de relações, estabelecida através do diálogo, não se restringe, porém, à mera decodificação da
mensagem. Para Bakhtin (1992, p.95), o homem, por seu caráter histórico, cultural e ideológico, utiliza a linguagem para
agir no mundo e preenchê-lo de sentido a partir de sua ação: “[...] A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam
em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”.
Nessa perspectiva, para Bakhtin (1992), a linguagem, como discurso, não constitui um universo de signos que
serve tão somente à comunicação ou como suporte do pensamento. De acordo com seus pressupostos teóricos, a

251
linguagem, como discurso, é um modo de produção social, é interação, não sendo, pois, neutra nem inocente, uma vez que
está prenhe de intencionalidade, razão por que é o lugar privilegiado de manifestação da ideologia.
Assim, quando se comunica, o homem seleciona e organiza as palavras mais cheias de sentido para ele e para o
seu interlocutor, a fim de que elas norteiem o seu discurso. Nessa prática, ele não leva em consideração apenas os fatores
linguísticos, como as relações entre as palavras ou sentenças, mas, sobretudo, os fatores extraverbais que apontam para a
sua realidade ou para a realidade do falante. De acordo com esse ponto de vista, o sentido de um enunciado só pode ser
apreendido em toda sua dimensão a partir de uma situação concreta de linguagem.

3 ENTRE TEXTOS E DISCURSOS

A Análise do Discurso1 revela que o texto em si é finito e completo e que sua incompletude só se torna possível no
universo do discurso. Como afirma Orlandi (1998, p.54): “um texto, do ponto de vista de sua apresentação empírica, é um
objeto com começo, meio e fim, mas que, se o consideramos como discurso, reinstala-se imediatamente sua incompletude”.
Dessa forma, Orlandi (1998) aponta para um caráter relacional e extratextual do texto a partir do discurso, uma
vez que, funcionando como material linguístico do discurso, o texto se relaciona com outros textos, entrando em contato
com outros discursos bem como com suas condições de produção (o sujeito e a situação).
Quanto a isso é preciso entender que o discurso figura na AD, como um aparelho ideológico do estado,
manifestação do materialismo histórico, resultado de relações conflitantes que diferentes sujeitos estabelecem entre si no
interior de um sistema social, através do qual se dão embates entre posições diferenciadas:

como forma, a língua constitui uma estrutura, mas como funcionamento, a língua se transforma em
discurso, que é o fenômeno temporal da troca, do estabelecimento do diálogo, é a manifestação
interindividual da enunciação, é o seu produto. (CARDOSO, 1999, p. 22)

Foucault (apud CARDOSO, 1999) concebe o discurso dentro de uma teoria não subjetiva da enunciação como um
conjunto de enunciados na medida em que se apóie na mesma formação discursiva. Segundo ele, o discurso é um jogo
estratégico de ação e reação, de pergunta e resposta, de dominação e esquiva e também de luta: o espaço em que o saber
e o poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido institucionalmente.
Assim, o discurso e, em última instância, o texto (conjunto material dos enunciados), é consubstanciado por uma
formação discursiva, entendida pela AD, como um lugar de encontro da ideologia com o discurso. Dessa forma, temos que
todo texto, é o encontro de uma formação discursiva com uma formação ideológica.

1 A Análise do Discurso (Doravante AD), aqui adotada, é aquela que teve sua origem na França em 1960. A sua fundação está ligada,

sobretudo, a dois nomes: Jean Dubois e Michel Pêcheux.

252
4 O CARÁTER PERSUASIVO DO TEXTO PUBLICITÁRIO

O texto publicitário é a materialização do discurso publicitário que, por sua vez, é constituído por uma formação
discursiva determinada por uma formação ideológica. Essa formação ideológica está centrada na idéia de consumismo, um
dos principais valores difundidos pela pós-modernidade2,o qual se expressa como discurso da ideologia dominante,
essencialmente capitalista.
No entanto, no texto publicitário, a expressão da ideologia dominante não se efetiva no nível real, mas se camufla
através de um nível aparente, disfarçado. Dessa forma, o enunciador do discurso publicitário utiliza, como afirma Carvalho
(1998), a manipulação disfarçada para convencer e seduzir o receptor, não deixando transparecer suas verdadeiras
intenções, idéias e sentimentos, usando de vários recursos: fazendo agir, fazendo crer, buscando o prazer.
A reprodução desse discurso se efetiva através da ação do receptor que aceita o que lhe é imposto. Por isso é
fator determinante para o texto publicitário o caráter persuasivo da mensagem.
Segundo Charaudeau e Mangueneau (2004), na AD, a persuasão pode ser vista como o produto dos processos
gerais de influência. Qualquer discurso visa, sobretudo, persuadir, isto é, comunicar, explicar, legitimar e fazer compartilhar
o seu ponto de vista, através das palavras que exprime; ou então, ao contrário, pretende eliminar os discursos concorrentes
para reinar soberano em seu domínio.
É a partir daí que o discurso publicitário se estrutura. Dessa forma, o seu primeiro objetivo é a empatia, ou seja,
ele se apresenta como sendo “amigo” do interlocutor, como sendo seu próprio discurso, fazendo com que o interlocutor se
identifique com ele ao ponto de aceitar, por via de regra, sem questionar o que ele diz. É a partir daí, que o interlocutor
delega ao discurso publicitário agir sobre seu comportamento ao ponto de fazê-lo mudar de atitude, culminando num
objetivo principal que é o da compra.
No entanto, essa “aproximação” do enunciador, entendido não como sujeito, mas como discurso, ao enunciatário
não acontece arbitrariamente. Ela surge a partir de uma intenção determinada, estudada e escolhida. O envolvimento do
destinatário supõe a adaptação à sua personalidade social e cultural. Nesse sentido, o texto tem que se fazer parecer
destinado ao leitor. Para que isso ocorra, é necessário, por parte do enunciador, um bom conhecimento do enunciatário,
dos seus códigos pessoais, de seus centros de interesse, de sua cultura, enfim, de seu discurso.
Como é possível observar, publicidade é um tipo de discurso que se materializa através do texto, a “peça
lingüística”, entendido como o material onde se expressa a “liberdade” discursiva do enunciador do discurso publicitário. No
entanto, como o texto também é determinado por fatores externos a ele, os quais apontam para a realidade em que ele é
produzido, a linguagem do texto publicitário precisa ser breve e concisa, visto que vivemos em uma sociedade marcada pela
pressa. Assim, os enunciados se caracterizam por serem curtos, de rápida decodificação e memorização. Segundo Martinez
(2004), a lei da economia informativa explica as seguintes características das mensagens publicitárias: 1) sua breve
extensão, para evitar o cansaço dos receptores e a perda de interesse; 2) seu estilo condensado que suprime os elementos
desnecessários ou pouco informativos; 3) a utilização de recursos estilísticos para chamar a atenção e intensificar o efeito
informativo. Nesse ponto, explica-se a utilização de palavras com múltiplos sentidos que geram no texto variadas leituras.
Nesse contexto, destaca-se a ambiguidade, vista não como um desvio da norma, mas como força expressiva, importante
recurso estilístico que contribui para a persuasão e sedução no receptor da mensagem. A ambiguidade também pode ser

2 Para efeito deste estudo, entendemos pós-modernidade como a condição sócio-cultural e estética do capitalismo contemporâneo,

também chamado de pós-industrial ou financeiro. No entanto, não disconsideramos a problemática que este termo enseja. Teóricos e
acadêmicos têm diferentes concepções sobre o mesmo. Para maiores considerações, citamos o texto ‘Pós-modernidade’ disponível em [
http: // pt. Wikipedia.org/wiki/p% C3% B3 – modernismo].

253
entendida, no texto publicitário, como possibilidade de diferentes leituras para um mesmo texto. A interpretação
predominante dependerá do lugar social que ocupa o receptor/leitor, bem como da imagem que este tem do discurso que vê
enunciado no texto. Partindo ainda do conceito de dialogismo bakhtiniano, podemos ver na ambiguidade – aqui chamada de
sentido oblíquo –, um diálogo de diferentes discursos, leitura de sujeitos diversos. À plurissignificação constituinte da
ambigüidade, associa-se o caráter persuasivo do texto publicitário.

5 SENTIDOS OBLÍQUOS: DO LINGUÍSTICO AO DISCURSIVO

Na gramática normativa, a ambiguidade é considerada como um problema de comunicação, seu emprego é


condenado, constituindo-se um vício de linguagem. No entanto, em uma visão mais linguística do fenômeno, essa
perspectiva muda e a ambigüidade passa a ser considerada também como um recurso expressivo da língua. Sua utilização
se explica de acordo com a necessidade do enunciador da mensagem.
De acordo com o “Dicionário de termos literários” de Moisés (1995), a palavra ambiguidade provém do latim
ambigun(m), ambíguo, que apresenta duas faces, dois sentidos. Para o autor, a preferência pela utilização do caráter
múltiplo ou ambíguo de um texto decorre necessariamente de sua linguagem metafórica, assemelhando-se à metáfora, à
conotação ou à ironia.
Para Abaurre (1996), a ambigüidade contribui para a construção dos efeitos de sentidos no enunciado a partir de
três formas: ambigüidade trivial, ambigüidade problemática e ambigüidade voluntária – que optamos por chamar de
ambiguidade intencional e sob a qual damos ênfase. Assim, na ambigüidade intencional, o enunciador usa conscientemente
a linguagem, ao passo que na ambiguidade problemática os falantes agem como se não entendessem o funcionamento da
língua. Ao criar um enunciado propositadamente ambíguo, ou seja, ao explorar um enunciado com duplo sentido, o falante
demonstra competência linguística.
Um anúncio publicitário construído com base em um termo com mais de um sentido, por exemplo, aposta que o
leitor saberá não só reconhecer esses sentidos diferentes, como também compreender que a inclusão do enunciado
ambíguo foi uma estratégia proposital do anunciante. Além disso, convém salientar que, no processo de compreensão de
um texto, o leitor opõe à palavra do locutor uma contrapalavra, o que lhe permitirá identificar o sentido do texto: “a
compreensão é um diálogo; ela está para a enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender
é opor à palavra do locutor uma contrapalavra”. (BAKHTIN, 1992, p.132, grifo do autor)
No caso dos anúncios publicitários, o interesse do texto não é apenas o de informar, mas também o de chamar a
atenção, despertar interesse, necessitando, para isso, de certo grau de expressividade que não seria obtido pela linguagem
comum. No caso da ambigüidade problemática, temos um problema quando se trata de texto informativo, uma deficiência
linguística, um uso inadequado dos mecanismos de coesão. Na ambigüidade intencional, temos um caso proposital, um
jogo de palavras, um recurso estilístico no texto publicitário.
É importante dizer que o aspecto linguístico da ambiguidade é responsável pelo seu domínio material, centrando-
se na relação das palavras no co-texto, em contrapartida o aspecto discursivo ou dialógico da ambiguidade baseia-se no
contexto, naquilo que vai além das relações estritamente lingüísticas entre as palavras; baseia-se no discurso, ou melhor,
no interdiscurso – compreendido como a tensão entre diferentes formações discursivas. Nesta última perspectiva, a
ambiguidade repousaria no fato de que um enunciado encerra em si mais de uma interpretação, ou seja, mais de um
sentido. No entanto, é conveniente dizer que é o aspecto linguístico que subsidiará a ambigüidade discursiva, ou seja, a
análise do não-dito será realizada a partir das marcas linguísticas deixadas pelo explícito. Dessa forma, aquilo que inferimos
na ambiguidade discursiva vai da objetividade expressa na língua à subjetividade expressa na interpretação.

254
Para Charaudeau e Mangueneau (2004), a ambiguidade é um fenômeno ligado à discursivização de um
enunciado. Esse fenômeno se reproduz sempre que uma mesma frase apresente vários sentidos e seja, então, suscetível
de ser interpretada de diversas maneiras. Para a AD “pode-se falar em ambiguidade discursiva – quando ela se localiza não
só no sentido das palavras do léxico ou na construção frástica, mas no sentido do implícito” (CHARAUDEAU;
MANGUENEAU, 2004, p. 35). Ou seja, o maior centro de interesse para a AD repousa na ambiguidade discursiva, isto é, a
AD não se interessa apenas pela estrutura linguística que gera a ambigüidade, mas, sobretudo, pelos efeitos de sentido que
essa ambiguidade produz no interlocutor a partir do espaço social que ele ocupa. À AD importa a pergunta: por que um
enunciado ambíguo é decididamente escolhido? Que formação discursiva ele afirma ou nega?
Levando em consideração que todo enunciado é composto de uma parte realizada em palavras e outra implícita,
podemos dizer que a ambigüidade discursiva é constitutiva de todo ato de comunicação. Entendida a partir de seu caráter
discursivo, a ambiguidade de um enunciado, em sentido estrito, e de um texto, em sentido amplo, pertence a uma formação
discursiva determinada. Essa formação discursiva é responsável pela realização do discurso no texto publicitário. Assim, o
discurso de uma formação discursiva é responsável pela sua relação com outras formações discursivas e é o que ao
mesmo tempo lhe confere identidade. Isso significa que a identidade discursiva está construída na relação com o Outro: “O
enunciado de uma formação discursiva pode ser lido em seu ‘direito’ ou em seu ‘avesso’: numa face, significa que pertence
ao seu próprio discurso, na outra, marca a distância constitutiva que o separa de um ou vários discursos”. (CARDOSO,
1999, p. 86)
Assim, a ambiguidade discursiva nasce de uma interdiscursividade, isto quer dizer que um discurso nasce de um
trabalho sobre outros. Um mesmo enunciado pode corresponder a diferentes leituras, dependendo do lugar social do
enunciador e do co-enunciador da mensagem.
Dessa forma, num espaço discursivo considerado, como num texto publicitário, o sentido não é estável, mas se
constrói no intervalo entre as posições enunciativas. Cada discurso presente no espaço discursivo só pode traduzir como
negativas, inaceitáveis, as unidades de sentido construídas pelo seu Outro, pois é nessa rejeição que cada um define sua
identidade. “Um discurso no sentido estrito e uma formação discursiva em sentido amplo opõe dois conjuntos de categorias
semânticas: as reivindicações ‘positivas’ e as ‘negativas’, recusadas”. (CARDOSO, 1999, p. 86)
A essa possibilidade que um discurso tem de evocar outros discursos Authier-Revuz (apud CARVALHO, 1998)
chama de heterogeneidade discursiva. Dialogando ainda com a concepção de dialogismo em Bakhtin, podemos dizer que a
ambiguidade discursiva, refere-se a um diálogo entre as leituras diversas que constituem um enunciado, um texto, um
discurso.
Essa dupla ambiguidade do discurso (heterogeneidade discursiva e dialogismo bakhtiniano) participa de todo
discurso e não aparece marcada linguisticamente no fio do discurso. Dessa dupla ambiguidade o enunciador, por via de
regra, não tem consciência. O discurso não se reduz a um dizer explícito, pois ele é permanentemente atravessado por seu
avesso.
A partir de todas essas considerações, a pergunta que nos parece óbvia é a seguinte: se todo enunciado, todo
texto e todo discurso é ambíguo, como fazer a desambiguização, ou seja, como interpretá-los da maneira que devem ser
interpretados?
De acordo com Charaudeau e Mangueneau (2004), o fenômeno de desambiguização do discurso consiste,
consequentemente, em produzir inferências que, apoiando-se nos índices contextuais e no saber previamente registrado na
memória, constroem os implícitos previstos pelo sujeito falante. Este princípio de desambiguização está presente no texto
publicitário. Como já dissemos, o enunciador da mensagem aposta que seu co-enunciador desfará a ambiguidade, optando
pela interpretação mais desejada, resultado da inferência deste último. No entanto, ao fazer isso, o enunciador não se dá

255
conta de que, ao levantar as inferências necessárias ao seu co-enunciador, para que este entenda a mensagem, ele faz
referência a um outro discurso que também pode ser percebido pelo co-enunciador. No caso de uma ambiguidade gerada
pela ironia, o enunciador pede implicitamente que o co-enunciador da mensagem a leia “ao contrário”, ou seja, que leve em
consideração uma interpretação diversa daquela que constitui o seu sentido literal, mas, ao utilizar a ironia, o enunciador
também indica o discurso ao qual faz referencia a partir da negação deste.
A partir dessas considerações fica evidente que a ambiguidade pode ser lida tanto numa visão gramatical, quanto
numa visão lingüística; tanto em seu aspecto estrutural quanto em seu aspecto discursivo.
Do caráter intencional na ambigüidade surge sua expressividade linguística que, ao demarcar um discurso,
dialoga com outros, numa cadeia ininterrupta de interação. Da consciência, da intenção no texto publicitário em utilizar um
discurso ambíguo que reporta a outros discursos que se quer negar é que se explica o nosso interesse de ir do texto ao
discurso.
A partir dessas considerações, analisaremos as peças linguísticas, buscando responder a um duplo
questionamento: o que é que conduziu a formação de um determinado enunciado? E quais as conseqüências que um
determinado enunciado vai provavelmente provocar? Assim estabeleceremos, na análise, uma correspondência entre as
estruturas semânticas ou linguísticas e as estruturas psicológicas ou sociológicas (condutas, ideologias, atitudes) dos
enunciados.
A seguir, temos um exemplo expressivo de ambiguidade e heterogeneidade discursiva.

256
TEXTO 1

O texto da Companhia aérea TAM enuncia a partir do enunciado Quem voa de TAM sabe o discurso de
superioridade dessa companhia em relação às demais. No entanto, para se chegar a essa compreensão, intencionalmente
inferida pelo sujeito do anúncio, é necessário partir de outro enunciado, o enunciado que diz Você nasceu para voar. Esse
enunciado busca uma leitura de adesão por parte do co-enunciador que, convencido de que nasceu para voar, recupera o
sentido da possibilidade desse vôo a partir da TAM – que se apresenta como a mediadora entre o homem e sua
capacidade, segundo ela, quase inata de voar. Ou seja, quem voa de TAM, sabe bem disso.
No entanto, a elasticidade de sentido deste anúncio não pára por aí. Se considerarmos o diálogo entre a imagem
e o enunciado escrito, o campo do discurso se amplia. A imagem mostra um homem que pela maneira que está vestido – de
terno, roupa utilizada em determinadas situações formais, apresenta-se com uma capa vermelha, assemelhando-se a figura
do super-homem, imagem de ficção criada pelo governo americano. O super-homem, com seus super-poderes, salva a
nação americana em apuros. O super-homem da imagem tem por baixo da capa vermelha um terno e por trás dele aparece
a Cúpula do Senado - símbolo de poder econômico e político do Brasil. A partir daí inferimos que o super-homem aqui
considerado é, provavelmente, um político que também “salva o futuro do país” através dos serviços prestados à economia,
à política, à educação e a saúde. Podemos dizer ainda que, pelo olhar altivo com o qual o político nos interpela, ele nos
convida a uma sensação de poder, de supremacia alcançada através do voo oferecido pela TAM. Dessa forma, podemos
dizer, pelas marcas implícitas deixadas pelo sujeito do discurso, que quem voa de TAM, voa alto, e sabe disso.

257
A ambiguidade implícita nesse enunciado que parte da figura do político, é contrastada por um outro anúncio
publicitário de uma outra companhia área – a Gol. O enunciado principal do texto a seguir é : Gol. Aqui todo mundo pode
voar.

TEXTO 2
A partir desse pressuposto, de que, na Gol, todo mundo pode voar, pressupomos um outro enunciado que diz que
nem todo mundo pode voar. Dessa forma, a partir do pressuposto dado no texto, inferimos que a única companhia aérea
que não faz acepção de pessoas é a Gol, ou seja, na Gol homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e velhos, homens
simples ou públicos podem voar. É aqui, pois, que nos centraremos agora. Se levarmos em consideração os conhecimentos
intertextuais, ou seja, os elementos interdiscursivos, inferiremos que existe uma companhia aérea que, a partir da figura de
um político, enuncia que o homem nasceu para voar. No entanto, ao privilegiar uma camada da população cultura e
economicamente favorecida a TAM, estaria limitando a capacidade do voo a poucos homens, aos homens que detém o
poder político. Este implícito pode ser confirmado pela imagem de fundo do texto da TAM que mostra, como dito
anteriormente, a Cúpula do Senado, lugar que costuma ser frequentado por homens públicos.
Negando esse discurso, a Gol cria sentido para a possibilidade do voo sob a figura de um pássaro, sentido
instituído pela enunciação de um outro enunciado Por que viajar de outro jeito se você pode voar? Complementando o
sentido do texto, a imagem do pássaro, dentro de um carro, provavelmente de luxo, aponta para a capacidade do voo que
todo homem pode desenvolver, todo homem mesmo, independente de sua posição social. A ambiguidade que se expressa
pela simplicidade do voo do pássaro se relaciona a simplicidade do voo da Gol. O pássaro, que tem a capacidade inerente
de voar parece desconhecer esta informação, o que o faz voar de qualquer outro jeito, desprezando a originalidade de seu
voo. A pessoa que desconhece as tarifas extremamente baratas da Gol, contenta-se apenas com o suficiente, voa de
qualquer jeito, deixando de voar de um modo mais original e moderno, deixando de voar com a Gol.

258
6 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao mostrar a intencionalidade na constituição dos sentidos oblíquos no texto publicitário, evidenciamos que, como
enunciadores e co-enunciadores da língua, precisamos assumir a função de analisar qualquer tipo de mensagem a partir de
uma leitura dupla, ver além daquilo que a intuição determina. Isto quer dizer que, na condição de analistas, precisamos
compreender o sentido da comunicação não só como se fôssemos o receptor normal, mas também, e principalmente,
desviar o olhar para uma outra significação, entrevista através ou ao lado da mensagem primeira, ou seja, precisamos
identificar os significados de natureza psicológica, política, histórica e cultural que apontam para o caráter enunciativo da
enunciação de todo e qualquer ato de linguagem.

REFERÊNCIAS

ABAURRE, Maria Luiza; PONTARA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo:
Moderna, 1996.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.

CARDOSO, Silvia Helena Barbi. Discurso e ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 1998.

CHARAUDEAU, Patrick; MANGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Tradução: Fabiana Komesu.
São Paulo: Contexto, 2004.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 2.ed. São Paulo: Ática.

MARTINEZ, Antonio Ferraz. Cuadernos de Lengua Española: El lenguaje de la publicidad. Madrid: Arco Libros, 2004.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1995.

MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Ana Cristina. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 4. ed. São Paulo: Cortez,
2004. V. 2.

ORLANDI, Eni Puccimelli. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

PÓS-MODERNIDADE. Disponível em: <http: // pt. Wikipedia.org/wiki/p% C3% B3 – modernismo>. Acesso em 15 de fev.
2007.

RODRIGUES, Adriano Rodrigues. As dimensões da pragmática na comunicação. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995.

AUGUSTO ANGELO NASCIMENTO ARAUJO

Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Maranhão-UFMA. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura
pela Faculdade Santa Fé. Licenciatura em Letras e Pedagogia pela UFMA. Atualmente é professor de Língua Portuguesa
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão-IFMA. Atua nas áreas de Linguagem e Educação.

augustoangelo@ifma.edu.br

259
O Gênero Textual Ofício

ARAÚJO, Siméia M.
(PUC/SP)

1. Introdução

Quando estudamos as relações sociais e como elas se estabelecem ao longo do tempo, é possível perceber o ser
humano organizando-se em comunidades, dividindo-se em áreas de atividade e, dentro delas, estabelecendo interações de
forma diversificada.
Segundo Bakhtin (2003), essas comunidades referem-se aos campos de atividade humana que são diversos e
por isso permitem o surgimento de incontáveis formas de interação, que são chamadas de gêneros do discurso.
Os gêneros nascem da necessidade de se estabelecer novas formas de interação dentro das esferas de atividade
humana em que atuam e têm propósitos de atender uma certa demanda. Além disso, servem como organizadores e
“reguladores” das atividades executadas nessas esferas, já que, para facilitar a comunicação, muitos deles mantêm
algumas características bastante semelhantes, a exemplo do gênero Ofício.
Cabe ressaltar que essas características são determinadas pelas esferas de atividade em que atuam, funcionando
como “espelhos”, pois refletem suas relações e suas formas de organização.
Partindo desses pressupostos, este trabalho tem por finalidade verificar, por meio da análise do gênero Ofício, as
características dos gêneros a fim de percebê-los como “espelhos” que refletem as formas de organização das atividades e
das relações das esferas de atividade humana em que atuam.

2. Algumas considerações teóricas

2.1. Os gêneros discursivos

Bakhtin (2003) afirma que é por meio de enunciados concretos e únicos que a vida entra na língua, ou seja, os
enunciados são unidades reais da comunicação que emanam de um determinado indivíduo de uma determinada esfera de
atividade humana.
Para Bakhtin essas esferas são diversas e multiformes, já que estão relacionadas com a vida e,
conseqüentemente, com toda a sua mudança histórica e social, sendo que, toda vez que um indivíduo, integrante de uma
determinada esfera, se comunica, ele o faz por meio de enunciados que, além de apresentar suas individualidades,
apresentam também características do campo em que estão inseridos.
Nesses campos se constituem e atuam “tipos relativamente estáveis de enunciados”, ou seja, os gêneros
discursivos que emergem com determinadas condições e propósitos comunicativos a fim de facilitar a comunicação entre os
seus integrantes.
Por isso, os gêneros só podem ser compreendidos dentro da esfera de atividade humana em que se constituem e
atuam, pois, fora do seu campo social, perdem seu caráter sócio-histórico que é fundamental para entendê-los como atos
sociais que “regulam” e organizam a vida social.

260
É importante destacar o caráter dialógico dos gêneros que, por serem formas reguladoras de interação dos
campos sociais em que estão vinculados, não podem ser entendidos como modelos estanques e fechados a serem
seguidos. Dessa forma, o conceito de “regulador” precisa ser apreendido de forma ampla.
Bakhtin, ainda, numa tentativa de conceituar os gêneros, afirma que eles são caracterizados pelo seu conteúdo
temático, pela sua construção composicional e pelo seu estilo. Ressalta ainda que o estilo está intrinsecamente ligado à
natureza histórica dos gêneros, pois eles refletem as mudanças sofridas, ao longo do tempo, pela esfera em que se
constituem e que atuam.
Podemos constatar em Bazerman (2005) a mesma afirmação quando ele, ao examinar o texto na sociedade,
destaca que os gêneros textuais, por serem categorias sócio-históricas, estão sempre em constante mudança e são o que
as pessoas reconhecem como gêneros em um determinado momento do tempo, ou seja, estão intrinsecamente ligados à
vida social e às transformações vividas em sociedade.
Bazerman observa que o homem, como ser social integrado dentro de uma determinada sociedade, deve agir
colaborativamente e os gêneros são formas textuais típicas com finalidades específicas, utilizadas pelo ser humano, em
determinadas situações, com o objetivo de compartilhar significados, tendo em vista propósitos práticos, ou seja, facilitar a
comunicação no meio cultural em que se encontra vinculado.
O autor, ainda, destaca a origem dos gêneros que, na sua grande maioria, têm como base a oralidade, mas
alguns deles são desmembramentos de gêneros fundadores que vão se desenvolvendo num processo histórico-cultural
interativo dentro de instituições e atividades preexistentes. Por isso, como Bakhtin, destaca a importância de se trabalhar
com a compreensão de seu funcionamento na sociedade e na sua relação com indivíduos situados em uma determinada
cultura e suas instituições.
Partindo dessa observação, Bazerman destaca os conjuntos de gêneros: uma “coleção de espécies de textos que
uma pessoa, num determinado papel tende a produzir” e sistemas de gêneros: “conjuntos de gêneros utilizados por
pessoas que trabalham juntas de forma organizada”, e são esses sistemas de gêneros que organizam a produção e a
circulação de gêneros numa dada instituição, pois, em geral, são extensões de outros preexistentes, sendo um
condicionado ao outro, funcionando como um enquadre formado por encadeamentos de uma série de textos que se co-
relacionam. Mas, mesmo que os gêneros sejam bastante tipificados, eles permitem mudanças porque os conhecimentos,
tanto os individuais quanto os partilhados, vivem renovando-se e adaptando-se aos novos contextos.

2.2. O contexto

É válido ressaltar a importância do papel do contexto para a compreensão dos gêneros, já que, segundo Hanks
(2008), muito, se não tudo, da produção de sentido que ocorre por meio da lingua(gem) depende fundamentalmente do
contexto, pois seu conceito baseia-se, estritamente, em relações.
Hanks, numa crítica a abordagens dicotômicas que, ora por sua perspectiva micro privilegiam apenas o individual
sobre o coletivo, ora por sua perspectiva macro, prioriza o contexto apenas global e amplo, destaca que o contexto é
emergencial, pois “todo discurso dialógico pode ser descrito como situado à medida que ele ocorre em situações” e
incorporado pelo seu enquadramento em um campo social, coletivo e abrangente, ou seja, o contexto do discurso encontra-
se associado à emergência, referente à produção real do enunciado e da interação, e na incorporação ou encaixamento
desse discurso num contexto mais amplo, denominado de campo social.

261
São nesses campos sociais (organizações profissionais, “comunidades”, classes, corpo departamental) “cujas
interações são tipicamente mediadas pela escrita, por meios eletrônicos e por outros instrumentos”, que podemos visualizar
os gêneros textuais representando e ordenando as atividades realizadas dentro deles.
Segundo Hanks, os campos sociais incorporam os campos demonstrativos que são cenários interpessoais
imediatos no qual o enunciado é produzido e herdam determinadas propriedades, transformando-se. Além disso, os campos
sociais são os responsáveis em definir certas restrições de acesso, pois delimitam os papéis e posições e estão
intimamente ligados às práticas comunicativas.
Esse estudo de como os campos sociais incorporam os campos demonstrativos e como delimitam os acessos e
as relações é importante para a contextualização dos gêneros textuais como formas de ordenamento e o encaixamento das
relações e posições dentro de um determinado campo.
Podemos destacar, ainda, os estudos de Gumperz (2002) sobre pistas de contextualização que também
contribuem para a compreensão dos gêneros, pois a escolha de um determinado gênero em um determinado contexto será
uma pista facilitadora, de extrema importância, para uma comunicação bem sucedida.
Apesar de Gumperz denominar as pistas de contextualização como “(,,,) todos os traços lingüísticos que
contribuem para a sinalização de pressupostos contextuais. Tais pistas podem aparecer sob várias manifestações
lingüísticas (...)” (Gumperz, 2002, p. 152), é possível constatar que os gêneros com sua estrutura composicional, com seu
conteúdo temático e estilo funcionam como pistas sinalizadoras que auxiliam a interação, pois, como são modelos
cognitivos que os participantes de um determinado campo de atividade conhecem, podem ser facilmente reconhecidos
pelos seus integrantes.
Como podemos notar os estudos sobre contexto servem para a compreensão dos gêneros como formas de
interação que só fazem sentido quando vinculados aos campos da atividade humana e inseridos em um contexto situacional
ou amplo, servindo também como sinalizadores contextuais que auxiliam na produção de sentido.

3. O Ofício em análise

Tendo em vista que o objetivo deste trabalho é analisar o gênero a partir de suas características e destacar a sua
importância como facilitador das relações comunicacionais dentro de uma determinada esfera de atividade humana,
selecionamos, aleatoriamente, a título de exemplificação, um Ofício produzido em uma esfera institucional que
apresentamos a seguir:

262
NOME DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia

São Paulo, 26 de setembro de 2008

Of. PEPGFIL. N° 036/2008

Ilma. Srª
Profª Dª Anna Maria Marques Cintra
D. D. Presidente da Comissão Geral de Pós-Graduação da PUC/SP

Solicitamos a dispensa, em caráter de excepcionalidade, do prazo mínimo de noventa


(90) dias, após a Qualificação, para entrega da Dissertação do mestrando Luís Manuel Malta de
Alves Louceiro, matriculado sob o n° 6100625, conforme previsto no Regimento do Setor da
Pós-Graduação.
O referido aluno realizou o Exame de Qualificação no último dia 10 e por decisão da
banca examinadora, cópia da Ata anexa, foi sugerido ao orientador a passagem direta para o
doutorado, devido a originalidade, excelência e complexidade do trabalho.
No entanto, como é de conhecimento deste programa, entre as exigências para a
abertura do processo para o doutorado direto, faz-se necessário a publicação de trabalhos em
veículos de divulgação intelectual de excelência nacional, sendo que, por se encontrar ainda, no
mestrado e em fase de conclusão de sua Dissertação, o aluno não atende à tal exigência.
Diante do exposto, reiteramos o pedido de dispensa do período de noventa (90) dias
para que o aluno possa entregar o trabalho, a fim de defender o mais rápido possível, pois o
trabalho já se encontra finalizado, e participar do processo seletivo para o 1° semestre de 2008.

Atenciosamente,

Prof. Dr. Edelcio Gonçalves de Souza


Coordenador do PEPG em Filosofia – (Nome da Instituição)

263
O Ofício utilizado para exame foi retirado de um arquivo de documentos elaborados pelo Programa de Estudos
Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e serve como “espelho” das
relações e da estrutura organizacional da pós-graduação da universidade em questão, pois se trata de um documento a
uma instância superior, Presidência da Comissão Geral de Pós-Graduação, que delibera assuntos da pós-graduação
formada por uma presidência e vice-presidência e por demais membros.
O assunto refere-se a uma dispensa do prazo mínimo entre a qualificação e o depósito da dissertação que um
órgão subordinado a outro solicita em caráter de excepcionalidade, por não se encontrar previsto no Regimento do Setor da
Pós-Graduação. Diante disso, contatamos que o Regimento é um documento oficial da instituição em questão e que tem
por objetivo reger, ordenar e padronizar a pós-graduação, sendo que todos os programas, discentes e docentes encontram-
se subordinados a esse documento.
É possível constatar, também, que apenas um órgão superior, no caso, a Presidência da Comissão Geral da Pós-
Graduação tem o poder de deliberar sobre assuntos que não se encontram previstos no Regimento, o que demonstra a sua
superioridade na hierarquia da Pós-Graduação da PUC/SP.

2.1 O Ofício e sua estrutura composicional

Em termos de estrutura composicional, o Ofício é identificado pela sua forma padronizada, embora se destaque
que esse “modelo” é muitas vezes modificado, dependendo da instituição, como podemos constatar pelo documento
destacado para análise e a estrutura apresentada pelo Manual de Modelos de Cartas Comerciais composto por Manuela M.
Rodrigues que se apresenta da seguinte forma:

264
Timbre ou cabeçalho: (dizeres impressos na folha/ símbolo)
Índice e Número: iniciais do órgão expedidor seguidas de número de
ordem do documento
Exemplo: OF. M-00
Local e data: à direita, na mesma altura do índice e do número.
Exemplo: OF. M-0 São Paulo, 5 de janeiro de 2000
Ementa ou assunto: só se justifica se o assunto for muito longo.
Vocativo: Tratamento ou ardo do destinatário
Exemplo: Senhor Diretor – Senhor Deputado
Texto: se o texto for longo, parágrafos serão numerados a partir do
segundo, não se numerando o fecho. Se houver mudança de folha, o
endereçamento é colocado na primeira folha. A segunda folha será
iniciada com a repetição do índice e número, acrescentando-se à direita
o número de folha.
Exemplo: OF. ME /5211-00
Fecho: A IN-04/92 estabelece dois fechos:
a. Respeitosamente: para autoridades superiores, inclusive o
Presidente da República.
b. Atenciosamente: para autoridades da mesma hierarquia ou de
hierarquia inferior.
Assinatura: coloca-se o nome do signatário, cargo e função.
Exemplo: JOSÉ CARLOS ANTUNES
Chefe-de-Gabinete.
Endereço: fórmula de tratamento, nome civil do destinatário, cargo ou
função seguidos da localidade e destino.

É possível perceber as diferenças estruturais entre os dois modelos, pois, apesar de se tratar de um documento
oficial, não pertence a um órgão de administração pública. Além disso, o corpo do texto contém algumas modificações,
mostrando que a construção composicional não é fechada, ou seja, apenas regula, apesar de tratar-se de um esquema
bastante uniformizado.
Constatamos que o Ofício analisado mantém aspectos como timbre, data, numeração, vocativo, texto, fechamento
e assinatura conforme o padrão proposto pelo Manual, divergindo apenas no que tange a localização dos tópicos. Essas
divergências ocorrem porque a estrutura composicional não pode ser estanque, já que, apesar de serem formas textuais
padronizadas e típicas, os gêneros são usados pelo ser humano em atividades de interação, sendo fenômenos histórico-

265
sociais que se renovam e se adaptam a novos contextos, por isso estão sempre suscetíveis a mudanças e re-
contextualizações em diferentes instituições, momentos e culturas.
Cabe ressaltar que os gêneros institucionais têm estruturas bastante tipificadas e padronizadas, pois, como
Bazerman observa, são os responsáveis pela organização das atividades dentro da esfera de atividade humana em que
atuam refletindo suas características, portanto, são documentos que circulam numa determinada organização e precisam
manter o caráter padrão da instituição que representam.

2.2 O Ofício e seu conteúdo temático

O Ofício é uma produção histórica que se encontra profundamente vinculada às instituições públicas por se tratar
de um documento oficial, criado especificadamente para a comunicação de assuntos entre os membros dos órgãos de
administração pública, podendo também ser enviado a destinatários particulares. Outra especificidade do Ofício que o difere
da Carta é o seu caráter público, sendo apenas expedido por órgãos públicos. Trata-se, portanto, de um documento com
características bem definidas, já que não podem ser expedidos por qualquer indivíduo e nem em qualquer esfera.
Rodrigues (2005), em seu artigo sobre a perspectiva dialógica dos gêneros discursivos em Bakhtin, declara que os
“gêneros, com seus propósitos discursivos, não são indiferentes às características da sua esfera, ou melhor, eles as
“mostram”. Todo gênero tem um conteúdo temático determinado: seu objeto discursivo e finalidade discursiva, sua
orientação de sentido específica para com ele e os outros participantes da interação” (Rodrigues, 2005, p.152)
Partindo dessa afirmação observamos que o gênero Ofício tem um propósito comunicativo bem definido, pois sua
finalidade evidencia-se na sua própria denominação “Ofício”, ou seja, trata-se de um documento oficial que tem como
orientação comunicar assuntos oficiais e institucionais aos participantes de uma determinada organização.
É importante notar que o conteúdo temático de um gênero está intrinsecamente ligado à sua esfera de atividade
humana, pois será responsável por definir o seu objeto discursivo e os seus propósitos discursivos. Portanto, no
caso do gênero Ofício, a esfera institucional e a organização em que se encontra vinculada, são os responsáveis em
determinar suas finalidades comunicativas, ou seja, o seu conteúdo temático.
Isso é constatado pelo modelo levantado para análise, pois o conteúdo temático é evidente, uma vez que se
aborda assuntos referentes à instituição que representa, como no caso a pós-graduação de uma universidade, e suas
relações organizacionais, como no caso a hierarquia da pós-graduação.

2.3 Ofício e seu estilo

Para análise do estilo do gênero é importante destacar a afirmação de Brait (2002) sobre as propostas de Bakhtin:
“para o estudo da dimensão estilística, nada tem a ver, por um lado, com desvio, ou unicamente com as especificidades da
obra literária, na medida em que estilo é pensado em toda e qualquer forma de comunicação” e por “outro, nada tem a ver
com autor biográfico, com aspectos psicológicos ou psicologizantes, mas com um enfoque específico sobre o discurso, os
textos, as formas lingüísticas, enunciativas, discursivas que, reiteradas, modificadas, retomadas, apontam para o estilo
genérico (aspectos que podem caracterizar um determinado conjunto de textos que formam um gênero), ou estilo da época,
ou ainda, para o enunciador, “efeito desse conjunto”, “efeito de sujeito”, e que Foucault denomina “função autor”” (Brait,
2002, 137).

266
Essa afirmação é de grande ajuda para destacar aspectos importantes das características estilísticas contidas em
um gênero institucional, pois é na relação interação/gênero/estilo que podemos perceber seu contexto histórico, situacional,
a esfera da atividade humana que se encontra engendrado e como as relações sociais acontecem dentro dessa esfera.
Na análise do estilo do gênero Ofício destacado, constatamos que o autor mantém uma linguagem de objetividade
e de distanciamento, a fim de dar um aspecto mais formal ao texto, o que demonstra como as relações administrativas e
hierárquicas se realizam dentro da universidade, precisamente dentro da pós-graduação.
Para um exame do estilo do gênero em questão, separamos alguns aspectos lingüísticos que evidenciam como o
estilo do Ofício é padronizado e uniformizado, mantendo um caráter formal e objetivo, típico das relações institucionais.
Primeiramente, destacamos os verbos em 1ª pessoa que demonstram uma supressão do locutor para dar lugar à
linguagem institucional, pois fala em nome da organização, no caso específico como coordenador e representante do
colegiado do programa de pós-graduação:

“Solicitamos a dispensa, em caráter de excepcionalidade (...)”

“(...) reiteramos o pedido de dispensa do período de noventa (90) dias para que o aluno possa entregar o trabalho (...)”

Em seguida, levantamos termos particularmente formais que são usados com a finalidade de esconder as idéias e
suposições do autor, a fim de dar credibilidade e imparcialidade ao texto, já que ele fala em nome da instituição que
representa e para isso, utiliza-se de estratégias lingüísticas como a objetividade e a formalidade, como pode ser constatado
nos termos inicializadores de parágrafos:

“O referido aluno realizou o Exame de Qualificação no (...)”

“No entanto, como é de conhecimento deste programa,(...)”

“Diante do exposto, reiteramos o pedido de dispensa (...)”

Ainda na análise do estilo percebemos a questão histórica vinculada à linguagem, pois é por meio das escolhas
lexicais que constatamos o momento histórico em que o texto foi produzido.
É por isso que, como Bakhtin destaca, o estilo está intrinsecamente ligado a aspectos históricos, pois ele reflete a
linguagem e, conseqüentemente, as relações de uma determinada esfera de atividade humana em uma determinada época.

3. Considerações Finais

Como vimos neste artigo, não se pode conceber os gêneros textuais fora de uma perspectiva dialógica e
interacional, pois eles só fazem sentido dentro das esferas de atividade humana, uma vez que apenas inseridos em seus
campos de atuação é possível perceber suas características, seus propósitos comunicacionais e suas condições
particulares de produção e atuação.

267
Fora dessa concepção, é impossível compreender os gêneros como tipos de enunciados relativamente estáveis e
toda a contribuição dos estudos bakhitinianos para a concepção de gêneros como fenômenos sociais que espelham a
sociedade em que se encontram inseridos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. 2003 (p. 261-306)

BAZERMAN, C. Os Gêneros textuais, tipificação e interação. DIONÍSIO, Ângela P.; HOFFNAGEL, Judith C. (orgs.). São
Paulo: Cortez, 2005. (p. 19-46)

BRAIT, B. Interação na fala e na escrita. PRETI, Dino (org.). São Paulo: Humanitas FFLCH/USP, 2002. (p. 125-155)

GUMPERZ, John J. Sociolinguistica interacional. In: RIBEIRO, Branca Telles; GARCEZ, Pedro M. (orgs.). São Paulo:
Edições Loyola, 2002 (p. 149-182).

HANKS, William F. Língua como prática social das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin.
BENTES, Anna Christina; REZENDE, Renato C.; MACHADO, Marco Antonio R. (orgs.). São Paulo: Cortez, 2008. (p. 169-
201)

RODRIGUES, Rosângela Hammes. Gêneros, teorias, métodos, debates. MEURER, J. L.; BONINI, Adair; MOTTA-ROTH,
Désirée (orgs.). São Paulo: Parábola, 2005. (p. 152-183)

CURRÍCULO DA AUTORA

Possui graduação em Letras pela Universidade Cruzeiro do Sul (2008). Atualmente é mestranda em Língua
Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com previsão para defesa em 2011. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Portuguesa e atua como secretária do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Filosofia da PUC/SP.

E-mail: meiall@hotmail.com

268
A seleção lexical e outras semioses para a construção
identitária em anúncios publicitários

ARRUDA, Luciana Martins


(UFMG)
LAZARINI, Dalcylene Dutra
(UFMG)

1. Introdução

Este artigo tem como meta investigar o modo como a seleção lexical pode contribuir para a construção da
identidade feminina em anúncios publicitários. Para isso, serão analisados dois anúncios exibidos na revista Claudia1, o
primeiro deles apresenta a marca de um produto de higiene bucal (“Cepacol Teen”) e o segundo a marca de um azeite de
oliva (“Andorinha”).
Ao falarmos, utilizamos inúmeras estratégias argumentativas para tentar convencer o nosso interlocutor a
subscrever o ponto de vista que defendemos. O mesmo acontece com o discurso publicitário que se utiliza da
argumentação como uma prática bastante eficaz para manipular o público-alvo a adquirir o produto anunciado. Neste
sentido, a escolha do suporte (jornal, revista, televisão), no qual o anúncio será veiculado, é um dos aspectos fundamentais
para o sucesso de uma campanha publicitária.
Com o objetivo de convencer consciente ou inconscientemente o consumidor, a estrutura do discurso publicitário
sustenta uma argumentação baseada no icônico-linguístico, tentando estabelecer um diálogo assimétrico entre produto e
público-alvo, já que aquele pressupõe os anseios e desejos deste. Isto é, todo produto anunciado pressupõe um
consumidor que deseja adquiri-lo, seja por necessidade, seja por uma questão de “modismo” – como é o caso dos inúmeros
aparelhos de telefonia e de informática, lançados constantemente pelas empresas. A respeito desta discussão, Lysardo-
Dias e Gomes (2005) expõem que:

Verifica-se a construção de uma dupla armadilha: uma troca de solidariedade comercial entre publicitário
e anunciante, na qual, este lida com as necessidades econômicas da empresa (lucros, aceitação do
produto, venda) e o primeiro, com as necessidades básicas e íntimas do consumidor. Assim, se o
consumidor comprar o produto, ele estará construindo a identidade de um parceiro aliado e cúmplice do
espaço contratual do mercado de bens de consumo. Vale ressaltar que a instância receptora se torna ao
mesmo tempo cúmplice e refém da instância de produção. Refém, no sentido de que é induzida ao jogo
do consumo, por meio de sentimentos de identificação e atribuições de desejos para se apropriar do
produto, ou seja, o receptor torna-se refém dos seus próprios desejos e falhas (p. 122).

Segundo Carvalho (2002), para favorecer a inteligibilidade da proposição publicitária, o código verbal deve
desempenhar junto com a imagem um papel informativo. “É no aspecto linguístico que se concretiza o sentido da
potencialidade libertária da imagem, uma vez que cabe ao texto escrito transformar o exotismo ou a poesia da imagem em
apelo à compra.” (p. 15). Assim, percebemos que a fusão entre os elementos linguísticos e visuais tornam o anúncio mais
inteligível e, consequentemente, mais atrativo para o consumidor, principalmente quando se trata do público feminino.

1 A revista Claudia é direcionada ao público feminino em geral. Os assuntos abordados são: moda, culinária, comportamento entre outros.

269
Para a autora, a publicidade é organizada de modo peculiar, uma vez que difere bastante de outros gêneros
textuais, estrutura-se a partir de recursos fonéticos, léxico-semânticos e morfossintáticos, além de poder abarcar uma gama
diferenciada de gêneros visando um mesmo objetivo: o consumo. Desse modo, o gênero textual anúncio publicitário pode
ser permeado ou mesclado por outros gêneros (LAZARINI, 2009), como no caso de uma receita médica exibida na forma de
uma propaganda anunciando um alimento mais saudável. A esta mesclagem ou intergenericidade, Marcuschi (2002)
denominou de “intertextualidade inter-gêneros”.
Ao analisar os dois anúncios publicitários, partiremos do princípio de que a construção do sentido na publicidade
está relacionada com quem a produz e com quem a lê. Por isso, durante esta análise, é imprescindível: considerar o seu
suporte, a linguagem argumentativa e o grau de criatividade de quem a concebeu, identificar a que público se destina e
relacionar o slogan com a ilustração. Também a intertextualidade e a interdiscursividade devem ser consideradas na
construção da significação, porque um texto só se constrói a partir de outros textos, numa dada situação comunicativa.
Feitas essas considerações, na próxima seção, apresentaremos algumas concepções teóricas a respeito do
conceito de identidade.

2. A construção de identidades

O indivíduo é um ser social que se utiliza da linguagem para interagir, categorizar e identificar tudo o que está a
sua volta. Desde cedo, aprendemos a classificar e a dividir nossos brinquedos, por exemplo, pela cor e tamanho
diferenciados. O mesmo ocorre com as pessoas, pois elas podem ser categorizadas pelo sexo (homens e mulheres), pela
faixa etária (crianças, adolescentes, adultas e idosas) e assim por diante. Além disso, também aprendemos a distinguir e a
identificar a imagem do pai e da mãe. Mais tarde, aprendemos que a nossa mãe é uma mulher e que ela possui outras
identidades: é casada (categoria estado civil), é professora (categoria profissional) e é uma consumidora (categoria
econômica).
Partindo desse princípio, entendemos que a identidade “não é uma qualidade inerente de uma pessoa, (...) ela
nasce na interação com os outros” (MOITA LOPES, 2002, p. 94). Isto porque as pessoas, por exemplo, não nascem com
uma identidade profissional definida, ela é construída conforme os processos interacionais experienciados. De acordo com
Gondar (2002), não há uma identidade pronta e acabada, estabelecida a priori. As identidades são construídas e sofrem
processos constantes de construção e de reconstrução. Esta construção se efetua através da linguagem e das diversas
situações interacionais, como no Procon onde uma mulher, casada, mãe e professora pode assumir a identidade
institucional de reclamante – termo usado para o(a) consumidor(a) (cf. ARRUDA, 2008a, 2008b, 2009). Sendo assim,
conceituar o que significa possuir ou construir uma determinada identidade é uma tarefa bastante árdua e complexa para
qualquer pesquisador.
No Dicionário de Análise do Discurso, o termo “identidade” é apresentado da seguinte maneira:

a identidade do sujeito do discurso se constrói de duas maneiras diferentes, em dois domínios que são ao
mesmo tempo distintos e complementares, ambos construindo-se em articulação com o ato de
enunciação: uma identidade dita “pessoal”, uma identidade dita de “posicionamento”. A identidade
pessoal não é somente psicológica ou sociológica; ela é dupla. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU,
2008, p. 266)

270
Nesse sentido, a identidade pessoal é dupla porque pode ser distinguida em: uma identidade psicossocial e uma
identidade discursiva. A identidade psicossocial, dita “externa”, a do sujeito comunicante, pode ser entendida como um
conjunto de traços que definem uma pessoa segundo sua idade, seu sexo, seu estatuto, seu lugar hierárquico, sua
legitimidade para falar, suas qualidades afetivas, de acordo com o ato de linguagem. Já a identidade discursiva, dita
“interna”, a do sujeito enunciador, pode ser descrita com a ajuda de categorias locutivas, de modos de tomada de palavra,
de papéis enunciativos e de modos de intervenção. Desse modo, as estratégias discursivas resultam da articulação entre os
traços de identidade externos e internos.
A identidade de posicionamento caracteriza a posição ocupada pelo sujeito em um campo discursivo em relação
aos sistemas de valor que aí circulam. Estes valores não são absolutos, mas estão em função dos discursos produzidos
pelo próprio sujeito. (cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008)
Cabe destacar que, tanto no caso da identidade pessoal quanto na de posicionamento, as identidades resultam,
simultaneamente, (i) das condições de produção inscritas na situação de comunicação e/ou no pré-construído discursivo; e
(ii) das estratégias que o enunciador põe em funcionamento de maneira mais ou menos consciente. A associação desses
fatores também resultará numa coerção discursiva do enunciador sobre o enunciatário.
As mensagens publicitárias, presentes nos anúncios, geralmente adotam uma linguagem retórica, ou seja, um tipo
de discurso voltado para examinar, descrever, perceber e avaliar atos e eventos que venham a influenciar percepções,
sentimentos, atitudes e ações, com palavras empregadas de forma diferente do uso comum e literal (CARVALHO, 2002).
Por meio desta linguagem, os anunciantes (enunciadores) tentam persuadir e influenciar os possíveis consumidores, os
leitores dos anúncios (enunciatários), a adquirir o que está sendo anunciado. Então, percebemos que:

A comunicação publicitária caracteriza-se por uma situação comunicativa que constitui um espaço de
troca de interesses sócio-econômicos. Este espaço se estabelece de um lado, pela empresa
comercial/anunciante e agência publicitária (instância de produção), de outro lado, pelo consumidor ideal
e o consumidor potencial do produto (instância de recepção).
A instância de produção da publicidade tem como figura principal a agência publicitária que possui o
espaço de restrições para transmitir as informações necessárias sobre o produto que está sendo
divulgado. (LYSARDO-DIAS & GOMES, 2005, p. 121)

O nome e a credibilidade de uma marca também contribuem significativamente para esse processo de persuasão
e de construção das identidades. Na concepção de Maingueneau (2008),

O nome de uma marca, como qualquer nome próprio, está associado a um conjunto variável de
representações sedimentadas ao longo do tempo, uma “imagem de marca”, sobre a qual a empresa deve
agir constantemente. A evolução dessa imagem se deve em boa parte aos discursos que a empresa
emite e emitiu sobre ela mesma e sobre seus produtos, em particular pela publicidade. Por mais que uma
marca se coloque como uma identidade2 que transcende os enunciados que ela produz, ela é, na
realidade, modificada por esses enunciados: tais enunciados podem reforçar ou, ao contrário, modificar
essa imagem. De um enunciado a outro, ela se esforça por tecer um discurso que lhe seja próprio por
intermédio das histórias que ela conta. A marca encarna, assim, sua identidade por intermédio dos
discursos que ela produz, e a esse respeito o processo de incorporação desempenha um papel
importante, pois ele é mediador entre o princípio abstrato representado pela marca e os conteúdos que
ela pretende veicular (p. 212-213).

Nos dois anúncios publicitários, a marca dos produtos anunciados já possui uma história e uma credibilidade
perante os consumidores brasileiros. E, apesar destes produtos serem anunciados na mesma revista e de terem o público
feminino como alvo de consumo, as identidades projetadas não são as mesmas porque as categorias variam: o primeiro
produto é destinado às adolescentes e o segundo às mulheres adultas ou com uma idade mais avançada.

2 Grifos do autor.

271
Portanto, as identidades construídas, bem como as categorias evocadas serão estudadas a partir das imagens
escolhidas para se anunciar os produtos juntamente com a investigação do léxico selecionado pelos publicitários.

3. A ancoragem entre léxico e imagem

Segundo Barthes (1964, apud VESTERGAARD e SCHRODER, 2004, p. 48), chama-se de ancoragem quando “o
texto proporciona o elo entre a imagem e a situação espacial e temporal que os meios puramente visuais de expressão não
permitem estabelecer”. Com o ditado popular de que “uma boa imagem vale mais do que mil palavras”, os anúncios
publicitários investem nas imagens para despertar o interesse pelo produto anunciado.
Mesmo que ainda não existam estudos elaborados relacionados aos textos de comunicação de massa que
amalgamam código verbal e visual, faz-se possível analisar, conforme estudo desenvolvido por Gonzales (2003, p. 19-21), o
foco, a luz e as cores.
A autora enfatiza o fato de a leitura de imagens ser feita de um modo global, não sendo possível seguir uma
sequência de começo, meio e fim e corrobora com Vestergaard e Schroder (2004), ao afirmar que lemos uma ilustração a
partir do canto superior esquerdo até o canto inferior direito, isto é, a leitura é feita na diagonal3. A luz e o foco servem para
guiar esse tipo de leitura até o nome do produto, que geralmente se localiza no canto inferior direito da página. Já a escolha
das cores é um elemento fundamental para a construção de um anúncio, “pois elas devem ser utilizadas de acordo com as
reações psicológicas que se quer provocar nos leitores/consumidores” (GONZALES, 2003, p. 20). Conforme afirmação:

Desde as épocas mais remotas, o homem sempre correlacionou, instintivamente, sentimentos humanos
com cores. Os significados psicológicos dados às cores não têm variado com o decorrer dos tempos.
Esse efeito psicológico influi na escolha do indivíduo, para que ele goste ou não de algo, para negar ou
afirmar, para se abster ou agir. (op. cit)

Para se analisar o significado de uma cor, deve-se considerar o contexto em que foi empregada, ou seja, verificar
as relações existentes entre o código verbal e o não-verbal, já que dependendo do contexto, uma mesma cor pode adquirir
uma outra significação.
Passemos a analisar além da imagem, a seleção do léxico para a construção de um anúncio publicitário,
reforçando que tanto imagem quanto léxico são responsáveis pela construção identitária.
A seleção lexical é a estratégia discursiva mais básica do intradiscurso e constitui-se num elemento semântico de
análise (FARIA, 2009). Ela consiste na escolha do vocabulário, na sua disposição textual e no emprego de determinadas
figuras de linguagem (ex. metáforas, ironias, metonímias). Além das figuras de linguagem, também fazem parte da seleção
lexical o uso de substantivos, de adjetivos, de vocativos, de verbos etc. É a partir dela que são desencadeados outros
elementos linguísticos como os temas e os personagens, a localização espacial e temporal; a relação entre os elementos
explícitos e implícitos.
Para compreendermos a importância da seleção lexical na construção da identidade feminina, optamos por
analisar, primeiro, o anúncio publicado em 2008 e, depois, o de 2007. Esta inversão temporal foi motivada pelas categorias
e identidades projetadas pelos anunciantes e/ou enunciadores destes anúncios.

3 "A diagonal canto esquerdo superior - canto esquerdo inferior não constitui um princípio universal da disposição do layout publicitário,

nos aparece no enorme número de anúncios em que o nome do produto, muitas vezes acompanhado de uma foto que o exibe, surge no
canto inferior direito da peça." (VESTERGAARD e SCHRODER, 2004, p. 68)

272
ANÚNCIO 1: “Cepacol Teen”

Figura 1. Revista Claudia, out./2008

Ao visualizarmos esse anúncio observamos uma variedade de elementos icônico-linguísticos, como a


predominância das cores rosa e branco (presentes no fundo da página, nas palavras utilizadas para divulgar o produto
anunciado e na embalagem deste), a imagem de uma adolescente na página e no frasco, a linguagem utilizada. Estes
elementos fazem o leitor (o enunciatário do discurso publicitário) perceber, inicialmente, que se trata de um produto
destinado ao público feminino.
Para anunciar o enxaguante bucal, “Cepacol Teen”, os enunciadores (empresa e agência de publicidade)
selecionaram os seguintes elementos linguísticos:
a) substantivos  “blusa de oncinha”, “sapato de oncinha”, “bolsa de oncinha” e “bafo de oncinha”. As palavras “blusa,
sapato e bolsa” são peças que fazem parte do vestuário feminino. Já a expressão “bafo de oncinha” e o adjetivo “de
oncinha” foram empregados no sentido figurado e metonímico;

b) expressão popular  a expressão “bafo de onça” ou “bafo de oncinha” significa mau hálito;

273
c) metonímia  a estampa da blusa, do sapato e da bolsa “de oncinha” representa uma relação de contiguidade entre a
parte “as cores da pelagem da onça” e o todo “o animal” que vive no Brasil;

d) diminutivo  o sufixo “-inha”, em “oncinha”, é utilizado predominantemente pelo público feminino;

e) gíria  as expressões “tudo bem”, “arrasou”, “demais” e “nem pensar” representam o modo coloquial de falar e neste
caso direciona-se a maneira de falar dos grupos adolescentes.

Com base nessa análise podemos dizer que: o público-alvo desse anúncio são as mulheres pré-adolescentes ou
as adolescentes em geral. Essa informação não aparece explícita no texto, mas ela pode ser inferida a partir dos elementos
icônico-linguísticos explicitados. Além disso, fica subentendido (DUCROT, 1987) que, se elas comprarem e usarem o
produto, não sofrerão mais com o mau hálito – o “bafo de oncinha”.

ANÚNCIO 2: Azeite de oliva “Andorinha”

Figura 2. Revista Claudia, out./2007

274
Contrapondo-se à análise anterior, os elementos icônico-linguísticos desse anúncio projetam a identidade de uma
mulher moderna e mais velha (conforme mostra a imagem fotográfica); categorizada como casada (com Antônio), mãe (três
filhos lindos), avó (cinco netos) e esportista (salta de pára-quedas). Esta identidade é construída pela personagem principal
do anúncio, ao narrar para o leitor a sua história de vida. Os fatos que aconteceram na vida dela são narrados seguindo
uma ordem cronológica temporal, como mostram as informações abaixo:

a) 10 anos de idade – invenção do anticoncepcional e explosão do biquíni em todas as praias;

b) metade dos anos 70 – a personagem vai morar sozinha;

c) 26 anos – o tempo de casamento dela com Antônio.

A narrativa é estruturada em primeira pessoa (Eu) obedecendo à sequência fato-comentário. Aqui, temos o caso
de um anúncio publicitário que passou por intergenericidade, ou seja, um texto narrativo ou relato pessoal sendo usado para
anunciar um produto. Nesta narrativa, foram identificados os seguintes elementos lexicais:

a) substantivo no diminutivo  “pilulazinha”, utilizado para fazer referência ao tamanho do comprimido. O sufixo “-inha”
também pode ser entendido como uma linguagem utilizada pelo sexo feminino;

b) linguagem informal e marcas de oralidade  as palavras “duro mesmo”, “pro”, “casório” e “Fui!” podem ter sido utilizadas
para buscar uma aproximação maior entre o texto veiculado e o público leitor deste anúncio. Implicitamente, também pode
representar a identidade de uma mulher moderna;

c) metáfora  a expressão “biquíni explodindo” pode ser entendida, implicitamente, como símbolo de “liberdade”,
“modernidade” e “conservadorismo”;

d) verbos  “tinha”, “inventaram”, “entendia”, “podia”, “usava”, “foi”, “olhava”, “olhamos” e “acabou”, empregados para
narrar fatos acontecidos no passado (localização temporal)..

Nesse anúncio, ainda ocorre uma analogia no encerramento ou desfecho da narrativa. Quando a personagem diz:
“Fui!”, entendemos, implicitamente, que ela saltou de pára-quedas e visualizamos a imagem do voo da andorinha imitando o
movimento do salto desta personagem. A cor do animal, assim como as cores predominantes no anúncio, é a mesma da
embalagem do produto, verde.
Quando lemos o slogan do anúncio: “Andorinha. Mudar é maravilhoso”, ainda podemos estabelecer outra relação
analógica, a das mudanças ocorridas na vida e na imagem facial da narradora com as mudanças propostas pelo anúncio
que são: as conquistas femininas no decorrer do tempo, tais como morar sozinha, liberdade sexual com o uso de
anticoncepcional, entre outras.
A fim de encerrar essa análise, elaboramos um quadro sintetizando os pontos principais.

4. Síntese da discussão

Há vários pontos comuns nos dois anúncios, principalmente no que concerne à seleção lexical, porém mais que
isso a construção da identidade feminina se faz por via icônico-visual. São as imagens, mais do que o texto escrito, que
estabelecem uma diferença etária de público-alvo. Para as adolescentes, escolhem-se cores vibrantes, desenhos
infantilizados, letras gordas e motivos humorísticos, ao passo que os dados visuais do anúncio 2 são mais sóbrios.

275
O quadro abaixo apresenta uma síntese dos elementos linguístico-icônicos, das identidades e das categorias
investigadas nos dois anúncios publicitários.

ANÚNCIO 1 ANÚNCIO 2
Produto anunciado Cepacol Teen Azeite Andorinha
(enxaguante bucal) (azeite de oliva)
Empresa anunciante ou Sanofi Aventis Companhia Portuguesa de
enunciador Azeites S.A.
Suporte ou veiculo de Revista Claudia Revista Claudia
informação
Época da publicação Outubro de 2008 Outubro de 2007
Público-alvo Feminino Feminino
(leitoras da revista) (leitoras da revista)
Identidade construída Mulher pré-adolescente ou Mulher moderna e “mais
adolescente velha” (senhora)
Categoria idade 10 a 20 anos Acima dos 50 anos
Categorias sociais Solteira Casada, mãe, avó e
esportista
Mesclagem ou Não Sim
intergenericidade?
(discurso narrativo ou relato
de vida)
Linguagem Informal Informal
Seleção lexical Substantivos, expressão Substantivos no diminutivo,
popular, metonímia, linguagem informal, marcas
diminutivo e gírias de oralidade e metáfora
Tipo de letra Forma/ letra cheia Cursiva/ manuscrita

Cor predominante Rosa Verde claro

Foram analisados dois anúncios contendo elementos icônico-linguísticos diferentes, usados para construir
identidades distintas. O primeiro deles apresentou um enxaguante bucal, denominado “Cepacol Teen”, destinado às
adolescentes ou pré-adolescentes, cuja idade variava de 10 a 20 anos, aproximadamente. O segundo exibiu a marca de um
azeite de oliva, denominado “Andorinha”, destinado às mulheres “mais velhas” ou “donas-de-casa”, mostrando uma
personagem com idade acima dos 50 anos. Esta mesma personagem relata alguns fatos, vividos no passado, com a
finalidade de convencer as possíveis consumidoras a trocar ou mudar seus hábitos de consumo, experimentando o azeite
“Andorinha”, pois conforme veicula a mensagem publicitária: “Mudar é maravilhoso”.
Concordamos com a posição adotada por Carvalho (2002) de que todo enunciado tende a intervir
persuasivamente no destinatário, com o propósito de modificar suas crenças, suas atitudes e até sua identidade. Os
enunciados que compõem a mensagem publicitária potencializam essa tendência, e para isso contam com os recursos
cotidianos da língua, acrescidos daqueles que decorrem não só da preocupação estética com a saúde bucal como também

276
com a saúde mental e física para saltar de pára-quedas. Desse modo, o casamento arte/persuasão torna-se duradouro e
convincente.

5. Considerações parciais

Embora a seleção lexical seja importante para a construção da identidade feminina em anúncios publicitários
brasileiros, não é somente por meio deste recurso que se consegue o efeito de sentido desejado. A identidade etária do
público-alvo – feminino – visado no anúncio é construída sobretudo visualmente: são as cores, o arranjo gráfico, os
desenhos, as fotografias, o tipo de fonte, etc. que transmitem a diferença adolescência/maturidade. Durante a investigação
dos textos, inseridos nos anúncios, constatamos que os enunciadores (agências de publicidade e empresários) lançaram
mão de inúmeras estratégias linguísticas para tentar convencer e/ou persuadir os seus enunciatários (as leitoras da revista)
a adquirir e a consumir os produtos anunciados.

Referências

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conflito: recursos linguísticos e práticas comunicativas. SILVEIRA, S. B. e MAGALHÃES, T. G. (Orgs.). São Carlos: Editora
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_____ A relevância dos papéis para a negociação de identidades em discursos institucionais. Duc in Altum. v. 9. Muriaé,
2009, p. 177-180.

CARVALHO, N. de. Os recursos estilísticos. In: CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a arte da sedução. 3 ed. São Paulo:
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Linguagem, identidade e memória social: novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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(Orgs.). Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p.19-36.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidades fragmentadas. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2002.

VESTERGAARD, T.; SCHRODER, K. A linguagem da propaganda. Trad. João Alves dos Santos. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.

Luciana Martins Arruda – lulucaarruda@ig.com.br – é professora bolsista (CAPES/Reuni) de EAD da UFMG e leciona no
CIPMOI (Curso Intensivo de Preparação de Mão-de-obra Industrial) da Faculdade de Engenharia da UFMG. Desde 2009, é
doutoranda em Estudos Linguísticos – Análise do Discurso nessa mesma instituição. Atualmente, se dedica aos estudos
que focalizam a relação entre linguagem e trabalho.

Dalcylene Dutra Lazarini – dalcylenedl@ig.com.br – é professora do curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras “Santa Marcelina” em Muriaé (MG) e leciona também para o ensino fundamental e médio como professora efetiva do
município de Juiz de Fora. Em 2009, ingressou no doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).

278
Imagens discursivas de Lula: um presidente em
enunciação

AVALLE, Augusta
(CEFET-RJ-Und Nova Iguaçu)

1. Introdução
Este trabalho mostra parte dos resultados de análise obtidos pela dissertação de mestrado em Lingüística
defendida em 2009, entitulada O pedinte, o experiente e o grandiloquente: ethé discursivos de presidentes da América do
Sul. Nela, apresento as imagens discursivas encontradas no pronunciamento de posse da reeleição do presidente Lula em
2007 e também dos presidentes boliviano Evo Morales e venezuelano Hugo Chávez. Parte-se de um problema maior, o de
compreensão do panorama político atual, tendo em vista a figura de um presidente popular, para nossa questão de
investigação: em manifestação do discurso político, no gênero pronunciamento de posse, qual é a construção discursiva de
ethé presidenciais perpassados de vozes de um Eu e de Outros?
Este artigo está circunscrito às imagens discursivas do presidente brasileiro.
2. Ethos no discurso político
Maingueneau (2005, p.69) destaca a tradição retórica da noção de ethos, mas desenvolve uma própria para o
quadro conceitual da análise do discurso. Nesse sentido, elabora uma concepção do termo que amplia o de estratégia de
persuasão por argumentos e, portanto, restrita a textos do tipo argumentativo, e reformula o ethos como “processo mais
geral da adesão de sujeitos a uma certa posição discursiva”.
O autor constrói esse raciocínio partindo do pressuposto de que existam textos de certos tipos de discurso, como
o político, por exemplo, no qual o objetivo não é “uma adesão imediata” embora devam “conquistar o público que tem o
direito de ignorá-los ou de recusá-los” (MAINGUENEAU, 2005, p.70).
A esse propósito de captar a atenção dos interlocutores, Maingueneau (2008, p.14) esclarece que o “o ethos não
age no primeiro plano, mas de maneira lateral; ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do
destinatário”. Ou seja, muitas vezes o ethos visado pode não coincidir com o ethos produzido, uma vez que depende das
disposições dos interlocutores, de sua reflexão sobre a enunciação. E ressalta-se que os efeitos produzidos nos
interlocutores não são impostos pelos sujeitos da enunciação, como senhor de seu dizer, mas pela formação discursiva
(MAINGUENEAU, 1997, p.45)
Esse autor entrelaça a noção de ethos com a de “cena de enunciação” e propõe a divisão em três categorias
hierárquicas, a “cena englobante”, a “cena genérica” e a “cenografia”. A primeira corresponde ao estatuto do discurso
(filosófico, literário, religioso etc). A segunda ao gênero, a pressuposição de um contrato; e a terceira diz respeito à
encenação criada pelo próprio texto e imposta pelo gênero.
Levando-se em consideração a proposta desta pesquisa de tratar os discursos políticos (a cena englobante) do
tipo pronunciamento de posse como gêneros do discurso (a cena genérica), essa divisão demonstra que o ethos está
relacionado a uma “organização de restrições que regulam uma atividade específica” (MAINGUENEAU, 1997, p.50) e, por
isso, a eficácia de um discurso, como no nosso caso, os pronunciamentos de posse, depende de uma mescla essencial
entre a formação discursiva e seu ethos atráves do processo enunciativo. Ou seja, numa concepção encarnada de ethos,
como a proposta por Maingueneau (2008), a instância subjetiva aparece no discurso como uma “‘voz’ indissociável de um

279
corpo enunciante historicamente especificado” (2008, p.17).
Os presidentes, sujeitos empíricos, locutores dos pronunciamentos, trazem imagens preestabelecidas formadas a
partir da repetição e regularização de certos atributos relacionados a eles. Esse ethos prévio é um elemento de análise que
merece atenção pois afeta o ethos discursivo, principalmente na cultura atual altamente midiatizada e pelos presidentes
serem alvo constante das atenções dos meios de comunicação.
O aparato midiático é o maior responsável pelo ethos prévio, que quase sempre resulta de uma estereotipagem,
de uma imagem cristalizada culturalmente ou de acordo com conveniências dos meios de comunicação mais influentes.
Justamente pela estabilização desses sentidos pelos estereótipos, é que essa imagem anterior ao discurso pode ser
apreendida e trabalhada em articulação estreita ao ethos discursivo.
Em suma, Maingueneau (2008, p.18), conclui que existem elementos de ordens diversas que influem na
elaboração e captação do ethos que resulta da “interação de diversos fatores: o ethos pré-discursivo, ethos discursivo
(ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto nos quais o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito)”.
3. Categorias de análise
Ao propor a análise de textos organizados em gêneros do discurso, o recurso às modalidades mostrou-se
produtivo por registrar relações entre os enunciados e o posicionamento do falante perante o enunciado que produz. Essas
determinações modais permitem detectar traços de subjetividade e por modos de tratamento dos interlocutores
configuradores de ethé e interdiscursos/memórias que resultarão na análise proposta.
O conceito de modalidade é utilizado tanto por lógicos quanto por lingüistas. Sua história remonta os gramáticos
da Idade Média que já faziam a distinção entre “modalidade e conteúdo proposicional” (CERVONI, 1989, p.54). No campo
da Lingüística, a problemática das modalidades passou a ser foco de atenções a partir do desenvolvimento dos estudos
sobre a lógica da linguagem; do interesse pelos trabalhos do filósofo inglês J. L. Austin sobre os atos de linguagem, a
performatividade; e a partir da descrição dos verbos tipicamente modais desenvolvida por semioticistas franceses no intuito
de explicar o funcionamento da narrativa (CERVONI, 1989, p.54-55).
A tentativa de tornar o conceito de modalidade operacional para a Lingüística levou a uma opção pela delimitação
do seu uso já que incluía fenômenos como entonação, gestos e atitudes o que caracterizava a modalidade como uma forma
de expressividade. Criticou-se esse tipo de concepção extensa que assimilava a modalidade a fenômenos de naturezas
distintas, tornando-o vago (CERVONI, 1989).
Para resolver o problema da imprecisão, recorre-se à Lógica que conteria o “núcleo duro” da modalidade e poderia
servir de inspiração aos lingüistas. Para os lógicos a modalidade fundamental é a alética, ontológica ou aristotélica, que
concerne ao eixo da verdade. Nessa concepção da lógica modal, os dois modos de afetar o conteúdo verdadeiro de uma
proposição são o “necessário” e o “possível”. A partir desses modos se definem, pela negação, os contrários e os
contraditórios que formam o quadrado lógico: necessário, possível, impossível e contingente (CERVONI, 1989, p.59).
A constatação de que esses operadores lógicos não possuem a univocidade devido à polissemia natural das
línguas provocou “as ampliações da lógica modal, que são as lógicas deônticas e epistêmicas, surgem como decorrentes de
um esforço dos lógicos para levar em conta as analogias evidentes que apresentam em muitas línguas a expressão do
dever e do saber e a do verdadeiro” (CERVONI, 1989, p. 59).
Assim, as determinações que afetam o registro do saber e do dever passaram a ser consideradas, já que se
constatou que as determinações de possibilidade e necessidade que afetam o registro do verdadeiro dependem do
conhecimento (saber) e do que é preciso ser ou fazer (dever) respectivamente. A proposta dos lingüistas é a de inclusão,
portanto, no “núcleo duro” da modalidade lingüística, as noções que figuram nos quadrados aléticos, deônticos e
epistêmicos.

280
Ao eixo deôntico, correspondem as modalidades relacionadas às normas e condutas. Caracteriza-se, sobretudo,
pelo imperativo, as leis. Segundo Cervoni (1989, p. 61): “Toda expressão que implique uma referência a uma norma ou a
qualquer critério social, individual, ético ou estético poderá reivindicar a integração nas modalidades”.
As modalidades epistêmicas referem-se às crenças e ao conhecimento que temos. Para Cervoni (1989, p.60), nas
línguas, em geral, “a expressão de uma possibilidade depende muito estreitamente dos conhecimentos que o locutor possui
e é percebida como tal pelo interlocutor”. Assim, pode-se interpretar o enunciado É possivel que se abram mais empregos
da seguinte maneira: O locutor não sabe o bastante para saber se novos empregos serão abertos ou não.
Num conjunto de artigos sobre a modalidade publicados na revista Langages, no 43 de 1976, diversos teóricos
(Alexandrescu, Parret, Greimas, Pottier entre outros) defendem modelos de teorização da modalidades a partir de critérios
sintático-semânticos, em geral por meio de abordagens pragmáticas.
Dentre os autores destaca-se a proposta de Alexandrescu de priorizar os operadores modais crer e saber em
relação aos outros que seriam secundários. Quando não explícitos nos enunciados, estão pressupostos, o que faria com
que todo enunciado recebesse uma dimensão epistêmica suplementar da ordem da opinião ou do saber. A diferença entre
estes é definida pela concepção probabilística da verdade. Essa definição mostra-se relevante para a análise das falas
presidenciais principalmente na expressão das promessas, momento em que a modalização da certeza ou incerteza de
seus enunciados é fundamental para os co-enunciadores por gradualizar a verdade.
Após essa exposição, redefinimos a conceituação de modalidade da qual nos ocupamos nesta pesquisa: com o
intuito de restringi-la e detectá-la formalmente, postula-se que o que é capaz de determinar uma proposição –explícita ou
subjacente–tem característica modal. Cita-se o exemplo de Cervoni (1989, p. 62) para entender a questão da proposição
subjacente: Em O fruto proibido os tentou, “o sintagma ‘fruto proibido’deriva de uma proposição modalizadora [PROIBIDO
[alguém come o fruto]].”
Sob o ponto de vista da Pragmática Lingüística e inspirada em Austin, Koch (1993, p.75) formula: “consideram-se
as modalidades como parte da atividade ilocucionária” e postula que são dotadas de valor argumentativo. Os diversos tipos
de lexicalização das modalidades são repertoriados pela autora, destacamos (1993, p.87): auxiliares modais (poder, dever,
querer, precisar etc); predicados cristalizados (é certo, é preciso, é necessário, é provável); advérbios modalizadores
(provavelmente, certamente, necessariamente, possivelmente etc); formas verbais perifrásticas (dever, poder, querer, etc +
infinitivo); modos e tempos verbais; verbos de atitude proposicional (eu creio, eu sei, eu duvido, eu acho etc); operadores
argumentativos (pouco, um pouco, quase, apenas, mesmo etc).
A respeito dos tempos verbais, Cervoni (1989, p.72) observa que os tempos do indicativo que designem valores
conjecturais, potenciais e irreais manifestam atitude epistêmica particular do locutor.
Finalmente, justifica-se a utilização das modalidades numa análise discursiva de pronunciamentos de posse
presidenciais devido à pertinência dos fatores elencados a seguir: (a) Conforme Pottier (1976), as modalidades são
essenciais na expressão da subjetividade na mensagem lingüística; (b) Numa orientação pragmática (com as ressalvas já
feitas anteriormente sobre o tipo de pragmática coerente com a AD) de análise adotada, representam atitudes ilocucionárias
inscritas numa enunciação particular; e (c) As modalidades revelam os graus de tensão entre enunciadores e co-
enunciadores ao mostrar formas de inscrição da enunciação no enunciado pelo locutor.
O propósito de estudar as marcas de pessoa neste trabalho é decorrência, em parte, da opção pela análise das
modalidades. Como já visto, a expressão da subjetividade é marcada pelo modo de inscrição de um sujeito enunciador em
sua enunciação, o que pode ser avaliado por marcas lingüísticas que caracterizam formas específicas de uso da linguagem
por em EU.
Na prática discursiva, o EU estabelece sua posição enunciativa. O que o analista pode apreender não é o sujeito

281
empírico, dono de sua fala; mas o efeito-sujeito, definido discursivamente.
Assim, para a configuração de uma imagem presidenciável, a subjetividade é manifestada não só pelas
modalidades, mas também pela presença de marcas de pessoa. Considera-se, segundo Benveniste (1995, p.285) que não
se pode opor o homem à linguagem pois esta é responsável pela própria definição do homem –concebido sempre em
função de um outro e não reduzido a si mesmo.
No pronunciamento de posse, a ancoragem ou referência a um eu-aqui-agora que caracterizam a situação de
enunciação como locução discursiva, é algo constitutivo do ato de colocar a linguagem em uso por um indivíduo. Essa
referenciação é agenciada por um enunciador, seja marcando explicitamente sua presença na interlocução (marca de
pessoa – eu/tu e nós) ou a partir da não-pessoa (BENVENISTE, 1995) caracterizada pela terceira pessoa do singular.
Para Maingueneau (2004, p.125), “a interpretação dos embreantes de pessoa é indissociável da cena enunciativa
implicada em cada texto”. Assim, as marcas de pessoa nos pronunciamentos de posse indicam formas de inclusão e
exclusão do EU nos enunciados e o sentido que se pode verificar de acordo com a encenação do que é dito e do
posicionamento discursivo que se constitui.
Sendo toda língua dêitica, a marca de pessoa é uma enunciação desse sujeito, uma impressão de sua imagem
discursiva que é constituinte de subjetividades. Na posse, um momento de grande importância histórica e simbólica,
definem-se sujeitos-presidentes e modos de conceber o homem nessa posição institucional específica (dirigente de um
país).
Até aqui, vimos que as modalidades e marcas de pessoa indicam modos de incrição e engajamento do EU na
enunciação, portanto, correspondem a marcas de subjetividade.
Como já vimos, a heterogeneidade é constitutiva da enunciação. Uma das formas marcadas da heterogeneidade
mostrada ou explícita é representadas pelo discurso relatado. Essa noção deve ser entendida “como um termo amplo,
capaz de abranger várias formas de inclusão, mais ou menos clara, do discurso do outro no fio condutor daquele que
enuncia”.(SANT´ANNA, 2004, p.159).
Retomando Revuz (1990), as formas marcadas de heterogeneidade são representadas por rupturas na cadeia
sintática na autonímia simples, assim, “o fragmento citado no interior de um discurso relatado direto é apresentado como
objeto; é extraído da cadeia enunciativa normal e remetido a outro lugar: aquele de um outro ato de enunciação” (REVUZ,
1990, p.29). Esse tipo de alteridade, segundo a autora, corresponde a um lugar “para um fragmento de estatuto diferente na
linearidade da cadeia” (1990, p.30).
Dentre as formas que a autora considera como pontos de heterogeneidade, destacamos, de acordo com os
propósitos desta pesquisa: “um outro registro discursivo, familiar, pedante, adolescente, grosseiro”, “um outro discurso,
técnico, feminista, marxista etc” e “um outro, o interlocutor, diferente do locutor e a este suscetível de não compreender”.
Vejamos, então, as formas de reportar o outro no discurso.
O discurso relatado segundo Sant´Anna (2004) e Maingueneau (2004) pode tomar formas mais discretas ou
atenuadas de mostrar a presença do outro no discurso ou indicar que se está apoiando em outro discurso. Para tanto,
existem formas pelos quais se apresenta: discurso direto, discurso indireto, discurso segundo, discurso indireto livre,
discurso indireto com ilhas de discurso direto (MAINGUENEAU, 2004), discurso narrativizado (SANT´ANNA, 2004) e
intertexto.
Em nossa pesquisa, trabalharemos fundamentalmente com os discurso direto, indireto e indireto livre, uma vez
que a natureza do gênero indica que esses são os tipos mais produtivos na hora de recuperar as vozes dos outros, seja
para referendar posições sociais por meio de biblioteca citável ou para recorrer a discursos constituintes como fonte de
autoridade e verdade. Sendo os discursos indiretos com ilhas de discurso direto e discursos narrativizados mais típicos de

282
textos de comunicação.
No discurso direto, a intenção é “restituir as falas citadas” (MAINGUENEAU, 2004, p.140). Segundo Maingueneau,
nesse tipo de relato há uma dissociação completa entre as situações de enunciação do discurso citante e a do discurso
citado. Há, portanto, duas referências concorrentes, aquela do momento em que acontece o discurso e aquela em que ele é
lido.
As referências temporais e espaciais oferecidas pelo discurso citado não coincidem com a do discurso citante (no
nosso caso, os pronunciamentos) já que são enunciadas em outro momento e em outro espaço. E nem sempre há uma
possibilidade de reencenação da primeira enunciação pelas informações dadas.
A escolha do discurso direto está relacionada a algumas formas de trazer o outro ao discurso. Elas podem ser:
“criar autenticidade”; “distanciar-se: seja porque o enunciador citante não adere ao que é dito, seja porque quer explicitar
(...) sua adesão respeituosa ao dito”; “mostrar-se objetivo, sério”. (Maingueneau, 2004, p.142)
O discurso indireto está caracterizado pelas vozes que são apresentadas por orações introduzidas por um verbo
dicendi. Esses verbos são importantes não apenas para que se reconheça o discurso relatado mas também para que o
leitor direcione sua apreensão do discurso citado.
O menos explícito dos discursos relatados corresponde ao discurso indireto livre. Segundo Revuz (1998, p.19),
esse discursos são “formas puramente interpretativas […] que abrem para a ‘heterogeneidade constitutiva”. Por vezes de
difícil apreensão, os discursos indiretos livres marcam a dificuldade de marcar o outro no discurso, revelando que os
sujeitos não são donos dos seus dizeres; a não-coincidência do dizer e do sujeito é o que permite seu sentido, pois “este
espaço de não-coincidências onde se faz o sentido, nutrido dessas heterogeneidades que o distinguem da fixidez una do
signo, é também, indissociavelmente, [...] uma força de ligação, de coesão, de UM que faz ‘obter’ uma fala” (REVUZ, 1998,
p.26).
4. Montando o palanque
Partindo da delimitação do pronunciamento de posse como um gênero discursivo surge a idéia de recuperar as
voz do presidente brasileiro no momento de inauguração de seu mandato, situação carregada de um simbolismo particular,
cujos traços mais estáveis são: momento de legitimação do poder, por meio de autobiografias e valorizações de atos
políticos anteriores; as promessas; os agradecimentos; uma breve ou mais extensa retomada da história do país com a
devida seleção de glórias e erros convenientes de destacar; e por fim –embora sem pretensão de esgotar as possibilidades
do gênero–, o tom esperançoso e eufórico. Tais traços estão intuitivamente relacionados com o ato de posse, fazem parte
do conhecimento de mundo partilhado por muitos de nós.
A partir da caracterização de hipóteses dos traços de gênero relacionados a uma situação enunciativa típica de
países democráticos – no caso, o momento da posse de presidentes eleitos – detalha-se os passos metodológicos para a
construção do objeto de análise:
a) Coleta do pronunciamento de posse nas página do governo.
b) Leitura do proferimento: a fim de verificar a hipótese da estabilidade genérica, abriu-se uma
possibilidade de análise dos discursos de tipo político, buscando encontrar uma organização composicional passível de
constituição de um gênero.
A percepção inicial e motivadora da pesquisa – a alta popularidade e carisma do presidente brasileirol – conduziu-
nos a testar hipóteses que se relacionam com as questões apontadas por cientistas políticos e estudiosos (superação do
neoliberalismo, defesa de agendas locais, maior participação cidadã, projetos sociais, populismo, preocupação com
desigualdades sociais, promessas de mudança, entre outros). Após uma pré-leitura antes do gesto analítico, já estabelecido
o critério da organização composicional, encontrou-se na fala de posse do presidente eleito a seguinte circulação temática:

283
1- Validação do merecimento do candidato: o que pode ser analisado: (a) nos agradecimentos, pois a escolha dos
agradecidos remete a uma biblioteca citável, a uma rede de restrições semânticas que configuram não só a imagem do
enunciador, mas também possíveis filiações institucionais de uma esquerda, ou seja, a quem devo e posso agradecer e o
que isso diz de minha posição como político; (b) na biografia do eleito, principalmente no que diz respeito à evocação de um
passado simples, honesto, sindical, trabalhador próximo ao povo e conhecedor do desejo de “mudança”, o que está em
consonância com o fortalecimento do elemento político populista, tal como vem sendo verificado por estudiosos dos
governos sul-americanos atuais; e (c) nas promessas, em particular as relacionadas com o panorama de superação do
neoliberalismo, com a emergência de movimentos sociais e a valorização das questões nacionais.
2- A contextualização da eleição: encontrada na parte dos pronunciamentos em que os enunciadores revisam a
história do país, retomando quase sempre um passado de injustiças, de políticas econômicas atreladas ao projeto
neoliberal, de marcadas desigualdades sociais e de participação popular quase nula, ou, no caso dos presidentes reeleitos,
as conquistas e avanços do primeiro governo acompanhadas por promessas de continuidade e desenvolvimento.
3- A escolha de um perfil para o eleitor-interlocutor: no modo como se apresentam e se dirigem ao público, é
possível estabelecer o tipo de vínculo que se pretende criar com o povo e se essa seleção de algum modo está relacionada
com a memória das lideranças de esquerda no continente e a modos de configuração de governo e de governar. Os
estatutos dos co-enunciadores forjados discursivamente referendam posições institucionais e rechaçam outras, de acordo
com o que se pode entrever no panorama político brasileiro.
A configuração desses elementos permitiu delinear um sistema de relações que as diversas formações discursivas
estabelecem entre si num momento histórico dado, conforme definição de Maingueneau (1997) de campo discursivo.
Segundo o propósito de trabalhar com marcas de heterogeneidade e subjetividade, selecionaram-se as categorias
de análise de discurso relatado, modalidades e marcas de pessoa, a partir da análise de seqüências discursivas (doravante
SD) que fossem pertinentes ao objetivo definido de pesquisa. A análise está organizada em 4 etapas (bloco da revisão da
história do país, bloco das promessas, bloco da autobiografia e bloco dos agradecimentos). Nesse trabalho expomos o
resultado da observação das Sds, realizado de modo mais extenso na dissertação de mestrado.
5. Lula em enunciação
No primeiro bloco, de revisão da história do país, a análise demonstrou que o enunciador brasileiro constrói
discursivamente o conceito de Brasil a partir da experiência do primeiro governo do presidente Lula e de sua trajetória
pessoal. A utilização do verbo “ser” no Presente do Indicativo, forjando definições de Brasil é freqüente nas seqüências
discursivas analisadas nesse bloco, caracterizando uma tendência à modalidade alética.
Nota-se um verniz epistêmico sutil que se adere às asseverações de ordem alética sinalizando a crença do
enunciador que seu conhecimento acumulado durante seu primeiro mandato presidencial é fonte de certezas. Assim, ao
enunciar em Futuro do Indicativo o que continuará e o que é preciso ser mudado, a episteme está na confiança de que o
que foi feito é bom para o país e a obrigação moral está expressa pelo verbo “precisar” utilizado pelo enunciador,
característico da modalidade deôntica.
O predomínio da modalidade alética na revisão histórica indica que as certezas e verdades enunciadas estão
relacionadas a uma segurança e conforto do enunciador brasileiro em sua posição institucional de presidente, o que pode
ser justificado pela reeleição tranqüila, conquistada em segundo turno, mas por pouco quase no primeiro.
O ethos de confiante perpassa toda enunciação sobre a revisão da história do Brasil, uma vez que o passado
escolhido é o que equivale ao primeiro governo do presidente e é reconstruído a partir das políticas efetuadas, o que
legitima a crença do enunciador em sua experiência e no seu saber do que é necessário para o país. O Brasil e o
enunciador brasileiro são construídos em processo metonímico: Lula é o Brasil, o Brasil é Lula.

284
O modo categórico com que enuncia é fruto da confiança do presidente no que já realizou (apagando, dessa
forma, o que não cumpriu das promessas da primeira eleição), e permite que se credite ao enunciador um ethos de
pragmático. Esta imagem discursiva está alinhada com a proposta da Nova esquerda e da tendência de deixar de lado
imagens que atrelam o projeto de esquerda no Brasil à falta de capacidade de governo e instrumentalização política, pois
permaneceu por longos anos na posição de oposição e combatividade, além de historicamente congregar líderes de
movimentos populares e políticos caracterizados de populistas e demagogos pela oposição.
No segundo bloco, o das promessas, o enunciador brasileiro, a continuidade com o primeiro mandato é a tônica.
O emprego do Futuro do Indicativo ou de locuções verbais com valor futuro, pontuais e assertivas, constroem o ethos de um
enunciador seguro e experiente.
Quando não enunciadas com o verbo na primeira pessoa do plural, as promessas estão na terceira do singular,
característica da não-pessoa, mas com a garantia e a certeza do enunciador que assume o papel de fiador das mesmas.
Como exemplo dessa observação, o conjunto de promessas iniciado pelas expressões “é preciso” e “é necessário”
expressando uma obrigação e dever moral, relacionados à modalidade deôntica, apresentam como base de sustentação
não a moral e consciência, mas sim o conhecimento e a experiência acumulados pelo enunciador brasileiro e que balizam
toda sua enunciação.
Assim, a crença do enunciador em seu savoir-faire de governo apresentada nos enunciados categóricos do que é
preciso e necessário e também do que irá efetuar como presidente da nação, confirma o ethos do experiente e delineia a
imagem de centralizador.
Ainda que muitas das ações enunciadas como promessas estejam na primeira pessoa do plural, com um “nós” em
que se supõe albergar o próprio enunciador e sua equipe de governo, muitas delas são repetidas e/ou retificadas na
primeira pessoa do singular, como se concedendo a si o papel de decisor final ou principal.
A confiança em sua capacidade de governar faz com que a modalidade deôntica predomine, mas sempre
embasada por enunciados do eixo alético. A crença em seu conhecimento, que poderia ser expressa na modalidade
epistêmica, realiza-se em asserções da ordem da verdade, o que camufla qualquer insegurança do enunciador.
Nas análises, conclui-se que as marcas de pessoa aparecem tanto para assegurar um “eu” forte e centralizador,
quando enunciadas por meio do “nós” conjugado nos verbos das promessas; quanto para manter a objetividade pertinente
ao ethos de presidente metódico, quando enunciadas na terceira pessoa do singular presente nas expressões “é preciso” e
“é necessário”.
No bloco da autobiografia, a construção discursiva de um passado humilde é feita a partir da narrativização de sua
história na terceira pessoa do singular, como se estivesse relatando um passado comum a milhões de brasileiros pobres
como ele.
Em outras seqüências discursivas, o enunciador ratifica o ethos de homem honesto e humilde pelo compromisso
assumido em primeira pessoa do singular de cuidar dos mais pobres, pois e sua origem o legitima e o autoriza para tal.
A crença do enunciador no seu conhecimento acumulado pela experiência de vida e de governo é o que sustenta
seu dever moral de ouvir a “voz da consciência”. Percebe-se uma camada deôntica suplementar que atenua e por vezes
sustenta enunciados do eixo epistêmico, o que indica a preocupação com a imagem discursiva de ética, retidão e
honestidade ─ características valorizadas nos políticos e tradicionalmente demandadas nos governos sul-americanos
assolados por casos de corrupção.
A conceituação do momento de sua primeira eleição por meio de enunciados na modalidade alética indica o papel
social que o brasileiro afirma representar para a história nacional, por meio de sua enunciação sem, contudo, deixar de lado
sua imagem humilde. A dialética fraco-forte típica de enunciadores populistas é comprovada nesses enunciados que

285
mesclam imagens de poder e subserviência.
No modo de tratar seus interlocutores, o brasileiro demonstra formalismo maior ao dirigir-se por meio de
“Senhoras e Senhores”, o que condiz com o ethos de enunciador seguro e experiente nos traquejos para as solenidades
típicas do cargo presidencial.
No que diz respeito ao último bloco, o agradecimento é enunciado com uma cenografia de prece. Ao colocar Deus
como interlocutor exclusivo, estabelece-se um ethos de poder e grandiosidade uma vez que não se apresentam as relações
de gratidão e reconhecimento com eleitores, políticos ou correligionários; apenas com uma entidade espiritual superior a
quem humildemente agradece pela capacidade de governar e de superar dificuldades.
A auto-suficiência vinculada ao ethos de confiante, experiente e seguro é referendada nesse bloco. A
especificidade do discurso de reeleição também justifica a ausência de uma lista e detalhamento maior dos agradecido. No
entanto, o gênero prece presume uma imagem discursiva de um enunciador humilde e pedinte que contrasta com o poder
concedido pela benção divina.
6. Considerações finais
Repassando as análises feitas é possível delinear ethé que perpassam todos os blocos, fortalecendo imagens do
enunciador em cada momento de sua enunciação. Em suma, o enunciador brasileiro é pontual, experiente, metódico,
continuísta, moderado e popular. Apresenta uma tendência a centro-esquerda e predomínio de modalidade alética mesclada
com epistêmica. Marcas de subjetividade e forte presença do “eu” e do “nós” como fortalecimento da primeira pessoa na
revisão histórica, autobiografia e agradecimentos.
7.Referências:
AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad. Est. Ling., v. 19, p.25-42, 1990.
______. Palavras incertas: as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pontes, 1995.
CERVONI, J. A enunciação. São Paulo: Ática, 1989.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez Editora, 2004.
______. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 69-91.
______. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana R & SALGADO, Luciana. (org.). Ethos discursivo.São Paulo: Contexto, 2008,
p.11-29.
______. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997.
SANT´ANNA, V. L.. O trabalho em notícias sobre o Mercosul: heterogeneidade enunciativa e noção de objetividade. São
Paulo: EDUC, 2004.

Mestre em Linguística pela UERJ em 2009, com dissertação entitulada O pedinte, o experiente e o grandiloquente:
ethé discursivos de presidentes da América do Sul. Interessada atualmente pelo discurso midiático, ethos, política e poder.
Professora de Língua Espanhola do Ensino Médio do CEFET-RJ.
E-mail: augusta.avalle@gmail.com

286
Lei de LIBRAS: reconhecimento e negação

BAALBAKI, Angela Corrêa Ferreira


(UERJ)

1. Introdução
O reconhecimento das línguas se sinais no âmbito linguístico deu-se tardiamente, por volta da década de 1960
(GESSER, 2009). Desde então, vários estudos linguísticos têm afirmado e reafirmado a legitimidade de tais línguas. O
mesmo não ocorreu no âmbito das políticas públicas em nosso país. Apenas no início deste século, à língua de sinais
brasileira (LIBRAS) foi conferido o estatuto de legalidade. Em abril de 2002, ao ser promulgada a lei nº 10.436 – conhecida
como lei de LIBRAS – reconhece-se a língua de sinais como “meio legal de comunicação e de expressão” da comunidade
surda brasileira. Tal reconhecimento, sem dúvida, uma conquista para a comunidade surda, foi um marco político.
Quadros (2006) enfatiza que, nos últimos 15 anos, uma das prioridades estabelecidas pelos movimentos sociais
alavancados pelos surdos foi o reconhecimento da língua de sinais brasileira. Variadas ações oriundas de tais movimentos
geraram “uma série de iniciativas para disseminar e transformar em lei a língua de sinais brasileira, culminando na lei
federal 10.436, 24/04/2002, que a reconhece no país” (QUADROS, 2006, p.142).
Em nosso estudo, referimo-nos à lei de LIBRAS e ao decreto nº 5626, que regulamentou a referida lei, como
instrumentos de uma política linguística brasileira. Devemos esclarecer que quando falamos em “política linguística”, vários
sentidos podem ser depreendidos. Pereira (2009) enfatiza que no campo de políticas linguísticas é possível se debruçar
sobre questões, tais como: predomínio de determinadas línguas em contextos de interação econômica; papel das línguas
minoritárias; promoção do ensino de línguas estrangeiras como propulsor de inclusão e até mesmo de exclusão social; e
poderíamos incluir a promoção das línguas nacionais e oficiais. Em nosso caso, versamos sobre a legalização de uma
língua minoritária, a LIBRAS.
Nosso trabalho insere-se em uma proposta de estudos de política linguística que tem como fundamentação o
quadro teórico da Análise do Discurso de linha francesa fundada por Michel Pêcheux. Cabe salientar que em tal orientação
teórica, relacionam-se sujeito, história e linguagem. Levando a cabo tais relações, nosso propósito central é depreender os
sentidos de língua que são imputados na materialidade textual dos dois instrumentos legais. Compreendemos língua como
um “objeto simbólico afetado pelo político e pelo social intrinsecamente” (ORLANDI, 2009, p.119).
Dentre os conceitos mobilizados, destacamos os conceitos de língua fluida e língua imaginária, tal como definidos
por Orlandi e Souza (1998) e as formulações de Orlandi (2007) sobre as políticas linguísticas no Brasil. Vale destacar que
da posição teórica que assumimos, a política linguística não está fora de uma determinada maneira de dividir a sociedade,
em atribuir formas de falar para grupos sociais distintos.

2. Dispositivo analítico e análise dos instrumentos legais


Em Análise do Discurso, o dispositivo teórico refere-se a todo seu quadro teórico. Tal dispositivo se particulariza
frente aos conceitos mobilizados em cada pesquisa. O conjunto de conceitos trabalhados em vista à pergunta, aos objetivos
e à natureza de material de análise compõe o que podemos chamar de dispositivo analítico. Nesta seção, apresentamos
tanto o nosso dispositivo analítico, ou seja, aqueles conceitos que fundamentam a nossa pesquisa a respeito do
funcionamento da legalização da Língua de Sinais Brasileira, quanto à análise das sequências discursivas recortadas dos
dois instrumentos legais. Iniciamos destacando as definições de política linguística utilizadas.

287
Para Hamel (2003), a legislação específica em matéria linguística é muito recente no cenário mundial1. No
passado, complementa o autor, os “direitos linguísticos” foram poucas vezes objeto de legislações, visto que as línguas
eram consideradas como pertencentes ao espaço dos costumes e tradições, ou seja, pertenciam ao âmbito da não-lei.
Como se as línguas estivessem fora do jurídico, ou ainda fora do político. Do ponto de vista discursivo, a legislação dos
direitos linguísticos consagrou o que Orlandi (1998) considera uma “igualdade juridicamente autorizada” (ORLANDI,
1998:12), a qual possibilita a negociação sempre “controlada” da diversidade linguística nos Estados. E veremos, em
nossas análises, como esse controle se dá em relação à designação “meio legal de expressão e comunicação” e à
exclusiva oficialidade da língua portuguesa e da sua modalidade escrita.
Considerando o exposto acima, torna-se necessário uma reflexão sobre o que compreendemos por político. Do
nosso ponto de vista, que é o discursivo, o político diz respeito ao modo de tomar a palavra; um modo que está sempre
atrelado a uma forma de poder. Em sentido amplo, a prática política está inscrita na linguagem, ou melhor, não há como
desvincular linguagem e prática política, visto que na primeira inscrevem-se relações históricas e sociais de poder. Em
outros termos, as relações de poder regem o funcionamento das línguas. Dessa forma, podemos afirmar que a LIBRAS –
uma prática simbólica como qualquer outra língua – funciona pelo político. E como esse funcionamento se daria? LIBRAS
foi (e talvez ainda seja) historicamente tomada como “linguagem”, “gestos’, “mímica”. Uma língua que é construída pelo
apagamento de sua historicidade na sua relação com os sujeitos surdos: uma língua-meio.
Afirmamos, então, que a política linguística não está fora de uma determinada maneira de dividir a sociedade, de
uma forma de atribuir maneiras de falar para grupos sociais distintos, por exemplo, uma maneira de falar da e sobre a
língua de sinais para a comunidade surda brasileira. As políticas linguísticas ainda podem recobrir, segundo Orlandi (1988),
processos institucionais menos evidentes (por exemplo, o ensino de línguas na escola) ou tematização explícita de uma
proposta organizacional da(s) língua(s), como no caso dos já citados instrumentos legais.
Ao considerar variados processos institucionais, Orlandi (1998) distingue três posições que configuram as políticas
linguísticas. De fato, são princípios que regem posições com valores distintos. Vejamos:
a) Princípio da unidade como valor – em geral, relaciona-se às razões de Estado;
b) Princípio da dominação como valor – está atrelado às razões que regem relações entre os povos;
c) Princípio da diversidade como valor – relaciona-se às relações relativas aos falantes.
Uma outra acepção sobre políticas linguísticas é tematizada por Guimarães (2007). De acordo com o autor, os
espaços de enunciação em que as línguas funcionam são divididos pela organização política dos Estados nacionais. No
entanto, complementa o referido autor2, as línguas se dividem pela própria relação com seus falantes, ou melhor, como os
falantes experimentam as línguas. Diferentes representações imaginárias de línguas em relação ao modo de funcionamento
podem ser estabelecidas: 1) a língua materna é aquela praticada pelo grupo no qual o falante nasce; 2) a língua alheia é
qualquer língua que não se dá como materna; 3) a língua franca é aquela praticada por grupos de falantes de línguas
maternas distintas; 4) a língua nacional é aquela que mantém relação de pertencimento de um grupo; 5) a língua oficial é a
de um Estado nos seus atos legais; 6) a língua estrangeira é a língua falada pelo povo de um Estado diferente daqueles
falantes de referência.

1 Na história do Brasil podemos verificar instrumentos legais que tratavam de matéria linguística. Eram instrumentos que declaradamente

cerceavam o uso de algumas línguas, negavam-nas, tentavam silenciá-las. Citamos o “Diretório dos Índios” (1755) e decretos-lei
sancionados no governo Vargas entre os anos 1930-40.
2 Guimarães (2007) adverte que as noções de língua nacional, língua oficial e línguas estrangeiras apontam para uma divisão imaginária

das línguas entre nações. No caso específico da comunidade surda, tais noções operadas propiciam uma tensão no âmbito da
organização política do Estado.

288
Para Guimarães (2007) são dois os modos de funcionamento das línguas em um espaço de enunciação, quais
sejam: a) o que representa as relações imaginárias cotidianas entre falantes; e b) o que representa as relações imaginárias
institucionais. Para o primeiro modo de funcionamento, distinguem-se a língua materna, a língua alheia e a língua franca.
No segundo, a língua nacional, a língua oficial e a língua estrangeira.
Ao delimitar o espaço de enunciação em um Estado, é possível verificar que o segundo modo de funcionamento
sobrepõe-se ao primeiro. Guimarães (2007) destaca que observar essa sobreposição no espaço linguístico brasileiro é
muito relevante, pois dessa forma podemos compreender como se deu a “construção da representação que sobrepõe a
língua oficial à língua nacional e que sobrepõe estas à língua materna, reduzindo a língua materna à língua nacional”
(Guimarães, 2007:65).
Apresentadas as considerações de Orlandi (1998) e de Guimarães (2007), perguntamos: como a lei nº
10.436/2002 e o decreto nº 5626/2005, que a regulamentou, produzem representações imaginárias institucionais da
LIBRAS? Como os instrumentos legais projetam imagens do que é considerado como língua materna, língua oficial e meio
legal? De forma a tentar responder a esse questionamento, mobilizamos as noções de língua imaginária e língua fluida.
As línguas imaginárias são “objetos-ficção”, artefatos construídos por estudiosos da linguagem. “São as línguas-
sistemas, normas, coerções, as línguas instituição, a-históricas. Construção. É a sistematização que faz com que elas
percam a fluidez e se fixem em línguas-imaginárias” (ORLANDI e SOUZA, 1988). A língua fluida, unidade viva da língua
enquanto historicidade, pode ser observada quando se focalizam os processos discursivos, ou seja, observa-se a
constituição dos sentidos. Diferentemente da imaginária, a língua fluida não pode ser contida no arcabouço dos sistemas e
fórmulas, visto que é “a língua movimento, volume incalculável, mudança contínua. Metáfora” (ORLANDI e SOUZA, 1988,
p.38). Brevemente, podemos resumir os dois conceitos citando Orlandi:

Em nosso imaginário (a língua imaginária) temos a impressão de uma língua estável, com unidade,
regrada, sobre a qual através do conhecimento de especialistas, podemos aprender, temos controle.
Mas na realidade (língua fluida) não temos controle sobre a língua que falamos, ela não tem a unidade
que imaginamos, não é clara e distinta, não tem os limites nos quais nos asseguramos, não a sabemos
como imaginamos, ela é profundidade e movimento contínuo. Des-limite (ORLANDI, 2009:18).

Assim como a língua portuguesa, LIBRAS, considerada como um “meio legal”, é também uma língua imaginária:
mantém uma unidade, pode ser ensinada e aprendida, pode ser codificada em instrumentos de gramaticalização
(dicionários, gramáticas). LIBRAS é tomada imaginariamente como língua de todas as comunidades surdas brasileiras.
Como se não fossem a ela atribuídas variações, produção de neologismos, etc. Ou como se não existissem outras línguas
de sinais brasileiras como, por exemplo, a língua de sinais urubu-kaapor falada por índios da tribo Kaapor.
A partir dos conceitos expostos acima, recortamos algumas sequências discursivas (SD) de artigos e parágrafos
da lei nº 10.436/2002 e o decreto nº 5626/2005, observando os seguintes itens lexicais: “língua”, “sistema linguístico”,
“comunicação”, “expressão”, “meio legal”. Organizamos três blocos de sequências. O primeiro trata de LIBRAS como um
sistema que possibilita a comunicação entre pares. O segundo tematiza a questão da oficialização da língua portuguesa em
sua modalidade escrita. E por fim, o terceiro bloco enfatiza a língua portuguesa como segunda língua para essa
comunidade específica.

Bloco 1: LIBRAS – um sistema

289
SD1: É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos
de expressão a ela associados (lei).
SD2: Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema
linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de
ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil (lei).
SD3: apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização
corrente das comunidades surdas do Brasil (lei).

No primeiro bloco, podemos identificar uma descrição estrutural da língua de sinais brasileira. A partir de uma
definição de língua operada pela linguística estrutural, considera-se LIBRAS um sistema linguístico com especificidades
(natureza visual-motora e outros recursos de expressão) que tem um determinado fim: servir como meio de comunicação e
expressão. Vejamos um ponto relevante. A língua é reconhecida como meio legal apenas em se tratando de comunicação
e expressão utilizada nas comunidades surdas no Brasil. Silencia-se com a designação “meio legal” a oficialização da
LIBRAS, língua de uma minoria. E ao silenciar a oficialização, o termo “meio” parece trazer à baila sentidos como “recurso”,
“dispositivo”, “estratégia”, “instrumento” que permite a comunicação, mas nega-lhe o status de língua, reduzindo-a a um
código e, por conseguinte, apagando sua historicidade. Vale destacar que se trata de uma historicidade marcada pela
interdição. No final do século XIX, uma visão médico-clínica que buscava a “normalização” do surdo pela oralização imperou
no campo da surdez. As línguas de sinais passaram a ser desestimuladas e até mesmo proibidas na escola entre os
surdos. Somente a partir da segunda metade do século XX, iniciou-se uma pedagogia voltada para a língua de sinais – um
movimento que ganhou fôlego, no âmbito linguístico, com a atribuição de status de língua às línguas de sinais. Como
consequência, o bilinguismo passou a ser o objetivo a ser alcançado pelas comunidades surdas e boa parte dos
pesquisadores da área da surdez. Como podemos observar, os efeitos de sentido depreendidos na letra da lei não estão
fora dessa historicidade de interdição, luta e resistência.

Bloco 2: Modalidade escrita da língua portuguesa

SD4: A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa (lei).

A escrita – considerada uma tecnologia – torna-se um índice civilizatório, uma marca de cultura. No entanto, a
história da relação da comunidade surda com a escrita é outra. O sujeito surdo vive em uma “sociedade da escrita” (cf.
ORLANDI, 2002), embora não seja a aprendizagem para esse sujeito uma evidência. Ao sujeito surdo é imputada a
necessidade de aprender a modalidade da língua portuguesa para que ele possa se tornar um cidadão, possa gozar de
seus direitos.
Para Orlandi (2002) no imaginário da cultura ocidental cristã – e acrescentaríamos ouvinte – há uma tipologia que
reduz a distinção entre oralidade/escrita. Reduz, pois não se leva em consideração que cada modalidade funciona de forma
distinta e produz diferentes gestos de interpretação. São funcionamentos postos lado a lado como se completassem um ao
outro, muito embora, em nossa sociedade, a escrita sobreponha-se à oralidade. Como nos lembra Orlandi (2002):

a escrita, numa sociedade de escrita, não é só um instrumento: é estruturante. Isso significa que ela é
lugar de constituição de relações sociais, isto é, de relações que dão configuração específica à
formação social e seus membros (ORLANDI, 2002, p. 233).

290
E quais seriam essas relações específicas em relação ao sujeito surdo? Na sequência 4, observamos um
deslocamento da tipologia oralidade/escrita para uma outra tipologia língua de sinais/escrita da língua portuguesa. Tal
tipologia indica não só que algo falta, mas, sobretudo, que essa falta só pode ser preenchida pela modalidade escrita da
língua oficial. Embora já se tenha desenvolvido uma modalidade escrita da língua de sinais brasileira – sign writing –, essa
não é reconhecida. Mantém-se a prevalência da modalidade escrita da língua portuguesa. Tudo parece indicar que LIBRAS
pode ser reconhecida como meio/código de comunicação da comunidade surda, mas a sua modalidade escrita não.
Em virtude de a língua do sujeito surdo não ser a oficial, a única língua que lhe pode conferir cidadania é a língua
portuguesa. Por esse viés, ele deve pelo menos ser capaz de ler e escrever em português para transformar-se num SURDO
CIDADÃO – um BOM SURDO –, ou usando os termos de Pêcheux (1988), um BOM SUJEITO.

Bloco 3: A modalidade escrita da língua portuguesa como L2

SD5: de licenciatura em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa, como segunda língua para surdos (decreto).
SD6: O ensino da modalidade escrita da Língua Portuguesa, como segunda língua para pessoas surdas, deve ser incluído
como disciplina curricular (decreto).

No terceiro bloco, observamos a legitimação da necessidade do sujeito surdo aprender a língua portuguesa como
L2 e assim conhecer, ou melhor, saber usar a língua nacional e oficial em sua modalidade escrita, a única oficialmente
reconhecida. E perguntamos: a até que ponto a língua portuguesa é realmente uma L2 para o sujeito surdo?
Em linhas gerais, por meio da análise da materialidade discursiva, podemos dizer que há um reconhecimento da
Libras como língua materna de comunidades de pessoas surdas, mas a língua oficial - a do Estado brasileiro nos seus atos
legais – continua a ser a língua portuguesa, tal como expresso na lei nº 10436/2002: “Libras não poderá substituir a
modalidade escrita da língua portuguesa”. O que significa então a Libras em face à língua nacional? Quais sentidos são a
ela atribuídos? Acreditamos que a denominação "meio de expressão e comunicação" apresenta uma contradição perante o
estatuto conferido à denominação língua oficial. Reconhece-se legalmente LIBRAS como “meio”, mas nega-se sua condição
de língua.
Convém destacar que a língua nacional é tida como um dos elementos que definem a identidade 3nacional (e como
se definiria a identidade surda? Por sua língua materna ou pela língua de seu país?). Tal definição inscreve-se na
constituição da unidade. Podemos dizer que em prol da identidade nacional, domesticam-se as diferenças linguísticas.
A unidade da língua portuguesa falada no Brasil seria a responsável pela unidade do território nacional e,
consequentemente, do próprio Estado. Verifica-se um deslizamento da pretensa unidade da língua para a unidade da nação
– língua nacional. Devemos lembrar, no entanto, que na constituição de qualquer língua nacional, há uma rede de
confrontos, oposições, tensões, que são apagadas, visto que uma língua nacional é representada pela necessidade de
unidade.
Pratica-se, na lei, uma língua nacional, aparada pelo Estado como língua oficial. Orlandi (2007) destaca que a
língua oficial é o lugar de representação da unidade e da soberania de uma nação em relação a outras. Assim sendo, não é
possível ao Estado, de acordo com a autora citada, pensar a questão da diversidade, pois a língua oficial é definida por ele
(Estado) de forma a regular sua unidade – ao mesmo tempo imaginária e necessária. A política de Estado, seja para a
legalização de outras línguas ou para a defesa da língua oficial, acaba por absorver e anular as diferenças linguísticas.

3 A noção de identidade, em AD, é tomada como um movimento na história (Orlandi, 2002).

291
Retomando as três posições que configuram as políticas linguísticas (ORLANDI, 1998) apresentadas
anteriormente, é possível dizer que, em nosso trabalho, não identificamos posições estanques (e acreditamos não ser essa
a postura assumida pela referida autora). Observamos uma tensão entre o princípio da unidade e o da diversidade, ou seja,
ao se considerar a língua de sinais brasileira como um “meio legal”, cria-se uma tensão entre as razões de Estado – de
realização de “seu ideal de unidade jurídica, propagando a unidade linguística e realizando a homogeneidade da língua e do
sujeito” (PAYER, 2007, p.117) – e as relações relativas aos falantes – suas particularidades, costumes e línguas maternas
(cf. PAYER, 2007.).
LIBRAS é língua materna da maioria dos surdos (ao menos dos natisurdos) e língua alheia à grande maioria dos
ouvintes. Já a língua portuguesa é a língua materna da maioria dos brasileiros (ouvintes) e língua alheia à comunidade
surda, mas língua nacional do país e língua oficial do Estado. Em outros termos, embora LIBRAS e língua portuguesa sejam
tratadas como línguas maternas, somente a última recebe status de língua oficial tanto para ouvintes quanto para surdos.
Não há uma coincidência entre língua materna e língua oficial. Cada qual mobiliza diferentes memórias, com
funcionamentos distintos tanto para os sujeitos quanto para as instituições em face de determinações sócio-históricas.
Tentamos representar tal o batimento entre as duas línguas no quadro a seguir:

Observamos o funcionamento das imagens de língua oficial, delimitada por uma fronteira entre demais línguas
maternas (de sinais, indígenas, etc.) – relacionada ao funcionamento dos espaços enunciativos do Estado. A fronteira
erigida, além de demarcar os espaços de enunciação, toma a diversidade entre os falantes (sinalizantes ou não) como um
valor. Cumpre ressaltar que essa fronteira é configurada a partir de uma memória das línguas, a saber a língua portuguesa
e a LIBRAS. No caso da língua portuguesa a fronteira imagináriafoi construída no Brasil por meio de instrumentos
linguísticos (dicionários e gramáticas), pela escola – mecanismos de controle institucional – e por instrumentos legais. Já
para LIBRAS, as fronteiras (também imaginárias) foram construídas a partir de instrumentos linguísticos produzidos, em sua
grande maioria, por linguistas ouvintes. De fato, as fronteiras entre as línguas são limites frágeis e que resultam “na
presença de toda forma de mistura em seus modos indistintos” (Orlandi, 1998:7).

3. Algumas considerações
Em relação à língua de sinais, podemos dizer que ela produz diferentes gestos de interpretação, nos quais se
inscrevem posições-sujeito distintas – lembrando que o sujeito surdo é um sujeito de linguagem determinado

292
historicamente. Na letra da lei, a constituição desse sujeito é apagada com a redução de LIBRAS a um “meio legal”, diga-se
código, de comunicação e expressão.
Por meio das análises apresentadas, é lícito afirmar que a questão das políticas linguísticas se faz valer da
diferença entre línguas. Assumimos que as fronteiras entre línguas, muito mais que assegurar, proteger e demarcar uma
língua, organizam uma determinada divisão da sociedade. Em outros termos, o real da língua (a língua fluida que é da
ordem das práticas de heterogeneidade linguística e da contradição ideológico) acaba por ser aplainado, homogeneizado.
Podemos dizer que os instrumentos legais analisados pautam-se em uma concepção de “quase-língua”: a LIBRAS
é apenas um meio de transmitir idéias e comunicar fatos em uma comunidade específica, a dos surdos. O sentido de língua
como uma prática discursiva ésilenciado. Os sujeitos falantes dessa ”quase-língua” (por muito tempo interditada e marcada
pela falta de escrita) necessitam aprender a modalidade escrita da língua portuguesa a fim de alcançar a tão almejada
“cidadania”. Apaga-se, nessa construção, a divisão política de espaços de enunciação.
O sentido de língua oficial que precisa ser defendida dos ataques de outras línguas inscreve-se em uma região de
sentidos que consagra a língua portuguesa como sendo verdadeira e plena. E é esse efeito de completude mantém o
imaginário da língua portuguesa no Brasil. Diga-se um efeito produzido ao longo da história da colonização e da
descolonização linguística (cf. ORLANDI, 2009) – uma história de apagamentos de outras línguas.
Parece-nos que os instrumentos legais colocam a língua de sinais em uma posição de inferioridade, apontando
para uma determinada memória da posição do sujeito surdo na história.

Referências

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Federativa do Brasil], Brasília, DF, n. 79, p. 23, 25 abril 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2002/L10436.htm. Acesso: 15 dez. 2009.

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sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial [da
República Federativa do Brasil], Brasília, DF, n. 246, p. 28-30, 22 dez. 2005. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acesso: 22 dez. 2009.

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A autora possui mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002) e doutorado em Letras
pela Universidade Federal Fluminense (2010). É professora assistente de Linguística do Departamento de Estudos da
Linguagem (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de Análise de Discurso de linha francesa. E-mail:
angelabaalbaki@hotmail.com.

294
Enunciados de curta extensão: aforização, mídia e política
BARONAS, Roberto Leiser
(UFSCar-FEsTA-CNPq)

0) Primeiras palavras

Neste trabalho, tomamos como objeto de análise pequenos enunciados que circularam na mídia impressa brasileira
durante os meses de março a agosto de 2010 e que foram atribuídos aos candidatos a presidente do Brasil Dilma Roussef (PT)
e José Serra (PSDB). Tais enunciados foram dados a circular quase que diariamente no site do UOL em pequenos textos,
geralmente de uma página, alguns com fotografias dos candidatos e com marca de responsabilidade enunciativa explícita, ou
seja, praticamente todos os textos tinham assinaturas dos jornalistas que os produziram. De março a agosto construímos um
arquivo documental com 42 textos cuja temática era a agenda de compromissos de campanha dos candidatos José Serra e
Dilma Roussef. Para este trabalho mobilizamos excertos de 04 textos: dois com enunciados atribuídos à candidata Dilma
Roussef e dois com pequenas frases atribuídas a José Serra. Como marco teórico-metodológico mobilizamos a Análise de
Discurso de orientação francesa, sobretudo os trabalhos de Dominique Maingueneau sobre citação, destacabilidade e
enunciação aforizante e de Alice Krieg-Planque sobre fórmulas discursivas.

1) Enunciados de curta extensão: gêneros de discurso


Se, por um lado, os enunciados de curta extensão tais como os slogans, os provérbios, os aforismos, as máximas,
podem ser enquadrados por conta mesmo de sua materialidade significante como enunciados sintaticamente semelhantes, dado
o número reduzido de vocábulos que mobilizam na sua organização frasal, por outro, no tocante às suas propriedades
lingüístico-discursivas, cada um desses enunciados possui características próprias. Cada uma dessas pequenas frases mobiliza
recursos lingüísticos (estilísticos, frasais), temáticos e composicionais bastante específicos. Assim, com base em Mikail Bakhtin
(1984) podemos dizer que cada um desses enunciados constitui um gênero ou um micro-gênero discursivo distinto. Por
exemplo, enquanto um slogan1 geralmente neutraliza a dicotomia existente entre a modalidade escrita e a modalidade falada,
está sempre muito atento às inovações lingüísticas dos mais variados grupos sociais e às moedas lingüísticas mais valorizadas
no mercado; opta geralmente por verbos no imperativo; é atravessado por diversos outros gêneros tais como o provérbio, a
máxima, a palavra de ordem, etc, e aparece em circunstâncias comunicacionais mais complexas tais como a escrita. O
provérbio, ao contrário, por fazer parte da sabedoria popular, do Thesaurus Cultural de um determinado grupo social, se
apresenta mais resistente à neutralização da dicotomia entre a escrita e a fala, às inovações lingüísticas e às moedas
lingüísticas mais valorizadas no mercado; opta freqüentemente por verbos no indicativo; geralmente é pouco atravessado por
outros gêneros e aparece em circunstâncias comunicacionais mais simples como a oralidade. Assim, bakhtinianamente falando,
diríamos que enquanto o slogan se constitui num gênero secundário o provérbio se constitui num gênero primário.

2) Enunciados de curta extensão e sobreasseveração


Todavia, se pensarmos estes enunciados do ponto de vista do seu destacamento do contexto situacional e do co-texto
original em que foram produzidos, verificaremos que o conceito de gênero discursivo não dá conta de descrever as complexas

1 É preciso dizer que o slogan se apresenta com valores distintos quando se trata de slogan publicitário e quando se trata de slogan político.

295
relações estabelecidas entre os enunciados e os textos que os alojam. Estes enunciados se por um lado dependem de um
gênero discursivo que os aninhe, que lhes dê guarida, por outro extrapolam todo e qualquer gênero. Ou seja, estes enunciados,
apesar de estarem inscritos num determinado gênero discursivo, por conta mesmo do seu destaque, acabam por adquirir
autonomia em relação ao texto primeiro, se constituindo num texto outro com sentido próprio. Acreditamos com base em
Maingueneau (2010) que entre os enunciados destacados e o gênero discursivo existe uma relação de destextualização.
Além dos slogans, dos provérbios circulam na nossa sociedade, sobretudo nos mais variados suportes midiáticos, um
conjunto de outros pequenos enunciados que apesar de possuírem características lingüísticas semelhantes às dos provérbios,
dos slogans não se enquadram nem na categoria do primeiro e nem na do segundo. Trata-se no entendimento de Maingueneau
(2007, p.79) de formas lingüístico-discursivas sobreasseveradas que se apresentam como elementos

a) relativamente breves, de estrutura pregnante sobre o plano do significado e/ou do significante; b) estão em posição
relevante no texto ou numa passagem do texto, de modo a lhes atribuir o estatuto de um condensado semântico, o
produto de um tipo de sedimentação da realização do discurso; c) a temática deve estar em relação com o intuito do
gênero de discurso, do texto em questão: trata-se de uma tomada de posição no interior de um conflito de valores; d)
implica um tipo de “amplificação” da figura do enunciador, manifestada por um ethos apropriado.

No entanto, em seus contextos de circulação, tais enunciados não se apresentam sempre da mesma forma. Assim, no
entendimento de Maingueneau (2010, p.10) os enunciados destacados que compõem manchetes de artigos de imprensa, ditos,
intertítulos, etc, podem ser inscritos em

duas classes bem diferentes, conforme o “destacamento” 1) seja constitutivo: é o caso em particular dos provérbios e de
todas as fórmulas sentenciosas que por natureza não possuem contexto situacional nem co-texto original; 2) se trate de
um destacamento por extração de um fragmento de texto: encontramo-nos então em uma lógica de citação.

Os enunciados destacados constitutivos pertencem originalmente a um alhures discursivo, a um já-lá, em termos


pecheutianos, ou seja, eles foram engendrados antes, independentemente em outro lugar por um Sujeito Universal, em que nem
o contexto situacional e nem o co-texto original são recuperáveis lingüisticamente. Apesar de não podermos recuperar o seu
autor, sabemos que ele pertence à sabedoria de uma determinada comunidade. Já os enunciados destacados por extração de
um fragmento de texto são produzidos por um locutor a quem se pode atribuir a responsabilidade pela enunciação e, cujo co-
texto original é recuperável lingüisticamente.
Consideremos o fragmento de texto a seguir de autoria de Kamila Fernandes publicado no site do UOL em 18/05/2010
às 10h17.

i) Em entrevista no Ceará, Serra diz que "pesquisa vai e vem"

Após se esquivar durante todo o dia de ontem de comentar os resultados das duas últimas pesquisas de intenção de
voto, que mostram a pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, à frente, o pré-candidato tucano à Presidência,
José Serra, afirmou nesta terça-feira (18) em entrevista à rádio Verdes Mares, de Fortaleza, que "pesquisa vai e vem" e
que a campanha eleitoral vai começar mesmo "depois da Copa". Em sua fala, Serra não admitiu estar atrás de Dilma,
mas empatado. "Eu estive praticamente na frente sempre, agora tem um empate. Mas logo vai desempatar, a coisa vai
andar, enfim, isso aí é mais ou menos um jogo de retratos que vão se fazendo, mas a pesquisa que importa mesmo é a
pesquisa da urna, do voto", disse.

No fragmento acima, podemos observar que o enunciado destacado é “pesquisa vai e vem”, se constituindo no título
do artigo. Com efeito, dentre as inúmeras falas do candidato do PSDB, inscritas no co-texto original, destextualiza-se um único
enunciado de José Serra, colocando-o em posição de relevo em relação ao restante do texto. Poderíamos dizer que a estrutura

296
morfossintática do enunciado “pesquisa vai e vem”, o seu caráter de fórmula2, favoreceu o seu destacamento, em detrimento de
outros enunciados, tais como “mas a pesquisa que importa mesmo é a pesquisa da urna, do voto", apesar de esse último
enunciado possuir um caráter de conclusão, de seu ethos professoral.
Apesar da presença do verbo de dizer, da conjunção integrante e das aspas no título em questão, marcas que
caracterizam o discurso direto, não se trata somente de uma citação das palavras de José Serra, mas “há aqui a tensão entre
uma dinâmica de textualização, que tende a integrar os constituintes do texto numa unidade orgânica, e um fenômeno que se
chama “sobreasseveração”, abrindo a possibilidade de uma saída do texto, de uma destextualização” (MAINGUENEAU, 2006, p.
80). A frase “pesquisa vai e vem” ao ser sobreasseverada pelo enunciador jornalista, sai do texto e, ao ser destextualizada
ganha autonomia de sentido em relação ao contexto situacional em que foi primeiramente produzida e ao co-texto em que
inicialmente estava inscrita.
Consideremos mais um fragmento, agora de autoria de Ana Flor, publicado no site do UOL em 31/05/2010 às 15h40:

ii) Dilma sinaliza que, se eleita, poderá estender tempo de contribuição à Previdência

A pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, sinalizou nesta segunda-feira que, se eleita, poderá propor
mudanças na Previdência Social que incluam um prazo mais longo de contribuição. "O tal do bônus demográfico nada
mais é do que isso: a sua população em idade de trabalho ativo é maior que sua população dependente, jovem, criança
e velho. Mas a terceira idade, a terceira idade está ficando difícil... A gente vai ter que estender ela um pouco mais para
lá", disse Dilma à imprensa na saída do fórum "Brasil - A construção da 5ª maior economia do mundo".

No fragmento anterior, destaca-se um suposto excerto da fala da locutora Dilma Roussef, colocando-o em forma de
título do artigo: “Dilma sinaliza que, se eleita, poderá estender o tempo de contribuição à Previdência”. Todavia, esse destaque é
produzido pelo enunciador jornalista modulando enunciativamente a fala da locutora Dilma Roussef: "O tal do bônus demográfico
nada mais é do que isso: a sua população em idade de trabalho ativo é maior que sua população dependente, jovem, criança e
velho. Mas a terceira idade, a terceira idade está ficando difícil... A gente vai ter que estender ela um pouco mais para lá". A
locutora Dilma Roussef não sinalizou efetivamente que “se eleita, poderá estender o tempo de contribuição à Previdência”. Entre
a fala do enunciador jornalista e a fala da locutora não há fidelidade enunciativa. Ou seja, o enunciador não retomou em forma
de citação as falas da locutora presentes no artigo. Na verdade, embora tenha se utilizado de um verbo que não implica um total
comprometimento do sujeito com o que enuncia, no caso o verbo “sinaliza” ele realizou todo um trabalho de sobreasseveração
da fala anterior, mudando sensivelmente o seu sentido.
Desse modo, se no primeiro fragmento analisado tínhamos um caso de destacamento de segundo grau (excertos de
uma extração anterior sem modulação enunciativa em forma de citação), no fragmento dois, temos um destacamento de
primeiro grau em que o texto sobreasseverado não coincide com as falas do locutor do texto de origem. Estes tipos distintos de
destacamento

2 Krieg-Planque em sua tese de doutorado ao analisar a fórmula “purificação étnica” posta a circular durante os anos noventa em textos de

diversos jornais franceses, cuja temática eram os conflitos étnicos na antiga Iugoslávia, realizou de certa maneira, uma história de palavras: a
das quatro palavras que são “purificação”, “limpeza”, “depuração” e “étnica”. A pesquisadora francesa procurou estudar os momentos, na
história dos discursos, em que essas palavras entram em conjunção para formar os sintagmas neológicos “purificação étnica”, “limpeza étnica”
e “depuração étnica”. Na verdade, ela buscou compreender como, no prisma dessas formulações, a guerra da ex-Iugoslávia havia sido
interpretada nas mídias francesas. Em outras palavras, ela procurou esclarecer em que medida a fórmula “purificação étnica” pode funcionar
como interpretante para alguns dos comentadores das guerras iugoslavas. Por fórmula a pesquisadora francesa entende: “um conjunto de
formulações que, pelo fato de serem empregadas em um momento e em um espaço público dados, cristalizam questões políticas e sociais que
essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir”.

297
“nos parecem reveladores de que a sobreasseveração e os enunciados destacados têm status pragmático distinto. Os
últimos decorrem de um regime de enunciação específico, que propusemos chamar “enunciação aforizante”: entre uma
“aforização” e um texto não há uma diferença de forma, mas de ordem”. (MAINGUENEAU, 2010, p).

3) Aforização e enunciados de curta extensão


No entendimento de Maingueneau (2010) há enunciações que se inscrevem na ordem do texto e enunciações que se
inscrevem na ordem da aforização. Estes dois tipos de enunciações se diferenciam pela maneira mesmo como lidam com a
ordem do enunciável, do que pode e deve ser dito em uma determinada situação. Não se trata apenas de uma diferença de
forma: por exemplo, marcas explícitas de citação do discurso do “outro” no fio do discurso do “eu”, por exemplo: conjunção
integrante, mais verbo dicendi e aspas para o texto e marcas implícitas de citação para a aforização, como o discurso indireto
livre. Para o pesquisador francês entre texto e aforização é possível pensar nas seguintes oposições:

“- Todo gênero de discurso define duas posições correlativas, de produção e de recepção, em interação e especificados
pelas restrições da cena genérica. O que faz com que se possa falar de “papéis”. Poderíamos também dizer que dentro
da textualização não nos relacionamos com Sujeitos, mas com facetas, aquelas que são pertinentes para a cena verbal,
onde a responsabilidade do dizer é partilhada e negociada. Na enunciação aforizante, ao contrário, não há posições
correlativas, mas uma instância que fala a uma espécie de “auditório universal” (Perelman), que não se reduz a um
destinatário localmente especificado: a aforização institui uma cena de fala onde não há interação entre dois
protagonistas colocados no mesmo plano. O locutor não é apreendido por tais ou tais facetas, mas em sua plenitude
imaginária: não há ruptura entre uma instância fora da enunciação e uma instância que é um papel discursivo. É o
próprio indivíduo que se exprime, além/aquém de qualquer papel, “ele mesmo”, de alguma forma. Fundamentalmente
monologal, a aforização tem como efeito centrar a enunciação no locutor;
- Um texto é uma rede de pensamentos articulados por meio das restrições de jogos de linguagem de diversas ordens:
argumentar, narrar, responder a uma pergunta, maldizer... Na aforização, o enunciado pretende exprimir o pensamento
de seu locutor, aquém de qualquer jogo de linguagem: nem resposta, nem argumentação, nem narração, mas
pensamento, dito, tese, proposição, afirmação soberana...;
- Os textos tendem a estratificar planos enunciativos: diferentes figuras de enunciador (por exemplo, a autocorreção, a
concessão...), diferentes status polifônicos (citações...), diferentes planos de texto (primeiro plano/plano de fundo...),
enunciados embreados e desembreados... Na enunciação aforizante, ao contrário, o enunciado tende à homogeneidade,
sem mudanças de planos enunciativos;
- Todo texto implica uma forma de subjetividade que varia de acordo com o suporte e os modos de circulação: será
aquela que a escrita impõe. Mas a aforização passa ao largo de todas as oposições midiológicas. É uma forma de dizer
puro, quase próxima de uma consciência;
- O texto excede a dimensão propriamente verbal: na forma escrita, ele é feito imagem (o que a tipografia manifesta), na
forma oral, é um elemento num fluxo de comunicação (gestos, entoações, roupas...): a orquestra em que cada um toca
sua parte. O enunciado aforizado, no entanto, não se desenvolve para formar um quadro; ele contesta a inevitável
espacialização da memória discursiva que cada texto constrói. Dessa forma, a aforização pretende escapar ao fluxo de
comunicação, ser pura palavra;
- A enunciação textualizante resiste à apropriação por uma memória. É preciso ser ator ou bardo profissional para
memorizar textos inteiros. A enunciação aforizante implica a utopia de uma palavra viva sempre disponível, que atualiza
o “memorável”: enunciando e mostrando que enuncia, ela se dá como parte de uma repetição constitutiva”.
(MAINGUENEAU, 2010, p.17).

298
Tomemos mais um excerto de texto publicado no site do UOL em 12/05 às 11h 54.
iii) Aborto é questão de política de saúde pública, diz Dilma

Dilma participou de programa de TV no Rio Grande do Sul nesta segunda-feira. Para a presidenciável Dilma Rousseff, o
aborto é uma "violência contra a mulher" e não uma "questão de foro íntimo", mas sim uma de "política de saúde
pública". A ex-ministra da Casa Civil foi questionada sobre o tema na manhã desta quarta-feira (12), durante
participação no programa Painel RBS, da emissora TVCOM, no Rio de Grande do Sul. "Nesses casos que incluem
gravidez risco de vida ou violência não é possível que as mulheres das classes populares usem métodos medievais
[para abortar]", disse a pré-candidata petista à Presidência da República. "Um governo não tem de ser contra ou a favor
do aborto; ele tem de ser a favor de uma política pública".

Neste fragmento de texto é possível observar que o enunciado “aborto é questão de política de saúde pública” é
destacado do contexto situacional e do co-texto original e colocado como título da matéria. A opção por esse destaque da fala da
locutora em detrimento de outras possíveis tais como “violência contra a mulher” e “questão de foro íntimo” inicialmente parece
estar relacionada ao fato de que essa pequena frase possui um caráter de fórmula. Todavia, um exame um pouco mais
minucioso das outras falas evidencia que todas podem ser enquadradas na categoria de fórmula. Acreditamos que tal destaque
se deva em razão de o jornalista se constituir num aforizador, pois como diz Maingueneau (2010, p.18) o enunciador “assume o
ethos do locutor que está no alto, de indivíduo autorizado, em contato com uma Fonte Transcendente. É considerado como o
que enuncia sua verdade, que prescinde da negociação”. O jornalista aforizador ao realizar o destaque não está dialogando nem
com o locutor da fala destacada e nem com o destinatário (leitor). Sua fala monologalmente construída se inscreve como a fala
autorizada de um Sujeito pleno de direito.

Se a aforização implica um locutor que se coloca como Sujeito de pleno direito, reciprocamente um Sujeito se manifesta
como tal por sua capacidade de aforizar. Trata-se fundamentalmente de fazer coincidir sujeito da enunciação e Sujeito
no sentido jurídico e moral: alguém se coloca como responsável, afirma os valores e os princípios perante o mundo,
dirige-se a uma comunidade que está além dos alocutários empíricos que são seus destinatários. Na tradição filosófica, o
Sujeito, o sub-jectum, é colocado abaixo, ele é o que não varia, o que escapa à relatividade dos contextos; Sujeito pleno,
o aforizador pode responder por aquilo que diz através da pluralidade das situações de comunicação. Disto vem sua
ligação estreita com a juridicidade: quando se quer condenar alguém pelo que disse, em geral o que é condenado não é
um texto – sempre relativo a um contexto – mas uma aforização ou um conjunto de aforizações. (MAINGUENEAU, 2010,
p. 20).

No momento em que o site do UOL insere monologalmente a aforização "aborto é questão de política de saúde
pública", atribuída à candidata Dilma Roussef, o leitor é interpelado a atribuir a esse enunciado formulaico um sentido que
extrapola o seu sentido primeiro. A interpretação assume a equação: “Dizendo X, o locutor implica Y”, onde Y se constitui num
enunciado genérico de valor deôntico: “O Estado não deve deixar que o indivíduo decida sobre realizar um aborto ou não”; “O
aborto deve ser tratado pelo Estado”; “O Estado deve planejar ações para resolver o problema do aborto”; “Não se deve apoiar o

299
aborto”, etc. As possíveis interpretações produzidas pelos leitores não são da mesma ordem e profundidade das que
acompanham os textos literários, filosóficos, ou religiosos, por exemplo. No entanto, trata-se de uma verdadeira “atitude
hermenêutica” que faz com os leitores ou os ouvintes mobilizem um conjunto de estratégias interpretativas. Ou seja, os leitores
são mobilizados a interpretar o destaque, procurando (re)construir o percurso interpretativo desenhado pelo aforizador. Desse
modo, no entendimento de Maingueneau (2010, p.21)

partindo do postulado de que a aforização resulta de uma operação de destacamento que é pertinente, o leitor deve
construir interpretações que permitam justificar esta pertinência. Pouco importa qual seja a interpretação que construa, o
essencial é que ele postule um além do senso imediato e aja de acordo. Fazendo isso, o destinatário é chamado a
justificar, pela busca hermenêutica, a própria operação de destacamento o fato deste enunciado ("Aborto é violência
contra a mulher"), ser apresentado em um regime aforizante leva o destinatário a legitimar a totalidade do quadro
situacional.

No fragmento em análise é possível observar ao lado da enunciação aforizante a presença de uma fotografia da do
rosto da locutora Dilma Roussef. Sobre a relação entre fotografia e aforização, Maingueneau (2010, p.22) nos diz o seguinte:
A presença muito frequente de fotos do rosto dos locutores ao lado das aforizações pessoais aparece como a
manifestação de algo constitutivo. O rosto tem duas propriedades notáveis: 1) é a única parte do corpo considerada
capaz de identificar o indivíduo como distinto de qualquer outro; 2) é no imaginário profundo a sede do pensamento e
dos valores transcendentes. A foto autentica a aforização do locutor como sendo sua palavra, aquela que faz dele um
Sujeito plenamente responsável. Ela acompanha naturalmente, portanto, a aforização.

No caso em análise, a fotografia mostra que a locutora Dilma Roussef está dentro de um carro acompanhada por
Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais. A matéria do jornalista faz,
contudo, alusão ao fato de que a candidata deu entrevista a uma TV do Rio Grande do Sul, “Dilma participou de programa de
TV no Rio Grande do Sul nesta segunda-feira” era de se esperar portanto que a fotografia retratasse a entrevista. No entanto,
como afirma Maingueneau (2010, p.22) “A foto do rosto também é, além disso, o produto de um destacamento, que elimina
qualquer contexto situacional (roupa, lugar, momento...)”. A fotografia do rosto da locutora Dilma Roussef apaga a necessidade
de uma referencialidade, corporal, temporal e espacial. Não é preciso mostrar a locutora em um estúdio de televisão por
exemplo para evidenciar que efetivamente ela tenha dito o que está no destaque e no co-texto original. Tanto a aforização
quanto o destacamento do rosto ao se apoiarem mutuamente identificam o locutor com a pessoa do rosto, produzindo um efeito
de veracidade do que é dito.
É possível asseverar que se o site do UOL inserisse outra aforização tal como “aborto é uma violência contra a
mulher”, atribuída também no co-texto à candidata Dilma Roussef, o leitor seria interpelado a produzir interpretações
completamente diferentes daquelas que produziu a partir do primeiro destaque. Por exemplo: “Deve-se continuar condenando o
aborto”; “Deve-se preservar o corpo da mulher contra qualquer tipo de violência, sobretudo a do aborto”; “Não se deve apoiar a
des-criminalização do aborto”, etc.. Diante disso é pertinente postular que a interpretação do leitor é também condicionada pelo
tipo de destaque efetuado, ou seja, o destaque da fala do locutor por parte do aforizador implica, independentemente do locutor
e independentemente do leitor, um conjunto de interpretações dadas previamente pelo aforizador. Em outras palavras, o
aforizador além “de fazer coincidir o sujeito da enunciação e o Sujeito no sentido jurídico e moral e de se colocar como
responsável, afirmando os valores e os princípios perante o mundo, dirigindo-se a uma comunidade que está além dos
alocutários empíricos que são seus destinatários”, constrói percursos interpretativos que deverão ser necessariamente seguidos
pelos leitores.
Consideremos mais um fragmento publicado no site do UOL em 07/07/2010 - 14h58 de autoria de Maurício Simionato.

300
iv) Serra chama de "incrível" Dilma assinar programa do PT sem ler

O candidato à Presidência do PSDB, José Serra, disse hoje em Jundiaí (SP), ter achado "incrível" a versão de que sua
adversária, a petista Dilma Rousseff, tenha assinado uma versão do programa de governo dela sem ter "dado uma
olhada naquilo". A primeira versão do programa de governo petista foi entregue anteontem no TSE (Tribunal Superior
Eleitoral). O documento previa, entre outros pontos, a tributação de grandes fortunas e redução de jornada de trabalho.
Após repercussão na internet, o PT retirou sete horas depois de protocolado o documento e entregou outra versão. "Eu
achei incrível realmente porque você não assina um programa assim, sem dar uma olhada naquilo que tem. Na verdade,
eu acho que a proposta era entregar aquele mesmo. Não foi entregue outra versão. Demorou muito. Foi entregue uma
versão trabalhada para tirar estas coisas um pouco mais polêmicas que são autenticamente ideias do PT, afinal de
contas forma aprovadas em um "congresso do partido", disse Serra.

No excerto em análise o locutor José Serra diz: "Eu achei incrível realmente porque você não assina um programa
assim, sem dar uma olhada naquilo...”, no entanto, o aforizador destaca somente o elemento lingüístico “incrível” “Serra chama
de "incrível" Dilma assinar programa do PT sem ler”, colocando entre aspas no título da matéria. Além de o aforizador suprimir
todo o restante do enunciado, ele constrói um enunciado que, embora seja atribuído ao candidato Serra, pelo co-texto original, é
possível constatar que o locutor falou algo diferente do lhe foi atribuído. Do ponto de vista da designação, nomear algo de
incrível é pouco usual no português brasileiro. Todavia, se o aforizador realizasse um destaque mais próximo do que está no co-
texto original, por exemplo “Serra acha incrível que Dilma tenha assinado...”, o percurso interpretativo proposto para o leitor se
modifica profundamente.

4) Apontamentos em forma de conclusão


Do mirante da análise discursiva dos pequenos enunciados atribuídos aos candidatos Dilma Roussef e José Serra à
luz, sobretudo, da categoria de aforização, proposta por Dominique Maingueneau, foi possível constatar que os destaques
efetuados pelo jornalista aforizador, colocando-se como um sujeito autorizado, pleno de direito, cuja a “verdade” veiculada
prescinde de diálogo (quer seja com o locutor do texto destacado, que seja com o próprio destinatário do texto) não apenas insta
o leitor a realizar uma interpretação, mas propõe para este leitor um percurso interpretativo. O que implica uma espécie de
“cumplicidade” interpretativa entre aforizador e destinatário. Cumplicidade que possibilita a construção de determinadas
subjetivações nos sujeitos: por exemplo votar ou não em determinado candidato; culpar ou não determinado sujeito por um
crime, etc.
Do ponto de vista teórico da Análise de Discurso a aforização evidencia que em determinados textos a
destextualização de pequenos enunciados implica uma outra ordem do enunciável, na qual dialogam tensivamente não somente
locutores e enunciadores, mas também Sujeitos plenos de direito e que estes últimos se sobrepõem enunciativamente aos
outros dois.

5) Referências
BAKHTIN, M. Esthétique de la création verbale, Paris, Gallimard, 1984.

KRIEG-PLANQUE, A. «Purification ethnique ». Une formule et son histoire, Paris : CNRS Éditions. Collection Communication,
2003.

_____. A noção de “fórmula” em análise do discurso – quadro teórico e metodológico. Trad. Salgado e Possenti. São Paulo:
Parábola, 2010.

301
MAINGUENEAU, D. "Les énoncés détachés dans la presse écrite. De la surassertion à l'aphorisation.", in Interdiscours et
intertextualité dans les médias, M. Bonhomme et G. Lugrin (éds.), Travaux Neuchâtelois de linguistique, 44, septembre 2006.

_____. Citação e destacabilidade. In: Cenas da Enunciação. Org. Sírio Possenti e Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva.
Curitiba, PR: Criar Edições, 2007.

_____. Aforização: enunciados sem texto? In: Doze conceitos em análise do discurso. Org. Sírio Possenti e Maria Cecília Perez
de Souza-e-Silva. São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2010a.

_____. Aphorisations politiques, médias et circulation des énoncés, 2010b. (no prelo para publicação).

6) Currículo do autor
Professor no Departamento de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFSCar; Professor Colaborador no
Mestrado em Estudos da Linguagem da UFMT; Vice-presidente do GEL; Editor da Revista de Divulgação Científica em Ciências
da Linguagem – Linguasagem e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – nível 2. E mail: baronas@ufscar.br

302
O trabalho docente na educação de surdos

BENTES, José Anchieta de Oliveira


(UFSCAR/UEPA)

INTRODUÇÃO
Este artigo pretende desenvolver teorizações a cerca de questões referentes à normalização do corpo das
pessoas deficientes. Parte de conceitualizações que compõem as categorias que explicam a discriminação, no caso, o
capacitismo em relação às pessoas surdas. Porém, é preciso esclarecer que o conceito de “normal”, muito usual em nossa
linguagem cotidiana, pode ser usado para “situação normal”, “trânsito normal”, “tempo normal”, “estado de saúde normal”,
sendo que este último se aplica ao corpo.
A utilização que está sendo atribuída ao vocábulo normalização é o de uma teoria aplicada às pessoas
deficientes, que fornece uma explicação para excluir todas as pessoas que não estão enquadradas nas características da
ideologia da normalidade (DAVIS, 2006a). Assim, o anormal seria o desviante, o que está nos extremos da estatística dos
corpos normais, perfeitos, expressos pela “curva do sino”.
A pessoa deficiente é caracterizada como um anormal por esta ideologia, justamente quando são feitos discursos
de generalização normalizadora, de invisibilizações e de interdições. No primeiro discurso, faz-se comparações binárias
entre o corpo perfeito com o imperfeito, o corpo normal e o anormal, para excluir o segundo componente; no segundo
discurso, não se percebe a existência do corpo deficiente; e no terceiro discurso, proíbe-se a ação experiencial do
interditado.
Daí a metodologia transdisciplinar das representações sociais. Nesta metodologia busca-se a explicitação de
categorias analíticas capazes de indicar o fenômeno da exclusão do corpo deficiente em decorrência da exclusão
normalizadora, indicando em que situação estas ocorrem: em conflitos estabelecidos por discursos e ações em que se faz
generalizações ideológicas, invisibilizações e interdições da pessoa. Estas categorias analíticas foram capazes de
ultrapassar fronteiras disciplinares e recriar conceitos e interpretações, em função do objetivo de abordar as atividades
docentes em duas escolas especiais de surdos, sob a perspectiva da normalidade.
Esse objetivo geral teve a relevância de se buscar mais informações a respeito do trabalho docente com surdos e
por isso se decidiu entrevistar as professoras nos seus locais de trabalho, a Unidade de Educação Especializada Professor
Astério de Campos, em Belém do Pará, e o Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Rio de Janeiro. Isso porque a
escola é concebida como a agência em que os professores implementam suas metodologias, suas formas de avaliação,
seus objetos de ensino. Nela se expressam dificuldades na execução do trabalho, críticas e posicionamentos favoráveis ou
não sobre a inclusão, a normalização e o potencial das pessoas surdas, seus alunos. As professoras aqui referidas têm
seus nomes substituídos para preservar suas identidades.
A questão central da pesquisa é: “por trás de uma (aparente) variabilidade inter-professoras e de um percurso
histórico-conjuntural no modo de trabalhar com surdos, que representações sociais predominam na educação dos alunos
surdos? O tratamento do surdo está orientado para a normalização ou para a disnormalização?” Estas questões foram
respondidas com a elaboração das três categorias de análise.
Ocorrem concepções enraizadas na educação de surdos, com as representações do tipo: a) a oralização do
português tem que ser perfeita; b) a compreensão da fala da língua portuguesa também; c) o seu ensino deve partir

303
obrigatoriamente de letras, fonemas, sílabas ou palavras descontextualizadas; d) a surdez é ainda associada com a
deficiência intelectual, considerada como a pior das deficiências.
Como se observa, são vários os discursos normalizadores que remetem ao capacitismo, ideologia que estabelece
que somente as pessoas normais tenham condições de sobreviver na atual sociedade competitiva e “excludente”.
Em um sentido normalizador, a exclusão se materializa em discursos que desconsideram a Língua de Sinais e
exigem a expressão perfeita na modalidade oral e escrita na leitura e compreensão do texto escrito da Língua Portuguesa.
Em outras palavras, a tentativa de incluir os surdos por processo de adoção de práticas normalizadoras resultam
em uma inclusão forçada, nos termos foucaultianos, que desqualifica, exila, rejeita, priva, recusa e desconhece o Outro, ou
seja, utiliza-se de “todo o arsenal dos conceitos e mecanismos negativos da exclusão” (FOUCAULT, 2001, p. 54).
A normalidade é uma forma de inteligibilidade do corpo em função de atribuição de desempenhos culturalmente
estabelecidos, como ideais, do tipo ter um corpo perfeito e escultural, com todos os órgãos perfeitos, andar com duas
pernas, escutar perfeitamente, ler com fluidez etc., conforme os padrões estabelecidos pela mídia, pelas agências de
modelos e pela teoria das patologias. Os modelos ideais são propagados pelo senso comum, que compara o corpo a um
produto comprado em uma loja: ele tem que estar perfeito, em pleno funcionamento senão vai ser trocado ou vai para o
conserto.
Nas relações sócio-culturais o corpo não deve ser tratado como mercadoria, uma vez que as lesões e as doenças
“não são somente desequilíbrio ou desarmonia, [elas são] também, e talvez, sobretudo, o esforço que a natureza exerce no
homem para exercer um novo equilíbrio” (CANGUILHEM, 2007, p. 10). Neste sentido, não se pode condenar o desequilíbrio
ou desarmonia, como se fossem a exceção de uma normalidade, a exceção de um padrão de corpo estabelecido.
Na teoria da normalidade, o normal é comprovado pela estatística que estabelece a existência do diverso, pois o
normal é um só, é aquele padrão definido. Tudo é feito no sentido de se aproximar do padrão de normalidade, do padrão de
corpo perfeito. Se for feita uma operação ou um tratamento, os fins destes é a rejeição do seu corpo e a tentativa de
perfeição.
O tratamento, a operação ou o uso de uma prótese pode servir para a melhora da saúde, para a melhora de um
desempenho físico, sensorial ou intelectual, não com fins meramente estéticos, para parecer que é uma pessoa “normal”.
No entanto, a simples crítica a esta ideologia não deve servir de “artilharia” para não aceitar a melhora do
desenvolvimento físico e intelectual das pessoas que apresentam condições precárias de saúde. Em função disso, é
possível prever a necessidade de as pessoas deficientes terem o direito a uma reabilitação, ao uso de próteses, ao direito a
uma tecnologia que aperfeiçoe sua locomoção, sua comunicação e independência e melhore sua qualidade de vida. A
reabilitação deve estar em função da melhora de saúde e não em função de atender a uma ideologia de normalização do
corpo.
Os métodos de ensino, centrados na aquisição de vocábulos soltos e na sua oralização, são práticas
normalizadoras. Eis uma das polêmicas principais no ensino de surdos que faz parte da polêmica subjacente: o surdo deve
ou não ser oralizado? Tal questão parte de um pressuposto, generalizador, que afirma que qualquer surdo deve ser
oralizado ou com um outro pressuposto, oposto, que nenhum surdo deve ser oralizado, desconsiderando que há vários
tipos de identidades surdas.
Passa-se a referir as categorias normalizadoras, citando as falas das professoras.

304
1. GENERALIZAÇÕES IDEOLÓGICAS
As generalizações ideológicas – são conclusões gerais, simplistas e parciais sobre um fato ou problema. Um
exemplo disso é: se um surdo se ‘recupera’ ou se ‘salva’ da surdez, todos os surdos vão ou podem fazer o mesmo, podem
se “normalizar”.
Os exemplos postos no quadro 1 são de generalizações obtidos nos discursos das professoras:
Quadro 1: Representações de Generalizações ideológicas
Processos Representações sociais
Generalizações  O mundo é um só e é dos ouvintes: “O mundo lá fora, o mundo é ouvinte,
ideológicas né?” (EVA, t. 86).
 O lugar de surdos e a escola especial; o lugar de doentes é a escola
especial: “eu mesmo fui a primeira a chamar a mãe e orientá-la pra que ela
procurasse uma escola especializada pra surdez [...] a mãe ficou ofendida e
disse que a filha dela não era doente” (LUNA, t. 10).
 A escola regular versus a escola especial, quando a função desta última é
preparar o aluno para a primeira – normalizá-lo: “eu acho assim que não
seria preciso acabar com a escola para que a própria escola, a nossa própria
escola ela poderia ainda permanecer como, como ela/ ela é, como ela está
preparando, pra poder mandar lá pra escolas regulares” (RAY, t. 78).
 A suposição de que os surdos são tratados como anormais pela escola
regular e que professores nunca estarão preparados para trabalhar com
estes alunos: “Eu acho que ainda tratam como anormal, né? [...] os
professores podem eles acharem que eles não tão apto a a receber esse
aluno/ com certeza eles vão/ eles não vão utilizar novas, novas avaliações a,
uma avaliação diferenciada (RUTH, t. 90).
 O ensino de surdos é igual ao ensino de ouvintes. “Faço/ muito parecido/
muito próximo de uma escola regular” (IVANA, 36).
 A distinção entre surdo puro e surdo com outras deficiências: “Agora pra
esse surdo puro que a gente chama, não é impedimento não (BIA, t. 58).
Fonte: elaboração própria

As representações colocadas pelas professoras, para o estabelecimento de um tipo de um surdo ideal, incluem
critérios do tipo não ter a surdez associada com outras deficiências, entender plenamente o que é enunciado, compreender
o texto escrito, ser falante proficiente da língua de sinais. A teorização da “cultura e identidade surda autêntica” também
estabelece um ideal, do tipo ter nascido surdo, ser surdo profundo, reivindicar relacionamentos e convivência com pessoas
semelhantes. Essas representações generalizadoras chegam a fundamentar propostas pedagógicas como a que defende a
existência de escolas somente para surdos.
A ideologia da normalidade tende a situar os níveis de capacidade e incapacidade para estabelecer níveis de
pessoas surdas, surdos ideais, modelo de pessoas, como forma de fundamentar uma prática pedagógica, ou ainda para fins
de estabelecer identidades essencialistas e exclusivistas. A comparação e classificação, aqui consideradas, têm como fim a
normalização.
Outros exemplos de generalizações ideológicas ocorrem no discurso da professora Eva ao citar que apenas o
mundo ouvinte existe, e que o surdo tem que aprender a falar e a escrever a língua majoritária deste mundo. No da
professora Luna, quando relatou que no começo do trabalho chamou a mãe para encaminhar uma aluna surda para uma
escola especial com a generalização: por ser surda deve estudar em escola especial. E, no discurso da mãe, no seu turno,
pode-se deduzir uma generalização normativa: – a escola especial é lugar de doentes –, por isso não aceitou a posição da
professora.

305
No caso das falas referentes ao objeto de ensino, a professora Ray, ao trabalhar primeiro com fonemas, pode-se
deduzir um discurso que diz que para trabalhar com surdos é preciso trabalhar primeiramente e unicamente a impostação
de fonemas.
Nas falas relacionadas à função da escola, a professora Ray cita que – a escola especial deve preparar o aluno
para a escola regular –, o que significa que esta instituição não se sustenta por si só: ela normaliza o aluno para poder ir
para escola regular. E, ainda, no da professora Ruth que acha que os professores das escolas regulares ainda tratam os
surdos como anormais e os mesmos dizem não se sentirem preparados para receber alunos surdos.
Discursos que fazem generalizações ideológicas também ocorrem quando a professora Bia estabelece como
parâmetro o deficiente intelectual para indicar que se for só surdo, se não ocorrer outros comprometimentos, pode ocorrer
aprendizado; No discurso da professora Ivana, quando expõe que na forma de avaliar segue o modelo da escola regular: a
avaliação normalizadora compara um aluno ideal com um aluno real e desconsidera as dificuldades e limitações de um
aluno deficiente.
Avaliam-se os surdos como se fossem ouvintes, com o argumento de prepará-los para o mundo ouvinte, para a
escola dos ouvintes; e, como argumenta a professora Ray quando diz que comparativamente o surdo tem mais condições
de progredir do que outras pessoas que apresentam outras deficiências.
Também ocorre no discurso da professora Bia ao defender que a inclusão na escola regular ocorre somente para
os com surdez leve e moderada, os demais continuariam na escola especial – a escola especial seria o local dos surdos
severos e profundos.
Nestes termos, é preciso superar o debate entre cura – com a defesa de que o surdo deve unicamente ser
oralizado para fazer parte da sociedade majoritariamente constituída de pessoas ouvintes – e a anti-cura, com a suposta
defesa de que uma cultura ou identidade autenticamente surda rejeita qualquer tratamento que possa desenvolver
potencialidades.
Da mesma forma, não se defende que as pessoas deficientes sejam exibidas para provocar sentimentos de
piedade, de escárnio, de riso, ou simplesmente, de superação de uma deficiência no afã de conseguir tornar-se normal.
Isso parece ocorrer no discurso da professora Bia, embora não intencionalmente, ao não explicar o falso convite
de ir para Suécia, acabando por causar que um dos seus alunos passe por uma situação vexatória. No discurso da
professora Léa, em que ocorrem problemas de compreensão da fala em Língua de Sinais – a professora se envolve em
uma situação deprimente ao parabenizar um aluno que passa por uma situação de alagamento de sua moradia.

2 INVISIBILIZAÇÕES
A invisibilidade das pessoas deficientes ocorre quando se desconsidera sua existência, suas diferenças
sensoriais, físicas, cognitivas e linguísticas; quando se apresenta um surdo como se fosse ouvinte, rejeitando a
comunicação por meio da Língua de Sinais, insistindo na homogeneização das pessoas e no estabelecimento de padrões
de normalidade.
No quadro 2 estão os discursos das professoras caracterizados como de invisibilizações:

306
Quadro 2: Representações de invibilização
Processos Representações sociais
Invisibilizações A contratação ou colocação de professores sem formação específica para
trabalhar com surdos. “[...] meu primeiro contato com surdos mesmo foi aqui
no meu primeiro dia de aula” (BIA, t. 10).
 A própria escola especial desconsidera a avaliação em Língua de Sinais:
“trabalha-se em Libras, né? E se cobra em Português” (EVA, t. 62).
 O aluno não é considerado na escola regular, o que provoca o retorno de
ex-alunos para a Escola Especial: “Os próprios pais dizem: É lon::ge a beça,
mas eu achei melhor que ele viesse aqui pra Escola Especial, pelo menos
aqui ele vai aprender alguma coisa, porque lá, ele não tá entendendo nada.
Ele só copia” (EVA, t. 120).
 O aluno surdo perde muitas informações em uma turma de 40 alunos,
mesmo com intérprete. “[...] numa sala de quarenta e poucos alunos não,
ninguém dá atenção, ela fica lá, não é por maldade, não é nada disso, mas o
professor não tem como, e a escola também não tem pessoal suficiente pra
dar apoio, não tem:: A pessoa fica sozinha” (LÉA, t. 107).
Fonte: elaboração própria

Ocorrem invisibilizações das pessoas surdas quando se desconsidera que para trabalhar com surdos, nas escolas
especiais, as professoras precisam saber Libras. No caso, o agente responsável pela contratação ou locação de
professoras tratou os alunos surdos como invisíveis, desconsiderando-os, uma vez que não se exige uma formação prévia
do professor que vai trabalhar com surdos. Ocorre na escola por desconsiderar a avaliação em Língua de Sinais, conforme
os relatos das professoras Bia, Eva e Léa: Eva cita o fato do aluno não SER considerado na escola regular, o que provoca
o retorno de ex-alunos para a Escola Especial, quando foram estudar em escolas próximas de suas casas. Nessas escolas
eles não conseguiam aprender, por isso o retorno para a antiga escola. Ocorre no discurso da professora Léa, ao citar que
na época em começou a trabalhar, o aluno ficava pelo menos dois anos em cada série para adquirir vocabulário.

3 INTERDIÇÕES
Geralmente esse tipo de discurso está associado a comportamentos de familiares e de pessoas que atuam com
pessoas deficientes, que em função de uma suposta culpa ou medo excessivo não permitem que a pessoa deficiente saia
sozinha ou tenha algum tipo de independência.
Pode-se sintetizar as representações sociais de interdições no quadro 3:

Quadro 3: Representações de interdições


Processos Representações sociais
Interdições  O tratar o surdo como se fosse uma eterna criança, um eterno bebê. “Ela já
tem 25 anos, como se ela fosse um bebê [...] Ela acorda, liga a televisão e
fica comigo o tempo inteiro, não deixo ela fazer nada“ (t. EVA, t. 24).
 Reter uma aluna na escola especial. [...] eu acho que desde quando, desde
os nove anos ela estuda, ela estuda, ela estudava aqui e ela tá com::
cinquenta/ cinquenta e quatro se eu não me engano, então ela passou uma
etapa da vida dela estudando aqui nessa escola [...] (RUTH, t. 14).
Fonte: elaboração própria

307
A interdição pode ser deduzida quando se prolonga ininterruptamente a permanência de um aluno na mesma
série, por não aprender a ler ou não aprender um determinado conteúdo; ou quando a mãe trata a filha adulta como se
fosse um bebê.

4 PROCESSOS DE DISNORMALIZAÇÃO
Em um sentido contrário à normalização, deve-se reconhecer que, tanto no Rio de Janeiro quanto em Belém,
foram dados passos no sentido de aceitação das pessoas deficientes nas escolas, com algumas mudanças nas regras de
percepção dos alunos.
Nem todo discurso em relação às pessoas deficientes são excludentes, e nem todos os educadores, nas escolas
especiais ou nas escolas regulares segregam as pessoas deficientes. Ocorrem discursos que não remetem ao capacitismo,
assim, há práticas docentes que valorizam o que a pessoa tem de potencialidade, consideram seus conhecimentos prévios,
estabelecem interações e utilizam instrumentos semióticos eficazes para uma efetiva interação que têm, como resultado, a
aprendizagem do indivíduo.
Algumas dessas práticas foram observadas nas salas de aula das professoras Léa e Bia, com o uso de textos. As
entrevistadas não forneceram apenas discursos normalistas. Também há depoimentos anti-normalização, o que pode se
chamar de disnormalização. Alguns indicativos disso:
a) A professora Léa trabalha temas da realidade do surdo, utiliza uma língua comum entre alunos e professora, a
Libras, proporciona discussões em sala de aula, considera a condição dos alunos.
b) A professora Luna argumenta em favor de uma avaliação diferenciada para o aluno surdo em decorrência da
produção escrita não ser no padrão da Língua Portuguesa. Se a comparação é inevitável na avaliação, que ela ocorra para
comparar uma situação atual e uma possível potencialidade do que o aluno pode aprender, como defende Vigotsky, na
teoria da Zona de Desenvolvimento Proximal, e não na comparação entre anormais com o ideal de normalidade.
c) A professora Ivana defende que se o aluno está na escola, ele tem que estar lá para aprender algo, então, a
professora considera a potencialidade dele de aprender, não importando se é na escola especial ou na escola regular.
d) A professora Ivana considera os saberes prévios dos alunos, e que estes levantam hipóteses no processo de
leitura, utilizando a Língua de Sinais. A professora também considera temas e fatos da vida do aluno como propiciadores
para uma aprendizagem. A proposta desta é de uma ‘inclusão ao inverso’, em que os alunos ouvintes é que viriam para
escola especial, com todo aparato dessa escola, para trabalhar utilizando duas línguas. E, a professora Luna relata que
passou a considerar uma aluna surdocega, (com baixa visão e surdez associada) mudando sua forma de trabalhar com a
mesma, preparando material ampliado e promovendo sua participação nas atividades.
e) A professora Eva cita que os alunos reivindicam, exigem um ensino para atender suas necessidades de
aprendizagem. Aqui os surdos ganham autonomia, se organizam e passam a reivindicar direitos e "características
identitárias" próprias, em conflito com as posições que defendem apenas tratamentos terapêuticos da fala para que o surdo
aprenda a falar.
Observou-se que as professoras já partem de uma concepção interacionista de língua, levando em consideração
a identidade do aluno para compor as escolhas do que vai ser trabalhado em sala de aula. Consideram a variedade de
gêneros textuais, produzidos fora da sala de aula, e também, a possibilidade de uma prática de ensino multicultural,
admitindo os artefatos da cultura surda, com ênfase na transmissão visual das informações por meio de tecnologia como o
computador. São exemplos de disnormalização dos discursos e das práticas em sala de aula.
Estes exemplos de disnormalização nos discursos das professoras é uma constatação de que a escola pode ser
transformada para receber o aluno surdo. Nos relatos de disnormalização o trabalho dos docentes é o de simular situações

308
ou acontecimentos que ocorrem em eventos diários, extrapolando o campo escolar, em situações que se use a Libras,
comparada com situações em que ocorre a Língua Portuguesa, estabelecendo um ensino bilíngue e multicultural.
Nos relatos, o ensino de Língua Portuguesa, ocorreu principalmente na modalidade escrita, como relata as
professoras Léa e Bia. O ensino se pautou nas ocorrências textuais em torno da realização do aniversário de um aluno e
para atender a um fim imediato, para alcançar algo, como a reivindicação de aparelhos de ar condicionado para as salas de
aula. Isso para reconstituir a prática comunicativa e as circunstâncias contextuais em que ocorre o gênero: quem é o
produtor do texto? Em que campo da atividade humana ocorre? Como é chamado o gênero discursivo mobilizado? Quem é
o consumidor? O que o texto diz? Quando foi usado? Em que lugar? Com que objetivos? Que relações de poder podem
estar sendo estabelecidas? Depois disso, pode-se conjugar e/ou conhecer gêneros mais formais, como os romances, os
debates etc. Portanto, o leitor a que se destina deve fazer todo o esforço no sentido de recuperar os sentidos e
intencionalidades da produção, e desconsiderar no momento inicial, o aspecto formal da norma padrão do texto produzido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em suma, os discursos disnormalizadores sinalizariam com as propostas que:
a) “Levem [as pessoas surdas] ao empoderamento, à autorrealização e ao desenvolvimento de uma identidade
pessoal” (PETERS; WOLBERS; DIMLING, 2008, p. 292).
b) Possibilitem “[...] a participação ativa na sociedade, a ter experiências qualitativas de vida e a realização de
seus objetivos de vida” (PETERS; WOLBERS; DIMLING, 2008, p. 292).
c) Construam uma educação coletiva como um projeto político de oposição a qualquer forma de opressão e
discriminação, revertendo padrões de normalidades.
d) Considerem o letramento para além de medir as habilidades funcionais de leitura e escrita, passando a
considerar suas implicações e suas características pessoais de se comunicar.
Isto estaria em oposição ao corpo modelado, esculpido por cirurgias plásticas, em que não há limites para a
perfeição. Constituiria uma ética que é a favor do cuidado com o corpo, que respeita as diferenças de cada um, porém, é
contra a busca de “normalidades”. E neste sentido, “[...] as pessoas com deficiências podem fornecer a maneira mais ampla
de compreender os sistemas contemporâneos de opressão” (DAVIS, 2006b, p. 240).
É muito importante o cuidado com o corpo, tanto para a manutenção da saúde como esteticamente, sempre nas
devidas proporções, para que não deixe de ser uma preocupação e passe a ser uma obsessão, podendo levar a pessoa às
últimas consequências, tendendo a pagar qualquer preço pelo “corpo perfeito”. Nos termos de Davis: “O que nós
necessitamos agora é de uma ética nova do corpo que reconheça os avanços da ciência, mas reconheça também que nós
não podemos simplesmente voltar a uma noção relativamente simples de identidade” (DAVIS, 2006b, p. 236).
Isso implica na “[...] criação de uma categoria nova baseada no sujeito parcial, incompleto, cuja realização não é
da autonomia e da independência, mas da dependência e da interdependência” (DAVIS, 2006b, p. 241).
A questão não pode ficar reduzida ao acesso do surdo à escola regular ou ao direito de utilizar a Língua de Sinais,
isso é importante, mas também, é preciso que ocorra toda uma mudança que combata concepções capacitistas presentes
no currículo, no conteúdo, nas metodologias, nas avaliações, para um novo paradigma que tome como pressuposto uma
visão não normalizadora de corpo e de identidade.
A escola, sendo um palco de conflitos, pode criar situações para contrapor-se às relações desiguais e por em
cheque todas as formas de discriminação e preconceitos que possam ocorrer com pessoas deficientes, dando o direito a
falar – em Língua de Sinais, no caso de surdos – propiciando direitos aos que sempre foram avaliados negativamente e
postos à margem da sociedade pela ideologia da normalidade.

309
A concepção de educação que se construiu para atender às pessoas deficientes é meramente de reabilitação,
quando deveria ser de troca e aquisição de conhecimentos, com vistas à criticidade e à intervenção na realidade. Nessa
concepção, as escolas especiais foram consideradas como verdadeiras clinicas médicas, em que os professores e médicos
não se diferenciavam muito: todos visavam identificar patologias e curá-las. Não se nega a importância desses
atendimentos, mas deveriam ser feitos em clínicas especializadas, pois escola não é clínica médica.
Mesmo na escola regular, o atendimento das pessoas com direitos especiais visa à reabilitação: não se considera
a diferença e a realidade social dos alunos. O ensino, no caso o de surdos, ainda é dado na Língua Portuguesa, sem a
presença de intérpretes ou de utilização da Língua de Sinais, e, o conteúdo ainda é repassado e imposto de forma
mecânica estando em desacordo com a realidade dos educandos.
O modo de realização do trabalho docente tem um rearranjo particular após a Lei n° 10.436/2002 (BRASIL 2002)
e ao Decreto 5.296/2005 (BRASIL, 2005), que passam a estabelecer que as universidades brasileiras devem oferecer a
disciplina Libras para os alunos das diversas licenciaturas, embora não fique claro se estes alunos formados terão a
incumbência de ensinar a mesma disciplina na escola. Em complementação, a Política Nacional Educação Especial, na
perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL/MEC/SEESP, 2008) estabelece que o local de implementação do ensino de
Libras é a sala de recursos, por meio do atendimento educacional especializado. Na prática, devido essa política oficial, as
escolas especiais, como exemplo a UEESPAC é substituída por um centro de atendimento e de formação de professores, e
os alunos passam a frequentar um outro ambiente para aprender ou para interagir em Libras, a sala de recursos que recebe
o adjetivo multifuncional. Ao que parece, a Libras, a pessoa surda ainda são deixadas em segundo plano, uma vez que o
local em que se ensina, por meio de Libras, é a sala de recursos.
Em contrapartida da grande divulgação que a Libras passou a ter, a escola regular ainda carece de professores
bilíngues e biculturais que trabalhem no ensino de grupos heterogêneos de alunos.
A questão também é que a Inclusão não pode ser entendida como uma descoberta da esfera educacional, como
se este conceito pudesse sobreviver isolado das outras esferas. A concepção de inclusão é social, abrange e atinge todas
as instâncias da sociedade. Não é só a escola que deve incluir pessoas e sim a sociedade, e a escola deveria ser uma das
mais importantes agências de inclusão e de criação de instrumentos para trabalhar as diferenças.
Por conseguinte, os educadores devem perceber que não é a escola o único espaço de exclusão e que eles não
são os causadores dessa situação e nem salvadores dessas pessoas, pois o fato de frequentarem a escola não os torna
menos discriminados na rua, no clube, no trabalho, porém os instrumentaliza para combater quaisquer formas de opressão.
O central não é só discutir se a escola regular vai aceitar as pessoas com essas diferenças, mas também alterar suas
formas de exclusão, construindo um projeto político pedagógico, que na prática reflita a realidade dos alunos e ensine o que
realmente tem valor social.

REFERÊNCIAS

BRASIL. MEC. SEESP. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva. Brasília. 2008. Disponível em:
< http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/politica.pdf>. Acesso em 15 fev. 2008.

BRASIL. Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ seesp/arquivos/pdf/lei10436.pdf>,
Acesso em 28 mar. 2009.

BRASIL. Decreto-lei nº 5626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei n 10.436, de 24 de abril de 2002 e o art. 18
da Lei n 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/96150/decreto-5626-
05>. Acesso em 15 fev. 2008.

310
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
DAVIS, L. J. Constructing normalcy: the Bell curve, the novel, and the invention of the disabled body in the nineteenth
century. In: ______. (Ed). The Disability Studies Reader. 2nd ed. New York: Routledge, 2006a, p. 3-16.

DAVIS, L. J. The End of Identity Politics and the Beginnig of Dismodernism: On Disabilty as an Unstable Category. In:
Davis, L. J. (ed.) The disability Studies Reader. New York, Routledge. 2006b, p. 231- 242.

FOUCAULT, M. Aula de 15 de janeiro de 1975. In: FOUCAULT, M. Os Anormais: curso no Collège de France (1974-1975).
Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 39-68.

PETERS, S.; WOLBERS, K.; DIMLING, L. Reframing Global Education from a Disability Rights Movement Perspective. In:
GABEL, S. L., & DANFORTH, S. (Eds.). Disability and the Politics of Education: An International Reader. New York:
Peter Lang. 2008. p. 291-309.

BENTES, José Anchieta de Oliveira


Professor da Universidade do Estado do Pará. Doutor em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos
(2010). Possui mestrado em Linguística pela Universidade Federal do Pará (1998).
E-mail: anchieta2005@yahoo.com.br

311
A redação como ato de linguagem

BISPO, Maria de Fátima Fernandes


(EAC/EMERJ/UERJ)

O texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente
neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o
posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. (Bakhtin)

1. A pesquisa

O presente estudo, ancorado na teoria de Patrick Charaudeau, sustenta que a redação escolar deve ser
concebida como um ato de linguagem, no qual os sujeitos - particularmente o destinatário (TU-destinatário) - sejam
previamente definidos, através de um contrato de comunicação. Dessa forma, o aprendiz, ao produzir seu texto, saberá com
quem dialoga e, consequentemente, poderá construir o seu discurso voltado para um TU - destinatário específico.
Tal proposta decorre da observação realizada durante mais de 20 anos de prática de ensino de língua materna,
período em que se verificou que esse encontro dialético do EU e do TU não é claramente encenado em sala de aula – o
que torna, indubitavelmente, o ato de escrever uma atividade difícil e desinteressante para a maioria dos alunos. Vale
ressaltar que, embora essa encenação seja, muitas vezes, um simulacro, ela é essencial, especialmente para as turmas de
ensino fundamental. Em outras palavras: para que o aluno saiba o que escrever, é necessário saber, antes, para quem
escrever.

2. A teoria de Patrick Charaudeau

De acordo com o semiolinguista, um ato de linguagem não resulta, simplesmente, da produção de uma
mensagem que um Emissor envia a um Receptor; ele deve ser visto como um encontro dialético entre dois processos:
“processo de Produção, criado por um EU e dirigido a um TU-destinatário; e processo de Interpretação, criado por um TU-
interpretante, que constrói uma imagem do EU’ do locutor” (2008:44). Torna-se, então, na visão do autor, um ato inter-
enunciativo entre quatro sujeitos (e não dois), lugar de encontro imaginário de dois universos que não são idênticos.

O sujeito destinatário (TUd) é o interlocutor fabricado pelo EU como destinatário ideal, adequado ao seu ato de
enunciação. Como afirma Charaudeau, o EU tem sobre o TUd um total domínio, pois o coloca em um lugar onde supõe que
a sua intenção de fala (do eu) será totalmente transparente para TUd. Portanto, haverá sempre um TUd no ato de
linguagem, explicitamente marcado, ou não, mas presente, de acordo com as circunstâncias de discurso e de acordo com o
contrato de comunicação. Ressalta ainda o autor que pode haver vários TUd correspondendo a um mesmo ato de
linguagem. Vale destacar o resumo que ele faz da oposição TUd/TUi:

O TUd (sujeito-destinatário) é um sujeito de fala, que depende do EU, já que é instituído por este último.
Pertence, portanto, ao ato de produção produzido pelo EU. O TUi (sujeito interpretante) é um sujeito que age
independentemente do EU, que institui a si próprio como responsável pelo ato de interpretação que produz.
(2008:47)

312
Por outro lado, encontram-se o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito comunicante (EUc). O EUe é uma imagem de
fala sempre presente no ato de linguagem, seja explicitamente ou não. O EUc (sujeito comunicante) é um sujeito agente
(como o TUi), localizado na esfera externa do ato de linguagem, mas responsável pela sua organização, é uma espécie de
“testemunha do real” (Charaudeau:2008). Sintetizando essa teoria, pode-se dizer que o sujeito enunciador (EUe)
corresponde à imagem de enunciador construída pelo sujeito produtor de fala (EUc), e o sujeito comunicante (EUc)
representa, a seu turno, o traço de intencionalidade no ato de produção.

Nesse projeto semiolinguístico de análise de um ato de linguagem, fica claro que não é possível dar conta apenas
da intenção do sujeito comunicante (EUc), ou seja, questionar apenas “quem fala” no texto; mas “quem o texto faz falar” ou
“quais sujeitos o texto faz falar”, afinal, como lembra Charaudeau, um ato de linguagem é composto de vários sujeitos (EUc-
Eue-; TUd-TUi).

Do ponto de vista de sua produção, o ato de linguagem, pode ser considerado, no dizer de Charaudeau, “como
uma expedição e uma aventura”; expedição essa, que se refere ao seu aspecto intencional, sendo, por isso correto afirmar-
se que um ato de linguagem sempre participa de um projeto global de comunicação concebido pelo sujeito comunicante
(EUc). Este sujeito comunicante concebe, organiza e encena suas intenções de forma a produzir determinados efeitos – de
persuasão ou de sedução – sobre os seus destinatários (TUi), para levá-los a se identificarem, conscientemente ou não,
com o sujeito destinatário ideal (TUd). Para que isso ocorra, Charaudeau afirma que o EUc poderá utilizar contratos de
reconhecimento:

A noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam
suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais. Em decorrência disso,
o sujeito comunicante sempre pode supor que o outro possui uma competência linguageira de reconhecimento análoga
à sua. Nessa perspectiva, o ato de linguagem torna-se uma proposição que o EU faz ao TU e da qual ele espera uma
contrapartida de conivência. (2008:56)

Poderá ainda, segundo o autor, recorrer a outros procedimentos que oscilam entre dois pólos, a saber:

a fabricação de uma imagem de real como lugar de uma verdade exterior ao sujeito e que teria força de lei e a
fabricação de uma imagem de ficção como lugar de identificação do sujeito com um outro, imagem esta que constitui um
lugar de projeção do imaginário desse sujeito. (2008:57)

Percebe-se que todos esses procedimentos são possíveis num ato de linguagem, mas o que fica mais claro ainda
é que comunicar é um ato que surge envolvido em uma dupla aposta ou que faz parte de uma expectativa concebida por
aquele que assume tal ato: o sujeito falante espera que os contratos que ele propõe ao sujeito-interpretante sejam bem-
recebidos e espera, ao mesmo tempo, que as estratégias adotadas produzam o efeito desejado.

A despeito de tal expectativa, esses contratos e estratégias dessa encenação são detectados e interpretados pelo
sujeito interpretante à sua maneira, o que explica a afirmação de Charaudeau de que o “ato de linguagem não é apenas

313
uma expedição, mas também uma aventura”. E aventura, vale dizer, é o que está inscrito no campo do imprevisível, pois,
apesar de o sujeito comunicante ser, por um lado, “senhor de sua encenação”, do outro lado, o sujeito interpretante pode
não dominar por completo os efeitos produzidos na instância de comunicação do sujeito comunicante.

3. O contrato de comunicação

Segundo o Dicionário de Análise de Discurso de Charaudeau e Maingueneau, os semioticistas, psicossociólogos


da linguagem e analistas do discurso empregam o termo contrato de comunicação a fim de designar o que faz com que o
ato de comunicação seja reconhecido como válido, no que diz respeito ao sentido. “É a condição para os parceiros de um
ato de linguagem se compreenderem minimamente e poderem interagir, co-construindo o sentido, que é a meta essencial
de qualquer ato de comunicação” (2004:130).

Encontrar-se-ão diversas filiações oriundas dessa noção, embora não mencionem explicitamente o conceito de
contrato, porém pode considerar-se que ele está presente na forma de cada autor definir o ato de linguagem:

Quer se trate da hipótese de “intersubjetividade”, proposta por Benveniste, “a única que torna possível a
comunicação lingüística” (1966:266) e implica “uma polaridade das pessoas” eu e tu que fundam a atividade de
linguagem (op. cit: 260); da hipótese de “dialogismo”, proposta por Bakhtin (1984), que afirma que nunca se fala
sem o já-dito; da hipótese de “co-construção do sentido” dos filósofos da linguagem, que implica a necessidade
de condições de “intenção coletiva” para que a comunicação seja possível (Searle, 1991:227), de
“intencionalidade conjunta” e de “acordo” (Jacques, 1991:118), de “negociação” (Kerbrat-Orecchioni, 1984: 225);
de “comunidades em falas” (Parret, 1991); e da hipótese de “relevância” proposta por Grice (1979), Flahaut
(1979) e Sperber e Wilson (1989); todas essas hipóteses convergem para uma definição contratual do ato de
linguagem (CHARAUDEAU & MANGUENEAU, 2004: 131).

Afirmam ainda Charaudeau e Maingueneau que tal definição contratual do ato de linguagem implica vários
aspectos, quais sejam: a existência de dois sujeitos em relação de intersubjetividade, a existência de convenções, de
normas e de acordos que regulam as trocas linguageiras, a existência de saberes comuns, permitindo uma
intercompreensão, o todo em uma certa situação de comunicação. Dessa forma, justifica-se que a comunicação seja bem-
sucedida não quando o sentido linguístico do enunciado é reconhecido, mas quando o “querer-dizer” do locutor é inferido
pelo interlocutor.

Charaudeau define contrato de comunicação (em análise do discurso) como o conjunto das condições nas quais
se realiza qualquer ato de comunicação - qualquer que seja a sua forma, oral ou escrita, monolocutiva ou interlocutiva.

Neste estudo, o ato de comunicação estudado é o monologal, visto que os seus parceiros não estão presentes
fisicamente, pois o contrato não permite a troca. Assim, o locutor (autor da redação) está em uma situação em que não é
capaz de perceber imediatamente as reações dos seus interlocutores, podendo organizar o que vai dizer de maneira lógica
e progressiva.

314
4. O corpus da pesquisa

O corpus desta pesquisa foram produções textuais de duas turmas do 8º. ano do ensino fundamental de um
colégio da rede privada, localizado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. A tarefa consistia em escrever um relato
pessoal a respeito da viagem de estudos que tinham realizado durante as férias na Alemanha.

Cada turma recebeu uma instrução diferente; houve dois contratos, quais sejam:

TURMA 1: O Tud seria toda a comunidade escolar (professores, diretores, alunos etc.) e as produções seriam
expostas nos murais do hall principal do colégio.

TURMA 2: O TUd seria a própria turma e as produções seriam expostas no mural da sala de aula.

É importante ressaltar que as duas turmas apresentavam competências equivalentes, no que se refere à
produção de textos, escrevendo, de um modo geral, textos bons.

5. A análise

Após a leitura de todos os textos, observou-se que a variedade linguística adotada pela turma 2 foi
predominantemente informal, havendo também um número expressivo de desvios da norma padrão. Por outro lado, a turma
1 buscou a formalidade, apresentando poucos desvios da norma culta. Um outro aspecto que se destacou na análise
desses textos foi a presença de marcas linguísticas de interlocução (vocativos), nos textos da turma 2, o que raramente
ocorreu nos textos da turma 1.

Vejam-se alguns fragmentos do corpus:

TURMA 1:

“O albergue de Berlin era o mais controlado, pois havia um guarda à noite...”

“...tivemos de subir mais de 300 degraus, mas ao chegar no alto, a vista era lindíssima. O esforço não foi em
vão...”

“...os hábitos da família eram muito diferentes... estranhei no início, mas acabei me acostumando. No final, senti
até saudades da minha alemã...”

“O museu era muito interessante, mas o guia dava muita informação ao mesmo tempo. Não havia necessidade de
falar tanto sobre uma obra. No final, não deu tempo de ver muitas esculturas importantes.”

“ Eu nunca tinha visto neve antes, foi uma experiência maravilhosa!”

“No nosso último dia na Alemanha, em Hambug, fomos ver Eclipse. Foi diferente assistir a um filme em alemão...”

315
“Chegamos ao Rio no mesmo dia, pois o voo tinha sido diurno. Infelizmente, houve muitas malas perdidas...”

“A viagem foi muito boa, pois nos divertimos bastante. Vou sentir muitas saudades dessa experiência única que
foi viajar para um país (sem meus pais), na companhia dos meus amigos da escola. Aprendi muito com essa viagem!”

TURMA 2:

“O albergue de Berlin foi o mais chato. Tinha um guardinha que ficava batendo nas portas, quando fazíamos
barulho, aí que a gente zoava mais, só para irritarmos ele...”

“...subir todos aqueles degraus foi um saco, mas a vista era irada, galera!”

“A minha alemã era maneira, mas o irmão dela achava que podia pegar as garotas brasileiras...Pensava que elas
iam dar mole,mas no fim se deu mal!”

“O guia que acompanhou a gente era uma mala, falava pra caramba! Não aguentava ouvir mais ele falando sem
parar!”

“O mais irado foi rolar na neve, fazer guerra de neve e brincar de skibunda!”

“...aí, fomos ver Eclipse no cinema! Mas era em alemão! Fizemos a maior zona, né?”

“No aeroporto do Rio foi o maior terror, sumiram malas, demorou para chegar na esteira...”

“Viajar com a galera da turma foi D+, já tô com saudade...”

6. Conclusões

Como se pôde verificar, nos fragmentos extraídos do corpus, a definição de um TU-destinatário para cada turma
foi determinante no processo de produção dos textos dos alunos. Sem dúvida alguma, a variedade linguística adotada pelos
locutores desse ato de linguagem (autores das redações) foi coerente com a situação discursiva em que estavam inseridos.
Os autores da turma 1, sabendo que dialogariam com toda a comunidade escolar, optaram por uma linguagem menos
informal. Já os autores da turma 2 adotaram uma variedade informal, pois seus destinatários eram os próprios colegas. É
importante destacar que não houve orientação alguma, por parte do professor, em relação à linguagem que deveria ser
usada.

Como se viu, portanto, a definição prévia dos sujeitos, nesse ato de linguagem, revelou-se uma eficiente
metodologia para a prática de ensino de redação escolar, tornando o processo de produção de texto uma atividade menos
artificial e, consequentemente, mais estimulante para o aprendiz.

316
7. Referências

BISPO, M. de Fátima F. A intertextualidade nas redações de vestibular: uma reflexão sobre os gêneros que constroem o
discurso do vestibulando.Rio de Janeiro,Banco de Teses, UERJ, 2009.

CHARAUDEAU, CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. In: PAULIUKONIS, Maria
Aparecida L. & GAVAZZI, Sigrid (orgs.). Da Língua ao Discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005

_____, Patrick Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

_____, & MAINGUENEAU D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CHIAPINI, Lígia (Org.). Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1998.

Currículo da autora:

Doutora em Língua Portuguesa pela UERJ. Tem experiência nas redes privada e pública. No ensino superior, atuou na rede
federal (UFRJ), como professora de Prática de Ensino e Didática Especial de Língua Portuguesa e Literatura. Na área de
pesquisa, dedica-se a estudos sobre texto (escolares e midiáticos), textualidade,intertextualidade e discurso.
(http://lattes.cnpq.br/6471544607241627)

e-mail: fatimabis@gmail.com

317
Estratégias metacognitivas para leitura e revisão textual –
O curso de Redação III
BOTELHO, Patricia Ferreira
(UFRJ)

INTRODUÇÃO

A capacidade de autojulgamento e de autorreflexão para escolhas e decisões é tida por estudiosos como
Tomasello & Rakoczy (2003) como recurso cognitivo que nos distingue de outros primatas. Por isso, quando interagimos em
sociedade somos capazes de compreender nossas escolhas linguísticas e nos orientar através de nossas intenções.
No ambiente escolar, entende-se que a atividade de leitura e de escrita pode ser norteada por essa capacidade,
denominada metacognição. Objetivando a exploração desse tipo de recurso no ensino desses tipos de atividade, o curso
de Redação III no CLAC propiciou o desenvolvimento de novas metodologias e permitiu a produção de material didático
autônomo, como será abordado nas seções seguintes.
Este trabalho enfoca a atividade de leitura e de produção textual e considera aspectos da elaboração do material
didático. Além disso, este estudo trata do conhecimento do aluno no acesso aos textos utilizados e busca revelar o
crescimento dos estudos em metacognição em vias de destacar sua importância em atividades escolares. Em estudos
recentes em cognição (cf. BOTELHO, 2010), notou-se que o uso do conhecimento prévio é uma ferramenta essencial aos
alunos na construção de significados e de conhecimento em leitura. Entretanto, este fazer não tem sido propiciado em
materiais didáticos utilizados comumente, o que permite a este estudo promover uma avaliação sobre a distinção entre o
que se pretende explorar nesses materiais, estabelecer um contraponto com os materiais produzidos para o curso de
Redação III e verificar meios de repensar as atividades de leitura e de produção textual, utilizando-se conceitos e
estratégias relacionados aos estudos em metacognição.
Num primeiro momento, este trabalho, se propõe a avaliar o conceito de metacognição, para, em seguida,
apresentar questões relevantes a uma discussão que relacione essa área aos processos de aprendizagem, sobretudo em
leitura. A parte final desse trabalho é composta pelo contraponto entre as pesquisas recentes em leitura em livros didáticos
e as estratégias empreendidas no ensino do curso de Redação III.

METACOGNIÇÃO E LEITURA

A pesquisa em metacognição, que investiga o conhecimento sobre a cognição, e a assunção de estudos que
consideram esse atributo como uma realidade psicológica iniciou-se na década de 70 por Brown, Flavell e outros (BROWN
et al. apud SCHNEIDER & LOCKL, 2002, p. 224), voltados para o conhecimento sobre memória, criando-se o termo
metamemória que, em seguida, ampliou-se para dar origem ao termo metacognição. Nesse momento, a metacognição era
definida como qualquer conhecimento ou atividade que tem como objeto cognitivo aspectos quaisquer de atividade
cognitiva.
Para SCHNEIDER & LOCKL (2002), o conhecimento metacognitivo é um saber que envolve tanto a compreensão
relativa à execução de tarefas e da própria mente como também a percepção de desejos e intenções. Assim, pode-se
definir a metacognição como a capacidade humana de monitorar e de autorregular os processos cognitivos, apresentando,

318
também, os dois diferentes movimentos que a compõem: o monitoramento e o controle (NELSON & NARENS, 1990), como
se percebe na figura a seguir.

Figura 1 – O monitoramento e o controle metacognitivo (Nelson & Narens: 1990, p. 126)

Esses dois movimentos metacognitivos podem ser relacionados tanto à leitura, como à produção textual. O
monitoramento metacognitivo relaciona-se à postulação de hipóteses sobre o trabalho cognitivo, como os julgamentos que
se faz acerca da facilidade ou dificuldade no aprendizado sobre um dado. Trata, também, do nível de confiança que se
desenvolve na busca por uma informação, com a recuperação de um dado ou a retrospecção. O controle metacognitivo
volta-se para a definição de objetivos que favoreçam a aprendizagem ou o conhecimento cognitivo. Deste modo, o controle
pode relacionar-se à seleção de estratégias que viabilizem o aprendizado, e sua ação pode ser requerida até durante o
fluxo cognitivo.
Essas questões permitem afirmar que o desenvolvimento de atividades com consciência metacognitiva exige a
percepção de que há dois planos de conhecimento: um plano do objeto, em que determinada atividade se processa; e um
plano meta, em que ocorrem as suas condições de validação, administrando a cognição durante esse processo (NELSON &
NARENS, 1990; GERHARDT, 2010). Isso referenda a importância do desenvolvimento da leitura como um aprendizado
autorregulado e a necessidade de oferecer atividades de leitura que enfoquem esse tipo de aprendizado.
Portanto, a conscientização da estratégia metacognitiva utilizada para ler, ou aprender uma dada atividade, auxilia
no processo de compreensão. Cabe, aqui, a seguinte pergunta: O que explorar em leitura e em produção textual? Em
resposta a isso, pode-se dizer que se deve privilegiar o conhecimento prévio do aluno e o contexto em que se aplica o
material a ser lido. Há, assim, no desenvolvimento da atividade de leitura, a exigência de dois saberes básicos: saber como
acessar o conhecimento prévio, e saber como associar essa informação ao que está sendo lido e produzido.
Griffith & Ruan (2005) são autores que estudaram as atividades escolares e questões relacionadas a isso. Para
esses autores, há alguns requisitos fundamentais ao que deve ser explorado em leitura, tornando-a hábil:
• A construção da estrutura organizacional do texto, ou seja, a coerência, num nível macrotextual;
• A busca pelo sentido denotado pelas idéias presentes na estrutura gramatical do texto, num nível microtextual;
• A interação entre esses níveis textuais e o conhecimento prévio do leitor;
• A interação entre os dois processos cognitivos básicos de processamento da informação denominados
ascendente (movimento que explora o conhecimento prévio) e descendente (movimento que recruta as
informações do texto).
O desenvolvimento desta leitura hábil é constituído, também, pela aplicabilidade de saberes metacognitivos, que
podem favorecer a conscientização do aprendiz, inclusive, para possível produção textual com base no texto lido. Essa
aplicabilidade abrange, também, o gerenciamento da cognição objetivando a resolução de problemas presentes no fluxo da

319
leitura: a flexibilização de hipóteses feitas sobre o material; e a avaliação da eficácia das ações cognitivas e das estratégias
adotadas.
A partir dessas notações, pode-se postular que o sucesso na atividade de leitura depende do uso de estratégias
metacognitivas. Assim, uma leitura estratégica demonstra adequação a contextos e revela a escolha de diferentes técnicas
e habilidades com o fim de atingir determinado resultado. Além disso, essa atividade exige o monitoramento contínuo para
alcançar um desenvolvimento eficiente. A explicitação e o uso contínuo de estratégias metacognitivas em leitura permitem
constituir um leitor maduro e hábil, tornando-o consciente em aplicar estratégias que, com o uso, se automatizam.

O PROJETO CLAC E O CURSO DE REDAÇÃO

O CLAC é um projeto desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que objetiva promover a
formação profissional e científica do aluno-monitor ao mesmo tempo em que contribui para o aprimoramento dos membros
da comunidade por meio da oferta dos cursos, como os de Redação e de Oficina da Língua Portuguesa.
Cada curso é orientado sob a prerrogativa de crítica e de reflexão sobre o ensino, com a aplicação didática de
conteúdos teóricos adquiridos pelos monitores e com a análise dos resultados obtidos em cada aula. Em Redação I,
trabalham-se questões que envolvem a construção do parágrafo dissertativo-argumentativo; em Redação II, verifica-se a
estruturação mais completa do texto dissertativo; em Redação III, desenvolve-se o trabalho do aluno não somente como
produtor, mas também como revisor crítico de seu texto; e em Oficina, a reflexão sobre as estruturas gramaticais em língua
portuguesa. Este trabalho tratará de forma mais precisa sobre o curso de Redação III, cujas observações serão feitas a
seguir.
O curso de Redação III, que possui como pré-requisitos os cursos de Redação I e de Redação II, amplia a
discussão a respeito da estrutura e da organização do texto, alcançando a perspectiva de formar um aluno com
propriedades autônomas e críticas sobre o texto.
Observando-se a ementa do curso, é possível notar que o aprendiz é tratado como um leitor com propriedades de
avaliador e revisor de seu próprio texto. Isso reforça a necessidade de um aparato teórico que fundamente o trabalho de
formar um aluno com a capacidade de ler, de formar um pensamento crítico sobre o texto lido e de produzir textos que
reforcem a habilidade argumentativa. Além disso, vale dizer que esse aluno precisa estar consciente da tarefa de repensar
criticamente o material produzido, corrigindo e ampliando a discussão sobre o processo de produção textual, com a releitura
e a reescritura.
O trabalho sobre a produção textual e a leitura em Redação III permite delimitar que objetivo geral do curso é
desenvolver a capacidade crítica na construção do texto dissertativo-argumentativo e estimular, no aprendiz, a percepção
de que o texto é uma estrutura significativa.
Além disso, o curso também aborda a leitura como um fator importante na constituição de um aluno capacitado à
análise crítica e reflexiva na construção de seu texto. Este assunto exige a busca por teóricos como KOCH & TRAVAGLIA
(1995); FÁVERO, (1995), e LIBERATO, & FULGÊNCIO (2007) para discutir, nas aulas, aspectos como “Os fatores
colaboradores da interpretação”, “Coesão e coerência textuais”, “O emprego dos implícitos no texto” e, também, “Textos
temáticos e textos figurativos”.
Cada aplicação de exercícios visa a estimular os alunos quanto à importância de ser um “autor crítico”,
conduzindo-os não somente a escrever, mas também a criticar o próprio texto. Proporcionar ao aluno a teoria básica de
escrita aliada à atividade de correção e de crítica desperta sua consciência na condução da escrita. Essa preocupação
presente no curso de Redação III possibilita a autonomia do aluno e permite sua atuação nas aulas com maior confiança, o

320
que possibilita pensar a relação entre o trabalho desenvolvido no curso e o emprego das estratégias metacognitivas na
elaboração das atividades.

O CURSO DE REDAÇÃO III E AS ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS

A retomada de um objetivo que norteia o desenvolvimento do curso de Redação III, o de formar os alunos com
capacidade crítica na confecção do próprio texto, permite o estabelecimento de associações com os postulados dos estudos
em metacognição.
Como dito em seções anteriores, o monitoramento metacognitivo relaciona-se à postulação de hipóteses, com o
julgamento sobre a execução de uma dada tarefa. Sendo assim, o desenvolvimento de atividades de leitura e de produção
textual orientadas pelo monitoramento metacognitivo permitem ao aluno estabelecer um julgamento sobre o próprio
desenvolvimento durante a execução das atividades de leitura e de produção textual, tornando-se consciente do nível de
aprendizagem alcançado na execução dessa tarefa. Em paralelo ao monitoramento, há o controle, que é uma estratégia
metacognitiva que se relaciona à delimitação de objetivos e seleção de estratégias para a execução de tarefas (BOTELHO,
2010). O emprego concomitante dessas duas estratégias metacognitivas permite o desenvolvimento de atividades de leitura
e de produção textual com maior qualidade, permitindo ao aprendiz avaliar a própria aprendizagem e auxiliá-lo no
recrutamento de dados necessários ao desenvolvimento de suas atividades.

METODOLOGIA DE TRABALHO

Como a metacognição é um conceito relacionado à reflexão e regulação das atividades cognitivas, entende-se
que atividades orientadas sob estratégias metacognitivas permitirão o desenvolvimento de uma leitura hábil e produção
textual eficaz, que explore o saber do aluno criativamente.
Em busca de explorar e compreender como essas estratégias podem ser efetivadas na leitura e na produção
textual, no curso de Redação III começou-se a elaborar as atividades orientadas pelos os movimentos metacognitivos do
monitoramento e do controle tanto para execução das tarefas de leitura e de produção textual, quanto para a releitura e
reescritura do mesmo material pelos aprendizes.
Esse método de fazer e refazer a mesma tarefa visa à formação de um aprendiz confiante na execução da própria
tarefa para o desenvolvimento da capacidade crítica. Em auxílio a esse método, está o emprego de atividades cujo
comando é orientado pelo monitoramento e pelo controle metacognitivos – estratégias que auxiliam o aprendiz na
conscientização de seu fazer nas tarefas de leitura e de produção textuais. Na seção subsequente, seguem algumas
atividades que fazem uso dessa metodologia de trabalho para promover a reflexão dos alunos sobre a tarefa de criticar e
refazer sua leitura/ produção textual, inclusive no aprendizado de conteúdos sintáticos, como, por exemplo, a pontuação de
orações e no aprendizado de conteúdos relacionados à leitura.

ATIVIDADES PROPOSTAS SOB AS ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS

• Releia os trechos das redações produzidos pelos alunos do curso de Redação III. Em seguida, reescreva-os
propondo a reestruturação desses trechos por meio dos recursos que conferem textualidade (discutidos em aula):

321
a) “Todavia após o PAN fica claro que a mentira foi só para o povo que espera sempre reformas com resultado de
longo prazo e que transformem a estrutura da cidade como seria se a redução da originalidade se perpetua-se, se
houvesse uma estrutura para a prática de atividades esportivas nas escolas públicas etc.”
b) “Portanto, não só em um evento esportivo, deve-se investir em segurança, construção de estádios ou reformas,
porém a educação é o princípio de tudo e deve ser o primeiro investimento.”
c) “Após os Jogos Panamericanos o Município do Rio de Janeiro, voltou desenfreadamente aos casos de violência,
pois durante a realização dos mesmos, jamais se ouvia falar em violência.”

• Aula sobre Coesão Textual (referencial e sequencial)


Exercício 1: A partir da leitura do texto de apoio “Desmatamento na Amazônia caiu 25%, diz governo”, identifique os trechos
em que há problemas em relação à progressão textual devido à ausência dos elos coesivos. Em seguida, proponha o
preenchimento do texto com elos coesivos e discuta com a turma a importância da coesão textual na construção de um
texto.

Exercício 2: A partir das discussões empreendidas na aula e da leitura do texto sobre estratégias argumentativas, faça a
revisão correção dos itens presentes na sua redação sobre o PAN (produzido na última aula). Aproveite ao máximo os
conteúdos abordados nas últimas aulas para fundamentar a correção sobre o texto. Em seguida, reescreva a redação
aplicando as mudanças necessárias.

• Proposta de avaliação:
Sabe-se que a argumentação é um meio para divulgar uma opinião e até difundir uma ideologia. A propaganda
tem utilizado, nos meios de comunicação atuais, não somente recursos textuais para persuadir o consumidor em potencial,
mas também a leitura de imagens.
A marca de produtos cosméticos Dove é um exemplo deste tipo de propaganda e sua atual campanha publicitária,
denominada Campanha pela real beleza, pretende ir de encontro a determinado ideal preconizado em nossa sociedade.
Faça a leitura das imagens, do trecho a seguir e promova reflexões a respeito deste contraste de valores presente
nesta campanha promovida pela Dove. Sua redação deve conter:

1 – Um posicionamento a respeito de que ideal de beleza deve ser valorizado, mostrando o contraste entre o mundo fashion
e o mundo real.
2 – Sua redação deve conter, pelo menos, três argumentos, procurando defender seu posicionamento já exposto na
introdução.
3 – Procure concluir com uma reflexão crítica sobre as graves consequências que há na busca por este ideal de beleza.

Imagem 1:

322
Imagem 2:

“Que me desculpem as feias, mas beleza é fundamental” (Vinícius de Morais)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho verificou que o curso de Redação III preocupa-se com a formação do aluno-revisor de
seu texto. Para tanto, pensou-se no emprego de uma metodologia de elaboração de atividades de leitura e de
produção textual que permitisse o desenvolvimento de habilidades para tornar o aprendiz um leitor hábil e um
produtor textual crítico e consciente das questões que envolvem a confecção do próprio texto.
A discussão empreendida neste trabalho evidenciou a importância dos estudos em metacognição
atrelados ao ensino de leitura e de produção textual, em que as atividades elaboradas no curso de Redação III
precisam tornar os alunos conscientes das ações empregadas em seu fazer, visando à construção de significados.
Portanto, o emprego de estratégias metacognitivas nas atividades de leitura e de produção textual
possibilita a autonomia do aluno e permite sua atuação nas aulas com maior confiança. Assim, monitor e aluno
podem construir uma rica relação em cada aula, permitindo ao primeiro o amadurecimento como educador, que
possui a responsabilidade de conduzir a aula, e como aprendiz, que está em formação, testando e sendo testado na
tarefa de ensinar.

REFERÊNCIAS

APPLEGATE, M. D.; QUINN, K. B.; APPLEGATE, A. J. (2002). Levels of thinking required by comprehension
questions in informal reading inventories. Reading Teacher, 56 (2), 174-180.

GERHARDT, A. F. L. M (2010). Repensando o certo e o errado: as bases epistêmicas da sócio-cognição na escola.


Leitura, Revista da UFAL, nº 42.

JOU, G. I. de, & SPERB, T. M. A Metacognição como Estratégia Reguladora da Aprendizagem. Psicologia: Reflexão
e Crítica, Porto Alegre, 19 (2), 2006.

MAKI, R. H. and Mc GUIRE, M. J. Metacognition for text: implications for education. In: PERFECT, T. J. and
SCHWARTZ, B. L. (Eds.) Applied Metacognition. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

METACALFE, J. Evolution of metacognition. In J. Dunlosky & R. Bjork (Eds.), Handbook of Metamemory and
Memory. New York: Psychology Press, 2008.

GRIFFITH, L. P., & RUAN, J. What is metacognition and what should be its role in literacy instruction. In: ISRAEL S.
et al. (Eds.), Metacognition in literacy learning. London: Lawrence Erlbaum, p. 3-18, 2005.

323
RANDI, J., GRIGORENKO, E., & STERNBERG, R. Revisiting definitions of reading compreehension: Just what is
reading comprehension anyway? In: ISRAEL S. et al. (Eds.) (Eds.), Metacognition in literacy learning. London:
Lawrence Erlbaum, p. 19-40, 2005.

SCHNEIDER, W., LOCKL, K. The development of metacognitive knowledge in children and adolescents. In:
PERFECT, T. J. and SCHWARTZ, B. L. (Eds.) Applied Metacognition. Cambridge: University Press, p. 224-257,
2002.

TOMASELLO, M. & RACOKZY, H. What makes human cognition unique? From individual to shared to collective
intentionality. Mind & Language, 2003.

Patricia Ferreira Botelho é graduada em Letras: Português-Literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2007). A autora é mestre em Língua Portuguesa pela mesma instituição e atualmente atua como docente no curso
de graduação em Letras na Universidade Geraldo de Biasi (UGB).
E-mail para contato: patyfb@ufrj.br

324
Produção de textos na escola: um amálgama de tipologia de
texto e gênero discursivo

BRASILEIRO, Ada Magaly Matias


(PUC Minas) 1
SILVA, Anita Maria Ferreira da
(PUC Minas) 2
FONSECA, Janaína Zaidan Bicalho
(PUC Minas) 3

1 INTRODUÇÃO

A prática de ensino/aprendizagem de língua materna vem suscitando discussões no campo da Linguística Aplicada
especialmente, após a instauração dos PCN como norteadores dos currículos nacionais, os quais trouxeram novas diretrizes
para a produção de textos na educação básica, cujo foco é o trabalho com base nos gêneros discursivos. Tal perspectiva
apresentou-se como uma proposta contextualizada às exigências sociais que se referem à aplicação das habilidades linguístico-
discursivas de um cidadão. Ao produzir um texto, o autor precisa, então, coordenar uma série de aspectos: o que dizer, a quem
dizer, como dizer, qual o seu propósito.
A partir daí, o que se percebeu no contexto escolar foi certa insegurança na prática docente, principalmente daqueles
professores cuja formação contemplou uma visão tradicional de produção de texto, a qual vislumbra somente o trabalho com
tipos textuais, considerando os aspectos linguísticos e deixando de fora os sociointeracionistas, caracterizados por Quintiliano
Entretanto, essa aparente dicotomia ocorrida em sala de aula teoricamente se desfaz quando Quintiliano, dentre outros
estudiosos, afirma que gênero e texto “recobrem realidades distintas do funcionamento do discurso, o que, do ponto de vista
teórico-metodológico, não impede que haja entre elas uma relação de entrecruzamento, para pensar e caracterizar como se
manifesta o discurso no texto.” (1998, p. 105).
Mais de uma década após a instauração dos PCN, é necessário refletir sobre como o profissional de língua materna
tem agido em sala de aula frente aos posicionamentos teóricos apresentados. Assim, numa tentativa de provocar reflexões
sobre nossa ação em sala de aula, a pesquisa que aqui se empreende busca levantar e compreender as orientações teórico-
metodológicas que têm direcionado a conduta do professor de Ensino Médio.

____________________________________
1 Doutoranda em Estudos Linguísticos (PUC Minas). Professora de Língua Portuguesa da Faculdade Pitágoras. adamagaly@yahoo.com.br.
2 Doutoranda em Estudos Linguísticos (PUC Minas). Professora do Colégio de Aplicação da UFV-COLUNI. Bolsista da FAPEMIG.
anita@ufv.br
3 Mestranda em Estudos Linguísticos (PUC Minas) e bolsista CAPES.

325
Pretendemos, assim, entender aspectos relevantes para a formação do profissional, tais como: que condutas
metodológicas estão presentes em sala de aula? Quais são as referências norteadoras do processo? Que atividades são
propostas pelos professores de Produção de Texto?
A hipótese que testamos foi a de que os professores do 3º ano do Ensino Médio, frente às orientações
parametrizadoras, orientar-se-iam pelas teorias das sequências estruturais e do gênero de maneira dissociada, ou ainda
contemplariam uma em detrimento de outra. Para isso, após o estudo teórico, fomos a campo verificar o que dizem os
professores da disciplina.

2 O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NO ENSINO MÉDIO E AS ORIENTAÇÕES CURRICULARES

O quadro epistemológico da linguística, nas últimas décadas, tem apresentado crescentes e variadas inovações com
repercussão direta na formação de professores de ensino de língua portuguesa no Brasil. Isto pode ser observado nos
depoimentos dos profissionais em encontros de debates e estudos como congressos, simpósios etc.
Na década de 1960, segundo Matêncio (2004), a linguística hegemônica interessava-se por um modelo dicotômico
saussureano com vistas à consolidação do seu campo de estudos e da metodologia da época. Privilegiou-se como objeto de
estudo o sistema linguístico e suas regularidades formais.
Os estudos sobre textos e discursos e os debates sobre o sujeito de linguagem redefiniram o conceito de língua,
aproximando os linguistas dos interacionistas preocupados com a linguagem como atividade, dos gêneros do discurso e de seu
processo de ensino e aprendizagem.
Daí, surgiram os estudos da linguística textual, que vinculam processos cognitivos a processos de textualização,
considerando-se as relações entre pensamento e linguagem. Assim, compreende-se o funcionamento dos mecanismos de
enunciação e textualização, bem como as operações mentais. Através destas, um texto emerge e por elas um gênero atualiza-
se em situações específicas de interação social.
As Orientações Curriculares sobre o Ensino Médio (2006) apresentam sugestões sobre aspectos gerais de prática de
produção de textos, usos de linguagens e organizações curriculares, afirmam que os estudos sobre gênero do discurso
envolvendo a linguagem, seu funcionamento e o processo de ensino aprendizagem são de interesse da escola, no que se refere
ao ensino da língua materna, como também à interdisciplinaridade dos saberes centrada no estudo da linguagem nos processos
sociais.
No que se refere aos conhecimentos de Língua Portuguesa, compreende-se que quanto maior e mais variada for a
prática de compreensão e produção de textos dos alunos, maiores serão suas chances de conhecer a si próprio e melhor será
sua inclusão social. Essa prática envolve o conhecimento

326
de diferentes manifestações estéticas da linguagem por meio da arte, levando a refletir sobre a diversidade de ideias, de cultura
e formas de expressão.
Ao interagirem com diferentes formas de manifestações de linguagem, os alunos serão confrontados com diferentes
sistemas semióticos que tratam das relações entre fala, escrita e leitura, considerando os contextos de emergências de tais
textos. Articulam-se, assim, os textos e as possibilidades de relação entre formas, usos e funções de linguagem.
Quanto à organização dos currículos, sugerem que esta deve estar de acordo com as demandas regionais e locais de
cada escola/comunidade. Devem desenvolver práticas de ensino que abordem textos de variados temas, suportes, domínio de
esferas onde são produzidos, espaço e tempo de produção, tipos ou sequências textuais de configuração, gêneros discursivos,
funções sóciocomunicativas, práticas de linguagem em que emergem, comunidades em que são praticados. Considerando
principalmente o grau de complexidade na configuração, no funcionamento na circulação social dos textos e nos recortes de
conteúdos de ensino e de aprendizagem necessários aos objetivos propostos.

3 METODOLOGIA

Partindo desse panorama teórico e histórico da produção de textos na escola, este artigo pretende explorar e
apresentar as orientações teóricas que têm direcionado o trabalho do professor de Produção de Textos no ambiente escolar, o
que justifica suas finalidades exploratória e descritiva.
Como meios de investigação, após o estudo bibliográfico, aplicamos um questionário qualiquantitativo (Anexo A). De
um universo de professores de Produção de Texto de 3º ano do EM das redes estadual, federal e particular de ensino, tomamos
uma amostra não probabilística, escolhida por tipicidade e acessibilidade, de professores representativos das três redes. O
questionário foi distribuído a 40 professores, ou no ambiente escolar, ou por e-mail.
Solicitamos aos respondentes que não fizessem consultas bibliográficas e que a ele respondessem estritamente com
base na prática. Após os dados relacionados ao perfil do entrevistado, foram apresentadas duas propostas de produção de
texto, uma contemplando o gênero textual carta (vestibular da Unicamp) e outra, um texto padrão dissertativo-argumentativo
(prova do Enem). Os professores fizeram análise das propostas, direcionaram-na a um tipo de avaliação, manifestaram-se
quanto à motivação e à segurança na condução do processo, fizeram comentários sobre uma citação teórica e apresentaram
suas referências teórico-metodológicas.
Dos 40, foram devolvidos 16 questionários num prazo de 15 dias, os quais foram compilados e analisados sob os
preceitos da análise do discurso: quem diz? O que diz? Como diz? Por que diz? Além disso, procuramos cruzar os dados entre
os entrevistados e os discursos teóricos e metodológicos da área, buscando entender as orientações que direcionam aquela
unidade de significado, mesmo que não estivessem explícitas.
Fizemos, ainda, uma análise específica entre o perfil e as práticas dos respondentes com as respectivas redes de
ensino da qual fazem parte. Tal análise é apresentada a seguir. Para facilitar o cruzamento de dados, fizemos a identificação
dos informantes em códigos: os da rede estadual foram codificados como E1; E2...; os da rede federal como F1, F2 ...; e os da
rede particular como P1, P2, P3..., totalizando 16 informantes.

327
4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Os dados que passamos a apresentar e analisar foram coletados de 4 professores vinculados à rede federal de
ensino, 7 da rede estadual e 5 da rede particular, cujas faixas etárias estão, predominantemente, concentradas entre 26 a 45
anos (50% dos entrevistados). Do total, 13 professores são do sexo feminino, 100% deles são graduados em Letras, com Pós-
Graduação em Letras (75%), Educação (18,5%) e um não fez especialização.
Ainda com relação ao perfil, os professores apresentam a seguinte formação: 75% dos da rede federal têm mestrado
e/ou doutorado; 60% dos professores da rede particular possuem também essa formação; e 42% dos pertencentes à rede
estadual são mestres e mestrandos.
O tempo médio de atuação na área foi de 10,7 anos, sendo que os professores da rede particular têm 12,8; os da
federal, 11,2; e os da estadual, 8,9 anos. A área de maior interesse apontada pelo grupo entrevistado é Produção de Texto,
tendo sido escolhida por 56,2% deles, com uma ligeira tendência da rede particular em trabalhar os aspectos estruturais da
língua.
Tendo sido apresentadas as duas propostas de produção de texto, perguntamos aos professores qual das duas eles
aplicariam. Dos 16 sujeitos, 2 optaram pela proposta A; 5 pela proposta B; e 9 professores (56,5%) disseram aplicar as duas
propostas. Destaca-se aqui que 100% dos professores da rede federal disseram aplicar as duas propostas e os dados
evidenciaram uma preferência dos professores das redes estadual e particular para a opção B.
Os comentários produzidos pelo grupo de professores da rede estadual se concentraram na análise das temáticas,
considerando-as criativas e interessantes para os alunos, bem como na possibilidade que elas abrem ao exercício
argumentativo, especificamente, no âmbito social. Apenas o professor E6 manifestou que a argumentação do texto 1 está
relacionada ao gênero textual carta, nenhum outro apontou sua percepção sobre os comandos das propostas e o resultado
desejado em cada uma delas.

“É interessante e criativa.” (E2)

“Aplicaria as duas, embora ache que a 1ª seja mais pertinente, pois explora técnicas de argumentação
incorporadas ao gênero textual carta.” (E6)

“As temáticas são atraentes e possibilitam uma discussão sobre contrastes sociais.” (E7)

Os professores da rede federal justificaram sua escolha pelo trabalho com as duas propostas. Para eles, trata-se da
necessidade do desenvolvimento da habilidade argumentativa, ressaltam a necessidade de se trabalhar com propostas variadas
e com situações comunicativas diferentes e um deles (F4) deixa explícito que os objetivos pretendidos são diferentes,
relacionando isso aos objetivos da aula e à forma como a produção de texto está sendo trabalhada pelo professor.

328
“As duas propostas poderiam ser aplicadas dependendo do que fosse eleito como objetivo das aulas. Na
verdade, acho que dependeria também da forma como a PT está sendo tratada: a partir dos gêneros e/ou
dos tipos textuais? Penso que se trata de algo importante a ser considerado, inclusive, para que professor e
alunos não se „percam na atividade.” (F4 - Mestre em Pedagogia e Doutorando em Letras.)

Na rede particular, pudemos observar que os comentários situam-se na temática e no desenvolvimento do discurso
argumentativo, sendo que um deles (P4) ressalta que ambas as propostas trabalharão com o tipo textual argumentativo em
gêneros diferentes, o que possibilitará o desenvolvimento das habilidades discursivas.

“Ao aplicar a proposta 1, estaria, de certa forma, tentando esconder os reais problemas do Brasil. Já a
proposta 2 leva o jovem à reflexão sobre as diferenças individuais e culturais, assunto hoje relevante, por
ser preocupante.” (P2 - Mestre em Educação)
“As propostas são semelhantes ao trabalharem com o tipo textual argumentação que deverá predominar nos
gêneros que serão produzidos, o que é interessante; já que possibilitará o acionamento de diversas
competências e habilidades discursivas.” (P4 - Graduada em Letras - 2 anos de atuação).

Dos 16 professores entrevistados, apenas 3 (um de cada grupo) manifestaram a percepção sobre as diferenças dos
comandos e os objetivos específicos a serem alcançados com as propostas. 81% deles se dedicaram a analisar as temáticas
como interessantes, criativas e que elas possibilitam o exercício argumentativo e a percepção crítica do mundo.
Questionados sobre como se sentem para conduzir, orientar e avaliar a proposta A, 57% dos professores da rede
estadual se autoavaliaram motivados e seguros para a aplicação das propostas 1 e 2; 14,3% se sentem inseguros para avaliar o
texto 1; 14,3% se sentem desmotivados e inseguros para aplicá-lo e 14,3% não informaram. 28,6% sentem insegurança para
avaliação da proposta B e outros 14,3% não se sentem seguros também para conduzi-la. Esses dados apontam para um alto
índice de insegurança dos professores.
Na rede federal, 75% dos professores se sentem motivados e seguros para a condução da proposta A e 50% dos da
rede federal têm a mesma segurança com a proposta B. Por outro lado, 25 % destes professores se sentem inseguros para a
avaliação da proposta A e 50% para avaliara proposta B. Na rede particular, 60% se sentem seguros e motivados para aplicar a
proposta A, pelos motivos apresentados em suas justificativas.
Perguntados se eles utilizam alguma chave de correção, 85% dos professores da rede estadual e 100% da rede
particular de ensino a utilizam para a avaliação dos textos dos seus alunos. Em contraposição, 75% dos professores da rede
federal não fazem uso de tal ferramenta, preferindo trabalhar com comentários e sugestões no decorrer do texto, adequados aos
objetivos da aula que originou a produção. Um deles se norteia pelos fatores de textualidade defendidos pela Costa Val, em que
a autora ressalta a impossibilidade efetiva de se separar o semântico do pragmático, o formal do situacional (2001, pg. 42).
A chave de correção se justifica por gerar dados tanto para o aluno, que se conscientizará sobre o seu desempenho na
produção textual, quanto para o professor, pois poderá conhecer melhor fraquezas e forças do grupo e agir de modo mais
efetivo. Por outro lado, poderia limitar a visão do professor.
Em seguida, apresentamos aos professores três chaves de correção: a chave 1 contemplando mais as questões
linguísticas; a 2, aspectos linguísticos e organizacionais do texto, sem dar espaço à análise da argumentação e do conhecimento
sociocultural do aluno; e a chave 3, proposta pelo ENEM, tenta mesclar aspectos linguísticos aos discursivos.
Os professores da rede estadual afirmaram utilizar a 3ª chave, que apresenta os critérios utilizados pelo ENEM, cujo
objetivo é verificar habilidades linguístico-discursivas. Interessante observar que a informante E6, a única da rede estadual que

329
percebeu os objetivos diferentes das duas propostas, optou pela chave de correção mais tradicional, ratificando uma
insegurança, anteriormente observada nesses dados.
Dos professores da rede particular de ensino, 40% optaram pela 1ª chave, 40% pela 2ª chave e 20% pela 3ª chave. A
professora P4 exclui da 2ª chave a avaliação das regras de escrita e adiciona o atendimento ao tema e ao comando, e a
professora P1 exclui os itens morfossintaxe, pontuação, ortografia e acentuação. Isso significa que ela avaliaria os textos apenas
sob os aspetos discursivos: pertinência ao tema e à proposta, propriedade vocabular, argumentação e organização dos
parágrafos, desconsiderando os aspectos formais. Por fim, vale registrar que 25% dos professores federais que optaram pela
chave escolheram a chave de correção 2 e que notamos, na rede particular, uma tendência em desconsiderar os itens que
avaliam os aspectos formais do texto, valorizando os aspectos sociodiscursivos.
No intuito de tentar relacionar o conhecimento teórico dos professores à sua prática pedagógica, solicitamos-lhes que,
considerando a prática docente deles, fizessem um comentário sobre uma citação de Marcuschi, que defende a natureza
complementar de gênero e tipo textual. “Os tipos textuais constituem modos discursivos organizados no formato de sequências
estruturais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual. Tipo e gênero não formam uma dicotomia, mas se
complementam na produção textual”. (MARCUSCHI, 2003, p.5). Trata-se de uma citação já corriqueira quando o tema é gênero
e tipo textual. No Brasil, Marcuschi tornou-se uma referência incontestável nesse campo e suas palavras são de fácil
entendimento para o profissional de Língua Portuguesa. Logo após essa pergunta, solicitamos aos informantes que citassem de
1 a 5 autores/obras que lhes serviam como referências teóricas e metodológica. Nosso intuito foi o de cruzar as percepções dos
professores com as leituras que eles têm como referência, verificando se, de fato, tais leituras interferem na prática docente.
Nesse ponto, notamos uma contradição do grupo de professores, uma vez que tendo escolhido a proposta mais formal
de produção de texto, quando solicitados a se manifestarem sobre o critério avaliativo, preferem os aspectos sociodiscursivos,
apontando para uma dificuldade de conciliar, na prática avaliativa, os aspectos formais e os sociodiscursivos.
Dos sete comentários apresentados pelos professores da rede estadual, três não foram pertinentes ao teor da citação,
dois foram resumos e dois foram comentários apreciativos e avaliativos da questão. Mesmo demonstrando entendimento da
citação, houve aqueles que assumiram certa confusão/insegurança do docente ao trabalhar com produção de textos, mesmo
que adiante, esses mesmos profissionais tenham afirmado leituras pertinentes ao tema.

“Os gêneros textuais são diretamente ligados às práticas sociais” (E2)

“Os tipos textuais e o gênero textual não podem ser vistos separadamente porque eles se complementam
na produção textual.” (E3)

“Vejo a discussão entre gênero e tipo textual de maneira muito confusa entre nós professores. Quanto aos
alunos, busco trabalhar com gêneros que „domino‟ e que conheço. Tenho dúvidas se, de fato, os „tipos
textuais‟ constituem modos discursivos organizados...‟ Normalmente, trabalho com os gêneros, ditos
clássicos”.(E5)

“As discussões entre tipos e gêneros textuais está cada vez mais complexa, pois os mesmos apresentam
uma ligação discursiva em que um texto poderá depender de outro para chegar à chave da interpretação
com uma aplicação adequada para a prática dos estudos linguísticos.”(E7 – sic)

Os autores mais citados por esse grupo de professores foram: Magda Soares, Marcos Bagno e Ingedore Koch. Essas
referências podem sinalizar para um desconhecimento de leituras mais atualizadas sobre o tema. Além

330
disso, ainda foram citados en passant alguns linguistas, gramáticos e filólogos de linhas teóricas díspares como: Helena
Brandão, Antônio Houaiss, Celso Cunha, Cintra, Alfredo Bosi, Platão, Fiorin, Edson Campos, Kleiman, Coscarelli, referenciação
essa que pode explicar também a insegurança evidenciada nos depoimentos dos entrevistados.
Ao analisar as respostas dos professores da rede federal, pudemos verificar foram feitos comentários pertinentes,
interpretativos e contextualizados, muitas vezes, tendo a prática profissional como referência.

“Acredito que a partir dessa citação o professor deverá aplicar a sua prática o fato que o gênero textual é um
constructo textual e também mecanismo de ação social, nesse sentido a proposta não é priorizar a forma
em detrimento do conteúdo ou da prática, mas sim conciliar os dois.” (F1)

“Acredito que a citação valida uma prática docente que, por mais que destaque a distinção entre tipos e
gêneros textuais, evidencie a complementaridade entre eles e, até mesmo, mostre ao aluno que na língua,
nada é estanque, mas complementar.” (F3)

“Complementando a justificativa da questão 1, parece que a questão 1 lida com gênero textual, enquanto a
2 destaca o tipo textual. Costumo tomar cuidado com isso na sala de aula, por exemplo, para não “distorcer”
a avaliação em relação com o proposto.” (F4)

Tais professores parecem conduzir o trabalho que realizam, alinhando a metodologia ao conhecimento teórico. Os
autores mais lidos pelo grupo foram Koch, Marcuschi, Bazerman e Kleiman. Autores que trazem abordagens sociointeracionistas
de leitura e produção de texto. Foram ainda citados, com menor ênfase, por esses professores, Norman Fairclough, Fiorin,
Travaglia, Soares e Costa Val.
Dos cinco professores da rede particular, três fizeram comentários interpretativos e contextualizados; um deles não
demonstrou entender a citação do Marcuschi da questão 7 e, por fim, um fez comentário interpretativo do trecho. Essas
referenciações indicam uma diversidade na formação teórica dos professores, o que, aparentemente, pode explicar a
insegurança evidenciada em seus depoimentos, ao contrário do que se poderia supor.

“Procuro trabalhar gêneros textuais, visto que, ao haver, por parte do aluno a compreensão de que os
gêneros são efetivamente adequados às situações comunicativas, produzirão textos mais coerentes e
consistentes.” (P2).

“Os tipos correspondem à microestrutura e o gênero à macro. Uma não pode existir sem a outra sem
prejuízo do texto/situação comunicativa.” (P3)

“Em nosso trabalho com produção textual devemos ter em mente que o estudo dos gêneros não poderá ser
feito em separado, como matéria distinta da tipologia textual, mas como integrantes uma da outra.” (P4)
“Bastante adequada para os professores, porque põe um ponto final a qualquer dúvida que possa ainda
haver sobre a diferença entre gêneros e tipos de texto. Os professores de LP e PT podem investir nessa
abordagem e tratar a tipologia argumentativa, por exemplo, não apenas sob o viés do tema em si, dos
debates com os alunos – que são importantíssimos – mas, também, sob a perspectiva das sequências
linguísticas mais apropriadas ao tipo.” (P5)

Destacam-se nesse grupo tanto comentários que dialogam com teorias atualmente contempladas no meio acadêmico-
científico sobre o tema, quanto comentários que se afastam desse panorama. As referências teórico-metodológicas que afirmam
conhecer são Costa Val, Marcuschi, e Ingedore Koch. Aliás, nesse grupo, encontramos o único professor que tem os PCN como
referência em seu agir. Eles ainda mencionaram os autores Soares, Platão e Fiorin, Ingedore Koch, Matencio, Marcuschi,
Quintiliano, Rojo, Köche e Sírio Possenti, cujas produções se dividem entre didático e científico.

331
Sintetizando os dados, verificamos que:

• em média, os professores da rede federal apresentam, no momento, o maior nível de formação acadêmica e o maior
tempo de serviço como professor;

• no momento da escolha de uma proposta a ser trabalhada com os alunos, os professores das redes estadual e
particular optaram pela do Enem (tipologia textual). Entretanto, as suas justificativas pela escolha ressaltaram o
trabalho com gêneros, deixando transparecer certa insegurança em relação à teoria subjacente às propostas ou
mesmo ao objetivo a ser alcançado por meio delas. Por outro lado, a maioria dos professores (81%) deu ênfase em
seus comentários à temática e ao exercício argumentativo;

• os professores da rede federal (75%) e os da rede particular (60%) se sentem mais motivados e seguros para
condução e avaliação da proposta de gênero. Já os professores da rede estadual estão entre as propostas;

• os professores da rede particular e estadual usam chave de correção, a fim de dar retorno à turma e a eles mesmos,
em contraponto com os da federal, que não usam essa ferramenta, e preferem dar retornos escritos nos textos dos
alunos. Observamos, também, uma tendência de os professores da rede estadual desconsiderarem os aspectos
linguísticos do texto. Além disso, verificar uma certa inclinação da escolha adequada à formação do professor;

• os comentários que fizeram da citação teórica, referência atual para o trabalho com texto, revelaram menor preparo e
certa confusão por parte dos professores da rede estadual, conhecimento por parte dos professores da rede particular
e conhecimento e consciência teórico-metodológica dos professores da rede federal. Estes professores têm como
referências autores da linha sociodiscursivista, tais como Marcuschi, Bazerman e Kleiman; os da rede particular citam
Costa Val, Marcuschi e Ingedore Koch, ao lado de autores de livros didáticos; e os professores da rede estadual
preferem Magda Soares, Marcos Bagno e Ingedore Koch;

• embora a determinação da mudança de perspectiva no ensino de produção de texto tenha partido dos PCN, apenas
um professor (pertencente à rede particular) menciona esse texto como referência teórico-metodológica.

Os autores mais citados pelos 16 entrevistados sobre o tema foram: Ingedore Koch e Marcuschi, não tendo sido citados
autores que apresentam estudos mais atuais como Dolz, Bronckart e Scheneuwly.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazer um levantamento das orientações teórico-metodológicas que têm direcionado a conduta do professor de
produção de texto do Ensino Médio, a fim de compreender como está o atual cenário da sala de aula, após as mudanças
teóricas e da disciplina foi o objetivo lançado para este estudo.

332
Os dados apontaram para a sua comprovação da hipótese apenas na rede estadual, já que seus professores de 3º
ano EM, frente às orientações parametrizadoras, tendem a se orientar pelas teorias das sequências estruturais e do gênero, de
maneira dissociada ou contemplando uma em detrimento de outra, não apresentando segurança em relação às referências
teórico-metodológicas que seguem. Na rede particular, a conjectura foi parcialmente confirmada, tendo sido totalmente negada
na rede federal.
Cônscios de que nosso universo de informantes ainda é pequeno para informar uma constante na educação brasileira,
consideramos a importância qualitativa das respostas e o que revela as mesmas sobre não só o andamento da educação
brasileira no que tange ao ensino de Língua Portuguesa, mas também no que diz respeito à formação e atualização dos
professores.
Acreditamos ser de relevância a influência dessa formação docente na prática pedagógica. Até mesmo em função das
crescentes e variadas inovações que o quadro epistemológico da linguística, nas últimas décadas, tem apresentado. Isso foi
revelado, por exemplo, na preferência das leituras dos professores, a saber, Koch e Marcuschi, os quais, embora tenham
grandes contribuições no campo pedagógico-textual, não podem ser vislumbrados como unanimidade ao lidarmos com os
elementos tipo e gênero textuais.
Outra prova em favor desse argumento é justamente a maior habilidade e precisão nas respostas dos professores da
rede federal, que, com uma formação estudantil mais solidificada, foram capazes de elencar outros autores e possibilidades de
trabalho com o texto. Além disso, a própria ideologia de um colégio federal, baseada no tripé educação, extensão e pesquisa,
facilita um pensamento diferenciado em relação a outras instituições educacionais. Tal fato se confirma, até mesmo, na
preferência por aspectos estruturais da língua na rede particular em detrimento dos aspectos linguístico-culturais escolhidos, em
grande parte, pela rede federal.
Inicialmente, não prevíamos resultados diferentes em relação às redes de ensino, mas surpreendemo-nos com os
dados. Eles nos fizeram enxergar que a prática docente está diretamente relacionada com a formação, mas também nos fizeram
verificar o incontestável: os professores da rede federal, que melhor se apresentam no cenário de sala de aula, possuem as
melhores condições de trabalho, sendo professores com dedicação integral.

333
REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1986.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Língua Portuguesa. Brasília: SENTEC/MEC, 2000.

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: linguagem, códigos e suas tecnologias. Brasília: SEB/MEC, 2006.

BRONCKAR, Jean P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo socio-discursivo, São Paulo: EDUC,
1999.

BUNZEN, Clécio. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: BUNZEN e
MENDONÇA (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2006.

DOLZ, J. e SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita. In: Gêneros Orais e escritos na escola.
Campinas: Mercado de Letras, 2004.

FAVA, Gilmar J. Produção de Texto: um Processo na Perspectiva da Sala de Aula. 23 de agosto de 2005. Disponível em:
http://www.conteudoescola.com.br/. Acesso em: 29/08/09.

KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2001.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Lingüística do texto: o que é e como se faz. Recife: UFPE, 1983.

_____________________. Gêneros textuais: o que são e como se classificam? Recife: UFPE, 2000b. (Mimeo).

MATÊNCIO, M.L. A leitura na formação e atuação do professor da educação básica. In: MARI,H. et al (org). Ensaios sobre
leitura. Belo Horizonte: PUC Minas, 2005.

MATÊNCIO, M.L. Gêneros na formação do professor: letramento, representações sociais e processos identitários (308571/2006-
1), 2003.

VAL, Maria da Graça Costa. Repensando a textualidade. In: AZEREDO, José Carlos de. Língua Portuguesa em Debate. 2.ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.

SCHENEUWLY, Bernard et. al. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

334
ANEXO A – Questionário aplicado aos professores

PERFIL DO ENTREVISTADO
Nome (opcional):
Vínculo na rede de ensino: ( ) federal ( ) estadual ( ) particular
Faixa etária ( ) até 25anos ( ) 26 a 45 anos ( ) 46 acima
Sexo ( )masculino ( ) feminino
Formação ( ) Graduação em: ( ) Pós-Graduação em: ( ) Mestrado em: ( ) Doutorado em:
Há quanto tempo atua na área: Área de maior interesse: ( ) Produção de texto ( ) Literatura ( ) Aspectos estruturais da língua

QUESTIONÁRIO
Leia as duas propostas de produção de texto que seguem, antes de responder às demais questões do questionário:

PROPOSTA DE REDAÇÃO DA UNICAMP – PROPOSTA A


Faça de conta que você tem um amigo em Portugal que confia muito em você e que estava pensando em passar uma
temporada no Brasil e talvez até em migrar. Suponha também que, recentemente, ele lhe tenha escrito uma carta dizendo que
está pensando em abandonar tal projeto, em consequência das notícias sobre o Brasil que tem lido ultimamente. Para justificar-
se, ele incluiu na carta a seguinte amostra de manchetes, que o impressionaram, publicadas com destaque em menos de um
mês, em um único jornal:

• FALTAM ÁGUA, LUZ E TELEFONE NAS ESCOLAS, DIZ PESQUISA DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

• A VIOLÊNCIA NAS RUAS E DENTRO DE CASA AUMENTA

• BRASIL É CAMPEÃO DE CASOS DE DENGUE, LEPRA, LEPTOSPIROSE E FEBRE AMARELA

• PARLAMENTARES USAM PASSAGENS AÉREAS BANCADAS COM RECURSOS PÚBLICOS PARA PASSEAR
NO EXTERIOR COM A FAMÍLIA

• DIRETOR DE RECURSOS HUMANOS DO SENADO USA BABÁ COMO “LARANJA”

• O NÚMERO DE MENINAS E MENINOS VICIADOS AUMENTOU NO RIO EM SP

• SP DESPEJA NA RUA UM TERÇO DE SEU LIXO

335
Escreva-lhe uma carta na qual, colocando em discussão as manchetes acima, você tenta convencê-lo de que, apesar de haver
de fato problemas, a imagem que se faz de nosso país, a partir do noticiário, é parcial, e que, portanto, continua valendo a pena
vir para o Brasil.

PROPOSTA DE REDAÇÃO DO ENEM – PROPOSTA B

Ninguém - Engenheiros do Hawaii Uns Iguais Aos Outros - Titãs


Há tantos quadros na parede Os homens são todos iguais (...)
há tantas formas de se ver o mesmo quadro Brancos, pretos e orientais
há tanta gente pelas ruas Tods são filhos de Deus (...)
há tantas ruas e nenhuma é igual a outra Kaiowas contra xavantes
me espanta que tanta gente sinta Árabes, turcos e iraquianos
(se é que sente) a mesma indiferença São iguais os seres humanos
há tantos quadros na parede São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros
há tantas formas de se ver o mesmo quadro Americanos contra latinos
há palavras que nunca são ditas Já nascem mortos os nordestinos
há muitas vozes repetindo a mesma frase Os retirantes e os jagunços
me espanta que tanta gente minta O srtão é do tamanho do mundo
(descaradamente) a mesma mentira Desa vida nada se leva
todos iguais, todos iguais Nese mundo se ajoelha e se reza
mas uns mais iguais que os outros Nã importa que língua se fala
Aqulo que une é o que separa
Nã julgue pra não ser julgado (...)
Tano faz a cor que se herda (...)
Toos os homens são iguais
São uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros

A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se manifesta na originalidade e na
pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de
inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a
natureza. Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das
gerações presentes e futuras. UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural.

Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no
mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente
já não parece tão encantador. Considerando a figura e os textos acima como motivadores, redija um texto dissertativo-
argumentativo a respeito do seguinte tema.

336
O desafio de se conviver com a diferença

Tendo como base as duas propostas anteriores, responda as questões seguintes.

1) Qual das duas propostas você aplicaria?

a. ( ) Proposta 1 - Unicamp b. ( ) Proposta 2 – Enem c. ( ) As duas propostas Justifique:

2) Normalmente, diante de propostas semelhantes ao modelo 1, você

a. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, orientar a condução e avaliar o texto;
b. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, orientar a condução e inseguro para avaliar o texto;
c. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, mas inseguro para a condução e avaliação do texto;
d. ( ) se sente motivado, mas inseguro para aplicar a proposta, conduzi-la e avaliar o texto;
e. ( ) se sente desmotivado e inseguro.
f. ( ) outra resposta. Qual?

3) Normalmente, diante de propostas semelhantes ao modelo 2, você

a. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, orientar a condução e avaliar o texto;
b. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, orientar a condução e inseguro para avaliar o texto;
c. ( ) se sente motivado e seguro para aplicar a proposta, mas inseguro para a condução e avaliação do texto;
d. ( ) se sente motivado, mas inseguro para aplicar a proposta, conduzi-la e avaliar o texto;
e. ( ) se sente desmotivado e inseguro.
f. ( ) outra resposta. Qual?

4) Você utiliza chave de correção para avaliar os textos de seus alunos? ( ) sim ( ) não

5) Se não, como os corrige? A partir de quais critérios?

Se sim, marque a chave de correção que mais se aproxima da que você utiliza. Depois, marque, dentre os aspectos listados,
aqueles que NÃO são contemplados em sua chave.

337
( ) 1ª chave ( ) 2ª chave ( ) 3ª chave
( ) pertinência ao tema e à proposta ( ) organização adeq. do cont. temático ( ) domínio da norma culta da língua
( ) morfossintaxe (correção linguística) ( ) adequação de linguagem ( ) compreensão da proposta
( ) propriedade vocabular ( ) coesão e coerência textuais ( ) nível de argumentação
( ) argument. coerente e informativ. ( ) regras de escrita ( ) articulação das argumentações
( ) pontuação, ortogr. e acentuação ( ) apresentação do texto ( ) demonstr. de conhec. sociocultural
graf.. ( ) outros. Quais ......................... ( ) outros. Quais .....................
( ) organização dos parágrafos
( ) outros. Quais .........................

6) Faça um comentário sobre a citação abaixo, considerando a sua prática docente.

“Os tipos textuais constituem modos discursivos organizados no formato de sequências estruturais sistemáticas que entram na
composição de um gênero textual. Tipo e gênero não formam uma dicotomia, mas se complementam na produção textual”.
(MARCUSCHI, 2003, p.5)
Resposta:

7) Quais as referências teóricas e metodológicas que orientam a sua prática pedagógica no ensino da escrita? Cite de 1
a 5 autores ou obras.

338
O pseudoprefixo sem- : alguns aspectos morfológicos
e discursivos na produtividade lexical contemporânea

BRAZ, Shirley Lima da Silva


(UERJ)

“[...] o que queremos, mesmo, é mostrar que cada um, junto com todos, pode ser o editor e/ou
copidesque do mundo, o arquiteto da realidade.”
Maria Aparecida Baccega

Há muito tempo o processo derivacional por sufixação é considerado um dos que maior produtividade gera
na língua portuguesa. No entanto, a prefixação também desempenha papel fundamental e é por essa razão que
voltamos a atenção para um pseudoprefixo que hoje, segundo entendemos, já assume caráter de verdadeiro prefixo
entre os falantes de língua portuguesa: sem-.
Aqui, não examinamos apenas os aspectos morfológicos dessas criações lexicais, eis que acreditamos
que há necessidade de “olhar” para elas de forma discursiva, a fim de entender o porquê dessa escolha, hoje, por
parte dos falantes. Isso não significa dizer que o sem- não tivesse sido usado no passado de forma produtiva: vários
verbetes atualmente dicionarizados estão aí para provar que sim: sem-vergonha, sem-graça, sem cerimônia, sem-
dinheiro, sem-fim, sem-luz, sem-número, sem-pudor ou, mais recentemente, sem-terra ou sem-teto.
No Brasil, é fato que os excluídos – ou nossa escolha lexical recairia melhor em “os desprovidos” –
organizam-se em movimentos do tipo “sem”: sem-terra, sem-casa, sem-escola, sem-salário, sem-bolsa, sem-tudo...
Somos um povo consciente das próprias precariedades, necessidades, carências. Além disso, somos,
tradicionalmente, um povo bem-humorado, que faz graça e piada de tudo – ou de quase tudo. Essa é uma das
razões para que toda essa privação, essa carência, multiplique o uso do sem. Vejamos o exemplo extraído do
corpus:

Agora surgiram os defensores da não lei ou do escravismo, frango com abóbora. Somos já
mais de 40 milhões de sem-nada, miseráveis; estão querendo transformar o Brasil na última
colônia de mortos-vivos do mundo, onde não há direito nem leis.

Ademais, depois do uso do vocábulo sem-terra, consagrado e hoje desneologizado, acentuou-se o uso de
tal preposição na condição de prefixo. Portanto, num momento em que grandes são as diferenças sociais e que os
indivíduos se encontram desprovidos do mínimo essencial à sobrevivência, e em que se voltam as atenções aos
carentes, aos necessitados de bens suficientes à sobrevivência, não é de se estranhar que o elemento sem-
proporcione grande produtividade lexical, como constatamos em nosso corpus: sem-barraca, sem-calçada, sem-
concurso, sem-prestígio, sem-palanque, sem-voto, entre outros, além do nosso recentíssimo sem-banheiro, numa
alusão irreverente à repressão durante o Carnaval/2010 do Rio de Janeiro, com a prisão de pessoas do sexo
masculino que urinavam na rua por conta da ausência de banheiros públicos em número suficiente.

339
O fato é que se registra um grande número de formações neológicas a partir de prefixos propriamente
ditos (in-, des-, re- etc.), mas também com a utilização de preposições e advérbios, denominados “palavras-prefixos”
– termo empregado por Antonio Pio de Assumpção Júnior – ou “pseuprefixos”. Quando optamos por classificar sem-
como pseudoprefixo, assumimos, pois, o que a tradição gramatical defende, ou seja, consideram-se afixos apenas
as formas presas ou não autônomas. Nesse sentido, Antonio Pio de Assumpção Júnior1 assinala que alguns autores
preferem utilizar a denominação “pseudoprefixos” nos casos em que as formas adotadas como prefixos também
podem ser usadas autonomamente, como a hipótese das preposições sobre-, contra-, com-, sem- ou de advérbios
como menos-, mais-, entre outros. Essa posição, repita-se, foi a adotada neste artigo.

Aspectos morfológicos

O processo de derivação consiste basicamente na afixação – aposição de sufixo e/ou prefixo – e a um


radical ou a uma base primitiva, com vistas à criação da nova palavra. A prefixação, portanto, cria uma nova
significação externa para a palavra a que se une, embora se circunscreva “à expressão daquelas ideias que
delimitam a significação concreta do radical”.2 O prefixo é, portanto, definido como um afixo que se antepõe ao
radical para lhe adicionar uma nova informação, ou seja, um novo teor semântico: privação, negação, separação,
transformação, repetição, positividade, entre inúmeros outros.
No caso de sem-, que denota ausência, privação, há notoriamente um teor semântico negativo nas
criações lexicais, sem prejuízo de outros valores que venham a ser adquiridos com o tempo, pois é certo que, a
exemplo das palavras, também os prefixos vão adquirindo outros significados no uso produtivo da língua.
Os afixos, segundo a tradição gramatical, como se afirmou, são “formas não autônomas”. Todavia, como
se observa que há muita produtividade também em formas autônomas prefixadas, como sobre-, menos-, sem-, com-
, não-, quase-, entre outras, entendemos que elas, aos poucos, vão-se convertendo em prefixos. Por esse motivo,
os exemplos trazidos neste artigo são considerados “derivações prefixais”, e não “processos de composição”. Por
exemplo:

O movimento dos sem-prestígio. (Veja, 23/12/09)

Os sem-palanque. (O Globo, 07/01/2010)

Partidários dos sem-concurso. (O Globo, 25/04/2005)

O elemento sem-, como assinala Assumpção, tem uma longa história:

1 ASSUMPÇÃO JR., Antonio Pio de, Dinâmica léxica portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1986, p. 44.
2 SAPIR apud ASSUMPÇÃO JÚNIOR, op. cit., p. 44.

340
[sem-] De notória fecundidade, evidencia-se esse prefixo criado em português. Desde o final
da década de 30, aliás, já se escrevia: ‘sem – preposição vernácula já usada como prefixo em
certas palavras, equivalente ao prefixo negativo in e preposta a substantivos’.3

Outro caso de pseudoprefixo muito produtivo, não esqueçamos, é o não- oriundo do latim non, um
advérbio que tem a preferência do falante sobre o também latino in quando se pretendem construir vocábulos que
signifiquem o oposto da base. Até porque, em casos de substantivo, por exemplo, a construção viável é a aposição
de não-: homens/não homens (inhomens não seria uma formação viável!). Sua produtividade, inclusive, não é
recente em nossa língua. Carlos Alberto Gonçalves Lopes traz importante contribuição ao elencar os prefixoides –
designação também utilizada para os pseuprefixos – comumente encontrados na língua portuguesa, muitas vezes
confundidos com os prefixos propriamente ditos:

ALÉM- (após); ANTE- (antes); BEM- (bem); COM- (com outro); CONTRA- (o contrário); DE-
(de cima para baixo, proveniente, ao contrário); ENTRE- (entre, um pouco, reciprocamente);
EXTRA- (fora); FOTO- (fotografia); MAL- (mal, muito); NÃO- (não); SEM- (destituído de);
SOBRE- (acima, mais que, depois). (grifos ora apostos)4

Um caso muito interessante hoje é o do prefixoide euro. Com a criação dessa moeda na comunidade
europeia, há um sem-número de vocábulos formados com ele: eurodólar, eurocomunismo, eurovisão, entre outros.
Importante lembrar que, na prefixação, via de regra, não há alteração de classe – a mudança é tão-
somente de ordem semântica, e não sintática. Na sufixação, ao contrário, pode haver mudança de classe. Mattoso
Camara adverte para o fato de que, “para cada vocábulo, há sempre a possibilidade, ou a existência potencial, de
uma derivação”.5
Deve-se observar, contudo, que a sufixação, em proporção marcadamente maior em relação à prefixação,
é bem mais espontânea no processo de criação. Tem, portanto, um nível de aceitação muito grande (provocando
menos estranhamentos do que a prefixação), “tanto que o primeiro ouvinte ou leitor reage à sua aparição como se já
lhe fosse familiar, como se lhe reconhecesse preexistência”.6

Aspectos discursivos

Em todos os sentidos, há uma relação inequívoca entre língua e identidade do povo que a fala – e no
momento em que a fala. Todas essas vozes se entrecruzam, em vários momentos distintos, e permitem o
florescimento da beleza que é a dinamicidade da língua. Principalmente por essa razão, nosso objeto de estudo são
os neologismos.

3 ASSUMPÇÃO JUNIOR, op. cit., p. 45.


4 LOPES, Carlos Alberto Gonçalves. Salvador: Tipô-Carimbos, 2003, pp. 50-51.
5 CAMARA, 1969, p. 49.
6

341
Não se pode negar que as mudanças sociais estão profundamente associadas à criação lexical, o que,
logicamente, motiva relações interdisciplinares. A palavra é um instrumento de manipulação e nenhuma escolha
lexical é gratuita.
A língua, segundo senso comum, serve para nos comunicarmos uns com os outros sobre o que nos cerca
– os objetos, as pessoas, as ideias etc. e também as respectivas relações existentes. Para tanto, é preciso que
recorramos às palavras e que elas expressem as características desses objetos – se reais ou imaginários, se
concretos ou abstratos, se naturais ou artificiais.
É fato que toda palavra e, para os fins de nosso estudo, toda nova palavra – os neologismos lexicais – e
toda nova acepção – casos de neologia semântica – devem ser vistas à luz de nossas vivências, de nosso contexto
cultural, social, político, econômico, enfim de todo o nosso entorno. Isso porque a forma como concebemos o mundo
– nossos “enquadres” – é que nos permite compreender esses novos significantes e os respectivos significados.
Como ensina José Carlos Azeredo,

O sentido de uma palavra, portanto, é construído em situação discursiva, no ato comunicativo,


e resulta da interação subjetiva entre emissor/enunciador e receptor/destinatário ou, em outros
termos, as instâncias de produção e de recepção da mensagem.7

Ademais, como bem assinalam Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau,8

Fenômeno temporal, o neologismo não existe em si, mas em sua produção e/ou em seu
reconhecimento em discurso por um tipo de sentimento neológico. [...] Em discurso, o
neologismo faz parte das palavras que ‘não coincidem consigo mesmas’, que são objeto de
uma glosa (presença de aspas, tradução, glosa metalinguística: ‘como se diz hoje em dia’) e
pode-se dizer que são essas glosas que são frequentemente neológicas. [...] (negrito ora
aposto)

Um bom exemplo disso é o termo sem-terra. Durante um período, termo considerado neológico, acabou
consagrado pelo uso e perdendo o “estranhamento”, a “não coincidência” acima aludida, para, em decorrência do
reconhecimento pelos usuários, vir a ser “consagrado” e dicionarizado. Os sem-teto são um exemplo semelhante.
Vistos sob uma perspectiva discursiva, não há como deixar de situar a enunciação dos verbetes que
compõem nosso corpus como encarnando a própria “carência”. É ela que está ali, presente, retratada por esse
prefixo que traduz a falta, o desprovimento. Se situarmos o momento discursivo, observaremos que, na época da
ditadura militar, o cidadão/sujeito não podia expressar-se livremente, denunciar sua situação precária, a não ser
quando escondia, na produção literária, significados outros, muitas vezes ambíguos, a exemplo do que fizeram com
tanta maestria, compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil.
Hoje, temos um sujeito com ethos discursivo diferenciado. Não é mais um sujeito que teme expressar-
se; não lhe é mais proibido por lei (atos institucionais, por exemplo) ou por ameaças espúrias à sua integridade

7AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha/Houaiss, 2008, p. 424.
8CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004, pp. 347-
348.

342
física (leia-se, tortura) manifestar suas ideias. Digamos que, agora, “podemos dizer” muitas palavras cuja
enunciação antes não nos era permitida. São formações discursivas9 que traduzem posições ideológicas e políticas.
Assim, encontramo-nos numa fase altamente produtiva, em que o prefixo em questão – sem- – é
“instrumento” da organização verbalizada dessas ideias.10 Buscamos em Dominique Maingueneau embasamento
teórico para tais assertivas:

Parece claro que esse interesse crescente pelo ethos está ligado a uma evolução das
condições de exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a pressão das
mídias audiovisuais e da publicidade.11

Mas Maingueneau também nos lembra que “a noção de ethos é uma noção com interesse essencialmente
prático, e não um conceito teórico claro”.12 E acrescenta:

[...] se quisermos de fato explorá-la [a noção de ethos], torná-la operacional, somos obrigados
a inscrevê-la numa problemática precisa, privilegiando esta ou aquela faceta, em função, ao
mesmo tempo, do corpus que nos propomos a analisar e dos objetivos da pesquisa que
conduzimos [...].13

Nesse sentido, convida-se o leitor para “olhar”, “explorar”, o corpus a seguir.

CORPUS ILUSTRATIVO

O presente corpus contém 29 neologismos. Todos foram coletados na mídia impressa, em jornais de
grande circulação do Rio de Janeiro (O Globo) e de São Paulo (Folha de São Paulo) e nas revistas Veja e IstoÉ. O
período correspondeu a esta primeira década do século XXI, à exceção de um verbete (sem-bola), datado de
25/11/1999, ou seja, no final do século passado.
Todos são casos de neologia lexical, com a formação, pois, de um novo significante.
O importante é perceber que o povo brasileiro tem expressado sua carência por meio de intensa
produtividade lexical com o uso de sem-. Ao lado dele, não podemos deixar de assinalar o des-, o qual, entre vários
teores semânticos, também traz o caráter de privação.

9 É principalmente com Pêcheux que, na análise do discurso, o conceito de “formação discursiva” é examinado. Já no fim dos

anos 70, essa noção é revista e “a formação discursiva aparece, então, inseparável do interdiscurso, lugar em que se constituem
os objetos e a coerência dos enunciados [...]”. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, op. cit., p. 241)
10 José Luiz Fiorin diz que a “linguagem é como um molde que ordena o caos, que é a realidade em si” (FIORIN, José Luiz.

Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005, p. 52.


11 MAINGUENEAU, Dominique. “A propósito do ethos”. In: MOTTA, Ana Raquel e SALGADO, Luciana. Ethos discursivo. São

Paulo: Contexto, p. 11.


12 Idem, p. 12.
13 Idem, p. 12.

343
1) sem-avião

2) sem-banco

3) sem-banheiro

4) sem-barraca

5) sem-bola

6) sem-calçada

7) sem-calcinha

8) sem-clube

9) sem-concurso

10) sem-diferença

11) sem-empresa

12) sem-esperança

13) sem-rumo

14) sem-filho

15) sem-grana

16) sem-loja

17) sem-lugar

18) sem-medalha

19) sem-médico

20) sem-escola

21) sem-nada

22) sem-emprego

23) sem-patrocínio

24) sem-tudo

25) sem-voto

26) sem-projeto

27) sem-salário

28) sem-sorte

29) sem-talento

344
ÚLTIMAS PALAVRAS
Retomamos a epígrafe que abriu este artigo, “o que queremos, mesmo, é mostrar que cada um, junto com
todos, pode ser o editor e/ou copidesque do mundo, o arquiteto da realidade”, para provar o quanto os neologismos
dizem de nosso mundo, de nossa realidade. O próprio ato, pois, de “poder dizê-lo” revela o momento e o lugar em
que vivemos e quem somos nós.

REFERÊNCIAS
ASSUMPÇÃO JR, Antonio Pio de. Dinâmica léxica portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1986, p. 44.
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha/Houaiss, 2008, p. 424.
CÂMARA JR, J. Mattoso. Contribuição à estilística portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978, p. 56.
_____. Dispersos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto,
2004, pp. 347-348.
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 2005, p. 16.
VALENTE, André. “Produtividade lexical: criações neológicas”. In: PAULIUKONIS e GAVAZZI (orgs.). Da língua ao
discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005, p. 129.

Currículo da autora: Graduada em PORTUGUÊS/LITERATURAS pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro


(2002) e mestrado em Letras pela mesma instituição acadêmica (2006). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Língua Portuguesa. Atualmente, cursa doutorado em Letras, também pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (2008.1).

345
Discurso jornalístico e a negociação de uma realidade de
crise: a representação de escândalos de corrupção política

BRENT, Guilherme Rocha


(UFMG)

1- Introdução

O presente trabalho pretende mostrar os resultados de uma pesquisa que tomou como problema de pesquisa a
seguinte questão: como o discurso jornalístico da revista Veja faz a representação de escândalos políticos no contexto
brasileiro? Para essa investigação, nosso objetivo foi analisar de forma crítica as formas de representação dos escândalos,
a partir do Sistema de Transitividade, no gênero reportagem. Com base na análise do significado experiencial da linguagem,
materializado por orações que expressam processos (materiais, mentais, relacionais, comportamentais, verbais e
existenciais), podemos verificar em que medida as escolhas de transitividade e de vocabulário contribuem para a
construção de realidades de corrupção e crise política para os escândalos representados.
A problematização da representação discursiva de escândalos políticos no âmbito da mídia é uma preocupação
transdisciplinar que tem motivado pesquisadores em diversas áreas do conhecimento, e que tem conclamado uma leitura
crítica. A forma como a mídia jornalística representa eventos de corrupção através de seus textos é um processo que
ultrapassa as fronteiras da Política e da própria Mídia, para inspirar trabalhos localizados no âmbito da Análise Crítica do
Discurso (ACD), abordagem teórico-metodológica transdisciplinar que visa empossar as pessoas com conhecimentos
necessários para o desenvolvimento de uma consciência e de um conhecimento críticos acerca do funcionamento social,
político e ideológico da linguagem na vida social. É nessa abordagem crítica da prática de pesquisa que se situa o presente
trabalho.
Nesse sentido, a relação dialógica existente entre os conceitos funcionais da linguagem propostos por Halliday
(1978) e Halliday e Matthiessen (2004) na Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) e o modelo de análise textual orientada
para a pesquisa social proposto por Fairclough (1989; 1995; 2001; 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999) é aqui adotada.
Para Fairclough (1995), a teoria sistêmica de Halliday traz contribuições relevantes para uma análise crítica da
representação de textos midiáticos, representando um grande arcabouço teórico-metodológico, ao tomar a premissa de
que, as formas particulares que o sistema gramatical de uma língua pode assumir estão intimamente relacionadas às
necessidades sociais e pessoais que a linguagem preenche, ou seja, estas formas estão ligadas à funcionalidade assumida
pela linguagem em um contexto situacional e cultural particular.
Para este artigo, nossa análise versa sobre os escândalos do mensalão e dossiê, representados em quatro
reportagens da Revista Veja.

2-O Sistema de Transitividade

Halliday e Matthiessen (2004, p.29) observam que a linguagem constroi a experiência humana nomeando coisas,
categorizando-as, construindo taxonomias para essas categorias, sempre usando nomes para isso. É nesse sentido, que
“não há nenhuma faceta da experiência humana que não possa ser transformada em significado”. Esse processo
representativo acontece porque a linguagem se organiza de modo a dar significado a nossas experiências. Essa função a

346
que se presta a linguagem é definida como metafunção ideacional, e se divide em dois componentes: o experiencial e o
lógico. Partindo dessa configuração funcional, toda oração é vista como uma forma de representar aspectos do mundo a
partir do uso de sistemas gramaticais particulares.
O componente experiencial se materializa pelo Sistema de Transitividade. Este sistema aborda a forma como
significados experienciais são representados na estrutura da oração através de um conjunto de tipos de processo, em que
cada tipo fornece seu próprio modelo para representar um domínio particular da experiência.
Em termos de processos, Halliday e Matthiessen (2004) reconhecem três tipos principais, quais sejam:
(1) os processos materiais, ligados a processos de ‘fazer’ (ex.: quebrar, chutar, plantar, dentre outros). Esses
processos representam ações físicas realizadas por um participante (o Ator), podendo ser estendidas a outro participante (a
Meta). Pode ocorrer também dessas ações trazerem benefício para outros participantes (o Recebedor e o Cliente) ou ainda
serem constituídas por um participante (o Escopo);
(2) os processos mentais, ligados a processos de ‘sentir’ (ex.: perceber, gostar, acreditar, dentre outros). Esses
processos representam não ações, mas sim percepções, desejos, pensamentos e sentimentos. O Experienciador é o
participante em cuja mente o processo mental ocorre e o Fenômeno é a construção mental gerada pelo Experienciador;
(3) os processos relacionais, ligados a processos de ‘ser/ter’ (ex.: ser, ter, significar, dentre outros). Esses
processos estabelecem uma relação de intensidade (quando uma qualidade é atribuída a uma entidade), circunstância
(quando uma circunstância é atribuída a uma entidade) ou posse (quando existe uma relação de posse entre os
participantes) entre duas entidades. Processos relacionais podem ocorrer de duas formas: como atributivos ou
identificativos. No primeiro, o participante Portador é aquele que carrega um Atributo. Ao passo que no segundo, onde a
função do processo é identificar uma entidade em termos de outra, o participante Característica é a entidade definida e o
Valor é o termo definidor.
E três tipos intermediários, a saber:
(4) os processos comportamentais, situados entre os processos material e mental, representando
comportamentos psico e fisiológicos do indivíduo (ex.: irritar, chorar, respirar, dentre outros). Esses processos apresentam
obrigatoriamente um participante consciente, o Comportante, que sente e externaliza um processo;
(5) os processos verbais, situados entre os processos reacional e mental, representando atos de dizer (ex.: dizer,
anunciar, convocar, dentre outros). Esses processos estão relacionados a quatro tipos de participantes: o Dizente (aquele
que comunica algo, sendo, pois, sua presença obrigatória), o Receptor (participante para quem o processo verbal é
dirigido), o Alvo (o participante atingido pelo processo verba) e a Verbiagem (aquilo que é dito);
(6) os processos existenciais, situados entre os processos material e relacional, representando a existência de
algo ou alguém (ex.: existir, surgir, restar, dentre outros). Esses processos representam apenas um participante: o
Existente.
Conforme apresentados sucintamente acima, os seis tipos de processo realizam significados diferentes, e, por
isso, seus participantes realizam funções diferentes. O quadro abaixo sintetiza as explanações apresentadas acima.

347
Quadro 1: Os tipos de processos, seus significados e participantes associados

PROCESSO SIGNIFICADO PARTICIPANTES PARTICIPANTES


OBRIGATÓRIOS OPCIONAIS

Material Fazer, Acontecer Ator Meta, Escopo,


Recebedor, Cliente
Mental Sentir
Percepção ‘perceber’ Experienciador e ------
Cognição ‘pensar’ Fenômeno
Emoção ‘sentimento’
Desiderativo ‘querer’
Relacional Ser
Atributivo Classificar Portador e Atributo ------
Identificativo Definir Característica e Valor

Verbal Dizer Dizente Receptor, Alvo,


Verbiagem
Comportamental Comportar-se Comportante Fenômeno, Behaviour
Existencial Existir Existente ------

Para encerrar esse tópico, abordamos o terceiro componente que completa o Sistema de Transitividade: as
circunstâncias. Realizadas por grupos adverbiais e sintagmas preposicionados, as circunstâncias referem-se a
complementos informacionais que indicam a expansão do processo em uma condição particular. Circunstâncias podem
ocorrer livremente com todos os tipos de processo e, basicamente, com o mesmo significado que lhe é inerente, onde quer
que ocorram. Entretanto, isso não significa que não possam realizar outro (s) sentido (s) além daquele que é inerente.
Halliday e Matthiessen (2004, p.261) esclarecem que as circunstâncias podem formar um tipo de minor process auxiliar ao
processo da oração. Nesse sentido, um elemento circunstancial é um processo que se tornou parasita de outro processo,
por isso deve ser interpretado em relação ao tipo de processo a que está relacionado. Halliday e Matthiessen (2004, p.263-
277) propõem nove categorias para a classificação dos tipos de circunstância.
Vejamos resumidamente esses tipos no quadro abaixo.

Quadro 2: os tipos de Circunstâncias (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004)

Extensão Localização Modo


Distância Lugar Meio
Duração Tempo Qualidade
Frequência Comparação
Grau
Causa Contingência Acompanhamento
Razão Condição Comitativo
Propósito Falta Aditivo
Benefício Concessão

Papel Assunto Ângulo


Guisa Fonte
Produto Ponto de vista

348
3- Jornalismo e Análise Crítica do Discurso: algumas considerações para a leitura crítica do texto

O jornalismo se configura numa prática social e discursiva de produção de sentidos e não como mera atividade de
reprodução de aspectos da realidade (um espelho da sociedade). A problematização dos conceitos de objetividade,
parcialidade, produção de sentidos, linguagem e representação da realidade, foi apresentado e discutido em vários estudos
na perspectiva da Análise Crítica do Discurso (cf. VAN DIJK, 1988; FOWLER, 1991; FAIRCLOUGH, 1995; CALDAS-
COULTHARD, 1997; RICHARDSON, 2007). Esses estudos têm mostrado, através de análises de cunho linguístico e social,
que a prática discursiva do jornalismo é complexa, visto que abrange relações de várias ordens além de se constituir por
discursos de outros campos sociais.
Nesse contexto, o jornalismo produz textos não apenas enquanto um mediador do espaço social, mas também
como protagonista que, ao representar, age sobre esse espaço social, (re) produzindo, legitimando ou transformando
significados para ele. Em face dessas suas características, o jornalismo preenche funções sociais essenciais para a
modelagem de como devemos ver e interpretar a realidade que nos cerca.
Fairclough, em Media Discourse, (1995, p.204) salienta que os textos jornalísticos não são uma simples e
transparente representação do mundo, mas sim “o resultado de técnicas e práticas profissionais específicas, que poderiam
e podem ser completamente diferentes, com resultados bastante diferentes”. O autor entende que as práticas sociais e
discursivas que sustentam esses textos estão baseadas em relações sociais de poder particulares. Isso implica que toda
análise desses tipos de texto não devem ficar restritas a um logocentrismo linguístico, visto que seus significados não são
construídos apenas nas complexidades do texto, mas também no contexto social mais amplo de sua formação. Isso porque
todo discurso possui uma ancoragem sociocultural capaz de determinar sentidos e efeitos sociais em formas que não
podem ser reduzidas às próprias características do texto (BLOMMAERT, 1999). É nesse sentido que se diz que o discurso
jornalístico só se realiza num espaço de produção de sentidos, ou seja, na sociedade, pois seus textos só terão reflexo nos
indivíduos que constituem essa sociedade. Conforme entende Richardson (2007), os textos jornalísticos são sempre
socialmente situados e, por isso, analisá-los requer mais do que uma lista de conceitos linguístico-textuais.

4-O escândalo do Mensalão representado nas reportagens “O PT assombra o Planalto” e “Nocaute”

A análise dos tipos de processo nas reportagens revela uma visibilidade representacional maior em três
participantes: o PT, o Deputado Roberto Jefferson e Lula, Essa representação mostra a inclusão e a atuação dessas três
entidades em diferentes papeis de transitividade. Vejamos alguns desses recortes.

(1) Com a saída de José Dirceu [Circunstância comitativa], porém, Lula [Ator] dá [Processo Material] um passo fundamental [Escopo]
em direção a duas coisas essenciais [Circunstância de lugar]: salvar [Processo Material] seu governo [Meta] e preservar [Processo
Material] sua biografia [Meta].

No recorte (1), segue-se uma sequência de três processos materiais que, de modo geral, resumem a
representação do presidente Lula no domínio do mundo material. Diante das denúncias de Roberto Jefferson, Lula é
representado como aquele responsável por organizar a turbulência causada pelo PT, visto que ela pode prejudicar sua
reputação. Isso indica que as consequências das denúncias atingiram não somente o partido enquanto uma instituição
política, mas também a figura central dele. No recorte (1), observamos, primeiramente, que essas denúncias custaram o
cargo de José Dirceu, o então ministro-chefe da Casa Civil. A partir disso, os três processos materiais realizados por Lula
revelam esse seu papel após a delação de Roberto Jefferson. Nota-se que o jornalista, através da utilização de processos

349
materiais semelhantes, salvar e preservar, constroi uma realidade para as ações do presidente: sua reputação de líder de
Estado deve ser zelada, daí porque o passo dado é fundamental.
De acordo com Thompson (2002, p.49), o prejuízo da reputação é um risco a todo escândalo: “o escândalo é um
fenômeno onde as reputações individuais estão em risco”. Por isso, muitos escândalos são caracterizados pelas “lutas por
um nome”. As escolhas lexicais “fundamental” e “essenciais” retratam justamente a importância desse esforço em defender
a reputação de alguém que tem um nome e um cargo a zelar. Entretanto, conforme nos lembra Thompson (2002), a luta
pela reputação não é uma questão somente de honra e orgulho pessoal. Acima de tudo, está em jogo o capital simbólico:
um recurso que possibilita ao presidente intervir e influenciar no curso crise. Assim, essa seleção léxico-gramatical dos
processos ativa uma realidade tanto para o presidente Lula, como para a representação do escândalo como um todo.
Com relação às escolhas de processos verbais para a representação dos dizeres do presidente Lula, podemos
observar que a realidade representada vai ao encontro daquela instanciada no domínio material: evitar que sua reputação
seja prejudicada pelo escândalo. A seleção dos processos verbais no recorte experiencial abaixo retrata o aspecto
discursivo de uma tentativa de reorganizar o cenário político de seu governo, o que inclui mudanças na base do PT.
Podemos observar que a organização discursiva identifica as entidades atingidas pelos dizeres do presidente, o que
significa dizer que Lula sabia onde estavam situados os problemas a serem resolvidos.

(2) Segundo relato obtido por VEJA de dois ministros que testemunharam o diálogo [Circunstância de fonte], Lula [Dizente] acusou
[Processo Verbal] o PT [Alvo] de estar "acabando com o governo" [Oração projetada] e exigiu que o partido afastasse o tesoureiro do
cargo enquanto as investigações fossem realizadas. No dia seguinte [Circunstância de tempo], ao saber que não fora atendido
[Circunstância de razão], fez [Processo Verbal] um desabafo [Verbiagem] a dois ministros [Receptor]. "O PT não entendeu o tamanho
da crise", disse [Processo Verbal]. Falou [Processo Verbal] mal [Verbiagem] do ministro José Dirceu [Alvo] responsabilizando-o
[Processo Verbal] pela construção de uma base política tão irremediavelmente fisiológica. Criticou [Processo Verbal] outros ministros
petistas, como Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social, e Humberto Costa, da Saúde [Alvo], reclamando [Processo Verbal] que
nunca lhe apresentam soluções, apenas problemas [Oração projetada].

“Acusar”, “desabafar”, “criticar” e “reclamar” são processos verbais que apresentam, ao mesmo tempo,
características de processos materiais e mentais. Isso mostra que as falas do presidente ocupam um espaço intermediário
entre processos de fazer e sentir. Sabedor que sua reputação está em jogo, Lula busca apreciar e agir sobre a situação, e
para isso acusa, desabafa, critica e reclama.

(3) Alvejado pela acusação de comprar deputados com mesada de 30. 000 reais [Circunstância de razão], o PT [Experienciador] vê
[Processo Mental Perceptivo] desmoronar seu discurso ético [Fenômeno] (...)

No recorte (3), o processo “ver” constroi a percepção de um fenômeno experienciado pelo PT. Essa experiência
de mundo retrata uma das principais consequências dos escândalos políticos: o comprometimento da credibilidade e da
confiabilidade. Assim, a escolha do participante Fenômeno responde, num primeiro momento, à necessidade de representar
uma experiência que possa refletir a realidade de mundo sentida pelo PT. Essa escolha pode, também, estar informando ao
leitor o que realmente importa saber sobre a notícia divulgada. Por estar inserida no lead da reportagem “O PT assombra o
Planalto”, a experiência esclarece, em ordem de importância, que o PT é alvo de denúncias de suborno e que, em
consequência disso, seu discurso ético (ou sua política de confiança) está se desmoronando. Essas informações são, de
fato, detalhadas ao longo da reportagem.

(4) As denúncias explosivas do deputado Roberto Jefferson, o homem-bomba do PTB, [Ator] detonaram [Processo Material] a mais
grave crise política dos últimos anos [Meta] e jogaram [Processo Material] uma espessa nuvem de fumaça [Meta] sobre o futuro próximo
[Circunstância de lugar].

350
No recorte (4) são as denúncias de Roberto Jefferson que realizam ações de provocar uma grave crise política no
Palácio do Planalto. Importante observar no participante Ator que o enfoque é dado às denúncias feitas pelo Deputado, e
não à sua própria pessoa. Isso revela um aspecto interessante em termos representacionais: a imagem de Roberto
Jefferson é inerente às suas denúncias feitas contra o PT. Isso mostra também que o Deputado age por meio de suas
denúncias (fator este notável nas reportagens analisadas). No recorte (4) acima, essas denúncias atuam como Ator de
processos com uma carga semântica de guerra, sentido esse ratificado pelo Ator e pelo participante Meta “uma espessa
nuvem de fumaça”.
A lexicalização, mecanismo que consiste, segundo Fairclough (2001), numa das formas mais facilmente visíveis
de se identificar como os indivíduos ou grupos sociais são representados, serve aqui para identificarmos não só a forma
como o Deputado Roberto Jefferson é representado, “o homem-bomba do PTB”, mas também para entendermos o motivo
de se usar os processos com carga semântica de guerra. Ou seja, Roberto Jefferson é representado como aquele que, a
partir de suas denúncias, detona uma crise e joga uma densa nuvem de fumaça sobre o futuro da política, porque é o
homem-bomba do PTB.

5. O escândalo do Dossiê representado nas reportagens “O voo cego do petismo” e “Um enigma chamado Freud”:
um perfil quantitativo dos tipos de processo

Nas duas reportagens analisadas sobre o escândalo do dossiê, percebemos escolhas lexicais específicas
orientadas para a representação não só de atores sociais e outras entidades, mas também do evento como um todo.
Vejamos alguns recortes experienciais onde as escolhas de transitividade e de vocabulário dizem muito sobre como os
jornalistas dão sentido a suas experiências de mundo sobre o escândalo.

(5) Com seus métodos criminosos [Circunstância de meio], o PT [Ator] lançou [Processo Material] o país [Meta] em uma grave crise
política [Circunstância de lugar]. Às vésperas da eleição presidencial [Circunstância de tempo], o partido [Ator] cometeu [Processo
Material] uma violência [Escopo] ao tentar influir [Processo Material] nos resultados do pleito estadual paulista [Meta] pela compra e
divulgação de um dossiê falso sobre adversários [Circunstância de meio]. O crime [Meta] foi descoberto [Processo Material].

(6) Se isso vier a acontecer [Circunstância de condição], o PT [Ator] terá feito [Processo Material] algo inédito [Escopo] em sua rica
trajetória de delinquências [Circunstância de lugar].

É possível observar que essas formas específicas de lexicalizar estão distribuídas nos três componentes do
Sistema de Transitividade e em todos os três recortes o PT é o agente da ação material. No recorte (5), “métodos
criminosos” são os meios utilizados pelo PT para executar seu plano de compra de um dossiê contra adversários políticos.
Pode-se verificar que esse acontecimento é designado por dois nomes, a saber: “uma violência” e “o crime”. Em (6), a
circunstância de lugar atua muito mais como um mecanismo de definição do PT do que de identificação espacial do
desdobramento do processo. Com a escolha de “rica trajetória de delinquências” o jornalista faz saber algo relacionado à
identidade do PT: o partido possui um histórico de transgressões de códigos morais e éticos. Embora pareça menos
fundamental para o processo do que o participante Escopo, essa circunstância de lugar apresenta um discurso ao leitor,
uma significação de um aspecto do mundo representado. Isso mostra como a reportagem constroi “posições de leitura” para
os leitores (Cf. FOWLER, 2004), sugerindo o que eles devem saber (que formações ideológicas devem trazer) para
interpretar os sentidos construídos.

(7) Disparar um tiro de morte contra Serra [Característica] significaria [Processo Relacional Identificativo] exterminar praticamente o
PSDB em nível nacional [Valor].

351
(8) Admite-se [Processo Mental Cognitivo] que talvez tenha sido apenas informado [Processo Verbal] de que uma bomba contra Serra
[Meta] estava sendo armada [Processo Material] e que sua explosão [Ator] poderia catapultar [Processo Material] Mercadante [Meta]
ao segundo turno no pleito paulista [Circunstância de lugar].

No recorte (7), o jornalista confere um caráter mortal à ação da compra do dossiê e, além de estabelecer uma
relação de identificação entre o dossiê e sua consequência imediata, mostra que o plano tinha objetivos definidos – neste
caso, tentar destruir a reputação do candidato ao governo de São Paulo, José Serra. No recorte (8), o dossiê é outra vez
nomeado. Agora, é “uma bomba contra Serra” que serve para designar o que significava o dossiê e “sua explosão”, além de
ter como um dos alvos o candidato José Serra, poderia beneficiar o candidato petista à cadeira de governador, Aloísio
Mercadante. Se atentarmos para a forma como os participantes Característica e Valor são realizados no recorte (7),
veremos que, como no recorte (8), seus aspectos no mundo material são ações materiais, e não pensamentos,
comportamentos ou dizeres. Isso mostra que o plano de comprar e consequentemente divulgar um dossiê incriminador
contra candidatos do PSDB visava consequências materiais.

(9) A tática – de novo, de novo [Circunstância de frequência] – [Característica] é [Processo Relacional Identificativo] dizer que Lula
não sabia de nada [Valor] (...). A outra tática [Característica] é [Processo Relacional Identificativo] montar um cordão sanitário em
torno do presidente Lula [Valor].

(10) Desde o primeiro rombo no casco ético de seu governo, quando se soube que o braço-direito do então ministro José Dirceu fora
flagrado achacando um empresário de jogos [Circunstância de tempo], o presidente Lula [Portador] teve [Processo Relacional
Atributivo] todos os meios para limpar seu governo, higienizar seu palácio e promover uma faxina no PT [Atributo].

Thompson (2002) considera que a reputação é um dos aspectos mais importantes para os políticos nas
democracias liberais, como a do Brasil. O autor entende que na democracia liberal prevalece uma institucionalização do
processo eleitoral e, para se ascender ao poder e conquistar sucesso eleitoral, um dos elementos-chave para o político é
desfrutar de boa reputação. E o escândalo do dossiê, eclodido a menos de um mês para a eleição presidencial, significou
uma enorme ameaça à política de confiança do presidente Lula. As representações experienciais nos recortes (9) e (10)
acima buscam representar, respectivamente, como essa política de confiança do presidente deve ser protegida em
escândalos políticos e como ela é ameaçada pelo modo de fazer política adotado por Lula.
A seleção de elementos circunstanciais para a representação do escândalo mostra como significados são
realizados de forma específica nesse recurso gramatical. Nos recortes experienciais abaixo, destacamos o papel de
algumas circunstâncias para a representação discursiva do presidente Lula. As circunstâncias trazem informações
imprescindíveis para a significação do processo escolhido. Vejamos os recortes abaixo.

(11) Por ter criado e mantido um ambiente propício à propagação da corrupção em seu governo – e sem prejuízo de todas as sanções
legais a que se expôs como candidato e presidente – [Circunstância de razão], Lula [Característica] é [Processo Relacional
Identificativo] o patrono da desastrada compra com dinheiro sujo do falso dossiê [Valor].

(12) Despediu-se [Processo Comportamental] de seus principais ministros caídos [Meta] com afagos, elogios e promessas de
irmandade eterna [Circunstância de meio]. Com esse comportamento [Circunstância de razão], Lula [Portador] acaba servindo
[Processo Relacional Atributivo] como sinal verde [Atributo], como autorização tácita [Atributo] para que atos clandestinos e
irregulares sejam cometidos [Circunstância de propósito].

No recorte (11), a circunstância de razão serve como argumento para a identidade conferida ao presidente Lula
(Lula é o patrono da compra do dossiê porque...). Essa circunstância funciona, assim, como recurso informativo para atribuir
responsabilidade ao presidente. Pela circunstância, o jornalista revela que Lula sabia do ambiente favorável à propagação
da corrupção em seu governo, o que lhe dá o papel de cúmplice da transgressão cometida. Esse papel de cúmplice se

352
estende ao recorte (12), onde o jornalista confere ao presidente o atributo “sinal verde” para práticas irregulares no governo.
Neste recorte, a escolha da circunstância de razão deixa claro o motivo pelo qual Lula recebe esse atributo: seu
comportamento para com acusados de corrupção, informação esta representada na circunstância de meio. Chama a
atenção que essa forma de se despedir de políticos acusados de corrupção não condiz com o que se espera de um
presidente da república, daí a motivação de sua escolha.

(13) Pela proximidade dos seus autores confessos e dos suspeitos com a campanha de reeleição do presidente Lula e com a própria
instituição da Presidência da República [Circunstância de razão], as conseqüências legais [Portador] podem ser [Processo Relacional
Atributivo] severas [Atributo]. Entre os trágicos resultados potenciais do crime [Característica] está [Processo Relacional
Identificativo] até a impugnação da candidatura de Lula [Valor].

(14) O escândalo do dossiê [Ator] abriu [Processo Material] uma crise [Escopo] gravíssima e imprevisível [Atributo]. (...). Gravíssima
[Atributo] porque logo se descobriu que os envolvidos têm laços com a campanha reeleitoral do presidente Lula e com a própria
instituição da Presidência da República [Circunstância de razão].

(15) A crise [Portador] é [Processo Relacional Atributivo] também imprevisível [Atributo] nos seus desdobramentos [Circunstância
de lugar] porque, ao revelar laços de tamanha gravidade com a mais alta autoridade da República, joga uma sombra sobre o futuro
[Circunstância de razão].

Nos recortes (13), (14) e (15), sobressai-se a relação de proximidade entre os acusados e o presidente Lula. Em
(13), o jornalista identifica o motivo pelo qual as consequências legais da irregularidade cometida podem ser severas: os
acusados são pessoas próximas do presidente. No recorte (14), a escolha dos atributos “gravíssima” e “imprevisível” serve
para informar duas características da crise aberta pelo escândalo. A seleção desses participantes parece funcionar
exatamente no sentido de determinar a própria natureza do evento. Chama a atenção o fato de que a justificativa para a
experiência representada, “a crise é gravíssima”, é a mesma utilizada para dizer o porquê as consequências legais do crime
podem ser severas, no recorte (99). Tomando o recorte (15), vemos que, embora a experiência representada seja diferente
daquelas expressas nos recortes (13) e (14), o conteúdo informacional da circunstância de razão reafirma aquilo dito nas
circunstâncias de razão anteriores. O que muda é o acréscimo da informação sobre as incertezas que a crise lança sobre o
futuro da política. O uso contínuo dessa razão pela qual o escândalo ganhou status de crise parece funcionar, dessa forma,
como um recurso discursivo para naturalizar um aspecto da realidade representada. Como a “naturalização é o caminho
real para o senso comum” (FAIRCLOUGH, 1989, p.92), tornar “natural” e “indiscutível” o envolvimento dos acusados com o
presidente Lula como elemento desencadeador de uma crise política facilita e muito um consenso sobre essa forma de ler o
escândalo.

6-Considerações

A organização das realidades dos escândalos nesses domínios experienciais mostra como a representação não é
uma interpretação objetiva de fatos sociais, mas sim um processo de construção de significados para a realidade e para os
atores sociais nela inseridos.
Nesse processo de negociação de realidades sociais, o real é somente um vago referente que reacontece com
riqueza no discurso jornalístico, o qual usa e abusa dos recursos simbólicos para articular e construir uma representação
particular da notícia. Logo, “o que passa a existir é o enunciado do fato tal como narrado, não o fato real” (MOTTA, 2002).
Com a perspectiva de negociação de realidades, os recortes experienciais acima expõem um modo de perceber
a realidade que se espera ser compartilhada pelos leitores. Entendemos que essa forma de representação confere a
responsabilidade da crise às entidades representadas. Construções discursivas como essas, feitas para a representação da
realidade do escândalo, acabam por revelar uma representação sistematicamente organizada da realidade de corrupção

353
que o mensalão e o dossiê deram ao governo. Isso vai de encontro ao conceito de ideologia em Hodge e Kress (1993,
p.15): uma apresentação sistematicamente organizada da realidade.

6-Referências

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Mouton de Gruyter, 1999, pp. 1-38.

CALDAS-COULTHARD, C. R. News as social practice: a study in critical discourse analysis. Florianópolis: Pós-graduação
em Inglês, UFSC, 1997.

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FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. London: Longman, 1989.

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2001.

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FOWLER, ROGER. Language in the News: Discourse and Ideology in the Press. London: Routledge, 1991.

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University Park Press, 1978.

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Hodder Arnold, 2004.

HODGE, R., KRESS, G. Language as Ideology: 2nd Edition, London: Routledge, 1993

MOTTA, L. G. Teoria da notícia: as relações entre o real e o simbólico. In: MOUILLAUD, M.; PORTO, S. D. (Orgs.). O jornal:
da forma ao sentido. Brasília: Editora da UNB, 2002, p. 305-319.

RICHARDSON, J. E. Analysing Newspapers: an approach from critical discourse analysis. Houndmills: Palgrave, 2007.

THOMPSON, J. B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Guareschi.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

VAN DIJK. News as Discourse. Hillsdale, NJ: L. Erlbaum Associates, 1988.

354
O traduzir no imaginário de professores de LE

CAMARGO, Flávia Cristina de Souza


(Universidade Estadual de Campinas)

INTRODUÇÃO
O uso da tradução no ensino de línguas é um tema controverso, que tem gerado discussões e dividido opiniões de
pesquisadores, professores e alunos de línguas estrangeiras, visto que esta atividade/recurso já possuiu diversos papéis
dentro da sala de aula de língua estrangeira (doravante LE), a depender da abordagem ou metodologia em questão.
Entendemos que o uso – ou não – da língua materna (L1) em sala de aula está relacionado às concepções de
sujeito de cada metodologia de ensino de LE. Consideramos, porém, que a prática de cada professor ultrapassa os
postulados das metodologias de ensino, envolvendo, também, as crenças pessoais de cada um. Segundo Almeida Filho
(2005), quando ensinam na vida real os professores constroem seu ensino a partir da sua própria abordagem em tensão
com as outras forças potenciais e eventualmente sob o predomínio de uma delas (freqüentemente suas próprias
abordagens). (grifo meu).
Segundo Moita Lopes (1996), há vários mitos que os próprios professores de LE, principalmente aqueles
desinformados e sem postura crítica, ajudam a reforçar. Entre estes, há dois relacionados ao nosso objeto de estudo: o
primeiro, em que “a tradução como solução pedagógica é prejudicial à aprendizagem de LE”, e segundo, onde “o apelo à
língua nativa (LN) como artifício para ensinar LE é nocivo por causa do fenômeno da interferência da LN na LE”. Mitos como
estes levaram professores e alunos a serem orientados a não recorrer ao uso da tradução em sala de aula, por ser vista
como um empecilho na aprendizagem de língua estrangeira. (SOUZA, 1999)
Os mitos citados acima foram estabelecidos como verdades principalmente por conta da Abordagem
Comunicativa, a partir da década de 70. Entretanto, ainda segundo Moita Lopes (1996), se considerarmos o contexto atual
das escolas públicas brasileiras, onde a carga horária de LE é reduzida, o número de alunos por turma é grande (cerca de
40 alunos por turma), o domínio das habilidades orais do professor é reduzido e há ausência material extraclasse, querer
propor o foco no que se conhece por quatro habilidades (falar, ouvir, ler e escrever) é irreal e, por esses motivos, a
habilidade de leitura é preconizada1.
Ademais, há que se considerar a força das relações de poder existentes dentro do âmbito escolar para que
possamos entender se a tradução é utilizada ou evitada em uma sala de aula de LE em detrimento de ideologias e
imposição de vozes mais autoritárias dentro da escola. ORLANDI (1996), afirma que a escola é a sede de um tipo de
discurso (o Discurso Pedagógico, ou DP) que reproduz e é responsável por manter as relações de poder dentro da
sociedade, dissimulado sob a rubrica de transmissor da informação. Assim, entendemos que tais relações certamente
influenciam a prática do professor de LE, a depender da maneira pela qual tais relações se dão.
Posto isso, salientamos que a nossa perspectiva é a discursiva, o que significa dizer que estaremos interessados
no que os professores de inglês têm a dizer acerca de sua prática, a partir de suas experiências pessoais e profissionais,
além da metodologia de ensino utilizada e das relações de poder-saber, fatores que consideraremos como as condições de

1
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1998)
priorizam o ensino de leitura e interpretação nas aulas de LE nas escolas públicas brasileiras.

355
produção do discurso. Esperamos que esses professores, ao dizer, também revelem suas representações sobre o uso da
atividade tradutória no ensino de LE.
Considerando que o discurso comunicativista no ensino de línguas ainda esteja em voga, hipotetizamos que, nos
dizeres dos professores, encontraremos uma tendência em negar os benefícios da tradução em sala de aula, e por esse
motivo, os professores possam sentir necessidade de se justificar quanto ao uso da tradução no âmbito escolar, visto que
nas escolas públicas (onde todos os professores selecionados lecionam), pelos motivos já citados acima, enfatiza-se a
leitura e interpretação de textos em sala de aula.
Para concretizarmos tal tarefa, elencamos as seguintes perguntas de pesquisa que orientarão nosso percurso:

a) Que representações sobre o uso de tradução em sala de aula emergem nos/dos dizeres dos professores de LE?

b) De que maneira tais representações irrompem na materialidade lingüística, a partir da(s) metodologia(s) de ensino
utilizada em sala de aula e das relações de poder existentes dentro da escola?

OBJETIVOS
A partir do dizer desses professores, propomos como objetivo geral de pesquisa ampliar e colaborar com a
discussão desse tema no âmbito escolar, considerando-o sob o ponto de vista discursivo. Para tal, assumimos como
objetivos específicos:

a) Rastrear os indícios da constituição do imaginário dos professores sobre o uso da tradução no ensino de língua
inglesa, a partir das regularidades lingüísticas.
b) Analisar tais representações.
c) Identificar as relações de poder-saber que atravessam os dizeres em questão.

JUSTIFICATIVA
Pennycook (2003), ao citar Foucault, afirma que a Lingüística Aplicada estuda a inserção social, os discursos que
moldam a vida dos indivíduos e o poder exercido que precisa ser explicado. A partir dessa afirmativa, como lingüistas
aplicados, acreditamos ser de grande pertinência a investigação sobre a ministração das aulas de língua inglesa nos dias
atuais, para que possamos vir a compreender melhor as relações sociais dentro do âmbito escolar: a maneira pela qual os
professores constroem seus discursos a partir das relações de poder e das ideologias que os interpelam. Pensamos que a
partir deste recorte temporal, ao buscarmos compreender como o ensino de línguas se dá nos âmbitos público e privado,
será possível trazer novas contribuições para a área a qual nos filiamos.
Sendo assim, são duas as razões que, imbricadas, sustentam a escolha de nossa temática: uma de natureza
acadêmico-científica e outra de caráter social. Acreditamos que a relevância desta proposta está na produção de um
conhecimento que leva em conta o discurso e a história, uma vez que é pela relação destes que os sujeitos sociais
(professores de línguas) produzirão enunciados cujos sentidos intervêm no aprendizado de uma expressiva quantidade de
alunos.
Visto isso, a escolha pela temática da tradução em sala de aula se dá pelas polêmicas e relevantes discussões
geradas a partir desse assunto, pelo fato da atividade tradutória ter sido sempre uma questão central da aprendizagem de
línguas estrangeiras (ROMANELLI, 2006; COSTA, 1988).

356
Ao longo dos anos, a tradução assumiu diferentes papéis sob a ótica de diferentes metodologias, portanto,
consideramos pertinente observar como essas opiniões divergentes influenciam o que se aprende/ensina em sala de aula.
Entretanto, apesar de reconhecer que “[...] grande parte das abordagens de ensino de línguas desencorajam qualquer
recurso, por mais apreciável que seja, à L1” (Schäffer, 2000, p. 13), há pesquisadores2 dedicando atenção a um processo
contrário, o de defesa e (re)valorização da tradução no contexto escolar, principalmente nos níveis mais elementares de
uma LE. Ou seja, na contramão do senso comum, há quem esteja interessado em registrar e propor essa quebra de pré-
conceito, para propor o retorno da tradução, não como metodologia como já fora no passado, mas como uma ferramenta
que auxilia professores e alunos na consolidação lexical e gramatical, principalmente no caso dos iniciantes.
Quanto às escolas públicas estaduais de SP, sabe-se que apesar de ser recomendado aos professores o uso de
uma apostila produzida pela própria Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, denominada Cadernos do Professor3,
muitos desses professores não adotam um material apenas, em que alguns, ainda, produzem seu próprio material,
mesclando, assim, diferentes metodologias de ensino de LE. Nesse sentido, instiga-nos pesquisar a maneira pela qual as
diferentes concepções de ensino que subjazem cada metodologia se relacionam, por acreditarmos na pertinência do tema e
na contribuição para as duas naturezas de nossa pesquisa: de ordens social e acadêmica.
Entretanto, temos consciência de que essa problemática está longe de se esgotar, uma vez que se pode dar ao
mesmo objeto múltiplos enfoques, dependendo do vínculo teórico a partir do qual se firma o olhar.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A tradução e os métodos de ensino de LE
Conforme afirmamos anteriormente, o uso da tradução em sala de aula de línguas estrangeiras já foi assumido
como parte fundamental no processo de aquisição de LE, mas também como recurso dispensável e ignorado, a depender
da abordagem de ensino de LE a partir da qual se observara. A seguir, teceremos alguns comentários que consideramos
relevantes acerca desta temática.
No Método Gramática Tradução, utilizado em princípio para o ensino das línguas clássicas desde a época do
Renascimento (ROMANELLI, 2006), a tradução era o principal instrumento/recurso pelo qual o aluno aprendia uma segunda
língua: longas listas de vocabulários eram memorizadas e os exercícios de tradução e versão eram utilizados como prática
e avaliação a partir da (na) língua alvo.
Com o surgimento do Método Direto (ou Abordagem Direta), o papel da tradução no ensino de língua estrangeira
foi alterado, uma vez que se passou a ensinar a língua alvo através da própria L2, e não mais através da língua materna.
Entretanto, nesse método, segundo relata Romanelli (2006), “a aprendizagem da gramática, servia-se, ocasionalmente, de
exercícios de tradução.”
Já o Método Audiolingual surgiu junto à Segunda Guerra Mundial e era fundamentado principalmente nas teorias
da psicologia comportamentalista de Skinner e da lingüística estruturalista de Bloomfield. A tradução, dentro dessa
abordagem, era utilizada para fins de comparação entre as estruturas gramaticais das duas línguas (L1 e L2) (ROMANELLI,
2006), e, assim como no Método Direto, as aulas eram ministradas na L2.

2Vejam-se, por exemplo: COSTA 1988, WIDDOWSON 1991, MALMKJÆR 1998, SOUZA 1999, entre outros.
3Os “Cadernos do Professor” são documentos dirigidos aos professores da rede estadual de SP e fazem parte da proposta curricular do
Estado de São Paulo, organizados por bimestre e por disciplina. As propostas curriculares de cada disciplina estão disponíveis no sítio
São Paulo faz Escola: http://www.rededosaber.sp.gov.br/contents/SIGS-CURSO/sigscFront/default.aspx?SITE_ID=25& SECAO_ID=595.

357
A grande vilã do uso da tradução em sala de aula viria a ser a Abordagem Comunicativa, que surgiu por volta de
1970. No ensino comunicativo, a tradução foi definitivamente excluída4, (ROMANELLI, 2006). Ao fazer uso dessa
metodologia, os professores eram orientados a recorrer a outros tipos de recursos, que não a tradução, a fim de que o aluno
pudesse compreender o significado de certas palavras, o que consideramos uma ilusão, se pensarmos que “qualquer signo
pode ser traduzido num outro signo” (JAKOBSON, 2001), e, sendo assim, mímicas e desenhos também correspondem a
um tipo de tradução, ainda que sob um signo diferente (da L1).
Entretanto, como já foi afirmado anteriormente, há nos dias de hoje pesquisadores que investigam e defendem o
retorno da tradução em sala de aula, atividade esta considerada por alguns como a quinta habilidade5 (COSTA, 1988).
Observa-se, também, um cauteloso processo de (re)aceitação da atividade tradutória por parte dos professores de línguas.
É pertinente salientar, porém, que em nossa pesquisa não nos interessa avaliar a validade ou funcionalidade da tradução
âmbito escolar, tampouco defendemos ou criticamos o uso de L1 no contexto de ensino de LE. Contudo, acreditamos que
entender a atividade tradutória sob as diferentes perspectivas das principais metodologias do ensino de línguas é essencial
ao trabalho ao qual nos propomos.

O Discurso
Considerando que o corpus desta pesquisa será composto pelo discurso, não poderíamos deixar de apresentar
algumas considerações a respeito deste conceito, a partir dos postulados de Michael Pêcheux, Michael Focault e Eni
Orlandi.
De acordo com o viés ao qual nos vinculamos, entendemos que no discurso não há separação transparente entre
emissor e receptor, tampouco uma seqüência clara e linear de quem diz e quem decodifica, mas que ambos realizam ao
mesmo tempo o processo de significação, pois o discurso é afetado pela língua e pela história. Sendo assim, tomemos a
definição de Orlandi, na qual discurso:
são processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da
realidade etc. [...] As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentidos entre locutores. (2005,
p. 21).

Foucault (2007) afirma que toda sociedade tem seu discurso controlado, selecionado, organizado e distribuído por
procedimentos internos e externos que o constroem, considerando que o desejo e o poder estão em jogo, (FOUCAULT,
2007, p. 9). O filósofo propõe que estes são organizados de tal modo que não permita que todas as pessoas tenham
acessos a eles, e que há, portanto, rarefação dos sujeitos que falam:
[...] trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os
pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. [...]
ninguém entrará na ordem o discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo. (op. cit, p. 36 e 37)

Assim, é possível afirmar que o discurso é atravessado pelo inconsciente, tendo em mente que os procedimentos
de controle do discurso propostos por Foucault são regras internalizadas e, muitas vezes, não conscientes.
Partindo desse princípio, em que o inconsciente atravessa o discurso, Pêcheux postula que o sujeito é afetado por
dois esquecimentos: o primeiro está relacionado à ilusão do sujeito de quanto à origem de seu dizer, ou seja, “temos a
ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes” (ORLANDI, 2005, p. 35). O
segundo esquecimento trata da ilusão do sujeito ter controle sobre seu dizer e que, o que é dito, possui apenas um

4 Em teoria, como em SOUZA, 1999. Não consideramos aqui as pesquisas acerca da prática em sala de aula.
5 Como já citamos anteriormente, as quatro habilidades são: falar, ouvir, ler e escrever.

358
significado que será compreendido pelo seu interlocutor. Esses esquecimentos (ou ilusões) são constitutivos do sujeito e
necessários para a construção deste (socialmente inserido no tempo-espaço) e dos sentidos.
Conforme citado anteriormente, Foucault trata das limitações de construção do discurso enquanto Pêcheux (2002)
nos apresenta mecanismos para a análise dos discursos, isto é, para desconstrução do texto. Segundo este último, o
discurso configura-se no confronto entre o acontecimento e estrutura que precisa ser compreendido, portanto, pela
materialidade histórica e lingüística. O autor ainda esclarece que não há unidades fixas de sentido, e que todo enunciado
“(...) é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido
para derivar para um outro.” (PECHEUX, 2002, p. 53)
De maneira geral, o que podemos relacionar entre as contribuições de Pêcheux e Foucault é que, para ambos, o
discurso é sempre atravessado pela ideologia e inconsciente. Sendo assim, o discurso, submetido às normas de
construção, não é produzido por um sujeito consciente de seu dizer, mas como efeito de sentido.
Para concluir, reafirmamos que, para o aporte teórico ao qual nos filiamos, o discurso não é constituído por uma
linearidade e não possui a simples função de transmitir mensagens a serem receptadas. Com efeito, o discurso é afetado
lingüística e historicamente e possui normas internas e externas para sua estrutura e acontecimento, levando em conta que
o sujeito não é dono de seu dizer.

As relações poder-saber
É pertinente recuperar outro conceito a ser utilizado na análise do discurso dos professores de LE: as relações de
poder-saber.
Segundo Foucault, em “Vigiar e Punir” (2004), a fim de produzir corpos dóceis, suscetíveis de dominação,
economicamente eficazes e politicamente submissos, as relações de poder estabelecidas no século XX nos âmbitos da
família, quartéis, prisões, escolas, foram marcadas pela disciplina. Nesse sentido, as sociedades disciplinares tinham como
objetivo dominar os corpos, a partir de organizações hierárquicas onde havia controle das atividades.
O filósofo francês propõe a prisão como o coroamento do processo que torna os indivíduos dóceis e úteis,
remetendo-se ao Panopticon, modelo definido por Jeremy Benthan, como a arquitetura da composição da disciplina. O
Panopticton era uma construção em forma de anel e dividido em celas, onde havia um pátio no meio com uma torre central
e um vigilante; nas celas, colocava-se um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Cada cela era
visível a partir da torre, onde havia um vigia que poderia estar ali ou não: era impossível saber da presença deste, fazendo
com que seu ocupante se comportasse como se este ali estivesse. Assim, a vigilância hierárquica sobre o indivíduo permite
a articulação de um poder com um saber, que determina se este está se conduzindo ou não como deve (PRATA, 2005).
Conforme relata Foucault (2004, p.148), este poder disciplinar é
[...] absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa
nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar,
e absolutamente ‘discreto’, pois funciona permanentemente em grande parte em silencio. (grifo meu)

Desse modo, acreditamos que as relações de poder-saber também atravessam o discurso educacional dos
professores de LE, visto que “a escola se institui por regulamentos, por máximas que aparecem como válidas para a ação,
como modelos” (ORLANDI 1996, p. 28), que regulamentam o comportamento (desejável) de diretores, alunos, pais,
supervisores e professores, estes últimos por quem nos interessamos mais fortemente para fins de pesquisa.

359
METODOLOGIA

Conforme já dissemos anteriormente, este projeto de pesquisa será desenvolvido à luz da AD e a análise de
corpus será pautada na investigação interpretativista. Nesse sentido, pensamos ser necessário salientar a impossibilidade
de se estabelecer um método fechado de trabalho neste primeiro momento, visto que a perspectiva discursiva à qual nos
vinculamos parte da relação entre as condições de produção e o material de análise. Acreditamos que os dispositivos de
análise serão construídos ao longo do contato com o corpus, conforme o desenvolvimento da pesquisa, a partir das
recorrências nos enunciados, dadas as condições histórico-sociais de produção. Desse modo, a análise, assim como a
interpretação, possui um caráter inacabado, fragmentado e portador de uma amplitude e abertura irredutíveis (FOUCAULT,
1975).
Entretanto, a fim de descrever e compreender o funcionamento discursivo dos dizeres dos professores de LE,
pretendemos delimitar o corpus desta pesquisa debruçando-nos em materialidades lingüísticas provenientes de seis
depoimentos orais e escritos concedidos pelos professores supracitados. A partir desses relatos, esperamos, num primeiro
momento de interpretação, selecionar e mapear os enunciados que são a favor e os que são contra o uso de tradução na
sala de aula, relacionando-os com as concepções de sujeito que atravessam cada metodologia. Estaremos, assim,
empenhados na busca das regularidades do dizer.
A partir de então, poderemos estudar a constituição do dizer dos professores de LE, confrontando a materialidade
discursiva com as condições em que elas foram produzidas. Estabelecendo uma relação entre a língua, história e sujeito,
poderemos interpretar como os sujeitos constroem suas representações de tradução.

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Flávia Cristina de Souza Camargo possui graduação em Letras (bacharelado em língua inglesa) pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2007) e atualmente é mestranda em Lingüística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Tem interesse por Análise do Discurso, língua estrangeira, tradução, representações e identidades.
E-mail: flavia.teacher@yahoo.com.br

362
Monteiro Lobato e a língua "brasileira"

CAMPOS, Giovana Cordeiro


(Puc-Rio e UFRJ)

Introdução
Este trabalho corresponde a uma parte da tese de doutorado intitulada Assimilação e Resistência do Tradutor:
uma perspectiva discursiva (2010), na qual procuramos aprofundar a relação entre língua e ideologia sem, no entanto,
deixar de fora uma discussão a respeito da subjetividade do sujeito-tradutor. Na referida tese, um dos objetivos principais foi
investigar os movimentos do sujeito-tradutor na/pela língua tomada como materialidade da ideologia e do inconsciente.
Esses movimentos, de acordo com nossa proposta, seguiriam duas direções: a da repetição de valores instituídos – o que
denominamos assimilação; e a da subversão desses valores – o que chamamos resistência. Essa nomenclatura foi utilizada
a partir da crítica que fazemos ao trabalho de Lawrence Venuti ([1986]1995a, 1995b, [1998],2002), importante teórico da
tradução, o qual propôs o termo resistência para se referir à estratégia da estrangeirização, na qual o tradutor resiste ao
efeito de transparência ao manter no texto da tradução as marcas da alteridade do texto-fonte.
Em seus livros e artigos, Venuti aborda a tradução como sendo uma tarefa eminentemente política, uma vez que
permeia as diversas relações entre países. Segundo o estudioso, a escolha de textos a serem traduzidos e de estratégias
para a realização de traduções é capaz não apenas de alterar ou consolidar cânones literários, mas de formar identidades
culturais no contexto receptor da tradução. Tais reflexões representaram um grande avanço para os estudos da tradução,
principalmente ao abordar o caráter político da tradução. Há que se observar, entretanto, que o estudioso enfatiza um
tradutor pensado como sujeito predominantemente social, como demonstrou Frota (2000). O resultado desse sujeito-
tradutor apenas social é a desconsideração da participação de um sujeito também afetado pela singularidade. Em outras
palavras, fica de fora da articulação do funcionamento da língua e da ideologia a história particular do sujeito e, com isso, a
maneira singular que cada sujeito (se) significa (n)o mundo.
Além disso, a escrita de resistência como forma de subverter a prática tradutória dominante no contexto anglo-
americano é proposta com mais ênfase em uma ação consciente do tradutor, deixando de lado o fato de que ambas –
escrita da resistência e escrita da assimilação – podem ocorrer não apenas sem a percepção do sujeito, mas motivadas
pela história particular deste. Assim, por mais que os argumentos de Venuti continuem inegavelmente a gerar pesquisas
relevantes para o desenvolvimento do campo de estudos da tradução, sustentamos ser igualmente importante pensarmos
em como articular de forma mais minuciosa língua e ideologia, levando para análise uma discussão a respeito do sujeito
também em sua singularidade.
Como resposta teórica a nosso questionamento a respeito da imbricação entre ideologia, língua e sujeito,
propomos o arcabouço teórico-metodológico da Análise do Discurso francesa de Michel Pêcheux – AD ([1975] 1988). A AD
nos interessa particularmente porque trabalha de maneira bastante elaborada a relação entre a língua, os sujeitos que a
falam e as situações em que os dizeres são produzidos, considerando a participação dos aspectos ideológicos na
compreensão do funcionamento da linguagem, nas também considerando a participação do sujeito – daí sua sintonia com
nossa proposta de trabalho.
A AD formula uma nova instância da linguagem – o discurso —, que representa uma interação entre sujeitos na
qual se manifesta a ideologia. (Orlandi, 1996) O discurso é tomado como efeito de sentidos entre sujeitos social e
historicamente constituídos, trazendo para a reflexão sobre o funcionamento da linguagem as relações sociais e as de

363
poder sob um viés discursivo. Isso equivale a dizer que os sentidos são vistos como tendo relação com o confronto de
forças presente na sociedade, em sua dimensão ideológica, ou seja, a luta de classes está inscrita na linguagem.
Além de trazer para o campo dos estudos da linguagem uma sofisticada reflexão acerca do funcionamento da
língua em sua relação com a ideologia, a AD consegue aliar um sujeito político-ideológico a um sujeito singular, uma vez
que à lingüística e ao materialismo histórico estão também articuladas as descobertas do campo da psicanálise. É pelo viés
da psicanálise que Pêcheux ([1975]1988) constrói sua categoria de sujeito, sujeito dividido pelo desejo inconsciente. Essa
relação entre AD e psicanálise ficaria mais evidente em dois dos últimos trabalhos de Pêcheux: “Só há causa daquilo que
falha” (1978) e O discurso: estrutura ou acontecimento (1983).
Na AD, o ideológico e o inconsciente são constitutivos de todo sujeito. A AD, então, mostra-se como uma teoria
não-subjetivista da subjetividade e de viés psicanalítico, isto é, o sujeito é pensado como submetido tanto às circunstâncias
sócio-históricas quanto ao inconsciente, sendo o ritual da sujeição – assujeitamento – proposto como passível de falhas, o
que abre caminhos para que a língua – proposta como lugar de construção de discursos — seja considerada não apenas
como um lugar de repetição de discursos sedimentados, mas também de inserção de novos discursos.
Com base no aporte teórico da Análise do Discurso francesa tal como proposta por Michel Pêcheux ([1975]1988)
e desenvolvida no Brasil por estudiosos como Bethania Mariani (1998, 2003, 2004), Freda Indursky (2000, 2007), Eni
Orlandi (1992, 1996), Maria Cristina Leandro Ferreira (2005), Solange Mittmann (2003) e Beatriz Caldas (2009), para citar
alguns, propomos a reelaboração dos conceitos de resistência e de assimilação. Neste trabalho, a resistência é tomada em
relação aos conceitos de contra-identificação – movimento em que o sujeito do discurso se identifica com uma posição
dissidente da posição-sujeito da formação discursiva (FD) que o domina (o interdiscurso trabalha contra si), mas não há
alteração da maneira como a forma-sujeito organiza a referida FD; e de desidentificação, quando a contra-identificação do
sujeito do discurso tem força para alterar a forma como o sujeito universal da FD a organiza (é o funcionamento às avessas,
no qual não há desassujeitamento, mas um deslocamento, ou, em outros termos, há transformação dos sentidos). A
assimilação, por sua vez, relaciona-se à identificação, quando há a sobreposição entre o sujeito do discurso e a forma-
sujeito (ou posição-sujeito dominante de uma FD heterogênea), espaço em que há a repetição de discursos sedimentados
(o interdiscurso trabalha a favor de si). Cabe ressaltar, como fez Indursky (2000), que as FDs são heterogêneas,
entrecruzando-se com outras FDs e abarcando dentro de si contradições.

Monteiro Lobato
Monteiro Lobato é mais conhecido como autor de histórias infantis. Entretanto, ele teve papel fundamental na
modernização do mercado editorial brasileiro, bem como teve influência na política tradutória do Brasil, tendo publicado e
traduzido uma série de escritores estrangeiros, principalmente da língua inglesa, colaborando para que ela fosse promovida
como a nova língua de cultura no Brasil. Toda a contribuição de Lobato, tanto como autor quanto editor e tradutor, adveio
de sua visão crítica do Brasil como sendo um país atrasado, que deveria desenvolver-se tecnologicamente, ao mesmo
tempo em que deveria fortalecer a própria cultura, até pelo abrasileiramento da língua. Seus ideais nacionalistas o levaram
a lutar pelas causas brasileiras, desde a necessidade de melhores condições no campo à luta pelo petróleo e siderurgia
nacionais, em uma época na qual se dizia que não havia petróleo no Brasil. Por conta de suas posições políticas, Lobato
chegou a ser preso, mas isso não abalou sua crença na possibilidade de um Brasil moderno.
O material discursivo deste trabalho é composto de textos escritos por Lobato, prefácios, pósfácios, artigos,
entrevistas, conferências e cartas publicados nas Obras Completas de Monteiro Lobato (1948), nos quais podemos
encontrar expressas muitas das opiniões de Lobato sobre assuntos diversos, entre os quais a língua falada e a língua
escrita no Brasil do início até a metade do século XX. A partir da leitura dessas obras em sua totalidade, efetuamos recortes

364
discursivos, recolhendo seqüências discursivas (SDs) nas quais Lobato se marcou na expressão de seu pensamento sobre
a língua “brasileira”. As análises das SDs representam nossa tentativa de compreender o funcionamento discursivo e, com
ele, a constituição da posição-sujeito tradutor, observando a construção de discursos consoantes e dissidentes que
constituem a forma lobatiana de pensar a língua do Brasil, o que, como abordamos na tese já citada, tem relação com o seu
pensamento e prática tradutórios (embora não seja esse o tópico deste artigo).

Lobato e a língua “brasileira”


Lobato sempre defendeu a existência de uma língua brasileira. Grande parte do que produziu, sobretudo no que
tange às obras infantis, tinha estreita relação com sua vontade de que o Brasil se desapegasse dos valores portugueses
para se assumir como país independente de fato. A independência deveria se dar, segundo Lobato, tanto no plano
lingüístico quanto no econômico, daí todas as suas tentativas empresariais, desde a fundação de suas editoras ao interesse
pelo petróleo e siderurgia nacionais.
A defesa feita por Lobato do uso cotidiano da língua portuguesa no Brasil seria resultado de sua ligação à
ideologia nacionalista que estava presente em sua época de forma periférica e que iria, entre outras coisas, levar ao
movimento da Semana de Arte Moderna de 1922. O uso da língua falada do jeca de Lobato não significava um uso
desprovido de regras; a questão levantada por Lobato era a de que o uso da língua portuguesa no Brasil havia gerado
alterações que seriam marcas de brasilidade e, como tais, não deveriam ser consideradas erros, mas uma distinção de
ordem natural entre a língua de Portugal e a língua da ex-colônia, resultado da evolução das línguas.
A independência real do Brasil, no entender de Lobato, também passava pela questão lingüística. Nas décadas de
1920, 1930 e mesmo na de 1940, a norma culta baseava-se na gramática portuguesa, a qual convivia com a forma falada
criada pelo povo brasileiro, falar este que para Lobato era positivamente mais “sintético e simples”, porém estigmatizado. No
prefácio de Lobato ao livro Rosário de Capíá (1946), de Nhô Bento,1 Lobato tece comentários elogiosos sobre a
espontaneidade da língua utilizada:
Temos duas civilizações ou melhor duas “culturas”: a cultura importada, dos que vivem nas cidades, e
sabem ler e escrever e até livros escrevem! e a “cultura local”, filha da terra como um cogumelo é filho
dum pau podre, desenvolvida pelos homens do mato – o caboclo, o caipira, o jéca, em suma. Como o
jéca nunca leu nada e nem escreve, a sua cultura se foi fazendo ao tipo primitivo, por lentas acessões
e restritas experiências locais – e com a transmissão sempre oral. O assunto é grande demais para
caber num prefacio; exige livros, já que se trata de uma “cultura” de 15 milhões de seres humanos.
Mas cumpre-nos aqui considerar a galope um dos aspectos dessa “cultura”: a língua, pois foi na
língua do jéca que Nhô Bento nos encantou. (Lobato, 1955c, p.29, grifos nossos)

Para Lobato, portanto, existiriam duas línguas, “a do jeca”, correspondente a uma língua nacional, brasileira, e a língua da
“cultura importada”, ou seja, a língua portuguesa com as características européias. E Lobato continua:
[...] por que os nossos filólogos não extraem a gramática dessa língua do jeca?? [...] Devíamos fazer a
gramática da interessantíssima “língua do jeca”, como os franceses fizeram a gramática da “língua de
oc”; e devíamos ensinar essa gramática nas escolas, lado a lado com a gramática portuguesa, em vez
de torturar as pobres crianças com o terrível e inútil latim do senhor Capanema. (Lobato, 1955c, p.30,
grifos nossos)

Para Lobato, portanto, não se tratava de negar o passado e abandonar completamente as raízes portuguesas, mas sim de
também se considerar a variação da “colônia”, “a língua nova que se elaborava no seio do povo” (Lobato, [1919] 2009,
p.28), novamente no intuito de tornar o país independente. Analisando os trechos grifados, observamos que a posição
tomada por Lobato é a da não filiação ao modelo dominante. Assim, nos termos da AD, consideramos a existência de uma
formação ideológica de preservação da língua portuguesa como ela foi trazida para o contexto brasileiro materializada em
uma formação discursiva da/sobre língua no Brasil cuja posição-sujeito dominante privilegiava uma posição em sintonia com

365
as regras do bem escrever de Portugal. A posição-sujeito tomada por Lobato é de não coincidência com essa posição-
sujeito dominante e, portanto, é a posição do “mau sujeito”, em um movimento de contra-identificação que podemos propor
como sendo um gesto de resistência. Como Lobato adquire um lugar de destaque no cenário literário e editorial brasileiro,
dando-lhe um status de poder frente ao público, essa tomada de posição funcionou, a nosso ver, como uma força contrária
que colaborou para a desestabilização da forma-sujeito, produzindo a fragmentação da mesma. Esse movimento, contudo,
não chegou a uma desidentificação do sujeito com a posição-sujeito dominante a qual considera como correto o português
padrão, pois o sentido é de co-existência. Porém, a desidentificação poderá vir no futuro, com a total separação do modelo
português: “A língua brasileira positivamente está a sair das faixas e co-existe no Brasil ao lado da língua portuguesa –
como filha que cresce ao lado da mãe que envelhece. E tempo virá em que veremos publicar-se a ‘Gramática brasileira’”.
(Lobato, [1921] 2009, p.90, grifos nossos) Ainda que até hoje não haja uma gramática da língua brasileira, a preferência de
Lobato por uma linguagem mais fluente teve como resultado a formação de um público leitor para suas obras, o qual viria a
incluir uma audiência praticamente ignorada: o público infanto-juvenil.
Para Lobato, saber a língua portuguesa não significava decorar a gramática; ia além, era conhecer o modo de
funcionar da língua, onde acontecia a beleza dos textos literários portugueses, sobretudo dos de Camilo Castelo Branco,
famoso autor português. Em carta de 1917 a Rangel, Lobato comentou:
Se por “saber português” entendes conhecer por miúdo os bastidores da Gramática e intrigalhada
toda dos pronomes que vem antes ou depois, concordo com o que dizes na carta: um burro bem
arreado de regras será eminente. Mas para mim, “saber português” é outra coisa: é ter aquele doigté
do Camilo, ou a magnificente allure processional do Ramalho, ou a sublime gagueira do Machado de
Assis. Aqui em SP o brontossauro da gramática chama-se Álvaro Guerra, um homem que anda pela
rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de cigarro. As regras desse homem
tremendo, quando vem ao bico da pena dos escritores, matam, como unhas matam pulgas, tudo o
que é beleza e novidade de expressão – tudo o que é lindo mas a Gramática não quer [...] A esta
gente o Camilo chamava lombrigas do intestino reto de Minerva (Lobato, 1955b, p.168-169, grifos
nossos)

A SD acima parece estar em completa sintonia com o movimento de resistência do sujeito; o itálico usado pelo autor
materializa a resistência de Lobato à gramática portuguesa, a qual não deixa novas formas literárias surgirem por impedir o
uso da língua brasileira. As aspas em “saber português” também materializam a rebeldia de Lobato: saber português para
ele tem outro sentido. Entretanto, o sujeito continua identificado também com posição-sujeito dominante da mesma FD que
deseja subverter. Nesse sentido, por que usar o mesmo “saber português” para Camilo, escritor português, e Machado,
escritor brasileiro? No caso do último, não seria uma “saber brasileiro”? Isso nos remete à tensão existente no discurso; à
contradição, tomada pela AD como própria do sujeito e do discurso. Desse modo, a posição tomada por Lobato também
sugere uma filiação, ainda que não pretendida, à mesma posição-sujeito dominante da formação discursiva, qual seja a da
correção da forma escrita segundo as normas em curso.
Vejamos a seguinte SD, presente em carta de 1904 a Godofredo Rangel:
P.S. – Apontas-me, como crime, a minha mistura do “você” com “tu” na mesma carta e às vezes no
mesmo período. Bem sei que a Gramática sofre com isso, a coitadinha; mas me é muito mais
cômodo, mais lépido, mais saído – e, portanto, sebo para a coitadinha. Às vezes o “tu” entra na frase
que é uma beleza; outras é no “você” que está a beleza – e como sacrificar essas duas belezas só
porque um Coruja, um Bento José de Oliveira, um Freire da Silva, um Epifanio e outros perobas “não
querem”? Não fiscalizo gramaticalmente minhas frases em cartas. Língua de cartas é língua em
mangas de camisa e pé-no-chão – como a falada. (Lobato, 1955a, p.79, grifos nossos)

A correção, da maneira como é discursivamente colocada por Lobato, sugere um processo de assimilação, no qual a
“vontade consciente” do sujeito é apagada pela sua identificação com a posição-sujeito dominante da FD em questão,
posição-sujeito contra a qual desejava lugar. A separação entre a língua falada e a escrita (que, aliás, permanece
acentuada até os dias atuais) reconhecida e autorizada por Lobato indica, a nosso ver, uma filiação dele à ideologia da

366
correção e, portanto, uma identificação com a posição-sujeito dominante da mesma FD, posição esta contra a qual Lobato
conscientemente pretendia resistir. Note-se que na língua das cartas a mistura podia ser realizada porque a língua das
cartas funcionava como a língua falada, o que implica dizer que, na língua escrita, de fato tal mistura não poderia se dar.
Desse modo, percebe-se o funcionamento do interdiscurso, do já-dito em outro lugar, que se fez presente no que foi
efetivamente falado, resultado da interpelação bem sucedida de uma formação ideológica que obriga o uso da gramática
portuguesa tal qual usada pela elite letrada. Embora o trecho tenha usos que remetem a uma crítica irônica à gramática
tradicional (como o uso da letra maiúscula, o adjetivo no diminutivo “coitadinha”, o itálico presente em “não querem” para
criticar a atitude dos que apóiam a língua do colonizador), a posição-sujeito tomada também está em consonância com a
posição-sujeito dominante e, portanto, demonstra um movimento de assimilação. Assim sendo, no mundo literário, a “língua
do jeca” continua desprestigiada. Há, portanto, uma mistura de assimilação e resistência, uma tensão, o que, de acordo
com a AD é própria do sujeito e do discurso.
O “mesmo” Lobato defensor das mudanças se mostra bastante conservador em alguns pontos. Como exemplo,
ele afirma não fiscalizar gramaticalmente suas frases em cartas, já que tal linguagem se aproximaria do falar coloquial.
Contudo, não fazê-lo na obra escrita é “vergonhoso”. Em cartas a Rangel em 1916, Lobato escreveu: “Rangel, [tenho] em
mãos tuas notas. Dei com os pronomes mal colocados e corei de vergonha. É indecentíssimo colocar mal os pronomes, e a
mim ainda me escapa um ou outro” (Lobato, 1955b, p.111, grifos nossos) e “Obrigado pelas regras pronominais. Vou segui-
las”. (Lobato, 1955b, p.120) É interessante ver como Lobato se repreende nessa SD, o que pode ser observado pelo uso de
palavras como “vergonhosa” e pelo superlativo “indecentíssimo”. Tal posição demonstra a assimilação de Lobato à posição-
sujeito dominante da FD da/sobre a língua tal como colocada pelo colonizador, o que mostra haver uma contradição no
pensamento lobatiano sobre língua, resultado dos processos de identificação do sujeito com posições-sujeito distintas.
Logo, e não poderia ser diferente, nem tudo é luta e resistência. Vale repetir, porém, que não se trata de um defeito – a
contradição é própria do sujeito e do discurso – e por meio de dispositivos de análise sofisticados, como os da Análise do
Discurso francesa, podemos perceber tais movimentos na dispersão de produções discursivas.

Considerações finais
Neste trabalho, abordamos como Monteiro Lobato, importante intelectual no cenário cultural brasileiro, atuou
discursivamente, ou seja, como o sujeito-Lobato respondeu ao seu processo de assujeitamento, seja na forma da
resistência e/ou da assimilação. A partir desse estudo, sustentamos que uma análise mais detalhada do discurso pode,
entre outras coisas, trazer à tona posições ideológicas que diferem ou mesmo chegam a ser contrárias ao que se supõe
defender conscientemente. São as marcas das filiações ideológicas (des)conhecidas do sujeito que, de tempos em tempos,
contribuem para a alteração das mesmas instâncias que o assujeitam.

367
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Giovana Cordeiro Campos de Mello é tradutora e intérprete do Setor de Convênios e Relações Internacionais da UFRJ;
licenciada em Letras Port/Ing (1999), Bacharel em Tradução (2002) e Mestre em Letras – Teoria da Literatura (2004), todos
pela UFJF; Mestre em Letras – Literatura Brasileira (2005) pelo CES/JF; Especialista em Tradução pela UFMG; e Doutora
em Letras – Estudos da Linguagem (2010) pela PUC-Rio.

e-mail: giovanacordeirocampos@gmail.com

1 José Bento de Oliveira (1902-1968) foi um poeta popular, que escreveu sobre o caboclo e sua linguagem. Em 1946, escreveu Rosário

de Capiá, obra em que reuniu 58 de suas poesias e tinha como prefaciador Monteiro Lobato. Como exemplo do uso da linguagem brejeira
feita por Nhô Bento, podemos citar o poema “Doce de Cidra”: “Eu trúxe para mecê este docinho impetecado, ansim, imbruiadinho, Nesta
paia de mio... É só mecê pegá, afroxá este amarrío, abri a paia dele justo bem nomeio, ferrá os dente e cume!...”.

369
Restrições situacionais discursivas e formais na
caracterização do gênero relato de orientação pedagógica
CARDOSO, Eveline Coelho
(UFF)

Primeiras palavras...

Neste trabalho, pretendemos desenvolver uma reflexão sobre a análise de gêneros discursivos na perspectiva
semiolinguística defendida por Patrick Charaudeau (2004). O objeto de estudo que nos interessa são registros de atas
produzidos numa escola rural da cidade de Teresópolis (RJ), a que vimos chamando Relatos de Orientação Pedagógica.
Vale ressaltar que as considerações trazidas aqui dizem respeito à abordagem de qualquer texto, uma vez entendido como
ato de linguagem, cuja produção de sentido depende da interação entre sujeitos imersos em circunstâncias específicas de
discurso.

Considerações sobre gêneros discursivos

A forma assumida pela linguagem quando se materializa numa situação de comunicação não ocorre por acaso.
No dizer de Bakhtin (2000, p. 113), “a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente
e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação”. Nesse sentido, a partir do conceito de
enunciado, o autor definiu os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados, concretos e únicos,
que emanam das esferas de atividade humana (id., p. 280), e sem os quais não haveria troca linguageira (p. 285).
Para Maingueneau (2008, p. 60), os gêneros do discurso são definidos como dispositivos de comunicação que só
podem aparecer quando certas condições sócio-históricas estão presentes. Nesse sentido, o autor entende que o domínio
da diversidade de gêneros discursivos está atrelado a uma competência genérica, a qual abrange o conhecimento
partilhado sobre os gêneros numa determinada comunidade. O autor ressalta que, como atividades sociais, assim como os
atos de linguagem, os gêneros do discurso se submetem a condições de êxito, que seriam, grosso modo: uma finalidade
reconhecida, o estatuto dos parceiros, o lugar e o momento constitutivos, um suporte material e uma organização textual.
É aproximadamente essa a visão de Charaudeau (2004), para quem a dificuldade de classificação do que sejam
os gêneros do discurso se deve à diversidade de critérios dos quais se lança mão na análise. O autor postula que a
ineficácia de algumas teorias nessa definição reside na individualização dos aspectos abordados, ou seja, na não
articulação entre a ancoragem social, a atividade linguageira e as marcas verbais recorrentes, o que torna a análise
insuficiente.
A proposta do autor parte de uma reflexão sobre a constituição das comunidades humanas, processo que
depende de uma construção coletiva de sentidos, formas e comportamentos registrados em três memórias: uma memória
dos discursos, na qual se inscrevem saberes de conhecimento e crença sobre o mundo; uma memória das situações de
comunicação, em que são armazenados dispositivos que normatizam as trocas comunicativas e definem um conjunto de
condições psicossociais para sua realização; e uma memória das formas de signos, registrados como maneiras de dizer,
enquanto sistema que serve de diferentes maneiras ao uso.

370
A partir dessa reflexão, o autor propõe um modelo de análise semiodiscursivo dos gêneros, no qual pretende
articular situações, sentidos e formas, paralelamente argumentando em favor de uma visão do sujeito como portador de
uma intencionalidade que o posiciona face às liberdades e restrições da linguagem.

Modos de organização do discurso

Para entender a proposta de Charaudeau (2008) para a análise dos gêneros discursivos, é necessário pressupor
a existência de um conjunto de procedimentos de colocação em cena do ato de comunicação – os modos de organização
do discurso –, que se põem em funcionamento no nível discursivo da competência linguageira. Tais procedimentos,
segundo o autor, correspondem às finalidades discursivas de cada ato de comunicação, quais sejam: narrar, descrever,
argumentar. São, assim, distintos quatro modos de organização: o enunciativo, o descritivo, o narrativo e o argumentativo.
Segundo o autor, descrever corresponde a fazer existirem os seres do mundo ao nomeá-los, localizá-los e atribuir-
lhes qualidades que os singularizam; narrar diz respeito a fazer uma descrição de uma sequência de ações, prevendo-se a
presença de um narrador movido por uma intencionalidade; e argumentar consiste em combinar diferentes componentes
que dependem de uma situação com finalidade persuasiva.
Os quatro modos definidos por Charaudeau (2008) se articulam de maneiras diferentes na constituição dos
diversos textos que circulam socialmente e cada um é concebido como uma categoria de discurso que aponta para a
maneira pela qual o sujeito falante age na encenação do ato de comunicação. Para seu autor, dizem respeito à articulação
dos componentes de todo ato de linguagem, que são: o propósito referencial, o ponto de vista do sujeito falante e os
aspectos da situação de comunicação. Enunciar seria, então, “organizar as categorias da língua, ordenando-as de forma a
que dêem conta da posição que o sujeito falante ocupa em relação ao interlocutor, em relação ao que ele diz e em relação
ao que o outro diz.” (CHARAUDEAU, 2008, p. 82) [grifos do autor].
O Modo Enunciativo do Discurso possui três funções que correspondem, cada uma, a um comportamento distinto,
que são: o comportamento alocutivo, o elocutivo e o delocutivo. O comportamento alocutivo visa a estabelecer uma relação
de influência entre locutor e interlocutor; no comportamento elocutivo, o locutor procura revelar o seu ponto de vista sem
que o locutor esteja implicado nele; e o comportamento delocutivo é destinado a retomar a fala de um terceiro, apagando
tanto o sujeito falante quanto o seu interlocutor do ato de enunciação.

A proposta de Charaudeau para uma definição de gênero do discurso

Charaudeau (2004) defende que a análise dos gêneros deve se apoiar na determinação de diferentes níveis de
organização do fato linguageiro, isto é, numa teoria do discurso na qual se evidenciem os princípios gerais sobre os quais
ele se funda e também os mecanismos que o colocam em funcionamento. No primeiro nível – o dos princípios gerais –, o
autor se restringe ao principio de influência, o qual está na origem do que chama de visadas – atitudes enunciativas de base
relacionadas a posição dos sujeitos no discurso. As visadas determinam a orientação do ato de linguagem como ato de
comunicação em função da relação que o sujeito falante quer instaurar frente ao seu destinatário.
O segundo nível – o dos mecanismos de funcionamento discursivo – compreende dois subníveis: o nível da
situação de comunicação e o nível da discursivização. O primeiro é onde, segundo o autor, deve começar a análise do
discurso, pois é o lugar onde se determinam, em seu conjunto, as restrições da expectativa de troca (enjeu), provenientes

371
das Circunstâncias de Discurso de modo geral (identidades, lugar da troca, finalidade, propósito e circunstâncias materiais).
O nível da discursivização é o lugar onde se instituem restrições formais e discursivas relacionadas às maneiras de dizer,
isto é, no âmbito das atividades de ordenamento do discurso ou modos de organização (restrições discursivas), ou no
âmbito do emprego obrigatório de maneiras de dizer identificadas em todo texto que corresponde à mesma situação
(restrições formais). O autor defende então que:

A situação de comunicação é, assim, o que determina através das características de seus


componentes, as condições de produção e de reconhecimento dos atos de comunicação, condições de
enunciação sob seu aspecto externo. Por conseguinte, ela estrutura o domínio da prática – que é
sociologicamente vasto – em domínio de comunicação. (CHARAUDEAU, 2004, p. 26)

O contrato e as visadas discursivas que emergem de uma situação de comunicação (prescrição, solicitação,
incitação, informação, instrução, demonstração etc.) estão atrelados à finalidade, à identidade dos participantes, ao
Propósito Comunicativo, e às circunstâncias materiais, configurando-se como dados externos ao ato de comunicação ou
restrições situacionais. Esses dados constroem o discurso, respondendo à questão “estamos aqui para dizer o que?”, e
produzindo instruções que encontrarão correspondência na resposta a “como dizer?”, operada no nível dos mecanismos de
funcionamento.
As restrições discursivas correspondem a um conjunto de comportamentos discursivos possíveis entre os quais o
sujeito comunicante escolhe os que satisfazem às condições dos dados externos. Portanto, ficam no intermédio entre os
dados das restrições situacionais e a configuração textual, realizando-se essencialmente por meio de modos de
organização do discurso adequados, que também não são tipos discursivos, mas um instrumento a serviço da realização
das restrições discursivas.
As restrições situacionais (via restrições discursivas) incidem sobre as formas, submetidas a normas de uso mais
ou menos codificadas cujas expressões podem sofrer variação. Trata-se da fixação de “maneiras de dizer” que dependem
da situação de comunicação e expressam o que Charaudeau chama de restrições formais.
Em suma, a proposta do autor é uma tipologia fundada sobre o dispositivo gênero como materialidade da mise-en-
scène (suporte) e sobre os diferentes procedimentos utilizados para construir dispositivos cênicos. Nesse nível, então, se
concebe o texto como “resultado de um ato de linguagem produzido por um sujeito dado e em uma situação de troca social
dada” (p.29). Para classificá-lo, portanto, é necessário identificar seus pontos comuns nos três níveis abordados: no nível
das restrições situacionais, em que se identificam os componentes do contrato situacional, questionando as visadas nas
quais aparecem os textos; no nível das restrições discursivas, identificando as categorias do discurso e os modos
discursivos em jogo; e no nível das restrições formais, identificando diferentes aspectos da organização formal do texto, isto
é, regularidades mais ou menos marcadas e sistemáticas, em função das restrições situacionais e discursivas. É o resultado
da combinação entre esses três níveis que permite maior coerência na classificação dos gêneros, que aliás, o autor propõe
que sejam definidos como gêneros situacionais (relacionados às condições do contrato) e sub-gêneros (variantes
encaixadas num contrato global). Os modos discursivos e marcas seriam apenas traços daquilo que as restrições
discursivas e situacionais ordenam.

Caracterizando o objeto de estudo

A escola é uma esfera social que há muito se mostra interessante às pesquisas de base linguística, seja para
compreender aspectos relacionados ao ensino de uma língua, seja para observar comportamentos humanos que envolvem

372
a relação ensino-aprendizagem. Enquanto espaço de interação social, tem no seu interior cristalizadas diversas práticas
enunciativas, como planejamentos, roteiros, aulas, reuniões, bilhetes etc. Além destes, também fazem parte desse cotidiano
outros registros de natureza mais burocrática, como as atas e os relatórios, destinados a documentar a vida escolar sob
vários aspectos. Nosso objeto de estudo neste trabalho são os relatos de atas, como esse que ora nos servirá à análise:

Aos dois dias do mês de abril de dois mil e sete, conversei com a professora Fabiana sobre o fato
relatado pela mãe da Eduarda. A mãe disse que a aluna está desestimulada pelo fato da professora
corrigir os erros a caneta e como apresenta dificuldades na escrita fica com vergonha do próprio
caderno. A professora mostrou o caderno, onde vimos que algumas palavras foram escritas ao lado e
poucas em que ela passou a caneta por cima do erro. Eu, orientadora constatei que muitas atividades
foram corrigidas do quadro pela aluna, porém contendo ainda muitos erros. A professora disse que não
dá tempo para correção individual. Orientei que a correção terá que ser feita diariamente por ela. As
produções deverão ser corrigidas e aquelas que ela perceber que estão muito desorganizadas, orientar
esses alunos no momento da correção e do passar a limpo para manter a organização do caderno e do
pensamento. As produções deverão ser orientadas através de um roteiro estabelecido. Cobrar a
correção do aluno quando esse estiver que refazer a atividade e estar incentivando com bilhetinhos no
caderno. A correção do professor é muito importante para o crescimento e desenvolvimento do (alluno)
digo, aluno. E nada mais havendo, eu orientadora lavro a presente ata. Vanessa dos Anjos, Fabiana
Rodrigues.

Segundo Charaudeau (2004), o discurso relatado é uma modalidade discursiva oriunda do comportamento
discursivo delocutivo – que procura apagar as marcas dos enunciadores, enfatizando o que é enunciado. Seguem-se,
então, algumas considerações do autor sobre o assunto.
O discurso relatado

O comportamento delocutivo se configura como uma espécie de busca por fazer emergir o Propósito de
Comunicação em si, como se fosse imposto aos interlocutores, procurando-se ao mesmo tempo apagar as marcas destes
no discurso. Charaudeau (2008) observa, porém, que esse tipo de atitude é apenas um “jogo” protagonizado pelo sujeito
falante, no qual ele simula ocultar-se plenamente do ato de enunciação, como se pudesse não ter ponto de vista.
O próprio Charaudeau reconhece a complexidade do que chama de discurso relatado, enfatizando os
desdobramentos que sua enunciação pressupõe: há um locutor relator (L.R) que se dirige a um Interlocutor (I.R) num
determinado Tempo (T.R) e num determinado Espaço (E.R) para relatar o discurso enunciado anteriormente (D.0) por um
Locutor de origem (L.0), num determinado espaço de tempo (T.0) e num determinado Espaço (E.0) (CHARAUDEAU, 2008,
p. 103).
Sendo assim, três problemas são colocados: o grau de fidelidade do relato, pelo qual o relator pode modificar o
enunciado referencial ou o modo de enunciação do discurso de origem, ou ainda pode cortar o contexto de origem por meio
de uma construção desviante; o modo de reprodução, pelo qual o relator opta por reproduzir ou então interpretar
(corretamente ou não) o que foi dito no discurso original; e ainda o tipo de “distância” do Locutor, que pode tentar relatar o
discurso não intervindo, ou pode mostrar adesão ou não-adesão ao discurso de origem, o que pode ser feito por meio de
verbos modais.
Em relação à dependência das maneiras de relatar, Charaudeau chama atenção para a diferença clássica entre o
que se entende por discurso direto e discurso indireto, sofisticando um pouco a descrição. O autor distingue nesse sentido o
discurso citado, o integrado, o narrativizado e o evocado. O discurso citado é uma tentativa de reprodução mais ou menos
integral do discurso de origem, cujo correspondente seria o “estilo (ou discurso) direto” abordado na gramática tradicional.

Ex. Ele disse: ‘meu carro está ferrado’.


Ele disse: Meu carro está ferrado.

373
Eu acabei confessando. Meu carro está ferrado e não sei como fazer para me locomover.

No discurso integrado ocorre uma integração parcial do discurso de origem, porém, submetida ao momento de
enunciação atual. O discurso relatado ganha, então, uma certa autonomia, integrando a construção precedente ao dizer do
locutor, como no que tradicionalmente se conhece por “estilo indireto” e “estilo indireto livre”.

Ex. Ele disse que meu carro estava ferrado.


Ele acabou confessando. Seu carro estava ferrado.

Para Charaudeau (2008), o discurso narrativizado integra totalmente o discurso original, fazendo-o desaparecer
na voz do relator, que se torna o “agente de um ato de dizer”:

Ex. Ele confessou sua decepção (por: “Estou decepcionado”)

E por fim, este autor define o discurso evocado ou alusão, na qual o discurso de origem aparece apenas como
dado evocador do que o Locutor de origem disse ou diz habitualmente. Essa maneira de relatar costuma ser marcada no
enunciado por aspas, travessões ou parênteses, no sentido de “Como você diz”, “Como ele diz” ou “Como se diz” etc.
Charaudeau inclui nesse tipo de modalidade delocutiva as citações de máximas e provérbios, que aludem a um saber
popular, a vox populi.

Uma caracterização do gênero “relato de orientação pedagógica”

Como vimos, Charaudeau (2004) sugere que se caracterizem os gêneros do discurso com base na inter-relação
entre restrições situacionais, discursivas e formais. A seguir, tentaremos delinear características do relato apresentado
anteriormente, considerando esses diferentes níveis de análise.

Restrições situacionais

Do ponto de vista das restrições situacionais que norteiam o fato linguageiro, Charaudeau (2004) destaca a
identificação das visadas enunciativas, da identidade dos participantes, do Propósito de estruturação temática e das
circunstâncias de discurso.
A origem de visadas enunciativas determina a orientação do ato de linguagem em função da relação entre os
sujeitos. Considerando os dois critérios apontados pelo autor para essa identificação – o tipo de intenção pragmática do EU
e a posição do TU – podemos afirmar que o texto selecionado para essa análise evidencia a predominância de uma visada
de informação perpassada por visadas de prescrição, solicitação e incitação. A visada de informação se dá na condição de
um EU legitimado em sua posição de saber que deseja “fazer saber” o TU. Mediante essa visada de informação, uma
tendência de prescrição se manifesta por um EU que, em posição de autoridade, quer “mandar fazer” algo a um TU que se
encontra em posição de “dever fazer”.
Quanto à identidade dos participantes, o relato em estudo evidencia uma troca comunicativa entre uma instância
escolar, representada pela orientadora pedagógica (Vanessa) – que também produz o relato escrito –, e uma instância
“externa”, representada por uma professora (Fabiana). Trata-se de uma relação assimétrica em que, geralmente, a instância
escolar se encontra numa posição de superioridade em relação à instância externa.

374
O propósito de um ato de linguagem diz respeito ao tema a ser desenvolvido pelos participantes. No caso desta
análise, o propósito do texto gira em torno da postura de uma professora em relação à correção das atividades dos alunos
nos cadernos. Como já temos observado em outras análises, o propósito temático nesse gênero vem, em geral, indicado
textualmente logo na abertura do texto. No relato em estudo, essa hipótese se confirma:

Aos dois dias do mês de abril de dois mil e sete, conversei com a professora Fabiana sobre o fato
relatado pela mãe da Eduarda. A mãe disse que a aluna está desestimulada pelo fato da
professora corrigir os erros a caneta e como apresenta dificuldades na escrita fica com vergonha do
próprio caderno.

As circunstâncias a que Charaudeau (2004) se refere no nível das restrições situacionais dizem respeito às
condições materiais de produção do ato de comunicação, isto é, suas condições de enunciação sob o aspecto externo.
Observamos que há uma certa complexidade na natureza enunciativa desse tipo de relato, porquanto é oriundo de dois atos
de enunciação mais ou menos concomitantes: um oral, no qual se configura o diálogo entre a instância escolar e a externa;
e um escrito, no qual se relata o ocorrido no diálogo sob a voz de um locutor que pertence à instância escolar. Trata-se de
uma retextualização de um texto de natureza oral sob uma modalidade escrita mediante o ponto de vista de um dos seus
participantes.
Segundo Charaudeau, as condições materiais da troca linguageira condicionam o domínio da prática em domínio
de comunicação, no qual se propõe aos parceiros um contrato, isto é, um certo número de condições que definem a
expectativa da troca linguageira, sem as quais não haveria intercompreensão. Nesse sentido, podemos dizer que os textos
selecionados, considerando o contrato em um nível mais global, participam de um conjunto de textos de relato, e tendo em
vista variantes mais específicas, se individualizam por serem produzidos em ambiente escolar e motivados por uma
realização oral simultânea ao seu registro.

Restrições discursivas

Charaudeau (2004) define esse nível de análise como o intermédio entre os dados das restrições situacionais e a
configuração textual em si. Aliás, na correspondência com aqueles é que vão ser definidas estas restrições do discurso, que
seriam: os modos enuncivos, determinados pelas visadas enunciativas; os modos enunciativos, determinados pelas
identidades dos parceiros; os modos de tematização, determinados pelo Propósito Temático; e os modos de
semiologização, determinados pelas circunstâncias materiais. Ateremos às duas primeiras restrições estabelecidas pelo
autor.
a) modos enuncivos

Uma vez identificada como visada enunciativa predominante no corpus uma tendência à informação, na qual o
Locutor pretende “fazer-saber” o Interlocutor a respeito de algo, pressupomos como modos enuncivos predominantes nos
textos a narração que, enquanto modo de organização do discurso que organiza uma sequência de acontecimentos, dá a
conhecer o fato ocorrido ao interlocutor; e a descrição que, permitindo nomear, localizar e atribuir qualidades aos seres do
mundo, caracteriza os elementos envolvidos naquilo que é narrado. Esses modos podem ser percebidos imbricados em
passagens como:
(...) A mãe disse que a aluna está desestimulada pelo fato da professora corrigir os erros a
caneta e como apresenta dificuldades na escrita fica com vergonha do próprio caderno. A
professora mostrou o caderno, onde vimos que algumas palavras foram escritas ao lado e poucas

375
em que ela passou a caneta por cima do erro. Eu, orientadora constatei que muitas atividades foram
corrigidas do quadro pela aluna, porém contendo ainda muitos erros.

Nos exemplos acima marcamos com negrito passagens que corresponderiam à narração do acontecimento e com
sublinhado as passagens que correspondem à sua descrição. Percebemos que há um entrelaçamento entre esses dois
modos de organização atendendo à visada de informação dos acontecimentos que representam o Propósito da troca
linguageira.
Considerando que as visadas de prescrição, solicitação e incitação também perpassam essa tendência principal
para informar, pressupomos que o modo de organização argumentativo irá também ocorrer na construção discursiva.
Retomando o que seja o princípio de influência que, segundo Charaudeau (2004), origina as visadas enunciativas, não se
pode negar a existência de um jogo protagonizado pela instância escolar para seduzir ou persuadir a instância externa a ter
este ou aquele comportamento favorável aos objetivos da escola. Um exemplo desse tipo seria:

A correção do professor é muito importante para o crescimento e desenvolvimento do (alluno) digo,


aluno.

b) modos enunciativos

O modo de organização do discurso enunciativo permite identificar a maneira como o sujeito falante age na
encenação do ato de comunicação. É a partir de um dos comportamentos do modo enunciativo – o delocutivo – que os
textos do corpus são basicamente produzidos, porquanto pressupõem a relação do EU com um terceiro que aparentemente
se impõe no discurso, minimizando a presença dos interlocutores. Como comportamento do modo enunciativo delocutivo, o
discurso relatado é um tipo de encenação no qual o sujeito locutor procura apagar o seu ponto de vista. No exemplo, esse
tipo de comportamento se manifesta em passagens do tipo:

A mãe disse que a aluna está desestimulada pelo fato da professora corrigir os erros a caneta e como
apresenta dificuldades na escrita fica com vergonha do próprio caderno.

A professora disse que não dá tempo para correção individual.

Nesses exemplos observamos que, sob a estrutura do discurso indireto, o Relator tenta pôr em evidência o objeto
do relato, disfarçando o seu próprio ponto de vista.
Além do discurso relatado, outra modalidade do comportamento delocutivo do discurso pode ser identificada no
corpus, que é a Asserção. Essa modalidade é descrita por Charaudeau (2008) como um “modo de dizer” que corresponde à
afirmação ou asseveração da verdade da enunciação, isto é, à maneira de apresentar a verdade do Propósito. Tanto quanto
o discurso relatado, a asserção, segundo o autor, apaga os vestígios de ambos os interlocutores nas configurações
linguísticas, trazendo como foco da enunciação a terceira pessoa, ou não-pessoa, mais distante em relação aos
interlocutores. Os exemplos abaixo correspondem a uma variante de Obrigação:

As produções deverão ser corrigidas e aquelas que ela perceber que estão muito desorganizadas,
orientar esses alunos no momento da correção e do passar a limpo para manter a organização do
caderno e do pensamento.

As produções deverão ser orientadas através de um roteiro estabelecido.

376
Como se percebe, o enfoque da terceira pessoa acarreta o apagamento do agente, o que entendemos que não é
fortuito, se pensarmos que esse exemplo trata da repreensão a uma professora por parte da instância escolar.
Também estão presentes no corpus exemplos do comportamento elocutivo, pelo qual o locutor estabelece uma
relação consigo mesmo, apagando a presença do interlocutor. Percebemos a predominância desse comportamento
principalmente em passagens como:

Eu, orientadora constatei que muitas atividades foram corrigidas do quadro pela aluna, porém
contendo ainda muitos erros.

Orientei que a correção terá que ser feita diariamente por ela.

E nada mais havendo, eu orientadora lavro a presente ata.

Considerando os exemplos citados, temos diferentes especificações enunciativas do comportamento elocutivo,


que seriam respectivamente definidas como: da ordem do modo de saber, uma constatação; da ordem da motivação, o
querer; e da ordem da decisão, a proclamação.

Restrições formais

Segundo Charaudeau (2004), as restrições formais fazem eco nas restrições situacionais e discursivas, já que as
formas repetitivas rotineiras que se fixam em “maneiras de dizer” dependem da situação de comunicação. Tais formas
obedecem a normas de uso mais ou menos codificadas, cujas formas de expressão podem variar.
O autor destaca que os componentes da situação comunicação que mais influenciam as formas textuais são as
circunstâncias materiais, já que induzem os dispositivos materiais em que os textos se manifestam, a começar pela
exigência de formas orais ou escritas. Considerando exemplo, já identificamos que se trata de um texto parcialmente híbrido
de fala e escrita, pois é oriundo de uma situação de diálogo que é transcrita simultaneamente à sua realização. Em
consequência dessa concomitância entre a realização e o registro do diálogo, podem aparecer enunciados truncados,
longos ou com correções do Relator, como em:

A correção do professor é muito importante para o crescimento e desenvolvimento do (alluno) digo,


aluno.

Para identificar os aspectos da organização formal do texto, Charaudeau (2004) propõe que se deve identificar as
recorrências formais nos seguintes domínios: a mise-en-scène textual, a composição textual interna, a fraseologia e as
construções gramaticais.
Quanto à mise-en-scène textual, deve-se identificar a composição do paratexto, que, no relato em questão,
configura-se por um livro-ata de capa dura e preta, composto de cem folhas pautadas e sem margem, paginadas da
primeira à última. Tal relato não contém título e é separado de outros apenas pelo espaço de uma a duas linhas, iniciando-
se no canto esquerdo da linha e escrito a mão continuamente até o seu término, sem marcação qualquer de parágrafo. Ao
fim do texto são identificadas as assinaturas das partes envolvidas no diálogo, bem como do relator.
No que tange à composição textual interna, há uma construção inicial embreante, que indica data completa do
registro por extenso e os nomes das pessoas que compareceram ou foram convocadas à escola. Após essa abertura,
procede-se a um desenvolvimento onde se mostra o conteúdo substancial do diálogo entre os representantes da instância
interna e externa à escola. Ao final do texto há um encerramento performativo, em que o relator se identifica como tal e

377
atribui a si a legitimidade de sancionar o que foi relatado, assinando em seguida e dando espaço à assinatura das partes
envolvidas.
No que diz respeito à fraseologia, considerando que os textos se configuram predominantemente por meio do
discurso relatado indireto, podemos perceber como recorrente a construção Verbo (que indique ou não Ato de fala) + que +
oração subordinada substantiva objetiva direta.
Finalmente, em relação às construções gramaticais recorrentes, podemos destacar a presença de verbos que
introduzem o discurso relatado, que no exemplo foram: dizer, constatar e orientar.

Algumas conclusões

Acreditamos que a análise semiolinguística proposta por Charaudeau (2004) possibilita uma compreensão mais
global dos gêneros discursivos como fenômenos de linguagem, integrando diversos fatores que incidem sobre sua
realização nos níveis situacional, lingüístico e formal, os quais, se tomados isoladamente, não dão conta dessa produção de
forma coerente.
Nessa perspectiva, podemos concluir que o Relato de Orientação Pedagógica, enquanto gênero discursivo, se
caracteriza por um texto escrito oriundo de uma realização oral concomitante, no qual se identifica a voz de um sujeito
relator que faz a mediação entre duas instâncias comunicativas: uma instância escolar e uma instância externa. A intenção
pragmática e o Propósito Comunicativo desse gênero giram em torno da informação de algum problema ocorrido no espaço
da escola por parte da equipe diretiva, a qual, no discurso do relator, procura se respaldar das atitudes tomadas para a
resolução, bem como convencer a instância externa a compreender e corroborar sua decisão.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CHARAUDEAU, P. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: MACHADO, I. L.; MELLO, R. (Orgs.).
Gêneros: Reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004. p.13-41.

______. Linguagem e discurso. Modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. 5 ed. São
Paulo: Cortez, 2008.

________________________

Eveline C. Cardoso é professora, graduada em Letras-Português / Literaturas e Especialista em Língua Portuguesa pela
UERJ-FFP. É aluna do Programa de Mestrado em Letras da UFF, com ênfase em Língua Portuguesa. Atua no Ensino
Fundamental e Médio da Rede Estadual de Educação, e nas séries iniciais da Rede Municipal da cidade de Teresópolis.
E-mail: eveline.cardoso@prof.educacao.rj.gov.br

378
Maternidade, parto e relações de poder entre os gêneros
CARVALHO, Clarissa
(UFPI)

1. Reconfigurações do masculino/feminino
Pensar as relações de gênero nesse início de século significa pesar as diferentes nuances que perpassam a relação
homem-mulher e seus papéis na sociedade, identificando e analisando os loci onde as representações sociais de gênero se
apresentam.
Quase cinqüenta anos depois do lançamento da obra “Mística Feminina”, de Betty Friedan (1963), muitas das
questões levantadas pela segunda onda do feminismo continuam em aberto. A ideia de que as mulheres seriam vítimas de um
sistema social que exigia que elas encontrassem identidade e significado em suas vidas através da vida doméstica soou
revolucionária e abriu as portas para um entendimento da mulher como sujeito e não mais como ser conformado da ordem social
imposta pelos homens.
No entanto, o advento da mulher-sujeito não derrubou a dessemelhança dos papéis sociais de gênero. Justificar tal
diferenciação pelo viés da permanência da dominação masculina fadada a ser inevitavelmente aniquilada pelo curso da história
não nos parece uma perspectiva teórica válida.
Cabe então identificar não apenas os marcadores identitários do feminino que se apresentam no século XXI, mas
também que lógicas regem a perpetuação das diferenciações de gênero dentro das sociedades tidas como igualitárias. É
necessário esclarecer que tais marcadores são entendidos não como ruínas de um passado patriarcal e de dominação
masculina, mas inscritos em uma nova economia da identidade feminina, que pressupõe novas formas de poder.
Partindo da noção de que existe uma cultura de gênero em nossa sociedade, composta por práticas sociais e
definições acerca da feminilidade e da masculinidade, consideramos que tais práticas e definições são atualizadas na vida
cotidiana de homens e mulheres. Assim, o fenômeno que nos propomos a investigar situa-se na própria dinâmica das relações
sociais cotidianas, que produzem sentidos. Tal produção de sentidos é entendida aqui como uma prática social que implica a
linguagem em uso. Dessa maneira, a análise dessas práticas discursivas nos parece um caminho metodológico adequado na
busca dos marcadores identitários do feminino, entendendo aqui a linguagem segundo a perspectiva de Benveniste (1991,
p.288): “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na
realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego”

2. A terceira mulher
O século passado produziu um balanço positivo em relação à conquista de direitos das mulheres nas sociedades
democráticas. Vimos surgir, nas sociedades ocidentais contemporâneas, a figura sócio-histórica chamada por Lipovetsky (2000)
de a terceira mulher : “novo modelo histórico caracterizado por uma transformação no modo de socialização e de
individualização do feminino, uma generalização do princípio de livre governo de si, uma nova economia dos poderes femininos”
(p.231). Tal figura social exprime um último avanço democrático aplicado à condição social e identitária do feminino. “Pela
primeira vez, o lugar do feminino não é mais preordenado, orquestrado de ponta a ponta pela ordem social e natural”(Lipovestky,
2000, p.12).

379
No entanto, o surgimento de tal figura social, o estabelecimento de uma nova condição identitária para o feminino,
marcada pelo poder de livre disposição de si, não significa o desaparecimento dos mecanismos de diferenciação social dos
sexos. As novas relações de gênero não nos levaram a um universo unissex. Embora as disjunções de gênero se tornem mais
maleáveis, menos visíveis, a divisão social dos sexos aparece re-atualizada, re-significada, e não como mero resquício do
passado.
A compreensão da nova economia das identidades femininas pressupõe um entendimento da continuidade relativa
dos papéis de sexo. Ao invés de interpretar as dicotomias de gênero como heranças do passado que desapareceriam no curso
da história, é necessário entender de que maneiras os percursos diferenciais homem-mulher são re-articulados,
ressemantizados na contemporaneidade, e de que maneira tais percursos vêm sendo construídos ao longo da história.

A primeira mulher, ou a mulher depreciada


A divisão social dos papéis atribuídos ao homem e à mulher é um princípio universal que organiza as coletividades
humanas, desde tempos remotos. Tal princípio de diferenciação vem acompanhado de outro também universal: a dominação
social do masculino sobre o feminino.
A figura sócio-histórica definida por Lipovetsky (2000) como a primeira mulher era diabolizada e desprezada, e
perdurou, em certas camadas das sociedades, até o início do século XIX.

“Dos mitos selvagens ao relato do Gênese, domina a temática da mulher, potência misteriosa e
maléfica. Elemento obscuro e diabólico, ser que se serve de encantos e astúcias, a mulher é
associada às potências do mal e do caos, aos atos de magia e de feitiçaria, às forças que agridem
a ordem social, precipitam a putrefação das reservas e das produções alimentares, ameaçam a
economia doméstica”(p.233)

O modelo da primeira mulher é definido como ser subjugado a atividades de pouco prestígio, sistematicamente
desvalorizada pelos homens.

A segunda mulher, ou a mulher enaltecida


A partir da segunda Idade Média, outro modelo do feminino se configura, enaltecendo os poderes da mulher,
colocando-a em um trono, como “fada do lar”, como detentora do poder sobre os filhos e sobre os homens. “Por trás de um
grande homem há sempre uma grande mulher” é a ideia principal do modelo da segunda mulher, que continua a não exercer
nenhum papel na vida política, tendo negada sua independência econômica e intelectual. Os poderes específicos do feminino
são enaltecidos – é a sacralização do feminino. “A mulher enaltecida, idolatrada, na qual as feministas reconhecerão uma última
forma de dominação masculina”(Lipovetsky, 2000, p. 236)

A terceira mulher, ou a mulher indeterminada


Lipovetsky (2000) propõe um novo modelo que comanda o lugar e o destino social do feminino na
contemporaneidade. Se a primeira mulher era diabolizada e a segunda, idealizada, a terceira mulher se caracteriza pela sua
autonomia em relação à influência tradicional do homem sobre as significações imaginário-sociais da mulher. Nas democracias
ocidentais, a lógica de dependência diante dos homens já não é mais o que rege a condição feminina.

380
“Tudo, na existência feminina, tornou-se escolha, objeto de interrogação e de arbitragem; nenhuma
atividade mais está, em princípio, fechada às mulheres, nada mais fixa imperativamente seu lugar
na ordem social; ei-las, da mesma maneira que os homens, entregues ao imperativo moderno de
definir e inventar inteiramente sua própria vida” (p.237)

Embora marque uma inegável ruptura histórica, o modelo da terceira mulher não coincide com o desaparecimento
das desigualdades entre os sexos. A perspectiva de um mundo unissex, sem diferenciação dos papéis atribuídos ao homem e à
mulher, não se mostra válida.

“A liberdade de autodirigir-se se aplica agora, indistintamente, aos dois gêneros, mas se constrói
sempre ‘em situação’, a partir de normas e de papéis sociais diferenciados, sobre os quais não há
qualquer indicação de que estejam destinados a um futuro desaparecimento.” (Lipovetsky, 2000,
p.239)

Assim, pela primeira vez, tudo na existência feminina tornou-se escolha: que profissão seguir, ter ou não ter filhos,
quantos filhos, quando, em que tipo de arranjo familiar, etc. Dentro dessa perspectiva de livre governo de si, a escolha pela
maternidade configura-se não mais como caminho natural e inevitável, mas como importante marca identitária do feminino.

3. Maternidade e poder
Partindo do conceito de micro poder proposto por Foucault (2008), pretende-se demonstrar como os discursos
construídos sobre a maternidade na contemporaneidade constroem saberes que se inserem na luta de forças e de construção
de identidades do feminino/masculino. Se, para o autor, o micro poder é o termo que refere-se ao espraiamento do poder em
diversos pontos da rede social, em relação constante e dialógica com o poder central (o Estado), as relações de gênero
pressupõem, então, formas de exercício desse micro poder.
Pretende-se, neste trabalho, buscar nos discursos das mulheres sobre a maternidade, formas de exercício de poder
sobre o homem, em uma clara ressematização da função materna na contemporaneidade, agora inscrita em uma nova lógica de
valorização do ser mãe.
Segundo Lipovetsky (2000), ao longo da história apenas a função da maternidade escapa à desvalorização das
funções exercidas pelas mulheres, desde o modelo de primeira mulher até a terceira mulher da contemporaneidade.
Se, no passado, o exercício da maternidade configurava-se como o caminho “natural” para a mulher, na
contemporaneidade, a maternidade já se configura como uma opção dentre outras. O advento da pílula anticoncepcional e de
várias outras formas de controle da natalidade empoderou a mulher tanto no que se refere à escolha do melhor momento para
ser mãe ou mesmo na opção de não o ser, como permitiu que a mulher pudesse dedicar-se à vida profissional, de modo a ter
uma participação cada vez mais efetiva na esfera pública. No entanto, percebe-se que o exercício da maternidade, como uma
escolha, parece estar sendo ressignificado, dentro da perspectiva de “terceira mulher”, proposta por Lipovetsky (2000).
Ao lado da mulher que trabalha fora, empoderada social e economicamente, convivem traços da mulher-mãe, da
mulher ligada à vida doméstica, sem que isso signifique permanência de resquícios do passado, mas sim ressiginificação de
traços identitários do feminino, sob a lógica do auto-governo de si e da multiplicidade de possibilidades, entre as quais a
maternidade é apenas uma.

4. Blogs e novas formas de sociabilidade e produção de sentidos

381
A tematização da maternidade no contexto atual pode ser facilmente considerada démodé, relacionada a uma
perspectiva tradicional da identidade feminina, circunscrita na tríade mãe/esposa/dona-de-casa. No entanto, à medida que esse
tópico perde espaço no contexto presencial, a internet surge como espaço de encontro para tal tema, livre da conotação
pejorativa (conversa de “mulherzinha”), pois se articula a outros significados como atualização tecnológica e participação na
esfera pública.

“Mas uma coisa permanece constante: a maternidade, instituição remota e fundante da própria
humanidade, continua na pauta e na prática das mulheres atuais. Na pauta de mulheres que
utilizam ou trabalham no computador cotidianamente e fazem do acesso aos blogs espaço próprio,
espaço de expressão”
(BRAGA, 2008, p. 61)

Historicamente o espaço da política, da discussão pública, do debate, tem sido reservado ao gênero masculino, mas
algumas mudanças tomam corpo na estrutura social contemporânea. Com o rápido crescimento da internet e das formas da
comunicação mediada por computador, representações sociais aparecem e sentidos são produzidos na internet, uma vez que o
campo das mídias desempenha papéis estratégicos nos processos identitários. Os blogs, por sua característica de diário íntimo,
de escrita sobre si, e também pela sociabilidade, proporcionando o constante debate e posicionamento público, configuram-se
como loci pertinentes de pesquisa sobre marcadores identitários.

“A identidade não é produto espontâneo de um processo uma vez desencadeado; é, antes de


tudo, uma relação de auto-construção cultural, segundo as premissas e diretrizes vigentes no
espaço e no tempo sócio-históricos” (TRIVINHO, 2007, p. 374, 375)

Assim, uma vez que tais premissas e diretrizes vêm se modificando continuamente com o advento de novas formas
de sociabilidade na internet, faz-se necessário reconhecer que o próprio conceito de identidade venha se re-configurando na
contemporaneidade.

“A emergência da cultura digital e seus sistemas de comunicação mediados eletronicamente põe a


nu o modo como o sujeito era pensado até então. A cibercultura promove o indivíduo como uma
identidade instável, como um processo contínuo de formação de múltiplas identidades (...)”
(SANTAELLA, 2007, p. 91)

Daí a importância de se buscar na blogosfera discursos que tratam do percurso diferencial masculino/feminino, como o blog
Mamíferas (www.blogmamiferas.com.br) e o blog Pequeno guia prático para mães sem prática
(www.pequenoguiapratico.blogspot.com), que compõem o corpus dessa pesquisa, onde foram analisados os discursos das
mulheres sobre seus cotidianos e, mais especificamente, sobre a temática parto.
Analisando-se a movimentação feminina pela estrutura social ao longo da história, observa-se mudanças substantivas no mundo
do trabalho, na utilização de recursos tecnológicos e na participação social. A utilização da internet por si só já se configura
como valor social. Cada período histórico traz uma configuração particular de tecnologia que permite uma ação sobre o mundo,
e junto com essa tecnologia, uma distribuição social do poder sobre esse saber tecnológico. Tal distribuição se dá também em
função de papéis de gênero. Assim, a participação das mulheres no mundo da internet rompe com uma tradicional presença

382
masculina nesse campo. Na contemporaneidade, estar familiarizado com o desenvolvimento das tecnologias aplicadas ao
cotidiano representa um valor social. (BRAGA, 2008).

Enunciação, subjetividade, polifonia e dialogismo

Émile Benveniste (1976), com sua teoria da enunciação, traz para o centro das preocupações lingüísticas o sujeito. As noções
de subjetividade, sentido e contexto (referente) possibilitam uma nova forma de pensar a língua/linguagem, em contraposição às
posições estruturalistas anteriores.
O autor entende a língua como fundamento de todas as relações que fundamentam a sociedade, concebida no consenso
coletivo. A linguagem é entendida como o lugar onde o indivíduo se constitui como falante e como sujeito, trazendo para a
discussão a questão da subjetividade. Segundo Benveniste (1991, p.288), a subjetividade é entendida como “a capacidade do
locutor para se propor como sujeito”. E a condição para essa proposição é a própria linguagem, na qual e pela qual o homem se
constitui como sujeito. A propriedade da subjetividade é, portanto, determinada pela pessoa e por seu status lingüístico.
A enunciação é caracterizada pela relação discursiva entre sujeitos, o que determina a estrutura do quadro figurativo da
enunciação, o do diálogo, que tem obrigatoriamente um eu e um tu, mesmo que este segundo seja idealizado. Na alternância de
funções na situação de enunciação, cria-se uma relação intersubjetiva entre as pessoas do enunciado.
A enunciação é proposta por Bakhtin (1997) como o território comum onde locutor e interlocutor se encontram, em um
movimento dialógico que implica em uma relação ativa entre ambos. É em função do outro (real ou virtual) que o locutor enuncia,
esperando uma atitude responsiva, projetando o lugar do interlocutor. Assim, a compreensão dos enunciados vai além do
simples reconhecimento da forma lingüística, mas só ocorre à medida que se dá o movimento dialógico dos enunciados, em
confronto com nossos próprios dizeres e com os dizeres alheios. Segundo Bakhtin (1992, p. 123), “O diálogo, no sentido estrito
do termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se
compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido mais amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas
colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”. O dialogismo refere-se então à noção de que
todo discurso se relaciona a outros discursos prévios ou que ainda estão por vir, não havendo discurso original, uma vez que
existe sempre essa relação dialógica.
Já a polifonia é definida por Bakhtin (1997) como a presença de diversas vozes em um mesmo enunciado, sem que
necessariamente o enunciador se dê conta da presença delas, não se confundindo com a noção de dialogismo que é o princípio
dialógico constitutivo da linguagem, enquanto que a polifonia se caracteriza por vozes dissonantes em um discurso.

Análise do corpus
Blog Mamíferas
O blog Mamíferas (www.blogmamiferas.com.br) é mantido por três jovens mães, na faixa dos trinta anos, e trata de temas
ligados à gravidez e maternidade. Muitos posts tratam das vantagens do parto normal e/ou parto domiciliar em contraponto ao
parto cirúrgico/hospitalar, ou ao incentivo à amamentação prolongada, por exemplo. Outros tratam de questões relativas à
maternidade contemporânea, como o retorno ao trabalho depois da licença-maternidade, a escolha da creche ou escola para o
filho, etc.

383
Já na descrição blog, percebe-se a valorização da maternidade para a mulher contemporânea. Termos como “maternidade
ativa” e “estilo de vida mamífero” são usados para designar um exercício da maternidade mais intensivo, focado na relação
mãe/filho.
Para fins desse trabalho, foi selecionado o post do dia 09 de julho de 2010, que trata da temática parto. O texto foi escrito pela
blogueira Kalu e tem como título “Na luta, companheiras”, que remete ao discurso sindical, à luta de classes, em um exemplo de
polifonia. Desde o título está indicado a maneira como as blogueiras do Mamíferas constroem sentidos a respeito do parto
natural, que para elas é uma causa, mais que uma opção pessoal. Ao longo do texto, outros exemplos de marcas discursivas
que remetem à noção de causa aparecem, como as expressões “levantar a bandeira” e “militante”.
Kalu conta no texto o percurso que a levou a tornar-se doula, e como se formaram suas convicções acerca do ato de parir que,
para ela, deve ser sempre natural, sem anestesia, sem intervenção médico-hospitalar e, principalmente, deve ser sempre
comandado pela parturiente.
No início do texto, Kalu refere-se ao parto hospitalar (seja cesárea ou normal) como o modelo vigente e remete ao discurso
capitalista e mercadológico, ao criticar a “indústria do nascimento” que tem um “modelo obstétrico e pediátrico cheio de
procedimentos prejudiciais para a mulher e seu bebê”. Aqui percebe-se o dialogismo como definido por Bakhtin (1997): o
discurso da blogueira dialoga e confronta-se com o discurso capitalista/mercadológico.
Também o discurso científico, mais especificamente o discurso médico/obstétrico tradicional, é resgatado e confrontado: “uma
grande maioria [das mulheres] sequer questiona o médico e seus procedimentos, porque questionar um médico parece
inquestionável.” É possível perceber também o dialogismo quando a voz do senso comum é mostrada com a ideia de que as
pessoas, de uma maneira geral, não questionam o saber médico: “Afinal, na mentalidade coletiva, o médico estudou e deve
sabe mais do que a gente”. E ainda: “Vou colecionar histórias de médicos e seus procedimentos questionáveis.”
Percebe-se no discurso construído pela blogueira, a noção de estar indo contra um sistema estabelecido, contra o status quo,
entendido aqui como o parto hospitalar, seja normal ou cesárea. Alguns trechos mostram isso de maneira clara: “(...) vou
continuar a tocar violino num mundo punk rock”; “Vou empoderar mulheres para deixarem seus médicos desconcertados com
questionamentos e evidências(...)”
É possível perceber a polifonia também nas construções discursivas que evocam espiritualidade, transformação e a causa do
parto natural/humanizado como algo de caráter quase religioso, que deve ser propagado, como nos trechos abaixo:

“A gestação e meu parto domiciliar foram as experiências mais fantásticas, espirituais e transformadoras da minha vida.”
“Por descobrir tanta coisa, me uni a Kathy e a Tata [as outras duas blogueiras do Mamíferas] para escrever diariamente sobre o tema, quase
como sacerdotisas de uma organização secreta que oferece informações que não se encontra por aí.”
“Eu me tornei militante da causa do nascimento humanizado por acreditar ser um caminho de transformação da sociedade”

Por fim, fica claro também que o entendimento do parir como algo natural e pertencente apenas à mãe - em contraposição ao
parto hospitalar que é comandado pelos médicos – é uma prática de empoderamento feminino: um retorno da mulher ao
selvagem que lhe permite diferenciar-se do homem. A terceira mulher de Lipovetsky (2000) ressignifica o ato de parir de modo
que pertença só a ela, sem intervenção médica alguma, dona de si e de seu corpo. O discurso do empoderamento pelo parto se
mostra nos seguintes trechos:

384
“Mas posso e vou, com todo amor do meu coração, empoderar com minha poesia, minhas sacudidas, o maior número possível de mulheres
que eu conseguir”
“Hei de captar muitas e muitas vezes a essência selvagem das mulheres (...)”
“Vou lutar para que a assistência privada possa oferecer flexibilidade e verdadeira direito de escolha para a mulher decidir sobre seu corpo e
sobre os procedimentos a serem realizados com seu bebê.”

Blog Pequeno Guia Prático Para Mães Sem Prática


O blog Pequeno Guia Prático Para Mães Sem Prática (www.pequenoguiapratico.blogspot.com) é escrito por uma única
blogueira, de trinta anos, mãe de dois filhos, e trata, principalmente, de temas ligados à gravidez e maternidade, do ponto de
vista pessoal e subjetivo da autora.
Para fins dessa análise, foi selecionado o post do dia 08 de abril de 2010, que trata da temática parto. Com o título “Divagando
sobre parto”, o texto trata das expectativas da autora sobre o ato de parir, desde a infância, até o nascimento de sua primeira
filha, relatando as emoções, dúvidas e tomadas de decisão que fizeram parte do processo. Grávida do segundo filho quando
escreveu o post, Mariana mostra seu posicionamento sobre as opções de parto, de que maneira pretende parir pela segunda
vez e os discursos que influenciaram essa decisão.
Mariana inicia o texto falando do medo que sempre teve de parir, e conta como, durante a primeira gravidez, imaginou o “parto
dos sonhos”:

“Normal, hospitalar, numa sala de parto humanizado, com musiquinha, luz baixa, e cama inclinada
que deixava a gente na vertical. Natural pero no mucho, sabe? Porque eu não abri mão da
anestesia nem a pau! E não entendia como alguém podia OPTAR por não tomar. (...) Por que
CAZZO (sic) alguém escolheria o caminho da dor, me explica? Pra mim era uma escolha
absolutamente sem sentido.”

Ao tratar da opção pela anestesia, percebe-se o dialogismo, pois o texto dialoga com o discurso do parto natural,
que propõe um parir sem qualquer intervenção. Assim também quando a blogueira conta que seu parto só não foi perfeito
porque foi feita uma episiotomia, que ela gostaria de ter evitado, remetendo novamente ao discurso do parto natural sem
intervenção.
Ao longo do texto, a autora dialoga em vários momentos com o discurso do parto natural, ora retificando-o ora
refutando-o.

“Porque a anestesia dá uma desconectada na gente. (...) Minha impressão foi que a experiência do
parto perdeu um pouco da intensidade. Li um monte de relatos em que as mães contam que existe
uma espécie de transe durante o trabalho de parto, e isso pra mim é um mistério. (...) Não fiquei
completamente absorvida pelo parto. Não me conectei totalmente com o momento, meu corpo, o
nascimento, o instinto de bicho que a gente tem escondido em algum lugar dentro da gente.”

É possível reconhecer também a polifonia no trecho acima, quando a autora traz a voz das doulas e outros
grupos que defendem o parto natural, além da voz de outras mulheres que contam sobre o transe durante o trabalho parto.
O discurso do parto como experiência espiritual, transformadora da mulher, reconectando-a ao seu instinto
animal, também aparece em seu discurso, como exemplo da polifonia de Bakhtin (1997). Em um trecho, a autora fala da
necessidade de confiar “na fêmea selvagem que existe em mim”.

385
Ao se questionar se será capaz de, no segundo parto, dispensar a anestesia, aparece novamente no discurso da
autora o dialogismo, quando ela refuta o discurso do parto natural, e deixa claro que o parto dos sonhos talvez seja apenas a
adoção de um modelo de parto, que pode não ser ideal para todas as mulheres.

“Pronto, lá se vai o parto dos meus sonhos, estão vendo? Tchau, parto dos sonhos! De alguma
estranha maneira, eu não ligo. Porque no fundo (...) o parto dos sonhos nem é tanto dos MEUS
sonhos. Sabe? Eu realmente me comovo com partos naturais e admiro quem faça, mas acho que
não é pra mim. Não faz parte do meu repertório, dos meus valores, do modo como eu vivo. Eu não
sou natureba.”

O discurso “natureba”, como a autora chama, aparece em seu discurso, sendo refutado, em nome de outros
valores que lhe parecem mais caros que o parir com dor:

“Não me apego tanto ao ‘parto dos sonhos’, e sim a criar o ‘filho dos sonhos’, ser a ‘mãe dos
sonhos’, construir a ‘família dos sonhos’. Pra mim esses são os investimentos que valem a pena.”

Outro exemplo de dialogismo aparece quando a autora refuta o discurso militante do parto natural como causa,
denunciando seu autoritarismo.

“Uma coisa que me tranqüiliza quanto a qualquer decisão que eu tome é que eu não tenho o parto
como uma CAUSA. (...) Acho a ‘causa do parto normal’ importantíssima num país que tem uma
das maiores taxas de cesárea do mundo. (...) Então os grupos envolvidos nessa ‘causa’ fazem um
trabalho importantíssimo e que ajuda muitas mulheres. Até aí, incrível. Pra mim a coisa desanda se
a mulher começar a achar que TEM que ter um parto assim ou assado. Em vez de usar a
informação de forma libertadora, ela vira escrava de tudo o que aprendeu. Se o parto não for
normal (...) ela acha que fracassou.”

Outro ponto em que o texto dialoga com o discurso do parto natural se encontra na refutação da ideia de que a
mulher é quem deve comandar o parto, e do conseqüente descredenciamento do saber médico em detrimento de um saber
instintivo feminino. Mariana afirma não se sentir competente para questionar as opiniões de um médico que estudou anos para
fazer o que faz. Afirma também que, apesar de acreditar em um instinto de fêmea, as decisões sobre o parto devem contar com
o conhecimento do médico. Além disso, a autora defende que o parto é apenas o começo da relação mãe/filho e que não pode
ser visto de forma tão determinante, como os defensores do parto natural mostram.

5. Considerações finais
Na contemporaneidade, o exercício da maternidade é revalorizado por mulheres que entendem que essa é uma
opção entre muitas. A terceira mulher, ao optar pela maternidade, opta também pelo tipo de parto, pelo confronto (ou não) com o
conhecimento médico, pela volta (ou não) a um parir mais próximo do natural. O feminino, pela primeira vez na história, tem livre
disposição de si e de seu corpo.
Os blogs analisados dialogam entre si no que tange aos discursos que refutam ou corroboram essas escolhas. E
ambos tratam o parto como um momento exclusivo da mulher, que deve voltar ao instintivo, buscar a “fêmea selvagem” a fim de
parir, num ato de exercício do poder feminino. Para tanto, é preciso que as mulheres estejam conscientes de seu corpo, do

386
processo do parto como natural, de modo a serem capazes de questionar o conhecimento médico/obstétrico. No discurso de
algumas mulheres defensoras do parto natural, o parto é entendido como um ato que deve ser comandado pela mulher, a partir
do conhecimento de seu corpo, e não pelo médico.
O ato de parir de forma natural, sem intervenção médica, é ressignificado por mulheres que entendem que o parto
pode conectá-las a uma instância instintiva e espiritual do feminino, empoderando-as, dentro da perspectiva de foucaultiana de
micropoder.

6. Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,1997.

________________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1992.


BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral I. 3 ed. São Paulo: Pontes, 1991.

BRAGA, Adriana. (org.) CMC, Identidades e gênero: teoria e método. Colecção Estudos. em Comunicação. Covilhã/PT:
Universidade de Beira Interior, 2005.

______________. Personas materno-eletrônicas: feminilidade e interação no Blog Mothern. Porto Alegre: Sulina, 2008.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade - a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.

LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita íntima na internet. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 2004

SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.

SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. In: Educação & Realidade, Porto Alegre, v.20, n. 2, p.72-99,
jul-dez, 1995.

TRIVINHO, Eugênio. A dromocracia cibercultural: lógica da vida humana na civilização mediática avançada. São Paulo:
Paulus, 2007.

Currículo
Mestranda em Antropologia e Arqueologia (UFPI), com pesquisa na área de gênero, maternidade e cibercultura. Especialista em
Tendências e Perspectivas do Jornalismo (UFPI) e bacharel em Comunicação Social - Jornalismo (UFPI). Professora do curso
de Comunicação Social da Faculdade Santo Agostinho, AESPI e UFPI. Co-autora do livro M³- Mulher, Mãe, Moderna,
(EDUFPI/2010). Pesquisadora do Grupo Cibernética Pedagógica – ECA/USP. E-mail: clarissascarvalho@gmail.com.

387
Enunciação pictórica

CARVALHO, Sônia de Fátima Elias Mariano


(UFU/LEP)

Considerações gerais

Este texto é um fragmento originário da dissertação de Mestrado: A Dialogia Estética em Vincent van
Gogh/UFU/2009, na qual propus um estudo de três obras de van Gogh caracterizadas pela temática dos campos de trigo,
objetivando identificar a interdiscursividade subjacente à obra do sujeito-esteta.
Busquei perceber evidências e regularidades no corpus pictórico, entrevendo a emersão de uma enunciação pela
disposição de índices estéticos, pois existe um diálogo que entrecruza situações cotidianas, uma anterioridade histórica que
perpassa o discurso pictórico, e funda, na conjunção desses diálogos com as formações imaginárias uma enunciação
estético-pictórica.
Essa proposta metodológica tem base teórica nos pressupostos teóricos de Michel Pêcheux (sujeito, sentido,
interdiscurso, memória discursiva, formação discursiva) dialogando com uma base referencial em Mikhail Bakhtin
(dialogismo e polifonia) e uma base complementar em Carlo Ginzburg (Paradigma Indiciário) e João Bôsco Cabral dos
Santos (Instância Enunciativa Sujeitudinal).

1. A enunciação pictórica

Conforme o dizer de Bakhtin (2006), por meio da enunciação realiza-se a interação verbal enquanto fenômeno
social. O autor concebe a interação verbal abrangendo todas as formas de diálogo, seja ele, oral ou escrito e aqui abro um
parêntesis, para incluir o pictórico. Ainda segundo ele, a enunciação é a unidade real da cadeia verbal sempre em
constante evolução, já que as relações sociais também estão nesse fluxo.
Assim, com este respaldo, pode-se considerar a pintura enquanto um enunciado e é nesse sentido, que tomo a
pintura enquanto enunciação pictórica sob a perspectiva da significação, considerando sua produção de sentidos à luz dos
preceitos da Análise do Discurso Francesa (AD).
Desse modo, a materialidade pictórica se apresenta, como um lugar de produção de sentidos, onde se objetifica
uma enunciação. Entendo a enunciação pictórica como a tessitura da práxis social de uma Instância Enunciativa
Sujeidutinal Esteta (IESE) ou simplesmente sujeito-esteta fazendo parte de um processo interpelativo contínuo. A IESE é
uma extensão teórica derivada da percepção de Santos (2009) para a Instância Enunciativa Sujeidutinal (IES).
Considero a IESE, o sujeito-autor de uma pintura, ou seja, um sujeito-esteta em constante alteridade no interior de
um espaço estético plástico. O sujeito-esteta é uma posição assumida no interior de uma instância sujeito a partir de suas
inscrições discursivas, atravessada pelo interdiscurso, traspassada por uma memória discursiva e pelas condições
históricas que a constituem.
Essa IESE instaurará contextos de significação, na tessitura das cores, por se encontrar inscrito sob determinadas
condições de produção, concebidas na tensão, na ambiguidade, em decorrência da maneira como concebe a realidade
política, social, cultural, filosófica e ideológica na qual esta inserida.

388
Existe um conjunto de influências provenientes desses elementos advindos de uma exterioridade que interpelarão
e o colocarão em (des)contínua alteridade, dando-lhe a ilusão de que pode organizar e controlar o que enuncia
pictoricamente.
Dessa maneira, o sentido é um elemento instaurador de uma conjuntura de significações, produzindo, provocando
movência e deslocamento, desencadeando assim, a produção de sentidos e a subjetivação.
A materialidade pictórica guarda evidências de aspectos de ordem histórica, ideológica, social, cultural que se
agregam a dizeres dessa IESE, quando enunciados na forma de operadores visuais, e segundo Carvalho (2009, p. 116) são
elementos básicos constitutivos de uma enunciação pictórica, a saber: ponto, linha, traço, forma, tom, cor, textura,
dimensão, movimento, direção.
Nessa perspectiva, a pintura é portadora de um processo de produção de sentido que guarda uma proximidade
com o texto escrito e conforme Dondis (2007, p.03) “o modo visual constitui todo um corpo de dados que, como a
linguagem, podem ser usados para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade (...)”.
Assim, estabelece-se a objetificação de uma enunciação pictórica na via de uma IESE possibilitando-lhe fazer
recortes do mundo, para representá-la por meio dos operadores visuais, os quais, em interação no interior da materialidade
passam a produzir sentidos.
Diante de um quadro somos conduzidos a tecer interpretações e o fenômeno só acontece porque há instauração
da interpelação1 entre o sujeito e o quadro, obrigando-o a servir-se do texto não-verbal para a produção da enunciatividade.
Tomo a enunciatividade, segundo Santos (2004, p.116), como “conjunto de propósitos contidos na práxis social de um
sujeito, declaradas em suas ações e colocadas em uma situação específica de atribuição de sentidos”.
A dialogia se estabelece então, entre os sujeitos, no momento em que esse gesto de interpretação é tecido. O
discurso pictórico se instaura enquanto efeito e a pintura constitui-se enquanto unidade de uma manifestação discursiva que
congrega sentidos da inserção ideológica de uma posição-sujeito.

2. Sinóptico do Paradigma Indiciário

Ao compor o Sinóptico do Paradigma Indiciário pensei inicialmente uma perspectiva que pudesse propiciar uma
maneira outra de instaurar um percurso para uma percepção de sentidos, por meio da significação produzida pelo pictórico.
Para pensar este processo discursivo pictórico e suas significações, tornou-se necessário lançar mão de algumas
“ferramentas”, neste caso, dois artigos, que são parte essencial para a construção do sinóptico, a saber: “Uma reflexão
metodológica sobre a análise de discurso” de Santos (2004) e “Sinais – raízes de um paradigma indiciário” de Ginzburg
(1999).
Assim, incorporei ao paradigma indiciário de Ginzburg (op.cit.,) o qual nos permite voltar o olhar para as minúcias
constituintes das enunciações em artes plásticas, as instâncias macro e micro de Santos (op.cit.,) possibilitando analisar
uma manifestação discursiva pictórica, revelando regularidades e conduzindo a uma significação de sentidos.
Para Ginzburg (1999, p.149) a “proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados
marginais, considerados reveladores” apresenta um caminho já há muito percorrido pela humanidade.
Para Santos (2004, p.109), o trabalho com o discurso “não pode existir sem que se aborde a natureza de
significação de sentidos. (...) essas significações não poderiam se instaurar, não fosse a ação dos sujeitos na constituição
dos processos enunciativos”.

1 Devemos considerar a palavra interpelação na perspectiva de Louis Althusser descrita na obra Aparelhos Ideológicos de Estado de
1969/2003 em que o autor aventa que o processo interpelativo ocorre na via da ideologia produzindo duas evidências: a do sujeito e do
sentido.

389
Seguindo tais pistas cheguei ao gráfico que ilustro abaixo no qual apresento a convergência desses dois
referenciais teóricos, que se complementam, e disponibiliza elementos enquanto ferramenta para a construção de um
possível percurso da enunciação pictórica.

Sinóptico Do Paradigma Indiciário

TRAÇOS SINAIS
INDICES EMBLEMAS

Estilo sujeito-esteta Interdiscurso


Operadores (polifonia, Formações
visuais policromia, imaginárias
poliesteticia)

pinceladas curtas, ponto,forma, tom, representações do


oscilantes, vibrantes, direção, cor, cores, vozes, efeito (índices
inquietantes. textura, dimensão, manifestações de estéticos) enquanto
escala e índices estéticos significação de uma
movimento. dialogia.

Micro-instância Macro-instância

Fonte: SANTOS, J.B.C. (2004) e GINZBURG, C. (1999)


Organizadora: CARVALHO, S.F.E.M (2009, p.150)

Assim, partindo dos elementos do paradigma indiciário (traços, índices, sinais e emblemas) e da micro e macro
instâncias, compus esse jogo enunciativo pictórico, que terá em suas inscrições discursivas, elementos que nos conduzirão: a)
ao sentido, por efeito das regularidades que emergem do objeto estético e b) às significações, por efeito das evidências que se
manifestam em regularidades, ou seja, elementos de recorrência da pintura.
Tomo os traços como um elemento de semiose social do processo de significação na enunciação pictórica, ou
seja, é uma construção linguageira acerca de como se configura o estilo de pintar da IESE, por meio da forma como faz uso
das pinceladas, ora firmes, longas, verticais, ora ondulantes, curtas, horizontais. Evidencia-se assim a alteridade
(sujeito/sentido) → discurso.
As evidências são traduzidas em traços da materialidade, são marcas de inscrições sócio-históricas,
ideológicas, filosóficas, culturais, por índices de tensão, detectados por meio das cores e das formas de pincelar.
Essas marcas sinalizam que sentidos são construídos por meio da pintura.
A IESE é atravessada e interpelada pelo interdiscurso que se interpõe como evidência de significação,
constituindo-se em discursos outros que entremeiam a enunciação do discurso pictórico.
Considero índices como um elemento de semiose social de uma construção semiótica, isto é, organiza os
operadores visuais, de maneira a interagirem entre si, e com elementos de outricidade, provocando efeitos de
enunciação.
Dessa forma, pode-se perceber que a micro-instância conflui para a significação de sentidos, sendo
evidenciada pelos traços e pelos índices, no interior de uma manifestação discursiva pictórica.
No que concerne à macro-instância, por meio dela, observa-se as regularidades, ou seja, as evidências
significativas que emergirão da conjuntura enunciativa de uma manifestação discursiva pictórica. Essas

390
regularidades serão como marcas delimitadoras dessa manifestação e se darão por meio de projeções construídas
com a finalidade de estabelecer relações com os elementos coletados do corpus tomado para análise.
A conjunção entre o discurso pictórico e a macro-instância nos desvela as condições de produção de uma
determinada manifestação discursiva, recorrente de uma IESE a qual é heterogênea em sua constitutividade e
perpassada por alteridades e (des)continuidades.
Dessa maneira, imbricados à macro-instância, teremos os sinais e os emblemas. Os sinais são um
elemento de semiose social na construção de sentidos, que levará à construção de uma significação. Apresentam-
se como sendo da ordem do interdiscurso e se configuram por meio da polifonia, da policromia e da poliesteticia.
Polifonicamente, a IESE se constitui em várias vozes que dizem respeito a elementos de ordem social,
cultural, histórica, filosófica, política, psicológica e estética. A partir dessa percepção, construí uma extensão
epistemológica para esta noção, estendendo-a e relacionando-a para as noções de policromia e de poliesteticia.
Consequentemente, a polifonia se apresenta na pintura como elementos de interdiscursividade (o discurso
religioso, o discurso filosófico, o discurso político) que se instauram dialogicamente entre os constituintes de uma
enunciação estética (traços e índices).
A policromia implica no comportamento linguageiro das cores enquanto vestígios de vozes no interior de uma
enunciação plástica. Nessa perspectiva, uma pintura comporta uma multiplicidade de cores e formas, nos remetendo à
semelhança de vozes como no discurso literário.
Completando a tríade, tem-se a poliesteticia que também carrega marcas e sinais de vozes que emergirão da
configuração de estilos diversos instaurados no interior de uma materialidade pictórica.
Considero a poliesteticia a unificação entre teoria e prática, na qual uma IESE condensa-as, para construir sua
enunciação, de maneira que possa interpelar um sujeito por meio dos elementos dispostos na tela.
Portanto, é da organização desses elementos que também ocorrerá a emergência de vozes que se dará pela
disposição de estilos detectados da IESE na obra, ou seja, a representação dos operadores visuais. Por meio da
poliesteticia haverá a emersão de marcas dessas vozes, especialmente quando são sintetizados como índices estéticos de
espaço, tempo, patemia, proxêmica, entre outros, constituídos no e pelo processo de interpelação.
Os emblemas seria um elemento da ordem de uma semiose social de construção pragmática, isto é, há
uma ação da IESE em pincelar algo sobre uma tela, de maneira a estabelecer relações entre os operadores visuais,
de modo a provocar uma significação.
Portanto, ao analisar os sinais na materialidade pictórica, tem-se evidências por meio das cores, da
luminosidade, do empasto (tinta espessa, “gorda”, aplicada grosseiramente sobre a tela), das pinceladas, que
provavelmente conduzirão a uma construção de significação, a um sentido.
Esse processo é construído na via do interdiscurso, que nada mais é que um continuum que se constrói
por um conjunto de atravessamentos, que transpassam os discursos para produzir efeitos.
Nesse caso, tomo enquanto interpelação de uma interdiscursividade, a polifonia, a policromia e a
poliesteticia, pois, é por meio dessa tríade, que se obtém vestígios de semelhança entre a interpelação das cores
podendo examinar a dialogia entre elas, para a construção de uma significação.
Assim, os conceitos de dialogia e polifonia estão atravessados por uma alteridade (des)contínua, por se
vincularem a uma IESE, a qual se circunscreve em processos identitários, e representa singularidades que
subjazem à uma referencialidade polifônica dessa instância.
A referencialidade polifônica, segundo Santos (2000b, p.231) indica as

391
Bases discursivas que balizam o imaginário sociodiscursivo dos sujeitos actantes no processo
enunciativo. Essas bases comportam referentes de natureza histórica, social, cultural, filosófica,
psicológica, política e lingüística, determinantes da circunscrição do sujeito em formação social, de sua
filiação em um espaço discursivo e de sua alteridade enunciativa numa diversidade de formações
discursivas e ideológicas (Santos, 2007, p.196).

Desse modo, ilustraremos com uma breve análise de uma das obras de Vincent van Gogh intitulada “A Pair
of shoes” de 1887 convergindo-a para o sinóptico do paradigma indiciário.

3. Enunciação pictural em “A pair of shoes”

Oil on canvas - 34.0 x 41.5 cm


Paris: early 1887
Baltimore: The Baltimore Museum of Art, The Cone Collection

Um par de botinas velhas, ocupando quase todo espaço da tela. Uma representação de uma natureza morta
numa peça de vestuário desgastada pelo tempo e pelo uso evidenciando uma condição social. A luminosidade que incide
sobre o calçado salienta aspectos de rudeza, de provação, de amargura destacados no desgaste do couro e do solado,
mostrando que foi refeito várias vezes. Ao fundo os tons terrosos, escuros contrastam com o azul, o amarelo, o alaranjado,
o branco e o preto. Manifestando um caminhar sobre uma terra lavrada marcada no solado da botina à esquerda.
Deste modo, o sujeito-esteta é atravessado pelo interdiscurso policrômico, inscrevendo-se num processo de re-
significação na tessitura das cores. Sua paleta é utilizada de maneira a metaforizar o que lhe é apresentado pela natureza,
ou seja, o azul do céu, o amarelo tendendo ao laranja, dos trigais, o marrom avermelhado do solo mediterrâneo, e, a
luminosidade.
Consequentemente, esses elementos se colocam em dialogia sobre sua paleta, levando-o a tomar posições, que
o colocarão em alteridade (des)contínua entre os sentidos e a significação por eles produzidos, a partir do objeto que tem à
sua frente.
Assim, o sujeito-esteta toma uma posição, inscrito num processo de identificação cromática, subjacente à sua
referencialidade polifônica, em que as cores e a textura, funcionam como vozes de sua inscrição político-ideológica-
histórico-cultural e estética, se apresentam na sua produção, enquanto atravessamentos de uma interdiscursividade.

392
Posso dizer que o discurso humanista corresponde ao sinal poliestético na manifestação de como é representado
o par de botinas, ocupando quase todo espaço da tela, em que a luminosidade o coloca em evidência.
Consequentemente, o vinculamos ao índice de proxêmica (aproximação), porque organiza os elementos da cena
indicando a procedência do calçado, relevando-nos um pouco da vida do seu usuário.
Dessa forma, identificamos proxemicamente que o sujeito-esteta mantinha uma relação de achegar-se ao espaço
rural e com os sujeitos que faziam parte dele.
Outro sinal poliestético que encontramos é a patemia. Este aspecto diz respeito à configuração estética das
emoções na representação pictórica e se dá por meio dos operadores visuais ligados à cor.
Assim, esse aspecto se evidencia por meio da forma, da textura, do movimento, indicando o estilo e a
singularidade do sujeito-esteta sendo constituintes da pintura, e no sinóptico do paradigma indiciário denominam-se traços.
Traços estes que se apresentam dispostos em pinceladas curtas, vigorosas, separadas ora na vertical, ora na horizontal ou
salpicadas insinuando um semicírculo insinuando movimento.
Juntos, estes índices imprimem dinamicidade à pintura, associados a policromia, num jogo de cores primárias
(azul, com nuances de amarelo e vermelho), contrastando com o branco à direita e com o escuro dos tons terrosos à
esquerda.
Dessa forma, é possível provocar e compartilhar o percurso de uma vida simples e difícil de quem luta e trabalha
dia após dia sem reconhecimento, sem recursos. A textura fica por conta do empasto, essa camada mais espessa de tinta,
que dá à pintura a sensação tátil de relevo na tela. Como se pode perceber na botina à esquerda, o solado voltado para
cima cheio de preguinhos e no couro corroído pela ação do tempo à direita, exibem a dimensão da precariedade da vida de
quem os re-utiliza.
Esses elementos ao serem articulados no interior da enunciação estabelecem uma relação de encadeamento de
enunciados que atravessam o discurso pictórico e se evidenciam por meio de efeitos de pré-construído (par de botas)
produzindo evidências de sentido.
Deste modo, o sujeito-esteta lança mão de um par de botinas para simbolizar este calçado enquanto manifestação
de humildade, de enaltecimento do sujeito-camponês e evidenciar a dureza da vida no campo, assim, têm-se a polifonia,
traduzida nessa representação.
Para evidenciá-la, posiciona as botinas no centro de sua enunciação re-significando-as e se inscrevendo numa
formação discursiva filosófico-humanista dando relevância àquele que lida com a terra, logo, valorizando esse trabalho, que
com a revolução industrial começa a ser desprezado e desvalorizado.

Considerações finais

O Sinóptico do Paradigma indiciário foi apresentado enquanto um possível percurso de análise para um corpus
pictórico, sob a perspectiva da Análise do Discurso.
Por meio dele é possível observar que a interdiscursividade permeia uma enunciação pictórica, entrelaçando
discursos outros, retomados de diferentes momentos da história e de diferentes lugares sociais e que a significação emerge
da inscrição e do pertencimento do sujeito-esteta numa dada formação discursiva (filosófico-humanista), historicamente
constituída.
Polifonia, policromia e poliesteticia são elementos que se imbricam no interior da materialidade pictórica, fazendo
emergir significações em sua tessitura, promovendo uma polissemia que é constitutiva dos processos discursivos.

393
Se o sujeito é heterogêneo, seus dizeres também o são, e a materialidade pictórica é um lugar de manifestações
ideológicas, retratando diferentes formas de significar a realidade, segundo vozes e ponto de vista daqueles que a
empregam.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª ed. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec,
2006.

CARVALHO, Sônia. F. Elias Mariano. A Dialogia estética em Vincent van Gogh. Dissertação de Mestrado (2009).
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2009.

DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual. Trad. Jefferson L. Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos emblemas, sinais. Morfologia e história, São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.

GOGH, Vincent van (obra: A pair of shoes): disponível em: <www.vggallery.com> acessado em 24 nov.2009.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso – uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. [Titulo
original: Les Verites de la Palice, 1975].

SANTOS, João Bôsco. C. “A instância enunciativa sujeitudinal”. In: SANTOS, J.B.C. (org.) Sujeito e Subjetividade –
Discursividades contemporâneas. Uberlândia: Edufu. 2009. pp. 83-101.

_______. Uma reflexão metodológica sobre análise de discursos. In: FERNANDES, C. A. Análise do discurso – unidade e
dispersão. Uberlândia: Entremeios, 2004. pp.109-118.

_______. Entremeios da Análise do Discurso com a Linguística Aplicada. In: SANTOS, J.B.C. & FERNANDES, C.A.
Percursos da Análise do Discurso no Brasil. São Carlos: Claraluz. 2007. pp. 187-206.

Sobre o autor
Sônia de Fátima Elias Mariano Carvalho – pesquisadora integrante do Laboratório de Estudos Polifônicos (LEP/UFU).
Doutoranda em Estudos Linguísticos no Instituto de Letras e Linguistica da Universidade Federal de Uberlândia – MG.
Email: soniafelias88@gmail.com

394
Paráfrase e polissemia na discursividade
dos manifestos dos pioneiros da Educação Nova

CASSANO, Maria da Graça


(UFF/UVA/Unisuam)

1. Introdução
Demandariam planos de reconstrução nacional novas políticas educacionais, em consonância com as correntes
renovadoras de seu tempo, com os novos ideais que as sustentariam e justificariam em suas bases ideológicas? De que
dependeria a implantação dessas políticas e com que tipo de possíveis relações de força contrárias poderiam se defrontar?
Tais questões nos acorreram a partir do nosso interesse sobre a história das idéias pedagógicas em consonância
com a história das idéias lingüísticas no Brasil. Uma história menos de avanços que de recuos, em que se percebe o ensino
público à mercê de interesses, muitos não afeitos ao bem comum. Dentre os inúmeros acontecimentos que colaboram para
narratividade desse histórico, elegemos um como foco de estudos: a elaboração do Manifesto dos Pioneiros da Educação,
em 1932, e sua posterior re-elaboração, em 1959.
Nesses dois momentos de relevância histórica, um movimento dito progressista foi encetado por especialistas
educacionais brasileiros a serviço da (re)construção identitária da educação em nosso país e, indiretamente, da nação. Na
primeira ocasião, as condições de produção do documento foram viabilizadas pelo governo Getúlio Vargas, a se propor re-
significar o Brasil republicano até então comprometido com a oligarquia cafeeira; na segunda, as condições foram
propiciadas pela gestão de Juscelino Kubitschek, a se propor reinventar o país por meio de seu plano de metas, a pretender
fazê-lo avançar 50 anos em cinco.
Tanto em um período como no outro, observa-se a mobilização por parte dos educadores, a princípio externas a
ambos os governos e apartidária em sua essência, por uma educação que se queria inovadora por estarem comprometidos
com o ensino público e laico. Nas duas oportunidades, repensaram os rumos da escola, a formação dos cidadãos e seu
papel na sociedade. Nas duas ocasiões também, o embate ideológico entre grupos identificados com modelos distintos de
educação se acirrou e concorreu para o implemento de ações não necessariamente comprometidas com os avanços
necessários na área em questão.
Nosso objeto de análise, portanto, são os dois manifestos redigidos nas duas oportunidades destacadas. Ao
cotejarmos os documentos, interessa-nos analisar as marcas discursivas que apontam para o direcionamento ideológico
que constituem seus princípios de ordem político-filosófica e pedagógica. O que se manteria, parafrasticamente, e o que
deslizaria, instaurando novos sentidos, no que se refere à educação pública que se queria incluir no projeto de nação, que
se implementava em cada um dos períodos mencionados. Em que medida a especificidade dos dois momentos históricos
traria no bojo de seu ideário visões convergentes, ou não, sobre educação. E, ainda, que forças hegemônicas se oporiam
às diretrizes registradas nos manifestos e por quê.
Buscamos na Análise do Discurso francesa (Pêcheux; Orlandi) subsídios teóricos para nossas reflexões.
Mobilizamos um aparato conceitual a instituir nosso dispositivo de análise que leva em conta as formações ideológicas,
imaginárias e discursivas constitutivas a se materializarem nos discursos di/convergentes, em que o embate entre as
relações de força possa ser melhor compreendido. Não sem antes apresentarmos um recorte caracterizador dos dois
períodos históricos, pano de fundo para os manifestos elaborados.

395
2. Educação e projeto nacionalista – Era Vargas
A revolução de 30 alçou Getúlio Dornelles Vargas ao governo do Brasil. O contexto político de então apontava
para a instituição de um “Estado-empreendedor, capitalista e mantenedor de um rol de garantias e direitos sociais” (BRITO,
2006). A grande depressão, materializada pela crise de 29, que levara à desarticulação da economia mundial, favorecia a
elaboração de projetos nacionalistas que viriam a se intensificar ainda mais, posteriormente, com o recrudescimento do
fascismo na Europa. Desse modo, “nesse período, o Estado se instituiu em interventor no sentido de ‘regulamentar,
direcionar, planejar ou atuar diretamente em certos setores de base da vida econômica, agindo como suporte de políticas
de apoio e incentivo ao desenvolvimento” (BRITO, 2006)
O ambiente nacionalista propiciaria o fomento da industrialização no país (siderurgia), sobretudo a partir de 1937,
ou seja, já quando da instauração do Estado Novo, período de exceção promovido por Vargas. O desenvolvimento
econômico então era considerado base para unidade e segurança nacional.
Mas o período em tela, 1930 – 1936, era “propício à (re)articulação de uma nova maneira de conceber a
educação, tendo por base o nacionalismo” (XAVIER, 1999:15). Assim, os ideólogos da Escola Nova, convocados pelo
p´roprio governo, procuraram colocar em prática as ideias que vinham sendo amadurecidas a partir de sua prática no
estado de Minas Gerais e de seus estudos em anos anteriores. Os princípios defendidos por esses educadores foram
fundamentais para que se pensasse um ensino mais afinado com a perspectiva de um Brasil democrático afirmado
internacionalmente como nação industrializada e moderna. A escola deveria passar, por isso, a adquirir importância nesse
cenário de reconstrução da sociedade brasileira.
As novas demandas sócio-econômicas exigiam uma outra escola; urgia, pois, expandir o sistema educacional e
propor um outro tipo de ensino. Eles sonhavam ver concretizado seu plano para uma nova educação a partir das mudanças
de caráter político pelas quais o país estava passando. E as medidas tomadas então pareciam sugerir que o momento era
chegado para tal.

Logo depois de empossado, em novembro de 1930, uma das medidas do governo provisório foi criar o
ministério da Educação e Saúde Pública. Para ocupar a nova pasta foi indicado Francisco Campos,
integrante do movimento da Escola Nova que havia dirigido, juntamente com Mário Casasanta, a
reforma da instrução pública em Minas Gerais em 1927 – 1928. Já no primeiro semestre de 1931 o
ministro da Educação e Saúde Pública baixou um conjunto de sete decretos conhecidos como
Reforma Francisco Campos. (...) Com essas medidas resultou evidente a orientação do novo governo
de tratar a educação como questão nacional, convertendo-se, portanto, em objeto de regulamentação,
nos seus diversos níveis e modalidades, por parte do governo central. (SAVIANI, 2008: 195-6)

Para os partidários dessa nova visão, a escola não poderia continuar a ser tratada como objeto de privilégio das
elites. Advogava-se a extensão de um ensino laico obrigatório a todos, indistintamente, sob a responsabilidade do Estado.
O documento por eles formulado iria determinar as diretrizes da educação popular brasileira, cujas propostas
remontavam às que já há tempos estavam em pauta nas discussões desses educadores reformistas.
No entanto, as idéias constantes no manifesto, acolhidas nesse primeiro momento do governo Vargas, iriam sofrer
reveses quando da instauração do Estado Novo, em que ações empreendidas pelo presidente da República estavam na
base da valorização e da afirmação das identidades nacionais de países que se guiavam por orientações fascistas. Com a
instauração, pois, do Estado autoritário, educadores que trabalhavam pela implantação das idéias contidas no manifesto
foram afastados da vida pública, como, por exemplo, Anísio Teixeira. Eles ainda teriam de esperar uma década, quando da
redemocratização do país, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, para retomarem as discussões sobre a educação
sob as bases escolanovistas ou, como queria Anísio Teixeira, da escola progressiva.

396
3. Educação e projeto desenvolvimentista – Era JK
A década de 1950 foi a da consolidação da redemocratização no país, traduzida na Carta Constitucional de 1947,
que assegurava, a propósito, o papel do Estado na condução de uma educação para todos (BOMENY, 2001: 53). Vargas foi
reconduzido ao poder, legitimado pelo voto, após ter sido deposto em 1945. Os ares democráticos que se respiravam no
país, no entanto, viriam ser abalados com o seu suicídio, ao sentir-se pressionado pela oposição. Ainda assim, uma nova
eleição conduziu ao Palácio do Catete o mineiro Juscelino Kubitschek, não sem antes o país experimentar tentativas de
golpe de estado e a conseqüente ameaças à governabilidade
Durante seu mandato, o nacionalismo não se arrefeceu, embora seus projetos se caracterizassem mais
acentuadamente pelo desenvolmentismo, investido então de um ideário de sustentação com base em valores urbano-
industriais e populistas, em parte herança de Vargas, cujo partido, inclusive, apoiara sua candidatura. Contudo, o que
distinguiu o governo de JK de seu antecessor foi que o processo de industrialização se deu, essencialmente, mantido por
capital estrangeiro, isto é, “inaugura-se um novo modelo de industrialização. Para tanto, é necessário reformular o papel do
Estado, para dar curso às idéias desenvolvimentistas do governo, agora pautada em seu ‘Plano de Metas’” (CRUZ, 2006)
Quanto à educação, a relação desta com o desenvolvimento social ainda estava em compasso de espera desde a
promulgação da Carta Magna de 1946. Havia no texto constitucional um dispositivo, criado pelo ministro de educação de
então, Clemente Mariani, que conferia a União a responsabilidade de legislar sobre as diretrizes e bases da educação
nacional. Havia, pois, a real perspectiva de vir a ser concretizado o plano dos pioneiros de se estabelecer no Brasil uma
nova educação formal para todos os brasileiros. No entanto, a primeira Lei de Diretrizes e Bases, nº 4024, só veio, a ser
aprovada e sancionada em 1961, em dezembro, já no governo João Goulart.
Percebe-se que a concepção desenvolvimentista de JK não contemplava a educação como elemento que
pudesse vir a contribuir para o estabelecimento de um Estado moderno e de fato industrializado. O pouco que se investiu na
área, 3%, foi direcionado ao ensino técnico, uma vez que fora implantado parque industrial voltado para a produção de
bens duráveis. A prioridade, pois, era levar o Brasil a alcançar a maioridade do capitalismo.
Como era de se esperar, uma vez que a educação do povo é relegada em segundo plano e o modelo nacional-
desenvolvimentista se esgota em meados da década de 1960, sem que parte significativa do povo pudesse ter acesso
benefícios auferíveis do projeto burguês de civilização. Este é um impasse que, na verdade, se estende até os dias de hoje.
Esse painel que traça o cenário da construção de um Brasil desenvolvido não arrefeceu, no entanto, o ânimo dos
educadores. Um segundo manifesto foi elaborado para que se ratificasse a importância da educação na condução de
qualquer que fosse o plano governamental. O fim do governo JK aproximava-se, o papel do Estado no que se refere à
educação, que vivia uma situação crítica, permanecia indefinido quanto à necessidade de se tomar a dianteira na condução
das garantias de acesso à escola para que a população jovem.
Novamente os signatários desse novo manifesto sofreram pressões e perseguições por parte não só de membros
da Igreja, mas de políticos como Carlos Lacerda, defensores das benesses estatais para a rede privada de ensino. Chegou-
se a pedir a demissão de Anísio Teixeira da Coordenação do Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), ambos criados pelo educador, episódio que gerou protestos solidários a
Teixeira por parte de 529 educadores, cientistas e professores em todo o país (BOMENY, 2001).

397
4. Os manifestos dos pioneiros da educação brasileira – um cotejo
A década de 1920 viu nascer, por iniciativa de alguns educadores e simpatizantes com a causa, um movimento
em prol da renovação educacional e da escola pública. Eles viriam a se autodenominar na década seguinte, em 1932, os
pioneiros da Educação, quando da elaboração do primeiro documento em que oficializaram os princípios filosóficos,
políticos e pedagógicos que norteavam as novas práticas que propunham. Repensar a educação no Brasil, para Fernando
Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, significava remodelar toda uma política segregatória, que excluía da instrução
formal um contingente populacional expressivo, oriundo das classes menos favorecidas.
A seguir, temos um recorte das idéias defendidas, de modo a que se possa produzir uma análise discursiva,
mediante a comparação dos ditos nos manifestos. Esta análise procura levar em conta também a reflexão sobre como se
dão na materialidade linguística as relações de força presentes e a observância de como o dizível se materializa no jogo
entre o mesmo (parafrástico) e o diferente (polissêmico), com relações às posições ocupadas pelos sujeitos para poder
dizer o que dizem.
Ao ocuparem a posição que lhes confere identidade, constroem, por sua vez, discursivamente, a figura do outro.
Dizendo de outro modo, “o sujeito ao enunciar se projeta imaginariamente na forma-sujeito da formação discursiva que o
domina, ‘incorporando sua realidade’, os seus ‘sentidos’. (...) O sujeito enuncia de posições que são relativas a outras na
ordem social – lugar que ocupam para ser sujeito do que diz” (MARIANI, 1998: 32).
Em tudo o que se diz, há projeções imaginárias em termos de crenças, valores que os constituem o sujeito e o
seu discurso. Ou seja, nesses documentos, esses educadores, no processo de (se) significarem, constroem as imagens
que de si e do outro, ao produzirem gestos de interpretação definidos pela sua inscrição numa formação discursiva
predominante. Daí analisar-se aqui o discurso a partir desse imaginário que os pioneiros constroem do país idealizado, da
educação e das próprias posições político-filosóficas que defendem.

a. Imaginário de sociedade e de país a se (re)construir


MANIFESTOS
Quanto aos princípios norteadores da proposta
Político-filosóficos
1932 1959
• A educação, que (...) se resume • (A escola pública) universal (...);
logicamente numa reforma social, obrigatória e gratuita; integral (...)
não pode (...) realizar-se senão fundada no espírito de liberdade e no
pela ação extensa e intensiva da respeito da pessoa humana;
escola sobre o indivíduo e deste • A educação pública tem de ser
sobre si mesmo; reestruturada para contribuir
• Cabe ao Estado (...) tornar a também, como lhe compete, para o
escola acessível, em todos os progresso científico e técnico, para o
seus graus, aos cidadãos a quem trabalho produtivo e o
a estrutura social do país mantém desenvolvimento econômico;
em condições de inferioridade • (...) A escola pública, cujas portas,

398
econômica para obter o máximo de por ser gratuita, se franqueiam a
desenvolvimento de acordo com todos sem distinção de classes, de
as suas aptidões vitais; situações, de raças e de crenças, é
• Desprendendo-se dos interesses por definição, contrária e a única que
de classes, a que ela tem servido, está em condições de se subtrair a
a educação (...) deixa de constituir imposições de qualquer pensamento
um privilégio determinado pela sectário, político ou religioso.
condição econômica e social do • Antes das descobertas científicas
indivíduo, reconhecendo a todo (...) que abriram o campo às três
indivíduo o direito de ser educado grandes revoluções industriais, “o
até onde o permitam as suas principal papel do ensino consistia
aptidões naturais; em dotar o homem de
• Se a evolução orgânica do sistema conhecimentos e instrumentos para
cultural de um país depende de a apropriação e uso de seu ambiente
suas condições econômicas, é (...) A era tecnológica marca o fim do
impossível desenvolver as forças processo de ensino para a
econômicas ou de produção, sem adaptação e o começo do processo
o preparo intensivo das forças de ensino para a evolução do
culturais; homem e de seu universo;
• A unidade educativa – essa obra • (...) a educação nacional opõem-se
imensa que a União terá de abertamente as forças reacionárias,
realizar sob pena de perecer como e nós sabemos muito bem (...) quais
nacionalidade, se manifestará são seus maiores redutos de
então como uma força viva, um resistência. (...) o que disputam
espírito comum, um estado e afinal, em nome e sob a capa de
ânimo nacional, nesse regime livre liberdade, é a reconquista da direção
de intercâmbio ideológica da sociedade (...) e os
recursos do erário público para
manterem instituições privadas, que,
no entanto, custeadas, na hipótese,
pelo estado, mas não fiscalizadas;
• Nossa concepção educacional (...)
não se rompeu nem está a pique de
romper-se os valores mutáveis e os
valores permanentes da vida
humana;

399
• A idéia da educação pública –
conquista irreversível das
sociedades modernas; a de uma
educação liberal e democrática – é a
educação para o trabalho e o
desenvolvimento econômico e,
portanto, para o progresso das
ciências e da técnica que residem à
base da civilização industrial;
• A escola pública concorre para
desenvolver a consciência nacional;
ela é um dos mais poderosos fatores
de assimilação como também de
desenvolvimento das instituições
democráticas

É no estudo discursivo da ressonância de significação, das paráfrases, que se permite compreender não só como
os sentidos se constituem, mas também os efeitos de homogeinização. No cotejo entre as materialidades discursivas,
observa-se que o que se mantém concorre para que se institua uma memória histórica com relação à uma possível
educação progressista nacional.
No que se refere aos enunciados em relação parafrástica, os sentidos que se inauguram e se mantém apontam
para uma escola universal, gratuita e laica. Esses princípios fazem irromper, em 32, um acontecimento discursivo, isto é,
produz-se um deslocamento, uma desautorização de sentidos anteriormente formulados e consolidados no imaginário das
elites brasileiras. A irrupção de um acontecimento “instaura sentidos que intervêm e modificam o já-dito” (MARIANI, 1998:
41).
Os “pioneiros da educação” vislumbraram a chance de fazer a Escola Nova assumir um papel revolucionário no
Estado. Mais do que experiências pontuais, em diferentes partes do país, propuseram, então, a extensão dos princípios
norteadores desse ideário a todo o território nacional. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa que se tinha partido do próprio
Estado, que, assim, tornava o documento como algo a reanimar a própria ação política.
Pode-se dizer que o lançamento das bases para uma nova educação desestabilizaram uma visão hegemônica e
conveniente a grupos sociais para os quais a educação deveria continuar a ser privilégio de poucos e, preferencialmente,
conduzida por escolas privadas, especialmente as confessionais.
Os manifestos, incluindo-se o de 59, encaminham novas interpretações para a questão e, assim, filiados a uma
rede de sentidos outra, se instituem elementos de memória que vai procurar interferir no status quo. Por isso, muitas vezes
os pioneiros foram acusados de serem comunistas por advogarem ser do Estado a responsabilidade pela educação pública,
universal e gratuita. Reproduzia-se sobre eles um dizível reacionário, marcado sócio-historicamente, responsável, inclusive,
por um imaginário vigente que associava comunista a inimigo.
As proposições de cunho político-filosófico projetavam uma sociedade que deveria, nos anos seguintes, estar
preparada para frequentes mudanças. Este princípio não foi bem aceito por segmentos sociais vinculados à Igreja, que

400
contra ele se insurgiram, instaurando-se polêmicas apaixonadas entre liberais e católicos. Grupos religiosos, envolvidos
com educação privada, viam nessa finalidade de mudança constante a possibilidade de se experimentar o apagamento de
referências que lhes eram caras como, por exemplo, a inspiração divina. E, nessa concepção, Deus não é mutável, Ele é.
De modo a desfazerem essa leitura que lhes parecia enviesada por parte de seus oposicionista, em 59, declararam em
aberto confronto que “o que disputam afinal, em nome e sob a capa de liberdade, é a reconquista da direção ideológica da
sociedade (...) e os recursos do erário público para manterem instituições privadas, que, no entanto, custeadas, na hipótese,
pelo estado, mas não fiscalizadas”
Essa disputa que se estabeleceu entre católicos e pioneiros estava na origem de embates ideológicos que ainda
hoje antagonizam religião e laicidade. Se a escola devia ser universal, gratuita, sendo da responsabilidade do Estado,
colégios confessionais sentiram-se ameaçados ante essa perspectiva. Um dos principais porta-vozes dos interesses da
Igreja, na ocasião, foi Alceu de Amoroso Lima, na década de 1930. Na de 1950, Carlos Lacerda advogou em nome do
ensino privado, incluindo-se o confessional. A motivação então já não era a mesma, mas relacionada com o destino das
verbas do Erário, ambicionada pelas escolas particulares.
O fato é que as mudanças a serem protagonizadas pela implantação da ideologia escolanovista, pareciam
desestabilizar um grupo a quem os pioneiros acusavam de criar uma ofensiva contra a escola pública com argumentos que
silenciavam outros propósitos, daí estes considerarem que o que disputam afinal, em nome e sob a capa da liberdade, é a
reconquista da direção ideológica da sociedade, e os recursos do erário público para manterem instituições privadas, que,
no entanto, custeadas, na hipótese, pelo Estado, mas na fiscalizadas.

d. Imaginário de educação
MANIFESTOS
Quanto aos princípios norteadores da proposta
Pedagógicos
1932 1959
• Nessa nova concepção de escola • (...) “temos que preparar (observou
(...) é uma reação contra as com razão um de nós) a grande
tendências exclusivamente massa de jovens para as tarefas
passivas, intelectualistas e comuns da vida, tornadas técnicas
verbalistas da escola tradicional, a senão difíceis, pelo tipo de
atividade que está na base de civilização que se desenvolveu, em
todos os seus trabalhos; consequência de nosso progresso
• É certo que, deslocando-se por em conhecimento, e para os quadros
esta forma, para a criança e para vastos, complexos e diversificados
os seus interesses, móveis e das profissões e práticas, em que se
transitórios, a fonte de inspiração expandiu o trabalho especializado.
das atividades escolares, quebra- Mudaram, pois, os alunos – hoje
se a ordem que apresentavam os todos e não apenas alguns –;
programas tradicionais, do ponto mudaram os mestres (...); e

401
de vista da lógica formal dos mudaram os objetivos da escola,
adultos, para os pôr de acordo hoje práticos, variados e mais
com a ‘lógica psicológica’, isto é, profissionais (...)”;
com a lógica que se baseia na
natureza e no funcionamento do
espírito infantil;
• é preciso que a escola seja
organizada como ‘um mundo
natural e social embrionário’, um
ambiente dinâmico em íntima
conexão com a região e a
comunidade;
• (a escola) passará a ser um
organismo vivo, como uma
estrutura social, organizada à
maneira de uma comunidade
palpitante pelas soluções de seus
problemas

A Escola fez frente ao ensino tradicional de caráter verbalista, intelectualista e que tinha na figura do professor o
seu centro de interessa. Essa situação detectada ainda se perpetuava quando os pioneiros elaboraram o manifesto de 59.
Propunha-se, pois, uma mudança de foco, ou seja, o aluno passaria a ser o centro da ação pedagógica, uma vez que ele
deveria produzir conhecimento. Segundo essa visão, o aprendizado não se daria de fora para dentro, mas, antes, de dentro
para fora. O papel do professor passaria a ser o de mediador na condução de um ensino prático e socializado.
Esses princípios ganharam ainda mais relevância em 59. É possível que o processo acelerado de industrialização
que se promovia no governo JK concorresse para que uma pedagogia, que desde o início se queria prática, confirmasse
essa vocação, voltando-se para o mercado de trabalho que ampliava-se no período. Isso significava dizer que em um país
de bacharéis a escola pública deveria ocupar-se da massa e abrir-se para um fazer pedagógico menos intelectualista.
Essas idéias, muitas vezes, aparecem nos eventos enunciativos produzidos pelos pioneiros identificadas por
aspas. Elas, que marcam um outro no discurso, configuram que se “pensa ilusoriamente que se podem determinar os
pontos de inclusão do outro no seu discurso – efeitos do que se denomina heterogeneidade, mas que é constituído pelo
Outro do seu inconsciente” (GREGOLETTO, 2002:31).
Desses recursos vale-se o sujeito para demarcar uma voz que aqui, no caso, autoriza o sujeito a dizer o que diz.
Como se o dito já tivesse instaurado uma memória que se valida na reprodução. Esse expediente confirma o
comprometimento desses educadores com a escola democrática, uma vez que marca a reiteração do dizível.

402
5. Reflexões finais
As duas questões que abriram este texto nos levaram a identificar uma estreita relação entre educação e projetos
governamentais. Pode-se dizer que nos períodos históricos em análise os princípios escolanovistas de algum modo
contribuíram para o fortalecimento político dos que estavam no poder. Não por acaso o ideário progressivo tenha se
consolidado no interior do próprio aparelho do Estado. Ao ocuparem postos-chave em órgãos do MEC, influenciaram de
certo modo algumas ações do poder central, tanto na fase pós-revolucionária e nacionalista getulista, quanto na
desenvolvimentista juceliniana, daí dizer-se, com relação ao teor do manifesto, que

não se tratava apenas da formulação de um sistema de idéias puro, mas da construção de um ideário
que vislumbrava a passagem de um Brasil agrário, arcaico e dependente, para um Brasil industrial,
moderno e desenvolvido. (...) esse estaria conectado à ação por meio da expperiência (...) e acabaria
por revestir-se de um significativo sentido político, voltado para a consolidação de uma vida social
condizente com as exigências de uma sociedade industrial moderna e democrática (XAVIER,
2006:111)

A modernização econômica que se esboçava em 1930 e se consolida a partir de JK demandava uma educação
comprometida com processos contínuos de mudança e com o modo de vida democrático. A educação, nesse contexto,
deveria ocupar um lugar de destaque no engendramento desse Estado moderno e na construção da consciência nacional.
No entanto, embora os princípios da escola progressiva e os projetos de governo se afinassem quanto a estarem
voltados para a construção do nacionalismo, com Vargas, e com o de desenvolvimentismo, com JK, a educação não
recebeu tratamento privilegiado. Se na era Vargas, o Estado Novo interrompe o movimento escolavivista no nascedouro, na
era JK a educação sequer foi considerada prioridade em seu plano de metas.
Estendo-se aos tempos atuais, percebe-se que a educação é tratada como peça secundária dos propósitos
governamentais. Dela se lança mão quando significativos dividendos políticos podem ser auferidos, mas logo é descartada
ao se cobrar do Estado um comprometimento efetivo principalmente com a educação popular e não somente com o capital.
Contudo visões imediatistas não propiciam real desenvolvimento. Sem o investimento no ensino público corre-se o risco de
nunca chegarmos a inverter o quadro de desigualdades sociais que parece eternizar-se entre nós.

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XAVIER, Libânia Nacif et alii. Pragmatismo e desenvolvimentismo no pensamento educacional brasileiro dos anos de
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A autora possui graduação em Letras pela UERJ, mestrado em Letras (Língua Portuguesa) e doutorado em Letras (Estudos
Linguísticos) pela UFF. Faz de um grupo de pesquisas na UFF (Discurso, historicidade e subjetividade). É professora na
graduação e na pós-graduação da Unisuam e na UVA. Integra o quadro de professores de extenção da Fundação Cecierj.
gracassano@terra.com.br

404
Eu sei, mas não devia: intertextualidade e
interdiscursividade nas crônicas de Marina Colasanti

CASTRO, Ângela Cristina Rodrigues de


(UERJ)

INTRODUÇÃO

“Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.”


Com esse enunciado, entrecortado por vozes suas, de seus leitores e de outros interlocutores, previsíveis e
imprevisíveis, Marina Colasanti inicia a crônica “Eu sei, mas não devia” que também dá título à coletânea foco da análise
neste artigo.
Tendo por base um arcabouço teórico da Análise do Discurso (AD), da Linguística Textual (LT) e da Semântica da
Enunciação, a partir da análise de três dos textos que fazem parte da coletânea, será feito um estudo da intertextualidade e
da interdiscursividade como elementos/fatores de construção e produção textual e de sentidos.

1. Pressupostos teóricos
Atualmente, a AD não se limita a um estudo puramente linguístico, mas considera também outros aspectos
externos à língua: os elementos históricos, sociais, culturais, ideológicos (que cercam a produção de um discurso e nele se
refletem), o espaço que o discurso ocupa em relação a outros discursos produzidos e que circulam na comunidade
(BRANDÃO, 1993). Na AD, um conceito fundamental é o de condições de produção, ou seja, o conjunto de elementos
que permeiam a produção de um discurso – o contexto histórico-social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem
que fazem de si, do outro e do assunto de que estão tratando.
A Linguística Textual (LT), por sua vez, constitui um ramo da linguística que começou a se desenvolver na década
de 60 e cuja hipótese de trabalho consiste em tomar o texto como unidade básica, ou seja, como objeto particular de
investigação, visto ser ele a forma específica da manifestação da linguagem (FÁVERO E KOCH, 1994).
Partindo desse pressuposto, em Beaugrande e Dressler (1981) encontra-se a definição de textualidade como um
conjunto de características que fazem com que o texto seja considerado como tal, destacando-se aí os sete princípios
da textualidade: a coesão, a coerência, a aceitabilidade, a informatividade, a intencionalidade, intertextualidade e a
situacionalidade.
Por outro lado, a Semântica da Enunciação (ou Argumentativa ou macrossintaxe do discurso) é uma ramificação
da Linguística atual que se ocupa em estudar a argumentação por trás dos enunciados – ela “postula que a
argumentatividade está inscrita no nível fundamental da língua” (KOCH, 2002:19). Conforme afirma a mesma autora, a
semântica da enunciação procura identificar em qualquer produção enunciativa o traço que as fazem ser empregadas “com
a pretensão de orientar o interlocutor para certos tipos de conclusão, com exclusão de outros” (KOCH, 2002:102). Em
adição, a macrossintaxe do discurso também busca considerar as vozes que compõem o enunciado, considerando no
estudo da significação algum elemento exterior ao sistema da língua, o elemento extralinguístico.
Ao se estabelecer uma interface entre as três áreas de estudo acima descritas, é possível observar que o ponto
comum entre elas se encontra na tríade condições de produção – texto – textualidade, na qual o enunciado/texto
encontra sua validação em uma dimensão sociocomunicativa, visto ser, atualmente, impossível não considerar qualquer

405
texto como “um cruzamento de discursos diversos, de enunciados de discursos diferentes” (ORLANDI,1988), ou seja, um
entrecruzamento de interdiscursos, um dos focos do presente artigo.

2. A visão dialógica de texto e de gêneros discursivos


No estudo que hora se propõe, parte-se da concepção de que qualquer texto, segundo uma perspectiva
bakhtiniana, constitui um enunciado, um diálogo, esse entendido como “o extensivo conjunto de condições que são
imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não são exauridas em semelhante intercâmbio”
(CLARK E HOLQUIST, 2008:36).
Partindo dessa perspectiva, Bakhtin entende que qualquer “enunciado considerado isoladamente é, com certeza,
individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,
1992: 279) - os gêneros discursivos ou textuais, termos aqui intercambiáveis -, que dependem da “natureza comunicacional”
da troca verbal.
Apresentam-se, então, duas categorias: a)“gêneros primários” (produções “naturais”, espontâneas, da vida
cotidiana) e b)“gêneros secundários”(produções “construídas”, institucionalizadas, produções elaboradas que derivam dos
primários).
Essa categorização do discurso leva à ancoragem do conceito de dialogismo e, posteriormente, de
heterogeneidade constitutiva, nos quais se entende que qualquer texto/enunciado é dominado pelo interdiscurso, é tecido
dos discursos do outro. Claude Duchet (apud VIGNER, 2002) observa: “Não existem textos ‘puros’.”
Estabelecendo, então, uma ponte com os estudos em Linguística Textual e, mais especificamente, com a
sugestão dos sete princípios de textualidade proposta por Beaugrande e Dressler (1981), voltamos a nossa atenção para o
princípio da intertextualidade, princípio esse que se relaciona com os fatores que fazem a produção e a recepção de
um texto depender do conhecimento de outros textos. Conforme observa Bazerman (2007:92): “A intertextualidade
constitui uma das bases cruciais para os estudos e a prática da escrita. Os textos não surgem isoladamente, mas em
relação com outros textos”.

3. Intertextualidade e Interdiscursividade
Neste ponto de nossa discussão, parece-nos adequado estabelecer os conceitos de intertextualidade e
interdiscursividade com os quais trabalharemos para efetuar a análise dos textos de Colasanti.
A intertextualidade, aqui, é entendida como o conjunto de relações explícitas ou implícitas que um texto ou
um grupo de textos determinado mantém com outros textos. Conforme afirma Laurent Jenny (1979:14), “(...) a
intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e
assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido”
Ainda com base no trabalho de Laurent Jenny, Valente (2002:180) acrescenta que a intertextualidade pode ser
classificada em:
a) interna – quando o autor cita a si próprio;
b) externa – quando cita outro(s) autore(s). Ela subdivide-se em:
1) explícita – citação na íntegra de uma frase, um verso, um fragmento de texto;
2) implícita – citação parcial, modificada. Esse conceito fundamenta-se no pressuposto de que, conforme
Meserani (2001:72), “todo texto se inscreve na história dos textos antecedentes da sua série ou sistema,
que acabam por codificar a sua produção”.
Segundo ainda este último autor, cada texto “entra numa relação de assimilação e de transformação ou de
transgressão” (MESERANI, 2001:72). Ao estabelecer uma relação negativa com seus modelos o texto opera na

406
transgressão; ao não se estabelecerem como simples relatos de memórias reescrevem as lembranças, operando na
assimilação e na transformação. Embora Meserani faça referência a textos literários, acreditamos aqui que a premissa
também seja adequada a textos não-literários.
Em Intertextualidade: diálogos possíveis, Ingedore Koch (2007) estabelece mais algumas classificações para a
intertextualidade, além das de implícita e explícita, a saber:
a) temática – ocorre entre textos pertencentes a uma mesma área do saber ou uma mesma corrente de
pensamento que partilham temas e se servem de conceitos e terminologia próprios;
b) estilística – ocorre quando o produtor do texto, com objetos variados, repete, imita, parodia certos
estilos ou variedades lingüísticas, como os textos que reproduzem a linguagem bíblica, por exemplo;
c) détournement (ou desvio) – alteração ou adulteração do texto-fonte. Consiste na produção de um
enunciado que possua as marcas linguísticas de uma enunciação proverbial, mas que não pertence ao
estoque dos provérbios reconhecidos, podendo ocorrer por meio de jogos com a sonoridade das
palavras;
d) intergenérica – quando se utilizam gêneros pertencentes a outras molduras comunicativas com o
objetivo de produzir determinados efeitos de sentido;
e) tipológica – usam-se, em modelos mentais tipológicos específicos, sequências de diversos tipos (por
exemplo, uma sequência narrativa no início de uma petição);
f) polifonia – atuam no interior do discurso do locutor perspectivas ou pontos de vista diversos,
representados por enunciadores reais ou virtuais diferentes, sem que se trate necessariamente de textos
efetivamente existentes. Esse conceito de polifonia é uma “versão linguística” do termo bakhtiniano
desenvolvido por Ducrot.
Além dessas classificações, encontramos ainda em Sant’Anna (1985):
a) paráfrase – uma reafirmação de dada obra escrita, da qual se aproxima por extensão; constitui o espelho, o
desvio mínimo. Estabelece-se, então uma equivalência ente dois enunciados, podendo um ser ou não a
reformulação do outro.;
b) paródia – efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas obras contemporâneas, ela
surge como efeito metalinguístico e se define por meio de um jogo intertextual e que se divide em três tipos
básicos: verbal ( com alteração de um ou outra palavra do texto), formal (em que o estilo e os efeitos técnicos
de um escritor são usados como forma de zombaria) e temática (em que se faz a caricatura da forma e do
espírito do autor). Ela constitui o espelho invertido, o desvio total;
c) estilização - técnica cujos efeitos podem ocorrer tanto na paródia quanto na paráfrase e que “reforma
esmaecendo, apagando a forma, mas sem modificação essencial da estrutura” (Sant’Anna, 1985:41). Ela
produz um texto ambíguo, na medida em que carrega um pouco dos dois textos: recorre ao texto original,
mas busca inovação e originalidade em seu próprio texto. A estilização constitui um desvio tolerável, em que
ocorreria o máximo de inovação sem ser subvertido, pervertido ou invertido o seu sentido. A percepção dos
efeitos da estilização como paródia ou paráfrase vai depender do repertório do leitor, que irá perceber ou não
tais efeitos no texto;
d) apropriação – conceito que surge na década de 60 com as Artes Plásticas, refere-se à colagem de objetos
do cotidiano.
Todas as classificações supracitadas em algum momento convergem na observação da intertextualidade nas
produções discursivas, daí a importância de sua citação no referido estudo.

407
Embora a noção de intertextualidade tenha sido apresentada por Kristeva para o estudo do texto literário, ela hoje
se encontra disseminada no estudo de textos de gêneros e funções diversas. É o que ressalta Maria Teresa Gonçalves
Pereira (apud VALENTE, 2002) ao afirmar que o fenômeno também surge “nas pequenas intervenções do dia-a-dia, em
conversas ou situações informais, títulos de obras de meios de comunicação diversos. Aparece para pontuar, esclarecer,
caracterizar melhor determinada situação” (grifo nosso). Percebe-se aí, então, a importância do estudo da
intertextualidade no processo de produção de sentidos. Sem as devidas referências intertextuais o leitor pode vir a ter
dificuldades para atuar como sujeito, leitor crítico do enunciado que se lhe apresenta.
A interdiscursividade, por sua vez, um conceito originário da proposta teórica de Pêcheux, refere-se à memória
discursiva, ou seja, aos vários discursos anteriores e exteriores ao dizer, o qual é constituído no momento da enunciação,
mas os dizeres anteriores o constituem enquanto interdiscurso.
Gouvêa (2007) cita Fiorin que define interdiscursividade como “o processo em que se incorporam percursos
temáticos e/ou percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”. Assim, segundo os conceitos até aqui
apresentados, entendemos o interdiscurso como pertencente ao que Fiorin (1998), denomina de “coerência extratextual”,
aquela que diz respeito à adequação entre o texto e uma “realidade” exterior a ele.
Ademais, há que se considerar outros dois conceitos básicos relacionados ao estudo da interdiscursividade
(FIORIN, 2004:40), a saber:
a) universo discursivo – conjunto de formações discursivas de todos os tipos, que interagem numa dada
conjuntura; é constituído de muitos campos: o político, o religioso, o filosófico etc.
b) campo discursivo – conjunto de formações discursivas que estão em concorrência (por exemplo, o político,
o religioso), que se delimitam reciprocamente, em uma região determinada do universo discursivo. Cada
campo discursivo é, de forma dialética, constituído de vários espaços – os interdiscursos (FIORIN, 2004).
Charaudeau e Maingueneau (2008) citam Courtine ao dizerem que o interdiscurso é “uma articulação contraditória
de formações discursivas que se referem a formações ideológicas antagônicas”, formações ideológicas essas aqui
entendidas como “posições políticas e ideológicas, que não são feitas de indivíduos, mas que se organizam em formações
que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação”. Em seu seio, essas formações incluem uma
ou mais formações discursivas interligadas, determinando o que pode e deve ser dito.
Segundo os mesmos autores, também se chama de interdiscurso o conjunto de unidades discursivas (discursos
anteriores do mesmo gênero, assim como discursos contemporâneos de outros gêneros) com os quais um discurso entra
em relação implícita ou explícita. De acordo com tal conceito, não necessariamente há uma oposição ideológica entre os
diferentes gêneros ou campos discursivos, ou seja, entre as formações discursivas.
Na relação entre intertextualidade e interdiscursividade, pode-se afirmar que:
a) a intertextualidade está em relação direta com outros textos, pré-existentes, assim como a
interdiscursividade o está em relação a outros discursos;
b) a interdiscursividade não implica a intertextualidade, mas que o contrário é verdadeiro, visto que “ao se
referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta” (cf. FIORIN, 2003 apud GOUVÊA, 2007).

4. “Eu sei, mas não devia” – proposta de análise


O livro Eu sei, mas não devia (Editora Rocco, 1996) reúne crônicas jornalísticas de Marina Colasanti, escritas no
período de 1972 a 1996. Com esse livro, Marina conquistou o Prêmio Jabuti em 1997.
Por si só, o gênero discursivo ao qual pertencem os textos já estabelece uma relação com o tema da análise –
num intertexto (e interdiscurso) com o gênero jornalístico, as crônicas estabelecem uma visão da autora sobre fatos do

408
cotidiano os quais, no jornal, seriam enfocados de outra forma, sem espaço para um esboço de entretenimento ou de
reflexão crítica. Aqui, abrimos espaço para uma pequena intervenção da teoria literária e destacamos uma afirmação de
Massaud Moisés (1990:247):

(...) a crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina, inicial e precipuamente, a
ser dada no jornal ou revista. Difere, porém, da matéria substancialmente jornalística, naquilo em que,
apesar de fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo,
confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades
latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício.

Nessas virtualidades latentes é ressaltado o “exterior constitutivo”, o “já dito” sobre o qual o discurso se constrói
(FIORIN, 2004). Passemos, então, à análise dos três textos selecionados que compõem a coletânea.

4.1. “Eu sei, mas não devia” – o título e a crônica


Comecemos por um dos primeiros elementos avaliados em qualquer trabalho com textos – o título. O título da
coletânea constitui a primeira instância de intertextualidade que se pode observar. No título do livro, se avaliado em relação
à crônica homônima, a qual é anterior a sua organização e que não foi escrita para compor o mesmo, pode-se observar
uma intertextualidade do tipo interna.
A crônica foi escrita para o Jornal do Brasil em 1972, durante o Governo Médici, período no qual se observa o
auge da repressão política no Brasil, inclusive dos órgãos de imprensa, embora houvesse uma campanha de defesa do
ufanismo nacionalista, com palavras de ordem e de cooperação como “Brasil, Ame ou Deixe-o”. Logo, a crônica pode ser
contextualizada como uma produção discursiva (de ordem ideológica) de sobrevivência e resistência.
Dessa forma, embora Marina Colasanti tenha assinalado no prefácio “(...) justamente essa crônica hesitei em
publicar, temendo que expressasse emoções por demais pessoais.” (grifo nosso), criando a ilusão de que ela seria “a
origem” do seu dizer, o discurso evidencia, já no título, uma reprodução do que era dito (e sentido) pela sociedade brasileira
da época. Ou seja, o dizer “Eu sei, mas não devia” nos revela uma significação de caráter histórico e político.
Destarte, não se pode negar a presença da interdiscursividade por todo o texto, inclusive na constatação que dá início
ao texto – “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.” – numa demonstração de uma luta pela sobrevivência, de uma
resistência embora coroada por uma noção da necessidade de (re)ação. É nessa interdiscursividade que Marina ganha
empatia de seus leitores que se reconhecem em seu texto.
Logo, no primeiro parágrafo encontramos outra instância de interdiscursividade:
(1) A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não
as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não
olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.

Observamos aí uma alusão ao “Mito da Caverna”, de Platão – quem mora de fundos tem uma visão limitada do
seu entorno, tem pouca luz em seu apartamento, e, as cortinas, iluminadas pela luz superficial, contribuem para as imagens
destorcidas. Os itens lexicais “fora” e “amplidão” funcionam como termos anafóricos para “vista”, que se amplia para o
“universo” se considerarmos a gradação “sol”, “ar”, “amplidão”, em direção ao ilimitado, em oposição ao limitado lado de
dentro.
Em
(2) A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para
ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a
pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho,
para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra. (p.09-10)

409
por meio das múltiplas vozes que se ouvem na voz de Marina, constatamos também uma filosofia quase estoica, de quem
está resignado com o seu sofrimento, mas que revela um conformismo inconformado.
(3) A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio,
a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.(...) (p.10)

(4) A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma
para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e
(5) baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. (p. 10) (grifo
nosso)
No trecho (3) observamos também outro traço da memória discursiva social em “Em doses pequenas, tentando não
perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.”, que nos remete a um diálogo
interdiscursivo com a medicina homeopática, a qual estabelece o tratamento baseado no uso de doses diminutas (“doses
homeopáticas”) de remédios que, em grandes dosagens, podem produzir efeitos semelhantes aos da doença que está
sendo tratada. As doses diminutas dos componentes da medicação despertam a menor reação possível no organismo do
paciente. Na crônica, a autora pretende que a dor, o ressentimento, a revolta não tomem conta dela, ou seja, que não
“exerçam reação (negativa, perniciosa) em seu ser”.
No trecho (4) observamos as alusões a aspectos da prática de instituições militares para “manter a ordem” do Estado,
durante o Regime Militar no Brasil, conforme expressões como “preservar a pele”, “poupar a vida”, entre outras.

4.2.“Tão ricos em pobres”


Já no título observamos uma instância de interdiscursividade, na qual há uma referência à terminologia de que
médicos e nutricionistas utilizam ao falarem do valor nutricional dos alimentos (por exemplo, “alimentos ricos em...”). No
caso em questão, a autora, numa forma de paródia, produzida a partir de uma intertextualidade implícita, refere-se aos
países, pobres ou não, com um grande número de pessoas vivendo em condições de pobreza. O desvio do sentido opera
no sentido de propiciar a constatação crítica.
Aqui também, como no primeiro texto, a presença de outras vozes é ressaltada em trechos como:
(6) Para este menino e para sua família, já pago alimentação, escola, assistência médica e
habitação. Ou deveria pagar. Ou melhor, pago, embora eles não vejam a cor do dinheiro que sai do
meu bolso de contribuinte polidescontada, e continuem ignorantes, famintos, doentes e desabrigados,
obrigados a me pedir, pela mão do menino, um pacote de biscoitos que pago de má vontade,
calculando mentalmente quanto do meu salário vai-se por conta dessa gente, com tão magros
resultados. (p.11)

(7) Um pobre é caro. Dois pobres são muito caros. Três pobres são caros demais. Deve ser por
isso que volta e meia lemos nos jornais que a miséria no país – ou no estado ou na cidade – está
alcançando níveis intoleráveis. Não há de ser para a consciência. Para a consciência a miséria é
intolerável, ou não é, independente de quantidade. Para o bolso sim, os níveis fazem toda a diferença;
um pobre é insignificante, dois pobres são toleráveis, três pobres não dá para encarar. (p. 11)

(8) Mas, curiosamente, é para a consciência que se apela toda vez que os níveis sobem, e
ameaçam os bolsos da nação. (...) Mais eficaz seria expressar a verdadeira preocupação, falar nos
claros termos do nosso cotidiano, mostrar as contas. (p.11-2)
No trecho (5), o discurso é o do cidadão aborrecido (numa fala social e culturalmente divulgada) por ser tão
descontado em impostos que deveriam ser utilizados para ajudar os mais pobres, mas também é uma voz crítica que
aparece na forma de um sentimento de afrontamento (e por que não) de culpa quem vem à tona quando o menino pede que
pague o pacote de biscoito. Esse diálogo só pode ser concebido se entendemos o texto como dialógico, segundo um
entrelaçar de discursos, de interdiscursos.

410
O trecho (6) inicia-se e encerra-se com uma paródia da expressão popular “Um é pouco, dois é bom, três é
demais”, expressão de grande penetração em muitos meios discursivos. No primeiro momento, essa paródia dá início ao
comentário crítico da autora sobre a “banalização” da pobreza, principalmente para os cidadãos (e nesse grupo ela está
incluída), os políticos e os meios de informação como os jornais (fato esse ressaltado pelo uso da expressão adverbial
“volta e meia”) – a notícia se repete e nada muda. A consciência só fala quando se depara com a pobreza frente a frente -
“Para a consciência a miséria é intolerável, ou não é, independente da quantidade”.
Porém o mesmo não acontece com o bolso de cada cidadão – conforme aumentam os níveis de pobreza, mais se
justifica o aumento dos impostos. E aí entra o segundo momento da referência paródica usada anteriormente - ela retorna
para dar vazão à constatação de que a existência concreta “pesa” no bolso do contribuinte.
Todavia, é para essa mesma consciência (do cidadão pagador de impostos) que os políticos apelam, conforme se
observa no trecho (7). O uso do índice de indeterminação do sujeito (se apela) perde sua força de indeterminação se
entendemos a interdiscursividade latente - é o político falando com o cidadão. Novamente, percebemos Colasanti criando
a ilusão de que ela seria a autora da crítica, do seu dizer (“Mais eficaz seria expressar a verdadeira preocupação, falar nos
claros termos do nosso cotidiano, mostrar as contas.”), embora o discurso evidencie, em um processo de
interdiscursividade, uma reprodução do que era dito (e repetido e até banalizado) pela sociedade brasileira.
Por fim, Colasanti encerra seu texto com um parágrafo irônico em sua totalidade:
(9) Justiça seria a criação do Mercado Comum da Miséria, para a negociação dos pobres
excedentes e estabelecimento de severos níveis internacionais, destinados a fornecer mão de obra
barata a quem dela precisa, e a evitar o constrangimento dos países que, pobres em dinheiro, são tão
ricos em pobres. (p. 13)
Retoma a interdiscursividade referente ao valor dos alimentos, estabelecendo uma ponte com a riqueza de pobres
em países pobres em dinheiro. Observa-se também uma paródia ao Mercado Comum Europeu em “Mercado Comum da
Miséria”.

4.3.“O nome da rosa talvez seja lótus”


Nessa crônica, Colasanti fala claramente dos fenômenos da intertextualidade e da interdiscursividade na criação
literária. Fala de como a história das artes “está cheia de apropriações, de recriações, a partir do gesto ou do pensamento
alheio” (p. 38). O próprio título da crônica, numa intertextualidade implícita ao romance (posteriormente adaptado para as
telas do cinema) O nome da rosa, de Umberto Eco já nos fornece uma dica do tópico em si. A trama principal do romance –
a morte por envenenamento de sete monges, em um mosteiro medieval, após folhearem as páginas envenenadas de um
livro - pode ser encontrada na introdução do livro Ching P’ing Mei, clássico chinês do século XVI, de Wang Shih-Chêng,
com edição italiana de 1956.
Logo, O nome da rosa seria, na verdade, outro texto em sua origem, “um discurso que traz ‘outro’ em seu bojo”
(FIORIN, 2004). Ou seja, o romance italiano teria surgido, na verdade, sob influência do texto chinês – daí a referência à flor
lótus, símbolo da expansão espiritual, do sagrado, do puro no Budismo, uma das religiões da China, depois do
Confucionismo e do Taoísmo.
A autora então se posiciona em relação à criação literária a partir do interdiscurso – ela demonstra como no
processo de criação o mais importante (e delicado) é o processo de adaptação de uma ideia já existente. Relata:
(10) (...) não há dúvida de que Wang agiu com mais segurança, uma vez que o papel chinês era
“muito fino” e o leitor não poderia deixar de umedecer o dedo. Já Eco precisou tomar algumas
preocupações. Embora o papel fosse há muito conhecido no oriente, só começaria a ser produzido, no
Ocidente em 1276, na cidade italiana de Fabriano, e só na segunda metade do século XIV seu uso
para fins literários estaria generalizado. Um manuscrito antiqüíssimo, custodiado num convento, e
folheado no ano de 1327, corria o sério risco de ser de pergaminho, o que inviabilizaria todo o esquema
do veneno. (p.39)

411
Comenta, então, sobre uma segunda influência sobre Eco – a influência de Jorge Luís Borges, autor que “melhor
lidou com o tema do manuscrito perdido e reencontrado, que é a base da Rosa (...)” (p.39) - e encerra com uma citação de
Eco,em entrevista a Jair Rattner da Folha, sobre a produção artística da Renascença e de outras épocas em comparação
com as produções de hoje: “ (...)“Hoje nós estamos cada vez mais produzindo coisas que (...) sabemos que não são únicas,
porque amanhã outra pessoa pode produzir qualquer coisa mais ou menos similar” (p.40) (grifo nosso), numa
justificativa para a intertextualidade e interdiscursividade como elementos constitutivos de um texto, como elementos
relacionados à produção de sentidos. Em outras palavras, encontramos nessa crônica um metatexto sobre esses processos
metalinguísticos de produção de sentidos - a intertextualidade e a interdiscursividade.

5. Conclusão
Tendo em vista a análise realizada, é possível verificar que tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade
constituem processos que permitem que se diminua o limite entre o literário e o não literário, uma vez que ao se reconhecer
(ao reconhecer sua voz) no texto, o leitor se permite atuar no imaginário social do texto, tornando a produção de sentidos
proposta muito mais significativa.
Seguindo ainda nessa mesma linha de pensamento, é possível, também, observar como a escolha dos
interdiscursos (consciente ou inconscientemente) permite-nos situar o leitor possível para o texto, visto que todo
interdiscurso vem carregado de formações ideológicas que se inserem nesse universo discursivo. Por essa razão,
Maingueneau (1997) afirma que o interdiscurso prima sobre o discurso, ou seja, não se pode analisar o discurso sem
considerar os discursos que nele se inserem, de forma antagônica ou não. Assim, embora tenhamos limitado a nossa
análise às crônicas de Marina Colasanti, fortalece-se o conceito de que a interdiscursividade e a intertextualidade são
elementos imprescindíveis para a construção do discurso, para a compreensão de qualquer produção enunciativa, inclusive
desse texto acadêmico.

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Ângela Cristina Rodrigues de Castro é professora de EF/EM do Colégio Militar do Rio de Janeiro (CMRJ), com Graduação
em Letras (Português-Inglês) e Mestrado Interdisciplinar em Linguística Aplicada pela UFRJ. Atualmente é doutoranda em
Língua Portuguesa na UERJ, sob orientação do Professor Doutor André Crim Valente. E-mail: rcastrocristina@gmail.com

413
Ferramentas do texto

CHAVES, Charleston
(UERJ)

INTRODUÇÃO
Que são ferramentas do texto? Para que servem? Do ponto de vista do produtor do texto são algumas das marcas
deixadas que revelam suas intenções. Em relação ao leitor, são algumas das pistas que devem ser percebidas e que
possibilitam a compreensão do texto. O objetivo deste trabalho é, pois, este: analisar o papel de certos elementos
gramaticais que funcionam como conectivos – “isto é os morfemas que têm por função ligar dois enunciados”
(MAINGUENEAU:1997:160), (principalmente conjunções, preposições e advérbios), que são importantes para interpretar
um texto. Este trabalho estará baseado nos pressupostos da Lingüística Textual, cuja metodologia será avaliar textos
com base argumentativa e analisar as pistas gramaticais / ferramentas utilizadas (pelos autores) com o objetivo de
revelar suas intenções argumentativas. Isso não quer dizer que um texto seja apenas compreensível tomando como
base conhecimentos gramaticais, pois conhecimento do tema / assunto também é imprescindível. Entretanto, de nada
adianta saber o assunto se não houver, por parte do leitor, o conhecimento linguístico necessário para perceber os
mecanismos gramaticais utilizados para construir a idéia defendida.
A partir da década de 60 surgiu uma corrente lingüística preocupada com o texto, porque já não se satisfazia mais com
a gramática da frase ou da palavra (FÁVERO & KOCH: 2002:11): a lingüística textual. É bem verdade que há dois
aspectos imprescindíveis para a compreensão de um texto: o saber lingüístico e o saber enciclopédico.
Um desses aspectos, que é o saber enciclopédico (de mundo), certamente é imprescindível para compreender um
texto, mas não o único. De nada adianta conhecimento do assunto, se o leitor não domina as ferramentas necessárias
para reconhecer os encadeamentos sintáticos que possibilitam a compreensão textual.
Em relação ao conhecimento de mundo, é necessário observar o fragmento do texto abaixo para entendermos melhor
isso:
Para os economistas, considerar o consumo como um princípio organizador do sistema não é novidade... Já no plano
filosófico e cultural, o consumismo tem sido alvo de análises e críticas, principalmente a partir da “revolução” hippie dos
anos 60. Janis Joplin pedia então a Deus que lhe providenciasse um Mercedes Bens.
“All my friends have Porsches” justificava a humorada canção de protesto. A quem interessar possa,o Porsche psicodélico
da mesma Janis Joplin está atualmente no saguão de entrada de uma exposição sobre criatividade no Museu de Arte
Moderna de S. Francisco. (...)
(SCHUWARTS: 2000)

Nota-se que nesse texto, há uma série de pré-requisitos em relação ao saber de mundo para compreensão do mesmo.
Um deles é a menção que se faz à revolução hippie dos anos 60. O autor parte do princípio que o seu leitor deva
compartilhar do conhecimento prévio de saber em relação ao que representou tal movimento e que, por isso, há uma
crítica ao consumismo, ainda mais na figura da cantora Janis Joplin, um dos maiores ícones de tal movimento. Além
disso, a referência à exposição em museu do Porshe da canção é um comentário que está revestido de crítica, mas que
só é percebida por conta do conhecimento enciclopédico, já que a cantora, símbolo do movimento que criticava o
consumismo desenfreado motivado pelo capitalismo, rendeu-se ao próprio consumismo, pois mesmo desdenhado dos

414
valores de consumo,estava atrela da a ele.
Entretanto, o que propicia um amplo conhecimento dessas relações semânticas, dessas construções de sentido são
certos elementos lingüísticos. Esses elementos funcionam como verdadeiras ferramentas que precisam ser
reconhecidas pelo leitor, a fim de que ele compreenda um texto. São pistas lingüísticas, parte da estratégia
argumentativa produzida por um autor. E dentre os elementos importantes nessa elaboração de sentido estão os
conectivos (conjunções, preposições, advérbios...) que representam as marcas discursivas na elaboração de sentido.
Portanto, essas “ferramentas” do texto são importantes na constituição / construção do sentido. Segundo Leonor Fávero
e Ingedore Koch em “Lingüística Textual” (2002:47-49), os textos argumentativos obrigam o leitor (teoria defendida por
DUCROT e WIENRICH) a perceber certas pistas para que se chegue a determinadas conclusões.
Um exemplo disso no texto inicial em análise é a utilização do conectivo “já” em “Já no plano filosófico e cultural” que
contextualmente inicia uma construção frasal que possui valor de aposição ao que havia sido dito anteriormente e quem
proporciona tal aspecto é justamente o vocábulo em questão, claramente com função textual de conectivo adversativo,
semelhante à conjunção adversativa “mas“. E esse fator é imprescindível para entendimento do texto, porque introduz a
referida crítica ao consumismo. O contraponto é alcançado quando se percebe que a preposição PARA que abre o texto
orienta um valor avaliativo no que se refere aos economistas considerarem o consumo como algo normal, mas os que
representam o “plano filosófico e cultural” não consideram da mesma forma. O reconhecimento desses valores por parte
do leitor é fator determinante para que compreenda o exemplo apresentado posteriormente e que respalda a crítica feita
à impossibilidade de se desvincular completamente do consumismo.
Percebe-se, então, que esses elementos que compõem o tecido textual são importantíssimos para sua articulação e
possibilitam que o leitor possa perceber com mais segurança os sentidos inerentes ao discurso.

ABORDAGEM TEÓRICA : GRAMÁTICA TEXTUAL


O estudo baseado na gramática textual possibilita um grande número de recursos para compreensão, afinal de contas
o leitor que domina tais recursos tem a competência maior de dialogar com maiores condições com o texto. É na década
de 60, na Europa, que surge o estudo das gramáticas textuais, porque a gramática da frase já não supria todas as
necessidades para identificação do sentido textual. Segundo OLIVEIRA (2005: 46), passou-se também a chamar-se, na
mesma época, gramática textual de lingüística textual. A rigor querem referir-se ao mesmo fato, ou seja, que os aspectos
lingüísticos precisam ser explicados textualmente e não por meio de frases se contexto.
É nesse ínterim que surge a importância de valorizar certas ferramentas - preposições, conjunções, advérbios - que
promovem encadeamentos, “costuram’ os elementos textuais, dando sentido mais visível.

OS CONECTIVOS E AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS


Segundo Leonor Fávero e Ingedore Koch (2002:47-49), os textos argumentativos obrigam o leitor (teoria defendida por
DUCROT e WEINRICH) a perceber certas pistas para que se chegue a determinadas conclusões. Para tal análise, “o
valor semântico de uma frase argumentativa contém, entre outros elementos, o conjunto de instruções concernentes às
estratégias a serem seguidas para a decodificação de seus enunciados.” (FÁVERO & KOCH:2002:48). São justamente
essas estratégias que devem ser dominadas pelo leitor, que foram especificamente construídas, por exemplo, com
certos conectivos que fornecem não só progressão ao texto, como também valores semânticos, dentre deles : mas,

415
embora, já que, para, já, mesmo, entretanto,e, dentre tantos outros possíveis. Importante saber que alguns desses
conectores podem ligar tanto frases como até mesmo parágrafos. Além disso, os valores são as marcas discursivas,
pensando o texto como uma unidade de sentido.
É fundamental observar como isso se constitui. O texto abaixo possui certos conectores que exercem papel
imprescindível na linha argumentativa.
Os principais problemas da agricultura brasileira referem-se muito mais à diversidade dos impactos causados pelo caráter
truncado da modernização, do que à persistência de segmentos que dela teriam ficado imunes. Se hoje existem milhões de
estabelecimentos agrícolas marginalizados, isso se deve muito mais à natureza do próprio processo de modernização, do
que à sua suposta falta de abrangência. (FOLHA DE SÃO PAULO: 1994:2)

Um exemplo disso é o reconhecimento do comparativo muito mais / do que, com a presença da conjunção
comparativa QUE. Nesse caso, o leitor que domina e percebe tal recurso linguístico tem possibilidade de compreender
que a “persistência de segmentos” no setor agrícola brasileiro é menos importante que os problemas que se referem “à
diversidade de impactos causados pelo caráter truncado da modernização”, ou seja, os problemas da agricultura
resultam muito mais da inadequação (“caráter truncado”) do processo de modernização do setor.
Observa-se, então, que há um caráter hierárquico dos problemas no setor agrícola brasileiro promovido pelo uso do
grau comparativo de superioridade mais / do que e que não pode ser lido de outra forma, com a penalidade de resultar
prejuízo de sentido.
E não é só isso. A linha argumentativa se solidificou na progressão do texto com o conectivo SE. Embora tal conectivo
esteja revestido semanticamente de valor condicional, na verdade, a oração que ele inicia - “Se hoje existem milhões de
estabelecimentos agrícolas marginalizados” - é conseqüência do que se enuncia posteriormente - “ isso se deve muito
mais à natureza do próprio processo de modernização” - , isto é, a existência de milhões de estabelecimentos agrícolas
marginalizados (efeito) possui um motivo (causa), que é por conta da natureza do próprio processo de modernização do
setor (“caráter truncado” / inadequado). Reconhecer isso é de suma importância no texto para o processo - leitura, ainda
mais quando o autor estabelece mais um eixo comparativo de superioridade (“muito mais” / “do que“) afirmando que a
natureza inadequada do processo de modernização é mais importante dentro desta CAUSA do que à “suposta falta de
abrangência” no setor agrícola. Nota-se, então, que a linha argumentativa precisa se estruturar, embasada em certos
elementos lingüísticos.
CONCLUSÃO
Portanto, o reconhecimento de tais aspectos não só comprova que a gramática no texto é a mais completa para a
compreensão dos fenômenos da língua como também que um texto torna-se mais compreensível quando um leitor
domina tais conhecimentos gramaticais. Não é negado aqui que o conhecimento de mundo seja também imprescindível
para compreensão textual, mas o domínio de certos fenômenos lingüísticos, certamente, contribui consideravelmente
para tal propósito.
REFERÊNCIAS

FÁVERO, Leonor Lopes; KOCH, Ingedore Villaça. Lingüística Textual. Editora Cortez. 6ª edição. São Paulo. 2002.

GUIMARÃES, Elisa. A articulação do texto .Editora Ática. São Paulo. 1990.

KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. Editora Contexto.6ª edição. São Paulo. 2001.

416
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997.

NEVES, Maria Helena de Moura. A Gramática: história, teoria e análise, ensino. Editora Unesp. São Paulo. 2002.

OLIVEIRA, Aileda de Mattos. Gramática Textual: um ponto de vista. In: Livro da VIII SENEFIL - revista Philologus,
ano 10, n.º 30 - suplemento. CEFEFIL. 2005

SCHUWARTS, Gilson. Do consumidor ao cliente, In. Folha de S. Paulo. Caderno Mais. 27/02/00)

CURRÍCULO DO AUTOR:

CHARLESTON DE CARVALHO CHAVES


charlestonchaves@ig.com.br
Doutorando em Língua Portuguesa – UERJ – RIO – MESTRE em Língua Portuguesa – UERJ – RIO.
Vinculado à linha de pesquisa “Formação, Estrutura e Funcionamento da Língua Portuguesa”. Orientador:
CLAUDIO CEZAR HENRIQUES.
TÍTULO: “Os valores dos conectivos no discurso: mecanismos interpretativos.”
Bolsista: CAPES

417
Outros ethè para outro cinema

CHAVES, Fernanda Silva


(UFMG)

1. Introdução

Desde a descoberta da possibilidade de animação das imagens estáticas da fotografia até a atualidade, o cinema,
e a sua tentativa de dizer sobre o mundo e sobre nós, se apresenta como uma fonte próspera de análise para as ciências
do homem e da sociedade.
Da mesma forma, o cinema se consolidou como objeto de pesquisa na multiplicidade de corpora que a ciência da
linguagem abriga. Sobretudo para os pesquisadores da atualidade.
Especificamente no que tange o cinema documental, os estudos atuais se voltam para o boom do documentário1.
Segundo o que defendem Lins e Mesquita (2008), neste movimento é marcado pela presença cada vez maior das imagens
“reais” em diversas formas de expressão artística e midiáticas que, pontuam, parece imprimir um “efeito de realidade” –
ainda que de forma limitada e domesticada – à assepsia que imperava nas imagens documentais nos anos de 1990,
sobretudo no telejornalismo. Especificamente no Brasil, as autoras ainda citam como outros aspectos que contribuíram para
essa nova ordem do documentário o surgimentos dos reality shows que, indiretamente, suscitam questões que atingem a
prática documental e a inserção de imagens documentais nas galerias e museus sob forma de vídeo instalação.
O desafio desta proposta é discutir como o cinema documental brasileiro contemporâneo (pós década de 1980)
apresenta novas possibilidades de construção ethótica (imagens de si), por meio das suas novas propostas estéticas e
narrativas.
Para tal, partimos da percepção de que dois movimentos contribuem diretamente para estabelecer essas novas
possibilidades: o diálogo íntimo dessas produções com a vídeoarte (e a forma como alocam o sujeito o cerne do discurso) e
a disseminação dos novos dispositivos de registro de imagens (como a câmera digital portátil, a webcan e os celulares) que
possibilitam a inserção das imagens documentais – e seus sujeitos ali representados - para os suportes midiáticos, a
internet e os programas de TV.
Na tentativa de apontar uma, das muitas, possibilidades de estudo das novas formações ethóticas a partir do
cinema documental contemporâneo, apresentaremos neste estudo as analises preliminares da nossa pesquisa que,
antecipamos, ganha forma à medida que se desenha. Nossa empiria se volta para o documentário “Rua de Mão Dupla2” do
cineasta e artista plástico mineiro Cao Guimarães.
Como referencial teórico da Análise do Discurso, utilizamos os estudos de Auchilin (2001), Maingueneau (2009),
Amossy (2005) e Charaudeau (2006).Já em relação ao cinema documental contemporâneo, utilizamos como pilar teórico os

1Para as autoras, o boom do documentário é marcado pela interesse cada vez maior de realizadores, críticos, pesquisadores e público
pelas produções documentais. Tal movimento, defendem, pode ser percebido pelo aumento do número de produções dentro e fora do
país, ampliação dos editais de fomento público ou outras formas de incentivo para essas produções e o aumento dos festivais e eventos
voltados especificamente para o cinema direto.
2 Cf. em www.caoguimaraes.com.br

418
estudos da pesquisadora Consuelo Lins Mesquita (2009), da obra de Consuelo Lins e Cláudia Mesquita (2008) e do
pesquisador Cesar Migliorim (2005) e dos pesquisadores Felipe Freitas (2007) e César Guimarães (2006) da Faculdade de
Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais.
Pretendemos ao final deste estudo, apontar caminhos para as possibilidades de reflexões acerca do ethos que o
cinema documental brasileiro contemporâneo, certamente, oferece.

2. Desenvolvimento

2.1 O singular

Antes de falarmos do documentário contemporâneo, é preciso que retomar alguns aspectos das produções
documentais nacionais modernas. Segundo Lins e Mesquita (2008) esse período data dos anos de 1960 e 1970, são filmes
de curta ou média metragens e circulação restrita, realizados, sobretudo, por documentaristas ligados ao Cinema Novo3.
Esses filmes, segundo defendem as autoras, abordam criticamente problemas e experiências das classes
populares, rurais e urbanas nos quais emergem as minorias brasileiras (o “outro de classe”). Nesse contexto, “dar voz ao
outro” desconhecido torna-se questão importante para o cineasta, e a entrevista torna-se um procedimento privilegiado. A
“voz do povo” é um elemento presente, mas ela não é ainda o elemento central da narrativa. Esta voz é mobilizada,
sobretudo, para a obtenção de informações que apoiavam os documentaristas na estruturação do discurso argumentativo,
base da produção.
Ainda segundo as autoras, entre as conseqüências estéticas desse sistema de produção estariam a dominância
do verbalizável sobre as outras formas de discurso; a fraca capacidade de transformação de situações reais mutáveis
(todos os dias essa realidade é assim?); a repetição daquela mesma configuração espacial da entrevista e a ausência de
relação entre os personagens (presos, cada um, em seu tempo e seu espaço e centrados na relação cineasta e
entrevistado).
Lins e Mesquita (2008) fazem menção a Jean Claude-Bernadet (2003), que, nos seu livro “Cineastas e imagens
do povo” (1985), classifica tais produções como “documentários sociológicos”. Para Claude-Bernadet, esse tipo de
produção se atém à dicotomia cineasta-objeto. Além do mais, estão centradas em temáticas relacionadas à experiência do
“outro de classe” com a representação fetichista e sacralizada, sem que se estabeleça um diálogo. “Tudo o que diz o pobre
vale. Não vamos contradizer o pobre, que isso implicaria uma colaboração com os mecanismos de opressão – entrevistado
pobre é um tanto sacralizado” (LINS, C. MESQUITA, C. 2008 p. 30 apud J-C Bernadet, 2003. p. 295)
Para Lins e Mesquita (2008), já na década de 1970 vieram as primeiras produções que mudaram a ordem dos
“documentários sociológicos”. Essas, explicam, buscaram promover o sujeito da experiência à posição de sujeito do
discurso. O “outro de classe” torna-se sujeito da produção de sentido sobre sua própria experiência.
As décadas de 1980/1990 marcam a fase contemporânea do documentário brasileiro. Suas produções se vêem
obrigadas a estabelecerem uma relação incontornável com a mídia (sobretudo a televisão). Também é nesse período que
emergem o que Lins e Mesquita (2008) intitulam “documentário dispositivo” que, em síntese, remetem à criação, pelo

3 Segundo Leite (2005), a fase do cinema nacional intitulado como Cinema Novo correspondeu aos anos de 1962 a 1969, em plena

Ditadura Militar brasileira. Os diretores ligados a essa fase assumiram uma posição de vanguarda ao trazer para suas produções a
discussão dos grandes problemas sociais brasileiros. Geralmente à margem dos esquemas industriais de produção, as produções do
Cinema Novo eram feitas “com uma câmera na mão, e muitas ideias na cabeça”.

419
cineasta, de um artifício ou protocolo produtor de situações a serem filmadas. Trata-se da maquinação de uma lógica que
institui condições, regras e limites, para que o documentário aconteça.
As autoras pontuam que também é da ordem do artifício (da maquinação) produzir, nessas produções, encontros
para serem filmados ou seguir pessoas por um determinado período. Questionam o porquê das produções documentais não
brotarem do que é espontâneo e natural, com suas pessoas e situações autênticas “são, sim, gerados pelo mais ‘puro’
artifício, na acepção literal da palavra: ‘processo ou meio através do qual se obtém um artefato ou objeto artístico’, segundo
o Dicionário Aurélio” (Lins e Mesquita, 2008. P. 58)
As novas produções do cinema documental contemporâneo buscam uma dimensão mais plástica e mantém certa
atenção com os parâmetros de imagem, em um cruzamento com a videoarte e as artes plásticas. Destacando as produções
mineiras, Lins e Mesquita (2008) afirmam que tais filmes parecem se produzir na encruzilhada entre a experimentação
formal e a linguagem (em convergência com procedimentos das artes contemporâneas) e os desafios postos pelo
relacionamento com o “outro” (mais próprios à tradição documental).
Para Lins (2009) o documentário enquanto campo de prática diversificada tem contaminado diferentes estéticas e
se infiltrado cada vez mais em múltiplos domínios das artes visuais “adquirindo uma nobreza artística que lhe foi recusada
ao longo da história”.
A autora defende ainda que o alcance do dispositivo fílmico ligado às artes é outro. Entende que tais artistas que
estabelecem este diálogo retomam uma espécie de “maquinaria da incitação” que impõe outra lógica; uma forma que
permite o deslocamento das visões estabelecidas (próprias das produções que se preocupam com o registro do “real),
criando novas maneiras de ver e ser. Dessa forma, argumenta, possibilitam a experimentação de outras sensações,
narrativas, de espaço e de temporalidade.
A estudiosa entende ainda que os dispositivos ligados a arte inovam por sua dimensão reflexiva que deixa claro
no contrato com o espectador seu caráter de artefato (onde estão explícitas as regras do jogo). A produção se estabelece
dessa forma como um convite à experimentação e a reflexão. O filme não resolve o mundo, não o interpreta; ao contrário,
abre para o espectador um campo de possibilidades, uma multiplicidade de sentidos, forçando-o a pensar.
Já o pesquisador César Guimarães (2006) fala da importância dos estudos sobre os documentários que têm
cedido à noção de representação eleita como principal valor da figuração identitária – individual e coletiva – para tomar a
singularidade como figura lógica e estética e dar conta da aparição do homem ordinário4 no filme documentário.
Para o autor, tais produções oferecem a esses homens sem qualidade a possibilidade de fixação em uma
particularidade determinada, além da chance de exibição do que lhe é peculiar “o parecer simultâneo de suas múltiplas
faces, a impropriedade de seu rosto, a comunicabilidade pura de sua fala, irredutível a uma proposição ou a um conteúdo
determinado”. (2006 p. 41)
O estudioso afirma ainda que para o documentário, o modo de construção ou de captura das diferenças é decisivo
e vital para que tais produções inventem novos processos de abordagem do sujeito filmado e para que este escape da mera
condição de objeto e alcance uma enunciação singular. Guimarães (2006) defende o abandono de abordagens
contextualizadoras no qual a fala surgia minimizada (em sua potência de instituição de sentidos) em favor da adoção de
recursos expressivos que singularizam a experiência dos sujeitos filmados, fazendo valer a dimensão racional do encontro

4 Guimarães (2006) usa essa terminologia a partir da obra de Michel de Certeau (1996) para que definia o homem ordinário como aquele

que lhe é negado o que lhe é próprio. Para Certeau (1993 p. 44), quando um caráter identificador é atribuído a este homem, este vem de
um movimento exterior a ele; por estratégias de inscrição em seu lugar, de suas maneiras de fazer cotidianas.

420
entre realizador e personagem, bem como maior duração dos atos de fala dos entrevistados ou dos parceiros da
conversação.

2.2 Documentário e mídia

Muito além do enquadramento próprio das produções destinadas às salas de cinema e os festivais, as imagens
documentais atravessam atualmente as produções audiovisuais na TV, disponíveis na internet e nos dispositivos móveis de
comunicação (como os celulares).
Segundo Lins e Mesquita (2008), desde o início dos anos de 1980 é possível identificar sinais da relação do
documentário com algo que incontornávelmente ele teria que se confrontar: a mídia.
As autoras estabelecem uma relação entre as imagens da TV que, nos anos pós-ditadura, mostravam um país
harmonioso e higienizado e as imagens trazidas pelos documentários da época, voltadas para grupos sociais até então
invisíveis. Foi na década de 1980 que os temas sociais passaram a fazer parte das produções jornalísticas, conquistando
um público cada vez maior.
Hoje, segundo Para Lins e Mesquita (2008), esses temas comumente associados a um tipo de jornalismo que faz
da miséria um espetáculo midiático. No centro da narrativa, o sujeito e uma extrema variedade nas formas de suas
aparições e representações.
Evidentemente, poderíamos aqui apresentar uma série de teorias de como se dá essa representação do sujeito
ordinário nos programas de TV, dos pontos e contrapontos dessa aparição e da problematização acerca dessa.
Para não corrermos o risco de nos perdermos no meio de um emaranhado de percepções e para não fugirmos
aqui do nosso objetivo de trabalho, nos manteremos na mesma linha teórica do tópico acima. Neste momento é para nós,
importante discorrer sobre a inserção das imagens documentais nos dispositivos midiáticos e, por conseqüência, seus
sujeitos.
Para Guimarães (2006) essa inserção do sujeito ordinário nas narrativas documentais da TV apresenta, à fruição
do público, identidades multi-localizadas e dispersas no espaço. O autor defende que a circulação incessante da
informação, no afã de transmitir o fato em tempo real combinadas com as estratégias onipresentes do espetáculo (que
surpreendentemente se infiltraram nos mais diversos gêneros televisivos, como os realitys) compõem um circuito ardiloso
para quem procura salvar a realidade exterior.
O autor considera que, talvez nunca como antes, os homens ordinários alcançaram tamanha exposição. Fala
ainda da ameaça de que este sujeito seja confundido com um qualquer (comum, genérico) mergulhado em seu cotidiano
atroz, sob a figura um tanto vaga das classes populares. Muito mais do que um produto de representações sociais, o
cinema para Guimarães (2006) é analisador dos sistemas de representação que sustenta novas crenças, valores e práticas
compartilhadas.
Já Lins e Mesquita (2008), a partir de Ivana Bentes (1994) fala de um deslocamento de uma cultura
cinematográfica utópica e modernista para uma cultura audiovisual que nos forma, que nos fornece visões de mundo,
modelos de ação, formas de conduta, expressão e vocabulário. No entanto, a autora defende que este não é uma formação
dominante mas um processo heterogêneo e “em negociação permanente”.
Nele, está inserido o sujeito e a forma como diz de si. Lins e Mesquita (2008) defendem que esses aspectos da
cultura midiática contemporânea produzem situações insólitas onde indivíduos desprovidos de uma educação formal
revelam uma consciência notável a respeito da sua imagem pública. Para as autoras, esses sujeitos exibem uma sabedoria
intuitiva do que pode “funcionar” em uma entrevista; um estado de coisas que deve ser levado em conta. Tratam ainda de

421
um confronto entre um tipo de exibicionismo do sujeito filmado, indissociável do voyeurismo do espectador, que
transformou-se, hoje, em um imperativo de alguns documentários.

2.3 O ethos

Todas essas mudanças na forma de representação do cinema direto nos apontam para a necessidade de nos
aprofundamos nos estudos acerca do ethos.
Longe de considerar que não há mais nada a se teorizar sobre o essa construção, propomos trabalhar, conforme
sugere Maigueneau (2009) com a dimensão mais “intuitiva” do termo e sua proximidade com o ato de linguagem. Aquela
que não reduz a problemática do ethos à interpretação dos enunciados e sua simples decodificação. Tampouco, aos
discursos descontextualizados da cena da enunciação.
Dentro dessa abordagem, validamos aqui as dificuldades de conceituação da própria noção de ethos apontadas
pelo autor, bem como a perplexidade da elaboração dessa construção mobilizadora da percepção e da afetividade do
intérprete que extrai as informações do seu contexto sócio-histórico-cultural (além do material lingüístico que dispõe) como
condição para a emergência de um ‘efeito de ethos’.
Maingueneau (2009) abre o questionamento sobre quais os elementos do quadro da comunicação influenciam a
construção do ethos pelo destinatário, e em qual proporção o fazem. Vem também do estudioso o entendimento de que o
reaparecimento dos estudos sobre a noção de ethos (que datavam dos anos 1960 a 1980) foram impulsionados pelos
discursos inseridos nos meios audiovisuais (cita como exemplo a publicidade) e o processo de persuasão onde se
inscrevem. Questiona, então, o que está para a problemática do discurso, em jogo com a noção de ethos hoje?
Agregamos a esta indagação a designação da visão de ethos dialogal trazida por Auchilin (2001). O autor
considera o ethos como uma noção de ordem prática cujo o valor essencial é preciso ressaltar. “Por trás de uma aparente
simplicidade, o ethos é o ar, tom, estilo daquele ou aquela que fala. É como o locutor se diferencia da maneira pelo qual ele
se vê”. (Auchilin, 2001. p. 201)
O estudioso ainda defende que a noção de ethos remete a pontos de vista distintos. Especificamente: no
imaginário daquele que fala (na relação entre a aparência que ele de fato imagina adquirir e que ele, sujeito, de fato
adquire) e na experiência do intérprete (que tende a identificar no falante o que vê). “O valor prático-didático ao longo do
termo ethos, se existe um, reside no questionamento dessa identidade imaginária e nas relações que resultam isso”
(Auchilin, 2001. p. 203)
Essa noção, defende, não é construída exclusivamente dos atributos do locutor, e sim exterior a eles. É construído
a partir de atributos que o locutor “se vê revestido” e que são passíveis de variar em substancialidade e encarnação
conforme os usos e concepções e experiências afetivas do destinatário.
Outras contribuições importantes que, julgamos, precisam ser consideradas em nossos estudos se referem à
relação entre ethos e estereotipia.
Buscamos aqui duas concepções diferenciadas da noção de estereótipo trazidas inicialmente por Amossy (2005).
Segundo o que defende, todo ato de palavra implica na construção de um ethos: representação de si baseada nas crenças,
competências lingüísticas e enciclopédicas de cada um. Tal representação por sua vez nos chega imbricada em uma
representação coletiva cristalizada, fruto do processo de estereotipagem no qual a enunciação se apóia e, por sua vez,
contribui para reforçar e transformar.

422
Já Patrick Charaudeau (2006) propõe uma abordagem que derruba a concepção de estereótipo ligada a termos
como clichês, lugares comuns, idéias recebidas, entre outros termos que, defende, são ditos de formas repetitivas e que
acabem se fixando e descrevendo uma caracterização de forma simplista e generalizante.
Parte da premissa de que “todo julgamento do outro é, ao mesmo tempo, um revelador de si”5 (CHARAUDEAU,
2006. p. 49). O autor defende a recuperação da noção de estereótipo não como um conceito, mas como um mecanismo de
sentido responsável pela transformação da realidade em um real significante que engendra formas de saber da realidade
social.
Charaudeau (2006) defende ainda a adoção do termo imaginários sócio-discursivos (distanciado da noção de
imaginário como algo que não existe, inventado) como um modo de apreensão do mundo que nasce da mecânica das
representações sociais constituintes da significação dos objetos do mundo, os fenômenos que produzem, seus
componentes responsáveis pela transformação da realidade em real significante. Tais imaginários configuram um processo
de simbolização do mundo de ordem afetivo-emocional através da intersubjetivdade das relações humanas que se
depositam na memória coletiva e que, segundo o que entendemos, está intimamente ligada à noção de estereótipo.

3. A análise

“Rua de Mão Dupla” obedece a uma nova proposta estética do documentário contemporâneo. A produção se
apresenta como uma espécie de documentário-jogo ligado à trajetória de Cao como artista plástico e que, em um primeiro
momento, foi apresentado como vídeo-instalação na 25ª Bienal Internacional de São Paulo6, também em 2002.
A produção propõe que pessoas que não se conheciam trocassem de casa durante 24hs. Como uma câmera na
mão, cada personagem “intruso” poderia explorar o universo domiciliar de seu anfitrião ausente. Ao final da experiência,
cada participante testemunharia sobre a imagem que construiu do seu outro a partir do que experimentou (e filmou).
Em “Rua de Mão Dupla”, o jogo provoca um deslocamento do olhar da câmera para o outro, obedecendo a uma
segunda tendência das produções documentais contemporâneas por formas que propõem “dar câmera e voz ao outro”. Ao
mesmo tempo, imprime um deslocamento em relação a essa voz que atravessa a voz do documentário. Ao alterar a direção
do dispositivo cinematográfico, o documentário pede que o participante se volte não para si, mas para o outro que se
inscreve na tessitura do registro fílmico.
São 75 minutos de produção editados em três blocos (20, 25 e 30 minutos respectivamente). Com a tela dividida
ao meio são exibidas ao espectador simultaneamente as imagens e sons feitos pelos integrantes divididos duplas. Ao final,
assistimos aos depoimentos de cada membro da dupla com a tela ainda partida ao meio. De um lado o eu e de outro lado o
outro. Para o pesquisador Felipe Freitas (2007), o que mais impressiona no filme é a carga de ‘exposição de si”contida nos
discursos (imagens e depoimentos), teoricamente, sobre os outros.
No mesmo estudo, a pesquisadora Consuelo Lins (apud Freitas, 2007. p. 64) acredita que a estratégia do cineasta
dribla o movimento de auto mise em scène através do qual a pessoa filmada ajusta sua própria atuação diante da câmera
de acordo com a representação de si que visa produzir. Segundo defende, a mudança de foco do “eu” para o “outro” faz
com que o sujeito fique “menos atento” a autocontroles para produzir imagens que desejamos de nós mesmos.

5 “Tout julgament sur l’autre est em même temps revélauteur de soil [...]”. Livre tradução.

6 Cf. em http://entretenimento.uol.com.br/27bienal/artistas/cao_guimaraes.jhtm acesso em 18.09.2009

423
Para o pesquisador César Migliorin (2005), em Rua de Mão dupla, cada um constrói a imagem de si sendo como
“alguém que já é”; que não parte do zero e não está atrás de um catálogo midiático (nem sendo estudado pelo outro). Para
o autor, existe um movimento cíclico onde cada um está ali construindo mutuamente uma imagem do outro em uma
continuidade e na elaboração de um processo que não termina.
Como uma última contribuição que nos vale aqui citar, Freitas (2007) defende que, na produção, as imagens são
dessociáveis da presença de seus autores porque seu significado depende intrinsecamente do contexto no qual foram
produzidas. Dessa forma, defende, o que inicialmente nos é apresentado como uma conjunto de leituras despreparadas e
preconceituosas sobre o outro, resulta em um aparelho espetacular que nos remete ao trabalho ativo de interpretação dos
personagens por parte do espectador “e nos revela que nosso olhar também pode estar tão despreparado e domado por
discriminações” (FREITAS, 2007. P. 77)
Em seu artigo intitulado “Rua de mão dupla: documentário e arte contemporânea”, Lins (2009) estabelece uma
relação da produção com os estereótipos. Para a autora, relacionamos de várias formas o que vemos, ouvimos e sentimos
e realizamos mentalmente, de forma natural. Se isso for feito diante de uma câmera, certamente revelará que ‘estamos’ não
no conteúdo do que falamos ou pensamos; mais na alta carga de subjetividade expressa na nossa relação com o outro e
com o mundo.
Para a autora, a produção mostra o quão encharcados de memórias e afeições corporais é o nosso olhar sobre o
mundo. Também, o quanto enraizados estamos a determinadas maneiras de ver e sentir.

4. Considerações

Conforme descrito anteriormente, o desafio desta proposta foi discutir como o cinema documental brasileiro
contemporâneo (pós década de 1980) apresenta novas possibilidades de construção ethótica (imagens de si), por meio das
suas novas propostas estéticas e narrativas.
Nosso esforço aqui foi apresentar algumas contribuições teóricas que nos apontam caminhos para as
possibilidades de análise que se desenham na relação entre as construções ethóticas e uma nova ordem de expressão
estética e discursiva das atuais produções documentais brasileiras.
Atualmente, nossa pesquisa se debruça sobre uma (das várias) possibilidades de estudo do ethos a partir do
universo aqui apresentado, especificamente, a investigação do fenômeno de construção simultânea da imagem de si
(ethos) e da imagem do outro - o que, intitulamos como ethos de mão dupla ou ethos bidirecional, em alusão a nosso
corpora.
Não temos aqui condições de apresentar resultados mais profundos de análise pelo fato de nossa pesquisa estar
em uma fase primária de construção. No que tange ao ethos de mão dupla, acreditamos que o esforço por sua identificação
e pelas formas como esse se apresenta dentro de uma abordagem nova, contemporânea instaura possibilidades de análise
difíceis de delimitar sem um estudo aprofundado - pela imprecisão da concepção do fenômeno em si das possibilidades que
pode apresenta. No entanto, acreditamos na força dessa nova concepção para os estudos da linguagem, sobretudo do
ethos, enquanto proposta (e desafio) de pesquisa.

424
5. Referências

AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no Discurso. São Paulo: Editora Contexto, 2005.

AUCHILIN, Antonie. Ethos e experiência do discurso: algumas observações. In: MARI. H, MACHADO.I.L., MELLO, R
(orgs). Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD – Núcleo de Análise do Discurso. FALE/UFMG,
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CHARAUDEAU, P. Les stéréotypes c’est bien, les imaginaires, ci’est mieux. In: ______. Stéréotypes, stéréotypes:
fonctionnemets ordinaires et “mise en scène”. Tome 4: Langages et discours. Actes du Colloque International de Montpellier
(Université Montpellier III). Jun./2006. Paris: L’Harmattan, 2006. p 49-63. Dir. Henri Boyer.

FREITAS, Felipe Alves de. O homem ordinário com a câmera na mão. Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de
Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2007. p. 34-77.

GUIMARÃES, César. A singularidade como figura lógica e estética no documentário. Alceu. Revista de Comunicação,
cultura e política. v. 7, n. 13, jul./dez.2006. p. 38-48.

LINS, Consuelo. MESQUITA,Claudia. Filmar o real: sobre o documentário brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2008.

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Contracapa, 2009, pg. 327-340.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. SALGADO, L (orgs). Ethos Discursivo. São Paulo:
Editora Contexto, 2008. p. 11-29.

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2005. vol. 3 Disponível em http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp acesso em
19.10.2009

RUA DE MÃO DUPLA. Direção: Cao Guimarães. Belo Horizonte, 2002. 1 DVD (75min.), son., color.,legendado.

Fernanda Silva Chaves – Jornalista, Especialista em Imagens e Culturas Midiáticas pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Na atualidade, desenvolve suas pesquisas na área de Linguística, especificamente Análise do Discurso,
tomando o cinema documental como corpora.

e-mail: ferschaves@yahoo.com.br

425
O ethos feminino na “Revista Mulher” de “O Liberal”

COELHO, Fabiana dos Santos


(UFPA)

INTRODUÇÃO

A disciplina Análise do Discurso estuda a relação entre as condições de produção e os efeitos de sentido gerados
por um determinado discurso, a partir do lugar social e histórico em que ele foi constituído. Estabelece, dessa forma, a
relação entre a língua e a história, buscando na materialidade lingüística, as marcas dos diversos posicionamentos
existentes.
Inserido nessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo identificar e analisar a imagem feminina
constituída na “Revista Mulher”, publicada semanalmente no jornal impresso “O Liberal”. Para tanto, esse estudo terá como
base, principalmente, os pressupostos acerca de ethos discursivo e interdiscurso, apresentados por Dominique
Maingueneau, e os estudos de Jacqueline Authier-Revuz sobre a heterogeneidade constitutiva do discurso.
Partindo-se da concepção de que é a relação interdiscursiva que constitui a identidade de um discurso e de que o
ethos é uma imagem constituída a partir de um comportamento discursivo, concebe-se que o ethos assume o caráter
heterogêneo desse(s) discurso(s) por meio do(s) qual(is) se constitui.
Sendo assim, pretende-se com esse trabalho não só identificar a imagem feminina constituída na “Revista
Mulher”, mas analisar as marcas dos diferentes posicionamentos discursivos que compõem essa imagem.
A “Revista Mulher” é publicada aos domingos no jornal “O Liberal” e se propõe a dar conta dos assuntos
considerados pertencentes ao universo feminino. É uma revista colorida, há muitas imagens para ilustrar seu conteúdo e é
utilizada uma linguagem pouco formal, sempre fazendo menção à leitora. Além disso, na maioria de suas matérias, são
utilizados depoimentos de mulheres acerca do assunto que está sendo desenvolvido. Dessa forma, é instaurada uma
relação de proximidade com o público, passando a impressão de que a leitora também fala de dentro da revista, como se
fosse uma conversa entre mulheres.
Como corpus de análise para esse trabalho, foram selecionados alguns depoimentos publicados nas matérias da
revista. Considerando que os depoimentos têm a função de ilustrar, com opiniões de mulheres da sociedade na qual o
jornal circula, o assunto que está sendo tratado pela matéria, pretende-se analisar, nesses depoimentos, os diferentes
posicionamentos que compõem a imagem feminina construída na revista.

1. A subjetividade nos estudos da Análise do Discurso

Costa (2005) apresenta uma resenha particular de um artigo de Pêucheux, em que o autor apresenta as três
fases pelas quais teria passado a Análise do Discurso desde sua constituição até o início da década de 80.
A concepção de sujeito, do decorrer dessas fases, sofreu várias transformações e a principal questão era definir
em até que ponto o sujeito é consciente de seus posicionamentos e até que ponto o lugar social que ele ocupa define suas
concepções.

426
Segundo o autor, na primeira fase da Análise do discurso (AD-1), o sujeito é concebido como sendo “assujeitado”,
submetido a regras que delimitam seus posicionamentos. Dessa forma, quem fala não é o sujeito, mas uma ideologia, uma
teoria, uma instituição que o rege.
Na AD-2 ocorre uma modificação na concepção de sujeito. Essa modificação é compreendida no interior da noção
de formação discursiva (FD) em Foucault, para quem o discurso não possui um princípio de unidade. Em Foucault, os
discursos são concebidos como uma dispersão, isto é, como sendo formados por unidades que não estão ligadas entre si.
Logo, se os discursos não são ligados entre si por um princípio de unidade, o sujeito também não o é: o sujeito passa,
então, a ser concebido como aquele que assume diferentes papéis, de acordo com o lugar interdiscursivo que ocupa na
ordem social. O que não significa dizer que o sujeito é livre: o sujeito fala do interior de uma formação discursiva, ou seja, na
base de seu discurso existe uma ideologia própria do lugar social que esse sujeito ocupa.
Tanto na AD-1 quanto na AD-2, o sujeito é inserido num quadro ideológico, ou seja, concebe-se que é por meio da
atividade discursiva do sujeito que a ideologia se manifesta.
Já na AD-3, o sujeito deixa de ser concebido como “assujeitado” para ser considerado descentrado, heterogêneo,
assim como é considerado o discurso nessa fase.
O que se pôde perceber em comum nas três fases da AD é que o sujeito nunca é definido como senhor de sua
vontade: ou é concebido como controlado por uma formação discursiva ou ideológica, ou como sujeito heterogêneo, clivado
entre seu consciente e seu inconsciente, cujo discurso é sempre atravessado pelo discurso do outro.

2. A heterogeneidade constitutiva do discurso

Authier-Revuz (2004), fundamentando-se nos estudos do círculo de Bakhtin e da psicanálise, realiza um estudo
das formas de heterogeneidade do discurso. Seu estudo é fundamentado tanto na idéia Bakhtiniana de que um discurso se
constitui em diálogo com outros discursos, quanto na concepção psicanalítica de sujeito – especialmente nas leituras de
Freud e Lacan – como um ser descentrado, clivado entre os vários posicionamentos que o circundam.
A autora divide essa heterogeneidade em dois pólos: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade
constitutiva. Somente a primeira seria acessível aos aparelhos lingüísticos, por ser marcada no próprio discurso como o
discurso do outro – trata-se do discurso citado, das palavras entre aspas, da remissão ao autor do discurso utilizado, etc. –
já a segunda, não permitiria essa identificação, uma vez que o discurso do outro estaria inextricavelmente ligado ao
discurso do mesmo.

para a descrição lingüística das formas de heterogeneidade mostrada, a consideração da


heterogeneidade constitutiva é, a meu ver, uma ancoragem, necessária, no exterior do lingüístico: e
isso não somente para as formas que parecem oscilar facilmente devido às modalidades incertas de
seu resgate, mas, fundamentalmente, para as formas mais explícitas, mais intencionais, mais
delimitadas da presença do outro no discurso. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.22)

A autora defende que o entendimento da heterogeneidade mostrada – ou seja, da marcação pelo enunciador do
discurso do outro em seu discurso – ancora-se na heterogeneidade constitutiva.
Para o dialogismo de Bakhtin, essa interação com o discurso do outro seria a lei constitutiva de qualquer discurso.
Variedades de discursos se relacionariam, estabelecendo entre elas “um jogo de fronteiras e de interferências”. Já a
psicanálise articula a heterogeneidade com a condição do sujeito. Sendo o sujeito considerado descentrado, clivado,
dividido, não haveria a possibilidade de ele ser o centro do qual surge um discurso. Essa é uma ilusão, segundo a autora,
que o sujeito assume para afirmar-se como sujeito:

427
Todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos “outros discursos” e pelo “discurso do
Outro”. O outro não é um objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se
fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira desse discurso. (AUTHIER-REVUZ,
2004, p. 69)

Percebe-se que, ainda que estudos de bases diferentes, tanto a abordagem psicanalítica, quanto a de Bakhtin
defende que todo discurso é atravessado por outros discursos. Esses “outros discursos” aos quais a autora se refere na
citação são os discursos que circundam o sujeito; já o discurso do outro é o ponto de onde emana um novo discurso.
Dessa forma, o discurso surgiria da negação de um outro – afirma-se um discurso por meio da negação de um
outro. Esse “um”, no entanto, permaneceria clivado pelo outro e pelos outros que o circundam. Daí a existência da
heterogeneidade mostrada.
A heterogeneidade mostrada, portanto, não pode ser concebida como um reflexo da heterogeneidade constitutiva,
mas como “elemento da representação – fantasmática – que o locutor (se) dá de sua enunciação.” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p.70), uma vez que o sujeito, ao marcar o discurso do outro, acredita conseguir distanciá-lo de seu discurso; ele crê
que esse distanciamento é, efetivamente, estabelecido, o que, de fato, não ocorre uma vez que o sentido do seu discurso
sempre estará ligado ao discurso que ele nega.

3. O primado do interdiscurso

Dominique Maingueneau (2005), apoiado nas concepções sobre heterogeneidade de Authier-Revuz (2004),
apresenta seu trabalho intitulado “primado do interdiscurso” cuja idéia central é a de que o interdiscurso precede o discurso,
ou seja, o que constitui a identidade de um discurso é a alteridade discursiva.
Maingueneau (2005) esclarece que estudar essa alteridade constitutiva do discurso não significa somente analisá-
lo em sua relação com outros discursos, mas também concebê-lo como resultado dessa relação interdiscursiva. O discurso,
dessa forma, é heterogêneo em sua constituição e permanece clivado pelas várias formações discursivas das quais emana.
Com o intuito de caracterizar discursivamente essa alteridade, de acordo com a situação sócio-discursiva, o autor
propõe uma tripartição do conceito de interdiscurso em “Universo discursivo”, “Campos discursivos” e “Espaços discursivos”.
O “Universo Discursivo” representa um conjunto de formações discursivas de todos os tipos, interagindo em uma
dada conjuntura. Por se tratar de um conjunto bastante amplo, não há a possibilidade de apreender o “Universo Discursivo”
em sua totalidade, por isso esse conjunto sofrerá delimitações com o propósito de tornar o trabalho do analista mais viável.
Essas delimitações constituem os “Campos Discursivos”, em que formações discursivas de uma mesma formação
social, mas divergentes no que confere à maneira de atuação, constituem relações de polêmica, aliança ou neutralidade. O
discurso político é um exemplo de “Campo Discursivo” – bem como o filosófico, o religioso, etc. – pois pertence a uma
mesma formação, mas pode diferir no modo de atuação, de acordo com seu posicionamento.
Segundo Maingueneau (2005), é no interior do campo discursivo que se constitui um discurso. É da relação de
concorrência entre as formações discursivas que o discurso se constitui. Obviamente que não há uma relação homogênea
entre as formações discursivas em um campo. Há discursos hegemônicos e há aqueles mais marginais, por esse motivo, os
discursos não se formam da mesma maneira, mas são constituídos a partir da relação entre esses vários discursos. Daí seu
caráter heterogêneo.
Os “Espaços discursivos”, então, são os recortes que o analista faz, no interior do campo discursivo, relacionando
os discursos concorrentes, de acordo com seu propósito de análise. Esse recorte nunca é feito de maneira arbitrária: é

428
necessário um conhecimento prévio que permita levantar hipóteses que serão ou não confirmadas no decorrer do estudo.
No interior dos espaços discursivos é possível identificar as relações entre os discursos formados nos campos discursivos.
A noção de interdiscurso concebe que há uma constante relação de troca entre o Mesmo de um discurso e o seu
Outro, ou seja, não há a constituição de uma identidade fechada, não existe um discurso autônomo, uma vez que o sentido
de um discurso está sempre ligado ao discurso negado:

O Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; não é
necessário que seja localizável por alguma ruptura visível da compacidade do discurso. Encontra-se na
raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum
passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. É o que faz sistematicamente
falta a um discurso e lhe permite fechar-se em um todo. É aquela parte de sentido que foi necessário
que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade. (MAINGUENEAU, 2005, p. 39)

Dessa forma, entende-se que há um jogo dialógico entre o Mesmo e o Outro de um discurso em que o Mesmo
nega o Outro. Esse Outro, no entanto, não fala do exterior do discurso do Mesmo, ao contrário, fala de dentro dele. O Outro
está intrínseco ao mesmo, como “um eu do qual o enunciador discursivo deveria constantemente separar-se”
(MAINGUENEAU, 2005, p. 39).
Não há, portanto, a marcação dessa alteridade; o funcionamento discursivo resulta da interação entre os discursos
concorrentes. Cabe ao analista do discurso analisar o Mesmo em relação às formações discursivas que o constituíram, mas
também em relação às formações discursivas que constituíram seu Outro – que ele rejeita para construir sua identidade –
para alcançar o entendimento de sua constituição.
É importante ressaltar que o Mesmo e o outro não são discursos totalmente contrários. Se assim fosse, o discurso
que surgisse a partir do Mesmo negando-o seria correspondente ao Outro de onde esse Mesmo surgiu e não é dessa forma
que acontece. Os discursos surgem em campos que englobam formações discursivas diferentes e que também sofrem
mudanças de acordo com a conjuntura sócio-histórica. A tendência, segundo Maingueneau (2005), é de que um discurso
negue seus dois discursos Outros: aquele do qual se constitui e aquele que se constitui negando-o.
Outro aspecto importante a ser ressaltado é a coexistência desses discursos: o surgimento de um discurso não
significa o desaparecimento instantâneo do discurso do qual emergiu. Os dois discursos podem conviver e manter uma
relação de concorrência. Não se pode negar que há um discurso que, dependendo da conjuntura histórica, será mais aceito
que o outro e ocupará uma posição hegemônica, isso culmina no desaparecimento gradativo do outro. Esse
desaparecimento, como mencionado, é gradativo e pode ser um processo bastante demorado.

4. A noção de ethos discursivo

A partir das idéias apresentadas acerca da noção de ethos na obra “Retórica” de Aristóteles, Dominique
Maingueneau (2006) apresenta sua própria concepção dessa noção. O autor faz uma releitura de alguns pressupostos de
Aristóteles, inserindo-os nos estudos discursivos.
Maingueneau concorda com algumas idéias-chave para a compreensão do ethos, presentes na obra de
Aristóteles, mas ressalta que elas podem ser exploradas de forma diferente quando inseridas nos estudos discursivos.
Essas idéias propõem que: (1) o ethos é uma noção discursiva, ele se constitui por meio do discurso, não é uma “imagem”
do locutor exterior à fala; (2) o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; (3) a noção de
ethos é fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser

429
apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica
determinada.
Para Maingueneau, no entanto, a constituição do ethos não recobre somente a dimensão oral, como propõe
Aristóteles, mas também a escrita. Maingueneau defende que o texto escrito também apresenta um tom, uma vocalidade,
que permite ao leitor construir uma imagem física (não exatamente o autor, mas um fiador daquele discurso) do enunciador
daquele texto.
Outro deslocamento das idéias de Maingueneau em relação às de Aristóteles defende um ethos mais encarnado,
ou seja, associada à imagem construída por meio do discurso, também existe uma imagem física, construída por meio de
representações coletivas. Dessa forma, de acordo com o discurso proferido, o co-enunciador cria uma imagem psicológica
associada a uma imagem física do enunciador, a uma forma de vestir-se.
Dessa forma, a imagem construída do fiador está associada ao caráter que ele deixa transparecer por meio de
seu posicionamento, bem como por meio da imagem com que ele se mostra: sua forma de vestir-se, sua postura, sua
aparência física, etc.
A partir de seu posicionamento, é formado um estereótipo do enunciador, que pode ser positivo ou negativo aos
olhos do destinatário, de acordo com sua formação discursiva. Ao posicionar-se, o enunciador daria acesso a um mundo em
que ele está inserido, chamado “mundo ético”.
O mundo ético é concebido por Maingueneau (2006) como um “estereótipo cultural”, ou seja, uma série de
situações associadas a comportamentos de um grupo de pessoas, de acordo com o lugar social que elas ocupam em
determinado momento. A adesão do co-enunciador se dá por meio de sua inserção nesse mundo construído
discursivamente. Assumindo a identidade suscitada por meio da forma como o enunciador se posiciona, o co-enunciador
passa a participar do mundo do qual essa identidade faz parte:

O poder de persuasão de um discurso decorre em parte do fato de que ele leva o destinatário a
identificar-se com o movimento de um corpo, por mais esquemático que seja, investido de valores
historicamente especificados. (MAINGUENEAU, 2006, p.70)

Apesar de seu caráter persuasivo, segundo Maingueneau (2006), não se pode, assim como na retórica tradicional,
considerar o ethos como um meio de persuasão. Ele está intrínseco à cena enunciativa, ou seja, o enunciador nem sempre
escolhe posicionar-se de uma determinada maneira, mas é levado a um determinado posicionamento de acordo com a
situação de enunciação em que estará inserido.
Sendo assim, nem sempre se pode conceber que existe um planejamento prévio daquilo que se vai dizer e da
forma como se vai dizer para se alcançar a adesão do co-enunciador. As imagens são construídas todo o tempo por meio
da interação entre os indivíduos, ainda que essa interação não tenha sido planejada.
Maingueneau (2006) problematiza algumas questões ligadas à noção de ethos discursivo, ressaltando a
complexidade dessa noção, dado o seu caráter interdisciplinar. O ethos se constitui sócio-discursivamente, ou seja, é uma
imagem constituída também por meio do discurso, mas que deve ser compreendida em um contexto histórico e social.
Há uma questão, entretanto, que emerge a partir dos estudos acerca da constituição do ethos: quando se fala em
uma imagem constituída a partir de um comportamento discursivo, tem-se a idéia de que essa imagem é algo estável, muito
bem delimitada, muito bem definida. As imagens construídas são formadas por características sempre muito convergentes.
Como se a imagem do fiador daquele discurso fosse uma imagem homogênea de um ser muito estável em seu
posicionamento.

430
Considerando, no entanto, que o discurso se constitui por meio da interação com outros discursos e retomando a
concepção de sujeito da psicanálise, apresentada por Authier-Revuz (2004), como um ser clivado entre os vários discursos
que o circundam, há que se verificar se não se pode apreender esse caráter heterogêneo também na constituição do ethos
discursivo.
Essa perspectiva apóia-se, principalmente na idéia de que o ethos se constitui por meio da interação com o outro
e de que, ainda que o locutor planeje um posicionamento visando a uma imagem determinada, é o co-enunciador quem irá
constituir essa imagem a partir de suas convicções, de seu posicionamento discursivo; posicionamento esse que é
heterogêneo, que é clivado por todos os outros posicionamentos que o circundam.
Além disso, não se pode perder de vista que, assim como defendem os estudos já apresentados nesse trabalho,
um discurso sempre dá acesso ao discurso a partir do qual se constituiu e também a outros discursos. Ele está todo o
tempo clivado entre o discurso que nega e os outros que o atravessam. Sendo assim, uma imagem constituída a partir de
um determinado discurso, pode dar acesso a outros discursos – que constituem outras imagens – e explicitar essa
heterogeneidade constitutiva do ethos.

5. A constituição do ethos feminino na “Revista Mulher”

Como já foi citado anteriormente, a “Revista Mulher” é publicada aos domingos no jornal “O Liberal” e se propõe a
dar conta dos assuntos considerados pertencentes ao universo feminino. Por conta disso, a “Revista Mulher” serve como
uma vitrine para empresas que prestam serviços voltados para esse público: há vários anúncios publicitários distribuídos em
suas páginas, geralmente de acordo com o tema que está sendo desenvolvido.
Por meio da análise da composição de suas matérias, pode-se conceber que é construído, na revista, o mundo
ético da mulher moderna. Nesse mundo ético estão incluídas as várias funções sociais que uma mulher moderna precisa
desempenhar: a função de mãe, de esposa, de profissional, de amiga, e de mulher – a mulher que cuida de si. É a mulher
forte, determinada, que é respeitada e admirada pela sociedade, por conseguir desempenhar com eficiência as várias
funções sociais acumuladas no dia-a-dia; a mulher que sempre mantém o bom-humor diante das adversidades e nunca
descuida de sua saúde e de sua beleza.
Esse ethos construído tem por finalidade chamar a atenção das leitoras, buscando a incorporação desse público.
Essa incorporação se daria pela adoção de atitudes que levariam à construção dessa identidade. O ethos da mulher
moderna seria, então, um modelo a ser seguido e as leitoras passariam a interagir com o fiador desse discurso, inserindo-se
no mundo ético construído na revista.
Isso justifica a forma como os anúncios publicitários são dispostos na “Revista Mulher”, pois, ao ler uma matéria
sobre beleza, associada à imagem de uma bela mulher, por exemplo, a leitora passaria a preocupar-se mais com sua
aparência, e o anúncio de uma clínica de estética na mesma página da matéria seria, então, providencial.
Dessa forma, o público-alvo da revista são aquelas mulheres cujas aspirações já não são apenas cuidar da casa,
do marido e dos filhos, mas que, além disso, desejam cuidar de si, de sua vida profissional, de seu bem-estar. Sendo assim,
visando à identificação por parte das leitoras, a organização da revista é planejada de forma a reunir todos os aspectos que
caracterizam essa mulher moderna.
A seção de entrevistas “Saia-justa” parece reunir todas essas características em uma única mulher, pois a
entrevistada é sempre uma mulher inteligente, independente, bem-sucedida, elegante, que se destaca em seu ambiente de
trabalho e consegue desempenhar muito bem todas as funções sociais a que se propõe. Além disso, é a foto da

431
entrevistada da semana que estampa a capa da revista, o que sugere que essa seção é a que representa a “Revista
Mulher”. Nas outras seções, dá-se ênfase às diferentes temáticas, que abordam cada assunto de forma mais direcionada.
Analisando a revista como um todo, percebe-se que cada seção constrói uma parte desse ethos da mulher
moderna. Há a agregação de vários papéis femininos desempenhados socialmente, resultando na imagem visada pela
revista. Essa imagem, em uma primeira análise, parece ser homogênea em sua constituição, uma vez que todas as
características que a compõem são bastante convergentes entre si, apontando para uma imagem estável.
Uma análise mais cuidadosa, porém, deixa entrever marcas de posicionamentos discursivos que divergem dessa
imagem moderna de mulher. Há marcas de outras vozes que constituem o ethos feminino em suas matérias: vozes
conservadoras, vozes machistas, vozes que discordam das características físicas propostas ela revista, enfim, vozes que
vão de encontro à idéia homogênea de mulher que a revista se propôs a constituir. Essas vozes das quais se fala, são as
marcas dos outros posicionamentos discursivos que estão presentes nessa constituição do ethos feminino na “Revista
Mulher”.
Para o trabalho de análise dos diferentes posicionamentos que compõem o ethos feminino, foram selecionados
alguns depoimentos contidos nas matérias da revista. Buscou-se selecionar depoimentos que exprimam os diversos papéis
sociais desempenhados pela mulher.
Esses primeiros depoimentos foram retirados de uma matéria cujo tema é a volta ao trabalho, pela mulher, após o
período de licença-maternidade:

“Fico sofrendo para ir ao trabalho diariamente. Desejo estar com ela o tempo inteiro. Telefono para
casa diversas vezes diariamente para saber se está tudo certo. Mesmo tendo total confiança na babá
que possuo (...) Quando ela disse a primeira palavrinha ‘arroz’, e eu não estava em casa com ela e sim
trabalhando, fiquei chateada em não estar presente nessa hora.” (Revista Mulher, 10/05/2009, p. 8)

“Nós podemos seguir com nosso padrão de vida e as despesas do Lucas, mesmo se eu parar. O que
receio é que, depois dele crescer, eu me arrependa do que fiz: perder uma boa carreira profissional e
ficar meio perdida. Tenho medo do futuro, porém meu coração, agora, pede essa decisão”. (Revista
Mulher 10/05/2009, p.8)

Na matéria faz-se questão de explicitar que faz parte da nova realidade feminina ter uma vida profissional e que
isso causou mudanças em suas relações, inclusive na relação com os filhos. No entanto, fica explícito por meio dos
depoimentos das leitoras que ainda há uma divisão de sentimentos em relação a essa situação.
Apesar de o mundo ético construído na revista apontar para mulheres que conseguem conciliar muito bem as
diversas tarefas que acumulam, percebe-se que existe uma dúvida sobre que papel assumir: aquele instituído à mulher
historicamente – cuidar dos filhos em tempo integral – ou o novo papel que inclui a carreira profissional entre suas práticas
cotidianas.
O segundo depoimento deixa evidente que a carreira profissional não é mantida por conta de uma necessidade
financeira, realidade de muitas mulheres na atualidade, mas devido à busca de realização pessoal. Essa busca pelo próprio
espaço, pelo sucesso, é uma das características da mulher moderna, bastante abordada nas matérias da revista, no
entanto, percebe-se que esse tipo de realização é posto em segundo plano para a dedicação ao papel de mãe.
Os discursos, em ambos os exemplos nos emitem a idéia de que essa é uma decisão alçada em motivos
exclusivamente sentimentais, mas deve-se pensar se esse sentimento de culpa também não decorre de uma pressão social
resultante do discurso de que a função primordial da mulher é a de ser mãe e cuidar dos filhos.

432
Na revista, busca-se construir a imagem de mulher independente, tanto financeira quanto sentimentalmente, logo,
o modelo de relacionamento amoroso apresentado visa a passar a idéia de que as mulheres assumiram o mesmo
posicionamento historicamente assumido pelos homens. O depoimento a seguir, extraído de uma matéria que trata da
infidelidade nos relacionamentos, pode ilustrar bem essa idéia:

“São essenciais para fazer uma avaliação do relacionamento. Como são coisas completamente
diferentes, essas ficadinhas por aí não têm força para derrubar um namoro de muito tempo. Mas são
importantes para norteá-lo. (...) Por mais que eu não consiga resistir, o namoro consegue. Essas
escapadas só são saudáveis quando acredito na relação. Só assim me interesso a levar para ela aquilo
que aprendo pulando a cerca. É uma coisa automática. Quando as coisas não estão indo bem, começo
a me sentir atraída por outros homens e assim descubro o que anda errado no meu namoro. Mas
nunca conto nada”. (Revista Mulher 12/10/2008 p. 22)

Chama a atenção, nesse depoimento, o fato de que a mulher não só afirma que se relaciona com outros homens,
mas demonstra fazer isso sem culpa e apresenta, ainda, argumentos para justificar suas atitudes. Em uma sociedade
machista e patriarcal, esse tipo de atitude seria veementemente condenada, mas o intuito da revista é alcançar a mulher
moderna, seus desejos, suas aspirações, por isso, faz uso desse tipo de temática.
No entanto, por meio desse posicionamento de que as mulheres são independentes sentimentalmente dos
homens e sentem-se à vontade para se relacionarem com outros, também se pode ter acesso a um outro posicionamento,
justamente, aquele que tenta negar: no depoimento, a mulher deixa explícito que suas “ficadinhas” são uma estratégia para
melhorar seu relacionamento, para descobrir o que está errado, além disso, ela nunca conta nada ao seu companheiro, o
que denuncia seu desejo de permanecer junto a ele, um medo de essa revelação culminar no término desse
relacionamento. Ela não admite ficar sozinha, pois, ainda que sua relação não esteja muito confortável, prefere resolver de
outra forma que não terminá-la. Mesmo posicionamento assumido no próximo exemplo:

“Meu ex-marido foi um namorado excelente: carinhoso, apaixonado, divertido. Mas, depois que
casamos, vi que ele era um péssimo marido: irresponsável, folgado e acomodado. Eu achava que as
coisas entre nós podiam voltar a ser como eram na época do namoro, que eu tinha que tentar mais, me
dedicar. Até que chegou uma hora em que a ficha de que ele não era o homem certo caiu e pedi a
separação”. (Revista Mulher 30/11/2008, p. 24)

Apesar de a mulher relatar que terminou o relacionamento, após julgar que não havia outra solução, ela admite
que tentou o possível para mantê-lo e assumiu para si a responsabilidade de tentar mais e dedicar-se mais.

6. Considerações finais

Percebe-se, por meio dos exemplos apresentados, que apesar de, na “Revista Mulher” o objetivo visado ser o de
alcançar o público feminino, inserindo-o em um mundo ético de mulher moderna, no qual seu papel social seja diferente
daquele desempenhado em uma sociedade machista e patriarcal, ainda percebe-se as marcas desse posicionamento
anterior no novo posicionamento.
Ainda percebe-se a clivagem, por parte dos sujeitos, desse novo contexto sócio-histórico entre esse novo
posicionamento e o anterior. Isso reflete o posicionamento da própria sociedade, uma vez que essa transição entre um
discurso hegemônico e outro, como bem pontua Maingueneau (2005), não se dá de forma imediata.

433
A imagem visada – a mulher moderna – também dá acesso à imagem de mulher negada pela revista – a que
podemos chamar de mulher submissa, sem voz em sociedade – e ambas as imagens parecem conviver em uma relação de
concorrência, resultando em uma imagem heterogênea de mulher.
Sendo assim, pode-se presumir que o ethos mulher moderna visada pela revista, é constituído por meio de vários
outros ethos que se atravessam, constituindo um ethos feminino bastante heterogêneo. Isso não significa que não se
alcance a constituição de uma imagem de mulher moderna, mas que essa imagem de mulher moderna também é
constituída por meio dos posicionamentos discursivos que divergem daquele posicionamento que a fundamenta e esses
posicionamentos tendem a emergir em algum momento.

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva: elementos para uma abordagem
do outro no discurso. In: Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004. p. 11-79.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8. Ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002.

COSTA, Nelson Barros da (org.). Práticas discursivas: exercícios analíticos. Campinas: Pontes Editores, 2005. p. 17-48.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed., Campinas: Pontes: Editora da
Universidade Estadual de Campinas, 1997.

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______. Problemas de ethos. In: POSSENTI, Sírio. SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez de. [et al] (orgs.). Cenas da
enunciação. Curitiba: Criar Edições, 2006. p. 52-71.

______. A propósito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel. SALGADO, Luciana (orgs.). Ethos discursivos. São Paulo:
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MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: ______. BENTES, Anna Christina (orgs). Introdução à lingüística:
domínios e fronteiras. 5. Ed., São Paulo: Cortez, 2006. p. 101-142.

ORLANDI, Eni. A análise do discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil. In: INDURSKY, Freda. FERREIRA,
Maria Cristina Leandro (orgs.). Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos:
Claraluz, 2007. p. 75-88.

COELHO, Fabiana dos Santos


É graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará (2009), cursando, atualmente, mestrado em Letras: Lingüística,
linha de pesquisa: documentação, descrição e análise do português da Amazônia, área: Análise do Discurso, também pela
Universidade Federal do Pará.
e-mail: fabbi_purple@yahoo.com.br / fabbi_purple@hotmail.com

434
O mecanismo de antecipação e as estratégias de
argumentação nos pronunciamentos de Fidel Castro

COLAÇA, Joyce Palha


(UFF)

Apresentação
O trabalho que apresentamos neste Congresso é fruto da pesquisa desenvolvida na Universidade Federal
Fluminense, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, intitulada “O discurso socialista cubano
contemporâneo sobre a deserção: uma análise dos pronunciamentos de Fidel Castro”. Nosso objetivo primeiro nesta
pesquisa era o de compreender o modo de funcionamento do discurso socialista cubano contemporâneo sobre a deserção.
Nosso material de análise se constitui por 16 pronunciamentos do ex-líder de governo cubano, Fidel Castro, a partir do
episódio de deserção de três desportistas cubanos, nos XV Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, em 2007. Para
desenvolver tal estudo, baseamo-nos nos pressupostos da Análise de Discurso Francesa (AD), fundada por Michel Pêcheux
(1990 [1969] e 1988 [1975]), posteriormente desenvolvida no Brasil.
Neste artigo, apresentamos parte das conclusões resultantes da pesquisa sobre o trabalho das formações
imaginárias do discurso tal como definido por Pêcheux (1990 [1969]). Apontaremos breves questões sobre as formações
imaginárias do discurso, apresentando o quadro das formações imaginárias, além da análise dos mecanismos de
antecipação que funcionam neste processo e o trabalho da argumentação resultante.

Sobre as formações imaginárias


Em AD, afirma-se que ao falar o sujeito é levado a tomar uma posição no discurso, colocando em funcionamento o
mecanismo de formações imaginárias. Entendemos, com Pêcheux (1990 [1969]), que, na relação entre linguagem, história
e ideologia, produz-se um jogo de formações imaginárias que perpassam todo o discurso: a imagem que o sujeito faz dele
mesmo, do seu interlocutor, do objeto do discurso, entre outras. E é somente por esse mecanismo que o sujeito “sabe”
sobre seu interlocutor. Esta suposição de saber é baseada numa representação do lugar social que cada protagonista do
discurso ocupa. Tal representação se faz através de projeções feitas pelos protagonistas do discurso sobre si mesmos e
sobre o outro – pelos lugares que ocupam.
Nas palavras de Pêcheux, neste jogo, necessário e imprescindível ao funcionamento do discurso, as posições dos
protagonistas do discurso (A e B)

designam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares dos quais a sociologia
pode descrever o feixe de traços objetivos característicos: assim, por exemplo, no interior da esfera da
produção econômica, os lugares do “patrão” (diretor, chefe da empresa etc.), do funcionário de
repartição, do contramestre, do operário, são marcados por propriedades diferenciais determináveis.
Nossa hipótese é a de que esses lugares estão representados nos processos discursivos em que
estão colocados em jogo. (PÊCHEUX, 1990 [1969], p. 82)

Ressalte-se que não são os traços objetivos de cada lugar social que importam para uma análise discursiva, mas
a sua representação, baseada na imagem que os protagonistas do discurso têm de cada um destes lugares sociais.
Incluímos neste jogo discursivo o referente – sobre o que se diz – por ser este também um objeto imaginário, do ponto de
vista do sujeito. (PÊCHEUX, 1990 [1969]), p. 83) Este objeto não representa uma realidade física, bem como os sujeitos

435
não são tomados como “seres” conscientes que pensam seu lugar na sociedade. As formações imaginárias são
representações. Pode-se ainda dizer que estas representações, por funcionarem em uma estrutura social bem determinada
historicamente, estão diretamente ligadas às condições de produção no sentido amplo, isto é, às condições sócio-históricas
do discurso. Isto porque se estas formações imaginárias estão diretamente relacionadas aos lugares sociais dos
protagonistas do discurso podemos concluir que uma estrutura social está sempre determinada em um contexto sócio-
histórico e não separada deste. Relacionando estas questões, ressaltamos que esta “é a maneira pela qual a posição dos
protagonistas do discurso intervém a título de condições de produção” (PÊCHEUX, 1990 [1969], p. 83). Pensando nestas
reflexões a partir de nosso corpus, no contexto cubano, a sua estrutura social conta com um Comandante em Chefe do
Governo de Cuba – Fidel Castro1; um regime de governo socialista; cidadãos cubanos sob este sistema; e cidadãos
cubanos que resistem a este sistema, desertando. Neste primeiro gesto de análise, focaremos nas imagens destes lugares
de governante e de cidadão cubano no funcionamento do discurso socialista cubano sobre o desertor.
Partindo destes pressupostos, elaboramos, neste primeiro momento, o quadro de formações imaginárias, baseado
no que formula Pêcheux, em sua Análise Automática do Discurso (1990 [1969]), prezando por uma configuração que
possibilite a melhor visualização deste processo. Juntamente a estas imagens, apresentamos as perguntas que subjazem
às representações imaginárias.

Questão implícita cuja “resposta”


Expressão que designa as formações imaginárias Significação da Expressão subentende a formação imaginária
correspondente
Imagem do lugar de
IFC (FC) presidente para Fidel Castro “Quem sou eu para lhe falar assim?”
A (FC)
Imagem que Fidel Castro faz “Quem é ele para que eu lhe fale
IFC (CC)
para o cidadão cubano (CC) assim?”

Imagem que o cidadão


“Quem sou eu para que ele me fale
ICC (CC) cubano faz sobre seu lugar de
assim?”
B cidadão cubano

Imagem que o cidadão “Quem é ele para que me fale


ICC (FC)
cubano faz de Fidel Castro assim?”

Quadro 1 – Quadro das formações imaginárias das imagens dos protagonistas sobre seus lugares sociais

Este quadro esclarece que se trata de representações e não da realidade de cada lugar ocupado pelos
protagonistas. Após isto, ressaltamos que, para nosso estudo, serão analisadas somente as imagens formuladas por A, ou
seja, por Fidel Castro. Isto se deve ao fato de que nosso corpus está constituído pelos pronunciamentos de Fidel e não dos
demais cubanos. Porém, através da análise do corpus, trabalharemos também as imagens que Fidel Castro, na posição de
líder de governo, supõe que os cubanos fazem, pois, pelo mecanismo de antecipação o locutor supõe as imagens que seu
interlocutor faz dele, de si mesmo e do referente. Sendo assim, pela análise deste mecanismo, é possível perceber como
funciona o dialógico2 na enunciação.

1 Quando começamos nossa pesquisa, Fidel Castro ainda ocupava o cargo de governante de Cuba. Para efeito de análise,

consideraremos a posição que Fidel Castro ocupa no imaginário cubano. Isto equivale a dizer que, para este trabalho, mesmo não
ocupando mais o cargo de Comandante em Chefe da ilha, Fidel, em seus pronunciamentos, fala deste lugar.
2 Como já apontava Bakhtin (1986 [1929]) em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, a comunicação institui-se pela interação

verbal. Nas palavras de Bakhtin, “a interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. O diálogo, no sentido estrito do
termo, não constitui, é claro, senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal.” Bakhtin ressalta ainda
que o diálogo não é somente a interação face a face, “mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja”. (BAKHTIN, 1986 [1929],
p. 23) Posteriormente, Benveniste (1971 [1966]) dirá que o dialógico é constitutivo da linguagem, afirmando que ao dizer “eu” o locutor se
coloca no lugar de enunciador e se remete a um “tu”, seu interlocutor: “A linguagem não é possível senão porque cada locutor se coloca

436
Salientamos que, deste jogo discursivo também faz parte a imagem que se tem do referente. Isto significa dizer
que os protagonistas do discurso também não têm acesso ao objeto de seu discurso. Como já expusemos anteriormente, o
referente – de que se fala – é também um objeto imaginário (PÊCHEUX, 1990 [1969]). Para representar esta colocação
apresentamos o quadro seguinte e suas perguntas subjacentes.

Questão implícita cuja “resposta”


Expressões que designam formações imaginárias Significação da Expressão subentende a formação imaginária
correspondente
Imagem que Fidel Castro faz
IFC (D) “De que lhe falo assim?”
sobre a deserção (D)
A Imagem que o cidadão
IFC (CD) cubano faz sobre o cubano “De que ele me fala assim?”
desertor (CD)
Imagem que o cidadão
ICC (D) “De que ele me fala assim?”
cubano faz sobre a deserção
B Imagem que o cidadão
ICC (CD) cubano faz sobre o cubano “De que ele me fala assim?”
desertor

Quadro 2 – Quadro das formações imaginárias das imagens dos interlocutores sobre os referentes

Não é demais repetir que não trataremos da imagem que o cidadão cubano tem do referente ICC (D), pois, como
antecipamos, não fazem parte de nossa pesquisa os textos produzidos pelos interlocutores de Fidel Castro.
Posto isto, consideramos que um trabalho que se propõe a analisar as formações imaginárias no discurso não terá
como objetivo fazer um estudo social sobre o que é ser cidadão cubano, ou ainda o que é ser um cubano desertor. Ou seja,
em AD, não se tratará da identidade do sujeito cubano e de suas características como ser social, mas do imaginário
construído no discurso sobre cubano desertor. Não é a questão da identidade do cubano que está em pauta, são, antes, os
sentidos postos discursivamente pelo jogo das formações imaginárias. Podemos trazer para a reflexão os estudos de
Orlandi (2008), na obra Terra à vista, em que a autora discute os sentidos postos sobre “brasileiro” em nossa sociedade.

Não pretendemos tampouco definir o brasileiro. O que visamos é observar como o discurso que define
o brasileiro constitui processos de significação, produzindo o imaginário pelo qual se rege a nossa
sociedade. Ou dito de outra forma, procuramos compreender os processos discursivos que vão
provendo o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário da
sociedade brasileira. (ORLANDI, 2008, p. 20).

Em nosso trabalho, tampouco pretendemos definir o cidadão cubano que deixa o país. Antes de tudo, nosso
objetivo é o de entender os processos discursivos que significam estes cidadãos, promovendo um funcionamento imaginário
na sociedade sobre este grupo. Assim, para concluir esta reflexão com Orlandi (2008), entendemos que o funcionamento do
discurso, materializado nos pronunciamentos de Fidel Castro, remete para as construções imaginárias sobre o cubano
desertor no funcionamento da sociedade cubana.
Por outro lado, também consideramos que as formações imaginárias apontam, de certa maneira, para o lugar
social de onde se enuncia. Este lugar, como já dissemos antes, está inscrito em uma estrutura social, o que faz funcionar a
luta de classes colocada por Marx e Engels (2001 [1848]). Esta luta sustenta o dizer a partir das imagens dos lugares
sociais dos seus interlocutores. As formações imaginárias, por sua vez, não existem previamente, elas se constituem
simultaneamente ao discurso.

como sujeito e remete a si mesmo como eu no seu discurso. Em virtude disto, eu sugere outra pessoa, a que, exterior e todo a “mim”, se
transforma em meu eco ao que digo tu e que me diz tu.” (BENVENISTE, 1971 [1966], p. 181)

437
Depreende-se do corpus analisado uma rede de formulações que denominam a deserção, o cubano desertor,
todos os cubanos, e os ditos responsáveis pela deserção – os capitalistas/o capitalismo. Este trabalho de denominação no
discurso funciona pela evidência de literalidade, juntamente ao esquecimento número dois. Este esquecimento atua na
ordem da enunciação, estando diretamente relacionado aos processos parafrásticos. Pelo funcionamento deste
esquecimento, coloca-se a evidência do sentido. Para o sujeito, apaga-se o fato de existir mais de uma maneira de
enunciar, fazendo com que ele por identificação-interpelação se inscreva em uma formação discursiva, que determinará
para seu dizer uma rede de formulações possíveis.
Neste jogo de formulações, as cadeias parafrásticas parecem estabelecer uma relação direta através dos sentidos
construídos. Tem-se, deste modo, um direcionamento dos sentidos, como se ao dizer parafrasticamente de uma maneira ou
de outra os sentidos não mudassem. É a estabilização pela paráfrase. Aliando esta questão teórica à imagem do lugar
social de comandante de governo, como é o caso do nosso enunciador, coloca-se para o cidadão cubano – interlocutor de
Fidel Castro – o efeito de verdade. Isto porque, para a Análise de Discurso, as palavras significam diferente de acordo com
a posição daqueles que as sustentam.

Assim, se o sujeito fala a partir do lugar do professor, suas palavras significam de modo diferente do
que se falasse do lugar do aluno. O padre fala de um lugar em que suas palavras têm uma autoridade
determinada junto aos fiéis etc. Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são
relações de forças, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na
“comunicação”. A fala do professor vale (significa) mais do que a do aluno. (ORLANDI, 2009, p. 40)

Entretanto se, como afirmamos, o que vale para a nossa análise é a posição-sujeito e não, simplesmente, o seu
lugar social, temos de dizer que não é o locutor empírico que importa, mas a posição que ocupa no discurso. Assim, se o
que Fidel Castro diz significa de determinado modo é pela posição que ocupa no discurso enquanto Comandante em Chefe
do Governo de Cuba. Por agora, interessa-nos somente observar que o seu lugar social trabalha na constituição dos
sentidos daquilo que diz.
Cumpre, portanto, neste ponto de nossa análise, pensar nas denominações e no seu efeito de evidência
provocado pela estabilização de sentidos através do processo parafrástico, aliado à força relativa ao lugar social que Fidel
Castro ocupa.
Voltando ao que dissemos anteriormente, em nosso corpus, encontramos algumas formas de denominar. Nos
pronunciamentos analisados, estes modos de denominação produzem um efeito de verdade. Isto significa que, pelas
questões acima expostas, denominar, nestas condições, pode ser compreendido como enunciar uma verdade.
Com Mariani,

entendemos, nessa perspectiva, que o denominar não é apenas um aspecto do caráter de designação
das línguas. Denominar é significar, ou melhor, representa uma vertente do processo social geral de
produção de sentidos. O processo de denominação não está na ordem da língua ou das coisas, mas
organiza-se na ordem do discursivo, o qual, relembrando mais uma vez, consiste na relação entre o
lingüístico e o histórico-social, ou entre linguagem e exterioridade. (MARIANI, 1998, p. 118)

E por ser histórico e social, por estarem na ordem da língua e da ideologia, é que os sentidos são constituídos.
Pelo esquecimento número dois e pela evidência dos sentidos, parece natural dizer povo, bem como povo cubano ou
população cubana, mas quando relacionamos estes sentidos estabilizados a outras denominações como protagonista
principal da nossa resistência, povo educado e culto e heróicos compatriotas aparecem outros sentidos funcionando no
discurso socialista cubano contemporâneo sobre a deserção. Trata-se, pois, de uma referência a uma sociedade específica,

438
que teria participado de uma revolução, um povo que “resiste heroicamente” às forças contrárias. Há um constante cenário
de luta construído no discurso.
Em uma primeira leitura dos dezesseis pronunciamentos que constituem nosso corpus, pudemos observar o jogo
de formações imaginárias trabalhando no ato de denominar. A partir daí, fizemos o recorte inicial que originou 76
seqüências discursivas, em que aparecem formas de denominar. Começamos a recortar, buscando exatamente as
paráfrases formuladas para designar Cuba, os habitantes do país, o sistema de governo socialista, os governantes
cubanos, o sistema de governo capitalista e seus representantes, a deserção e, por fim, os desertores. Foram estas
denominações que nos possibilitaram compreender o funcionamento das denominações e, a partir deste ponto, pudemos
pensar nos mecanismos de antecipação no trabalho da argumentação.

A antecipação e as estratégias de argumentação nos pronunciamentos


Na primeira parte deste artigo, discutimos brevemente algumas questões sobre as formações imaginárias e o
trabalho das denominações no funcionamento do discurso socialista cubano sobre a deserção. Também apresentamos o
quadro das formações imaginárias composto pelas imagens construídas no discurso socialista cubano contemporâneo para
os protagonistas do discurso e para os referentes, partindo dos pressupostos de Pêcheux (1990 [1969]) sobre as formações
imaginárias. Elaboramos dois quadros que demonstrariam o esquema de imagens que o sujeito faz de si mesmo, do outro e
do seu referente no discurso. Pretendemos agora dar um passo adiante para compreender, ainda pensando nas formações
imaginárias do discurso, as estratégias de argumentação (PÊCHEUX, 1990 [1969]), principalmente as empreendidas pela
antecipação que o enunciador faz dos seus interlocutores e dos referentes.
Como colocamos na seção anterior, pela antecipação, o enunciador projeta-se ao lugar do outro a fim de adiantar-
se. Por este mecanismo, o enunciador busca convencer o seu interlocutor, antecipando-se. Nas palavras de Orlandi,
segundo o mecanismo de antecipação, todo sujeito tem a capacidade de experimentar, ou melhor, de colocar-
se no lugar em que o seu interlocutor “ouve” suas palavras. Ele antecipa-se assim a seu interlocutor quanto ao
sentido que suas palavras produzem. Esse mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá
de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte. Este espectro varia
amplamente desde a previsão de um interlocutor que é seu cúmplice até aquele que, no outro extremo, ele
prevê como adversário absoluto. Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de argumentação visando
seus efeitos sobre o interlocutor. (ORLANDI, 2009, p. 39)

É por este mecanismo que o sujeito argumenta, acreditando poder antecipar-se aos sentidos que serão
produzidos ao falar para determinado grupo, seja de seus supostos seguidores, os cubanos identificados, seja de seus
supostos opositores, os cubanos desertores ou mesmo aqueles sujeitos inseridos no sistema capitalista de governo. Deste
mecanismo de antecipação fazem parte as formações imaginárias, pois é somente pela suposição das representações que
o sujeito pode antecipar-se, visto que não tem acesso às representações imaginárias do interlocutor. Ressaltemos, com
Pêcheux (1990 [1969]), que esse mecanismo deriva de “processos discursivos anteriores”, ou seja, o protagonista do
discurso toma como base do seu discurso o conhecimento sobre dizeres anteriores em condições de produção
semelhantes.3

As diversas formações resultam, elas mesmas, de processos discursivos anteriores (provenientes de outras
condições de produção) que deixaram de funcionar mas que deram nascimento a “tomadas de posição”
implícitas que asseguram a possibilidade do processo discursivo em foco. Por oposição à tese
“fenomenológica” que colocaria a apreensão perceptiva do referente, do outro e de si mesmo como condição
pré-discursiva do discurso, supomos que a percepção é sempre atravessada pelo “já ouvido” e o “já-dito”,

3 Isto não quer dizer que este processo seja controlado pelo sujeito, mas que faz parte da própria configuração do mecanismo de

antecipação.

439
através dos quais se constitui a substância das formações imaginárias enunciadas. (PÊCHEUX, 1990 [1969].
p. 95).

Retomando as reflexões de Pêcheux, o sujeito não se projeta ao acaso, ele embasa seu dizer em discursos
anteriores, condições de produção conhecidas, em que já obteve “respostas” a seu dizer. Voltando-nos para nosso corpus,
é possível verificar este mecanismo pelo qual o locutor antecipa-se ao que “sabe” sobre o povo cubano, sobre suas
manifestações quanto a pronunciamentos anteriores ou mesmo pela imagem que faz sobre suas necessidades, vistas suas
condições sócio-históricas.
Em todo processo discursivo há por parte do emissor uma antecipação das representações do receptor “sobre a
qual se funda a estratégia do discurso” (PÊCHEUX, 1990 [1969], p. 84). De acordo com Orlandi,

sobre esta estratégia, sobre o mecanismo de antecipação repousa o funcionamento discursivo da


argumentação. Argumentar é prever, tomado pelo jogo de imagens. Que se trate de transformar o ouvinte ou
de identificar-se a ele, a antecipação joga a partir das diferentes instâncias dos processos discursivos.
(ORLANDI, 1998, p. 76-77)

Para a Análise de Discurso a que nos filiamos, a estratégia de argumentação funda-se sobre as formações
imaginárias que constituem o discurso. A argumentação, para esta teoria, é uma estratégia que começa fora do sujeito, não
parte da intenção que este tem de convencer e não está no nível da formulação e sim da constituição dos sentidos.
(ORLANDI, 1998) Isto significa dizer que “a argumentação é vista pelo analista de discurso a partir do processo histórico-
discursivo em que as posições dos sujeitos são constituídas.” (ORLANDI, 1998, p. 78) Por conseguinte, as intenções do
sujeito
são assim produtos de processos de significação aos quais o sujeito não tem acesso direto. As filiações
ideológicas já estão definidas e o jogo da argumentação não toca as posições dos sujeitos, ao contrário,
deriva desse jogo; o significa. Se a argumentação é conduzida pelas intenções do sujeito, este tem no entanto
sua posição já constituída e produz seus argumentos sob o efeito da sua ilusão subjetiva afetada pela vontade
da verdade, pelas evidências do sentido. Os próprios argumentos são produtos dos discursos vigentes,
historicamente determinados. Eles também derivam das relações entre discursos e têm um papel importante
nas projeções imaginárias do nível da formulação, das antecipações. (ORLANDI, 1998, p. 78-79)

Destarte, não é no nível da formulação que se encontra a argumentação, esta faz parte de um processo discursivo
da constituição dos sentidos. Os sentidos derivam dos “discursos vigentes, historicamente determinados.” (ORLANDI, 1998)
Fazem parte deste jogo as relações interdiscursivas, bem como o apagamento das evidências dos sentidos e do sujeito
pelos dois esquecimentos.
Em concordância com estes pressupostos e baseados em Pêcheux (1990 [1969]), formulamos o quadro das
formações imaginárias que demonstram o mecanismo de antecipação, permitindo o direcionamento do dizer nos
pronunciamentos de Fidel Castro pelas estratégias do discurso (PÊCHEUX, 1990 [1969]). Junto a isto, apresentaremos
também algumas possibilidades de perguntas subjacentes para estas questões. Após esta proposta de sistematização,
seguiremos com nossa análise.

440
Questão implícita cuja
“resposta” subentende a
Expressão que designa as formações imaginárias Significação da Expressão
formação imaginária
correspondente
Imagem que Fidel Castro
(FC) faz da imagem que o “Que suponho que pensa ele
IFC (I CC (FC)) cidadão cubano (CC) faz do sobre mim para que eu lhe
lugar do seu interlocutor, fale assim?”
ocupado por Fidel Castro
Imagem que Fidel Castro faz
“Que suponho que pensa ele
da imagem que o cidadão
IFC (ICC (CC)) sobre ele mesmo para que eu
cubano faz do seu próprio
lhe fale assim?”
lugar
Imagem que Fidel Castro faz
A “Que suponho que pensa ele
da imagem que o cidadão
IFC (ICC (CC)) sobre ele mesmo para que eu
cubano faz do seu próprio
lhe fale assim?”
lugar
Imagem que Fidel Castro faz “Que suponho que pensa ele
IFC (ICC (D)) da imagem que o cidadão sobre a deserção para que eu
cubano faz da deserção lhe fale assim?”
Imagem que Fidel Castro faz
“Que suponho que pensa ele
da imagem que o cidadão
IFC (ICC (CD)) sobre o cubano desertor para
cubano faz do cidadão cubano
que eu lhe fale assim?”
desertor
Quadro 3 – Quadro das formações imaginárias dos mecanismos de antecipação

A partir deste quadro, podemos fazer algumas colocações com relação a nosso corpus. Conforme o proposto
anteriormente, baseado nos mecanismos de antecipação o sujeito pode experimentar o lugar do seu interlocutor e, neste
mesmo movimento, supor o que é de seu interesse. Pelo funcionamento deste mecanismo, Fidel Castro, na posição de
Comandante em Chefe do Governo de Cuba, trata, em seus pronunciamentos, de temas que julga serem interessantes
para o povo cubano, ocupando a posição de mestre, daquele que fala como quem tem aprendizes como interlocutores. Esta
posição de mestre aparece na configuração do discurso e na ordem estabelecida.

SD 01: Prometi-lhes na última sexta-feira, 15 de fevereiro, que na próxima reflexão abordaria uma
tema de interesse para muitos compatriotas. (Pronunciamento 09, Mensaje del Comandante en
Jefe, Granma Internacional, 18 de fevereiro de 2008. Grifos nossos).4

SD 02: Para a imensa maioria do nosso povo o essencial é conhecer qual foi o comportamento
moral dos atletas, que com tanto sacrifício os educa e forma. (Pronunciamento 08, La constancia
escrita,Granma Internacional, 07 de agosto de 2007. Grifos nossos)

SD 03: Esta é uma reflexão política. Para dizer-lo mais exatamente: é outra proclama. Hoje faz um
ano exato da primeira, em 31 de julho de 2006. Contudo, o ano transcorrido vale por 10 com relação à
possibilidade de viver uma experiência única que me proporcionou informações e conhecimentos
sobre questões vitais para a humanidade, que transmiti com toda honradez ao povo de Cuba.
(Pronunciamento 05, La llama eterna, Granma Internacional, 31 de julho de 2007. Grifos nossos).

O sujeito não sabe realmente se este é um tema de interesse para os cubanos, entretanto é pela representação
imaginária que supõe que o tema a tratar possa ser relevante. E, além disso, verifica-se que esta construção ultrapassa a
própria suposição que faz o locutor, faz parte do mecanismo de argumentação. Mesmo que o motivo do pronunciamento
não seja válido para seus locutores, o protagonista do discurso, na posição de líder, o apresenta como se assim fosse. Na
constituição do dizer, os sentidos aparecem, funcionando pela organização da língua na ordem do discurso.
No segundo pronunciamento, mostra-se como o essencial a conhecer aquilo que o protagonista afirma ser
essencial para a maioria do povo. Desta forma, dizer que o tema é de interesse para os compatriotas ou o que é essencial
ou não para os cubanos ultrapassa a suposição e passa a ser da ordem da imposição dos sentidos. Isto porque, como

4 Todas as seqüências discursivas foram traduzidas por nós. Nas referências bibliográficas, constam os pronunciamentos analisados.

441
dissemos anteriormente, da posição que ocupa Fidel Castro, da posição de onde enuncia, as palavras “significam mais”
(ORLANDI, 2009) por estarem sustentadas pelo sujeito nesta posição.
É também pelo mecanismo de antecipação, por poder imaginar-se no lugar do outro no discurso, que o locutor
pode antecipar-se a alguns sentidos para os referentes. Isto significa dizer que ao falar do ato de desertar ou dos cidadãos
cubanos que desertam, o sujeito levará em consideração as representações imaginárias que supõe funcionarem para o seu
interlocutor.
Conforme o Quadro das formações imaginárias dos mecanismos de antecipação, podemos retomar as
representações imaginárias que compõem o discurso, funcionando pela antecipação, considerando a imagem que Fidel
Castro faz da imagem que o cidadão cubano faz do ato de desertar – IFC (I CC (D)). Ao supor que o cidadão cubano,
apoiando o sistema de governo socialista, está contra a deserção, o sujeito, na posição de líder, pode condenar este ato,
significando-o como traição, malfeitoria ou golpe baixo por parte do cidadão cubano desertor.

SD 04: A traição por dinheiro é uma das armas prediletas de Estados Unidos para destruir a resistência de
Cuba. (Pronunciamento 03, ¿Brasil sustituto de Estados Unidos?, TV Camaguey, 23 de julho de 2007. Grifos
nossos).

SD 05: Vejam como se orgulham da malfeitoria cometida contra o país. (Pronunciamento 04, La repugnante
compraventa de atletas, TV Camaguey, 27 de julho de 2007. Grifos nossos).

SD 06: Havia que golpeá-la, e não somente compraram a dois dos atletas que tinham o ouro assegurado, mas
também golpearam a excelente moral dos demais atletas que continuaram defendendo com valor suas
medalhas de ouro. O golpe baixo influenciou até nos juízes. (Pronunciamento 04, La repugnante
compraventa de atletas, TV Camaguey, 27 de julho de 2007. Grifos nossos).

SD 07: Não existe justificativa alguma para solicitar asilo político. Se não é o Brasil seu mercado definitivo,
pouco lhes importa. Há países ricos do primeiro mundo que pagam muito mais. As autoridades brasieleiras
declararam que os que desertem deverão provar a necessidade real de asilo. É impossível demonstrar o
contrário. De antemão se conhece seu destino final como atletas mercenários em uma sociedade de
consumo. Acho que ofenderam o Brasil, utilizando os Pan-Americanos como pretexto para autopromover-se.
De todas as formas, consideramos úteis as declarações de suas autoridades. (Pronunciamento 03, ¿Brasil
sustituto de Estados Unidos?, TV Camaguey, 23 de julho de 2007. Grifos nossos).

De acordo com estes recortes, para a deserção, constituem-se sentidos em torno de denominações como traição
e golpe. A deserção é um ato contra o Estado, constituindo-se em uma deserção dolosa5. Contudo, como aponta Pêcheux
(1990 [1969]), os mecanismos de antecipação funcionam também porque o locutor considera condições de produção pré-
discursivas, baseando-se em outras condições de produção, possibilitando o funcionamento da memória do dizer.
Pelas representações imaginárias e baseando-se nas condições anteriores, constituem-se outros sentidos para a
deserção. Como expusemos anteriormente, certamente haverá cubanos que conhecem outros cubanos que desertaram ou
que querem desertar. Ao dizer que o ato de deserção é uma traição, o sujeito, na posição de Comandante em Chefe, julga
negativamente o desertor, podendo gerar um “mal-estar” a partir dos seus pronunciamentos. De acordo com as análises
empreendidas, verifica-se a tentativa de manutenção do sistema de governo, sob o sustentáculo da imagem de um
governante compreensivo e um governo acolhedor, que não somente julga os desertores, mas, principalmente, os
compreende. Para isto, pelo mecanismo de antecipação das imagens, colocam-se discursivamente outros sentidos para a
deserção e para os desertores, configurando-se a deserção culposa, não intencional.

SD 08: Qual foi o pior problema dos países pobres do ponto de vista tecnológico e econômico? O roubo de
cérebros.

5 Aproveitamos os termos “doloso” e “culposo” do sistema jurídico por compreender que abarcariam os sentidos que depreendemos da

análise sobre os tipos de deserção/ tipos de desertores.

442
Qual do ponto de vista patriótico e educativo? O roubo de talentos. (Pronunciamento 04, La repugnante
compraventa de atletas, TV Camaguey, 27 de julho de 2007. Grifos nossos).

SD 09: Os boxeadores lhe comunicaram que haviam cometido um erro e estavam arrependidos. Negaram-
se a receber um cidadão alemão, que de imediato se interessou por eles, cumprindo instruções da empresa
mafiosa. Isto nós soubemos depois. (Pronunciamento 7, La política y el deporte, TV Camaguey, 04 de agosto
de 2007. Grifos nossos).

SD 10: Falei da tecnologia e disciplina introduzidas no beisebol por Japão, dos esforços que realiza uma
nação com não menos de 10,4 vezes a população de Cuba, onde ademais havia que descontar aos “débeis
de consciência que se deixam subornar por nossos inimigos”. (Pronunciamento 16, ¡Gloria a los buenos!,
Granma Internacional, 20 de março de 2009. Grifos nossos).

SD 11: Dos 73 que voaram para o México e San Diego, dois pobres diabos não regressaram.
(Pronunciamento 16, ¡Gloria a los buenos!, Granma Internacional, 20 de março de 2009. Grifos nossos).

Nestas seqüências, constitui-se um novo sentido para a deserção, que não é mais significada como um ato de
traição, agora a deserção é outra, dita como roubo de talentos, roubo dos talentosos atletas que não aparecem mais como
traidores. Pelo funcionamento deste recorte, os atletas não traíram a pátria, foram roubados, são pobres diabos enganados,
inocentes, chegando a arrepender-se. Foram levados a errar, sem ter culpa pela deserção, que não era sua vontade.
Isto é possível porque os sentidos mudam, estão sempre em curso. Pelo mecanismo de antecipação, sustentado
pelo conhecimento das condições pré-discursivas, a deserção muda de sentido e estabelece-se assim a estratégia de
argumentação do discurso socialista cubano. Ressaltemos que esta estratégia não é parte da intenção de um sujeito
onipotente que deseja convencer e sim parte de um processo discursivo que se constitui já nas formações ideológicas.
Da mesma maneira que os sentidos mudam para a deserção, eles também deslizam para significar o desertor.
Pelo funcionamento discursivo da argumentação, o mecanismo de antecipação funciona tanto para a representação do ato
de desertar quanto para o sujeito que deserta. Estes aparecem nos pronunciamentos como, por exemplo, atletas
mercenários, funcionando contrariamente a talentos desportivos, talentos roubados. Desta maneira, a deserção e os
desertores significam diferente e não porque as condições de deserção mudaram, mas porque está em funcionamento o
mecanismo das antecipações pelo qual o sujeito experimenta o lugar do outro no discurso, fazendo valer as supostas
imagens que tem o interlocutor. Assim, Fidel Castro, na posição de Comandante em Chefe do Governo de Cuba, parece
supor que nem todos os cubanos representarão os atletas como traidores. Para alguns, os desportistas podem ser
inocentes, ou ainda, terem apenas buscado outras oportunidades fora do sistema. Por esta estratégia, o sujeito parece
ocupar a posição de quem entende os desportistas que foram roubados e não desertaram por sua própria vontade. A culpa,
neste caso, recai sobre a máfia que os rouba e não sobre os atletas inocentes.
Concluindo
Pela análise empreendida, pudemos verificar que pelo funcionamento dos mecanismos de argumentação,
constituem-se sentidos diferentes aos quais podemos aceder pela análise das denominações.
O jogo dos sentidos na história permite que se construam mais possibilidades de identificação com o sistema. De
um modo ou de outro, por um ou outro sentido, o cidadão cubano pode identificar-se e o governo, por sua vez, constrói para
si uma imagem de justiça e compreensão, em uma “sociedade harmoniosa”, possibilitando, pelo funcionamento da
argumentação discursiva, a manutenção do sistema de governo que acolhe a todos, inclusive aos desertores.
Procedemos, como expusemos no início destas colocações, a uma análise que foi configurada com vista às
regularidades encontradas nos textos analisados, o que nos possibilitou analisar o funcionamento do imaginário socialista
cubano, principalmente em torno do tema da deserção. Por esta análise foi possível perceber, na materialidade da língua, o

443
mecanismo das formações imaginárias nos pronunciamentos selecionados e, principalmente, as estratégias de
argumentação funcionando no discurso socialista cubano contemporâneo sobre a deserção.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 3 ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1986.

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística general. México, D.F: Siglo Veintiuno Editores, 1971 [1966]. 218 p.

MARIANI, Bethania S. C. O PCB e a imprensa. Os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro,
Campinas: Revan, Editora da UNICAMP, 1998. 256 p.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2001 [1848].

ORLANDI, Eni P. Terra à vista. Discurso do confronto: velho e novo mundo. 2 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
288 p.

_____________. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8 ed. Campinas, SP: Pontes, 2009. 100 p.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi et al. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP, 1988 [1975]. 317 p.

_____________. Análise Automática do Discurso. Trad. Eni P. Orlandi. In: GADET, Françoise. HAK, Tony. (Org.). Por uma
Análise Automática do Discurso. Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990
[1969]), p. 61-161.

Pronunciamentos analisados

CASTRO, Fidel. ¿Brasil sustituto de Estados Unidos? TV Camaguey, Cuba, 23 de julho de 2007. Disponível em:
<www.tvcamaguey.co.cu>. Acesso em: 20 de maio de 2009.

_____________. La repugnante compraventa de atletas, TV Camaguey, Cuba, 27 de julho de 2007. Disponível em:
<www.tvcamaguey.co.cu>. Acesso em: 15 de setembro de 2007.

_____________. La llama eterna. Granma Internacional, Cuba, 31 de julho de 2007. Disponível em: <www.granma.cu>.
Acesso em: 30 de agosto de 2008.

_____________. La política y el deporte. TV Camaguey, Cuba, 04 de agosto de 2007. Disponível em:


<www.tvcamaguey.co.cu>. Acesso em: 15 de setembro de 2007.

_____________. La constancia escrita. Granma Internacional, Cuba, 07 de agosto de 2007. Disponível em:
<www.granma.cu>. Acesso em: 30 de agosto de 2008.

_____________. Mensaje del Comandante en Jefe. Granma Internacional, Cuba, 18 de fevereiro de 2008. Disponível em:
<www.granma.cu>. Acesso em: 10 de agosto de 2008.

_____________. ¡Gloria a los buenos! Granma Internacional, Cuba, 20 de março de 2009. Disponível em:
<www.granma.cu>. Acesso em: 15 de outubro de 2009.

JOYCE PALHA COLAÇA


joy.palha@gmail.com

Possui graduação em Letras (2005) e mestrado em Letras (2010), ambos pela Universidade Federal Fluminense. No
mestrado defendeu sua dissertação sob o título: “O discurso socialista cubano contemporâneo sobre a deserção: uma
análise dos pronunciamentos de Fidel Castro”. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Análise de Discurso
e ensino de Língua Espanhola.

444
A modalização em Comunicação em prosa moderna

CONFORTE, André
(UERJ)

Introdução
Comunicação em prosa moderna, de Othon M. Garcia, cuja primeira edição data de 1967, é considerado até hoje
livro pioneiro e dos mais originais na área de produção textual em nosso país. É obra multifacetada, que dialoga, além da
Linguística Textual, com a Estilística, a Gramática, a Lógica e a Metodologia Científica, para dizer o mínimo. Não se trata,
no entanto, de um compêndio teórico sobre qualquer um desses campos do saber, mas sim de um livro que reúne o mínimo
de teoria possível de cada um dos domínios acima arrolados, no que eles podem contribuir para uma melhor produção
textual por parte do estudante. Nossos estudos em torno da contribuição de Othon M. Garcia fazem parte de pesquisa no
doutorado em Língua Portuguesa na Uerj. Pela primeira vez, propomo-nos a privilegiar não o conteúdo, mas a forma do
texto do autor na obra citada. Tal proposta deriva do fato de que, em nossas pesquisas, percebemos a alta frequência com
que o autor recorre ao recurso da modalização na construção do texto que compõe o arcabouço teórico de Comunicação
em prosa moderna. Em nosso trabalho, procuraremos demonstrar os diferentes tipos de modalização empregados pelo
autor na escritura de sua obra capital, assim como suas possíveis finalidades e consequências na recepção crítica do livro.

Modalização, ethos e proteção de face


Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004:336), a modalização

designa a atitude do sujeito falante em relação a seu próprio enunciado, atitude que deixa marcas de
diversos tipos (...)
pode ser explicitada por marcas particulares ou manter-se no implícito do discurso, mas ela está
sempre presente, indicando a atitude do sujeito falante frente a seu interlocutor, a si mesmo e a seu
próprio enunciado”.

Kerbrat-Orecchioni (apud Lima, 2006:150) busca relacionar a modalização ao conceito de face, e é o que de certo
modo faremos aqui, relacionando ambos, também, com a noção de ethos, que constitui o processo no qual se constrói a
imagem do enunciador no discurso, numa perspectiva interacional. Charaudeau & Maingueneau (op. cit., p. 221) já
salientavam que
a noção de ethos recobre aquelas já desenvolvidas pela linguística da enunciação (o quadro figurativo
de Benveniste) e, em sua continuidade, pelos trabalhos de Kerbrat-Orecchioni (1980:20) sobre a
subjetividade na linguagem (as imagens que A e B fazem respectivamente de si e dou outro na troca).
Trata-se de uma noção, aliás, que mantém relação estreita com a noção de “apresentação de si”, de
Goffman (1973).

O objetivo de nosso trabalho é demonstrar, baseando-nos nas noções e nas considerações acima, que
Comunicação em prosa moderna, devido ao fato de ser obra construída em tom de diálogo com seu público leitor, em
registro formal porém leve, é um livro em que o autor parece buscar a construção de uma imagem que revela prudência
científica e que pretende, consequentemente, proteger a face desse mesmo autor. Não obstante ser obra primordialmente
de produção textual, CPM dialoga em várias passagens com o discurso científico mais atualizado à época de sua
publicação, tendo inclusive recebido alguns acréscimos ao longo de suas dezenas de edições (em especial a 3ª e a 7ª
tiveram modificações substanciais). Tal diálogo coloca o autor numa linha de fronteira em que afirmações peremptórias e

445
categóricas podem ser perigosas. Nas ciências linguísticas, assim como em qualquer campo científico, esse grau de
modalização se mostrará em maior ou menor grau, seja o discurso produzido marcado por maior ou menor impessoalidade.
Há autores, como Mario Perini, que tentam imprimir a seu discurso um ethos de “obra progresso”, em permanentes vias de
reformulação, o que empresta ao discurso produzido um caráter de humildade, mas que, evidentemente, protege a face do
enunciador. Não parece haver, em CPM, um discurso da “obra em progresso”, mas as marcas de modalização que
configuram um ethos de prudência científica permeiam todo o texto. Procuraremos demonstrar de que maneiras e em que
modalidades isso ocorre.

A modalização
Freitas (2002: 117) afirma que a modalização “faz parte do jogo linguístico chamado enunciação”, mas que não
constitui o todo desta, porque “esta engloba aquela” (idem, ibidem). No entanto, a primeira é sustentáculo da segunda, “na
medida em que permite explicitar as posições do sujeito falante em relação a seu interlocutor, a ele mesmo e a seu
propósito” (idem, p. 118). Trata-se de categoria conceitual mais que formal, “à qual correspondem meios de expressão que
permitem explicitar as diferentes posições do sujeito falante e suas intenções de enunciação” (idem, ibidem).
Neves (2006: 154), porém, lembra que o conceito de modalidade não é pacífico:

Considerando que uma das classes de modalidade (e uma classe primordial) é a que reúne a asserção
(afirmação e negação), a interrogação e a ênfase, Culioli (apud Vignaux, 1988) propõe que,
automaticamente, não existem enunciados não modalizados. Também para Kiefer (1987, p. 77), cada
tipo frasal tradicionalmente reconhecido (frase declarativa, interrogativa, optativa, exclamativa e
imperativa) revela um tipo de opinião por parte do falante, e, portanto, corresponde a um tipo de
modalidade.

Digamos que é mais razoável crer-se que há diferentes graus de modalização, uma vez que esta categoria denota
maior ou menor engajamento no próprio discurso enunciado. Resta saber se haveria um grau zero de engajamento, ou pelo
menos um, digamos, engajamento não marcado, ou seja, não explicitado no nível formal no fio do discurso. A partir do
estabelecimento desse critério, podem-se verificar traços de modalização em maior ou menor número neste e naquele
discurso, traços esses que colaboram na composição do ethos discursivo do enunciador em análise.
Dentre os tipos básicos de modalidades conhecidas, a saber, a epistêmica (orientada para o sujeito da
enunciação), a dinâmica (orientada para o sujeito do enunciado), a deôntica (orientada para o predicado da enunciação,
implicando o traço [+ controle] e a alética, (orientada para o predicado do enunciado) (Neves, op. cit., p. 163), cuidaremos,
neste estudo, da primeira, por referir-se esta ao eixo do saber, ou ainda nas palavras de Nuyts (apud Neves, ibidem), por
ser esta modalidade “aquela que constitui a qualificação do falante sobre um certo estado de coisas em termos das chances
de ele ocorrer em algum mundo possível”. Ou ainda, “a qualificação do falante sobre a probabilidade de o conteúdo de uma
proposição ser ou poder tornar-se verdadeiro, ser, ou poder ser validado” (Silva-Corvalán, apud Neves, ibidem). Digamos
que é esta modalidade a que nos interessa no estudo de CPM.
Ainda segundo Neves (op. cit., p. 167), a modalidade pode ser expressa por diferentes meios linguísticos, como
verbos modais ou de opinião, advérbios, adjetivos em posição predicativa etc. É claro que há diversas outras formas de se
operarem mecanismos de modalização, e ousaríamos dizer que se trata de um inventário aberto, sempre sujeito a novas
inclusões. Procuraremos demonstrar algumas delas na obra em análise.

446
A modalização em CPM
Já na primeira parte da obra de Othon M. Garcia, deparamo-nos com conceitos que até hoje se confundem e são
tratados até mesmo distintamente, a saber, os conceitos de frase, oração e período. Ciente das tênues fronteiras que os
separam, assim inicia Garcia seu estudo sobre o assunto:

Seu arcabouço linguístico [o da frase] encerra normalmente um mínimo de dois termos – o sujeito e o
predicado – normalmente, mas não obrigatoriamente, pois em Português, pelo menos, há, como
se sabe,orações ou frases sem sujeito (Garcia, 2003, p. 32)

As expressões por nós grifadas modalizam o enunciado e protegem a face do enunciador: não só os advérbios de
modo, mas também o uso de “mas não”, da expressão restritiva “pelo menos” e ainda da expressão “como se sabe”, de
estimado valor argumentativo, por se referir a um ‘on’ genérico. Sabemos o quanto é polêmico associar sujeito e predicado,
elementos sintáticos, à estrutura da frase, entidade que se encontra no âmbito da comunicação, sendo, portanto, estrutura
natureza distinta à da oração. O fato de Garcia ter “cercado” seu enunciado de todos esses recursos modalizadores revela o
cuidado de não incidir em afirmações categóricas que, do ponto de vista epistemológico, poderiam comprometer o capítulo.
É também bastante comum encontrar-se em CPM aquela categoria metadiscursiva a que Authier-Revuz chamava
modalização autonímica, como na seguinte passagem, em que o autor pede vênia para introduzir um neologismo: “nos
exemplos em verso, mais ainda do que no anterior, a presença do verbo é praticamente – perdoem-nos o adjetivo e a
grafia – “inmentável” (idem, p. 41).
Como já dissemos, na 3ª e na 7ª edição de CPM, foram realizadas modificações significativas em virtude de novas
contribuições que a ciência linguística veio recebendo com o passar dos anos. Uma delas foi a gramática gerativo-
transformacional de Chomsky, da qual Garcia pareceu abraçar alguns conceitos com certo entusiasmo. No entanto, utilizar
conceitos da gramática gerativa para se ensinar produção textual pode ser uma operação um tanto arriscada. Daí que o
autor de CPM faz largo uso dos recursos de modalização nos trechos em que Chomsky é direta ou indiretamente citado,
como no caso a seguir, em que Garcia trata do chamado paralelismo sintático. Até a 7ª edição, o autor defendia o princípio
do paralelismo baseado em premissas como a elegância e o ritmo da frase. Com a introdução da teoria gerativa, pareceu
encontrar um reforço de peso para sua argumentação:

Se a coordenação é, como vimos, um processo de encadeamento de valores sintáticos idênticos, é


justo presumir que quaisquer elementos da frase – sejam orações, sejam termos dela -, coordenados
entre si, devam – em princípio, pelo menos – apresentar estrutura gramatical idêntica, pois – como,
aliás, ensina a gramática de Chomsky – não se podem coordenar frases que não comportem
constituintes do mesmo tipo (Idem, pp. 52-53).

O recurso à modalização, no trecho acima, explicitado em nossos grifos, não foi sem motivo, dado o fato de que é
no mínimo polêmico apoiar-se na gramática gerativa para defender usos que dizem respeito muito mais, se não totalmente,
ao campo da estilística. Entendemos que o recurso ao testemunho autorizado, presente no segundo elemento grifado, é
também recurso modalizador, uma vez que reforça o engajamento do autor em dada proposição.
Outra forma de modalizar o discurso, para além do nível frasal, é a chamada operação que os estudiosos da
argumentação denominam concessão, que consiste em aderir parcialmente à tese antagônica. No mesmo capítulo em que
defende o emprego do paralelismo, ressalta Garcia: “entretanto, o paralelismo não constitui uma norma rígida, nem sempre
é, pode ou deve ser levado à risca, pois a índole e as tradições da língua impõem ou justificam outros padrões. (idem, p.
53). Note-se que, sendo a concessão uma operação realizada no nível do discurso, e não por meio de elementos lexicais
específicos, não é possível destacarem-se palavras ou expressões modalizadoras, uma vez que toda a operação de

447
concessão, que se dá em um ou mais parágrafos, é em si o ato de modalização, e, consequentemente, de proteção de
face, uma vez que um dos principais objetivos da concessão é emprestar ao seu enunciador um ethos de humildade, de
quem conhece o discurso oposto e tem com ele capacidade de dialogar.
O emprego de adjetivos e adjuntos adverbiais, por suas propriedades restritivas e circunstanciadoras, é também
meio eficaz de modalização, uma vez que eles circunscrevem, delimitam o objeto do discurso, evitando, dessa forma,
generalizações que poderiam comprometer o estudo científico. Note-se como Garcia aborda o tema “metáfora”:

Em síntese – didática –, pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo) que consiste
em dizer que uma coisa (A) é outra (B), em virtude de qualquer semelhança percebida pelo espírito
entre um traço característico (...) (p. 107)

...deixando de lado as sutilezas semióticas da distinção entre símbolo, ícone, signo, índice, sinal,
podemos dizer, apenas com propósito didático, que símbolo é lato sensu, uma forma de
comunicação (...) (p. 117)

Repare-se ainda que, no primeiro caso, há ainda o recurso parentético do travessão, que tem maior poder de
“brecar” a frase e chamar a atenção do leitor para a ressalva feita pelo autor do que as vírgulas e os próprios parênteses.
Com esses recursos modalizadores, evita Garcia ser acusado de cair na simplificação teórica, uma vez que a finalidade
didática pressupõe, naturalmente, alguma simplificação em detrimento da exatidão científica que seria exigida em estratos
mais altos da descrição linguística.
Outro capítulo em que Garcia recorre providencialmente ao emprego da modalização é o que diz respeito aos
discursos direto e indireto. Como que já desconfiando do tratamento canônico dado a essas categorias nos compêndios
gramaticais e manuais de redação, assim se refere o autor a essas duas categorias:

No discurso direto – a oractio reta do latim –, o narrador reproduz (ou imagina reproduzir)
textualmente as palavras – i. e., a fala – das personagens ou interlocutores (p. 147)

(...) a parte restante do trecho está em discurso direto: as palavras que traduzem o pensamento das
personagens (uma das quais é o próprio narrador) são as mesmas que teriam sido, presumivelmente,
proferidas.

No primeiro caso, a frase parentética deixa clara a desconfiança do autor acerca do juízo de que o discurso direto
consiste na reprodução fiel do que foi dito por outrem ou por si mesmo. O mesmo se dá com o advérbio presumivelmente,
posto entre vírgulas. A dúvida de Garcia, explicitada pelos recursos modalizadores, é bastante procedente: Isabel Margarida
Duarte (2003:60) questiona severamente a concepção tradicional acerca das relações entre discurso direto e indireto: “Não
comungo, como já mais que uma vez referi, da ilusão de que o DD relataria, fielmente, as palavras ditas por um primeiro
locutor”. A respeito dessa “ilusão”, esclarece Duarte:

Mais do que relatar um enunciado, o DD relata uma situação de enunciação, evoca-a apresentando um
determinado enunciado como relatado, mostra que houve acto de fala, respeita os dícticos [dêiticos] e os
tempos verbais da enunciação inicial, o que não significa que transcreva textualmente o discurso de
partida. Contrariamente ao que afirmam a maior parte das gramáticas e a escola continua a ensinar, há,
no DD, intervenções do relator que afastam o enunciado citado da sua forma primitiva, original. (idem, p.
63).

448
A autora ainda refuta com propriedade a concepção tradicional de que o discurso indireto seria uma mera
derivação morfossintática do discurso direto:
Em estreita relação com esta concepção errônea do DD como reprodução fiel do discurso, há um
segundo preceito da gramática tradicional que os estudos linguísticos mais recentes mostraram ser
inaceitável: o de que o DI se obteria a partir do DD. Pela aplicação de determinadas regras
morfossintáticas, sem serem tomadas em linha de conta as condições enunciativas concretas. O DD
seria a forma simples, o discurso fielmente reproduzido a partir do qual se obteria o DI, considerado
forma complexa por incluir a subordinação. (...)

Ao utilizarmos DI, quase nunca respeitamos a forma original do discurso que estamos a
reproduzir. É normal que reformulemos, clarificando, resumindo ou ate glosando, o texto que
pretendemos “citar”. Torna-se por isso difícil, se não impossível, em muitos casos, descobrir ou
sequer imaginar o discurso original. (idem, pp. 50-51)

Charaudeau & Maingueneau (op. cit., p. 174) também lembram que “já se considera fora de questão que se trata
de três formas [DD, DI e ainda o discurso indireto livre] independentes uma da outra, isto é, que não se pode passar de uma
a outra por operações mecânicas”. Certamente por já ter essa mesma percepção, em outros dois momentos do mesmo
capítulo, Garcia, ainda que empregando as técnicas tradicionais de passagem do DD para o DI, não deixará de empregar
os recursos modalizadores que protegerão a face do seu discurso científico:

1) As mesmas ideias [ao comentar o diálogo já citado no romance de Ciro dos Anjos] poderiam, em
essência, assumir a seguinte versão em discurso indireto; (p. 147)

2) Salvo os casos sujeitos a variações decorrentes de torneios estilísticos da frase, em


contextos singulares, a correspondência entre os tempos e os modos verbais nos discursos direto e
indireto apresenta regularidade suficiente para permitir uma tentativa de sistematização com
propósitos didáticos. É o que se procura fazer nos tópicos seguintes (p. 153 – grifo nosso).

Na segunda parte do livro, dedicada ao vocabulário, discute Garcia o significado das palavras fora de contexto,
desconfiando da afirmação peremptória de Ogden & Richards (autores do clássico O significado de significado) de que as
palavras nada significam fora do contexto:
Isoladas do seu contexto ou situação, as palavras quase nada significam de maneira precisa,
inequívoca (Ogden e Richards são radicais: “as palavras nada significam por si mesmas)” (p. 176)

Mário Perini (2006) corrobora a prudência de Garcia ao dizer que “essa afirmação [a de que as palavras não têm
nenhum significado fora de contexto] não é correta” (p. 44), explicando que, por exemplo, uma palavra como mão pode
significar muitas coisas, mas nunca será sinônimo de pé, nem de chatear, nem de Brasil. Ou seja, um falante que vá
interpretar uma frase como “A mão de Vera ficou machucada” ou “Essa parede vai receber uma mão de tinta” “já parte de
um conhecimento prévio do que é que mão pode e não pode significar” (ibidem). Curiosamente, Perini, também na sua
prudência científica, afirma em nota de rodapé: “Nunca vi escrito que as palavras só tiram seu significado do contexto, mas
já ouvi isso dito por profissionais de certo gabarito; portanto, acho bom refutar a ideia aqui” (ibidem). Mais uma vez, parece-
nos, a intuição do autor de CPM se mostrou acertada.
Mais adiante, ao tentar delimitar fronteiras mais nítidas entre termos como causa, motivo, efeito, razão e
consequência, parece o autor fazer também acertado uso da intuição linguística:
Embora possa dizer “qual a causa da sua atitude?”, “sente-se” que não se deve, que, pelo menos,
não é comum. Tampouco se dirá que “o motivo da dilatação dos corpos é o calor” ou que “razão da
queda dos corpos é a atração exercida pelo centro da Terra”. Dir-se-á, sem dúvida, “causa”, pois trata-
se de fatos ou fenômenos físicos (p. 237).

449
Essa intuição do autor servirá de argumento para introduzir uma distinção que era (é?) fonte de angústia para
todos os que lidamos com o ensino da língua: “não estará aí um critério para distinguir as orações coordenadas explicativas
das subordinativas causais? A questão, posto que irrelevante, aflige muitos alunos e professores” (idem, nota de rodapé).
Só mais recentemente, com o avanço dos estudos textuais-discursivos, pôde-se melhor compreender que a
distinção entre orações explicativas e causais é muito mais da ordem do discurso do que da frase. Ou seja, ao passo que
estas se encontram no âmbito da narração, aquelas servem à narração. O critério sugerido por Garcia, conquanto não
tenha sido exato, já nos sinalizava que o caminho para distinguir uma da outra seguia para além da análise sintática.
No capítulo dedicado ao texto argumentativo, Garcia prevê a categoria que mais modernamente chamar-se-á
concessão. Por se tratar também de algo empiricamente constatado, batiza-lhe com o nome de concordância parcial,
protegendo seu discurso com os meios fartos, como vimos, de que a língua dispõe:

Na concordância parcial (não sabemos que outro nome dar ao segundo estágio deste tipo de
argumentação informal), o autor, ou falante, reconhece que, em certos casos, excepcionais, é
possível que... (p. 285)

A concordância parcial (fique a denominação) reflete uma atitude natural do espírito em face de certas
ideias ou teses, pois é incontestável que existem quase sempre “os dois lados da medalha” (idem).

Na segunda citação, decide o autor adotar o termo, por falta de nome mais adequado. Modernamente, torna-se
impossível estudar a argumentação fora de uma perspectiva polifônica, dialógica. Garcia já intuía esse aspecto desde a
primeira edição de CPM, num momento em que a técnica de composição tradicionalmente ensinada dificilmente, se isso,
vislumbraria o outro na elaboração do discurso. Daí o segundo parágrafo citado recorrer a uma modalização mais assertiva,
dado que não cabia duvidar do que parecia claro.

Conclusão
Pottier (apud Fiorin, 2008:119) afirma que a Linguística, hoje, tem uma abordagem enunciativa da modalização, e
que lhe confere o papel de exprimir a posição do enunciador em relação àquilo que diz. E, justamente na posição de
cientista da língua que pretende, antes de tudo, fazer de sua obra capital um instrumento eficaz do ensino de redação,
procurou Othon M. Garcia demonstrar, por meio das expressões e recursos modalizadores, que o discurso científico pode
ser adequado ao ensino, sem prejuízo para a ciência, desde que recursos como os demonstrados acima sejam utilizados
nos devidos momentos e lugares. Se esse uso se deu de forma consciente ou não, não é uma pergunta que nos cabe
responder. De qualquer forma, a leitura de apenas algumas páginas de CPM revela, cremos, o ethos de um autor cauteloso
mas não pusilânime, ciente de que, na linguagem científica que se pretende didática, não há muita margem de manobra
para afirmações peremptórias. Daí utilização de uma série de recursos que visam à proteção de seu discurso acerca da
língua. Foi essa relação que tentamos, ao longo de nosso texto, estabelecer.

Referências

CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

DUARTE, Isabel Margarida. O relato de discurso na ficção narrativa: contributos para a análise da construção polifónica de
Os Maias de Eça de Queiroz. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a ciência e a tecnologia, 2003.

FIORIN, José Luiz. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: contexto, 2008.

450
FREITAS, Ernani César de. Análise das estratégias discursivas em texto do informativo diário de uma organização bancária:
uma abordagem semiolinguística. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2002.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 23. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2003.

LIMA, Helcira Maria Rodrigues. Na tessitura do Processo Penal: a argumentação no Tribunal do Júri. Tese de doutorado.
Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006.

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2007.

PERINI, Mario. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola, 2006.

André Nemi Conforte é mestre e doutorando em Língua Portuguesa pela UERJ. Na mesma universidade, é
professor substituto de Língua Portuguesa para os cursos de Letras, Comunicação Social e Informática. Estuda a obra de
Othon Moacyr Garcia e tem previsão de defesa de tese para março de 2011.
e-mail para correspondência: andreconforte@yahoo.com.br

451
Performance narrativa e identidade:
análise de narrativas em um fragmento de relato de uma
agente de saúde do Instituto Vila Rosário

CORTEZ, Cinara Monteiro


(PUC-Rio)

Introdução
Os estudos recentes sobre narrativas apresentam, segundo Bastos (2005), um enfoque maior na ação de contar
histórias na vida cotidiana, por que as pessoas as contam, qual o significado de contá-las, o que fazem quando narram e
por que gostam de contar e ouvir histórias. Neste sentido, a narrativa é observada não como uma representação de um
evento ocorrido, mas como uma construção social e ao contar estórias estamos também construindo identidades (BASTOS,
2004, 2005; DE FINA, 2006; SCHIFFRIN, 1996).
O presente artigo insere-se no âmbito da Sociolingüística Interacional, focalizando as interações situadas em
relações entre os participantes de um dado grupo (BATESON, [1972] 2002; GOFFMAN, [1981] 2002; GUMPERZ, 1992a,
[1992] 2002; PEREIRA, 2002) em interface com a Análise da Narrativa (BRUNER, 1990; DE FINA, SCHIFFRIN &
BAMBERG, 2006; LABOV, 1972; LINDE, 1993; RIESSMAN, 1993) e pretende observar as construções identitárias em um
fragmento de relato de uma agente de saúde do Instituto Vila Rosário. Com tal propósito, serão analisadas as estruturas
narrativas, as vozes emergentes no discurso e recursos performáticos na construção das identidades que emergem durante
a interação.
As estruturas narrativas serão analisadas especialmente a partir de uma orientação segundo os moldes
labovianos, acrescidas de discussões de outros autores acerca da organização narrativa. As vozes emergentes no discurso
serão discutidas a partir dos referentes eu e você, e outros recursos lingüísticos relevantes para a orientação das
construções identitárias de si e do outro durante a interação. A performance será discutida através da análise de recursos
tais como ritmo, pausa, entonação e fala reportada, além das categorias já mencionadas.

1. Pressupostos teóricos
Contar estórias é parte da vida cotidiana e a narrativa é uma das atividades centrais da vida humana. Estórias
são contadas em todos os contextos da vida social e em variadas situações. Segundo Sacks (2007), organizamos nossas
experiências e conhecimento do mundo ao contar estórias. Nessa perspectiva a narrativa pode ser concebida “como a
forma de organização básica da experiência humana a partir da qual pode-se estudar a vida social em geral” (BASTOS,
2005, p. 75).
Labov (1992) argumenta que para que uma narrativa seja digna de ser contada é necessário que ela possua a
condição de reportabilidade, isto é, a narrativa precisa ser uma “violação de uma regra ou comportamento esperado” (p.
370). Nesse sentido, um acontecimento banal, ou um fato altamente previsível não se torna reportável. Analogamente,
Bruner (1997) postula que as narrativas são somente construídas quando as crenças que formam a psicologia popular são
violadas. Para o psicólogo, as pessoas acreditam que o mundo é organizado de uma maneira determinada subjetivamente
e as narrativas são formas de reorganizar aquilo que é extraordinário na vida cotidiana.

452
Brockmeier & Harré (2003) concebem as narrativas como um modelo flexível que permite relacionar o
“desconhecido ao conhecido” (p. 533) e são utilizadas para explicar ou interpretar o conhecimento generalizado do mundo e
são, portanto, modelos do mundo e modelos do self. De acordo com os autores, “é através de nossas estórias que
construímos a nós mesmos como parte de nosso mundo” (p. 533). Sacks (2007), por sua vez, aponta que as pessoas
ocupam-se em ser comum. Deste modo, as estórias contadas têm a função de normalizar as experiências vividas ou os
fatos observados. Sendo assim, as pessoas armazenam as experiências para que possuam algo para contar em situações
oportunas.

1.1. Narrativa, construção de identidade e performance


De acordo com De Fina (2006), quando narramos construídos representações sobre quem somos ao criarmos um
“mundo de estórias” nos quais as identidades são construídas de forma comum e rotineira, relacionando-se com ações e
reações específicas. Os estudos sobre narrativa, segundo a autora, mostram que o que define o pertencimento e afiliação a
um determinado grupo, como forma de construção identitária, não é apenas o conteúdo das estórias que são contadas, mas
o modo como o narrador usa recursos que são socialmente estabelecidos durante ato de narrar. Nesse sentido, as
identidades são vistas como situadamente motivadas, pois as pessoas constroem identidades não apenas em relação às
categorias sociais as quais pertencem, mas também de acordo com o contexto situacional e as relações entre os
participantes. As construções identitárias são, portanto, o resultado de escolhas de um “inventário de identidades mais ou
menos compatíveis que entrecruzam e/ou contrastam umas com as outras de modos diferentes e de acordo com os
interlocutores e as circunstancias sociais em mudança” (DE FINA, 2006, p. 353).
Pensando a narrativa como performance, Langellier (2001) aponta que o contrato entre o narrador e sua audiência
estabelece uma performance que é ao mesmo tempo um “fazer” e uma representação desse “fazer”. A narrativa como ato,
ou um “fazer”, relaciona-se à natureza da narrativa, isto é, como a narrativa constrói a realidade e identidade,
transformando-se em um lugar onde o social articula-se, estrutura-se, e move-se sobre a realidade. A autora acrescenta
que ao contarmos uma estória, privilegiamos certos aspectos sobre outros e que os participantes tem suas subjetividades
construídas através de uma simbiose entre como a estória é contada e as relações sociais, macro e micro, que se inter-
relacionam. A narrativa como representação do “fazer” refere-se “à intensificação da experiência” (LANGELLIER, 2001, p.
150), onde há uma interdependência do evento narrado e o evento narrativo.

1.2. Estruturas narrativas


Para Labov (1992), as narrativas são formas de recapitular experiências passadas e para que algo seja
considerado como uma narrativa é necessário que exista uma seqüência temporal de orações no passado (ao menos duas
orações ordenadas temporalmente) e que tais orações sejam independentes. A narrativa laboviana possui como
componentes estruturais: resumo, orientação, ação complicadora, avaliação, resolução e coda. O resumo geralmente inicia
a narrativa e possui uma ou duas orações que apresentam aquilo que será contado. A orientação contextualiza a narrativa,
isto é, introduz o tempo, o local, as pessoas e a situação. A ação complicadora refere-se à estória, ao que se passou e, de
acordo com o autor, é o único componente obrigatório na narrativa. A avaliação é a forma que o narrador “indica o ponto da
narrativa” (LABOV, 1992, p. 366) e pode acontecer em qualquer momento da narrativa. Bastos (2005) aponta que a
avaliação “contém informação sobre a carga dramática ou o clima emocional da narrativa” (p. 78) e portanto, é também um
fator que indica a reportabiliadade. Labov (1992) acrescenta que os dispositivos de avaliação suspendem a ação narrativa
e indicam a conexão com o ponto da narrativa, contribuindo, se feita de forma efetiva, para que a resolução tenha mais

453
impacto. A coda sinaliza o fim da narrativa e é geralmente uma oração livre que contém “observações gerais ou mostram o
efeito dos eventos sobre o narrador” (LABOV, 1992, p. 365).
Bruner (1997) apresenta outras características da estrutura narrativa. Como característica principal, o autor aponta
a seqüencialidade como constituinte de uma narrativa e também os eventos externos e internos, as ocorrências e os atores.
Para o autor, as narrativas podem ser reais ou imaginadas, sem que percam sua reportabilidade, e ligam o excepcional ao
comum. Outras características da narrativa são a qualidade dramática e sua paisagem dual. A dramaticidade pressupõe
uma boa formação de sua composição (ator, ação, meta, cenário, instrumento e problema) e a dualidade diz respeito a
“eventos e ações em um mundo real que supomos verdadeiro [que] ocorrem concomitantemente com eventos mentais na
consciência do protagonista” (BRUNER, 1997, p. 51).
.
2. Do contexto, participantes e metodologia
Os dados coletados para análise nesse estudo vinculam-se aos projetos “Vila Rosário: Práticas discursivas da
comunidade e representação social na prevenção e educação no combate à tuberculose” e “Vila Rosário: o discurso
institucional e profissional na prevenção e educação no combate à tuberculose”, do programa de Pós-Graduação em
Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e
inserem-se no Grupo de Pesquisa Linguagem, Cultura e Trabalho (PUC-Rio/CNPq).
O Instituto Vila Rosário é uma organização não-governamental que atua no combate e prevenção à tuberculose
em Vila Rosário, uma comunidade de baixa-renda do município de Duque de Caxias no Rio de Janeiro. O Instituto atende
cerca de 200 moradores da região, que são cadastrados e acompanhados por 7 agentes de saúde, também moradoras da
localidade. Semanalmente o Instituto promove uma reunião entre as agentes de saúde e a coordenação do Instituto, para
discutir o trabalho diário e as ações a serem tomadas em relação aos assistidos.
Os dados que compõem esse estudo foram gravados na reunião realizada no dia 7 de outubro de 2009, com
extensão total de gravação de cerca de duas horas. Entretanto para o objetivo do presente trabalho foi selecionado um
fragmento das interações que tem início em 15:05 e término em 17:51 minutos da gravação. Estavam presentes nessa
reunião as 7 agentes de saúde, a secretária do Instituto, o coordenador e o presidente do Instituto e duas pesquisadoras da
PUC-Rio.
O tópico da discussão, em que se insere o fragmento de relato selecionado, remete a casos atendidos pelas
agentes de saúde, os quais apresentaram dificuldades no tratamento por problemas relacionados às condições sócio-
econômicas dos assistidos. Participam ativamente da interação a agente de saúde, que será chamada de Margarida, e a
secretária do Instituto, que será nomeada Cátia.
A metodologia de pesquisa adotada para o tratamento dos dados é de abordagem qualitativa interpretativa
(DENZIN e LINCOLN ([2003] 2006). O fragmento selecionado foi dividido em três narrativas principais. Cada narrativa
apresentará três categorias de análise e as respectivas discussões, focalizando, em um primeiro momento, as estruturas de
cada narrativa; em um segundo momento, os referentes você e eu serão como indexais as vozes do discurso, posicionando
as identidades de si e do outro; e, por último, a performance, através da análise dos recursos já citados e de outros recursos
lingüísticos relevantes. Os dados foram transcritos de acordo com as convenções orientadas pela Análise da Conversa
(ATKINSON e HERITAGE, 1984).

454
3. Discussão dos dados
3.1 Primeira narrativa
O narrativa 1, apresenta como participantes uma das agentes de saúde, Margarida, e a secretária do Instituto,
Cátia. O tópico da conversa trata de um caso em particular no qual o chefe da família está tuberculoso e desempregado.
Margarida inicia uma narrativa, que será chamada de narrativa hipotética, sobre o caso em questão, apresentada na tabela
1:

01 Margarida quer dizer aí vai você falar o quê da saúde não é? você não vai dizer
02 que a tuberculose é: isso é aquilo é dessa forma> por isso por aquilo<
03 que que acontece? você se depara com essa pessoa que não pode
04 >trabalhar por que tá tuberculosa<, a mulher não pode >trabalhar< por
05 que tem que cuidar dele por que ele é o ( ) que quer alguém que cuida,
06 e não tá tendo o que comer por que não tem o que come:r, aí você vai
07 falar o quê? diz pra mim o que você falaria? ... você vai falar assim
08 “sabe o que é ↑ que se deus quiser você vai ficar bo:m meu filho↓”
09 Cátia [( )]
10 Margarida [não mas] sabe o
11 que vai acontecer, vai dizer “mas como se eu não tenho o que comer”
12 Cátia [= margarida minha mãe teve tuberculo:sa]
13 Margarida [= ( ) não faz assim] = deixa eu acabar o raciocínio, deixa eu acabar
14 >meu raciocínio<, aí eu digo, eu falo assim pra ela, “não, você vai
15 ficar bom se você vai ver vai ficar bo:m” ... aí ela vai dizer “mas então
16 mas eu não tenho o que comer↑ ele não tem o que comer↑”aí eu falo
17 “não se deus quiser quiser você vai ficar bom↑” aliás presta atenção
18 olha o raciocínio >olha o raciocínio< ”deus vai te ajudar↑ vai ficar
19 bom” aí você fala da saúde e diz que deus↑ vai ajudar↑ aí ela pergunta
20 pra ela mesma “mas que deus é esse que deixa eu morrer de fome?
21 você vem falar comigo da saúde e eu falo com você assim ó, eu não
22 tenho como trabalhar por que tenho que cuidar do marido, a vizinha
23 tem que cuidar da vida dela não pode tá cuidando do marido o dia
24 inteiro”, quer dizer, gente ó é uma situação difícil,
Tabela 1: Primeira narrativa

Segundo os moldes labovianos este segmento não poderia ser considerado uma narrativa, pois não remete a
eventos no passado. Entretanto, para a presente análise, serão adotadas as nomenclaturas fazem referências aos
componentes estruturais formulados por Labov (1992).
Em termos estruturais, as linhas 1 a 3 apresentam um tipo de orientação quanto ao que vai ser contado,
Margarida situa sua estória no âmbito do discurso institucional, que faz referência à prática profissional, isto é, aquilo que as
agentes devem falar em seu trabalho cotidiano (saúde x tuberculose): “quer dizer aí vai você falar da saúde [...] que que
acontece”. A orientação sinaliza que a agente está prestes a contar uma estória e chama a atenção da audiência para o que
vai ser contado.
A ação complicadora, iniciada na linha 3, desenvolve-se até a linha 23, e assume um caráter hipotético, embora
relacione-se com o caso-tópico real da discussão (a esposa e o marido tuberculoso, ambos desempregados e em situação
de fome): “você se depara com essa pessoa que não pode trabalhar [...] tá cuidando do marido o dia inteiro, quer dizer”.
Margarida constrói a hipótese através de recursos lingüísticos realizados pela escolha de tempos verbais (presente e
futuro), que não representariam uma narrativa laboviana, aproximando-se mais da proposta de dramaticidade de Bruner
(1997). A descrição do cenário e problema é feita no presente: “você se depara com essa pessoa”, “por que tá tuberculosa”,
“mulher não pode trabalhar”, “não tá tendo o que comer”, “não tem o que comer”, e que funcionam como a condição para a

455
meta/conseqüência das ações dos atores da narrativa. A meta (conseqüência), por sua vez, é construída com o futuro:
“você vai falar o quê”, “você vai ficar bom meu filho”, e o uso estratégico da pergunta retórica no futuro do pretérito: “o que
você falaria?”, que intensifica a situação hipotética. Nesse sentido, os tempos presente e futuro intercalam-se durante a
narrativa 1, apresentando tanto a situação (atores, cenário, ações etc.) quanto a conseqüência hipotética (meta) dos
eventos descritos.
A narrativa finaliza com uma avaliação, realizada pelo recurso vocativo e uso do adjetivo difícil: linha 23, “gente ó é
uma situação difícil”.

3.1.1 As vozes na narrativa: você e eu


Os referentes, realizados através de formas pronominais e nominais, orientam as vozes que emergem na
interação, assim como posicionam as relações identitárias construídas no discurso. As vozes institucional e pessoal estão
em constante negociação, através do uso dos pronomes você e eu, em um intercâmbio de posicionamentos referenciais
durante a primeira narrativa.
Margarida inicia a narrativa hipotética usando o pronome você de forma impessoal: linha 1, “quer dizer aí vai você
falar o quê da saúde não é?”). Entretanto, você também sugere a representação da voz institucional, pois o você que vai
falar é aquele que instrui sobre a doença: linhas 1 e 2, “você não vai dizer que a tuberculose é: isso é aquilo é dessa
forma”. Este referente é o mesmo que interage com os outros personagens do evento narrado: a pessoa que não pode
trabalhar porque está tuberculosa (“essa pessoa”), a esposa que tem que cuidar do doente (a mulher).
A representação de você como a voz institucional permanece desde a linha 1 até a linha 7. A partir da linha 8,
você passa a representar o outro, que se opõe ao discurso institucional, isto é, os moradores assistidos pelo Instituto: linha
8,“se deus quiser você vai ficar bom meu filho”, linhas 14 e 15 “você vai ficar bom se você vai ver você vai ficar bom”. Você
volta a representar a voz institucional nas linhas 19 e 21: “você fala da saúde e diz que deus vai ajudar”, “você vem falar
comigo da saúde”.
O pronome eu representa duas construções distintas na interação: a voz de Margarida-agente e a voz da
moradora-personagem. O pronome eu surge na primeira vez na linha 11 como a personagem moradora: “mas como se eu
não tenho o que comer”. Contudo, após a intervenção de Cátia, o referente eu é retomado para remeter à voz pessoal da
agente: linhas 13 a 14: “deixa eu acabar meu raciocínio aí eu digo eu falo assim pra ela” e na linha 16, aparece
representando tanto a agente quanto a moradora: “mas eu não tenho o que comer (moradora)”, “aí eu falo (Margarida)”. As
linhas 21 a 23 apresentam o eu novamente na voz da personagem-moradora: “mas que deus é esse que deixa eu morrer
de fome? você vem falar comigo da saúde e eu falo com você assim ó, eu não tenho como trabalhar”, onde o uso de você
remete novamente à voz institucional.

3.1.2 A agente crítica


Ao construir a primeira narrativa como hipótese, Margarida propõe a situação-problema e apresenta as
conseqüências em caráter hipotético. O uso dos referentes posiciona as vozes do discurso e, através do intercâmbio das
vozes (institucional e pessoais), Margarida alinha-se a uma posição mais agentiva da situação, ao mesmo tempo que
mantém um alinhamento crítico em relação à voz institucional.
O você institucional remete ao discurso médico e à importância da saúde: linha 1, “você vai falar o quê da saúde
não é?”; linha 19, “aí você fala da saúde” e linha 21, “você vem falar comigo da saúde”. Entretanto, esta voz é a mesmo que
se depara com a situação hipotética, cujo discurso não apresenta respostas face ao problema (a pessoa doente sem

456
emprego e sem ter o que comer). A resposta é dada através de um alinhamento do você institucional ao discurso religioso:
“você vai falar assim ‘sabe o que é se deus quiser você vai ficar bom meu filho”.
Margarida, nesta primeira narrativa, alinha-se tanto ao discurso religioso quanto à voz institucional ao lançar mão
do referente eu: linhas 14 e 15, “aí eu digo, eu falo assim pra ela, ‘não você vai ficar bom’”. No entanto, o você institucional e
o discurso religioso são ambos questionados pela voz pessoal que representa a moradora-personagem: linhas 19 e 20, “aí
você fala da saúde e diz que deus vai ajudar [...] que deixa eu morrer de fome?”.
O recurso da fala reportada é utilizado com recorrência neste primeiro fragmento de análise, e segundo De Fina
(2006), é uma característica de performance e cumpre a função avaliativa, intensificando a dramaticidade da narrativa ao
dar voz ao próprio narrador e o outro na interação. Neste caso, a moradora-personagem situa-se em oposição à voz
institucional: linhas 14 a 16, “aí eu falo assim pra ela, ‘não, você vai ficar bom [...]’ aí ela vai dizer ‘mas então mas eu não
tenho o que comer’”. Nota-se que a fala reportada assume a característica de um diálogo na narrativa, descrevendo uma
situação de interação entre as agentes e os moradores assistidos pelo Instituto, sugerindo a hipótese narrada como um fato
no trabalho cotidiano das agentes.

3.2 Segunda narrativa


A primeira narrativa construída por Margarida, funciona como uma tese acerca do que ela problematiza em
relação a sua prática profissional: as dificuldades do discurso institucional em face da realidade social dos assistidos pelo
instituto. Esta primeira narrativa pode ser interpretada como uma orientação para a narrativa que se segue, como é possível
observar na tabela 2:

01 Margarida =aí o que que você faz eu, eu falo de


02 mim, eu fui embora mas eu falei o que com ela, ↓deus <vai te ajudar>,
03 é deus na pessoa de quem? na↑minha pessoa você pode ter certeza do
04 que eu tou falando, que que eu fiz, fu:i pedi um pouco aqui um pouco
05 ali um >pouco na minha mãe um pouco na minha irmã um pouco num
06 sei aonde< e juntei um monte ºde coisaº inclusive a Nélida ia comigo
07 levar esse carrinho >de feira<, e eu falei assim “Nelida mas tá muito
08 quente o so:l”, enfim eu consegui que alguém fosse buscar. gente falar
09 da saúde e dizer que vai levar é muito fácil agora VAI pro campo
10 trabalhar↑ que aí você vai ver com quantos paus se faz uma canoa. eu
11 já sei, pode ser com um pau e com monte de pau, que eu já vi essa
12 reportagem (antes) que eu quero dizer com isso, gente, falar de da que
13 você precisa se alimentar pra você ter saúde pra sua imunidade
14 aumentar >pra você não sentir< fraqueza, é muito fácil
Tabela 2: Segunda narrativa

No que se refere à constituição narrativa, foi mencionado que a narrativa 1 pode funcionar como uma orientação
para essa segunda narrativa. A construção hipotética da primeira narrativa contextualiza a narrativa 2, introduzindo a
situação (o trabalho diário das agentes de saúde), personagens (agentes de saúde, marido, esposa) e implicitamente o local
(Vila Rosário). Desta forma, a narrativa 2 inicia-se com a ação complicadora, que descreve as ações da agente acerca da
situação-problema apresentada na narrativa hipotética: linhas 1 à 8: “aí o que que você faz eu,eu falo de mim [...] que
alguém fosse buscar”.
A avaliação é longa, iniciando na linha 8 até a linha 14, com diferentes recursos avaliativos. O início da avaliação
apresenta um vocativo (gente), que chama atenção dos interlocutores; uma oração resumindo a situação-problema (falar da
saúde...) e o uso do adjetivo fácil: linhas 8 e 9, “gente falar da saúde e dizer que vai levar é muito fácil” A avaliação

457
prossegue com o uso de um ditado popular, que reforça a avaliação feita pela agente: linha 10, “que aí você vai ver com
quantos paus se faz uma canoa”, e termina com a repetição do adjetivo fácil: linhas 13 à 14, “você precisa se alimentar [...]
é muito fácil”.

3.2.1 A voz pessoal


O referente eu, durante todo o fragmento da narrativa 2, representa a voz pessoal de Margarida: linhas 1 e 2, “aí o
que que você faz eu, eu falo de mim, eu fui embora mas eu falei o que com ela”; linha 4, “que que eu fiz”; linha 8, “enfim eu
consegui”. O pronome você, no entanto, remete tanto à voz institucional: linha 1, “aí o que que você faz”, linha 3: “você pode
ter certeza” e linha 10, “que aí você vai ver com quantos paus se faz uma canoa”; quanto aos moradores, porém de forma
impessoal nesse fragmento: linhas 12 à 14, “da que você precisa se alimentar pra você ter saúde pra sua imunidade
aumentar pra você não sentir fraqueza, é muito fácil”.

3.2.2 A agente de deus


Margarida inicia a narrativa 2 ainda questionando o você institucional: linha 1, “aí o que você faz”. Entretanto, o eu
agentivo assume a voz durante toda a narrativa: linhas 1 a 2, “eu, eu falo de mim, eu fui embora mas eu falei”, linha 4, “eu
tou falando que que eu fiz” etc. Nota-se a construção da agentividade através de formas verbais que descrevem ações (falo,
fui embora, tou falando, fiz) e do próprio conteúdo da narrativa que reportam as ações tomadas por ela em relação a
situação problema exposta na narrativa 1.
Há o alinhamento do eu agentivo ao discurso religioso, que através dos recursos utilizados pela agente apresenta
uma performance intensificada desta projeção: linha 3, “é deus na pessoa de quem? na ↑minha pessoa”. Ao utilizar o
pronome possessivo minha para designar a pessoa através da qual deus parece agir e ao dar ênfase na entonação neste
recurso, a agente não apenas alinha-se ao discurso religioso, mas constrói-se como a voz religiosa. O conteúdo da ação
complicadora nesta narrativa também sugere uma intensificação dessa projeção do eu ao descrever as ações realizadas
por ela para solucionar a situação-problema: a agente projeta-se tanto como agente de saúde, como também agente de
deus.
A avaliação apresenta um eu agentivo como avaliador crítico consciente, através da escolha de verbos que
representam processos: cognitivo (linhas 10 e 11, “eu já sei”), perceptivo (linha 11, “eu já vi” e desiderativo (linha 12, “que
eu quero dizer”), demonstrando que a construção dessa avaliação é resultado de experiência da própria narradora: linhas
10 à 12, “que aí você vai ver [...] essa reportagem antes”.
Segundo Labov (1992), o ponto da narrativa é geralmente explicitado na avaliação. Nesse sentido, é possível
observar que o ponto da estória contada por Margarida refere-se às dificuldades do trabalho das agentes de saúde do
Instituto Vila Rosário e é realizado explicitamente pelo uso de adjetivos difícil (narrativa 1) x fácil (narrativa 2). Desta forma,
através das avaliações, a agente aponta que a situação real de trabalho é uma tarefa difícil em oposição ao discurso
institucional que sugere uma abordagem fácil: linhas 8 e 9, “gente falar da saúde e dizer que vai levar é muito fácil” e linhas
12 à 14, “falar de da que você precisa [...] fraqueza é muito fácil”. Nota-se, também, o uso do intensificador lexical muito,
aumentando a dramaticidade na avaliação.

3.3 Terceira narrativa


A terceira narrativa volta a apresentar uma situação hipotética, pois não remete a eventos no passado e apresenta
uma construção altamente performativa da situação problema, apresentada na tabela 3:

458
01 Margarida [agora,você
02 chega lá↑ você você volta pra casa com o coração <dolori::do>, você
03 vê: que aquelas pessoas não tem perspectiva de melhora de vida por
04 que se eu to doente se eu não posso trabalhar↑ se eu não tenho o que
05 comer↑ se eu não ganhar↑ como é que eu vou faze:r meu deus↓ por
06 que deus pai criou, aí ele é o que ( ) >ele é meu pai< é meu é de todo
07 mundo e aí:, e aí é isso que acontece
Tabela 3: Terceira narrativa

Esta narrativa inicia-se com uma pequena orientação, que indica a personagem - você (agente de saúde) e o lugar
– lá (campo de trabalho - comunidade da Vila Rosário): linhas 1 e 2, “agora, você chega lá”. Em seguida há a ação
complicadora, iniciando na linha 2 até a linha 7: “você você volta pra casa [...] é meu é de todo mundo e aí”. Assim como a
narrativa 1, os verbos são usados no presente, apresentando uma situação-problema: linha 2 e 3, “você volta pra casa [...]
você vê que aquelas pessoas não tem”, linha 4, “se eu to doente se eu não posso trabalhar se eu não tenho” e futuro: linha
5, “se eu não ganhar como é que eu vou fazer”. Não há, porem, uma avaliação explícita, a própria ação complicadora
parece servir como exemplo para o ponto da narrativa (já discutido na subseção anterior). A narrativa 3 é finalizada pela
coda: linha 7, “e aí é isso que acontece”, que remete o evento narrado ao momento da narrativa.

3.3.1 Você e eu: o outro


Os referentes você e eu, nesta narrativa, contrastam com o eu agentivo que representa Margarida na narrativa 2.
Você refere-se novamente à voz institucional e eu aos moradores assistidos pelas agentes de saúde: linha 2, “você volta
pra casa”, linha 4 e 5, “se eu to doente se eu não posso trabalhar se eu não tenho [...] se eu não ganhar como e que eu vou
fazer”.

3.3.2 A agente pregadora


A narrativa 3 apresenta uma construção performática realizada pelo tom de pregação, evidenciado por recursos
prosódicos. O alongamento e a elocução mais lenta do adjetivo dolorido marca o início do tom religioso na narrativa: linha 2,
“você volta pra casa com o coração <dolori::do>”. O ritmo passa a ser marcado pela ênfase nas sílabas tônicas de
perspectiva, melhora e vida, no período seguinte: linhas 2 e 3, “você vê: que aquelas pessoas não tem perspectiva de
melhora de vida”, e pela subida de entonação e ênfase ao fim dos verbos trabalhar, comer e ganhar, na continuação da
narrativa: linhas 4 e 5, “se eu não posso trabalhar↑ se eu não tenho o que comer↑ se eu não ganhar↑”. O tom religioso é
finalizado com a descida de entonação na expressão meu deus: linha 5, “como é que eu vou faze:r meu deus↓”, que
contrasta com a ênfase e ritmo anterior. Entretanto, a postura desse alinhamento ao discurso religioso, realizado através
dos recursos prosódicos, é intensificada pelas orações finais, que apresenta a imagem do deus pai de todos: linhas 6 e 7,
“deus pai criou, aí ele é o que ( ) ele é meu pai é meu é de todo mundo”. A coda que, segundo Labov (1992), possibilita a
ligação entre a narrativa e o momento presente, contribui para posicionar a construção hipotética no mundo de ação da
agente, pois ao declarar que “é isso que acontece”, a tese assume um caráter de realidade, de exemplificação daquilo que
existe/acontece no mundo.

459
Considerações finais
O presente estudo procurou observar, através da análise e discussão das estruturas narrativas, de referentes que
posicionam as vozes emergentes no discurso e de recursos performáticos, como as narrativas constroem identidades
situadas na interação. Nesse sentido, foi possível observar uma elaboração altamente performática das narrativas inter-
relacionadas contadas por Margarida durante um dado momento da interação. A análise de cada uma das narrativas
possibilitou observar uma construção habilidosa, orientada à audiência, como forma de argumentação e defesa do ponto
principal e que contribuem para as construções e posições identitárias durante a interação.
A primeira narrativa apresenta a situação em forma de hipótese, fugindo aos moldes de uma narrativa canônica
pela ausência de seqüências no passado. As vozes institucional e pessoal (agente e moradora-personagem), assim como o
discurso científico e religioso, estão em constantes posicionamentos e reposicionamentos no curso da interação. O discurso
reportado dá voz ao outro (moradora-personagem) e através desta voz, há um posicionamento crítico tanto em relação à
voz institucional quanto ao discurso religioso, por não apresentarem uma solução à situação-problema. A avaliação
apresenta o ponto da narrativa: a dificuldade do trabalho face à realidade dos assistidos.
A construção da segunda narrativa sugere, principalmente através da agentividade, uma resposta à situação-
problema da narrativa 1. O eu projetado de Margarida, alinhado ao discurso religioso, assume a voz religiosa e apresenta
uma solução pessoal e agentiva para o problema, tanto na ação complicadora, quanto na avaliação. O ponto da narrativa é
reforçado na avaliação, evidenciando uma crítica mais incisiva sobre a situação-problema. Nota-se que, ao apresentar uma
narrativa de um evento passado, Margarida rompe com as ações da situação hipotética, apresentando ações que ocorreram
no mundo real.
A terceira narrativa apresenta uma performance prosódica que intensifica a hipótese apresentada na narrativa 1,
sendo também uma narrativa de caráter hipotético por não apresentar eventos passados. Apesar de não apresentar uma
avaliação explícita, a ação complicadora dessa narrativa, através do tom de pregação e do conteúdo semântico, funciona
como uma forma de avaliação implícita. A coda serve para reforçar também a situação-problema, fechando a narrativa e
trazendo tanto o conteúdo hipotético quanto o fato passado narrado até situação presente.
De forma geral, Margarida constrói-se, ao longo das três narrativas, como alguém crítico e agentivo, alinhado ao
discurso religioso. Os moradores são construídos também como críticos, ao questionarem a voz institucional e o discurso
religioso, mas apresentam passividade e parecem estar em uma situação de subordinação às outras vozes. A voz
institucional está alinhada ao discurso científico, mas que parece não oferecer solução aos problemas dos moradores.
Este estudo objetiva também salientar a importância da análise do discurso e da Sociolingüística nas interações
em contextos específicos como forma de contribuir com outros estudos de ordem social. No caso específico de Vila Rosário,
com análises que buscam um entendimento mais amplo das relações entre o Instituto Vila Rosário, as agentes de saúde e
os moradores, no sentido de promover ações que visam auxiliar o combate à tuberculose na região.

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Cinara Monteiro Cortez possui graduação em Letras (Português/Literaturas) pela UNESA do Rio de Janeiro, especialização
em Psicopedagogia pela UCAM do Rio de Janeiro e é mestranda em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio, cuja pesquisa é
realizada com apoio FAPERJ, bolsa Mestrado Nota 10.
cinaracortez@hotmail.com

461
A mulher, o casamento, a família: uma relação regulada
por mandamentos

COSTA, Iraneide Santos


(UFBA)

INTRODUÇÃO

Vem a ser o presente trabalho parte integrante do projeto “A Construção de Identidades na Mídia: Estudo de
Relações entre Discurso, Cultura e Sociedade”. Uma questão direciona as discussões a que aqui se procede: como se
constitui a identidade do sujeito mulher do século XIX e do século XXI? A partir daí, levantam-se algumas indagações:
quais as imagens atribuídas à mulher pelas discursivizações em torno desta, especificamente em dois locus: na família e no
casamento ? Até que ponto as representações sobre as mulheres mudaram no período compreendido entre o século XIX e
o século XXI ? Quais as formas e práticas discursivas através das quais a mulher se constitui como sujeito? Interessa
investigar a historicidade das representações da mulher, para que se possa, então, se apropriar de sua discursividade. Será
através da análise dos efeitos de sentido gerados por essa mesma discursividade que se tentará identificar alguns
processos que caracterizam sua maneira específica de significar. ( ORLANDI, 1997)

Nesta pesquisa, fez-se uso dos postulados da Análise do Discurso da linha Francesa, linha teórica que ultrapassa
os limites do texto, já que considera os fenômenos sócio-histórico-ideológicos relevantes para a construção dos sentidos, ou
seja, trabalha com o discurso. Ora, como pensar em discurso é também – e principalmente - pensar em relações de poder,
é interessante aqui proceder a discussões sob esta perspectiva, uma vez que a proposta é refletir sobre como se dá a
constituição do sujeito mulher, no casamento e na família, explicitando qual o espaço social designado a esta mulher no
século XIX e no século XXI.

No bojo deste trabalho, procura-se estabelecer o papel da história e da memória discursiva, bem como de que
forma a relação saber/poder aí se instaura, explicitando especificidades da prática discursiva e seus efeitos de sentido a
partir do entrecruzamento língua/ sociedade/ história/ memória; avalia-se em que medida os signos (verbais e não verbais)
marcam, explícita ou implicitamente, uma posição ideológica; define-se/ discute-se a presença do outro na constituição do
discurso do sujeito mulher; desvelam-se as formações imaginárias que se constituem a partir das relações sociais
estabelecidas no casamento e na família e que funcionam nos discursos materializados nos textos em análise; examina-se
como a relação interdiscurso/intradiscurso determina o dizer; questionam-se, enfim, as vozes presentes no espaço
discursivo e como essas interferem no sentido.

O nosso objetivo é, pois, em termos abrangentes, identificar, caracterizar a imagem construída do/pelo sujeito
mulher; estabelecer, enfim, como se dá a produção identitária da mulher. Empreende-se, para tanto, uma jornada em busca
dos sentidos através de múltiplas vozes que legitimam os dizeres justamente por se inscreverem numa dada formação
discursiva e não em outra, reconhecendo que só desta forma as palavras adquirem sentido: quando determinadas pelas
posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que elas são produzidas. No caso específico do

462
nosso corpus, estão presentes nos dois textos, por exemplo, as marcas da FD bíblica, uma vez que mantêm um forte
paralelismo com o texto do Antigo Testamento “Dez mandamentos”, seja através da conexão entre os títulos - Os dez
mandamentos da mulher (1888) e Seis mandamentos da família perfeita (2004) - seja pelo uso de estruturas tais quais
“Amai a vosso marido sobre todas as coisas” (1888) e “Amarás a teu marido sobre todas as coisas”, que apontam para os
Mandamentos que Deus entregou a Moisés. Isso termina por conferir aos textos o status de lei, uma vez que os
supracitados mandamentos consolidam uma combinação de Deus com o povo de Israel: todos que vivessem de acordo
com o que eles preconizavam, teriam direito ao Reino dos Céus. Constata-se, ainda, tanto no texto fonte como nos que
constituem o nosso corpus que não ditos mas subentendidos deixam entrever todas as sanções que a não obediência
implicaria.

A MULHER DO/ NO SÉCULO XIX

A complexa relação de poder entre homens e mulheres engendrou, durante longos períodos na história, ordens,
hierarquias em que a mulher foi considerada um “ser frágil”, logo inferior; enquanto o homem, pela própria constituição física
(legitimado por discursos como, por exemplo, o discurso médico) e em decorrência da forma como foi “criado”, nomeou-se
“ser superior”, estabelecendo-se assim múltiplas diferenças entre os sexos em cada época: criaram-se jargões do tipo “sexo
forte” e “sexo frágil”. Os papéis de gêneros têm sua origem, na verdade, na interação entre fatores: foi o homem levado a
desempenhar tarefas que lhe exigiam a força física, a buscar o sustento da família tendo para isto que exercer tarefas extra
domésticas. Terminou, então, por desenvolver habilidades/competências que lhe propiciaram mais status, poder e controle
dos recursos. Construíram-se, como consequência disto, crenças a respeito dele, sendo associado a características como
agressividade, independência, auto suficiência, autoconfiança, arrogância, autoritarismo. Já à mulher coube cuidar do
espaço doméstico em decorrência de sua capacidade de amamentar e de reproduzir, sendo reservadas a ela tarefas de
cuidar do marido, da casa, dos filhos. Essas práticas terminaram por propiciar a construção de crenças em relação a ela,
que foi associada a atributos como ser protetora, sensível, prestativa, gentil, afetiva, compreensiva, paciente, doce,
desprendida, calma, submissa. Observa-se que a posição ocupada pelas mulheres identifica-as com a passividade, com o
mundo dos sentimentos e emoções, distantes da racionalidade. Criam-se, assim, expectativas distintas para homens e
mulheres.
Com o advento do patriarcado (Originalmente patriarcado significa controle exercido pelo pai), sistema social de
divisão de papéis, coube aos homens o papel social de trabalhar para sustentar financeiramente a casa. Como detentor do
poder financeiro, ele também passa a exercer automaticamente o papel de chefe da família, responsável pela tomada das
decisões familiares. A mulher, na sociedade patriarcal, atua como coadjuvante, sendo responsável pelas atividades
secundárias que oferecerão o suporte necessário para o sucesso do chefe da casa.
O sistema patriarcal foi legitimado ao longo da história pela religião cristã e transmitiu o silenciamento do feminino
em todas as esferas sociais. É responsável, pois, em grande medida, pelas práticas sociais que naturalizaram o papel da
mulher restrito ao espaço privado: a lógica patriarcal de mantê-la afastada dos espaços públicos se fundaria no saber
(regime de verdade vigente) de que o sujeito mulher é frágil e menos inteligente que o sujeito homem. Ou seja, o conceito
do patriarcado vem delinear crenças culturais sobre a natureza dos sujeitos homem e mulher: enquanto àqueles é imputado

463
o traço do racionalismo; estas seriam tidas como guiadas principalmente pela emoção e fúteis, o que justificaria o exercício
do poder pelo masculino em detrimento do feminino (relações de poder). Na verdade, a mulher oitocentista era feita
propriedade do homem e calada por ele

Observa-se, assim, que as relações têm um caráter cultural e ideológico e estruturam as interações discursivas,
mantidas e estimuladas por formas representativas. É evidente que as representações de gênero estão ligadas a relações
de poder, a políticas de identidades. São estes sistemas de representações e auto representações sociais codificados em
normas, regras, paradigmas morais, que delimitam os campos do aceitável, do dizível, do compreensível. Em diversas
Formações Discursivas - seja na voz de religiosos, médicos, higienistas, educadores, etc -, percebe-se uma certa
regularidade na construção de sentidos no que se refere às relações genéricas. Um exemplo disso é o Kama Kalpa hindu
que preconiza que “Seja seu marido deformado, velho, ofensivo, colérico, devasso, cego, surdo ou mudo [...] a mulher foi
feita para obedecer a ele em todos os estágios da sua existência. (LOBO, 2005,p. 56) Constata-se que a condição da
mulher, representada discursivamente, reflete, em sua maioria, uma visão discriminatória, por ser vista sob um único viés,
por produzir formas de silenciamento e exclusão da voz feminina.

Muito cedo a ciência tornou-se preocupada com um movimento complementarista durante


o século XVIII (que afirmava que homens e mulheres eram diferentes, mas
complementavam-se), considerando que os praticantes da área da anatomia procuravam
por evidências científicas da inferioridade intelectual da mulher. Depois de cuidadosa
análise e medida, os anatomistas ‘descobriram’ que o crânio da mulher era menor em
proporção aos seus corpos que o dos homens. Então, eles disserem, os fatos
demonstraram que, como seres pensantes, as mulheres eram inferiores aos homens. O
problema com esta dedução foi que constataram posteriormente às primeiras análises que
a cabeça das mulheres era, de fato, mais larga em proporção aos seus corpos do que a
dos homens. Quando os anatomistas foram forçados a ceder neste ponto no século XIX
eles não concluíram que as mulheres tinham cérebros melhores; ao contrário, eles
interpretaram que a cabeça relativamente mais larga era sinal de crescimento incompleto.
O tamanho do crânio foi visto como indicativo de que as mulheres estavam mais próximas
às crianças, que também têm as cabeças proporcionalmente mais largas. Então,
novamente, as mulheres foram constatadas como sendo mentalmente inferiores aos
homens (WERTHEIM, 1996, p. 148).

Instaura-se um sistema masculino que nega constantemente à mulher os meios de produção intelectual: “A
deterioração física da raça verificar-se-á inevitavelmente com o exagero da educação feminina, porque então à mulher não
sorrirá o reino da casa, mas será antes atraída pelo fascínio da luta pela existência” (RAVE apud BAUER, 2001, p. 78).
Acrescente-se a isso que, por serem consideradas frágeis, fúteis e, ao mesmo tempo, sensuais, sendo objeto do desejo, as
mulheres são tidas como perigosas, sendo suas funções relegadas aos recônditos de seus lares, onde por séculos
mantiveram o papel a elas delegado: o de esposas e mães.

A mulher que foi a perdição para o pai Adão, para Sansão a morte, e para Salomão uma
vingança, é, para o médico, um corpo; para o juiz, uma ré; [...] para o padre, uma tentação;
para o enfermo, uma enfermeira; para o são, uma enfermidade;[...] para o versátil, um
joguete; para o menino, um consolo; para o noivo, um desejo; para o marido, uma carga;
para o viúvo, um descanso; para o pobre, uma calamidade; para o rico, uma ameaça; para
o jovem, um pesadelo; para o velho, um inimigo; para o homem, um estorvo; para o diabo,
um agente [...] (A MULHER, 1881, p. 2)

464
Tendo em vista que o poder vem a ser uma teia de relações que não apenas reprime, exclui, interdita, domina,
mas também incita, produz, perpassa a vida cotidiana e marca corpos, delimita comportamentos, define gestos, constrói
saberes (FOUCAULT, 1984); o saber sobre a feminilidade veiculado nas práticas discursivas não só está vinculado a
práticas de poder (institucionais ou não), como também termina por estabelecer a produção social do que se concebe como
verdade sobre a mulher. Kehl (1998) afirma em relação às representações de que as mulheres são alvo no século XIX:

O que é específico da mulher, em sua posição tanto subjetiva quanto social, é a dificuldade
que enfrenta em deixar de ser objeto de uma produção discursiva muito consistente, a
partir da qual foi sendo estabelecida a verdade sobre sua natureza, sem que tivesse
consciência de que era a verdade do desejo de alguns homens e não a verdade da
mulher.(KEHL, 1998, p.15)

A mulher, o casamento, a família no século XIX

O primeiro texto selecionado para análise foi veiculado no caderno 3 do Jornal do Comércio em 1888:

“OS DEZ MANDAMENTOS DA MULHER.

1º Amai a vosso marido sobre todas as coisas;

2º Não lhe jureis falso;

3º Preparai-lhe dias de festa;

4º Amai-o mais do que a vosso pai e a vossa mãe;

5º Não o atormenteis com exigências, caprichos e amuos;

6º Não o enganeis;

7º Não lhe subtraias dinheiro, nem gasteis este com futilidades;

8º Não resmungueis nem finjas ataques nervosos;

9º Não desejais mais do que um próximo e que este seja o teu marido;

10º Não exijas luxo e não vos detenhais nas vitrines.

Estes mandamentos devem ser lidos pela mulheres doze vezes por dia. E depois ser bem guardados na caixinha de toillete. (
OS DEZ..., 1888, p. 2)”

Encontram-se marcas do discurso bíblico no texto em questão: o dizer aí presente faz sentido através da relação
intrínseca entre o já-dito (Dez Mandamentos / Antigo Testamento) e o que está sendo dito na materialidade verbal. Aquele é
retomado através do título e da forma como o texto se estrutura. Uma vez que a intertextualidade vem a munir o leitor de
coordenadas históricas e sociais para a interpretação (GREGOLIN, 2001), o sentido é construído num movimento de
produção e reconhecimento. Na verdade, o recurso ao intertexto bíblico vem outorgar autoridade à fala do locutor, que, com

465
isso, garante maior aprovação, maior aceitação, não contestação e conformação às palavras. Assinala-se, contudo, a
presença de outras vozes inscritas em sua superficialidade. O texto primeiro não é, portanto, recuperado com o único objetivo
de reproduzir os sentidos nele instaurados, mas sim visa-se à instauração de novos sentidos, que é o que vem a dar o toque
humorístico.

Levando em conta que um discurso apenas faz sentido para um sujeito quando ele o reconhece como pertencente
a determinada formação ideológica, na qual estão investidas uma série de formações imaginárias que designam o lugar que
os sujeitos se atribuem mutuamente (PÊCHEUX,1993), pode-se proceder às seguintes reflexões: No saber que configura a
Formação Discursiva que está determinando o dizer deste texto, as mulheres são caprichosas e birrentas (Não o
atormenteis com exigências, caprichos e amuos, Não resmungueis nem finjas ataques nervosos); fúteis (Não lhe subtraias
dinheiro, nem gasteis este com futilidades; Não exijas luxo e não vos detenhais nas vitrines:); consumistas (Não lhe
subtraias dinheiro, nem gasteis este com futilidades; Não exijas luxo e não vos detenhais nas vitrines); dissimuladas (Não
lhe jureis falso; Não resmungueis nem finjas ataques nervosos), Não dignas de confiança (Não lhe subtraias dinheiro, nem
gasteis este com futilidades) uma vez que não ditos mas subentendidos estabelecem que só há necessidade de um
mandamento que as proíba destas práticas, pois estas lhes são constantes.

Partindo-se do pressuposto teórico de que se há uma relação entre a constituição do sentido (interdiscurso) e a
sua formulação (intradiscurso), representando aquele o eixo do dizível e este o que está sendo dito em determinadas
condições (COURTINE, 1984), é possível inferir que: ao se estabelecer um paralelo com o texto bíblico, observa-se, no que
se refere ao 1º mandamento ( 1º Amar a Deus sobre todas as coisas), o qual é tido como o mais importante (MATEUS
22,36-38), que o marido ocupa o lugar anteriormente ocupado por Deus (1º Amai a vosso marido sobre todas as coisas): A
manutenção de toda estrutura com a troca apenas das expressões “Deus” por “vosso marido” garante a similaridade entre
os enunciados. Inscrevem-se aqui sentidos dados pelo contexto sócio histórico como naturalizados e legítimos: o marido
deveria ocupar o lugar de Deus na vida da esposa, podendo dela dispor da maneira que melhor lhe conviesse, não cabendo
a ela questionar suas decisões. (Essa relação assimétrica no casamento pode ser rastreada até no tratamento entre
esposos: utiliza-se então a expressão “minha mulher”, mas não “meu homem, esta tida como vulgar). Não se pode deixar
de mencionar que o lugar da mulher no espaço social brasileiro no século XIX era determinado pelo patriarcalismo,
deixando sua margem de decisão com pouca acessibilidade, sendo ela subordinada e dependente do pai ou do marido. Nos
séculos XVIII e XIX, inclusive, na elaboração dos grandes códigos de direito civil encontra-se a mulher privada de todo
direito. Sabe-se que são os sistemas de poder e de verdade que fabricam sujeitos, produzindo indivíduos. As estruturas de
subjetivação ligam-se, pois, a discursos de verdade, a saberes. Verdade/saberes, por sua vez, estariam veiculados a
“sistemas de poder que a produzem e sustentam”.

Constata-se ainda que, no saber da Formação Discursiva em que é originado o discurso materializado no
enunciado em questão, para um casamento dar certo, é necessário que a mulher aceite o que seu marido deseja.
Reatualiza-se um discurso de acordo com o qual a mulher deve sempre estar pronta a servir a seu marido. Ou seja,
traduzem-se/ perpetuam-se relações sociais naturalizadas pelo senso comum. Observa-se que a pretensa harmonia do
casal apenas depende de a mulher agir da forma como se espera: amando seu marido sobre todas as coisas (inclusive
sobre ela mesma). Há, pois, um silenciamento no que se refere aos desejos, necessidades desse sujeito mulher, uma vez
que ela deve viver para agradar o outro, o que não implica que isto vá ao encontro do que quer.

466
Na verdade, as práticas discursivas se entrelaçam compondo um conjunto de temas, possibilidades de dizer e de
agir – o que se pode/deve dizer sobre a mulher -, conjunto este que não é exterior aos sujeitos que agem e dizem sobre a
mulher: engendra-se uma identidade baseada em critérios arbitrários, que se apresentam com um caráter atemporal. Além
do mais, “Somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de
viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT,1987,
p. 126). Tomando como ponto de partida as materialidades em questão, percebe-se claramente que existem verdades
estabelecidas sobre quem é esta mulher (é dependente financeira do marido; age principalmente levada pela emoção; é
emocionalmente imatura, pois apresenta sentimentos eminentemente infantis); como devem agir as boas esposas (acima
de tudo, amando os seus maridos, o que implica sobrepô-lo a tudo e a todos). São estas verdades que justificam/legitimam
o dizer deste texto.

A mulher, o casamento, a família no século XXI

O segundo texto selecionado foi um cartum composto de seis quadros retirado do livro “Mulheres Alteradas 4”. Tratam-se as
Mulheres Alteradas de uma série de cinco livros. As estórias que compõem os livros são uma compilação das tiras cômicas
publicadas nas páginas de humor de alguns dos grandes jornais de países de língua espanhola desde o início da década de
90, tais como o La Nación (Argentina) e El País (Espanha); para os quais Maitena (sua autora) continua escrevendo. Alguns
consideram as Mulheres Alteradas a versão adulta de Mafalda.

467
(MAITENA, 20004, p. 43)

As práticas discursivas vêm a ser “um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiriam, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística,
as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1972, p.136). Elas estabelecem que nem tudo pode ser dito,
que o que é dito vem a ser regulado por uma ordem do discurso. Práticas discursivas materializadas no cartum terminam
por produzir efeitos identificatórios, reafirmando-se algumas representações da mulher. Algumas verdades legitimam as
materializações verbais e não verbais: mulheres não gostam de suas sogras (expressão facial e postura corporal da
personagem do 1º quadro à direita ); mulheres veem na outra uma rival (2º quadro à esquerda). No último quadro à
esquerda, reatualiza-se um discurso que reafirma uma relação assimétrica entre mulheres e homens, estes vistos como
autoridade. Expressão facial e corporal da mulher e do homem deixam claro que é ele quem está no comando: filhos e
esposa o temem. Ela se sente errada e culpada em virtude do que o filho fez (pegar o carro escondido e bater.) e assume
uma postura não condizente com sua situação: adulta.

468
Além do mais, nas discursividades presentes nas formulações verbais e não verbais, institui-se o sujeito mulher
como único / homogêneo. Preconizam-se verdades como universais, produzindo-se saberes abrangentes que legitimam e
garantem as práticas discursivas e não-discursivas. Ou seja, o universo feminino é concebido de forma universal, indo ao
encontro de verdades sobre a mulher presentes no senso comum. É como se, para ser realmente mulher, tivesse de estar
enquadrada em determinado paradigma: acreditar em horóscopo (1º quadro à esquerda); ver na outra mulher sempre uma
inimiga, estando em constante competição, principalmente quando se trata de homens (2º quadro à esquerda, 1º quadro à
direita); estar sempre pronta a sacrificar o que quer em detrimento ao que deve fazer, principalmente quando se trata de
família (2º quadro à direita).
Em sua genealogia do poder, Foucault mostra como os sistemas de poder e de verdade fabricam sujeitos: o poder
disciplinar torna úteis e dóceis os indivíduos normativizando (como devem agir homens e mulheres) e normalizando (como é
normal que se comportem homens e mulheres) condutas. Observa-se que a “família perfeita” é normatizada pelo
estabelecimento de condutas que afetam o sujeito em seu aspecto moral e físico, quer através de regras de conduta; quer
através do estabelecimento de sentidos morais e éticos para essas mesmas regras. Outro ponto interessante a se ressaltar
é que todas estas normativizações são concebidas como algo que tem por objetivo o “bem” do sujeito, tudo é feito e
estabelecido em prol dele, sendo fundadas elas – as regras - em saberes que visam maior eficiência, mais conforto, mais
prazer, mais saúde para o sujeito. O poder controlador passa, pois, a ser desejado como algo prazeroso.Não ditos mas
subentendidos remetem à memória discursiva de acordo com a qual a principal responsável por se ter uma família perfeita é
a própria mulher, como preconiza o provérbio chinês “Cem homens podem formar um acampamento, mas é preciso uma
mulher para se fazer um lar”. Este discurso vem sendo atualizado, repetido, transformado ao longo das últimas décadas.
Outro grande desafio aqui é refletir sobre as relações de poder a partir do embate entre as estratégias de poder e
de resistência a ele: um dos fatores que fazem a obra de Maitena se mostrar bastante fascinante para este trabalho vem a
ser justamente o fato de ser toda ela açambarcada por uma sutil ironia, confrontando-se aí duas distintas formações
discursivas, que muitas vezes se contrapõem: a que perpassa todo o cartum de forma implícita vai de encontro à que se
manifesta de forma explícita e respalda-se em um saber que reafirma estereótipos, imagens do feminino firmemente
ancoradas no imaginário social, no senso comum. No interior do funcionamento discursivo do primeiro quadro à esquerda,
por exemplo, o jogo interdiscursivo é marcado por diferentes posições de sujeito:
 a posição de sujeito 1: A materialidade verbal “Amarás a teu marido sobre todas as coisas” retoma o 1º mandamento dos
“Dez Mandamentos”, com a troca também aqui somente das expressões “Deus” por “teu marido ”. Ou seja, o marido deve
ocupar o lugar de Deus na vida da mulher, com todas as implicações que isto possa ter. Encontra-se esta posição sujeito
ligada a uma formação discursiva em cujo domínio do saber a mulher é tomada como alguém que deve ter sua vida girando
em torno do homem, bem como que tem na busca de um casamento feliz sua central preocupação;
 a posição de sujeito 2 : Materialidade não verbal ( expressão de desinteresse na expressão facial do personagem feminino
e expressão de ira na do personagem masculino) bem como materialidade verbal ( fala do personagem masculino)
demarcam uma posição de sujeito ligada a uma formação discursiva em cujo domínio de saber a mulher tem seus próprios
interesses e vontades e age de acordo com isto, não em função dos desejos do marido: ter cabelos louros (é interessante
que ligado a este mito de que homes preferem as louras – que ganhou forças após o filme “Os homens preferem as loiras“,
estrelado por Marilyn Monroe – está associado outro: o de que são elas destituídas de inteligência ) e compridos ( não
podemos nos eximir também de mencionar o ditado “Cabelos longos, ideias curtas”). Ou seja, não crê que para viver bem
tem que abrir mão de si, em prol de uma pretensa “felicidade conjugal”.

469
As discursividades presentes no último quadro também assinalam a confrontação de distintas FDs que
estabelecem o que pode – deve – ser dito em relação ao que representa para o sujeito mulher o ideal de uma
comemoração de fim de ano:

 a posição de sujeito 1 está embasada em um saber segundo o qual deve ela passá-las com seus familiares, pois esta é a
sua obrigação, logo deve abrir mão do que realmente quer em prol do que considera o certo. Reforça-se/ reatualiza-se um
dizer segundo o qual a mulher vive para o bem da família (não para o seu);

 a posição de sujeito 2 está embasada em um saber segundo o qual a mulher deve agir de acordo com o que realmente
quer, pensar em primeiro lugar em si, mesmo que isto a deixe com a consciência pesada, já que foi educada criada para
servir/cuidar da família.

Há ainda algumas questões interessantes a serem levantadas no que se refere a este cartum: Levando em conta
que as práticas discursivas formam sistematicamente os objetos de que falam, colocam-se, em evidência, sentidos
previamente estabelecidos e socialmente instituídos sobre o lugar ocupado pelo sujeito mulher:

 No 1º quadro à direita, a fala da personagem feminina reatualiza um saber segundo o qual as mulheres são tidas como
“antas” pelos companheiros. È interessante que ela - personagem – se indigna muito mais por ele não considerar a “bruxa”
da mãe dele do mesmo modo. Reatualiza-se um discurso embasado em saber de que mulheres não são inteligentes.

 No 2º quadro à direita, no saber que configura a FD que está determinando o dizer do sujeito mulher, à mulher é atribuído o
traço da submissão. Está sempre pronta a abrir mão do que para ela é importante, pois o que importa é a felicidade da
família: o cuidar dos outros esta entre os traços definidos como femininos.

 No saber que configura a FD que está determinando o dizer de quatro dos seis quadros (1º, 2º e 3º à esquerda; 1º à direita),
o casamento é revestido de toda uma conotação negativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em relação às representações sobre a mulher no período compreendido entre séculos XIX e XXI, observam-se,
nos textos analisados, representações de homens e mulheres ligadas aos esquemas sociais de dupla moral e do binarismo
implícito nas práticas discursivas e não discursivas, instituindo-se e legitimando-se um mundo cindido em masculino e
feminino.

Materializam-se, no corpus estudado, portanto, discursividades que reafirmam a assimetria valorativa entre
gêneros fundada na diferença sexual e cultural e simbolicamente reelaborada. Constata-se que se dá a construção da
mulher como grupo homogêneo cujos membros compartilham os mesmos desejos, medos, angústias, apagando-se as
diferenças. A identidade de gênero é vista como se fizesse parte de processo de subjetivação interno próprio da biologia
feminina: o universo feminino é concebido de forma universalizante indo ao encontro das verdades estabelecidas sobre o
ser feminino no senso comum.

470
REFERÊNCIAS

A MULHER. Jornal do Comércio, no 233, caderno 2, 29/10/1881 .

BAUER, C. Breve história da mulher no mundo ocidental. São Paulo: Xamã: edições Pulsar,2001.

COURTINE, J.J. Definition d’Orientations Théoriques et Méthodologiques en analyse de Discours. Philosophiques, vol IX,
n. 2, Paris, 1984

FOUCAULT, M.[1969] A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972

FOUCAULT, M. [1978] Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

FOUCAULT, M. [1975]. Vigiar e Punir. História da Violência nas Prisões. Trad. bras. Raquel Ramalhete. 18. Ed. Petrópolis:
Vozes, 1987.

GREGOLIN, M. R. Olhares oblíquos sobre o sentido no discurso. IN: GREGOLIN, M. R (Org.). Análise do Discurso: as
materialidades do sentido. São Carlos: ClaraLuz, 2001.

KEHL, M. R. Deslocamentos do feminino a mulher freudiana passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

LOBO, M. História universal da fêmea. São Paulo: Religare, 2005.

MAITENA. Mulheres Alteradas 4. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2004

MATEUS disponível em http://www.bibliaon.com/versiculo/mateus_22_36-38, acesso em 6 de agosto de 2010.

ORLANDI, E. Um sentido positivo para o cidadão brasileiro. IN: ORLANDI, E; LAJOLO, M.& IANNI, O (Org.) Sociedade e
linguagem. Campinas (SP): UNICAMP, 1997

OS DEZ mandamentos da mulher. Jornal do Comércio, no 8, caderno 3, 28/02/1888 .

PÊCHEUX & FUCHS. A propósito da análise automática do discurso: atualizações e perspectivas (1975). IN GADET & HAK
(orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 2. ed. Campinas, SP:
UNICAMP, 1993.

WERTHEIM, M. Pythagora’s trousers. LONDRES: Fourth Estate, 1996.

Currículo

Doutora em Linguística pela Universidade Federal da Bahia, professora adjunto da referida universidade, onde atua na
graduação e na pós-graduação. É membro do Grupo de Estudos do Discurso, Cultura e Sociedade e desenvolve pesquisas
na linha “A Construção de Identidades na Mídia: Estudo de Relações entre Discurso, Cultura e Sociedade”. Tem artigos
publicados em livros e em anais de congressos nacionais e internacionais.

471
As manobras do sujeito na busca do fazer científico

COURA-SOBRINHO, Jerônimo
(CEFET-MG)
TAVARES, Maria Luiza Rodrigues Rua Campos
(CEFET-MG)

Os gêneros discursivos podem ser definidos por suas características formais ou pela complexidade da situação de
comunicação que, até certo ponto, sobredetermina as formas de dizer. Isso significa que o sujeito falante sofre algumas
restrições, sendo levado a configurar seu discurso de forma a atingir seu objetivo comunicativo. No entanto, tais restrições
situacionais não impedem o sujeito de contar com uma margem de manobra para organizar o seu dizer. As escolhas que o
sujeito faz ao se comunicar em algumas áreas do meio científico parecem ser mais limitadas do que em outros contextos.
Embora os gêneros discursivos que circulam no meio acadêmico sugiram uma estabilidade que, levada ao extremo, conduz
o sujeito a se enquadrar de forma pouco criativa, engessando as formas de dizer, o espaço de manobras garante-lhe um
grau de liberdade, fazendo emergir estratégias discursivas específicas às finalidades do ato de linguagem. Neste trabalho,
busca-se refletir sobre algumas escolhas feitas por sujeitos proponentes de projetos de pesquisa, com o objetivo de
atraírem (ou captarem) alunos do Ensino Médio a engajarem na iniciação científica.
No Brasil, a inserção de jovens no mercado de trabalho está condicionada a um nível de formação cada vez mais
elevado. Tem-se exigido dos jovens um certo nível de escolaridade e de experiência que, muitas vezes, retardam as
oportunidades do primeiro emprego. A educação profissional tem garantido a alguns a formação necessária, o que não
acontece com a maioria dos jovens que, após concluírem o Ensino Médio, tentam sua independência financeira, exercendo
funções diferentes das idealizadas. Diante dessa dificuldade, os jovens brasileiros tem buscado as instituições de ensino, na
esperança de melhor se prepararem para futuras oportunidades de trabalho. À essas instituições cabe preparar os alunos
para o exercício da cidadania, garantindo-lhes um grau de letramento suficiente para as demandas societárias. Nesse
contexto, os programas iniciação científica, que se realizam no Ensino Fundamental e, sobretudo, no Ensino Médio e no
Superior, buscam preparar os jovens para o fazer científico, tão necessário para garantir a soberania tecnológica do país.
Infelizmente, o programa de iniciação científica ainda não tem a abrangência desejada no Brasil, embora tenha apresentado
um desenvolvimento surpreendente, com o apoio das chamadas Fundações de Apoio à Pesquisa.
O CEFET-MG é uma das instituições do estado de Minas Gerais que conta com um programa de bolsas de
iniciação científica para alunos do Ensino Médio e da Educação Profissional (BIC-Jr). Para participar do programa são
lançados, anualmente, editais que regulamentam a distribuição dessas bolsas.
O Edital de Chamada de Projetos de Iniciação Científica Júnior do CEFET-MG de 2009 exigiu dos proponentes a
divulgação de duas versões do resumo: uma para ser avaliada por uma comissão de especialistas e outra para ser
divulgada aos jovens das duas primeiras séries do Ensino Médio e da Educação Profissional, candidatos a bolsas.
Segundo o item 9 do referido edital, o objetivo da segunda versão é “despertar o interesse dos alunos para que
eles se inscrevam para as entrevistas. Quanto mais focado nos alunos, maior o impacto do resumo e maiores as chances
de conseguir alunos que melhor se encaixem nos perfis desejados pelos orientadores.” Essa recomendação demonstra a
preocupação dos gestores do programa de bolsas com o uso da linguagem.
Este relato tem o objetivo de se discutir a natureza das alterações linguísticas e discursivas empreendidas pelos
proponentes dos projetos de pesquisa de iniciação científica, quando da produção das duas versões de seus resumos de
projetos de pesquisa destinados a públicos distintos.

472
Fundamentação Teórica
Parte-se da concepção de leitura como processo complexo, fruto da convergência dos papéis exercidos pelo
escritor, pelo texto e pelo leitor (Coscarelli, 1999). Se ao escritor cabe o planejamento, a organização e a utilização de
recursos lingüísticos, ao leitor cabe colher, reunir e processar as informações, a partir da configuração do próprio texto,
além de recorrer a seu repertório pessoal e a experiências anteriores, para que possa produzir inferências sobre o que está
escrito.
Considerando que, segundo Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2008, p.23), a escrita deve ser acompanhada
das noções de que “todo texto é escrito tendo em vista um leitor potencial, é determinado pela época e local em foi escrito,
possui um autor que teve um objetivo para a escrita daquele texto, e foi produzido tendo em vista o veículo em que irá
circular”, ao escritor caberiam as perguntas: quem é o meu leitor? A que situação esse texto se destina? Quais os objetivos
comunicativos desse texto? Por outro lado, o leitor questionaria sobre as marcas disponíveis no texto que possibilitariam
sua compreensão e sobre suas circunstâncias de produção.
Nos dizeres de Charaudeau (2009a), encontram-se em jogo, no ato de comunicação, três níveis de competência
dos sujeitos: a competência comunicacional (ou situacional), a competência semântica e a competência discursiva (que
inclui a competência semiolingüística). A competência situacional diz respeito à aptidão de reconhecer as restrições da
situação de comunicação e à constituição da identidade social dos parceiros. A competência semântica diz respeito à forma
de organização dos diferentes tipos de saberes. A competência discursiva refere-se à aptidão dos sujeitos em agenciarem
as diferentes formas de organização do discurso e, portanto, consiste no espaço de construção da identidade discursiva.
Também buscando explicitar a complexidade dos atos de linguagem, Charaudeau (2009b) os classifica como
encenações, durante as quais são feitas apostas em que se instauram contratos temporários. Os atos de linguagem
ocorrem, portanto, em situações comunicativas ou em circunstâncias de fala, que instalam um estatuto de ordem
socioinstitucional a ser seguido naquela circunstância e que, desse modo, orientam as estratégias discursivas encenadas
pelos sujeitos. Esse estatuto indicará, por exemplo, o gênero textual mais adequado aos objetivos comunicativos.
Se os textos estão a serviços de situações comunicativas e, portanto, a leitores específicos, eles devem ser
produzidos de modo a atender a suas expectativas. Nesse trabalho, o foco não se encontra nos processos de
compreensão, mas nas características lingüístico-discursivas da configuração do texto, que podem exercer influência na
compreensão.
O gênero resumo pode gerar confusão, uma vez que serve para designar tanto o processo de sumarização, o
resultado textual desse processo. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) regulamenta, a partir de 2003, a
produção de resumos, definidos como uma apresentação sintética dos elementos relevantes de um documento e os
classifica em resumos indicativos, informativos e críticos. Para fins desta pesquisa, a classificação proposta apresenta um
problema, já que, geralmente, o resumo nasce a partir de um texto ou obra já concluídos, o que não é o caso do projeto de
pesquisa. Trata-se, na verdade, da tarefa de sintetizar algo que ainda será executado, sem que, portanto, se tenha algum
resultado, embora sejam possíveis previsões sobre a investigação, ou seja, está em discussão um gênero pouco utilizado
no meio acadêmico.
Na ausência de orientações precisas para a produção de resumo de projetos de pesquisa, voltou-se para os
seguintes critérios baseados em recomendações da ABNT:
Quanto à extensão, recomenda-se até 100 palavras para notas e comunicações breves, até
250 palavras para monografias e artigos, e até 500 palavras para relatórios e teses, das quais
7% sobre introdução, 13% sobre conclusão e 80% sobre metodologia do texto-fonte. (...)
Quanto à redação e ao estilo, o resumo deve ser composto de parágrafo único, em uma
sequência de frases concisas, afirmativas e não deve ter enumeração de tópicos. A primeira

473
frase deve ser significativa, explicando o tema principal do documento. A seguir, deve-se
indicar a informação sobre a categoria do método. Segundo a norma, deve-se também usar o
verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular. Como o resumo, em geral, é publicado
isoladamente, ele deve se sustentar por si próprio, razão pela qual não deve conter citações
bibliográficas, ilustrações e referências a tabelas, quadros e figuras. (RIBEIRO e VILLELA,
2009, p. 3)

Além disso, segundo as normas, devem ser evitados os símbolos e fórmulas, a não ser que absolutamente
necessários. As palavras-chave referentes ao texto devem ser compostas de no máximo cinco elementos e vir abaixo do
resumo.
A partir dessas especificações feitas pela ABNT e das sugeridas por Coscarelli (1999) e Ribeiro e Villela (2009),
foram analisados os resumos produzidos em atendimento ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior
do CEFET-MG.

Metodologia
O acesso ao corpus se deu através do site http://www.dppg.cefetmg.br e resultou nos seguintes dados: foram
inscritos 128 projetos (para distribuição de 140 bolsas), dos quais 103 foram disponibilizados. Os projetos listados no site
foram separados entre aprovados e reprovados, sendo que 93 se enquadraram no primeiro critério e 10 no segundo. Na
Quadro 1 está demonstrada tal relação.

Quadro 1 – Projetos BIC-Jr CEFET-MG 2009

PROJETOS Aprovados Reprovados Total

Apresentados 113 15 128

Projetos disponibilizados para esta pesquisa 93 10 103

Dos 103 projetos disponibilizados, foram descartados aqueles que se tratavam de renovação ou que não
respeitaram a indicação do edital de apresentar duas versões dos resumos, além de terem sido excluídos os reprovados.
Sendo assim, o universo foi reduzido a 92 projetos, dos quais 47 possuíam resumos modificados e que, por isso mesmo,
passaram a constituir a amostra analisada (Quadro 2).

Quadro 2 – O universo amostral da pesquisa

Projetos Aprovados Reprovados

Disponibilizados para esta pesquisa 93 10

Que não apresentavam dois resumos 3 2

Apresentados para renovação 5 1

Que não apresentavam resumos modificados 38 3

Resumos de projetos utilizados como AMOSTRA 47

474
A seguir, os resumos foram agrupados por áreas do conhecimento: (1) Ciências Exatas, Biológicas e Ambientais;
(2) Ciências Humanas e Sociais; (3) Engenharias; (4) Informática; (5) Linguagem e Educação. As engenharias foram
separadas, apesar de poderem ter sido enquadradas na de número um, devido ao grande número de projetos apresentados
(45 no total).
Na Tabela 1 consta a quantidade de projetos aprovados e não aprovados, por área do conhecimentos.

Tabela 1: Projetos aprovados e reprovados, por área do conhecimento

Propostas de Projetos BIC - Jr. 2009

Aprovados Reprovados Total %


Área do Conhecimento
N° % n° % n° % Aprovados Reprovados
Ciências Exatas,
18 90,00 2 10,00 20 21,74 19,57 2,17
Biológicas e ambientais

Ciências Humanas e
100,00 0,00 8 8,70 8,70 0,00
Sociais
8 0

Engenharias 90,00 10,00 50 54,35 48,91 5,43


45 5

Informática 100,00 0,00 9 9,78 9,78 0,00


9 0

Linguagem e Educação 100,00 0,00 5 5,43 5,43 0,00


5 0

Total de Projetos 92,39 7,61 92 100 100,00


85 7

Na Tabela 2, o universo amostral (47 projetos de pesquisa) foi classificado por área do conhecimento.

Tabela 2 – Projetos com resumos modificados, por área de conhecimento


Área do conhecimento Qtde. de projetos aprovados
e modificados
Ciências Exatas, Biológicas e
ambientais 8
Ciências Humanas e Sociais 2
Engenharias 28
Informática 5
Linguagem e Educação 4
Soma 47

475
Levando-se em conta a amostra de 47 projetos, foi necessário o estabelecimento de critérios a partir dos quais seus
resumos seriam analisados. Com base nas orientações de legibilidade de Coscarelli (1999) e nas normas da ABNT foram
extraídos os seguintes itens a serem verificados:

-A: Os resumos foram divididos em mais de um parágrafo?

-B: Houve alterações lexicais de uma versão para a outra?

-C: A primeira frase explica o tema (objetivo) principal do documento, conforme indicação da ABNT?

-D: Os textos contém citações bibliográficas ou outras referências e fórmulas?

-E: O resumo possui palavras-chave?

-F: As palavras-chave estão contidas no resumo?

Na proposta apresentada para esta pesquisa havia também a pretensão de se relacionar a influência das
modificações dos resumos de projetos apresentados aos alunos e a escolha do projeto por parte dos mesmos, como opção
para candidatura a bolsa BIC-Jr. Para tanto foram disponibilizados a relação de alunos candidatos a bolsa de 21 projetos,
relacionados no Quadro a seguir.

Quadro 3 – Alunos inscritos por projeto de pesquisa


Resumos com duas
Número do Projeto Alunos Interessados
Versões?
125 14 SIM
96 14 SIM
75 14 NÃO
39 14 SIM
92 13 SIM
84 13 SIM
73 13 NÃO
18 13 SIM
11 12 NÃO
106 11 NÃO
71 11 SIM
43 11 NÃO
89 10 NÃO
76 10 NÃO
52 10 NÃO
31 10 SIM
12 10 SIM
10 10 NÃO
83 7 NÃO
13 6 NÃO
67 5 SIM

476
Resultados

Quanto ao primeiro critério – paragrafação, observou-se que 64% dos projetos aprovados foram redigidos em um
único parágrafo. No entando, alguns casos chamaram a atenção pelo número excessivo de parágrafos em que foram
organizados, já que há resumos com seis ou oito parágrafos.

O segundo critério investiga as alterações lexicais empreendidas entre o resumo produzido para especialistas e o
feito para captar a atenção dos alunos. Por alterações de caráter lexical foi considerado não só o uso de sinônimos que
pudessem tornar o texto mais acessível, mas omissões de palavras, cortes nos períodos, reestruturação de frases e
acréscimo de informações de caráter explicativo. Observou-se que 48% dos projetos não apresentaram qualquer tipo de
alteração lexical entre uma versão e outra. O que há de diferente entre as produções nesses casos e que, portanto, permitiu
que esses resumos fossem enquadrados no grupo dos modificados, é o acréscimo de um trecho na versão voltada para os
alunos, com especificações sobre o perfil do bolsista desejado.

Ainda sobre esse segundo critério, são raros os textos que foram totalmente reescritos a fim de que pudessem
atingir públicos distintos (avaliadores dos projetos e futuros alunos bolsistas). Não é possível identificar o por quê dessa não
alteração: não se sabe se ela advém do entendimento de que um único texto poderia atender aos docentes e aos
estudantes simultaneamente, ou se faltou entendimento sobre as explicações do edital ou, ainda, sobre o “como operar” as
alterações no texto.

O terceiro ponto analisado verifica diz respeito à primeira frase do texto. Essa é uma indicação da ABNT para a
produção de resumos, sendo que não foi atendida em 63% dos casos. A maioria dos autores optou por começar o texto
fazendo um contextualização sobre o tema da pesquisa, para, a seguir, especificar do que se tratava o projeto, estratégia
procedente, uma vez que o gênero textual se faz a serviço de uma situação comunicativa real, e portanto, em uso. Parece
pouco provável que a inversão da ordem de apresentação do objetivo do projeto dificulte a compreensão do texto. Ao
contrário, ao vir ancorada em uma explicação precedente, ela parece criar mais condições para que o entendimento seja
construído.

O quarto critério analisado diz respeito à existência de citações bibliográficas, referências e fórmulas no texto, o
que, segundo a ABNT, não deve ocorrer. Tendo em vista que o resumo é um gênero que deve se fazer entender de forma
independe do texto no qual se baseia, e que o objetivo não é o de aprofundar o assunto, o uso de citações e referências
não parece adequado. Entre o material analisado, somente quatro resumos continham ocorrências desse tipo. Em nenhum
dos resumos analisados foram utilizadas fórmulas.

Os dois últimos critérios utilizados dizem respeito ao uso de palavras-chave. Em nenhum dos resumos destinados
aos alunos houve emprego de palavras-chave, ao contrário do que ocorreu em todos os produzidos para os avaliadores dos
projetos. Dos resumos considerados, 48% continham todas as palavras-chave incluídas no texto, enquanto que em 36%
dos casos, elas estavam parcialmente incluídas.

Em termos gerais, pode-se dizer que as modificações nos resumos foram positivas no sentido de despertar maior
interesse dos alunos, sendo dos 10 projetos mais procurados, em 6 houve adaptação da linguagem ao perfil dos alunos.
Cinco deles estavam divididos em parágrafos e todos apresentavam informações claras com relação ao perfil do bolsista
desejado. Isso sugere que, mesmo não sendo aconselhável a utilização de mais de um parágrafo em resumos de projetos,
isso parece ter atraído os candidatos.

477
Considerações finais

No geral, observa-se que as diferenças entre as versões de resumo de um mesmo projeto se devem
principalmente à adição de um trecho ao texto, em que o proponente discorre sobre a importância da pesquisa e sobre o
perfil desejado do estudante. Observou-se um ruído entre o que foi solicitado no edital e o que foi produzido pelos docentes,
embora não seja possível determinar a motivação para esse descumprimento das orientações.

Quanto a não adequação dos resumos às normas da ABNT, consideramos não ser um problema, uma vez que a
própria definição de gênero textual guarda em si a mobilidade necessária para que o texto adquira características que o
torne adequado à situação comunicativa a qual se destina. Como mencionamos, existem muitos tipos de resumo, aplicados
a diferentes contextos. Portanto, parece pouco adequado criar um procedimento padrão que pretenda incluir todas essas
variações. Se as situações de comunicação são diferentes, por que não produzir textos diferentes? Nesse ponto, levar em
conta as normas da ABNT para produção de resumos seria ignorar a margem de manobra dos sujeitos ao adaptarem a
linguagem ao público-alvo.

Esta pesquisa mostra que, apesar das coerções situacionais impostas ao sujeito enunciador, ele faz uma aposta
arriscada, contando com a co-construção do sentido discursivo a ser partilhado com o seu destinatário.

Referências

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Pietroluongo, Márcia Atálla (Org). O trabalho da Tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009a.
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso. Modos de Organização. São Paulo, Contexto, 2009b.
COSCARELLI, Carla Viana. Leitura em ambiente multimídia e produção de inferências. 1999. 322f. Tese. (Doutorado em
Estudos Linguísticos). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1999.
MACHADO, Ana Rachel; LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lília Santos. Resumo. São Paulo: Parábola Editorial,
2008.
RIBEIRO, Ana Elisa e VILLELA, Ana Maria Nápoles. Letramento e Escrita Acadêmica: relato de atividade de leitura e
produçãoo de textos no ensino superior. Trabalho apresentado no VI Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna e
Estrangeira e de Literatura. Campina Grande, PB, 4 a 7 de agosto de 2009.
http://www.dppg.cefetmg.br
www.abnt.org.br

SOBRE OS AUTORES

Jerônimo Coura-Sobrinho (jeronimo@dppg.cefetmg.br)

Doutor em Estudos Linguísticos pela UFMG, atualmente é professor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu
(Mestrado em Estudos de Linguagens) do CEFET-MG, onde atua na área de Análise do Discurso e da Linguística Aplicada.

Maria Luiza Rodrigues Rua Campos Tavares

Pós-graduanda do CEFET-MG (Mestrado em Estudos de Linguagens) e desenvolve pesquisa, com base na Teoria
Semiolinguística, sobre a legibilidade de textos veiculados em telefone celular.

478
A atuação do conector quando na organização de
episódios da sequência narrativa
CUNHA, Gustavo Ximenes
(UFMG/CNPq)

0. Introdução

Neste trabalho, descrevo o papel do conector quando na construção da narrativa. Mais especificamente, este
trabalho estuda o quando presente em sequências narrativas de reportagens, a fim de investigar como o jornalista emprega
esse recurso linguístico para encadear os acontecimentos de uma história.

Para isso, apresento inicialmente o Modelo de Análise Modular do Discurso, quadro teórico com base no qual se
desenvolveu o estudo. Em seguida, trato das etapas da análise, para, finalmente, descrever as propriedades que o conector
quando exibe nas sequências narrativas investigadas.

1. Modelo de Análise Modular do Discurso

Em sua versão atual, o Modelo de Análise Modular do Discurso (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001, Marinho, 2004,
Marinho, Pires e Villela, 2007) configura-se como um sistema de análise, que integra e articula as dimensões linguística,
textual e situacional da organização do discurso.

Reconhecendo que o discurso é um objeto complexo, cuja organização e cujo funcionamento envolvem aspectos
de diferentes dimensões, Roulet (Roulet, Filliettaz e Grobet, 2001) postula que o discurso pode, inicialmente, ser
decomposto em um número restrito de subsistemas de informações (ou módulos1). Descritos os módulos, que definem as
informações de base que participam do discurso, o modelo considera que essas informações podem ser combinadas em
formas de organização, a fim de se descreverem os diferentes aspectos envolvidos na produção e na interpretação da
organização discursiva2 (Filliettaz e Roulet, 2002).

No estudo da construção composicional dos textos, esse modelo defende que os textos são estruturas
composicionais complexas, porque geralmente se compõem de diferentes tipos de sequências (narração, descrição,
deliberação). Buscando contribuições das propostas de Adam (1992, 1999) e de Bronckart (2007), o modelo modular
considera que as sequências são as unidades de base da estrutura composicional dos textos e se constituem de
informações de ordem referencial e de ordem textual.

Ao tratar do tipo narrativo, Filliettaz (1999) o concebe, no plano referencial, como uma cadeia de acontecimentos
desencadeadores e conclusivos. Nessa cadeia, os acontecimentos, ainda que estejam cronologicamente ordenados,
obedecem a uma lógica causal, em que acontecimentos anteriores funcionam como a causa de acontecimentos posteriores.
No modelo modular, essa cadeia culminativa de acontecimentos se representa da seguinte forma:

1 Cada dimensão do discurso se constitui de módulos. Assim, a dimensão linguística se constitui dos módulos lexical e sintático; a
dimensão textual se constitui do módulo hierárquico; e a dimensão situacional se constitui dos módulos interacional e referencial.
2 As formas de organização consideradas pelo modelo são: fono-prosódica, semântica, relacional, informacional, enunciativa, sequencial,

operacional, periódica, tópica, polifônica, composicional e estratégica.

479
Reação

Estado Complicação Resolução Estado final


inicial

Em sequências narrativas particulares, a organização dos acontecimentos tanto pode assumir uma configuração
muito próxima dessa cadeia culminativa, como pode assumir uma configuração atípica, em que nem todos os
acontecimentos estão explicitamente verbalizados.

Para descrever a forma como os acontecimentos se articulam em uma sequência particular, o modelo propõe que
se utilize a estrutura praxeológica. Essa estrutura apresenta uma configuração emergente da cadeia culminativa de
acontecimentos e, de modo geral, descreve o mundo narrado em uma dada sequência, apresentando os episódios de que
se compõe e a forma como esses episódios se articulam.

No plano textual, o tipo narrativo se manifesta textualmente em uma estrutura hierárquico-relacional. Em linhas
bastante gerais, essa estrutura descreve a hierarquia existente entre os constituintes do texto (troca, intervenção e ato),
bem como as relações de discurso que se estabelecem entre esses constituintes e informações da memória discursiva3.

No processo de negociação que caracteriza toda troca linguageira, o produtor de um texto (oral ou escrito) produz
intervenções. Essas intervenções podem ser simples e formadas por apenas um ato ou, como é mais frequente, podem ser
complexas e formadas por uma grande quantidade de porções textuais hierarquicamente organizadas (Roulet et al, 1991).
Por meio dessas porções textuais, o locutor pode introduzir argumentos para reforçar um ponto de vista, rejeitar uma ideia
com a apresentação de contra-argumentos, fazer comentários sobre partes de seu texto, elaborando-as, reformular ideias,
tornando-as mais claras para seu interlocutor, etc (Roulet, 2006). A organização de um texto é o resultado dessas diferentes
manobras discursivas, que ocorrem tanto no nível micro-textual quanto no nível macro-textual.

Para estudar essa organização, o modelo modular postula que, no nível da hierarquia textual, um constituinte
pode ser dependente de outro. Nesse caso, o constituinte dependente é chamado de subordinado e tem sua existência
motivada pela presença do outro constituinte, que é chamado de principal. Também há casos em que dois ou mais
constituintes da estrutura do texto podem ter o mesmo estatuto hierárquico e ser independentes. Esses constituintes são
chamados de coordenados.

O modelo postula ainda que, no nível das relações de discurso, as relações entre um constituinte textual e uma
informação da memória discursiva, frequentemente com origem no constituinte anterior, podem ser estudadas com base em
oito categorias genéricas de relações discursivas: argumento, contra-argumento, reformulação, topicalização, sucessão,
preparação, comentário e clarificação. Essas relações podem ou não ser explicitadas por conectores.

3 A memória discursiva, segundo Berrendoner (1983, p. 230), diz respeito ao “conjunto de saberes conscientemente partilhados pelos

interlocutores” e é alimentada tanto pelos acontecimentos extralinguísticos como pelas enunciações sucessivas que constituem o
discurso.

480
A seguir, contribuições desse modelo serão empregadas no estudo da atuação do conector quando em
sequências narrativas de reportagens.

2. Seleção do corpus de análise

Neste trabalho, estudamos a atuação do conector quando na organização de sequências narrativas extraídas de
35 reportagens, que foram veiculadas nas edições de janeiro de 2010 das revistas “Época” e “Veja”.

Feita a seleção das reportagens, foi preciso, em seguida, realizar a busca das ocorrências do conector quando
nessas reportagens. Ao final da busca, encontrou-se um total de 78 ocorrências desse conector.

Entretanto, tendo em vista os objetivos deste trabalho, apenas um subconjunto das ocorrências do quando foi
considerado na análise. Foram considerados apenas os conectores que aparecem em sequências narrativas e destes
apenas os que atuam na articulação de episódios da narrativa, ou seja, que aparecem na fronteira de episódios.

A análise das estruturas hierárquico-relacionais e praxeológicas de todas as sequências narrativas mostrou que,
do conjunto dos 78 conectores encontrados, 33 ocorrem no interior de sequências descritivas ou deliberativas e 45 ocorrem
no interior de sequências narrativas. Mas, dos 45 conectores encontrados em sequências narrativas, 17 ocorrem no interior
de um episódio (Estado inicial, Complicação, Reação, Resolução, Estado final) e, por isso, não atuam na articulação dos
episódios da sequência em que aparecem, porque não encadeiam acontecimentos. Por isso, o estudo levou em conta as 28
sequências restantes, em que o quando atua na articulação dos seus episódios.

3. Análise e resultados

Centrando a atenção nas 28 ocorrências de quando que articulam episódios das sequências narrativas, foi feito o
estudo detalhado das estruturas textuais e referenciais em que o conector ocorre. A análise revelou uma regularidade na
forma como o quando é utilizado e permitiu chegar às seguintes constatações sobre a atuação desse conector:

• Articula episódios que se textualizam em constituintes mínimos das sequências.

• É um introdutor privilegiado da Complicação.

• Marca predominantemente duas categorias de relações temporais.

• Atua na marcação de outras categorias de relações discursivas, além das temporais.

A continuação deste trabalho procura explicar e exemplificar cada uma dessas constatações.

3.1. O quando como articulador de constituintes mínimos

No corpus, todas as ocorrências do quando aparecem em intervenções graficamente delimitadas por letra
maiúscula e ponto final. Em outros termos, nenhuma das ocorrências desse conector articula os episódios de sequências
narrativas formadas por porções maiores do texto.

Entretanto, mesmo apresentando essa limitação, o quando revelou uma variedade na forma como organiza os
episódios das sequências narrativas. Em 22 sequências, o quando articula dois atos, cada um verbalizando um episódio
diferente. A sequência abaixo pertence a esse primeiro grupo:

481
01 (01) Quando direita e esquerda se radicalizaram, (02) quem saiu perdendo foi o próprio Chile.

“Vitória na era do consenso” (Veja, 27/01/2010)

A estrutura hierárquica dessa sequência, que trata da disputa pela presidência no Chile, apresenta uma
configuração simples. Essa sequência é formada por uma intervenção (I), em que um ato subordinado (As 01) é seguido de
um ato principal (Ap 02):

As (01) Complicação (quando)

Ap (02) Resolução

Num segundo grupo, formado por apenas duas sequências, o conector articula um ato subordinado e uma
intervenção principal formada por dois atos, como mostram a sequência a seguir e sua estrutura hierárquica:

02 (01) Quando era vereador, (02) [o deputado estadual Marcos Zerbini] foi acusado de nepotismo (03) depois de
empregar em seu gabinete as duas enteadas.

“Virei sem-terra e entrei na faculdade” (Época, 22/01/2010)

As (01) Estado inicial (quando)

I Ap (02) Resolução

Ip

As (03) Complicação

Por fim, num grupo composto por quatro sequências, o quando introduz um ato, cujo episódio funciona como uma
ponte ou um elo entre dois outros episódios. As duas sequências abaixo foram extraídas desse terceiro grupo.

03 (01) Em 2007, (02) quando o governo federal encampou a obra [de construção do metrô de Fortaleza], (03) seu
valor foi recalculado para 681 milhões de reais.

“Desvios subterrâneos” (Veja, 06/01/2010)

04 (01) Na semana passada, (02) quando [o prefeito Kassab] voltou a dizer que a culpa dos problemas são “as chuvas
em excesso”, (03) voltou a ser vaiado na rua.

“Na lama com Kassab” (Época, 22/01/2010)

Essas sequências se iniciam por um ato, que explicita as coordenadas temporais das ações subsequentes. Por
isso, esse ato expressa o Estado inicial. Em seguida, o segundo ato, introduzido pelo quando, expressa a Complicação.
Finalmente, o último ato expressa a Resolução.

482
As (01) Estado inicial

I As (02) Complicação (quando)

Ip

Ap (03) Resolução

Nessas sequências, o quando não se limita a articular dois atos. Ao mesmo tempo em que remete ao Estado inicial
(primeiro ato), esse conector indica que o acontecimento expresso no segundo ato (Complicação) é anterior ao expresso no
terceiro ato (Resolução).

3.2. O quando como introdutor privilegiado da Complicação

Nas sequências narrativas estudadas, o conector quando revelou ser um introdutor típico do episódio
Complicação. Em outras palavras, ele funciona como um sinal de que, em sequências narrativas, o constituinte do texto por
ele introduzido pode ser a Complicação da história. Nas 28 sequências estudadas, o conector introduziu esse episódio em
26 sequências. Nas outras duas, ele introduziu uma Reação e um Estado inicial.

Esse resultado mostra que, em sequências narrativas de reportagens, o quando parece ter função semelhante à
de expressões como “eis que” e “de repente”, as quais, em sequências narrativas de alguns gêneros literários (contos
populares, fábulas), também sinalizam o início da Complicação (Perroni, 1992). Nesse sentido, o quando exibe papel
importante na construção das sequências narrativas de reportagens, porque atua na marcação da estrutura dessas
sequências.

3.3. O quando como marcador de duas categorias de relações temporais

Das 28 ocorrências do conector quando estudadas, vinte marcam duas categorias de relações temporais. Dessas
vinte ocorrências, a metade marca a relação de sucessão e a outra metade marca a relação de regressão.

Na relação de sucessão, há correspondência direta entre a ordem cronológica dos acontecimentos e a ordem de
apresentação desses acontecimentos na sequência narrativa (Filliettaz e Grobet, 1999). É o que mostra a sequência abaixo:

05 (01) Quando a obra [de construção do Hospital da Mulher] começou, (02) descobriu-se que o terreno era mais
arenoso do que se pensava.

“Desvios subterrâneos” (Veja, 06/01/2010)

Nessa sequência, o começo da obra antecede a descoberta de que o terreno era mais arenoso do que se
pensava. Na relação de sucessão, o conector quando, bem como a ordem de apresentação dos acontecimentos na
sequência indicam que o episódio introduzido pelo conector ocorreu antes do episódio seguinte. Por isso, na relação de
sucessão, o primeiro ato é subordinado ao segundo:

483
As (01) Complicação (quando)

Ap (02) Resolução
sucessão

Entretanto, em dez sequências, a ordem de apresentação dos acontecimentos na sequência narrativa foi contrária
à ordem cronológica desses mesmos acontecimentos. A sequência abaixo é um exemplo disso:

06 (01) Fala-se que Kirk McCambley, o jovem amante, só conseguiu se livrar do amor obsessivo de Iris [primeira-dama
da Irlanda do Norte] (02) quando alegou que seu baixo desempenho sexual se devia a um câncer no testículo.

“O pecado público” (Época, 15/01/2010)

Do ponto de vista cronológico, o jovem amante (1º) faz alegações sobre seu desempenho sexual e (2º) consegue
se livrar do amor da primeira-dama. Mas, do ponto de vista da ordem de apresentação dos acontecimentos, a sequência
apresenta, inicialmente, o segundo acontecimento e, em seguida, o primeiro.

No modelo modular, não se realizou ainda um estudo aprofundado das relações temporais, em virtude talvez da
atenção concedida a outras relações, como a argumentativa e a reformulativa. Por isso, o modelo inclui no rol das relações
discursivas apenas a relação temporal de sucessão, desconsiderando outros tipos de relações de tempo, como a que a
sequência acima exemplifica, em que não há correspondência entre a ordem de apresentação dos acontecimentos e a sua
ordem cronológica.

Porém, em outras abordagens, essa relação tem merecido atenção e recebe denominações, como relação de
anterioridade (L. F. Cunha, 2000) e relação de regressão (Bres, 2001). Seguindo Bres, cujos trabalhos se dedicam a
estudar a narrativa e as relações discursivas existentes entre seus constituintes, este trabalho utiliza o termo “relação de
regressão” para definir a relação que liga os constituintes da sequência anterior.

Nas sequências em que o quando marca a relação de regressão temporal, o papel do conector é de fundamental
importância, porque é ele que sinaliza para o leitor que o acontecimento por ele introduzido ocorreu primeiro,
independentemente da ordem de apresentação dos acontecimentos na sequência. Em outros termos, a indicação de leitura
que ele oferece [interprete o segundo acontecimento como cronologicamente anterior ao primeiro] é mais forte do que a
ordem de apresentação desses acontecimentos.

Ao marcar esse tipo de relação temporal, o quando indica que o primeiro ato subordina o segundo:

484
Ap (01) Resolução
I regressão

As (02) Complicação (quando)

3.4. O quando como marcador de outras categorias de relações discursivas

Apesar de marcar predominantemente relações temporais nas sequências narrativas do corpus, o quando
também funciona como marca de outras categorias de relações discursivas: a de topicalização e a de reformulação.

O quando atuou como marca de topicalização apenas na sequência abaixo:

07 (01) Quando era vereador, (02) [o deputado estadual Marcos Zerbini] foi acusado de nepotismo (03) depois de
empregar em seu gabinete as duas enteadas.

“Virei sem-terra e entrei na faculdade” (Época, 22/01/2010)

Nessa sequência, o quando introduz o Estado inicial, que funciona como uma moldura ou enquadre temporal, em
cujo interior os episódios subsequentes serão interpretados. A contratação de duas enteadas pelo deputado e a
consequente acusação de nepotismo são acontecimentos que ocorreram na época em que esse deputado era vereador.
Nessa sequência, o quando indica que o ato que introduz é subordinado à intervenção seguinte:

As (01) Estado inicial (quando)


I topicalização

Ip (02-03) Resolução - Complicação

Já a atuação do quando como marca de reformulação é mais frequente. O conector exerceu esse papel em sete
sequências narrativas. Nessas sequências, o quando sempre introduz o referente de uma expressão nominal ou de um
pronome presente no constituinte que antecede o conector. Nesses casos, o Estado inicial, verbalizado antes do conector,
antecipa um acontecimento, que será desenvolvido na Complicação, episódio introduzido pelo quando:

08 (01) A última intervenção [militar dos EUA no Haiti] ocorreu em 1994, (02) quando militares americanos ajudaram a
levar ao poder o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide.

“O futuro brasileiro no Haiti” (Época, 22/01/2010)

485
Nesse exemplo, o constituinte que verbaliza o Estado inicial traz a expressão “a última intervenção”, mas o
esclarecimento de que intervenção é essa é dado somente no constituinte que verbaliza a Complicação e que é introduzido
pelo conector quando: “militares americanos ajudaram a levar ao poder o ex-padre católico Jean-Bertrand Aristide”.

Considero que essa é uma relação de reformulação, devido ao fato de que as informações introduzidas pelo
quando explicam ou esclarecem o sentido de uma expressão verbalizada antes do conector. Em outros termos, o quando
introduz informações que levam o leitor a compreender melhor uma informação expressa antes do conector. Segundo
Rossari (1993), essa atuação caracteriza os conectores reformulativos. Nas sequências em que o quando atua dessa
maneira, a Complicação, episódio introduzido pelo conector, obriga o leitor a proceder a uma retrointerpretação do Estado
inicial, episódio que antecede o quando. A sequência abaixo é mais um exemplo:

09 As decisões impopulares que minaram a imagem de Kassab podem ser agrupadas em duas categorias. Uma é a
dos erros políticos, como declarações infelizes e recuos que denotam fraqueza. (01) O primeiro exemplo ocorreu em
junho, (02) quando a prefeitura restringiu a circulação de ônibus fretados “para dar fluidez ao trânsito”.

“Na lama com Kassab” (Época, 22/01/2010)

Na sequência narrativa (em itálico), o ato que verbaliza o Estado inicial traz a expressão “o primeiro exemplo [de
erro político]”. Logo em seguida, a Complicação, introduzida pelo quando, esclarece qual foi o primeiro exemplo de erro
cometido pelo prefeito de São Paulo: “a prefeitura restringiu a circulação de ônibus fretados ‘para dar fluidez ao trânsito’”.

Diferentemente de sua atuação como marca das relações temporais e de topicalização, o quando, ao marcar a
relação de reformulação, indica que o constituinte textual que introduz é principal em relação ao anterior.

As (01) Estado inicial

Ap (02) Complicação (quando)


reformulação

4. Considerações finais

Neste trabalho, estudamos o papel do conector quando na organização de sequências narrativas de reportagens, a fim
de investigar como esse conector é empregado por jornalistas para encadear os acontecimentos de histórias. Utilizando as
contribuições teóricas do Modelo de Análise Modular do Discurso, procedemos à análise de 28 sequências narrativas
extraídas de reportagens, em que o conector quando articula constituintes textuais que verbalizam diferentes episódios
dessas sequências. Essa análise evidenciou que o conector estudado, ao encadear acontecimentos de sequências
narrativas de reportagens, apresenta as seguintes propriedades:

• Articula episódios que se textualizam em constituintes mínimos das sequências, o que significa que esse conector
não articula os episódios de sequências narrativas formadas por porções maiores do texto.

486
• Introduz principalmente a Complicação das sequências narrativas, funcionando como um importante sinalizador
da estrutura da história narrada.

• Marca principalmente relações de discurso temporais (sucessão e regressão), mas pode marcar ainda outras
categorias de relações de discurso (topicalização e reformulação).

Referências

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ADAM, J. M. Linguistique textuelle: des genres de discours aux textes. Paris: Nathan, 1999.

BERRENDONER, A. “Connecteurs pragmatiques” et anaphore. Cahiers de linguistique française 5, 1983, p. 215-246.

BRES, J. De la textualité narrative en récit oral : l'enchaînement des propositions narratives, Revue québécoise de
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BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC,
2007.

CUNHA, L. F. Valores temporais das orações com quando. Cadernos de Linguística, nº 8, Porto, C.L.U.P., 2000.

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FILLIETTAZ, L. e ROULET, E. The Geneva Model of discourse analysis: an interactionist and modular approach to
discourse organization. Discourse Studies 4(3), 2002, p. 369-392.

MARINHO, J. H. C. Uma abordagem modular e interacionista da organização do discurso. Revista da Anpoll 16. São Paulo.
Jan/jun. 2004, p. 75-100.

MARINHO, J. H. C, PIRES, M. S. O. e VILLELA, A. M. N. (orgs.) Análise do discurso: ensaios sobre a complexidade


discursiva. Belo Horizonte: CEFET-MG, 2007.

PERRONI, M. C. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ROSSARI, C. Les opérations de reformulation. Analyse du processus et des marques dans une perspective contrastive
français-italien. Berne: Peter Lang, 1993.

ROULET, E. The description of text relation markers in the Geneva model of discourse organization. In: FISCHER, K (ed.).
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ROULET, E. et al. L'Articulation du discours en français contemporain. Berne; Berlin: P. Lang, 1991.

ROULET, E.; FILLIETTAZ, L. e GROBET, A. Un modèle et un instrument d'analyse de l'organisation du discours. Berne:
Lang, 2001.

Currículo resumido:
Gustavo Ximenes Cunha possui graduação em Letras e mestrado em Linguística pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). Atualmente é Bolsista de Doutorado do CNPq e membro dos seguintes grupos de pesquisa: Grupo de
Estudos sobre a Articulação do Discurso (UFMG) e Livro Didático de Língua Portuguesa: Produção, Perfil e Circulação
(UNICAMP/UFMG). E-mail: ximenescunha@yahoo.com.br

487
Identidades em (trans)formação: um olhar para além do
produto da pesquisa científica

DA ROSA, Marluza
(UNICAMP)

Considerações iniciais

As considerações que trazemos, neste artigo, advêm do movimento teórico-analítico empreendido em nossa tese
de doutoramento, cujo foco incide na constituição identitária de estudantes de pós-graduação, os quais vivenciam um
processo de formação para a pesquisa (dita) científica, em universidades públicas do Estado de São Paulo. Amparamo-nos
no pensamento dos filósofos Michel Foucault e Jacques Derrida, bem como em algumas (re)leituras de seus estudos,
empreendidas por teóricos brasileiros. Com base nesse viés, entendemos que os pesquisadores-em-formação, sujeitos de
nossa pesquisa, inscrevem-se em práticas discursivas (FOUCAULT, [1969] 2009) constitutivas do âmbito acadêmico, as
quais os atravessam de modo a produzir efeitos na imagem que projetam de si mesmos, por meio de seu dizer. Tomamos
esse falar de si em relação com a noção de identidade, devido a seu caráter prioriariamente imaginário, o que não implica
desconsiderarmos, como veremos posteriormente, sua dimensão simbólica, ou seja, constituída e significada na/pela
linguagem.
Traçamos nosso percurso, neste texto, tendo como primeiro elo teórico as noções de identidade e discurso.
Juntamente com essas concepções, ponderaremos sobre a noção de língua, para, então, adentrarmos a problematização
analítica de duas sequências discursivas aqui apresentadas. Tais sequências foram recortadas de um dos relatos que
integram o corpus de nosso estudo. A análise incide sobre a materialidade linguístico-discursiva dos referidos recortes, o
que implica considerarmos língua e discurso como instâncias não dicotomizáveis.

Sobre identidade e discurso

Sabemos que à noção de identidade, em algumas perspectivas teóricas, é atribuído um caráter de fixidez,
estaticidade e completude. Devido a esses sentidos constituídos histórica e teoricamente, mostra-se pertinente
circunscrevermos o modo como tal noção é concebida e funciona no viés em que desenvolvemos este trabalho.
Objetivamos, com esse gesto, permitir que alguns sentidos, em torno da concepção de identidade, sejam re-lidos e re-
significados.
Entendemos que a identidade, embora produza, no sujeito, a ilusão de unidade e de homogeneidade, é
constituída por fragmentos, por identificações com o outro, sendo esse outro visto não como outro sujeito, que se imaginaria
também completo, mas como traços de sujeitos, de discursos, de memórias (CORACINI, 2007). É a traços desse outro que
o sujeito se identifica na constituição de sua identidade. Para que possamos compreender esse processo de constituição,
ancoramo-nos na noção de identificação formulada por Eckert-Hoff (2003, p. 288), para quem esta se define como um
processo em movimento, por meio do qual o sujeito se descentra de si mesmo, constituindo-se na multiplicidade e na
heterogeneidade de discursos. Sendo assim, apesar de o sujeito imaginarizar a si mesmo como um ser unificado, cuja

488
identidade está dada e será, para sempre, a mesma, tal identidade está em constante (trans)formação, permanecendo,
sempre, inacabada.
Desse modo, compartilhamos da ressalva feita por Coracini (2003), quando a autora afirma que, para
continuarmos a falar de identidade, não podemos tomá-la como algo pleno, tampouco completo, mas como o resultado “de
uma ‘falta’: falta de inteireza que procuramos preencher (sem jamais conseguir), a partir de nosso exterior, pelas formas
através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (CORACINI, 2003, p. 243). É essa concepção de identidade que
mobilizamos, com vistas a compreender os efeitos de sentido que são produzidos a partir do dizer dos participantes de
nossa pesquisa.
Trabalhamos com a hipótese de que a identidade do pesquisador-em-formação se constitui em um movimento
tenso de aproximação-afastamento com relação a uma imagem espectral de cientista, delineada a partir do que diversos
estudiosos entendem como ciência moderna (SOUSA SANTOS, 1988; CORACINI, 1991; STENGERS, 1993; LEBRUN,
2004). Acreditamos que as (des)identificações dos sujeitos a essa imagem são sustentadas pelo atravessamento de
diferentes discursos que se enredam, constituindo um domínio de sentidos, no qual esses sujeitos se inscrevem.
Nessa rede discursiva, o discurso científico produz efeitos de sentido particulares, permeando a formulação dos
dizeres e constituindo identidades. No entanto, a esse discurso enredam-se feixes complexos de discursos outros, nos
quais imagens do chamado senso-comum são constantemente reafirmadas e solidificadas, fazendo do dizer do
pesquisador-em-formação um espaço tenso de constituição de sentidos. Utilizamo-nos do hífen, na formulação
“aproximação-afastamento”, como um recurso para marcar essa tensão no movimento identificatório dos sujeitos em
questão, uma vez que tal sinal gráfico, ao mesmo tempo, une e separa os termos por meio dele relacionados.

Para compreendermos essa imbricação discursiva, a pertinência de uma reflexão mais apurada sobre a noção de
discurso se impõe. Tal concepção será mobilizada a partir das formulações de Michel Foucault, teórico basilar para os
estudos discursivos aos quais nos filiamos.
Nos estudos foucaultianos, o discurso não é concebido senão enquanto uma rede, um feixe de relações
designadas “práticas discursivas”. Pensar nessas práticas, para Foucault (2009), implica considerar que não estamos
tratando apenas de uma relação entre forma e conteúdo ou entre palavras e coisas por elas designadas. Tampouco
versamos sobre um simples jogo entre signos ou entre conjuntos de signos. Na concepção do autor, os discursos devem
ser concebidos “como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2009, p. 55). Trata-se
de compreender que é impossível desvencilharmos a realidade do discurso que a circunda, uma vez que é por meio dele
que os objetos designados ganham existência.
O discurso, nesse viés, não se reduz ao dizer, não se limita à língua e não pode ser circunscrito, pois é somente
por meio de um gesto de interpretação que podemos tomá-lo como unidade. Qualquer dizer, qualquer enunciado, qualquer
texto “se constrói a partir de um campo complexo de discursos” (FOUCAULT, 2009, p. 26), o que nos leva a compreender
seu funcionamento plural, múltiplo e heterogêneo. Sendo um espaço de dispersões,

O discurso, assim concebido, não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que


pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a
dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em
que se desenvolve uma rede de lugares distintos (FOUCAULT, 2009, p. 61).

Por ser marcado pela exterioridade e, podemos dizer, pela alteridade, o discurso se apresenta, em sua
constituição, prenhe de contradições, já que independe da intencionalidade desse sujeito que pensa (racional e

489
logicamente) e que acredita dizer aquilo que pensa. Atravessado por diferentes discursos, intrinsecamente heterogêneos, o
dizer do sujeito desliza para também distintos efeitos de sentido, permitindo que nós, analistas, busquemos indícios desses
desvios, desses sentidos não esperados.
A concepção de identidade com a qual trabalhamos pode (e deve) ser relacionada a essa concepção de discurso,
visto que se apresenta como uma rede de identificações sobre as quais o sujeito não exerce nenhum controle volitivo. Mais
do que um lugar de completude, a identidade, quando relacionada a tal noção de discurso, mostra-se como um espaço
poroso no qual interioridade e exterioridade se mesclam e se (con)fundem (CORACINI, 2007). Jogo de imagens projetadas
ao outro, mas também pelo outro, a identidade se caracteriza, fundamentalmente, como um jogo discursivo, uma rede na
qual se entrelaçam práticas discursivas.
Nesse caleidoscópio identitário, como delinear as fronteiras entre língua e discurso? Se tomarmos uma língua
como um puro sistema de signos, devemos lembrar as palavras de Foucault, segundo as quais

Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é
preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2009, p. 55).

No entanto, acreditamos que a língua, assim como o discurso, não se reduz à fala, nem a um conjunto
sistematizável, pois funciona de modo a constituir o sujeito que diz e que, por meio dela, também se diz. Nesse sentido,
outra questão se faz pertinente, a saber, onde e como encontrar traços que nos permitam distinguir, separar ou dicotomizar
língua e discurso? Tal questão já foi formulada por Jacques Derrida ([1996] 2001), filósofo que soube mostrar a instabilidade
desses conceitos, ao se interessar pela possibilidade de balançar e misturar essas fronteiras. Preferimos, assim como o fez
o autor, considerar que “aqui entre nós, esta distinção está ainda suspensa” (DERRIDA, 2001, p. 21).
Tomando, portanto, as práticas linguísticas e discursivas como constitutivas de identidades, partimos para a
problematização dos recortes a que nos referimos no momento introdutório a este estudo. Procederemos na análise, à
maneira de Foucault, questionando o dizer frente ao qual nos colocamos e buscando tangenciar o discurso por meio da
leitura de enunciados que, a cada vez, consistem em acontecimentos únicos, cujos sentidos são inesgotáveis. Indagamos,
então, diante das sequências discursivas em questão, “como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu
lugar?” (FOUCAULT, 2009, p. 30).

Mo(vi)mento de análise

Antes de apresentarmos o primeiro recorte, é pertinente mencionarmos, ainda que brevemente, o modo como
procedemos metodologicamente na realização das entrevistas, para as quais os entrevistados compareceram
individualmente. Nestas, interpelamos os interlocutores a falar de si e sobre o processo de formação em que se encontram,
tendo como ponto de ancoragem a questão-chave: eu sei que você desenvolve um trabalho de pesquisa, vinculado a um
curso de doutorado. Como você vê esse processo e como você se vê como pesquisador nesse processo? As referidas
entrevistas, que não seguem um roteiro fixo ou pré-estabelecido, foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas
pela própria pesquisadora. Os recortes que apresentamos foram formulados pelo participante identificado como P3. Quando
da entrevista, esse interlocutor, do sexo masculino, com 25 anos de idade e vinculado à área de Ciências Exatas, estava
cursando o segundo ano do doutorado em Física, mesmo domínio em que se graduou e obteve o título de mestre.
Na sequência discursiva 1, a seguir, P3 relata o que espera de sua pesquisa acadêmica:

490
SD1) a minha preocupação atual é// descobrir um efeito// descobrir que é fisicamente possível fazer isso// que
a natureza não impede que eu faça tal coisa// isso já dá um doutorado bom/ inclusive/ então/ essa é
minha pre.../ pre.../ preocupação// minha preocupação agora é essa/ é descobrir um efeito de
determinada coisa/ mas até ela ser aplicada/ até ela/ a:::/ ela ter/ até ela ser/ acessível pra população/
vai demorar anos e anos e anos [...] a minha parte/ eu tenho sorte/ que eu posso vislumbrar isso no
futuro// eu posso usar isso aqui pra isso/ mas eu tô preocupado mais com a ciência básica// então/ a
força da minha pesquisa é a seguinte/ beleza/ eu quero provar esse efeito/ [inc]1 é muito bom/ vai ter
várias perspectivas/ as pessoas podem olhar pra mim// porque não só ela pode pegar esse caminho e
virar/ sei lá/ uma tela de computador/ como pode pegar vários outros caminhos// então/ o leque está
muito aberto// (P3).

Nesse dizer, apontamos, inicialmente, para o entrecruzamento de vários discursos, que dizem da filiação
constitutiva de P3. Observamos que, ao falar da pesquisa acadêmica, supostamente lógica, exata e sem intervenção do
desejo do pesquisador – já que o que se procura é “descobrir que é fisicamente possível” e que “a natureza não impede” –,
P3 coloca em jogo traços de discursos que nem sempre figuram no meio acadêmico. Um desses traços pode ser
depreendido da afirmação “eu tenho sorte”, que remonta ao domínio místico da superstição, podendo ser relacionada
àquilo que é fortuito ou acidental e que foge de uma racionalidade lógica e/ou quantificável, sendo, por isso, cientificamente
irrelevante2.
O cruzamento desses discursos no dizer não resulta em um todo harmônico, pois se um discurso é, em si mesmo,
heterogêneo e contraditório, sua relação com outros dizeres pode ser conflitante. Vestígios desse embate são entrevistos
em SD1. Afora o fato de recorrer à sorte de vislumbrar, no futuro, seu fazer acadêmico-científico, sintomaticamente
chamado de “isso” e de “tal/determinada coisa”, P3 mobiliza o caráter utilitário desse fazer, ao enunciar “eu posso usar isso
aqui pra isso”. Depreendemos que, ao mesmo tempo em que um domínio de sentidos relacionado ao misticismo perpassa
esse dizer, este também é atravessado por discursos nos quais a ciência é relacionada à técnica, ao uso de determinado
objeto para finalidades práticas e específicas.
Devido a esse imperativo ao uso, P3 se divide entre uma dualidade já naturalizada em várias ciências, ou seja, a
polarização entre teoria e prática. Sendo assim, a essa formulação que afirma a “necessidade” do uso (é pelo fato de seu
objeto de estudos ser útil para algo que P3 acredita ter sorte), o participante contrapõe um enunciado que tem início pela
conjunção adversativa “mas” (“mas eu tô preocupado mais com a ciência básica”). A presença desse marcador discursivo
possibilita entrevermos, senão uma contradição, ao menos uma divisão desse sujeito entre discursos nos quais incide um
imaginário que aproxima ciência e técnica, e outro em que a ciência é vista como algo teórico e não prático.
O primeiro pode ser relacionado ao que Sousa Santos (1988, p. 5) concebe como “a grande hipótese universal da
época moderna, o mecanicismo”. Para o autor, esse determinismo mecanicista é responsável pelo caráter “utilitário e
funcional” dessa concepção de ciência. Afastando-se, no entanto, dessa visão, no embate discursivo que permeia seu dizer,
P3 marca sua opção (aparentemente consciente) pela filiação à ciência básica, uma vez que afirma se interessar “mais” por
ela, em uma comparação não explícita entre a ciência teórica e a técnica.
No que concerne às imagens do objeto de pesquisa e de si mesmo, construídas por meio desses discursos, é
pertinente apontarmos o que entendemos ser uma relação de simbiose entre sujeito e objeto. Tal relação pode ser
depreendida do fragmento “a força da minha pesquisa é a seguinte [...] as pessoas podem olhar pra mim” presente em SD1.

1 As entrevistas foram transcritas de modo a respeitar as pausas e hesitações da fala. A marca [inc] indica um termo ou passagem
incompreensível. O uso de uma única barra (/) sinaliza uma pausa breve, enquanto o uso de uma barra dupla (//) indica uma pausa maior.
Marcas de oralidade como “tô”, em SD1, não foram editadas.
2 Ao se referir à ciência moderna, Sousa Santos (1988) afirma que uma de suas características está no fato de se considerar

cientificamente irrelevante aquilo que não é quantificável, devido ao lugar central que a matemática ocupa nesse modo de conceber a
ciência.

491
Esse enunciado coloca em jogo a possibilidade de o sujeito falar de si ao mesmo tempo em que fala se seu fazer
acadêmico-científico. Mais ainda, tal sujeito vê nesse fazer a possibilidade de ser visto, ou seja, reconhecido e valorizado
pelo outro. Observamos, assim, que a imagem de si se constrói em uma espécie de vínculo à imagem do objeto de saber,
possibilitando afirmarmos, juntamente com Coracini (2007), que sujeito e objeto podem se imbricar e mesmo se confundir,
ou, ainda, de acordo com Ulloa (1998, p. 167), que “a produção de subjetividade e a de conhecimento se entrecruzam”.
Vejamos a segunda sequência discursiva, na qual essa imbricação também é marcada linguisticamente.

SD2) a gente preza bastante por divulgar a física/ já que o pessoal vê a física como uma coisa meio
estranha e não é/ então a gente sempre tenta jogar/ mostrar pra sociedade/ até porque quem paga a
gente é a sociedade/ eu acho que é uma coisa básica/ é mostrar pra sociedade/ ó:/ a gente faz isso e
não é um monstro/ olha como é que é (P3).

Em SD2 também é possível apontarmos uma imbricação entre diferentes discursos. No enunciado “a gente preza
bastante por divulgar a física”, observamos uma remissão ao âmbito jornalístico, no qual a ciência é, muitas vezes, vista
como algo distante do cidadão comum, que precisa ser informado a esse respeito. A filiação de P3 a esse domínio de
sentidos é justificada pela mobilização de outro dizer, no qual incide o imaginário de que a física é “uma coisa meio
estranha”.
A referida sequência discursiva deixa entrevermos uma relação com o outro, a qual é projetada para fora da
academia e do âmbito científico, sendo esse outro simbolizado por “o pessoal”, “a sociedade”. Tal como em SD1, nesse
recorte também emergem representações que, ao dizerem sobre a ciência, dizem sobre o pesquisador, como podemos
entrever em “o pessoal vê a física como uma coisa meio estanha e não é”. Nesse fragmento, o estranhamento relacionado
à ciência, no caso, a Física (“uma coisa meio estranha”), pode ser compreendido como direcionado também à figura do
pesquisador, o que nos leva a apontar para o fato de que a identidade do pesquisador-em-formação se constitui pelo
atravessamento de imagens sobre a ciência à qual este se dedica.
Apesar (ou devido ao fato) de a imagem de si como pesquisador ser inseparável da imagem (negativa) que se faz
da Física, P3 busca re-significar essa imagem, negando-a (“e não é”). Essa negação é feita de uma posição que P3 acredita
ser autorizada, já que este não fala como um indivíduo, por meio da mobilização de um eu, mas como uma espécie de
porta-voz de uma comunidade científica (“a gente”), que vivencia a mesma situação e com a qual esse enunciador se
identifica, como podemos depreender pela leitura dos fragmentos: “a gente preza bastante por divulgar a física”, “a gente
sempre tenta jogar/ mostrar pra sociedade”, “a gente faz isso e não é um monstro”.
Podemos salientar, ainda, nesse dizer, uma demanda por reconhecimento e valorização pelo outro, pela
sociedade, tal como sugerimos em SD1. Ao mesmo tempo, depreendemos o sentimento de uma espécie de dívida para
com esse outro (“até porque quem paga a gente é a sociedade”), o que nos leva a inferir que, se, por um lado, o
pesquisador-em-formação acredita exercer poder sobre a sociedade e demanda ter esse poder reconhecido, por outro,
também sofre efeitos de poder exercidos pelo outro sobre si mesmo. P3 se divide, assim, entre seu desejo de mostrar para
a sociedade aquilo que faz e sua submissão à vontade desse outro, cujo poder não pode ser ignorado (“até porque quem
paga a gente é a sociedade”).
Acreditamos ser relevante problematizar, ainda, o fato de a ciência, na concepção de P3, ser tomada como algo
alheio ao momento histórico-social, algo que está separado da sociedade, pois, como afirmamos anteriormente, a
sociedade é metaforizada como uma dimensão exterior e distinta do âmbito científico. Não apenas em SD2, mas também
em outros recortes que mobilizamos em nosso trabalho de tese, a polarização entre ciência e sociedade permite fazermos
remissão à imagem do cientista como aquele que se encontra em uma torre de marfim, inatingível pelos problemas e

492
anseios do mundo externo. Apesar de essa imagem permanecer latente, ou devido a isso, P3 demonstra a vontade de
“divulgar”, “jogar”, “mostrar” a ciência para a sociedade.
No último fragmento que mobilizamos, a partir de SD2, colocamos novamente em jogo a constituição identitária do
pesquisador-em-formação na relação com a ideia de ciência, presente no imaginário do qual esse participante compartilha.
Assim, em “a gente faz isso e não é um monstro”, podem ser entrevistos, pelo menos, dois efeitos de sentido diferenciados,
que dizem tanto sobre a ciência (o objeto), quanto sobre o pesquisador (o sujeito), ou melhor, que dizem sobre um e sobre
o outro, inevitavelmente, ao mesmo tempo. Tais efeitos são possíveis pela formulação do enunciado, que deixa em
suspenso o sujeito da segunda sequência “não é um monstro”. Desse modo, podemos reformular esse dizer tanto como “a
gente faz isso e isso (a Física) não é um monstro”, quanto como “a gente faz isso e a gente não é um monstro”.
Nas palavras de Sousa Santos, podemos afirmar que, nesse caso, “a distinção [sujeito/objecto] perde os seus
contornos dicotómicos e assume a forma de um continuum” (SOUSA SANTOS, 1988, p. 9). É pertinente lembrarmos que
essa imagem de si, como observamos nos recortes aqui abordados, é simbolizada pela voz do outro, que marca o
atravessamento constitutivo de uma exterioridade, de um fora, que, ao mesmo tempo, é dentro.

Considerações finais

Procuramos, com esta breve incursão, lançar um olhar problematizador sobre o dizer do pesquisador-em-
formação, no intuito de compreender de que modo os discursos que perpassam seu dizer contribuem para a constituição de
sua identidade. A partir da leitura dos recortes aqui trazidos, podemos experimentar a hipótese de que a inscrição do
participante em determinados domínios de sentido produz deslocamentos na forma como esse sujeito vê a si mesmo e
imagina ser visto pelo outro. Tais deslocamentos decorrem de um movimento identificatório, no qual a ciência ou o objeto de
estudos com o qual o enunciador se identifica, perdem seu caráter de neutralidade e de mero foco de investigação,
passando a constituir também a imagem de si mesmo.
Permanecendo na dimensão do discurso, como afirmou Foucault (2009, p. 85), entendemos que essas imagens
não são feitas senão de traços de dizeres, que se (trans)formam, de acordo com a inscrição em dados domínios e em
determinadas práticas. Ao atentarmos para o dizer dos pesquisadores-em-formação, em busca desses traços que o
significam, abordamos práticas discursivas características dos bastidores do processo formador. Se estas se definem como
um aquém ou um além do produto da pesquisa científica, não podemos saber, mas consideramos nosso objetivo alcançado
se conseguirmos, ao menos, tangenciá-las.

Referências

CORACINI, Maria José. A celebração do outro. Campinas: Mercado de Letras, 2007.

______. Subjetividade e identidade do(a) professor(a) de português. In: CORACINI, Maria José (Org.). Identidade e
discurso. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora Universitária, 2003, p. 239-255.

______. Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência. São Paulo: Educ. Campinas: Pontes, 1991.

DERRIDA, Jacques (1996). O monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das
Letras Editores S.A, 2001.

ECKERT-HOFF, Beatriz Maria. Processos de identificação do sujeito-professor de língua maternal: a costura e a sutura dos
fios. In: CORACINI, Maria José (Org.). Identidade e discurso. Campinas: Editora da Unicamp; Chapecó: Argos Editora
Universitária, 2003, p. 269-284.

493
FOUCAULT, Michel (1969). A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2009.

LEBRUN, Jean-Pierre. (2001). Um mundo sem limite: ensaio para uma clínica psicanalítica do social. Trad. Sandra Regina
Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1988.

STENGERS, Isabelle (1993). A invenção das ciências modernas. Trad. Max Altman. São Paulo: Editora 34, 2002.

ULLOA, Fernando. O estrangeiro na produção da subjetividade. Trad. Monica Seincman. In: KOLTAI, Catarina. (Org.). O
estrangeiro. São Paulo: Escuta/FAPESP, 1998, p. 165-172.

A autora é graduada em Letras, com habilitação em Português/Inglês e suas respectivas literaturas, pela Universidade
Federal de Santa Maria/RS e mestre em Letras, na área de Estudos Linguísticos, pela mesma Universidade. Atualmente é
estudante de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada na Universidade Estadual de
Campinas.

Endereço eletrônico: marluza.rosa@gmail.com

494
Informação midiática: uma encenação da realidade

DAVID-SILVA, Giani
(CEFET-MG)

Considerações iniciais

Os contratos comunicativos não são, em geral, exclusivos. Eles podem se encadear ora por afinidades, ao
partilharem, por exemplo, de uma mesma visada; ora por inclusão: um contrato pode incluir outros contratos (o contrato
midiático inclui diversos outros contratos como o de informação), ou ainda por entrecruzamento: em um determinado tipo de
troca se cruzam dois ou mais contratos, tais como aqueles do debate político televisivo em que se cruzam o contrato político
e o contrato midiático.
O discurso de informação midiática, que propomos abordar neste artigo, está inserido em um grande conjunto: o
dos discursos de informação. No entanto, apresenta certas características provenientes da adaptação da informação às
especificidades dos meios de comunicação de massa. E ainda, em um mesmo meio de comunicação, há diferentes
maneiras de se informar, daí a distinção entre os gêneros de informação: documentários, debates, entrevistas, telejornal,
entre outro
O reconhecimento de determinado tipo de contrato dá-se por meio das inferências situacionais operadas na
relação dos elementos do “dito” (sentido da língua ou dos signos) com elementos externos que determinam a finalidade da
troca. As inferências situacionais relacionadas ao contrato de comunicação constituem aquilo que assegura a interpretação
da finalidade global do ato de comunicação. Apesar da sobredeterminação imposta pelo contrato e suas restrições
situacionais, que vão se refletir em restrições discursivas, o sujeito comunicante possui um espaço em que a escolha do
como dizer será determinante para a realização de seu projeto de fala. O espaço de estratégias é o que permite o
estabelecimento de identidades discursivas por meio da diferenças de sentido produzidas pelas escolhas de cada
enunciador. É desse espaço de estratégias e das formas encontradas pelo discurso de informação midiático, em particular
a televisiva, para atingir seu objetivo que falaremos a seguir.

Espaço de estratégias

Para este artigo, optamos em abordar algumas estratégias utilizadas para se alcançarem três efeitos que, se, ao
mesmo tempo, contribuem para se estabilizar o contrato, por outro lado abrem espaço para o estabelecimento de
identidades e o questionamento do estatuto paradoxal da informação televisiva o que a faz oscilar entre
credibilidade/seriedade e captação/emoção. Esses efeitos são os: de realidade, de ficção e de patemização, dos quais
faremos uma breve exposição a seguir.

Efeitos de realidade

O efeito de realidade resulta de uma convergência de índices que tendem a construir uma visão objetiva do
mundo, sendo que esta visão deve fazer parte de um consenso social. Nesse sentido, o efeito de realidade está marcado
por índices que mostram a parte tangível do universo, a experiência e o saber. O efeito de realidade visa dar maior

495
credibilidade e autenticidade à notícia. A imagem é um forte recurso da informação televisiva para alcançar esse objetivo.
Mas não é o único. Pode-se perceber que a encenação de “testemunhas” é também um recurso bastante utilizado. A
“testemunha”é utilizada, na maior parte das vezes, para confirmar a palavra do repórter ou do apresentador. O testemunho
é a voz da experiência e, ao contrário da voz de autoridade, pode ser dado por qualquer um que esteja envolvido em um
fato. Elas representam um universo de pessoas, seja de profissionais (metalúrgicos, taxistas etc), seja de vítimas
(miseráveis, assalariados, aposentados etc) que se procura valorizar na transmissão de uma informação.

Efeito de ficção

O processo de edição de uma reportagem, no qual as informações são unidas de forma a se construir uma história
com início, meio e fim, utiliza-se, por vezes, de estratégias de ficção. Em uma emissão do tipo Telejornal, vê-se a utilização
de recursos próprios à narrativa ficcional, que têm o poder de distanciar o telespectador da realidade, aproximando-o de um
universo ficcional. Quando os actantes de um fato são apresentados de forma arquetípica como heróis, vilãos, vítimas, ou
quando se evidencia o mistério, o insólito, tem-se uma “ficcionalização” do real. Outra forma de aproximar a narrativa fatual
da narrativa ficcional está no encadeamento dos fatos narrados. A narrativa fatual tende a ser linear, com início, meio e fim.
No entanto, quando utilizados recursos como o encaixamento, estamos olhando para uma estrutura típica da narrativa de
ficção.

Efeitos de patemização

A existência do mundo está condicionada ao olhar subjetivo lançado sobre ele, através de um processo de
apreciação e avaliação. As crenças fazem a regulação das práticas sociais, contribuindo para se validar normas efetivas de
comportamento e controlar a produção de discursos de avaliação desses comportamentos. Quando o discurso informativo
busca inserir o outro em um determinado universo de crença, o faz com intuito de produzir um efeito reativo: aceitar ou não
a avaliação proposta. O interlocutor é levado a se posicionar, a entrar em um universo de cumplicidade ou a recusá-lo. As
avaliações podem se portar sobre diversos domínios: ético (o que é bom e o que é mau); estético (o que é bonito e o que é
feio); hedônico (o que é agradável e o que desagradável) e o pragmático (o que é útil e o que é inútil).
Uma das formas para se atingir efeitos de patemização é a “dramatização dos fatos”, o sensacionalismo. Utilizam-
se julgamentos mais ou menos estereotipados (como os arquétipos de vilão, herói, vítima,...) através de uma previsão do
imaginário psicossocial de seus sujeitos-alvos (telespectadores). Nesse sentido, os efeitos de patemização andam juntos
com os efeitos de ficção e estão ambos em função da visada de captação.

496
INFORMAÇÃO TELEVISIVA

CREDIBILIDADE CAPTAÇÃO

Efeito de Real Efeito Patêmico Efeito de ficção

Proxemia papéis
Autenticidade saber verdade estereótipos particularização montagem enredamento

Dramatização

REALIDADE CRENÇAS ENCENAÇÃO

INFORMAÇÃO

O esquema acima demonstra a tensão entre credibilidade e captação, que é resultado do lugar enunciativo em
que se encontram os interlocutores. O enunciador tem de saber dosar os graus de distanciamento e implicação em relação
ao que relata.
Como o relato dos fatos reais se apóia no universo de crenças dos interlocutores, a informação televisiva buscará
a legitimidade, por exemplo, dos seus efeitos patêmicos no processo de referenciação: para emocionar-se é necessário que
eu sinta que o sofrimento foi realmente sentido.
Podemos afirmar que a informação televisiva nasce de um processo de encenação da realidade e como tal deixa
marcado em seu produto (seja um gênero como o telejornal ou seus subgêneros, tais como as notas, reportagens,
entrevistas) tanto seu vínculo com a realidade fatual, como suas características de realidade fílmica (encenação).

497
Abordaremos a seguir algumas estratégias próprias da informação televisiva, tomando como exemplo o gênero
telejornal e o subgênero: reportagem.

Primeira Estratégia: Narrar por meio de imagens

Um elemento que distingue a informação televisiva da informação entre outras mídias é, justamente, a imagem em
movimento. Um fator fundamental para a análise das imagens e seus efeitos é o seu valor dêitico. A imagem aponta para a
existência da coisa mostrada e seu uso é fortemente estratégico.
Na narrativa do acontecimento, o valor dêitico da imagem adquire extrema importância, uma vez que reforça o
caráter de real da imagem veiculada. Para Jost (1983: 195), o efeito produzido anula a distância entre real e filmado não só
porque a analogia da imagem com a realidade oculta os códigos técnicos (foco, duplicação, plano etc), mas também porque
o enunciado icônico se priva dos critérios gramaticais que permitem estabelecer a diferença entre transcrição da realidade e
discurso sobre a realidade. No texto, por exemplo, essa diferença pode ser marcada pelo uso do discurso direto
(evidenciando uma suposta realidade da fala do outro) e o discurso relatado ou indireto que evidencia a intermediação do
narrador. Na imagem de um objeto, a “ausência” da marca do enunciador nos faz identificar diretamente a imagem à
realidade, “assim a imagem não é uma caneta, mas um olho. A narrativa fílmica se divide entre a suposta transparência,
mimesis absoluta, e o olhar” (JOST,1983:195).
Jost (1983: 199) distingue focalização (de um lado, o saber do narrador sobre os personagens, de outro sua
localização em relação aos acontecimentos) do que ele chama ocularização – termo que remete à ocular da câmera. A
ocularização pode ocorrer de duas formas:

• Ocularização externa – a câmera parece posicionada fora do


personagem
• Ocularização interna – a câmera parece ser o olho do personagem.

A ocularização externa pode ser transformada facilmente em ocularização interna, por exemplo: a foto de um
personagem que olha de perfil ao longe será também uma ocularização externa sobre o personagem e uma ocularização
interna sobre o operador.
No entanto, podemos considerar que a escolha do ponto de vista da câmera em relação ao objeto é sempre uma
escolha que busca um determinado efeito, desta forma, sempre subjetivo, mesmo que busque uma objetividade. Sendo
assim, optar por uma ocularização externa pode representar uma busca subjetiva por um efeito de objetividade,
amplamente utilizado na narrativa fílmica fatual. Dessa forma, filmar casas que desabaram devido a fortes chuvas pode ter a
finalidade de registro, logo uma imagem objetiva que, aliada ao olhar das vítimas que perderam suas casas e de um
narrador consternado, ganha alto grau de subjetividade e efeito de patemização.
Essa ancoragem ou não da câmera a uma instância narrativa explica as diferenças sociológicas da percepção: o
filme de reportagem será percebido como a transcrição da realidade em estado bruto (ocularização zero), tanto como um
olhar subjetivo (ocularização interna) enviando-nos ao repórter e suas preferências e intenções.
Ainda segundo Jost (op. cit: 200):

498
“O ato narrativo só é sensível no momento em que a imagem se destaca da ilusão mimética (por
enquadramento, movimento de câmera,...) quer dizer, quando através de marcas visuais são
percebidas as marcas da enunciação.”

O grau de presença do narrador é, de fato, inversamente proporcional à idéia de mimesis (quanto mais se procura
ser mimético, “transparente”, menor a presença do narrador). Assim, o nível icônico (os elementos miméticos) auxilia os
outros níveis – profílmico (produção da cena) e diegético (mundo criado) – a sustentarem o efeito de realidade e atualidade
tão necessário à credibilidade da matéria jornalística.
No entanto, os cortes de câmera, por exemplo, interrompem a ilusão mimética e revelam a montagem, a
existência de uma instância produtora, responsável pela edição e criação do mundo diegético. Desse modo, o narrador de
um filme de reportagem tende a mascarar sua presença em prol de um efeito de real, reforçando ainda mais o valor
mimético da imagem.
Ainda segundo Jost (1983) o que, nos telejornais, obriga nosso olhar a se focar em um dado preciso, facilmente
identificável (guerra, fome, miséria, violência,...) é menos sua capacidade de representar o real do que sua socialização, sua
relação estreita a um estereótipo do pensamento aos esquemas de percepção fixados, de certa forma, em pessoas
pertencentes a uma mesma sociedade ou grupo. Assim, as propriedades formais dessas imagens são menos importantes
para sua legibilidade do que a sua conformidade a modelos de aceitabilidade, de hábitos de apreensão, de leitura, de
utilização e de avaliação por parte dos destinatários, no nosso caso, os telespectadores. Os aspectos de tratamento da
imagem são os mesmos, seja para filmes de ficção ou para documentários, o que mudam são as dicas de leitura (ODIN,
1982: 134). Para Charaudeau (1997), essas dicas são fornecidas pelo conhecimento do contrato comunicacional.
A causalidade, apesar de ter um caráter imanente, é deslocada em direção à dramatis personae (criança, velho,
mãe,…). A ênfase em personagens estereotipados reforça a intencionalidade de uma resposta emocional por parte do
leitor/ouvinte/ telespectador.
O jornal solicita a competência semionarrativa de seus receptores, criando uma constante expectativa, que é
induzida tanto pela curiosidade, característica inerente ao ser humano, bem como pela estrutura discursiva seqüencial que
apela para a informação seqüencial, nos fazendo sempre esperar pelas cenas dos próximos capítulos.
Os fatos encadeados em uma notícia nem sempre são os mesmos, e a forma de encadeá-los, também não. E
interessante observar que um fato pode ser relatado de forma que fique restrito a si mesmo, ou pode ser, apenas, o ponto
de partida para uma série de outros fatos que vão tecendo a trama de uma notícia.
Narrar é sempre da ordem do passado: “narrar é posterior à existência de uma realidade”, segundo Charaudeau
(1992: 712); o universo narrado pertence a uma outra realidade, mesmo se vinculado a relatos de fatos reais. Para garantir a
credibilidade em suas narrativas, os telejornais fazem uso de estratégias de autentificação do seu discurso. Para tal,
imagens, discurso relatado, palavras de testemunhas são muito freqüentes. Se, por um lado, a credibilidade pode se garantida
por essas estratégias de autentificação, é necessário, para se atingir à captação, seduzir o telespectador. A imagem tem,
então, um duplo papel: ver nos faz compartilhar do acontecimento, de telespectadores passamos a testemunhas.
Soulages (1999) nos fala de três procedimentos de encenação visual que permitem conferir uma identidade narrativa
aos seres e às suas experiências. Esses procedimentos, a priori visuais, podem também ser relacionados a procedimentos
verbais. São eles:
• Narrativa relatada – que consiste em uma reconstrução externa do acontecimento passado. A narrativa propõe
uma retrospectiva fatual, há um rompimento na ordem linear, inicia-se normalmente com o fim e, através da
encenação e/ou relatos de testemunhos, busca-se acrescentar uma perspectiva diferenciada para melhor

499
compreensão do desenrolar dos fatos. O ponto de vista do narrador e do sujeito montrant1 é distante e exterior,
eles são apenas “repórteres” dos acontecimentos.
• Narrativa encenada – na qual o narrador e o sujeito montrant vão apresentar o mundo fatual através da
experiência vivida por um de seus protagonistas. O ponto de vista deixa de ser objetivo e torna-se singular,
pessoal. Há o “encaixamento” de uma micro-narrativa no desenrolar de um acontecimento maior. Introduzindo
uma perspectiva particularizante, o narrador confere à temática factual uma identidade narrativa calcada na
experiência, por isso, indubitável. Ao mesmo tempo, ela é capaz de captar os telespectadores, uma vez que
demanda destes uma resposta emotiva provocada pela exposição de sentimentos e opiniões individualizados.
• Narrativa reconstituída – cuja forma narrativa se identifica com o uso deliberado de procedimentos de
encenação de ações e fatos por parte do narrador e do sujeito montrant. Pode-se perceber a sua aproximação a
estratégias cinematográficas, como: uso de cenários, atores, maquetes, desenhos, música, entre outros. A
montagem é um outro recurso nesse tipo de procedimento. A reconstituição pode vir associada a uma intenção
didática (por exemplo, ao se simular um roubo em caixa eletrônico com a intenção de alertar e evitar que mais
cidadãos sejam vítimas do golpe).

Segunda estratégia: os papéis discursivos

Para que possamos balizar os efeitos possíveis de uma matéria telejornalística, devemos ainda discutir o valor
dado às pessoas e aos papéis que elas exercem na construção discursiva da reportagem. Esses papéis são ora
enunciativos – cuja importância está na relação estabelecida entre a instância produtora (TV) e a instância de recepção
(telespectadores) – ora actanciais, estabelecidos entre as personagens que participam de alguma forma da história narrada.

Papéis enunciativos

A informação não é transmitida por um único sujeito. O sujeito comunicante se desdobra em diversos enunciadores
(apresentador, convidado, repórter,...). Esses, por sua vez, constituem-se intermediários dos fatos, não podem ser vistos como
fonte de informação, mas sim como “pontes” na construção de sentido, já que o sentido não é dado por eles, mas
construído por meio deles.
Esse pacto enunciativo faz com que a abertura para o mundo exterior (movimento exógeno) e reforço das
relações interlocutivas (movimento endógeno) estejam lado a lado no contrato de informação midiática.
Intermediário entre o enunciado de informação e a atualidade, o repórter ocupa um lugar decisivo. Garantia da
verossimilhança e da eficácia da informação, a abertura do estúdio para o exterior e a afirmação de sua presença sobre o
local do acontecimento deve ao mesmo tempo produzir um efeito de verdade e de autoridade.
A análise do papel interdiscursivo do repórter deve levar em consideração: sua relação com o apresentador –
cabe ao repórter assegurar a credibilidade do apresentador, através da confirmação do que foi anunciado anteriormente;
sua relação privilegiada com o acontecimento e seu estatuto de porta-voz da fala e saber dos outros.

1 Aquele que mostra através das imagens.

500
O apresentador faz a introdução (cabeça) da matéria, na verdade o relato resumido do fato, sem muitos detalhes. Como
o acontecido já foi anunciado, cabe à reportagem um estatuto de estratégia comunicacional, garantindo a credibilidade
referencial (nós estamos aqui).
A reportagem é marcada pela multiplicação de nomes próprios, descrições, uso de dêiticos e citações. Essas
formas, entre outras, são necessárias na produção da ilusão realista.
O próprio nome do correspondente apresentado na tela ao início da reportagem nos introduz numa relação indicial
com os fatos. Porque o nome próprio já é em si confiável e referencial.
E mesmo que a fala do repórter esteja diluída no contexto do que é enunciado, restará sempre, no plano da
enunciação, alguma substância do particular.
Uma grande parte do discurso da mídia de informação consiste em transmitir discursos de outros. Políticos,
celebridades, entidades, enfim, os representantes do espaço público utilizam as mídias para se fazerem ouvir e, muitas
vezes, respondendo a críticas, elogios, acusações por intermédio dos meios de informação de massa, estabelecem através
deles uma verdadeira arena polifônica. O texto jornalístico caracteriza-se por ser em sua essência polifônico. A inserção da
fala de outrem pode se dar pelo uso da citação ou do discurso relatado.
Ao mesmo tempo em que o jornalista é enunciador de seu discurso, assumindo a responsabilidade pelo que
enuncia, abre, em seu texto, espaço para a manifestação de outras vozes pelas quais não assume a responsabilidade, mas
que, por outro lado, considera relevantes para o seu intuito primeiro: informar. Na tentativa de garantir a credibilidade da
informação transmitida, o jornalista utiliza e valida a citação como estratégia discursiva de autentificação de seu discurso.
Na matéria telejornalística, o poder de autentificação da citação é muitas vezes reforçado pela imagem, os depoimentos não
são apenas relatados, mas mostrados. O discurso é autentificado pela presentificação dos enunciadores.

Papéis actanciais das personagens

As ações em uma reportagem podem ser facilmente analisadas devido à pouca complexidade da narrativa. No
entanto, nessa simplicidade, podemos encontrar elementos reveladores das tendências de cada telejornal. A opção de
evidenciar as personagens envolvidas e não o fato propriamente dito, destacando testemunhos, opiniões, é uma forma de,
dramatizando, convidar o telespectador a se envolver, tomar partido e opinar do lado de cá da “telinha”.
As personagens se relacionam umas com as outras através de seus atos, e, nas narrativas jornalísticas,
encontramos claramente a presença dos que agem (heróis e vilões) e dos que sofrem (vítimas); essas definições dos papéis são,
também, uma forma de o telejornal demonstrar o seu ponto de vista, logo, a sua parcialidade em relação ao que informa.
A constante negociação entre informação e captação tem sido o principal elemento provocador de mudanças na
estrutura discursiva dos telejornais brasileiros. Percebemos a tendência de um telejornalismo mais “interativo”, que procura
deixar claro a intenção de transformar o telespectador (antes visto como um mero espectador, alguém que quer ser
informado sobre o mundo) em sujeito participativo, que se envolve e se posiciona em relação aos fatos noticiados. Porém, essa
transformação não é espontânea, ela é induzida pelo processo de dramatização, que revela a visão, a interpretação e a
valorização de determinados fatos do cotidiano pelo telejornal, portanto uma visão parcial do espaço público.

Terceira estratégia: a argumentação implícita

O sujeito enunciador de um telejornal deve procurar dar à informação transmitida credibilidade. Tanto no que
concerne ao relato dos fatos quanto aos comentários feitos sobre o mesmo, ou sobre alguns de seus elementos

501
(personagens, espaço, tempo etc). O modo argumentativo toma a forma, no discurso de informação midiático, de explicação
explicitativa, interna ao relato dos fatos, no que concerne ao levantamento de causas e conseqüências imediatas; ou de
uma explicação analisante, que é externa ao fato e busca, pelo viés do debate e das investigações, fornecer causas não
perceptíveis ou mesmo escondidas (Charaudeau, 1998:260).
A partir de pesquisas realizadas pelo CAD – Centre d’Analyse du Discours- o teórico citado (1998: 264) nos propõe
quatro tipos de explicação presentes na informação midiática:
• Autojustificação: trata-se da tentativa da instância midiática de justificar para si mesma (e para os
telespectadores em um segundo momento) o porquê da escolha de um acontecimento e o como ele deve ser
tratado.
• A explicitação causal imediata: A pergunta que se deve responder é: o que aconteceu e quais são as causas e
conseqüências?
• O comentário-análise: O acontecimento serve de leit motif para um debate mais amplo, normalmente esse tipo
de explicação é assumido por um expert.
• A impotência explicativa: Trata-se da impossibilidade da explicação de um determinado fato pela instância
midiática, o que a leva a produzir um discurso implicando o telespectador na busca de uma resposta.

Ainda segundo ele (1998: 264):

“Toda tentativa de explicação por parte da televisão é o resultado de uma combinação entre tipos de
fala com orientação argumentativa e encenações visuais suscetíveis de reforçá-los ou ilustrá-los”.

Dessa forma, aqui também se faz necessária a análise conjunta de procedimentos verbais e visuais. Essa análise
visará definir os papéis discursivos assumidos pelas instâncias enunciadoras através das falas de diferentes locutores
(jornalistas, testemunhos, experts), a escolha de encenações visuais e a sincronia ou assincronia na relação imagem/texto. De
acordo com Soulages (1999: 130), o modo argumentativo, diferentemente dos outros, é menos visível e menos tangível no
discurso de informação televisivo devido ao próprio contrato de informação que prevê em seus princípios uma tentativa de
neutralidade, e argumentar seria tomar uma posição. No entanto, ele pode ser considerado um procedimento subjacente,
uma estratégia de persuasão que procura conduzir o telespectador a compartilhar o ponto de vista da instância midiática.
A função argumentativa intervém em um nível macro-discursivo, ao propor uma configuração do espaço externo,
através de uma suposta identidade do seu discurso com a realidade histórica, o que justifica a sua importância no estudo
dos procedimentos de configuração do espaço público através da informação midiática.

Considerações finais

Toda narrativa, por ser discurso, introduz, necessariamente, um grau de ficcionalização, como propõe Roger Odin
(1982)? E em que medida essa ficcionalização comprometeria o caráter fatual de uma narrativa jornalística?
Se considerarmos que, por um lado, o real está, de uma forma ou de outra, presente nos textos de ficção e, por
outro, todo documentário pode ser lido como fictício por nos fornecer apenas um ponto de vista sobre a realidade, podemos
dizer que a informação televisiva encontra-se estrategicamente nesse cruzamento entre a realidade e a ficção.
Podemos afirmar que, apesar das diferentes possibilidades de estratégias discursivas para se atingirem os efeitos
de : realidade de ficção e de patemização, a busca por esses efeitos é elemento constitutivo do discurso de informação dos
telejornais, uma vez que os três reforçam aspectos de base desse tipo de discurso: ele se refere a um mundo real/empírico

502
(verdade da correspondência) – representa-o através de seus recursos semiológicos (ficção) e se insere em um universo de
crença, buscando: formar opinião (doxa), afirmar, reafirmar ou deformar crenças e princípios já estabelecidos, ou ainda,
emocionar e comover seus interlocutores. Sendo assim, o discurso midiático de informação televisiva instaura a dialética
entre realidade/ficção, verdade/crença, informação/emoção.

Referências

CHARAUDEAU, P. Grammaire du Sens et de l’Expression. Paris: Hachette, 1992.

CHARAUDEAU, P. Le discours d’information médiatique. Paris: Natan, 1997.

CHARAUDEAU, Patrick; GHIGLIONE, Rodolphe. A palavra confiscada: um gênero televisivo: o talk-show. Lisboa: Instituto
Piaget, 1997.

CHARAUDEAU, P. La pathémisation a la télévison comme stratégie d´autenthicité, 1997.

CHARAUDEAU,P. La télévison peut-elle s’ expliquer ? in : BOURDON, J.; JOST, F. Penser la Télévision. Actes du Colloque
de Cerisy, Paris: Nathan-INA, 1998.

JOST, F. Narration(s): en déçà et au délà, Communications, Paris: Seuil, n.38, 1983.

ODIN, Roger, De la fiction. Bruxelles: De Boeck & Lancier, 2000.

SOULAGES, J. C. Les Mises en scène visuelles de l’Information. Paris: Nathan-INA, 1999.

Giani David-Silva
Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG, é professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) e compõe o núcleo docente do Mestrado em Estudos de Linguagens. Suas pesquisas focam : análise do
discurso, mídia, discurso e argumentação, linguagem e informação televisivas. Coordena o projeto de pesquisa para a
criação de um Centro de Apoio a Pesquisas sobre Televisão (CAPTE) no CEFET-MG.

e-mail: gianids@deii.cefetmg.br

503
A multimodalidade em um gênero notícia na seção Ciência
da Folha de S. Paulo

DIAS, Luciene da Silva


(Universidade Federal de Viçosa – UFV)

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende analisar um exemplo do gênero notícia jornalística, na seção Ciência do jornal Folha de S.
Paulo, considerando a relação existente entre textos verbal e não-verbal. Para tanto, serão considerados os pressupostos
teórico-metodológicos de Kress e van Leeuwen (2006) na Gramática do Design Visual.
Quando nos referimos à recontextualização do discurso científico, naturalmente também estamos tratando de uma
troca de registros. Todavia, esse aspecto não será analisado neste estudo, apesar de essa mudança no registro constituir
um dos aspectos fundamentais para o estudo de gêneros de divulgação científica.
É importante também relatar o momento histórico em que se insere a notícia escolhida para esta análise, já que,
para efeitos de estudos discursivos, não podemos desconsiderar as circunstâncias de produção. A notícia que será utilizada
como corpus deste estudo foi publicada no dia 6 de outubro de 2009 e se refere à nomeação para o Prêmio Nobel 2009,
ocorrida no período de 5 a 12 de outubro.
Vale relatar que a escolha desta notícia, especificamente, se deu de maneira aleatória. Ao se estabelecer os
objetivos do trabalho, o único interesse foi que o corpus se referisse a um texto de divulgação científica, haja vista o estudo
de textos multimodais nessa área ser ainda pouco explorado. Já a motivação para se escolher uma notícia publicada no
jornal Folha de S. Paulo deve-se ao fato de este ser um periódico de referência no país. Além disso, diante da proposta de
se analisar, também, o aspecto icônico dessa seção, consideramos que o referido jornal fornece dados satisfatórios para
uma pesquisa bem fundamentada.
De acordo com informações veiculadas no site do próprio jornal, a Folha de S. Paulo foi fundada em 1921 e é,
desde a década de 80, o jornal mais vendido no país, de acordo com os dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC).
Atualmente, porém, esse cenário vem mudando. Segundo dados do IVC, a Folha fechou o primeiro trimestre de 2009 com
uma queda de, aproximadamente, 43% na venda diária, além da queda nas vendas avulsas. Contudo, pela sua
abrangência nacional e por seu histórico de circulação, acreditamos que este pode ser considerado um jornal de referência.
A presença constante da multimodalidade na mídia impressa foi a principal motivação para este estudo.
Considerando que a linguagem não-verbal produz importantes significados e representações, analisar linguística e
discursivamente um texto verbal é importante, mas não suficiente quando este explora também a iconografia, como ocorrido
na notícia selecionada como corpus desta pesquisa.
Atualmente, sobretudo com o avanço tecnológico, os textos multimodais estão cada vez mais presentes nas
práticas sociais. É importante ressaltarmos que, tal como a linguagem verbal, as imagens podem apresentar diferentes
significados nos mais variados contextos. Logo, em uma análise textual, é imprescindível que se leve em conta os
diferentes recursos multimodais que circulam na sociedade.
Desse modo, a importância do presente estudo se destaca por considerar o gênero notícia a partir de toda a sua
estrutura composicional, isto é, considerando seu aspecto multimodal.

504
2. Algumas considerações sobre gêneros discursivos na perspectiva de Gunther Kress
Para Kress (1989) apud Balocco (2007, p. 65), “os gêneros são tipos de texto que codificam os traços
característicos e as estruturas dos eventos sociais, bem como os propósitos dos participantes discursivos envolvidos
naquele evento”. Sendo assim, podemos dizer que a notícia de um jornal diário se configura como um gênero discursivo,
pois expressa aspectos que já se tornaram uma convenção social. A partir dessas convenções, os participantes envolvidos
nessa prática possuem propósitos comunicativos bem estabelecidos. Assim, o jornal teria por objetivo primeiro informar aos
seus leitores acerca de acontecimentos reais que possam interessar à sociedade, enquanto os leitores buscam por tais
informações nesses veículos. Contudo, há que se considerar que não há uma transmissão direta e neutra dessas
informações, pois estamos tratando de gêneros discursivos, uma prática imersa numa realidade sócio-histórica, que faz com
que seu aspecto linguístico-discursivo e estrutural seja determinado por um jogo complexo de relações sociais, pelas quais
perpassam interesses diversos.
É preciso entender que os gêneros de divulgação científica1, seja uma notícia, um artigo, uma entrevista, ou
outros, compreendem práticas sociais que representam a fusão de diferentes domínios discursivos, isto é, o discurso de
cunho científico, o jornalístico e o cotidiano. Então, ao adotar os gêneros de divulgação científica como objeto de trabalho, é
preciso considerar de imediato seus aspectos de produção, circulação e consumo. Se esses fatores forem desconsiderados,
a crença do discurso científico da neutralidade e da objetividade absoluta impedirá uma leitura eficiente.
Então, vale descrever algumas questões relativas ao exemplar que constitui o objeto de estudo deste trabalho.
A Folha de S. Paulo, de grande abrangência nacional, abarca um público geral, interessado em novidades
contemporâneas. Isso, entretanto, não implica o fato de este ser efetivamente formado por leitores aptos ao entendimento
do texto-fonte científico, o que criaria a necessidade de um veículo mediador para a aproximação de pelo menos duas
esferas: (i) a técnico-científica, dotada de vocabulário técnico, específico do âmbito científico e (ii) as concepções sociais,
culturais, políticas e econômicas típicas do cotidiano. Dessa forma, é perfeitamente aceitável que esse tipo de informação
passe por um processo de reformulação, objetivando um discurso acessível voltado para a comunicação com o público
leitor.
Observamos, na notícia escolhida para esta análise, intitulada “Estudo de envelhecimento celular rende Nobel a
trio” – seção Ciência da Folha de S. Paulo, publicada no dia 6 de outubro de 2009, que o conteúdo desta está mais voltado
para uma questão político-social acerca de determinado ponto científico, do que, de fato, para o estudo científico
propriamente dito. O assunto central desse texto é a premiação Nobel recebida por três cientistas americanos pela
realização de um estudo sobre o envelhecimento celular. Com a pesquisa, os cientistas descobriram como é o sistema de
proteção do material genético de uma célula, mostrando, sobretudo, como esta pode se tornar imortal, assim como ocorre
com células cancerígenas, por exemplo. Logo, a descoberta em si pode, ainda, não beneficiar diretamente a saúde da
população. Contudo, os cientistas acreditam que entender como essa proteção do cromossomo ocorre pode contribuir na
descoberta de novas drogas contra tumores.
Notamos, pois, que, apesar dessas importantes informações científicas, o foco é dado à premiação de alguns
pesquisadores. O fato científico até é noticiado, mas não colocado como ponto principal da notícia.
Considerando os propósitos deste estudo, é necessário considerar a iconografia amplamente explorada nesta
notícia, pois, conforme afirma Kress et al. (1997, p. 270) apud Balocco (2007, p. 65), “a linguagem sozinha não é mais

1Por divulgação científica, entendemos o conjunto de informações midiáticas que são produzidas em situações comunicativas distintas
das estabelecidas entre os cientistas e seus pares, sendo, pois, um texto reformulado por um jornalista, ou mesmo por um cientista, para
um leitor não especializado no assunto que está sendo tratado.

505
suficiente como foco de atenção para aqueles interessados na construção e reconstrução social do significado”. Diante
dessa afirmação, concordamos que uma análise de gênero precisa ir além do estudo de seus recursos verbais.
Kress e van Leeuwen (2006) defendem que a comunicação visual é sempre codificada, quer sejam fotografias,
desenhos, pinturas ou outros tipos de imagens. No entanto, esse tipo de comunicação pode não ser interpretado como tal,
pois a consciência da estruturação de imagens, em nossa sociedade, é reprimida e não faz parte do senso comum.
Por focalizar o gênero como um recurso representacional, numa perspectiva discursivo-semiótica, Kress adota a
concepção de linguagem como sendo uma prática social, sendo, pois, afetada por questões históricas e culturais.
Em nosso estudo, acreditamos que a utilização da Gramática do Design Visual como aporte teórico-metodológico
poderá ampliar os significados que serão analisados sob a ótica da Análise do Discurso da Divulgação Científica pelo fato
de, através de imagens, ser possível demonstrar algumas representações ou mesmo mensagens que a linguagem verbal
poderia não fazê-lo. Acreditamos, pois, que a linguagem visual também pode reproduzir discursos que podem ser lidos
apenas nas entrelinhas e, portanto, merecem atenção especial, já que fornecem base para que alguns discursos já
naturalizados pela sociedade, tais como a posição da mulher na comunidade científica, conforme discutiremos adiante,
possam ser olhados criticamente.

3. Algumas considerações sobre a Gramática do Design Visual


A proposta de uma gramática visual de Kress e van Leeuwen (2006), que objetiva descrever como pessoas,
lugares e coisas combinam ‘sentenças’ visuais de maior ou menor complexidade, tem sido amplamente adotada para
análise de textos multimodais, isto é, textos que combinam diferentes códigos semióticos.
Por considerarem que modos semióticos visuais, assim como os verbais, são também construtos sociais e
históricos, que servem a propósitos comunicacionais e representacionais, Kress e van Leeuwen (2006) adaptam as
metafunções de Halliday (1989) para desenvolver a Gramática do Design Visual (doravante GDV), uma estrutura descritiva
para a análise de imagens e composições visuais.
A perspectiva adotada pelos autores é a da semiótica social, que considera dois níveis importantes: a
representação e a comunicação. A representação, de acordo com Kress e van Leeuwen (2006), é um processo no qual o
produtor de um signo, seja adulto ou criança, tenta fazer a representação de algum objeto ou entidade, seja ele físico ou
semiótico, no qual o seu interesse naquele objeto para fazer a representação é complexo, acontecendo conectado à história
cultural, social e psicológica do produtor do signo e focalizado pelo contexto específico no qual esse signo foi produzido. O
processo de representação nunca pode ser considerado como o objeto em si, mas como um aspecto do que é
representado.
Já a comunicação (IBIDEM, 2006) é o processo no qual um produto ou evento semiótico é, ao mesmo tempo,
articulado ou produzido e interpretado ou usado. Assim, é necessário que o interpretante tenha conhecimento semiótico
para entender uma mensagem. A comunicação não acontece somente no pólo do produtor, mas também depende do
interpretante. Desse modo, podemos dizer que a estrutura social está inevitavelmente presente na comunicação.
Considerando esses aspectos fundamentais em um estudo do significado que leva em conta o sentido dentro da
vida social, a estrutura básica da GDV corresponde ao significado representacional, interacional e composicional. Por ora,
este trabalho se centrará no significado composicional, visando analisar a composição desta notícia.
Kress e van Leeuwen (2006), para o significado composicional, apresentam três categorias: i) valor de informação:
centrado ou polarizado; ii) framing: conectados ou desconectados; iii) saliência: tamanho, cor, contraste, plano de fundo.

506
Esses três princípios da composição se aplicam também às imagens compostas, que combinam texto e imagem
e, talvez, outros elementos gráficos, seja, por exemplo, numa página, na televisão ou em uma tela de computador (Kress e
van Leeuwen, 2006). Com essa proposta, os autores intentam elaborar um estudo que possa, por exemplo, permitir que se
olhe uma página inteira como um texto integrado, pois consideram que a integração dos diferentes modos semióticos é o
trabalho de um código geral, cujas regras e significados fornecem o texto multimodal.
Em relação ao valor da informação, uma importante consideração que se faz necessária é a relação entre ‘dado’ e
‘novo’, isto é, o valor da informação da esquerda e direita. Segundo os autores, à direita, em geral, aparecem as
informações principais, as quais o leitor deve prestar atenção especial. Já o lado esquerdo corresponde ao ‘dado’, algo que
o leitor já conhece, seja pela sua própria cultura ou através de informações fornecidas anteriormente pelo próprio veículo de
informação. Assim, o ‘novo’, para os autores, poderia ser visto como o “problemático”, o “contestável”, ao passo que o ‘dado’
seria o senso comum. Nas culturas que concebem a escrita da direita para a esquerda, o dado está na direita e o novo à
esquerda.
A oposição entre ‘ideal’ e ‘real’ também pode ser vista como as relações entre texto e imagem. Nessa relação
entre ‘ideal’, o valor da informação do ‘topo’, e ‘real’, o valor da informação de ‘fundo’, a seção superior normalmente tende
a fazer algum tipo de apelo emotivo para nos mostrar “o que poderia ser”. A seção inferior tende a ser mais informativa e
prática, mostrando-nos “o que é”.
A figura 1, adaptada de Kress e van Leeuwen (2006), mostra sinteticamente a rede de sistemas através da qual
pode ser realizada a categoria relacionada aos significados composicionais:

FIGURA 1 – Rede de sistemas referente à categoria significado da composição.

Kress e van Leeuwen (2006) ponderam que margens iguais ou análogas, quando posicionadas simetricamente,
apresentam uma configuração que não permite a distinção entre Dado e Novo, Ideal e Real. Contudo, quando ocorre uma
combinação entre Centro, Margem, Dado e Novo e/ou Ideal e Real, observamos a configuração de uma cruz. As referidas
dimensões do espaço visual podem ser observadas na figura 2, baseada em Kress e van Leeuwen (2006):

507
FIGURA 2 – As dimensões do espaço visual em formato de cruz.
Além dessa representação em formato de cruz, há também que se considerar as informações organizadas no
formato centro e margem, as quais são chamadas por Kress e van Leeuwen (2006) de elementos centrais e marginais,
embora na cultura ocidental o primeiro formato seja mais recorrente. Em muitos casos, essa relação centro e margem pode
ser observada em imagens que exploram a relação dado e novo. Nesses casos, o elemento central atua como mediador,
podendo ocorrer tanto nas formas horizontais como verticais. Representações dessas ocorrências são demonstradas nas
figuras abaixo:

Dado Mediador Novo Ideal


Mediador
FIGURA 3 – dado/mediador/novo horizontal
Real

FIGURA 4 – ideal/ mediador/ real vertical

Quanto à saliência, esta pode ser observada quando algum elemento, dentro de uma mesma imagem, é
apresentado com maior destaque em relação aos demais, seja pela diferença de cores, tamanho ou contraste.
Em relação ao framing ou moldura, terceiro elemento da estrutura composicional, pode-se dizer que é
responsável por desconectar os elementos de uma imagem, podendo indicar se pertencem a um mesmo núcleo de
informação ou não. As molduras podem ser realizadas por meio de linhas divisórias, espaços coloridos ou não, isto
é, através de qualquer marcação que possa delimitar os espaços dentro ou nas margens de uma imagem.
Acreditamos que a utilização desse referencial teórico-metodológico em nossa pesquisa poderá evidenciar
como o estudo multimodal é importante, em especial, na sociedade contemporânea, dada a constante exploração
dos vários aspectos multimodais de um texto. Nesse caso específico, observamos que no discurso de divulgação
científica, muitas vezes, enfocado como como neutro e objetivo, a representação, seja do pesquisador ou da própria
ciência, pode estar evidenciada também no aspecto icônico.
Com este estudo, buscaremos mostrar como os discursos aparentemente neutros e/ou puramente
informativos dos jornais, sobretudo em relação à ciência, podem, na verdade, perpassar atitudes ideológicas tanto
quanto outros discursos.

508
4. Análise de uma notícia com base no significado composicional da Gramática do Design Visual
Segundo Kress e van Leeuwen (2006), a oposição entre ideal e real também pode ser vista como as
relações entre texto e imagem. Em nosso corpus de análise, essa oposição pode ser claramente percebida, em
especial, no topo da notícia, conforme demonstra a imagem abaixo:

Observamos que a imagem do ganhador de um prêmio Nobel, Szostak, aparece à esquerda da página,
como sendo o Dado, ao passo que o Novo, as duas ganhadoras, Blackburn e Greider, aparecem,
predominantemente, à direita. Considerando como dito na própria notícia que “nos mais de cem anos do prêmio, só
dez mulheres foram laureadas (já incluindo as duas citadas anteriormente)”, podemos dizer que a imagem das
referidas pesquisadoras se insere no novo por ser algo bastante raro no universo feminino. Sabemos que, em nossa
cultura, a posição da mulher enquanto pesquisadora ainda aparece de forma tímida e pouco valorizada.
Vale também observar que, na fotografia, o homem premiado aparece falando ao telefone, com uma
expressão bastante natural, sob a legenda “Jack Szostak recebe ligação para parabenizá-lo em sua casa”.
Podemos dizer que isso representaria o dado pelo fato de apresentar o fato como algo quase que cotidiano na vida
dos homens, que, aliás, já nem se emocionam tanto com a premiação. Já as duas mulheres são apresentadas na

509
fotografia como se estivessem comemorando intensamente a premiação. Afinal, é “novo” o episódio na vida de
mulheres. Assim, Blackburn aparece fazendo um brinde enquanto Greider aparece usando óculos bastante
divertidos, com nariz e sobrancelhas bastante caricatas, além de bigode, que lembram bastante uma representação
masculina. Nesse caso, poderíamos interpretar que a mulher, enquanto vencedora de um Nobel, estaria semelhante
a um homem.
Com essa interpretação, observamos que a escolha das imagens pelo jornal não é feita de maneira
aleatória, demonstrando, pois, ideologias, muitas vezes já naturalizadas, sobre a posição da mulher no universo
científico.
Outra observação referente ao novo é a veiculação de uma nota jornalística sobre o fato de uma das
ganhadoras ter sido orientadora de uma brasileira, professora da Unesp, em seu pós-doutorado. Talvez isso
pudesse ser considerado como novo pelo fato de, apesar do Brasil não ter sido lembrado na premiação do Nobel
2009, uma brasileira teve alguma relação científica com um ganhador.
Ainda em relação à oposição dado e novo, observamos que a maior parte da notícia escrita verbalmente
se insere à esquerda da página, isto é, onde o leitor precisa prestar menos atenção. À direita, temos uma
predominância de infográficos, que exigem uma maior atenção do leitor e, ao mesmo tempo, se torna algo novo por
ser uma nova maneira de ilustrar o que já foi noticiado, porém, agora, de uma maneira mais resumida tecnicamente
falando e também mais empírica pelo fato de exibir imagens que permitem ao leitor ter uma noção mais efetiva do
processo realizado na pesquisa.
Já na relação entre Ideal e Real, isto é, o valor da informação do “topo” e “fundo”, a seção superior
normalmente tende a fazer algum tipo de apelo emotivo para nos mostrar “o que poderia ser”. A seção inferior tende
a ser mais informativa e prática, mostrando-nos “o que é”.
Em nossa análise, teríamos como ideal as fotografias que retratam a premiação, bem como a manchete
(título e subtítulo: “Estudo de envelhecimento celular rende Nobel a Trio” e “Cientistas dos EUA revelaram esquema
de proteção do DNA contra deterioração”) que exibe a mesma premiação. Além disso, temos o infográfico intitulado
“Para-choque do DNA”, que mostra a proteção natural do DNA. Isso poderia ser considerado ideal pelo fato de se
tratar de uma proteção que, na realidade, não acontece efetivamente. Com o envelhecimento, as pontas dos
cromossomos, as telomerases, vão encurtando e a célula vai se danificando.
Já em relação ao real, temos a notícia verbalmente detalhada, que explica como se deu a pesquisa, além
de garantir que os especialistas ficaram surpresos com a premiação e nem tinham certeza das implicações de seu
trabalho. Em relação aos infográficos, observamos que “O experimento” e “A descoberta” objetivam detalhar como
realmente aconteceu a pesquisa. Ainda no campo do real, temos também a nota jornalística, conforme referido no
momento em que discutíamos a relação dado e novo.
Assim, constatamos que o valor da informação na notícia selecionada foi polarizado, conforme
demonstramos a partir dos elementos dado/novo e real/ideal.
Em relação à saliência, outro elemento do valor composicional, observamos que esta foi dada às
fotografias das ganhadoras Blackburn e Greider. Nessa imagens, observamos que há uma maior luminosidade e
nitidez, além de um maior tamanho na imagem de Greider. Assim, podemos dizer que há uma maior saliência nas
imagens das mulheres em relação à imagem do homem; além disso, nas imagens das mulheres, uma maior
saliência é observada na imagem de Greider, a pesquisadora que exibe os óculos descritos anteriormente, que

510
reflete um aspecto mais masculinizado. Essa saliência poderia também estar relacionada à visão da mulher como
uma figura masculinizada ao se inserir no mundo científico; a pesquisa seria, pois, segundo a imagem veiculada por
este periódico, uma função mais prototípica dos homens.
Quanto ao framing, que diz respeito aos elementos ou grupos de integração do espaço nas composições,
estes podem estar desconectados ou conectados. Nas imagens que compõem a notícia analisada, observamos que
esses elementos estão desconectados, pois aparecem visualmente separados um do outro, através de linhas de
enquadramento ou pequenos espaços vazios. Com isso, poderíamos interpretar que não há uma relação de
aproximação pessoal entre os pesquisadores, pois, embora tenham realizado juntos uma mesma pesquisa, no
momento de comemorar a premiação recebida por esta, são apresentados como estando bastante separados, com
comemorações particulares. Quanto aos infográficos, acreditamos que a separação existe pelo fato de serem
explicações para momentos diferentes da pesquisa, embora complementares quanto à temática.
Com essa breve análise, pretendemos evidenciar como o estudo multimodal é importante, em especial, na
sociedade contemporânea, dada a constante exploração dos vários aspectos multimodais de um texto.

5. Algumas considerações finais


Ao analisar uma notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, destacamos que esta constitui uma forma
de discurso público, portanto, inevitavelmente, percebe-se a presença intrínseca dos fatores semióticos
relacionados. Afinal, estamos tratando de sentidos produzidos na vida social.
Nessa perspectiva, a análise de gêneros de divulgação científica numa perspectiva multimodal pode
revelar que a leitura de textos pertencentes a essa esfera da ciência deve ser realizada como uma sequência
coerente e também reveladora de múltiplas representações.
Nessa perspectiva, é possível dizer que a importância da análise de gêneros discursivos está ligada não
apenas ao estudo de elementos linguístico-discursivos, mas também à sua estrutura, ao seu formato, considerando-
se aspectos verbais e não-verbais como semioses sociais, intencionalmente selecionadas por um produtor para fins
específicos.
Sabemos que, em geral, o foco dos estudos de gêneros está na funcionalidade destes; e este é, de fato,
um ponto extremamente importante. Contudo, é preciso também ressaltar que a função discursiva de um gênero
pode estar expressa não apenas em seu conteúdo verbal, mas também em sua estrutura, considerando-se,
sobretudo, o seu conteúdo não-verbal.
Relacionando este estudo com a tarefa de um professor de línguas, a de ampliar a habilidade em
expressão e compreensão por parte de seus alunos, permitindo que, dessa forma, eles possam participar mais
ativamente das interações na sociedade em que vivem, defendemos que o estudo de gêneros que leva em conta
seus aspectos verbais e não-verbais deve ser levado para a sala de aula para que possamos dar condições aos
nossos aprendizes de possuir habilidades suficientes para que possam agir como cidadãos críticos e ativos na
sociedade.
Sob a égide desta prática de ensino, e inseridos num contexto de revolução tecnológica, acreditamos que
o ensino de gêneros nessa perspectiva faz-se necessário nas escolas. Afinal, são práticas de linguagem que fazem
parte do cotidiano da grande maioria dos alunos.

511
REFERÊNCIAS

BALOCCO, A. E. A perspectiva discursivo-semiótica de Gunter Kress: o gênero como um recurso representacional.


In: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo:
Parábola Editorial, 2005. p. 65-80.

KRESS, G.; T. VAN LEEUWEN. Reading images: the grammar of the design visual. 2 ed. London: Routledge, 2006.

KRESS, Gunther R. Before writing: Rethinking the paths to literacy. London, New York: Routhledge, 1997. 175 p.

KRESS, Gunther. Linguistic processes in sociocultural practice. London: Oxford University Press, 1989.

Luciene Dias é Mestranda em Letras/ Estudos Linguísticos, pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista
FAPEMIG. Graduada em Letras-Português/Francês pela mesma universidade (2008). Possui experiência na área
de Lingüística, com ênfase em Análise do Discurso, atuando principalmente em pesquisas relacionadas à
divulgação científica. E-mail: luciene.dias@ufv.br

512
O discurso webjornalístico à luz da Semiolinguística

DOMINGUEZ, Michelle Gomes Alonso


(UFRJ)

1. Introdução
Os postulados teóricos da Análise Semiolinguística do Discurso partem da premissa de que a construção
discursiva se dá num imbricado jogo de restrições e liberdade. Desse modo, se por um lado é cerceada por expectativas de
um contrato comunicativo socialmente acordado, por outro, traz no próprio contrato a possibilidade de diferentes estratégias
de realização. Jogo que é, restringe-se por regras previamente definidas pelos jogadores, os quais, por sua vez,
responsabilizam-se por suas jogadas individuais.
O jogo do discurso webjornalístico tem se dado desde a década de 90. Com o tempo e a cada lance, as
jogadas foram aprimoradas, sendo mesmo criadas outras e novas. Com tantos lances dados, será ele ainda o mesmo do
jornalismo impresso? Na apropriação da metáfora do jogo, justifica-se a observação das jogadas para a apreensão da
regra. E nesse sentido, a observação das estratégias discursivas utilizadas pelos webjornais é de grande valor para que se
comece descortinar as especificidades desse discurso.
Relacionando, então, a perspectiva Semiolinguística a formulações da teoria da comunicação sobre a produção
jornalística na web, destacando-se as propostas de Canavilhas (2001), Palácios (2003) e Mielniczuk (2001), este artigo
pretende analisar algumas práticas discursivas estratégica e efetivamente utilizadas pelos jornais O Globo, Folha de São
Paulo e Jornal do Brasil, através da comparação de suas versões impressa e online. Para isso, acompanha alguns lances
do discurso, considerando sua formatação e estrutura, bem como seus critérios de seleção e hierarquização dos
acontecimentos noticiados.

2. Na primeira página: potencialidades denunciadas


O contato inicial entre os atores envolvidos na comunicação jornalística impressa ou na web se dá através da
primeira página do produto jornal. É a partir dela que se desencadeia o interesse ou desinteresse do leitor pela edição; é
nela que o jornal se apresenta e faz suas apostas quanto à relevância dos acontecimentos e seu valor de captação. Por
isso, a observação de seus modos de estruturação pode denunciar suas formas de existência, começando pelo próprio
cabeçalho.
Exposto nas bancas, lado a lado com seus concorrentes, o jornal impresso deve, ao mesmo tempo, distinguir-se e
justificar a escolha do leitor. Por isso, seu cabeçalho apresenta o nome do jornal em posição de destaque, escrito por
extenso, em caixa alta e em tamanho suficiente para que seja rapidamente identificado entre os outros. Dele, constam ainda
informações sobre a data e o número da edição, juntamente com elementos que remetem à tradição do jornal, e,
consequentemente, atribuem-lhe algum grau de credibilidade. Exemplos disso são as inscrições “Desde 1921” e “Desde
1891” apresentadas, respectivamente, na Folha de São Paulo e no Jornal do Brasil, ou a referência às datas de nascimento
e morte dos fundadores, como ocorre no jornal O Globo.
Apontando em direção oposta à da tradição, os jornais apresentam logo no cabeçalho, de maneira mais ou menos
destacada, o endereço eletrônico no qual se encontra seu formato webjornalístico. Evidentemente, trata-se da divulgação
de mais um produto da marca, mas, além disso, parece sinalizar para tempos em que a credibilidade jornalística já não

513
pode mais se firmar exclusivamente em valores tradicionais, devendo também estar apoiada em elementos de renovação e
atualidade.
Na rede, a concorrência entre os webjornais não se dá no embate da exposição simultânea. Seu acesso depende
da atividade do leitor, cuja busca pode se fazer pelo nome do jornal ou pelo interesse em determinada informação. Tal fato
faz com que a diagramação do cabeçalho no formato impresso não se justifique na web. Assim, dos nomes por extenso e
tipograficamente destacados no impresso, tem-se, a preferência pela nomeação reduzida (como é o caso do JB online e da
FOLHA.com), que ocupa parte pequena de um cabeçalho no qual constam também o nome do portal que abriga o jornal e
seus respectivos links, um espaço destinado à publicidade e alguns elementos informativos que já denunciam as
potencialidades da web, a saber: instantaneidade, interatividade, hipertextualidade, multimidialidade, memória e
personalização (PALÁCIOS, 2003).
Construído em arquitetura hipertextual, o webjornal tem na página inicial seu primeiro nível de leitura, dando
acesso ao aprofundamento do leitor de acordo com seus interesses. Tal estrutura, obviamente, fundamenta toda a
composição webjornalística e interfere na constituição do cabeçalho atribuindo-lhe novas funções: se no impresso era o
espaço de denominação da instituição jornalística enquanto instância enunciadora, na web, é o espaço condensado do
produto, servido à interação do usuário; portanto, não se presta mais apenas à enunciação, colocando-se já na inter-relação
entre os atores.
Desse estreitamento de laços entre hipertextualidade e interatividade nota-se a presença de rubricas,
anteriormente distribuídas na seqüência da edição impressa e agora listadas lado a lado no cabeçalho do jornal. Se
naquela, sua valorização e ordem distributiva era capaz de delinear o lugar de enunciação, já que através delas a máquina
midiática estrutura o espaço público a seu modo (CHARAUDEAU, 2006a), no webjornal, o formato em profundidade (e não
mais em sequencialidade) justifica a condensação e distribuição das rubricas de maneira igualitária e, com isso, inverte a
mão do discurso, pois dá ao leitor a responsabilidade de hierarquizá-las a partir de seus critérios, colocando-o, então, na
posição de produtor do espaço público.
Deve-se, entretanto, ressaltar que, apesar de tal liberdade, a ação da recepção continua cerceada pelo
enquadramento dos diferentes acontecimentos noticiados em rubricas específicas, que recortam o mundo à maneira
particular de cada instância enunciadora. É assim que os leitores de JB e O Globo, interessados em política nacional,
deverão acessar o link “País”, enquanto os da Folha clicarão em “Poder”; diferentes denominações indicadoras de
particularidades que escapam aos objetivos aqui propostos, mas que ao identificarem recortes de mundo diversos não
poderiam deixar de ser observadas.
À manutenção das tradicionais rubricas do impresso, juntam-se, no webjornal, outras seções, que aparecem já no
cabeçalho agrupando informações em função dos novos recursos proporcionados pela rede. Desse modo, surgem rubricas
como “Multimídia” (O Globo) e “Áudio e Vídeo” e “Foto” (Folha), que reúnem as informações não em função de seu
enquadramento temático, mas de sua produção em modalidade diferente da escrita. A presença de tal rubrica, apesar de
ressaltar a capacidade multimidiática do webjornal, acaba por irmaná-lo ao impresso, pois, de certa forma, reconhece a
produção áudio-visual como algo que o pertence, mas não o equivale, instaurando, assim, uma relação de alteridade que,
consequentemente, vincula a natureza webjornalística à escrita.
O raciocínio que se poderia desenvolver a partir daí, de que o webjornalismo não passaria de um novo meio para
o mesmo, é, no entanto, rapidamente abandonado quando se observa a oferta de diferentes espaços de interação entre as
instâncias discursivas. Esse é o caso da criação de uma rubrica “Colunistas”, no impresso distribuídos em função das
temáticas a que se dedicam e na web agrupados para melhor apreciação do leitor; ou mais radicalmente, de seções como
“Eu-repórter”, “Opinião” (O Globo) e “Leitor-repórter” (JB), dedicadas à publicação de textos e imagens produzidos pelos

514
leitores e, portanto, promotora da ocupação do lugar de produção pela recepção; há ainda experiências como as de “Meu
Globo”, através da qual o leitor é convidado a personalizar a capa do webjornal conforme seus interesses.
Constituído por rubricas acessadas através da interação do leitor, em maior ou menor grau, o cabeçalho dos
webjornais conta ainda com elementos informativos possibilitados pelos recursos do novo meio. Exemplos disso são a
ferramenta de “Busca”, que, estruturada a partir da ampla capacidade de memória da rede, é capaz de fornecer acesso a
todo o conteúdo do webjornal, seja ele recente ou antigo; e as informações sobre o Tempo, que, relativas à cidade de onde
o usuário acessa, são bastante simbólicas da instantaneidade e capacidade de atualização da rede. Quanto a isso, note-se
ainda a necessidade de se acrescentar à data da edição a hora da última atualização, informação que só pode ter
relevância numa mídia 24 horas disponível ao acesso e cuja renovação pode ser feita minuto a minuto.
Além do rico cabeçalho, encontram-se, na primeira página, as notícias às quais a instância midiática atribui maior
relevância informativa e valor de captação. Assemelhando-se ao impresso, essas informações se distribuem no webjornal
em colunas que podem variar quantitativamente entre 3 e 5. Esse, entretanto, parece ser um dos poucos pontos de
convergência na formatação da primeira página dessas mídias.
Do mesmo modo como ocorre com o cabeçalho, a primeira página do webjornal é enriquecida com elementos que
vão bem além do resumo das principais notícias do dia. Nela, consta também o espaço ampliado de algumas rubricas,
como é o caso dos quadros que cobrem as notícias de última hora, os colunistas, os acontecimentos divulgados em
diferentes mídias, galeria de fotos etc. Além desses, destacam-se elementos que se chamará aqui de meta-informativos,
pois se destinam a criar um ranking dos efeitos da informação – e com isso geram outros –, como se observa nas seções
“Mais Lidas”, “Mais comentadas” e “Mais enviadas”.
Obviamente, a distinção do material de que os jornais são produzidos impõe diferentes relações de produção e de
recepção com o produto jornalístico. Se por um lado as limitações da página impressa restringem o espaço da produção,
por outro, oferecem sua visualização total à recepção; em sentido inverso, na web, a capacidade de memória e a arquitetura
em profundidade ampliam o espaço de produção e fazem com que o contato da recepção com a totalidade se dê em
etapas. Daí derivam duas conseqüências: a discrepância no número de notícias disponibilizadas nas capas das duas mídias
e a utilização de diferentes recursos para a sua hierarquização. Quanto à primeira, vejam-se os números:

Jornal
Folha O Globo JB
Mídia

impresso 98 102 68

online 350 358 138

A estrutura hipertextual e não sequencial, em um ambiente interativo, com imensa capacidade de armazenamento
e atualização, explica e impõe a disponibilização do maior número possível de notícias na capa do webjornal. A
necessidade de ocupar esse espaço quantitativamente faz com que a diagramação das chamadas de notícia seja feita em
respeito a determinadas dimensões. Tem-se assim a utilização da tipografia em tamanho médio, pouco diferenciada entre
as notícias e com uso proporcionalmente restrito de imagens (fotos ou vídeos).
Ora, sabe-se que no jornal impresso os recursos tipográficos e visuais são utilizados na hierarquização das
temáticas do espaço público de acordo com os interesses da instância midiática. Sua não utilização no webjornal poderia,
então, apontar para uma maior responsabilização do leitor na construção de tal hierarquia e, consequentemente, para um

515
posicionamento mais inclinado à interação por parte da instância enunciadora. Entretanto, o fato da primeira página não ser
vista na íntegra de uma só vez, necessitando da ação do leitor em sentido descendente na “barra de rolagem”, acaba por
atribuir ao topo da página o status de espaço privilegiado no qual a instância midiática se coloca. Assim, não se trata
exatamente da inexistência de uma hierarquização temática por parte do webjornal, mas sim de uma espécie de
flexibilização na mediação do espaço público proposto pela enunciação. Afinal, a simples existência de um grande número
de notícias já poderia evidenciar um papel menos preponderante da instância produtora no recorte e hierarquização dos
acontecimentos e mais participativo para a recepção.

3. Da seleção do acontecimento à distribuição da notícia


A formatação da primeira página dá forma a um conteúdo estrategicamente apresentado pela instituição midiática,
visando à informação e, principalmente, a captação do leitor. Da escolha dos acontecimentos a serem noticiados à sua
distribuição no espaço disponibilizado pela edição, tudo é pensado em função da construção de um espaço social pertinente
aos interesses da instância enunciadora e do destinatário-alvo que ela pretende atingir.
De acordo com Charaudeau (2006a), os primeiros parâmetros que orientam a construção do propósito no discurso
midiático são os potenciais de atualidade, socialidade e imprevisibilidade, observados nos acontecimentos. E apesar da
diferença entre os dispositivos viabilizar mais ou menos algum desses potenciais, a prevalência de um ou outro se configura
inegavelmente como estratégia discursiva que posiciona a instância midiática de determinada maneira.
Pretendendo alcançar tal posicionamento, as chamadas de capa dos jornais analisados foram classificadas
quanto aos potenciais de seleção que, trazidos a tona discursivamente, parecem ter fundamentado sua escolha. Nesse
processo, seguiu-se uma observação que considerou a presença de um, dois ou três potenciais em cada ocorrência,
devendo os resultados apresentados na tabela abaixo ser interpretados em termos relativos, já que não cobrem a proporção
de um para um na relação entre ocorrência/resultado:

Potencial
ATUALIDADE SOCIALIDADE IMPREVISIBILIDADE
Mídia
impresso 45% 42% 13%
online 51% 27% 22%

Observando a linha referente à mídia impressa, nota-se, a relevância e o equilíbrio entre os potenciais de
atualidade e socialidade, que juntos compõem mais de 80% da carga de seleção, ficando a imprevisibilidade restrita a
menos de 15%. Essas proporções, confirmando a expectativa sobre veículos tão tradicionais, posicionam a instância de
produção de maneira séria e comprometida com a divulgação de informações atuais e socialmente relevantes.
A comparação com os números do webjornal apresenta como diferença mais imediata a considerável redução dos
índices de socialidade e o quase proporcional aumento da imprevisibilidade. O que se poderia entender como um aumento
de apelo emotivo do webjornal com relação ao impresso deve ser, entretanto, reconsiderado quando se atenta aos seus
dados internos. Proporcionalmente, o que realmente ocorre entre os potenciais de seleção no dispositivo da web é o grande
desequilíbrio existente entre a atualidade e os outros potenciais, que dividem os 49% restantes. Ao que parece, a grande
capacidade de memória e a instantaneidade da rede impõem a atualidade, em seu sentido mais extremo, como o
compromisso fundamental do discurso webjornalístico.

516
Se por um lado instantaneidade e memória criam novas necessidades de atualização, por outro, a interatividade
pode justificar a equivalência entre os percentuais de socialidade e imprevisibilidade. Isso porque, a expectativa de
participação ativa do leitor retira a instância enunciativa do controle exclusivo de seus conteúdos e passa a lhe conferir o
compromisso com uma variedade que cubra de maneira mais ampla os interesses de diferentes destinatários. Afinal, se não
há mais a restrição da página impressa, nem limites geográficos de circulação, mas sim capacidade de atualização continua
e uma arquitetura extremamente interativa, o escopo de seleção pode e deve ser ampliado no sentido de disponibilizar um
maior número de informações que, consequentemente, cobrirão acontecimentos mais diversos.
Já no que diz respeito ao modo de aparição do acontecimento, entretanto, tal diversidade não é observada. Como
se verá nos gráficos a seguir, seja no impresso ou no webjornal, a predominância é sempre de acontecimentos suscitados,
ficando os acidentais e programados equilibrados na casa dos 20%:

Modo
ACIDENTAL PROGRAMADO SUSCITADO
Mídia
impresso 19% 19% 62%
online 21% 18% 61%

A manutenção do privilégio dado à seleção de acontecimentos suscitados ratifica a conclusão de que o aumento
da imprevisibilidade não deve ser isoladamente considerado como sinalizador de uma mudança nas linhas editoriais da
instância midiática. Como já dito, sua equivalência com os níveis de socialidade derivam da necessidade de atualização e
demonstram a preocupação com uma cobertura mais ampla. Não fosse assim, o mais natural seria haver o aumento das
ocorrências em acontecimento acidental, cuja inerência do imprevisível indicaria posições discursivas mais inclinadas ao
apelo emotivo.
Os números referentes à natureza dos acontecimentos selecionados, apesar de parecerem pouco férteis à análise
pela semelhança entre as distintas mídias, acabaram se apresentando como importantes balizadores para a leitura de
outros números. Assim foi na compreensão dos potenciais de seleção e é também no esclarecimento dos altíssimos níveis
de atividade civil entre os dados webjornalísticos, conforme se vê abaixo:

Atividade
POLÍTICA CIDADÃ CIVIL
Mídia
impresso 45% 15% 40%
online 22% 18% 60%

Dos três domínios de atividades considerados por Charaudeau, enquanto o impresso prioriza a atividade política,
seguida de perto pela civil e pouco toca na cidadã, o webjornal mantém as duas últimas em relação equilibrada, apesar da
predominância política, dando relevo às questões relacionadas à atividade civil. Mais uma vez, antes da precipitação no
julgamento desses números, a observação dos modos de aparição do acontecimento fundamenta a conclusão de que a
superioridade da atividade civil no webjornalismo não se vincula ao apelo das tragédias humanas midiaticamente
dramatizadas. Ao contrário, indica a materialização no discurso webjornalístico da relevância adquirida pela atividade de um

517
leitor que, além de poder ocupar o espaço de enunciação pelas rubricas anteriormente referidas, é reconhecido pela
instância midiática na divulgação de informações relativas às suas atividades cotidianas.
A prevalência da atividade civil implica uma encenação que privilegia a participação de atores da mesma natureza.
Assim, se no impresso a prioridade é dada aos representantes do poder público, escolhidos em função de sua notoriedade
e representatividade, na web, o espaço de atuação é predominantemente ocupado pelos participantes da sociedade civil,
grupo do qual o leitor participa e que, de acordo com o que se colocou, é composto por sujeitos que atuam, em sua maioria,
não como heróis ou vítimas de um cotidiano extraordinário, mas sim na construção do próprio espaço público, partilhado por
ele e pelas mídias.
Tal privilégio, entretanto, não é verificado quando se considera a hierarquia de organização das chamadas de
primeira página. Conforme se pontuou no item anterior, o topo da página se constitui como o espaço mais valorizado da
capa dos webjornais, sendo seguido em grau de importância pelo movimento descendente na barra de rolagem. E a
observação desses espaços demonstrou que, apesar da relevância quantitativa de ocorrências da atividade civil, os
acontecimentos relativos à atividade política é que são hierarquicamente privilegiados. Desse modo, a capa dos webjornais
prioriza inicialmente os acontecimentos de natureza política, ficando as atividades cidadã e civil dispersas do meio para o
final da página, sendo este, o espaço mais especificamente dedicado a esta última.
Calcada nos modelos do jornalismo impresso que, como se viu, privilegia a atividade política, a construção dessa
hierarquia no webjornalismo mantém a posição da instância midiática na valorização de acontecimentos dessa natureza. Ao
que parece, a grande oferta de acontecimentos relativos à atividade civil decorre mais da necessidade de atualização
dessas mídias e de sua aproximação com o leitor do que de uma nova postura frente às temáticas do espaço público. De
qualquer forma, a discrepância numérica apresentada na última tabela, bem como a qualidade informativa da ocorrência
predominante, não pode ser desprezada, pois nela se materializa o grande peso adquirido pelas novas relações de
interação entre os atores do discurso webjornalístico.

4. Considerações finais
Em linhas gerais, a análise dos jornais possibilitou a verificação de que as estratégias empregadas no discurso
webjornalístico são construídas na mescla de tradições do jornalismo impresso com os novos recursos tecnológicos
proporcionados pelo dispositivo da web. Tanto é assim que se viu a manutenção do modelo das rubricas se reformular em
manifestação mais interativa; a construção discursiva se vincular a escrita, apesar da utilização de diversas mídias; a
predominância da atualidade, tornada socialidade pela ampliação de temas e informações; a prevalência numérica da
atividade civil em uma hierarquia que prioriza a política.
Vale aqui ressaltar que a simples existência dos recursos da rede não garante por si sua aplicação discursiva. Seu
uso está condicionado a expectativas que a instância midiática constrói sobre seu público-alvo, agora, não mais leitor,
ouvinte ou telespectador, mas internauta. Nesse sentido, mesmo mantendo alguns vínculos com o impresso, as
estratégias empregadas pelo webjornal se diferenciam por demonstrarem novas formas de interação, da qual derivam como
necessidades todas as outras potencialidades.
Lidando com um destinatário que, a qualquer momento, não só pode como espera ocupar a posição de
enunciação, dentro ou fora do próprio espaço midiático, a instância produtora constrói seu discurso a partir de estratégias
que, a todo momento e em diferentes níveis, manifestam o entendimento das novas relações instituídas entre os atores da
comunicação webjornalística. Seja pela estrutura hipertextual das notícias, pela cobertura quantitativa e qualitativamente
mais ampla do espaço público ou pela oferta de enunciação feita ao ciberleitor através da possibilidade de comentar e
mesmo de publicar notícias e opiniões, as estratégias empregadas nos webjornais analisados parecem dirigir-se a um

518
destinatário-alvo que se entende como parte do processo comunicativo e que, por isso, espera poder construir e
compartilhar seus sentidos.

5. Referências

BARDOEL, Jo & DEUZE, Mark. Network Journalism. 1999. Disponível em: http://home.pscw.uva.nl/deuze/publ9.htm.

CANAVILHAS, João Messias. Webjornalismo: considerações gerais sobre jornalismo na web. 2001.Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pa/_texto.php3?
html2=canavilhasjoao-webjornal.html.

CHARAUDEAU, P. “Une analyse sémiolinguistique du discours”. In: Langages, nº 117. Paris, 1995.

_____________. “Para uma nova análise do discurso”. In: CARNEIRO, A. D. (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro:
Oficina do autor, 1996.

_____________. "Análise do discurso: controvérsias e perspectivas”. In: MARI, H., PIRES, S., CRUZ, A., & MACHADO, I.
(orgs.). Fundamentos e dimensões da análise do discurso. Belo Horizonte: Carol Borges, 1999.

____________. Semiolingüística. II Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso (p. Palestra disponível em VHS).
Minas gerais: UFMG, 2001a.

____________. “Uma teoria dos sujeitos da linguagem”. In: H. e. Mari, Análise do Discurso: Fundamentos e Práticas.
Minas gerais: Núcleo de Análise do Discurso - FALE/URMG, 2001b.

____________. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006a.

____________. “Prólogo”. In: Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006b.

DOMINGUEZ, Michelle G. A. A Semiolingüística: filiações filosóficas na abordagem do sentido. Trabalho final apresentado à
professora Helena Martins. PUC-RJ, 2008.

FERRARI, P. (2008). Jornalismo Digital. São Paulo: Contexto.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MIELNICZUK, Luciana. Características e implicações do jornalismo na Web. 2001. Disponível em:


http://www.facom.ufba.br/jol/pdf/2001_mielniczuk_
caracteristicasimplicacoes.pdf.

PALÁCIOS, Marcos. “Ruptura, Continuidade e Potencialização no Jornalismo Online: o Lugar da Memória”. In: MACHADO,
Elias & PALACIOS, Marcos (Orgs). Modelos do Jornalismo Digital. Salvador: Editora Calandra, 2003.

Currículo do autor:

Michelle Gomes Alonso Dominguez é bacharel em Letras, na habilitação Português-Literaturas, e mestre em Língua
Portuguesa pela UFRJ. De 2005 a 2007, atuou como professora dos cursos de graduação em Letras desta universidade e
atualmente dedica-se ao doutoramento em Língua Portuguesa pela UFRJ, com bolsa concedida pela CAPES.

519
Estudos sobre a Intencionalidade:
O Twitter como espaço para a comunicação política

DUARTE, Alice Botelho


(Puc-MG) 1
MARQUES, LUCIANA MORAES BARCELOS
(Puc-MG) 2

1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa objetiva abordar questões sobre Linguagem e Intencionalidade, sob uma análise da
significação linguística a partir das contraposições significativas de duas categorias: significado da palavra/do enunciado e
significado do falante. Assim, interessa uma dimensão da intencionalidade que esteja comprometida com a questão do
sentido e que tenha, na linguagem, o espaço de sua manifestação.
Dentro dessa perspectiva, pretende-se ainda discutir alguns aspectos gerais que permitam pensar o
funcionamento da intencionalidade na linguagem, enquanto demarcação de seu registro no enunciado e de sua emergência
na enunciação.
Considerando um breve histórico de teorias e perspectivas, realizar-se-á um recorte, na perspectiva dos estudos
da Intencionalidade sobre a ótica de Searle, a partir do qual serão analisados três "tweets" dos principais presidenciáveis
postados nos seus respectivos twitters de cunho político.
Pretende-se, pelo exame dos “tweets” selecionados, evidenciar traços elementares dos enunciados:
fundamentalmente a crença, mas, também, a intencionalidade, o desejo, as razões e as causas que, se relacionados aos
falantes e às suas condições de emissão, estabelecem novas relações entre a linguagem e o significado.

2. ESCORÇO TEÓRICO

Em um artigo, é praticamente impossível abordar toda problemática referente à teoria da intencionalidade;


entretanto, é importante destacar algumas expressões representativas de tal teoria para que se possa compreender e
analisar alguns objetos intencionais na prática discursiva. Em sua origem,
Na terminologia medieval, ‘intentio’ não é nada mais do que um objeto de pensamento, cujo estatuto
ontológico é aquele do ‘inesse’ (o ser interno): o objeto do pensamento ‘in-existe’ intencionalmente no
pensamento – e todo pensamento é um ato, isto é, na linguagem aristotélica em uso – uma atualidade
(CAYLA, 1991:47, trad. livre).
O objeto de pensamento, dessa forma, manifesta-se enquanto linguagem, isto é, um estado mental real que não
se refere ao objeto de fato (que existe enquanto tal), antes, a uma representação daquilo que existe, realizando-se no
discurso.
Outrossim, de acordo com o que formula Cayla, há três formas de se abordar a intencionalidade: (i) a intenção per
si, referente ao ser e seus estados mentais; (ii) a intenção de re, concernente a conceitos objetivos (coisas); e a

1 Bolsista Capes – 2010. Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa (Puc-MG).


2 Bolsista Fapemig – 2009. Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa (Puc-MG)

520
sistematização dessas duas na (iii) intenção de dicto, cujo centro são as expressões discursivas, isso porque no discurso é
possível alinhar abstração e concretude.
Cayla, então, afirma que
A intuição central que governou as pesquisas em matéria de intencionalidade era o objeto intencional,
como conteúdo de uma atitude, não podia ser dependente do objeto real. Formularei essa intuição,
dizendo que a intencionalidade seria pensada como de dicto e não como de re (CAYLA, 1990: 432).
Tal formulação pressupõe que, entendendo o objeto intencional como um artefato (projeto de criação), a atitude
que um sujeito constrói sobre um objeto, por intermédio da linguagem (de dicto), constitui, em si e por si, no objeto
intencional, e como tal, o mesmo não se confunde com o objeto real.
Nessa mesma perspectiva, PACHERIE (1993) e SIMOS (1992), discutem as problemáticas que envolveram a
dimensão psíquica não apenas dos fenômenos mentais, como também dos fenômenos físicos. Retomando a psicologia
ordinária, Pacherie afirma que
Além de um papel na explicação e na predicação de comportamento, a psicologia ordinária atribui às
atitudes proposicionais propriedades semânticas. Em primeiro lugar, ela lhes atribui condições de
satisfação [...] Em segundo lugar, os contextos de atitudes proposicionais são opacos no sentido em
que não satisfazem a certos testes extensionais, como a substitutabilidade de idênticos e a
generalização existencial (PACHERIE, 1993: 05, trad. livre).
Na primeira ressalva destacada pela autora observa-se que modalidades proposicionais distintas produzem
condições de satisfação igualmente distintas; como exemplo, tem-se a impressão sobre um fato “Achar-que P” em
contraposição à expectativa sobre o mesmo fato “Esperar-que P”, portanto, representados por proposições diferentes.
A segunda ressalva assevera o quanto a teoria se mantém obscura sobre algumas descrições co-referenciais, ou
seja, relativas a um mesmo referente; sendo estas descrições largamente trabalhadas por teorias semânticas, referenciais
ou discursivas, que retomam a conhecida proposição de Frege: “a Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde”, na qual ambas
as estrelas referem-se ao planeta Vênus, sem configurar redundância argumentativa por possuírem cargas semântico-
discursivas distintas.
A partir dessas considerações, nas palavras da autora, “enfim, [...] o problema da intencionalidade se acha hoje
estreitamente ligado ao da significação e é geralmente colocado em termos semânticos” (PACHERIE, 1993: 14, trad. livre).
Simons, por sua vez, ao resumir a tese de Bretano, demonstra a forma como o autor retorna para o estudo da
intencionalidade dentro dos fenômenos psíquicos:
Podemos, pois, resumir a tese de Bretano da seguinte maneira: a intencionalidade é a relação de um
ato de consciência para com o seu objeto/conteúdo. Enquanto fazendo parte de atos, em certo sentido,
todos os objetos que integram fenômenos mentais são eles mesmos mentais (SIMONS, 1992: 19, trad.
livre).
Em uma perspectiva semelhante, Fisette, a partir de Frege e Husserl, afirma que “(A) uma relação intencional
depende de uma concepção particular de objeto (ela depende de um noema); (B) uma relação intencional não depende da
existência de um objeto” (FISETTE, 1992: 38, trad. livre), o que pressupõe a intencionalidade como uma condição de
atividade mental. “Entretanto, pode-se, por um segundo ato que se denomina reflexão fenomenológica, fazer do sentido
noemático um objeto. Trata-se, pois, de um objeto intencional” (FISETTE, 1992: 39, trad. livre). Desse modo, o objeto
intencional só se consubstancia quando visado pela consciência humana.
Para Searle, entretanto, tal objeto é manifesto em sua dependência/emergência na linguagem, nesse prospecto, a
teoria abrange o conteúdo interacional de um ato com o seu contexto social e físico, sem deixar de ser internalista.
Sob o prisma da interpretação, é apresentada por Searle a possibilidade de uma análise da linguagem na
perspectiva de precisar os ingredientes essenciais da significação, como o sentido das proposições, as condições de

521
verdade sob as quais compreendemos um enunciado, as formas lógicas das frases de uma linguagem, suas condições de
asserção, seu papel conceitual e as intenções do locutor expressas em atitudes proposicionais.
Diferentemente, McCulloch (1981) aborda o dilema existente entre os estados mentais e os comportamentos
linguísticos considerando as controvérsias levantadas por Davidson em relação às posições de Quine. Aqui, importa
destacar que a argumentação do autor basea-se numa abordagem da intencionalidade enquanto uma atividade de
atribuição de sentido; segundo ele,
O significado da sentença é fundamental quando explica o que representa para as palavras terem o
sentido que têm, ainda que o significado das palavras seja fundamental de outra forma: [nas palavras
de Frege] derivamos nosso conhecimento do sentido de qualquer sentença a partir do nosso
conhecimento prévio do sentido das palavras que a compõe (MCCULLOCH, 1981: 261, trad. livre).
A atribuição de sentido, portanto, figura no âmbito da consciência dos estados mentais tanto no reconhecimento
de uma coceira, quanto na visualização e determinação cerebral da cor vermelha, assim como na interpretação de um
conteúdo proposicional.
URMSON (1974) analisa detalhadamente os três critérios para identificação lingüística de intencionalidade
propostos por Chisholm (no livro Peirceiving):
(i) sobre sentenças assertivas;
(ii) sobre sentenças encaixadas não compostas; e
(iii) sobre sentenças com expressões co-referenciais.
Após minucioso trabalho de testes em cada um desses critérios, Urmson propõe alguns ajustes aos critérios,
procurando diminuir ou resolver grande parte dos problemas neles encontrados; entretanto, conclui seu trabalho com a
seguinte ponderação:
Não tenho nenhuma lição de moral a extrair. Pensei ter sido interessante examinar os critérios de
Chisholm e fiz isso. Mas sou obrigado a dizer que admito terem eles pouca conexão um com o outro.
Além do mais, nenhum parece ter qualquer conexão particular com questões psicológicas. Eu nunca
alcancei o conceito do objeto intencional; começo a acreditar, mas não afirmo, que não existe nenhum
para ser alcançado. (Urmson, 1974: 237, trad. livre).
Dessa forma, é possível inferir que reduzir uma teoria inteira em poucos critérios de identificação acaba por não
ser suficiente para abranger as variáveis de uso e de sentido, tão pouco contemplar suas delimitações terminológicas.
Diferentemente, numa abordagem abrangente sobre sentido, Grice (1989), quando intervêm questões relativas ao
significado natural / não-natural, às implicaturas, ao princípio de cooperação e à intencionalidade, busca analisar uma série
de aspectos relacionados à significação, decorrentes do processo de interação verbal. Nesse sentido o autor propõe uma
teoria da significação que leve em conta dimensões da expressão do significado linguístico, especificamente:
O meu objetivo neste ensaio é esclarecer a conexão entre (a) a noção de significado que gostaria de
considerar como básica, ou seja, a noção que envolve dizer de alguém que, ao fazer algo, sugeriu
alguma coisa (o que chamo de sentido não-natural da palavra meant) e (b) as noções de significado
envolvidas em dizer (i) que uma dada sentença significa ‘tal coisa’ (ii) que uma dada palavra ou frase
significa ‘tal coisa’ (GRICE, 1989: 117, trad. livre).
Verifica-se que Grice propõe destacar o significado de (a), mas sem desconhecer a importância daquilo que
aparece determinado em instâncias de (b). Mari (2010: 01) pondera que “este programa de discussão do autor, coloca em
questão a relação entre aquilo que é dito por um locutor e aquilo que é por ele implicado”.
Tsohatzidis (1994) ao retomar questões frequentes dos textos de Grice assume em sua discussão duas
tendências sobre a noção de significado: (a) o que as sentenças das línguas naturais significam e (b) o que os falantes
dessas línguas significam com essas sentenças. Nesse sentido, para a autora, a teoria conversacional, proposta por Grice,
serve com modelo adequado para resolver grande parte das questões implicadas em (a) e (b).

522
3. LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO: UM ESTUDO DOS ESTADOS MENTAIS

No decorrer do tempo, o estudo da intencionalidade transcorreu sobre certo percurso de forma a abranger três
dimensões: A primeira aborda a emergência da intencionalidade no enunciado, a partir de autores como Chisholm e
Urmson; a segunda, contemplando a anterior, trata a emergência na enunciação, tendo como referência autores como
Strawson, Grice e Austin; e, por fim, abrangendo as anteriores, a terceira dimensão trabalha a partir das propriedades dos
estados mentais, tendo como referentes Bretano, Husserl e Searle.
“Poderíamos dizer, a título de formulação preliminar que a intencionalidade é aquela propriedade de muitos
estados e eventos mentais pela qual estes são dirigidos para, ou acerca de, objetos e estados de coisas no mundo”
(SEARLE, 1995: 01).Cabe destacar, todavia, que nem todos os estados mentais configuram intencionalidade, conforme
afirma Searle,
Em minha explicação, primeiramente, apenas alguns estados mentais, e não todos, têm
Intencionalidade. [...] Em segundo lugar, Intencionalidade não é a mesma coisa que consciência.
Muitos estados conscientes não são intencionais – por exemplo, um sentimento súbito de exaltação – e
muitos estados intencionais não são conscientes [...] Em terceiro lugar, o pretender e as intenções são
apenas uma forma de Intencionalidade entre outras, e não gozam de nenhum estatuto especial
(SEARLE, 1995: 2-4).
Destarte, o autor trabalha considerando estados e eventos mentais (EM), e não atos; estes EM’s intencionais
implicam uma pró-atitude sobre escolhas proposicionais. Entendendo, então, a intencionalidade como direcionalidade,
observa-se que a intenção subjacente em determinado EM implicará em um ajuste diretivo; conforme é possível retomar da
Teoria dos Atos de Fala, existem as seguintes possibilidades:

1. Palavra-Mundo 2. Mundo-Palavra 3. Dupla direção 4. Direção Nula

O fato é anterior à A palavra é anterior Discurso e mundo


Discurso e mundo
palavra. É a palavra ao mundo. É o são ajustados
não interagem.
que se ajusta ao mundo que se ajusta simultaneamente.
mundo. à palavra. Performativos (?)

π: assertivo: π: diretivo: π: declarativos:


π: expressivo:
juramento, pedidos, ordens. (batizo, a secção
Bom Dia!
afirmação. π: comissivo: está aberta)
Xingamentos...
promessas, desejos.

Ainda que a teoria dos estados intencionais focalize suas estruturações nos meta-predicados de CRE (crença) e
DES (desejo), Searle argumenta a possibilidade de se identificar diversos estados intencionais (como terror, expectativa,
lamento, pesar, culpa, remorso, prazer, esperança, orgulho, vergonha) exemplificando sobre cada um deles; entretanto, o
autor declara que
Obviamente, a lista pode ser estendida, e sugiro, como um exercício para adquiri destreza, que o leitor
a continue com os estados de sua escolha. [...] Mesmo essa breve listagem sugere algumas
generalizações significativas acerca da primazia da Cren e Des. Em primeiro lugar, todos esses
estados afetivos são concebidos com mais precisão como formas de desejo, dada uma determinada
crença. Em vez disso, todos os casos que considerarmos (com exceção da expectativa), bem como o
nojo, a alegria, o pânico, etc., parecem ser formas mais ou menos fortes de desejo positivo ou negativo,
dada ou pressupondo-se uma crença (SEARLE, 1995: 45).
Consequentemente, a comunicação se desenvolve sob estruturas intencionais de atos de fala, e como tais, a
análise da intencionalidade pode, ou deve, considerar aspectos enunciativos como locutor, alocutário, entonação, escolha
lexical, variação significativa, entre outros.
Sendo, desse modo, assimiladas pela linguagem as pistas que levarão a uma análise satisfatória da
intencionalidade que emerge da enunciação, possibilitando diferenciar os efeitos de sentido convencionais daqueles

523
intencionais, ultrapassando a significação das palavras e dos enunciados, para contemplar a significação dos falantes.
Searle sintetiza, então:
Em poucas palavras, a hipótese defendida por nossa breve discussão não é a que todas ou mesmo
várias formas de Intencionalidade podem ser reduzidas a Cren e Des – o que é claramente falso –, mas
sim a de que todos os estados intencionais, mesmo aqueles desprovidos de uma direção de ajuste e
aqueles que não têm uma proposição completa por conteúdo, não obstante contêm uma cren ou Des,
ou ambos, e que em diversos casos a Intencionalidade do estado é explicada pela Cren ou pelo
Des (SEARLE, 1995: 49).
Portanto, embora as explícitas ressalvas elaboradas pelo autor sobre a diversidade de estados intencionais, ao
término de seu capítulo sobre a natureza destes, o autor conclui que os demais EM’s não são reduzidos a crença(s) e
desejo(s), antes possuem em si mesmos um ou ambos. Em virtude disso, a análise do presente artigo se firmará sob essas
duas alternativas, considerando o estado de coisas (EC), o estado mental (EM) e o ato de fala concernente a cada
proferimento.

4. TWITTER: NOVO ESPAÇO PARA A COMUNICAÇÃO POLÍTICA

O potencial da internet é motivo de grandes expectativas em relação às eleições deste ano (2010), o Twitter –
uma das ferramentas da web – se tornou “palco” digital privilegiado para os candidatos. E, nesse quesito, os principais
presidenciáveis Dilma Rousseff (PT), Marina Silva (PV) e José Serra (PSDB) têm sido responsáveis por mobilizar as
atenções no microblog.
A fim de se verificar essas novas propagações do discurso político por meio dessa rede social – o twitter – optou-
se por uma seleção de três “tweets” dos candidatos à presidência: Dilma Rousseff, Marina Silva e José Serra, os quais
serão analisados sob a perspectiva dos estudos da Intencionalidade de Searle (1995).
Para tanto, é importante destacar que, segundo a teoria da intencionalidade proposta por Searle (1995), as ações
humanas são exteriorizadas em atos provenientes de estados mentais intencionais; portanto, se um EM (estado mental) é
uma forma de orientar um EC (estado de coisas) para um determinado tipo de juízo que dele se faz, o EC torna-se apenas o
reflexo de um fato do mundo com o qual se interage a partir de um EM – conceito de direcionalidade. Nesse sentido,
quando se age sobre um EC, cria-se um EM ou EM’s complexo(s) específico(s) que definem uma forma de percebê-lo.
Destarte, na formulação dos estados mentais propostos por Searle, a enunciação contempla a soma de um estado
mental intencional (crenças e desejos) com um estado de coisas, como evidencia Mari (2010), quanto ao uso prático de
crenças e desejos no plano enunciativo. Mari ainda propõe que a mente não tem um caráter funcional articulado apenas a
partir dessas duas categorias (meta-predicados de crença e de desejo – CRE e DES), e que o propósito de Searle parece
ser o de admitir que alguns fatos possam ser explicados a partir dessa combinação.
Nesse sentido, dentro de um processo enunciativo, esses meta-predicados lógicos unem-se por meio de um
conectivo lógico para determinar a direcionalidade. Assim, alguns estados mentais são definidos a partir desses meta-
predicados, seguidos de modalizadores que determinam a característica destes em: possível (crença ou desejo); necessária
(crença ou desejo), bem como suas respectivas negações. Logo, é possível identificar a intencionalidade discursiva por
intermédio da determinação de um estado mental sobre uma proposição. Isso pode ser mais bem compreendido por meio
da organização do esquema proposto por Searle (1995).

524
#‚E#‚ (expressão linguística) / Enunciação
E EM + EC
EC p
EM M CRE EM
DES EM

Fórmula dos estados mentais intencionais

Na junção de crenças e desejos sobre uma mesma proposição, Searle (1995, p.42) exemplifica que para um
homem que tenha um estado mental de temor – tema que p – ,por exemplo, deve acreditar que é possível que p e deve
querer que seja o caso que não p. Sendo a direcionalidade desse estado mental a de: Temor (p) crença (_p) & Desejo (~p)
traduzido por um temor sobre uma proposição equivale, então, a crença na possibilidade dessa proposição e um desejo de
que essa proposição não aconteça.
Nesse sentido, os enunciados retirados do Twitter dos principais candidatos à presidência serão analisados
levando em consideração a identificação dos estados mentais das proposições extraídas do Twitter.
Dessa forma, a partir de uma adaptação da fórmula do autor, e no âmbito da enunciação, considerar-se-á a união
das estruturas definidas para cada proposição, numa única formulação que possa abarcar uma ou mais possibilidades de
crença(s) e de desejo(s) para um mesmo estado mental. Isso permite pensar que não há uma crença ou desejo melhor que
o outro, mas um leque de possibilidades lógicas.
Por conseguinte, partindo da fórmula lógica sobre os estados mentais intencionais, serão analisadas as
possibilidades de crenças e desejos em relação às proposições dos tweets compostos por texto verbal. Desse modo, pode-
se traçar crenças e desejos, a partir das proposições retomadas nos quadros de análise sistematizados a seguir.
Antecipadamente, é possível observar que os tweets escritos pelos candidatos se regularizam, de maneira
genérica, por crenças num estado de coisas; intenção de avaliar esse estado de coisas e o desejo de aproximar-se do
alocutário. Deve-se ressaltar que foram explicitados os estados mais evidentes ou predominantes, visto que os estados
mentais intencionais são múltiplos e podem se misturar.
Vale ainda mencionar que na realização das análises retoma-se a uma série de símbolos propostos na teoria de
Searle. Assim, para uma maior compreensão das análises julga-se necessário a leitura da tabela de símbolos que segue
abaixo:
Símbolo Leitura Símbolo Leitura
□ Necessidade → Implicação
◊ Possibilidade ∩ Interseção
¬ Negação ˅ Disjunção
¬◊ Impossibilidade ˅ Conjunção

525
1- Dilma Rousseff

Proferimento Análise
1-Farmácia Popular é um grande 1. EC: Importância da Farmácia Popular
programa:10.790 farmácias vendendo remédio 2. EM intencional: certeza Ato: desafio
barato.Até o fim do ano, chegam a 15mil.Tem q 3. Descrição do EM:
continuar aumentando. 9:09 AM May 7th via CRE [P1: Y é um grande programa] Λ DES [◊ P2:
web. X quer que Y aumente]

2-Lula tem compromisso c/trabalhadores e 1. EC: Compromisso de Lula com trabalhadores


aposentados q deram seu trabalho pelo e aposentados
Brasil.Tenho certeza de q ele decidirá de forma 2. EM intencional: certeza Ato: afirmação
equilibrada. 3:46 PM]May 5th via mobile web. 3. Descrição do EM:
CRE [P1: X afirma que há compromisso de Y] Λ
CRE [◊ P2: Y decidirá de forma equilibrada]

3- "Eu não fugi da luta e não deixei o 1. EC: Não fugir da luta e não deixar o Brasil
Brasil." Falei q não fugia da luta.Não falei nada 2. EM intencional: certeza Ato: refutação
referente a sair do Brasil.Coisas bem diferentes. 3. Descrição do EM:
10:46 AM Apr 14th via web CRE [¬ P1:Y não fugiu da luta] Λ DES [P2: Y
desmentir X]

Quadro 1 – Fonte dos enunciados: twitter: @dilmabr

Conforme explicitado no quadro 1, todos os proferimentos da candidata Dilma indicam um estado mental (EM) de
certeza. Dessa maneira o primeiro tweet manifesta um estado de coisas (EC): a importância da farmácia popular. O ato da
candidata é demonstrado por meio de um desafio “Tem q continuar aumentando”. Dessa maneira, para o primeiro
proferimento da candidata, evidenciou-se a crença (CRE) de que (y) Farmácia Popular é um grande programa e o desejo
(DES) da possibilidade da candidata aumentar o programa da Farmácia Popular.
O segundo tweet traz o estado de coisa (EC) referente ao compromisso de Lula com trabalhadores e
aposentados. Esse ato vem afirmar o estado mental intencional (EM) da candidata de certeza sobre os compromissos de
Lula com os trabalhadores e aposentados do Brasil. Assim, há a crença (CRE) de que y (Lula) tem compromisso com
trabalhadores e aposentados e ainda outra crença (CRE) na possibilidade de que Lula decidirá de forma equilibrada os
rumos dessas classes (trabalhadores e aposentados).
E por fim, no terceiro tweet – o ato de refutação – permite perceber um estado mental (EM) de certeza sobre a
crença (CRE) de uma impossibilidade de y (Dilma) fugir da luta e o desejo de y (Dilma) desmentir x (outro tweteiro).
A partir de Grice (1998) e da formulação de Mari (2007) verifica-se um tipo de enunciado natural, nos tweets da
candidata Dilma, por não haver nenhuma condição de ajuste sintagmático ou qualquer estranheza semântica, pela qual se
possa caracterizar qualquer traço de intencionalidade. Ademais, esses enunciados remetem a um significado natural pelo
fato de poder ser obtido através de uma decodificação direta das relações sintagmáticas.

526
2- Marina Silva

Proferimento Análise
1- Morre José Saramago. O mundo 1. EC: Morte do escritor José Saramago
perde um grande escritor, e os países 2. EM intencional: pesar Ato: homenagem
da língua portuguesa, o nosso primeiro 3. Descrição do EM:
prêmio Nobel. 9:42 AM Jun 18th via CRE [P1: perda de Y] Λ CRE [◊ P2: dos países da
HootSuite. língua portuguesa perder um grande escritor pela
morte de Y]
2- Nós precisamos acabar com o 1. EC: Acabar com o atravessador político e olhar
atravessador político e olhar para quem para quem quer ser um mediador
quer ser um mediador político 2. EM intencional: crítica Ato: afirmação
http://migre.me/PE82 10:39 AM Jun 3. Descrição do EM:
17th via HootSuite. CRE [◊ P1: há um atravessador político para y] Λ
DES [□P2: X acabar com atravessador político de Y]
3- Defendo a união civil de bens entre 1. EC: União civil de bens entre homossexuais
homossexuais. Não vou fazer como 2. EM intencional: defesa Ato: desafio
alguns que, pressionados, mudam de 3. Descrição do EM:
opinião http://migre.me/L2xy 9:51 AM CRE [ P1: X defende Y] Λ CRE [¬◊ P2: X mudar de
Jun 2nd via HootSuite. opinião sobre Y]
Quadro 2 – Fonte dos enunciados: twitter: @silva_marina

O primeiro tweet da candidata Marina Silva (quadro 2) tem como estado de coisa (EC) a morte do escritor José
Saramago. Tendo demonstrado através do ato de homenagem ao escritor um estado mental (EM) de pesar, cuja crença
(CRE) confirma a perda de y (José Saramago).
Já no segundo tweet, o estado de coisa (EC) retomando a existência de atravessadores políticos, traz no ato uma
afirmação de que é preciso acabar com esse EC. Dessa forma, observa-se por meio desse ato um estado mental (EM) de
crítica e a crença (CRE) na possibilidade de haver um atravessador político para y (Dilma?) e o desejo (DES) da
necessidade de x (Marina) acabar com atravessador político de y.
Finalmente o terceiro tweet da candidata mostra um estado de coisa (EC) que é a união civil de bens entre
homossexuais. Cujo estado mental (EM) é a defesa dessa união civil, isso é notável através do ato de desafio que a
candidata propõe “Não vou fazer como alguns que, pressionados, mudam de opinião”; revelando a crença (CRE) da
impossibilidade de mudar de opinião.

527
- José Serra

Proferimento Análise
1- Há muito tempo sou contra a reeleição, 1. EC: Ser contra a reeleição
@ricardoapereira. Um só mandato, de 5 anos, 2. EM intencional: crítica Ato: constatação
é suficiente, @maiquelt. JK não fez 50 anos 3.Descrição do EM:
em 5? 6:10 PM Apr 21st via web CRE [¬P1: Y ser contra a reeleição] Λ CRE [◊
P2:Y acreditar em um só mandato]
2-Quanto mais pobre a pessoa, mais imposto 1. EC: Imposto pago pelos pobres
ela paga em relação à renda. E 2. EM intencional: crítica Ato: constatação
nem sabe que paga. O imposto vem 3. Descrição do EM:
embutido em tudo o que ela compra. 3:15 CRE [◊ P1: Y pagar mais imposto] Λ CRE [¬ ◊
AM Jun 3rd via web P2:Y não sabe que paga imposto]
3-Não errei, não, @alex_villena. O novo 1. EC: Acordo ortográfico
acordo ortográfico só será obrigatório a 2. EM intencional: certeza Ato: refutação
partir de 2012. Até dezembro de 2011, 3. Descrição do EM:
valem as duas formas. 3:17 AM May 29th CRE [◊ P1: X acredita que há erros cometidos
via web por Y] Λ CRE [◊ P2:Y desconhece os erros
ditos por x]
Quadro 3 – Fonte dos enunciados: twitter: @Joseserra

No terceiro quadro, o primeiro tweet demonstra que, ao retomar tweets de outros, José Serra assume e concorda
com os atos proferidos pelos mesmos, pois se apropria de seus discursos. Nesse sentido, assume um estado de coisa (EC)
de ser contra a reeleição e assim transmite um estado mental (EM) de crítica ao constatar que um só mandato é suficiente.
Desse modo, há uma crença (CRE) de y (Serra) ser contra a reeleição e ainda a (CRE) de y (Serra) acreditar em um só
mandato.
No segundo tweet do candidato José Serra, é possível traçar o estado mental (EM) crítica, cujo ato constatação
reforça um estado de coisa (EC) que é o imposto pago pelos pobres. Sendo a crença (CRE) de que y (pobre) paga mais
imposto, e ainda a crença (CRE) na impossibilidade de y (pobre) saber que paga mais imposto.
Por último, o terceiro tweet refuta uma suposta crítica vinda de outro twetteiro sobre a possibilidade de erro do
candidato José Serra a respeito do novo acordo ortográfico. Assim, por meio de um estado de coisa (EC) – acordo
ortográfico – infere-se um estado mental intencional (EM) de certeza “Não errei não” e a crença de que y (José Serra)
desconhece os erros ditos por x (outro twetteiro).

5 CONCLUSÃO

Este artigo propôs um pequeno histórico sobre os estudos da intencionalidade. Para isso, precisou-se operar com
autores capazes de explicar a complexidade do processo intencional para que se concretizasse a aplicação teórica na
análise dos “tweets” dos candidatos à presidência Dilma Rousseff (PT), José Serra (PSDB) e Marina Silva (PV).
Destaca-se que o principal objetivo foi o de destacar uma aplicação da teoria da intencionalidade nos tweets dos
candidatos, e assim demonstrar que o sentido é direcionado e, efetivamente, marcado em formas de pistas textuais no
plano da enunciação.
Nesse sentido, tendo como eixo norteador a teoria da intencionalidade, compreendeu-se ainda que todos os
estados mentais conduzem-se por intermédio de meta-predicados estruturados na noção de crença e de desejo que servem
como suportes lógicos para o processamento da intencionalidade.

528
Por fim, verifica-se que a intencionalidade pode conduzir o interlocutor a compactuar de padrões discursivos, no
sentido de ser ou não um crítico do texto que lê, uma vez que pode fazê-lo perceber e (re)conhecer o quadro político de seu
país.

6. Referências

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Philosophique de Louvain. 53, 1990, p. 431-459;

CAYLA, F. Routes et déroutes de l’intentionnalité. La correspondence R. Chisholm-W. Sellars. Paris: Éditions de l’éclat.
1991.

FISETTE, D. Le contenu intentionnel et son contexte. In: LAURIER, D. & LÉPAGE, F. (Org.) Essais sur le langage et
l’intencionalité. Paris: Vrin, 1992. p. 35-74;

GRICE, P. Utterer’s meaning, sentence-meaning and word-meaning. In: Studies in the way of words. Cambridge, Mass.,
Havard University Press, 1989. p.117-137.

MARI, Hugo. Esquemas de aula da disciplina Linguagem e intencionalidade: discussão sobre as categorias significado da
palavra e significado do falante. Aula 03 p. 1/ aula 07 p1.

McCULLOCH, G. Intentionality and interpretation. In: O’HEAR, A. (Ed.) Current Issues in Philosophy of mind. Cambridge:
Cambridge University Press, 1981, p. 253-271;

PACHERIE, E. Naturaliser l’intentionnalité. Essais de philosophie de la psychologie. Paris: PUF, 1993.

SEARLE, J. R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995;

SIMONS, P. L’intentionalité, la décennie décisive. In: LAURIER, D. & LÉPAGE, F. (Org.) Essais sur le langage et
l’intencionalité. Paris: Vrin, 1992. p . 17-34.

TSOHATZIDIS, S. L. Speaker meaning, sentence meaning and metaphor. In: ______, S. L. (Ed.) Foundations of speech act
theory. London: Rourledge, 1994, p. 365-373.

URMSON, J. O. Criteria of intentionality. In: MORAVCSIK, J. M. E. (Ed.) Logic and Philosophy for linguists: a book of
reading. The Hague: Mouton Publishers, 1974, p. 226-237.

DUARTE, A. B. – possui especialização em Língua Portuguesa pela PUC Minas (2008) e graduação em Letras pelo
UNILESTE MG (2005). Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da
PUC Minas. Fez curso (IEP - Intensive English Program) pela Troy University em Atlanta/ Georgia - EUA.
alice_duarte1@hotmail.com.

MARQUES, L. M. B. – Doutoranda em Linguística e Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG), bolsista pelo programa FAPEMIG de fomento à pesquisa. Possui título de mestre em Estudos Lingüísticos pela
Federal do Espírito Santo (2008); Licenciatura Plena em Letras-Português também pela UFES (2005).
julumarques@yahoo.com.br.

529
A construção do ethos em propagandas de café brasileiras
e italianas

DUARTE, Andrea L. Belfort


(UFF)

I- INTRODUÇÃO
Em um mundo capitalista, globalizado e com os inúmeros avanços tecnológicos somos expostos diariamente à uma
série de gêneros discursivos, sendo a propaganda um deles. Ao folhearmos uma revista ou um jornal, ao andar pelas ruas,
ao ouvir a rádio, ao navegar na internet, ao ligar a televisão nos depararemos, certamente, com este gênero discursivo.
Dentre os inúmeros tipos de propagandas veiculados nos mais diferentes meios de comunicação, as propagandas
televisivas ocupam um espaço significativo. A televisão é uma mídia que atinge um número expressivo de indivíduos das
mais diferentes idades, sexo e diferentes níveis sócio-econômicos. Nelas são vendidos produtos e são transmitidas
diferentes mensagens pelo locutor que serão incorporadas e aceitas pelo consumidor: o corpo perfeito, a dona de casa
exemplar, o carro dos sonhos, a juventude etc. Desta forma, a propaganda propicia um campo fértil para analisar o ethos de
uma determinada sociedade. Tendo em vista o exposto, a pergunta que nos colocamos é: como o ethos se apresenta em
propagandas de café de sociedades de nacionalidades distintas?
Para compor nossa análise, selecionamos quatro propagandas de café: duas brasileiras e duas italianas. A
escolha do produto não se deu aleatoriamente. O café é um produto apreciado nas duas sociedades. Segundo estatísticas
da Organização Internacional do Café (OIC) o Brasil é o país que mais exportou café no período de 2002 à 2008. Nos anos
de 2007 e 2008 a Itália foi o segundo país que mais importou café torrado e moído do Brasil, ficando atrás apenas dos
Estados Unidos segundo dados da Associação Brasileira de Café (ABIC). Outro fator que nos motivou foi o fácil acesso às
propagandas televisivas dos dois países.
Objetivamos com essa pesquisa (1) identificar o ethos discursivo presente nas propagandas analisadas e (2)
verificar se este difere em nações distintas.

II- FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA


2.1- A ANÁLISE DO DISCURSO

A Análise do Discurso (AD), considerada uma disciplina relativamente recente, pode ser vista por diversas vias, a
saber: em um sentido mais amplo (estudo do discurso) e mais restritivo (diferentes teorias que tomam o discurso como
objeto).
Por ser uma disciplina resultante de diversas correntes ligadas aos estudos de textos da Retórica, Filologia,
Estilística e Hermenêutica, não é possível atribuí-la um ato fundador. Em 1952, Harris usa em seus estudos o termo AD
para análise com enfoque além das frases. O lingüista Coseriu, em seu artigo Determinação e entorno (1956), focaliza seus
estudos a partir do uso da língua em texto e com esse enfoque direcionava suas análises para uma Lingüística do texto e
do contexto.
As várias teorias de estudo do texto que vão esboçar as idéias essenciais do que hoje entendemos como AD
surgem na década de sessenta. São elas: a Etnografia da comunicação (Gumperz e Hymes – 1964), a análise da

530
Conversação (Garfinkel – 1967), a Teoria dos Atos de Fala (Austin – 1962), a Escola Francesa da AD (Pêcheux – 1968),
acrescentamos, ainda, o desenvolvimento das correntes pragmáticas, as teorias da enunciação e a lingüística textual.
Reflexões provenientes de outros domínios também vão contribuir com suas reflexões para AD, assim temos os gêneros
discursivos, a dimensão dialógica da atividade discursiva de Bakhtin e o estudo dos dispositivos enunciativos de Foucault.
A Escola Francesa de Análise do Discurso surgiu na metade dos anos 60 e se caracterizou pela prática comum de
análise neste período. As publicação da Revista Languages, cujo título foi “ A Análise do discurso” e o livro de Pêcheux
Análise automática do discurso, tornaram-se referências para essa corrente. As pesquisas desenvolvidas por essa escola
tiveram como ponto central de estudo a análise do discurso político realizada por lingüistas e historiadores que através de
uma metodologia própria e inspirados nas idéias de Max, Althusser e na psicanálise de Lacan realizaram suas pesquisas.
Atualmente o termo Escola Francesa de AD não é mais utilizado, o que temos são correntes com pontos de convergência
de tendências francesas, mas com suas especificidades.

2.2- GÊNERO DISCURSIVO: A PROPAGANDA TELEVISIVA

“A função da propaganda vai muito além da venda de um produto – ela opera


por caminhos sutis no sentido de levar a adotar um determinado modo de
vida ou incorporar padrões de necessidades.”
(Vestergaard, 2004)

Em nosso dia-a-dia estamos expostos a uma série de textos orais e escritos que contribuem para a nossa
comunicação. Ao nos comunicarmos o fazemos através de um gênero textual/discursivo que segundo Marcuschi (2002,
p.19):

[...] são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho
coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia.
São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação
comunicativa.

Com os avanços tecnológicos, a cada dia que passa, novos gêneros são criados ou adaptados a novos suportes.
Assim aconteceu com as propagandas. A sua origem, ainda que controversa para os especialistas, pode datar a época
medieval (Publicitário Italiano – ver nome) quando em feiras os comerciantes criavam slogans para venderem peixes e
superar a concorrência ou, ainda, em um passado longínquo que segundo o filólogo italiano..... data dos tempos bíblicos e
é iniciada com a parábola da maçã, onde a serpente se utiliza de elementos retóricos para persuadir a Eva a provar o fruto
proibido. Atualmente esse gênero é apresentado em diferentes suportes, como por exemplo: outdoors, sites internet,
revistas, televisão etc.
A propaganda pertence ao domínio discursivo publicitário, que constitui práticas discursivas dentro das quais
podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que às vezes lhe são próprios ou específicos, como práticas ou
rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder. Dentro desse contexto é possível
estabelecer algumas características da estrutura desse gênero.
As propagandas se valem de alguns recursos discursivos e lingüísticos. São alguns exemplos deles:
1 - estruturar o texto como se fosse uma conversa, dando a sensação ao telespectador de que alguém ali está dirigindo-se
exclusivamente a ele. Além de tornar o discurso envolvente, uma boa conversa abre enorme espaço para convencer a
audiência;

531
2 - o uso de períodos concisos, para a melhor compreensão do público, o uso de neologismos, que asseguram a
lembrança de uma determinada marca;
3 - discurso persuasivo estimulando as pessoas a escolher determinado item, utilizando argumentos emocionais (pathos) ou
racionais (logos). O discurso reflete aquilo que os consumidores desejam escutar, aproximando a marca dos seus anseios,
vendendo conceitos que combinem com o seu perfil;
4 – Slogan final rimado, produzindo um recurso de fácil memorização e associação ao produto vendido.
Nota-se que nem sempre todos esses recursos estarão presentes em um único anúncio publicitário, porém
podemos dizer que um deles é recorrente nas propagandas cujo objetivo é a venda de um determinado produto – o discurso
persuasivo. Através da utilização de algumas técnicas que compõem esse gênero, como vimos anteriormente, os
publicitários conseguem atingir o público-alvo e cumprir a função social do gênero.
A televisão, uma das novidades mais importante do séc.XX, contribuiu enormemente para a expansão da
atividade publicitária e ao mesmo tempo foi uma das causas do crescente interesse do público em conhecer novos produtos
bem como novas alternativas em relação à vida moderna. Dessa forma, na década de 50 com o surto econômico do pós-
guerra e a melhoria de padrões do poder aquisitivo de parte da população dos países onde ocorreu este desenvolvimento, a
propaganda, alavancada por esta mídia, passou a exercer grande influência na mentalidade das pessoas, tornando-se um
poderoso gênero discursivo do mundo moderno.

2.3- O CONCEITO DE ETHOS


Inicialmente procuraremos definir o termo ethos, o qual teve sua origem na retórica da antiga Grécia. Seguindo
essa linha de raciocínio podemos compreender o ethos como a imagem que o locutor faz de si próprio e elabora o seu
discurso com o objetivo de influenciar a pessoa com a qual interage. Atualmente as ciências da linguagem ao trabalhar a
análise do discurso utiliza essa noção para investigar as modalidades verbais de apresentação pessoal na interação verbal.1
Ao trabalhar a noção de ethos devemos ter em mente seu forte aspecto intuitivo (Maingueneau, 2008) já que ao
falar o locutor envia aos seus destinatários um pouco da impressão que tem de si mesmo e responde as específicas
questões relativas a uma particularidade íntima de sua relação com a linguagem. Dessa forma ao explorar tal discurso
necessitamos torná-lo mais objetivo e acabamos por privilegiar alguns de seus aspectos, segundo a diretriz que queremos
dar à pesquisa que ora realizamos.
É de fundamental importância trabalhar com o conceito de ethos adequando-o à disciplina e à rede conceitual
relativa ao objeto de análise. A função do ethos dentro do anúncio publicitário consiste em causar uma boa impressão, que
será conseguida através da construção do discurso e de uma imagem capaz de convencer o receptor da mensagem,
gerando confiança. Esse discurso tem como meta propiciar ao orador confiabilidade, mas é preciso que essa confiança
seja ocasionada pelo discurso objetivamente e não apenas apresentar uma idéia vaga sobre o caráter do orador.
O ethos é basicamente um processo interativo de influência sobre aquele a quem a mensagem se destina. É um
comportamento que se articula de forma verbal e não-verbal, provocando nos destinatários múltiplos efeitos.
Segundo Charaudeau, uma determinada situação define o ato de linguagem e a sua finalidade comunicativa,
havendo dois tipos básicos de situação: situação de interlocução, onde os parceiros estão em um contrato de troca imediata
e situação de monolocução na qual os parceiros estão ligados por um contrato de troca passada. É na carga semântica da
palavra, através do modo de organização do discurso, numa situação de troca que se consegue observar os objetivos

1 Cf. Patrick Charaudeau & Dominique Mainguenau. Dicionário de análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. p.220.

532
desses jogos de interesse. Nesse contexto, a utilização da imagem potencializa a eficácia da palavra causando impacto e
adesão (Amossy, 2005) .
A análise de discurso praticada por Maingenau, Amossy e Haddad revela a necessidade de se considerar a
posição do locutor de acordo com as suas experiências vivenciadas nos mais diversos aspectos como político, intelectual,
literário etc.. É de fundamental importância para a compreensão de forma mais abrangente dessa situação, a problemática
de construção de um ethos na busca da elaboração de uma linguagem convincente, que, no caso do anúncio publicitário,
deve levar ao receptor da mensagem a aceitação do produto.
Assim, a AD ancorada nesse princípio propõe meios de evitar possíveis ricos de derivas subjetivas ou
mecanicistas, como afirma Soulages (1996:144):

[...] Ela toma como objeto o fenômeno publicitário enquanto tipo de discurso social transformando em
rito no seu funcionamento. Ela se apóia sobre um corpus de textos cuja organização semiodiscursiva
ela se empenha em revelar, a partir de um processo empírico-dedutivo. Os resultados dessa análise
permitem revelar, através da recensão uma série de efeitos pretendidos, a consolidação de um certo
número de imaginários sociodiscursivos.

III- METODOLOGIA
Para a formação de nosso corpus foram selecionadas quatro propagandas televisivas de café, sendo duas
propagandas das marcas de café brasileiro Pimpinela e Santa Clara e duas da marca de café italiano Lavazza. Os dados
foram retirados dos sites das empresas responsáveis pela divulgação dos produtos.
As propagandas brasileiras não se associam a nenhuma campanha específica, já as propagandas italianas fazem
parte da campanha intitulada Paradiso. As propagandas selecionadas foram exibidas na TV no período de 2003 e 2006.
Cada uma tem a duração média de 30 a 40 segundos.
Para uma melhor organização dos dados, identificaremos as propagandas segundo o fichamento apresentado no
quadro abaixo, onde cada uma receberá um número de identificação.
Nº. de Marca do produto Campanha Ano de exibição Duração
identificação anunciado vinculada (segundos)
1 Pimpinela ________ 2003 30”

2 Santa Clara / ________ 2003 31”


Pimpinela
3. Lavazza Dek Paradiso 2003 30”
decaffeinato
4. Lavazza Paradiso 2006 40”
Crema & gusto

Após identificá-las, fizemos a transcrição das falas. Em seguida, fizemos uma contextualização segundo a
cenografia e os aspectos imagéticos presentes em cada propaganda. E por fim analisamos as propagandas quanto à
construção do ethos presentes em cada uma delas.
IV - AS PROPAGANDAS DE CAFÉ
Nesta seção apresentaremos as marcas dos produtos anunciados nas propagandas, bem como os elementos que
as compõem, para melhor entendermos não apenas o mecanismo de funcionamento das mesmas, mas também para nos
auxiliar na identificação do ethos presente nestas. As transcrições das falas e as traduções encontram-se em anexo.

533
4.1 – AS EMPRESAS BRASILEIRAS DE CAFÉ (SANTA CLARA/ PIMPINELA)
A Santa Clara e Pimpinela são empresas brasileiras de café, sendo a primeira potiguar e a segunda fluminense.
Ambas iniciaram suas atividades na década de 50, quando o Brasil passava por uma grande momento no seu processo de
industrialização.
A trajetória dessas duas empresas dentro do cenário econômico brasileiro é bem semelhante. O crescimento, a
expansão do negócio com abertura de novas filiais, a qualidade do produto e por fim o reconhecimento da marca, tornaram
essas empresas líderes do mercado nacional em torrefação e moagem de café.
Desde 2003 a empresa Pimpinela foi incorporada ao Grupo Santa Clara que seguiu seu projeto de expansão. Hoje
em dia o Grupo ocupa o segundo lugar no segmento de cafés torrados e moídos.

4.1.1- COMERCIAL PIMPINELA - CONTEXTUALIZAÇÃO


Propaganda televisiva exibida em 2003 com duração de trinta segundos. A atriz Malu Mader está numa cozinha,
em um ambiente familiar com uma chaleira de água quente e começa, então, a preparar um café. Neste ínterim, ela faz uma
pergunta para o telespectador e ao mesmo tempo responde a questão narrando uma antiga lenda que originou o nome do
café que ela prepara. Durante a sua narrativa aparecem ilustrações em formas de desenhos que ilustram o seu discurso.
Após essa breve explicação amparada na iconografia apresentada, a cena retorna ao interior da cozinha da casa e o café já
está pronto. A propaganda é finalizada com a seguinte afirmativa da atriz: Essa história é difícil de provar, mas a qualidade
do café Pimpinela é fácil ( nesse momento aparece o seu marido que bebe o café) e o seguinte slogan: Pimpinela 50 anos.
Esse café tem história.

534
APRESENTAÇÃO COMERCIAL PIMPINELA – LENDA (30”)

Cê conhece a história do café Pimpinela?


Hum::: Eu vou contar.

Dizem que no século dezenove, havia uma


mulher chamada Pimpinela, que torrava o
melhor café do Rio. Todos os dias ela
percorria as ruas em torno do terreiro do
pa::sso, e deixava o seu café nas melhores
casas da cidade.

Bom, essa histó::ria é difícil de provar, mas a


qualidade do café pimpinela é fácil.

Pimpinela cinqüenta anos. Esse café tem


histó::ria.

4.1.2 - CONTEXTUALIZAÇÃO - SANTA CLARA /PIMPINELA


O Comercial foi exibido em 2003 com duração de trinta e um segundos. A atriz Malu Mader encontra-se
novamente em uma cozinha, em um ambiente familiar e, com uma colher despeja um pouco de café no coador de papel.
Começa, então, a narrar como a Santa a Clara faz o melhor café. O texto apresentado pela atriz faz menção às
propriedades do café metaforizando os cuidados necessários para iniciar um dia agradável em família. Dando continuidade
ao comercial a atriz aparece com sua família tomando o café da manhã. A propaganda é finalizada com um slogan que
busca interação com o telespectador: Santa Clara, a gente faz o melhor café. E você?

535
APRESENTAÇÃO COMERCIAL SANTA CLARA – RECEITA DE PREPARO DE
CAFÉ (31”)

Sabe como a Santa Clara faz o melhor


café? Assim:

primeiro eles colhem dias lon::gos e


cheios de sol,

então eles selecionam grandes alegrias e


muita disposição,

daí eles torram a preguiça com to::do o


cuidado e moem o desanimo sem dó.

Então a gente filtra o cheirinho e o sabor


que fazem o dia começar do jeito mais
gostoso.

Santa Clara. A gente faz o melhor café.


E você?

536
4.2 - A EMPRESA DE CAFÉ ITALIANO – LAVAZZA
A empresa de café Lavazza é uma marca tradicional que leva o nome da família fundadora, assim como tantas
outras de tradição industrial italiana. Temos como exemplos de marcas familiares italianas importantes: Ferrari, Olivetti,
Barilla, Lancia, Buitoni, Cinzano, Campari, Ferrero, Ducati.
Com mais de um século de tradição, a empresa expandiu seus negócios não apenas na Itália como no mundo
inteiro. A ligação com o Brasil é bem próxima. Em janeiro deste ano o Grupo Lavazza comprou a sociedade de Café Grão
Nobre Ltda. Se antes a empresa importava a matéria prima de nossa pátria, agora ela participa ativamente do mercado
brasileiro.

4.2.1 - CAMPANHA PARADISO DE LAVAZZA


A campanha publicitária da Lavazza é ambientada no paraíso e é composta por diversos episódios seriados nos
quais dois protagonistas interagem com diversos personagens históricos e místicos (Boccaccio, São Pedro, Mago Merlin...)
ou representantes estereotipados de outra nacionalidade.
Quase todos os episódios repetem o seguinte esquema: um personagem (o chinês, o americano, o escocês etc.)
oferece o seu café, mas este nunca está a altura das expectativas dos protagonistas Bonolis e Laurenti, renomados
personagens televisivo italianos. Como resposta os mesmos oferecem o café da marca Lavazza. Noutro formato da mesma
campanha os protagonistas discutem sobre um determinado assunto e no meio da discussão decidem tomar um café.
Neste caso o café é apresentado como uma marca conhecida e apreciada por muitos.

4.2.2 - CONTEXTUALIZAÇÃO – LAVAZZA DEK – MAGO MERLIN


O comercial foi exibido em 2003 com duração de trinta segundos. Os comediantes italianos Laurenti e Bonolis
estão no paraíso e se encontram com o mago Merlin que está testando a sua nova invenção: a máquina para fazer café
descafeinado. Laurenti degusta o café de Merlin e atesta a sua péssima qualidade já o mesmo tem apenas o gosto de
água quente. Então Bonolis sugere a Merlim provar o seu café. Merlin prova, gosta e pergunta se este café é um café
normal. Laurenti responde que é bom como uma café normal, mas é descafeinado. Merlim pergunta o que ele deve fazer
com a água quente e Bonolis sugere que ele cozinhe batatas. Merlin acha a idéia da batata cozida magnífica e Laurenti
ironicamente diz para Merlin que não deixem que lhe roubem essa idéia.

537
APRESENTAÇÃO COMERCIAL LAVAZZA DEK - MAGO MERLIN (30”)2

Mago: Silêncio! Que eu inventei o


café descafeinado. Experimente!!

Luca Laurenti: Mas isso é água quente, eh!


Mago: É ! Eu tirei toda a cafeína!
Paolo Bonolis: E... mas você também tirou todo o café. Merlin, preste atenção! Experimente
isso.
Mago: Bom! Mas isso é café normal!
Luca Laurenti: Ah Merlin é Lavazza Dek. È descafeinado, mas é bom como um café normal.
Mago: E o que eu faço com a água quente?
Paolo Laurenti: Eh... cozinhe as batatas com essa água.

Mago: Uhhh. Tá aí uma boa idéia! Batata cozida!


Paolo Bonolis: Ótima idéia ! Parabéns!
Luca Laurenti: Ah... não deixe que roubem essa sua
idéia!?

4.2.3 - CONTEXTUALIZAÇÃO – LAVAZZA – TIFOSI


Propaganda televisiva exibida em 2006 com duração de quarenta segundos. Os comediantes italianos Laurenti e
Bonolis estão no paraíso festejando a vitória do mundial de futebol e aguardam pelo bonde que faz o transporte local. Ao
avistarem o bonde guiado por São Pedro, os mesmos vêem que tem torcedores de outras seleções festejando também.
Eles não entendem porque todos estão comemorando. Antes de tentarem entender o que se passa tomam um café e neste
contexto começam a fazer a apresentação da marca de café que será anunciada. Então os comediantes perguntam a São
Pedro sobre o motivo da confraternização. São Pedro explica que no paraíso todos são vencedores. Laurenti pergunta se
até mesmo a seleção do Vaticano vence. E São Pedro responde que sim, pois ela joga em casa. Ao final Bonolis afirma
que na Terra os vencedores são os italianos. Bonolis faz um jogo com a palavra testata que pode significar cabeçada
(fazendo referência ao fato ocorrido na partida final da copa entre Itália e França onde Zidane dá uma cabeçada no peito de
Materazzi) ou significar manchete de jornal fazendo referência ao título mundial conquistado pela Itália estampado em
jornais de todo o mundo.

2 Tradução livre.

538
O reconhecimento da figura de São Pedro é feito através da vestimenta que possui o símbolo que representa este
Santo como o guardião do céu (uma chave).
APRESENTAÇÃO COMERCIAL LAVAZZA – TIFOSI (40”)3

Torcedores da seleção italiana: Paolo Bonolis: Mas o que eles


Campeões! Campeões! gritam? Nós vencemos e são
Paolo Bonolis: Vamos lá! eles que estão contentes. Não
Torcedores da seleção italiana: entendo mais nada!
Ale ohoho!

Luca Laurenti: Mas por que Paolo Bonolis :Uhm!!


não preparamos um bom Realmente gostoso esse café,
café? é italiano! Este ninguém
Paolo Bonolis: Ótima idéia, vence! É Lavazza.
Crema e gusto!

Brasileiro: "Que gostoso este cafezinho!"


Luca Laurenti: Ei! Ehe! O que este espertinho
está fazendo?

Paolo Bonolis: Mas o que está acontecendo? Todos estão


contentes aqui. Cada um diz que venceu.
São Pedro: No paraíso funciona assim: cada seleção vence a
copa.
Luca Laurenti:Ah! Até eles?
São Pedro: Tá bom,!Sim,claro! Eles aqui... jogam em casa.
Paolo Bonolis: Na Terra fomos nós que vencemos. Dizem isso
também na França. "Bin!"....As maiores cabeçadas e/ou maiores
manchetes!

3 Tradução livre.

539
V- ANÁLISE DAS PROPAGANDAS

5.1- O Ethos na propaganda da Pimpinela


O ethos apresentado neste anúncio publicitário corresponde ao de um locutor que tem a preocupação de cuidar
bem de sua família, apesar das exigências da vida moderna.
Neste anúncio temos a figura de uma mulher moderna, bem sucedida profissionalmente e pessoalmente (Malu
Mader). A imagem de uma família feliz e bem estruturada elege a marca Pimpinela de café, por ser um produto de meio
século de existência e consolidado no mercado por sua qualidade.
Os elementos retóricos que vão construir e legitimar o discurso são: o ethos de preocupação com a família, os
fiadores representados pelas pessoas da atriz Malu Mader e seu marido e a tradição apresentada através da narração da
lenda da escrava Pimpinela.
Assim temos de acordo com a enunciação apresentada na propaganda, tanto a figura da mulher bem sucedida em
todos os aspectos da vida, quanto a tradição da lenda que é passada de geração a geração conferindo credibilidade ao
discurso do locutor e mostrando que todos podem confiar e utilizar o produto.

5.2- O ethos na propaganda da Santa Clara


Assim como a propaganda do café Pimpinela, o ethos deste anúncio publicitário também é o da preocupação em
cuidar bem da família dentro das necessidades e obrigações da vida moderna.
Temos neste anúncio a atriz Malu Mader, que narra utilizando metáforas, a preocupação que a empresa Santa
Clara tem para selecionar os melhores grãos de café que chegarão a casa de seus consumidores. Através do discurso
busca-se fazer associações entre a preparação de um bom café e as qualidades morais que devem ser desenvolvidas
dentro de um lar bem estruturado.
O fiador é representado por uma família unida em torno de uma mesa difundindo a importância de que um dia
feliz começa com um bom café da manhã.
Da mesma forma que a empresa Santa Clara transmite a idéia de cuidado e respeito na produção do seu café, a
mulher moderna e atenta aos cuidados de sua família busca os melhores produtos para propiciar o bem-estar familiar.

5.3 - O ethos na propaganda da Lavazza Dek decaffeinato


Observamos que o ethos presente nesta propaganda é o de qualidade inovadora e incontestável. Mago Merlin4
reconhecido por sua magia e suas profecias cria um maquinário capaz de produzir café sem cafeína.
O café inventado por Merlin não é aceito, pois o que ele apresenta a Bonolis e Laurenti é água quente com a
justificativa que a cafeína, como em um passe de mágica ele fez desaparecer. Os comediantes, então, apresentam o café
Lavazza que apesar de ser descafeinado não perde o sabor e as qualidades do café normal.
A presença desses personagens televisivos e a do Mago Merlin nessa propaganda, atesta a qualidade do café,
promove a confiabilidade no produto e confere autoridade ao locutor do ethos.

5.4 – O ethos na propaganda da Lavazza Crema & gusto


O ethos presente na propaganda Crema & gusto é a invencibilidade. No discurso, o locutor coteja o café com a
seleção de futebol italiana. A seleção italiana possui um ethos pré-discursivo de imbatível, pois os telespectadores

4 Mago Merlin - personagem do Ciclo Arturiano, era um mago, profeta, conselheiro, grão-druida.

540
(consumidores) a reconhecem como a melhor seleção do mundo, já que foi a vencedora da Copa do Mundo em 2006, ano
em que o comercial foi exibido.
O estereótipo é um outro elemento presente. No bonde conduzido por São Pedro temos diversas nacionalidades
que celebram a vitória, porém, como podemos observar, aquela que está em destaque é a brasileira. A imagem de povo
festeiro, alegre, associada às mulatas, ao samba e ao futebol. A identificação desses personagens pode ser feita na fala do
brasileiro e através das roupas, como o uniforme dos jogadores de futebol nas cores da seleção brasileira, um cachecol
escrito Brasil e na indumentária típica de carnaval da mulata.
O fato do publicitário ter colocado a nacionalidade brasileira em evidência não foi ao acaso. Observamos, aqui,
outros ethe pré-discursivos, tais como: o da apreciação do café brasileiro por sua excelência reconhecida mundialmente e o
da seleção brasileira de futebol também considerada umas das melhores do mundo por seus inúmeros títulos conquistados.
Esses ethe vão corroborar para a construção do ethos efetivo que é retomado na fala de Bonolis aqui transcrita: “Uhm!!
proprio buono questo caffè, è italiano! Questo non lo batte nessuno! E' Lavazza.”5

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito ainda resta verificar dentro deste âmbito de estudo, no entanto, em nossa pesquisa, procuramos apenas
identificar como o ethos se manifesta em propagandas televisivas de sociedades de nacionalidades distintas. Para tanto,
escolhemos o mesmo produto e, assim, identificamos o ethos presente em cada uma delas para posteriormente cotejá-las.
Observamos, em nossa análise, que o ethos apresentado nas propagandas de café brasileiro é o ethos familiar, já
as propagandas de café italiano apresentam como ethos a superioridade da marca anunciada.
Dessa forma pretendemos com a nossa pesquisa oferecer subsídios que possam dar condições a novas
investigações envolvendo outros aspectos que merecem ser também analisados dentro deste contexto, como a cultura, as
ideologias, as modernas mídias etc..

VII- REFERÊNCIAS

AMOSSY, R (org). Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2005.

BAKTHIN, Mikhail. Os gêneros do Discurso. In: _________, Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
p.227-326.

BLASQUES, Fernanda. Uma análise do ethos no discurso publicitário da L’Oréal Paris. São Paulo, 2006. 102 p.
Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras, Universidade Presbiteriana Mackenzie.
CARNEIRO, A.D. (org). O Discurso da Mídia. Rio de Janeiro: Oficina do autor, 1996.
CHARAUDEAU, P. , & MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo:Cotez, 2002.
MARCUSCHI, L.A. . Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÌSIO, A.P et al (org), Gêneros textuais e
ensino. Rio de Janeiro: Ed. Lucerna, 2002. p19-36.
MONNERAT, R.S.M.. Processos de intensificação no discurso publicitário e a construção do ethos. In:
PAULIUKONIS, M.A. L., et al (org), Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
QUINTAVALE, A.C.. Pubblicità: modelo, sistema storia. Milano: Feltrinelli Econômica SpA, 1977.

5 Tradução da fala de Bonolis: Uhm!! Realmente gostoso esse café, é italiano! Este ninguém vence! É Lavazza.

541
VESTERGAARD, Torben & SCHRODER, Kim. A linguagem da Propaganda. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Andrea Lima Belfort Duarte

Bacharel em Letras Português-Italiano (2005), licenciada em Letras Português-Italiano (2006) e especialista em Língua e
Literatura Italiana (2006) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase
em Lingüística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de língua estrangeira, avaliação e produção
de materiais didáticos e gêneros do discurso.

542
O lugar dos pais na clínica do autismo: reflexões em análise
do discurso e psicanálise

DURANTE, Juliana Cáu1


(UFPE)

Após percorrermos um longo caminho no sentido de atar e desatar os “nós” que foram engendrados e impulsionados
por nossas perguntas e questionamentos de pesquisa no entremeio das relações interdisciplinares entre psicanálise e análise do
discurso, é chegado o momento de passarmos a construção dos “enlaces”, ou melhor dizendo, dos “entrelaces” (enlaces entre
várias formas de enunciação), guiados pelo princípio fundamentalmente dialógico da linguagem humana, tal como propõe
Bakhtin (2003; 2004, entre outros) em todo o transcorrer de sua obra.
Para tanto, faremos uma breve retomada ao início da presente pesquisa2, que não poderia ser melhor representado
senão através do título a que lhe foi conferido: “O discurso do especialista sobre o lugar dos pais na clínica do autismo”.
Durante muito tempo na história do autismo, o lugar dos pais foi fortemente marcado por uma posição dicotômica, a
partir do proposto por Leo Kanner (1943): 1. De um lado, as concepções psicogênicas, defendendo que a origem causal do
autismo teria um fundo psíquico e emocional, encontrando-se diretamente relacionada às relações entre pais e filhos, colocando,
desse modo, os pais num lugar de responsabilização culpabilizante sobre as dificuldades do filho; 2. Opostamente, as
concepções organogênicas, defendendo que a gênese do autismo teria uma explicação puramente orgânica, biológica, retirando
desse modo, os pais do lugar de culpados e eximindo-os de qualquer tipo de implicação nas expressões de sofrimento do filho.
Dito isso, observa-se que o discurso produzido em torno do lugar ocupado pelos pais no autismo encontra-se diretamente
relacionado a concepção teórico-etiológica da qual se parte.
O “discurso” dos profissionais do CPPL - Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem 3 - instituição psicanalítica
do Recife analisada no presente estudo, que há vinte e oito anos debruça-se sobre as questões ligadas às situações de
dificuldades e/ou de sofrimento psíquico de crianças e adolescentes em processo de desenvolvimento, os quais inclui-se o que
convencionou-se denominar de “autismo”- vem sendo construído no sentido de uma “desconstrução” frente a tal conceito
diagnóstico (CAVALCANTI; ROCHA, P.S., 2001), dado seus mais variados e nefastos efeitos produzidos na clínica desenvolvida
junto à tais indivíduos assim descritos e suas famílias.
Esta posição crítica e inovadora tomada pelas autoras, compartilhada institucionalmente, tem como respaldo teórico as
formulações do psicanalista e pediatra inglês Donald Winnicott (1997a, 1997b, 1997c) frente à problemática do autismo.
“O autismo, isso não existe!” foi uma frase postulada por Winnicott em conferência proferida na Inglaterra para pais de
crianças autistas, o que vem a demonstrar que ele é um dos poucos autores que caminha no sentido contrário do que foi
formulado acerca da concepção de autismo, a partir do proposto por Kanner (CAVALCANTI; ROCHA, P.S., 2001).

1 Psicóloga Clínica (UFPE); Mestre em Lingüística e Doutoranda em Lingüística (UFPE).


2 A apresentação do referido trabalho configura-se enquanto um recorte da dissertação de mestrado em lingüística intitulada: “O discurso do
especialista acerca do lugar dos pais na clínica do autismo”, realizada entre os anos 2005 e 2007, pela UFPE/PPGL.
3 Pesquisa realizada enquanto produto da dissertação de mestrado entre os anos 2005 e 2007, momento no qual a referida pesquisadora

ainda era membro integrante, na qualidade de sócia, da referida instituição. Desligou-se, contudo, em meados de 2008.

543
Winnicott (1997a, 1997b, 1997c) afirma não considerar quaisquer benefícios para a compreensão e tratamento de
crianças que sofrem psiquicamente através da invenção do termo autismo enquanto patologia específica, destacada do quadro
das psicoses infantis. Segundo Cavalcanti e Rocha (2001, p. 99), para o psicanalista britânico:
Qualquer dos sintomas que passaram a demarcar essa patologia podem ser encontrados em
muitas crianças que não são autistas e não são reconhecidas como portadoras de distúrbios
psíquicos.

Winnicott (1997a, 1997b, 1997c) parece tomar como ponto de partida para o entendimento dos sofrimentos psíquicos
dos indivíduos, a história de seu desenvolvimento, fatores externos, ambientais, processos maturacionais e a própria relação
familiar, e não sinais ou sintomatologias passíveis de serem classificadas enquanto síndromes psicopatológicas, como se
fizesse parte da própria estrutura psíquica e funcionamento do indivíduo.
Nesse sentido, e, objetivando efetuar uma análise metodológica e dialógica do discurso em torno da clínica do autismo,
constituímos enquanto nossos corpora de arquivo os depoimentos4 produzidos pelos profissionais do CPPL, em torno da
questão do lugar ocupado pelos pais a partir das práticas experienciadas junto aos pacientes assim descritos, levando-se em
consideração a questão da etiologia e do tratamento terapêutico.
E foi a partir de tal processo de “desconstrução discursiva” acerca do diagnóstico de autismo que fomos impelidos a
formular nossa principal pergunta de pesquisa: “quais os efeitos de sentido produzidos nos discursos destes mesmos
profissionais sobre o lugar ocupado pelos pais (tanto no que se refere a etiologia quanto ao tratamento), tomando como base
este tipo de posicionamento crítico frente ao conceito e diagnóstico de “autismo”?”
De acordo com uma análise inicial dos dados, foram selecionados e lematizados em dois gráficos distintos (a partir de
uma análise quantiqualitativa, lexical, textual e discursiva de André Camlong (1996)) todas as formas de enunciação produzidas
pelos profissionais do CPPL em relação ao lugar ocupado pelos pais assim como as formas de defini-los frente a posição
ocupada.
Gráfico 55. Lugar dos pais: culpados – ilustra a lematização de palavras que remetem ao lugar de responsabilização
culpabilizante posto sobre os pais, expresso pelas seguintes formas de enunciação: culpa; culpabilizados; culpabilizante;
culpabilização; responsáveis; causa; causalidade; causadores; responsabilização; fria; distante; ausente; intelectual; frígidas;
insensíveis; geladeiras; pesquisadores; pedagógica; invasivo; invasão; dificultam; dificultando; alimentam; atrapalhando;
boicotando; dificultoso; difíceis; causam; causando; depressão; deprimido(a); neuróticas.
Gráfico 6. Lugar dos pais: implicados – ilustra a lematização de palavras que remetem ao lugar de implicação dos pais frente ao
sofrimento do filho, expresso pelas seguintes formas de enunciação: implicados; implicação; implicações; participam;
participação; fundamental (is); indispensável (eis); importância; imprescindível; interlocutor; flexibilidade; flexíveis; maleáveis;
facilitadores; favorecendo; cuidam; cuidar; cuidado; cuidando; acolher; acolhendo; facilitam; facilitação; investir; investem;

4 A equipe interdisciplinar desta instituição, no momento da realização da presente pesquisa, era composta de um total de quinze (15)

profissionais, dentre os quais: sete (7) psicanalistas, cinco (5) psicólogos, um (1) psiquiatra/psicanalista, um (1) terapeuta ocupacional e um (1)
psicopedagogo. Foram realizados, ao todo, quatorze (14) depoimentos, não sendo incluído o discurso da autora do presente estudo, sócia4 da
referida instituição e psicóloga de formação.

5A numeração apresentada nos gráficos seguem, para título de ilustração, a mesma ordem numérica utilizada na íntegra na dissertação de
mestrado publicada em 2007 no site do PPGL/UFPE, uma vez que o presente trabalho efetua-se enquanto um breve recorte metodológico da
pesquisa em questão.

544
investiu; investiram; investindo; investimento; adequados; agradáveis; confiantes; interativos; penetráveis; permeáveis;
presentes; sintonizados; tranqüilos.

Para título de ilustração, selecionamos alguns recortes discursivos que nos parecem significativos ao entendimento da
análise dos dados aqui efetuada e torno da questão do lugar ocupado pelos pais na clínica do autismo. O recorte discursivo a
seguir, do enunciador T14, tal como demonstraram os gráficos acima, obteve o mais alto peso (14,72), quando da utilização de
itens lexicais que remetem ao campo semântico do lugar dos pais como culpados:

545
Essa história do lugar dos pais no autismo, aí já tem uma questão né, porque se a gente for tratar dessa forma eu iria
dizer simplesmente pra você: autismo não existe, mas aí isso não seria resposta. Aí a gente tem que ver um pouco
assim, fazer uma certa genealogia do que foi essa, de como é que foi construído esse lugar dos pais no autismo, com a
construção também dessa patologia, dessa patologia que foi construída basicamente, primeiramente pela psiquiatria, né.
Aí foi implantada pela neurologia, pela psicologia e pela própria psicanálise né, mas primeiro ela foi construída pela
psiquiatria. E aí a gente sabe que, tá lá em Kanner né, esse, os pais foi, esse item sobre os pais foi um item muito
controvertido em Kanner. Porque num primeiro momento, ele tava muito próximo de alguns psicanalistas, inclusive
Margareth-Maller, e ele tava muito interessado pelas pesquisas sobre o desenvolvimento precoce, começavam as
pesquisas sobre o bebê, os bebês. E aí ele tem, no primeiro artigo mesmo, no artigo de, no artigo inicial, de quarenta e
três, ele vai começar achando, afirmando a etiologia psíquica do autismo. E quando ele afirma a etiologia psíquica do
autismo ele coloca os pais num lugar de, não é nem um lugar só de responsabilização, mas num lugar de
culpabilização mesmo né. Então os pais eram, ele faz uma relação de causa e efeito né entre autismo, inclusive começa
a construir uma certa caricatura mesmo dos pais do autista, que são as célebres: as mães geladeiras, os pais
intelectuais, quer dizer, isso foi construído assim, então isso tá muito ligado a questão do lugar dos pais inicialmente, no
autismo, tá ligado a essa, como eles apareceram em cena, e eles apareceram em cena nessas circunstâncias, quando
Kanner estabelece essa relação, a etiologia psíquica. Mas no próprio artigo, depois ele refaz, no final do artigo ele
termina por afirmar que não, que a etiologia é mesmo, é uma etiologia orgânica, não é, que então, ele exclui
completamente qualquer possibilidade e ele faz uma espécie assim, ele salva os pais, né. Por que se num primeiro
momento era tão culpabilizante, no final, aí pelo contrário, aí ele coloca como uma patologia orgânica e que não se trata
de nada psíquico. Ou seja, ele mantém, no que diz respeito a etiologia, ele se mantém numa, no campo de uma,
estabelecendo uma certa causalidade direta entendeu, a noção dele de etiologia é essa. Ele não sai dessa lógica da
causalidade.(T14)

Analisando o contexto enunciativo em que tais palavras foram expressas podemos observar que o enunciador T14, ao
referir-se que, para tratar da questão do lugar dos pais no autismo seria necessário“fazer uma certa genealogia do que foi essa,
de como é que foi construído esse lugar dos pais no autismo, com a construção também dessa patologia”, evoca a memória
discursiva de Kanner, quando observa que “ [...] tá lá em Kanner né, esse, os pais foi, esse item sobre os pais foi um item muito
controvertido em Kanner”, o que ilustra a presença desse outro em seu discurso.
Nesse sentido, a própria ocorrência de palavras que remetem ao lugar de culpa posto sobre os pais caracteriza a
retomada de um discurso histórico fundador, que instaura um diálogo entre um eu e um outro: “E aí ele tem, no primeiro artigo
mesmo, no artigo de, no artigo inicial, de quarenta e três, ele vai começar achando, afirmando a etiologia psíquica do autismo. E
quando ele afirma a etiologia psíquica do autismo ele coloca os pais num lugar de, não é nem um lugar só de
responsabilização, mas num lugar de culpabilização mesmo né”. Esta presença do outro no discurso do eu torna-se evidente
no uso constante do pronome pessoal “ele”, contextualizando historicamente o surgimento e a própria construção deste lugar de
culpa imprimido sobre os pais por Kanner: “inclusive começa a construir uma certa caricatura mesmo dos pais do autista, que
são as célebres: as mães geladeiras, os pais intelectuais, quer dizer, isso foi construído assim, então isso tá muito ligado a
questão do lugar dos pais inicialmente, no autismo, tá ligado a essa, como eles apareceram em cena”.
Contudo, como o próprio enunciador afirma, este discurso sobre os pais “foi um item muito controvertido em Kanner”, o
que vem a ilustrar a posição dicotômica existente no que se refere a este tema, evidenciada, por sua vez, através de um
discurso histórico fundador sobre sua etiologia: “Mas no próprio artigo, depois ele refaz, no final do artigo ele termina por afirmar
que não, que a etiologia é mesmo, é uma etiologia orgânica, não é, que então, ele exclui completamente qualquer possibilidade
e ele faz uma espécie assim, ele salva os pais, né. Por que se num primeiro momento era tão culpabilizante, no final, aí pelo
contrário, aí ele coloca como uma patologia orgânica e que não se trata de nada psíquico”.
Esta dicotomia frente ao lugar ocupado pelos pais marcou profundamente toda a relação estabelecida entre pais e
filhos acometidos por este diagnóstico daí em diante. Desse modo, a partir dos discursos dos profissionais do CPPL
pretendemos investigar os efeitos deste posicionamento histórico e dicotômico tanto em relação ao tratamento quanto a própria
relação pais-filhos.

546
Alguns destes efeitos no tratamento puderam ser analisados através dos recortes discursivos do enunciador T4
apresentados abaixo, que, tal como sugerem os dados quantitativos, remetem a uma significativa preferência em descrever os
pais num lugar de culpados frente às dificuldades do filho, o que pode ser observado através da incidência recorrente, no
discurso, da palavra “culpa”:
Os pais ficam num lugar de culpa pelo que acontece, e de certa forma, com todos os receios do que possam fazer pra
prejudicar ainda mais a criança. Então, o que eu tenho escutado é muito o de um não saber o que fazer, não é, não saber
se comemora um aniversário, não saber se pode dar uma palmada quando faz uma grande trela, não saber muito ficar
nesse lugar de pai e mãe que briga, que repreende, que frustra, que diz não. Então, de alguma forma, o que eu tenho
escutado, e com muita freqüência, é essa culpa, por a criança apresentar este comportamento, onde que foi que eu
errei, onde foi minha falha pra de alguma forma pra possibilitar que ela reagisse pro mundo desse jeito. E nesse lugar de
culpa, de alguma forma, impossibilita que essa relação pai e filho, de alguma forma, se estabeleça, não é. Eles vem para
nós com as perguntas e querendo que a gente ensine o que eles devem fazer com os seus filhos. (T4)

O enunciador T4, ao afirmar: “o que eu tenho escutado”, constrói todo seu discurso a partir da própria ação clínica, ou
seja, é a prática terapêutica por ele experenciada que se apresenta, de modo vivo, em suas formas de enunciação, o que faz
com que possamos tomar o seu discurso enquanto forma de ação em si mesma, ao expressar, em forma de linguagem, a
atividade terapêutica: “Eles vem para nós com as perguntas e querendo que a gente ensine o que eles devem fazer com os seus
filhos”, ele traz à tona uma ampla discussão que trata justamente dos efeitos iatrogênicos causados nos pais pelo diagnóstico de
autismo, na medida em que estes, ao se relacionarem com a doença, deixam escapar a identidade de filho, e o que passa a
aparecer no discurso desses pais é: “um não saber o que fazer, não é, não saber se comemora um aniversário, não saber se
pode dar uma palmada quando faz uma grande trela, não saber muito ficar nesse lugar de pai e mãe que briga, que repreende,
que frustra, que diz não”.
O discurso do enunciador T4 de alguma forma evidencia um diálogo de vozes, expresso pelo fato destes pais, ao
chegarem à instituição aqui analisada com esta marca diagnóstica, reflexo e produto das primeiras formulações de Kanner a
respeito, carregam também, como não poderia deixar de ser, todos os efeitos produzidos por este rótulo na relação pais-filhos,
colocando-os assim no lugar de culpabilizados pelo sofrimento do filho, como o fez Kanner. Isto pode ser expresso pelas
seguintes formas de enunciação descritas pelo enunciador T4, que por sua vez, ilustra este trabalho de escuta clínica junto aos
pais: “o que eu tenho escutado, e com muita freqüência, é essa culpa, por a criança apresentar este comportamento, onde que
foi que eu errei, onde foi minha falha pra de alguma forma, pra possibilitar que ela reagisse pro mundo desse jeito”.
Este emaranhado de vozes presente no discurso do enunciador T4 torna-se evidente a partir do momento em que, o
profissional, ao construir seu discurso respaldado pela própria ação clínica, introduz neste mesmo discurso a presença de outras
vozes: o discurso dos próprios pais: “onde foi que eu errei”, marcado, por sua vez, pelo diálogo constante com um outro,
evidenciado pela afetação de um discurso histórico-fundador, trazendo toda a influência das formulações iniciais de Kanner
acerca do autismo na posição de culpa ocupada pelos pais. Este lugar de culpa sentido pelos pais também pode ser evidenciado
através do diálogo com Winnicott (1997b, p. 179), que em conferência dirigida a profissionais sobre o assunto afirma:

Eu imagino que em cada caso de autismo vocês estão preocupados não só com uma criança que está lutando com
problemas pessoais de desenvolvimento, mas também com os pais, pais que estão desapontados porque seu filho não é
tão recompensador como uma criança normal seria, e pais que se sentem culpados, como todos os pais se sentem,
mesmo ilogicamente, quando alguma coisa dá errado.

Marcando um discurso dialógico e evocando a memória discursiva de Winnicott (1997b, p. 189-190) acerca da relação
dos pais frente às dificuldades do filho, o autor apresenta um posicionamento bastante crítico frente a esta questão:

547
A maioria das pessoas consegue pensar racionalmente em seus melhores momentos, e consegue discutir a relação
entre o autismo que está se desenvolvendo numa criança e (em alguns casos) um fracasso relativo nos cuidados ao
bebê. O que é muito mais difícil é lidar com este problema em termos sociais, em termos do público e da atitude do
público em relação aos pais. Coletivamente, as pessoas são menos racionais do que individualmente. Sem dúvida, os
pais de qualquer criança doente têm um sério problema social. Entretanto fica mais fácil se a sociedade pensar que a
doença se deve ao destino, ou a um ato de Deus. Até os pecados dos pais servem bem. Mas no momento em que a
sociedade fica com a idéia de que a anormalidade de uma criança se deve aos pais, a crueldade toma conta.

Já o enunciador T1, analisado abaixo, parece enfatizar em seu discurso um outro ponto de vista acerca da importância
do lugar dos pais na constituição subjetiva do filho, confrontando, a partir do recurso à memória discursiva, com o discurso
histórico que defende o posicionamento culpabilizante, aqui expresso pela palavra responsáveis, em contraposição às palavras
implicados e implicação:
Vamos ver (...) Eu acho que, eh (...), os pais, de uma maneira geral, independente de ter um filho autista ou não autista,
os pais, eles se encontram implicados na, vamos dizer assim, no desenvolvimento do seu filho, de um modo geral, e
isso não significa em absolutamente dizer que os pais são responsáveis pelas deficiências, e tudo mais. Eu acho que a
implicação, ela existe em todos os sentidos e essa implicação ela transcende as crianças que apresentam os quadros
autistas, de um modo geral. E essa implicação, do meu ponto de vista, ela tá levando em consideração a contrapartida
da criança, em relação a eles, porque eu não penso um filho, uma criança que ele, que da parte dele também não tenha
suas demandas, sua resposta em relação a esses pais, e a relação que se estabelece entre pais e filhos, né, cada pai,
cada mãe com cada filho é muito próprio, muito particular exatamente por isso. Eu costumo dizer sempre que é como um
passo de dança, eu acho que é como um passo de dança que quando um muda, troca, o outro tem que acompanhar, se
adaptar ou então pisa os pés, não é. Então você vai ter momentos em que um vai pisar o pé do outro e depois se
entende, volta a se entender, ou pode ser uma dança monótona ou pode ser uma dança muito legal né. Eu acho que
tem sempre uma via de mão dupla nisso. E eu não vejo isso como sendo diferente com as crianças que apresentam
sinais ditos autísticos, eu não vejo uma diferença nisso.(T1)

Podemos observar que quando o enunciador afirma: “os pais, de uma maneira geral, independente de ter um filho
autista ou não autista, os pais, eles se encontram implicados na, vamos dizer assim, no desenvolvimento do seu filho, de um
modo geral, e isso não significa em absolutamente dizer que os pais são responsáveis pelas deficiências”, ele retoma um
discurso anterior sobre o lugar de culpa e/ou de responsabilização posto sobre os pais, evocando deste modo a presença de
outras vozes no interior do discurso, o que pode ser expresso pelo uso da palavra responsáveis. Contudo, ao evocar o
dispositivo da memória discursiva, o enunciador deixa bastante evidente em sua forma de enunciação um acento apreciativo
crítico e contrário a este tipo de prática discursiva responsabilizante, e chega a efetuar, em seu contexto enunciativo, uma
significativa diferenciação entre o significado das palavras responsáveis e implicados.
Observa-se, pois, um diálogo entre o enunciador T1 ao trazer à memória o discurso de Winnicott (1997b, p.189), ao
tratar desta questão que diz respeito à diferença em tomar os pais num lugar de culpados ou de implicados no sofrimento do
filho:
Posso dizer, a respeito de um caso específico de uma série, que o quadro autista da criança resulta disto ou daquilo que
foi, ou deixou de ser, uma característica em seu manejo inicial, mas isso é muito diferente de dizer para uma mãe ou um
pai: “Isso é culpa sua”.

O profissional T1 apresenta, no contexto em que tais palavras foram expressas, um acento apreciativo que marca a
sua concepção sobre o desenvolvimento humano, de uma maneira geral, o que inclui tanto as crianças ditas “normais” quanto
àquelas acometidas por alguma dificuldade e/ou sofrimento, como nos casos do que se convencionou chamar de “autismo” ou
“quadros autistas”. E segue falando da implicação de qualquer pai e mãe na relação com o filho neste processo de
desenvolvimento: “Eu acho que a implicação, ela existe em todos os sentidos e essa implicação ela transcende as crianças
que apresentam os quadros autistas, de um modo geral”.

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Segundo o ponto de vista do enunciador, e partindo de uma compreensão ativo-responsiva sobre o tema, o mesmo
afirma que o desenvolvimento humano e o estabelecimento da relação entre pais e filhos dá-se numa permanente “via de mão
dupla”. Em suas palavras: “essa implicação, do meu ponto de vista, ela tá levando em consideração a contrapartida da criança,
em relação a eles, porque eu não penso um filho, uma criança que ele, que da parte dele também não tenha suas demandas,
sua resposta em relação a esses pais, e a relação que se estabelece entre pais e filhos, né, cada pai, cada mãe com cada filho é
muito próprio, muito particular”.
Este dado acento apreciativo sugere a construção de reflexões e produções de sentido que levam a pensar a
pertinência de se tomar o processo de constituição subjetiva do indivíduo como “uma via de mão dupla”, como afirma o
enunciador T1, pois a relação entre pais e filhos, no momento em que são engendradas e, tendo em vista as singularidades de
cada um, terão sempre os mais diversos e imprevisíveis destinos, o que derruba, de antemão, qualquer concepção de que “os
pais são responsáveis pelas deficiências” dos filhos.
Como podemos demonstrar através dos resultados dessa investigação, não só o conceito de “autismo” foi por eles
desconstruído como, também, toda a análise do discurso destes mesmos profissionais sobre o “lugar dos pais” foi sendo
construída a partir de um longo processo de desconstruções, que envolveu, em diversos momentos, o próprio “título” da
pesquisa em questão.
O primeiro dos vários “nós” aqui desatados esteve circunscrito no eixo temático referente a etiologia, que diz respeito
a seguinte formulação presente no título: “o discurso do especialista”.
A partir do discurso de um dos profissionais aqui analisados (T14), este lugar do profissional tomado e entendido
enquanto especialista, quando se trata da clínica do “autismo”, é rapidamente desconstruído no momento em que compartilha-
se, entre estes mesmos profissionais, deste acento crítico avaliativo frente ao diagnóstico de “autismo”, aqui entendido enquanto
um conceito e diagnóstico equivocado, como propõe Winnicott (1997a, 1997b, 1997c). O que impossibilita, por assim dizer, que
se fale em especialista em “autismo”.
Este posicionamento crítico frente ao diagnóstico de “autismo” pôde ser amplamente analisado, cujos resultados nos
permitiram concluir que, tais profissionais, não apenas diferenciam, como também, reafirmam em seus discursos, construções
de sentido que venham a remeter ao caráter mutável e transitório presente na forma de sintomas autísticos, salvaguardando a
dimensão adjetiva do “estar” em sofrimento psíquico. Desse modo, os profissionais posicionam-se, de modo crítico e
compartilhado no sentido da desconstrução frente à fixidez e imutabilidade que o conceito de autismo, enquanto síndrome
psicopatológica impõe aos indivíduos assim diagnosticados. Desta forma, passando a apresentar, em seus discursos, os efeitos
iatrogênicos e os perigos ocasionados na própria relação pais-filhos, quando a questão discutida engloba a dimensão do “ser”
autista, o que pressupõe uma “doença” inata e biologicamente predestinada à não ter “cura”, ou até mesmo a avançar
clinicamente, chegando a tornar-se uma questão identitária, tal como podemos analisar no fragmento discursivo a seguir:
Mas voltando para os pais, o que a gente percebeu então é que os pais percebiam as dificuldades que
apareciam e faziam uma espécie de peregrinação entre os mais variados especialistas, não é, que no início,
tinham dificuldade de diagnosticar e depois começaram a diagnosticar cedo demais, dando o diagnóstico de
imediato, desde que apareciam alguns sinais de dificuldades de desenvolvimento e diagnosticar como
autismo, não é. Que aí, por sua vez, teve um efeito nefasto, para os pais, iatrogênico, na medida que, como
entretempo, muito se popularizou o próprio autismo e a mídia via filmes, via, enfim, jornais, etc, começaram
então, como era visto que, era dito sempre que era algo que era incurável, para eles, para os pais, isso se
transformava numa espécie de, como eu diria, uma sentença, não é. O peso era de uma sentença. Era uma
sentença de um destino que vai daí para frente se ter com aquela criança que não era modificável. O que
fazia que eles, de repente, se afastavam da criança, como tal, não é, e começavam a se relacionar com a
doença, não é. Ele já não era o João, ele já não era o Felipe, era autista. E aí eles se relacionavam com

549
autista e com autista eles não sabiam se relacionar, não tinha como investir, obviamente, não é. Quer dizer, a
ferida que se criava não é, e dava a idéia como no próprio autismo era dito que a criança não reconhecia
ninguém, não tem afeto, não vai saber falar, não vai conseguir se desenvolver, então pra eles, de repente eles
perdiam a possibilidade de comunicação. Então, eles se colocavam na posição: “e agora, quê que eu faço,
como eu me comunico com meu filho? Me digam”, e aí o pedido que vinha pra nós era como eu faço, como
eu me comunico com meu filho, quê que eu faço com meu filho?” Não é, por que ele é autista, não é, sendo
autista eu não sei mais fazer nada, não é. Então, esse diagnóstico teve efeitos iatrogênicos nesse sentido de
“não sei mais o que fazer, me digam o que devo fazer”.(T8).

Os efeitos produzidos nos discursos dos profissionais no momento em que abandona-se este tipo de construção e
categoria identitária do ser “autista”, faz devolver a tais indivíduos o direito à eles “usurpado” de serem definidos, no interior
desses discursos, enquanto protagonistas da dimensão subjetivante de seres “humanos”, demarcando, um movimento
compartilhado que caminha no sentido de um “apagamento”, nas práticas discursivas, do uso de tal conceito diagnóstico. O
abandono do conceito e diagnóstico de autismo permite que, ao invés de descrever somente as “impossibilidades” as quais tais
indivíduos encontravam-se submetidos, trabalha-se para ampliar e reconstruir os discursos, tendo em vista a gama de
“possibilidades” que se abrem ao abandonar-se os pré-conceitos teóricos, e se voltar a enxergar ali um indivíduo, que, na sua
condição de outro, guarda suas diferenças e singularidades no seu sofrimento psíquico.
Podemos concluir ainda que os resultados provenientes das análises quantiqualitativas referentes à etiologia afetam
diretamente todo o movimento de desconstrução e reconstrução dos “entrelaces” de sentidos presentes nos discursos dos
profissionais do CPPL, encontrando-se aqui circunscritos no eixo temático denominado de “tratamento”, no que se refere ao
lugar ocupado pelos pais neste processo. O que confirma a premissa da qual partimos no início de nosso estudo, de que a
concepção teórico-etiológica a respeito do autismo influencia diretamente a concepção do profissional sobre o lugar ocupado
pelos pais no tratamento.
Vimos que, falar em um “lugar dos pais no autismo”, partindo da própria desconstrução deste conceito diagnóstico,
para os profissionais que compartilham de tal acento crítico, só se torna possível por intermédio da evocação de um discurso
histórico fundador (discurso de Kanner, 1943), de forma a efetuar uma certa “genealogia” que venha a reconstruir o contexto em
que os mesmos apareceram, num espaço e tempo histórico discursivo anterior, uma vez que questionam a utilidade e a
pertinência do uso do diagnóstico de autismo.
Uma das desconstruções presente nos discursos aqui analisados pode ser observada através de um
compartilhamento bastante evidente e crítico em torno do lugar dos pais enquanto culpados pelo sofrimento do filho, o qual por
muito tempo foi marcado pelas metáforas das “mães geladeiras” e dos “pais intelectuais”, tal como proposto por Kanner (1943).
Este movimento de desconstrução de um lugar de culpa posto sobre os pais, impulsionou a construção de novos
efeitos de sentido no interior destes discursos, no momento em que posicionaram-se contrários a lugares determinados e
definidos a priori, como o fez Kanner (1943), impedindo-os de formular proposições que remetam à característica de uma mãe
“x” e de um pai “y”, que juntos, constituiriam um filho “autista”, tal como afirmam os profissionais T1 e T14, entre outros. O
mesmo movimento que desconstrói esta categoria essencialista e pré-determinista do “ser autista”, desconstrói também
formulações categóricas em torno do “lugar dos pais” no autismo.
Assim, ao desconstruir e apagar dos discursos a marca identitária do diagnóstico de autismo, os profissionais deixam
emergir as mais diversas constituições de sujeitos singulares, com todas as suas particularidades e diferenças, evidenciadas
pela preferência em falar em ser “humano”, cuja noção inclui a referência a filhos, bebês, crianças, jovens e adultos que sofrem
psiquicamente. Desse modo, passa a não fazer mais sentido falar em um “lugar dos pais no autismo”, mas sim em um “lugar dos

550
pais em qualquer psicanálise de crianças”, o que permite esta nova construção de sentido presente nos discursos dos
profissionais que fazem o CPPL.
Uma vez que eles mantêm-se contrários e críticos a um lugar de responsabilização culpabilizante posto sobre os pais,
retomamos a formulação de outra pergunta de pesquisa: “de que forma estes mesmos profissionais situam o lugar de
responsabilidade dos pais frente ao sofrimento do filho”?
Conforme podemos demonstrar ao longo de nossas análises, estes dialogam e compartilham de um mesmo acento
avaliativo, o que nos permite concluir que os pais encontram-se num lugar de implicação em relação ao sofrimento do filho, o
que os coloca (aos pais) num lugar de extrema importância e participação no tratamento.
Desse modo, o discurso dos profissionais do CPPL não se situa em nenhum dos pólos dicotômicos que marcaram
durante décadas o lugar dos pais no autismo: seja num lugar de culpados, tal como formulado inicialmente por Kanner (1943) e
alguns psicanalistas, como Bettelheim (1987); seja num lugar de desimplicados, tal como formulado pelos teóricos organicistas
e comportamentalistas.
Ao contrário, a posição dos pais enquanto implicados no sofrimento do filho coloca-os num lugar de responsabilidade
pela via do “cuidado”. Esta nova construção de sentido permite concluir que os pais são capazes de cuidar de seus filhos que
sofrem, dentro de um espaço terapêutico no qual eles mesmos permitam-se serem cuidados, pois encontram-se igualmente em
sofrimento. E dessa forma, passando a construir conjuntamente esta demanda e/ou pedido de ajuda a si, e não apenas ao filho,
partindo do princípio de que nestes casos, o “ambiente” é que sofre, como afirma Winnicott (1997c), tal como sugerem e
compartilham os profissionais do CPPL em seus discursos.
O lugar de implicação frente ao sofrimento do filho constrói-se no “entremeio” de um embate entre a psicanálise e as
teorias comportamentalistas. Afasta-se, por um lado, das práticas discursivas psicanalíticas que colocavam os pais num lugar de
culpados, vistos como incapazes no exercício de “cuidar”, o que instala um movimento de rivalidade e disputa pelos cuidados
entre pais e terapeutas, afastando e dificultando, pelas resistências inconscientes, a presença ou o engajamento dos pais no
tratamento. E, por outro lado, afasta-se também das práticas discursivas que colocam os pais num lugar de desculpabilizados
e/ou desimplicados no sofrimento do filho. Pois, uma vez lidando com o autismo enquanto causa orgânica, como doença, os
pais passam do lugar de pais para o lugar de co-terapeutas e estudiosos sobre o autismo, o que, por sua vez, também os
afastam do lugar de simplesmente “pais” que cuidam de um “filho” em sofrimento, por mais difícil que seja lidar com esta
“estranha diferença”, com podemos analisar no trecho a seguir:

A dificuldade dos pais em se encontrarem diante de um filho, um semelhante, contudo, tão estranhamente
diferente, acaba por ocasionar um certo afastamento, fazendo com que a relação pais-filhos se torne bastante
comprometida: “então essa estranheza, ela, a tendência nessa dança, é de parar a dança, eu fico pensando”
(T1).

Esta nova construção de sentido presente nas práticas discursivas, pela qual se defende o lugar de implicação dos
pais no processo de constituição subjetiva de qualquer indivíduo, ditos “autistas” ou não, em “sofrimento psíquico” ou não,
compartilhada institucionalmente, apresenta uma série de conseqüências para o avanço terapêutico de pais e filhos, expressos
na forma de impasses e limites ao trabalho psicanalítico institucional por eles realizado.
Foi possível concluir que a relação estabelecida entre pais e terapeutas torna-se mais dificultada quando se trata de
um trabalho terapêutico, permeado por uma escuta psicanalítica, que sofre, no discurso do presente, os efeitos de um discurso
do passado (marcado pela culpa). Tal efeito é agravado quando associado ao próprio sentimento de culpa “ilógico” vivido por

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qualquer pai e mãe que tenha um filho com algum tipo de problema, principalmente se este for de ordem psíquica. O que impele
os pais a um movimento de afastamento e de resistência ao tratamento, visto que tais efeitos no discurso “reforçam” a culpa
sentida. O que por sua vez não acontece do mesmo modo nas relações entre pais e terapeutas que defendem uma causa
orgânica para o problema, pois, de alguma forma, o sentimento de culpa é “amenizado”, o que torna possível aos pais
participarem ativamente do tratamento proposto, quando a eles é “devolvido” o lugar aparentemente “perdido” de capazes de
cuidar, só que, agora, estando no lugar de co-terapeutas ou semi-profissionais, e não mais de “pais” que são de seus “filhos”.
Nesse sentido, as dificuldades e resistências inconscientes ao estabelecimento de uma aliança entre pais e terapeutas
constituem-se, no trabalho clínico com os pacientes, numa via de mão dupla, vividas e experimentadas no âmbito das relações
transferenciais aí instaladas pelo fantasma da “culpa” e da “rivalidade”. Daí a importância do profissional estar atento na sua
escuta analítica dos pais, de tais sentimentos inconscientes.
A dificuldade em avançar no trabalho com pais, de alguma forma sugere um certo descompasso existente entre teoria
e prática, ou melhor, entre o dizer e o fazer, no momento em que os profissionais avaliam a prática clínica por eles
experienciada. Segundo análises discursivas dos profissionais T8 e T12 por exemplo, por mais que se acredite na importância
do “meio ambiente” nos cuidados essenciais à criança, tal como postulado por Winnicott (1983a,1983b,1983c), o trabalho clínico
ainda é muito focalizado no cuidado à criança, quando deveria ser igualmente estendido aos próprios pais.
E, para finalizar este processo de desconstrução discursiva dos profissionais frente ao próprio título do trabalho em
questão, “o lugar dos pais” também deve ser reconstruído, de modo a ampliar o sentido da palavra “pais” à noção de
“cuidadores”, extrapolando assim os níveis do puro determinismo biológico.
Diante do exposto e, frente a esta importante tomada de distância dos profissionais do CPPL, no que se refere à
prática clínica desenvolvida junto aos pais, aqui entendida enquanto um discurso da ação, como vimos a partir do princípio
fundamentalmente dialógico da linguagem proposto por Bakhtin (2003; 2004; 2005) abre-se um longo caminho à construção de
novos, futuros e múltiplos sentidos, quando os mesmos são convocados a falar sobre o trabalho, no tempo presente.
E é neste momento, então, que podemos retomar a nossa última pergunta de pesquisa: “o discurso dos profissionais
do CPPL frente ao lugar dos pais mostra-se de modo homogêneo ou heterogêneo?” A resposta a tal questionamento fala
diretamente do lugar em que se posicionam intersubjetivamente os enunciadores neste processo de construções e
desconstruções de sentidos: posição do “eu”, que fala de um lugar permeado por acentos críticos e avaliativos mais individuais e
singulares, e a posição do “nós”, que fala de um lugar compartilhado coletivamente no processo de construção discursiva. Tais
posicionamentos intersubjetivos construíram um “entrelaçamento” harmonioso entre as diversas formas de enunciação, nos
quais o irrepetível, que remete ao que há de singular, diferente e heterogêneo nas práticas discursivas de cada um dos
depoimentos dos profissionais analisados, movimenta este “entrelaçar” das enunciações em diálogo permanente, como nos diz
Bakhtin (2004). Seja entre si, no compartilhamento dos posicionamentos aqui descritos entre os profissionais, seja através do
constante evocar, para o interior dos discursos, a presença de “outros”, num tempo passado ou presente, porém “eternizados”
pela memória discursiva que, uma vez evocada, entra num constante movimento plural de construções e renovações de
sentidos.
Para finalizar, assumimos e concordamos com as formulações de Tzvetan Todorov (1992) em prefácio à edição
francesa da obra de Bakhtin (2003) “Estética da Criação Verbal”, quando sugere que:

552
O trabalho do crítico comporta três partes. Num primeiro nível, trata-se do simples estabelecimento dos fatos,
cujo ideal, diz Bakhtin, é a precisão: recolher os dados materiais, reconstituir o contexto histórico. Na outra
extremidade do espectro situa-se a explicação por leis: sociológicas, psicológicas, até mesmo biológicas (cf.
Estetika, p. 343). Ambos são legítimos e necessários. Mas é entre eles, de certo modo, que se situa a
atividade mais específica e mais importante do crítico e do pesquisador em ciências humanas: é a
interpretação como diálogo, a única que permite recobrar a liberdade humana. O sentido é, de fato, esse
“elemento de liberdade que transpassa a necessidade” (ibid., p.410). Sou determinado enquanto ser (objeto) e
livre enquanto sentido (sujeito). Calcar as ciências humanas sobre as ciências naturais é reduzir os homens a
objetos que não conhecem a liberdade. Na ordem do ser, a liberdade humana é apenas relativa e enganadora.
Mas na ordem do sentido ela é, por princípio, absoluta, uma vez que o sentido nasce do encontro de dois
sujeitos, e esse encontro recomeça eternamente (ibid., p.342). O sentido é liberdade e a interpretação é o seu
exercício: este parece realmente ser o último preceito de Bakhtin (Todorov, Tzvetan. Prefácio à edição
francesa (1992) In: Estética da Criação Verbal, Bakhtin, 2003).

E toda esta transformação plural das práticas discursivas dos profissionais do CPPL, na forma de suaves, porém
seguros “entrelaces” de sentidos, não representou outra coisa senão, o real exercício desta liberdade humana de que nos fala
Todorov, num movimento que vem caminhando na direção de uma constante renovação de sentidos à própria existência
humana.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. [1979(2003)] Estética da Criação Verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes.

BAKHTIN, Mikhail. [1929(2004)] Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11ª ed. São Paulo, HUCITEC.

BAKHTIN, Mikhail. [1929(2005)] Problemas da Poética de Dostoiévski. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

BETTELHEIM, Bruno. (1987) A fortaleza vazia. 1ª ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes.

CAMLONG, André. (1996) Méthode d’analyse lexicale textuelle et discursive. Paris: C.R.I.C. & Ophrys.

CAVALCANTI, Ana Elizabeth; ROCHA, Paulina Schmidtbauer. (2001). Autismo: construções e desconstruções. São Paulo:
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KANNER, Leo. (1943). Autistic Disturbances of Affective Contact. Nervous Child, n. 2, p. 217-250.

MAINGUENEAU, Dominique. [1987(1993)] Novas Tendências em Análise do Discurso. 2ª ed. Tradução: Freda Indursky;
revisão dos originais da tradução Solange Maria Ledda Gallo, Maria da Glória de Deus Vieira de Moraes. Campinas, SP: Pontes:
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TODOROV, Tzvetan. (1981) Mikhail Bakhtine. Le principe dialogique. Paris: Seuil.

553
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WINNICOTT, Donald W. [1963(1983b)] Moral e Educação. In: WINNICOTT, Donald W O ambiente e os processos de
maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Tradução: Irineo Constantino Schuch Ortiz. Porto
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WINNICOTT, Donald W. [1963 (1983c)] Distúrbios psiquiátricos e processos de maturação infantil. In: WINNICOTT, Donald W O
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WINNICOTT, Donald W. [1966(1997a)] Três revisões de livros sobre autismo. In: SHEPHERD, R.; JOHNS, J.; ROBINSON, H. T.
(Orgs.) D. W. Winnicott - Pensando sobre crianças. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes
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WINNICOTT, Donald W. [1966(1997b)] Autismo. In: SHEPHERD, R.; JOHNS, J.; ROBINSON, H. T. (Orgs.) D. W. Winnicott -
Pensando sobre crianças. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 179-192.

WINNICOTT, Donald W. [1967(1997c)] A etiologia da esquizofrenia infantil em termos do fracasso adaptativo. In: SHEPHERD,
R.; JOHNS, J.; ROBINSON, H. T. D. W. Winnicott - Pensando sobre crianças. Tradução: Maria Adriana Veríssimo Veronese.
Porto Alegre: Artes Médicas, p. 193-196.

554
Escola: uma invenção da modernidade, mas ainda atual – a
construção discursiva da escola a partir de imagens

DUTRA, Isabela
(UFRGS)

Para contextualizar

Este texto tem o objetivo de conhecer as representações de escola de jovens do 1º ano e 2º ano do II Ciclo
(equivalente a uma 3ª e 4ª série dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental), de uma escola da rede pública municipal de Porto
Alegre/RS, a partir de imagens. Essas imagens, por sua vez, endereçam a determinados espaçostempos escolares — os termos
são escritos juntos, tendo como referência a obra de Nilda Alves “Imagens de escolas: espaçostempos de diferenças no
cotidiano” (2003), na qual a autora destaca a necessidade de superar a dicotomização do modo moderno de pensar. Diante
delas, os alunos, realizaram uma produção escrita, apontando suas análises acerca das mesmas. Essas produções foram
analisadas e a partir delas, foi possível identificar três diferentes representações sobre a escola contemporânea, os quais serão
apresentados no decorrer deste texto. Cabe destacar que essas representações estão vinculadas a discursos produzidos sobre
a escola moderna e que perpetuam nos dias de hoje.

Antes de iniciar (mas já iniciando)


Pensar a escola que temos hoje significa não apenas olhar para o contexto em que ela se encontra e em que nós nos
encontramos também, nem para os atores que dela fazem parte, nem para os sujeitos que dela esperam alguma coisa. O modo
de pensar e ver a escola contemporânea está arraigado a elementos que deram origem à invenção desta como instituição
social. Quando falamos ou criticamos as instituições de ensino, estamos atrelados aos discursos que produziram este
estabelecimento há quatrocentos anos. Ao alvorecer da modernidade diferentes elementos se deslocam, configurando uma nova
sociedade, a partir de um novo contexto e diferentes grupos sociais. Essa nova sociedade é marcada pelo surgimento do
modelo capitalista, rompendo com o modelo feudal de produção; o campo político é marcado pelo surgimento do Estado
moderno e para o controle deste estado, faz-se necessário o surgimento de uma nova classe, a burguesia, e com ela uma nova
concepção de mundo. Esta nova visão de mundo opera para uma revolução cultural, marcada pela racionalidade e laicização,
que surge com a expulsão dos jesuítas. Para essas novas luzes que surgem, é preciso que novos olhares as estejam
visualizando, e para isso emerge a necessidade da formação de um outro tipo de sujeito, capaz de operar neste novo mundo. O
sujeito moderno é guiado pelo princípio da racionalidade, que contribui para a formação de um sujeito centrado e autônomo,
sendo ele o centro das suas ações. Essa centralidade do sujeito da Modernidade, não permite a ele contradições, assim opera
no sentido dicotomizado de mundo: o bem e o mal, corpo e mente, teoria e prática, etc. Esta oposição binária fundamentou toda
a Modernidade. Esse “[...] sujeito racional, pensante e consciente” (HALL, 1997) devia então ser formado, ou melhor dizendo,
inventado. Nesse contexto torna-se difícil pensar a educação fora do predomínio da Razão, de conformidade com os cânones do
Iluminismo: “[...] a educação institucionalizada é um dos mecanismos pelos quais a Razão se instala e se difunde” (SILVA, 1994,

555
p. 155). Essa mudança que busca uma educação permeada pela racionalidade, marca uma virada pedagógica que segundo
Ariès (1981) estabelece o momento em que se dá o surgimento da escolarização, uma vez que:

A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. [...] Começou então um longo processo de
enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderam até
nossos dias, a ao qual se dá o nome de escolarização. (p.11)

Para que esta “maquinaria de transformação da juventude” (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992, p. 76) funcione, surge
a necessidade de uma figura que represente o caminho a ser trilhado, assim o professor passa a ser o detentor de todo o
conhecimento, sendo só ele, o capacitador, para um futuro melhor. A formação de um corpo de especialistas (jesuítas) será
controlada pelo Estado, e este, por sua vez, preconiza uma educação de acordo com as exigências da nova sociedade
moderna. Para que os enclausurados se “saiam bem”, ou seja, que se encaixem nas entranhas desta nova ordem, é preciso que
os professores cumpram bem sua função, controlando seus discípulos, assim, “o Estado espera do professor que se integre
numa política de controle dirigida a estabelecer as bases da nova configuração social” (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992, p. 82)
Ao fazer esta breve retomada da institucionalização do ensino, a qual se consolida ao final do século XVII, torna-se
imprescindível pensar os significados que a escola contemporânea tem produzido. Elementos que constituíram a base da nova
ordem pedagógica promulgada pela modernidade, fazem-se presentes na pós-modernidade, uma vez que se foram “perfilando
com o tempo para serem finalmente retomados e readaptados num novo contexto histórico pelos novos grupos sociais
dominantes” (VARELA E ALVAREZ-URIA, 1992, p. 92). Assim vemos agora uma outra sociedade, resultado desses
deslocamentos ocorridos, caracterizando assim um cenário de incertezas, dúvidas, indeterminações e liquidez (BAUMAN, 2001),
no qual há a produção de um novo sujeito descentrado.
A escola como sendo o espaço onde o poder e o governamento1 do sujeito fazem-se presentes, constrói no interior de
suas relações discursos que ditam o modo de ser e existir no mundo. Portanto não há como pensar a escola de hoje, sem
analisar o momento em que os discursos sobre ela foram produzidos. Dessa forma, as representações de escola que serão
apresentadas a seguir, as quais foram analisadas nesta pesquisa, não surgem de lugar nenhum, não estão aí porque estão. O
sujeito contemporâneo pensa a escola de hoje, a partir da racionalidade produzida há quatrocentos anos, que produzia os
discursos referentes à escola, a qual estava sendo produzida por esses discursos também. A partir disso então, são produzidas
algumas representações de escola, alguns modelos, vistos como ‘melhores’ ou ‘piores’, a partir da utilização de imagens.

Dos conceitos que perpassam


Neste item, procurarei trabalhar os conceitos que irei utilizar ao longo deste estudo, a fim de tornar um pouco mais
claro ao leitor, a perspectiva a que me proponho estar articulada. Para tanto utilizo o conceito de discurso de Michel Foucault
que
...gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma
realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar, por meio de
exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente
tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva.
(...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.
( 2009, p.54)

1O conceito de governamento deriva do conceito de governamentalidade, que pode ser entendido pela tentativa de criar sujeitos governáveis,
a partir do controle, normalização, padronização, moldagem de certas condutas das pessoas. (VEIGA-NETO, TRAVERSINI, 2009)

556
O discurso não deve ser analisado aqui como o que está sendo dito através da linguagem, como um conjunto de
coisas que atribuem significados a outras coisas. A questão aqui tratada, deve levar em conta em que circunstâncias esse
discurso foi enunciado. Ou seja, não se pode falar qualquer coisa sobre escola em qualquer momento. Há determinadas
condições e regras, criadas a partir de relações de poder que permitem que certos discursos sejam ditos e que permaneçam
como ‘verdades’. Assim os discursos são práticas que se constituem no interior de relações de poder Nesse sentido, Foucault
destaca que há
[...] uma espécie de desnivelamento entre os discursos: os discursos que “se dizem” no decorrer dos dias e das
trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou; os discursos que estão na origem de certo número de
atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para
além de sua formulação, são ditos e estão ainda por dizer (2009, p. 22).

O autor destaca que os discursos não são ditos por qualquer pessoa, nem em momentos histórico não datado. Há um
conjunto de regras que permitem e autorizam que tais discursos entrem em circulação. Dessa forma os discursos operam
através de técnicas e táticas disciplinares que tem objetivos determinados.
O conceito de representação aqui utilizado, não se refere a representação mental, mas sim a uma significação, um
traço, expresso “num texto literário, numa pintura, numa fotografia, num filme, numa peça publicitária” (SILVA, 2007, p.127). No
sistema de representação, são criados significados que produzem e interferem na constituição de pontos de vista, nesse sentido,
Hall (1997, p.15) afirma que “representar é usar a linguagem para dizer algo significativo ou representar o mundo de forma
significativa para outrem”. O termo linguagem aqui empregado, não se refere apenas a linguagem verbal ou escrita, mas sim às
diferentes formas de expressões, tais como a dança, as artes, a música, a poesia, enfim, a diferentes produções, as quais
trazem discursos, que produzem diferentes modos de ser, estar e fazer o/no mundo. Dessa forma, para Costa (2000):

[...] representar é produzir significados segundo um jogo de correlação de forças no qual grupos mais
poderosos [...] atribuem significado aos demais e, além disso, impõe a estes seus significados sobre
outros grupos. Essa política de representação, ou seja, essa disputa por narrar o outro, tomando a si
próprio como referência, como padrão de correção e normalidade é a forma ou regime de verdade em que
são constituídos os saberes que fomos ensinados a acolher como “verdadeiros”, como “universais” (p. 77-
78)

Portanto, as representações constituem a maneira como nos vemos, e tomando como referência este olhar (o eu), é
que são constituídas as representações do outro. Nesse sentido “ [...] representações são formas culturais de referir, mostrar ou
nomear um grupo ou um sujeito. Portanto as representações [...] dizem algo sobre esses sujeitos [...] caracterizam suas práticas”
(Louro, 1997, p.98). Assim a constituição do “outro” só é possível a partir da comparação com o “um”. Uma vez que, “um” e
“outro” estão ligados mutuamente, numa relação de interdependência.
Em relação à cultura visual, partilho da idéia de Hernández (2007, p.22) que se refere à cultural visual como um

[...] movimento cultural que orienta a reflexão e as práticas relacionadas a maneiras de ver e de visualizar
as representações culturais e, em particular, [...] às maneiras subjetivas e intra-subjetivas de ver o mundo e
a si mesmo,

nesse sentido, as representações visuais “[...] ensinam a olhar e a olhar-se.” (p.32). Ainda nesse campo ‘visual’, Cunha (2005),
traz o conceito de Pedagogias Visuais, explicitando como as imagens constituem os modos de ser, ver e pensar, assim
produzindo “efeitos de sentidos sobre as pessoas” (p.76)

557
O movimento cultural destacado por Hernández pode ser visto com uma “virada cultural” (VEIGA-NETO, 2003), a qual
pode ser entendida a partir de um deslocamento do conceito de cultura. Por muito a Modernidade destaca o termo cultura, como
sendo tudo aquilo de melhor produzido pela humanidade, como algo único e universal. O que se vê hoje é a cultura no centro,
mas não por ocupar uma posição privilegiada, e sim, de acordo com Hall (1997) por seu tudo aquilo que perpassa as nossas
vidas e as representações que fazemos desses acontecimentos. Atrelado ao conceito de cultura, temos a proliferação de
diferentes artefatos culturais como o rádio, televisão, propagandas, imagens publicitárias, slogans, peças teatrais, poesias, entre
outras formas de linguagem. Esses diferentes artefatos fazem parte do cotidiano escolar, uma vez que estão imersos nos
espaços propriamente ditos, como salas de aula, corredores, murais e etc, ou integrando e complementando as práticas
pedagógicas na sala de aula. Esses artefatos, segundo Cunha (2005) “[...] cumprem a função de representar, apresentar,
nomear, situar, identificar, etiquetar e traduzir tanto os sujeitos quanto os grupos sociais para outros grupos” (p.31). Abaixo trago
as imagens que foram utilizadas no estudo:

Dessa forma, a partir dos conceitos de discurso, representação cultural, cultura visual, artefatos culturais, entre outros
discutidos neste capítulo, exponho as análises feitas a partir das representações dos alunos.

“Sou inteligente graças a minha professora”2 – a verdade do especialista subjetivando o aluno


A primeira representação de escola destacada na pesquisa encontra-se nos registros dos alunos das quatro turmas
investigadas (B12, B13, B21 e B23), que correspondem ao II Ciclo, com idades entre oito e dez anos. Do número total de 87
alunos que participaram deste estudo, 38 na sua produção escrita, apresentaram a escola como sendo o único lugar em que se
pode aprender, além disso, apenas através do professor é que esse aprendizado se concretiza, possibilitando assim, um futuro
melhor, mais digno e com um emprego bom. Essa concepção de escola pode ser visualizada nos seguintes registros:

“Tem que aprender para ter um futuro muito, mas muito interessante, para se sustentar, para não passar fome. É com o estudo que a gente
consegue de tudo e muito mais. E o professor que nos ensina aquilo que a gente precisa” (Aluna B23, 10 anos – imagem A)
“Eu tenho pena daquelas crianças que não tem escola, e os pais não gostam também, mas fazer o que, se é assim, assim será. Eu aprendo
muitas coisas no colégio com os professores, mas é difícil, mas cada vez que a gente aprende mais, mais inteligente a gente fica, e os pais
ficam felizes e os professores também.” (Aluna B13, 8 anos – imagem B)
“Eu gosto muito de estudar, se eu não estudar eu vou crescer burra, mas como eu estudo, eu sou inteligente e é graças a minha professora.”
(Aluno B12, 8 anos – imagem A)

Quando se deu o surgimento da Escola Moderna, um corpo de especialistas foi formado e instruído, para ministrar as
aulas, com o dever de divulgar os conhecimentos e condutas corretas para o aluno “ser alguém na vida”. Esse discurso produziu
esse corpo de especialista, que ao mesmo tempo respondia a esse discurso, e hoje, passados mais de quatrocentos anos, esse

2 Fala de um aluno da turma B12 da escola investigada. Os títulos que aparecerão posteriormente, encontram-se em ítalíco por serem
extraídos das escritas produzidas pelos alunos.

558
corpo de especialistas, continua a deter o conhecimento necessário que deve ser ‘compartilhado’ com os alunos. Só através
desse conhecimento os alunos serão “alguém na vida”3 e terão um futuro “interessante”4.
Portanto o que cabe aqui não é perguntar “o que as crianças estão dizendo sobre a escola”, ou ainda “o que é isso ou
aquilo”, mas sim pensar, “como se formaram esses discursos que persistem até hoje nas representações que as crianças fazem
sobre a escola”.. Crianças pertencentes a uma sociedade globalizada, na qual há diversos meios de informação disponíveis em
espaços privados e públicos, com notícias, propagandas, informações sendo despejadas por todos os alunos, usufruem de
todos esses artefatos, mas ainda permanecem com velhas concepções, arraigadas a uma concepção de escola que não
apresenta possibilidades de desfazer essas amarras. A escola continua sendo o espaço no qual as verdades que são ditas,
devem permear toda a vida dos sujeitos ali em formação. Segundo Foucault (2003):

Entendo por verdade o conjunto de procedimentos que permitem pronunciar, a cada instante e a cada um,
enunciados que serão considerados como verdadeiros. Não há, absolutamente, uma instância suprema. (p.
233)

A escola como sendo o único lugar para se aprender e o professor com a verdade a ser dita é uma das representações
de escola que estão presentes nos discursos de alunos e alunas inseridos na sociedade atual, portanto permanecem velhos
discursos narrados por crianças “novas” 5.

“Na época as coisas eram muito rígidas e as crianças aprendiam melhor” – ordem e progresso: os limites do
enclausuramento.
Uma segunda representação de escola que surgiu a partir das análises dos registros faz menção à concepção de
aprendizagem, ligada à ordem, rigidez e espaço fechado. Dos 87 alunos, 21 trouxeram essa representação de escola. Cada vez
mais vemos as escolas organizando programas e atividades que possibilitem ao aluno conhecer outros espaços, como museus,
parques, ruas, exposições, etc. Ao se depararem com esse tipo de atividade, alunos e alunas demonstram grande interesse e
entusiasmo em participar. Alguns passeios propostos por professores tornam-se o principal assunto da sala de aula até a
chegada do grande dia. Tanta expectativa, tanta vontade em sair da escola para que? Para aprender coisas novas, conhecer
novos lugares, vivenciar diferentes experiências. Acredito que muitos professores podem pensar assim. Entretanto no estudo
aqui desenvolvido, o que se observa é um conceito de aprendizagem oposto ao conceito ensinoaprendizagem ativo, no qual o
aluno movimenta-se e desloca-se por diferentes espaços, tendo o contato com outras aprendizagens culturais. O que dá a idéia
de que as aprendizagens escolares são apenas aquelas desenvolvidas no espaço escolar. O que está fora dela não é vista,
compreendido como aprendizagem de conhecimentos, mas sim diversão. Nesse tensionamento entre as diferentes
aprendizagens, produze-se uma representação de escola “boa”, àquela em que o há certa rigidez nas aulas, em que a
aprendizagem só ocorre no espaço físico da sala de aula, dentro de uma escola (como a concebemos hoje, com prédios, muros,
janelas e portas). As falas seguintes exemplificam essas concepções:

“O lugar adequado para estudar é na sala de aula” (Aluno B23, 9 anos – imagem B)

3 Fala de uma aluna da turma B21 da escola investigada.


4 Fala de uma aluna da turma B23 da escola investigada.
5 O terno “novas” refere-se à faixa etária das crianças, compreendida entre 8 e 10 anos.

559
“A primeira imagem tem uma professora com a vareta na mão, e ela está ensinando os alunos a aprender alguma coisa. Minha vó me disse
que antigamente as crianças levavam nos dedos se não sabiam. Então eles estudavam mais para saber tudo” (Aluna B13, 8 anos – imagem A)
“A minha escola é boa, eu aprendo a ler, a escrever, a brincar, mexer nas coisas, é bem melhor. Tem ordem pra fazer as coisas. E
antigamente também era assim.” (Aluno B21, 10 anos – imagem A)
“Existem várias escolas: na primeira os meninos e as meninas sentam separados. E as classes estão na ordem. Na segunda é estranho. Eles
não estão na escola aprendendo. Tão na rua. É uma diferença que eu achei estranha” (Aluna B 12, 8 anos – imagem A e B)

Ao analisar os excertos acima extraídos das produções escritas dos alunos, chama atenção a lembrança trazida por
uma das alunas, ao referir-se a uma história que ouviu sobre as escolas de tempos passados. Diante de possíveis práticas
repressivas, os alunos obrigavam-se a estudar para ter um bom desempenho na escola. Fica claro que o que essa menina
propõe não é a volta de castigos físicos, mas alega que diante de tais atitudes, as crianças aprendiam mais e “iam melhor na
escola”6.
Escola continua sendo sinônimo de espaço escolar nos modelos arquitetônicos que temos hoje (prédio, sala de aula),
o que entra em contradição com as diferentes formas de organização em que a educação vem se propondo ser, ou seja,
desenvolvida em outros espaços. Os espaços não escolares tornam-se invisíveis no processo de ensinoaprendizagem. As
aprendizagens valorizadas são aquelas que emergem da escola, assim faz-se uma distinção entre as aprendizagens realizadas
no espaço da escola e aquelas fora da escola mesmo que sejam parte do currículo escolar como visitas a museus, não são
vistas como aprendizagens escolares. Mas será as aprendizagens ‘escolares’ uma oposição às outras aprendizagens? Além dos
muros da escola não há possibilidade para aprender? O aprender se restringe aos limites desse espaço prisional? Segundo
Foucault (1989):

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos
num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são
registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido
sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado,
examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto
do dispositivo disciplinar (p. 174-175).

Como bem destacado pelo autor, a escola exerce um poder de vigilância que está diretamente ligado a uma auto-
vigilância. Ou seja, no momento em que o aluno entra na escola, o detento na prisão e o louco no hospício estão sendo
constantemente vigiados, eles exercem a auto-vigilância para não correrem o risco de não cumprirem as regras e exigências
exercidas pelo poder. Nessa relação há um controle da conduta do sujeito, moldando-o de acordo com práticas, ditaduras e
modos de ser. Entretanto o espaço escolar continua sendo um espaço que desperta a vontade do aluno em estar lá. A
escola também é um espaço de desejo, de socialização. E esse mesmo aluno que tem prazer em estar na escola,
representa esse espaço e exige deste espaço uma ordem, uma certa rigidez e controle sobre suas ações. E ainda é só sob
essas condições e esses limites que o conhecimento é validado. O saber só é validado quando se desenvolve no espaço
institucionalizado.

“Na hora da prova ela vai errar” – tensões no uso das diferentes tecnologias
A terceira e última unidade analítica destaca a presença dos computadores nos espaços escolares. Em uma das
imagens utilizada nesse estudo, está presente uma menina com um mini computador, no qual há na tela uma operação de
matemática. Nessa imagem não há nenhum artefato cultural que faça menção à escola, apenas a operação de matemática.

6 Fala de uma aluna da turma B23 após a realização da produção escrita..

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Diante dessa imagem, 17 alunos destacaram nas suas produções que o computador e mais precisamente a tecnologia, é
contrária ao processo de aprender. Cabe destacar que na escola investigada há três salas de informática, a qual os alunos
têm acesso semanalmente.
As representações trazidas nesses registros mostram que através do computador, não há o exercício do
pensamento, apenas o exercício manual. Essa relação pensamento (mente) e exercício manual (corpo) traz o binarismo que
fundamentou toda a história da Modernidade. Dicotomizações como corpo e mente, teoria e prática, bem e o mal, fazia do
sujeito moderno alguém obrigado a posicionar-se diante de um dos lados. Fator que contribui para a caracterização desse
sujeito como sendo centrado e racional. Segundo grande parte dos registros dos alunos, os computadores servem para
brincar e “jogar joguinhos”7.

“Na imagem em que a menina está com a calculadora, ela não está aprendendo nada, quando ela tiver prova, ela vai errar” (Aluna B12, 8
anos – imagem C)
“A menina com o computador não está aprendendo nada, porque ela não está pensando” (Aluno B12, 8 anos – imagem C)
“A menina com o computador, na minha opinião, não está aprendendo alguma coisa que seja importante pra ela. O que vejo é que ela
está brincando, e na verdade devia estar aprendendo”. (Aluna B23, 9 anos – imagem C)

Essas falas revelam que os alunos, por mais inseridos que estejam no seu dia-a-dia, aparelhos de celular, mp3,
computadores, jogos eletrônicos entre outros artefatos, continuam arraigados ao pensamento de que o aprendizado só
ocorre a partir de alguns artefatos próprios do ambiente escolar: quadro, giz, caderno, livro didático, folhas com exercícios,
etc. Apenas aqueles artefatos que compõem a escola e mais precisamente a sala de aula, são úteis e indispensáveis para o
desenvolvimento do processo de aprendizagem.

PARA POSSÍVEIS FUTURAS ANÁLISES


Ao dar início à pesquisa, o caminho que muitos perseguem é o de chegar ao final e apontar o que foi feito, como
foi feito e o que isso produziu, ou seja, quais as conclusões deste estudo. Entretanto após um estudo, o que surge são
algumas possíveis considerações que possibilitam outras possíveis futuras análises. Chegar a uma conclusão única e
definitiva, contraria o discurso de “verdade” enunciado pelo próprio Foucault. Assim a pesquisa não se finaliza, mas mantém-
se aberta para novos olhares, para poder ser novamente escrita a partir de novos significados.
Assim, chega o momento desta pesquisa, em que é preciso apontar alguns dos achados que foram possíveis
serem feitos e ainda indicar outras possibilidades para se pensar e refletir em posteriores discussões. Nesse sentido,
percorrendo as representações que foram produzidas pelos alunos, observa-se três tipos de representação: a escola
associada ao espaço fechado; a verdade do professor subjetivando o aluno; o aprendizado relacionado aos artefatos
escolares – quadro, giz, caderno, livro didático. De acordo com essas três unidades infere-se que o “passado está
presente”8, ou seja, os discursos que produziram a escola na modernidade, persistem nos cenários escolares
contemporâneos e são valorizados pelo alunos. Esses elementos de crítica atribuídos à Escola Moderna – enclausuramento,
vigilância, controle e ordem, persistem nas representações de escola contemporânea e são apresentados como sinônimo de
um ‘aprender melhor’. Isso mostra que os artefatos culturais/escolares visíveis nas imagens têm forte poder de subjetivação
nos alunos na constituição de representações.

7 Fala de um aluno da turma B13 da escola investigada.


8 Fala da professora da turma B23, após a produção escrita dos alunos.

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A utilização de imagens para o desenvolvimento deste estudo mostra o que já vem sendo comprovado por outros
estudos, como por exemplo Cunha (2005), que as imagens têm grande poder de subjetivação, uma vez que constituem o
modo de ser, de ver e pensar na sociedade contemporânea. E ainda faz-se necessário destacar a velocidade com que as
imagens se propagam, circulam e percorrem diferentes espaçostempos. Aqui se torna interessante fazer uma relação com
os tempos de liquidez que Bauman (2001): tudo flui, desliza, percorre os cenários multifacetados, mas ao mesmo tempo em
que perpassam com rapidez, deixam marcas e constituem as identidades do sujeito contemporâneo, interpelado por
diferentes e diversos artefatos culturais.
Como destacado ao longo deste estudo, o foco desta pesquisa foram as representação mais recorrentes,
entretanto, acredito que seja importante, ou melhor, interessante e curioso, poder ter um olhar mais atento, às representação
menos recorrentes, ou seja, as fissuras. Pois o discurso, segundo Foucault (2006) se constói também nas rupturas e
descontinuidades. Apenas para dar início a essa conversa, destaco algumas representações de escola que surgiram a partir
das imagens trabalhadas: a primeira faz referência a imagem A, diante da qual um aluno registra que essa escola nunca
existiu, e ainda, destaca que a imagem foi inventada; outra fissura que merece um destaque, faz referência a imagem B, a
partir da qual 5 alunos, em sua produção escrita, trouxeram a frase “a escola a vida”9, fazendo menção às aprendizagens
construídas no dia-a-dia, nas mais diversas ações do cotidiano, as quais são muito importantes para ter um futuro bom, ou
como eles mesmo dizem, para ser alguém na vida, uma vez que na “rua se aprende muitas coisa que não se aprende em
nenhuma outro lugar”10.
Ao tentar finalizar em parte este estudo, gostaria de reiterar a validade em focar não só aquilo que mais aparece,
que é mais visível neste estudo e em todas as outras produções científicas, mas tentar focar também, com outras lentes
talvez, aqueles aspectos que menos apareceram, ou que foram-se tornando silenciados durante a narrativa da pesquisa.
Torná-los visíveis, contribui para que outros olhares, problematizações, reflexões e porque não tensões sejam analisadas.

REFERÊNCIAS

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9 Frase retirada do registro de cinco alunos.


10 Frase retirada do registro de um aluno da turma B23, de 9 ano.

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Licenciada em Pedagogia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É mestranda na mesma instituição junto ao
Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educação. Suas pesquisas atuais
abordam os das juventudes contemporâneas. É vinculada ao Núcleo de Ensino, Currículo, Cultura e Sociedade –
NECCSO/UFRGS. Email: bel.dutra@gmail.com

563
“A voz que clama no deserto”:
estudo do ethos discursivo no folheto evangélico
FABIANI, Sylvia Jussara Silva do Nascimento
(UFRJ)

Introdução

Este trabalho investiga o ethos discursivo: a imagem que se constrói pela “maneira de dizer” um enunciado.
Elemento da enunciação, o conceito de ethos “é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro”
(Maingueneau, 2008a, p. 17). A figuração dos mecanismos persuasivos no folheto evangélico percorre desde a retomada
do texto bíblico como um “fiador” prévio do discurso, passando pela indução de valores e julgamento moral de
comportamentos, chegando à difusão publicitária de ideologias e à promoção de instituições. O ethos se estabelece, pois,
sob múltiplas perspectivas, na busca pela adesão do interlocutor.
Seja com cunho religioso, didático ou publicitário, o folheto evangélico mostra um modo de ser, de agir, de estar
no mundo. Os ethé nesse gênero, assim, são instrumentos de caracterização discursiva, no desenvolvimento das cenas da
enunciação. Estudá-los é abranger a percepção sobre os significados inscritos no texto, na significação dinâmica do
discurso, na linguagem como (re-) dimensionamento do simbólico.

O ethos segundo Aristóteles

Para a Retórica Clássica, o conceito de ethos se definia por uma imagem de si que o orador construía, sob a
finalidade de sucesso de seu discurso: a adesão do auditório. Assim, “a prova pelo ethos consiste em causar boa impressão
pela forma como se constrói o discurso, a dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança”
(Maingueneau, 2008a, p. 13). Não entrava em primeira questão o julgamento da sinceridade do orador e da veracidade do
discurso em si, mas sim a capacidade de persuasão, por meio de uma imagem positiva de si mesmo, ligada não
necessariamente ao dito, mas à maneira em dizer. Pode-se notar que a perspectiva aristotélica já estabelecia uma
diferenciação entre o mundo real e o mundo discursivo.
Ao lado do ethos, a conduta discursiva do orador, Aristóteles estabeleceu o logos, a razão em si demonstrada por
argumentos no discurso, e o pathos, as paixões suscitadas no auditório pelo discurso, como as três bases de construção
discursiva. Já em Aristóteles se evidenciava a noção de que o orador deve ser capaz de perceber as virtudes e as paixões
valorizadas pelo auditório, moldando seu modo dizer conforme as especificidades de seu público. O ethos era, pois,
caracterizado como uma estratégia de persuasão.

[…] Como a virtude não é considerada da mesma maneira em todos os lugares por todas as pessoas,
é em função de seu auditório que o orador se construirá uma imagem, conforme o que é considerado
virtude. A persuasão não se cria se o auditório não puder ver no orador um homem que tem o mesmo
ethos que ele: persuadir consistirá em fazer passar pelo discurso um ethos característico do auditório,
para lhe dar a impressão de que é um dos seus que ali está (Maingueneau, 2008a, p. 15).

Sob a modulação que relaciona orador a seu auditório, o ethos, segundo Aristóteles, pode ser estabelecido a partir
de três perspectivas: a phronesis (prudência), a areté (virtude) e a eunoia (benevolência). A phronesis identifica o ethos sob
o prisma da ponderação, da sabedoria, estando o orador propenso a realçar o logos (a razão) em seu discurso. A areté

564
caracteriza a fala franca, vinculada à verdade sem moderações ou preocupação com as consequências de seu
posicionamento. A eunoia, por sua vez, liga-se à preocupação do orador criar uma imagem agradável de si mesmo, como
um benfeitor por meio da simpatia, da criação de uma cumplicidade entre orador e auditório – daí sua estreita relação com o
pathos (Monnerat, 2006, p. 133). O mérito do orador reside em este proferir seu discurso mostrando esses ethé, sem,
contudo, dizê-los, mas personificando-os, pela enunciação, de modo implícito.

A releitura do ethos pela Análise do Discurso

Em AD, o ethos não se relaciona somente à elocução de um orador: todo enunciado (escrito ou falado), por
pressupor a figura do enunciador na instância de produção discursiva, traz inscrito em si a imagem, a voz, o corpo e a
encenação desse enunciador – “é o próprio enunciado que fornece as instruções sobre o autor da enunciação” (Amossy,
2005, p. 14).
Sob a perspectiva dos conceitos aristotélicos, Maingueneau (2008b) identifica três aspectos da noção clássica de
ethos que se relacionam à visão teórica da AD:
1- o ethos pertence ao âmbito do discurso – é uma imagem do enunciador criada pela figuração discursiva, e não uma
imagem do locutor externa à fala;
2- o ethos é um processo de interação, visando à influência sobre o outro;
3- a noção de ethos é fundamentalmente híbrida, pois é um comportamento socialmente avaliado inserido em uma situação
de comunicação precisa, e, ao mesmo tempo, integrada a uma conjuntura sócio-histórica determinada (Maingueneau,
2008b, p. 63).
Maingueneau (op. cit.) substitui a noção de voz para a de tom, para abarcar tanto o discurso falado como o
escrito. Para esse teórico, é pelo ethos que o enunciador confere a si e ao destinatário um status, que legitima um dizer.
Segundo o autor, o enunciador dispõe, sob uma liberdade relativa, dentro de uma situação comunicativa, histórica e
socialmente delimitada, de variadas possibilidades que a formação discursiva lhe oferece para a caracterização do ethos.
O tom do discurso, segundo Maingueneau (1997), associa-se a um caráter e a uma corporalidade. O caráter
relaciona-se aos traços que o destinatário atribui à figura do enunciador, devido à maneira de dizer deste. Nas palavras do
autor, “não se trata aqui de caracterologia, mas de estereótipos que circulam em uma cultura determinada” (op. cit., 47). A
corporalidade diz respeito à inscrição do corpo do enunciador no discurso. Este corpo “não é oferecido ao olhar, que não é
uma presença plena, mas uma espécie de fantasma induzido pelo destinatário como correlato de sua leitura” (id., ibidem).
Percebe-se, sob esse aspecto, a importância do destinatário para construção do ethos discursivo, visto que é sob a ótica de
um ouvinte/ leitor, interpretante, reconstrutor do discurso, que esse ethos influencia no jogo persuasivo. Daí salientar a
diferença entre o ethos visado (aquele a que o locutor real se propôs a incutir no texto) do ethos produzido (a percepção da
imagem do enunciador pelo destinatário).
O ethos se estabeleceria como um “fiador” do discurso, implicado em uma encenação de um “mundo ético”,
ativado pela leitura. Sob tal perspectiva,

[...] esse ethos recobre não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e
psíquicas ligados ao 'fiador' pelas representações coletivas estereotípicas. […] Mais além, o ethos
implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através
de um comportamento. O destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações
sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para
confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo dinâmico, a mocinha romântica...
(Maingueneau, 2008a, p. 18).

565
Observe-se ainda que, em AD, o ethos efetivo resulta de variados fatores: do ethos pré-discursivo (imagem
extradiscursiva do locutor construída pelo destinatário), do ethos dito (fragmentos textuais em que o enunciador evoca a
própria enunciação) e o ethos discursivo. Maingueneau (ibidem, p. 19) ilustra essa dinâmica da construção do ethos efetivo
na figura 1. As setas duplas ilustram que há interação entre os elementos.

ETHOS EFETIVO

ethos pré-discursivo ethos discursivo

ethos dito ethos mostrado

estereótipos ligados aos mundos éticos


Figura 1. Esquema da construção do ethos efetivo

O conceito de gênero O gênero discursivo folheto evangélico

A noção de gênero do discurso se relaciona ao princípio de que a linguagem é estabelecida como


prática social, isto é, como um fenômeno dialógico. Nas palavras de Bakhtin (2003: 265), “a língua passa a
integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados
concretos que a vida entra na língua”. Um gênero, sob tais condições, se caracteriza por ser um conjunto de
convenções linguísticas sob certa estabilidade – uma constante de padrão de uso, permeada por uma
historicidade e modelada conforme uma situação de uso. A recorrência de situações similares em um grupo
social promove a instauração e a confirmação do gênero discursivo.

Essa representação é um construto social, intersubjetivo, baseado nos esquemas de


situações que construímos a partir de nossa experiência social, em termos de eventos,
participantes e linguagem pertinentes. Essa tipificação de situações pede respostas retóricas
tipificadas que assim se tornam o que se pode chamar de gênero (Motta-Roth, 2002: 78).

Um gênero se fundamenta, em primeiro aspecto, por fatores relacionados à interação comunicativa. Como
esclarece Marcuschi (2002, 29), “quando dominamos um gênero [...], não dominamos uma forma linguística e sim uma
forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares”. Afirmar que as formações
genéricas se justificam primordialmente por suas realizações sociais não é, entretanto, a defesa de que um
determinado gênero não apresente uma corporeidade linguística recorrente que o caracterize. Em verdade, a
estrutura linguística, muitas vezes, está associada de tal modo ao gênero, que aquela lhe confere uma
plasticidade própria, de tal forma arraigada ao padrão genérico, que essa relação passa a ser apreendida como
intrínseca ou indissolúvel.
Segundo Bazerman (2005), as convenções genéricas vinculam-se a estereótipos de situações
comunicativas. Por esse motivo, os gêneros tendem a funcionar como espécies de “macro-signos” no jogo
da interação verbal, uma vez que o emprego de enunciados padronizados permite identificar, com maior

566
facilidade, o que se almeja realizar pela ação do discurso. Na visão do autor, os gêneros são identificados
como

[...] tão somente os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados por elas próprias e
pelos outros. Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais
sobre os tipos de fala que as pessoas podem realizar e sobre o modo como elas os realizam.
Gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às
outras suficientemente bem, para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas
a seus propósitos básicos (Bazerman, 2005, p. 31).

Os gêneros são definidos como modelos, tipos padronizados que corporificam a interação verbal. No
entanto, ainda que se constituam como formas pré-determinadas, os gêneros discursivos não são moldes
estáticos, inflexíveis, invariáveis; como todo fenômeno comunicativo, eles estão sujeitos a serem reestruturados
pela interferência da situação linguageira. Nas palavras de Marcuschi (2002, 19), os gêneros são “eventos
textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos”.
As convenções genéricas são ações que relacionam homem, língua e discurso, de acordo com as
verdades de um grupo social. Compreender os mecanismos formais e, principalmente, ideológicos que
orientam esses padrões de comunicação é inserir-se na rede simbólica que dimensiona e sustenta as
crenças e os valores da sociedade. Aprender, conscientemente, a utilizar os gêneros textuais é preparar-se
para questionar, reconstruir e, inclusive, manipular esses mesmos valores e crenças.

O gênero discursivo folheto evangélico

De um modo geral, o folheto – assim como o, panfleto, o cartaz e o outdoor, por exemplo – são classificados como
suportes textuais voltados para a publicidade. Submetidos ao domínio discursivo publicitário, o suporte assume papel
efetivo na escritura dos significados textuais. Em tal domínio, texto e gênero, muitas vezes, submetem-se ao suporte,
explorando as possibilidades de criação discursiva que este último lhes oferece – o que pode ser um indício da instabilidade
do gênero anúncio publicitário (Laurindo, 2007, p. 62). Ainda que seja inegável que a forma material do folheto evangélico
seja importante para sua projeção como (inter-) discurso, esta classe de folheto apresenta especificidades sociodiscursivas
que lhe permite a caracterização como gênero do discurso.
O gênero folheto evangélico é a materialização ideológica de uma comunidade específica: as congregações
religiosas intituladas como evangélicas – l denominação dada às igrejas surgidas a partir da Reforma Protestante (século
XVI); os ramos originais do protestantismo foram o Luteranismo, o Calvinismo e o Anglicanismo. Outros grupos surgiram
posteriormente, como os batistas (século XVII), os metodistas (século XVIII), os pentecostais (século XX) e os
neopentecostais.
Os princípios doutrinais desses grupos se baseiam nos pilares da Reforma Protestante, citados a seguir:
1. Sola Scriptura (somente a Escritura): a Bíblia é a única autoridade para todos os assuntos de fé e prática;
2. Sola Gratia (salvação somente pela Graça): a salvação é pela graça de Deus apenas. A graça de Deus em Cristo não é
somente necessária, mas é a única causa eficiente da salvação;
3. Sola Fide (salvação somente pela Fé): a justificação é pela graça somente, através da fé somente, por causa somente de
Cristo;
4. Solus Christus (Somente Cristo): a salvação é encontrada somente e unicamente em Cristo. Sua vida sem pecado e
expiação substitutiva são suficientes para a justificação e reconciliação com Deus o Pai;

567
5. Soli Deo Gloria (glória somente a Deus) - a salvação é de Deus, e foi alcançada por Deus apenas para Sua glória.
Por ser um folheto, o gênero sob enfoque é construído sob forte a diretriz publicitária. Ao ponto que a editora se
encarrega de configurar a mensagem a ser divulgada pelo folheto, a instituição religiosa legitima o texto, geralmente sob a
forma de um carimbo, inserindo-se no corpo textual e divulgando-se ao público – em todos os folhetos do corpus, há, no
verso, um espaço em fundo branco, justamente destinado para a identificação da instituição religiosa divulgadora.

A organização discursiva do folheto evangélico o especifica frente a outros gêneros do discurso publicitário. A
característica fundamental é a retomada do texto bíblico, sob a interpretação ideológica da doutrina evangélica. Geralmente
essa interpretação é fundamentada em, pelo menos, um dos cinco pilares da Reforma Religiosa, citados anteriormente. Ora
a fonte bíblica é implantada para confirmar a mensagem do folheto como um todo, ora o texto-base é objeto de explicação.
A referência ao texto bíblico pode se dar por meio da citação direta (“O Senhor olha desde os céus e está vendo a todos os
filhos dos homens. Do lugar da sua habitação contempla todos os moradores da terra.”), ou por menção a figuras
(personagens, cenários) que inscritos no texto-base (“Deus”, “inferno”, “demônios”, “Jesus”).
Outra característica do folheto evangélico é a utilização de imagens, geralmente junto ao título do texto, ilustrativas
da temática a ser desenvolvida. Pela conjugação entre o visual e o linguístico na construção do discurso, as imagens no
folheto evangélico, além de ilustrarem a temática textual têm a função de aproximar o leitor do universo discursivo.

Breve comentário a respeito do corpus

Para delimitação do objeto de estudo, optou-se por analisar dez folhetos evangélicos de uma única editora
(Sociedade Bíblica Ebenézer), desvinculada de qualquer instituição religiosa, isto é, sem a marcação por carimbo no verso
dos folhetos. Essa decisão teve como objetivo controlar as fontes locutoras dos textos, evitando, assim, uma análise
desfocada pela amplitude de elementos inseridos na locução real dos folhetos (editoras, igrejas, pregadores e
destinatários), bem como uma impressão de julgamento moral das instituições difusoras do gênero.
Pela facilidade de acesso ao material de pesquisa, o corpus foi selecionado pela internet. Dessa maneira,
obtiveram-se maiores dados de uma mesma fonte editorial – a distribuição pública dos panfletos não proporciona uma
coleta equilibrada de folhetos de diferentes editoras. Mantém-se clara a ideia primeira de que os folhetos escolhidos foram
originalmente elaborados para distribuição pública, visto todos eles apresentarem o espaço em branco, no verso, destinado
à marcação da instituição religiosa distribuidora. A opção pela editora Sociedade Bíblica Ebenézer se justifica tão somente
por ela mesma denominar seus objetos editoriais como folhetos (o gênero é identificado e nomeado pela própria
comunidade discursiva) e pela facilidade de encontrá-los pela internet1.

O ethos no folheto evangélico: análise do corpus

A imagem do evangelizador, desejoso de cumprir seu papel de proclamador da revelação cristã, inicia o
estabelecimento de um contrato de comunicação (Charaudeau & Maingueneau, 2006, p. 130); ele propõe ao interlocutor a
receber a mensagem, pois ela traz a “Palavra”; o evangelizador cumpre o ensinamento de Cristo – “Ide por todo o mundo e
pregai o Evangelho a toda criatura” (Marcos, 16: 15). O interlocutor, auxiliado pela imagem prévia do pregador, ao ler o título
da mensagem e visualizar a ilustração do folheto, inicia a construção de um ethos efetivo. Embora essa mise-en-scène (id.,

1Disponível em http://usielbarreto.multiply.com/photos/album/41/Folhetos_Ebenezer. Acesso em Dezembro de 2010.

568
ibidem., p. 95) auxilie na identificação do ethos no gênero enfocado, esta pesquisa, seja por seus objetivos ,seja por suas
limitações, investiga o ethos discursivo, inscrito na trama textual do folheto.
A ilustração no folheto concretiza a temática a ser desenvolvida verbalmente e aproxima o destinatário ao
discurso. A ilustração, espécie de alegoria visual, delineia os primeiros traços do ethos discursivo. O ethos explicita, revela
sua temática, ao “fotografar” uma realidade, construída pelo e no discurso. Ele fotografa o sofrimento alheio (o homem
preso, o olhar solitário do idoso, a degradação pela doença) e a felicidade dos “eleitos” (a bem-aventurança dos que
assumem o evangelho: a felicidade dos jovens puros). Ao mesmo tempo em que o ethos enquadra realidades discursivas,
ele revela sua posição, sua gestualidade e movimentos no espaço discursivo: ele adentra no psicológico da imagem que faz
de seu interlocutor, alcançando seus supostos alegrias e sofrimentos; desvenda o ambiente infernal; caminha pela glória
eterna. Seu corpo e sua percepção são plenos, onipresentes e oniscientes, como a própria figura divina.
O ethos continua a se inscrever por meio dos títulos textuais. Nesses, perguntas retóricas cumprem a função de
inserir o interlocutor no fio discursivo, aproximando-o da imagem do enunciador, por meio de uma suposta interpelação: “O
que acontece com quem morre?”, “Como um jovem pode ser puro?”, “Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas?”,
“Como sair do fundo do poço?”. A aproximação se revela máxima no título ”Será que Deus está me vendo?”, no qual o
pronome pessoal oblíquo estabelece a fusão entre as figuras do enunciador e do enunciatário/destinatário.
Perguntas retóricas são empregadas para o cumprimento de uma função didática (ethos da Phronesis), uma vez
que o enunciador não tem realmente aquelas dúvidas – ao longo do texto, todas as respectivas respostas são
apresentadas. Essa tentativa de aproximação gera a imagem de um enunciador amigo, que busca auxiliar o próximo, numa
relação de cumplicidade (ethos da Eunoia). Ressalta-se, porém, que tal aproximação se desenvolve a partir de um eixo
vertical, revelando uma assimetria: o enunciador sempre se estabelece a partir de uma superioridade frente o interlocutor,
seja por ser o eleito para levar a “Boa Nova”, seja por deter um conhecimento a passar ao outro.
Outros títulos se constroem pela implementação de uma verdade absoluta, sob a perspectiva do direcionamento
discursivo, a ser explicada ao longo do texto: “Deus entende você”, “É mais fácil crer em Deus do que no médico”; “Três
razões para ir à igreja”. Nesse aspecto, o ethos se mostra como o sábio, transmitindo confiança ao próximo (ethos da
Phronesis).
No título “Sorria, você está sendo filmado”, o ethos se revela irônico, pelo emprego jocoso dessa frase, e, em
contraponto, pela dura advertência, desenvolvida no texto, de que não se deve ter a ilusão de que é possível esconder a
verdade dos “olhos do Senhor”. Interessante a aproximação do enunciador em direção ao seu interlocutor, ao tentar
tranquiliza-lo: “Mas fique tranquilo. Não há nada perdido”. Ao mesmo tempo que o ethos se apresenta sob a face
ameaçadora e justiceira de Deus, ele acalma e conforta seu “próximo”. Há uma espécie de intimidação inscrita sob um tom
amigo; algo implícito como “sou capacitado a dizer que você vai ser condenado, mas posso lhe mostrar a salvação”, ou
ainda “faça o que digo, para se salvar; ou estará eternamente condenado”. Essa polarização é explicitada pela referência
equilibrada tanto a elementos figurativos ligados ao bem (perdão, salvação, Palavra, Jesus, Deus), quanto ao mal (pecado,
inferno, demônios, diabo, Satanás).
O jogo de ameaças implícitas, de opções ilusórias que, em verdade, conduzem a uma única alternativa em
verdade aparece também ao longo de outros textos, como em “A escolha é sua: um futuro melhor e um presente mais
saudável ou o fracasso que você tem visto em tantos que estão ao seu redor”. De fato, não há opção alguma a fazer na
situação construída pelo discurso, mas sim uma ordem implícita, inscrita sob tom de ameaça.
A interpelação ao enunciatário aparece em todos os textos. Suas marcas linguísticas são as seguintes:
a) pronome de tratamento “você”. Diferente do texto bíblico tradicional, marcado pela referência ao outro como “vós”,
marcando a formalidade do texto religioso, o enunciador opta pelo pronome coloquial em terceira pessoa, sinalizando

569
intimidade e informalidade: “Procure a igreja. Com certeza ali você encontrará gente amiga que estará lhe ajudando a
recomeçar.”;
b) pronomes possessivos cujo referente é o interlocutor: “Ele entende seu coração”;
c) emprego de formas verbais no imperativo: “Experimente fazer isto e veja o resultado”. O uso do imperativo flutua entre as
forças elocutivas de ordem a pedido, de mandamento a sugestão, revelando a face ambígua do ethos no folheto evangélico.
A organização discursiva no folheto evangélico, muitas vezes, assemelha-se ao discurso didático. As perguntas
retóricas se prolongam no corpo textual “E a vida? A alma? O que acontece com ela?”; “É possível escapar desta
situação?”. Tal estratégia persuasiva é muito usada nos discursos didático e religioso, em que a pergunta motiva e direciona
a percepção do outro. É uma maneira de o ethos se inscrever entre as dúvidas das pessoas comuns e entre a verdade
revelada pelas respostas dos sábios.
Outra estratégia didática é a utilização de silogismos e suposições exemplificadores como recursos de
esclarecimento, geralmente sob a forma do esquema “se a = c, e se b = a, então b = c”. Desdobrando o esquema sobre um
dos textos,
● se a = c: “(...) fiz uma oração e pedi sua [de Deus] ajuda. No dia seguinte estava livre milagrosamente”;
● e b = a: [enunciador e enunciatário têm a vivência do estar “preso” em uma “cadeia]”;
● então b = c: “(...) ore agora a Jesus e peça para ele lhe ajudar. Faça isso de coração e, com certeza, você irá comprovar
que esta história ainda acontece em nossos dias”.
Outro silogismo está em “Se você quer ser um atleta, precisará treinar. Se pretende se tornar um artista, além do
talento, terá que praticar. Para se conseguir qualquer coisa é necessário batalhar. Da mesma forma, para ser puro, é
preciso observar a Palavra de Deus”.
As suposições exemplificadoras também estabelecem analogias entre os componentes do fio discursivo,
revelando a faceta metódica do ethos. No folheto “Carta do além”, a carta escrita pelo diabo não é uma realidade dentro do
discurso: “Esta carta é uma peça de ficção”; mas ilustra uma verdade – “Mas seu conteúdo é verdadeiro” – a ser
compreendida e aceita: “Se você não gostou do que nela está escrito, vai gostar menos ainda de ir para o inferno”. Esta
última frase vagueia entre um aviso e uma ordem, delineando uma figura tanto conselheira quanto autoritária.
Marcas da gestualidade detalhada, minuciosa e precisa do ethos estão na utilização de marcadores sequenciais
em suas explanações: “O primeiro passo é renunciar a tudo o que o diabo está lhe oferecendo. Em seguida busque a
Jesus Cristo de todo o coração”. A própria organização discursiva é feita passo a passo, como orientada por um manual:
uma situação introdutória, depois a reflexão baseada em um julgamento moral, justificado no texto bíblico, e uma conclusão,
sempre guiada para a aceitação da “Palavra”. Verbos típicos do discurso didático, sob função interpelativa, auxiliam a
marcação dessas sequências: “Entendeu?”; “Imagine”; “Experimente”, “[...] veja”; “Procure”.
Nessa linha de raciocínio, não poderia, pois, existir melhor livro didático do que a própria escritura: “A Bíblia é o
livro que traz mais informações sobre o assunto”; “A Bíblia diz”; “A Bíblia oferece a resposta”; “A Bíblia afirma”. O próprio
Mestre, Jesus Cristo, é citado como causa e justificativa aos ensinamentos do enunciador profeta-professor: “Como ele
mesmo afirmou”; “Foi ele, mesmo quem afirmou em João 6: 37”. Desse modo, o ethos surge como a figura do missionário,
sob a incumbência de revelar o evangelho e ensinar os mandamentos de Deus, ao ser o eleito para explicar a mensagem
divina.
O texto bíblico, no folheto evangélico, geralmente não é narrado, mas citado, recolhido integralmente de sua fonte,
em todos os folhetos analisados. O ethos se caracteriza como um difusor da mensagem divina; não a dissolve em sua
enunciação, como seu autor, nem se sobrepõe a ela, como um narrador em terceira pessoa. Se a Bíblia é o motivo e a
justificativa de toda a sua fala, esse motivo e justificativa devem figurar em um outro, pois a visão do ethos não dever ser

570
compreendida como uma perspectiva parcial de um ser comum, subjetiva e egocêntrica, mas sim como o reflexo da visão
plena, acessível somente pela perspectiva divina. Daí a alegoria da “voz que clama no deserto” (João, 1: 23): o ethos se
elege como o grande profeta, o escolhido para levar a Boa Nova ao povo e “aplainar os caminhos para o Senhor”.
Entrelaçado ao discurso publicitário, comprometido em divulgar ao próximo a mensagem do Evangelho e uma
ideologia e instituição religiosas em busca de novos fieis, o ethos, no folheto evangélico, está relacionado aos conceitos de
cumplicidade (Eunoia) e à sabedoria (Phronesis).

6 CONCLUSÃO

O ethos discursivo, no folheto evangélico, é construído frente às imagens do evangelizador, pronto a ensinar os
caminhos da salvação. No entanto, o enfoque religioso divide espaço à função publicitária de divulgação de uma ideologia
religiosa, bem como de promover a instituição. O ethos não só deve proclamar a “Boa Nova”, mas também ser capaz de
atrair fiéis à igreja.
Sob método didático, o ethos se delineia como o bom pastor, o benevolente, pronto a guiar os desgarrados ao
caminho da salvação. Seu discurso caminha entre a pregação e o ensino, visto que o ethos se posiciona como o ungido, “o
maior entre os filhos das mulheres” (Mateus, 11: 11), o único eleito a julgar, a alertar, a repreender, a resgatar os que
desviaram do caminho de Deus. Seu tom de voz, seu corpo e sua gestualidade se enquadram sob a perspectiva do bom
samaritano, pronto a ajudar os necessitados, caminhando entre o ethos da Eunoia e da Phronesis.

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Currículo da Autora

Sylvia Jussara Silva do Nascimento Fabiani

Bacharel, licenciada, especialista, mestre e doutoranda em Língua Portuguesa. Professora de Primeiro e Segundo
Segmentos do Ensino Fundamental (Prefeitura Municipal de Duque de Caxias).

E-mail: sylviabronquinha@ig.com.br

572
Campos semânticos e publicidade: uma perspectiva
discursiva

FADUL, Barbara Ferreira


(UFRJ)

1 INTRODUÇÃO

O discurso publicitário tem inspirado importantes pesquisas na área da ciência da linguagem. Tamanha atenção
dos estudiosos deve-se ao fato de que a publicidade seja talvez a mais evidente intersecção entre o material linguístico e o
imaginário social. Por serem os anúncios sempre direcionados à grande massa, sua análise recupera, por meio da
linguagem, construções culturais e sociais presentes no âmago de cada organização coletiva em determinado período da
história.
Neste artigo, apresenta-se um estudo sobre campos semânticos presentes em propagandas direcionadas à
mulher e veiculadas pela revista feminina Cláudia entre a década de 60 e a primeira década de 2000. Objetiva-se, por
intermédio de uma análise discursiva dos anúncios, revelar as representações sociais por que passou a mulher no
imaginário coletivo ao longo de cinco décadas.
As escolhas lexicais que constituem um discurso projetado para atingir as mulheres refletem os campos
semânticos relacionados ao gênero feminino. Dessa forma, analisar tais campos semânticos em anúncios de diferentes
períodos históricos pode revelar os papéis representacionais da mulher que figuraram no imaginário social de uma época
determinada. Pretende-se com este estudo, portanto, reconstituir, a partir da análise das escolhas lexicais presentes em
anúncios publicitários direcionados ao público feminino, as projeções identitárias diversas por que passou a mulher no
imaginário social durante o período em análise.

2 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Para embasar o presente estudo, conjugaram-se orientações teóricas integrantes do discurso – semiolinguística –
e da semântica – campos semânticos. As duas perspectivas se pautam na inscrição de fatores socioculturais no material
linguístico.
A semiolinguística, de Patrick Charaudeau (1996; 2005) concebe a significação discursiva como resultante da
interdependência do componente verbal – por operar com material linguístico – e do componente situacional – por operar
com material psicossocial. Ao relacionar a dimensão linguística à situacional, essa perspectiva teórica lança um olhar
cuidadoso para o reflexo do elemento social na organização interna da linguagem.
Charaudeau (1996; 2005) define o ato de linguagem como uma encenação na qual os participantes da troca
comunicativa são levados a obedecer a um contrato, uma espécie de rito que exige o cumprimento de regras embasadas
em princípios construídos socialmente e partilhados pelos parceiros de tal acordo.
A validade da interação depende do atendimento às condições impostas nesse contrato. As possibilidades do
‘dizer’ são sobredeterminadas por lugares sociais ocupados pelos interlocutores. Quando uma pessoa, por exemplo,
pronuncia “quarto” ou “quatro” ao entrar em um elevador, a situação comunicativa poupa quaisquer contextualizações, o
ascensorista já espera uma indicação de andar e dizer o número é o suficiente para que a comunicação se estabeleça, isto

573
é, para que o destino do elevador seja o andar indicado pelo número: é o contrato comunicativo passageiro/ascensorista.
Em outros contextos, pronunciar somente “quatro” não significaria da mesma maneira. Em uma lanchonete que designa
seus pratos por números, “quatro” significaria o pedido de uma refeição específica. Ninguém pronunciaria “quatro” em um
elevador esperando um lanche, pois infringiria as regras daquele contrato e não haveria comunicação.
Percebe-se que as imposições situacionais sobredeterminam, portanto, as restrições discursivas, que diz respeito
aos comportamentos linguageiros esperados quando os dados do quadro situacional são percebidos e reconhecidos.
Configuram-se, assim, duas dimensões constituintes do contrato de comunicação: uma externa à atividade linguageira,
resultante das características próprias à situação de troca; e uma interna, que resulta das características discursivas
decorrentes da situação. (Charaudeau, 2006, p. 68).
Segundo essas dimensões interna e externa que permeiam todo ato de linguagem, cada parceiro da troca
comunicativa – emissor (EU) e receptor (TU) – é desdobrado em dois sujeitos. Na dimensão externa do ato de linguagem –
a situacional –, atuam pessoas reais, com identidade psicossocial: o sujeito comunicante (EUc) e o sujeito interpretante
(TUi). Na dimensão interna – a discursiva –, por sua vez, atuam as pessoas fictícias do discurso, atores sociais elencados
na encenação discursiva para representar papéis exigidos pela vida pública: o sujeito enunciador (EUe) e o sujeito
destinatário (TUd).
Acrescenta Charaudeau (2008, p. 44) que um ato de comunicação não é a simples produção de uma mensagem
que um emissor envia a um receptor. Para ele, todo ato de linguagem é “inter-enunciativo entre quatro sujeitos (e não 2),
lugar de encontro imaginário de dois universos do discurso que não são idênticos”. Isso se dá porque, na comunicação,
tanto o sujeito comunicante como o interpretante, presentes no quadro situacional, projetam, ambos, imagens discursivas –
seus papéis sociais de enunciador e de destinatário. No ato de linguagem, portanto, os participantes psicossociais – (EUc) e
(TUi) – transformam-se em projeções discursivas – (EUe) e (TUd). Em outras palavras, o sujeito-comunicante e o sujeito-
interpretante são seres sociais, ao passo que o sujeito-enunciador e o sujeito-destinatário são seres de fala.
Oliveira (2001, p. 28) propõe, a partir desse desdobramento apresentado por Chauradeau, a existência de “dois
eus enunciadores”, um imaginado pelo eu-comunicante (EUc) e outro pelo tu-interpretante (TUi). Todavia, não somente no
universo de discurso do EU se dá esse desdobramento. Como expõe Charaudeau (2008, p. 47), também o tu-destinatário
(TUd) pode ser resultado do ato de produção do eu-comunicante (EUc) ou o resultado do ato de interpretação do tu-
interpretante (TUi). O EUe do EUc e o EUe do TUi não coincidem em todos os pontos, assim como as projeções do TUd, uma
pelo EUc e outra pelo TUi. O processo de comunicação é, portanto, assimétrico (cf. esquema 1).

574
Esquema 1

Dimensão externa

Dimensão interna

EUe1 TUd1

EUc EUe TUd TUi

EUe2 TUd2

Quando o TUd2, projetado pelo EUc, coincide com o TUd1, projetado pelo TUi, é garantido o sucesso da
comunicação. Uma forma eficaz de isso acontecer é recorrer à imagem coletiva do TU. Para garantir o sucesso de seu
projeto de comunicação, o eu-comunicante deve, portanto, construir uma imagem do tu (o tu-destinatário) o mais próximo
possível do papel representacional já aceito na comunidade a que pertence. Quanto maior a proximidade, mais chance de
sucesso, já que, dessa forma, a projeção se embasará na convenção reconhecida e aceita pela coletividade, ou seja, há
mais chances de o TUd1 coincidir com o TUd2. Segundo Oliveira (2001, p. 35), um contrato é tanto mais seguro, quanto
mais o tu-interpretante se aproxima do sujeito coletivo idealizado.
No contrato de comunicação publicitária, os parceiros reais da instância de produção – vendedor anunciante (EUc)
/ consumidor potencial de mercadorias (TUi) – assumem suas identidades discursivas na instância de interpretação (ou
recepção) – benfeitor (EUe) / beneficiário (TUd) – por meio da transformação de um produto real em uma ferramenta capaz
de suprir determinada carência: um bem de consumo. Para atingir o principal objetivo de “transformar um consumidor real
de textos em consumidor de produtos, a mensagem publicitária tem de construir esse parceiro destinatário” (MONNERAT,
2003, p. 107), fazendo o leitor se identificar com a imagem construída. Tal projeção está diretamente relacionada a
elementos vigentes no imaginário social. Nesse contexto, como afirma Monnerat (2003, p. 108), “o estudo da palavra
publicitária mostra-se, assim, revelador de valores, atitudes culturais e modos de expressão da época”.
Isso ocorre porque, apesar da rigidez das cláusulas situacionais e discursivas do contrato, todo projeto de
comunicação conta com um espaço de manobra, o que confere especificidade ao ato de linguagem. Se isso não
acontecesse, toda atividade linguageira que visasse a um mesmo propósito comunicativo seria textualmente idêntica, o que,
como se sabe, não ocorre. Oliveira (2003, p. 33), para ilustrar essa coexistência dos espaços fixos e flexíveis, aponta que o
sistema da língua é restrito, por não permitir, por exemplo, usar um pronome de primeira pessoa com o verbo na terceira;
pode-se, no entanto, dentro desse sistema, escolher entre duas ou mais formas de estruturar a frase – escolhas sintáticas –
ou entre duas ou mais expressões linguísticas – escolhas lexicais –, já que ele oferece também espaços de liberdade.
Dessa forma, assim como o sistema da língua, a atividade linguageira interdita certos comportamentos e permite outros.
O contrato de comunicação que rege todo ato de linguagem comporta, pois, dois espaços: um de “restrições”, que
diz respeito às exigências mínimas que não podem ser infringidas sob pena de invalidar a comunicação, e um de

575
“estratégias”, que compreende as possibilidades de escolha à disposição dos sujeitos na encenação discursiva para que
seus propósitos comunicativos sejam atingidos. Assim, é o espaço de “restrições”, o atendimento às condições mínimas,
que permite conhecer uma publicidade como tal e não como uma receita culinária ou uma carta pessoal, por exemplo (que
atendem a restrições diferentes). Já o espaço de “estratégias” possibilita a especificidade do ato de linguagem, uma vez
que, nele, o sujeito faz escolhas singulares que acabam por revelar os propósitos pretendidos, a identidade social dos
parceiros envolvidos na interação, entre outros.
No espaço de “estratégias” do contrato de comunicação publicitária, observaram-se os campos semânticos
ocorrentes nos anúncios. Assim, selecionou-se também, para embasar este estudo, a ‘teoria dos campos semânticos’,
desenvolvida por Jost Trier em 1931 (ULLMANN, 1964. p. 511), que propõe o agrupamento de expressões linguísticas por
sua afinidade de sentido.
Rehfeldt (1980, p. 97) salienta que, por meio da estruturação do léxico em campos proposta por Trier, pode-se ter
ideia das possibilidades linguísticas e de seu emprego pelo falante. Além disso, as análises lexicais embasadas em campos
semânticos poderão servir como parâmetros de medição e aferição do comportamento linguístico do falante, de seu
posicionamento interior e social em vista da realidade que o cerca, facilitando os estudos de psicolinguística e
sociolinguística.
A teoria dos campos semânticos de Trier, apesar das limitações, foi vantajosa por introduzir um método
legitimamente estrutural no que concerne às relações associativas entre palavras com base no significado; e por formular
problemas antes despercebidos, como a relação entre léxico e condicionamento sócio-histórico:

Um campo semântico não reflete apenas as ideias, os valores e as perspectivas da sociedade contemporânea;
cristaliza-as e perpetua-as também; transmite às gerações vindouras uma análise já elaborada da experiência através
da qual será visto o mundo, até que a análise se torne tão palpavelmente inadequada e antiquada que todo campo tenha
que ser refeito. (ULLMANN, 1964, p. 523)

Segundo essa concepção, portanto, o estudo de campos semânticos presentes em um discurso de determinada
época revela os universos de referência que figuram na cena social do período histórico em análise. Para redigir um
anúncio, são selecionadas algumas expressões em meio a uma multiplicidade de opções. Essas escolhas lexicais revelam
os campos semânticos relacionados ao público-alvo dos anúncios. Nas publicidades direcionadas ao público feminino, a
observação de campos semânticos permite recuperar o universo de referencia das mulheres, já que somente expressões
que façam parte desse universo podem ser utilizadas em um discurso que visa a atingi-las. A linguagem da propaganda,
portanto, ao se adequar ao público a que se dirige, acaba por colocar em cena diversos universos de referência coletivos.

3 SELEÇÃO E TRATAMENTO DO OBJETO DE ANÁLISE

Para compor o objeto de estudo, foram selecionados cem anúncios publicados na revista feminina Cláudia, da
década de 60 à primeira década de 2000, que versassem sobre produtos relacionados ao lar. As cem peças publicitárias
foram dispostas em vinte por década. O recorte quanto ao produto anunciado pretendeu diminuir ao máximo as possíveis
variáveis. Como cada produto é direcionado a diferentes projeções de consumidoras, as propagandas para ele criadas
acabam por determinar estratégias discursivas bem diversificadas. A mulher projetada em um anúncio de batom é diferente
da que figura em um de sabão em pó, porque as publicidades são produzidas a partir de necessidades coletivas diferentes.
Dessa forma, uma vez que a mudança do papel social da mulher ao longo do tempo destacou-se no se refere à
sua relação com o universo do lar, optou-se por selecionar apenas anúncios que versassem sobre tal relação. Foram

576
considerados como produtos do lar: eletrodomésticos; produtos do gênero alimentício; produtos de limpeza; utensílios de
cama, mesa e banho; utensílios de cozinha; e peças relacionadas à reforma decorativa de cômodos.
O tratamento conferido ao objeto de análise apresenta caráter qualitativo e quantitativo. No que se refere ao
exame qualitativo, o estudo dos anúncios realizou-se em duas vertentes: 1) quanto ao contrato comunicativo que rege o
discurso publicitário; e 2) quanto aos campos semânticos explorados em cada década. Do ponto de vista quantitativo, foi
feito, em primeiro lugar, o levantamento dos diferentes campos semânticos utilizados nos anúncios durante todo o período
em análise para, após, serem verificados os percentuais de ocorrência de cada campo semântico nas décadas analisadas.
Vale lembrar que a análise tem como propósito principal reconstituir a representação da mulher ao longo do período
selecionado a partir da observação do material linguístico das publicidades.
A análise dos anúncios visa, portanto, à comprovação de que, (1) ao se analisarem os campos semânticos
predominantes em um discurso produzido para um público específico em determinado período, reconstitui-se a identidade
social desse público nessa época determinada; (2) o predomínio de diferentes campos semânticos nos anúncios de cada
década revela a mudança do papel social representado pela mulher ao longo dos tempos; e (3) a ocorrência de todos os
campos semânticos levantados na última década examinada pode equivaler à agregação de papéis sociais
desempenhados pela mulher ao longo do período em análise – cinco décadas.

4 RESULTADOS

A partir da observação global das 697 lexias1 presentes nas cem peças publicitárias, levantaram-se seis campos
semânticos relacionados ao universo de referência feminino: o campo semântico da mulher no papel social de doméstica,
de dona de casa, de mãe de família, de esposa, de indivíduo e de profissional.
Levando-se em consideração a multiplicidade de sentidos que uma palavra pode evocar, convém estabelecer, de
forma precisa, os limites de cada rótulo verbal concernente aos campos semânticos levantados. O campo da mulher
‘doméstica’ diz respeito aos serviços realizados no lar: limpar (faxineira) e cozinhar (cozinheira); a ‘dona de casa’ foi
concebida como a responsável por gerir a casa, cuidar do lar, decorar, receber visitas; a ‘mãe de família’ cuida do marido e
dos filhos e se distingue da ‘dona de casa’ por seus cuidados serem restritos ao bem-estar da família; a mulher na condição
de ‘esposa’ é relacionada ao casamento, apenas ao marido; o campo da mulher consciente de sua individualidade, o de
‘indivíduo’, relaciona-se aos cuidados pessoais desempenhados em favor de seu próprio bem-estar no que se refere à
saúde e à estética; a mulher ‘profissional’ diz respeito à que trabalha fora e tem um cargo remunerado que lhe garante
autonomia financeira.
Quanto ao contrato comunicativo publicitário, observou-se, no espaço de restrições, a obediência aos
componentes estruturais de todo anúncio: o visual – constituído pela imagem – e o verbal – constituído por título, texto
publicitário, assinatura e slogan. O sujeito interpretante apareceu marcado linguisticamente por formas pronominais –
‘senhora’, ‘você’, ‘seu’, ‘sua’, por exemplo – e verbais no modo imperativo – ‘exagere’, ‘olhe’, ‘veja’, ‘convença’, ‘prepare’,
‘use’, ‘seja’, ‘sirva’, ‘ame’ etc. Vale lembrar que é essa obediência que garante reconhecer esse conjunto imagem e texto
como uma peça publicitária.

1 Para Pottier, lexia é uma unidade de comportamento léxico. Opõe-se a morfema, menor signo linguístico, e a palavra, unidade mínima
construída. É, portanto, a unidade funcional significativa do discurso. A lexia simples pode ser uma palavra – cachorro, mesa, pianista. A
lexia composta pode conter várias palavras em via de integração ou integradas – quebra-gelo. A lexia complexa é uma sequência
estereotipada – a cavalo, máquina de costura, desde que (também os provérbios). (DUBOIS, 1993, p. 361)

577
Quanto ao espaço de estratégias do contrato, verificou-se, na década de 60, que as lexias observadas integraram,
principalmente, os campos semânticos da ‘doméstica’ e da ‘dona de casa’. Cabe ressaltar que como a mulher deve se
reconhecer no discurso publicitário, diretamente dirigido a ela, as propagandas somente selecionam lexias para exaltá-la,
jamais depreciá-la. Dessa forma, a predominância desses campos sugere serem essas – ‘doméstica e ‘dona de casa’ – as
formas como a mulher se idealiza e é idealizada na cena social da década de 60.
Na década seguinte, em 70, foi possível reconstituir, a partir dos campos semânticos predominantes nos anúncios
desse período – ‘doméstica e ‘mãe de família’ –, uma figura feminina completamente associada ao universo do lar e da
família. Nos anúncios da década de 70, predominou, novamente, o campo semântico da mulher como ‘doméstica’.
Acompanhando esse papel de serviçal (não depreciativo, mas idealizado pela coletividade), notou-se uma ocorrência maior,
em comparação à década anterior, da mulher vinculada à família. Nos nove anúncios em que sua imagem figura como
personagem, em apenas dois ela está sozinha. Nos demais, está sempre acompanhada (filhos, marido, família).
Os anúncios da década de 80 revelaram o predomínio, como em 60, do campo semântico da ‘doméstica’ e da
‘dona de casa’. As lexias examinadas, como nas duas décadas anteriores, associam-se, principalmente, à casa, aos
serviços domésticos – cozinhar – e à família. Verificou-se que a mulher permanece, por trinta anos, socialmente
representada como extensão do lar e da família. Uma observação, relacionada ao componente visual das peças
publicitárias, que corrobora essa verificação é o fato de a imagem da mulher como personagem dos anúncios somente
ocorrer em quatro das vinte propagandas (em um desses, acompanhada da família).
Vale destacar ainda que, nos anúncios dessas três décadas, as mulheres figuraram também como ‘esposa’ e
inexistiram lexias que representassem a mulher ‘profissional’ – que trabalha fora – ou ‘indivíduo’ – que direciona seus
cuidados à sua saúde e à sua estética.
A análise do material linguístico dos anúncios da década de 90 promove, por sua vez, uma ruptura na concepção
coletiva vigente nas décadas anteriores. Se até a década de 80 a mulher vinculou-se apenas ao lar e à família, nesse
período, percebe-se que o vínculo se expande a outros espaços. Ocorreu, nessa década, a negação das lexias referentes
ao papel social em vigência anteriormente, o de ‘doméstica’. Ressalta-se a presença dos seis campos semânticos
levantados em toda a análise. Destaca-se também, ainda em número reduzido, a aparição, em primeira mão, de lexias que
se dirigem à mulher como ‘profissional’. Além disso, tanto no campo semântico da ‘doméstica’ como no da ‘dona de casa’,
responsável por gerir o lar, surgem lexias que sugerem não serem mais esses papéis competência somente da mulher.
Provavelmente essas ocorrências estão ligadas à saída da mulher do universo do lar para o mercado de trabalho,
anunciada linguisticamente pelo aparecimento do campo semântico da ‘profissional’.
Cabe ressaltar que, embora em segundo plano (segundo campo mais recorrente), o campo semântico da
‘doméstica’ continua utilizado de forma significativa, já que a ruptura da representação social feminina, predominante por
três décadas, começa a se delinear. Essa ruptura representacional, inscrita no material linguístico, anuncia as mudanças
que ainda serão consolidadas, lenta e definitivamente, no imaginário coletivo.
As lexias examinadas na década de 90 pertencem, com mais frequência, ao campo semântico da mulher como
‘indivíduo’ e estão relacionadas, principalmente, ao corpo feminino no que se associa à saúde e à estética.
Nos anúncios da primeira década de 2000, verifica-se o aparecimento de lexias relacionadas aos exercícios
físicos (‘malhar’, ‘academia’, ‘em forma’, ‘abdominais’, ‘flexões’) e à informática (‘virtual’, ‘teclar’). Nota-se, ainda, o aumento
das lexias que se dirigem à mulher como ‘profissional’ (p. ex., ‘executiva’, ‘bem-sucedido’, ‘médica’, ‘professora’).
Como na década de 90, observa-se que a maior ocorrência de lexias está relacionada tanto aos cuidados com a
saúde quanto à preocupação com a falta de tempo. Vale destacar também a existência de lexias, ainda no campo
semântico da mulher como ‘indivíduo’, que remetem à qualidade de vida (p. ex., ‘bem-estar’, ‘feliz’, ‘viver’, ‘vida’).

578
Outra importante observação diz respeito ao campo semântico da ‘esposa’. Na primeira década de 2000,
diferentemente do observado nos anúncios de todas as décadas anteriores, não há a ocorrência de lexias com a palavra
‘marido’, o que pode levar à dedução de que o papel social de ‘esposa’ figura em último plano para a mulher desse período.
Infere-se que todos os outros papéis – ‘doméstica’, ‘dona de casa’, ‘indivíduo’, ‘mãe de família’ e ‘profissional’ – tem
importância maior do que o de ‘esposa’ no ideal coletivo da primeira década de 2000. Em outras palavras, deduz-se que a
mulher dessa época destina seu tempo a si própria (seu corpo), à profissão que exerce, à sua casa e aos seus filhos –
nesta ordem de importância –, mas não necessariamente a seu ‘marido’. Como não apareceu nos vinte anúncios
direcionados à mulher nessa década, a ausência do vínculo, antes obrigatório, ‘marido’ e ‘esposa’, parece não causar
estranhamento para a sociedade da primeira década de 2000.
Nos anúncios da primeira década de 2000, predominaram os campos semânticos da mulher profissional e
consciente de sua individualidade. A tabela a seguir apresenta o percentual de ocorrência dos campos semânticos em cada
década.

Tabela 1
Campos
60 70 80 902 20003
décadas
Doméstica 46% 41% 56% 22% 11%
Dona de casa 33% 17% 25% 21% 9%
Esposa 7% 13% 15% 6% 8%
Indivíduo 2% 0% 0% 36% 39%
Mãe de família 12% 29% 4% 10% 12%
Profissional 0% 0% 0% 2% 16%

2 3% das lexias são referentes à negação do campo semântico da ‘doméstica’.


3 5% das lexias são referentes à negação do campo semântico da ‘doméstica’

579
O gráfico a seguir apresenta a predominância de diferentes campos semânticos ao longo das cinco décadas, o
que sugere a mudança do papel social desempenhado pela mulher nesse período.

Gráfico 1

60
50
40

30
20
10

0
60 70 80 90 2000

domestic a dona de casa


esposa individuo
mãe de familia profissional

Os dados observados na tabela e no gráfico revelam que as atribuições domésticas da mulher foram diminuindo
ao longo do período analisado. Se nas três décadas iniciais, o campo semântico da mulher ‘doméstica’ ocorreu com uma
média de aproximadamente 48%, na primeira década de 2000, essa ocorrência foi de apenas 11%. Além disso, a partir da
década de 90, a mulher ‘doméstica’ começou a ser negada nos anúncios direcionados ao público feminino.
Constatou-se ainda que, na década de 90, houve uma ruptura no papel feminino que figurava na sociedade até
aquele momento. Emergiu uma representação coletiva da mulher associada à sua individualidade. Nas duas décadas finais,
predominou o campo semântico da mulher como ‘indivíduo’.
Observou-se que o papel social de ‘profissional’ não pertencia ao universo de referência feminino até a década de
80 e que essa atribuição aumentou consideravelmente da década de 90 para a primeira década de 2000 (de 2% para 16%).
Dessa forma, este estudo procurou comprovar que o predomínio de diferentes campos semânticos nos anúncios de cada
década revelou a mudança do papel social representado pela mulher ao longo dos tempos.

5 CONCLUSÃO

A análise dos anúncios confirma o quão revelador é o discurso publicitário acerca dos papéis sociais
representados na sociedade. Toda publicidade é concebida para atingir à grande massa e, por esse motivo, não pode estar
na vanguarda ou na retaguarda do contexto social do momento. O discurso publicitário é espelho da cultura de massa e,
nessa perspectiva, sua análise recupera imaginários sociais, isto é, o que uma sociedade acredita pensar, valorizar e fazer
em determinado momento histórico.
Este trabalho visou à reconstituição dos papéis sociais desempenhados pela mulher, ao longo de cinco décadas,
por intermédio da análise de campos semânticos em anúncios direcionados ao público feminino. Aqui, não se buscou
associar os discursos a quaisquer acontecimentos históricos da época, justamente para provar que a análise linguística
cuidadosa, por si só, recupera contextos sociais. Isso ocorre porque não há como desvincular os elementos linguístico e
social.

580
Destaca-se ainda que, ao conviver com seu maior objetivo, o de atingir à massa, o discurso publicitário acaba por
trazer à tona valores, crenças, comportamentos, universos de referência que constituem o imaginário social de cada época.
No que concerne à ilustre protagonista desta pesquisa, a mulher, vale refletir sobre a evolução social, marcada
linguisticamente no discurso publicitário, que ela conquistou através dos tempos: de doméstica-dona de casa a indivíduo-
profissional.
No que diz respeito às contribuições desta pesquisa para a língua portuguesa, espera-se: destacar a importância
sócio-histórica do discurso publicitário como material linguístico indicativo de representação de identidades e de papéis
comportamentais fixados no imaginário de uma sociedade; colaborar com os estudos sobre os campos semânticos, ainda
de limites imprecisos, por contar com poucos trabalhos acerca do assunto; mostrar que os campos semânticos que retratam
linguisticamente um determinado universo de referência estão intrinsecamente relacionados ao papel social exercido pelo
representante desse universo; mostrar que a observação dos campos semânticos ao longo de um período permite
recuperar o processo de evolução do papel social exercido pelo representante de um determinado universo de referência; e,
finalmente, a fim de contribuir para a leitura e a produção conscientes de textos, espera-se propor, ao examinar a inscrição
das representações sociais no material linguístico, uma reflexão acerca das múltiplas imposições e estratégias discursivas
envolvidas em um ato de linguagem.

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Lisboa: Fund. Caloust Gulbenkian, 1964. p. 493-528.

VESTERGAARD, Torben e SCHODER, Kim. A linguagem da propaganda. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

581
Currículo do autor

Barbara Ferreira Fadul concluiu o curso de Mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro na área de Língua
Portuguesa do Programa de Letras Vernáculas. Leciona, atualmente, na rede particular e municipal de ensino nos
segmentos médio e fundamental. Atua principalmente nos seguintes temas: análise do discurso; campo semântico;
semiolinguística; discurso publicitário.

E-mail: barbara_fadul@yahoo.com.br ou barbarafadul@gmail.com

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A originalidade do carnaval de Paulo Barros: patemização
e iconicidade
FERES, Beatriz dos Santos
(UFF – CIADRio)

1 Abre-alas
Considerada a “forma padrão e relativamente estável de estruturação de um todo” (Bakhtin, 2000) que torna
reconhecível todo gênero discursivo socializado por um grupo, elege-se aqui o desfile das escolas de samba do carnaval
carioca como classe específica de enunciados que, em sua complexidade e singularidade constitutiva, apresenta recursos
discursivos altamente produtivos – como aqueles relacionados à geração de um fazer sentir, foco de maior interesse neste
trabalho.
Segundo a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), os dez quesitos exigidos de
cada escola de samba e avaliados por jurados a fim de se escolher o campeão do carnaval são bateria, samba-enredo,
harmonia, evolução, enredo, conjunto, alegorias e adereços, fantasias, comissão de frente e mestre-sala e porta-bandeira.
O desempenho de cada escola de samba no desfile é mensurado, portanto, de acordo com critérios (também tomados
como orientadores das características do gênero desfile de escola de samba) que fazem convergir forma, performance e
orientação temática, por um lado, em prol da excelência do espetáculo oferecido ao público, mas de outro, como resultado
da capacidade criativa daqueles que dirigem esse espetáculo: os carnavalescos.
Dentre tantos nomes popularizados pelo carnaval carioca, o de Paulo Barros tem surpreendido pelo estilo
inovador e “pop”, como tem sido considerado por seus pares. Em entrevista ao jornal O Globo (O Globo on-line,
20/02/2010), o carnavalesco defendeu a necessidade premente de “encantar o público antes de pensar em conquistar os
jurados”. Pode-se afirmar, portanto, que seu estilo é pautado por um propósito eminentemente patêmico, direcionado a um
interlocutor (o público) mais propício ao sentimento (ato de sentir) do que os jurados, revestidos de um papel monitorado
pela racionalidade na recepção do desfile, em função da responsabilidade de julgamento. Além disso, Paulo Barros,
divergindo da tradição nacionalista e de exaltação herdada da “época de ouro” do samba de enredo (1969-1989), tem
desenvolvido temas (enredos) mais abstratos, como “É de arrepiar” (Unidos do Viradouro, 2008) e “É segredo” (Unidos da
Tijuca, campeão de 2010), focalizados neste trabalho.
A escolha de enredos abstratos como os mencionados enceta uma performance provocadora (em termos de
desfile, de apresentação do tema pela escola), que, para não correr o risco de didatizar o tema, descrevendo-o de maneira
óbvia, acaba por apostar em mecanismos interpretativos que acionam a competência de linguagem e a sensibilidade do
público a fim de ter esse tema não só compreendido, como também, ou sobretudo, sentido: é preciso fazer sentir o
“arrepio”, ou a sensação provocada pela existência de um “segredo”, muito mais do que representá-los. Isso singulariza o
estilo de Paulo Barros: primar pela participação da massa popular, pela interação mediada pelo desfile; apostar no processo
inferencial acionado pelas alegorias, pelas fantasias, pelas coreografias que o compõem, a fim de ter seu enredo
efetivamente desenvolvido.
A análise do processo de patemização (ou dos mecanismos de fazer sentir) engendrado por dois desfiles de
escola de samba cujo desenvolvimento do enredo esteve sob a responsabilidade de Paulo Barros (Unidos do Viradouro,
2008, e Unidos da Tijuca, 2010) estará fundamentada por postulados da Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso
(Charaudeau, 2000, 2007, 2008), e pela noção de iconicidade, como estabelecida pela semiótica peirciana (Peirce, 2003;

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Santaella, 2000, 2005; Pignatari, 2004) e referendado pelas Ciências Cognitivas (Lakoff, 1987, 2002; Lakoff e Johnson,
2002; Fauconnier e Turner, 2002, Gibbs, 2002).
Pretende-se explorar o conceito de patemização segundo a Semiolinguística, circunscrito às representações, para,
a seguir, extrapolá-lo em direção a uma perspectiva “situacional”, mais vinculada às relações analógicas entre a superfície
textual e suas circunstâncias enunciativas: esse será o lugar da Originalidade, que, segundo Peirce (2003), é o que designa
o ser tal como ele é, em nível primário, sem nem mesmo ter significado, ou melhor, sem nem mesmo ter sido significado,
sem ter sido veiculado por um signo. É ser o que é, antes de se ter a consciência de que algo é. Parte-se, portanto, da
hipótese de que, além de desencadeada por representações emotivas socialmente disseminadas, a dramatização patêmica
é especialmente oriunda de um processamento significativo analógico, sustentado pelas Qualidades exacerbadas pela
semelhança entre os elementos aproximados – sobretudo em textos de caráter estético.
Como argumentos comprobatórios, serão evidenciados elementos constitutivos dos textos/desfiles mencionados a
fim de se demonstrar o processamento patêmico, inclusive aquele baseado na iconicidade, ou seja, aquele sustentado pela
similaridade entre signo e objeto, ou entre signo e outro signo (que representa seu objeto), em virtude da exacerbação de
emoções e sentidos orientada para o propósito de fazer sentir.

2 Enredo
Pode-se discorrer sobre as emoções, reconhecê-las, denominá-las, descrevê-las, e posicioná-las como tema de
conversas e tratados. Mas suscitá-las por meio de trocas comunicativas, instaurá-las discursivamente, evocá-las com o
propósito de o destinatário ser tomado por elas, retira-as de seu processamento delocutivo e atribui-lhes um caráter
alocutivo (ainda que simplesmente implícito), de influência direta no processamento do(s) sentido(s) de que se ocupará o
sujeito-interpretante.
Charaudeau (2000:128), na perspectiva da Análise do Discurso, afirma que “as emoções são de ordem
intencional, estão ligadas aos saberes e crenças em comum e se inscrevem em uma problemática da representação
psicossocial”. A enunciação aciona saberes, crenças e emoções intrínsecos à realidade significada que excedem os limites
da superfície textual, embora nela imprimam seus indícios: “‘algo’ que não está no signo, mas do qual ele é portador”. As
emoções podem ser entendidas como reações já inscritas na identificação de determinados objetos e, como propriedade
sua, em cada uma de suas “aparições”, elas seriam esperadas, partilhadas por um grupo social. O sentido textual traria
subjacente uma aura perceptiva, ou sensitiva, discursivamente orientada a partir da intencionalidade de que se vale o
enunciador. “A emoção pode ser percebida na representação de um objeto em direção ao qual o sujeito se dirige ou busca
combater” (Charaudeau, 2007: p.245), e estaria ligada à crença porque participa do conhecimento que esse sujeito detém a
partir das informações que recebe, de suas experiências e dos valores que atribui à realidade que constrói. Ainda segundo
o analista, há estratégias discursivas “que tendem a tocar a emoção e os sentimentos do interlocutor – ou do público – de
maneira a seduzir ou, ao contrário, lhe fazer medo”, num processo de dramatização que consiste em provocar a adesão
passional do outro, atingindo suas pulsões emocionais.
Embora a patemização seja tratada por Charaudeau em um ambiente aparentemente mais objetivo do que
proposto neste trabalho (como na argumentação do discurso político, ou da mídia jornalística televisiva), o intuito de tocar o
outro por meio de representações emotivas continua o mesmo, passando de uma posição adjacente para outra, central,
quando se trata de gêneros de apelo estético – ainda que permaneça resguardada, em ambas as posições, a implicitude
própria de todo efeito de sentido. Além da centralidade ocupada pelo recurso patêmico em virtude de uma intencionalidade
indiscutivelmente voltada para a sensibilização, os textos de caráter estético potencializam-na por meio de uma semiose
altamente motivada.

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Em princípio, a motivação significativa (de grau mais ou menos acentuado) se opõe à arbitrariedade própria do
signo lógico, residindo, portanto, na similaridade entre signo e objeto, ou entre signo e outro signo (quanto este representa o
objeto). De acordo com Peirce (2003), a semiose se inicia com um primeiro (o signo), que é determinado pelo segundo (o
objeto) ao mesmo tempo em que o representa, e finalizado pelo terceiro (interpretante), o resultado do ato interpretativo.
Mas ela só se efetiva na mistura de processamentos, “genuínos” e/ou “degenerados”. Ou seja, em meio à simbologia das
palavras, por exemplo, vale-se de aproximações por semelhança, ou mesmo de índices (dêiticos, por exemplo), a fim de se
construir a significação; ou ainda, em meio à representação imagética, o ícone simples pode se tornar símbolo, por
depender culturalmente de seu valor convencional de representação. E, nessa mistura, à iconicidade se atribui o papel de
exacerbar qualidades a partir da semelhança entre os signos envolvidos e evocados na semiose – e isso pode se realizar
por meio de imagens, de palavras, de sons, enfim, por meio dos mais variados tipos sígnicos.
A iconicidade é vista, pois, como processo de significação que projeta, no signo, qualidades do objeto referido, ou
ainda, que faz emergir, na aproximação de similaridades (intra ou extrassígnicas), uma qualidade essencial que se pretende
evidenciar. É um mecanismo operacional que coexiste à indiciação e à simbolização, mas que exibe a particularidade de se
sustentar na identidade de Qualidades dos itens relacionados, mesmo quando se presta apenas a inferências e ao cálculo
interpretativo, ou a projeções necessárias à cognição. E, sendo um mecanismo propício para a emergência de Qualidades,
torna-se igualmente favorável à patemização, embora não seja exclusivo dela.
Tanto Peirce quanto Charaudeau ocupam-se de aspectos constitutivos da semiose/semiotização que vão além da
concepção “puramente” lógica da linguagem, incluindo, em alguma medida, a subjetividade e a emoção. Peirce, ao
considerar a “motivação”/”iconicidade” e a “indiciação” partes do processo de significação, atrela à racionalidade “lógica”
fatores ligados à percepção e à situacionalidade, à qualificação “imediata” e à interpretação circunstanciada; Charaudeau,
para tratar das emoções no discurso, atenta para uma “racionalidade subjetiva” (que compreende uma “visada acional” do
sujeito), imbuída de crenças e valores, determinada pelas representações sociais e que, por isso mesmo, permite o vínculo
entre as emoções e o discurso. De uma forma e de outra, inclui-se na semiose/semiotização o lugar do sentimento (leia-se
“ato de sentir”), da apreensão da Qualidade, seja por meio das representações sociais, seja por meio de recursos cognitivos
instaurados na/pela textualização e igualmente dependentes da disseminação de crenças e valores operada naturalmente
pelos membros de uma comunidade.
Na textualização, é possível perceber o uso de mecanismos cognitivos que, por um lado, permitem a construção
do sentido em função da singularidade de determinada representação situada, e, por outro, revelam o ingrediente social da
cognição humana. É na concretização – em termos de “revestimento” significativo – promovida pela textualidade que agem
concomitantemente, influindo um no outro, o ineditismo e a polifonia, o sentido situado e o conhecimento socializado, o dito
e o indizível, o racional e o emocional. Relaciona-se a constituição da superfície textual às condições de produção e de
recepção, aos papéis sociais dos agentes envolvidos na interação via texto, às fórmulas socializadas de organização e uso
dos textos, aos modos de referenciação reconhecidos pelos grupos sociais, aos “saberes de conhecimento” e “de crença”
(Charaudeau, 2000; 2007) engajados no processamento do sentido. Investe-se na construção do sentido a individualidade
das experiências, imediatas ou mediadas por textos, entrecortada por um aparato histórico-cultural determinado socialmente
por meio das incessantes interações estabelecidas entre os indivíduos. A própria iconicidade atua no processamento
cognitivo a partir de similaridades perceptíveis em função da experiência corpórea (e, portanto, individual), ou em função da
experiência cognitiva, baseada no conhecimento de mundo, ou ainda, nos valores e crenças que dele exalam.
A compreensão de um elemento pelo outro – em função de sua similaridade – não só possibilita a expressão de
ideias, sentimentos, abstrações aparentemente insignificáveis, como também permite o acionamento de efeitos de sentido
relacionados à própria percepção da Qualidade posta em evidência pela aproximação dos elementos. Por seu caráter

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relacional e, simultaneamente, “qualificativo”, a similaridade tem figurado como um dos mais relevantes componentes da
cognição humana e está presente, por exemplo, na identificação de elementos alinhados em correspondência, na
categorização da experiência humana, na imaginação a partir da qual emergem novos espaços mentais. Seja no uso de
uma estrutura de nível básico de conceptualização fundada na experiência física, seja no uso de estruturas importadas de
metáforas, ou nos blendings, a aproximação de elementos por similaridade (ainda que instituídas situacionalmente) estão
sempre presentes no processamento cognitivo. A iconicidade, como mecanismo motivacional, permite a transposição de
características e propriedades, não simplesmente aquelas que justificariam a aproximação dos elementos, mas outras,
periféricas, de maior complexidade cognitiva e, às vezes, de difícil (ou impossível) simbolização.

3 Alegorias
Os desfiles de carnaval no Rio de Janeiro têm sua origem na segunda metade do século XIX, segundo atestam
Mussa e Simas (2010), e se moldaram na tradição do formato processional, tão presente na cultura popular brasileira. A
princípio se dividiam entre os desfiles das Grandes Sociedades, promovidos pelas camadas mais abastadas, e os blocos
improvisados pelas camadas populares, com cordões de mascarados e ranchos. Na década de 1920, surgem as primeiras
escolas de samba, que pretendiam não só promover a aceitação social dos negros, como também serviam ao propósito do
Estado de disciplinar as manifestações culturais das camadas populares. A primeira disputa com ocorrência de um cortejo
foi patrocinada pelo Jornal Mundo Sportivo, em 1932, idealizada pelo jornalista Mário Filho. A exaltação nacional não fora
imposta pelo governo, mas usada como estratégia pelos sambistas, “antenados com a perspectiva nacionalista que
caracterizava a atuação do Estado na recém-iniciada Era Vargas” (op.cit.; 18) para o reconhecimento formal das escolas de
samba. Em 1935, houve uma maior padronização das escolas, inclusive com a submissão das letras dos coros à comissão
organizadora antes do dia do evento. O período entre 1969 e 1989, considerado “a época de outro” do samba de enredo,
durante a ditadura militar, serviu bem aos propósitos ufanistas dos governantes, mas, a despeito disso, o samba ganhou um
tratamento poético e melódico de alto nível, incomparável aos sambas de outras fases. Mais tarde, a negritude passa a ser
tema dos enredos e, na década de 80, passam a ser usados enredos satíricos e de crítica social. Hoje não há mais a
primazia do samba como critério de julgamento; os “quesitos do carnavalesco” são os mais enfatizados, já que se valorizam
o resultado do espetáculo oferecido ao público e a obediência aos critérios impostos, em virtude da acirrada disputa entre
as escolas e da busca de retorno ao investimento milionário que se impõe à magnitude dos desfiles.
Assim, como gênero textual, a partir da articulação das coerções formais, discursivas e situacionais que sofre
(Charaudeau; Maingueneau: 2004), pode-se afirmar que o desfile de escola de samba caracteriza-se por uma configuração
sincrética organizada em torno de um enredo previamente concebido, expresso narrativa ou expositivamente pelo samba e
por fantasias, adereços, carros alegóricos, distribuídos ao longo de alas “subtemáticas”, no intuito de comunicar o conteúdo
do enredo e, sobretudo, provocar a aceitabilidade do público e dos julgadores. Para isso, utiliza-se de uma performance
provocadora; o canto harmonizado com a bateria, a dança (ou a coreografia) conjugada à disposição equilibrada dos
participantes e dos elementos figurativos ao longo da avenida durante os oitenta minutos regulamentares (no Rio de
Janeiro), além da clareza da relação entre a proposta do enredo, revelada inclusive pela letra do samba, e a forma do
desfile. Ao enunciador-carnavalesco atribui-se tanto a responsabilidade de produzir um texto coeso, coerente e de boa
aceitação, como também o controle do desempenho da escola na avenida.
Paulo Barros, nome em ascendência no carnaval carioca, tem sido bastante criticado pelo modo popular de
condução dos enredos que escolhe, mais vistos como simplesmente temáticos, distanciados de uma tradição
predominantemente “narrativa”, que se revestia de pompa verbal e minúcias informativas dignas de legendas explicativas

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durante a transmissão televisiva. Seus desfiles primam pela interpelação direta ao povo espectador, pela fácil identificação
dos elementos explorados, pela novidade espetacularizada e performances inusitadas e grandiosas.
Em 2008, com o enredo “É de arrepiar!”, apresentado pela escola de samba Unidos do Viradouro, Barros leva à
avenida um tema baseado ora na percepção da sensação física mesma, ora na relação entre essa sensação e emoções
como a alegria, o medo, a saudade, ou a sensualidade. Para isso, o autor expõe elementos que despertam o fácil
reconhecimento de experiências cuja reação é o arrepio, ou que já se apresentam impregnados de valores socialmente
disseminados, relacionados à provocação desse fenômeno. Desse modo, além de explorar convenientemente o enredo,
reúne condições para atingir seu propósito patêmico, de fazer sentir as emoções evocadas pelas representações e acionar,
pela identificação entre as experiências vividas pelo público e aquelas apresentadas na avenida, sensações e sentimentos.
Na letra do samba-enredo, observa-se o percurso entre a sensação física e a reação à emoção num convite direto
ao espectador. A textualização revela um enunciador que, antes de fazer referência aos elementos do espetáculo
apresentado, divide impressões “pessoais” e sensações com seu destinatário, numa dinâmica dividida entre a elocução, ao
expressar os sentimentos que o invadem diante do desfile, e a alocução, ao interpelar seu interlocutor e orientar sua
perspectiva: “Amor,/Olha só quem vem lá/É de arrepiar, com tanto frio/Vem cá me abraçar,/Sentir meu arrepio”. Ou ainda
em “Mexa, remexa, sacode a cabeça, me faz delirar” e em “Chame alguém para ajudar”. Os dêiticos mencionados na letra
do samba apontam para itens materializados nas fantasias e nas alegorias que ocupam o a avenida: “Olha só quem vem lá”
indica o carro abre-alas que traz uma imensa pista de esqui, cheia de gelo, em que esquiadores sobem e descem durante
todo o desfile, por isso os versos “É de arrepiar, com tanto frio”. Em “esses seres eu me pelo/De vassoura ou de chinelo,
chame alguém pra ajudar”, “esses seres” se referem a insetos asquerosos, como aranhas e baratas, representados em
fantasias impressionantes, usadas por alas inteiras.
Já nos dois refrões, descrevem-se, delocutivamente, aspectos referentes à apresentação da escola e à emoção
que isso provoca. No primeiro (“O show da bateria alucina/Traz numa corrente a emoção/É arte, é criação que me
fascina/Faz vibrar meu coração”), signos como “alucina”, “corrente de emoção”, “vibrar meu coração”, perpassados por
traços emotivos, garantem a manutenção temática do “arrepio” no âmbito da reação à emoção em virtude dos saberes de
crença acionados. No segundo refrão, entretanto, apresenta-se, com força de argumento, o intertexto que dialoga com o
famoso samba de Cartola (“Bate outra vez, o meu coração/ ‘Pois já vai terminando o verão’/As rosas não falam, na
Viradouro exalam/O perfume de uma canção”), numa atitude de reverência à beleza de seus versos – também provocadora
de um “arrepio estético”. Nesse caso, depende-se, a princípio, de um saber de conhecimento (o samba relacionado pelo
intertexto), a fim de que se atinja toda a plenitude da estratégia patêmica empregada; além disso, atrela-se aos versos do
sambista um saber de crença, igualmente partilhado socialmente, relacionado ao sentimento (de amor/adoração) que
provocam. Ainda apostando na intertextualidade, “Peguei o Ita no Norte, gostei, tive sorte e kizombei” é um verso que alude
a memoráveis carnavais, “de arrepiar”: “Peguei um Ita no norte” foi levado à avenida pela Escola de Samba Acadêmicos do
Salgueiro em 1993 e “Kizomba, festa da raça”, pela Escola de Samba Unidos de Vila Isabel em 1988.
A patemização também se deflagra por meio da recorrência a representações impregnadas de emoções no
enredo “É segredo!”, explorado pela Escola de Samba Unidos da Tijuca, em 2010. Nesse caso, o tema pressupõe um misto
de curiosidade, apreensão e surpresa. A instabilidade interna provocada pela referência a algo desconhecido (ao menos
parcialmente) até que se tenha o segredo desvendado e torne a haver estabilidade contribui para essa patemia. Elementos
como mafiosos armados, heróis mascarados que não revelam suas identidades (Batman, Robin, Homem Aranha, Zorro), ou
ainda Michael Jackson, cuja morte intriga a todos, são referidos a fim de que seja suscitada a aura de mistério que os
envolve. O samba reitera essa referência: “Quem some na multidão/Esconde a sua verdade/Imaginação, o herói jamais
revela a identidade/Será o mascarado/Nesse bailado um folião?”. Assim, o tema “É segredo!” é suscitado por meio de

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inferências relativas ao reconhecimento desses elementos como caracteristicamente misteriosos – inclusive o folião, citado
na letra, que, também “disfarçado” sob uma fantasia, acaba por adotar o mesmo clima de sigilo dos personagens figurados.
Diz o samba da Unidos da Tijuca: “É segredo, não conto a ninguém/Sou Tijuca, vou além/O seu olhar, vou iludir/A
tentação é descobrir”. A “tentação” da descoberta é representada, logo na abertura do desfile, pela comissão de frente,
constituída por seis pares de dançarinos, dois ajudantes e um mestre de cerimônia que, num jogo de ilusão de ótica (num
“passe de mágica”), fazem com que as moças tenham suas roupas trocadas em segundos, sucessivas vezes. Apresenta-se
a surpresa da mágica para se representar “o segredo”, tema do desfile. A mágica oferece, nesse caso, a experiência
mesma da surpresa (“ao vivo e em cores”); o “passe de mágica” representa, significa, fica no lugar do “segredo”, por ser
constituído por ele, numa relação metonímica entre signo (mágica, mais “concreto”) e objeto (segredo, mais “abstrato”).
A injunção e a interpelação trabalham a favor da adesão dos sujeitos comunicantes ao projeto direcionado aos
sujeitos destinatários, que são constantemente convidados a agir, ou, pelo menos, a compactuar com as impressões do
locutor (como em “Mexa, remexa, sacode a cabeça, me faz delirar”, do enredo “É de arrepiar!”, ou em “O seu olhar, vou
iludir”, do enredo “É segredo!”). Esses “movimentos de conquista”, no entanto, são deflagrados também por signos
imagéticos e sensoriais, concretizados nas fantasias e alegorias constituintes dos desfiles, que acionam igualmente saberes
de conhecimento e de crenças, mas que, acionando-os iconicamente, permitem um fazer sentir não intermediado por
símbolos mais ou menos convencionados, mas validado por motivações que exacerbam Qualidades.
No carnaval de 2008, um dos carros alegóricos da Unidos do Viradouro chamou especialmente à atenção: era o
carro do banquete, em que dezenas pessoas fantasiadas de baratas gigantes escalavam um monte de comida e de lá
fugiam, subindo e descendo, em movimentos que imitavam com bastante justeza os daqueles insetos. Embora possa se
considerar a barata um elemento ao qual se atribui prontamente nojo e até medo, a semelhança, percebida visualmente,
entre a representação e o representado intensifica esses sentimentos. A encenação do ataque das baratas explora,
iconicamente, uma vivência conhecida e, concomitante a esse reconhecimento, suscitavam-se os sentimentos a ele
atrelados: nojo e/ou medo.
No caso das baratas, a relação icônica se dá entre elementos da superfície textual (as fantasias de baratas e o
carro com o monte de comida) e o (re)conhecimento daquela cena, a partir do nível semântico-discursivo; as Qualidades
emergentes e intensificadas são o nojo e/ou o medo que esses insetos despertam. Nos casos em que o público se identifica
com elementos constituintes do enredo, mecanismos envolvendo a similaridade entre a superfície textual e o nível
situacional (onde se posiciona o sujeito-interpretante/público) são colocados em ação em função do propósito de adesão do
público ao destinatário projetado pela textualização. Ao se deparar com um imenso boneco que imita (numa relação icônica)
um bebê pendurado pelos pés, com o cordão umbilical recém cortado, alude-se, patemicamente, à alegria trazida pelo
nascimento de uma criança.
Já a transposição do halo qualificativo de uma representação se dá, por exemplo, por meio de metáforas e de
integrações conceituais, que também dependem da iconicidade, pois operam projeções entre os elementos aproximados
por similaridades perceptíveis e emergências de Qualidades e sentidos por meio de correspondências que dependem, em
certa medida, de similaridades instituídas contextualmente. Em “...quem se arrisca a procurar/O desconhecido, no tempo
perdido/Aquele pergaminho milenar/são cinzas na poeira da memória”, tem-se a referência à biblioteca de Alexandria, tida
por muitos como o “coração da humanidade” por abrigar uma importante coleção de pergaminhos e manuscritos durante
mais de sete séculos, até que foi incendiada. “Aquele pergaminho milenar” representa, metonimicamente, esses
pergaminhos e manuscritos que se tornaram “cinzas”. A “poeira da memória” à qual se misturam as cinzas é uma expressão
metafórica: a irrelevante dimensão diminuta dos grãos de poeira, facilmente ignorados e esquecidos de sua existência por
sua quase invisibilidade, é uma característica transposta às lembranças de difícil acesso, fragmentadas e pouco

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representativas para serem recuperadas. Em outras palavras, a iconicidade funciona, nesse caso, para exacerbar a
Qualidade da fragilidade dessas existências, que une a poeira e a memória destruída no incêndio. Antes da aproximação,
no entanto, essa similaridade talvez não tivesse sido aventada, mas, tendo esses elementos sido aproximados nesse
contexto, a Qualidade que os une e dá sentido à expressão é também aquela que se deseja salientar.
Na avenida, essa ideia é corroborada pela representação da biblioteca num enorme carro alegórico, que parece
incendiar-se graças a efeitos especiais, como feixes de tiras laminadas douradas que, intermitentemente, esvoaçam sob a
força de ventiladores escondidos, imitando línguas de fogo, ao mesmo tempo em que rolos de fumaça (de gelo seco) são
lançados. Por causa da semelhança entre o signo/alegoria e o objeto/biblioteca, o carro atua como signo icônico, apresenta
a biblioteca da Antiguidade, com um prédio imponente, ornado com colunas gregas; a fumaça e o fogo, apresentados
iconicamente pelos mecanismos citados, são os indícios do incêndio que a destruiu.
As coreografias, que são marcas do estilo Barros, garantem parte do afetamento projetado pelo texto. Em “É de
arrepiar!”, casais pintados de dourado se posicionam como em relações sexuais em um carro alegórico denominado Kama
Sutra, em referência ao conhecido livro homônimo. A simulação em si já demonstra o processo icônico por meio de
elementos aproximados, seja nas cenas semelhantes àquelas que figuram no livro, seja no próprio reconhecimento do livro
a partir da cena apresentada pela avenida, seja pelo apelo à adesão do público em função de uma possível identificação
com a cena. Outras coreografias utilizadas com o mesmo intuito de sedução podem ser mencionadas, como o dos
integrantes que, de cabeça para baixo, representam cenas do “arrepiante” filme “O exorcista”, ou dos que, de branco,
imóveis, em torno de um Tiradentes bastante sério, expressavam, com sua atitude ratificada pela faixa “Liberdade ainda que
tardia” (numa referência à Inconfidência Mineira), sua repulsa pela censura sofrida pela escola, proibida pela justiça de levar
seu “carro do Holocausto”, em que uma pilha de bonecos empilhados, como corpos de judeus durante a perseguição
nazista, expressavam a aversão “arrepiante” à atitude antissemita.

4 Apoteose
Longe de esgotar as possibilidades de exemplificação dos recursos propícios à patemização nos desfiles de
escola de samba usados como corpus desta análise, espera-se, com esta exposição, ter sido possível demonstrar que,
além da menção às representações imbuídas de emoções em favor de um conhecimento de crença socialmente
disseminado, a textualização se estabelece como o lugar da emergência de Qualidades, o ponto exato de confluência de
mecanismos orientados para um fazer sentir.
O desfile de escola de samba, como gênero textual, constitui-se de um propósito ao mesmo tempo comunicativo e
estético, delimitado por características de configuração e de performance, a princípio orientadas rigidamente em função da
busca pela obtenção do título de campeã do carnaval, mas, atualmente, possivelmente direcionadas para o encantamento
do público diante do espetáculo exposto. Em outras palavras, os desfiles vêm adotando estilos mais sedutores, voltados
para uma forte interação com os espectadores, que são levados a vivenciar experiências oferecidas pela performance
inovadora (teatralizada e coreografada), ou a se emocionar com alusões a elementos do imaginário, ou a situações
propagadas socialmente, ambos impregnados de valores e emoções conhecidos pelo grupo de interação, ou ainda, que é
instado a agir de acordo com interpelações e injunções repetidamente cantadas, e até mesmo provocadas pelo conjunto
significativo expresso pelas fantasias e alegorias.
Para finalizar, pode-se afirmar que, ao substituir a tradicional delocução ufanista dos enredos de exaltação pela
intensa provocação à interação, Paulo Barros atinge seu objetivo declarado de encantar o público, antes de agradar aos
jurados que avaliam os desfiles a fim de escolher o campeão do carnaval. Com enredos “temáticos”, a partir dos quais são
enumerados elementos de apelo popular e, às vezes, “sensacionalistas”, o carnavalesco tem garantido o sucesso da

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ousadia e do espetáculo impactante. Pela perspectiva da Teoria Semiolinguística, Barros lança mão de estratégias de
construção de sentido altamente eficazes no que respeita à patemização, ao fazer sentir, portanto, bastante apropriados,
sobretudo, no desenvolvimento de temas mais abstratos, como “É de arrepiar!” e “É segredo!”, favoráveis à sensibilização
do público por meio da interação, inclusive sob os auspícios da iconicidade.
A busca da adesão, da aceitabilidade, por parte do público, sujeito-interpretante, ao projeto textual-discursivo
instaurado no desfile tem sido o objetivo declarado do carnavalesco e, concomitantemente, o segredo de seus enredos de
arrepiar. Há uma aposta evidente nos recursos de afetamento do Outro, e o sucesso do empreendimento tem sido obtido
em função da disponibilidade do público para a participação na construção do sentido – e da festa – do carnaval. Desafiado
para a integração ao projeto comunicativo dos enredos, o público investe sua experiência e conhecimento na construção de
um carnaval que, agora, também é seu, não como mero espectador, mas como membro efetivo e bastante atuante da
“comissão da festa”.

Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Charaudeau, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.
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emoções no discurso, v. I. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
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estudios del discurso – ALED, Venezuela: Editorial Latina, v. I, nº 1, pp. 7-22, agosto de 2001.
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GIBBS, Jr, Raymond W. The poetics of mind. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
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MUSSA, Alberto e SIMAS, Luiz Antonio. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: The University of
Chicago Press, 1987.
_____________ e JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas, SP: Mercado de Letras; São Paulo: EDUC,
[1980] 2002.
PEIRCE, Charles. Semiótica. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
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SANTAELLA, Lúcia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Editora Pioneira, 2000.
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http://academiadosamba.com.br/passarela/viradouro/index.htm Acesso em 25/05/2010.
http://liesa.globo.com/ O Globo on-line. Acesso em 20/02/2010.

A Profª Drª Beatriz dos Santos Feres ministra aulas de Língua Portuguesa e é pesquisadora vinculada ao Programa de Pós-
graduação em Estudos da Linguagem (UFF). Baseando-se na Semiolinguística, investiga temas relativos à produção de
sentidos e ao ensino. Coordena o Programa de Iniciação à Docência, ligado ao Instituto de Letras da UFF
(beatrizferes@yahoo.com.br).

590
Credos e falares afros nas narrativas de Autran Dourado

FERNANDES, Liduína Maria Vieira


(UECE)

O escritor mineiro Autran Dourado, autor de uma vasta obra, abriu espaço em seus textos para uma galeria de
personagens negras. Ou seja, a cultura Ioruba predominou entre os negros escravizados que aportaram no Brasil no
período colonial. A grande afluência deu-se mais precisamente nos fins do século XVIII, período histórico registrado nas
narrativas autranianas.
Numa releitura da sociedade mineradora colonial, Autran Dourado traz à tona vários aspectos da cultura afro-
brasileira, dentre os quais a língua e a religiosidade, formas de expressão das personagens negras.
A presença da cultura Ioruba é uma constante em três obras desse escritor. Para abordar essa temática
escolhemos os romances Ópera dos mortos (1967), Os sinos da agonia (1974) e Lucas Procópio (1985), onde os negros
vão desempenhar papéis de grande relevância.
No romance Lucas Procópio, o negro Jerônimo é Ioruba. Por saber sua língua de origem, foi escolhido por
Lucas Procópio para acompanhá-lo em sua viagem pelos interiores de Minas, como uma espécie de guia e guarda-
costas.

Na frente, um preto que devia ser abridor de trilhas no mato virgem, língua e protetor nos perigosos
encontros com possíveis negros quilombolas, conhecedor da língua geral deles, o ioruba com que
se entendiam os negros de diversos dialetos maldosamente misturados. (DOURADO, Autran.
Lucas Procópio. 1985, p. 15).

É interessante observar como, nessa citação, o narrador ressalta, de modo crítico, o processo intencional do
colonizador de impedir a comunicação entre os africanos, ao misturar os diversos dialetos, criando, assim, uma
verdadeira torre de Babel. Jerônimo gesticulava, falava numa língua que mesmo os da sua nação não poderiam
entender. (DOURADO. Op. cit. 1985, p. 82).
A forma intensa e devastadora da colonização sobre os povos africanos levou também a um processo de
fragmentação da língua materna de cada tribo (Nação), acarretando uma dependência lingüística que ainda hoje perdura
em decorrência da sobreposição das línguas européias impostas pelo colonizador.
Daí o pouco conhecimento que se tem da contribuição dessas línguas africanas no falar brasileiro, como
também das línguas indígenas, ambas recalcadas pelo colonizador. Apesar de tudo, porém, essas línguas, mal ou bem,
não desaparecem de todo. Para algumas personagens negras de Autran Dourado, a língua africana se encontrava
apenas silenciada por causa do processo violento da colonização, mas nunca esquecida.
Mesmo se expressando na língua do colonizador, pois era a única forma de se comunicarem por causa da
grande dispersão causada pelo tráfico e, conseqüentemente, da vigília de feitores, senhores e sinhás, essas

591
personagens guardavam, no mais recôndito de seu Ser, os vocábulos de seus ancestrais e, nos momentos limites,
discursavam, cantavam e oravam em Ioruba.
Me esqueço que estou na presença de branco e passo a falar em Ioruba. E fico falando na história
do meu povo, das suas lutas guardadas na cabeça e no coração, passadas de pai a filho, não tem
escrita a nossa tribo-nação. (DOURADO. Op. cit. 1985, p. 52). (...) Jerônimo traduzia para si mesmo
aqueles sonhos de grandeza para a sua terra distante, pensando na língua da sua tribo, por ele
chamada nação. (DOURADO. Op. cit. 1985, p. 27).

Voltar a falar Ioruba, sua língua materna, além de um gesto marcante de resistência, de preservação da
identidade, muitas vezes se traduz também como uma ruptura lingüística, proveniente da revolta total com a situação.
Confirma bem essa observação o discurso do negro Isidoro, do romance Os sinos da agonia, abaixo transcrito.
Eu falo agora pela última vez, foi dizendo Isidoro pausado e duro, feito ditando uma carta. Daqui pra
frente me calo de vez em língua de branco. Só vou falar ioruba, língua da minha cor. Branco
nenhum vai mais me entender. Podem me matar de pancada, bacalhau no lombo, pés e braços no
tronco, que não falo mais língua de branco, de reinol ou paulista nenhum! (DOURADO, Autran. Os
sinos da agonia. 1974, pp. 217, 218.)

É nessa perspectiva de resistência, de preservação da identidade que podemos ver o hábito do negro
Jerônimo, já mencionado, de passar para a língua Ioruba os discursos de Lucas Procópio; de tentar ensinar ao seu
senhor o significado de termos próprios de sua língua como “Dun" que em português significa “atormentar”, ou “Kikun”
que é “duro” e “infalível”, “Malungo” quer dizer “companheiro”, “camarada” e “Orum” é “céu”, de ficar se expressando em
sua língua, falando ou cantando sem ninguém entender o que dizia.
O preto Jerônimo cantava vigoroso, a voz poderosa, não a letra latina, mas uma algaravia de
palavras conhecidas e desconhecidas de gente, na língua de sua longínqua, amada e negra nação.
Ele se dirigia aos seus deuses, que os brancos tentavam matar, para só existir um. (DOURADO.
Op. cit. 1985, p. 21).

Ao abordar em “Entre-lugar do discurso latino-americano”, as questões relacionadas com o processo de


colonização, Silviano Santiago (1978, p. 16) chama a atenção para a imposição do conquistador de um só Deus, um só
Rei, uma só Língua: o verdadeiro Deus, o verdadeiro Rei, a verdadeira Língua, como forma de desterritorialização total
dos colonizados.
A citação anterior, extraída de Lucas Procópio, confirma essa política. O gesto de cantar vigorosamente por
parte de Jerônimo, conforme registra o narrador, deixa entrever a resistência do personagem ao processo de
assimilação cultural. Jerônimo é uma das personagens negras autranianas que não aceita passivamente as
determinações dos seus senhores. Através da digressão do narrador, constata-se, de modo crítico, a denúncia da
negação da religiosidade africana por meio do extermínio dos seus deuses em favor do deus da cultura dominadora.
Nazareth Soares Fonseca, em seu artigo: Visibilidade e ocultação da diferença. Imagens do negro na cultura
brasileira, comentando sobre o texto de Lilia Moritz Schwarcz, Ser peça, ser coisa: definições e especificidades da
escravidão no Brasil, em que aborda a questão do batismo. Diz:
No texto, são reavaliados os processos de descaracterização impostos aos escravos, tornados
evidentes desde o batismo recebido pelos oriundos de diferentes regiões da África, na nova
morada. Longe de propiciar a integração dos africanos na nova ordem que se forma com seu
trabalho, o batismo legitimava, na lei de Deus, um tipo de propriedade bem pessoal que podia ser
alugada, leiloada, penhorada e hipotecada. O sacramento cristão transformava os escravos num
bem não diferenciado dos animais utilizados no trabalho de carga. (FONSECA, Nazareth. Brasil
afro-brasileiro. 2000, p. 96).

592
A partir da data da forçada conversão ao catolicismo, todos os negros recém chegados ganhavam uma nova
identidade religiosa e pessoal. Eram vigiados e proibidos de praticarem rituais religiosos com culto aos deuses africanos.
A questão do acesso aos sacramentos, segundo Donald Ramos:
Foi obviamente crucial para integrar o escravo à sociedade luso-brasileira. O batismo de escravos
era tão importante que o sempre vigilante conde de Assumar, por exemplo, em 1719 ordenou aos
párocos que assegurassem que os escravos fossem catequizados e batizados, e além disso insistiu
que notificassem aos ouvidores a identidade daqueles que se recusassem para que fossem
punidos. (RAMOS, Donald. “O quilombo e o sistema escravista em Minas Gerais do século XVIII”.
1996, p. 171).
A prática desse culto (batismo) trazia subjacente o desejo de fazê-los esquecer a sua cultura, pois,
desarticulados de suas origens, eles perderiam por completo a identidade, processo iniciado com a retirada do seu
habitat, de sua organização social, do seu mundo.
No entanto, nem todas as personagens negras se comportam como Isidoro e Jerônimo. Diferentemente deles,
Quiquina, personagem do romance Ópera dos mortos, ao invés de resistência, parece se deixar seduzir pelas práticas
religiosas do branco. Sabe-se que Quiquina, como já foi colocado, vem do tempo dos antigórios, época em que algumas
centenas de milhares de iorubas foram trazidos como escravos para o Brasil. Sua cultura predominou sobre a de outros
grupos africanos e influenciou diversos aspectos da cultura brasileira, como, por exemplo, o religioso.
Observa-se que não há registro de uma prática religiosa consciente em Quiquina. O que ocorre é o fenômeno
da assimilação cultural que fica evidente no momento em que Rosalina dá por falta dos seus santinhos, mas logo
descobre que era a preta que os tirava.
Na casa do padre, ia pedir santinho. Os santinhos pregados nas paredes do quarto, na cozinha, nos
cômodos onde Quiquina vivia. Que graça tinham agora aqueles santinhos? Quiquina roubava os
seus santinhos, via agora. Para que Quiquina queria aqueles santinhos todos? Pra ir pro céu?.
(DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. 1967, p. 33).

Entretanto, esse gesto de Quiquina não pode ser interpretado como uma adesão total ao catolicismo. Muitas
vezes, os negros, por conta da imposição dessa religião, com medo dos castigos, fingia cultuar os santos católicos,
quando, na verdade, estavam prestando culto às divindades africanas que foram transportadas para o Brasil, aqui tidas
como figuras malignas, vinculadas ao demônio, às práticas de feitiçaria.
O sincretismo religioso afro-brasileiro é visto como uma estratégia de simulação para manter os cultos às
divindades africanas sob a máscara dos santos católicos. O representar, o fingir, o dissimular foram portanto, saídas
inteligentes dos negros para conseguirem preservar seu código / prática religiosa.
No romance Os sinos da agonia, após longa convivência no corpo da casa dos Galvão, simulando estar
acostumada aos rituais cristãos – no dia-a-dia, na presença do senhor, obedecendo, e à noite fazendo rituais para seus
deuses -, Inácia se trai ao saber da notícia de que Malvina se suicidou:
Inácia deu um grito, caiu de joelhos no chão. Entre baba, e lágrimas e soluços, ela chorava e se
lastimava numa mistura de ioruba e língua do reino, de santos e orixás. (DOURADO. Op. cit. 1974,
p. 201. DOURADO. Op. cit. 1974, p. 201).

Se, por parte do negro, o sincretismo funcionou como estratégia para continuar prestando cultos aos seus
deuses; por outro lado, termina também atingindo os seus senhores, que são, por sua vez, influenciados pela religião
dos escravos.

593
Observe-se o diálogo, no romance Lucas Procópio, entre a sinhá Ismênia e sua mucama Amélia. Ismênia a
procura para contar sobre uma paixão impossível e pedir à negra que faça uns trabalhos para que ela possa conseguir
esse amor.
Recorra às mandingas, aos seus orixás. De uma certa maneira acredito, tenho fé nelas. Faça uma
mandinga, eu consigo uma coisa qualquer dele para você com ela trabalhar.

Contudo, apesar de apropriadas pela cultura do dominador, essas práticas religiosas africanas continuam
sendo discriminadas e vistas como manifestação de forças inferiores. Vê-se que o negro é espoliado em relação a sua
cultura, e a sua maneira mágica, anímica, de conceber e explicar o mundo é utilizada como instrumento de sua
opressão.
Entretanto, a recorrência às práticas religiosas africanas (mandinga, vodu) por parte das personagens negras
autranianas pode ser vista como uma forma de resistência cultural no seio daquela sujeição física e econômica. Assim,
através do ritual mágico-fetichista, os escravos procuram preservar para si um conhecimento que escapa aos seus
dominadores.
E Jerônimo via nas coisas poderes e sombras, tudo mistério e premonição. No animismo fetichista
cultivado às escondidas dos brancos, os destruidores da sua religião. Tudo era símbolo e sinal, as
coisas viviam, falavam, segredavam conselhos aos amados dos deuses que representavam.
(DOURADO. Op. cit. 1985, p. 38).
Conhecedor de sua cultura, como já foi mostrado em páginas anteriores, Jerônimo, em defesa de sua religião,
tenta explicar a Lucas Procópio o significado das práticas religiosas africanas.
Jerônimo tirou do bolso um boneco de madeira. Depois disse eu sei que Nhonhô não acredita, mas
se eu fincar neste calunga um prego e pedir arriscadamente ao perigoso e terrível Exu, Pedro
Chaves morre agora mesmo. (...) Lucas Procópio disse na hora que eu carecer, apelo por seu
auxílio, por sua mandinga. Jerônimo quase morre de felicidade ao ouvir isso. (DOURADO. Op. cit.
1985, p. 46).

Jerônimo aproveita o ensejo e passa a falar sobre a utilização da palavra mandinga e explica sua etimologia,
afirmando ser o nome de uma língua da África, cujos sinônimos de feitiço, bruxaria, malefício, mau-olhado, sortilégio,
foram maldosamente criados pelos brancos, como era entendido por Lucas Procópio.
Na verdade, mandinga, mais do que designativo de uma língua, nomeia um grupo etnolingüístico da África
ocidental (Mali, Guiné, Costa do Marfim, Senegal, Benim, Nigéria), do qual muitos integrantes foram trazidos para o
Brasil como escravos. Esses negros eram considerados mais resistentes aos castigos e mais capazes de empreender
fugas.
Em Os sinos da agonia, a morte por efígie de Januário evoca ao negro Isidoro o culto do vodu; entregando-se
a essas lembranças, traz-nos ele considerações acerca das etapas do processo ritualístico dessa prática.
Preto sabe tudo, basta esticar as ouças, escutar a escuridão. A mãe da gente, os orixás da
proteção. Se a gente espeta um calunga dizendo que é o cujo que a gente quer acabar, de longe
ele vai sentir, mesmo as dores vai purgar. O corpo de Nhonhô dependurado balangando na forca,
na praça aquela vez. Agora diziam que Nhonhô estava morto, para el-Rei. Foi o que matou Nhonhô,
de longe ele sentia. Um calunga dependurado. O baque na goela, deve mesmo de longe ter
sentido. A estremeção. Daí foi principiando a morrer. (DOURADO. Op. cit. 1974, p. 206).

Há uma relação direta entre o ritual da morte em efígie e a prática do vodu. A personagem Isidoro conhecia
todos esses rituais: se você deseja um mal para alguém e não se consegue fazer diretamente, esse alguém pode ser
representado por um boneco, e a pessoa, mesmo distante, vai sentir as dores dessa maldade.

594
Se a gente pega um boneco, seja um calunguinha, e faz com ele toda sorte de maldade, pensando
e dizendo que o calunguinha é a pessoa que a gente deseja tudo de ruim pra ela, se a gente espeta
e fura com faca ou punhal, mesmo a pessoa longe começa a espernear e a sofrer, a sangrar e a
morrer, igual o calunguinha. Assim dizem na mandinga que ensinaram Isidoro a fazer. (DOURADO.
Op. cit. 1974, p. 32).

O culto vodu contribuiu para o sincretismo dos ritos animistas africanos com ritos católicos. Em vários
aspectos, o ritual se assemelha ao candomblé brasileiro com a presença de divindades afins: Sabô é Xangô; Gun é
Ogum; Obessem é Oxumaré; Olissassá é Oxalá.
A postura do sincretismo religioso de associar os santos católicos com os orixás africanos, além de tornar-se
prática comum com o passar dos tempos em alguns estados brasileiros, é, como já foi dito, uma forma de resistência
negra. Há um momento da narrativa em Lucas Procópio em que a personagem homônima pergunta a Jerônimo:
por que não fala um pouco com os seus deuses, com os seus orixás? Com qual deles, perguntou
Jerônimo, temos muitos. O deus do perdão, o deus do amor, disse Lucas Procópio. Nhonhô quer
dizer Oxalofã, o deus filho. Sim um Cristo, o salvador, disse Lucas Procópio. Esse é Jesus, deus de
branco, não reina sobre os povos iorubas, os da minha nação, Egbá. (DOURADO. Op. cit. 1985, p.
28).

Nessas narrativas, encobrimento e descobrimento, realidade e farsa eram como um jogo de trocas simbólicas
entre os negros que aproveitavam de alguns momentos dos seus senhores e fingiam professar a fé cristã, em outros
oravam para as imagens dos santos católicos nas senzalas, mas sempre remetendo às representações religiosas do
passado africano.
Recorrendo ainda ao romance Os sinos da agonia, observa-se que é através da personagem Isidoro que se
insinua a possibilidade de transformação e mudança da vida que os negros levavam, o que se fará também pelo retorno
às origens num processo penoso, que exige a luta contra a sina do cativeiro entranhada no fundo de sua alma, fruto de
dolorosa aprendizagem. Voltar às origens, pois, significa reconstruir a identidade e a liberdade perdidas para ser sujeito
da história.
Refletindo sobre essa questão em “Orfeu Negro”, ensaio sobre a negritude, os estereótipos, a assimilação, a
violação da língua e das crenças etc., incluído no livro Reflexões sobre o racismo, Jean-Paul Sartre afirma que:
A situação do negro, sua “dilaceração” original, a alienação que um pensamento estrangeiro lhe
impõe sob o nome de assimilação obrigam-no a reconquistar sua unidade existencial de negro ou,
se se prefere, a pureza original de seu projeto, por uma ascese progressiva para além do universo
do discurso. (SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o racismo. 1978, p. 104).

Na obra de Autran Dourado, as personagens negras estão sempre em busca de sua cultura originária. São
personagens exiladas, deslocadas, vivendo uma revolta interna, por causa do exílio forçado, com os maus tratos que
recebem. A descoberta de um quilombo era como se tivesse encontrado sua nação. Por essa razão é que Isidoro
continuava a pensar nos quilombos:
Será que ele sonhava com os quilombos do Zundu e do Calaboca? Será que ele se entregava ao
reino de sonho de Pai Ambrósio? (...) Pai Ambrósio vestido num manto todo bordado de ouro,
coberto de pedraria, assentado no seu trono de prata. O seu manto azul, o mesmo manto que
vestia Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. (DOURADO. Op. cit. 1974, p. 21).

Na verdade, essa busca incessante dos quilombos por Isidoro reflete um anseio do espaço de luta e
transformação. Não obstante, o processo de mudança é apreendido por ele numa perspectiva mais mítica que histórica.

595
Analogicamente, Isidoro vê o quilombo assim que nem o reino do céu que branco promete pra gente no fim da
vida...; (DOURADO. Op. cit. 1974, p. 22) e o pai Ambrósio, líder dos escravos amotinados, como, um rei ou deus negro,
vestido num manto todo bordado de ouro, coberto de pedraria, assentado no seu trono de prata. (DOURADO. Op. cit.
1974, p. 21).
O negro Isidoro, após sofrer uma infinidade de torturas, ante as situações difíceis, evade-se em espírito para a
sua saudosa e amada nação africana. Impossibilitado de deduzir a viabilidade histórica da libertação de seu povo do
cativeiro, Isidoro deixa-se guiar tão-somente pelo sonho. Afinal, a gente carece de fumaça, de ar, de azulidão. Pra poder
agüentar a dor de viver. (DOURADO. Op. cit. 1974, p. 216).
Dizem que Ambrósio não morreu...Dizem que um dia ele volta com uma tropa de centuriões, muito
mais de mil, que ele vive alforriando...Dizem que Ambrósio não envelhece, a morte de Ambrósio foi
mentira, invenção de branco, disse Januário repetindo o que tinha ouvido contar na senzala do pai.
(DOURADO. Op. cit. 1974, p. 216).

O quilombo para o negro Isidoro, que sofreu o ferro das gargalheiras, é sinônimo de liberdade, por isso ele
continua buscando esse espaço. Isidoro é um preto mina, das lavras, das faisqueiras, conhecido na faiscação como
excelente catador de ouro e fama de ladino, por apenas uma tentativa de fuga. Mas com o tempo recuperou a confiança
de seu dono, o coronel Tomás Matias Cardoso, e passou a ter um tratamento diferenciado.
Mesmo consciente de que o quilombo de Ambrósio não passa de um sonho, por dele precisar, continua a
persegui-lo e, na impossibilidade de o encontrar, chega até a pensar em, junto com outros negros, formar o seu. A
profusão de idéias, decorrentes desse pensar incessante, quase uma idéia fixa, o deixa confuso.
Só se for um outro Ambrósio, aquele morreu, disse Isidoro começando a querer acreditar. Não, tudo
isso é história, fumaça, invenção! A gente carece disso, é melhor isso sofrendo do que nada sem
dor. (...). É feito esse rei dom Sebastião, que tem muito branco esperando até hoje. Se acha que
ainda tem quilombo... disse querendo acreditar, já acreditando. (DOURADO. Op.cit. 1974,p. 216).

Imbuído da crença no mito sebastianista, Isidoro não desiste. Continua acreditando nesse lugar fincado na
fronteira entre sonho e realidade, possibilidade de espaço possível para aliviá-lo do poder senhorial. Essa situação não
só acontece com Isidoro, como também com Jerônimo, personagem do romance Lucas Procópio.
O negro Jerônimo é acometido desse sonho ao se envolver com a maneira esquisita e ao mesmo tempo
apaixonante de Lucas Procópio, com quem saiu em viagem pelos interiores de Minas.
Omoro Binte, o nome roubado pelos brancos. Também ele vinha sendo despojado do que as
pessoas têm de mais precioso, o nome. E tudo lhe foi roubado. Tinha vinte anos e podia suceder ao
pai. Quando vieram os brancos e o compraram de uma tribo inimiga, aprisionado enquanto se
distraía caçando. Todo o poder real sumiu no ar, se foi nas asas do vento, para nunca mais.
(DOURADO. Op. cit. 1985, p. 27).

Despojado de sua identidade, em sonhos, Jerônimo via sempre seu pai (Kajali Binte) a chamá-lo de traidor de
seu povo, pedindo que ele acordasse. E acordar era retomar o sonho primeiro:
(...) falo do sonho grande de quando eu vivia na África. Eu sonhava de um dia, quando rei da minha
tribo, juntar aquele povo ioruba numa só nação, num império feito o Brasil. (DOURADO. Op. cit .
1985, p. 52-53).

É um sonho tão utópico quanto o do seu senhor, o cavaleiro andante, Lucas Procópio Honório Cota, de
restabelecer, através da poesia, os tempos áureos das Minas Gerais. Ambos, em seu delírio utópico, à sua maneira,
trazem à tona o inconformismo com a realidade na qual se encontram inseridos, uma realidade disfórica, marcada pela
decadência e pela opressão.

596
REFERÊNCIAS

DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
_____.Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974.

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janeiro – São Paulo, 1978.

Liduína Maria Vieira Fernandes é Professora Adjunta da Universidade Estadual do Ceará/UECE. Líder do Grupo de
Pesquisa Espaços de Leitura: Cânones e Bibliotecas - CNPQ / Ano de formação: julho de 2006. Coordena o Projeto de
Pesquisa: Litero-Teatral, o Grupo de Estudo: Literatura e Estudos Culturais e um Curso de Especialização em
Investigação Literária.

597
Os estudos acadêmicos e as atividades docentes dos
estagiários de cursos de licenciatura em Letras: por que a
frequente dissociação entre a teoria e a prática?

FERNANDES, Neusa de Araújo


(PUC/MG)

1 Introdução

Se o exercício da docência traz para seus profissionais algumas certezas, que balizam mudanças significativas ao
longo de sua história, traz, também, dúvidas angustiantes e problemas persistentes e com eles o interesse por novas
alternativas de solução.
Em decorrência disso, algumas questões são aqui colocadas, uma vez que se considera este Fórum o locus
adequado, abalizado, pela excelência do plantel de profissionais pesquisadores e professores que discutem pontos
nevrálgicos da formação dos professores, o que, sem dúvida, muito tem contribuído para o aprimoramento desses
docentes.
.
O objetivo desta comunicação é, por conseguinte, refletir sobre uma frequente dissociação entre fundamentos
teórico-metodológicos de estudos linguísticos, em cursos de licenciatura em Letras, e a prática pedagógica, nas escolas do
Ensino Fundamental e Médio, de alunos estagiários ou até mesmo de docentes egressos da Universidade.
Em outras palavras, embora pressupostos da Linguística Textual, da Teoria da Enunciação, da Análise do
Discurso, da Sociolinguística tenham se tornado objetos de estudo na Academia, os estagiários, os alunos egressos, nas
suas aulas de regência, na sua prática pedagógica, optam pela manutenção de um ensino do “emprego das formas” e não
do “emprego da língua”, como bem caracterizou Benveniste (1970), ou seja, há um “esquecimento” das propostas de
“atualização” de fundamentos e metodologias de ensino estudados e avaliados, conservando-se a prática de estudo
metalinguítico, classificatório e prescritivo da Língua, já tradicional em grande parte das escolas de Educação Básica.
Para se dar início à reflexão proposta, são tecidas considerações sobre determinados aspectos do ensino das
disciplinas específicas do curso de Letras, instituição formadora, seguidas de depoimentos de ex-alunos e estagiários, em
relatórios de Prática de Formação e avaliações de estágios desenvolvidos em Escolas do Ensino Fundamental e Médio
(EEFM).
A seguir, as opiniões, os depoimentos são analisados sob a perspectiva da Teoria das Representações Sociais
(Moscovici, 2000), acreditando-se que determinadas representações sociais, construídas pelos sujeitos de cada instância
educacional, são fatores que interferem no processo da formação específica e da prática pedagógica dos universitários e
docentes. Tenta-se, ainda, demonstrar que uma experiência de integração entre as duas instituições envolvidas no
processo minimiza a habitual dissociação referida. Esses pontos são sintetizados: 1) as propostas e realizações da
instituição formadora dos docentes: seus possíveis equívocos; 2) a prática do estágio nas Escolas de Ensino Fundamental e
Médio: suas dificuldades; 3) as representações sociais no jogo interlocutivo entre Instituição Formadora e as (EEFM): um
fator interferente no processo de integração; 4) A perspectiva de mudança das representações para maior integração entre

598
a Instituição de Ensino Superior (IES) e EEFM: experiências desenvolvidas em Prática de Formação na Unidade Acadêmica
da Universidade Estado de Minas Gerais, em Diamantina¹ e seus Polos².

2 As propostas e realizações da instituição formadora dos docentes: possíveis equívocos

Deve-se ressaltar que, naturalmente, o curso de Letras em suas matrizes curriculares, seu projeto político-
pedagógico, contempla as normatizações oficiais vigentes, buscando embasar seu ensino de Língua Portuguesa em
consonância com as políticas educacionais públicas e, em especial, os Parâmetros Curriculares Nacionais e os programas
básicos propostos pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais para o Ensino Básico, no caso em pauta, ou seja,
propõe-se que haja identificação entre seus projetos e as exigências profissionais dos docentes, entre elas, o domínio dos
fundamentos teórico-metodológicos do objeto de ensino e instrumental de trabalho: a linguagem, considerada uma ação
sociointerativa entre sujeitos.
Assim, as disciplinas Língua Portuguesa, Linguística, Análise do Discurso, Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa, Prática de Formação e Linguística Aplicada ao Ensino da Língua Materna, entre outras, têm uma abordagem
dentro das tendências modernas de pesquisa e estudo de cada área do conhecimento.
Mas, há uma inquietação quanto à forma como se faz a conjunção das teorias da matriz curricular com prática
pedagógica do aluno. GERALDI (1996, p.54), de alguma forma, explica esse fato, ao afirmar que, a partir da década de
1980, no interior de programas de pesquisa, instaurou-se nova concepção de linguagem, ligada à Linguística Textual,
Sociolinguística e Análise do Discurso e, por isso, muitos professores universitários brasileiros passaram a articular suas
reflexões teóricas a propostas alternativas de ensino da língua materna. E assim pondera o autor: “decorrida uma década e
meia depois, seria um otimismo ingênuo imaginar que a vulgarização dessas reflexões tenha alterado substantivamente as
práticas de ensino...”
Diante disso, um questionamento: teria a Faculdade, apenas, feito um discurso metalinguístico sobre novas
abordagens do objeto de estudo e instrumento de trabalho, a Linguagem, sem ações determinantes de uma mudança de
paradigmas no ensino da Língua Portuguesa, ou seja, feito tão somente a vulgarização das teorias?
Em inúmeras oportunidades, em planos de estágio, relatórios e observações de aulas por professores
orientadores de Estágio, verificou-se que o ensino de Língua Portuguesa, mesmo usando o texto, privilegiava a gramática
nos moldes tradicionais, assinalando uma verdadeira resistência às propostas do estudo Linguagem em funcionamento, em
função do uso do discurso, em que os sujeitos enunciadores e enunciatários constroem, intersubjetivamente, os objetos de
discurso, no evento da enunciação, o deve levar o trabalho a ser feito sob novas perspectivas. Não resta dúvida de que
houve avanços, mas modestos, e a língua continua a ser vista como um código a ser obedecido e mesmo o estudo da
Lingüística Textual tem um caráter teórico, classificatório

É o mesmo autor supracitado, Wanderley Geraldi (2006, p.12) que lamenta esteja havendo o recrudescimento do
ensino da gramática e explica:

O retorno ao ensino da gramática pode produzir a tranquilidade de consciência que o paradoxo do ensino baseado
em textos coloca para a escola e a sociedade. Definidas normas do dizer e definidos os conceitos com que
descrever a língua, há um objeto a ser transmitido ou ensinado, em seu sentido tradicional. Há prescrições e
descrições.

Soma-se a esse problema a preocupante insegurança dos egressos do Curso de Letras, quanto à sua formação,
fato esse ilustrado por um diálogo com uma candidata a curso de pós-graduação, especialização, que optou pela área da

599
educação. Ao ser questionada pelas razões de sua escolha, respondeu: “eu não trouxe do curso que fiz [Letras]
conhecimentos de Língua Portuguesa suficientes nem para dar aula da disciplina, nem prestar um concurso. Vou tentar na
educação: é mais fácil.” E tem-se claro que não se trata de caso isolado, embora se saibae também não ser a situação
exclusiva dessa área de conhecimento.

3 A prática do estágio nas escolas de ensino fundamental e médio: suas dificuldades

A prática do estágio nas escolas de ensino fundamental e médio tem apresentado sérias dificuldades. Ao
estagiário são repassadas orientações, em consonância com as propostas das disciplinas pedagógicas desenvolvidas ao
longo do curso, no entanto, o aluno-estagiário, na regência de classe, opta pelas metodologias e procedimentos didáticos
do professor-regente de classe, às vezes, não atualizado ou, simplesmente, acomodado às práticas mais facilitadoras como
a adoção irrestrita do livro didático, ou, no dizer de Geraldi (op. cit.), “há um objeto a ser transmitido ou ensinado, em seu
sentido tradicional. Há prescrições e descrições.”

Essa situação se agrava com o fato de os professores de Português das EEFM, também, sentirem dificuldades
em implantar em suas aulas os avanços dos estudos de uma linguística do discurso, embora sejam nela inspirados os
Parâmetros Curriculares Nacionais e os programas propostos, no caso de Minas, pela Secretaria Estadual de Educação
para o Ensino Fundamental e Médio.

A certeza dessa realidade é facilmente constatada, quando se ministram cursos de atualização, de reciclagem,
propostos pelos órgãos gestores da educação pública: Secretaria Estadual de Educação e Superintendências Regionais de
Ensino. O desenvolvimento de reflexão sobre produção e recepção de textos, princípios da gramática textual, estudos de
uma gramática de uso sob a perspectiva enunciativa, tornam-se improdutivos, diante do desconhecimento da
fundamentação teórico-metodológica dessas abordagens, por considerável parcela dos docentes da Educação Básica.
Reforça-se, portanto, a tese: há acentuada dissociação entre o ensino universitário e a prática docente nas EEFM.

4 As representações sociais no jogo interlocutivo entre Instituição Formadora e Escolas de Educação Básica: um
fator interferente no processo de integração

Para acrescentar mais uma possível causa da razão da dissociação entre a teoria e a prática pedagógica, passa-
se a analisar a situação sob outro prisma, numa nova abordagem: a da Teoria das Representações Sociais (TRS). Postula-
se que as representações sociais construídas, ao longo do tempo, pelas instituições envolvidas no processo formativo do
futuro docente, constituam um fator de interferência nas suas relações.
Para maior clareza, define-se, aqui, representações sociais (RS), conforme Moscovici (1981, p.181), “um conjunto de
conceitos, frases e explicações originadas na vida diária durante o curso de comunicações interpessoais.” São, em geral,
crenças calcadas na memória coletiva, retomadas pelo sujeito enunciador, diante da necessidade de explicar um dado novo
em uma ação interlocutiva; são recursos de que ele se serve para se fazer entendido, para avaliar e justificar as posições
assumidas no convívio social.

600
Em outras palavras, são construídas categorizações, rotulações, por processos de ancoragem, que consiste em
estabelecer comparação com conhecimentos pré-construídos, e ao mesmo tempo, o sujeito configura uma imagem do ser,
entidade a que se refere, pelo processo de denominado objetivação.
Assim, as representações sociais permitem, como preconiza Abric (1986), a elaboração de um sistema de
referência que serve para avaliar, apreciar ou rejeitar os comportamentos dos outros; julgamentos; decisões, atitudes são,
muitas vezes, determinadas, orientadas pelas representações que, em geral, fazem parte do senso comum de um grupo
social.
Para se estabelecer a relação existente entre as representações sociais dos sujeitos e a dissociação entre o
processo de formação do estagiário e docente de Língua Portuguesa, necessário se torna identificar o que pensam os
alunos sobre a Academia e as Escolas, assim como saber de que forma as escolas veem a instituição formadora dos
docentes, seus alunos egressos, seus estagiários, no tocante às práticas de regência de aulas de Português, isto é, quais
categorizações, rotulações, são construídas, quais são as representações capazes de interferir no comando das ações
desencadeadas.
Py (2000) destaca, em sua análise sobre o aprendizado de uma língua estrangeira, o importante o papel das
representações do estudante sobre a língua objeto de estudo, as quais constituem um fator de sucesso ou fracasso na
aprendizagem, o que, sem dúvida é extensivo, a outras áreas de conhecimento. A representação determina o maior ou
menor envolvimento do sujeito com o trabalho, considerada também a afetividade desse sujeito.
Feitas essas considerações, pode-se afirmar que alguns depoimentos de alunos do curso de Letras revelam
essas representações, que denunciam o abismo existente entre conhecimentos acadêmicos e prática docente, em especial
durante o Estágio Supervisionado. O discurso de um aluno, durante uma discussão em sala de aula, após atividades de
estágio: mostra a sua representação da Academia:
1“[...] pois a Faculdade é lugar de teorias, que nada ajudam para a gente dar aula na escola”.( MF)

Como se vê, a representação na fala do aluno situa a Universidade como instituição de ensino “superior”,
construtora das ciências, bem distantes dos conhecimentos do senso comum. Ancora-se (processo de ancoragem) essa
representação em conceitos pré-construídos, registrados na memória coletiva e, enfim, a universidade é colocada como
“guardiã do conhecimento científico, das teorias”: são instâncias isoladas, há distanciamento entre instituição formadora e
as instituições onde os alunos exercem a função de professores. A objetivação transforma o conceito de academia em
imagem e a representação é assim estruturada: “faculdade /lugar de teorias.”

Em razão disso, não vê o futuro docente possibilidades de utilização dos fundamentos teórico-metodológicos para
o trabalho com produção e recepção de textos, nem para se analisar a estrutura do enunciado sob uma perspectiva
discursiva; ele não procura focalizar o enunciador e enunciatário, no aqui/agora do evento enunciativo, produzindo um
discurso, cujo sentido é resultante de todo o processo de semantização e não estabelecido a priori. Prioriza-se, portanto, o
enunciado em detrimento da enunciação, como já se disse e, ainda, muitas vezes, utiliza-se o texto (discurso) como simples
pretexto para o ensino da gramática prescritiva e classificatória.

Depoimento de outro estagiário, em relatório, mostra uma representação bem característica da relação de poder
entre os papéis sociais desempenhados pelos atores: professores- regentes e estagiários:

2) O professor regente da classe determina o conteúdo e como dar a aula, portanto a gente não pode fazer nada
diferente do que ele manda.”(MC)

601
Aqui, surge a representação do professor, que tem a sua identidade construída considerado o lugar social que
ocupa como detentor do saber e investido do poder de repassá-lo aos que não sabem: os alunos; infere-se a representação
que o professor constrói do estagiário: aquele que não tem “competência” para dar continuidade ao programa elaborado
pelo regente. Além disso, diante das experiências do observador, percebe-se na representação ser o estágio uma
“concessão”, um prestimoso favor à Universidade, uma vez que é considerado mais causa de transtornos que benefícios na
sala de aula. E, dessa forma, as práticas da ação intersubjetiva, da interação, mais uma vez, ficam restritas aos propósitos
inseridos nos projetos, sem a disposição do professor a um “trabalho a quatro mãos”.
Reitera-se, pois, que as representações sociais produzidas revelam, por parte das instituições, uma ruptura, ou
seja, desconhece-se o caráter complementar entre ambas, em que as conquistas, os avanços dos alunos da Instituição de
Ensino Superior (IES) deveriam tornar-se subsídios para intervenção na EEFM, com vistas à melhoria do processo de
ensino-aprendizagem do Português. Além do mais, é forçoso considerar que a boa formação dos alunos dos cursos de
licenciatura constitui, sem dúvida, uma garantia de um quadro de profissionais mais eficientes nas EEFM, processo esse
que fica seriamente comprometido pelas atitudes dos sujeitos, identificadas em suas representações.
Diante disso, pergunta-se: é possível modificar essas representações?

Py ( 2000) propõe a divisão das representações sociais (RS) em Representações de Referência (RR), que
configuram o núcleo central estável, pertencente à memória discursiva de um grupo social e Representações de Uso (RU),
que remetem aos esquemas periféricos, que são as variáveis particulares dos enunciadores dos discursos no momento da
enunciação, provenientes de novas experiências vividas, de novos conceitos formulados.

Por conseguinte, embora as representações sociais sejam impostas, transmitidas, elas não permanecem
engessadas, fixas, elas são produtos de elaborações ocorridas no evoluir do tempo pelos participantes de uma comunidade,
portanto, modificam-se de acordo com as participações individuais dos sujeitos do discurso e as diversificadas situações
contextuais, sociais e culturais.

Em outras palavras, as representações dos estagiários, apresentadas acima, são as Representações de


Referência (RR), que podem ser modificadas em Representações de Uso (RU), como já se ponderou, de acordo com as
participações dos sujeitos com suas novas experiências. Para ilustrar essas asserções, são apresentadas algumas
propostas de Prática de Formação, abaixo descritas, consideradas uma significativa experiência de mudança das
representações sociais entre as instituições: IES e EEFM.

5 Por uma mudança das representações e uma maior integração entre a IES e EEFM: atividades de Prática de
Formação desenvolvidas

A experiência desenvolvida para maior integração entre o curso de Letras e as escolas de Educação Básica,
supracitada, representou um avanço na formação de estagiários, docentes de Língua Portuguesa e desenvolveu-se na
disciplina de Prática de Formação, durante todo o curso, na unidade acadêmica da Universidade Estado de Minas Gerais,
situada em Diamantina¹ e seus Polos².

Em linhas gerais, o projeto foi construído em consonância com os dispositivos legais, o projeto político-pedagógico
da Instituição e o projeto do curso de licenciatura em Letras, levando-se em conta, entre outros aspectos, a correlação
teoria/prática, o conjunto do ambiente escolar, o projeto político-pedagógico da escola, a articulação com o estágio

602
supervisionado. As atividades de Prática de Formação constituíram-se em espaços de reflexão, socialização e articulação
entre as diversas disciplinas do período e do curso, em torno do “fazer docente”.

Para cada Período do curso foi definido um eixo articulador, traçados seus objetivos e estratégias, bem como
estabelecidos os produtos a serem construídos e apresentados pelos alunos. O primeiro eixo articulador: o “conhecimento
do ambiente escolar, considerando-se a relação entre a Instituição Formadora e as Instituições de Educação Básica” é o
objeto de estudo nesta comunicação e que, inicialmente, proporcionou a maior integração entre as instituições IES e EEFB.

No universo de propósitos e realizações do Projeto elaborado e aplicado, importa sejam ressaltadas as dinâmicas
desenvolvidas que possibilitaram a construção e/ou reconstrução as representações sociais recíprocas entre as instâncias
envolvidas no processo de formação docente e que fundamentaram um trabalho cooperativo, embasado em representações
novas ou reconstruídas.

Assim, foram realizadas: mesas-redondas, entrevistas, seminários, minicursos, palestras para estudo, reflexão e
discussão de assuntos de interesse comum das instituições, ao longo do curso, em clima de simpatia e cooperação, a que
compareciam diretores de escolas, supervisores, professores de Português, secretários municipais de educação, entre
outros convidados.

Os produtos planejados e executados foram: potfólios avaliativos das disciplinas do curso feitos pelos alunos da
faculdade; construção e alimentação de bancos de dados das escolas; publicação de um jornal de cada turma, distribuído
nas instituições e localidades de realização do estágio, além de relatórios circunstanciados do trabalho desenvolvido ao
longo do curso de Prática de Formação, do primeiro ao oitavo períodos. Esses produtos constituíram interessantes
documentos, que mais do que registro dos eventos, de alguma forma, avaliaram cada passo do processo levado a efeito,
tendo atestado resultados surpreendentes.

Com essas dinâmicas, pôde-se perceber que muitas representações sociais foram mudadas pelo conhecimento
mútuo, pela integração das ações e cumplicidade entre parceiros. Enfim, foi verificada considerável e compensadora
otimização dos resultados.

6 Considerações Finais

Desprovidas do habitual caráter conclusivo, estas considerações finais buscam ratificar a tese defendida:
existência de uma dissociação entre a formação do docente de Português na Academia e o seu exercício da regência das
aulas, nas escolas de Ensino Fundamental e Médio, sendo o tema objeto de uma rápida análise, discutidas situações
concretas e apresentadas justificativas pelas asserções feitas.

Foi defendida a influência das representações sociais dos participantes do processo pedagógico nas atividades
de estágio, propondo-se uma ação efetiva na reconstrução de determinadas representações de referência, ponto
desencadeador das divergências, em representações de uso, que possam beneficiar o processo de intercomplementaridade
das instituições na formação do docente de Língua Portuguesa, por estratégias elencadas no trabalho de Prática da
Formação da Faculdade de Letras de Diamantina, de que foi apresentado apenas um eixo articulador, o primeiro de uma
sequência.

603
Há de se ressaltar que ideal seria, para acompanhar os percursos da prática de formação de docentes dos
licenciados em Letras, fossem aprofundados estudos que levassem em conta os componentes gerais de uma ação
interlocutiva, dialógica entre os sujeitos envolvidos, na discussão de seu objetivo comum; que se considerassem as
instâncias sociais, os anseios e realidades do grupo de pertença e as suas relações com as instituições educacionais,
cenário em que os sujeitos interagem (o que, naturalmente, não comporta no presente trabalho).

Na esteira dessas reflexões, lamenta-se que não obstante linguistas e pesquisadores das universidades envidem
ingentes esforços na conquista de novos caminhos, na construção de teorias condizentes com os avanços das diversas
ciências, os resultados desse trabalho não têm produzido efeitos eficazes no “fazer docente” das instituições da Educação
Básica, ficando bastante restritos às Academias, ou seja, não tem havido uma efetiva interação entre as instâncias, o que,
inevitavelmente, dificulta que as escolas de Educação Básica se beneficiem mais intensamente dos avanços conquistados
pelas pesquisas universitárias.

Não se pode desconhecer que exceções existem. A ênfase dada à abordagem feita se deve à ótica do
pesquisador, conforme o posto de observação adotado e realidades constatadas ao longo do tempo de magistério e de
administração, na Educação Básica e no Ensino Superior.

Em relação especifica ao objeto da presente reflexão, é oportuno, enfim, afirmar que as atividades de Estágio, de
Prática de Formação, São um canal competente e eficaz para a interação entre instituições; que interferências pessoais e
de grupo, em cada instância educacional, possibilitam mudanças nas recíprocas representações sociais de referência, em
representações sociais de uso; enfim, cada instituição pode “representar” a outra, como parceira na formação dos docentes
de Português, cúmplice no processo e beneficiária dos resultados.

Notas

1 A Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina (FAFIDIA) é uma unidade acadêmica da Fundação Educacional do Vale do
Jequitinhonha, associada do à Universidade Estado de Minas Gerais e as escolas de ensino fundamental e médio (EEFM),
predominantemente públicas, localizam-se na cidade histórica Diamantina, localidades e municípios circunvizinhos, em Minas Gerais.

2 Os Polos referidos são os municípios: Rio Vermelho, Conceição do Mato Dentro, Capelinha, Minas Novas e Arassuaí, em Minas Gerais.

7 Referências

ABRIC, Jean-Claude. Pratiques sociales et représentations. Paris: Presses Universitaires de France,1986.

BENVENISTE, E. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989.

BRASIL, Ministério da Educação e da Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua Portuguesa (ensino
fundamental e ensino médio), 1998.

BRONCKART, J.P. Atividades de linguagem, textos e discursos; por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo:
Educ, 1999.

GERALDI, João Wanderlei. A presença do texto em sala de aula. In: Linguística, texto, discurso: entre a reflexão e a
prática. Lucerna: FALE/UFMG. 2006.

MATENCIO, Maria de Lourdes Meireles; RIBEIRO, Pollyanne Bicalho. A dinâmica das representações sociais: o que
nos dizem os dados textuais? In: Estudos linguísticos. São Paulo, 38 (3): 229-238, set-dez. 2009.

604
MINAS GERAIS, SEE. Conteúdos básicos para o ensino de Língua Portuguesa: Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Belo Horizonte, 1994.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003.

PY, B. Représentations sociales et discours. Questions épistémologiques et


méthodologiques. In: Travaux neuchâtelois de linguistique, 32. Neuchâtel: Université
de Neuchâtel, 2000. p. 5-20. (Digitalizado)

_____. Pour une approche linguistique des représentations sociales. In: Langages:
Répresentations métalinguistiques ordinaires et discours, 154, Larousse: Paris, 2004.

Neusa de Araújo Fernandes, doutoranda em Língua Portuguesa e Lingüística, na Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais; ex-diretora e ex-professora de Português do Ensino Fundamental e Médio; ex-diretora e ex-professora de Língua
Portuguesa, Linguística, Metodologias e Prática Pedagógica da Universidade do Estado de Minas Gerais, Unidade da
Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha, em Diamantina, MG.
E-mail: neusaara1@gmail.com

605
A divulgação científica por meio do blog

FERREIRA, Rejane Ricardo


(UNISINOS)*

Constata-se nos dias de hoje a inegável presença da tecnologia, em especial a Internet, para se criar e divulgar
informação e também para produzir conhecimento. Segundo Pierre Lévy, no artigo “A emergência do cyberspace e as
mutações culturais” (2000), o espaço cibernético é o terreno onde está funcionando a humanidade hoje (p. 13). Ele
considera a Internet um novo espaço de interação humana que tem contribuído muito para o desenvolvimento do domínio
científico e que se estende diariamente a outros domínios. Menciona ainda que:

Com o espaço cibernético, temos uma ferramenta de comunicação muito diferente da mídia clássica,
porque é nesse espaço que todas as mensagens se tornam interativas, ganham uma plasticidade e
têm uma possibilidade da metamorfose imediata. (p.13)

É essa interação que vai facilitar o aprendizado pensando no ambiente didático com auxilio dos hipertextos. Eles
ampliam os conhecimentos daqueles que buscam o saber na Internet e proporcionam um enriquecimento ímpar de
informações através dos múltiplos links, presentes nestes textos.
Em relação às formas de se produzir e divulgar a ciência, a tecnologia possibilita novas formas de sistematizar a
informação, é perceptível a existência de novos tipos de interação entre os cientistas e o público. Neste aspecto, para a
produção científica, a Internet aparece como uma espécie de biblioteca virtual, onde diariamemente novas informações
científicas são disponibilizadas. E com o auxílio de alguns recursos o internauta pode ser notificado por e-mail toda vez que
uma atualização for feita, no seu site “preferido”.
A partir dessa tecnologia, as possibilidades de relacionamento entre os cientistas e as facilidades de publicar
resultados têm se ampliado, fato que possibilitou a produção da informação científica virtual ampliando o cenário em que
este tipo de informação vinha tradicionalmente se processando.
A contribuição mais relevante desta dissertação de Mestrado: A divulgação científica por meio do Blog será,
através de uma pesquisa qualitativa, analisar se o Blog Bússola atua como um divulgador científico no ambiente virtual.
Para isso realizamos um levantamento dos recursos interativos, utilizados por este blog, que servem de suportes para que
esse processo de popularização da ciência seja possível, analisamos as estratégias escolhidas, que visam uma maior
interação entre autor e leitor, assim como os tipos de textos empregados nas postagens. Em um segundo momento dessa
pesquisa, verificaremos também em que medida a linguagem empregada é acessível e de fácil compreensão, ou seja,
como são realizadas as explicações das descobertas e se as palavras empregadas são realmente direcionadas a não
especialistas. Também investigaremos no corpus selecionado marcas pertinentes a esse tipo de midiatização científica, pois
além de informar, esse texto precisa captar o leitor, objetivamos perceber de que maneira isso ocorre.
O blog é um tipo de ferramenta virtual que envolve/instiga seus leitores usando não só elementos textuais, mas
também imagens dotadas de poder persuasivo (umas mais, outras menos), que vão desde cores, ilustrações, forma de
apresentação até a linguagem utilizada pelo locutor. Além disso, através de links, o leitor pode ser transportado para
*Graduada em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Mestranda no Programa de Pós-graduação em
Linguística Aplicada da mesma instituição.
E-mail: rejani.ferreira@gmail.com

606
diversos tipos de textos, possibilitando uma interação participativa e até mesmo colaborativa, que é possível através de
postagens de comentários, sobre os textos lidos.
O início do movimento dos blogs no mundo, surgiu já há algum tempo, considerando a rapidez com que as coisas
acontecem na rede. Os primeiros datam de 1999, nos EUA, e 2000, no Brasil. Há vários serviços disponíveis, alguns mais
"tradicionais" como o Blogger (http://www.blogger.com), e outros mais recentes, frutos da popularização dessas páginas,
como o do UOL (http://www.uol.blog.br). Eles marcam uma geração de pessoas, grande parte ainda composta por jovens,
que interagem na rede e que veem ali a possibilidade de se mostrarem como indivíduos únicos em meio a uma massa
cibernética. Lê-se aquilo que desperta interesse.
Maria Clara Aquino (2009), uma das autoras do livro Blogs.com: estudos sobre blogs e comunicação, acredita
que:

Como ferramentas que possibilitam a qualquer internauta a publicação de conteúdo on-line, os blogs
também se constituem como um meio de representação e recuperação de informação por meio do
hipertexto, que finalmente pode ser construído de forma coletiva.O hipertexto é útil para que os blogs
ganhem visibilidade na web. Quando são criados, seu autor passa a visitar e comentar em outros blogs
deixando o link do endereço do seu blog, que assim é visitado pelo autor do blog que recebeu seu
comentário e pelos demais leitores. (...)

O uso das ferramentas computacionais que envolvem a prática de leitura e escrita nos dias de hoje, cada vez
mais, apresentam um caráter interativo e participativo. O blog, por si só, melhora as relações interpessoais, e ainda,
possibilita maior reflexão sobre as colocações de cada um, favorecendo a aprendizagem por meio de possíveis trocas de
experiências.
O Bússola, blog do site da revista Ciência Hoje, é atualizado pelos jornalistas da CH On-line e da CH impressa.
Ele traz notícias curtas sobre a atualidade científica no Brasil e no mundo, um apanhado do que há de melhor sobre ciência
na internet e novidades dos bastidores da redação. Ao acessar o site da revista, logo na página inicial, podemos visualizar
as últimas postagens que foram realizadas no blog. O site também disponibiliza aos internautas um recurso chamado RSS,
o leitor que solicitar esse serviço será notificado, por e-mail, sempre que forem publicadas novidades no blog, ou em
qualquer outra seção do site de interesse dele.
Em um primeiro contato com o site da Revista Ciência Hoje, surgiram algumas dúvidas em relação à semelhança
entre dois campos (abas) - blog e coluna - ambos apresentam textos de divulgação científica e tecnológica, porém se
diferem, em alguns aspectos, pois as colunas são separadas por assuntos específicos, então cada jornalista tem sua
coluna, própria, onde posta textos de um único assunto. Por exemplo, a coluna Física sem mistério, é mantida pelo físico
Adilson de Oliveira, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), seus textos apresentam de forma
descomplicada temas ligados a física e astronomia, somente. A mesma dinâmica ocorre em outras sete colunas do site.
Diferentemente, no blog Bússola os textos que são postados diferem em relação ao assunto e também a seus
autores. Gerando maior informação através de um único campo, fazendo com o que o leitor se mantenha informado sobre
diversos âmbitos de conhecimento, ou seja, sobre tudo o que está acontecendo, no mundo, relacionado à divulgação
científica e tecnológica. Já as colunas são separadas por assuntos específicos, disponibilizando uma forma de divulgação
de conhecimentos mais organizada. A escolha do campo, a ser explorado, – blog ou coluna - vai depender do interesse
daquele que busca a informação.
Em relação aos textos encontrados neste gênero discursivo, objeto deste trabalho, são os chamados Hipertextos.
Segundo XAVIER (2004), o hipertexto pode ser entendido como uma forma híbrida, dinâmica e flexível de linguagem que
dialoga com outras interfaces semióticas, adiciona e condiciona à sua superfície formas outras de textualidade (p. 171). É

607
considerado por alguns autores como um texto bastante interativo e dinâmico que está em constante movimento o que o
difere de um texto de jornal ou de uma revista, característica que proporciona entretenimento a seus leitores.
Isso tudo porque através de apenas um clique o leitor pode navegar por outros sites partindo de um link de um
hipertexto, característica que imprime nesse texto total credibilidade, pois qualquer internauta pode confirmar informações
de uma notícia, por exemplo, acessando, através dos links, sites ao qual aquele texto se refere. Ou seja, estamos diante de
um tipo de texto que se conecta a outros, bem diferente dos textos impressos que circulam na mídia.
Além dos hipertextos, outros recursos, que dispensamos atenção, foram os comentários e o fórum.
Percebemos que um número pequeno de comentários de leitores são disponibilizados no site, não foi possível
quantificar quantos são encaminhados para o “moderador” do blog, que é quem autoriza a postagem do comentário
realizado por um leitor. Qualquer internauta pode formular comentários, mas só são postados no blog aqueles que são
autorizados pelo moderador, só não são autorizados aqueles que contêm ofensas ou configuram spam.
Em relação ao fórum, do site da revista, ele não é “alimentado” só pelos leitores do blog, mas por todos aqueles
que acessam o site. Ou seja, as trocas que são realizadas, nesse campo, entre leitor e Revista, não são relacionadas ao
blog. Por esse motivo não achamos interessante analisar as postagens efetuadas ali, certamente pode ser considerado um
canal de interação entre Revista e leitor, em função das trocas que ali ocorrem, porém estas não estão relacionadas às
postagens do Bússola, que é o objeto de nossa análise. Nesse canal são postados elogios, críticas e sugestões para um
possível aprimoramento constante do site da Revista.
Para procedermos a uma análise qualitativa, deste objeto vinculado a um veículo de comunicação, é necessário
tratar do contrato de comunicação midiática, para isso empregamos a teoria proposta por Charaudeau (2008) que trata
especificamente desta questão, que foi abordada em uma de suas obras, para melhor explicitar, vejamos uma importante
afirmação do autor:

As mídias de informação têm, então, que resolver um problema de credibilidade, isso porque elas são
levadas a usar estratégias de autenticação de fatos com a ajuda de testemunhas e de documentos, de
revelações com ajuda de entrevistas, de enquetes ou de debates polêmicos, de explicações sobre o
porquê e sobre o como dos acontecimentos. (p.14)

Blogs que estão vinculados a veículos de comunicação em geral, por si só, possuem grande credibilidade entre os
leitores, gerando uma significativa aceitação. Isso tudo porque existem inúmeros blogs que, aparentemente, possuem o
mesmo objetivo, de divulgar ciência, e diferem em relação a seus criadores. Alguns foram criados por estudiosos, outros por
cientistas, pesquisadores da área, há também aqueles que foram elaborados por pessoas que não possuem um
conhecimento especializado sobre o assunto, mas se propõem a escrever. Esses últimos, nem sempre passam
credibilidade ao leitor, pois não representam “fontes seguras” de informações. Como estamos nos referindo a um gênero
discursivo que está inserido no ambiente virtual, as opções são inúmeras, por isso se faz necessário atentar a estas
questões.
É primordial considerar as diferentes características discursivas dos textos que são produzidos e postados em
blogs, que abordam a divulgação científica, assim como as características da situação de comunicação nas quais ele se
insere. Segundo CHARAUDEAU (2009), para que haja comunicação, locutor e interlocutor:
devem levar em conta os dados da situação de comunicação. Não somente todo locutor deve
submeter-se às suas restrições (a menos que queira transgredi-las, mas isso mostra que reconhece
sua existência), mas também deve supor que seu interlocutor, ou destinatário, tem a capacidade de
reconhecer essas mesmas restrições. O mesmo acontece com todo interlocutor, ou leitor de um texto,
que deve supor que aquele que se dirige a ele tem consciência dessas restrições. (p.67, 2009)

608
Em outras palavras, em um processo de comunicação, os “pares” precisam estar cientes das condições da
situação do contrato de comunicação na qual estão inseridos, para que o real objetivo do locutor seja alcançado. Este
locutor, por sua vez, precisa agir de forma reconhecível frente a seu interlocutor, aquele que irá receber as informações.
A identidade desses parceiros, dentro do gênero discursivo que este trabalho estudará, identificados como
locutores serão, possivelmente, jornalistas, editores e demais profissionais que atuam em veículos de comunicação que,
supomos, estariam se dirigindo ao público jovem. Devemos considerar que esses “possíveis” interlocutores podem possuir
conhecimentos diversos, quesito que deve ser analisado para o emprego de um vocabulário adequado e também para o
uso de estratégias que possam captar esse leitor de alguma maneira.
A finalidade do discurso científico é o “fazer saber”, caracterizando não somente por querer informar, mas por
estabelecer algo verídico, uma descoberta. Para isso é necessário que o locutor exponha, em seus textos, certo raciocínio
juntamente com um posicionamento que poderá gerar uma possível problematização. Porém, nesse caso, sem o intuito de
suscitar, em seu interlocutor, qualquer tipo de opinião.
No caso da divulgação científica, segundo Charaudeau (2008), ocorre uma dupla finalidade: a de informar - “fazer
saber” - e a de captar - “fazer sentir”-esse último corresponde à possibilidade de despertar no outro, durante a leitura,
alguma sensação ou mudança em seu estado emocional.
O dispositivo que predomina é o ambiente virtual, onde internautas, de qualquer computador, em qualquer lugar,
podem ter acesso às informações postadas em blogs.
Existem várias possibilidades de chegarmos até esse dispositivo, hoje, muito mais do que ontem, as chamadas
“lan houses” estão espalhadas por todos os lugares prometendo um acesso fácil e rápido a internet, na maioria das vezes,
com baixo custo.
O tema dos textos de divulgação científica consiste num objeto de saber da ciência, “mas, muito frequentemente,
vem desatrelado da disciplina a que normalmente se liga” (CHARAUDEAU, 2008, p. 18), pois se supõe que o público leitor
não possui um corpo de leituras sobre o assunto. Para Charaudeau (2008, p. 19) a partir daí “procede-se, então, a uma
dessacralização do discurso científico que é às vezes compensada por uma espécie de ética da popularização do saber
científico”. Ou seja, esse discurso científico pode vir a ser parcialmente isento de qualquer termo técnico ou palavras que
poderiam ser reconhecidas apenas por profissionais diretamente relacionados a uma área específica.
A divulgação científica é abordada por este autor através da expressão “vulgarização científica”, usada pelos
franceses, que ocorre cada vez que se tenta tornar claro o que é complexo; cada vez que se coloca um discurso erudito ou
técnico ao alcance de não especialistas. No plano da linguagem, a recodificação consiste em interpretar e modificar o saber
que deu origem à informação para torná-la acessível a um grande público.
Sobre essa divulgação científica na esfera midiática CHARAUDEAU 2008, afirma que:
O discurso de vulgarização científica só pode ser denominado assim em relação àquilo que pode ser
definido como sendo o discurso científico (DC). Uma primeira questão se coloca aqui, a de saber se o
discurso de vulgarização é uma tradução, uma reformulação ou uma transformação de um discurso de
base que seria o discurso científico. O discurso de vulgarização científica aparece, por definição, numa
situação de comunicação distinta daquela na qual aparece o discurso científico, se assim não fosse,
por que vulgarizá-lo? A questão que se coloca é a de conhecer as características das situações nas
quais aparecem os discursos científicos e os discursos de vulgarização científica. (p.12)

O discurso de divulgação científica não pode ser apenas uma tradução de um discurso científico, ele precisa
também atender as condições da situação de comunicação nas quais está inserido, por isso é necessário que saibamos
distinguir um discurso científico de um discurso de divulgação científica.

609
O termo “divulgação científica” também é abordado pela estudiosa Lilian Márcia Simões Zamboni que
desenvolveu sua tese de doutorado, “Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no
discurso da divulgação científica”, voltada para esse tema. Sirio Possenti, que foi orientador da autora no desenvolvimento
de sua tese, é quem assina o texto de apresentação do livro, elaborado por Zamboni, onde afirma que:

a divulgação científica encontra seu solo, suas condições de possibilidade, ou, pelo menos, as
condições do incremento que a tornam cada vez mais relevante, na necessidade de que o que deriva
da ciência não é de interesse exclusivo dos cientistas.(2001, p.14)

Essas palavras nos levam a pensar que, se há divulgação da ciência, é porque existe um interesse por parte das
pessoas que não fazem parte do processo de produção da ciência, que estão completamente “fora” deste mundo. Através
da tecnologia é possível constatar que a ciência é cada vez mais consumida, talvez esteja aí a explicação para o
crescimento do interesse pela divulgação científica, por públicos diversos.
Zamboni traz nessa afirmação, de forma clara, como ela visualiza esse processo:
Vejo no discurso da divulgação científica um gênero discursivo particular, distinto do gênero do
discurso científico, autônomo tanto quanto qualquer outro discurso possa ser, e envolvente e cativante
tanto quanto qualquer boa mercadoria colocada à venda deva ser. (2001, p.18)

A autora compara o discurso de divulgação científica a um discurso publicitário que deve não só divulgar, mas
instigar, interessar e ao mesmo tempo envolver o leitor para que alcance o efeito desejado.
Para Greg Myers (2003), importante estudioso do processo de popularização da ciência, ela surge apenas de
textos sobre ciência que não são dirigidos a outros cientistas. Em um de seus artigos, ele apresenta um estudo sobre um
artigo publicado na revista Cell que também foi publicado na revista Scientific Americam e em um documentário na
televisão, essas publicações partiram do mesmo artigo, porém foram formuladas e apresentadas de maneiras distintas,
devido ao público que acessa esses meios de comunicação, ele afirma que esses materiais precisam se tornar
popularização para que sejam entendidos pelo público.
Myers argumenta ainda que o interesse nos textos de ciência popular surge de linguistas aplicados que tentam
relacionar o discurso cientifico a outros discursos assim como tentam melhorar o ensino e a compreensão de línguas,
interessados na relação existente entre ciência e sociedade, e aos efeitos que a mídia provoca em seus
leitores/telespectadores e etc.
O autor afirma que a visão de dentro das instituições cientificas que prevalece é a de que o público/sociedade é
comparada a uma lousa em branco, em relação aos conhecimentos que possui sobre ciência. Podemos relacionar esse fato
ao fato de que se isso acontece deve ser porque a sociedade não é incluída no processo de produção da ciência, é apenas
informada, através da divulgação científica.
A afirmação de Myers se aproxima à ideia de Jean-Marc Lévy-Leblond (2006), que assina o artigo “Cultura
científica: impossível e necessária”, para ele o público, em geral, não aprova o desenvolvimento da ciência, simplesmente
porque não compreende como uma descoberta científica ocorre. Leblond entende que o público deveria compartilhar o
poder de escolher os rumos de uma pesquisa, que houvesse democracia, fato que daria a essas pessoas um pouco mais
de interesse, já que, hoje, a opinião delas não influencia nesse processo. Por que ter interesse em algo que não podemos
nos sentir participantes ativos? Certamente seria bem mais interessante poder ler algumas descobertas se sentindo “parte”
delas.

610
O estudioso retoma algumas concepções do passado quando a percepção pública da ciência era de que o público
era completamente leigo a qualquer assunto relacionado à ciência, e os cientistas, em contrapartida eram considerados
sábios.
Sabemos que os cientistas não dominam tudo, são apenas especialistas em algumas áreas, mas não em todas
como se pensava, ou seja, são leigos em assuntos não relacionados a sua especialização, seu domínio de estudos.
Diferentemente Carlos Vogt (2006) defende a tese de que diariamente a nossa sociedade recebe uma carga
bastante significativa de informações relacionadas à ciência e à tecnologia em geral. Segundo este autor, é possível estar
informado dos acontecimentos científicos, sem estar envolvido diretamente no processo de produção ou de aprendizagem
da ciência, pensamento que vem ao encontro de todos os autores mencionados neste estudo. Para ele, isso é possível
através da divulgação científica que é a maneira pela qual a ciência se insere no cotidiano da população, utilizando para
isso uma grande variedade de meios, recursos, técnicas suportes e processos para a veiculação das informações científicas
e tecnológicas ao público em geral.
Vogt afirma que a divulgação científica serve para fazer a comunicação das ciências e das tecnologias, da qual
temos liberdade de participar ou não. Sendo assim, uma cultura científica é considerada, por ele, como um processo cultural
que engloba: alfabetização científica, popularização da ciência e a compreensão pública da ciência. Ainda segundo Vogt
(2009), a cultura científica pode ser vista através de uma espiral, pois ela mostra que não há descontinuidade do processo,
haverá sempre um novo ciclo de enriquecimento e de participação ativa dos atores em cada um dos momentos de sua
evolução.
O autor enfatiza ainda que, hoje, os cursos científicos são pouco procurados, houve uma redução do interesse do
público em cursos universitários relacionados à ciência. Para ele, isso se deve ao fato de que visitar centros de cultura
científica tem um custo elevado (individual), por esse motivo não chamam a atenção do público, esse fato só muda quando
participamos de visitas coordenadas, com professores que buscam diferenciar suas aulas, o que não ocorre com
frequência. Possivelmente, nossos jovens não estão sendo estimulados nas escolas para que busquem conhecimentos
científicos e se interessem por eles, o que justifica a baixa procura dos cursos de graduação em ciências, ou áreas afins.
Sobre esse assunto, Leblond (2006) defende a tese de que o problema maior não é como devemos divulgar a
ciência, mas sim como devemos inserir novamente a ciência dentro do âmbito cultural. Para isso é preciso mudar o modo
de fazer pesquisa, fazendo uma (re)inserção da ciência na cultura, mudando assim o modo de fazer ciência. Isso tudo
porque ele defende que o mundo hoje passa por um processo de desculturalização em virtude de diversas
ocorrências/escândalos que foram veiculadas na mídia, no meio de produção da ciência e também devido a inúmeras
promessas realizadas e não cumpridas por cientistas.
Leblond acredita que algumas atitudes poderiam ser tomadas para que todas essas questões fossem sanadas.
Algumas delas seriam desenvolver novos meios de formação para os pesquisadores, ensinar a história da ciência, na
opinião de Leblond, a ciência deve voltar ao centro da cultura encarando sua história (p.42). Enfatiza que a sociedade deve,
antes de mais nada, ter melhor compreensão da natureza da atividade científica, não só dos seus resultados e descobertas.
Jurdant (2006) tem uma concepção diferente daquela sustentada por outros autores, ele acredita que é preciso
que se faça divulgação científica, para que possamos refletir sobre ciência e também para que possamos integrar sócio-
culturalmente as ciências.
Ele explica que antes a divulgação era escrita na forma de diálogos ou de conversações e que eram
representados diferentes pontos de vista sobre as mesmas questões. Hoje, ela esclarece as realidades do mundo,
empregando a ficção para apresentar a ciência ao público.

611
Marcelo Gomes Germano (2007), no artigo “Popularização da Ciência: Uma Revisão Conceitual” explica os
significados de alguns termos que norteiam essa noção de divulgação científica, que ora é tratada como vulgarização da
ciência, em outros momentos é chamada de popularização científica e também de alfabetização científica. Para Germano,
todos esses termos seriam empregados erroneamente como sinônimos de uma mesma prática (p.7).

O autor assegura que:

É no concreto da atuação que encontramos o lugar e a adequação do conceito. É na maneira de


intervir que se revela um sentido para o conceito. A questão não se reduz à semantic, mas a uma
prática cercada de riscos e apostasy. De um lado de nós, os intelectuais, apoiados no poderoso
conhecimento científico, querendo estabelecer um diálogo com o povo oprimido a respeito desse
conhecimento. Do outro, o povo com suas próprias estratégias e respostas para as várias demandas
de seu cotidiano; na maioria das vezes, conseguindo sobreviver tranquilamente sem a nossa ciência.
(p.20)

Germano enfatiza que não podemos definir uma única expressão como “correta”, precisamos relacioná-la ao
contexto, ou seja, a situação em que aquela expressão será inserida, pois cada termo carrega uma história e um “poder”.
Elaborei neste artigo uma longa exposição de teorias abordadas por autores que tratam especificamente do
processo de divulgação cientifica, por julgar que esses diferentes conceitos de um mesmo processo, de alguma forma, se
complementam e servem para que possamos perceber quão amplo tem se mostrado esse campo. Constatei a ocorrência
de uma possível confusão conceitual, conforme aborda Germano, que pode ser justificada pelo fato de que cada autor
entende, compreende esse processo de divulgação de maneira distinta. Cada estudioso aborda aquelas questões que
acredita ser mais relevantes e significativas para a explicação desse processo. Porém todas as definições reunidas neste
artigo podem ser analisadas como importantes dentro de um processo de popularização da ciência: instigar, envolver,
informar e captar o leitor, entre tantas outras questões, devem ser características presentes em um texto de divulgação,
quanto maior a dedicação do autor do mesmo, maior será o alcance dessa popularização.
Por outro lado, o que realmente motivou a realização deste trabalho foi ter a possibilidade de mostrar a
importância da divulgação da ciência para um público não especializado, que está diariamente presente no ambiente virtual,
navegando e tentando se manter informado de alguma forma. Esses internautas precisam perceber que a ciência, assim
como a tecnologia estão presentes no nosso cotidiano, quando acendemos a luz, falamos ao celular, apertamos o interfone,
ligamos o alarme, acessamos a Internet e etc. Através desta dissertação de Mestrado, nosso objetivo maior é descobrir
se realmente ocorre a divulgação científica por meio do blog Bússola, ferramenta que, segundo nossa hipótese, apresenta
uma linguagem diferenciada, envolvendo não só elementos textuais, mas também imagens, conforme já mencionamos.
Além disso, através de links, presentes no hipertexto, o leitor pode ser transportado para diferentes sites o que auxilia a
construção do conhecimento. Esse estudo está em andamento e é apenas um recorte, sem dúvida outros estudos já estão
sendo realizados para abordar outros gêneros discursivos, que também têm se preocupado com esse processo de
popularização da ciência na mídia.

612
REFERÊNCIAS

AMARAL, A.; RECUERO. R.; MONTARDO. S. (Orgs.) Blogs.Com: estudos sobre blogs e comunicação. São Paulo.
Momento Editorial, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick (org). Du discours de vulgarisation au discous de médiatisation scientifique. La médiatisation de la


science. Bruxelles,Éditions De Boeck, 2008.

CHARAUDEAU, Patrick. Do contrato de comunicação em geral. In: Discurso das mídias. 2. ed. São Paulo: Editora
Contexto, 2009.

GERMANO, M. G; KULESZA, W. A. Popularização da ciência: uma revisão


conceitual. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 24, n. 1, p. 7-25, 2007.

JURDANT, B. Cultura científica: Impossível e Necessária. In: VOGT, C. (org.) Cultura Científica: desafios. São Paulo:
Edusp, 2006. p. 45-54.

LEBLOND, J. M. L. Cultura científica: Impossível e Necessária. In: VOGT, C. (org.) Cultura Científica: desafios. São
Paulo: Edusp, 2006. p. 29 -42.

LÉVY, Pierre. A Emergência do Cyberspace e as mutações culturais. In: PELLANDA, N.M.C e PELLANDA, E.C. (org).
Ciberespaço: Um hipertexto com Pierre Lévy. Artes e Ofícios. Porto Alegre, RS. 2000.

MARCUSCHI, L.A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: Hipertexto e Gêneros Digitais. Rio
de Janeiro: Editora Lucerna, 2004.

MYERS, Greg. Discourse estudies of scientific popularization: questioning the boundaries. Disponível em:
http://eprints.lancs.ac.uk/1387/1/Myerspopularizationreview.pdf. Acesso em 12 mar 2009.

VOGT, Carlos. A espiral da cultura científica. Disponível em <


http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura01.shtml>. Acesso em 12 mar 2009.

VOGT, Carlos (org). Cultura Científica: desafios. São Paulo : Edusp, 2006.

XAVIER, A. C. S. Letramento digital e Ensino. In: SANTOS.C.F e MENDONÇA. M. (org) Alfabetização e Letramento:
conceitos e relações. Autêntica. Belo Horizonte, 2005.

ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001.

Currículo do autor:

Rejane Ricardo Ferreira Graduada em Letras pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Mestranda no
Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da mesma instituição. Desde março de 2009 leciono, Língua
Portuguesa e Literatura, em uma escola pública que fica no interior do Estado.
E-mail: rejani.ferreira@gmail.com

613
Análise do discurso de uma professora de
Ciências/Química na vivência de uma abordagem CTS
(Ciência-Tecnologia-Sociedade): delineando relações entre
comportamentos enunciativos e o modo de argumentar

FIRME, Ruth do Nascimento


(UFPE)
TEIXEIRA, Francimar Martins
(UFPE)

Introdução
Neste trabalho temos como objetivos delinear comportamentos enunciativos de uma professora de
ciências/química na vivência de uma abordagem CTS em sua sala de aula e apontar relações entre tais comportamentos e
seu modo de argumentar buscando sinalizar implicações para a vivência de abordagens CTS.
No âmbito das pesquisas em Ensino de Ciências, o campo de investigação que contempla aspectos do
Movimento CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) foi um dos que mais cresceram nos últimos anos (CACHAPUZ et al.,
2008). O Ensino de Ciências pautado em abordagens CTS, aquelas advindas do Movimento CTS, tem como objetivo
promover a alfabetização científica e tecnológica do estudante, auxiliando-o a construir conhecimentos, habilidades e
valores necessários para tomar decisões responsáveis sobre questões de ciência e tecnologia na sociedade (SANTOS e
MORTIMER, 2002). Nessa perspectiva, busca-se em abordagens CTS, entre outros aspectos, desenvolver o pensamento
crítico dos estudantes (AIKENHEAD, 1985). Pensamento crítico concebido como a capacidade de desenvolver uma opinião,
de refletir sobre a realidade e nela participar (JIMÉNEZ ALEIXANDRE et al., 2004).
Segundo Vygotsky (1999), os processos psicológicos superiores, como o pensamento crítico, por exemplo,
originam-se das relações do homem com o mundo e estas relações são mediadas por instrumentos e por sistemas
simbólicos que representam a realidade. Nesse sentido, buscando desenvolver o pensamento crítico dos estudantes, a
argumentação representa certo estatuto nos processos de ensino e aprendizagem de ciências com abordagens CTS, visto
que, é um tipo de discurso que emerge de operações discursivas geradoras de espaços de negociação como a justificação
e a consideração de opiniões diferentes (CHIARO e LEITÃO, 2005) e são esses espaços de negociação que desencadeiam
um processo de revisão de perspectivas sobre o mundo (LEITÃO, 2000).
Considerando que situações argumentativas são relevantes na vivência de abordagens CTS surge como
questionamento deste estudo: o modo de argumentar do professor de ciências/química durante abordagens CTS contribui
para o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes? Para ancorar nossas reflexões optamos pela análise
semiolinguística do discurso de Patrick Charaudeau que concebe o discurso como resultado da articulação entre dimensões
psicossociológicas e dimensões propriamente lingüísticas, considerando-o dependente das condições específicas da
situação de comunicação: identidade, finalidade, propósito e circunstâncias materiais (CHARAUDEAU, 2009). Nesse
sentido, os dados da identidade determinam certos modos enunciativos, os dados da finalidade determinam certos modos
de organização do discurso, os dados do propósito determinam modos de tematização e os dados das circunstâncias
materiais determinam certos modos de semiologização (CHARAUDEAU, 2004).
Considerando que o discurso se organiza segundo a(s) finalidade(s) de comunicação - enunciar, descrever, narrar
e argumentar, Charaudeau (2008) propõe quatro modos de organização discursiva: enunciativo, descritivo, narrativo e

614
argumentativo. Dessa forma, os modos de organização do discurso constituem procedimentos de ordenamento das
categorias da língua tornando-as apropriadas às finalidades discursivas (CHARAUDEAU, 2008).
No âmbito da análise do discurso, o verbo enunciar corresponde ao “fenômeno que consiste em organizar as
categorias da língua, ordenando-as de forma a que dêem conta da posição que o sujeito falante ocupa em relação ao
interlocutor, em relação ao que ele diz e em relação ao que o outro diz” (CHARAUDEAU, 2008, p. 82). Dessa forma, o modo
de organização enunciativo é “uma categoria do discurso que tem uma função particular sobre a organização discursiva,
pois intervém na encenação de outros modos de organização do discurso” (CHARAUDEAU, 2008, p. 81). Nesse sentido,
são identificadas três funções do modo enunciativo: 1) estabelecer uma relação de influência entre locutor e interlocutor
(comportamento alocutivo); 2) revelar o ponto de vista do locutor (comportamento elocutivo); 3) retomar a fala de um
terceiro (comportamento delocutivo) (CHARAUDEAU, 2008).
A modalização constitui apenas uma parte do fenômeno da enunciação, mas constitui seu pivô na medida em que
permite explicitar as posições do sujeito falante diante do seu interlocutor, diante dele mesmo e diante do propósito
(CHARAUDEAU, 2008). Dessa forma, a modalização corresponde aos meios de expressão que permitem explicitar as
diferentes posições do sujeito falante e suas intenções de enunciação.
Os comportamentos enunciativos, as especificações e as categorias modais correspondentes estão apresentadas
conforme quadro 01:

Quadro 01: Procedimentos da construção enunciativa

Comportamentos Relações Enunciativas Categorias Modais


Enunciativos

Relação de influencia Relações de força Interpelação/ Injunção/


(locutor/interlocutor) Autorização/ Aviso/Julgamento/
Alocutivo Sugestão/ Proposta
Relação de Pedido Interrogação/Petição

Ponto de vista sobre o Modo de saber/ Avaliação/ Constatação/Opinião/Apreciação/


mundo Motivação/ Engajamento/ Obrigação/Promessa/
Decisão Proclamação
Elocutivo
Apagamento do ponto de Como o mundo se impõe Asserção
vista
Como outro fala Discurso relatado
Delocutivo

Fonte: Adaptado de Charaudeau (2008)

615
O ato de argumentar para Charaudeau (2008) define-se numa relação triangular entre um sujeito que argumenta,
um propósito sobre o mundo e um sujeito-alvo. Assim, para que haja argumentação é preciso que o sujeito que argumenta
se posicione quanto à legitimidade ou não de um propósito sobre o mundo e que se dirija a um sujeito-alvo, a fim de
persuadi-lo (CHARAUDEAU, 2008). A argumentação, segundo este autor, é proposta como uma atividade discursiva que
participa de uma dupla busca: racionalidade e influência. O modo argumentativo, como modo de organização do discurso,
tem como função a construção de explicações sobre asserções feitas acerca do mundo. Entretanto, “não é suficiente que
sejam emitidas propostas sobre o mundo, é necessário também que estas se inscrevam num quadro de questionamento
que possa gerar um ato de persuasão” (CHARAUDEAU, 2008, p. 221). Nesse sentido, segundo Charaudeau (2008), toda
asserção é argumentativa desde que se inscreva num dispositivo argumentativo. O dispositivo argumentativo se desenvolve
sob três condições: 1) existência de um propósito sobre o mundo que gere polêmica (contraposição de idéias) (Proposta); 2)
tomada de posição do sujeito argumentador em relação ao propósito (Proposição); 3) desenvolvimento de um raciocínio
persuasivo destinado a defender a tomada de posição adotada e a provar a veracidade de propósito (Persuasão)
(CHARAUDEAU, 2008).
Interessadas em compreender se o modo de argumentar de professores de ciências/química, enquanto
instrumento de mediação (VYGOTSKY, 1999), contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico dos estudantes
quando vivenciam abordagens CTS e considerando que o modo enunciativo intervém e comanda a encenação dos outros
modos de organização do discurso (CHARAUDEAU, 2008), podemos fazê-lo mediante a análise dos comportamentos
enunciativos desses professores. Dessa forma, este trabalho tem como objetivos: 1) identificar categorias modais
alocutivas, elocutivas e delocutivas presentes no modo argumentativo de organização do discurso de uma professora de
ciências/química na vivência de uma abordagem CTS; 2) delinear seus comportamentos enunciativos, 3) buscar relações
entre os comportamentos enunciativos delineados e o modo de argumentar da professora.

Metodologia
Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla em desenvolvimento que se inscreve em um conjunto de
reflexões sobre o Ensino de Ciências/Química pautado em abordagens CTS, situa-se no âmbito da análise semiolinguística
do discurso e tem como objetivo investigar discursos de professores de ciências/química em situações argumentativas
quando vivenciam abordagens CTS. Para este estudo específico, tomamos por base registros videogravados de nosso
banco de dados (FIRME, 2007) que correspondem a uma sequência de aulas de ciências/química que teve como tema “o
descarte das pilhas e baterias no meio ambiente”, contemplou aproximadamente cinco aulas de 50 minutos cada, envolveu
11 estudantes da 3ª série do Ensino Médio em horário extraclasse e foi ministrada por uma professora que trabalhou numa
abordagem CTS os conceitos químicos - reatividade de metais, oxidação, redução, pilhas - articulados aos aspectos
tecnológicos e sociais - especificidades técnicas das pilhas, contaminação por metais pesados, legislação sobre o descarte
de pilhas no meio ambiente, etc.
Para organização dos dados e construção do corpus consideramos as estratégias sugeridas pela etnografia
interacional (CASTANHEIRA, 2004) que propõem a “organização de dados em níveis múltiplos através de elaboração de
mapas que representem diferentes aproximações à dinâmica do contexto observado” contribuindo para mostrar o contexto
dos enunciados produzidos na sala de aula e “orientar a escolha dos episódios relevantes para análise da dinâmica
discursiva estabelecida” (AMARAL e MORTIMER, 2006, p. 256). Nesse sentido, nossos procedimentos metodológicos
foram: 1) construção de mapa de atividades das aulas (especificando: tempo gasto por atividade, algumas atividades
realizadas, objetivos propostos, instâncias CTS abordadas e comentários da pesquisadora); 2) escolha de um episódio
representativo de uma situação argumentativa; 3) transcrição do episódio organizada em turnos de fala; 4) análise do

616
episódio transcrito. O critério para escolha do episódio tomou por base a identificação do dispositivo argumentativo proposto
por Charaudeau (2008): proposta, proposição e persuasão.

Resultados e discussão
A sequência de aulas consistiu de diversas atividades, entre as quais, foram priorizadas para elaboração do mapa
de atividades das aulas aquelas que contemplaram discussões sobre conhecimentos científicos, aspectos tecnológicos e
sociais. Nesse sentido, o mapa de atividades das aulas possibilitou a visualização: 1) de atividades tais como, leitura de
textos, discussões com o grande grupo, atividade experimental, e exposição de conceitos científicos; 2) da diversidade de
temas abordados (científicos, tecnológicos, sociais, políticos, éticos, etc.); 3) da articulação entre os conceitos científicos
com aspectos tecnológicos e sociais correlatos; 4) da efetiva participação dos estudantes em algumas das atividades e
discussões propostas. Para ilustrar a análise apresentamos um trecho do mapa de atividades das aulas (quadro 02).
Quadro 02: Trecho do Mapa de Atividades das aulas

Tempo Atividades Objetivos propostos Instâncias Comentários da


realizadas CTS pesquisadora
Leitura de Apresentar exemplos de A professora ler o
texto. Reações de óxido- texto em voz alta.
Discussão redução no cotidiano. A professora faz
sobre o texto. Ciência colocações e
30’ Direcionar as discussões Tecnologia questionamentos
Episódio: para Reações de Óxido- Sociedade sobre o texto.
Introduzindo Redução em substâncias Os alunos participam
articulações metálicas. ativamente das
CTS na sala discussões.
de aula

De acordo com o trecho do mapa de atividades das aulas (quadro 02), o episódio Introduzindo articulações CTS
na sala de aula ocorreu durante as atividades de leitura do texto “Nossa vida e as reações de óxido-redução” e de
discussão sobre o texto com o grande grupo. As atividades de leitura e discussão tiveram como objetivos apresentar
diferentes situações em que ocorrem as reações de óxido-redução e direcionar as discussões para a ocorrência dessas
reações em substâncias metálicas, conforme transcrição a seguir.

Episódio: Introduzindo articulações CTS na sala de aula

“(()): A professora lê o texto em voz alta para os alunos.


1- P: (...) Muitas oxidações são fundamentais à vida, pois ocorrem de uma forma geral em células de organismos vivos,
animais e vegetais. São em geral reações complexas. Só para exemplificar, podemos representar de forma muito
simplificada a equação global que representa a respiração celular. (...) É graças a essa reação exotérmica que o nosso
organismo pode obter energia necessária para as funções vitais. A energia que possibilita a vida de animais e plantas
terrestres ou aquáticas é produzida por uma reação de óxido-redução de combustão da glicose. A...
(()): Um estudante interrompe:
2- P: Hein?
3- E: É o caso dos alimentos.
4- P: No caso dos alimentos não é? A gente não já viu na parte de Termoquímica a questão da quantidade de energia
envolvida?

617
(()): A professora continua a leitura:
5-P: Vamos dar agora um exemplo de óxido-redução que ocorre na matéria viva que é indesejável. São reações complexas
responsáveis pelos processos que vulgarmente conhecemos como putrefações.
6-P: Não é isso? Então vejam só. (...). O que acontece com a banana e a maçã quando a gente começa a se alimentar
dessas frutas e geralmente não come toda fruta? Há reação de óxido-redução.
7-P: Então, por exemplo, quando você passa zarcão numa superfície metálica, aquele zarcão que você tá passando ali é
para evitar o quê? A formação da ferrugem, que é um processo de óxido-redução. E aí eu pergunto, como é que eu poderia
numa fruta retardar o processo de óxido-redução, por exemplo, para evitar a putrefação?
8-P: Várias coisas a gente utiliza não é isso? A refrigeração, não é? A questão da temperatura. Mas mesmo assim ainda vai
ocorrer. Mas o que eu poderia utilizar? Como eu uso zarcão na superfície do ferro, o que eu poderia utilizar na superfície da
fruta para evitar sua oxidação?
9-P: Vocês já observaram como ficam as peças de prata de vocês com o tempo?
10-E: (inaudível).
11-P: Fica o quê?
12-E: Fica preta.
13-P: Seria formação de que?
(()): Silêncio.
14-P: De um óxido, não é?
15-E: Inaudível.
16-E: Coloca pasta de dente.
17-P: Aí você coloca pasta de dente e fica bem limpinha.
(()): Neste momento todos riem.
(()): A professora prossegue lendo o texto:
18-P: As pilhas e baterias, tão importantes em nosso cotidiano, são fontes de energia elétrica, obtida graças às reações de
óxido-redução.
(()): Em seguida, a professora coloca algumas questões sobre o texto para discussão:
19-P: Quem pode responder esta primeira? O que ocorre com um metal quando ele perde o brilho? E qual é o redutor do
processo?
20-E: Inaudível.
21-P: Bom, se eu estou sofrendo um desgaste, uma oxidação, é porque alguém está provocando este desgaste. Seria
quem? Existe o agente oxidante e o agente redutor. Quem é o agente oxidante? É a substância que vai provocar a oxidação
de alguém. Por exemplo, quando a gente falou tanto da formação de ferrugem, quem sofre a oxidação?
22-ES: O metal.
23-P: Quem provoca?
24-ES: Inaudível.
25-P: Quem? Pode ser o oxigênio que está presente não é?
26-P: Então, se eu sofro oxidação, posso provocar a oxidação em alguém? Eu provoco o quê? A redução. Quem é que vai
responder esse primeiro? Terminamos todos nós respondendo não foi?
27-P: Então, quando a gente fala nesses termos, agente oxidante e agente redutor, você tem que ver quem tá sofrendo o
quê: a oxidação ou a redução. Porque o agente é que provoca. Então, se eu estou sofrendo, eu posso provocar?
28-E: Não.

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29-P: Eu provoco o contrário.
30-P: Então, o que ocorreu? A gente tá vendo que é uma reação de quê?
31-ES: Oxidação.
32-P: De oxidação. E qual é o redutor do processo? No caso, vocês aí tão dando como um dos exemplos, o oxigênio”.

No respectivo episódio o dispositivo argumentativo configurou-se da seguinte forma: 1) proposta: as reações de


óxido-redução são indesejáveis em alguns casos, como, por exemplo, na putrefação dos alimentos e no enferrujamento dos
metais. A professora vem discutindo o papel fundamental das reações de óxido-redução para seres vivos (animais e
vegetais) (turnos 1 a 4) e, em determinado momento, apresenta o fato de que esse tipo de reações pode ser indesejável em
alguns casos: P: Vamos dar agora um exemplo de óxido-redução que ocorre na matéria viva que é indesejável. São
reações complexas responsáveis pelos processos que vulgarmente conhecemos como putrefações (turno 5). Quando a
professora apresenta essa idéia parece ter a intenção de polemizar a discussão. É a partir desse momento que se
desenvolve a argumentação da professora, uma vez que, para Charaudeau (2008) a existência de uma asserção capaz de
gerar polêmica (propos) é condição sine qua non para que haja argumentação; 2) proposição: diante da proposta, a posição
adotada pela professora é de adesão à mesma (turnos 6 a 8) e, dessa forma, ela vai desenvolver uma argumentação para
justificar a tomada de posição. Vale ressaltarmos que diante do tema abordado na sequência de aulas - “o descarte das
pilhas e baterias no meio ambiente” - a professora direciona a discussão para o caso das reações de óxido-redução em
metais (turnos 9 a 17). A tomada de posição da professora a favor da proposta pode ser exemplificada a seguir: P: Vocês já
observaram como ficam as peças de prata de vocês com o tempo? (turno 9); 3) persuasão: a professora desenvolve um
quadro de raciocínio persuasivo destinado a defender a tomada de posição diante da proposta e a veracidade da mesma
(turnos 19 a 32). Direcionada a discussão para o caso das reações de óxido-redução em metais, a professora busca
justificar a tese de que as peças de prata (metal) ficam pretas com o tempo porque os metais participam de reações de
óxido-redução, sofrendo oxidação. Nesse sentido, a professora desencadeia o modo de raciocínio explicação por silogismo
(CHARAUDEAU, 2008) estabelecendo uma relação de causalidade orientada da consequência (turno 19) para a causa
(turnos 21 a 32): os metais perdem o brilho, porque, sofrem reação de oxidação. A professora, na tentativa de validar a
relação de causalidade, faz uso de argumentos com base nos conceitos científicos de agente oxidante - aquele que, numa
reação de óxido-redução, provoca a oxidação, e de agente redutor - aquele que, numa reação de óxido-redução, provoca a
redução (turnos 21 e 26).
Foi no âmbito desse dispositivo argumentativo que analisamos os comportamentos enunciativos da professora de
ciências/química buscando delinear relações entre esses comportamentos e seu modo de argumentar. Para tanto,
identificamos, inicialmente, no discurso da professora as categorias modais (alocutivas, elocutivas e delocutivas) ao longo
do episódio.
Quanto às categorias modais alocutivas, identificamos: 1) a interpelação quando a professora atribui a si um
estatuto que a autoriza a interpelar os estudantes (turnos 7, 9 e 17), como, por exemplo, P: Então, por exemplo, quando
você passa zarcão numa superfície metálica, aquele zarcão que você tá passando ali é para evitar o quê? (trecho do turno
7) e, P: Vocês já observaram como ficam as peças de prata de vocês com o tempo? (turno 9); 2) a autorização quando a
professora julga que os estudantes estão aptos a responderem aos questionamentos concedendo aos mesmos o direito de
fazê-lo, como, por exemplo, P: Como eu uso zarcão na superfície do ferro, o que eu poderia utilizar na superfície da fruta
para evitar sua oxidação? (trecho do turno 8); 3) a interrogação quando a professora estabelece com seu enunciado uma
informação a adquirir pedindo aos estudantes para dizerem o que sabem (turnos 7, 8, 9, 11, 13, 14, 19, 21, 23, 25, 28, 29 e
30), como, por exemplo, P: O que ocorre com um metal quando ele perde o brilho? E qual é o redutor do processo? (turno

619
19); 4) a petição quando a professora estabelece com o seu enunciado um pedido para fazer, como, por exemplo, P: Quem
pode responder esta primeira? (trecho do turno 19). As categorias modais alocutivas de interpelação e autorização
representam uma imposição do locutor ao interlocutor estabelecendo uma relação de força entre ambos e as categorias
modais alocutivas de interrogação e petição representam uma solicitação do locutor ao interlocutor estabelecendo uma
relação de pedido entre ambos (CHARAUDEAU, 2008) (ver quadro 01). Embora a interrogação tenha prevalecido ao longo
do episódio (turnos 7, 8, 9, 11, 13, 14, 19, 21, 23, 25, 28, 29 e 30), na maioria das vezes, a professora respondia aos
questionamentos ou direcionava as respostas dos alunos. Dessa forma, consideramos que as relações de influência da
professora sobre os estudantes (comportamento alocutivo) caracterizam-se por uma relação de força.
Quanto às categorias modais elocutivas, com configuração implícita, identificamos: 1) a constatação quando a
professora enuncia na forma afirmativa um fato mencionado no texto ou na fala de um estudante (turnos 4, 6,13, 18, 29 e
32), como, por exemplo, P: Vamos dar agora um exemplo de óxido-redução que ocorre na matéria viva que é indesejável.
São reações complexas responsáveis pelos processos que vulgarmente conhecemos como putrefações (turno 5) e P: Não
é isso? Então vejam só. (...). O que acontece com a banana e a maçã quando a gente começa a se alimentar dessas frutas
e geralmente não come toda fruta? Há reação de óxido-redução (turno 6); 2) o saber quando a professora reconhece uma
informação em sua verdade e a enuncia na forma afirmativa (turnos 6, 7, 8, 14, 18, 21 e 32), como, por exemplo, P: A
formação da ferrugem, que é um processo de óxido-redução (trecho do turno 7). As categorias modais elocutivas de
constatação e saber, implícitas nas enunciações da professora, indicam seu posicionamento diante do dito (comportamento
elocutivo) como modo de saber, ou seja, a professora se posiciona como tendo conhecimento dos propósitos discutidos.
Quanto às categorias modais delocutivas, identificamos: 1) o discurso relatado quando a professora apresenta o
texto como autoridade que legitima as informações apresentadas (turnos 1, 5 e 18); 2) as asserções considerando que a
professora apresenta os propósitos como verdades (turnos 5, 6, 7, 18, 21, 27, 29 e 32), como, por exemplo, P: Bom, se eu
estou sofrendo desgaste, uma oxidação, é porque alguém está provocando este desgaste (turno 21). Dessa forma, a
professora testemunhou outros discursos (comportamento delocutivo) a partir das categorias modais delocutivas de
discurso relatado e asserção, fazendo com que o saber exista por si mesmo.
As categorias modais alocutivas, elocutivas e delocutivas identificadas delinearam os comportamentos
enunciativos da professora ao longo do episódio. Sobre a relação de influência estabelecida pela professora sobre os
estudantes (comportamento alocutivo), que por sua vez, configurou-se como relação de força, entendemos que a
professora buscou implicar os estudantes nas discussões. Por exemplo, durante a justificativa da veracidade da proposta
(turnos 19 a 32), a professora levou em conta as respostas dos estudantes para se chegar à conclusão de que os metais
sofrem oxidação (turnos 21-22, 27-28 e 30-31). Sobre a relação que a professora estabelece com o dito (comportamento
elocutivo), que por sua vez, configurou-se como modo de saber, entendemos que a professora praticamente não
apresentou pontos de vista durante as discussões. Assim, ela se posicionou diante do dito apresentando-o como verdades.
Sobre a relação que a professora estabelece com outros discursos (comportamento delocutivo), relação esta configurada
pelo discurso relatado e asserções, entendemos que a professora, em consequência de seu comportamento elocutivo,
buscou legitimar o texto como uma fonte de verdade e enunciou através de asserções, apresentando o saber como
impessoal e verdadeiro.
A análise dos comportamentos enunciativos da professora ao longo do episódio possibilitou uma configuração
para seu modo de argumentar. Se posicionar diante dos estudantes a partir de uma relação de força configura uma posição
enunciativa de superioridade (CHARAUDEAU, 2008) por parte da professora. Por conseguinte, o modo de argumentar da
professora implicou na participação limitada dos estudantes nas discussões e na ausência de espaços de negociação entre
diferentes pontos de vista. Essas implicações são observadas em dois aspectos: a professora tem o maior domínio dos

620
turnos de fala (turnos 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 13, 14, 17, 18, 19, 21, 23, 25, 26, 27, 29, 31 e 32) e os estudantes ao falarem,
expressão respostas curtas, direcionadas e não exploradas por parte da professora. Se posicionar sobre os propósitos
como um modo de saber parece configurar um modo de argumentar voltado para a consideração dos conceitos científicos
como verdades. Se posicionar diante de outros discursos através do discurso relatado e asserções parece configurar um
modo de argumentar voltado para garantir credibilidade do dito durante as discussões, recorrendo-se a outros discursos que
o legitime.
Assim configurado, o modo de argumentar da professora de ciências/química, enquanto instrumento de mediação
(VYGOTSKY, 1999), representa implicações para a vivência de abordagens CTS. Entre outras, podemos apontar uma
limitação para desenvolver o pensamento crítico dos estudantes, como é proposto por Aikenhead (1985). Considerando
pensamento crítico como a capacidade de desenvolver uma opinião, de refletir sobre a realidade e nela participar (JIMÉNEZ
ALEIXANDRE et al., 2004), o modo de argumentar da professora de ciências/química parece não ter promovido seu
desenvolvimento, uma vez que, não abriu espaços para o compartilhamento de idéias através da confrontação de diferentes
opiniões. Por conseguinte, não possibilitou o desencadeamento de um processo de revisão de perspectivas dos estudantes
sobre o mundo (LEITÃO, 2000).

Considerações finais
Neste trabalho tivemos como objetivos delinear relações entre comportamentos enunciativos e o modo de
argumentar de uma professora de ciências/química quando vivencia uma abordagem CTS em sua sala de aula sinalizando
possíveis implicações para a vivência de abordagens CTS no Ensino de Ciências. Nesse sentido, os pressupostos da
análise semiolinguística do discurso foram pertinentes aos nossos objetivos, uma vez que, colocaram a nossa disposição
categorias bastante operacionalizáveis que tornaram possível o delineamento dos comportamentos enunciativos da
professora e a compreensão de como tais comportamentos implicam em seu modo de argumentar.
Acreditamos que os resultados desse estudo possam contribuir para discussões e reflexões nos cursos de
formação de professores de ciências quando se pretende trabalhar segundo abordagens CTS. Nessa direção, insistimos
sobre a pertinência de investigações sobre discursos de professores de ciências/química quando vivenciam abordagens
CTS. Isso porque o discurso do professor se constitui como efetivo instrumento de mediação entre os objetos físicos e
sociais do mundo e os estudantes, estes, por sua vez, inseridos numa sociedade marcadamente científica e tecnológica
precisam pensar criticamente sobre aplicações e implicações do desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade.

Referências

AIKENHEAD, G. S. Colletive decision making in the social context of science. Science Education, v. 69, p. 453-475, 1985.

AMARAL, E. M. R. do; MORTIMER, E. F. Uma metodologia para análise da dinâmica entre zonas de um perfil conceitual no
discurso da sala de aula. In: SANTOS, F. M. T dos; GRECA, I. (orgs). A pesquisa em Ensino de ciências e suas
metodologias. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2006. 440p. (Coleção educação em ciências).

CACHAPUZ, A; PAIXÃO F; BERNARDINO LOPES J. GUERRA C. Do Estado da Arte da Pesquisa em Educação em


Ciências: Linhas de Pesquisa e o Caso “Ciencia-Tecnologia-Sociedade”. Alexandria Revista de Educação em Ciência e
Tecnologia, v.1, n.1, p. 27- 49, 2008.

CASTANHEIRA, M. L. Aprendizagem contextualizada: discurso e inclusão em sala de aula. Belo Horizonte: Ceale;
Autêntica, 2004. 192 p. (Coleção Linguagens e Educação).

621
CHARAUDEAU, P. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: MACHADO, M. L; MELLO, R. de.
Gêneros: reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso, Programa de Pós-Graduação
em Estudos Linguísticos, Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

______. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.


______. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2009.

CHIARO, S; LEITÃO, S. O papel do professor na construção discursiva da argumentação em sala de aula. Psicologia:
reflexão e crítica, v. 18, n. 3, p. 350-357, 2005. Disponível em: www.scielo.br/pdf/prc/v18n3/a09v18n3.pdf. Acesso em: 25 de
jul. 2007.

FIRME, R. N. A implementação de uma abordagem CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) no ensino da química: um olhar


sobre a prática pedagógica. 2006. 204p. Dissertação (Mestrado em Ensino de ciências) – Departamento de Educação,
Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2007.

JIMÉNEZ ALEIXANDRE, M. P; AGRASO, M. F; EIREXAS, F. Scientific authority and empirical data in argument warrants
about the Prestige oil spill. In: NATIONAL ASSOCIATION FOR RESEARCH IN SCIENCE TEACHING (NARST), 2004,
Vancouver. Anais… Vancouver, 2004.

LEITÃO, S. The potential of argument in knowledge building. Human Development, v. 43, p. 332-360, 2000.

SANTOS, W. L. P. dos; MORTIMER, E. F. Uma análise de pressupostos teóricos da abordagem C-T-S (Ciência-Tecnologia-
Sociedade) no contexto da educação brasileira. Ensaio - Pesquisa em educação em ciência, v. 2 n. 2, p. 1-22, dez, 2002.

VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Autoras:

Ruth do Nascimento Firme: Possui graduação em Licenciatura em ciências com habilitação em Química, mestrado em
Ensino de Ciências e é doutoranda em Educação (Universidade Federal de Pernambuco). Professora de Química da
Educação Básica ministra aulas de química no Ensino Médio da Rede Estadual de Pernambuco. E-mail:
ruthquimica@yahoo.com.br.

Francimar Martins Teixeira: Possui graduação em Psicologia, mestrado em Psicologia Cognitiva e doutorado em Graduate
School of Education - University of Bristol, onde atualmente vivencia estágio pos-doutoral. Professora adjunta da
Universidade Federal de Pernambuco, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação.

622
O discurso étnico-literário em Becos da memória

FRAGA, Maria Cristina Prates


(UVA)

Publicado em 2006, Becos da Memória, da escritora Conceição Evaristo, propõe, a partir da própria escolha da
sua capa e contracapa, (Evaristo, 2006), um olhar voltado para questões relacionadas à etnicidade: figuram-se aí fotografias
de famílias afrodescendentes que realizam com o leitor um pacto de intimidade, construído através da familiaridade com
que os personagens da cena o olham e por ele são observados.
No romance anterior, Ponciá Vicêncio, lançado em 2003, nas orelhas do volume, apresenta-se a biografia da
autora, acompanhada de sua imagem. Os dois volumes, aliás, são publicados pela Mazza Edições, que privilegia, no seu
catálogo, a obra de afrodescendentes.
Tais informações possibilitam, pois, conexões de ordem autobiográfica, o que se ratifica, ainda, nos vários ensaios
escritos sobre as obras, e que, de forma geral, recebem apontamentos críticos voltados para uma orientação de cunho
sociológico. Importa verificar, sobremaneira, o trânsito entre cultura oral e erudita, entre biografia e ficção, destacando-se a
presença de uma literatura engajada, que representaria a voz das classes menos favorecidas.
Por outro lado, importaria incluir tais obras como representações de um espaço de afirmação identitária, através
do qual se construiria um ethos da etnicidade, elaborado por uma voz legítima que se fia à narrativa como verdadeira
representante da diáspora africana, já que a trajetória da autora sintoniza-se com a realidade ficcional.
Se não duvidamos de tais aproximações em relação à obra de Evaristo, pretendemos, de certa forma,
estendermos os conceitos que oscilam entre autoria/ ficção e sociedade/ representação, através de novas dimensões de
leitura, voltadas para razões que dizem respeito a enunciado e enunciação, na tentativa de encontrar no texto não apenas a
imitação da realidade, mas sua dramatização.
Nesse sentido, a concepção expressa no tripé “Enunciação, escritor e sociedade”, subtítulo do livro O contexto da
obra literária, de Dominique Maingueneau, parece-nos altamente produtiva, ao introduzir a simultaneidade e integração dos
múltiplos fatores que edificam a obra literária, ressaltando, sobretudo, a “inserção da condição do escritor no campo da
literatura” (MAINGUENEAU, 2001, p. 23). Compreendendo a relação íntima entre “o escritor e a sociedade, o escritor e sua
obra, a obra e a sociedade”, Maingueneau desenvolve a teoria da “comunidade discursiva” que implica a articulação das
formações discursivas em relação não só às famílias literárias às quais o escritor se vincula, mas também a todo entorno
que possibilita a sua existência. Transcrevemos abaixo o fragmento em que tal concepção se evidencia:

O interesse recai sobre os modos de vida, os ritos dessas comunidades restritas que disputam um
mesmo território institucional. É nessa zona que se travam realmente as relações entre o escritor e a
sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade. A obra literária não surge na sociedade captada
como um todo, mas através das tensões do campo propriamente literário. A obra só se constitui
implicando os ritos, as normas, as relações de força das instituições literárias. Ela só pode dizer algo do
mundo inscrevendo o funcionamento do lugar que a tornou possível, colocando em jogo, em sua
enunciação, os problemas colocados pela inscrição social de sua própria enunciação. (MAINGUENEAU
2001, p.30).

Se levarmos em conta a produção literária de Conceição Evaristo, constataremos, certamente, a importância da


“comunidade discursiva”: afrodescendente, de família muito pobre, a escritora, à revelia de todos os empecilhos sociais e
econômicos, chega à universidade, torna-se professora. Para se inserir no mercado editorial, necessário foi buscar a sua

623
família, ou seja, um grupo cujos objetivos estéticos e culturais legitimassem sua enunciação, o que ocorre, com algumas
equipes, como a dos Cadernos Negros e da própria editora na qual publica os dois romances.
Por outro lado, é-lhe necessário cumprir os ritos para obter uma recepção crítica da comunidade acadêmica, cujas
normas canônicas resistiam, ainda, a uma produção cujas vozes entoam cantos marginais, vozes afro-brasileiras que, de
Luiz Gama, passando por Cruz e Sousa, Lima Barreto, Solano Trindade, chegam-nos com Evaristo, Cuti, Márcio Barbosa,
Paulo Colina, Edmilson Pereira, Miriam Alves, e tantas outras.
Para compreender as tensões do campo literário em relação a uma inscrição de enunciação afrodescendente,
necessário se faz aproximarmo-nos, por outro lado, do projeto de construção da sociedade brasileira que, pautado no mito
de uma identidade una e coesa, defende, quase em uníssono, a igualdade étnica do país, impedindo, assim, a possibilidade
de apresentação de grupos artísticos dissonantes dessa proposta. A esse respeito, coloca-se a opinião de Eduardo de
Assis Duarte, professor de Literatura da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG, onde coordena o projeto integrado de
pesquisa Afrodescendências: raça/etnia na cultura brasileira:

Desde o período colonial, o trabalho dos afro-brasileiros se faz presente em praticamente todos os
campos da atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da
literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedimentos vários à sua divulgação, a começar
pela própria materialização em livro. Quando não ficou inédita ou se perdeu nas prateleiras dos
arquivos, circulou muitas vezes de forma restrita, em pequenas edições ou suportes alternativos. Em
outros casos, existe o apagamento deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais, com a
etnicidade africana ou com os modos e condições de existência dos afro-brasileiros, em função do
processo de miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população. (DUARTE, 2002,
p.47)

Como afirma Assis Duarte, a produção literária de enunciação afro-brasileira não conseguiu, durante séculos,
suportes para sua sobrevivência, situação que, a partir da década de sessenta, começa a ganhar novos rumos. Tal
mudança pode ser compreendida graças à presença de grupos mais integrados que reivindicam sua participação no
universo das letras, agora mais flexível, até mesmo pelas próprias reformulações dos conceitos no campo das artes, que,
menos repressoras, acatam representações pautadas na diversidade e no pluralismo.
Nesse sentido, é possível compreender a inserção da obra de Conceição Evaristo em um lugar de
reconhecimento, inclusive oficial, quando, por exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais adota o romance Ponciá
Vicêncio como leitura obrigatória para os seus vestibulares, ou quando encontramos estudos e ensaios de reconhecido
mérito acadêmico sobre a obra da escritora mineira, no Brasil e no exterior.
Entretanto, esse reconhecimento no campo literário não implica um lugar confortável, nem em relação a um
determinado status social, nem tampouco econômico. Isso porque se a literatura ocupa um lugar na sociedade, esse lugar
não se define por uma estabilidade, pois não é possível identificar-lhe um território. Mas, por outro lado, as instituições
literárias existem e legitimam a obra literária. A pertinência ao campo literário encontra-se, pois, segundo a teoria de
Maingueneau, numa localidade paradoxal que ele denomina de “paratopia”: trata-se não da “ausência de qualquer lugar,
mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que vive da própria
impossibilidade de se estabilizar.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 28). É nesse entrelugar que o ensaísta francês insere o
escritor que, vivendo uma situação paratópica, identifica-se com as minorias:

A situação paratópica do escritor leva-o a identificar-se com todos aqueles que parecem escapar às
linhas de divisão da sociedade: boêmios, mas também judeus, mulheres, palhaços, aventureiros, índios
da América..., de acordo com as circunstâncias. Basta que na sociedade se crie uma estrutura
paratópica para que a criação literária seja atraída para sua órbita. (MAINGUENEAU, 2001, p. 28)

624
Condição social e situação problemática do escritor mostram-se, pois, como elementos relevantes na teoria do
ensaísta, cujas ideias centram-se, agora, na relação entre a vida e a obra: escrita como forma de vida, obra que participa da
vida do escritor, de forma tal que o processo efetua-se em mão dupla ― “bio/grafia”: da vida rumo à grafia ou da grafia rumo
à vida. (MAINGUENEAU, 2001, p.46).
Esse pensamento permite evitar as isotopias de ordem literária, como a associação entre personagem/ escritor ou
a interpretação alegórica de determinadas cenas, distinguindo-se, dessa forma, dois sentidos: um sentido literal, relacionado
à obra, e outro, estético. Dissolvendo tais limites, Maingueneau propõe que se vejam “elementos que participam ao mesmo
tempo do mundo representado pela obra e a situação paratópica através da qual se define o autor que constrói esse
mundo”. Tal processo, denominado pelo autor de “embreagem paratópica”, “permite ancorar o enunciado numa situação de
enunciação, constituí-lo em enunciado”. (MAINGUENEAU, 2001, p.174.)
A partir desse pressuposto, instalam-se espaços e personagens paratópicos situados, como o escritor, em
situações de fronteira: aqueles, “subtraídos das injunções da sociedade “comum”; esses, “cuja pertinência à sociedade é
problemática”. (MAINGUENEAU, 2001, p.174).
Nesse sentido, compreende-se uma das ideias centrais defendidas por Maingueneau no seu livro O contexto da
obra literária, que é não aceitar a ideia de ser a produção literária algo exterior, independente das experiências existenciais
de seu criador, ideia que se evidencia no fragmento abaixo transcrito:

Na realidade, a obra não está fora de seu “contexto” biográfico, não é o belo reflexo de eventos
independentes dela. Da mesma forma que a literatura participa da sociedade que ela supostamente
representa, a obra participa da vida do escritor. O que se deve levar em consideração não é a obra
fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união. (MAINGUENEAU, 2001, p.46)

Nesse ponto, retornamos à obra de Conceição Evaristo, em cujo romance Becos da memória (EVARISTO, 2006),
podemos constatar essa difícil união vida/obra, mencionada acima. Tal fato se presentifica na escolha dos personagens e
do espaço: trata-se das histórias de seres marginalizados em uma favela, prestes a ser destruída para dar lugar a mais um
empreendimento imobiliário. Nesse espaço paratópico, pois que, se rejeitado pela sociedade, é, ao mesmo tempo, nela
inserido como forma de atender-lhe nos serviços subalternos ― lavadeiras, pedreiros, empregadas domésticas ― surgem
narrativas trazidas pela memória de uma personagem central, a menina Maria- Nova, que, adulta, rememora as histórias
vividas e as que atentamente ouvira quando criança.
Disso sabemos através de sua própria voz, que surge num espaço ambíguo no qual se entrelaçam apresentação,
dedicatória, fragmentos do próprio romance, talvez dados biográficos, criando esse espaço de soleira que Gérard Genette
denomina de “vestíbulo” e que, segundo o autor, “oferece a cada um a possibilidade de entrar, ou retroceder.” (GENETTE,
2009, p. 10).
Interessante observarmos que esse texto, marcado pela voz da personagem, insere-se após outros paratextos, ―
ou peritextos ―, segundo Genette (GENETTE, 2009, p. 12), como a “Dedicatória” da autora feita ao companheiro, à filha e
aos familiares, à qual se seguem os “Agradecimentos”, e a “Conversa com o leitor”, intitulada “Da construção de Becos”, na
qual expõe a genealogia do romance: seu período de gestação (1978-1988), sua marcação temporal (anterior aos contos e
ao romance Ponciá Vicêncio), e a premiada crônica “Samba-favela”, escrita para a professora, numa escola de ensino
ginasial de Belo Horizonte, possível experiência geradora do desejo de escritura. Segue-se o percurso do livro e seus
frustrados ensaios de publicação pela Fundação Palmares até que, passados vinte anos, a sua realização editorial.

625
“Costurando uma colcha de memórias”, eis como a professora Maria Nazareth Soares Fonseca denomina o
prefácio de Becos da memória, trazendo consigo os ensaios “Memória, esquecimento, silêncio”, de Michael Pollak e as
referências ao narrador benjaminiano, com os quais se sentirá à vontade para refletir questões que envolvem memória e
oralidade e o local das vozes marginalizadas, que, apagadas socialmente, ganham vez na escritura de Evaristo.
Só então, quando pensamos iniciar o romance, encontramos o texto que havíamos mencionado anteriormente, e
cuja organização espacial acha-se demarcada por uma apresentação distinta do romance propriamente dito, do qual se
destaca pela separação de uma folha em branco. Senão, leiamos alguns fragmentos desse texto, no intuito de
demarcarmos como um novo espaço de enunciação realiza sua tarefa de mobilizar o leitor:

Vó Rita dormia embolada com ela.


Vó Rita era boa, gostava muito dela e de todos nós.
Talvez ela pudesse contar com o amor de Vó Rita, pois, de nossa parte, ela só contava com o nosso
medo, com o nosso pavor.
Eu me lembro que ela vivia entre o esconder e o aparecer atrás do portão. Era um portão velho de
madeira, entre o barraco e o barranco, com algumas tábuas já soltas, e que abria para o beco escuro.
Era um ambiente sempre escuro, até nos dias de sol.
Para mim, para muito de nós, crianças e adultos, ela era um mistério, menos para Vó Rita. Vó Rita era
a única que a conhecia toda. Vó Rita dormia embolada com ela. Nunca consegui ver plenamente o
rosto dela. Às vezes, adivinhava a metade de sua face. Ficava na espreita, colocava a lata na fila da
água ou punha a borracha na tina e permanecia quieta, como quem não quisesse nada. Ela aparecia
para olhar o mundo. Ver as pessoas, escutar as vozes. E eu, de olhos abertos, pulava em cima (só os
meus olhos).
Eu não atinava com o porquê da necessidade, do querer dela em ver o mundo ali à sua volta. Tudo era
tão sem graça. Grandes mundos!...Uma bitaquinha que vendia pão, cigarro, cachaça e pedaços de
rapadura. A bitaquinha era do filho dela. Ninguém gostava de comprar nada ali, o movimento era raro.
Vendia também sabão, água sanitária e anil. E, fora a cachaça, estes eram os produtos que mais
saiam.
(...)
A torneira, a água, as lavadeiras, os barracões de zinco, papelões, madeiras e lixo. Roupas de patroas
que quaravam ao sol. Molambos nossos lavados com o sabão restante. Eu tinha nojo de lavar o
sangue alheio. Pensei, por longo tempo, que as patroas, as mulheres ricas, mijassem sangue de vez
em quando.
Naquela época, eu menina, minha curiosidade ardia antes de tudo. A curiosidade de ver o corpo dela,
de olhá-la todinha. Eu queria poder vasculhar com os olhos a sua imagem, mas ela percebia e fugia
sempre. Será que ela, algum dia, conseguiu ver o mundo circundante, ali bem escondidinha por trás do
portão? Talvez. Em um sábado ou domingo em que a torneira estivesse mais vazia de lavadeiras.
Hoje, a recordação daquele mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis
talvez! Como a vida era simples e como tudo era e é complicado!
Havia doces figuras tenebrosas. E havia o amor de Vó Rita. Quando eu soube, outro dia, já grande, já
depois de tanto tempo, que Vó Rita dormia embolada com ela, foi que me voltou este desejo doloroso
de escrever.
Escrevo como homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela, a ela que nunca
consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os
becos da minha memória. Homenagem póstuma à lavadeiras que madrugavam os varais com roupas
ao sol. Às pernas cansadas, suadas, negras, aloiradas de poeira do campo aberto onde aconteciam os
festivais de bola da favela. Homenagem póstuma ao Bondade, ao Tião Puxa–Faca, à Velha Isolina, à
D. Anália, ao Tio Totó, ao Pedro Cândido, ao Sô Noronha, à D. Maria, mãe do Aníbal, ao Catarino, à
Velha Lia, à Terezinha da Oscarlinda, à Mariinha, à Donana do Padim.
Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos
da minha favela.

Se os textos anteriores encontravam-se marcados ora pela objetividade das informações, ora pelas reflexões
metalingüísticas, temos, agora, um novo tom na escritura, construído por uma voz que nela se envolve e da qual emana o
“poder de exprimir a interioridade e de envolver o co-enunciador fisicamente.” É através desse tom que se pode perceber a
presença do etos do enunciador, sua maneira de ser, e, até mesmo sua corporalidade, cuja representação desempenha o
papel de fiador, encarregando-se da responsabilidade do enunciado. (Maingueneau, 2001, p. 138-139):

626
O “fiador” possui um caráter e uma corporalidade. O caráter corresponde a um feixe de traços
psicológicos. É claro que são apenas estereótipos específicos de uma época, de um lugar, que a
literatura contribui para validar e nos quais se apoia. Quanto à corporalidade, é associada a uma
compleição do corpo do fiador, inseparável de uma maneira de se vestir e se movimentar no espaço
social. O etos implica portanto um policiamento tácito do corpo, uma maneira de habitar o espaço
social. Longe de surgir todo armado do imaginário pessoal de um autor, constitui-se através de um
conjunto de representações sociais do corpo ativo em múltiplos domínios. (Maingueneau, 2001, p. 139)

Ao escutar a voz do texto de Conceição Evaristo, o leitor é imediatamente tomado pelo desconhecido: na primeira
frase, surgem dois personagens, Vó Rita e ela: a primeira, determinada por uma ambiência de amor e ternura; a segunda,
pelo sentimento de medo. Medo que se manifesta na dramatização do cenário (portão velho, tábuas soltas, ambiente
escuro) e no mistério que envolve essa figura feminina, diante dos olhos curiosos da menina, que se coloca à espreita, na
esperança de vê-la. Mas ela não se deixa ver. E essa sensação de estranhamento se estende à figura do filho, de cuja
“bitaquinha” todos se afastam.
Entretanto, “Vó Rita dormia embolada com ela”, fato que, conhecido apenas muito tempo depois, mobiliza as
lembranças da narradora e motiva-a a recuperar, pela escritura, o passado vivido nos becos, com seus “barracões de zinco,
madeiras e lixo”.
Desse universo da infância, vêm-lhe imagens de trabalho, – a torneira, a água, as lavadeiras – mas, sobretudo, a
sensação de um corpo que se enoja lavando o sangue desconhecido de mulheres ricas: “E nem entendia e nem sabia que
sangue era aquele. Pensei, por longo tempo, que as patroas, as mulheres ricas, mijassem sangue de vez em quando”.
Não refletiria esse enunciado o tom de um etos comprometido, “etos que recusa qualquer corte entre o texto e o
corpo, mas também entre o mundo representado e a enunciação que o carrega”. A imagem do sangue escorre na
brutalidade do “código de linguagem que só é eficiente associado ao etos que lhe corresponde.” (Maingueneau, 2001, p.
143). E ainda: trata-se, aqui, de um etos brutal que “participa do mundo que a obra mostra e que seu enunciador garante
por seu caráter e sua corporalidade”. (Maingueneau, 2001, p. 143).
Mas a tal tom, mesclam-se outros, produções de uma subjetividade já talvez amenizada pela passagem do tempo
e que se corporifica numa voz emotiva de suave lamento, resultante, quem sabe, de uma corporalidade já exausta pelos
embates tantas vezes infrutíferos a que as classes menos favorecidas se vêm submetidas: “Hoje, a recordação daquele
mundo me traz lágrimas aos olhos. Como éramos pobres! Miseráveis, talvez! Como a vida acontecia simples e como tudo
era e é complicado!”.
Colaborando, ainda, para garantir o ritual do discurso da enunciação, podemos observar a escolha de um universo
lexical que encena um conjunto de representações sociais com o qual ele compactua e que se evidencia, por exemplo, na
expressividade onomástica de alguns homenageados pela memória: Bondade, Tião Puxa–Faca, Sô Noronha, Donana do
Padim. Esses nomes revelam, mais do que um estado civil, qualidades afetivas que se mantêm vivas, como cadeias
significantes que evocam, na sua camada sonora, um mundo do passado, possível apenas de ser revivido na magia de uma
construção textual em cuja trama pretende inserir o leitor:

O co-enunciador de uma obra literária nela não decifra significados apenas, mas entra numa
cenografia, participa de uma esfera onde pode encontrar um enunciador que seja fiador do mundo
representado. Como nas práticas mágicas, em que a representação que se manipula (figurinha de
cera, desenho...) deve estar em contato com a pessoa representada, a enunciação da obra, longe de
flutuar acima do mundo que exibe, deve dele participar. Diferentemente do que ocorre na narração oral
ou no teatro, nos quais a comunicação é direta, física, a literatura destinada ao consumo escrito deve
passar pelos recursos de uma leitura. Mas, em todos os casos a obra impõe a presença de seu etos,
envolvente e invisível. (Maingueneau, 2001, p. 154).

627
E o texto de apresentação de Becos da memória encerra-se, na verdade, inaugurando curiosidades: assim como
permanece incógnita a figura feminina das sombras (“a ela que nunca consegui ver plenamente”), nomes da Dedicatória se
confundem com os do texto – Velha Lia, Catarino –, esfumaçando as fronteira entre o real e o ficcional, entre vida e obra,
como a preparar ritualisticamente o leitor para uma narrativa que guardará impressa a figura paratópica do seu autor:

Qualquer que seja a modalidade de sua paratopia, o autor é alguém que perdeu seu lugar e deve, pelo
desdobramento de sua obra, definir um outro, construir um território paradoxal através de sua própria
errança. (Maingueneau, 2001, p. 1185).

Referências

DUARTE, Eduardo de Assis; SCARPELLI, Marli Fantini. Poéticas da diversidade. Belo Horizonte: UFMG/FALE/POSLIT,
2002.

EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2003.

______________. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2006.

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução Álvaro Faleiros. São Paulo, Cotia: Ateliê Editorial, 2009. (Artes do livro:
7)

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes: 2001.

______________. “Problema de ethos”. In: Cenas da Enunciação. Curitiba: Criar, 2006.

______________. Novas tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas, Pontes/UNICAMP. 1989.

O Autor

Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Leciona as disciplinas de
Literatura Brasileira, Teoria Literária, Literatura e Cultura Africana e Afro-brasileira na Universidade Veiga de Almeida.
Professora de Literatura Brasileira e Língua Portuguesa do Ensino Médio no Colégio Santo Agostinho e no Município do Rio
de Janeiro.
prates_literatura@hotmail.com

628
Da relação sujeito-professor e sujeito-aluno hiperativo:
análise das práticas discursivas sobre os sujeitos da
educação na pós-modernidade
FRANCESCHINI, Bruno
(PG-UEM)1

1. Introdução
Neste artigo, amparados pelos preceitos teórico-metodológicos de análise de discursos propostos por Michel
Foucault, pretendemos verificar e analisar as práticas discursivas do campo da pedagogia e da mídia acerca da nova
maneira de ensinar e de incluir os “excluídos” em sala de aula, no caso específico desta pesquisa: o professor e a sua
relação com o sujeito hiperativo, aquele que, discursivamente, é constituído por vozes legitimadoras (escola, medicina e
mídia) que o marginalizam. Tomamos como corpus discursos midiáticos (artigos de revistas de circulação nacional – Veja,
Época e Nova Escola – e Internet) e artigos científicos os quais versam sobre o tema do Transtorno por Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH). Desse modo, almejamos analisar elementos discursivos que sinalizam as formações discursivas
que determinam a constituição identitária desses sujeitos na pós-modernidade, bem como compreender de que forma as
relações de saber-poder e história-memória produzem efeitos de verdade acerca desses sujeitos. Acrescenta-se também a
tentativa de analisar como esses efeitos de verdade, presentes na regularidade enunciativa do corpus, produzem efeitos de
sentido nessa relação professor e aluno hiperativo.

2. Aporte teórico
Analisar discursos é buscar compreender as relações sócio-históricas inscritas em práticas discursivas e
considerar também que o discurso é objeto de desejo e de poder, não sendo reduzido às lutas ou aos sistemas de
dominação. Tomamos como exemplo de nossa pesquisa a escola como palco dessa disputa e “capaz de articular os
poderes que aí circulam com os saberes que a informam e aí se ensinam, sejam eles pedagógicos ou não” (VEIGA-NETO,
2007, p.15).
Dessa articulação entre poder-saber, podem surgir discursos com efeitos de verdade, e o papel do analista de
discurso é de não questionar “o que é isso? Mas, sim, perguntar como isso funciona?” (idem, p. 70), uma vez que o discurso
é uma prática social e os sujeitos que participam desses discursos precisam responder a certos procedimentos, antes de
adentrar na ordem desses discursos, pois os discursos há muito já circulam na sociedade:

Trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os


pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. (...)
ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início,
qualificado para fazê-lo. (...) algumas são altamente proibidas, enquanto outras parecem quase abertas
a todos os ventos.
(FOUCAULT, 2009a, p. 36-37)

Observamos, portanto, a manifestação das relações de poder disseminadas na sociedade e que controlam a
produção e circulação dos discursos. É importante ressaltar que “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática
social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, 2008, p. X).

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras (Mestrado) – UEM: b-franceschini@hotmail.com

629
Portanto, como já exposto, em sua constituição sócio-histórica, o poder é manifestado no discurso, e, por circular
nos mais variados níveis da sociedade, produz saberes que possibilitarão a legitimação de discursos, em espaços
institucionais como o escolar, o midiático e da medicina. Vale lembrar, porém, que o poder não é para Foucault, segundo a
leitura de Machado (2008, p. XVI), algo negativo, mas, ao contrário, produtivo, uma vez que o interesse desse mecanismo é
controlar a vida dos sujeitos sem, no entanto, privá-los de suas ações cotidianas, ou seja, a disciplina visa aproveitar “suas
potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades”.
As formas de governo e de subjetivação propostas por Foucault estão relacionadas às condutas de normatização
dos indivíduos e às relações de poder; por estarem enraizadas na sociedade implicam “uma multiplicidade de formas
díspares e individuais de objetivos, a partir da possibilidade de agir sobre a ação dos outros. Essa disseminação se estende
por toda a relação social, definindo formas diferenciadas de poder”, como comenta Bampi (2002, p. 133).
Desse modo, precisamos analisar quais são as regras que governam a produção e a circulação dos discursos na
sociedade, em especial, no espaço escolar, ou seja, verificaremos qual é o campo de saber utilizado e quais são os
discursos autorizados e não-autorizados a circularem, uma vez que a produção de um discurso:

É, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de


procedimentos que têm por objetivo conjurar seus poderes e seus perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar seu peso, sua temível materialidade. (FOUCAULT, 2009, p.8-9)

Assim, os discursos agem em harmonia com o poder disciplinar e instituem os saberes que construirão os efeitos
de verdade desses discursos, bem como as operações de diferenciação normal/anormal, sendo a marginalização do sujeito
hiperativo um exemplo do funcionamento desse mecanismo discursivo, posto que este sujeito é considerado anormal dada
à necessidade de tratamento diferenciado.
Essa relação saber-poder é legitimada no local institucional de onde o sujeito fala. Um exemplo disso é o hospital,
local no qual “o médico obtém seu discurso, e onde este encontra sua origem legitima e seu ponto de aplicação (seus
objetos específicos e seus instrumentos de verificação) (FOUCAULT, 1986, p. 56), bem como a escola, onde o professor é
o sujeito autorizado a falar sobre a educação, sobre o aluno, enfim, sobre os discursos que condizem ao espaço escolar,
assim como o médico em relação ao hospital.
Ao discorrermos sobre a relação saber-poder em Foucault, é importante ressaltarmos que este último não está
relacionado a algo de fácil localização, uma vez que, para o filósofo, o poder é uma prática e atua sobre outras ações,
sendo possível assim a ocorrência da resistência. O poder é constituído historicamente e apresenta nas práticas discursivas
seu próprio regime verdade, como atesta Foucault (2009, p. 30) “não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”
Desta forma, é possível constatarmos o efeito de verdade que emana da relação saber-poder nos discursos, uma
vez que a identidade é um efeito do discurso. No caso do sujeito-aluno hiperativo na relação com o sujeito-professor, essa
relação poder-saber tem como meta controlar os sujeitos de forma a obter deles o máximo de desempenho no que tange às
questões escolares, posto que o poder é produtor de saberes, como postula Foucault (2008, p. 08), o poder deve ser
considerado “como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que
tem por função reprimir.”
O discurso, para Foucault (1986, p.64), não é “como se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de
palavras”, é uma prática discursiva constituída por uma gama de enunciados produzidos “por um sujeito, em um lugar
institucional, determinado por regras sócio-históricas que definem e possibilitem que ele seja enunciado” (GREGOLIN,
2004, p. 26).

630
Nesse sentido, Foucault expõe o caráter atributivo da linguagem, ou seja, ao nos utilizarmos da linguagem, damos
sentido ao mundo, e é por meio da materialidade da língua que o discurso constrói os objetos de que fala, no caso aqui
analisado, o sujeito hiperativo. É válido lembrarmos também de que o discurso é objeto de desejo e de poder, uma vez que
este precisa corresponder aos procedimentos externos de controle e delimitação do discurso:
(...) Gostaria de mostrar que o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre
uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; gostaria de mostrar,
por meio de exemplos precisos, que, analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços
aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias
da prática discursiva. (...) Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que
utilizar esses signos para designar coisas. (...) É esse mais que é preciso fazer aparecer e que é
preciso descrever. (FOUCAULT, 1986, p. 56)

É nessa perspectiva, portanto, que Foucault concebe o discurso como prática, uma vez que a grade saber-poder
perpassa as instituições sociais e constitui, assim, novos enunciados, e são esses novos enunciados que se oferecem ao
analista como objeto de análise das condições de emergência e de possibilidade dos saberes em um dado momento
histórico.
No trabalho de descrição e de interpretação dos discursos, o conceito de enunciado é bastante operante. Para
Foucault,

Não há razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de
unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de
estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo
e no espaço. (FOUCAULT, 1986, p. 98)

O enunciado está, portanto, inscrito no interior de uma série de outras formulações vindo a possibilitar sua
sequência ou sua réplica, seu desaparecimento ou sua valorização para um discurso futuro. Sobre o aspecto histórico do
discurso, o enunciado é produzido por um sujeito-discursivo e a sua produção estará determinada pelas regras sócio-
históricas que definirão e possibilitarão sua emergência, o que o filósofo concebe como prática discursiva: “um conjunto de
regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa. (1986, p.
133).
Essas regras de produção de um enunciado estão ligadas à noção de função enunciativa e cabe a ela delimitar as
condições de aparição de um discurso e não outro em seu lugar. A começar pelo sujeito que proferiu o enunciado, é preciso
investigar a posição-sujeito ocupada por ele, a inscrição desse enunciado na história, as formulações as quais o enunciado
se refere, porque como afirma Foucault (1986, p. 114) “não há enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não
tenha, em torno de si, um campo de coexistências”.
É preciso, então, verificar “O que ocorreu para que houvesse enunciado?” (FOUCAULT, 1986, p. 99). O conceito
de função enunciativa, proposto por Foucault, mobiliza, portanto, os fatores que permitem a aparição de um enunciado.
Todo enunciado, ao fazer referência a outros enunciados, sinaliza o “campo correlato” ao qual pertence, ou seja, “ao
domínio de objetos materiais que possuem um certo número de propriedades físicas constatáveis” (ibidem, p. 102). Tal
possibilidade de retomada e de deslocamento pode ser observada nos discursos acerca do aluno hiperativo, sustentado
pelo professor, presentes no corpus a ser analisado, e isso se deve ao fato de que o surgimento de um enunciado não é
possível sem a ocorrência de um domínio associado, dada a observação da relação entre esses enunciados com o discurso
médico, como discorre Foucault (1986, p.112), o enunciado é constituinte “de uma série ou de um conjunto,
desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo”

631
Para que, de fato, o enunciado seja analisado, é necessário que este tenha sido proferido, ou seja, o enunciado
precisa assumir uma materialidade, “o enunciado precisa ter uma substância, um suporte, um lugar, uma data”
(FOUCAULT, 1986, p. 114). Tais elementos indicam aquilo que Foucault denomina “função enunciativa”. Ao mobilizarmos
esse conceito, com vista a descrever a emergência e a existência dos discursos, atentamos para o campo de pertença dos
enunciados, ao seu local de circulação e a sua utilização na ordem dos discursos, posto que um enunciado pode ser
repetido, porém o contexto de sua enunciação não, o que pode vir a criar diferentes efeitos de sentido advindos de um
mesmo enunciado.
Assim, o enunciado pode ser reutilizado em diferentes contextos e circular em espaços determinados
discursivamente, dado o seu caráter sócio-histórico, face a formações discursivas específicas que possuem seus objetos já
estabelecidos, em domínios formulados pelas relações e práticas discursivas correspondentes, como no discurso escolar,
no qual os alvos podem ser: o professor, o aluno, os distúrbios de aprendizagem, entre outros fatores que concernem a
esse campo.
O conceito de formação discursiva, para o filósofo francês é:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de
dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas
temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (FOUCAULT,
1986, p.43)

As formações discursivas agrupam os enunciados pertencentes a uma rede de formulações e governa a


circulação desses enunciados, especialmente aqueles que estão na ordem do acontecimento discursivo, ou seja, um
enunciado que emergiu em um determinado momento sócio-histórico diferentemente dos demais enunciados agrupados na
formação discursiva, como atesta Foucault, “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” (2009,
p.26).
Ao trabalharmos com a noção de formação discursiva, seria impertinente não considerarmos também a
contribuição do conceito de memória discursiva a essa rede de formulações constituintes do enunciado. A memória
discursiva relaciona-se com os vários discursos presentes no momento da enunciação e faz emergir os dizeres de uma
memória coletiva determinada sócio-historicamente.
Os sentidos produzidos em uma formação discursiva não estão limitados a um determinado momento histórico,
em vista disso, o conceito de memória discursiva não diz respeito às recordações que o sujeito traz consigo, mas a uma
memória das relações sociais vivenciadas por esse sujeito. Ela aponta às redes de formulações discursivas (séries
enunciativas) as quais o sujeito teve contato e que darão continuidade ao processo de uma nova formação discursiva com
novos e/ou diferentes sentidos e enunciados.
Em vista do exposto, cabe retomar o conceito de função enunciativa, em relação ao campo de coexistência
discursiva, porque é neste ponto de coexistência dos discursos que afloram os esquecimentos, os apagamentos, enfim o
jogo enunciativo que oferece condições de delimitar, em uma sequência enunciativa, a repetição, a transformação e a
ruptura dos enunciados, bem como descrever a rede de formulação, a recuperação do já-dito que emerge como um jamais-
dito, em um dado momento sócio-histórico, caracterizando, portanto, um acontecimento discursivo.
Já o sujeito, para a Análise do Discurso, é o fruto da relação entre a linguagem e a história, sendo, portanto,
constituído sócio-historicamente e, também, na relação com outros sujeitos. Dessa forma, ao analisar um enunciado, o
analista deve estar atento à posição-sujeito ocupada pelo sujeito que proferiu tal discurso:

632
As posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos
diversos domínios ou grupos de objetos: ele é sujeito que questiona, segundo um certo programa de
informação; é sujeito que observa, segundo um quadro de traços característicos, e que anota, segundo
um tipo descritivo (...). (FOUCAULT, 2009, p. 58)

É no sentido de descrever as condições de existência e os efeitos de sentido advindos dos discursos acerca da
identidade do sujeito-aluno hiperativo e da relação deste com o sujeito-professor é que prosseguimos para a análise dos
enunciados.

3. Da Análise dos fatos do discurso


Para análise do arquivo, adotamos como instrumento os preceitos teórico-metodológicos da Análise de Discurso
de linha francesa e comungamos também do método arqueológico de análise de discursos proposto por Michel Foucault
para alcançarmos os objetivos propostos nesse artigo. Com base nesse instrumental teórico e metodológico, procuramos
compreender: 1)a rede de formulações envolvida na constituição dos discursos acerca da construção discursiva da
identidade do sujeito hiperativo; 2) a produção do discurso sobre esse sujeito, tendo em vista o processo de seleção e de
organização, como postula Foucault (2009), que acaba por exaurir seus domínios e determina as condições de produção
identitária; 3) a problemática, levantada pelo filósofo, do surgimento de um discurso e não outro em seu lugar.
Apoiados nos dizeres de Gregolin (2006, p. 28) sobre os procedimentos de análise, entendemos que o papel do
analista é de “descrever as conexões, os jogos de força, as estratégias discursivas que materializam, num dado momento
histórico, efeitos de sentido que circulam no espaço social”.
O médico é o sujeito discursivo autorizado a discorrer sobre o viés médico do TDAH, uma vez que ele adentrou na
ordem desse discurso, porque respondeu aos procedimentos necessários, às interdições impostas pelos discursos, como
atesta Foucault (1986, p.59):

o médico é sucessivamente o questionador soberano e direto, o olho que observa, (...) é porque todo
um feixe de relações se encontra em jogo; (...) relações entre o campo das observações imediatas e o
domínio das informações já adquiridas; relações entre o papel do médico como terapeuta, seu papel de
transmissor na difusão do saber médico e seu papel de responsável pela saúde pública no espaço
social

Topczewski (1999) e Mattos (2005) descrevem a hiperatividade como uma disfunção orgânica. Para o primeiro,
ela pode advir também de fatores psicológicos, porém, adota a descrição patológica como fator determinante, como
observamos nestes enunciados:

considera-se haver desequilíbrio neuroquímico cerebral, provocado pela produção insuficiente de


neurotransmissores (Dopamina e Noradrenalina) em certas regiões do cérebro (região parietal
posterior, sistema límbico, região frontal e sistema reticular) que são responsáveis pelo estado de
vigília, atenção e pelo controle das emoções. Esta desorganização bioquímica leva a alterações
neurofisiológicas que acarretam alterações do sono, comportamento agressivo, impulsivo, depressivo e
os distúrbios da atenção que podem estar associados ao quadro da hiperatividade. (TOPCZEWSKI, A.
1999, p. 37-38)

Já Matos analisa que,

no caso do TDAH, são a dopamina e a noradrenalina que estão deficitárias. Esses neurotransmissores
são importantes especialmente na região anterior do cérebro, o lobo frontal, e suas conexões para
vários outros locais no cérebro (MATTOS, P. 2005, p. 45).

633
Considerando que a nossa atenção está voltada à relação professor e aluno-hiperativo, observamos, com base
em nosso arquivo, a constante reclamação sobre indisciplina, agitação, baixo rendimento, entre outras queixas por parte
dos professores, além de enunciados que indicam as condutas que devem ser assumidas pelo professor de modo a atrair a
atenção dos alunos em sala de aula, como:

“• Busque criar estratégias e recursos diferentes de forma que venha a favorecer a


aprendizagem do aluno;” (CAIADO, E. C., 2007, on-line)
“• Aplique o conteúdo com entusiasmo, evitando aulas ‘mecânicas’.” (CAIADO, E.C.,2007,
on-line)

O professor, sujeito discursivo autorizado a falar sobre a criança em idade escolar, está inscrito em uma realidade
sóciohistórica na qual a escola ainda funciona como uma instituição de poder, aquela que deseja um comportamento
organizado, moldado, em que não haja problemas gerais relacionados à disciplina.
Aqueles que apresentarem comportamentos fora dos padrões estabelecidos pela instituição serão penalizados,
posto que estão a todo momento sendo vigiados por fiscais de pátio, coordenação pedagógica e professores, assim como
no modelo de Panóptico proposto por Foucault (2009b), em que os presos eram vigiados a todo tempo. Mas o maior
problema que concerne à questão disciplinar está na sala de aula.
Como apontado anteriormente, o discurso se materializa em enunciados produzidos por um sujeito determinado
sócio e historicamente. No caso em tela, emerge um novo enunciado no interior da regularidade dos enunciados reunidos
na descrição clínica do TDAH. Porém, pesquisas lançadas recentemente vão contra a conceituação patológica do TDAH e
dizem esse ser fruto de fatores psicossociais. Essas novas pesquisas (COLLARES & MOYSÉS, 1994) também apresentam
um detalhamento mais elaborado sobre o comportamento escolar da criança hiperativa, o que é pouco contemplado nas
pesquisas patológicas, tendo em vista que a criança em idade escolar é naturalmente mais agitada e, obviamente, as
atividades em sala de aula necessitam chamar a atenção delas. No entanto, não é o que tem ocorrido e, como
consequência, as crianças que apresentam um baixo rendimento são rotuladas como hiperativas, desatentas,
desorganizadas e culpadas por terem fracassado na escola.
Ao fracassarem, as crianças são responsabilizadas por não terem correspondido às expectativas dos professores,
que esperavam, com exercícios monótonos e atividades enfadonhas, um comportamento exemplar e silencioso. Contudo, o
que temos observado é a não adequação dos professores a essa nova realidade nas escolas, a chegada da pós-
modernidade e suas diferentes identidades e necessidades.
E, como forma de afastarem de si a culpa de seu próprio fracasso docente, esses professores buscam em
fármacos um meio de controlar essas crianças em sala de aula e indicam aos pais e pedagogos a necessidade de ser
receitado o metilfenidato, conhecido comercialmente por Ritalina. Nessa pesquisa, porém, não nos atemos à questão da
medicalização escolar como forma de controle social.
No corpus selecionado, temos os seguintes enunciados que tratam desse viés psicossocial do TDAH:

A patologização da aprendizagem constitui um processo em expansão, que se dissemina rapidamente,


com grande aceitação geral. Os pais das crianças reagem a seus resultados como se a uma fatalidade.
Para os professores, representa um desviador de responsabilidades - "Eu faço o que posso, mas eles
não aprendem:'. A instituição escolar, parte integrante do sistema sociopolítico, legitima suas ações e
suas não-ações, pois o problema decorreria de doenças que impedem a criança de aprender.
(COLLARES, C. A. L.&MOYSÉS, M. A. A, 2004)

634
O espaço escolar, voltado para a aprendizagem, para a normalidade, para o saudável, transforma-se
em espaço clínico, voltado para os erros e distúrbios. Sem qualquer melhoria dos índices de fracasso
escolar... Porém, se as crianças continuam não aprendendo, a isto agrega-se, em taxas alarmantes, a
incorporação da doença... uma doença inexistente... (Ibidem, 2004)

Nesse enunciado retirado da revista Nova Escola, podemos observar a questão da vigilância e da disciplina que
perpassam a sala de aula, uma vez que o objetivo da disciplina é retirar do indivíduo o máximo que ele pode produzir, “e é
justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para
aprimorá-lo, adestrá-lo” (MACHADO, 2008, p. XVI).

“O professor pode ajudar (e muito)

Adaptar algumas tarefas ajuda a amenizar os efeitos mais prejudiciais do transtorno. Evitar salas com
muitos estímulos é a primeira providência. Deixar alunos com TDAH próximos a janelas pode prejudicá-
los, uma vez que o movimento da rua ou do pátio é um fator de distração. Outra dica é o trabalho em
pequenos grupos, que favorece a concentração. Já a energia típica dessa condição pode ser
canalizada para funções práticas na sala, como distribuir e organizar o material das atividades.
Também é importante reconhecer os momentos de exaustão considerando a duração das tarefas.
Propor intervalos em leituras longas ou sugerir uma pausa para tomar água após uma sequência de
exercícios, por exemplo, é um caminho para o aluno retomar o trabalho quando estiver mais focado. De
resto, vale sempre avaliar se as atividades propostas são desafiadoras e se a rotina não está repetitiva.
Esta, aliás, é uma reflexão importante para motivar não apenas os estudantes com TDAH, mas toda a
turma.” (BIBIANO, B., 2010, on-line)

Constatamos, portanto, a regularidade discursiva entre os enunciados acerca do trabalho motivacional a ser
realizado pelo professor seja para os alunos considerados normais, seja para os anormais, no caso, os hiperativos, posto
que todos eles estão sob a tutela do professor o qual tem por obrigação ministrar os conteúdos necessários e verificar a
aprendizagem destes.
Para além dessas questões, intrínsecas a esses discursos, observamos o exercício do poder disciplinar que visa
criar sujeitos homogêneos, muito embora estejamos vivenciando ou sendo afetados pelo período das chamadas
“identidades líquidas, fluídas e voláteis” (BAUMAN, 2001). Ainda em relação ao comportamento desse sujeito, comungamos
da compreensão de Machado (2008, p. XVII) sobre a disciplinarização dos corpos, analisada a partir do pensamento de
Foucault:

Ela é uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento de poder. (...) É o diagrama de um


poder que não atua no exterior, mas trabalha o corpo dos homens, manipula seus elementos, produz
seu comportamento, enfim, fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e manutenção da
sociedade industrial, capitalista.

Ocorre, desse modo, um confronto no processo de constituição identitária do sujeito hiperativo, pois, ao mesmo
tempo em que ele é visto como “anormal”, ao ser medicalizado e receber tratamento diferenciado no espaço escolar,
começa a passar por um processo de inclusão, o qual se sustenta no poder da disciplina, que busca a produção
homogênea dos indivíduos na sociedade. Porém, o efeito de sentido dos discursos acerca dessa prática de inclusão é de
ressaltar a distinção entre o que é normal e o que é anormal no espaço escolar, além de destacar a incapacidade para o
trabalho, como comentam Veiga-Neto e Lopes (2007, p. 949):

as políticas de inclusão escolar funcionam como um poderoso e efetivo dispositivo biopolítico a serviço
da segurança das populações. Em outras palavras, coloque-se apenas no plano discursivo ou de fato
materialize-se no plano das práticas concretas, ao fim e ao cabo a inclusão escolar tem em seu
horizonte a diminuição do risco social.

Em relação “à diminuição do risco social”, observamos o exercício das relações de poder nas práticas
sociais e discursivas, ou seja, o exercício da governamentalidade, uma vez que o objetivo final desse mecanismo é extrair o

635
máximo da capacidade do indivíduo. Em outros termos, o discurso médico, ao enunciar os desvios comportamentais
causadas pelo déficit dos neurotransmissores cerebrais, tem como efeito de sentido constituir discursivamente a identidade
do sujeito-hiperativo como anormal. Parte da aceitação dessa condição é decorrente da posição-sujeito ocupada pelo
médico na ordem do discurso, uma vez que ele correspondeu às exigências para adentrar na ordem do saber clínico e, com
isso, poder dizer algo sobre esse sujeito. Neste enunciado, visualizamos o efeito de sentido disciplinador e produtor de
subjetividade advindo dos discursos patológicos acerca do TDAH:

A psiquiatria biológica, na medida em que se utiliza também dos estudos estatísticos e


epidemiológicos, cumpre papel disciplinar sobre a população. (...) No campo do discurso médico, os
elementos mínimos do orgânico – os neurotransmissores e as funções da bioquímica cerebral – são os
objetos a partir dos quais a medicina estabelece seu saber e seu poder sobre os sujeitos na
contemporaneidade (GUARIDO, 2007, p. 158).

De modo a legitimar a falta de preparo do sujeito-professor em lidar com a indisciplina em sala de aula, o fracasso
docente acaba por ser imputado ao sujeito-aluno, e, nesse longo processo de atribuição do fracasso escolar, as práticas
discursivas médicas se fundem às práticas discursivas escolares e constituem, na relação saber-poder, saberes acerca do
sujeito-aluno. O sujeito-professor, por não saber lidar com a pluralidade de identidades que têm circulado no espaço
escolar, ao longo dos últimos anos, e por ainda desejar manter as antigas práticas educativas, põe à margem, na vivência
de sala de aula, o sujeito-aluno que não corresponde às expectativas de normalização e, não raramente, este sujeito é
diagnosticado portador de uma “doença inexistente”, como o Transtorno por Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH),
tornando-se, assim modo, um efeito desses discursos: o sujeito-aluno hiperativo.

Conclusão
Navarro (2007, p. 143) analisa que “a definição do que seja identidade requer considerar que tal noção é um
processo de produção e um efeito de discurso (...) é preciso compreendê-las como produtos de lugares históricos e de
instituições”. Para esse autor, “a identidade não é algo definitivo e acabado. O que existem, na verdade, são práticas de
subjetivação que produzem identidades em constante mutação”. Assim, procuramos, nesta análise, não esgotar todos os
sentidos possíveis da composição da identidade do sujeito hiperativo e da relação deste com o professor provenientes
desses enunciados, uma vez que há inúmeros gestos de interpretação e compreensão para os efeitos de sentido de
identidades constituídas discursivamente. Com base nas análises realizadas, constatamos o efeito de marginalização que
os discursos produzem, advindo dessas formações discursivas, que conceituam o sujeito como portador de difícil de
controle. Concluímos, portanto, que as instituições sociais atuais ainda estão pautadas em padrões controladores e
normalizadores e não atentaram para as transformações ocorridas socialmente ao longo dos últimos cinquenta anos.

Referências
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em 07 de julho de 2010.

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636
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637
Práticas linguageiras em situações de trabalho: ethos
discursivo em jornal interno de empresa
FREITAS, Ernani Cesar de
(FEEVALE)

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se interessa, com ênfase ao seu objeto, pela relação entre o discurso empresarial e as práticas de
linguagem em contextos específicos – em situação de trabalho. Tal escolha justifica-se pela necessidade de aprofundar o estudo
da atividade linguageira nas organizações empresariais, considerando que a linguagem como elemento especificador da
complexidade, que norteia o mundo do trabalho, integra o conjunto formado por pesquisas que, nos últimos anos, têm-se voltado
para esse campo.
Do ponto de vista da teoria, a linguagem é aqui compreendida como resultado de uma atividade humana, de um agir
discursivo no mundo que nos situa sócio-historicamente, numa posição que confere especial destaque a contribuições
interdisciplinares referentes ao mundo do trabalho, quais sejam a ergonomia situada e a abordagem ergológica (SCHWARTZ,
1994, 1995, 1997, 2007) em interface com a análise do discurso de base enunciativa (MAINGUENEAU, 1997, 2001,
1984/2008a, 2008b).
Diante desse contexto, tem-se como questão norteadora: os discursos empresarias em situações de trabalho
possibilitam identificar e descrever o ethos discursivo presente nos textos publicados no jornal Alfaltera da empresa ALFA.
Este trabalho se propõe a analisar discursos empresarias divulgados no âmbito da empresa ALFA1 do ramo industrial,
de grande porte, localizada na região do Vale do Sinos, importante polo coureiro-calçadista no Rio Grande do Sul. Esses
discursos empresariais são veiculados bimestralmente no jornal interno Alfaletra, objeto deste estudo.

2. LINGUAGEM E TRABALHO: ERGONOMIA DA ATIVIDADE E ERGOLOGIA


O importante papel da linguística frente à tarefa de se pensar sobre o trabalho e tecer considerações entre linguagem
e trabalho são salientados por Souza-e-Silva (2004), pelo fato de estudiosos de diversas áreas (filósofos, sociólogos etc.)
estarem divulgando a crescente relevância do escrito nas organizações e estarem também mais atentos ao grande valor das
atividades linguageiras que tecem o dia-a-dia do mundo do trabalho.
Os trabalhos da ergonomia francesa e de uma corrente dela derivada – análise do trabalho – apontam as diferenças
essenciais entre o trabalho prescrito e o trabalho real. O primeiro se refere aos documentos que instruem, ensinam, aconselham
etc. o trabalho a ser realizado. Instituições ou empresas os produzem anteriormente à realização efetiva do trabalho para
representar o que deve (ou não) e como deve ser feito. Já o segundo se refere ao trabalho em situação concreta e às suas
características efetivas, isto é, às tarefas executadas pelos trabalhadores. A ergonomia contemporânea objetiva, além de revelar
as diferenças entre o trabalho prescrito e o real, descobrir características do trabalho real que são generalizadamente
desconhecidas.

1 Por solicitação, atribuímos nome fictício à empresa.

638
Isso nos leva a pensar na importância da comunicação interna como instrumento para minimizar possíveis falhas neste
processo. Muitas vezes a tarefa é prescrita na linguagem do planejador, do administrador, e o operador ao realizá-la procede a
sua decodificação, usando o seu próprio banco de dados (crenças, valores, conhecimento, cultura, experiências de outras
tarefas etc.). Segundo Souza-e-Silva (2004), a análise do trabalho implica na condição, de que o pesquisador se interesse pelos
diálogos estabelecidos não só como objeto, mas como método de pesquisa.
Uma das perspectivas teóricas relacionadas ao estudo sobre o trabalho que traz contribuições relevantes à dimensão
da singularidade é a Ergologia. O filósofo francês Yves Schwartz destaca que o exercício profissional, independente de qual seja
ele, não é o campo por excelência do mecânico e do repetitivo, pois mobiliza escolhas e dramas particulares (SCHWARTZ,
2007). “A atividade de trabalho é lugar de investimento subjetivo; uma enigmática alquimia humana aí se dá” (TEIXEIRA, 2010,
p. 46).
É em torno dessas ideias que Schwartz (1997, 2007) desenvolve, há mais de 20 anos, a perspectiva ergológica de
estudos sobre a atividade de trabalho, prioritariamente voltada para a inevitável implicação da subjetividade no exercício
profissional. Para o autor, a realização de qualquer tarefa passa por uma dialética de uso de si, uso de si por si e uso de si
pelo(s) outro(s).
O trabalho é uso de si por si, uma vez que, no processo de atividade, o sujeito mobiliza seu saber-fazer, seus valores,
seus afetos, enfim, sua singularidade. É isso que faz com que seja impossível uniformizar as situações de experiência. No
entanto, é preciso relativizar essa parte de autonomia, pois o trabalho é também uso de si por outros. Os trabalhadores realizam
suas atividades a partir de ordens e procedimentos dos quais não são autores.
De acordo com essa perspectiva teórica, a tarefa corresponde às normas e regras que são prescritas ao trabalhador
(normas antecedentes) e a atividade seria a realização (renormalizações) dessas tarefas. Porém, não há uma relação direta
entre essas duas dimensões, ou seja, existem muitas lacunas entre o que é prescrito e o real. Portanto, observa-se o constante
embate entre as “normas antecedentes” e as “renormalizações” (SCHWARTZ, 2007).

3. SEMÂNTICA GLOBAL
Ao assumir que o discurso é regulado por uma semântica global, Maingueneau (1984/2008a) admite que todos os
planos da discursividade – desde os processos gramaticais até o modo de enunciação e de organização da comunidade
discursiva – estão submetidos ao mesmo sistema de restrições, concebido como um filtro que fixa os critérios de enunciabilidade
de um discurso.
Com atenção ao nosso objetivo e pautado na hipótese da Semântica Global (MAINGUENEAU, 1984/2008a),
selecionamos as dimensões que privilegiam a heterogeneidade enunciativa, o estatuto dos parceiros, a dêixis enunciativa, e o
modo de enunciação, discutidos em nossa análise a partir dos conceitos e pressupostos de cenografia e de ethos
(MAINGUENEAU, 1997, 2001, 1984/2008a). A semântica global que rege os discursos que circulam no interior do jornal interno
Alfaletra determina um conjunto de práticas para esse posicionamento.

3. 1 CENOGRAFIA, ETHOS E DISCURSO: OS “LUGARES” DE ENUNCIAÇÃO


Partimos da hipótese de que todo discurso constrói um quadro enunciativo. De acordo com Maingueneau (1997, p.
75), “o enunciador não é um ponto de origem estável que se ‘expressaria’ dessa ou daquela maneira”, ele está inserido em uma
determinada ‘cena enunciativa’ e é a partir desse ’lugar’ que o fiador assume um modo de enunciação, ou seja, um ethos.

639
Portanto, para Maingueneau, na Análise do Discurso, o ethos é concebido como parte constitutiva da cena de enunciação e não
como uma simples estratégia persuasiva.
Na cadeia de comunicação entre a organização e seus interlocutores as marcas do enunciado constroem a imagem da
organização (neste texto, entende-se “imagem” como ethos construído discursivamente nos textos veiculados no jornal interno
Alfaletra). Assim, o discurso dos gestores procura incentivar o comprometimento dos empregados com as metas e objetivos
organizacionais. O discurso sempre esteve presente nos sistemas administrativos, com mais ênfase no relacionamento da
empresa com as pessoas, ou seja, através da interação verbal. Segundo Amossy (2008, p. 124), “[...] a eficácia do discurso é
tributária da autoridade de que goza o locutor, isto é, da idéia que seus alocutários fazem de sua pessoa”.
A cenografia pode ser definida como um correlato da própria enunciação, pois é esta última que “ao se desenvolver
esforça-se por constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala” (MAINGUENEAU, 1997, p. 87). A enunciação leva o
quadro cênico (cena englobante e cena genérica) a se deslocar para um segundo plano, pois quando um texto apresenta uma
cenografia, é por meio dela que esse texto se “mostra” ou se “dá a conhecer” a seu coenunciador.
Uma das formas de acesso aos investimentos cenográficos de um texto é por intermédio do que Maingueneau (1997)
chama de dêixis discursiva, instaurada na e pela enunciação. Análoga à dêixis linguística (EU ↔TU – AQUI – AGORA), que
define referências espaciotemporais, a dêixis discursiva possui a mesma função, porém manifesta em um nível do universo de
sentido de uma formação discursiva construído na e pela enunciação. Esse conceito define então referências a três registros
interdependentes: uma locução (locutor e destinatário), a uma topografia (espaço) e a uma cronografia discursivas (tempo).
Toda enunciação se produz no interior de um já-dito, em relação dialógica com outros discursos.
Relacionado à noção de cenografia, temos o conceito de ethos entendido por Maingueneau (1997, 2001) como uma
das formas de investimento discursivo produzido na e pela enunciação. Segundo Maingueneau, o ethos constitui-se como um
dos planos da cenografia. Para o autor, “todo enunciado, oral ou escrito, procede de um enunciador encarnado, uma voz que dá
sustentação ao texto – a voz de um sujeito situado para além do texto” (MAINGUENEAU, 2001, p. 95).
A noção de ethos, conforme proposta por Maingueneau (1997, 2001, 2008b), possibilita um estudo da(s) instância(s)
subjetiva(s) envolvida(s) na enunciação. É pelo próprio ato de enunciar que o enunciador constrói a legitimidade de sua
enunciação, revelando por intermédio mesmo da enunciação um caráter e uma corporalidade, isto é, pode-se afirmar que a
maneira de dizer revela uma maneira de ser do enunciador. É necessário esclarecer que Maingueneau ao se referir à figura do
enunciador o faz dissociando-o da pessoa empírica que enuncia, isto é, o autor se refere a um ser de discurso que se institui por
intermédio do próprio discurso. A noção de ethos então permite identificar esse ser de discurso pelas características que
demonstra. O “caráter” corresponde a uma gama de traços psicológicos, já a “corporalidade” corresponde a uma compleição
corporal e a uma maneira de se vestir e de se movimentar no espaço social (MAINGUENEAU, 1997).

4. METODOLOGIA
4.1 O PARADIGMA INDICIÁRIO COMO MODELO EPISTEMOLÓGICO
O paradigma indiciário é um modelo epistemológico atualmente utilizado em muitas pesquisas qualitativas, que,
segundo Ginzburg (1986, p. 152), se traduz em "um saber de tipo venatório", caracterizado pela capacidade de, a partir de
dados aparentemente irrelevantes, descrever uma realidade complexa que não seria cientificamente experimentável. Pode-se
acrescentar que esses dados são sempre dispostos pelo observador [um caçador, p.ex.] de modo tal que possa se traduzir
numa sequência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser "alguém passou por aqui".

640
4.2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E CORPORA
Esta pesquisa constitui-se de dois corpus específicos: a) entrevista semiestruturada feita com duas assessoras de
comunicação interna da empresa ALFA, responsáveis pelo jornal interno Alfaletra; b) exemplares do jornal Alfaletra, de
periodicidade bimestral, números publicados no período entre fevereiro de 2008 e fevereiro de 2010.
O roteiro de questões que integraram o formulário da entrevista baseou-se em Arouca, Arouche e Mello (1998). Essas
entrevistas não se constituem na principal técnica de coleta de dados, mas são importantes como material de apoio deste
estudo, visto que auxiliam na compreensão significativa no sentido de confirmar ou infirmar hipóteses formuladas.
A partir das entrevistas realizadas, foi possível analisar o debate entre as normas antecedentes e as renormalizações
(SCHWARTZ, 1997). As pistas do real da atividade foram analisadas através das entrevistas, momento em que as assessoras
de comunicação interna se posicionam sobre o trabalho realizado.
Já para descrever a construção do ethos discursivo, constatado no jornal interno analisado, o percurso procedimental
realizou-se através de indícios da superfície discursiva que foram considerados como relevantes para sua caracterização,
considerando-se a regularidade desses indícios a partir das instâncias de enunciação (MAINGUENEAU, 1984/2008a): estatuto
do enunciador e do coenunciador, dêixis enunciativa e o modo de enunciação.
Diante do percurso metodológico concebido para dar concretude a este estudo, evidencia-se que o sentido propiciado
pelos discursos analisados no jornal Alfaletra impõe-se tanto pelo ethos como pelas ideias (pontos de vista) que transmite, pois
esses pontos de vista se apresentam por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser.

5. RESULTADOS PARCIAIS
5.1 QUANTO À PERSPECTIVA ERGOLÓGICA
Iniciamos a análise a partir dos dados coletados nas duas entrevistas realizadas com assessoras da Comunicação
Interna da empresa ALFA, responsáveis pelo jornal interno Alfaletra. Fazemos aqui uma relação entre conteúdos considerados
mais significativos, por nós, e alguns pressupostos teóricos da Ergologia.
Solicitamos às entrevistadas que relatassem sua experiência na Comunicação Interna a partir da atividade de trabalho
realizada junto ao Jornal. Destacamos a essência das respostas obtidas. A assessora A comentou : ‘’minha experiência tem sido
ótima. É interessante poder ver os movimentos da empresa expressos neste periódico. A produção do Jornal traz um
envolvimento que o leitor não acompanha e neste campo – dos bastidores- é que por vezes a experiência não é tão satisfatória.
Conciliar os diferentes tempos e ritmos, da [Empresa], das fontes e das empresas envolvidas na produção – agência de
endomarketing e gráfica, acaba trazendo algumas tensões. Contudo faz parte e são administráveis!”. Afirmar que o trabalho é
uso de si significa entender que é o lugar de uma tensão problemática, de um espaço de possibilidades a serem negociadas:
não há execução, maus uso, e isso supõe um “espectro contínuo de modalidades” (DURAFFOURG, 2007, p. 53). Por sua vez,
a assessora B destacou (grifo nosso): “o fato de ele (o jornal) ser resultante de um desdobramento estratégico de um Plano de
Comunicação maior - buscando gerar alinhamento entre a empresa e o público - é algo que tem sido muito gratificante de estar
realizando profissionalmente”.
A referência a alinhamento entre a empresa e o público parece remeter para prescrição. O trabalho prescrito
pressupõe um conjunto de condições e exigências a partir das quais a tarefa deverá ser realizada, e inclui tanto as condições
determinantes de uma situação de trabalho (ambiente físico, matéria-prima, equipamentos etc.) quanto as prescrições (normas,

641
ordens, manuais, metas e objetivos, resultados a serem obtidos etc). Conforme Schwartz (1997), o enfoque ergológico critica as
abordagens que consideram o trabalho como uma mera execução de uma prescrição, dos procedimentos estabelecidos, como
se existisse uma divisão transparente entre os que planejam e os que executam dada tarefa.
Na sequência, indagamos sobre qual a importância do prescrito em um jornal interno de empresa, como o Alfaletra, e
se as assessoras entrevistadas acreditavam que os prescritos têm a força de modificar comportamentos funcionais dos
colaboradores. Evidenciamos algumas situações que foram comentadas. A entrevistada A destacou (grifo nosso): “toda a
importância. [...] Estrategicamente, por ser o canal oficial mais antigo, foi escolhido para quase que ser o porta-voz de todo um
projeto de ampliação e aproximação do “novo” modelo de comunicação da empresa com sua equipe de profissionais. Ainda
acrescentou a entrevistada: “na prática, partimos das notícias, dos fatos que acontecem, e para incluir a matéria no jornal,
associamos o conteúdo "do aconteceu" a um reforço do prescrito, passando a mensagem a partir de exemplos práticos que os
próprios colegas já empregam. Assim, buscamos que esta influência nos leve a um maior alinhamento de práticas, condutas e
comportamentos dentro da organização. Sant’Anna e Souza-e-Silva (2007, p. 85), com base em Schwartz (1997), destacam que
“ao conjunto de prescrições, descendentes e ascendentes, e à ausência de prescrições, é importante acrescentar aquelas
designadas como prescrições sobre o ‘modo de pensar’’’.
Esse “modo de pensar”, a nosso ver, estaria relacionado ao que ressalta a entrevistada A quando se refere a
“alinhamento de práticas, condutas e comportamentos dentro da organização”. Nesse sentido, recorremos ao que comentam
Sant’Anna e Souza-e-Silva (2007, p. 85): “a possibilidade de conceituar determinados objetos, alvo de discussão, de colocar em
circulação certas idéias, implica mobilizar o interlocutor no sentido de levá-lo a aceitar parâmetros que não os seus”.
A entrevistada B, por sua vez, comentou: “não exatamente modificar, mas sim inspirar, provocar e com isto promover
adesão, aproximação ou mesmo rejeição e distanciamento. O prescrito funciona como um catalisador, como um agente cujo
resultado depende dos outros elementos e componentes. Considero salutar que haja clareza e que se criem espaços e
mecânicas de expressão do prescrito. Com isto atendido, entendo que necessariamente se passe por um processo dialético e
este sim gera modificações”.
O ponto de vista de Schwartz (1994, p. 108) é bem específico e inter-relacionado ao que é mencionado pela
entrevistada B, no que diz respeito à expressão do prescrito passar por um “processo dialético”:

[...] o trabalho humano é lugar onde se opera uma dialética, portanto, um uso problemático de si mesmo e
pode se definir talvez do seguinte modo: num primeiro registro, ele diz respeito aos antecedentes
normatizando e antecipando a atividade [...] num segundo registro, ele comporta a insubstituível gestão das
dimensões singulares da situação que marca na atividade cotidiana de trabalho os elementos variáveis,
históricos de toda situação, sua não repetição integral.

De forma complementar, a entrevistada A ainda posicionou-se da seguinte forma: “como entendemos e formatamos [o
Jornal] a partir de um desdobramento do Plano de Comunicação, ele está completamente orientado em função do prescrito. Ou
seja, no nosso caso ele é fundamental e de onde "tudo" parte. Por exemplo, os elementos da cultura e da estratégia que
precisam ser trabalhados é que determinaram o tipo de editorias fixas que temos, seu conteúdo e orientação de discurso. Assim,
o prescrito não é só aplicado literalmente, mas está presente de forma indireta e implícita em todas as mensagens. A partir de
releitura do que a Ergonomia da Atividade entende por trabalho prescrito e trabalho real, Schwartz (2007), conforme destaca
Teixeira (2010, p. 46), propõe a atividade de trabalho como “uma dramática que envolve negociação entre normas antecedentes
e heterodeterminadas e renormalizações, que decorrem de investimentos singulares inerentes a microescolhas dos

642
profissionais de não importa qual ofício”. Dessa maneira, Schwartz (2007) reafirma e aprofunda a compreensão da defasagem
entre a instância que organiza e a que atua, que faz com que algo sempre escape à predeterminação, à antecipação daqueles
que planejam.

5.2 QUANTO À PERSPECTIVA DA SEMÂNTICA GLOBAL


No que diz respeito à Semântica Global, conforme Maingueneau (1984/2008a), destacamos que nos interessa, neste
estudo, mais especificamente questões referentes à construção da cenografia e do ethos discursivo. Em razão da delimitação do
tema e dos respectivos objetivos estabelecidos neste trabalho, ressaltamos que os conceitos de cenografia e de ethos são
essenciais e norteiam a aplicação teórico-metodológica que aqui apresentamos.
A título de ilustração, que embasa a análise realizada, vejamos alguns segmentos de textos extraídos de exemplares
do jornal interno Alfaletra (grifo nosso):
(1) Diariamente temos a oportunidade de estar em contato com muitas e diferentes pessoas; fazer com que elas se interessem
em dar continuidade ao relacionamento que mantêm conosco é o desafio de cada um de nós (fev. 2009, p. 2).
(2) A cada novo passo a [...] solidifica sua imagem no setor varejista, caracterizando-se como uma empresa nacional (fev.,
2008, p. 2).
(3) Depois da experiência de sucesso na indústria, o Programa (OLA) agora dá seus primeiros passos no Varejo. A proposta
básica é tornar o ambiente mais produtivo e socialmente agradável, proporcionando assim uma maior qualidade de vida e
de trabalho para todos (fev., 2008, p. 3).
(4) [...] Antes de tudo, acreditamos que as lojas [...] devem estar preparadas para garantir, além de produtos e serviços, um
atendimento de excelência em todos os pontos de contato com o cliente. Para que isso aconteça é fundamental que
tenhamos um time unido, disposto a superar resultados, conquistar e manter clientes ao longo do tempo (fev., 2009, p. 2).
(5) Todos os dias, quando nossas lojas abrem suas portas é como se uma seleção estivesse dando início a uma grande partida,
onde cada um ocupa uma posição estratégica [...] (jan./fev., 2010, p. 2).
Analisando as instâncias do enunciador e do coenunciador (MAINGUENEAU, 1984/2008a, 2008b), constata-se a
construção de uma imagem recorrente: a do time, a da equipe. Essa construção considera que todos os que trabalham na
empresa têm comprometimento, envolvimento pessoal, motivação, proximidade, amizade. As marcas das relações entre as
pessoas do discurso expõem uma ideia de que interesses comuns, harmonia, satisfação, sintonia total e entrosamento são
características marcantes do empírico na empresa. Assim, estar comprometido é estar satisfeito, logo, responsabilidade,
organização, qualificação e competência são padrões que podem ser facilmente atingidos. Tudo isso perpassado pelo lema do
aprimoramento contínuo e pela “recompensa” de integrar o NÓS da empresa.
As marcas linguísticas que instituem o tempo e o espaço discursivos (MAINGUENEAU, 2001, 1984/2008a) nos
remetem a um lugar seguro, estável, certo, que proporciona condições para que os indivíduos funcionem, na empresa, como um
conjunto coeso num universo apaziguado. Neutraliza-se o confronto, uma vez que “nossa empresa está há mais de meio século
no mercado, sendo referência de tradição, solidez e qualidade” [...] Precisamos trabalhar em um mesmo ritmo, alinhados e
orientados para o mesmo foco” e, ao mesmo tempo, “Agora queremos mais. Queremos ser modernos, ágeis, inovadores! Ser
uma empresa ainda mais competitiva, que com profissionalismo antecipa as tendências do mercado” (set./out. 2009, Editorial).
Esse espaço programado e hierarquizado conjuga-se com as marcas do tempo da modernidade, impulsionando o
presente, baseado nas glórias do passado, para os desafios do futuro. É o tempo do aprimoramento e do progresso contínuo

643
obtidos por meio de pequenas ações cotidianas que abrem perspectivas de sucesso cada vez maior. O tempo e o espaço
construídos, dessa forma, remetem a uma empresa que atua como seu próprio “motor de transformação”.
Ao inventariar as marcas que identificariam o ethos (MAINGUENEAU, 1997, 2001, 2008b) desse sujeito que constrói o
universo sobre o qual se fala, verificamos que a ideia do time estabelece uma relação com um NÓS = EMPRESA. Desse modo,
o caráter e a corporalidade que se constroem discursivamente afetam tanto a imagem do enunciador e do coenunciador
(MAINGUENEAU, 1997, 2001, 1984/2008a), quanto a da própria empresa. Cria-se, assim, uma complexidade de identificação:
EU só me identifico com o NÓS e com ELA (a empresa), se for capaz de me enquadrar na imagem construída, que se baseia
em valores de dinamismo, agilidade, audácia, espírito de iniciativa, competitividade, qualificação, eficiência, responsabilidade,
organização, orgulho, otimização.
Nos fragmentos de textos acima destacados, constata-se que a excelência no trabalho, que representa o alcance do
padrão de qualidade, é resultado da repetição da regra/procedimento daquilo que foi apresentado em eventos como
treinamentos, palestras, pronunciamentos da diretoria, depoimentos de supervisores e de funcionários. Nas relações de
trabalho, conforme Sant’Anna e Souza-e-Silva (2007, p. 80), “as normas passam a receber uma formalização específica a fim de
organizar a produção”. Conforme referendado pelas autoras, embasadas em Schwartz (2002), “essa formalização é parte da
exigência universal de organização social e se caracteriza por um movimento progressivo de codificação da prescrição
operatória do trabalho”.
Esse reforço de experiências anteriores também é acrescido da ênfase ao contexto econômico que dissipa
constantemente o já vivido, o já experienciado, estabelecendo o que vem a ser competência que comporia a ideia de padrão de
qualidade, de dinamismo, de trabalho em equipe, de grupo que trabalha e atinge metas; também destaca-se a necessidade do
bom atendimento e do bom atendente, da necessária participação nas atividades da empresa visando alcance de objetivos e
metas etc. Verificamos que os discursos empresariais divulgados no jornal interno Alfaletra, na atividade de trabalho, inter-
relacionam-se com os saberes acadêmicos ou instituídos e com os saberes práticos ou investidos (SCHWARTZ, 1997).
Além disso, por meio de processo injuntivo, que neste jornal interno se concretiza tanto pela modalidade deôntica –
deve(m) estar; deve ser; tem que ser reconhecido; precisa assumir; devemos viver - quanto pela epistêmica - é possível;
acreditamos; é fundamental que tenhamos; temos a certeza -, o enunciador normaliza a ação ao expressar um saber que leva o
interlocutor a aderir a esse discurso, aceitando-o como verdadeiro. A injunção suscita o dizer e, também, o fazer; não é
reversível, emana daquele que se encontra em posição de aconselhar/ordenar; ao que recebe a dica/conselho/ordem resta
concordar (dizer) e necessariamente executar (fazer). Tem-se, portanto, uma competência adquirida por meio do treinamento,
da repetição, supondo “uma racionalidade inerente ao processo de produção, como se este fosse dotado de leis naturais a que
os homens e sua ciência devessem subordinar-se e obedecer” (SENNET, 2006), desvalorizando-se e apagando a experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O jornal interno Alfaletra, ao reforçar as atitudes que o mercado espera dos profissionais nas novas relações de
trabalho, marca uma característica do veículo de comunicação interna na empresa de não ser apenas transmissor de
informação, mas também fomentadores de crenças, culturas e valores: valoriza-se a ação do indivíduo, portanto prescrevem-se
comportamentos e, por meio da busca da concordância e da adesão das pessoas, busca-se dar sentido de participação à sua
subordinação.

644
As dicas, as explicações, nesses casos, não é uma injunção a fazer emitida pela hierarquia responsável pelo trabalho,
mas adquire caráter de autoridade a partir do momento em que o leitor do jornal interno se coloca na posição de um profissional
que busca receber aqueles conselhos, aquelas sugestões. Percebe-se, portanto, que as prescrições formais, descendentes ou
ascendentes não são suficientes para se compreenderem os sentidos de trabalho. O jornal interno de empresa atribui-se
também esse espaço gerador de normas, procedimentos, a serem seguidos em busca do sucesso.
São várias as marcas linguísticas (paradigma indiciário) que identificam traços de didaticidade, dentre elas a
exemplificação, a explicação, a enumeração, a citação de especialista, as perguntas retóricas, as situações didáticas em forma
de entrevista, o uso de generalizações, as formas pessoais e impessoais para expor conhecimento. Trata-se, então, de uma
interpenetração de conhecimentos: como se dá a passagem entre “quem sabe”, o enunciador instituído pelo jornal interno, e o
interlocutor-leitor presumível. Indaga-se, então, o que se quer fazer compreender para além da informação?

REFERÊNCIAS

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PUC-SP/LAEL, vol. 19, num. especial, p. 305-316, 1998.

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Conversas sobre a atividade de trabalho. Niterói: EDUFF, 2007, p. 47-82.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1986.

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SANT’ANNA, V.; SOUZA-E-SILVA, M. C. P. Trabalho e prescrição: aproximação ao problema a partir dos estudos da linguagem.
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SCHWARTZ, Y. Travail et philosophie: convocations mutuelles. Toulouse: Octares, 1994.

______. De l’inconfort intelllectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (coord.), collection Le
Présent Avenir, 1995.

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SENNET, R. Les failles culturelles du nouveau capitalisme. Sciences Humaines, n. 176, p. 38-39, nov. 2006.

645
SOUZA-E-SILVA, M. C. P. Quais as contribuições da lingüística aplicada para a análise do trabalho? In: FIGUEIREDO, M.;
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TEIXEIRA, Marlene. Dimensão subjetiva da atividade de trabalho: um olhar multidisciplinar. Correio APPOA: temática, Porto
Alegre, p. 45-53, mar. 2010.

*Ernani Cesar de Freitas, pós-doutorando em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/LAEL; doutor em Letras
(PUCRS); mestre em Linguística Aplicada (UNISINOS); professor pesquisador na Universidade FEEVALE; professor
colaborador no Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade de Passo Fundo (UPF); e-mail: ernanic@feevale.br

646
Discursos de relações de gênero na música sertaneja

FREITAS, Lúcia
(1UEG)

1- Música sertaneja e relações de gênero


Bastante explorada pelos meios de difusão de cultura de massa, a música é, em comparação a outras
manifestações estéticas, um dos maiores gêneros do convívio diário das pessoas. Nesse sentido, ela é também um dos
veículos mais eficazes para a criação e difusão de valores sociais e ideológicos em nosso meio social. Segundo Medina
(1973, p.22), as letras de música repassam “concepções de enorme importância para os ouvintes como meio de
transmissão de novos ou tradicionais valores em curso”. O autor ainda ressalta que, para que a música se expanda, como
um campo intelectual efetivo, é necessário que ela se materialize em temas e problemas do senso comum, dentre eles o
amor, que é bastante recorrente nas canções populares em geral, mas que, no estágio atual da música dita “sertaneja”, é
central.
O que chamamos de “música sertaneja” na atualidade é uma adaptação de um tipo de música que cantava o
estilo “rústico” de vida do homem do interior paulista (CALDAS, 1987, p. 15), a chamada “música caipira”. Para se tornar um
produto de consumo de massa, que atingisse tanto o público rural e urbano, a antiga música caipira foi incorporando
determinados elementos estético-discursivos que lhe deram os contornos atuais. Segundo Dias (2008), o “sertanejo” no
momento, também chamado por questões de marketing de “sertanejo universitário”, caracteriza-se por um ritmo
empolgante, com predominância de instrumentos acústicos, letras de fácil memorização, que são gravadas quase sempre
em shows ao vivo em casas noturnas, bares e baladas, com uma participação ativa do público.
Segundo Rodrigues (2008), a impressão inicial que se tem dessas músicas é a de que elas são extremamente
simplificadoras da relação homem-mulher. Seus compositores e cantores atuam sobre um determinado tipo de carência ou
desejo, buscando satisfazer seu público através de enredos que apelam para emoções, sentimentos e sedução. Ao fazê-lo,
instituem representações de sexualidade e modelos de conduta e comportamento para homens e mulheres que são aceitos
e utilizados em suas práticas sociais, difundindo concepções que possibilitam a inferência de uma grande variedade de
ideologias dominantes sobre as relações homem-mulher.
Este trabalho debruça-se justamente sobre essas questões ideológicas na música sertaneja. A pergunta que
norteia as seções analíticas é: “que significados nela estão presentes quanto às relações afetivas entre homem-mulher?”.
Assumindo que as relações de gênero se convertem em relações reguladoras fundamentais nas diversas formações
sociais, este trabalho tem como propósito final identificar de que forma esse tipo musical, tão recorrente no contexto desta
pesquisa, pode influenciar na manutenção ou ruptura de padrões de convivência violenta entre homens e mulheres. A
seguir, são descritos os procedimentos teórico-metodológicos deste estudo.

2- Recorte teórico-metodológico
O corpus deste estudo foi montado a partir de uma lista de cinqüenta músicas mais tocadas entre os meses de
março e abril de 2010, em uma rádio FM da cidade de 2Jaraguá, interior de Goiás, lócus deste trabalho. A partir dessa lista

1 Universidade Estadual de Goiás

647
base, donde constavam canções de gêneros populares variados como pagode, axé, rock nacional etc., foram selecionadas
somente as músicas sertanejas, vinte e três ao todo (ver anexo), por serem estas as que carregam marcas regionais muito
relacionadas ao contexto local e com as quais há uma identificação maior pelos ouvintes.
Tais fontes são analisadas sob o referencial da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC – cf.
FAIRCLOUGH, 2003; WODAK & MAYER, 2003; VAN DIJK, 1997), ramo da lingüística que focaliza dados sociais como
prática lingüístico-discursiva, revelando como estes estão imbricados com as estruturas sociopolíticas mais abrangentes de
poder. Nessa perspectiva, as “letras de músicas sertanejas” aqui analisadas são textos tratados como um gênero discursivo
particular. De acordo com Fairclough (2003, p.65), analisar um texto em termos de gênero é investigar como este atua
dentro de uma determinada prática social. Neste trabalho as acepções do autor amparam a descrição das canções
analisadas em termos de formato, papel social e poder de influência ideológica.
Em linhas gerais, o que se quer saber é como homens e mulheres são representados na canção sertaneja, o
que faz cada um deles e como se relacionam entre si e com o mundo social. Essas questões põem em cena a noção de
agentividade, o fato de que os indivíduos são sujeitos de suas ações em sociedade. Sem agentividade não pode haver
práticas sociais (MAURER, 2004). Por outro lado, se o indivíduo é o sujeito de suas próprias ações, pode também ser
assujeitado a ações e discursos preexistentes, dos quais faz uso a partir de regras também preexistentes (ORLANDI, 1988).
No processo de assujeitamento, o indivíduo assume vocabulário e estruturas próprias de uma instituição, as estratégias
comunicativas inerentes a ela, e por outro, seu texto também assume idéias, vocabulário e estruturas preexistentes. Nas
seções analíticas os pressupostos teóricos aqui mencionados dão suporte para à descrição e interpretação da estrutura
genérica da música sertaneja e dos papéis e identidades de homens e mulheres nela representados.

3- A música sertaneja como prática social


Nesta seção, as músicas do corpus são analisadas como uma prática social, ou seja, uma atividade em que as
pessoas se engajam ao conduzir sua vida social. Sob tal ótica, uma análise desse gênero começa pela seguinte indagação:
o que fazem as pessoas com a música sertaneja? Para uma primeira resposta, a revista Trip, que aborda o universo da tv,
moda, cinema, música e temas variados, propõe o seguinte:

Há gerações que o Brasil se comove, paquera e se embriaga embalado pela música sertaneja.
Enquanto novas duplas conquistam espaço entre a elite das metrópoles, o interior segue fiel ao
romantismo rural. Trip vai ao campo para provar que o sertanejo é, na verdade, a música popular
brasileira (NOGUEIRA, 2010).

Segundo Rodrigues (2008), a história da música sertaneja descreve uma trajetória entre a década de 20 e os
dias atuais, que a retira de um contexto eminentemente rural e a localiza como produto cultural urbano e de massa. Se no
passado ela caracterizou-se pelas modas de viola, pela descrição da beleza bucólica da paisagem campestre e por uma
linguagem épica (Ibid.), atualmente ela se localiza no contexto de bares, casas noturnas e baladas de certos segmentos da
sociedade. Nesse sentido, vale transcrever mais uma vez trechos da revista Trip:

Marco Tobal Jr., dono e filho do dono/fundador da casa (Vila Country em São Paulo), é a melhor
autoridade para explicar o fenômeno. Ele viu de dentro a mudança no público em seus domínios. "A

2A cidade de Jaraguá é sede de uma das Unidades da Universidade Estadual de Goiás, de onde é proposta a Pesquisa “Violência contra
a mulher em uma cidade do interior de Goiás: silêncio e invisibilidade?”, financiada pela Secretaria Especial de Políticas Públicas no edital
57/2008 do CNPq, à qual se liga o presente trabalho como elemento para triangulação de dados.

648
sociedade paulistana sempre valorizou só o que vinha de fora do país. Mas, com o tempo, muito
moleque do interior veio estudar em São Paulo. E eles não só gostam de sertanejo, como do estilo de
vida, da estética country. E descobriram que tinha uma casa assim na cidade", elabora. E assim, de
acordo com Tobal Jr., "aos poucos o preconceito do grupo AAA foi diminuindo, e hoje eles vêm pra cá
e adoram". De fato, ainda se vê muito homem de chapéu, camisa pra dentro da calça, fivelão no cinto
e passinhos ensaiados. Mas a maioria está à paisana, camisa pólo de marca, gel no cabelo, tênis caro
no pé [...] A razão para tanto rapaz endinheirado dando os ares por ali, Tobal assume, não é o espírito
country ou os refrãos das duplas. E sim o mais ancestral dos motivos que arrastam hordas de homens
para fora de seus lares depois do batente: mulheres. Tobal, o pai do Jr., resume após anos de vasto
sucesso na noite de São Paulo: "Quem é esperto faz música pra mulher. Se mulher gosta, pronto. O
homem vem" (NOGUEIRA, 2010).

Esses recortes retratam, portanto, o universo de uma música composta por “homens” para “mulheres”. A
mesma “embala” a paquera, comove por seu conteúdo romântico, ao mesmo tempo em que “embriaga” seus ouvintes em
baladas de uma certa “elite” urbana.

As letras são única e exclusivamente sobre crises amorosas, saudades do amor perdido ou
celebrando uma paixão em pleno desabrochar. As roupas e roupagens nada da roça, a maior sutileza
nos arranjos, a grudenta rima que 3Victor compõe com natural fluência pop. Mas o vibrato no gogó de
Léo, a segunda voz, aquele imapeável sentimentalismo de metáforas rasas e eficazes não negam
(NOGUEIRA, 2010)

Há nesse comentário, além de uma pequena descrição estética do gênero e seu contexto de prática social, uma
espécie de tipificação das canções. Segundo Chouliaraki e Fairclough (1999), é importante considerar as práticas sociais na
análise da ação humana, incluindo o uso de textos, porque estes conectam estruturas sociais abstratas, como o que
chamamos de “sociedade” propriamente e eventos concretos, ou seja, pessoas vivendo suas vidas. Assim, ao se começar o
trabalho de análise de um texto, é importante localizar o seu núcleo temático, é o que se propõe na seção seguinte, em que
analiso os tipos temáticos das canções do corpus e seus elementos lingüístico-discursivos.

4- As relações de amor na música sertaneja


Já ficou claro que o tema central da música sertaneja é o amor. Contudo, um exame mais detido do corpus
revelou uma divisão em três categorias que aqui chamarei de: “elogio ao amor”, “o amor afastado” e o “amor que rompeu”.
Essa divisão parece retratar três momentos essenciais em trajetórias amorosas, como: (1) o princípio da paixão, em que há
um certo encantamento pela pessoa amada e os amantes parecem querer congelar esse momento para que ele se
eternize; (2) o desencanto que se segue, quando, por algum motivo, o amor começa a se afastar; (3) o rompimento final,
talvez o mais complexo dos três momentos, e que pode provocar sentimentos dos mais diversos. O quadro a seguir
planifica cada um desses tipos de canção e seus elementos tópicos, lexicais e metafóricos mais evidentes:

3 O autor faz referência à dupla Victor e Leo.

649
Quadro dos tipos temáticos da canção sertaneja

ELOGIO AO AMOR O AMOR AFASTADO O AMOR QUE ROMPEU


O coração: tomado pelo amor O coração: machuca seu dono O coração: maltratado pela amada

•As suas digitais estão impregnadas •Se eu pudesse, tirava esse meu •Se soubesse de verdade não
no meu coração coração maltratava meu coração
•Como uma flecha em meu coração •Faz o coração pular no peito •Mas você brincou com o meu
• O anjo que te flechou me acertou •A falta dela me faz pedir socorro pro coração
também coração •Você pisou, machucou meu
•O meu coração, só apanha e vai coração
parar de bater
O sonho: o sonho bom Saudade: solidão A perdição: loucura

•Vi seu sorriso em meu sonho •Saudade de você no coração •Tô pirado, revoltado
•Se for sonho não me acorde •Saudade quando chega não tem •O amor é assim chega de repente
•Não filmei seus sonhos, mas gravei jeito faz a gente se perder
você nos meus •Solidão tem gosto de café amargo •Foi um tiro errado uma bala
•Me tira dessa solidão perdida

•Solidão é vento que vira canoa •Não sai do pensamento querendo


me enlouquecer

A paisagem: natureza e luz A paisagem: se desfaz A paisagem some: corpo

•Primavera combina com as flores •Minha vida virou tédio, um mar de •Procurei em outro corpo um
•A minha lua, meu mar rancor perfume seu

•o farol em uma ilha, numa noite •O castelo de areia que eu fiz pra •Parece beija flor que vai de boca
tão vazia eu beijei você ela a onda levou em boca por ai

•Só as estrelas dirão •Amanheceu, a praia deserta •Vai sentir o amargo de outras
•Lembranças vão chegando com o bocas
•Você é raio de saudade vento •Procurei em outros braços sentir
•O nosso amor é raio luzente seu calor
•Tão veloz quanto a luz Não vou ser mais seu ombro amigo

Observa-se que as três classificações das canções sertanejas dividem certos traços temáticos, como a metáfora
do coração, por exemplo, que aparece nas três. Segundo Lakoff e Mark (2002), a metáfora é um mecanismo conceptual e
cognitivo pelo qual raciocinamos e compreendemos conceitos abstratos de nosso dia-a-dia em termos de outros mais
concretos. Nesse sentido, as metáforas de coração assumem significados que variam de acordo com o tipo de canção em
que aparecem. Nas canções que elogiam o amor, o coração é aquele flechado pelo cupido, possuído pela paixão. Nas
canções de afastamento, o coração maltrata seu dono, pulsando acima de seu ritmo e causando-lhe dor. Já nas canções de
ruptura, o coração é alvo do maltrato da amada, que o machuca propositadamente, como que para ferir seu dono.
Coexistem, nas sociedades ocidentais, várias construções sobre amor. Contudo, frente aos propósitos deste
estudo, que analisa música em contexto social, a mais adequada segue uma fundamentação sociológica proposta por
Giddens (1992), que classifica o amor em três tipos: o amor apaixonado, o amor romântico e o amor confluente. O exame
dos três tipos de música de amor aqui detectados as aproxima mais de perto com o que o autor chama de amor
apaixonado, marcado por uma urgência conflitante com as rotinas da vida cotidiana, invasivo, ao mesmo tempo, encantador
e perturbador. Também se detectam traços do amor romântico, aquele em que a pessoa amada é alvo de idealizações.
Segundo Giddens (1992), esse tipo de amor foi controlado durante muito tempo por sua associação com o casamento e a
maternidade, assim como pela idéia de que o amor é para sempre. É justamente por abalar essa premissa do amor
“eterno”, que as canções de ruptura revelam sentimentos de traição, uma vez que as expectativas do “para sempre” são
contrariadas.

650
O padrão encontrado nas metáforas do coração também se observa na análise do léxico dos três tipos de música
de amor. Assim como, nas canções de elogio ao amor, este atinge o coração do amante, tomando-o positivamente. Outros
elementos lexicais constroem uma representação igualmente positiva, na qual este amante se sente como em um sonho
bom, do qual não quer ser acordado. A paisagem idílica é repleta de luz e carregada de estrelas, lua, mar, flores, todos
elementos naturais que povoam o discurso poético, e que atribuem conotações positivas. Mais uma vez encontra-se aqui
uma associação ao amor romântico, idealizado.
Nas canções de afastamento, a solidão é um item lexical muito recorrente. Nelas, a paisagem natural ainda
predomina, mas é composta por praias desertas, castelos de areia levados pelo vento, mares de rancor etc. Esses itens
desmancham as conotações identificadas no primeiro tipo de música e constroem uma representação menos positiva.
Essas características se aprofundam nas canções de ruptura, onde a paisagem de sonho se desfaz completamente, o
corpo coloca-se na posição alvo do sofrimento e a solidão cede á loucura. Se nos dois primeiros tipos de canção os traços
do amor romântico são mais recorrentes, nas músicas de ruptura é o amor apaixonado que se faz mais presente: a urgência
conflitante com a capacidade de levar a vida normalmente, os elementos perturbadores e seu caráter invasivo.
Após esse levantamento de dados para análise e, ao nos aproximarmos do fim desta seção, é importante não
perder de vista as questões da subjetividade nas relações de gênero que permeiam as canções sertanejas aqui descritas e
interpretadas. Embora elas não necessariamente carreguem marcas de gênero, como sufixos, artigos e pronomes
masculinos e femininos etc., sabe-se pela análise do contexto de produção dessas músicas que as mesmas são feitas por
homens para mulheres. Portanto, todas as conotações aqui levantadas devem ter essa relação como norte para
interpretações dos papéis e identidades que se constroem sobre homens e mulheres nesse gênero discursivo.
Em linhas gerais, o que se revelou até o momento é a construção de um homem possuído pelo amor de uma
mulher que pouca agência apresenta quando as canções elogiam esse amor. Nelas, a mulher é o objeto do amor masculino
que a idealiza e a constrói sob as conotações do amor romântico. A agência feminina só começa a aparecer, nas canções
de afastamento. Nessas, o papel da mulher ainda é bastante passivo, e ela continua sendo representada mais como o
objeto do qual o homem tem falta. Porém, um papel mais ativo começa a se esboçar nesse tipo de música, uma vez que ela
é a causadora dos sofrimentos dele. Essa agência ativa vai ser cada vez mais presente nas canções de ruptura, em que a
mulher maltrata e pisa esse homem, que passa então à posição de sua vítima. Todas essas acepções são passiveis de
uma discussão que desenvolvo a seguir.

Considerações
Ao chegarmos ao fim do trabalho, é importante retomarmos a pergunta que o orientou no início: “que significados
estão presentes nessa música quanto às relações afetivas entre homem-mulher?”. Nas análises, fica evidente que as
relações de afeto entre homem-mulher na canção sertaneja são permeadas por elementos do amor apaixonado e romântico
descritos por Giddens (1992). O primeiro, envolto pelas conotações de desequilíbrio, urgência incômoda e perturbação. O
segundo, pelos elementos que instituíram idealizações que se mantêm nas concepções tradicionais de relacionamento,
como o amor para sempre, a fidelidade compulsória, etc.
Segundo Giddens, o amor romântico teve conseqüências que atingiram as mulheres com imposições a elas
prejudiciais, como a sua subordinação ao lar, seu isolamento do mundo exterior e o confinamento de sua sexualidade ao
casamento. Nesse sentido, a música sertaneja, ao “cantar” o amor romântico, associa-se a todas essas relações de sentido
que pouco contribuem para um relacionamento mais equilibrado entre os sexos. Ao contrário, ao se filiar a essas correntes,
a canção sertaneja não promove ruptura com padrões de conduta que tradicionalmente posicionaram a mulher em relações
desiguais e de pouco poder frente a seus parceiros.

651
Para terminar, é interessante citar o terceiro tipo de amor identificado por Giddens (1992), que não se manifesta
nas letras estudadas: o amor confluente. Segundo o autor, este é um amor ativo, que transforma a realização do prazer
sexual recíproco em um elemento-chave para a manutenção ou dissolução do relacionamento. Ele entra em choque com as
categorias como “para sempre” e “único”, afastando-se, assim, da busca pela pessoa ideal e recaindo mais na procura do
relacionamento ideal. O amor confluente visa um maior equilíbrio entre os papéis de homens e mulheres nas relações,
rompendo com os modelos de imposição e subordinação tradicionais.
A ausência de marcas desse tipo de amor nas músicas estudadas talvez indique que, no contexto em que essa
música se manifesta, as relações entre homem-mulher ainda careçam de todo um percurso de mudança que possa torná-
las mais equilibradas, harmoniosas e verdadeiramente afetivas.

Referências

CALDAS, W. O que é música sertaneja. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Rethinking Critical Discourse Analysis. Edimburgo:
Edinburgh University Press, 1999.

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http://www.abril.com.br/noticia/diversao/no_307163.shtml. Acesso em: março de 2010.

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse. New York: Routledge, 2003.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo:
Editora Unesp, 1992.

LAKOFF, G.; MARK, J. Metáforas da vida cotidiana. (Tradução Mara Sophia Zanotto). Campinas: Mercado das Letras;
São Paulo: Educ, 2002.

MEURER, J.L. Ampliando a noção de contexto na lingüística sistêmico-funcional e na análise crítica do discurso.
Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 4, n.esp, 2004, p. 133-157.

MEDINA, C. A. Música e comunicação: um ensaio sociológico. Petrópolis: Vozes, 1973.

NOGUEIRA, B. T. Beleza, interior. Revista Trip. N. 188, 11.05.2010. Disponível em:


<http://revistatrip.uol.com.br/print.php?cont_id=30592>. Acesso em: julho de 2010.

ORLANDI, E.P. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez Editora-Unicamp, 1988.

RODRIGUES, E. C. R. Músicas sertanejas: um diálogo entre raízes e ideologias. Signo. Santa Cruz do Sul, vol. 33 n 54, p.
141-192, jan-jun, 2008.
Disponível em: http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/index. Acesso em: julho de 2010.

VAN DIJK, T. A (Org.) El discurso como estructura y proceso. Barcelona: Gedisa. 1997.

WODAK, R.: MAYER, M. (Org.) Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003.

652
ANEXO:
Lista das canções que constituem o corpus
1. A casa caiu - Fernando e Sorocaba
2. Afinal - Luis Guilherme e Nadielly
3. Amores imortais - Eduardo Costa
4. Ao vivo e em cores - Victor e Leo
5. Estrela cadente - Victor e Leo
6. Fã - Christian e Cristiano
7. Gosto de café amargo - Hugo e Tiago
8. Livre, leve e solto - Roger E Robson
9. Meteoro - Luan Santana
10. Não vou mais chorar - João Neto e Frederico
11. Nóis namora - Zezé Di Camargo e Luciano
12. O que combina comigo é você - Zé Henrique e Gabriel
13. Os dias vão - Maria Cecília e Rodolfo
14. Pode ir embora - Bruno e Marrone
15. Sem esse coração - João Bosco e Vinicius
16. Sinais - Luan Santana
17. Tá (part. Mendigo) - Edson e Você
18. Uma canção pra você - Edson Cadorini
19. Voa beija flor - Jorge e Mateus
20. Você não sabe o que é amor - Luan Santana
21. Flor do meu sertão - Leonardo
22. E daí? - Guilherme & Santiago
23. To nem aí - Hugo Pena e Gabriel

653
O discurso do outro no universo adolescente: A teoria de
Bakhtin como perspectiva de análise da revista Capricho

FREITAS, Natasha Jorge


(PUCRS)

INTRODUÇÃO

Pela teoria que o Círculo de Bakhtin desenvolveu ao longo de seus estudos, observa-se que todo signo é
ideológico, pois esse signo é um objeto natural que pode ter um sentido que ultrapassa as fronteiras de suas
particularidades. Para que o signo exista é necessária a interação entre uma consciência individual e uma outra, ou seja, a
interação social através da enunciação.
Entretanto, para que a enunciação, repleta de ideologia, seja compreendida, não basta apenas que sejam
indivíduos empíricos falantes: é preciso uma ligação mais forte, como a língua e o meio social a que pertencem. O discurso
se faz presente através da fala do indivíduo, mas apenas cria o seu real valor no meio social a que se destina.
Observando esses pontos, a revista Capricho (edição de maio de 2010), voltada para um meio social específico
(meninas na adolescência), apresenta o seu discurso (conteúdo dos textos jornalísticos e publicidade) com signos
determinados por um gênero ao universo das leitoras.
Pretende-se com a análise desse material semiótico identificar a força valorativa do outro, neste caso
representado pelos textos da revista Capricho a partir da teoria de Bakhtin sobre acento de valor, palavra, enunciação,
compreensão responsiva ativa e gênero discursivo. A teoria será explicada de acordo com a leitura de três obras de
Bakhtin: Estética da Criação Verbal, Marxismo e Filosofia da Linguagem e Para uma filosofia do ato. As marcas linguísticas
dos enunciadores, como os verbos utilizados, serão analisadas para entender o possível efeito desses enunciados sobre o
público-leitor, ou seja, meninas adolescentes.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

Como explicitado anteriormente, Bakhtin/Volochínov (1929) entende o discurso, tanto o processo quanto o
produto, como o princípio organizador da sociedade. Não entendemos a nossa realidade sem o discurso. Precisamos da
palavra em uso para estar no meio social, na realidade, posto que somos seres que vivem em grupos sociais, não vivemos
isolados.
A palavra, por definição, é o signo ideológico por excelência. É por ela e nela que vivemos nas nossas relações
sociais, isto é, temos a realidade através do discurso. Enfim, concebe-se a palavra como o meio mais importante para a
existência da interação humana. Nela somos capazes de evocar ideias, sentimentos e questionamentos. Podemos
conceber a palavra para o indivíduo em três momentos: a palavra da língua isenta de sentido, pois precisa de alguém que a
coloque em uso; a palavra do outro, que usa a palavra da língua e coloca o seu sentido e consciência, e; a minha palavra,

654
completa com essa palavra alheia e de um sistema abstrato. A minha palavra coloca a minha subjetividade no discurso
(realidade) e também apresenta a palavra de outrem, aquela que preenche a minha vida com histórias, pensamentos e
ações.
Entretanto, convém lembrar que essa palavra aberta para preenchimento de sentidos revela a intenção dos
enunciadores. A palavra e a ideologia estão unidas no discurso. Os falantes usam a palavra para expressar o seu discurso
e fazem para colocar o seu lugar no mundo. O locutor orienta a sua enunciação/seu enunciado a outro, esperando assim
uma resposta, o resultado da interação verbal. Esse elo comunicativo é essencial para o que chamamos de compreensão
responsiva ativa.
Para o elo existir é necessário os seres empíricos falantes: os locutores e os ouvintes. Sabemos, entretanto, que
há momentos em que não há um ouvinte empírico presente, como no caso de um texto escrito. Contudo, sempre temos em
mente um leitor ou ouvinte presumido quando produzimos o nosso enunciado.
Com isso, é necessário que os enunciadores estejam em um mesmo contexto sociolingüístico. A enunciação só é
concretizada se os enunciadores envolvidos conseguem interagir pela língua e pela cultura, senão “a comunhão de espírito”
não ocorre. Como no caso da Capricho, a comunhão existe porque o público-leitor encontra no discurso da revista uma voz
com os mesmos traços lingüísticos e ideológicos que o seu. O corpo jornalístico da revista torna-se uma palavra com duas
características: a) o discurso ali impresso revela-se amigo e parceiro das emoções, paixões e anseios do seu público-leitor,
pois sabe exatamente o que se passa com cada uma como se vivesse também aquilo, e; b) ao mesmo tempo que é amiga
e parceira, a revista tem autoridade na sua fala, já que as dúvidas enviadas até ela demonstram a necessidade dessas
jovens de que a Capricho resolva seu problema. A revista Capricho torna-se a conselheira fiel: entende o que o seu
alocutário quer dizer e responde da forma que ele entenda e aceita. Indo além, a palavra da revista é a palavra autoritária, a
qual entendemos como vinda de alguém que tem poder sobre nós.
É importante ressaltar que para a teoria dialógica, a alteridade é a base fundamental. A relação com outro define o
discurso, seus ecos e seus outros discursos presentes no seu enunciado. A forma como me situo em sociedade, linguística
e socialmente, define meus atos e como o outro se relaciona comigo. O sujeito não pode ser avaliado pelas suas ideias,
porque essas muitas vezes não condizem com suas atitudes. O homem vivente é avaliado, sim, pela sua enunciação. Suas
palavras o definem na sociedade e, por isso, deve ser responsável pelos seus enunciados.
A importância do outro sobre os meus atos, os meus pensamentos e o meu discurso refletem minha vivência
mortal nesse mundo. A importância dada às revistas desse gênero e tipo refletem a força discursiva dos editores e a
necessidade dessas adolescentes em estar incluída na sociedade, já que muitas meninas compartilham informações
retiradas a partir da leitura dessas revistas.
Antes de passarmos para a metodologia, é necessário elucidar um pouco sobre o gênero discursivo escolhido
para análise.
Os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, para se tornarem gêneros é necessário
observar certos elementos semelhantes como marcas linguísticas, meio de divulgação a qual está vinculado, etc. Através
do uso corrente desses traços, agrega-se a ele a terminologia gênero. Bakhtin afirma que os gêneros são essenciais para o
discurso, pois são através dele que nos movimentamos pelos diversos meios sociais.
No caso da revista Capricho, o editorial e a reportagem são característicos gêneros conhecidos. O primeiro
sempre aparece com a entonação autorizada da empresa ou do grupo editorial. No corpo do texto observa-se a opinião
daquele que organiza as informações a serem divulgadas na revista. Nesse caso, o editorial prepara o leitor para uma das

655
entrevistas publicadas naquela edição. O segundo, entretanto, não tem a obrigação de seguir essa opinião. A reportagem
tem como cárater dividir em tópicos um assunto polêmico ou instigante, sendo uma versão ampliada de uma notícia. A
reportagem tem origem em uma pesquisa, muitas vezes mercadológica, e o repórter/jornalista compila as informações que
julga mais interessante para o seu público leitor.
O diferencial presente nesses dois gêneros é que a linguagem e a temática dos textos são específicas para um
público leitor distinto: adolescente, faixa etária entre 12 a 18, do sexo feminino, que gostem dos principais assuntos
dispostos na revista: música pop, cinema, eventos musicais, artistas, comportamento juvenil (tanto de meninas quanto de
meninos), relacionamentos.

METODOLOGIA

O editorial e a reportagem da revista Capricho de maio de 2010 serão estudados pela perspectiva dos estudos do
Círculo de Bakhtin abordados neste trabalho. Os itens lexicais presentes nas sequências de enunciados como o título e o
corpo do texto, os elementos visuais como imagens e cores, e o espaço na revista serão analisados para entender o efeito
de sentido que esses traços produzem no leitor. A compreensão de cada enunciado será feita separadamente (primeiro o
editorial e segundo a reportagem) e, após, concluída em conjunto.

ANÁLISE

A capa de uma revista para o público adolescente geralmente estampa uma personalidade em voga na
atualidade. Nessa edição está presente a cantora e atriz norte-americana Miley Cyrus. A artista possui atualmente grande
influência sobre as adolescentes e a Capricho, sabendo disso, estampa sua foto e entrevista em sua edição impressa e
publica uma página exclusiva1 referente a notícias sobre a Miley Cyrus. Junto com as chamadas para outras informações da
revista está uma para a reportagem escolhida: como não ser popular na escola.
O editorial (Oi da editora) tem como título “#Nowplaying Party in the USA - O melhor de Miley é ser adolescente”.
Chamando a atenção para a leitora da entrevista principal, a editora utiliza alguns recursos do universo adolescente: o uso
do # evoca o conhecimento leitor de uma das mais novas ferramentas muito utilizada para discussão e conversação, o
twitter. Sempre quando se deseja frisar o tópico do tweet (nome dado ao recado de 140 caracteres, marca do twitter) usa-se
#. No caso da editora, ela está ouvindo a mais recente canção de Miley naquele exato momento; enfatiza o poder da artista
sobre o seu público: ela sabe ser adolescente.
No corpo do texto a editora explica a razão do seu argumento: ela acredita que Miley seja a diva de sua geração,
ou seja, diva das adolescentes (há uma foto presente na assinatura do texto da editora, evidenciando o fato de ela não ser
adolescente). Explica que Miley é dona de um programa de TV, tem uma de suas canções como uma das mais tocadas e
estreará no cinema com um filme preparado só para ela. Todos essas associações não são vinculadas a qualquer
adolescente, mas somente a uma diva de sua geração.
Em seguida reitera que o que mais gosta na cantora/atriz é o fato de ela ser adolescente (o uso de reticências dá
outro tom a esse adjetivo) e desenvolve a sua explicação: ela é adolescente porque “deixa-se fotografar descabelada, de

1 http://capricho.abril.com.br/miley-cyrus/

656
jeans rasgado, andando pelas ruas. Errou ao zoar Demi e Selena no Youtube - e então pediu desculpas. Apaixonou-se (e
desapaixonou-se) por todos os garotos fofos que passaram por seu caminho (só para lembrar: Nick e Justin e o atual,
Liam).” Ou seja, para a editora, Miley é adolescente porque não se importa com a sua aparência frente às câmeras, caçoa
de colegas (Demi e Selena são artistas da Disney como Miley) e depois pede desculpas, tudo publicamente, namorou com
todos os meninos fofos que passaram por seu caminho (entendendo todos como se qualquer “menino fofo” que passou pela
artista manteve, pelo menos durante algum tempo, um relacionamento com ela). Os efeitos causados pela extensa
descrição criam o entendimento de que tudo isso é verdadeiro e que está a disposição de todos os fãs que conhecem ou
desejam conhecer a vida da artista.
Para a editora, mesmo pensando ou dizendo palavras ofensivas e opressoras a Miley, afirma que ninguém pode
dizer que ela não seja autêntica. Encerra o texto dirigindo-se à leitora aconselhando-a que mesmo que Miley não seja a
ideia da capa da revista, a artista nos ensina (lembrando sempre que a terceira pessoa do plural aqui utilizada refere-se às
adolescentes) que devemos ser nós mesmos sem pensar nos que os outros irão dizer sobre nós.
Interessante notar a tentativa de desapego da opinião do outro. A editora nos parece concordar com a sua visão e
espera que a leitora da revista pense assim. Que a leitora, a partir da reflexão sobre Miley, não pense na construção do seu
Ser a partir de um mundo dominador e não-subjetivo. Que veja através da imagem construída na mídia pela artista seja
exemplo para as meninas de sua geração. Entretanto, essas teorias como será visto a seguir, não estão contidas na
reportagem.
A reportagem, pertencente ao núcleo Comportamento da revista, tem como título “Como não ser popular (assim,
com o não riscado com grafismos semelhantes a feitos por uma caneta hidrográfica) - Esqueça todos os conselhos clichês
que você já ouviu na vida. Saiba como se tornar popular de verdade sem precisar deixar de ser quem é.” Os verbos na
forma imperativa são característicos desse gênero discursivo e significa que além de determinar o que fazer e o que não
fazer, informa como a leitora deve agir e não agir. No uso do pronome “todos” em “... todos os problemas clichês” reflete o
conhecimento da jornalista de todos os enunciados ditos sobre comportamento a uma adolescente. Novamente, aqui temos
a preocupação do enunciador com a construção do Ser.
Pode-se pensar que a reportagem, diferentemente do que foi dito aqui anteriormente, esteja concordando com a
mensagem do editorial. Essa posição torna-se mais forte a medida que se segue a leitura de apresentação da reportagem:
“(...) Se não for fiel ao que é e não tiver bom senso, as tentativas de se tornar ‘pop’ podem acabar queimando o
seu filme.”
Aqui há uma suavização no discurso: “... podem acabar” sugere que há a possibilidade de que se fizer alguma
coisa da forma que se acredita ser o certo e não tiver bom senso nesse ato, talvez a sua imagem perante os outros não
será prejudicada. Todavia, a reportagem segue afirmando que dará conselhos (outros que não os clichês do subtítulo) de
como ter muitos amigos e ser popular sem problemas. Às margens das páginas destinadas à reportagem aparecem fotos
de um grupo de amigos, nas quais nota-se que uma menina, muito sorridente, parece incomodar os seus amigos devido às
poses exageradas.
Cada conselho possui um padrão: primeiro o que não deve ser feito, seguidos do “é #fail porque” (lembrando
novamente a regra do twitter, nesse caso o tópico significa “errado”) e a explicação do porquê não se deve fazer e o “faça
assim”, descrevendo como deve ser feito tal ação. Junto a alguns conselhos aparecem depoimentos de meninas que
reiteram as opiniões ali apresentadas.

657
Para análise deste artigo serão estudados seis dos doze conselhos apresentados. Os seis foram escolhidos para
confrontar com a ideia contida no texto, mesmo observando que em todos os casos há contradição em partes do discurso.
Em todos os casos temos sempre presente os verbos no imperativo e, com exceção do segundo, os conselhos usam algum
pronome indefinido que enfatiza a generalização de cada caso. Outro ponto característico da esfera discursiva específica é
o uso de enunciados curtos que causem grande impacto, ou seja, em poucas palavras obtém-se uma informação clara e
objetiva.
O primeiro é: Chame a atenção o tempo todo. Nesse caso o problema está em mostrar-se o tempo inteiro, não
oferecendo carinho para as outras pessoas. A solução encontrada é “dividir o palco com alguém”, isto é, ser extrovertida, de
acordo com a revista, só vale a pena se for para “emprestar o seu brilho para as outras pessoas”. Dar motivos para os
outros terem o foco de sua atenção em você é errado, mas para uma “diva de sua geração” isso é normal, típico.
O segundo Crie polêmicas na internet explica que o erro é enviar muitas mensagens pela internet aos amigos com
pouco conteúdo; mensagens enviadas apenas para debochar, ridicularizar ou contar piadas irritam as pessoas. O certo é
entrar em grupos de opiniões, pensar sobre o que está discutindo para ficar conhecido pelos depoimentos coerentes. O
especial nesse caso, já que é diferente dos outros, é que aqui a informação reitera a opinião da editora. Falar tudo o que
pensa sobre uma pessoa e, assim, ridicularizá-la perante os demais é sempre condenável. Mesmo para uma diva do pop
adolescente como para qualquer adolescente.
Aproxime-se de todos os meninos revela que meninas que estão sempre ao redor de outros meninos geram uma
imagem de “oferecida”, isto é, uma menina interessada apenas em ter relacionamentos amorosos. Se quiser ter amigos
meninos a menina precisa primeiro tornar-se amiga e analisar muito bem com quem se aproximar. Uma adolescente comum
não pode interessar-se por todos os meninos que passam ao seu lado, como Miley Cyrus. A atitude da artista é condenável.
O quarto conselho surge do problema Aparente estar sempre feliz. O problema é que as pessoas sabem que
ninguém é feliz o tempo inteiro e isso demonstra insegurança. É preciso demonstrar quando se está feliz, mas também é
importante demonstrar quando se está triste. Demonstrar ter problemas é ser humano e coloca o indivíduo nas relações,
mesmo que para ele seja constrangedor.
O quinto é Só diga sim. Isso é errado porque passa uma imagem de pessoa carente, e as pessoas, de acordo
com a reportagem, não gostam de pessoas carentes. É necessário avaliar todas as propostas recebidas para passar aos
demais que tudo tem limite. É necessário lembrar que, de acordo com esse quinto conselho, podemos entender que, a partir
da interpretação do quarto conselho, aparentar estar sempre triste também é errado. A voz da revista, nessa reportagem,
sugere um limite para a demonstração dos sentimentos, mas torna-se confuso saber qual é.
O último tem como tópico Adicione todo mundo nas redes sociais, dizendo que além de passar insegurança, é
perigoso compartilhar muitas informações com desconhecidos. É preciso ter critérios para escolher um novo amigo sem ser
ofensivo.
Recordando as descrições de cada conselho, a palavra insegurança aparece diversas vezes. Na reportagem vê-
se que transmitir insegurança aos outros é errado. As pessoas querem indivíduos seguros de si e confiantes nas suas
opiniões. A imagem que o outro tem de nós mesmos é de extrema importância para a construção da nossa subjetividade e
dos nossos discursos para os outros. A imagem que temos dos outros deve ser o nosso guia para as nossas ações e
palavras, já que através delas podemos nos inserir ou sair de um meio social específico. Entender essa relação é
fundamental para uma adolescente que tem conflitos internos, buscando compreender quem é.

658
Como descritos, os erros cometidos pelas jovens são algumas das características da diva da geração das
adolescentes, Miley Cyrus. Estar perto de meninos, chamar a atenção para si, estar sempre sorridente são partes do ser-
adolescente da artista, consagrada em páginas anteriores pela editora da revista. Compartilhar informações pessoais, como
opiniões “vazias”, está também como um dos fatores da essência da adolescente. Uma leitura crítica confronta essas
teorias e dificilmente encontra elo entre a opinião do grupo editorial e da jornalista.
As ideias clichês, no título da reportagem, não são descritas. Afinal, qual a diferença do clichê para o não-clichê?
A análise das alternativas são opiniões de senso comum. Ideias postas no editorial e na reportagem em parte se
contradizem, fazendo com que a adolescente imagine sua diva ainda mais inatingível, já que ela pode cometer muitos erros,
mas a leitora não.

CONCLUSÃO

A ideia proposta pelo editorial vai de encontro ao da reportagem. Essa última, ao contrário do editorial, confirma o
pensamento bakhtiniano da necessidade do outro para o julgamento de suas ações. A revista Capricho, uma revista voltada
para um público que pretende através da leitura resolver problemas no seu relacionamento ou entender seu ciclo menstrual,
demonstra, mesmo negando as ideias clichês sobre comportamento humano e acreditando que nossas ações e nossas
palavras nos marcam na sociedade na qual vivemos, confirma o conceito da alteridade. A palavra do outro, a palavra
neutra, encontra seu sentido no discurso e molda o indivíduo que o enuncia e que o ouve.
A necessidade de uma palavra de autoridade para a adolescente é do conhecimento tanto do corpo editorial da
revista quanto dos demais jornalistas da empresa. Envolver a adolescente com personagens e situações do seu dia-a-dia
são elementos fundamentais para a construção do discurso da Capricho e desta forma ela faz o seu público-leitor buscar as
informações contidas na revista, comprando o produto e indicando a outras que façam o mesmo. A manipulação do outro
sobre a opinião do indivíduo é fator integrante da esfera jornalística, mesmo que nesse caso, seja confuso entender o que
se deve e o que não se deve fazer.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal [1979]. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail M. /VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem [1929]. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato [1920-1924]. Trad. Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Versão
destinada para uso didático e acadêmico.

Natasha Jorge Freitas possui Licenciatura em Língua e Literatura Portuguesa pela PUCRS, Especialização em Estudos
Linguísticos do Texto pela UFRGS e atualmente cursa o Mestrado em Linguística pela PUCRS. Seus principais trabalhos
estão relacionados a Erico Verissimo, literatura rio-grandense, narrativa de RPG e ensino de língua e literatura portuguesa.
E-mail: jesuisheureuse@gmail.com

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Sujeitos enunciadores e contrato comunicativo em São
Bernardo

FREITAS, Regina Celia Pereira Werneck


(UFRJ UBM)

INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte de minha Tese de Doutorado que se dedicou à investigação de itens lexicais e de
outras marcas linguísticas a serviço da construção do ethos de Paulo Honório, narrador em primeira pessoa e personagem
principal do romance São Bernardo de Graciliano Ramos e da construção metaenunciativa do romance que se constrói de
um fazer na e pela linguagem. O corpus constituiu-se do texto literário de um de nossos escritores - Graciliano Ramos,
focalizando o modo enunciativo de organização do discurso (CHARAUDEAU, 2008).
Organizou-se a partir de índices da subjetividade tais como: levantamento de tempos verbais do mundo
narrado e do mundo comentado, de advérbios (em –mente), substantivos, adjetivos afetivos e avaliativos, expressões
nacionais e sua utilização para a definição do ethos desse personagem.
É um estudo das marcas dos sujeitos enunciadores e do contrato comunicativo que se estabelece entre eles
e seu papel no discurso literário, com base nas propostas da Análise do Discurso de cunho interacional, a partir dos estudos
teóricos de CHARAUDEAU (1983, 1989, 1992, 1996, 2006 e 2008).
Durante o processo de interação, imagina-se que os recursos linguísticos utilizados pelo enunciador podem
aparecer sob diversas estruturas, as quais podem ser detectadas na análise dos textos. Supõe-se que as estratégias
linguísticas para a manifestação dos sujeitos enunciadores e do contrato comunicativo estabelecido na obra de Graciliano
Ramos não sejam as mesmas para as diferentes vozes em interação, ainda que possa haver uma convergência para um
único enunciador concreto. Desse modo, é possível apropriar-se das abordagens linguístico-discursivas como ferramentas
auxiliares para o estudo e análise dos textos.
Portanto, a hipótese que se delineia é a de que o enunciador deixa marcas reveladoras de sua presença em
seu texto e essas podem ser detectadas por meio de uma análise do discurso de cunho semiolinguístico.
Este trabalho tem, então, por objetivo a investigação das marcas linguísticas que comprovem a presença
dos sujeitos enunciadores no texto, o contrato comunicativo celebrado entre eles e o próprio fazer literário na obra de
Graciliano Ramos. Além disso, objetiva-se fornecer para alunos e professores subsídios que lhes permitam analisar textos,
dentro de um recorte enunciativo, e utilizar os recursos em produções textuais.

A pesquisa orienta-se do seguinte modo: na Introdução, especificam-se os referenciais teóricos que estão
divididos nas seguintes partes: o primeiro segmento trata de sujeitos enunciadores e a segunda, de contrato comunicativo.
Para a concretização dos objetivos desta pesquisa, a metodologia adotada compreendeu a leitura de textos
teóricos que fundamentaram a análise do texto literário e de textos que tratam dos principais conceitos referentes à Análise
do Discurso. Posteriormente, releituras do texto de Graciliano Ramos, com vistas à investigação linguística. A análise do
corpus abrange todo o romance São Bernardo. A análise dos recursos é pautada pelos princípios da Semiolinguística. Para
o seu desenvolvimento, fez-se um levantamento dos procedimentos de construção da enunciação de ordem linguística,

660
aquela que se mostra por meio dos processos de modalização do dizer. Os capítulos e as páginas indicadas em cada um
dos exemplos correspondem à edição de São Bernardo (RAMOS, 1978).
Desse modo, opta-se pela abordagem de alguns elementos que marcam a presença do enunciador no
discurso e que são responsáveis pela construção de sua imagem. Tais mecanismos são elementos comprobatórios da
importância de se considerar como se realiza a inserção dos sujeitos enunciadores no discurso.
Como foi dito, o embasamento teórico do trabalho compreende os estudos de Análise do Discurso, de cunho
comunicacional, uma vez que esta se apresenta com o objetivo de romper com a visão reducionista que enfoca a língua ora
como reprodutora da realidade ora como mero instrumento de comunicação. A Análise do Discurso preocupa-se com o
sentido discursivo implícito nos textos, co-construído na interação autor/leitor.

Parte-se do princípio de que o signo linguístico não apresenta um conteúdo referencial, mas valores
contextuais e situacionais. Nesse sentido, Charaudeau aponta para a ilusão de transparência do signo, no sentido de que
as palavras não são etiquetas colocadas sobre as realidades do mundo, mas possuem múltiplas funções: “ora descrevem
referentes, ora sugerem implícitos, ora veiculam valores sociais, ora revelam a identidade dos falantes.” (CARNEIRO, 1997).
A fundamentação teórica desta pesquisa, portanto, compreende conceitos básicos da Teoria
Semiolinguística (CHARAUDEAU, 1983), como a Teoria sobre os sujeitos enunciadores e o contrato comunicativo
(CHARAUDEAU, 1997) uma vez que tratam do jogo enunciativo entre os protagonistas do discurso, conforme princípios e
regras codificadas para cada gênero textual;
Oportunidade ímpar analisar-se o texto de Graciliano Ramos sob esse enfoque.
Este trabalho insere-se na linha de pesquisa Língua e Discurso do Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, da Faculdade de Letras da UFRJ. Vincula-se ao projeto Análise do Discurso e Ensino de Português cuja base
teórica se prende à Análise Semiolinguística do Discurso. Os fundamentos desta análise se concretizam em exames
linguísticos que pretendem desvendar como o social se estrutura discursivamente.

SUJEITOS ENUNCIADORES E CONTRATO COMUNICATIVO

Partindo-se dos pressupostos da Semiolinguística do Discurso - aqui tomados de forma resumida e


simplificada – pode-se reconhecer o ato de linguagem, independentemente do código semiolinguístico realizado, não como
um ato simétrico de transmissão de informações entre receptor e ouvinte, mas como um “espetáculo”, ou “mise-en-scène”
recobrindo quatro sujeitos: dois parceiros situados no circuito externo do fazer social (sujeito comunicante e sujeito
interpretante), que constituem o lugar situacional dos gêneros e dois protagonistas (sujeito enunciador e sujeitos
destinatário), inscritos no circuito interno do dizer.

Assim, o ato de linguagem apresenta um caráter interacional e um duplo processo de cálculo entre olhares
avaliadores e “lances” de produção e de interpretação de sentido por meio de jogos de encenação e nesse jogo “... cada um
se legitimando e legitimando o outro através de uma espécie de olhar avaliativo, o que permite dizer que

a identidade social se constrói por meio de um ‘cruzamento de olhares’”. (CHARAUDEAU, 2006).

Em texto organizado no modo narrativo, gênero discursivo romance, concebe-se o ato de linguagem como
interenunciativo entre sujeito comunicante (autor)

661
e sujeito interpretante (leitor) mediados pelo texto. Assim, esse ato é concebido como um encontro dialético entre dois
processos:

> o processo de produção, produzido por um EU comunicante que se dirige a um TU - destinatário;

> o processo de interpretação, produzido por um TU interpretante que constrói uma imagem EU
comunicante.

O ato de linguagem torna-se, como já foi dito, um ato enunciativo entre quatro sujeitos - e não apenas dois -
visto que, no universo de discurso do eu, há um EU que se dirige a um TU no processo de produção enquanto, no universo
da interpretação, há um TU que interpreta a fala do EU e o reconstrói discursivamente. Pode-se, então afirmar que, visto do
lado do processo da produção, encontra-se um sujeito Enunciador, ora em diante denominado de EUe, que é a imagem
construída pelo sujeito produtor de fala ou sujeito comunicante, ora em diante denominado de EUc; o EUe é, então, o traço

da intencionalidade do EUc, neste ato de produção. Há, consequentemente, um tu destinatário ideal, que será designado
por TUd, e há um tu sujeito responsável pelo processo de interpretação, que será designado por TUi.

Pode-se verificar a ocorrência do ato de linguagem assim entendido por meio do esquema:

(EUc) >>>>> (EUe) <<<<<< >>>>>> (TUd) >>>>> (TUi)

autor narrador leitor virtual leitor real

ser social ser social

Para Charaudeau, as práticas de linguagem pressupõem sempre interação, mas que dependem das
circunstâncias da enunciação e dos destinatários a quem o discurso é dirigido.
Dessa forma, neste estudo, levando-se em conta as condições de produção do texto ficcional, compreende-se
como EUc o autor da obra, escritor renomado da literatura brasileira, Graciliano Ramos, autor de prosa ficcional e autobiográfica,
de leituras tantas vezes conflitantes, que construiu um personagem em busca de penitência para seus pecados. Tem-se,
facilmente reconhecível, o autor, ser social, escritor localizado no tempo e no espaço, ou seja, EUc. Há os leitores, destinatários
ideais - TUd, leitores virtuais, foco do EUc. Há os leitores reais, também seres sociais, designados por TUi. Mas há também Paulo
Honório - narrador em primeira pessoa - que, na tentativa de dividir sua angústia existencial com os enunciatários, se decide por
redigir um texto, talvez biográfico, talvez de memórias. Quem é o sujeito que busca o perdão? É o narrador Paulo Honório, EUe,
que se dirige ao leitor virtual e carece de sua cumplicidade, mas, principalmente de remição.
Pode-se entender a ocorrência do ato de linguagem desse texto literário por meio do mesmo esquema:

662
(EUc) >>>>> (EUe) <<<<<< >>>>>> (TUd) >>>>> (TUi)

(autor-G. Ramos, (narrador–P. Honório) (leitor virtual a (leitor real- nós)


e também P.H.) quem PH se dirige)
ser social ser social

Mas, Paulo Honório não é apenas narrador. É protagonista, figura central desse romance que, por meio da
linguagem, busca a cumplicidade do leitor para expiar seus pecados ou faz um exame detalhado de consciência. A palavra será
sua redenção.

Como exemplo, citam-se fragmentos do Capítulo II (Páginas 09 a 11):

Abandonei a empresa, mas um dia destes ouvi de novo pio de coruja - e iniciei a

composição de repente, valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz

qualquer vantagem, direta ou indireta. [...]

[...] Há fatos que eu não revelaria, cara a cara, a ninguém. Vou narrá-los porque

a obra será publicada com pseudônimo. E se souberem que o autor sou eu, naturalmente me

chamarão potoqueiro.

Continuemos. Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de

mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode

ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos

leitores e repita passagens insignificantes. [...]

[...] Aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café,

suspendo às vezes o trabalho moroso, olho a folhagem das laranjeiras que a noite enegrece,

digo a mim mesmo que esta pena é um objeto pesado. Não estou acostumado a pensar. [...]

[...] Volto a sentar-me, releio estes períodos chinfrins.

_Então para que escreve?

663
_Sei lá![...]

Pode-se questionar esta abordagem do texto literário, a partir de pontos de vista dos estudos da linguagem,
como a Teorias da Enunciação e da Análise do Discurso; entretanto, recorre-se a essas teorias, por considerar-se o “texto”,
além do universo literário, como um ato de comunicação, que pode ser tratado no campo da semiologia e nos estudos de
linguagem. Como disse Roland Barthes “essa conjugação nova da literatura e da linguística poder-se-ia chamar de semio-
crítica” (BARTHES, apud MELLO, 2003).

Dessa forma, também agiram outros teóricos como Todorov, Genette e Eco, alguns estudiosos que se
debruçam sobre o ato de ler e a relação que há entre a leitura e a escrita. Assim, o discurso literário pode ser visto, levando-
se em conta sua estrutura comunicativa e os aspectos linguístico-discursivos.

Analisam-se, na obra São Bernardo, os sujeitos do ato de linguagem que se realiza como “discurso” > lugar da
encenação da significação que vai resultar em um texto que representa a materialização da encenação do ato comunicativo.
O sujeito não é, nessa concepção, um indivíduo preciso, nem um ser coletivo, mas um “lugar” de abstração da produção/
interpretação do sentido, que vai depender do lugar que o sujeito ocupa - comunicante, enunciador, destinatário ou
interpretante - e outras mais. Justifica-se, assim, o uso da Teoria Semiolinguística porque se acredita que ela seja capaz de
explicitar os múltiplos sujeitos que aparecem no texto literário

Assim, entende-se como EUe, o personagem Paulo Honório, homem rude, ambicioso, conforme suas próprias
palavras: “minha ignorância é completa.” (Capítulo II: p.10).

Por outro lado, nesta interação, percebe-se como TUd o leitor ideal, aquele que é capaz de compartilhar com o
EUc das ocorrências do momento em que o texto é redigido,

compactuando das angústias e, talvez das esperanças, que esse mesmo autor deixa transparecer em seus escritos.

E há, finalmente, o TUi que leva consigo uma expectativa que se realizará ou não ao fim do processo de leitura.
Essa realização decorre dos conhecimentos prévios que aplicará ao ato de ler; decorre também de quais são os objetivos e as
expectativas em relação à obra. Importa, igualmente, conhecer as estratégias de processamento do texto por ele utilizadas,
compreendendo-se que haverá sempre diferentes graus de interação na leitura de textos.

Neste estudo da obra São Bernardo, interessa analisar o fazer discursivo proposto pelo sujeito enunciador,
responsável pela construção de uma imagem de si, ao mesmo tempo em que o levantamento das marcas linguísticas mais
recorrentes permitirá analisar como ocorre o processo de semiotização do discurso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final deste trabalho, em que se verificou a construção metaenunciativa, a constituição dos sujeitos
enunciadores e do contrato comunicativo estabelecido entre eles, avalia-se a importância da investigação linguística para
produção/interpretação de sentido baseadas em teorias que tratam do processamento do discurso.

664
A fundamentação teórica ofereceu suporte para as investigações. A contribuição teórica da Análise do
Discurso de cunho interacional foi decisiva para comprovar a importância da verificação linguística na produção e na
recepção de sentido de textos.
Teorias recentes como a semiolinguística proporcionaram à aluna pesquisadora meios para a investigação
da construção do texto literário. Os conceitos de Patrick Charaudeau sobre sujeitos enunciadores e a noção de contrato
comunicativo permitiram desvendar os múltiplos desdobramentos do personagem Paulo Honório que, ao fim da vida, decide
buscar sentido para sua existência.
São Bernardo é para o enunciador um confessionário, espaço em que ele se permite reconhecer a inutilidade
de sua vida.
Comprovou-se o objetivo por intermédio da investigação das marcas linguísticas, já que essas comprovaram
a presença dos sujeitos enunciadores no texto, o contrato comunicativo celebrado e o próprio fazer literário. Igualmente,
procurou-se legar a alunos e professores meios que lhes permitam analisar textos, dentro de um recorte enunciativo, e
utilizar esses recursos em produções textuais. A metodologia adotada compreendeu a leitura de textos teóricos que
fundamentaram a análise do texto
literário. Foram feitas leituras e releituras de todo o texto de Graciliano Ramos, com o olhar voltado para a análise
linguística.
Como se exemplificou, Graciliano Ramos utiliza-se de recursos lingüísticos que comprovam a presença dos
sujeitos enunciadores no texto. A leitura do romance revela a importância das escolhas lingüísticas mostrando o que são e
como permitem identificar o ethos enunciador.

Foi o que se pretendeu ao longo deste trabalho: comprovar a construção do ethos em São Bernardo. Após
análise cuidadosa, comprovou-se a importância das escolhas para a construção do ethos. Tais escolhas atuam na
construção textual em que se elabora e se fundamenta a definição do sujeito enunciador; logo têm presença marcante neste
texto em que se revela a imagem de si do enunciador e - por que não o dizer? - também a do enunciatário.
Acredita-se que os resultados obtidos contribuirão para um melhor entendimento do processo de
interpretação textual. Tal consciência permitirá que o meio acadêmico, ao se dedicar à elaboração de material didático para
a capacitação da leitura, procure realizá-la de forma clara, desenvolvendo a consciência crítica sobre alguns fatores que
podem interferir no processo cognitivo do aluno – por exemplo, a má interpretação –, auxiliando efetivamente na formação
de futuros e precisos leitores.

REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. Lisboa: Edições 70,1987.

CARNEIRO, Agostinho Dias. Interpretação e Linguística. In: PEREIRA, Maria Tereza Gonçalves. Língua e Linguagem em

Questão. Rio de Janeiro: Eduerj, 1997: p.133.

CHARAUDEAU, Patrick. Langage et Discours: eléments de sémiolinguistique. (théorie et pratique). Paris: Hachette, 1983.

665
____________________. Discurso e discursos. Anais do I Congresso Internacional da Faculdade de Letras da UFRJ:

Discurso e Ideologia. Revista Letra. N. 3 Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1989.

CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

____________________. Linguagem e discurso. Modos de Organização. São Paulo: Contexto. 2008.

____________________. Grammaire du sens et de l´expression. Paris: Hachette, 1992.

____________________. Para uma nova análise do discurso. In: CARNEIRO, Agostinho Dias. O discurso da mídia. Rio de

Janeiro: Oficina do Autor, 1996: p. 5-46.

____________________. Discurso Político. São Paulo: Contexto: 2006.

____________________. Uma Análise Semiolinguística do Texto. In: PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino, GAVAZZI,

Sigrid. Da Língua ao Discurso – reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna 2005: p.11-30.

LAFETÁ, Luiz Antônio Pósfacio à 29ed. In RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1978.

NETO, Godofredo de Oliveira. Posfácio à 85ª Ed. In RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Edição revista. Rio de Janeiro:

Record, 2007.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Pósfacio de Luiz Antônio Lafetá. 29ed. Rio de Janeiro: Record, 1978.

____________________. São Bernardo. Pósfacio de Godofredo de Oliveira Neto. 85 ed. Edição revista. Rio de Janeiro:

Record, 2007.

Regina Celia Pereira Werneck de Freitas é Doutora em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2010). Desde a Pós-Graduação Lato sensu, tem como orientadora a Professora Doutora Maria Aparecida Lino
Pauliukonis. Atualmente é Coordenadora adjunta e professora do Curso de Especialização em nível de Pós-Graduação lato
sensu em Língua Portuguesa do Centro Universitário de Barra Mansa (UBM), Coordenadora do curso de Letras,
Graduação, e professora docente do mesmo Centro, ministrando aulas nos Cursos de Letras, de Direito, de Educação
Física e no Programa Especial de Formação Pedagógica do Docente. Sua área pesquisa é a Análise do Discurso, atuando
principalmente com os seguintes temas: marcas linguístico-discursivas, subjetividade, construção do ethos.
http://lattes.cnpq.br/6761006649938687

666
A apropriação do discurso religioso na construção da
imagem feminina no blog de Ana Paula Valadão

GONÇALVES, Gisele Siqueira


(UFV)

Introdução
Nas últimas décadas, com o desenvolvimento da tecnologia, e consequentemente da internet, novas formas de
comunicação vem possibilitando uma interação cada vez maior entre as pessoas. O MSN, o orkut, o blog, o twitter, entre
outros sites de relacionamentos, estão fazendo parte da vida de muitos indivíduos que utilizam destes para garantir uma
melhor interação em sua forma de comunicar.
O sucesso destes sites podem ser explicado pelo fato das pessoas encontrarem neste tipo de comunicação uma
espécie de assessoria, na qual elas próprias podem divulgar seus trabalhos, seus planos, expressar idéias, etc. O blog,
por exemplo se tornou um diário online, no qual o internauta pode divulgar a si próprio, a partir de assuntos da sua vida, ou
seja, o blog é mais um meio do virtual em que usuários, através de um discurso pessoal, encontram para demonstrar aquilo
que se é ou deseja ser visto na vida real pelo outro.
Neste contexto, este artigo procura analisar o blog da cantora gospel Ana Paula Valadão, o
blogdaana.wordpress.com que foi criado como forma desta divulgar seus trabalhos, narrar sobre o seu cotidiano, na
intenção de “aproximar” do seu público, uma vez que no blog há espaço para interação entre o blogueiro e visitantes. Esta
análise se deu a partir da observação do discurso contido no blog. Este se apropria de marcas de um discurso religioso que
acaba por legitimar as ações cotidianas da blogueira, uma vez que a voz de Deus se fala nela. Isso leva a construção de
um ideal de mulher que é representada na imagem da mulher evangélica.
Neste contexto, para realização deste trabalho foi utilizada a Análise do Discurso de Patrick Charaudeau, a partir
da teoria da Semiolinguística. Como corpus foi utilizado posts veiculados no blog da Ana Paula Valadão no ano de 2009 em
que a cantora aborda marcantes acontecimentos da sua vida neste período, como a premiação do Troféu Talento, que lhe
concedeu o título de melhor cantora gospel; o nascimento do seu segundo filho e a mudança para Dallas, nos EUA, em
função dos estudos do seu marido.

1 O discurso religioso

Apesar da significação do discurso religioso na história da humanidade, este não alcançou a importância devida
na Análise do Discurso. No entanto, sua presença vem contribuindo cada vez mais no modo de viver da sociedade, pois é
um discurso que se manifesta em nome de um poder supremo: Deus. Assim, o discurso religioso pode ser entendido a
como “a voz que se fala na outra da qual é representante” (ORLANDI, 1987, p.244), ou seja, há sempre um mensageiro
para expor a fala divina, como por exemplo podemos citar quando a voz de Deus se fala no representante cristão, como
padres, pastores, bispos, entre outros.
Ainda em Orlandi (1987) no discurso religioso, os sujeitos participantes do processo de comunicação se
encontram em patamares diferentes. O papel do locutor no discurso religioso é assumido por Deus que se localiza no plano
espiritual e os ouvintes são os homens que se estão no plano temporal. Dessa forma, é possível observar as diferentes
posições entre os sujeitos envolvidos no processo de comunicação de um discurso religioso, em que Deus é aquele que

667
controla detentor de um poder divino. Já o homem se posiciona como aquele que é subordinado a Deus, de modo que, no
discurso religioso, não há interlocução de mesmo nível entre os sujeitos. Isso faz do discurso religioso ser diferente dos
demais discursos sociais, que embora sejam persuasivos e influenciadores, não estão ancorados em um poder divino capaz
de dominar os sujeitos sociais que dele fazem uso.
Atualmente encontramos a manifestação do discurso religioso em diversas formas, seja através da mídia ou das
práticas de consumo, bem como através do entretenimento de programas religiosos, cd, Dvds, revistas, jornais, novelas,
manifestações, ou seja, através de vários meios o discurso religioso está expandindo seus valores.
Diante do crescimento do número de evangélicos no país1, podemos apontar que a expressão deste discurso em
boa parte se deve as estratégias utilizadas pelos protestantes para expandir a crença e captar fiéis.
Castro (2007) afirma que este crescimento do Protestantismo pode estar relacionado à apropriação da mídia pelas
igrejas evangélicas que estão se utilizando das técnicas da comunicação para aproximar dos fiéis. De fato, a mídia vem
sendo o grande suporte para que discursos sociais sejam veiculados. Devido ao seu caráter persuasivo, a mídia facilita a
introdução de predeterminações de discursos sociais em um determinado público.
Dessa forma, as novas tecnologias da comunicação estão cada vez mais contribuindo para expansão e veiculação
do discurso religioso. Isso é observado na iniciativa da cantora gospel evangélica, Ana Paula Valadão em criar um blog com
o objetivo de abordar acontecimentos da sua vida. Desse modo, o blog vem sendo mais um veículo que contribui não só
para interações na comunicação, mas também um meio pelo qual o discurso religioso possa agir na sociedade.

2 Blog: o diário virtual

Com o advento da tecnologia da comunicação, o consumo pelas informações está sendo adquirido de diversas
maneiras e isto está possibilitando uma transformação na nossa maneira de comunicar com mundo. A internet, por
exemplo, vem disponibilizando diversas ferramentas para uma nova comunicação, como o blog. O blog vem sendo
atualmente a grande ferramenta virtual de empresas, instituições, pessoas públicas, ou qualquer pessoa que tenha o
interesse de expressar uma idéia, um projeto, ou fatos da própria vida. Terra (2008) entende o blog da seguinte maneira:

Blogs-“Weblog” é uma palavra de origem inglesa composta das palavras “web” (página da internet) e
“log” (diário de bordo), mais conhecida como “blog”. Essas páginas vêm com espaços para comentários
(posts). Os blogs já têm templantes prontos, de modo que o usuário não precisa entender de tecnologia
ou de linguagem de programação para montar seu próprio site. O usuário dessa página é chamado de
blogueiro e o universo que se inserem essas páginas da internet já ganharam também um nome: “a
blogosfera”. (TERRA, 2008, p.20 apud Silva, 2005)

A partir da definição acima, podemos compreender o blog como uma ferramenta virtual de fácil acesso, pois
dispensa conhecimentos de linguagem HTML2 de seus usuários. Esta facilidade de manuseiá-lo talvez possa explicar sua
grande atratividade entre milhões de usuários na rede.

1 Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os evangélicos no Brasil, no ano de 2008, representavam 24% da
população que afirma seguir uma religião. Com base nesse dado, o Ministério de Apoio com Informação (MAI) realizou projeções em
dezembro de 2009 constatando que os evangélicos devem somar 49,8 milhões no Brasil, ou seja, 25,4% de um total de 196,5 milhões de
brasileiros. Se a curva de crescimento persistir, em 2020 os evangélicos serão 100 milhões no país.

2Expressão inglesa: HyperText Markup Language, que significa Linguagem de Marcação de Hipertexto, ou seja, é uma linguagem de
marcação utilizada para produzir páginas na Web.

668
Uma característica principal do blog é um espaço aberto para que o blogueiro possa expressar um conteúdo
opinativo, através de texto, imagens, vídeos e links para outros blogs, páginas da web e mídias relacionadas ao assunto
proposto pelo blogueiro. O site também disponibiliza um espaço para que outros leitores internautas deixem comentários,
de forma que se possa interagir com o próprio autor e demais leitores.
Primo, Smaniotto (2006) entende o blog como uma espaço de conversação, que se inicia no momento que os
posts motivam os leitores a escrever comentários. Para os autores, os comentários é um dos recursos mais importantes
para o desenvolvimento das conversações.

Normalmente, abaixo de cada post é exibido um link que abre a janela de comentários. Esse link
apresenta o número de comentários já publicados até o momento, o que facilita o acompanhamento da
tradução dos autores: uma série interligada de posts de blogs e comentários sobre um tópico específico,
normalmente de forma não planejada, mas emergindo espontaneamente. (PRIMO, SMANIOTTO, 2006,
p.21)

Isso nos leva a propor que os posts são construídos levando-se em consideração que outros internautas irão ler e
possivelmente comentar. Adghirni (2008) aborda que é possível observar no blog um processo de desprivatização do EU
subjetivo, no qual há uma apresentação da vida privada e é sentida uma importância da intimidade dos blogueiros.
Desse modo, se o blog é um diário virtual, no qual o blogueiro descreve fatos da sua vida pessoal, esta pode ser
narrada de uma maneira que contribuirá para uma valorização positiva da imagem pessoal. Podemos associar issso ao fato
do blog está sendo muito utilizado na comunicação como ferramenta de assessorias, em que o assessor é o próprio
usuário. Isso explica também o fato de pessoas públicas como artistas, atores, cantores, celebridades em geral, se
tornarem usuários do blog, pois este facilita a divulgação de seus trabalhos e da sua própria imagem, além de ser um meio
pelo qual eles podem conversam diretamente como o público, seja para contar uma novidade, desmentir boatos, divulgar
um show, etc.

3 Ana Paula Valadão como modelo de mulher

Ana Paula Machado Valadão Bessa nasceu em 16 de maio de 1976 na cidade de Belo Horizonte no Estado de
Minas Gerais. Primogênita entre seus dois irmãos, e filha de pastor, a moça se dedica a vida cristã desde criança.
Em 1996, trancou a faculdade de Direito que cursava na Universidade Federal de Minas Gerais para ingressar no
Christ for the Nations3 nos EUA. Quando retornou ao Brasil, Ana Paula começou a carreira de cantora gospel evangélica e
chegou a participar de um grupo voltado para o público infantil, intitulado King's Kids (Crianças do Rei)
Algum tempo depois, Ana Paula participou de um dos corais mais conhecido do Brasil, o El-Shammah, no qual
começou a compor músicas, mas foi em 1998, junto de seus irmãos que a Ana Paula Valadão gravou o primeiro álbum
intitulado Diante do Trono. Este veio a se tornar o nome do grupo musical do qual ela lídera. Pertencente a Igreja Batista da
Lagoinha4, o Diante do Trono ficou renomado e a igreja atualmente é conhecida no mundo todo por causa do seu Ministério
de Louvor. Compositora de clássicos do gospel, Ana Paula Valadão consolidou sua carreira e hoje é apontada como uma
das maiores cantoras gospel do país. É também conhecida por suas pregações e profecias durante as apresentações do
grupo musical do qual faz parte.
Casada com um pastor: Gustavo, mãe de dois filhos: Isac e Benjamim, Ana Paula sempre mostrou ter uma vida
tranquila e feliz diante da mídia. Desde de agosto de 2009, está morando em Dallas no EUA, acompanhando seu marido

3 Escola nos Estados Unidos que visa formar líderes de louvor.


4 A maior Igreja Batista do Brasil. Reside em Belo Horizonte – Minas Gerais.

669
que se dedica aos estudos ministeriais. Isso levou a cantora a se afastar temporariamente da sua profissão e dedicar mais
a sua família.
A partir das afirmações acima, observa-se que a cantora é referência de profissional, de filha, de esposa e mãe,
que se dedica a todos os aspectos da sua vida e isso é demonstrado com êxito.

3.1 O blogdaana.wordpress.com

Ana Paula Valadão criou um blog que carrega seu nome: blogdaana.wordpress.com, no qual ela pessoalmente
escreve sobre o Diante do Trono e sobre os acontecimentos de sua vida. O blogdaana.wordpress.com foi em criado em
2007. Desde então, este vem permitindo o acesso de milhares de usuários. Em media, os posts são atualizados de 6 a 9
vezes por mês.
No blog é possível encontrar a narração de momentos marcantes na vida da cantora, como os nascimentos dos
seus filhos, viagens, datas comemorativas, entre outros.
Na página inicial, observa-se o título: Ana Paula Valadão escrito na cor vermelha que faz contraste com o fundo
que se apresenta em tom azulado. O título divide destaque junto com uma foto da cantora segurando um microfone, ou
seja, uma imagem que remete a intenção do blog que é divulgar seu trabalho. No lado direito do blog se localiza um
comentário de boas vindas aos visitantes, no qual é explicado o objetivo da criação do blog da Ana : “poder pessoalmente
falar sobre o Diante do Trono e sobre sua vida ministerial”( Blogdaana.wordpress.com). Outro aspecto observado no site
são alguns recursos interativos utilizados como as fotografias e os vídeos que embora se apresentem de forma mínima no
blog, estes contribuem para o aumento da interação entre o público e a cantora.

4 Análise do discurso do blog da Ana

Para o estudo deste corpus, foi utilizado a teoria da Semiolinguistica de Patrick Charaudeau. A Semiolinguistica é
a teoria que se foca no sujeito para se explicar as práticas discursivas, e leva em consideração aspectos psicossociais e
linguageiros dos sujeitos participantes do ato de linguagem.
Esta análise se deu a partir das noções do modo de organização do discurso proposto por Charaudeau (2008).
Os modos de organização são explicados por este teórico como a maneira que um texto se forma, ou seja, são os
procedimentos e os componentes deste que nos permite a compreensão da sua significação. Cada modo de organização
apresenta peculiarmente uma função que estrutura o discurso.
Neste trabalho, foi utilizado o modo de organização narrativo, pois o discurso analisado é construído pela narração
da Ana Paula Valadão sobre sua própria vida. O discurso narrativo tem como objetivo contar e ao fazer isso, descreve ao
mesmo tempo ações e qualificações. O modo de organização narrativo é explicado por Charaudeau(2008) como aquele
que possibilita aos leitores compreender um mundo através da sucessão de ações no decorrer da história narrada.
Para que haja narrativa, é necessário um “contador” ( que poderá chamar de narrador, escritor,
testemunha, etc), investido de uma intencionalidade, isto é, de querer transmitir alguma coisa( uma
certa representação da experiência do mundo) a alguém, um destinatário( que se poderá chamar de
leitor, ouvinte, espectador, etc.), e isso, de uma maneira, reunindo tudo aquilo que dará um sentido
particular a sua narrativa. ( CHARAUDEAU, 2008, p.153)

Isso pode ser observado nos posts escritos pela Ana Paula Valadão, no qual, ela conta acontecimentos da sua
vida, que tem por intenção transmitir ao público, uma imagem positiva de si mesma.

670
4.1 A organização narrativa dos posts

A análise deste artigo se dá apartir da veiculação de posts do blogdaana.wordpress.com, em que aborda


marcantes acontecimentos na vida da cantora no ano de 2009, como premiação do Troféu Talento5; o nascimento do seu
filho caçula e a mudança de país em função dos estudos do seu marido. A escolha por estes posts se baseou no fato de
que estes apresentam um contéudo sobre aspectos considerados relevantes no cotidiano de uma mulher como a profissão
e a família. Assim, a partir destes aspectos foi possível observar esta construção da imagem da mulher evangélica.
A teoria proposta por Charaudeau (2008), explica a narrativa como um ato de contar que se manifesta entre a
ficção e realidade. Um fato narrado é uma realidade que já se passou. Assim, este somente apresenta um aspecto real
dentro de um “universo contado” (CHARAUDEAU, 2008, p.154) que busca construir uma verdade, caracterizado por um
aspecto ficcional. Desse modo, a cantora ao contar seu cotidiano, mesmo que esteja relatando fatos baseados em uma
realidade vivenciada por ela, esta é narrada dentro de um universo contado – construído pela narradora- que se utilizada de
formas para fazer com que o outro (os leitores) creiam numa realidade/verdade.
Outra característica da narrativa que se pode observar no discurso do blog da Ana Paula Valadão é a construção
da ação humana que ocorre através da “ crença na unidade do ser”( CHARAUDEAU, 2008, p.154), em que este
representaria uma verdade única. Caracteriza-se assim, a narrativa do corpus analisado como ao que Charaudeau( 2008)
nomeia de narrativa que idealiza heróis, na qual a Ana Paula Valadão é descrita como modelo ideal de mulher. Ao contar
sua sua vida baseada em uma dedicação no que se refere a família, ao trabalho e a religiosidade – aspecto feminino bem
visto pela sociedade – a cantora se coloca como modelo a ser seguido, ou seja uma imagem de heroína do público.

Mas, uma coisa é certa e já podemos perceber: um dos propósitos do Senhor é nos dar um preciosíssimo
tempo de família. Hoje mesmo já fomos ao supermercado, já fiz o jantar, arrumei as coisas. Pode parecer
simples, mas é na simplicidade que Deus fala, não é mesmo?
(12 de agosto de 2009)

Esta narração acima nos permite observar a imagem da cantora como uma heroína, que abdicou de sua
profissão (temporariamente) para viver em função dos filhos, do marido e dos afazeres domésticos. Embora sua vida possa
estar simples - levando em consideração que ela é uma artista e agora vive voltada para a vida doméstica – essas
atividades cotidianas é demonstrada como uma recompensa, pois este é o momento que ela enxerga a presença de Deus.
Assim, ao demonstrar essa aceitação passiva pelas mudanças na sua vida, a Ana Paula se coloca como modelo de mulher,
que vive para a família.
Retomando a Charaudeau(2008) uma narrativa é constituída por três componentes. São eles, os actantes, os
processos e sequências. Podemos explicar o discurso do blog a partir de cada um deles.
No corpus analisado, podemos apontar a Ana Paula Valadão como uma personagem que desempenha vários
papéis narrativos e ocupa o lugar de actantes diferentes na narrativa: a actante mãe, a actante profissional, a actante
esposa, ou seja, aquela que realiza ações na história. Isso ocorre através de uma hierarquização de actantes baseada em
um ponto de vista de sua importância, ou seja, ela se coloca como actante principal, no qual a história é narrada em torno
de si. Veja o fragmento abaixo.

5 O Troféu Talento é um evento promovido pela Rede Aleluia, emissora de rádio da Igreja Universal que objetiva premiar os destaques da

música gospel.

671
Nós, pais, é que ficamos cansados, mas até me surpreendi, porque não estava exausta como já fiquei em
experiências anteriores viajando com o Isaque pelo mundo afora! O Senhor realmente renovou as nossas
forças. (12 de agosto de 2009)

Embora, a cantora se utilize do pronome nós, ela está se referindo a sua condição de mãe, as dificuldades que a
uma mulher enfrenta no cuidado com o filho. Nota-se que esta situação é amenizada com a apropriação do discurso
religioso. Isso nos permite propor que as dificuldades da vida da cantora no papel de mãe são superadas a partir da crença
em Deus.
No que se refere ao componente processos, estes podem ser entendidos como uma unidade de ação e por estar
correlacionados com outras ações apresentam uma função narrativa (Charaudeau, 2008). Esta é demonstrada no exemplo
a seguir.

(...) eu adorei ao Senhor por mudar a minha sorte e me dar um filho. Eu cantei “em lugar da tristeza me
destes dupla alegria”, e hoje esta Palavra se cumpriu literalmente: dupla alegria… Isaque e Benjamim!
(19 de maio, 2009)

Neste trecho é possível notar que a função narrativa da ação corresponde a um processo de crença em Deus, de
fé na qual, é demonstrada através de uma lógica de causa e consequência, em que o desejo da maternidade foi
condicionado pela graça de Deus, pela crença da cantora. Ela acreditou, logo teve sua recompensa (ser mãe). Este trecho
nos permite observar o desafio da cantora na busca pela maternidade e agora a sua realização por assumir o papel
maternal.
O componente sequência pode ser entendido como a sucessão de fatos que se organizam de acordo com vários
princípios, como a coerência, a intencionalidade, o encadeamento e a localização (Charaudeau, 2008). Podemos também
observar cada um deles a partir de exemplos retirados do corpus analisado.

Oi gente! Chegamos nesta terça cedinho, depois de muitas horas de viagem (de BH para SP e enfim,
Dallas) (...) Por favor, orem por isso também. Um abração a todos! E como disse meu pai: Sweet miss
you. ( 12 de agosto de 2009)

O fragmento acima apresenta uma coerência que é marcado por um princípio e um fim que é explicado por uma
função de abertura e uma função de fechamento. Estas são as responsavéis para que ações se sucedam e se organizem
de forma coerente. Assim, em qualquer ponto da sequência, as ações serão compreendidas ao início da narração. A função
de abertura se caracteriza como uma ação que “não apresenta antecedentes que possa exercê-la” (CHARAUDEAU, 2008,
p.167), o que permite que o actante, a Ana Paula Valadão, prossiga na sua narração (Oi gente!...).Já a função de
fechamento pode ser observada na ação em que a narradora configura o processo e a conduta iniciada na abertura (E
como disse meu pai: Sweet miss you).
O princípio da intencionalidade é explicado pelo teórico francês como a motivação dada as sequências. Ela se
encontra na intenção do sujeito actante que procura dar um sentido finalizado a sequência de sua narração.Veja.

Ontem fomos honrados com os prêmios de Melhor CD Infantil, com o “Para Adorar ao Senhor” e como
melhor Grupo. Sabemos que não somos merecedores de nada. Somos mordomos e temos a
responsabilidade de cuidar dos dons, talentos e responsabilidades que o nosso Deus nos entrega. E isso
buscamos fazer com diligência!( 17 de abril de 2009)

672
Podemos explicar “Ontem fomos honrados com prêmios” como a abertura de uma sequência e apontar a
motivação em “sabemos que não somos”(...) “somos mordomos” (...) temos a responsabilidade (...) “buscamos fazer”.
Assim, a descrição da cantora é guiada por uma sucessão de fatos motivados e empenhados em atingir seu objetivo que é
fazer com que a narração atinja seu efeito.
De acordo com Charaudeau (2008) a união dos princípios de coerência e intencionalidade gera sequências
demonstrados a partir de encadeamentos. No post abaixo podemos observar que o encadeamento é o denominado
encaixe, ou seja, aquele em que há micro-sequências dentro de uma sequência maior (Charaudeau, 2008). Veja.

Estou me aproximando dos dias finais da gestação do nosso segundo filho, Benjamim. Sei que todos
podem compreender que minha rotina mudará bastante, pois o Isaque já é um menino crescidinho, mas o
bebê demandará cuidados constantes (...) estou prevendo que não conseguirei dar muita atenção ao
Blog, como tenho buscado fazer nos últimos tempos. A Iana vai me ajudar, e estou preparando alguns
posts reservas, para ir colocando ao ar mais facilmente, e é claro que darei notícias sempre que possível.
Mas peço que compreendam e orem por mim, por nós, para que a graça do Senhor nos envolva e
capacite como família, na chegada do nosso segundo príncipe! (19 de maio de 2009)

Nesta narração podemos observar que há micro-sequências que correspondem a um projeto particular- como
projeto do papel de mãe do seu primeiro filho, o projeto de dar atenção aos fãs no blog, o projeto da crença em Deus - mas
todas estão inseridas no mesmo projeto que é a gestação da Ana Paula Valadão. A existência destas micro-sequências nos
permite apontar a mulher mãe que compartilha o papel com a mulher profissional e que mais uma vez atribui os fatos
cotidianos na crença em Deus.
O quarto e último princípio é o de localização. Este princípio é o responsável “por fornecer pontos de referência à
organização da trama narrativa regida pelos outros princípios” (CHARAUDEAU, 2008, p.172). Observe o fragmento abaixo.

Chegamos nesta terça cedinho, depois de muitas horas de viagem (de BH para SP e enfim, Dallas)(...)
Assim que chegamos aqui meu coração agradeceu ao Pai, e fiquei outra vez impressionada com este
retorno ao lugar para onde, e de onde saí há 14 anos atrás (12 de agosto de 2009)

Este fragmento nos permite observar a localização da sequência no espaço, o qual motivou a narrativa da Ana
Paula, ao contar o processo de mudança para outro país. Outra marca deste princípio é a caracterização dos actantes.
Podemos notar que o discurso do blog é uma interseção com o discurso religioso, no qual a Ana Paula Valadão fala em
nome de Deus. Esta ação permite observar uma caracterização da cantora como uma mulher devota, marcando uma
sequência de fé.

4.2 O discurso religioso na construção da imagem da mulher evangélica

No discurso do blog, podemos apontar o discurso religioso como a estratégia utilizada para que a cantora capte a
atenção dos leitores. Esta estratégia resulta em uma interseção de discursos: o discurso pessoal que tem como sujeito a
Ana Paula Valadão e o discurso religioso que tem como sujeito Deus. A união destes dois discursos leva a formação de um
só; o discurso do blog em que a voz da Ana Paula se confunde com a de Deus e a de Deus com a da cantora. Diante da
credibilidade que Deus representa na sociedade, isso facilita o alcance da intencionalidade discursiva do discurso.
O post intitulado “Troféu Talento” do dia 16 de abril de 2009, a cantora fala sobre a premiação do evento destinado
aos melhores da música gospel, na qual foi ganhadora. Nota-se que esta conquista é justificada pela presença de Deus,
embora, a Ana Paula minimize o valor da conquista e valorize o aspecto religioso, que é poder evangelizar. Esta narração

673
nos permite também, observar que a cantora já atingiu a consolidação na vida profissional, uma vez que está sendo
merecedora de prêmios no estilo musical com o qual trabalha.

Hoje, quinta-feira acontece em SP o Troféu Talento. Desde 1998 eu participo, e apesar do


constrangimento por ser uma premiação para o que chamam de “melhores” da música evangélica, pude
perceber o propósito do Senhor a cada ano em que estive ali (...) nesta premiação aqui desta Terra,
descobri outros propósitos que sempre me motivaram a participar. ( 16 de abril, 2009)

O post “Dias finais da gravidez” do dia 06 de junho de 2009, Ana Paula narra a alegria que é poder cuidar do seu
segundo filho recém nascido, Benjamim. Ela introduz a narração relacionando seus dois filhos com as composições de
músicas feitas por ela. A cantora relembra o período da sua vida, no qual não poderia ter filhos, mas devido a sua
confiança em Deus, isso foi possível de ser realizado.

A música Na Terra Seca, que abre este CD, foi feita quando o Isaque era bebezinho também, e eu adorei
ao Senhor por mudar a minha sorte e me dar um filho. Eu cantei “em lugar da tristeza me destes dupla
alegria”, e hoje esta Palavra se cumpriu literalmente: dupla alegria… Isaque e Benjamim! (19 de maio,
2009)

O post “Do outro lado do continente” postado em 12 de agosto de 2009 é a narração da adaptação de vida em
outro país (Dallas/EUA) para onde a Ana Paula Valadão mudou-se com a família em função dos estudos ministeriais do
marido. Ela atribui a “mudança de vida” aos planos de Deus para sua vida junto da família. Podemos observar que, embora
ela tenha uma carreira consolidada no Brasil, isso não foi motivo para que morasse por um tempo distante do marido. Ela
renunciou a carreira e cumpriu assim seu papel de esposa submissa - atitude característica dos mandamentos bíblicos.

O Pai tem seus propósitos, e creio que aos poucos vamos entendendo seus caminhos, seus recomeços,
seus planos que nunca perecem. Mas, uma coisa é certa e já podemos perceber: um dos propósitos do
Senhor é nos dar um preciosíssimo tempo de família. (12 de agosto de 2009)

Continuando a narrativa, ela aborda a dificuldade enfrentada em outro país na aquisição de uma nova língua. Este
fato é contado pela Ana Paula a partir de um diálogo que teve com o Gustavo (seu marido), no qual ele explica, segundo
ela, a importância de se aprender uma segunda língua enquanto se é criança. Ao falar sobre o marido e sua visão de
mundo, é possível observar a admiração que a cantora tem em relação a ele. O que nos permite notar que a relação marido
e mulher em sua vida se estabelece através de diálogo e respeito pelo o que o outro fala.

5 Considerações Finais

Uma das tecnologias da comunicação mais utilizadas por pessoas públicas vêm sendo o blog, em que os
usuários são permitidos construir na rede um discurso próprio sobre a própria imagem. Assim, esta imagem chega até
outros internautas da maneira como se quer ser visto pelo blogueiro, característica própria dos sites de relacionamento.
Neste contexto, este estudo procurou analisar a construção da imagem feminina evangélica percebida através dos
posts do blog da cantora gospel Ana Paula Valadão. A análise se deu a partir de posts que caracterizados por um discurso
religioso narram marcantes acontecimentos da vida da cantora ocorridos no ano de 2009. Estes acontecimentos permitiram
nos permitiu observar a imagem da mulher evangélica construída pela cantora.
Durante as descrições, é possível notar a dependência de Deus nas ações no cotidiano da Ana Paula Valadão.
De modo que, as conquistas e as dificuldades vivenciadas por ela são condicionadas pela presença divina na sua vida.
Como nos posts as narrações sempre terminam com um “final feliz”, podemos pressupor que a utilização do discurso

674
religioso justifica a imagem da mulher que tem a vida tranquila, feliz, em paz, ou seja, constrói o retrato da imagem feminina
evangélica, a imagem de um ideal de mulher bem como possibilita evangelização da crença do protestante.

Referências

ADGHIRNI, Z. L. Blogs: a invasão dos profanos no mundo digital na esfera sagrada do jornalismo. Anais do VI Encontro
Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. UMESP, 2008.

CASTRO, Rachel Camilla R.de.Uma Análise Discursiva do uso da emoção no culto da Assembléia de Deus. 2007. 65
f. Monografia. Departamento de Letras. Universidade Federal de Viçosa. Viçosa.MG

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.285p.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.256p.

FRAGOSO, Fedro Leal; FORTUNATO, Ivan. Cibercultura: contra-hegemonia pelos blogs e fóruns. Anais do XV Congresso
de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. UFES, 2010.

MACHADO, Ida Lúcia. Uma teoria de análise do discurso: A Semiolinguística. In: MARI, H. Análise do discurso:
fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso- Fale/ UFMG. 2001.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. O discurso religioso. In:_______________. A linguagem e seu funcionamento: as formas do
discurso. Campinas-SP: Pontes, 1987. p. 239-262

PRIMO, Alex; SMANIOTTO, Ana Maria Reczek. Blogs como espaços de conversação: interações conversacionais na
comunidade de blogs insanus. Ecompos, v.1, n.5, p. 1-21, 2006.
TERRA, Carolina Frazon. Conceitos Fundamentais. In: Blogs corporativos: modismo ou tendência? São Caetano do
Sul, SP: Difusão Editora, 2008. p.19-26.

Site pesquisado: http: blogdaana.wordpress.com. Acesso em 28 de maio de 2010

Mini-currículo

Gisele Siqueira Gonçalves é graduada em Comunicação Social- Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa-MG.
Atualmente é aluna do Programa de Mestrado em Estudos Linguísticos na linha da Análise do Discurso pela Universidade
Federal de Viçosa-MG. Membro do Projeto “Tutoria na UFV" (Bolsista CAPES/Reuni). E-mail: ggoncalvesufv@gmail.com

675
O ethos na carta pastoral

GONÇALVES, Rachel Camilla Rodrigues de Castro


(UFV)

Introdução
O locutor, para persuadir seu interlocutor, pode se valer de diversos recursos, como: emoção (através de
metáforas, por exemplo), razão (uso de operadores argumentativos), dentre outros.
Aristóteles, em Retórica1, postula três modos de “persuasão efetiva”. Para tanto, o orador deve: (1) raciocinar
logicamente (logos), (2) entender o caráter humano e a benevolência em suas várias formas (ethos), e (3) entender as
emoções (pathos), isto é, nomeá-las e descrevê-las, conhecer suas causas e os meios pelos quais são estimuladas,
favorecendo, possivelmente, a adesão do interlocutor. (ARISTÓTELES, 2007, p.24)
Conforme Aristóteles (2007, p.24), o ethos/caráter é “o mais eficiente meio de persuasão” que o orador possui,
meio esse que privilegiaremos neste trabalho.
Pretendemos verificar, na “Carta Pastoral do Santo Padre Bento XVI aos Católicos na Irlanda2”, através de verbos,
advérbios, substantivos, adjetivos, a construção da imagem do locutor, a qual poderia persuadir o interlocutor a favor das
teses defendidas, levando-o a adotar posições ou comportamentos. Para tanto, retomaremos, principalmente, Amossy
(2008), Eggs (2008) e Maingueneau (2008), que estudam o ethos aristotélico.
Assim, pretendemos, a partir da análise do ethos, enquanto estratégia persuasiva, trazer contribuições, sobretudo,
ao estudo da argumentação, que, conforme Eggs (2008, p.30), tem enfatizado o logos, deixando o ethos “praticamente
ausente” das pesquisas atuais.

1. Enunciação e ethos
Conforme Amossy (2008), a construção de uma imagem de si está relacionada à enunciação, foco dos trabalhos
de Benveniste3. Para este autor, como afirma Amossy (2008, p.11), a enunciação possui uma “origem” (locutor) e um
“destino” (alocutário). Assim, quando o locutor se apropria da língua, para influenciar de algum modo o comportamento do
alocutário, “ele implanta o outro diante de si, qualquer que seja o grau de presença que ele atribua a este outro.”
(BENVENISTE, 1989, p.84). No entanto, Benveniste não utiliza o termo ethos. Este termo surge nas ciências da linguagem,
primeiramente, na pragmática semântica, de Oswald Ducrot.
A construção de uma imagem de si no discurso – ethos – é pesquisada pela pragmática e também pela Análise do
Discurso de Dominique Maingueneau (AMOSSY, 2008, p.16).
As discussões sobre “ethos discursivo”, nos termos de Mencé-Caster (2004), emergem do reconhecimento do
sujeito, responsável pelo enunciado global, e, por conseguinte, “mestre de obra4” de todo o processo enunciativo.

1ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Marcelo Silvano Madeira. 1ª. ed. São Paulo: Rideel, 2007. 191p.
2Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/letters/2010/documents/hf_ben-xvi_let_20100319_church-ireland_po.html
Acesso em: 2 mai. 2010.

3 BENVENISTE, ÉMILE. Problémes de linguistique générale 2. Paris: Gallimard, 1974.


4 Tradução nossa para maître d’oeuvre.

676
Segundo Ducrot (apud AMOSSY, 2008, p.15), ethos se refere ao locutor, que se constitui de diversos caracteres,
os quais podem tornar a enunciação aceitável ou não. Para Maingueneau (2008 a, p.16), assim como para Ruth Amossy
(supracitado), o ethos “está ligado à enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador.”. Deste modo, o ethos
se trata do caráter mostrado (não-dito) do orador no e pelo discurso, e não uma representação prévia do enunciador. O
teórico assinala que, eventualmente, o ethos pode se inscrever no “dito”. No entanto, o autor ressalta que a eficácia do
ethos está em compor qualquer enunciação sem ser explicitado. (MAINGUENEAU , 2008 b, p.13)
A concepção de ethos, para Maingueneau, está sujeita a variações conforme o ponto de vista em análise esteja
no locutor ou no destinatário. O ethos visado (ponto de vista do locutor) e o ethos produzido (ponto de vista do destinatário)
podem não se corresponderem. O autor ressalta que o ethos é uma noção discursiva, construída através do discurso; é
“fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro”; e ainda é fundamentalmente uma noção híbrida
(sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, não podendo ser analisado fora de uma situação de
comunicação concreta. (MAINGUENEAU, 2008 b, p.17)
O ethos se mostra no discurso através das escolhas do orador (EGGS, 2008, p.31). Essas escolhas, para
Maingueneau (2008), referem-se à maneira de o orador se expressar. Aristóteles (2007) apresenta três qualidades que
despertam a confiança: (1) possuir ar ponderado; (2) ser homem simples e sincero; e (3) conceder uma imagem agradável
de si.

2. O sujeito na linguagem, a modalização e o ethos


Benveniste, em seu texto “O aparelho formal da enunciação”, afirma que o discurso é a língua em funcionamento
e que por assim ser pressupõe a presença de um sujeito. Esse sujeito, segundo Lozano (2002), deve ser entendido não
apenas como produtor, mas também como produto do discurso; isto porque é por intermédio dele que o sujeito constrói o
mundo como objeto e constrói-se a si mesmo.
Essa presença do sujeito no discurso a que fazemos referência pode ser percebida a partir das “categorias” de
localização e de modalização nele presentes.
A localização concerne aos indicadores de pessoa, tempo e espaço que podem ser os dêiticos e os anafóricos. A
modalização, por sua vez, concerne a tudo aquilo que, no texto, indica uma atitude, uma posição do sujeito em relação ao
que enuncia, tanto através do modo verbal, da construção sintática (como nas interrogações), da intimação, dos lexemas
(substantivos, adjetivos, verbos ou advérbios) afetivos ou avaliativos e da asserção. (LOZANO, 2002, p.119)
No texto “Estrutura das relações de auxiliaridade”, anterior ao texto citado acima, Benveniste, refletindo sobre os
verbos “poder” e “dever”, afirma que a modalidade, enquanto categoria lógica, compreende a possibilidade, a
impossibilidade e a necessidade. Numa perspectiva linguística, tais modos se reduzem a possibilidade e a necessidade.
Para o autor, os dois verbos acima são modalizantes por função.
Através dessas modalidades, conforme Silva (apud DAVI, s/d), o locutor situa sua enunciação em relação às
categorias do “certo” e do “possível”, anunciando uma posição ao interlocutor, com proposições de conteúdo mais ou menos
engajado, em torno do que se entende por eixos do saber (necessidade) e do crer (possibilidade).
Os elementos modalizantes do eixo do saber podem ser: expressões como “é certo”, “certamente”, “é preciso”, “é
necessário”, “necessariamente”, “é óbvio”; o auxiliar modal “deve”; o presente do indicativo, dentre outros mecanismos de
modalização. São recursos linguísticos que mostram o engajamento enunciativo do locutor como “certo”. Conforme Davi
(s/d, p.489), quando há predominância das modalidades do campo da certeza, o discurso pode parecer autoritário e,
consequentemente, o enunciador constrói uma imagem de si “autoritária”. Ele procura expressar um saber e “obriga” o
interlocutor a aderir ao seu discurso, aceitando-o como verdadeiro.

677
No eixo do crer, encontramos recursos como, por exemplo, o modo subjuntivo, o futuro do pretérito indicando
probabilidade, auxiliar modal “pode” e expressões, como, “é provável”, “provavelmente”, “é possível”, “possivelmente”,
“talvez”, “parece que”, recursos esses que sinalizam o engajamento enunciativo do locutor como “possível”. O uso de tais
recursos caracteriza uma enunciação no campo da “liberdade” e um discurso com “estilo dialógico”, possibilitando o
surgimento da polêmica ou do debate. Nessa enunciação, o locutor não impõe a sua opinião ou, pelo menos, finge não
impor, podendo o interlocutor aderir/aceitar ou não (a)o que está sendo defendido. Assim, o enunciador pode criar um ethos
“libertário”.
Através desses modalizadores, o orador pode construir uma imagem de si, causando boa impressão no auditório
e, proporcionando, a adesão deste último.

3. O Discurso Religioso
Orlandi (1996) caracteriza o discurso religioso, particularmente o católico, “como aquele em que fala a voz de
Deus”. Para a autora, o discurso religioso tende à monossemia, sendo, portanto, um discurso autoritário, no qual “há um
desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte é
do plano temporal (os sujeitos, os homens)” (p.243). Este desnivelamento ou assimetria “caracteriza a tendência para a
não-reversibilidade: os homens não podem ocupar o lugar do Locutor porque este é o lugar de Deus”. (p.244)
Maingueneau (2008 c) afirma que o discurso religioso, embora seja um tipo de corpus de prestígio, vem sendo
pouco estudado pelos analistas do discurso. Isso se deve à necessidade, para se compreender o discurso religioso, do
analista de interagir com outros textos. Deste modo, o discurso religioso é um dos “discursos constituintes”, servindo de
“fiador” para outros discursos. Os discursos constituintes se caracterizam principalmente por apresentar “uma assimetria
fundamental entre textos ‘primeiros’ e textos ‘segundos’”. Estes comentam ou resumem aqueles. (MAINGUENEAU c, 2008,
p.201-02)

4. A Carta Pastoral
Nos últimos meses, vem sendo noticiada na imprensa uma sucessão de escândalos5 envolvendo membros
(sobretudo, padres) da igreja, os quais são acusados de abuso sexual de crianças, perdendo, assim, a igreja a sua
“credibilidade moral”, nos termos do porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, o que afastaria o fiel católico de sua igreja
ou ainda poderia ocasionar uma descrença do fiel na igreja Católica.
Diante dos escândalos de abuso sexual em diversos países (EUA, Alemanha, Áustria, Holanda, Suíça e Irlanda), o
Papa Bento XVI escreve uma carta aos católicos irlandeses, tratando do escândalo de pedofilia na Irlanda. A igreja desse
país, conforme um relatório do governo irlandês, teria acobertado vários casos de abuso contra crianças entre 1975 e 2004,
na diocese de Dublin. Quatro arcebispos teriam feito vista grossa. Posteriormente, quatro bispos renunciaram. Assim, toda a
hierarquia da igreja irlandesa foi convocada pelo Papa para depor no Vaticano6.
A Carta Pastoral aos católicos na Irlanda tem como objetivo mostrar a proximidade de Bento XVI àqueles frente
aos casos de abuso e de propor a eles “um caminho de cura, de renovação e de reparação”, como expresso na carta.
A Carta Pastoral7 é dividida em 14 parágrafos (respectivamente numerados), sendo que do 6º ao 13º parágrafo os
destinatários são diferentes. Após os parágrafos, há uma “Oração pela igreja na Irlanda”.

5 Disponível em: http://www.noticias.br.msn.com/artigo.aspx?cp-documentid=23747979 . Acesso em: 28 mar. 2010.


6 Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,conheca-os-escandalos-mais-recentes-na-igreja-em-varios-
paises,529500,0.htm. Acesso em: 12 abr. 2010.
7 Ver anexo no final do trabalho.

678
5. Análise
Analisaremos, neste trabalho, o primeiro e o segundo parágrafos da Carta, os quais, em síntese, apontam uma
preocupação do Papa perante os escândalos de abuso sexual cometido por padres e, ainda, uma proposta aos católicos
irlandeses de reparação, superação desses escândalos. Atentaremos, sobretudo, aos verbos, advérbios, substantivos e
adjetivos.

O trecho que se segue constitui o primeiro parágrafo da Carta.

1. Amados Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos escrevo como Pastor da Igreja universal. Como vós,
fiquei profundamente perturbado com as notícias dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis da parte de membros da Igreja na
Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não posso deixar de partilhar o pavor e a sensação de traição que muitos de vós
experimentastes ao tomar conhecimento destes atos pecaminosos e criminais e do modo como as autoridades da Igreja na Irlanda os
enfrentaram.

Como sabeis, convidei recentemente os bispos irlandeses para um encontro aqui em Roma a fim de referir sobre o modo como trataram
estas questões no passado e indicar os passos que empreenderam para responder a esta grave situação. Juntamente com alguns altos
Prelados da Cúria Romana ouvi quanto tinham para dizer, quer individualmente quer em grupo, enquanto propunham uma análise dos
erros cometidos e das lições aprendidas, e uma descrição dos programas e dos protocolos hoje existente. As nossas reflexões foram
francas e construtivas. Alimento a confiança de que, como resultado, os bispos se encontrem agora numa posição mais forte para levar
por diante a tarefa de reparar as injustiças do passado e para enfrentar as temáticas mais amplas relacionadas com o abuso dos menores
segundo modalidades conformes com as exigências da justiça e com os ensinamentos do Evangelho.

Vale considerar que, sendo o Papa Bento XVI o enunciador da Carta, ele não é necessariamente o autor/escritor.
Provavelmente, há responsáveis em escrever discursos para o Papa, concedendo este apenas a aprovação e a assinatura.
Uma vez assinado, consideraremos assumido o discurso.
No primeiro fragmento, identificamos o interlocutor ou destinatário da Carta representado pelo vocativo “Amados
Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda”, o qual, segundo Maingueneau8, separa o locutor do interlocutor, indicando,
implicitamente, a posição deste enquanto ouvinte e do outro, por conseguinte, de orador, aquele que fala e que deve ser
ouvido. A princípio, notamos um locutor que se aproxima do interlocutor, um locutor mais íntimo do seu interlocutor através
das palavras “amados” e “irmã(o)s”, porém uma hierarquização é percebida quando o enunciador diz “escrevo como
Pastor”, explicitando sua autoridade, representante de Deus, resgatando o papel de Jesus Cristo, ou seja, aquele que cuida
das ovelhas (seguidores, fiéis). Assim, deixa entrever um ethos zeloso, uma imagem, por conseguinte, agradável de si. A
hierarquização ou a distância entre locutor e interlocutor é confirmada através do uso da segunda pessoa do plural (vós), o
que indica um certo conservadorismo de Bento XVI. Esse pronome de tratamento é típico do discurso católico.
Percebemos, ainda no primeiro fragmento, que o enunciador se mostra explicitamente perturbado, preocupado
com as notícias de abuso sexual de crianças por sacerdotes e religiosos: ethos dito, que é enfatizado pelos modalizadores
“grande” e “profundamente”. O locutor procura se identificar com o interlocutor (aquele que está perturbado com as
notícias): “Como vós, fiquei profundamente perturbado com as notícias” e “Não posso deixar de partilhar o pavor e a
sensação de traição que muitos de vós experimentastes”. Conforme Maingueneau (2008 b, p.15), a persuasão pode ocorrer
quando o enunciador faz passar pelo discurso um ethos característico ao do auditório, um ethos próximo ao do interlocutor.
O enunciador constrói um ethos que abomina a situação de abuso sexual. Haja vista os adjetivos “pecaminosos” e
“criminais”. Além disso, ao enunciar “Não posso deixar de partilhar o pavor e a sensação(...)”, o locutor nega um enunciado
produzido, talvez, pelo seu interlocutor: “O Papa aceita as atitudes dos sacerdotes”. Assim, deixa entrever sua tese/posição

8 Colóquio Interinstitucional. UFMG. Mai. 2010.

679
“Sou contra as atitudes de abusos cometidos pelos sacerdotes e religiosos”. Através do verbo “poder” no presente do
indicativo (“posso”), procura expressar um saber, fazendo com que o interlocutor o aceite como verdadeiro.
Para comprovar esta tese, no segundo fragmento, ele menciona o convite que fez aos bispos para uma reunião,
na qual estes “propunham uma análise dos erros cometidos”. Ao mesmo tempo, constrói uma imagem de si como “alguém
que tem ar ponderado” (“ouvi quanto tinham para dizer, quer individualmente quer em grupo”); “alguém que busca a
verdade” (“As nossas reflexões foram francas”); e “alguém que busca a justiça” (“tarefa de reparar as injustiças do
passado”), o que, conforme Aristóteles (2007), despertaria a confiança do interlocutor perturbado com os escândalos da
igreja e que acha que o Papa aceita as atitudes dos sacerdotes.
Vale ressaltar, ainda neste fragmento, o modalizador “grave”, o qual evoca a posição do enunciador, reforçando a
sua tese citada por nós acima.
O quadro abaixo sintetiza algumas imagens do enunciador verificadas no primeiro parágrafo.

Fragmentos da Carta Ethos/imagem de si


“vos escrevo como Pastor da Igreja Conservador; zeloso
universal”
“grande preocupação”; Preocupado; perturbado
“profundamente perturbado”
“atos pecaminosos e criminais” “alguém que abomina a situação de
abuso sexual”
“ouvi quanto tinham para dizer, quer “alguém que tem ar ponderado”
individualmente quer em grupo”
“As nossas reflexões foram francas” “Alguém que busca a verdade”
“tarefa de reparar as injustiças do “Alguém que busca a justiça”
passado”
QUADRO 1

O segundo parágrafo é composto por quatro fragmentos. Passemos então a análise de tal parágrafo.

2. Por meu lado, considerando a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das
autoridades eclesiásticas no vosso país, decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e para vos propor
um caminho de cura, de renovação e de reparação.

Na realidade, como muitos no vosso país revelaram, o problema do abuso dos menores não é específico nem da Irlanda nem da Igreja.
Contudo a tarefa que agora tendes à vossa frente é enfrentar o problema dos abusos que se verificaram no âmbito da comunidade
católica irlandesa e de o fazer com coragem e determinação. Ninguém pense que esta dolorosa situação se resolverá em pouco tempo.
Foram dados passos em frente positivos, mas ainda resta muito para fazer. É preciso perseverança e oração, com grande confiança na
força restabelecedora da graça de Deus.

Ao mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve
em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta
consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para
garantir a proteção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro.

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Enquanto enfrentais os desafios deste momento, peço-vos que vos recordeis da «rocha de que fostes talhados» (Is 51, 1). Refleti sobre
as contribuições generosas, com frequência heróicas, oferecidas à Igreja e à humanidade como tal pelas passadas gerações de homens
e mulheres irlandeses, e deixai que isto gere impulso para um honesto auto-exame e um convicto programa de renovação eclesial e
individual. A minha oração é por que, assistida pela intercessão dos seus muitos santos e purificada pela penitência, a Igreja na Irlanda
supere a presente crise e volte a ser uma testemunha convincente da verdade e da bondade de Deus onipotente, manifestadas no seu
Filho Jesus Cristo.

No primeiro fragmento, notamos, mais uma vez, um ethos preocupado, insatisfeito com a situação mencionada no
primeiro parágrafo, haja vista o substantivo “gravidade” e o adjetivo “inadequada”. Então, resolve escrever a Carta,
mostrando-se um ethos ativo, que procura resolver o problema: “decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a
minha proximidade, e para vos propor um caminho de cura, de renovação e de reparação”. A imagem do locutor se
aproxima ao do interlocutor (aquele que é contra os abusos de crianças). Ao dizer “vos propor um caminho”, o enunciador
parece apresentar uma proposta que está sujeita a apreciação do interlocutor. Aquele constrói, por conseguinte, uma
imagem de si como “pessoa ponderada”, “não-autoritária”, o que poderia levar o interlocutor a aceitar/aprovar o “caminho”
referido pelo Papa, de “correção”, de “reparação” da igreja.
No fragmento seguinte, o enunciador defende a tese de que o abuso dos menores não está restrito à Irlanda e à
Igreja. Ao utilizar a expressão “na realidade” no início do fragmento e o verbo “ser” no presente do indicativo em “não é
específico”, mostra sua posição como “certa”, ou seja, o abuso de menores ocorre em outros segmentos da sociedade e em
outros países. Ele não dá margem de discussão ao interlocutor. Em seguida, vale-se novamente do verbo “ser” no presente
do indicativo, sinalizando o que se deve fazer: “a tarefa que agora tendes à vossa frente é enfrentar o problema”, mostrando
para o leitor que não há outra possibilidade. “Enfrentar o problema” é o “certo” para Bento XVI, “obrigando” o ouvinte a
aderir a essa posição. Posteriormente, mais um uso do presente do indicativo: “ainda resta muito para fazer”. Considera os
avanços contra os abusos, mas afirma, certifica que há ainda ações para colocar em prática. Ao final do fragmento,
percebemos mais uma marca linguística que mostra o engajamento do locutor como “certo”: a expressão “É preciso”. O
Papa incita o interlocutor a perseverar e a orar e, enquanto representante de Deus e da igreja, tem legitimidade de conduzir
as “ovelhas”. O discurso, com tais marcas linguísticas, conforme Davi (s/d), parece autoritário, configurando um ethos
autoritário, diferente do fragmento anterior. Ainda neste fragmento, visualizamos um ethos condoído, entristecido frente aos
casos de abusos: “esta dolorosa situação”.
No terceiro fragmento, observamos novamente um tom autoritário do locutor agora através do verbo modal “deve”
(elemento modalizante do campo da necessidade), indicando o que a igreja da Irlanda deve fazer: “deve em primeiro lugar
reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos.”. O Papa não
concede possibilidades de escolha aos católicos para a recuperação da igreja. Concomitantemente, ele constrói uma
imagem de si como “alguém que busca a correção, a reparação do erro”, sendo, portanto, um ethos justo. Esse caráter
despertaria a confiança do interlocutor que está perturbado com as notícias sobre os abusos e está pondo em xeque a
conduta da igreja Católica (primeiro parágrafo). Além disso, vale ressaltar a escolha de palavras, substantivos, como
“ferida”, “pecado”, “dano”, “crimes” que evocam uma certa austeridade do enunciador.
No último fragmento, o enunciador se vale de uma passagem bíblica, o que, conforme Maingueneau (2008 c,
p.202), é característica do discurso religioso: a vinculação com um texto “primeiro”. Utiliza um recurso de autoridade (dando
mais credibilidade) – a Palavra de Deus – para conduzir o ouvinte a uma reflexão das contribuições, no passado, oferecidas
à igreja e à humanidade e a um auto-exame e “um convicto programa de renovação eclesial e individual”. O locutor incita o
interlocutor à reflexão, mostrando um tom mais moderado: “refleti” e “deixai”. Notamos ainda um ethos preocupado com a
superação da “crise” por parte dos católicos, fazendo com que estes busquem à memória as contribuições generosas do

681
passado, o que poderia despertar a confiança do católico irlandês. Haja vista um enunciador que deseja que a igreja seja
“testemunha convincente da verdade”. Ao se mostrar preocupado, o enunciador pode levar os católicos irlandeses a
enfrentar os acontecimentos de abuso sexual cometido por padres e, consequentemente, a não abandonar a igreja.
Podemos sintetizar as imagens construídas, nesse segundo parágrafo, no quadro abaixo.

Fragmentos da Carta/ palavras Ethos/imagem de si


“considerando a gravidade destas Preocupado
culpas e a resposta muitas vezes
inadequada”
“decidi escrever esta Carta Pastoral Ativo
para vos expressar a minha
proximidade (...) reparação”
“vos propor um caminho” “pessoa ponderada”; “não-autoritária”
“a tarefa que agora tendes à vossa Autoritário
frente é enfrentar o problema”; “ainda
resta muito para fazer”; “É preciso
perseverança”
“esta dolorosa situação” Ethos condoído
“deve em primeiro lugar reconhecer Autoritário; justo
diante do Senhor e diante dos outros,
os graves pecados cometidos contra
jovens indefesos.”
“ferida”; “pecado”; “dano”; “crimes” Austero
“Refleti sobre as contribuições Preocupado; tom mais moderado
generosas, com freqüência heróicas,
oferecidas à Igreja e à humanidade”
QUADRO 2

Considerações finais
A partir de dois parágrafos extraídos da Carta Pastoral de Bento XVI aos católicos na Irlanda, verificamos que o
enunciador (Papa) constrói uma imagem agradável de si – ethos zeloso, o que poderia despertar a confiança do interlocutor
(aquele que está preocupado com as notícias sobre abuso sexual de crianças por membros da igreja e que está pondo em
xeque a conduta da igreja). O Papa procura se mostrar preocupado com os abusos noticiados na imprensa, construindo tal
imagem através do uso de adjetivos (“grande”, ‘inadequada”) e advérbios (“profundamente”). Ele constrói uma imagem
(ethos que abomina a situação de abuso sexual) próxima a do interlocutor, o que pode, conforme Maingueneau, persuadir o
leitor da posição (“Sou contra as atitudes de abusos cometidos pelos sacerdotes e religiosos”) defendida. Esta imagem é

682
enfatizada através dos adjetivos “criminais”, “pecaminosos”, caracterizando os atos dos padres, e “grave”, que qualifica
“situação”, reforçando, assim, a posição do locutor.
Novamente, tentando conquistar a confiança do interlocutor, o enunciador ainda constrói uma imagem de si como
“alguém que tem ar ponderado” (ouvi quanto tinham para dizer, quer individual quer em grupo; também evocada pelo verbo
“propor”), “alguém que busca a verdade” (As nossas reflexões foram francas), e “alguém que busca a justiça” (tarefa de
reparar as injustiças do passado). Estas imagens podem sintetizadas em uma: ethos ativo, o qual procura resolver o
problema.
Ainda visualizamos o uso de verbos no presente do indicativo (“é”, “resta”), de expressões (“Na realidade”, “É
preciso”) que mostram a posição do locutor como “certa”, fazendo com que o interlocutor aceite o que está sendo dito ( O
abuso de menores não está restrito à Irlanda e à igreja; resta muito o que fazer; É preciso perseverança e oração). Estes
elementos modalizantes do campo da necessidade concedem ao discurso um tom autoritário. Posteriormente, na Carta,
reforçando o tom autoritário, o Papa se vale do verbo modal “deve”, indicando o que a igreja deve fazer para se recuperar
dos escândalos. Vimos, de um lado, um ethos autoritário, mas, por outro lado, um ethos que busca a correção, a reparação
do “erro”, o que poderia agradar aquele que está preocupado com os casos de abusos cometidos por padres.
Deste modo, ao se mostrar contra as atitudes dos padres, despertando a confiança do católico, o Papa pode fazer
com que este aceite a reparação da Igreja proposta na Carta e, consequentemente, que o mesmo não abandone a igreja.

Referências

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ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Marcelo Silvano Madeira. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2007. 191p.

BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. 294p.


----------------------. O aparelho formal da enunciação. In: ------------. Problemas de Lingüística Geral II. Campinas: Pontes,
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DAVI, A. C. M. A relação Eu-Tu no discurso da crônica jornalística. Revista Eutomia. Ano I. Nº 02. ISSN: 1982-6850. p. 484-
501.
Disponível em: <http://www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano1-Volume2/linguistica-artigos/A-Relacao-Eu-Tu-no-Discurso-
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EGGS, E. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a
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LOZANO, J.; PEÑA-MARIN, C.; ABRIL, G. Sujeito, espaço e tempo no discurso. In: --------------. Análise do Discurso: por
uma semiótica da interação social. São Paulo: Littera Mundi, 2002. p. 99-127.

MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção
do ethos. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2008 a. p. 69-92.

--------------------------. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (orgs). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto,
2008 b. p. 11-29.

--------------------------. Polifonia e cena de enunciação na pregação religiosa. In: LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L.;
EMEDIATO, W. Análises do discurso hoje. RJ: Nova Fronteira, 2008 c. vol. 1.

MENCÉ-CASTER, C. Du rôle des modalités dans la construction de l’ethos discursif du locuteur: le récit de la révolte des
esclaves de Tyr contre leurs maîtres dans la Première chronique générale d’Espagne. Vol. 27. nº 27. 2004. p. 95-106.
Disponível em: <http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/search/?p_p_action=1>Acesso em: 10 mai. 2010.

683
ORLANDI, E. P. O discurso religioso. In: -------------. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed.
Campinas: Pontes, 1996. p. 239-263.

http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/letters/2010/documents/hf_ben-xvi_let_20100319_church-ireland_po.html
Acesso em: 2 mai. 2010.

Graduada em Letras (Português/Literatura), em 2007, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Atualmente é mestranda
e bolsista da CAPES na área de Estudos Linguísticos, atuando na linha de pesquisa “Estudos Discursivos”, na UFV. Estuda
o discurso religioso católico e assembleiano, num âmbito comparativo.
castrorachelcamilla@yahoo.com

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Anexo

Carta Pastoral
do Santo Padre Bento XVI
aos Católicos na Irlanda

Tradução não oficial

1. Amados Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos
escrevo como Pastor da Igreja universal. Como vós, fiquei profundamente
perturbado com as notícias dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis
da parte de membros da Igreja na Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não
posso deixar de partilhar o pavor e a sensação de traição que muitos de vós
experimentastes ao tomar conhecimento destes actos pecaminosos e criminais e do
modo como as autoridades da Igreja na Irlanda os enfrentaram.

Como sabeis, convidei recentemente os bispos irlandeses para um encontro aqui em


Roma a fim de referir sobre o modo como trataram estas questões no passado e
indicar os passos que empreenderam para responder a esta grave situação.
Juntamente com alguns altos Prelados da Cúria Romana ouvi quanto tinham para
dizer, quer individualmente quer em grupo, enquanto propunham uma análise dos
erros cometidos e das lições aprendidads, e uma descrição dos programas e dos
protocolos hoje existente. As nossas reflexões foram francas e construtivas.
Alimento a confiança de que, como resultado, os bispos se encontrem agora numa
posição mais forte para levar por diante a tarefa de reparar as injustiças do passado
e para enfrentar as temáticas mais amplas relacionadas com o abuso dos menores
segundo modalidades conformes com as exigências da justiça e com os
ensinamentos do Evangelho.

2. Por meu lado, considerando a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes
inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas no vosso
país,, decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e
para vos propor um caminho de cura, de renovação e de reparação.

Na realidade, como muitos no vosso país revelaram, o problema do abuso dos


menores não é específico nem da Irlanda nem da Igreja. Contudo a tarefa que agora
tendes à vossa frente é enfrentar o problema dos abusos que se verificaram no
âmbito da comunidade católica irlandesa e de o fazer com coragem e determinação.
Ninguém pense que esta dolorosa situação se resolverá em pouco tempo. Foram
dados passos em frente positivos, mas ainda resta muito para fazer. É preciso
perseverança e oração, com grande confiança na força restabelecedora da graça de
Deus.

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Ao mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se
recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar
reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos
contra jovens indefesos. Esta consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano
causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para
garantir a protecção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro.

Enquanto enfretais os desafios deste momento, peço-vos que vos recordeis da


«rocha de que fostes talhados» (Is 51, 1). Reflecti sobre as contribuições generosas,
com frequência heróicas, oferecidas à Igreja e à humanidade como tal pelas
passadas gerações de homens e mulheres irlandeses, e deixai que isto gere impulso
para um honesto auto-exame e um convicto programa de renovação eclesial e
individual. A minha oração é por que, assistida pela intercessão dos seus muitos
santos e purificada pela penitência, a Igreja na Irlanda supere a presente crise e
volte a ser uma testemunha convincente da verdade e da bondade de Deus
omnipotente, manifestadas no seu Filho Jesus Cristo.

3. Historicamente os católicos da Irlanda demonstraram-se uma grande força de


bem quer na pátria quer fora. Monges célticos, como São Colombano, difundiram o
Evangelho na Europa Ocidental lançando as bases da cultura monástica medieval.
Os ideais de santidade, de caridade e de sabedoria transcendente que derivam da fé
cristã, encontraram expressão na construção de igrejas e mosteiros e na instituição
de escolas, bibliotecas e hospitais que consolidaram a identidade espiritual da
Europa. Aqueles missionários irlandeses tiraram a sua força e inspiração da fé
sólida, da guia forte e dos comportamentos morais rectos da Igreja na sua terra
natal.

A partir do século XVI, os católicos na Irlanda sofreram um longo período de


perseguição, durante o qual lutaram para manter viva a chama da fé em
circunstâncias perigosas e difíceis. Santo Oliver Plunkett, o Arcebispo mártir de
Armagh, é o exemplo mais famoso de uma multidão de corajosos filhos e filhas da
Irlanda dispostos a dar a própria vida pela fidelidade ao Evangelho. Depois da
Emancipação Católica, a Igreja teve a liberdade de crescer de novo. Famílias e
inúmeras pessoas que tinham preservado a fé durante os tempos das provações
tornaram-se a centelha de um grande renascimento do catolicismo irlandês no
século XIX. A Igreja forneceu escolarização, sobretudo aos pobres, e isto deu uma
grande contribuição à sociedade irlandesa. Um dos frutos das novas escolas
católicas foi um aumento de vocações: gerações de sacerdotes, irmãs e irmãos
missionários deixaram a pátria para servir em todos os continentes, sobretudo no
mundo de língua inglesa. Foram admiráveis não só pela vastidão do seu número,
mas também pela robustez da fé e pela solidez do seu empenho pastoral. Muitas
dioceses, sobretudo em África, América e Austrália, beneficiaram da presença de
clero e religiosos irlandeses que anunciaram o Evangelho e fundaram paróquias,
escolas e universidades, clínicas e hospitais, que serviram tanto os católicos, como
a sociedade em geral, com atenção especial às necessidades dos pobres.

Em quase todas as famílias da Irlanda houve alguém – um filho ou uma filha, uma tia
ou um tio – que deu a própria vida à Igreja. Justamente as famílias irlandesas têm
em grande estima e afecto os seus queridos, que ofereceram a própria vida a Cristo,

686
partilhando o dom da fé com outros e actualizando-a num serviço amoroso a Deus e
ao próximo.

4. Contudo, nos últimos decénios a Igreja no vosso país teve que se confrontar com
novos e graves desafios à fé que surgiram da rápida transformação e secularização
da sociedade irlandesa. Verificou-se uma mudança social muito rápida, que muitas
vezes atingiu com efeitos hostis a tradicional adesão do povo ao ensinamento e aos
valores católicos. Com frequência as práticas sacramentais e devocionais que
sustentam a fé e a tornam capaz de crescer, como por exemplo a confissão
frequente, a oração quotidiana e os ritos anuais, não foram atendidas. Determinante
foi também neste período a tendência, até da parte de sacerdotes e religiosos, para
adoptar modos de pensamento e de juízo das realidades seculares sem referência
suficiente ao Evangelho. O programa de renovação proposto pelo Concílio Vaticano
II por vezes foi mal compreendido e na realidade, à luz das profundas mudanças
sociais que se estavam a verificar, não era fácil avaliar o modo melhor de o realizar.
Em particular, houve uma tendência, ditada por recta intenção mas errada, a evitar
abordagens penais em relação a situações canónicas irregulares. É neste contexto
geral que devemos procurar compreender o desconcertante problema do abuso
sexual dos jovens, que contribuiu em grande medida para o enfraquecimento da fé e
para a perda do respeito pela Igreja e pelos seus ensinamentos.

Só examinando com atenção os numerosos elementos que deram origem à crise


actual é possível empreender uma diagnose clara das suas causas e encontrar
remédios eficazes. Certamente, entre os factores que para ela contribuíram
podemos enumerar: procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos
candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente formação humana, moral,
intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados; uma tendência na sociedade
a favorecer o clero e outras figuras com autoridade e uma preocupação inoportuna
pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que levaram como resultado à
malograda aplicação das penas canónicas em vigor e à falta da tutela da dignidade
de cada pessoa. É preciso agir com urgência para enfrentar estes factores, que
tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e
obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de
perseguição não tinham chegado.

5. Em diversas ocasiões desde a minha eleição para a Sé de Pedro, encontrei


vítimas de abusos sexuais, assim como estou disponível a fazê-lo no futuro. Detive-
me com elas, ouvi as suas vicissitudes, tomei nota do seu sofrimento, rezei com e
por elas. Precedentemente no meu pontificado, na preocupação por enfrentar este
tema, pedi aos Bispos da Irlanda, por ocasião da visita ad limina de 2006, que
«estabelecessem a verdade de quanto aconteceu no passado, tomassem todas as
medidas adequadas para evitar que se repita no futuro, garantissem que os
princípios de justiça sejam plenamente respeitados e, sobretudo, curassem as
vítimas e quantos são atingidos por estes crimes abnormes» (Discurso aos Bispos
da Irlanda, 28 de Outubro de 2006).

Com esta Carta, pretendo exortar todos vós, como povo de Deus na Irlanda, a
reflectir sobre as feridas infligidas ao corpo de Cristo, sobre os remédios, por vezes
dolorosos, necessários para as atar e curar, e sobre a necessidade de unidade, de
caridade e de ajuda recíproca no longo processo de restabelecimento e de

687
renovação eclesial. Dirijo-me agora a vós com palavras que me vêm do coração, e
desejo falar a cada um de vós individualmente e a todos como irmãos e irmãs no
Senhor.

6. Às vítimas de abuso e às suas famílias

Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode
cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa
dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente
corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós
sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de
evitar os vossos sofrimentos. É comprensível que vos seja difícil perdoar ou
reconciliar-vos com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o
remorso que todos sentimos. Ao mesmo tempo peço-vos que não percais a
esperança. É na comunhão da Igreja que encontramos a pessoa de Jesus Cristo,
ele mesmo vítima de injustiça e de pecado. Como vós, ele ainda tem as feridas do
seu injusto padecer. Ele compreende a profundeza dos vossos padecimentos e o
persistir do seu efeito nas vossas vidas e nos relacionamentos com os outros,
incluídas as vossas relações com a Igreja. Sei que alguns de vós têm dificuldade até
de entrar numa igreja depois do que aconteceu. Contudo, as mesmas feridas de
Cristo, transformadas pelos seus sofrimentos redentores, são os instrumentos
graças aos quais o poder do mal é infrangido e nós renascemos para a vida e para a
esperança. Creio firmemente no poder restabelecedor do seu amor sacrifical –
também nas situações mais obscuras e sem esperança – que traz a libertação e a
promessa de um novo início.

Dirigindo-me a vós como pastor, preocupado pelo bem de todos os filhos de Deus,
peço-vos com humildade que reflictais sobre quanto vos disse. Rezo a fim de que,
aproximando-vos de Cristo e participando na vida da sua Igreja – uma Igreja
purificada pela penitência e renovada na caridade pastoral – possais redescobrir o
amor infinito de Cristo por todos vós. Tenho confiança em que deste modo sereis
capazes de encontrar reconciliação, profunda cura interior e paz.

7. Aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens

Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto
deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais
devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes
vergonha e desonra sobre os vossos irmãos. Quantos de vós sois sacerdotes
violastes a santidade do sacramento da Ordem Sagrada, no qual Cristo se torna
presente em nós e nas nossas acções. Juntamente com o enorme dano causado às
vítimas, foi perpetrado um grande dano à Igreja e à percepção pública do sacerdócio
e da vida religiosa.

Exorto-vos a examinar a vossa consciência, a assumir a vossa responsabilidade dos


pecados que cometestes e a expressar com humildade o vosso pesar. O
arrependimento sincero abre a porta ao perdão de Deus e à graça do verdadeiro
emendamento. Oferecendo orações e penitências por quantos ofendestes, deveis
procurar reparar pessoalmente as vossas acções. O sacrifício redentor de Cristo tem
o poder de perdoar até o pecado mais grave e de obter o bem até do mais terrível

688
dos males. Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das
nossas acções sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa,
submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de
Deus.

8. Aos pais

Ficastes profundamente transtornados ao tomar conhecimento das coisas terríveis


que tiveram lugar naquele que deveria ter sido o ambiente mais seguro para todos.
No mundo de hoje não é fácil construir um lar doméstico e educar os filhos. Eles
merecem crescer num ambiente seguro, amados e queridos, com um forte sentido
da sua identidade e do seu valor. Têm direito a ser educados nos valores morais
autênticos, radicados na dignidade da pessoa humana, a serem inspirados pela
verdade da nossa fé católica e a aprender modos de comportamento e de acção que
os levem a uma sadia estima de si e à felicidade duradoura. Esta tarefa nobre e
exigente está confiada em primeiro lugar a vós, seus pais. Exorto-vos a fazer a
vossa parte para garantir a melhor cura possível dos jovens, quer em casa quer na
sociedade em geral, enquanto que a Igreja, por seu lado, continua a pôr em prática
as medidas adoptadas nos últimos anos para tutelar os jovens nos ambients
paroquiais e educativos. Enquanto dais continuidade às vossas importantes
responsabilidades, certifico-vos de que estou próximo de vós e que vos dou o apoio
da minha oração.

9. Aos meninos e aos jovens da Irlanda

Desejo oferecer-vos uma particular palavra de encorajamento. A vossa experiência


de Igreja é muito diversa da que fizeram os vossos pais e avós. O mundo mudou
muito desde quando eles tinham a vossa idade. Não obstante, todos, em cada
geração, estão chamados a percorrer o mesmo caminho da vida, sejam quais forem
as circunstâncias. Todos estamos escandalizados com os pecados e as falências de
alguns membros da Igreja, sobretudo de quantos foram escolhidos de modo especial
para guiar e servir os jovens. Mas é na Igreja que encontrareis Jesus Cristo que é o
mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13, 8). Ele ama-vos e ofereceu-se a si próprio
na Cruz por vós. Procurai uma relação pessoal com ele na comunhão da sua Igreja,
porque ele nunca trairá a vossa confiança! Só ele pode satisfazer as vossas
expectativas mais profundas e conferir às vossas vidas o seu significado mais pleno
orientando-as para o serviço ao próximo. Mantende o olhar fixo em Jesus e na sua
bondade e protegei no vosso coração a chama da fé. Juntamente com os vossos
irmãos católicos na Irlanda olho para vós a fim de que sejais discípulos fiéis do
nosso Deus e contribuais com o vosso entusiasmo e com o vosso idealismo tão
necessários para a reconstrução e para o renovamento da nossa amada Igreja.

10. Aos sacerdotes e aos religiosos da Irlanda

Todos nós estamos a sofrer como consequência dos pecados dos nossos irmãos
que traíram uma ordem sagrada ou não enfrentaram de modo justo e responsável as
acusações de abuso. Perante o ultraje e a indignação que isto causou, não só entre
os leigos mas também entre vós e as vossas comunidades religiosas, muitos de vós
sentis-vos pessoalmente desanimados e também abandonados. Além disso, estou
consciente de que aos olhos de alguns sois culpados por associação, e

689
considerados como que de certo modo responsáveis pelos delitos de outros. Neste
tempo de sofrimento, desejo reconhecer-vos a dedicação da vossa vida de
sacerdotes e de religiosos e dos vossos apostolados, e convido-vos a reafirmar a
vossa fé em Cristo, o vosso amor à sua Igreja e a vossa confiança na promessa de
redenção, de perdão e de renovação interior do Evangelho. Deste modo,
demonstrareis a todos que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rm 5,
20).

Sei que muitos de vós estais desiludidos, transtornados e encolerizados pelo modo
como estas questões foram tratadas por alguns dos vossos superiores. Não
obstante, é essencial que colaboreis de perto com quantos têm a autoridade e que
vos comprometais para fazer com que as medidas adoptadas para responder à crise
sejam verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes. Sobretudo, exorto-vos a
tornar-vos cada vez mais claramente homens e mulheres de oração, seguindo com
coragem o caminho da conversão, da purificação e da reconciliação. Deste modo, a
Igreja na Irlanda haurirá nova vida e vitalidade do vosso testemunho ao poder
redentor do Senhor tornado visível na vossa vida.

11. Aos meus irmãos bispos

Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por
vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canónico codificado há muito
tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no
tratamento das acusações. Compreendo como era difícil lançar mão da extensão e
da complexidade do problema, obter informações fiáveis e tomar decisões justas à
luz de conselhos divergentes de peritos. Contudo, deve-se admitir que foram
cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto
minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que
fizestes para remediar os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além
de pôr plenamente em prática as normas do direito canónico ao enfrentar os casos
de abuso de jovens, continuai a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua
competência. Claramente, os superiores religiosos devem fazer o mesmo. Também
eles participaram em recentes encontros aqui em Roma destinados a estabelecer
uma abordagem clara e coerente destas questões. É obrigatório que as normas da
Igreja na Irlanda para a tutela dos jovens sejam constantemente revistas e
actualizadas e que sejam aplicadas de modo total e imparcial em conformidade com
o direito canónico.

Só uma acção decidida levada em frente com total honestidade e transparência


poderá restabelecer o respeito e a benquerença dos Irlandeses em relação à Igreja
à qual consagrámos a nossa vida. Isto deve brotar, antes de tudo, do exame de vós
próprios, da purificação interior e da renovação espiritual. O povo da Irlanda espera
justamente que sejais homens de Deus, que sejais santos, que vivais com
simplicidade, que procureis todos os dias a conversão pessoal. Para ele, segundo a
expressão de Santo Agostinho, sois bispos; contudo estais chamados a ser com
eles seguidores de Cristo (cf. Discurso 340, 1). Exorto-vos portanto a renovar o
vosso sentido de responsabilidade diante de Deus, a crescer em solidariedade com
o vosso povo e a aprofundar a vossa solicitude pastoral por todos os membros da
vossa grei. Em particular, sede sensíveis à vida espiritual e moral de cada um dos
vossos sacerdotes. Sede um exemplo com as vossas próprias vidas, estai-lhes

690
próximos, ouvi as suas preocupações, oferecei-lhes encorajamento neste tempo de
dificuldades e alimentai a chama do seu amor a Cristo e o seu compromisso no
serviço dos seus irmãos e irmãs.

Também os leigos devem ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja.
Fazei com que sejam formados de modo que possam dizer a razão, de maneira
articulada e convincente, do Evangelho na sociedade moderna (cf. 1 Pd 3, 15), e
cooperem mais plenamente na vida e na missão da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-
vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis da verdade redentora de Cristo.

12. A todos os fiéis da Irlanda

A experiência que um jovem faz da Igreja deveria dar sempre fruto num encontro
pessoal e vivificante com Jesus Cristo numa comunidade que ama e que oferece
alimento. Neste ambiente, os jovens devem ser encorajados a crescer até à sua
plena estatura humana e espiritual, a aspirar por ideais nobres de santidade, de
caridade e de verdade e a inspirar-se nas riquezas de uma grande tradição religiosa
e cultural. Na nossa sociedade cada vez mais secularizada, na qual também nós
critãos muitas vezes temos dificuldade em falar da dimensão transcendente da
nossa existência, precisamos de encontrar novos caminhos para transmitir aos
jovens a beleza e a riqueza da amizade com Jesus Cristo na comunhão da sua
Igreja. Ao enfrentar a presente crise, as medidas para se ocupar de modo justo de
cada um dos crimes são essenciais, mas sozinhas não são suficientes: há
necessidade de uma nova visão para inspirar a geração actual e as futuras a fazer
tesouro do dom da nossa fé comum. Caminhando pela via indicada pelo Evangelho,
observando os mandamentos e conformando a nossa vida de maneira cada vez
mais próxima com a pessoa de Jesus Cristo, fareis a experiência da renovação
profunda da qual hoje há uma urgente necessidade. Convido-vos a todos a
perseverar neste caminho.

13. Amados irmãos e irmãs em Cristo, é com profunda preocupação por todos vós
neste tempo de sofrimento, no qual a fragilidade da condição humana foi tão
claramente revelada, que desejei oferecer-vos estas palavras de encorajamento e
de apoio. Espero que as acolhais como um sinal da minha proximidade espiritual e
da minha confiança na vossa capacidade de responder aos desafios do momento
actual tirando renovada inspiração e força das nobres tradições da Irlanda de
fidelidade ao Evangelho, de perseverança na fé e de firmeza na consecução da
santidade. Juntamente com todos vós, rezo com insistência para que, com a graça
de Deus, as feridas que atingiram muitas pessoas e famílias possam ser curadas e
que a Igreja na Irlanda possa conhecer uma época de renascimento e de renovação
espiritual.

14. Desejo propor-vos algumas iniciativas concretas para enfrentar a situação. No


final do meu encontro com os Bispos da Irlanda, pedi que a Quaresma deste ano
fosse considerada como tempo de oração para uma efusão da misericórdia de Deus
e dos dons de santidade e de força do Espírito Santo sobre a Igreja no vosso país.
Agora convido todos vós a dedicar as vossas penitências da sexta-feira, durante
todo o ano, de agora até à Páscoa de 2011, por esta finalidade. Peço-vos que
ofereçais o vosso jejum, a vossa oração, a vossa leitura da Sagrada Escritura e as
vossas obras de misericórdia para obter a graça da cura e da renovação para a

691
Igreja na Irlanda. Encorajo-vos a redescobrir o sacramento da Reconciliação e a
valer-vos com mais frequência da força transformadora da sua graça.

Deve ser dedicada também particular atenção à adoração eucarística, e em cada


diocese deverão haver igrejas ou capelas reservadas especificamente para esta
finalidade. Peço que as paróquias, os seminários, as casas religiosas e os mosteiros
organizem tempos para a adoração eucarística, de modo que todos tenham a
possibilidade de participar deles. Com oração fervorosa diante da presença real do
Senhor, podeis fazer a reparação pelos pecados de abuso que causaram tantos
danos, e ao mesmo tempo implorar a graça de uma renovada força e de um sentido
da missão mais profundo por parte de todos os bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis.

Tenho esperança em que este programa levará a um renascimento da Igreja na


Irlanda na plenitude da própria verdade de Deus, porque é a verdade que nos torna
livres (cf. Jo 8, 32).

Além disso, depois de me ter consultado e rezado sobre a questão, tenciono


anunciar uma Visita Apostólica a algumas dioceses da Irlanda, assim como a
seminários e congregações religiosas. A Visita propõe-se ajudar a Igreja local no seu
caminho de renovação e será estabelecida em cooperação com as repartições
competentes da Cúria Romana e com a Conferência Episcopal Irlandesa. Os
pormenores serão anunciados no devido momento.

Além disso proponho que se realize uma Missão a nível nacional para todos os
bispos, sacerdotes e religiosos. Alimento a esperança de que, haurindo da
competência de peritos pregadores e organizadores de retiros quer da Irlanda como
de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares, os ritos litúrgicos da
ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios, alcanceis um
apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir as
raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água
viva que ele vos oferece através da sua Igreja.

Neste Ano dedicado aos Sacerdotes, recomendo-vos de modo muito particular a


figura de São João Maria Vianney, que teve uma compreensão tão rica do mistério
do sacerdócio. «O sacerdote, escreveu, possui a chave dos tesouros do céu: é ele
quem abre a porta, é ele o dispensador do bom Deus, o administrador dos seus
bens». O cura d’Ars compreendeu bem como é grandemente abençoada uma
comunidade quando é servida por um sacerdote bom e santo. «Um bom pastor, um
pastor segundo o coração de Deus, é o tesouro maior que o bom Deus pode dar a
uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina». Por
intercessão de São João Maria Vianney possa o sacerdócio na Irlanda retomar vida
e a inteira Igreja na Irlanda crescer na estima do grande dom do ministério
sacerdotal.

Aproveito esta ocasião para agradecer desde já a quantos se comprometerem no


empenho de organizar a Visita Apostólica e a Missão, assim como os tantos homens
e mulheres que em toda a Irlanda já se comprometeram pela tutela dos jovens nos
ambientes eclesiásticos. Desde quando a gravidade e a extensão do problema dos
abusos sexuais dos jovens em instituições católicas começou a ser plenamente
compreendido, a Igreja desempenhou uma grande quantidade de trabalho em

692
muitas partes do mundo, a fim de o enfrentar e remediar. Enquanto não se deve
poupar esforço algum para melhorar e actualizar procedimentos já existentes,
encoraja-me o facto de que as práticas de tutela em vigor, adoptadas pelas Igrejas
locais, são consideradas, nalgumas partes do mundo, um modelo que deve ser
seguido por outras instituições.

Desejo concluir esta Carta com uma especial Oração pela Igreja na Irlanda, que vos
envio com o cuidado que um pai tem pelos seus filhos e com o afecto de um cristão
como vós, escandalizado e ferido por quanto aconteceu na nossa amada Igreja. Ao
utilizardes esta oração nas vossas famílias, paróquias e comunidades, que a Bem-
Aventurada Virgem Maria vos proteja e vos guie pelo caminho que conduz a uma
união mais estreita com o seu Filho, crucificado e ressuscitado. Com grande afecto e
firme confiança nas promessas de Deus, concedo de coração a todos vós a minha
Bênção Apostólica em penhor de força e paz no Senhor.

Vaticano, 19 de Março de 2010, Solenidade de São José

Benedictus PP. XVI

ORAÇÃO PELA IGREJA NA IRLANDA

Deus dos nossos pais,


Renova-nos na fé que é para nós vida e salvação
na esperança que promete perdão e renovação interior,
na caridade que purifica e abre os nossos corações
para te amar, e em ti, amar todos os nossos irmãos e irmãs.

Senhor Jesus Cristo


possa a Igreja na Irlanda renovar o seu milenário compromisso
na formação dos nossos jovens no caminho da verdade,
da bondade, da santidade e do serviço generoso à sociedade.

Espírito Santo, consolador, advogado e guia,


inspira uma nova primavera de santidade e de zelo apostólico
para a Igreja na Irlanda.

Possa a nossa tristeza e as nossas lágrimas


o nosso esforço sincero por corrigir os erros do passado,
e o nosso firme propósito de correcção,
dar abundantes frutos de graça
para o aprofundamento da fé
nas nossas famílias, paróquias, escolas e associações,
e para o progresso espiritual da sociedade irlandesa,
e para o crescimento da caridade, da justiça, da alegria
e da paz, na inteira família humana.

693
A ti, Trindade,
com plena confiança na amorosa protecção de Maria,
Rainha da Irlanda, nossa Mãe,
e de São Patrício, de Santa Brígida e de todos os santos,
recomendamos a nós próprios, os nossos jovens,
e as necessidades da Igreja na Irlanda.

Amém.

© Copyright 2010 - Libreria Editrice Vaticana

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O ethos do compositor da música popular brasileira
durante a ditadura militar: uma leitura intertextual

GOUVÊA, Maria Aparecida Rocha


(UERJ/UniFOA)

Introdução
“Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a
minha pátria e a tortura a desonra.” (CÂMARA, apud Gaspari, 2002, p. 153). Assim, D. Hélder Câmara, protegido pela voz
de autoridade da Igreja, se pronunciou em Paris num discurso emocionante que denunciava os horrores da ditadura militar.
Entretanto, essa voz de autoridade não era extensiva a todos os brasileiros. Aqui, a ordem era “cale-se”, pois aquele que
enunciava a verdade, certamente pagaria com dor a sua coragem.
A partir desse contexto histórico, apresenta-se a proposta deste artigo, objetivando analisar o papel do
intertexto/interdiscurso na construção do ethos discursivo dos compositores da MPB. Justifica-se o presente estudo pelo
interesse linguístico/discursivo, histórico e cultural que a produção artística manifestou nesse recorte temporal.
Partindo-se do pressuposto que o tema é interdisciplinar, há a necessidade de se pesquisar em fontes/teorias que
contemplem os aspectos históricos, linguísticos/discursivos e culturais da época. Para a análise do contexto histórico-
cultural, serão consultadas as referências contidas em Fausto (1999), Gaspari (2002), Mello (2008), Stephanou (2001) e
Napolitano (1998). A investigação linguística estará amparada nos pressupostos teóricos sobre o princípio da
intertextualidade e da interdiscursividade de Koch, Bentes e Cavalcante (2008), Kristeva (1974), Valente (2002) e Sant’Anna
(2002). A análise discursiva terá embasamento nas teorias sobre o ethos, defendidas por Maingueneau (2008) e
Charaudeau (2006, 2008).

1. Cultura de protesto nos anos 60


Na década de 60, a arte brasileira tomou um novo rumo, revelando-se como uma forma legítima de denúncia das
injustiças sociais, com o objetivo de conscientizar as pessoas e transformar a realidade social brasileira, principalmente,
através dos chamados Centros Populares de Culturas – CPCs.
Após o golpe, a realidade social mudou completamente o rumo da arte brasileira. O que era explicitamente
expresso, a partir de 64, teria de ser dito/mostrado através de estratégias e recursos implícitos, o que estimulou ainda mais
a inteligência da classe artística brasileira. Era preciso protestar contra a violência promovida pelos militares.
Stephanou (2001, p. 114) registra que
a repressão do Estado obrigou os intelectuais a se organizarem de forma mais coesa, e acentuou nos
mesmos o compromisso – agora necessidade – de construir uma produção cultural combativa, que
difundisse um conteúdo de contestação “revolucionário”, com objetivo didático-político de conscientizar
as pessoas, tirá-las da inércia na qual se encontravam.

Assim, a arte também se militarizou para se equiparar aos inimigos – os militares. E sua arma não era o fuzil, era
a mensagem subliminar que utilizava diferentes recursos discursivos para se propagar.
É importante registrar que a arte de protesto foi mais produtiva até 1968, como registra Jabor (2003, p. 186).

695
Até 1968 havia uma certa liberdade reflexiva e isso proporcionou uma época em que você não tinha
liberdade política, mas tinha liberdade intelectual. Isso dá um estímulo monumental ao criador, porque o
cara tem uma missão objetiva na vida. Isso dá uma grande legitimidade à obra de arte. Então foram anos
muitos fecundos, apesar do choque de 1964.

Depois, o país viveu o período mais radical da ditadura militar. Após o discurso do deputado carioca Márcio
Moreira Alves, do MDB, pregando um boicote popular ao desfile de 7 de setembro, o governo militar reagiu e decretou o AI-
5, assumindo o controle integral sobre a sociedade civil brasileira.
2. A construção do ethos discursivo no período da ditadura militar
Durante o período militar, o intertexto/interdiscurso nas letras das canções colaborou significativamente para a
construção do ethos do compositor, seja pela seleção lexical e/ou sintática, seja pela delimitação de determinados perfis de
enunciadores.
Sobre o poder da palavra e a construção do ethos, Amossy (2005, p. 9) defende que “todo ato de tomar a palavra
implica a construção de uma imagem de si.” Nessa construção, estilo, competência lingüística e crenças participam dessa
representação, evidenciando um entrelaçado de papéis.
Nesse período, manifestar opiniões contrárias ao regime militar era optar por ser alvo de perseguição e tortura.
Dessa forma, a arte, como símbolo de formação de opiniões e de resistência, procurava concretizar o discurso contrário,
construindo um ethos discursivo em oposição ao ethos das forças armadas, como defende Stephanou (2001, p. 300).
A arte seria o lugar onde teria início a reação ao Regime Militar, o início de uma resistência de fato.
(...) O cinema era uma forma de fazer política; o teatro, de resistir; a música, de convocar para a luta,
a imprensa, de denunciar. A reação cultural ao Movimento Militar foi marcada por uma arte
conscientizadora, mobilizadora, de discurso revolucionário. A cultura apontou na direção da
resistência ao Regime, e para isso, se equiparou ao inimigo, se militarizando, no seu pensamento, na
sua estética, no seu vocabulário, nos seus objetivos.
O autor defende que, para se equiparar aos militares, considerados inimigos, os artistas perceberam a
necessidade de utilizar recursos discursivos que levassem à persuasão do público subliminarmente, já que as
manifestações explícitas eram alvos da censura. Nas composições da MPB, essa sutileza era amparada por marcas
discursivas que serviam de elementos para as inferências necessárias ao diálogo entre compositor e plateia, como relata
Mello (2003, p. 221), descrevendo o público dos grandes festivais de MPB.

A platéia dos festivais, formada em sua maioria pela juventude estudantil, estava sincronizada com
aquele movimento musical que falava da realidade social brasileira. Tão sincronizada que, ao menor
sinal, era capaz de decodificar, nas letras e músicas, aquela realidade de insatisfação com a ditadura
militar e com a impossibilidade de expressar suas idéias.
Nesse contexto, os compositores perceberam que deveriam encontrar formas de dizer o que não podia ser dito e
procuravam trabalhar a mensagem para atingir esse objetivo. A canção deveria parecer inocente a ponto de a censura não
perceber tal intenção. Mello (2003, p. 222) conclui que “daí nasceu um profundo diálogo entre o músico censurado e a
platéia libertária. A platéia sabia o que o poeta não podia, mas queria dizer. E sabia decodificar.” Dessa forma, a arte
também se militarizou, porém com outro tipo de arma: o discurso.

Nessa perspectiva, o intertexto/interdiscurso teve papel fundamental, pois, muitas vezes, foi utilizado com
determinadas intenções, principalmente para se proteger da ação da censura.

3. O papel do intertexto nas letras de música da MPB no contexto da ditadura militar


O conceito de intertextualidade foi construído por Kristeva (1974, p. 64). A autora defende que “todo texto se
constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” e que a palavra é
espacializada, pois funciona em três dimensões: sujeito – destinatário – contexto.

696
A humanidade, portanto, sempre registrou sua história baseada nas dimensões descritas por Kristeva. Fala-se
e/ou escreve-se para alguém, num determinado contexto. E a partir disso, conta-se, reconta-se determinado fato de acordo
com o que se pretende comunicar.

Não se pode deixar de registrar também que optar pela utilização do intertexto significa agregar valores
semânticos ao já-dito, como defende Bauman (2004 apud KOCH, BENTES E CAVALCANTE, 2008, p. 17): “Toda e
qualquer retextualização de um texto prévio implica uma mudança de clave, uma alteração em sua força ilocucionária e em
seu efeito perlocucionário – ou seja, no que ele vale (count as) e no que ele faz.”

Este artigo não se deterá nas classificações de intertexto/interdiscurso, amplamente exploradas por Koch, Bentes
e Cavalcante (2008), Sant’anna (2002), Valente (2002), entre outros, mas na intenção da utilização desse princípio
linguístico e sua relação com a construção do ethos discursivo.

Os relatos histórico-culturais sobre a produção musical da época descrevem explicitamente como o intertexto era
usado como álibi para que o compositor se protegesse da ação da censura, como relata Mello (2003, p. 311)
Rita Lee teve que enfrentar dona Judith de Castro Lima, chefe da Censura Federal em São Paulo, que
desconfiou da frase “Armadura e espada a rifar”. Sem alegar um motivo plausível, achou que era uma
crítica ao Exército brasileiro. Rita alegou:
- Não é não. A armadura e a espada são de Dom Quixote mesmo.
Não adiantou. Dona Judith não aceitou a argumentação. Alguém teve a idéia de substituir
“espada” por “lança”. Dona Judith concordou, pois afinal lança era uma arma ultrapassada.
A letra em questão, uma composição de Arnaldo Batista e Rita Lee, denominada “Dom Quixote”, participante do
IV Festival de Música Popular Brasileira, era um texto pastichado. Na música, os compositores utilizam a personagem
literária para ironizar a figura do soldado que, após rifar sua armadura e sua espada, chupa chicletes, se transforma em um
cantor de TV e é abandonado por Dulcinéia, que se casa com outro. Nos versos finais, os compositores parafraseiam a
famosa fala de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, apresentador de programa de auditório dos anos 60 e 70: “Palmas pra ele,
que ele merece”.
Quando questionados pela censura, principalmente por causa das palavras “armadura” e “espada”, os
compositores argumentaram que estavam se referindo a Dom Quixote. Após substituição de uma palavra, a música foi
liberada para ser apresentada no festival.

Dom Quixote - 1967


(...)
Ei, vê que tudo mudou
E a donzela casou
E os jornais todos a anunciar
Dulcinéia que vai se casar
E os jornais todos a anunciar
Armadura e espada a rifar
Dom Quixote cantar na TV
Vai testar, vai subir...
Palmas pra Dom Quixote
Que ele merece.

Nessa perspectiva, pode-se, perfeitamente, depreender o enunciador encarnado e sua voz, descrito por
Maingueneau (2008, p. 97): “a personalidade do enunciador, por meio da enunciação”, pois o princípio da intertextualidade
era utilizado com muita propriedade pelos compositores, como nesse caso, ironizando a figura do soldado, comportamento
inaceitável naquele contexto histórico.

697
De lá para cá, o contexto histórico se modificou, entretanto a voz desse período ainda ecoa seu grito de guerra em
nossos ouvidos. Isso denota a construção de um ethos discursivo de importância histórica e cultural que serve de modelo
para a sociedade, já que estabelece uma inter-relação entre locutor e locutário.

Segundo Maingueneau (apud AMOSSY, 2005, p. 16), “a maneira de dizer autoriza a construção de uma verdadeira
imagem de si e, na medida que o locutário se vê obrigado a depreendê-la a partir de diversos índices discursivos, ela
contribui para o estabelecimento de uma inter-relação entre o locutor e seu parceiro”.

Dessa forma, no contexto histórico da ditadura militar, pode-se constatar a necessidade de se estabelecer o
discurso do contra-poder como forma de reação ao discurso do poder militar. Evidentemente, esse discurso deveria ser
mascarado, uma forma de se proteger da ação da censura. Aqui, é importante lembrar a noção de máscara defendida por
Charaudeau (2008, p. 7)

A máscara não é necessariamente o que esconde a realidade. É verdade que em nosso mundo ocidental
ela tornou-se – nas representações – um signo de dissimulação e mesmo de fraude: quanto mais ela
oculta, mas simula. (...) Mas a máscara é também, em outras tradições o que define o ser em sua
perenidade, em sua imutável essência. Ela é o símbolo da identificação, a ponto de nela se confundirem
o ser e o parecer, a pessoa e a personagem, tal como no teatro grego.
Durante o período da ditadura, o acervo folclórico nacional também foi muito utilizado pelos compositores como
mensagem subliminar. Na maioria das vezes, com significado de protesto, como se identifica na foto publicada em Mello
(2008, p. 278)

Figura 1 – manifestação da platéia no III FIC – 1968

Para evidenciar essa intenção, observa-se a utilização do intertexto de textos folclóricos, como a seguir:
Flor Maior – Célio Borges Pereira – 1966
Interpretada por Roberto Carlos – II Festival de MPB.
Ciranda, cirandinha
O que era doce
Se acabou...
Nosso amor
Que era tão grande
Que nem vidro se quebrou...
Uma volta,
Volta e meia
Um sorriso nos ligou
Terminou a cirandinha
Uma lágrima brilhou...

698
Observa-se o intertexto da canção folclórica “Ciranda, cirandinha”, para representar a relação temporal passado
(sem ditadura) X presente (com ditadura).
Em torno dos contos de fada, Gilberto Gil e Caetano Veloso compuseram uma paródia implícita que faz alusão ao
clássico “Chapeuzinho Vermelho”. A música “Divino, maravilhoso”, defendida por Gal Costa no IV Festival da Música
Popular Brasileira, em 1968, apresentava um narrador que tirava a menina inocente do seu mundo irreal. Aqui, a menina,
representando o cidadão brasileiro, necessita ter olhos firmes, contrastando com os olhos grandes do lobo (militar), pois
“tudo é perigoso, tudo é divino, maravilhoso”.

Divino, Maravilhoso - 1968


Atenção ao dobrar a esquina
Uma alegria, atenção menina
Você vem, quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção, tudo é perigoso
Tudo é divino, maravilhoso
Atenção para o refrão, uau!
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
(...)

Em “Pra não dizer que não falei das flores”, Geraldo Vandré parodia a figura do soldado que troca a vida pela
morte em defesa da Pátria, como nos versos do Hino da Independência.
Pra não dizer que não falei das flores – 1968
(...)
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de arma na mão
Nos quartéis lhes ensinam antigas lições
De morrer pela pátria e viver sem razão

Os amores na mente, as flores no chão


A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando, seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova canção

Hino da Independência
(...)
Brava gente brasileira!
Longe vá temor servil
Ou ficar a Pátria livre
Ou morrer pelo Brasil;
Ou ficar a Pátria livre,
Ou morrer pelo Brasil.

4. O papel do interdiscurso nas letras de música da MPB no contexto da ditadura militar


Fiorin (2003, p. 32) define interdiscursividade como o “processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou
percursos figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro”, enfatizando que “a interdiscursividade não implica a
intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao
discurso que ele manifesta”.

699
Com relação ao interdiscurso, observa-se a utilização desse princípio linguístico para definir determinados perfis
de enunciadores. Nas letras das músicas, constata-se a identificação de um ethos representando o discurso contrário ao
discurso das forças armadas.

4.1 O reacionário

Em muitas músicas, o enunciador assume o ethos de alguém que acredita ser capaz de transformar o mundo
através do seu canto. Nessa perspectiva, ele seria capaz de persuadir, de arrebanhar o público, num paradoxo paz/guerra,
transformando-se no líder revolucionário, panfletário.

Viola enluarada – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle – 1967


A mão que toca um violão
Se for preciso faz a guerra
Mata o mundo, fere a terra
A voz que canta uma canção
Se for preciso canta um hino
Louva a morte
Viola em noite enluarada
No sertão é como espada
Esperança de vingança
O mesmo pé que dança um samba
Se preciso vai à luta
Capoeira
Quem tem de noite a companheira
Sabe que a paz é passageira
Pra defendê-la se levanta
E grita: Eu vou!
(...)
Pode-se observar no texto, marcas linguísticas que funcionam como “escudo” contra a ação da censura
durante o regime militar, principalmente pela utilização da metonímia nos versos “a mão que toca o violão”, “a voz que
canta uma canção” e “o mesmo pé que dança um samba”. Esse recurso imprime um caráter não-determinante do
sujeito da ação – a não-pessoa, muito utilizado no período da ditadura militar, que se rompe no verso “eu vou”
marcando a identificação do enunciador. Embora, a imagem que, normalmente, se faz de um compositor acione um
ethos passivo, as escolhas lexicais do compositor evidenciam um ethos reacionário, disposto a surpreender o
“adversário”: guerra, mata, fere, morte, espada, vingança, luta.

Pra não dizer que não falei das flores – Geraldo Vandré – 1968
Caminhando e cantando, seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção
(...)
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer.
(...)
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando, seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova canção.

700
O texto evidencia um ethos construído através da utilização da 1ª pessoa do plural, assumindo uma voz
compartilhada com o povo brasileiro. Tal uso não se constitui uma soma de indivíduos, mas um sujeito coletivo que
representa a força da união. O uso do imperativo no refrão da canção demonstra o caráter argumentativo e persuasivo do
texto, concretizando a tese do compositor: convocação à reação. As escolhas lexicais colaboram para esse caráter
argumentativo, denotando que a reação é uma ação positiva: canção, todos iguais, braços dados, amores, flores, certeza,
história, aprendendo, ensinando. Pode-se observar também que no verso “caminhando e cantando e seguindo a canção”, a
opção pelo gerúndio imprime o aspecto inacabado, que não pode deixar de acontecer, enriquecido com a soma de ações
marcadas pela conjunção aditiva “e” ligando as orações.

4.2 O porta-voz da felicidade

Em outras letras, o enunciador se considera o portador da felicidade que contamina todo o ambiente. Aquele que
tem o poder de transmitir alegria a todos que, de forma instantânea, esquecem-se das suas penas em um passe de mágica
e se deixam encantar pelo poder da música. Constata-se, aqui, o princípio da interdiscursividade através da carnavalização.

Olé, olá – Chico Buarque – 1965


Não chore ainda não, que eu tenho um violão
E nós vamos cantar
Felicidade aqui pode passar e ouvir
E se ela for de samba há de querer ficar
Seu padre toca o sino que é pra todo mundo saber
Que a noite é criança, que o samba é menino
Que a dor é tão velha que pode morrer
Olê, olê, olê, olá
(...)
Não chore ainda não, que eu tenho uma razão
Pra você não chorar
Amiga, me perdoa, se eu insisto à toa
Mas a vida é boa para quem cantar
Meu pinho, toca forte que é pra todo mundo acordar
Não fale da vida, nem fale da morte
Tem dó da menina, não deixa chorar
Olê, olê, olê, olá
Observa-se que a escolha lexical do compositor evidencia a construção da imagem de um enunciador tão feliz
que é capaz de influenciar outras pessoas: violão, cantar, felicidade, samba, sino,“dor que morre”, olê, olá, amiga, vida, boa,
toca, forte, acordar. Constata-se também que os vocábulos relacionados à infância conotam o apagamento da realidade: a
inocência, a importância da brincadeira. O uso do imperativo na 3ª pessoa do singular “não chore” iniciando as estrofes
marca a intenção de persuasão do enunciador que, para concretizá-la, se transforma em pessoa ampliada no verso “e nós
vamos cantar”.

Eu quero é botar meu bloco na rua – Sérgio Sampaio – 1972


(...)
Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero todo mundo nesse carnaval...

Eu quero é botar meu bloco na rua


Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua

701
Gingar pra dar e vender.

Nessa composição, constata-se a indeterminação dos referentes dos pronomes demonstrativos e as respectivas
contrações - isso, aquilo, daquilo, disso – na construção de um ethos que pode/necessita dizer sem dizer, imprimindo um
caráter de identificação parcial da mensagem, mas inferida pela plateia. Essa marca linguística se contrapõe ao uso da
pessoa restrita, marcada pelo pronome “eu”, que busca no carnaval o apagamento da realidade, o momento de alegria.

4.3 O idealista

Em muitas letras, o locutor assume o caráter idealista concretizado pelo ofício de cantar.

Disparada – Geraldo Vandré e Théo de Barros – 1966


(...)
Então não pude seguir, valente lugar tenente
E o dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente

Se você não concordar, não posso me desculpar


Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar.
(...)

Na canção de Geraldo Vandré e Théo de Barros, um clássico dos festivais de MPB, as escolhas lexicais
constroem um ethos consciente da intenção do ethos autoritário do regime militar – tratar o cidadão brasileiro como animal:
gado, marca, tange, ferra, engorda, mata. Identifica-se também a pessoa restrita (determinada pelas desinências verbais) se
dirigindo a cada locutário (você) com a intenção de chamá-lo individualmente à consciência para a reação. O verso iniciado
pela condicional “se você não concordar, não posso me desculpar” colabora para a construção desse ethos, imprimindo um
caráter decidido e seguro de seus ideais, mesmo que a única saída seja ir embora, cantar em outro lugar.
Ventania (de como um homem perdeu seu cavalo e saiu andando)
Geraldo Vandré e Hilton Acioly – 1968
(...)
A canção que eu trago agora
fala de toda a nação.
Andei pelo mundo afora
querendo tanto encontrar
um lugar pra ser contente
onde eu pudesse mudar.
Mas a vida não mudava
mudando só de lugar.
(...)
Nessa canção de Geraldo Vandré e Hilton Acioly, também dos Festivais de MPB, evidencia-se a marca de pessoa
restrita – eu – para identificar um ethos arrependido de ter desistido de seus ideais. A construção dessa trajetória é marcada
pelos tempos verbais e seus aspectos: trago – o presente pontual; andei – o passado pontual; mudava – o passado
durativo, apoiado no gerúndio mudando e no advérbio só, ratificando a duratividade do tempo verbal pretérito imperfeito.

702
Conclusão
Há de se registrar aqui o caráter criativo e profícuo da língua diante da opressão e do sofrimento. O ser humano,
por natureza, sempre utilizou e sempre utilizará recursos para se defender em momentos de conflito e, nesse contexto, a
língua era um poderoso instrumento.
A produção musical dessa época se constitui um valioso material para análise linguística, pois identifica o ethos
discursivo representando o sujeito histórico do contra-poder. Nessa perspectiva, constata-se a importância do
intertexto/interdiscurso na construção desse ethos, já que a linguagem subliminar era um componente essencial para a
“sobrevivência” da intenção discursiva, utilizado com competência pelos compositores.

Referências
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CHARAUDEAU, Patrick. Discurso político. Trad. Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2006, p.
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GASPARI, Elio. As ilusões armadas: a ditadura escancarada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.

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Trad. Lúcia Helena Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2008.
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MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003. MOTTA, Ana Raquel, SALGADO,
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NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular
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rumos, conexões sentidos. Claudio Cesar Henriques e Maria Teresa Gonçalves Pereira (orgs.). São Paulo: Contexto, 2002.

Maria Aparecida Rocha Gouvêa é doutoranda em Língua Portuguesa pela UERJ e mestre em Linguística Aplicada pela
UNITAU. Há 8 anos, é professora de Língua Portuguesa do Centro Universitário de Volta Redonda – UniFOA e, há 24 anos,
da rede pública municipal de Volta Redonda – RJ. E-mail: cidarochagouvea@hotmail.com

703
O discurso jurídico

GUEDES, Rosane Mavignier


(UFRJ)

Introdução
O discurso jurídico sempre esteve em um carrefour de críticas provenientes tanto do ambiente externo ao seu
mundo quanto de seu ambiente interno. Alguns alegam que a complexidade inerente ao texto é oriunda de seu percurso
histórico e que tendo permanecido encerrado em suas tradições tornou-se quase intocável; assim, foram-lhe atribuídas
denominações tais como: juridiquês, jurilinguistique, linguistique juridique. Na busca pela elucidação dessas complexidades,
que vão muito além do léxico, nos serviremos da clé de voûte da análise de discurso de Dominique Maingueneau: o gênero
do discurso, e dos eixos que para ele apontam, da mesma forma que por ele são apontados: o enunciado e a cena da
enunciação.
Por meio dessa concepção de análise de discurso visamos restituir o texto, através de seu modo de enunciação,
aos lugares sociais que o tornaram possíveis e que eles tornam possíveis. A partir dessa análise, entende-se que a
enunciação legitima o espaço de sua própria enunciação, inscrevendo-se em seu universo social. Mas o que leva à escolha
de um ou de outro enunciado é o gênero de discurso, este desempenha papel primordial na análise de discurso, pois um
gênero pressupõe uma cena. Cada gênero de discurso está associado a uma cena, que por sua vez engendra o discurso,
cujo enunciado irá legitimá-la.
Vemos então que não é apenas a cena que define o discurso, é preciso a concomitância com o gênero, dando o
rumo para a interpretação dos enunciados. O quadro cênico é o espaço onde o enunciado ganha sentido, de acordo com o
tipo e o gênero do discurso, visto presumir um contrato específico pelo ritual que define, implicando condições de diferentes
ordens; visto que, a cada gênero associam-se momentos e lugares de enunciação específicos para aquele ritual. Eis porque
Maingueneau ensina que a enunciação se manifesta como dispositivo de legitimação do espaço de sua própria enunciação,
a articulação de um texto e uma maneira de se inscrever no universo social (Maingueneau, 2006, p.40) Assim, é preciso
enquadrar o discurso em seu contexto histórico-social, considerando que o texto e o quadro social da produção e circulação
do discurso são inseparáveis. Sem, contudo, esquecer a estreita ligação que há entre seus eixos de análise.

Tipos e Gêneros Discursivos


A concepção de Análise de Discurso de Maingueneau se diferencia daquelas, até então, apresentadas por outros
linguistas por compreender que em vez de proceder a uma análise linguística do texto em si mesmo, ou a uma análise
sociológica ou psicológica de seu “contexto”, visa restituir o texto, através de seus dispositivos de enunciação, aos lugares
sociais que os tornaram possível e que eles tornam possíveis (Maingueneau, 2009, pp.18-19).
A classificação de tipo ou de gênero do discurso pode estar estabelecida na relação com o aparelho institucional
ou com o posicionamento em um “campo discursivo”, sendo que o tipo de discurso está preso a um setor de atividade da
sociedade, comportando vários gêneros. Pensemos junto com o linguista sobre as nuances que diferenciam tipo e gênero
do discurso, diz ele

704
“Tipo” e “gênero” são duas faces da mesma realidade: um tipo de discurso é constituído de
gêneros, todo gênero se destaca sobre o fundo de um tipo de discurso determinado. Pode-se
igualmente recortar os discursos em função da produção e da circulação de enunciados no âmbito
de instituições singulares (os gêneros do discurso no hospital, no tribunal, etc.) ou se apegar a
posicionamentos ideológicos [...] em um campo discursivo. (MAINGUENEAU, 2006, p.42)

No caso do exemplo citado (os gêneros do discurso no tribunal) fica claro que o discurso do tribunal é um dos
gêneros discursivos de uma categoria maior, a tipologia jurídica.
Um gênero pressupõe uma cena. Cada gênero de discurso está associado a uma cena, que por sua vez engendra
o discurso, cujo enunciado irá legitimá-la, em um caminho de duplo sentido. Esse contexto faz parte de um contrato
estabelecido, no qual o lugar, o momento e o status dos parceiros contribuem para legitimar o ato de comunicação e atingir
a finalidade específica para aquele gênero, pois cada gênero tem sua própria finalidade; como explica o linguista: “A
finalidade é definida respondendo à questão: ‘Nós estamos aqui para dizer ou fazer o quê? ’”(Maingueneau, 2000, p.51).
Dessa forma, os gêneros seguem critérios situacionais, que são as circunstâncias em que se dão os atos de fala,
obedecendo a critérios inerentes a cada um: organização textual, meio, papel, finalidade. Logo, compreendemos que a
noção de gênero está ligada à natureza da situação; esta indica não apenas as condições histórico-sociais como também
os enunciados a serem utilizados. Porém, é bom ressaltar que mesmo dentro de um gênero há nuances que diferenciam o
posicionamento, seja ideológico seja prático, do autor do discurso, como no exemplo citado pelo próprio linguista quando
explica que o sermão, enquanto gênero discursivo, não será o mesmo se feito por um padre católico ou um evangélico. Da
mesma forma, um discurso legislativo seguirá as formalidades dos fins para os quais serve – legislação interna de um
Estado ou ato jurídico internacional (Acordo, Tratado, Convenção) –, tudo depende do posicionamento que ele tem em
relação à matéria a ser tratada, mas, sobretudo, ao seu posicionamento em relação a quem diz ou a quem se destina.
Além disso, a natureza da situação, acima citada, aponta diferenças, são as “atividades verbais conversacionais” e
as “atividades verbais não conversacionais”. Tal diferença está no fato de que enquanto as primeiras são “instáveis”, visto
que se encontram em constante transformação durante o processo de interação; as últimas, são mais estáveis, também
chamadas “gêneros instituídos”. No qual a noção de gênero ganha toda a sua força (Maingueneau, 2009, p. 70), podendo
ser classificado em:
a) Gêneros rotineiros: São aqueles que mantêm um formato mais rígido; neles a estrutura da comunicação é
predeterminada, mas dando margem de movimentação. Neste ritual, há casos em que os participantes do ato de
comunicação interferem, dependendo do grau na escala classificatória.

Os papeis de cada um de seus integrantes são definidos a priori e, em geral, mantêm-se estáveis
durante o processo de comunicação. [...] Esses gêneros rotineiros são os que melhor correspondem à
definição de gênero discursivo como um dispositivo de comunicação social e historicamente
condicionado. [...] Sua existência resulta das práticas sociais. [...] Eles podem ser distribuídos em uma
escala: em um extremo, gêneros que são ritualizados, o que deixa muito pouco espaço de manobras
para os falantes (gêneros judiciários [certidão], por exemplo); na outra, gêneros que abrem
possibilidades para variação pessoal [uma petição]. (Maingueneau, 2006, p.153)

b) Gêneros autorais: neles, o autor (ou editor) impõe unilateralmente a definição do gênero. Dessa forma, o leitor, apesar de
ter alguma margem de autonomia, deverá observar as normas do gênero para alcançar a interpretação satisfatória. No caso
do discurso jurídico, encontramos a literatura jurídica, isto é, a doutrina, que mais tarde veremos classificada como discurso
científico.
Para facilitar a compreensão dessa multiplicidade de gêneros, este trabalho apresenta, abaixo, uma tabela com a
classificação segundo o “regime” e segundo o “grau”.

705
Segundo o « regime »
Gênero Gênero não conversacional ou
Conversacional Gênero instituído
(instáveis) (estáveis)
Consulta Gêneros autorais: resenhas, Gêneros rotineiros:
médica, doutrina, discurso jurídico e
Audiências, Determinação unilateral judiciário, máximas,
Julgamentos negociações comerciais,
com tribuna etc.
Segundo o « grau »
(Maingueneau, 2006, p.155)
Gênero de primeiro grau: seguem modelos consagrados, sem
focalizar a autoria. Ex: listas telefônicas, legislação, máximas...
Gênero de segundo grau: construídos com enunciados próprios
e seguindo normas especificas. Ex: correspondência comercial,
escrituras, certidões...
Gênero de terceiro grau: com certa tolerância para a construção
de uma cenografia diferente, mantém as regras do gênero de
origem. Ex: guia de viagem,
uma defesa escrita, um contrato, uma decisão, um
testamento...
Gênero de quarto grau: sem modificar as estruturas impostas
pelo gênero, é permitido criar cenários de fala diferenciados. O
ato de comunicação depende da forma como é apresentado. Ex:
propagandas
Gênero de quinto grau: o autor dá o rótulo que quiser ao seu
discurso, “meditação, utopia, relatório. Esse rótulo contribui
profundamente para a maneira como tal texto será interpretado”.

Vale ressaltar que essa classificação feita por Maingueneau não é tão rígida, visto que, como assegura o próprio
autor: “gêneros instituídos não formam um conjunto homogêneo” (Maingueneau, 2006, p.154), eles podem se intercalar,
uma vez que um texto pode encontrar-se na interseção de vários gêneros.
Em se tratando do discurso jurídico, partimos da definição de Gérard Cornu que diz ser jurídico todo discurso que
tem por objetivo a criação ou a realização do Direito (Cornu, 2005, p. 207). Para alcançar esse objetivo, é preciso
desencadear a realização de discursos, dando ensejo a um agrupamento de gêneros dentro da tipologia jurídica. Assim,
Eduardo Bittar (Bittar, 2009, p.89) classifica-os em quatro, complementados por um quinto, fruto dos estudos de Cornu,
como veremos.
a) Discurso Normativo: Trata-se de texto normativo, apresentado com uma estrutura orientada, por meio da qual se
realizam coisas. É o discurso do legislador, contendo marcas funcionais e estilísticas que estão incorporadas no teor do
texto da lei e entram no enunciado da regra; porém, nem sempre são explícitas, existem convenções de linguagem
imperceptíveis que determinam a condição invisível de autoridade. Cornu cita como exemplo o presente do indicativo: “Art.
2. La langue de la République est le français”; “Art. 5°. Todos são iguais perante a lei”.
b) Discurso Decisório: É a prática jurídica exercida por órgãos coletivos ou individuais, que expõem os fatos da causa
e o estado do procedimento, seguindo um ritual no qual sua estrutura se fundamenta. Nesta, o gênero de discurso opera
por uma questão (a demanda das partes no processo) e uma resposta (obra do juiz), o juiz incorpora em sua resposta a
questão que lhe foi solicitada. Outras marcas são o tom direto e impessoal, marcas linguísticas da autoridade e da força da
Justiça.

706
c) Discurso Científico: É o discurso da teoria do Direito, é a doutrina. “È científico porque diz respeito à ciência do
Direito, isto é, ao conhecimento aprofundado da matéria. Mas também podemos compreender como a opinião particular de
um ou vários jurisconsultos a respeito de um ponto controvertido de Direito”. As marcas são aquelas utilizadas para
construir a própria imagem dentro dos padrões necessários para ser legitimada. Tal legitimação será finalizada pela outra
parte nesse Contrato de Comunicação, que é o leitor.
d) Discurso Burocrático: É aquele utilizado nas relações jurídicas, fundado na prática institucional e tendo o Estado
como protagonista, mesmo que apenas na condição de “foro” para resolver divergências. Uma de suas marcas é seu
caráter performativo, que aparece desde o momento de sua enunciação, estabelecendo obrigações, criando condições para
produzir efeitos jurídicos.
e) Discurso Consuetudinário: São os adágios ou máximas, portadores de sentenças de grande verdade ou preceito
moral. São enunciações breves, sintetizando uma regra de Direito ou um princípio legal de grande alcance (De Plácido e
Silva, 2009, p.58). É um discurso cujas marcas específicas são: a elipse do artigo e do verbo, a substantivação dos
adjetivos, a frase curta com apenas uma oração, as palavras curtas e de sentido profundo. Tais discursos são usados como
valioso recurso estilístico com o objetivo de ênfase.
Vimos assim que no campo jurídico a classificação dos gêneros discursivos ganha uma dimensão mais ampla,
para compreender com mais exatidão esta diversidade, apresentamos um novo quadro, no qual as novas classificações
serão enquadradas naquelas apresentadas por Maingueneau.

Maingueneau Bittar Cornu Documentos

Gênero Instituído Discurso Discours Législatif Legislação


Rotineiro: Normativo Acordos, Trata-
Primeiro grau dos, Convenções

Gênero Instituído Discurso Decisório Discours Decisões da


Rotineiro: Juridictionnel Justiça:
Terceiro grau sentença acórdão

Gênero Instituído Discurso Científico -------------------------- Doutrina


Autoral
Gênero Instituído Discurso -------------------------- testamentos,
Rotineiro: Burocrático Contratos
Segundo ou
Terceiro grau
Gênero Instituído Discurso Discours Coutumier Adágios ou
Rotineiro: Consuetudinário Máximas
Primeiro grau
DISCURSO
AFORIZANTE
Às classificações de gênero discursivo, já apresentadas, Maingueneau acrescenta o “gênero fechado” e o “gênero
aberto”. Os quais se diferenciam a partir de seu mundo de circulação e de recepção. Os discursos fechados circulam em um
determinado campo para membros do próprio campo, é o exemplo das máximas jurídicas, cuja comunidade cultural e
linguística onde circulam é a mesma. Assim como os discursos que circulam em outras comunidades, científicas ou não, e
que dividem entre si aquilo que Maingueneau nomeia de “código linguageiro”. Reproduzindo suas palavras: “O ‘código
linguageiro’ que mobiliza o discurso é, com efeito, aquele com o qual se pretende que seja enunciado, o único
legítimo junto ao universo de sentido que ele instaura” (Maingueneau, 2006, p.52). Nesses casos existe uma grande

707
facilidade de compreensão, por parte dos receptores, daquilo que é enunciado pelos produtores ou responsáveis em por em
circulação o discurso, pois ambos pertencem à mesma área de conhecimento.
Em oposição, encontramos o “discurso aberto”. Este será direcionado a uma população aberta em quantidade e
em qualidade, isto é, pela “massa”. Como explica Maingueneau, são

os casos de imprensa popular e de discurso político voltados para as massas. A população de


produtores são grupos bastante restritos, com forte identidade, que se dirigem a uma vasta
população de receptores cuja caracterização social é, na maioria das vezes, muito diferente da dos
produtores. (Maingueneau, 2006, p. 160)

Constatamos, então, que cada gênero presume um contrato específico pelo ritual que define, implicando
condições de diferentes ordens. A cada gênero associam-se momentos e lugares de enunciação específicos e um ritual
apropriado.

A Cena da Enunciação
Um discurso implica um enunciador, um co-enunciador, um momento e um lugar, esta cena da enunciação, aliada
ao código linguageiro e ao ethos, irá validar o enunciado. Mas essa descrição não é um conceito congelado, visto que a
cenografia cria, através de sua legitimação, novas e amplas condições para aquilo que anuncia. É importante sublinhar que
não podemos limitar o sentido de cenografia ao de cena. A cena é estática, enquanto a cenografia ultrapassa esse estado,
desempenhando também o papel de movimentar a cena; é um processo. Este pode modificar e/ou construir a legitimação
além dos limites da mesma.
A cenografia cria, através de sua legitimação, novas e amplas condições para aquilo que anuncia, é uma malha
sobre a qual o enunciado atinge novas fronteiras. Maingueneau serve-se do romance L’Étranger de Albert Camus para
exemplificar a cenografia, diz ele:

O leitor encontra-se preso no processo de legitimação progressivo da cenografia, que lhe permite
precisamente enunciar como “estrangeiro”. Quando ele abre esse texto, recebe certa palavra
estranha às cenografias romanescas habituais: frases breves, no passe composé, remetidas a um
“eu” desinvestido. Aqui, o lugar e o momento da enunciação são um limite último: único ‘lugar’ e
único ‘tempo’ à medida dessa voz de estrangeiridade: logo após a morte da mãe, na praia do
assassinato, à espera da execução. A história tem precisamente por função validar essa
cenografia desconcertante, a leitura preenchendo a lacuna assim criada pelo surgimento da
narrativa. (Maingueneau, 2006, p.52)

O exemplo dado pelo próprio linguista nos mostra que a cenografia cria, através de sua legitimação, novas e
amplas condições para aquilo que anuncia, atingindo novas fronteiras.
Maingueneau propõe analisar a questão sob três aspectos; assim, ele divide a “cena da enunciação” em três
cenas distintas:
a) a “cena englobante” que assegura as normas do tipo de discurso – a tipologia;
b) a “cena genérica” que assegura as normas que constituem o gênero do discurso, abrangendo o papel desempenhado
pelos parceiros do ato de comunicação, inclusive o tempo, o espaço e todo o contexto da situação;
c) a “cenografia” que, independentemente do tipo e do gênero do discurso, traça e é instituída pelo próprio discurso.
A cena englobante mais a cena genérica formam o “quadro cênico”, o qual define o espaço estável onde o
enunciado ganhará o sentido da tipologia e do gênero do discurso.

708
A Cena da Enunciação
Quadro Cênico Cenografia
Cena Englobante Cena Genérica É a atuação de seus
atores.
É o tipo de discurso. É o gênero do discurso. Define uma
No caso do texto jurídico No caso do texto jurídico identidade no quadro
significa a tipologia jurídica. significa uma defesa, uma cênico.
sentença, etc. No caso do texto
jurídico pode
significar a atuação
do advogado, do juiz,
do tabelião e dos
outros participantes
do quadro cênico.

Neste contexto, encontramos o código linguageiro e o ethos, ferramentas indispensáveis na legitimação da


cenografia.
O código linguageiro funciona como um código prescritivo. Desta forma, certo uso da linguagem abre as portas
para a sua codificação naquela cena, tornando-se uma terminologia. Ocorre que os textos também se desenvolvem na
interlíngua, seja ela interna (variedades linguísticas de uso sócio-econômico-cultural diferentes) ou externa (interferência do
idioma estrangeiro), jogando com os usos de registro de língua.
O código linguageiro, por sua vez, ajudará na formação do ethos. Nesse sentido, constatamos que em um
discurso verbal, ou seja, em um debate o enunciado também é estabelecido à medida que a outra parte se manifesta.
Essas situações imprevisíveis levam os participantes a recorrer ao ethos para criar credibilidade diante de uma ameaça,
colocando o ethos em primeiro plano na cenografia.
Foi Oswald Ducrot (Ducrot, apud Maingueneau, 2008, p.11) quem assimilou a imagem do ethos ao enunciado. Em
seguida, Maingueneau introduziu tal estudo na Análise de Discurso. Afirma ele: “O ethos emerge por meio da enunciação”.
Por essa perspectiva, o ethos também colabora com o discurso. “É preciso ter em mente que o ethos é uma construção
feita pelo destinatário a partir das indicações dadas pela enunciação. Pode ocorrer que o destinatário não construa o ethos
idealizado pelo seu locutor” (Maingueneau, 2009, p.60).
Verificamos, então, que um discurso implica um enunciador, um co-enunciador, um momento, um lugar e o quadro
cênico. A cenografia que ali se dará, aliada ao código linguageiro e ao ethos, é que irá validar o enunciado do discurso.

O Enunciado
Maingueneau define o enunciado como uma sequência verbal que pertence a um determinado gênero de discurso
(Maingueneau, 2009, p.55). Mas a sequência verbal só ganha status de enunciado quando é contextualizado, quando é
situado no tempo e no espaço por um sujeito que se dirige com certa intenção para um ou diversos sujeitos (Maingueneau,
2000, p.6). Certamente, compreender o sentido de um enunciado fora de seu contexto é inconcebível, para alcançar esse
objetivo é preciso contextualizá-lo, e, a partir de então, desencadear um processo de inferência.
Nesse processo, o olhar recai sobre o outro eixo dessa composição: a cena da enunciação, e para o encontro de
todos: o gênero do discurso. Como a cena da enunciação transporta informações primordiais para interpretar um enunciado,
que são as marcas linguísticas, o contexto linguístico e extralinguístico, compreende-se, na sequência desse raciocínio, que
mais importante que o enunciado é a enunciação, na qual estão inseridas as pessoas, o momento, o lugar, a situação, ou

709
seja, representa o contexto extralinguístico do enunciado, o que Maingueneau chama de “mundo”, como podemos verificar
por suas palavras: “A enunciação constitui o pivô da relação entre a língua e o mundo: ela permite representar certos fatos
no enunciado, mas ela própria constitui um fato, um evento único definido no tempo e no espaço” (Maingueneau, 2009,
p.57).
Ainda sob o prisma do contexto extralinguístico, observamos como o enunciado pode apontar situações
paratextuais que explicam a sua condição, para exemplificar podemos utilizar uma passagem do discurso jurídico
legislativo:
– “Décret n° 2000-940 du ......, portant publication de la convention d’entraide judiciaire entre...”
– “Decreto n° 3.598, de ............
Promulga o Acordo de Cooperação em Matéria Civil entre...”
Pelo exemplo dado fica nítido que o enunciado faz parte de um ato legislativo publicado no Diário Oficial ou no
Journal Officiel (visto que a outra língua é o francês), mas para tanto é preciso fazer intervir o conhecimento dos costumes
de nossa sociedade (Maingueneau, 2000, p.7). Trata-se dos conhecimentos de mundo em um contexto extralinguístico.
Estes, muitas vezes, podem nos conduzir ao “interdiscurso”, a um imenso conjunto de outros discursos que vêm dar
sustentação ao enunciado. Verifiquemos
– “Le Président de La République,[...]
Vu les articles 52 à 55 de la Constitution;
Vu la loi n° 99-979 du...
Vu le décret n° 53-192 du...”
– “O Presidente da Republica, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição,
Considerando que [...] por meio do Decreto Legislativo n° 163, de...;
Considerando que o Acordo [...], nos termos do seu Art. 27, ...”
São informações de outros discursos necessárias à compreensão do enunciado em leitura.
Entretanto, a amarração do texto também depende de outras marcas linguísticas, são os dêiticos, ou embrayeurs.
Como explica Maingueneau:

A maioria dos enunciados possuem marcas que os fixam diretamente na situação de enunciação:
[...] a desinência de tempo dos verbos, o ‘je’ o ‘tu’ só são interpretáveis se soubermos a quem,
onde e quando o enunciado foi dito. [...] O demonstrativo também possui um valor dêitico.
(Maingueneau, 2010, p. 10-11)

Porém, temos também os enunciados non embrayés. Maingueneau explica que essa désembrayage é frequente
em certos gêneros textuais, tais como os textos científicos, onde as generalizações são enunciados cortados da situação de
enunciação. Também é o caso de aforismos, os quais sendo textos curtos e de ordem filosófica parece que se fecham neles
mesmos, assim temos
– “Dura lex sed Lex”, “In dubio pro reo”.
Eis a explicação dos enunciados non embrayés e dos enunciados embrayés, que funcionam através dos
embrayeurs, os quais têm a função de amarrar o “enunciado” a “situação de enunciação”. A esta operação dá-se o nome de
“embrayage”. Também são chamados de dêiticos, como explica Fiorin: “Os dêiticos são elementos que indicam o lugar ou o
tempo em que um enunciado é produzido ou então os participantes de uma situação de produção do enunciado. [...] Um
dêitico só pode ser entendido dentro da situação de comunicação”. E completa: “[...] não adianta só o conhecimento do
sistema linguístico, pois o que é preciso para entendê-los é conhecer a situação de uso” (Fiorin, 2005, pp. 161-162).

710
Constatamos, então, a estreita ligação entre os enunciados e os gêneros do discurso; pois, como explica
Maingueneau, não é possível interpretar um enunciado sem saber a que gênero ele se reporta.

Conclusão
Quando Maingueneau declarou: “sabendo que um discurso é uma estrutura transfrásica, orientada, ativa e
interativa, todos os corpus são possíveis. A disciplina se define por seu corpus, pelo objeto que ela se dá para estudo”, ele
abriu o caminho da análise de discurso na direção de todos os setores da sociedade.
Nesta conjuntura, encontramos o discurso jurídico, cuja maior peculiaridade é a juridicidade, sem a qual ele não
estará legitimado, logo não produzirá efeito. Para estudá-lo nos servimos da proposta enunciativa que configura o caráter
jurídico do discurso em todos seus gêneros, à luz da concepção de Maingueneau.
Por fim, concluímos que a cena enunciativa é um cenário, como se fosse o palco de um teatro, onde se
apresentam seus atores – enunciador e co-enunciador – cuja comunicação é feita por enunciados orientados pela peça
chave: o gênero discursivo.

Referências

BITTAR, Eduardo C. B. Linguagem Jurídica.4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. DAI – Divisão de Atos Internacionais. Disponível em: http://www2.mre.gov.br/dai/b_fran_155_3598.htm. Acesso


em: 25/03/2010.

CORNU, Gérard. Linguistique Juridique. 3ª ed. Paris: Montchrestien, 2005.

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“Discurso Aforizante”. Consulta eletrônica realizada em 05/09/2010, disponível em


http://www.abralin.org/abralin2007/resumo/maingueneau.pdf.

FIORIN, José Luiz, (Org.). Pragmática. In: Introdução à Linguística. II. Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2005.

FRANÇA. Legifrance – Service Public de la diffusion du Droit. Disponível em:


http://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte,do?cidTexte=JORFTEXT000000766813&dateTexte= Acesso em 25/03/2010.

MAINGUENEAU, Dominique. Analyser les textes de communication. Paris: Nathan/HER, 2000.

-----------------------------------------. A Propósito do Ethos. In: Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2008.

-----------------------------------------. Les termes clés de l’analyse du discours. Nouvelle édition recue et augmentée. Paris: Seuil,
2009.

---------------------------------------. Discursos Constituintes. Tradução de Nelson Barros da Costa. In: Cenas da Enunciação..
Organização de Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola, 2006.

Currículo:
Diplomada em Direito (UERJ), após curso da Aliança Francesa e extensão com o curso de Nancy: civilização, literatura e
tradução, concluiu Especialização em Tradução-Francês (UERJ) com a monografia: Desafios da Tradução Jurídica.
Atualmente, enquanto mestranda em Estudos Linguísticos/Francês (UFRJ), desenvolve pesquisa sobre a tradução do texto
jurídico a partir da A. D.
e-mail: rosane.m.g@terra.com.br

711
Transcendendo os limites de gênero: de carta pessoal a
manifesto público

HABIB, Paulo Paulinelli


(CEFET-MG)

1 Introdução
Neste trabalho, propomos uma discussão a respeito da mobilidade do gênero textual “carta” para o gênero
“manifesto público”, tomando como parâmetro de análise uma epístola de protesto escrita pelo advogado Heráclito Fontoura
Sobral Pinto ao Presidente da República Arthur da Costa e Silva, no ano de 1968, auge do regime militar. O protesto de
Sobral Pinto direciona-se no sentido de se contrapor à edição do Ato Institucional nº. 5 e de seus efeitos funestos sobre a
democracia do país. Tal carta foi escrita em 21 de dezembro de 1968, quatro dias depois de uma represália executada por
parte do governo de Costa e Silva sobre a pessoa de Sobral Pinto e oito dias depois da publicação do AI-5.
Inicialmente, é importante observar que essa mobilidade está relacionada ao jogo enunciativo do explícito/implícito
e à articulação dos ethé em dois níveis enunciativos. Assim, as imagens constituídas pelo enunciador e a ampliação
gradativa da interlocução fazem com que a carta em estudo supere os limites do gênero textual “epístola” e adquira
contornos de um verdadeiro manifesto público. Constatamos, dessa forma, que essa mobilidade não é gratuita e nem
mesmo ocasional. Na verdade, é um instrumento capaz de garantir, estrategicamente, a proteção da face de seu autor.
Dessa forma, aquilo que, inicial e aparentemente, se apresenta como uma carta pessoal de protesto de um
advogado ao Presidente da República, adquire a forma de um documento de dimensões mais amplas que uma simples
carta. A extensão desse documento é percebida quando analisada de um ponto de vista que vai além dos limites dos
enunciados – o da enunciação – que leva em consideração não somente as informações contidas nos enunciados, mas o
contexto geral no qual o texto se insere. Nesse sentido, parece-nos que os limites desse documento particular se estendem
para amparar a estratégia de constituição das imagens e de suas respectivas interlocuções no projeto argumentativo do
enunciador.
Partindo da hipótese de que o gênero carta, visto em sua propriedade de servir de “base social de gêneros
(textuais) diferenciados”, é instrumento hábil para possibilitar a transcendência de um gênero para outro com a intenção de
incremento argumentativo segundo o evento enunciativo em questão, tomamos como fundamentação teórica para a análise
de nosso corpus os estudos de Bazerman (2006) e Silva (2002), dentre outros.

2 A carta particular de protesto


Considerando o contexto sociopolítico em que a carta foi escrita, identificamos, já de início, um certo grau de
coragem e ousadia de um remetente que ocupa uma posição político-social inferior e vulnerável perante seu destinatário,
que tem a seu dispor uma máquina repressora de qualquer ato de afronta de quem quer que atravesse seu caminho.
Neste nível surge o que consideramos uma “carta particular de protesto” contra a supressão dos direitos
democráticos de justiça e liberdade dos cidadãos do país e das garantias do Poder Judiciário. A intenção interlocutiva do
enunciador, levando em conta as evidências formais do texto, revela que se trata de uma carta pessoal de um cidadão
insatisfeito, destinada ao seu presidente, na qual se configuram protestos daquele contra um estado de coisas instaurado

712
pela ditadura militar governada por este. O texto contém todos os elementos estruturais de uma carta convencional
(vocativo, saudação, desenvolvimento do texto, fecho formal, assinatura, local e data). Vejamos:
- Vocativo: Exmo. Sr. Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva (cf. Anexo);
- Saudação: Cumprimentos devidos à sua alta dignidade e, também, à sua ilustre pessoa. (cf. Anexo);
- Texto: Li, em Goiânia, o ATO INSTITUCIONAL N. 5, [...] estou unicamente a cumprir dever inerente à minha
condição de membro da Família Humana. (cf. Anexo);
- Fecho: Queira receber, Sr. Presidente, as homenagens leais e sinceras do seu modesto concidadão e humilde
servidor. (cf. Anexo);
- Assinatura: H. Sobral Pinto (cf. Anexo);
- Local: Rio de Janeiro (cf. Anexo);
- Data: 21 de dezembro de 1968 (cf. Anexo).
Esses elementos formais são tipicamente reconhecidos como componentes de uma carta convencional. Isso
contribui para que o texto do autor seja reconhecido, imediatamente, como uma carta pelo seu destinatário (ou quem quer
que a leia), e a sua ação de nela elaborar um protesto será admitida como o conteúdo da mesma e, então, as
circunstâncias tipificadas certificarão a ocorrência de um gênero: carta particular de protesto. Bazerman (2005, p. 29) diz a
esse respeito que “a tipificação dá uma certa forma e significado às circunstâncias e direciona os tipos de ação que
acontecerão”.
A carta pessoal, em um contexto repressivo como o que envolveu a elaboração do texto em análise, revela-se
uma estratégia de gênero adequada para que o registro de uma manifestação de protesto (inicialmente particular) fosse
ouvida sem muita represália ou alarde, já que ela, por revelar uma comunicação direta com o destinatário, não pode
configurar uma ação de traição e, pelo seu conteúdo declarado, revela um protesto, mas sem intenção subversiva, como
revela o fragmento discursivo: “Jamais conspirei e jamais conspirarei”.
Outra característica pode ser somada à compreensão desse gênero, até aqui tipificado como “carta de protesto”: o
atributo da pessoalidade. Por certos elementos linguísticos declarados, o texto revela tratar-se, aparentemente, de uma
carta pessoal, na qual seu remetente procura, diretamente, interagir com o seu destinatário imediato. Isso se revela nas
várias marcas de seus atos alocutivos1 registrados ao longo de seu texto. Seguem alguns exemplos:

Exmo. Sr. Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva (cf. Anexo, grifo nosso)

...porque V. Exa. não é o representante dela. A sua qualidade de Chefe de Estado... (cf. Anexo, grifos
nossos)

O mesmo já não acontece, porém, com a sua posição de Presidente da República. Nessa qualidade, V.
Exa., baixando o ATO INSTITUCIONAL N. 5, falhou... (cf. Anexo, grifos nossos)

Com efeito, atente V. Exa., com serenidade e isenção de espírito, para o que fez com o referido ATO
INSTITUCIONAL N. 5... (cf. Anexo, grifos nossos)

É evidente, Sr. Presidente, (cf. Anexo, grifo nosso)

Reflita, Sr. Presidente (cf. Anexo, grifo nosso)

1 Marcas que revelam a presença de um alocutário, isto é, de uma segunda pessoa do discurso, ou do interlocutor.

713
Essas marcas dos atos alocutivos revelam uma aparente intenção de interlocução direta com o destinatário da
carta, tornando o seu ato até então pessoal e particular. Essas marcas, somadas aos elementos estruturais da carta, são
formas de tipificar os atos de fala de um cidadão que executa um protesto ao seu presidente por meio do formato do gênero
“carta”. Assim postula Bazerman a respeito da identificação de gêneros:

Uma maneira de coordenar melhor nossos atos de fala uns com os outros é agir de modo típico, modos
facilmente reconhecidos como realizadores de determinados atos em determinadas circunstâncias. [...]
Se começamos a seguir padrões comunicativos com os quais as outras pessoas estão familiarizadas,
elas podem reconhecer mais facilmente o que estamos dizendo e o que pretendemos realizar. Assim,
podemos antecipar melhor quais serão as reações das pessoas se seguimos essas formas
padronizadas e reconhecíveis. (BAZERMAN, 2005, p. 29)

É por meio dos atos tipicamente reconhecidos naquelas circunstâncias específicas de comunicação, em que se
configuram as insatisfações de um cidadão que se dirige a seu presidente, que o autor do texto faz emergir a sua carta
pessoal de protesto. Segundo Silva (2002, p. 80), “a carta pessoal é uma produção de linguagem, socialmente situada, que
engendra uma forma de interação particular”.
A forma de interação pretendida pelo autor da carta na sua intenção de interlocução com Costa e Silva configura
uma comunicação particular, na medida em que o autor se locomove dentro dos limites de uma carta pessoal de protesto, a
fim de, com sua estratégia argumentativa, fazer emergir um protesto tal que, aparentemente e inicialmente, não pretende
configurar-se como um manifesto público e muito menos uma manifestação subversiva e conspiradora e é por isso que,
neste nível enunciativo, seu discurso parece tender para uma imparcialidade que sugere revelar uma neutralidade de sua
posição política, essa visão pode ser observada no fragmento discursivo seguinte:

É incrível que preso abusiva e ilegalmente em Goiânia, por ordem de autoridades militares, em vez de
ser liberado com pedido de desculpas, pela lesão ao meu direito, autoridades superiores do Exército
ordenam a oficiais superiores que me perguntem qual a minha posição cívica neste momento. Fui e
sou advogado, nunca conspirei, rebelo-me contra esta pretensão, que fere a minha dignidade pessoal
e os direitos da minha cidadania. (cf. Anexo)

O enunciador parece, neste nível, inofensivamente, postular uma consciência de seu destinatário à situação de
injustiça e opressão que imperava no país por meio do governo deste último. Essa postura assumida por ele, apesar da
ousadia de seus argumentos e acusações, parece possuir um caráter de ingenuidade e até mesmo de insensatez, já que
executava seu projeto de protestar num momento altamente hostil a manifestações. Porém, o caráter de inocuidade dessa
interlocução é rompido justamente quando a intenção de interlocução é redirecionada a outro tipo de público. A partir desse
momento, o enunciador passa a articular outro tipo de interação e, por conseguinte, precisará de outro gênero textual que
sustente esse novo discurso.
Com a revelação da intenção de publicação de seu texto (encontrada no final da carta), o seu auditório se
expande para além do destinatário formal e aquele gênero “carta particular de protesto” não pode mais suster as dimensões
desse novo propósito de interlocução, que irá postular novas atribuições de sentido às suas argumentações. Nesse
momento, tem lugar a transmutação de um gênero a outro.

3 O manifesto público de Sobral Pinto


Em um outro nível de interlocução, no plano global dos enunciados do texto, consideramos dois elementos
essenciais para a nossa análise revelados pelo contexto enunciativo da carta. O primeiro se revela pelo fato de que se trata
de uma carta para a qual, provavelmente, não se espera uma resposta formal, devido às circunstâncias sociopolíticas já
mencionadas. Isso faz com que a função enunciativa do texto, nesta perspectiva, passe a contrariar a sua aparência

714
material e formal de carta pessoal. O segundo elemento, o mais relevante para esta situação de enunciação, é o fato de que
a carta foi produzida com o intuito de ser publicada, o que faz deslocar a encenação interlocutiva com o presidente.
Com isso, percebemos que o alvo a ser atingido é outro além de seu destinatário formal (Costa e Silva) e que sua
atitude de protesto particularizado aparentemente ingênua e imparcial toma as proporções de uma manifestação de protesto
público que visa à adesão de um auditório especial: uma sociedade civil conservadora. O gênero, nesta perspectiva, passa
a figurar então como uma carta aberta com as características de um manifesto, que atenderia aos anseios de um povo
oprimido, para a qual certamente não haveria uma resposta particularizada e sim uma possível adesão ou não de um
público às suas propostas. As palavras de Silva esclarecem bem esses dois planos dos gêneros epistolares:

Diferentemente da carta pessoal, a maioria dos eventos comunicativos dos gêneros epistolares da
esfera pública [...] opera com uma dinâmica interlocutiva cujo fluxo tende a veicular no sentido de mão
única: do remetente para o destinatário. Em princípio, a possibilidade ou não da inversão dos papéis
comunicativos – ora remetente, ora destinatário -, prevista nos eventos desses gêneros, pode se definir
ora como circunstancial, ora como inexistente. (SILVA, 2002, p. 68)

Nessa dimensão discursiva em que se vê tal texto com o atributo da publicidade, surge uma nova situação de
comunicação, acrescenta-se um novo tipo de interlocutor, bem diferente daquele particular. Agora o auditório se diversifica
em dois tipos de público: Costa e Silva e a sociedade civil, inclusive um setor especializado desta: os Magistrados. É em
função dessa sociedade que o enunciador elabora todo o seu projeto de persuasão, já que o primeiro (Costa e Silva)
representa um alvo reconhecidamente inatingível pelas intransigências de seu governo, e as possibilidades de ser ouvido
são praticamente nulas. Não há acordo prévio com um regime ditatorial, que se caracteriza pela agressão aos preceitos
democráticos, supressão de direitos constitucionais, acirrada censura, perseguição política e repressão aos que se opõem a
esse sistema.
Baseado nesse dado contextual da carta, vemos que com um destinatário público o propósito de seu remetente é
alterado, alterando-se assim todo o rumo da enunciação e, conseqüentemente, altera-se também a função social do texto,
modificando-se então o modo de encarar o gênero textual, que configura a expressão organizada das atividades sociais
inseridas em situações interacionais específicas, o que dará outro sentido às palavras de seu enunciador, pois para
Bazerman:
Podemos chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros se os compreendermos como
fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de processos de atividades socialmente
organizadas. Gêneros são tão-somente os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados por
elas próprias e pelos outros. Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos
sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas os
realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às
outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significado com vistas a seus
propósitos práticos. (BAZERMAN, 2005, p. 31)

Segundo Silva (2002), em consonância com Halliday (1989), as cartas desempenham dois tipos gerais de funções
discursivas: a função ideacional, que abrange a proposicional e a informacional, e a função lógica, que corresponde à
argumentativa. Essas funções abordam as mais diversas atividades comunicativas, como informar, orientar, normatizar,
controlar, fazer saber, fazer conhecer, fazer agir etc. Assim, não se descarta, como é o caso das características mais
especificamente das cartas abertas, a finalidade de opinar, convencer e persuadir (função lógica, argumentativa) um público
delineado e idealizado de acordo com o seu espaço social de circulação.
Apesar de ser amplo o poder de circulação da carta aberta, na origem de sua produção, geralmente há um público
bem definido para o qual ela se direciona. É característico deste gênero o seu propósito de tornar público algum fato com o
objetivo de promover ou depreciar pessoa pública, situação política ou social, um serviço de uma empresa, de um órgão

715
governamental ou não. Silva (2002, p. 56) afirma que “a carta aberta pode atuar com o fim de justificar um dado episódio
que pretensamente possa manchar a imagem de uma organização social, uma pessoa pública e uma categoria social e
assim por diante”.
As condições sociopolíticas que cercam esta carta sinalizam para o fato de que a enunciação postulará outra
dimensão discursiva para que seu enunciador alcance seu objetivo maior: “falar” a um público mais amplo, exigindo assim
um novo gênero que sustente as exigências desta nova interlocução. Usar a carta para esta estratégia de
redimensionamento discursivo é conveniente, pois é da essência deste gênero textual servir de base para amparar novas
práticas comunicativas requeridas pelas situações sociais do evento interlocutivo.
É nesse novo evento discursivo gerado pela intenção de um pronunciamento público que se efetiva a intenção
persuasiva do texto. A partir do momento em que este se torna uma carta aberta à sociedade, ele passa a sugerir os
contornos, mais especificamente, de um manifesto.
Fazendo alguns ajustes de ordem prática para, analogicamente, nos remetermos à idéia de que o texto em
questão passa a adquirir a função social de manifesto, destacaremos alguns elementos essenciais característicos deste
gênero e os lançaremos aos seus correspondentes na carta. Inicialmente, destacamos que as situações que exigem, num
contexto sociopolítico, a produção do gênero manifesto se dá “quando uma pessoa ou um grupo de pessoas deseja chamar
a atenção da população, denunciando um problema de interesse geral ou alertando para um problema que está prestes a
ocorrer” (PRADO, 2004). Podemos observar que essas circunstâncias se ajustam adequadamente ao contexto enunciativo
de nosso corpus.
Em seguida, ressaltamos que um manifesto não possui uma estrutura formal rígida, o que faz com que
consideremos que nada obsta a que esse gênero surja na estrutura de uma carta convencional, já que, como foi dito
anteriormente por Silva (2002), apoiando-se em Halliday, as epístolas, em sua função lógica (argumentativa), podem servir
de lugar em que se argumenta para interpelar, denunciar, alertar e ainda opinar, convencer e persuadir um determinado
auditório (seus destinatários).
Estruturalmente, o manifesto deve conter alguns elementos essenciais, não obstante sua estrutura menos rígida, a
saber: “um título, capaz de chamar a atenção do público e ao mesmo tempo informar de que trata o texto; a identificação do
problema; a análise do problema e argumentos; local e data; e, por fim, as assinaturas dos autores do manifesto ou
simpatizantes da causa” (PRADO, 2004).
Quase todos esses dados podem ser detectados no texto de nosso corpus com algumas adaptações de ordem
prática, que não comprometem as suas funções, observando as exigências das circunstâncias. Como, por exemplo, a
exposição formal de um título deixando transparecer a evidência de tratar-se explicitamente de um manifesto não seria
conveniente, dadas as circunstâncias opressoras da censura. Seria uma exposição arriscada e descartaria todos os
atributos de flexibilidade e mobilidade proporcionados pelo gênero carta, que possibilita a ocorrência de um protesto sem as
proporções explícitas de um manifesto.
Não há um título formal encabeçando o texto, sugerindo o manifesto, porém, depois dos elementos estruturais do
início da carta (o vocativo e os cumprimentos), surge o primeiro parágrafo do seu texto em que se podem detectar os dois
primeiros dados característicos do gênero manifesto (um título, capaz de chamar a atenção do público e ao mesmo tempo
informar de que trata o texto; a identificação do problema):
Li, em Goiânia, o ATO INSTITUCIONAL N. 5, que V. Exa., substituindo-se indevidamente ao povo
brasileiro, que não conferiu ao Chefe do Estado brasileiro poder constituinte, baixou para tirar as
garantias do Poder Judiciário, proibir a concessão de hábeas corpus e tornar possível a subtração da
liberdade de toda e qualquer pessoa que resida no território nacional, brasileira e estrangeira. (cf.
Anexo, p. 174)

716
Neste primeiro parágrafo do corpo da carta, vê-se em caixa alta a expressão ATO INSTITUCIONAL N. 5, que
assume a função de chamar a atenção do público e, ao mesmo tempo, juntamente com os enunciados seguintes, informar
de que trata o texto (um protesto contra os efeitos desse ATO), e então identifica o problema (os efeitos funestos do ATO
sobre o Poder Judiciário, órgão responsável pela manutenção e promoção da Justiça e sobre os direitos fundamentais do
cidadão). A análise do problema e os argumentos seguem nos parágrafos seguintes, em que o enunciador estabelece as
suas estratégias argumentativas, nas quais a constituição de imagens de si legitimadas tem lugar de destaque. Os dados
subseqüentes (local e data) situam-se normalmente em seus lugares adequados.
Quanto à assinatura do autor também se segue em local regular. Entretanto, as assinaturas dos simpatizantes da
causa não se procedem explicitamente, provavelmente devido às condições opressoras que a ditadura impunha sobre os
direitos democráticos e a liberdade dos cidadãos brasileiros. Considerando essas condições, essas adesões à causa do
documento em questão poderiam processar-se como um elemento tácito, que assumiria uma condição de existência no
âmbito dos espíritos e do moral daqueles que comungavam dos seus ideais. Essas “assinaturas tácitas” tornam-se uma
possível conseqüência ou resposta aos efeitos perlocucionários dos atos de fala contidos no manifesto, provocados pelas
ações discursivas (os atos ilocucionários) realizadas por meio de seus enunciados, as quais decorrem do desempenho
performativo (a realização da manifestação pública do protesto) advindo da relação ente o enunciador e o seu enunciado
em função de seu interlocutor almejado. Esse processo balizará o grau de persuasão do discurso do texto em foco.

4 Considerações finais
Para finalizar a discussão a respeito do conceito de gênero textual aplicado ao texto de nossa análise,
ressaltamos a relevância de encararmos esse conceito com uma abordagem não rígida e restrita aos aspectos formais
convencionalmente tipificados nos textos.
Percebemos que a situação sociopolítica em que se encontra o produtor da carta impõe-lhe executar manobras
em sua atividade discursiva, levando-o a estabelecer uma escala de intenções interlocutivas, as quais são as responsáveis
por dar formas à transmissão de sua mensagem. Tais formas balizam o gênero adequado a cada tipo de interlocução.
A História sempre registrou a presença das cartas, atuando como veículo de deflagração de sentimento e de
organização de rebeldes em ocasiões de revoluções sociais, de situações políticas críticas de insatisfações civis e de outras
insurreições sociais.
Bazerman parece confirmar a nossa proposta de considerar o texto em questão como um possível desenho de um
manifesto por parte de seu autor quando afirma:

A criação de cada autor de um texto num gênero identificável é tão individual em suas características
que o gênero não parece fornecer meios adequados e fixos para descrever a realização individual de
cada texto sem empobrecimento. Tentativas de reforçar a uniformidade de gênero têm sido vistas
sempre como restrições à criatividade e à expressão. (BAZERMAN, 2005 p. 49)

Com esta colocação concluímos que o autor da carta que constitui o nosso corpus, com suas articulações e
estratégias, cria da sua forma, com destreza e segundo suas necessidades, um segundo gênero, que surge (a partir do
enunciado que expressa a sua publicidade) sem uma uniformidade definida ou sem as marcas prototípicas convencionais
que desenham especificamente um manifesto. Entretanto, nestas condições, podemos nos valer da afirmação de
Bazerman, ainda que seja a respeito de gêneros de textos literários:

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...uma explicação de gênero como uma série de categorias culturalmente salientes e sempre em
mudança, que moldam os espaços da atividade literária em qualquer época e lugar. Os gêneros são o
que as pessoas reconhecem como gêneros em qualquer momento do tempo. [...] Ou ainda, as pessoas
podem reconhecer gêneros através da organização implícita de práticas dentro de formas
padronizadas de interação letrada. (BAZERMAN, 2005, p. 49)

Por fim, nosso estudo sobre gêneros leva-nos a considerar que as possíveis situações comunicativas, produzidas
pelas intenções de interlocução (Costa e Silva, sociedade civil e os futuros Magistrados do STF) do autor da carta, geram
relações sociais distintas no momento em que o texto alcança cada destinatário específico. Em conseqüência disso: deste
mesmo texto os tipos de gênero, por nós considerados, emergem conforme a natureza das interações (particular e pública)
promovidas por essas relações sociais pretendidas pelo enunciador.
Os gêneros (a carta e o manifesto) originados do texto em questão constituem, cada um no seu lugar de
interlocução, fatos sociais dentro de sua situação de interação específica (um protesto particularizado e uma manifestação
de protesto público). Esses fatos sociais se realizam na medida em que o auditório pressuposto para cada tipo de
interlocução passa a encarar cada gênero como um componente vivo dentro de uma realidade de atividades sociais em que
ele se insere e atua com suas funções características.

Referências
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ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005.

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BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, tipificação e interação. São Paulo: Cortez, 2005

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Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

PRADO, Salete Soares. 2004 Gêneros textuais – O manifesto. Disponível em: http://salinhas.blogspot.com. Acesso em 06
jun. 2006.

SILVA, Jane Quintiliano Guimarães. Um estudo sobre o gênero carta pessoal: das práticas comunicativas aos indícios de
interatividade na escrita de textos. 2002. 209 f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Lingüísticos) – Faculdade de Letras,
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2002.

Currículo do autor
Paulo Paulinelli Habib é Professor de Língua Portuguesa do CEFET-MG. Mestre em Linguística pela UFMG,
desenvolve suas pesquisas, atualmente, na área da Análise do Discurso, com interesse especial pelos estudos da
argumentação e da construção das imagens de si no discurso. E-mail para contato: pphabib@superig.com.br.

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ANEXO - TEXTO DA CARTA DE SOBRAL PINTO A COSTA E SILVA

Exmo. Sr. Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva


Cumprimentos devidos à sua alta dignidade e, também, à sua ilustre pessoa.
Li, em Goiânia, o ATO INSTITUCIONAL N. 5, que V. Exa., substituindo-se indevidamente ao
povo brasileiro, que não conferiu ao Chefe do Estado brasileiro poder constituinte, baixou para tirar as
garantias do Poder Judiciário, proibir a concessão de hábeas corpus e tornar possível a subtração da
liberdade de toda e qualquer pessoa que resida no território nacional, brasileira e estrangeira.
Fui, sou e serei homem do Direito, da Lei, da Justiça e da Ordem. Jamais conspirei e jamais
conspirarei. Lutarei, porém, pela palavra, verdadeira, enérgica e vibrante, contra a opressão que
desceu sobre a minha Pátria. Palavra franca, leal, desinteressada, que não quer poder, posição e
qualquer dignidade, administrativa e eletiva. Quero apenas Ordem Jurídica decente, digna e
respeitadora da dignidade da pessoa humana, da liberdade individual e das liberdades públicas,
princípios estes que estão varridos, presentemente, da minha Pátria e da Pátria de V. Exa.
A função principal da família e do Governo em todo e qualquer país é formar o caráter de
seus membros e de seus cidadãos, respectivamente. Os pais, antes de qualquer dever, têm a
obrigação de atuar sobre os seus filhos de modo a que cada um deles seja um homem de caráter. E
para que alguém demonstre, no seio de sua Família, que tem caráter, é indispensável que atue de
acordo com a convicção que seus pais introduziram no seu espírito, convicção que, para ser
respeitada, tem de ser a expressão do amor, do bem e da disposição de sofrer todas as sanções, até
mesmo a da morte, para manter íntegros os postulados da referida convicção. O Governo, por sua
vez, para que se desobrigue do seu árduo e difícil encargo de dotar cada cidadão com a qualidade de
caráter, tem o dever de baixar leis e criar institutos que sejam uma muralha de defesa intransigente
do princípio da dignidade da pessoa humana, da intangibilidade da liberdade individual e do
resguardo total das liberdades públicas. Se a Família e o Governo não procederem desta maneira,
terão falhado completamente à sua missão e terão traído, diante de Deus e dos homens, à sua
superior finalidade.
O que a Família brasileira tem feito para atingir a sua alta finalidade não quero dizer neste
instante, porque V. Exa. não é o representante dela. A sua qualidade de Chefe de Estado não
acarreta para V. Exa. nenhuma responsabilidade a respeito da conduta da Família brasileira.
O mesmo já não acontece, porém, com a sua posição de Presidente da República. Nessa
qualidade, V. Exa., baixando o ATO INSTITUCIONAL N. 5, falhou inteiramente à sua missão e traiu
de maneira indiscutível a finalidade de Governante do País. Com efeito, atente V. Exa., com
serenidade e isenção de espírito, para o que fez com o referido ATO INSTITUCIONAL N. 5: V. Exa.
suprimiu, com a liberdade de opinião, também a garantia da Magistratura brasileira. Pouco importa
que um cidadão seja honrado, decente e leal. Se ele cair no desagrado dos governantes atuais,
porque lhes disse a verdade a que estava obrigado, poderá ir imediatamente para o cárcere, sem que
lhe reste meio e modo de readquirir a sua liberdade. Nenhum brasileiro, neste instante, pode revelar-
se homem de caráter. Esta revelação provocará nos militares que ocupam o Governo do país a
vontade de subtrair a sua liberdade, separando-o da sua família e da sua profissão.
Por outro lado, os Magistrados perderam, pelo ATO INSTITUCIONAL N. 5, todas as suas
garantias, o que lhes impedirá de dar qualquer garantia aos seus concidadãos, lesados nos seus
direitos fundamentais. O Magistrado que assiste à prisão de um concidadão decente e digno ficará
diante deste dilema, quando provocado por um requerimento deste cidadão que não aceita, em
silêncio, subtração injusta da sua liberdade: ou obedece às imposições da sua consciência,
declarando que a prisão é injusta, mas que não a pode anular, pela suspensão da medida do hábeas
corpus e, neste caso, será demitido ou aposentado ou, para não perder o lugar que conquistou por
concurso ou por suas virtudes excepcionais de cultura e honradez, terá de cruzar os braços diante da
injustiça a que está assistindo.
É evidente, Sr. Presidente, que o ATO INSTITUCIONAL N. 5, com as determinações nele
contidas, é um Ato governamental que desmoraliza e quebra o caráter do homem brasileiro,
principalmente o dos Magistrados. Se este Ato permanecer no nosso Direito, ninguém, nesta
amargurada Pátria, ousará contrariar a deliberação e a vontade dos militares das nossas forças
armadas e as de V. Exa., porque estará, com a sua resistência, abrindo o caminho que o levará para
o cárcere, sem que a Magistratura possa restituir-lhe a liberdade.
O amor que tenho a este País, de que é testemunho toda a minha vida, leva-me a dizer ao
Chefe de Estado, que assinou e promulgou o ATO INSTITUCIONAL N. 5, que se V. Exa. tirar do
Supremo Tribunal Federal os Ministros que, até agora, honraram, pela sua bravura e pela sua
independência, esta instituição, terá firmado o atestado de óbito do Poder Judiciário do Brasil, porque
terá estabelecido que a condição para ficar como juiz do mais alto Tribunal do país ou para ser

719
investido nesta superior Dignidade será a de colocar a sua inteligência, a sua cultura e a sua vontade
ao serviço dos militares, e, principalmente, ao serviço de V. Exa. e de seus colaboradores no
exercício do Poder Executivo.
Reflita, Sr. Presidente: quem sentirá honra e prazer em permanecer no Supremo Tribunal
Federal ou para ele entrar depois que V. Exa., com seus poderes ditatoriais, terá arrancado de suas
cadeiras juízes que, até agora, procuraram, com os seus votos, resguardar a liberdade de seus
concidadãos, ou, conforme o caso, restaurar a daqueles que a tinham perdido ilegalmente? Acredito
que V. Exa. encontrará juristas que, fascinados pela sedução que o cargo de Ministro do Supremo
Tribunal Federal possa sobre eles exercer, se disponham a aceitar esta investidura, apesar do
desprestígio não só do cargo mas também da instituição a que passarão a pertencer: A consciência
livre do País, porém, acompanhará, até o final de sua vida, o ato de reprovação geral em que eles
terão incorrido pela fraqueza de que deram testemunho.
Sou, Sr. Presidente, uma das vítimas do ATO INSTITUCIONAL N. 5. A Polícia Federal de
Goiás, invocando o nome de V. Exa., deu-me ordem de prisão, ordem que não acatei, declarando
que nem V. Exa., nem ninguém neste País, é dono da minha pessoa e da minha liberdade. Nada
fizera para esta perder: recusava altivamente acatar ordem tão absurda e ilegal. Mal pronunciei estas
palavras, quatro homens, de compleição gigantesca, lançaram-se sobre mim, como vespas sobre
carniça, imobilizando-me os braços e apertando-me o ventre, pelas costas. Em seguida,
empurraram-me, como um autômato, do quarto ao elevador, onde me empurraram. Deste até o carro,
que se encontrava à porta do hotel, fizeram idêntica manobra. Colocado no carro, de manga de
camisa, como me encontrava no quarto, conduziram-me a um batalhão que fica nos arredores de
Goiânia. Neste permaneci durante uma hora, depois de um atrito com um comandante da unidade,
que tentava desrespeitar-me, sendo levado ao quartel da Polícia do Exército em Brasília, onde fiquei
três dias, respeitado pela oficialidade dessa unidade, desde o Coronel-comandante até o mais
modesto dos tenentes.
Conservei, em todo este longo episódio, altivo o meu ânimo, tendo dito aos oficiais que de
mim se aproximaram as verdades que era de minha obrigação a eles dizer, em defesa da minha
dignidade pessoal e cívica.
Após três dias de detenção violenta e ilegal, fui chamado à presença do Coronel Rosalvo
Janssen, a fim de prestar declarações. Afirmei, categoricamente, a esse digno oficial do Exército, que
não prestaria declaração alguma. Li, nessa oportunidade, a carta que, em 1965, dirigi ao Coronel
Gerson de Pinna, da qual destaco para V. Exa. o seguinte trecho: “Como indiciado não devo e,
portanto, não posso nem quero comparecer, porque não pratiquei jamais ato ou ação alguma, nem
participei nunca, de fatos que devam ou possam ser considerados, neste País, por quem quer que
seja, como de natureza criminosa. Nem V. S., nem ninguém nesta terra tem autoridade para imputar-
me, acusar-me ou atribuir-me a prática de qualquer crime, seja de que natureza for. Sou cidadão
brasileiro, advogado militante e professor universitário que atuou sempre e invariavelmente de
maneira ostensiva, aos olhos de todos, autoridades ou não, dentro da Lei, apoiado nela e nos limites
dela. A franqueza, o desassombro e a sinceridade são minhas normas indefectíveis. Tenho, neste
ponto, a consciência arejada, limpa e tranqüila, não havendo ninguém, civil ou militar, que deva ou
possa tomar contas de meus atos públicos ou privados, ou a quem deva ou possa prestar as mesmas
referidas contas. Minha vida é um livro aberto, cujas páginas podem ser lidas e percorridas de alto a
baixo, de frente para trás e de trás para frente, sem receio de alguém, civil ou militar, nela depare,
encontre ou tropece em qualquer ato, ação ou fato de natureza criminosa. É, assim, intolerável
abuso, que não admitirei se consuma em hipótese alguma, pretender alguém, civil ou militar,
envolver-me como indiciado em qualquer IPM sobre atividades subversivas, reais ou supostas, seja
do ISEB, seja de qualquer outra instituição, associação ou grupo, civil ou militar. Fica V. S., pois,
ciente de que não lhe prestarei, jamais, quaisquer informações como indiciado nas atividades
subversivas do ISEB, reais ou supostas”.
Terminada a leitura dos termos desta carta, da qual extraí o trecho acima reproduzido, disse
ao Coronel Rosalvo Janssen: “Está encerrado o nosso encontro, e encerrado definitivamente. Não
adianta pronunciar mais qualquer palavra”.
Pediu-me então este ilustre militar que declarasse eu, por escrito, ao pé do termo de
perguntas datilografadas que me apresentara, e que, constava de três ou quatro laudas de papel, as
razões da minha resolução. Atendi prontamente ao seu pedido, escrevendo, então, as seguintes
palavras que aqui reproduzo: “Sou um cidadão livre, consciente e digno, cuja vida é um livro aberto,
que pode ser percorrido de trás para diante e de diante para trás e que não devo contas senão a mim
próprio. Não tenho contas a prestar a ninguém. Não pratiquei crime algum. Não podia ser preso. A
minha prisão foi violência inominável. É incrível que preso abusiva e ilegalmente em Goiânia, por
ordem de autoridades militares, em vez de ser liberado com pedido de desculpas, pela lesão ao meu

720
direito, autoridades superiores do Exército ordenam a oficiais superiores que me perguntem qual a
minha posição cívica neste momento. Fui e sou advogado, nunca conspirei, rebelo-me contra esta
pretensão, que fere a minha dignidade pessoal e os direitos da minha cidadania. Tudo quanto há em
mim de revolta leva-me a não deixar que penetrem no santuário de minha consciência cívica e
pessoal. Brasília, Distrito Federal, 17 de dezembro de 1968. Heráclito Fontoura Sobral Pinto,
advogado”.
Os afazeres profissionais não me dão lazer para prosseguir na crítica ao ATO
INSTITUCIONAL N. 5. Oportunamente voltarei à presença de V. Exa. para formular novas críticas em
documento que, como este, não é de natureza privada, uma vez que me reservo o direito de divulgá-
lo pelos meios ao meu alcance. Tal divulgação é uma faculdade, que me é assegurada pela
Declaração Americana dos Direitos e Deveres Fundamentais do Homem, promulgada em Bogotá, e
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU em Paris. Divulgando estas
palavras, severas mas respeitosas, estou unicamente a cumprir dever inerente à minha condição de
membro da Família Humana.
Queira receber, Sr. Presidente, as homenagens leais e sinceras do seu modesto concidadão
e humilde servidor.
H. Sobral Pinto
Rio, 21 de dezembro de 1968

721
Língua, discurso e memórias: a sociedade mineira nos
anúncios publicitários oitocentistas

INÁCIO, Alice Meira


(UFOP)

1. Introdução
A fim de compreender o conceito de Língua, Saussure a sistematizou, estabelecendo a dicotomia langue x parole,
respectivamente língua enquanto código, sistema, estrutura e língua enquanto fala e manifestações do discurso. Apesar de
conceber a língua enquanto fenômeno social, a analisou apenas na perspectiva da langue deixando a seus “sucessores”,
que assim fazem, o desafio de se estudar a língua na perspectiva da parole em que o maior desafio é justamente
sistematizar e analisar um objeto, segundo Marcuschi (2008), sociointerativo desenvolvido em contextos comunicativos
historicamente situados. Neste artigo, ao analisarmos os anúncios publicitários oitocentistas, enfrentaremos tal desafio,
observaremos a língua sob tal perspectiva, enquanto Discurso, “jogo comunicativo que se estabelece entre a sociedade e
suas produções linguageiras” (CHARAUDEAU, 2008, p. 46), capaz de preservar as Memórias sociais.
Parte da história da humanidade é resguardada, dentre estudiosos das mais diversas áreas, por pesquisadores da
paleografia e da diplomática, que através da observação de documentos antigos, buscam descrever eventos passados para
tomar consciência de sua própria história e preservar a memória e os valores ideológicos da humanidade. Porém, a
investigação de tais documentos, deixou de ser interesse apenas de pesquisadores da ciência histórica e, por se tratarem
de legítimos materiais linguísticos, tornou-se uma atividade de interesse de estudantes da linguagem, de analistas
discursivos que buscam evidenciar, como veremos, memórias e fatos sociais através da observação dos efeitos discursivos,
do contrato e das estratégias discursivas presentes nos mais diversos materiais linguísticos.

2. Anúncio publicitário em meio à transformações culturais


Comunicar é uma necessidade vital do homem, para realizar esta atividade e assim transmitir os seus
pensamentos esse foi lentamente ampliando suas capacidades. “Os primeiros ancestrais do homo sapiens terão transmitido
seus pensamentos através do grito, do grunhido, do ronco, sons estes que, em breve, se transformariam na palavra
articulada”. (MENDES, 2008, p.23). Na cultura ocidental, embora seja difícil imaginar o mundo sem a escrita, há que se
considerar a remota existência de sociedades não letradas1. Essas, inseridas em uma cultura oral, também se
comunicavam e buscavam preservar sua história através das narrativas transmitidas de forma consuetudinária. Mas
a palavra falada apenas comunicava as idéias aos presentes, isto é, aos semelhantes que se
encontravam nas proximidades e no instante mesmo da emissão da voz. Como transmitir as idéias aos
ausentes, isto é, aos que não se encontravam nas cercanias? E como preservar a palavra, de modo
que a idéia resistisse ao tempo? (Ibid., p.23)

1 O antropólogo Jack Goody pesquisou em comunidades não letradas e descobriu na Libéria a escrita VAI, uma escrita silábica

desenvolvida pela própria comunidade, segundo nossa compreensão, pela motivação e necessidade de se comunicar.

722
Não nos aprofundaremos neste assunto, mas a nós não há dúvidas de que foi a necessidade vital do homem de
se comunicar que provocou, ao longo do tempo, nas mais variadas culturas, o surgimento da escrita e posteriormente o
surgimento da impressa, que possibilitou o desenvolvimento dos gêneros discursivos impressos que circundam na vida
social.
O período de transição entre cada uma dessas culturas, segundo o antropólogo Jack Goody, não ocorreu em um
continuum, ao contrário, provocou uma quebra, uma ruptura que gerou transformações significativas no sistema cognitivo
do homem e na sociedade. Assim, como ilustramos nas figuras 1 e 2, a primeira grande partilha ocorreu no período de
transição da cultura oral para a cultura escrita e a segunda no período de transição da cultura manuscrita para cultura
impressa.

Cultura Oral Cultura escrita

Figura 1 - Transição da cultura oral para a cultura escrita

Manuscrito Impresso

Figura 2 - Transição da cultura manuscrita para a cultura impressa

A escrita, segundo Ong (1998), pode ser considerada uma tecnologia profundamente interiorizada, uma tecnologia
que moldou a atividade intelectual do homem moderno. De posse dessa tecnologia, o homem passou a se comunicar
através de textos manuscritos; porém, como nessa cultura o material era muito restrito e por isso pouco democrático, uma
vez que era orientada para o produtor, a segunda partilha ocorreu com o surgimento da impressa, pois a informação passou
a circular em meio à sociedade, provocando a mobilização da mesma. Segundo Ong (1998, p.136), tal ruptura foi tão
significativa que afetou o desenvolvimento do capitalismo moderno, implementou a exploração européia, mudou a vida em
família e a política, difundiu-se o conhecimento como nunca antes, tornou a cultura escrita universal um objetivo sério,
permitiu a ascensão das ciências modernas e, por outro lado, alterou a vida social e intelectual.
Nesse processo de transformação, “outro setor da comunicação que se moderniza com a evolução da imprensa é
o anúncio e a propaganda”. (PINTO, 1986, p.5) e essa prática de comunicação, que já se manifestava na antiguidade e no
seio da cultura oral, vêm a cada dia se delineando as transformações da sociedade.
Segundo Monnerat (2003, p.11), “a propaganda é, por excelência, a técnica de comunicar” e esta técnica, como já
citamos, antecede a cultura impressa e resguarda resquícios da cultura oral.
Recorrer à voz, à música e ao canto para vender produtos é um recurso muito antigo, herança dos
arautos. Entre nós, foram os pregões dos mascates – cantados e/ou gritados – os primeiros meios para
apregoar mercadorias. Depoimentos de diversos viajantes que percorreram o país até o século

723
passado assinalam que o gimmick2 desses ambulantes era sempre sonoro: a corneta, a matraca,
côvado. E pelo visto cumpriam o seu papel de comunicação. Tanto que, já a 17 de junho de 1543, o
donatário Martin Afonso de Souza, na capitania de São Vicente, baixava uma postura proibindo os
mercadores de, nos pregões que antecediam as vendas, falar mal das mercadorias dos concorrentes.
O que nos permite supor que era corriqueira a propaganda comparativo-pejorativa a ponto de se fazer
necessário a fixação de normas de conduta ética em pleno séc. XVI. (SIMÕES, 1990, p.171)

Vejamos alguns exemplos de pregões recolhidos3 no séc.XIX por críticos literários, o primeiro recolhido por Silvio
Romero no Nordeste:
“Maracujá miúdo
No balaio do iaia.”

O segundo foi recolhido por na capital paulista por Ernani da Silva Bruno em 1857 de um famoso vendedor de um
refresco feito de gengibre, raspa de limão e água:
“Gengibre
Quando abre
Logo espirra”

Os próximos recolhidos foram recolhidos em 1880, no rio de janeiro por Álvaro Moreira:
“Sorvetinho, sorvetão,
Sorvetinho de ilusão
Quem não tem 200 réis
Não toma sorvete não;
Sorvete, iaia,
É de quatro colidade”

“Soberano, gargalhada,
Biscoito fino, bananada.
Ninguém me chama
Vou-mimbora.
Daqui a pouco
não tem mais nada”

O primeiro anúncio impresso (figura 3), segundo Pinto (1986, p.31), “foi publicado em 1808 na Gazeta do Rio de
Janeiro”. No entanto, segundo o autor, “a forma deste anúncio reproduz a estrutura dos pregões com os quais, muito antes
de surgir a imprensa, escravos de vendas enchiam as ruas das cidades brasileiras com suas vozes potentes e musicais”
(Ibid., p.31). Vejamos:

Quem quiser comprar uma morada de casas de sobrado com frente para Santa Rita, fale com Ana
Joaquina da Silva que mora nas mesmas casas, ou com o Capitão Francisco Pereira de Mesquita
que tem ordem para vender.
Figura 3 – primeiro anúncio publicitário impresso

A observação da marca de oralidade presente no primeiro anúncio impresso em jornal e a observação dos
pregões do séc.XIX nos remete a reflexão de que nesse processo, em que o anúncio passou a ser impresso e não apenas

2 Golpe ou truck publicitário

3 Simões, (1990, p.171-2)

724
gritado nas ruas, ocorreu uma nova partilha, (figura 4), um processo de ruptura que provocou transformações no
comportamento e no cognitivo do homem social e por consequência provocou mudanças na sociedade. Pois, assim como
no processo de transição da cultura oral para a escrita “as pessoas precisavam ser convencidas de que a escrita
aperfeiçoava os métodos orais o bastante para compensar todos os custos e as técnicas que ela envolvia” (ONG, 1998,
p.112.) e as testemunhas orais “eram mais confiáveis do que os textos, porque podiam ser questionados e defender suas
afirmações, ao passo que os textos, não” (Ibid., p.112.) o sujeito consumidor do séc.XIX também precisava se aperfeiçoar a
nova técnica propagandística e confiar na informação contida no anúncio; pois, nesta partilha, o que passou a chegar a
porta do consumidor por meio do anúncio publicitário era a informação do produto, e raramente o vendedor ambulante com
o produto a pronta entregue. Ainda considerando essa hipótese, compreendemos que foi a partir deste período que os
mercados e comércios se reorganizaram pelo fato dos comerciantes não mais necessitarem levar suas mercadorias até o
consumidor, o que os motivou a atender em um lugar fixo, o que garantiria a preservação e a qualidade do produto e um
atendimento mais personalizado ao freguês. Transformações que provocaram uma considerável mudança no contrato de
comunicação de venda estabelecido entre o vendedor e o público consumidor, já que a relação comercial passou a se dar,
em primeira instância, através do anúncio impresso, ou seja, a situação de troca passou a ser monolocutiva e não apenas
interlocutiva4.

Anúncio publicitário oral Anúncio publicitário impresso

Figura 4 – transição do anúncio publicitário oral para o anúncio publicitário impresso

3. Visadas e memórias discursivas da sociedade mineira nos anúncios publicitários oitocentistas.

Segundo Davalon (apud. ACHARD et al. 2007, p.27), “a memória social estaria inteiramente e naturalmente
presente nos arquivos da mídia”. Dessa maneira, consideramos que os anúncios publicitários oitocentistas, ainda pouco
estudados como fonte de fatos históricos, carregam as marcas das transformações ocorridas na sociedade, memórias de
um período em que a impressa enquanto veículo de comunicação democratizou a informação. Ramos (1987) sugere que
devemos olhar a propaganda como espelho da sociedade, assentimos desta afirmativa porque grande parte das
propagandas
e publicidades5 que veiculam desde o advento da imprensa, como ressalta Pinto (1986, p.31) são de caráter urbano e
apelam aos desejos da classes médias: medicamentos, produtos de beleza, vestuários, mobiliário, etc; e refletem, através
do discurso persuasivo, os anseios da sociedade.

4 A situação de troca monolocutiva ou interlocutiva são determinadas de acordo com a presença física ou não dos parceiros de
comunicação. Em uma leitura a situação de troca linguageira é monolocutiva, em um diálogo, onde há troca de turnos de fala/réplica a
situação de troca linguageira se define interlocutiva.

5 O termo ´publicidade` é usado para a venda de produtos e de serviços, é mais ´leve`, mais sedutor que a ´propaganda`, pois explora um

universo particular -os desejos; já ´propaganda` é usado tanto para a propagação de idéias, quanto voltada para a esfera dos valores
éticos e sociais, quanto no sentido comercial, sendo, portanto, o termo mais abrangente e o que pode ser empregado em todos os
sentidos. (MONNERAT, 2003, p.14).

725
Segundo Charaudeau (2010)6, um gênero discursivo pode ser analisado e definido sob duas dimensões: através
da superfície do texto, ou seja, das referências lexicais e gramaticais dentre outras recorrências linguísticas e; através da
sua estrutura profunda que é determinada pela situação de comunicação, na qual se deve analisar o contrato estabelecido
entre os sujeitos falantes, as instruções ou estratégias discursivas e a finalidade desse discurso. Nossa análise, de caráter
semiolinguística, se fundamenta em uma proposta de estudos de gêneros discursivos presente no artigo, “Visadas
discursivas, gêneros situacionais e construção textual”, em que Patrick Charaudeau traz à tona a problemática do estudo
dos gêneros discursivos e propõe uma abordagem que leva em conta a finalidade do ato de linguagem e as três memórias
(discursiva, situacional e dos signos) dos sujeitos que interagem no processo comunicativo, memórias que “testemunham a
maneira como se constituem as comunidades” (CHARAUDEAU, apud, MACHADO e MELO, 2004, p.19). A memória do
discurso refere-se aos saberes de conhecimento e de crença sobre o mundo que circulam na sociedade enquanto
representação; a memória das situações de comunicação refere-se aos dispositivos que normatizam as trocas
comunicativas entre os sujeitos discursivos para que eles partilhem a mesma visão daquilo que devem ser as constantes
das situações de comunicação; e a memória das formas dos signos que faz com que os indivíduos possam elaborar
julgamentos de ordem estética, ética, pragmática etc. A noção de finalidade, ou mais precisamente de visadas discursivas
correspondem a uma intencionalidade psico-sócio-discursiva que determina a expectativa (enjeu) do ato de linguagem do
sujeito falante e, por conseguinte da própria troca linguageira. (Ibid., p.23), tais visadas “determinam a orientação do ato de
linguagem como ato de comunicação em função da relação que o sujeito falante quer instaurar frente ao seu destinatário”
(Ibid., p.24). As 6 principais são: visada de prescrição, visada de solicitação, visada de incitação, visada de informação,
visada de instrução e visada de demonstração. Essas se estabelecem da seguinte maneira:
1. visada de prescrição: eu quer “mandar fazer”, e ele tem autoridade de poder sancionar; tu se encontra, então,
em posição de “dever fazer”.

2. visada de solicitação: eu quer “saber”, e ele está em posição de inferioridade de saber diante do tu, mas está
legitimado em sua demanda; tu está em posição de “dever responder” à solicitação.

3. visada de incitação: eu quer “mandar fazer”, mas não estando em posição de autoridade, como no caso da
prescrição, não pode senão incitar a fazer; ele deve, então, “fazer acreditar” (por persuasão ou sedução) ao tu que ele será
o beneficiário de seu próprio ato; tu está, então, em posição de “dever acreditar” que, se ele age, é para o seu bem.

4. visada de informação: eu quer “fazer saber”, e ele está legitimado em sua posição de saber; tu se encontra na
posição de “dever saber” alguma coisa sobre a existência dos fatos, ou sobre o porquê ou o como de seu surgimento.

5. visada de instrução: eu quer “fazer saber-fazer” e ele se encontra ao mesmo tempo em posição de autoridade
de saber fazer e de legitimação para transmitir o saber fazer; tu está em posição “dever saber fazer”, segundo um modelo
(ou de emprego) que é proposto por eu.

6 CHARAUDEAU, Patrick (2010). Curso “o sujeito do discurso” oferecido pelo NAD - Núcleo de análise do discurso da Universidade

Federal de Minas Gerais.

726
6. visada de demonstração: eu quer “estabelecer a verdade e mostra provas”, segundo uma certa posição de
autoridade de saber (cientista, especialista, expert); tu está em posição de ter que receber e “ter que avaliar” uma verdade
e, então, ter a capacidade de fazê-lo.

Vejamos como estas categorias se apresentam nos seguintes anúncios publicitários oitocentistas, o primeiro
emitido em 30 de abril de 1874 no periódico “Diário de Minas” de Ouro Preto de “um depósito de toucinho instalado em
Mariana”, e o segundo emitido em 1 de junho de 1889 no periódico “O movimento” de Ouro Preto “de um armazém
instalado em Itabira” Segue as transcrições7:
TOUCINHO

Theophilo M.C. Drumond,


da itabira, tem na cidade de
marianna um depósito de cerca
de 400 arrobas de toucinho de
boa qualidade, a venda á car-
go de seo empregado João Tei-
xeira da Fonseca sobrinho, e o
annuncia por este meio, afim
de que as pessoas, que carece-
rem, vão alli se supprir medi-
ante o preço ajustado com o
vendedor.

Santa Maria da Itabira


Senhor redator. – em primeiro lo-
gar venho às columnas do seu muito
digno e conceituado jornal, para agra-
descer aos meus números parentes,
amigos e fregueses, o bom acolhimen-
to que me dispensarão em suas casas
durante onze annos que viajei como
mascate de fasendas, e outros artigos
concernentes a esse ramo de negocio.
Em segundo lugar para communi
car-lhes que tenho fixado a minha re-
sidencia n`este arraial, onde terei
muito prazer em receber suas ordens
prometendo-lhes cumpril-as da melhor
forma que me for possível.
Em terceiro para communicar-lhes
Que brevemente receberei um bonito
sortimento de fazendas, roupas feitas,
ferragens, chapéus, louças, molhados
e calçados; artigos estes comprados nas
principaes casas da corte, e em boas
condições, estando portanto na altura
de bem servir-lhes, se quizerem conceder-
me a graça de honrar-me com a sua
freguesia e valiosa proteção.
As vendas a dinheiro a vista farei-as
com grande reducção de preços.

7 Fonte dos anúncios: GODOY, Marcelo Magalhães. Comércio e propaganda nos periódicos oitocentistas. Revista do Arquivo

Público Mineiro, ano XLIV, nº 1, Janeiro - Junho de 2008.

727
Para as vendas a prazo as contas serão fixa-
das de quatro em quatro mezes; de 1°
de janeiro, a 31 de maio, de 1° de junho
a 31 de agosto, de 1° de setem-
bro a 31 de dezembro.
Os gêneros do paiz serão vendidos só
a dinheiro a vista
Esperando ser bem attendido e aceito
o meu systema de commercio, mais
uma vez prometto-lhes muito zelo e prompti-
dão em executar suas ordens.
8 de maio de 1889.
Joaquim Lourenço de Godoy Monteiro

Dentre as apresentadas por Charaudeau, a Memória que nos interessa neste analise é a memória do discurso,
“discursos que circulam na sociedade enquanto representação social, em torno das quais se constroem identidades
coletivas e fragmentam a sociedade em comunidades discursivas”. (CHARAUDEAU, 2004, p.19-20). Segundo o autor, “As
memórias discursivas reúnem – virtualmente – sujeitos que partilham os mesmos posicionamentos, os mesmos sistemas de
valores, quer se trate de opiniões políticas, julgamentos morais, doutrinas, ideologias, etc”. (Ibid., p.20).
No período em que compreendem os anúncios publicitários Ouro Preto era capital de Minas Gerais, posição
alcançada em 1720 quando Mariana perdeu tal posto e, perdida em 1897 quando a Capital foi transferida para Belo
Horizonte. Durante o transcorrer do século XIX, enquanto a capital Ouro Preto mantinha sua influência política, Mariana,
apesar de não ser a capital de Minas manteve seu status por continuar sendo sede do Bispado de Minas Gerais o que a
fazia uma cidade de influência religiosa. Fato que tornam estas cidades de perfis distintos, alvo de comerciantes e
possibilita que elas se desenvolvam economicamente de acordo com as condições da época.
Em Minas Gerais, o grande centro do jornalismo das Gerais no século XIX, nos afirma Mendes (2009), foi Ouro
Preto. Na então capital, surgiram 163 periódicos que circulavam tanto em Ouro Preto como nas cidades adjacentes, o que
justifica a opção dos anunciantes em divulgar o comércio e respectivos produtos nestes periódicos, evidência das
transformações ocorridas nesta região em razão da presença da imprensa. Vejamos as mesmas, observando as visadas
discursivas presentes nos anúncios.
No anúncio “toucinho”, de 30 de abril de 1874, observa-se primeiramente a visada de informação. Nessa,
Theophilo M. C. Drumond, da Itabira, anunciante e dono do comércio, Sujeito Comunicante legitimado em sua posição de
saber, quer “fazer saber” os sujeitos interpretantes (toda região e em especial os moradores de Mariana) que abriu uma filial
na cidade; estando estes e os demais leitores dos jornais, na posição de “dever saber” sobre a existência deste depósito de
toucinho na cidade, da quantidade e qualidade do produto, do nome do empregado responsável pelas vendas na região, e
que os produtos serão vendidos a preço justo com este vendedor. Observa-se também a visada de incitação, nesse
Theophilo M. C. Drumond, por não estar em posição de autoridade, por não poder obrigar ninguém a comprar, busca
apenas incitar os moradores da cidade e leitores do anúncio (que estão em posição de “dever acreditar”), por meio de um
discurso de persuasão e sedução, de que eles serão beneficiados com a aquisição do produto.
No anúncio “Santa Maria da Itabira”, de 1 de junho de 1889, também estão presentes as visadas de informação e
de incitação. Na visada de informação, observamos que o senhor Joaquim Lourenço de Godoy Monteiro quer “fazer saber”
a toda a região que ele, ex-mascate, fixou residência e abriu um comércio em Santa Maria da Itabira, enquanto o tu (leitores
do periódico e moradores de Itabira) “deve saber” sobre a presença de seu comércio na cidade e sobre os produtos que são
vendidos no seu comércio; na visada de incitação, o senhor Joaquim Lourenço de Godoy Monteiro, sujeito comunicante do
anúncio, quer “mandar fazer” algo, quer que os moradores da cidade passem a comprar em seu estabelecimento, mas não

728
estando em posição de autoridade, através do seu discurso, “faz” os sujeitos interpretantes “acreditarem” que serão
beneficiados se passarem a comprar em seu comércio fixo enquanto o tu, por outro lado, está na posição de “dever
acreditar” no discurso emitido pelo anunciante.
A presença das mesmas visadas nos dois anúncios caracteriza o gênero anúncio publicitário. Como vimos, para
que se estabeleça o contrato de compra e venda entre os sujeitos envolvidos no ato de comunicação, o sujeito interpretante
deve saber em primeira instância sobre a existência do comércio e dos produtos a venda e posteriormente acreditar que
será beneficiado e suprirá seus desejos com a compra do produto. Para tal, o sujeito comunicante dos anúncios busca, por
meio do discurso, qualificar o produto e construir um ethos positivo de si. Assim, observamos no anúncio “toucinho” que o
produto é de “boa qualidade”, que “o preço é justo”, e que o comércio e o comerciante como referido no anúncio, “Theophilo
M. C. Drumond, da Itabira” têm credibilidade. No anúncio “Santa Maria da Itabira”, observamos que neste armazém
encontra-se apenas produtos de primeira linha, são “comprados nas principais casas da corte”; há muitas variedades de
produtos “sortimentos de fazendas, roupas feitas, ferragens, chapéus, louças, molhados e calçados”; são oferecidos aos
compradores muitas vantagens e formas de pagamento, “vendas a dinheiro a vista” e “vendas a prazo” e; porque o
vendedor é um sujeito de credibilidade, tem “11 anos de experiência, numerosos, amigos e fregueses”. Estratégias de
captação, presentes nos anúncios, que revelam aspectos representativos da memória e os anseios da sociedade mineira
oitocentistas, que está reaprendendo, com a chegada da cultura impressa, como consumir.

Considerações Finais
Na perspectiva discursiva, a memória é retomada através do enunciado, isso porque o acontecimento ocorre “em
um momento singular do tempo; mas a essência do ato se encontrará para sempre na própria estrutura que o representará”
(DAVALLON, apud. ACHARD et al. 2007, p.25). A análise das visadas discursivas, presentes nos dois anúncios, nos revela
um pequeno, porém relevante quadro da região, pois nos mostra de forma representativa uma hipótese por nós levantada,
de que o surgimento da imprensa e do anúncio publicitário impresso provocou um processo de ruptura que provocou
transformações no comportamento e no cognitivo do homem, mudanças na sociedade e por extensão uma reorganização
do comércio. Aspectos estes preservados através da língua, do discurso e da memória discursiva.

Referências

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Alice Meira Inácio, possui licenciatura em Língua Portuguesa e Bacharelado em Estudo Linguísticos e Literário pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Atualmente é mestranda no programa de pós-graduação em Letras: Estudos da
Linguagem da Universidade Federal de Ouro Preto (práticas discursivas) sob a orientação do professor Dr. William Augusto
Menezes. Bolsista Fapemig.

alicinacio@yahoo.com.br

730
Uma abordagem discursiva da regra de Santa Clara de
Assis
JESUS, Edinha Maria de
(Universidade Federal de Sergipe)

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma pesquisa sobre os escritos de Clara de Assis (1193-1253) que questiona a inovação
que ela aportou no discurso religioso medieval e sua influência na formação discursiva franciscana hoje. A Família
Franciscana, em todo o mundo, prepara a celebração do oitavo centenário de Clara de Assis, em 2012. Será a
comemoração da adesão de Clara de Favarone ao pequeno grupo de religiosos que se formava em torno de Francisco de
Assis, no dia 18 de março de 1212, aos 18 anos de idade. Clara e Francisco de Assis, no dizer de Araújo (2010, p.01),
constituem um dos pilares de um modelo de vida consagrada que irrompe das paredes dos conventos ou mosteiros e
interpela não só a Igreja, mas também muitos setores da sociedade. O pesquisador enfatiza que a valorização dos textos
franciscanos primitivos, nomeadamente os textos de Francisco e de Clara, tem recuperado a original unidade, reciprocidade
e complementaridade dos dois fundadores.
A história das Clarissas, como são ordinariamente designadas as irmãs da Segunda Ordem Franciscana, é
controversa no sentido de apontar para dois ou três fundadores: Francisco, Clara ou Hugolino, a depender da ótica da
leitura e dos documentos consultados. Relativamente indiferente às controvérsias históricas há consenso sobre a influência
carismática de Santa Clara no desenvolvimento da Ordem de modo que suas seguidoras orgulham-se hoje de ser maioria
no mundo. Já na altura da morte de Clara elas eram aproximadamente 3.000 irmãs, hoje atingem a marca de 22. 000
presentes nos cinco continentes. Estas irmãs vivem em conventos autônomos e não tem um governo central. O que as une
é a espiritualidade comum, franciscana ou clarifranciscana, como às vezes se denominam os seguidores de Francisco e
Clara.
O principal cabedal carismático das clarissas ficou conservado nos escritos de Santa Clara: a regra, o testamento,
uma bênção e cinco cartas. Como a Regra é o texto do qual os franciscanos e, especialmente as Clarissas, se orgulham
pelo caráter pioneiro da aprovação, procuramos nela elementos inovadores com relação às regras papais impostas às
religiosas da época. Dado o esquecimento da figura de Clara durante séculos de história da família franciscana, procuramos
também identificar as estratégias de silenciamento das vozes femininas e, por conseguinte, da voz de Clara na história da
vida consagrada católica. Assim, fazemos aqui um recorte da Regra de Santa Clara, a primeira redigida por uma mulher e
aprovada pela Sé Apostólica, numa leitura pautada na Análise do Discurso (AD) privilegiando o corte histórico-ideológico
com ênfase para as seguintes categorias: formação ideológica / discursiva, memória discursiva, interdiscurso, intradiscurso,
esquecimentos, relações de força, sujeito, sentido, discurso.

2 ANÁLISE DO DISCURSO

Articulando conhecimentos do campo das Ciências Sociais e do domínio da Linguística, a Análise do Discurso
(AD) “considera os processos e as condições de produção da linguagem pela análise da relação estabelecida pela língua
com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer” (ORLANDI, 2002, p.16).
A AD se preocupa com textos produzidos no quadro de instituições que restringem fortemente a enunciação, nos
quais se cristalizam conflitos históricos, sociais, políticos, religiosos e, que delimitam um espaço próprio no exterior de um

731
interdiscurso limitado. Ou seja, formações discursivas que são canais veiculadores das formações ideológicas, espaços de
regulação e de confronto de muitos dizeres quer apontem para uma mesma formação ideológica, quer apontem para o
confronto entre duas formações. “Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui,
sua dependência com respeito ao “todo complexo com dominante” das formações discursivas, intricado no complexo das
formações ideológicas...” (PÊCHEUX, 1988, p.162). Esse todo com dominante é o que Pêcheux chama de interdiscurso ou
ideologia, vista como naturalização de sentidos, que pode ser pensada também como memória discursiva:
O saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do preconstruído, o já-dito
que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres
que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 1999, p.31).

A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos falantes (PÊCHEUX, 1998, p.214). Tal interpelação supõe o
desdobramento constitutivo do sujeito de discurso: o sujeito locutor ou da enunciação; e o sujeito universal. Esse
desdobramento passa por três modalidades, os chamados esquecimentos pêcheuxtianos: 1) superposição entre o sujeito
da enunciação e o sujeito universal que caracteriza o discurso do bom sujeito, daquele indivíduo que se identifica
cegamente com o interdiscurso que o sedimenta de modo a sentir-se origem do seu dizer; 2) discurso do “mau sujeito”
quando o sujeito da enunciação se volta contra o sujeito universal por uma tomada de posição que marca a separação:
questionamento, contestação, distanciamento...; 3) discurso do sujeito enunciador totalmente desidentificado do sujeito
universal, como pretende ser o discurso científico.
Os discursos se interrelacionam constituindo um processo discursivo contínuo de modo que são sempre
resultados de discursos anteriores e podem resultar em discursos futuros, ou seja, o sentido de um discurso dependerá
sempre de outro já dito ou que ainda está por ser dito. Nessa relação de sentidos a relação de forças desempenha papel
decisivo, pois o lugar de onde fala o sujeito é constitutivo do que ele diz (ORLANDI, 1999, p.39).
Brandão (2003, p.09) destaca a noção bakhtiniana de polifonia segundo a qual, determinado social e
historicamente, todo texto trabalha a linguagem de forma a criar maior ou menor efeito polifônico. É nesse sentido, diz ela,
que se tem disseminada a metáfora de que o texto se transforma em uma arena de lutas em que vozes, situadas em
diferentes posições, emergem, polifonicamente, numa relação de aliança, de oposição ou de polêmica.

3 CONTEXTO HISTÓRICO DA REDAÇÃO DA REGRA DE CLARA

Santa Clara se insere no movimento franciscano e no contexto do movimento religioso feminino dos séculos XI a
XIII marcados pela resistência e pela repressão no seio da Igreja. A partir da leitura de Brunelli (1998) e de Bartoli (1998),
compreende-se que há tentativa de renovação da vida religiosa feminina em duas direções: uma mais ligada ao modo
tradicional de consagração, ou seja, o afastamento do mundo e a penitência; e outra como proposta de renovação
conciliando consagração, trabalho e serviço aos mais pobres.
No primeiro caso de consagração, as mulheres são completamente dependentes, pois vivendo como eremitas,
elas viviam da boa vontade dos vizinhos e/ou dos familiares. No segundo caso há uma reivindicação por autonomia, pois as
mulheres religiosas fazem questão de trabalhar, de autossustentar-se. A relação da hierarquia eclesiástica com o segundo
grupo é especialmente conflituosa visto que seu grau de dependência e submissão era muito menor que o das eremitas e,
não raramente, as religiosas assumiam a pregação pública. Isto levava à suspeita de adesão ou, no mínimo, simpatia por
grupos considerados heréticos.
O IV Concílio de Latrão, 1215, proibiu a aprovação de novas regras. Como as ordens tradicionais se recusavam a
acolher o movimento feminino efervescente e havia o risco de evasão das mulheres para os movimentos heréticos, a cúria
romana, sob influência do cardeal Hugolino, tomou duas atitudes drásticas: pressionou as Ordens Mendicantes nascentes a

732
aceitarem a cura animarum das mulheres religiosas e, para estabilizar e controlar o movimento unificou-o sob o nome de
Ordem das Senhoras Pobres, relacionada à segunda ordem franciscana fundada por Francisco e Clara de Assis, em
processo de cooptação pela Sé Apostólica. Em 1219, o cardeal Hugolino respeitando a prescrição do IV Concílio
lateranense, redigiu e impôs às novas comunidades femininas sua Forma de Vida, ou seja, uma constituição particular a
partir da regra beneditina. Assentando seu texto normativo na clausura como guarda da virgindade, Hugolino proibiu às
religiosas os principais sentidos da comunicação: fala, escuta e olhar.
Unificando o movimento religioso feminino e impondo a posse de bens, a cúria romana impôs gradativa e
duramente a clausura. Primeiro proibiu a itinerância, depois reduziu a liberdade das comunidades que assistiam pobres,
doentes e peregrinos. Brunelli (2003) destaca que a imposição da clausura às novas comunidades femininas atingiu um
rigor desconhecido pela própria vida monástica medieval e que essas medidas minaram as características fundamentais do
movimento religioso feminino: a vida em total pobreza e o serviço aos pobres.
Na perspectiva da nova ordem religiosa, Rotzetter (1994) citando Paul Sabatier chega a cogitar que no início, as
Clarissas, como hoje são conhecidas as referidas irmãs da Ordem das Senhoras Pobres, não eram uma ordem
contemplativa, mas enfermeiras que nada aceitavam como donativo, mas viviam do trabalho de suas mãos. Tal hipótese
decorre da designação das casas onde as irmãs moravam: hospitia.
Como já foi dito a Forma de Vida do Cardeal Hugolino assentou-se na Regra de São Bento. No entanto, a regra
beneditina tinha somente importância jurídica, de modo que na vida concreta das religiosas apenas obrigava a tudo quanto
não contrariasse o teor da Forma de Vida do cardeal. A regra somente legitimava a Ordem de São Damião no sentido
eclesial e com isso o cardeal iniciou um processo de damianização do movimento religioso feminino convertendo-se no
verdadeiro fundador da Ordem das Senhoras Pobres, de São Damião.

4 REGRA DE CLARA DE ASSIS


A Cúria Romana, através de Hugolino, serviu-se do carisma e da autoridade da religiosa para executar sua política
de enclausuramento / silenciamento de todo o movimento religioso feminino. No entanto, a partir da leitura dos escritos
franciscanos depreende-se que Clara já exercia considerável influência tanto em comunidades monásticas quanto nas
novas comunidades apostólicas de modo que seria injusto reduzi-la a mero instrumento nas mãos da Cúria. Rotzetter
(1994) dá a entender que no início, a religiosa serviu-se de Hugolino e até se beneficiou com a predileção do prelado por ela
na obtenção do reconhecimento de sua ordem. O que ela não esperava é que viesse a sofrer um enquadramento
monástico.
Foi ainda sob Gregório IX, com a fundação do mosteiro de Praga, que surgiram os embates que provocaram a
fundadora das Irmãs Pobres a redigir sua Forma de Vida. Para Rotzetter (1994), foi Inês de Praga, com sua recusa
persistente em aceitar a regra de São Bento e ainda as constituições de Hugolino, quando desejava para sua comunidade a
adesão à nova espiritualidade franciscana que instigou Clara a redigir um texto normativo que vinculasse sua ordem à
família franciscana. O pesquisador suíço fala de um combate encarniçado, de luta por um fundamento espiritual do qual
seria Santa Inês a precursora porque foi “a primeira a formular o que na Ordem das Senhoras Pobres era percebido por
todas: o escrúpulo da mulher que considera como uma qualidade essencial da vida prática a autenticidade, e não uma base
legal” (ROTZETTER, 1994, p.211).
Com a morte de Gregório IX, abriu-se na Cúria Romana uma brecha por onde se esgueirou Clara de Assis: a
fraqueza de Inocêncio IV. Ela não apenas se recusa a adotar a Forma de Vida de Inocêncio IV como começa, em 1247, a
redigir seu texto normativo.

733
Com um sólido ethos discursivo reforçado pela autoridade que lhe fora conferida pelos elogios excessivos dos
pontífices e vendo-se diante de um papa confuso na orientação da ordem, Clara percebeu a oportunidade ímpar que se lhe
apresentava. Em 1247, ela iniciou a redação de suas constituições que, pela forma e pela heterogeneidade do conteúdo,
poderiam ser consideradas um pastiche das constituições hugolianas com a originalidade que ela reivindicava para sua
ordem: a adesão carismático-institucional franciscana. Aprovada a 10 de setembro de 1253, a Forma de vida de Clara de
Assis apresenta três elementos importantes: 1) a santa evoca as autoridades fundadoras do seu discurso, Jesus Cristo e
São Francisco de Assis; 2) expõe seu ethos positivamente ao mesmo tempo em que reivindica seu status na Igreja como
membro da Ordem Franciscana; 3) reconhece a legitimidade da própria ordem do discurso que ela questiona. Desse modo,
já no início do seu texto, ela consegue atingir as etapas de desenvolvimento das estratégias apontadas por Charaudeau
(2006): legitima seu discurso; ganha credibilidade; e, faz o interlocutor se enquadrar no seu pensamento.
a forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu, é esta:
Observar o santo evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de
próprio e em castidade. Clara, serva indigna de Cristo e plantinha [grifo nosso] do bem-aventurado pai
Francisco, promete obediência e reverência ao senhor papa Inocêncio e aos seus sucessores
canonicamente eleitos pela Igreja Romana. E, como no principio de sua conversão, juntamente com
suas Irmãs, prometeu obediência ao bem-aventurado Francisco, assim promete guardá-la
inviolavelmente para com seus sucessores. E as outras Irmãs sejam sempre obrigadas a obedecer aos
sucessores de São Francisco, à Irmã Clara e às outras abadessas, canonicamente eleitas, que a
sucederem. (TEXTO..., 2004, p.21)

O que aos olhos do leitor leigo pode parecer exercício piedoso é, na verdade, constitutivo de estratégias
discursivas para garantir um lugar na ordem de um discurso intransigente e pouco afeito ao confronto de formações
discursivas. Notemos a hierarquia a que proclama obedecer a abadessa. A Igreja aparece em terceiro lugar. Depois de ter
professado seguir aos preceitos evangélicos como determinara Francisco de Assis, que naquela altura gozava do prestigio
seráfico, Clara podia defender uma forma de vida que destoasse das prescrições eclesiásticas, alegando fidelidade a
autoridades maiores que o papa.
A designação da sua ordem é também um indício de resistência àquele que diz obedecer: Ordem das Irmãs
Pobres. Francisco não quis que as irmãs fossem assim designadas para que não houvesse risco de confusão com os
Frades Menores, colocando as irmãs praticamente na mesma Ordem, o que suscitaria a suspeita de heresia. Não obstante
essa resistência do santo e de seus confrades, Clara não adota o nome de Senhoras Pobres com o qual tanto ele quanto
Hugolino designaram sua ordem.
Outra observação na resistência a que chamassem sua ordem de Senhoras é aquela feita por Bartoli (1998) sobre
as senhoras reclusas, ou seja, a manifestação da condição social das consagradas. É sabido que nos mosteiros havia
distinção entre as religiosas. As senhoras eram aquelas de origem nobre enquanto as servas ou conversas eram as
camponesas iletradas, uma espécie de irmãs oblatas que por não sofrerem as mesmas restrições das senhoras podiam sair
para prestar serviços ou mendigar fora do mosteiro. Se designasse sua ordem como Senhoras Pobres, Clara poderia dar a
entender que excluía da pertença total as irmãs ditas serventes. Na sua Forma de vida, ela menciona essa distinção no
que se refere ao serviço, mas salienta que não deve haver distinção no ser nem no trato entre elas e que as serventes
poderiam usar calçado, certamente pela necessidade nas caminhadas que faziam: “para examinar e aceitar as Irmãs que
servem fora do mosteiro observe-se a mesma forma. E estas poderão usar calçados. Ninguém poderá morar conosco no
mosteiro se não tiver sido recebida segundo a forma de nossa profissão” (TEXTO ..., 2004, p.23).
Talvez nisto resida o motivo da interdição do canto no Ofício Divino, para garantir a participação de todas as irmãs
no trabalho, visto que na comunidade de São Damião não havia distinção entre coristas e conversas o que exigiria das
primeiras, dedicação exclusiva ao canto. Não se sabe, ao certo, se foi também por esse motivo que ela interditou a
instrução dentro de seu mosteiro.

734
A palavra plantinha, com a qual se identifica Clara, era usada na época para designar um mosteiro fundado por
outro. Ao utilizar essa imagem, a abadessa faz questão de dizer que sua Ordem foi fundada por São Francisco e não é
beneditina. Há uma nítida resistência à adoção da regra beneditina na reivindicação da pertença à Ordem Franciscana,
contudo, há uma consonância com a ordem do discurso estabelecido evidenciada pela submissão a autoridade papal. Isso
é condição para que ela seja confirmada como fundação de Francisco de Assis, o qual na sua regra exige a comprovação
de que os candidatos à Ordem fossem realmente católicos. Algumas passagens da Forma de vida de Clara de Assis,
além da que já foi citada expressam insistentemente esse caráter eclesial.

Se alguém, por inspiração divina, vier ter conosco querendo abraçar esta vida, a abadessa deverá
pedir o consentimento de todas as irmãs. E se a maioria concordar, [sic] poderá recebê-la, tendo
obtido a licença do nosso cardeal protetor. Se achar que deve ser recebida, examine-a diligentemente,
ou a faça [sic] examinar sobre a fé católica e os sacramentos da Igreja. Se crer em tudo isso e quiser
confessá-lo fielmente e observá-lo firmemente até o fim, não tiver marido ou, tendo-o, ele já houver
entrado na vida religiosa com autorização do bispo diocesano, e feito o voto de continência, e se não
for impedida de observar esta vida pela idade avançada ou alguma enfermidade ou deficiência mental,
que lhe seja exposto diligentemente o teor de nossa vida. (TEXTO ..., 2004, p.22). [grifos nossos].

Essa submissão à Cúria Romana chega até a obediência cotidiana marcadamente expressa:

cuidem com toda diligencia que a porta [de entrada no mosteiro] nunca fique aberta, a não ser o
mínimo possível, segundo a conveniência. E não se abra absolutamente a quem quiser entrar, a não
ser que lhe tenha sido permitido pelo Sumo Pontífice ou pelo senhor nosso Cardeal [grifo nosso]
(TEXTO ..., 2004, p.33).

A abadessa apresenta sua proposta a Inocêncio IV, o qual propusera sua própria Forma de Vida às comunidades
religiosas que a hostilizaram vivamente julgando inconsistente seu conteúdo. Clara consegue não só a aprovação da Igreja
para seu propósito como também a proteção e a garantia de que ele fará os frades cumprirem suas responsabilidades para
com as irmãs: “nosso visitador seja sempre da Ordem dos Frades Menores, acordo com a vontade e o mandato de nosso
Cardeal” (TEXTO ..., 2004, p.33). Com efeito, “tanto as autoridades eclesiásticas quanto os frades relutaram muito em
aceitar este princípio que, para Clara, é sagrado: ela e suas Irmãs estão ligadas aos frades menores pela obediência” (OS
ESCRITOS .., 2004, p.22).
A partir do que foi exposto, deduz-se que essa ligação não é reivindicada apenas por espírito fraterno e de
piedade, mas como garantia de existência da própria Ordem nas condições que reivindica. Recorde-se que essa conquista
de Clara de Assis não é pessoal, mas representa a resistência de um movimento religioso feminino mais amplo ao
enquadramento na ordem da Igreja: “as comunidades femininas insistiam em manter a própria originalidade e autonomia,
embora buscassem a assistência espiritual das Ordens mendicantes e desejassem a aprovação da Igreja” (BRUNELLI,
1998, p.57).
Dito de outra forma, não era porque queriam e precisavam ter reconhecida a afiliação às ordens masculinas que
estavam dispostas a adotarem o discurso deles sobre elas. Talvez tenha sido essa uma das razões pela recusa da
comissão e da incorporação de comunidades de frades aos mosteiros damianitas, o que resultaria numa espécie de
mosteiro duplo franciscano. Ou seja, para cada mosteiro das Damas Pobres existiria um convento masculino submisso à
abadessa do mosteiro dado. Não seria absurda a ideia de que isso pudesse resultar no inverso. E, seria certamente esse o
temor das religiosas.
A fama de santidade da abadessa é outro elemento que fortalece seu ethos discursivo, sendo ela mesma uma
autoridade religiosa, condição reforçada pela posição humilde e serviçal que assume na sua regra. Uma dissimulação da
resistência do seu discurso e ao mesmo tempo uma declaração de adesão à ordem do discurso. Seria falsa adesão se não
se comprovasse pelo próprio texto o quanto ela cedeu para garantir a aprovação de suas constituições. No capítulo 1 de

735
sua Forma de vida, Clara reivindica a legitimidade de uma nova formação discursiva numa mesma e tradicional formação
ideológica, aquela que anima a vida consagrada na Igreja católica medieval, pois apesar de proclamar-se franciscana, Clara
admite viver como beneditina nos moldes do cardeal Hugolino, embora não o faça verbalmente.
Um leitor que desconhece a tradição monástica reconheceria na heterogeneidade da Forma de vida de Clara de
Assis apenas elementos de textos bíblicos, litúrgicos, além da passagem marcada da recomendação de Francisco para sua
Ordem, copiada integralmente no capítulo 6, 3-5.

Vendo o bem-aventurado pai que não temíamos nenhuma pobreza, trabalho, tribulação, humilhação e
desprezo do mundo, antes tínhamos tudo isso como um prazer, movido de piedade escreveu-nos uma
forma de vida deste modo: ‘desde que, por inspiração divina, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo
Sumo Rei Pai celeste e desposastes o Espírito Santo, optando por uma vida de acordo com a perfeição
do santo Evangelho, eu quero e prometo, por mi e por meus frades, ter por vós o mesmo cuidado
diligente e uma solicitude especial, como por eles’. Cumpriu-o diligentemente enquanto viveu, e quis
que fosse sempre cumprido pelos frades (TEXTO ..., 2004, p.28).

Apesar da reivindicação de pertença à Ordem Franciscana, ela praticamente copia a Forma de Vida do cardeal
Hugolino, a qual remete à regra beneditina. Clara precisou de articular todos os seus conhecimentos sobre a Regra de São
Francisco, a Regra de São Bento, as formas de vida de Hugolino e de Inocêncio IV, além de seus conhecimentos bíblicos,
na elaboração de um propósito de vida que, ao mesmo tempo em que salvaguardava os elementos constituintes do seu
carisma pessoal não desacatava as prescrições da Igreja para a vida religiosa feminina.
Clara de Assis finda por reverter a seu favor o discurso construído em torno dela para comprimir o movimento
religioso feminino numa única via. Com as passagens autobiográficas ela diz indiretamente que seu intento é legítimo, pois
desde o início tem clareza de sua vocação acolhida e orientada por Francisco de quem a Igreja reconhecera a ortodoxia da
fé e o radicalismo evangélico. A mesma Igreja a quem ela permanecia fiel admitira oficialmente e atendera a seu desejo de
pobreza radical e se comprometera com sua manutenção. Ou seja, em nada as constituições clarianas contrariam a ordem
do discurso eclesiástico conquanto apresente uma proposta assentada no evangelho em formas canonicamente instituídas
de vida religiosa.
Do ponto de vista discursivo/literário, para além das mínimas modificações com relação ao texto dos prelados, o
que há de novidade do discurso da abadessa de São Damião é a heterogeneidade que ela faz questão de mostrar dos
princípios franciscanos. Estes ora são postos na pena de Francisco, ora na pena dela mesma ora na pena dos pontífices
quando estes são constrangidos a acatá-la por meio de documento oficial, embora essa heterogeneidade não seja
marcada.
Rotzetter (1994) enfatiza que as constituições clarianas deviam estar prontas em 1251 e já seriam observadas
pelas irmãs de São Damião. Ele reconhece a limitação das conquistas de Clara na sua Forma de Vida, mas acredita que
esta realização literária não é apenas pequena, pois de diferentes fontes e do próprio acervo de idéias, ela conseguiu redigir
um texto que possui unidade e força de convicção. De fato, foi essa habilidade discursiva de Clara de Assis que lhe permitiu
hastear-se na ordem de um discurso estritamente patriarcal, legitimando seu lugar e seu discurso na Igreja do seu tempo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O discurso da Forma de Vida de Clara de Assis contém discursos do movimento religioso feminino nas suas
duas vertentes, a contemplativa e a itinerante. Nesse sentido, o discurso de Clara não é somente na medida em que é
portador de vozes diversificadas que a ultrapassam. Ao longo da leitura dos discursos em questão, encontrou-se um
confronto de poderes e de vozes manifesto ora no silêncio ora na linguagem. No discurso da Forma de Vida de Clara de
Assis há uma tensão velada, habilmente dissimulada, no qual se encontram tanto um sujeito assujeitado à ideologia

736
hegemônica, como um sujeito ativo-responsivo. Esta posição é particularmente sentida nas passagens autobiográficas do
texto, uma forma de resistência ao silenciamento, e na defesa da pobreza e da pertença à Ordem Franciscana. Clara de
Assis serviu-se da forma discursiva ou fato de linguagem autobiográfica para garantir-se um lugar legítimo na formação
ideológica eclesial.
Clara de Assis está longe de ser apenas um ícone da santidade medieval, pois ela, como Francisco de Assis viveu
uma proposta de vida que desafiou seu tempo, sua cultura e seu povo de forma que seu discurso continua atual. No
entanto, é preciso refletir sobre a atenção que vem sendo dada à figura de Clara. Há certa conveniência na defesa de seu
papel nos primórdios do Movimento Franciscano. O risco é projetar uma influência em proporções que não condizem com o
momento histórico que originou seu discurso. De fato, em todos os momentos de releitura da Forma de Vida de Clara de
Assis foram-lhe atribuídos novos sentidos e, sem a devida contextualização, fica difícil identificar os elementos discursivos
mais pertinentes à primeira abadessa de São Damião e sua relação com o conjunto do movimento religioso feminino.
As leituras transcursadas levam a crer que na reprodução há deslocamento admitindo-se a hipótese de que Clara
de Assis tenha reproduzido parcialmente um discurso para fazer ouvir outro pretensamente seu de modo a (re)significar
sentidos através do que silencia, o que viria a ser uma forma de significar como contradição-transformação em jogo com a
hegemonia. A Igreja Católica não canoniza pessoas que, apesar de fortes indícios de santidade, constituíram-se maus
sujeitos da formação discursiva eclesiástica hegemônica. Não obstante, a Igreja mantém uma política de tolerância /
silenciamento que possibilita a manutenção da ‘heterogeneidade’ de suas próprias formações discursivas ao longo da
história sem, contudo, alterar o discurso hegemônico. Aponta-se para a (re)significação do discurso de Clara hoje haja vista
que as discussões em torno de seus escritos decorrem não somente da recente descoberta de seus textos, mas também
das determinações do Concílio Vaticano II que vem forçando as congregações religiosas a se debruçarem sobre seu
passado para lá identificarem seu carisma original. Isso não deixa de ser uma forma de controle dos destinos dos religiosos,
e da releitura feita podem ocorrer avanços e / ou retrocessos na vida religiosa consagrada.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Hermínio. A Família Franciscana em Portugal das origens ao início do XXI. Disponível In:
<http://www.congressoordens2010.net/herminio%20araji.pdf>

BÁRTOLI, Marco. Clara de Assis. Petrópolis, RJ: Vozes; FFB, 1998.

BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Análise do discurso: um itinerário histórico. Disponível In:
<HTTP://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/brand005.pdf>.

BRUNELLI, Delir. Ele se fez caminho e espelho: o seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis. Petrópolis, RJ: Vozes ;
FFB, 1998.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências da análise do discurso. Campinas : Pontes,1989.

ORLANDI, Eni P. Análise de discurso. 4.ed. Campinas-SP: Pontes1999.

ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas-SP: Unicamp, 2007.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, Tradução. Eni P. Orlandi et al. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1998. (Coleção Repertórios.)

ROTZETTER, Anton. Clara de Assis: a primeira mulher franciscana. Petrópolis, RJ: Vozes ; Cefepal, 1994.

737
TEXTO da bula “Solet annuere” com a forma de vida de Santa Clara. In: FONTES franciscanas e clarianas. 4. ed. Tradução
Frei José Carlos Corrêa Pedroso. Centro Franciscano de Piracicaba, 2004; p. 20-34.

A autora é mestranda em Letras – UFS, na área de Estudos da Linguagem e Ensino, linha 1 – Teorias do texto. Licenciada
em Letras/Português pela Universidade Tiradentes – UNIT. É membro do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em
Lexicologia (GIPLEX), atuando na linha de pesquisa Léxico e Ensino de Língua Portuguesa.

siurinha@gmail.com

738
O discurso arquitetural de Oscar Niemeyer e suas filiações
discursivas
JULIÃO, Raquel Manna
(UFMG)

Introdução

Este trabalho parte de uma reflexão sobre a relação entre arquitetura e discurso. Como qualquer campo de
conhecimento, a arquitetura é constituída por discursos, inclusive os originados em outros campos. O presente recorte
pretende uma aproximação ao discurso arquitetural de Oscar Niemeyer através da investigação de suas filiações
discursivas.

É importante esclarecer que chamamos discurso arquitetural o conjunto da produção do arquiteto, o que inclui
seus textos escritos, desenhos, projetos e, especialmente, as suas obras. Quanto à investigação das filiações discursivas
nossa pesquisa privilegiou o campo das artes por três motivos. O primeiro deles é que o próprio Niemeyer refere-se à sua
arquitetura como arte. Isso já é um indicativo da importância do campo da arte na constituição de seu discurso. O segundo
motivo é que identificamos uma marca, uma assinatura no seu discurso arquitetural, que vem se delineando ao longo de
mais de sete décadas de produção. Essa marca é o uso da curva livre. Esse elemento não faz parte do vocabulário plástico
da arquitetura moderna, então fomos buscar suas origens em outras fontes, isto é, nas artes plásticas. Finalmente, é
conhecido o fato de a maior influência profissional sobre Niemeyer em sua juventude foi a do arquiteto Le Corbusier. Ora, o
mestre franco-suiço participou das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, tendo sido inclusive fundador de
um movimento estético: o Purismo. Foi a partir das idéias apresentadas no Manifesto Purista que Corbusier desenvolveu
sua formulação teórica da arquitetura.

Examinamos brevemente as principais tendências das vanguardas


modernas, a partir do cubismo e do construtivismo até o neoconcretismo no Brasil.
Nosso objetivo é situar o discurso de Le Corbusier nesse contexto, e, a partir disso,
examinar o diálogo de Niemeyer com as vanguardas. Nossa hipótese é a de que o
discurso arquitetural de Niemeyer tende a divergir daquele da tendência racionalista
relacionada ao construtivismo (que domina a fase de formação do modernismo,
entre as décadas de1910 e1950) ao qual se vincula o purismo de Le Corbusier. Ao
contrário, o discurso de Niemeyer evolui para uma proximidade cada vez maior com
certas tendências artísticas irracionalistas. Figura 1: Georges Baque,
Violino e castiçal (1910)

739
Cubismo

A tarefa principal da arte moderna foi a de destruir a representação naturalista, isto é, a


descrição de objetos realísticos em ambientes naturais (isso inclui o perspectivismo na pintura). Tudo
começa com o cubismo que partiu da rejeição à figuração imitativa, passou pela ‘cubificação’ das
figuras, e evoluiu para uma planificação dos objetos, fazendo desaparecer a terceira dimensão. Isso
resultou numa transformação radical da linguagem pictórica (Gullar, 1999. p.22), rompendo com o
vocabulário figurativo e com a perspectiva Quanto à escultura, ela perde seus contornos e,
consequentemente, a unidade e a coerência.

Figura 2: Picasso,
Guitarra (1912-13)
em folha de metal Vanguardas russas
e arame.
Também por influência do cubismo, especialmente de Picasso, surgem Figura 3: Tatlin, contra
movimentos artísticos na Rússia, que, por sua vez, irão influenciar a Europa. O mais relevo.
importante foi o construtivismo de Wladimir Tatlin que compartilhava com outras
tendências o fascínio pela mecânica. Mas os objetos criados por ele, os contra-relevos,
são inovadores por fugirem à estabilidade do pedestal (usado na escultura) e da parede
(usada como suporte da tela na pintura). Eles ficam suspensos por fios estendidos no
encontro de duas paredes. São construções que equivalem à passagem da pintura para
o espaço (Gullar, 1999, p.147). Esse foi o aspecto mais revolucionário da vanguarda
russa, pois os relevos de canto inauguram uma relação espacial que só será adotada décadas depois, pela arte
contemporânea: eles estão em relação de continuidade com o espaço do mundo, e dele dependem para ter um significado.
O contra relevo não guarda uma essência ou uma lógica estrutural: a lógica está na superfície mesma (Krauss, 2007, p.76).
Entretanto, na mesma época, em Moscou, Naum Gabo apresentava uma obra
que se opunha totalmente ao avanço de Tatlin pelo ‘espaço real’. Seus objetos
procuravam revelar a ‘estrutura’ ou a lógica construtiva da obra enquanto uma geometria
imediatamente legível. Para esse artista, o espaço da obra deveria revelar-se
conceitualmente transparente.

A penetração dessa vertente mais idealista do construtivismo no ocidente se fará


principalmente através da influência indireta de Lissitzky na Bauhaus nos anos 20. Os
desenhos desse artista exploravam efeitos óticos provenientes de cruzamento de linhas,
Figura 4: Naum Gabo,
interseção de planos e construção de formas tridimensionais que aparentemente se
Torção (1975)
projetavam para fora do quadro. Ele considerava seus quadros uma transição à
arquitetura. A Bauhaus foi uma escola criada na Alemanha pelo arquiteto Walter Gropius em 1919, que se voltou também
para a arquitetura e a produção industrial de objetos utilitários.

740
A concepção do objeto (inclusive o arquitetônico) na Bauhaus era baseada mais numa construção mental que
numa concretude material. A construção deveria ser assimilada aos termos ideacionais de um espaço mental. Nesse
sentido, Gropius falava de uma gramática da comunicação visual.

O construtivismo será ainda uma das principais fontes da arte concreta, tal com
desenvolvida mais tarde na Escola de Ulm (sucessora da Bauhaus, criada em 1952) e cuja
figura central será Max Bill. Bill vai além do construtivismo – naquele sentido de objeto
estruturado por uma geometria legível. – ele elabora modelos de conceitos matemáticos em
forma de escultura. . Por ser a concreção de uma idéia – por oposição à imitação da
natureza – essa estética é chamada concreta. A arte concreta acentua o caráter objetivo e
verificável da imagem final (do objeto). Isso implica na compreensão da atividade artística

Figura 5: Max Bill, como ligada também às noções científicas. Todos esses artistas ligados a idéia
Unidade Tripartida construtivista adotavam estratégias de construção do objeto a partir de um núcleo gerador –
(1958)
um eixo de simetria, de maneira a possibilitar a apreensão imediata e o domínio conceitual
da forma.

Le Corbusier e o purismo

Na mesma época da criação da Bauhaus, em 1918, Le Corbusier, um jovem arquiteto, lança o manifesto de
fundação do purismo. Sua argumentação é desenvolvida em torno
de três pontos: a crítica ao cubismo, a defesa de um método
científico na pintura e a valorização da arte grega e romana. Num
texto pretensamente rigoroso e lógico, mas bastante contraditório,
deixa clara a aversão por qualquer tipo de ambiguidade,
complexidade ou fantasia na arte. Para o autor, a arte deve partir de
bases científicas, de invariantes resultantes da generalização que

podem ser expressas numericamente. “O purismo teme o bizarro e o Figura 6: Le Corbusier, Villa Savoye ( 1928 )
original” (Ozenfant, Jeanneret, 2005. p.81). Corbusier propõe
parâmetros como ‘coeficiente de beleza’ e ‘rendimento de beleza’ que
são funções do rigor na aplicação de leis que são relações numéricas.

Essas idéias irão fundamentar a sua formulação teórica da arquitetura moderna. A bi-dimensionalidade e a
simplificação das formas pela geometrização adotadas no purismo se manifestarão na arquitetura. O uso da proporção
áurea e a rejeição à ornamentação são aspectos da racionalização e rigor da sua proposição. Le Corbusier estabelecerá
mais tarde princípios estritos para a composição arquitetônica, capazes de garantir o resultado formal desejado: a
construção sobre pilotis, a estrutura independente, a fachada livre, a planta livre e o terraço jardim.

741
Importa ressaltar aqui a relação do pensamento de Le Corbusier com o construtivismo, no que se refere à
racionalidade da composição e à facilidade de apreensão da forma, bem como com o concretismo, especialmente no desejo
de embasamento científico da arte.

Outras vertentes da vanguarda

Mas nas primeiras décadas do século XX delineavam-se outras tendências


artísticas, e que expressavam uma atitude critica à racionalidade construtivista. Seus
discursos se constroem em torno de noções como o acaso (no caso do dadaísmo), ou o
inconsciente (no caso do surrealismo). Alguns artistas mantiveram-se independentes dos
movimentos de sua época, mas realizaram uma obra da maior importância. Entre eles está
Brancusi, que parece ter sido referência fundamental no discurso arquitetural de Niemeyer.
Figura 7: Brancusi,
Maiastra (1912 (?) em
bronze polido

Brancusi
Brancusi manteve sua arte no terreno figuração, trabalhando a
semelhança com formas humanas ou animais. Seus volumes são blocos
inteiros, sem articulações, blocos que parecem ser a deformação de um
volume ideal.
Vemos em Brancusi a redução
da forma a seus elementos essenciais,
no sentido contrário ao da mimese. É
importante observar que o artista
permanece ligado a questões clássicas,
como no uso de um material tradicional
como o mármore, associado a certa
Figura 8: Brancusi. Pássaro no
espaço (1923) em mármore luminosidade clássica. Ainda, o caráter
quase simétrico das formas, remete à
Figura 9: Brancusi, Início do
organicidade clássica (Borda, 2007. mundo (1920)
p.42). A simetria facilita a apreensão do objeto escultórico, o qual se oferece por inteiro em mármore, metal e pedra
ao olhar. Essa apresentação é enfatizada pelo destaque dado ao objeto com relação ao
ambiente, seja por um suporte contrastante, seja pela existência de um espaço amplo em torno da peça, destacando-a.

742
O neoconcretismo e o minimalismo

É uma manifestação moderna brasileira desenvolvida a partir de tendências


européias que surge no Brasil a partir de 1959 como uma reação à exacerbação
racionalista dos concretistas Para os concretistas a forma estava desligada do contexto
significativo, era como que uma ilustração de conceitos apriorísticos (Gullar, 1999, p.245).
A obra neoconcreta por sua vez, chama o espectador a participar. Sua percepção visual é
contaminada por conotações táteis: o espectador passa da contemplação à ação. Nos
Bichos de Lygia Clark, por exemplo, a estrutura se transforma na medida em que a
movimentamos (Gullar, 1998, p.255).
Figura 10: Lygia Clark,
Bicho (1959)
Trata-se de uma obra que se realiza diretamente no espaço real sem os
apoios semânticos convencionais comi a moldura (para a pintura) e na base (para a
escultura). Essa relação com o espaço comum – também própria do minimalismo –
caracteriza um espaço em obra: um espaço que se faz na medida mesma em que a
obra só se completa na conexão com o espaço comum, contendo-o, mas também o
alterando (Tassinari, 2006). Essa é uma relação espacial própria da arte
contemporânea.

Figura 11: Amilcar de Castro

O discurso arquitetural de Niemeyer e o diálogo com a arte

Um exame da evolução da obra de Niemeyer revela seu


progressivo afastamento do rigor geométrico e da abstração total
características do construtivismo. É verdade que o uso da curva e a
evocação de formas da natureza já vinham sendo praticado desde a
década de 1940 (como

Figura 12: Niemeyer, Casa do Baile. Belo


Horizonte (1943 na casa do baile (1942).

Mas a partir de Brasília Niemeyer passa a centrar-se em formas


compactas, quase corpóreas, marcando a ruptura (e não mais a
permeabilidade) entre interior e exterior. Muitas dessas obras se
destacam pelas curvas sinuosas e pela liberdade plástica. O caráter
Figura 12: Cúpulas do Congresso (1960)

743
escultórico dessas formas tem algo a ver com o purismo de Le Corbusier, especialmente quando se trata de formas
regulares.

Mas, cada vez mais, essa corporeidade se aproxima de certa vertente da escultura
moderna. É clara a relação, por exemplo, com a obra de Brancusi e com a vertente escultórica
que dele procede (como Hans Arp). Com eles Niemeyer compartilharia várias questões
conceituais: a referência ao corpo, o tratamento abstratizante da figura, a simetria (que garante
uma apreensão unitária da forma), a luminosidade clássica e a relação entre o objeto e o
espaço em que se insere.

Figura 13: Hans Arp,


Torso-Garbe (1958)
em mármore. Vemos que em Niemeyer, o
caráter compacto e o sentido de integridade de seus volumes geram uma
clara separação entre a obra e o ambiente. Além disso, os espaços
amplos e pavimentados que cercam as edificações, contribuem para
destacar os edifícios do contexto. O pavimento funcionaria, assim, como
a base das esculturas. E nos volumes brancos, muitos revestidos de
mármore haveria alusão à luminosidade clássica. Mas também no que se Figura 14: Panteão da Pátria (1985)

refere à percepção da forma ocorre esse diálogo.

Sabemos que uma estrutura ordenada é o meio de dotar a obra de


inteligibilidade, permitindo ao espectador decifrar a relação entre as partes e
relacioná-las com uma lógica estrutural primeira. Isso é justamente o que
pretendem as obras de arte construtivistas e concretistas, bem como as obras
arquitetônicas afiliadas a essas tendências. Trata-se, portanto, de uma
experiência temporal analítica. Mas a estranha inteireza e a opacidade da
Figura 16: Teatro Popular de Niterói forma em artistas como Brancusi e Arp tornam a obra resistente à análise
(2007) (Krauss, 2007, p.128). Disso resulta que a experiência temporal do
espectador passa a ser a do tempo real, do tempo experimentado, aberto e
incompleto. Isso tende a acontecer também nas obras de Niemeyer, pelo seu caráter denso, corpóreo, e que resulta da
integração entre a estrutura física e o volume da edificação, definido em curvas livres.
Figura 17: vista a partir do Museu
de Arte Contemporânea, Niterói

Paralelamente a essa experiência de tempo real, o espaço arquitetural


em Niemeyer – especialmente no caso das obras da fase de desdobramento da
arte moderna, a partir da década de 1950 – tende a se apresentar enquanto
espaço em obra, espaço que está sempre se fazendo – aquele mesmo espaço
que encontramos na arte neoconcreta brasileira ou no minimalismo americano.
E isso por duas razões: a primeira é que sua arquitetura incorpora o espaço do mundo comum, na medida em que a

744
paisagem penetra o edifício, ao mesmo tempo em que o edifício a modifica, como no caso do Museu de Arte
Contemporânea e do Teatro de Niterói
A segunda razão é que, nesses casos, a obra reclama o visitante como condição do seu fazer-se. Ela só se torna
completa ao ser percorrida. Sem o caminhar do visitante, a obra só existe em potência, à espera do ato humano que a
atualize.

Figura 18: rampas espiraladas do


Museu de Arte Contemporânea,
Niterói

Referências

Borda, Luis Eduardo. Vinculo da Forma in Nossa América - Revista do memorial da América Latina n.25 (2007).

Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34 (1998).

Gullar, Ferreira. Etapas da arte contemporânea – do cubismo à arte neoconcreta. Rio de Janeiro: Editora Revan (1999).

Krauss, Rosalind E. Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes Editora (2007).

Le Corbusier. Por uma arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva (1977).

Ozenfant, Jeanneret (Le Corbusier). Depois do cubismo. São Paulo: Cosac Naify (2005).

Tassinari, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify (2006).

A autora é arquiteta e mestre em arquitetura pela Universidade de Londres, doutoranda em Letras pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Email: raquelmj@uai.com.br

745
Abordando textos sincréticos em sala de aula

LARA, Glaucia Muniz Proença


(UFMG)

1. Introdução

Para a Semiótica Francesa (Greimasiana), o texto se constitui na junção de um plano de conteúdo (o do discurso)
com um plano de expressão (verbal ou não verbal: visual, gestual, sonoro etc). Tal conceito, como se vê, é bastante amplo,
não se limitando ao texto verbal. Considerando que, atualmente, vivemos numa sociedade impregnada de imagens, cabe
ao professor/pesquisador em análise do discurso dotar seus alunos de dispositivos teórico-metodológicos adequados para
examinar não apenas textos visuais (fotografias, pinturas etc), mas também textos sincréticos, isto é, aqueles em que se
integram pelo menos duas linguagens, como, no caso que nos interessa aqui, a linguagem verbal e a não verbal/visual das
capas de revista. A escolha desse objeto de estudo deve-se ao fato de que as capas de revista fazem parte do nosso
cotidiano, tornando-se, pois, bastante acessíveis para um trabalho em sala de aula.
De acordo com Teixeira (2008), os textos sincréticos são particularmente desafiadores, o que tem levado algumas
teorias a buscar aparatos metodológicos para sua compreensão. Entre as teorias que vêm oferecendo um instrumental
consistente e de ampla utilização pelos estudiosos do discurso no Brasil, encontra-se a semiótica discursiva, fundada por
Greimas. Nessa abordagem, o elemento sin- (de sincrético) traz o sentido de unidade e integração. Assim, é possível
observar as diferentes linguagens que constituem, por exemplo, uma capa de revista, tomando-as como

uma unidade construída por uma estratégia enunciativa integradora que, ao mobilizar diferentes
linguagens, potencializou e, ao mesmo tempo, diluiu o que cada código tem de particular, para permitir
a manifestação de uma outra coisa, um texto verbovisual em que os elementos se articulam segundo
um ritmo, variações de tonicidade, gradações etc (TEIXEIRA, 2008, p. 173).

A semiótica discursiva (ou greimasiana) mostra-se, pois, bastante pertinente para uma análise de textos
sincréticos (no caso, verbovisuais) que acolha a ideia de integração não apenas entre conteúdo e expressão, mas também
entre as linguagens que se articulam, no plano de expressão, para textualizar o discurso, fazendo com ele seja assumido
como um “todo significativo”. É, portanto, essa a proposta teórica que – sem desmerecer outras – assumimos aqui.

2. Princípios e procedimentos da semiótica discursiva

Tomada como teoria da significação, a semiótica tem como objetivo explicitar as condições da apreensão e da
produção do sentido. Em outras palavras: interessando-se por qualquer tipo de texto (verbal, não verbal ou sincrético),
busca descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz, examinando, em primeiro lugar, o seu
plano de conteúdo por meio de um modelo que “simula” a produção e a interpretação de um texto. Trata-se do percurso
gerativo de sentido, que vai do mais simples e abstrato (nível fundamental) ao mais complexo e concreto (nível discursivo),
passando por um nível intermediário – o narrativo.
Porém, se, num primeiro momento, a teoria semiótica concentra-se na análise do plano de conteúdo, num
segundo momento, ela se volta para o plano de expressão, procurando examiná-lo naqueles textos em que esse plano faz

746
mais do que expressar o conteúdo, como acontece nos textos com função estética (poema, ballet, pintura etc). Neles, o
plano de expressão pode não se limitar a expressar o conteúdo (como nos textos com função utilitária); nesse caso, ele cria
novas relações com o conteúdo, contribuindo para a significação global do texto.
Quando ocorre uma correlação entre categorias dos dois planos (e não entre unidades como nos sistemas
simbólicos), temos os sistemas semissimbólicos. Nesse caso, tal correlação não é dada a priori, mas construída no/pelo
texto. Assim, uma categoria como /humanidade/ vs /divindade/ do plano de conteúdo de um dado texto pode relacionar-se,
semissimbolicamente, a categorias do plano de expressão como baixo vs alto (componente topológico) ou ainda escuro vs
claro (componente fotocromático). Em suma, como afirma Barros (2003, p. 210-211), o semissimbolismo oferece uma nova
leitura do mundo, ao associar diretamente relações de cor, de forma (plano de expressão) com relações de sentido (plano
de conteúdo).
Isso significa que um leitor proficiente deve ser capaz de apreender os dois planos – conteúdo e expressão – que
constituem o texto e de perceber as relações entre eles. Ora, a escola tem abordado muito mais o texto verbal (sobretudo
escrito) e tem-se concentrado muito mais no conteúdo do que na expressão. Dessa lacuna surge a possibilidade de um
trabalho que, levando em conta as necessidades “imagéticas” do mundo atual, já apontadas na Introdução, busque preparar
os alunos de diferentes níveis de ensino para “ler” eficazmente também o texto sincrético (verbovisual). Antes, porém, de
apresentar nossa proposta, vejamos que contribuições a semiótica plástica ou visual, como um desdobramento mais
recente da semiótica discursiva, pode nos trazer.

3. Da semiótica standard à semiótica visual: contribuições

Colaborador de Greimas, Jean-Marie Floch, um dos principais fundadores da semiótica visual, buscou aplicar o
conceito de semissimbolismo a textos de diferentes domínios: artes plásticas, marketing, comunicação etc. Retomando as
palavras do próprio Floch, Pietroforte (2004, p. 10) destaca que a semiótica plástica ou visual faz parte da semiótica
semissimbólica, a qual, por seu turno, integra a semiótica poética. Nessa perspectiva, toda relação semissimbólica seria
poética (no sentido amplo do termo), mas nem toda relação poética seria semissimbólica.
Quanto às denominações visual e plástica, que, via de regra, são usadas de forma indiferenciada, Oliveira (2004,
p. 12), pontuando que o adjetivo plástica pode abranger o estudo do plano de expressão das manifestações visuais as mais
distintas (artísticas, midiáticas etc), prefere a denominação “semiótica plástica”, definindo-a como uma semiótica “que se
ocupa da descrição do arranjo da expressão de todo e qualquer texto visual”. Apesar disso, uma grande parte dos autores
que trabalha com essa abordagem teórica continua tomando os dois termos como equivalentes, posição que também
assumimos aqui.
A dicotomia expressão/conteúdo vem de Hjelmslev (1968). Para ele, o sentido ocorre pelo encontro desses dois
níveis que, como tais, são suscetíveis de ser analisados pela mesma metalinguagem descritiva. O plano de conteúdo, como
vimos, é examinado por meio do percurso gerativo de sentido com seus três níveis: o fundamental, o narrativo e o
discursivo (nível mais complexo e concreto, que abre caminho para o plano de expressão).
Resumidamente, no nível fundamental, encontram-se as oposições ou categorias semânticas de base que
sustentam o texto, bem como as operações de asserção e de negação que sobre elas se realizam. Assim, uma oposição
como a já citada /humanidade/ vs /divindade/, implica dois termos contrários que, pela negação, geram seus contraditórios,
respectivamente, /não-humanidade/ e /não-divindade/ (que, entre si, são subcontrários). Além disso, /humanidade/ e /não-
divindade/, bem como /divindade/ e /não-humanidade) são complementares. Os termos contrários /humanidade/ e
/divindade/ são valorizados (positiva ou negativamente) pela projeção sobre eles da categoria tímica euforia vs disforia.

747
Teremos ainda termos complexos (reunindo /humanidade/ e /divindade/) ou neutros (somando /não-humanidade/ e /não-
divindade/). Todas essas articulações lógicas são passíveis de representação no quadrado semiótico:

termo complexo
S1 S2
humanidade divindade
__ __
S2 S1
não-divindade não-humanidade
termo neutro

Exemplificando: na tela de Mestre Ataíde, “Batismo de Cristo” (vide LARA & MORATO, 2008), o “movimento” do
texto seria: humanidade → não-humanidade → divindade, já que Cristo, ali representado como um homem comum,
ascende ao divino pelo sacramento do batismo. Trata-se de um texto euforizante, uma vez que o termo eufórico da
categoria semântica de base é a /divindade/.
No nível narrativo, os valores abstratos e virtuais do patamar anterior (o fundalmental) transformam-se em valores
inscritos em objetos – o que faz deles objetos-valor (Ovs) – com os quais os sujeitos se relacionam por conjunção ou
disjunção. À relação sujeito/objeto, que lhes confere existência semiótica, somam-se as relações que se instauram entre
sujeitos (que manipulam ou são manipulados, que julgam ou são julgados, que disputam Ovs etc), simulando-se, dessa
forma, a ação do homem no mundo. Na tela mencionada, o sujeito Cristo entra em conjunção com o Ov batismo pela ação
(performance) de um outro sujeito (João Batista), o que torna mais concreto e mais complexo o “movimento” do nível
fundamental – por definição, mais simples e abstrato – como foi descrito no parágrafo anterior.
Finalmente, no nível discursivo, estudam-se, entre outras categorias (como as de pessoa, tempo e espaço, que
ancoram o texto numa situação comunicativa), os temas – ou elementos abstratos que ordenam e explicam a realidade – e
as figuras – ou elementos concretos que constroem simulacros do mundo, recobrindo os temas que lhes são subjacentes.
Desse modo, continuando com nosso exemplo, vemos que o homem semi-despido (Cristo), no barranco de um rio, sobre
cuja cabeça um outro ator (João Batista) despeja água figurativiza o tema da salvação (que se opõe ao da danação,
decorrente do pecado).
Os temas e figuras, presentes na última etapa do percurso gerativo de sentido (componente semântico1 do plano
de conteúdo), abrem caminho para o plano de expressão, cujas categorias ainda não tiveram um percurso solidamente
estabelecido, como foi feito para o plano de conteúdo. Apesar disso, como observa Lopes (2003), Greimas (1987), ao tecer
comentários sobre o visível, na obra De l’imperfection, teria esboçado um percurso gerativo para o plano de expressão, que
poderia ser sucintamente descrito no quadro 1 a seguir:

1Lembramos que todos os níveis do percurso gerativo de sentido são dotados de um componente sintáxico (os arranjos que organizam
os conteúdos) e de um componente semântico (os conteúdos investidos nos arranjos sintáxicos).

748
Quadro 1
Nível superficial Forma
(dimensão eidética)
Nível intermediário Cor
(dimensão cromática)
Nível profundo Luz
Adaptado de Lopes (2003, p. 69)

O quadro acima – que, originalmente, inclui também elementos musicais (tom, pulso e frequência) – mostra que
formas e cores dependem ambas da presença da luz, sem a qual nem uma, nem outra teriam qualquer efeito sobre o
espectador. Daí a colocação dessa categoria no nível mais profundo do percurso. No entanto, assumimos com Morato
(2008), que luz e cor mantêm entre si uma ligação mais íntima, o que nos permite postular uma dimensão fotocromática,
reunindo esses dois formantes. Não podemos perder de vista também, a dimensão topológica, referente à espacialidade,
que é contemplada, por exemplo, em Greimas (2004).
De modo que, para analisar o plano de expressão visual dos textos sincréticos (capas de revista), utilizaremos as
três dimensões dispostas no quadro 2, sem estabelecer uma hierarquia entre elas, uma vez que as entendemos como
complementares na unidade de sentido que é o texto.

Quadro 2
Dimensão Topológica Eidética Fotocromática
Exemplo alto vs baixo curvilíneo vs retilíneo luz vs sombra
central vs lateral uniforme vs multiforme policromático vs
monocromático

Já para a análise do plano de expressão verbal dos textos sincréticos – os enunciados que, geralmente,
acompanham a imagem – levaremos em conta outros elementos, como o ritmo, a rima, os “jogos sonoros” (aliterações,
assonâncias), quando isso for pertinente para a construção de relações semissimbólicas entre conteúdo e expressão, uma
vez que há textos verbais que cumprem apenas a função referencial (de ancoragem do texto numa dada situação), não
adquirindo, assim, efeitos de poeticidade. Nesse caso, o leitor “atravessa” simplesmente o plano de expressão verbal e vai
diretamente ao conteúdo para apreender as informações veiculadas.
Por exemplo, segundo Pietroforte (2004, p; 60-62), dos dois enunciados “A bola rola solta na cadeia” e “Na Casa
de Detenção do Carandiru, o futebol é mais do que uma diversão entre os presos” que acompanham a imagem de
prisioneiros jogando bola, com a cadeia ao fundo, apenas o primeiro mantém com a oposição /liberdade/ vs /opressão/ do
plano de conteúdo uma relação semissimbólica, por meio da categoria fonológica vogal posterior vs vogal anterior do plano
de expressão verbal (além das categorias plásticas tamanho e cor das letras escritas). O segundo enunciado tem apenas
uma função de ancoragem, ou seja, de especificação do lugar e dos atores, complementando, desse modo, a
figurativização.
No âmbito da semiótica visual, a relação conteúdo/expressão tem sido mais comumente abordada pela articulação
entre o plano de expressão e o nível mais profundo (fundamental) do plano de conteúdo, apreendido através do percurso
gerativo de sentido (ver, por exemplo, Pietroforte, 2004). No entanto, como buscaremos demonstrar, em se tratando de

749
textos que incluem a linguagem visual (sobretudo textos icônicos), o que “salta aos olhos” do leitor, inicialmente, são as
figuras (os atores, os elementos da cena ou paisagem) que dão materialidade aos temas subjacentes. Assim, na análise da
tela de Mestre Ataíde, o que vemos, de saída, são as figuras de Cristo e de João Batista na terra (no barranco de um rio e
com uma cidade ao fundo) que se contrapõem às figuras dos anjos e da pomba (Espírito Santo) no céu, remetendo à
oposição temática danação vs salvação. São esses elementos que, mais facilmente, nos permitem as correlações com as
categorias plásticas do plano de expressão: baixo vs alto (dimensão topológica) e sombra vs luz (dimensão fotocromática),
e não a categoria semântica de base /humanidade/ vs /divindade/, mais simples e abstrata e, por isso mesmo, menos
evidente.
Nessa perspectiva, não vemos como analisar o plano de expressão sem remetê-lo também ao nível discursivo ou,
mais especificamente, ao componente semântico (subcomponente temático-figurativo) do plano de conteúdo. Lembramos
ainda a posição de Fiorin (2003, p. 79) de tomar as relações semissimbólicas como incidindo sobre todos os níveis do
percurso gerativo – e não apenas sobre o nível mais profundo –, posição com a qual concordamos.
Em vista do que foi exposto, apresentaremos, na próxima seção, análises de três capas da Veja, análises essas
que, com as devidas adaptações ao nível de escolaridade dos alunos, possam servir de base para o trabalho do professor
com o texto sincrético em sala de aula. Aliás, essas mesmas capas já foram testadas tanto em graduandos e pós-
graduandos em Letras/UFMG, como em alunos de uma oficina de “Alfabetização, Letramento e Inclusão Digital” do Bairro
Novo Ouro Preto (Belo Horizonte, MG), tendo apresentado resultados bastante positivos. Isso reforça a nossa tese da
pertinência do texto sincrético/verbovisual como objeto de estudo na/pela escola.
Quanto à escolha da Veja, em detrimento de outras publicações igualmente disponíveis no mercado, guiamo-nos,
principalmente, pelo fato de se tratar de uma revista de circulação nacional que figura entre as mais vendidas.
Esclarecemos que, conforme a posição que assumimos anteriormente, nossa abordagem do texto verbovisual focalizará, na
relação com o plano de expressão, também o nível discursivo – e não apenas o nível fundamental – do percurso gerativo de
sentido (plano de conteúdo), já que as figuras (e os temas subjacentes) que integram a semântica desse nível (o discursivo)
nos parece mais óbvio, sobretudo para o leitor iniciante. Tal proposta inclui ainda a apreensão das relações semissimbólicas
que se instauram entre os dois planos, sempre que isso se mostrar relevante para a construção do(s) sentido(s) do texto em
análise.
Sugerimos que o professor, antes de iniciar o trabalho com as capas de revista, sonde as dificuldades e interesses
da turma numa aula-piloto, a partir de um roteiro de leitura previamente elaborado para auxiliar os alunos no exame dos
dois planos (conteúdo e expressão), bem como das articulações que eles mantêm para a construção de sentidos do/no
texto. Vamos às análises.

4. A capa de revista em foco

Começaremos pela revista Veja, de 02/04/2006, que traz, estampada na capa, Suzane Von Richthofen, às
vésperas do julgamento pela morte de seus pais (vide anexo). Lembramos que, nas capas de revista, o texto visual é, em
geral, o elemento que mais se destaca na página. Sugerimos, pois, que o ponto de partida da análise seja a imagem2, o que
não exclui, evidentemente, a possibilidade de se começar pelo texto verbal. A decisão por um ou outro caminho depende,
em última análise, do bom senso do professor.

2 Nas análises das capas, não levaremos em conta as imagens e textos menores que funcionam como “chamadas” para os demais

assuntos abordados na revista, concentrando nossa atenção no conjunto verbovisual maior que, em geral, retoma a reportagem central
daquele número/edição.

750
Na capa em foco, o que nos chama a atenção, de imediato, na figura de Suzane é seu rosto que, considerando-se
a posição do leitor, está iluminado do lado direito e sombreado (escuro) do lado esquerdo, revelando, nesse último caso,
inclusive uma ligeira disformidade (ou deformidade?). Isso, de imediato, nos remete à categoria plástica (fotocromática) luz
vs sombra.
Essa categoria do plano de expressão visual pode ser homologada à oposição temática fragilidade vs brutalidade
(nível discursivo), que reproduz, no plano de conteúdo, a dualidade de Suzane, confirmada pelo texto verbal que
acompanha a imagem: trata-se de alguém que “vive reclusa e assombrada”, que quer sua vida de volta (portanto, é frágil),
mas, ao mesmo tempo, responde por um crime “que chocou o país” (logo, é brutal). Nesse caso, o texto verbal apenas
ancora a imagem numa dada situação comunicativa, não apresentando efeitos de poeticidade que implicariam a análise
também do seu plano de expressão: o leitor o “atravessa” simplesmente para chegar à informação veiculada.
A oposição temática fragilidade vs brutalidade remete à categoria semântica de base /humanidade/ vs
/monstruosidade/ (nível fundamental do plano de conteúdo), que mostra Suzane como o termo complexo, que reúne,
portanto, os termos contrários (humanidade + monstruosidade). Essas duas oposições, situadas, respectivamente, no nível
mais superficial (o discursivo) e no mais profundo (nível fundamental) do percurso gerativo do plano de conteúdo
homologam-se à categoria fotocromática, luz vs sombra (plano de expressão visual), instaurando, dessa forma, relações
semissimbólicas, como mostra o quadro 3:

Quadro 3
Plano do conteúdo /humanidade/ vs categoria semântica de base
(verbovisual) /monstruosidade/
fragilidade vs brutalidade oposição temática
Plano de
expressão luz vs sombra dimensão fotocromática
(visual)

Na segunda capa da Veja, publicada em 12/07/2007 (vide anexo), é também a figura de uma executiva, que sobe
uma escada escorada numa grande letra “A” (na base da qual se encontra o enunciado “Falar e escrever certo”), que
chama nossa atenção: o conjunto executiva/escada/letra domina o espaço da página. O pano de fundo sobre o qual se
colocam essas figuras vai do branco ao azul, imitando o céu. Inicialmente encoberto pelas nuvens, ele se torna aberto num
espaço vazado (já que simula ultrapassar os limites da capa) para além do topo da escada, sugerindo um sucesso
(profissional) também ilimitado para os poucos que chegam até lá. Não por acaso o título da revista, parcialmente coberto
pelo corpo da executiva, destaca-se na capa, em amarelo forte, fazendo o leitor acreditar numa revista bem-sucedida,
vitoriosa no mercado editorial.
Mais do que na capa anteriormente analisada (a de Suzane Von Richthofen), o texto visual e o verbal se imbricam
de tal maneira que é impossível não perceber a “unidade construída por uma estratégia enunciativa integradora” de que nos
fala Teixeira (2008). Aqui, é a categoria topológica alto vs baixo (plano de expressão visual) que se dá a ver, de imediato,
articulando-se, via enunciado verbal, à oposição temática sucesso (figurativizado pela executiva já próxima ao topo da
escada) vs fracasso (representado, por pressuposição, pelos muitos que estão na base da pirâmide/letra, evidentemente
mais larga do que o topo: aqueles que (não) falam e escrevem certo, como aponta o enunciado verbal).

751
À esquerda do leitor (e, portanto, à direita da imagem) encontram-se três enunciados, dispostos verticalmente: 
Como o domínio da língua impulsiona a carreira;  Os 10 erros de português que arruínam suas chances;  A ansiedade
com a nova reforma ortográfica.
Esses três enunciados, articulados ao enunciado “Falar e escrever certo” da base da pirâmide/letra, ajudam-nos a
apreender a categoria semântica de base do conjunto verbovisual: /ascensão/ vs /queda/, materializada no nível mais
superficial (o discursivo), como vimos, pela oposição temática sucesso vs fracasso (no âmbito profissional). Essas duas
oposições do plano de conteúdo homologam-se à categoria plástica alto vs baixo (dimensão topológica) do plano de
expressão visual, instaurando relações semissimbólicas, como mostra o quadro 4. Aqui, novamente, o plano de expressão
verbal limita-se a veicular o conteúdo, não apresentando elementos (sonoridades, entonações etc) significativos para
“recriar o conteúdo na expressão” (FIORIN, 1995).

Quadro 4
Plano de conteúdo /ascensão/ vs /queda/ categoria semântica de base
(verbovisual) sucesso vs fracasso oposição temática
(profissional)
Plano de alto vs baixo dimensão topológica
expressão
(visual)

A última capa a ser analisada é a da Veja de 03/10/2007 (vide anexo), que trata do ex-guerrilheiro argentino Che
Guevara, propondo-se a desvelar, como diz o enunciado verbal (a chamada de capa), “a farsa do herói”, isto é, as
“verdades inconvenientes sobre o mito do guerrilheiro altruísta” (grifos nossos). A contraposição dos termos herói e mito à
ideia de farsa (portanto, de mentira: aquilo que parece, mas não é, em termos semióticos) remete, por tabela, à figura do
anti-herói, que representaria o real (e, por extensão, a verdade mencionada na referida chamada: aquilo que parece e é).
Assim, temos uma categoria semântica de base do tipo /mentira/ vs /verdade/, materializada no nível mais superficial (o
discursivo) como mito vs realidade (oposição temática figurativizada, respectivamente, pelo herói – o guerrilheiro – e pelo
anti-herói – o homem real).
Diferentemente das análises anteriores, começamos esta pelo texto verbal, considerando que o aluno, sobretudo
o do ensino básico, pode não saber de que “Che” se fala, o que demandaria, inclusive, uma contextualização maior. De
qualquer forma, a figura do herói, ligada ao mito e à mentira, de um lado, e a do anti-herói que, ao contrário, evoca a
realidade e a verdade (plano de conteúdo do texto verbovisual), podem ser visualizadas na imagem (foto) de Che Guevara
(o homem real), que fuma um charuto, cuja fumaça constrói um espectro, identificável pela barba e pela boina com a estrela
vermelha (aliás, o único elemento colorido do espectro) como sendo o do guerrilheiro. Lembramos que a referida boina é
uma espécie de marca registrada do Che, que foi alçado à condição de herói pela sua incansável luta em prol da libertação
dos países latinos. O fato de se tratar de uma construção de fumaça sugere a efemeridade dessa imagem de “guerrilheiro
altruísta”, substituída, agora, pela do homem real (o ser de carne e osso), denunciado pela reportagem principal da revista
como “um apologista da violência, voluntarioso e autoritário” (p. 84), segundo biógrafos e historiadores. Temos, assim, o
direito e o avesso daquele que se tornou um símbolo de liberdade no mundo.
Do ponto de vista do plano de expressão visual, esse duplo Che – o “mentiroso” ou “ilusório” e o “real” do plano de
conteúdo (verbovisual) – se contrapõem pelas categorias topológica (alto vs baixo), eidética (forma indefinida vs forma
definida) e fotocromática (sombra vs luz), instaurando relações semissimbólicas entre conteúdo e expressão. Novamente, o

752
texto verbal parece não ter outra função senão a de informar o leitor, o que torna desnecessária a análise do seu plano de
expressão. Vamos ao quadro-síntese:

Quadro 5
Plano de conteúdo mito (herói) vs realidade (anti-herói)
(verbovisual) (categoria temático-figurativa / nível discursivo)
/mentira/ vs /verdade/
(categoria semântica de base / nível fundamental
Plano de expressão forma indefinida vs dimensão eidética
(visual) forma definida
alto vs baixo dimensão topológica
sombra vs luz dimensão fotocromática

5. Algumas palavras para concluir

Esperamos ter apontado, ao longo do presente artigo, a relevância da abordagem de textos


sincréticos/verbovisuais (no caso, capas de revista) em sala de aula. É claro que não buscamos aqui dar “receitas” de como
desenvolver esse trabalho, pois confiamos no bom senso e na autonomia do professor para propor seus próprios caminhos.
Limitamo-nos, nesse caso, a indicar algumas possibilidades de análise, pelo viés da Semiótica Francesa, teoria que nos
parece bastante produtiva no/para o tratamento do texto sincrético, conforme salientamos na Introdução.
Como afirma Fiorin (2003), o estudo das correlações entre os planos de conteúdo e de expressão de um texto
permite não apenas refletir, com profundidade, sobre o papel da percepção sensorial na produção do sentido, mas também
compreender melhor os textos poéticos (incluindo-se aqui as poéticas visuais), que se caracterizam pela presença marcante
do semissimbolismo; as semióticas sincréticas; o processo tradutório, seja a tradução intra-semiótica dos textos poéticos,
seja a tradução intersemiótica.

Referências

BARROS, Diana L. P. de. Estudos do discurso. In: FIORIN, J. L. (org.). Introdução à linguística II (princípios de análise). São
Paulo: Contexto, 2003. p. 187-219.

FIORIN, José Luiz. Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo. Itinerários. Número especial. 2003. p. 77-89.

GREIMAS, Algirdas J. De l'imperfection. Périgueux: Pierre Fanlac, 1987.


GREIMAS, Algirdas J. Semiótica figurativa e semiótica plástica. Trad de Assis Silva. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.).
Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 75-96.

HJELMSLEV, Louis. Prolégomènes à une theorie du langage. Trad. Anne-Marie Leonard. Paris: Minuit, 1968.

LARA, Glaucia M. P.; MORATO, Elisson. A relação conteúdo/expressão na pintura de Mestre Ataíde. In: LARA, Glaucia M.
P. et al. (orgs). Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Lucerna/Nova Fronteira, 2008. v. 1. p. 145-168.

LOPES, Ivã Carlos. Entre expressão e conteúdo: movimentos de expansão e condensação. Itinerários. Número especial.
2003. p. 65-75.

MORATO, Elisson F. Do conteúdo à expressão: uma análise semiótica dos textos pictóricos de Mestre Ataíde. 117 f.
Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte – MG, 2008.

753
OLIVEIRA, Ana Cláudia de. Semiótica plástica ou semiótica visual? In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de. (org.). Semiótica
plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p.11-25.

PIETROFORTE, Antônio V. S. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004.

TEIXEIRA, Lúcia. Achados e perdidos: análise semiótica de cartazes de cinema. In: LARA, Glaucia M. P.; MACHADO, Ida
Lucia; EMEDIATO, Wander (orgs). Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Lucerna/Nova Fronteira, 2008. v. 1. p. 169-
198.

Glaucia Muniz Proença Lara tem doutorado em Semiótica e Linguística Geral (1999) pela USP. Atualmente, é professora
da Faculdade de Letras da UFMG, onde atua na área de Teorias do Texto e do Discurso, tanto na graduação quanto na
pós-graduação. Tem vários livros e artigos publicados nacional e internacionalmente. E-mail: gmplara@gmail.com

754
ANEXO:
Capa 1 Capa 2

Capa3

755
Estratégias de referenciação na produção escrita de alunos
surdos
LEAL, Christiana Lourenço
(UFRJ / INES)

A questão sobre como a língua traduz em palavras as coisas do mundo vem, ao longo do tempo, tomando força entre
as pesquisas linguísticas. Atualmente, um dos principais objetos de estudo da Linguística Textual é a maneira como, através da
linguagem, o homem traduz a realidade que o cerca, ou seja, como faz referência às coisas do mundo.
Fato é que os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas, imagens do mundo e é através dessas
imagens que se constroem referentes, isto é, itens linguísticos que funcionam como retomada para outros itens precedentes no
co-texto ou mesmo no contexto. Tais referentes não são, portanto, preexistentes, mas sim construídos no curso da atividade
linguística.
Tudo isso faz lembrar uma das mais conhecidas frases de Saussure (2000:15): Bem longe de dizer que o objeto
precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto. Ao falar em “ponto de vista”, Saussure referia-se ao
que caracterizamos, mais modernamente, como a percepção que temos sobre a realidade. O “objeto” criado é o referente
construído pela prática discursiva. É o sistema perceptual (ponto de vista) que fabrica os referentes (objetos).
Costuma-se classificar tais referentes como objetos-de-discurso, ou seja, itens lexicais (palavras, sintagmas nominais
ou verbais) usados para fazer referência a um item linguístico já citado ou mesmo sugerido no texto. Atualmente, tem-se definido
a referenciação como a construção de objetos-de-discurso (cf. Mondada e Dubois, 2003).
Através do processo de referenciação, formam-se categorias, que funcionam como espécies de conjuntos aos quais
determinados objetos pertencem ou não. A distribuição de objetos de mundo em categorias discursivas depende da capacidade
do homem de perceber o mundo e tal percepção, de forma alguma, é unânime. Cada um, levando em conta seu conhecimento
de mundo, o contexto de comunicação no qual está inserido e seus parceiros na atividade comunicativa, dentre outros fatores,
categoriza as coisas do mundo de uma maneira específica e diferente. Isso tudo evidencia que a forma como percebemos e
atuamos com os objetos é fundamental para a forma como somos capazes de desenvolver conceitos abstratos para eles (cf.
Koch, 2006:54).
No entanto, tal percepção de mundo, por vezes, sai do âmbito individual e passa a formar a visão de um grupo de
indivíduos. Há um momento, portanto, em que as categorias são compartilhadas por um grupo social que partilha das mesmas
práticas culturais e sociais e as reconhece de forma semelhante. A maneira de categorizar um “objeto” social deve-se, portanto,
a fatores contextuais muito mais amplos que apenas a significação das palavras.
Tudo isso só faz comprovar que a língua é objeto social.
Em última análise, a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam e fora dos eventos
discursivos nos quais eles intervêm e nos quais mobilizam suas percepções, seus saberes quer de ordem
linguística, quer de ordem sociocognitiva, ou seja, seus modelos de mundo. Estes, todavia, não são
estáticos, (re)constroem-se tanto sincrônica como diacronicamente, dentro das diversas cenas
enunciativas, de modo que, no momento em que se passa da língua ao discurso, torna-se necessário
invocar conhecimentos — socialmente compartilhados e discursivamente (re)construídos —, situar-se
dentro das contingências históricas, para que se possa proceder aos encadeamentos discursivos (Koch,
2006:57).

756
A referência, portanto, diz respeito às operações efetuadas pelo sujeito à medida que o discurso se desenvolve. Por
tudo isso, nas pesquisas mais atuais, propôs-se a troca do termo “referência” pelo termo “referenciação”, tendo em vista que a
atividade de fazer referência não é uma simples relação entre palavras e coisas, mas sim um processo que perpassa questões
intersubjetivas e sociais. A referenciação constitui, assim, uma atividade discursiva (Koch, 2006: 61).
No caso específico da Língua de Sinais, a relação se dá entre os sinais produzidos (equivalentes às palavras na
Língua Portuguesa) e as coisas do mundo. De forma igual ao processo discursivo da Língua Portuguesa, na Língua de Sinais é
possível fazer referências a itens pertencentes ao discurso e/ou ao mundo. Entretanto, como o processo de referenciação é uma
construção social, há especificidades na Língua de Sinais que são conseqüência de ela ser a língua de uma comunidade
linguística que possui sua própria cultura e sua própria forma de ver as coisas do mundo.
Por tudo isso, pode-se afirmar que, também na Língua Brasileira de Sinais, as estratégias de referenciação são
produto do grupo social que as produz. A propagada “cultura surda” que caracteriza a identidade dos sujeitos surdos usuários da
LIBRAS tem influência direta na construção dos objetos de discurso no processo linguístico desta língua.
A questão da identidade surda relacionada à Língua de Sinais é, inclusive, muito mais ampla do que parece.
A Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), desde que a Lei 10.436 de 24 de abril de 2002 entrou em vigor, é considerada
meio de comunicação oficial dos indivíduos surdos. A LIBRAS é, acima de tudo, a língua de instrução do sujeito surdo e o meio
como ele acessa o mundo. Sendo assim, por constituir sua língua de identidade, a Língua de Sinais é a primeira língua (L1) do
surdo. Essa questão gera, inclusive, uma postura política por parte de alguns surdos que, mesmo sendo oralizados, ou seja,
capazes de interagir com o mundo através da língua portuguesa (falando e “lendo lábios”), insistem, desde então, em ter sua
identidade lingüística respeitada, usando apenas a língua de sinais.
Essa exigência por parte dos sujeitos surdos vem gerando algumas mudanças no sistema educacional de nosso país.
Vivemos, hoje, uma realidade em que é obrigatória a presença de um intérprete em salas de aula com alunos surdos. Isso
confirma que o surdo passou, portanto, a ser visto não como um deficiente, mas sim como um membro de uma comunidade
linguística específica.
Por conta dessa especificidade linguística, ao ensinar qualquer disciplina ao surdo, o ideal é que os professores
conheçam a LIBRAS e sejam seus usuários proficientes. Isso não só facilita a comunicação entre professores e alunos, como
também (e sobretudo) é o meio mais eficaz de fazer com que as coisas do mundo tenham significado para o indivíduo surdo.
No caso específico da Língua Portuguesa, não acreditamos em um ensino que não trabalhe constantemente com a
comparação entre as estruturas gramaticais das duas línguas (LIBRAS e Português). O aluno surdo raciocina em Língua de
Sinais, conhece a estrutura desta língua, sua gramática própria. Fazê-lo pensar sobre a própria língua antes de ensinar-lhe
qualquer outra é, portanto, trabalho essencial da escola.
Se o professor de Língua Portuguesa conhece a LIBRAS de maneira profunda e é capaz de fazer comparações entre
a língua de instrução de seu aluno e aquela que ele deseja ensinar, o processo de ensino-aprendizagem se desenvolve com
maior adequação e o sucesso, certamente, será alcançado.
Por outro lado, se o professor acredita que terá sucesso apenas ensinando estruturas gramaticais do Português sem
fazer os surdos repensarem a própria língua, o fracasso é o final mais provável para essa “história”.
Tudo isso é evidenciado quando lemos um texto, em Língua Portuguesa, produzido por um surdo. As construções que
nos parecem erradas e, muitas vezes, incompreensíveis, são fruto de uma forte influência que a Língua de Sinais provoca na

757
produção escrita desses indivíduos. Em geral, o que acontece nos textos dos surdos são influências da Língua de Sinais (sua
primeira língua) na Língua Portuguesa (segunda língua desses sujeitos).
Observando essa influência que a Língua Portuguesa sofre, por parte da LIBRAS, nos textos escritos por alunos
surdos, surgiu a ideia que direciona a nossa pesquisa: de que maneira as estratégias de referenciação que há em LIBRAS
encaminham a maneira de organizar o discurso no texto escrito em Português por surdos?

Na análise que apresentamos neste trabalho, foram considerados textos narrativos produzidos por alunos de uma
turma do 3o. ano de Ensino Médio do Instituto Nacional de Educação de Surdos, local onde trabalho ministrando aulas de Língua
Portuguesa desde 2007. O trabalho com textos narrativos se justifica nesta investigação, porque é nesse tipo de texto que se
revelam personagens, espaço e tempo, questões que são muito evidenciadas na Língua de Sinais e que, muitas vezes, os
alunos surdos não sabem como estruturar em um texto em Língua Portuguesa.
Como é comum observar em salas de aula de turmas seriadas compostas exclusivamente por alunos surdos, há, entre
os alunos cujas redações foram objeto de pesquisa, uma heterogeneidade manifesta em relação ao conhecimento de Língua
Portuguesa. É evidente, portanto, que alguns alunos que tiveram seus textos analisados, mesmo estando em vias de concluir o
Ensino Médio, têm problemas de conhecimento de vocabulário e, até mesmo, de conhecimento de mundo – o que está
diretamente relacionado à compreensão da proposta de texto. Entretanto, o que nos interessa nesse estudo, são os aspectos
comuns nos erros desses alunos e que estão relacionados, não exatamente a particularidades individuais, mas sim a uma
questão comum entre eles: a influência que o conhecimento da estrutura da LIBRAS provoca no momento em que esses
indivíduos escrevem um texto em Português.
Os textos que fazem parte do nosso corpora foram produzidos pelos alunos surdos seguindo a seguinte estratégia:
Selecionamos o conto “A incapacidade de ser verdadeiro” de Carlos Drummond de Andrade e pedimos para que um
aluno surdo, do 2o. ano do Ensino Médio o transformasse em um texto em LIBRAS. Filmamos, então, a “tradução” desse conto
para a Língua de Sinais. Posteriormente, em sala de aula, os alunos da turma de 3o. ano do Ensino Médio assistiram ao vídeo e,
a partir dessa observação e mesmo dos comentários que eles fizeram entre si ao longo da narrativa, criaram seus próprios
textos em Língua Portuguesa, com a orientação de que os textos escritos deveriam ser o mais fiéis possível à narrativa que eles
acabavam de assistir em LIBRAS.
Apresentamos, a seguir, o texto original de Drummond e alguns resultados, seguidos de algumas considerações
nossas.

A incapacidade de ser verdadeiro


Carlos Drummond de Andrade
Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência
cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da
escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só
ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as
borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu,
a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: “Não há nada a fazer, Dona Coló. Este
menino é mesmo um caso de poesia.

758
Texto I:
Conseguir a verdade de Paulo
Paulo chegou no campo. Está estranha que o campo e está brigando bagunça que o dragão. Paulo chama a
mãe. Paulo vê que está bagunça o campo. Que horrível. A mãe falou que estranho o isso e parei de falar mentira. Paulo está
falando a verdade. A mãe pega o Paulo e a mãe falou que você fica castigo também não pode comer doce e fica preso em casa
e não deixa sair. Paulo quer sair na rua. Não deixa. A mãe desprezou Paulo. A janela que Paulo adrimou a Lua é bonita. A lua
caiu. Paulo viu a lua. Paulo pegou a lua e comeu a lua é delícia. Paulo está indo e viu a borboleta e medo grande. Transforma
voar livre. Que legal é muito bom e adirma vendo a natureza. Paulo chama a mãe e esta vendo a borboleta e muito grande e
bonita. A verdade, voa vendo natureza. A mãe está estranho. A mãe falou que você pare de mentir e a mãe não quer saber que
fala de mentir. A mãe fique preocupada você tem problema o motivo, vamos ir ao médico. O médico falou que entra ao médico.
A mãe “boa tarde” quer conversar com o médico. A mãe falou que Paulo tem problema mental o motivo. O médico vai
pesquisando o Paulo. O médico descobrir Paulo está imaginando. O médico conversa com a mãe de Paulo muito poesia e
imaginar.

Texto II:
Conseguir verdadeiro
Apresentação, Paulo viu o campo de dragão briga. Ele falou que aí vi o campo de dragão estava brigando
mas dele mãe estava dúvida falando a mentira meu filho levar aqui no quarto ficará o castigo em 10 dias.
A mãe falou que não deixa dar os doces com meu filho. Ele pediu que é o objeto por mãe falou que não
posso mesmo. Ele falou que sem problema. O menino estava admirando a janela de lua ficava bonita. Aí, a lua está caindo no
chão acima um queijo. O menino vi andar pegando o queijo. Ele comi o queijo delicioso. Que droga! Ela anda ver a borboleta na
floresta ficará bonita. Ele conta que viu a borboleta é muito grande e bonita por minha mãe estava não ainda acreditando ser
estranho. Que acontecer a mentira da problema com meu filho precisa ir lá no médico. Eles entram bater a porta. O médico está
abrindo a porta.
A mãe te explica que meu filho está mentindo a problema na vida. Por favor, a mãe me ajuda o meu filho
estava diferente na vida. O médico vou conselhar e tentar o seu filho. Ele pesquisa saber na vida por dele. O médico descobri a
coisa é uma poesia.
Quando ele chega encontrar de mãe quer saber motivo o meu filho. O médico falou que é por isso é poesia.
A mãe ficará compreender mesma a coisa.

Texto III:

O Pablo
Então, tema conseguir realidade e a Pablo, ele viu que no campo estava confusão dragão, ele chamou a mãe
dele, eu vi que confusão dragão, ele diz na verdade mas, mãe diz que estranho e pare com isso, mentira, dele mãe falou que agora você fica

759
castigo na casa e também não vou dar de doce, o menino diz que peraí a mãe, agora o menino ficou com triste, ele estava na janela depois,
menino está olhando a lua, caiu no chão, ele pegou que queijo com lua, ele está com fome depois ele comeu que queijo, que droga, ele está
andando depois viu que borboleta entre tapete em pé o menino esta voar que admirando lugar fica lindo, alegria, que legal, e ele diz mãe, eu
esta voar que legal, estava ver um floresta ficou lindo cor, depois mãe diz pare com isso e mentir, mãe acho que filho está doente cabeça mais
problema, melhor mãe junto dele filho que ir médico, mãe dele filho já chegam no médico mas mãe bateu porta, médico diz que querida então
mãe falou que o menino está cabeça problema o que aconteceu? Dr. diz pouco espera mãe diz ok, médico junto o menino. Ele diz que ele está
bem por causa poesia!

O material que apresentamos acima é rico para pesquisas de diferentes ordens. Há questões gramaticais das mais
variadas que merecem e precisam ser analisadas para que o ensino de Língua Portuguesa para estudantes surdos possa, de
fato, ser produtivo, aumentando a capacidade leitora e de produção escrita desses alunos.
Nesta breve análise, entretanto, nos deteremos especificamente ao uso dos diferentes tipos de discurso (direto X
indireto) e suas consequências, a saber: confusões entre a 1a. e a 3a. pessoa (no uso dos pronomes e dos verbos), pontuação,
uso do “que” – conjunção integrante – e das aspas.
Antes de iniciar a análise lingüística, é preciso ressaltar que o produto que os alunos construíram não é fruto apenas
da leitura do texto original de Drummond. Muito pelo contrário. Os alunos que produziram os textos I, II e III só tiveram contato
com o texto do célebre escritor depois de finalizarem seus textos.
A maneira como o texto de Drummond chegou até os alunos foi o vídeo gravado em Língua de Sinais que,
evidentemente, é mais que uma tradução para outra língua. O vídeo em LIBRAS é, na verdade, uma adaptação do conto original
para uma língua que possui propriedades muito específicas no que se referem à questão espaço-visual.
É possível observar, nos três textos, que os alunos que os produziram têm conhecimento da Língua Portuguesa,
inclusive no que diz respeito às marcas discursivas. No entanto, ao aplicar os conhecimentos que têm, cometem alguns erros
originados, no nosso entender, por dois grandes motivos: as influências da estrutura gramatical da Língua de Sinais e a maneira
como foram apresentados às regras do Português.
Para marcar as pessoas do discurso na Língua de Sinais, o narrador (que é também um ator que representa todos os
personagens da narrativa, tendo em vista as propriedades teatrais que possuem as línguas de sinais) possui algumas
estratégias como o posicionamento do corpo, um rápido olhar ou mesmo um apontamento para algum ponto no espaço onde ele
possa ter localizado, de forma abstrata, um dos personagens, ou mesmo um sinal que represente a pessoa que fala ou age em
determinado momento da narrativa.
Essas estratégias que há nas Línguas de Sinais para marcar as pessoas do discurso não têm correspondente exato na
língua escrita, já que seu caráter é estritamente espaço-visual.
Conhecendo, de alguma forma, as propriedades da Língua Portuguesa, o aluno surdo pode tentar utilizá-las, mas
sempre há de haver alguma marca em seu texto que mostre as influências de sua primeira língua, a Língua de Sinais.
Em nossa pesquisa, isso fica ainda mais evidenciado, pois o texto que os alunos produziram partiu de um texto em
LIBRAS a que eles previamente assistiram. Dessa forma, toda a estrutura da Língua de Sinais à qual já nos referimos acabou
influenciando a produção escrita desses sujeitos surdos, ainda que eles demonstrem conhecer algumas regras da Língua
Portuguesa.

760
No texto I, por exemplo, o aluno usa composições próprias de discurso indireto (usando a conjunção “que”) ou mesmo
de discurso direto (através das aspas), mas a construção completa da frase não é coerente com o discurso que inicialmente ele
estrutura.
Por vezes, as reflexões ou falas de alguns personagens são colocados no texto como se fossem parte da narrativa, em
3ª. pessoa.
Esta questão fica muito evidente nos textos II e III, nos quais os alunos fazem nítidas confusões entre as pessoas do
discurso através do uso de pronomes e verbos. Um bom exemplo é a seguinte frase do texto II: Ele falou que aí vi o campo de
dragão estava brigando mas dele mãe estava dúvida falando a mentira meu filho levar aqui no quarto ficará o castigo em 10
dias.
Além disso, há casos em que o aluno demonstra conhecer bem o esquema dos discursos, em Português, mas a
pontuação do texto aparece equivocada, o que causa dúvida no leitor. Um claro exemplo é o seguinte trecho do texto III: e ele
diz mãe, eu está voar que levar (...) depois mãe diz pare com isso e mentir.

Diante desta pequena análise, a grande questão que se coloca no ensino de Língua Portuguesa para alunos surdos é
justamente o conhecimento, por parte do professor, da Língua de Sinais, de modo que ele possa traçar estratégias de ensino
tendo como base a estrutura da LIBRAS. Em outras palavras, o reconhecimento da causas dos erros cometidos pelos alunos ao
estruturar um texto em Língua Portuguesa pode ser o melhor caminho para um ensino eficiente de fato.

Conclusão
Como se pode perceber com as análises feitas neste trabalho, ainda que a LIBRAS e a Língua Portuguesa possuam
mesmos princípios de construção, as duas línguas são organizadas de maneira bastante distinta e tal distinção tem como reflexo
alguns problemas na organização discursiva dos textos escritos em Português pelos alunos surdos.
É com base nas distinções existentes entre a LIBRAS e a Língua Portuguesa que deve ser criada uma metodologia de
ensino do Português para os surdos.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de (1998). A incapacidade de ser verdadeiro. In.: _____. Contos Plausíveis. Rio de Janeiro:
Record, p. 19.

KOCH, Ingedore (2004). A construção de objetos-de-discurso. ALED 2 (1), p. 7-20.

_____ (2006). Introdução à linguística textual. São Paulo: Martins Fontes.

MONDADA, Lorenza & DUBOIS, Danièle (2003). Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos
processos de referenciação. In.: CAVALCANTI, Mônica et. al. (org.). Referenciação. São Paulo: Contexto

QUADROS, Ronice & KARNOPP, Lodenir (2004). Língua de sinais brasileira: estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed.

SAUSSURE, Ferdinand de (2000). Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 22 ed. bras.

761
Currículo resumido:
Formada em Bacharel e Licenciada em Letras (Português/Literaturas) pela UERJ em agosto de 2004, Christiana Lourenço Leal
é mestre em Língua Portuguesa (2007) pela UFRJ, onde, atualmente, faz doutorado em Língua Portuguesa. Desde 2007, é
professora do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).

Endereço eletrônico: christiana.leal@gmail.com

762
Estratégias discursivas acionadas em campanhas
publicitárias do Conselho Nacional de Justiça

LEAL, Virgínia
(PPGL/UFPE)
PIRES, Carolina
(PPGL/UFPE)1

1. Por que lançar nosso olhar sobre a publicidade do CNJ?


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão do Poder Judiciário criado em 2004 para planejar, coordenar,
controlar e aperfeiçoar o serviço público de prestação da Justiça, tem investido cada vez mais em campanhas publicitárias
de mobilização e conscientização da sociedade brasileira quanto a temas como ressocialização de ex-detentos, aplicação
de penas alternativas e resolução de conflitos através de acordos. Trata-se de um investimento que se justifica por uma
lógica velada de redução dos custos dos processos judiciais e do sistema penitenciário.
Como um lugar privilegiado para o estudo da (des)(re)construção da realidade sócio-político-histórico-cultural de
uma sociedade altamente semiotizada, a publicidade, apesar de sua atual trivialidade, merece que lancemos um olhar mais
acurado sobre seus textos, como já advertiu Maingueneau (2005). Assim, pretendemos analisar, à luz da Teoria
Semiolinguística de Patrick Charaudeau, os possíveis efeitos de sentido suscitados por estratégias de legitimação,
credibilização e captação acionadas nessas campanhas de conscientização e mobilização do CNJ.
O corpus da pesquisa é composto por peças publicitárias das campanhas “Começar de Novo”, “Justiça Criminal” e
“Movimento pela Conciliação”, veiculadas em mídia impressa, eletrônica e digital entre os anos de 2008 e 2010 em todo o
Brasil2.

2. Alguns conceitos norteadores da Análise Semiolinguística do Discurso


Diferentemente das primeiras teorias da informação, a Análise Semiolinguística do Discurso, que tem Patrick
Charaudeau como fundador, não possui um “ponto de vista ingênuo” sobre o fenômeno da comunicação, apesar de estar
fundamentada em um quadro comunicativo do discurso (CHARAUDEAU, 2002, 2006b, 2007).
Segundo o autor, a visão da comunicação como um suporte de transmissão, tais como nessas teorias da
informação, é problemática porque reduz o fenômeno da linguagem à transmissão de uma mensagem de um polo “a” para
um polo “b”, sem se perguntar sobre a natureza psicossocial desses polos, nem sobre as condições de produção do
discurso (como, por exemplo, as visadas comunicativas, ou seja, a intencionalidade), nem sobre as condições de recepção
(como a questão dos imaginários sociodiscursivos, que funcionam como referentes de interpretação), questões essas caras
à Semiolinguística.
Sendo assim, quando Charaudeau fala em uma concepção comunicativa do discurso, é a partir da ideia de que o
discurso está relacionado às restrições “impostas” pela situação de comunicação em que se dá o ato de linguagem e às

1O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
2Por questão de espaço, não apresentaremos aqui as peças publicitárias que integram essas campanhas coletadas para a pesquisa,
somente destacaremos alguns enunciados em nossas análises. Mas o leitor interessado poderá encontrá-las facilmente no site do
Conselho Nacional de Justiça (www.cnj.jus.br).

763
estratégias que os interlocutores acionam para concretizar os seus projetos de fala. Para o autor, a comunicação (ao menos
a humana e social) envolve a construção do sentido que se dá através dos “atos de troca que colocam em jogo uma
intencionalidade psicossocial” (CHARAUDEAU, 2007).
A comunicação, nessa perspectiva, é um fenômeno social caracterizado pela tentativa dos sujeitos em instaurar
uma relação entre eles, em estabelecer regras de vida comuns, em construir uma visão do mundo comum. Assim, interessa
à Análise Semiolinguística do Discurso estudar as normas sociais, os processos de influência e a construção do sentido.
Portanto, apesar da Análise Semiolinguística do Discurso utilizar muitas vezes termos como, por exemplo,
“destinatário” ou “receptor” (empregados comumente nas ciências da comunicação e da informação), estes não devem ser
entendidos como sujeitos passivos do ato comunicativo. Charaudeau, inclusive, é contundente ao frisar que todo ato de
linguagem põe em relação as suas instâncias de produção e de recepção, como será exposto mais adiante. Dessa forma, o
ato comunicativo não é visto como homogêneo, unilateral, como uma simples transmissão de sinais ou mensagens, mas
como um processo permeado pela “intersubjetividade constitutiva das trocas humanas” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 35).
Mas é principalmente com o conceito de ato de linguagem que Charaudeau aborda a questão dos sujeitos e do
contrato de comunicação em seu quadro teórico-metodológico. Na Análise Semiolinguística do Discurso, o ato de linguagem
é tido como um fenômeno social que se dá em situação comunicativa, já que coloca os indivíduos em relação uns com os
outros, sendo “originário de uma situação concreta de troca, [...] produzindo significações a partir da interdependência de
um espaço externo e de um espaço interno” (CHARAUDEAU, 2005, p. 18).
Todo ato de linguagem é, assim, situado no tempo e no espaço, sendo a combinação de um circuito externo
(situacional) e um circuito interno (discursivo), circuitos estes que não podem ser dissociados um do outro (CHARAUDEAU,
1983, 1984, 2008a, 2008b). O espaço situacional do ato de linguagem corresponde ao fazer psicossocial dos sujeitos
empíricos (EUc e TUi), chamados de parceiros, que se encontram em uma relação contratual de comunicação. Já o espaço
discursivo é o lugar da organização do dizer, onde os parceiros, chamados de protagonistas (EUe e TUd), encenam o ato
de linguagem levando em conta as restrições e liberdades que o contrato de comunicação estabelece.
O sujeito comunicante (EUc) é um ser social, real, historicamente determinado e possuidor de intenções, que
inicia o processo de produção do discurso a partir de um projeto de fala (de um objetivo) visando influenciar, informar,
persuadir etc. o seu parceiro, o sujeito interpretante (TUi), também um social, real, historicamente determinado e possuidor
de intenções.
Para isso, o sujeito comunicante cria o sujeito enunciador (EUe), que vai encenar o ato de linguagem junto ao
sujeito destinatário (TUd) de acordo com o papel que ele (o EUc) pensa ser o mais adequado para tornar o seu projeto de
fala bem sucedido, ou seja, para conseguir concretizar o seu objetivo. O sujeito destinatário, por sua vez, também é uma
criação do sujeito comunicante (ou, como o EUc imagina ser o TUi) – podendo estar marcado explicitamente ou não na
enunciação. Da mesma forma, o sujeito enunciador, para o sujeito interpretante, também é uma imagem do sujeito
comunicante.
Sujeitos enunciador e destinatário, portanto, são chamados de protagonistas, por Charaudeau, por serem papéis
que os sujeitos comunicante e interpretante desempenham na mise en scène (encenação) do ato de linguagem. Já estes
são chamados de parceiros por se reconhecerem mutuamente, por buscarem uma intercompreensão e por estarem ligados
um ao outro sob uma relação contratual (CHARAUDEAU, 1983, 1984, 2008b).3

3 No âmbito da esfera midiática, porém, Charaudeau (2006a, p. 73) passa a se referir aos interlocutores do ato de linguagem como

“instâncias” e não como sujeitos, pois estas são “entidades compósitas”, já que reúnem um conjunto de vários tipos de atores. O conjunto
da instância comunicante e enunciadora é denominado instância de produção. Da mesma forma, a totalidade da instância interpretante e
destinatária é chamada de instância de recepção.

764
A noção de contrato de comunicação configura-se particularmente importante para a Análise Semiolinguística do
Discurso porque esta considera que é a relação contratual que “o ato de comunicação seja reconhecido como válido do
ponto de vista do sentido” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 130).
O contrato de comunicação está relacionado às convenções, às normas, aos acordos, aos saberes
compartilhados, à relação de intersubjetividade que se instaura na interação entre os interlocutores, enfim, ao todo de uma
determinada situação de comunicação (CHARAUDEAU, 1995; CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004). Pode-se dizer,
ainda, que o contrato de comunicação constitui uma “memória coletiva ancorada sócio-historicamente” nos sujeitos
(CHARAUDEAU, 1995, p. 162) que funciona como um prévio “reconhecimento das condições de realização da troca
linguageira em que estão envolvidos” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 68).
Se por um lado, a relação contratual “impõe” certas restrições aos interlocutores do ato de linguagem, por outro,
também oferece espaços de manobra para que os sujeitos possam pôr em cena o seu projeto de fala utilizando-se de
estratégias discursivas (CHARAUDEAU, 2006a).
Passemos, pois, à observação mais detalhada do funcionamento dessas estratégias discursivas, bem como seus
possíveis efeitos de sentido suscitados, na análise da publicidade do Conselho Nacional de Justiça que constitui o corpus
de nossa pesquisa.

3. Campanhas publicitárias do CNJ e suas estratégias discursivas


De acordo com Charaudeau, as estratégias discursivas podem ser de legitimação, de credibilidade e de captação,
que se distinguem uma das outras pela natureza de seus objetivos (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 219). A de
legitimação visa posicionar o sujeito enunciador como autoridade que lhe dá direito à palavra; a de credibilidade objetiva
colocar o sujeito enunciador em uma posição de confiabilidade de tal forma que o sujeito destinatário considere o que está
sendo dito como “verdadeiro”; e a de captação procura seduzir ou persuadir o sujeito destinatário para que este “partilhe a
intencionalidade, os valores e as emoções” envolvidos no ato de linguagem.
Vejamos, primeiramente, as estratégias de legitimação da instância enunciadora.
De acordo com Charaudeau, a legitimidade da fala do sujeito enunciador pode derivar tanto da situação de
comunicação, como do lugar que lhe é dado por uma instituição, ou ainda por uma posição de autoridade construída no
discurso (CHARAUDEAU, 2002; CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004).
Nas situações monologais – como é o caso da publicidade, bem como de todas as situações em que não há a
presença dos parceiros e o contrato é de “não-troca” – de antemão, garante-se o direito à fala da instância enunciadora,
pois a tomada da palavra é realizada inicialmente por esta sem que haja alternância de turno com a instância destinatária.
Já a legitimidade do CNJ como instância enunciadora competente para falar sobre e com a instância destinatária
de assuntos acerca da Justiça, vem de seu próprio lugar institucional: um órgão do Poder Judiciário, constituído em
cumprimento à Constituição Federal, que visa, dentre outras ações, o aperfeiçoamento do serviço público de prestação da
Justiça. Seria, portanto, uma “voz oficial”.
Assim, o direito à fala do CNJ legitimado pela situação monologal ou por seu lugar institucional é menos uma
estratégia discursiva propriamente dita que uma coerção do contrato de comunicação da publicidade em estudo. Contudo,
essa legitimidade pode ser reforçada discursivamente em processos de construção de uma autoridade institucional ou de
uma autoridade pessoal.

765
A primeira ocorre com o acionamento de estratégias que podem suscitar um efeito de saber, ou seja, quando a
instância enunciadora, procedendo “a uma série de identificações e de qualificações que, presumivelmente, o sujeito leitor
não conhece” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 139), busca construir para si uma imagem de perito, de técnico, de um
especialista. É o que podemos verificar quando a publicidade do CNJ traz estatísticas e dados sobre a pena para cada tipo
de delito:
(1) “Assim como Alex, 95% dos condenados a penas alternativas não voltam a cometer outro delito.” (Campanha Justiça
Criminal 2010)
(2) “Homicídio - 20 anos de prisão; Seqüestro - 15 anos de prisão; Roubo - 10 anos de prisão. Falsificação de documentos –
multa e serviço comunitário.” (Campanha Justiça Criminal 2010)
A autoridade institucional também pode ser construída quando a instância enunciadora se coloca como detentora
de um poder de decisão:
(3) “O Projeto Começar de Novo do CNJ, Conselho Nacional de Justiça, está dando liberdade para muitos brasileiros como
o Marcos. E você? Vai atirar a primeira pedra ou ajudar?” (Campanha Começar de Novo 2008)
Nesse enunciado, podemos perceber, além dessa autoridade institucional, uma legitimidade fundada na
autoridade pessoal, que ocorre quando a instância enunciadora procura seduzir e persuadir a instância destinatária.
Seguimos, agora, com a análise de algumas estratégias de credibilização do discurso.
Visando dar credibilidade ao que diz, a instância enunciadora procura também acionar estratégias para tornar o
seu discurso confiável, ou seja, julgado, pela instância destinatária, como “verdadeiro”. Nesse processo, segundo
Charaudeau, a instância destinatária pode construir um posicionamento enunciativo – com relação ao dito – de
neutralidade, de distanciamento ou de engajamento (CHARAUDEAU, 2002; CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004).
Nas palavras de Charaudeau, o posicionamento neutro está relacionado ao apagamento de “qualquer traço de
julgamento e de avaliação pessoal”, enquanto o posicionamento distante relaciona-se a uma “atitude fria do especialista que
analisa sem paixão” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 143). Para nós, no entanto, as posições de neutralidade e
de distanciamento são bastante próximas, tornando difícil distingui-las entre si, já que um enunciado sem avaliações é
provavelmente um enunciado sem envolvimento passional e vice-versa. Assim, preferimos analisar as estratégias de
credibilidade com relação ao um posicionamento não-engajado ou engajado da instância enunciadora quanto ao discurso.
Vejamos esse posicionamento “não-engajado” do CNJ com o dito em alguns enunciados encontrados no corpus
da nossa pesquisa:
(4) “A justiça do Brasil está mudando. O meu caso foi resolvido em pouco tempo... E no fim foi bem mais simples do que eu
imaginava.” (Campanha Conciliação 2009)
(5) “Quem tem processo na Justiça quer que ele seja resolvido o quanto antes. É um desejo justo, previsto em
Constituição.” (Campanha Conciliação 2009)
(6) “Um ex-detendo tem duas opções: ou se recupera ou volta ao crime.” (Campanha Começar de Novo 2009)
No primeiro enunciado, a instância enunciadora é composta por “cidadãos comuns” que trazem para a cena
discursiva a “voz da sociedade”. Com isso, as apreciações e avaliações acerca da conciliação judicial, sendo advindas do
julgamento de outrem, funcionam como estratégia discursiva para posicionar de forma neutra e distante o CNJ em relação
ao seu dito, suscitando um “efeito de realidade” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 140).
Já o segundo, apesar de apresentar uma avaliação (“é um desejo justo”), o comportamento enunciativo delocutivo
– em que a instância enunciadora se apaga e não implica a instância destinatária – produz um efeito de objetividade. É,
portanto, uma “subjetividade objetivada” (CHARAUDEAU, 2008a, p. 141), uma estratégia que faz com que as avaliações
pareçam não depender dos julgamentos da instância enunciadora, sendo, assim, o discurso mais confiável.

766
No terceiro enunciado, a instância enunciadora se mostra ainda mais neutra e distante em relação ao dito. Essa
“não tomada de posição” a priori é uma estratégia discursiva para pôr em cena uma “argumentação demonstrativa”
(CHARAUDEAU, 2008a, p. 230), mais objetiva e impessoal.
Quando, ao contrário, a instância enunciadora procura dar credibilidade ao discurso revelando sua opinião ou
posição com relação ao dito, fazendo uso de expressões apreciativas, por exemplo, temos um posicionamento engajado,
como podemos perceber nos enunciados abaixo:
(7) “Não é fácil, mas com a ajuda de todos nós vamos conseguir. A gente não quer mais que você envelheça esperando a
solução para o seu caso.” (Campanha Conciliação 2009)
(8) “Quando você for convocado, compareça. Na Conciliação, todos ganham.” (Campanha Conciliação 2009)
Com a elocução, que implica a instância enunciadora, como no primeiro exemplo, o CNJ se revela, “toma partido”,
afirma seu “querer”. Já no segundo enunciado, com a alocução, que implica o interlocutor, o CNJ interpela a instância
destinatária de sua campanha, através da injunção, buscando persuadi-la.
Passemos, finalmente, à observação de algumas estratégias de captação da instância destinatária.
Para fazer com que suas ideias sejam compartilhadas e aceitas pela instância destinatária, de forma que esta seja
“impressionada” com o que lhe está sendo dito, a instância enunciadora aciona certas estratégias discursivas, que podem
vir de uma atitude polêmica ou uma atitude de dramatização.
Na atitude polêmica, certos valores da instância destinatária são questionados pela instância enunciadora,
enquanto que, na de dramatização, a atividade discursiva se vale “de analogias, de comparações, de metáforas etc.”
(CHARAUDEAU, 2002; CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 93). É o que podemos verificar nos enunciados abaixo:
(9) “O que deve acontecer com A.R.? Será que prisão é a melhor solução?” (Justiça Criminal 2010)
(10)“Crimes graves devem ser punidos com prisão. Mas será que todo crime é igual?” (Justiça Criminal 2010)
(11) “João teve um dia especial com a família. Apostou com os primos quem atirava pedra mais longe. Riu das piadas dos
tios. E adorou a fogueira no final do dia. João participou do dia da Malhação de Judas. E o pior: ele nem sabe quem foi este
homem.” (Começar de Novo 2008)
(12) “Marcos foi preso por furto. Passou 6 anos na prisão. Mas antes de atirar a primeira pedra, é importante saber que
Marcos cumpriu sua pena. Marcos pagou sua dívida com a sociedade e tudo que ele deseja é uma segunda chance.”
(Começar de Novo 2008)
Os dois primeiros enunciados trazem questionamentos que procuram incitar a instância destinatária a (re)pensar
seus valores e saberes (CHARAUDEAU, 2008a, p. 242) sobre a punição adequada aos diferentes tipos de crime. Já os dois
últimos, através da descrição narrativa, servem-se de alegorias e metáforas para suscitar uma “efeito de exemplicação”
(CHARAUDEAU, 2008a, p. 239) de situações em que há preconceito em relação àqueles que já cometeram algum delito.
Em ambos os casos, essas estratégias são procedimentos discursivos da encenação argumentativa que visam
fazer com que a instância destinatária seja persuadida, ou seja, venha a aderir à tese de que crimes sem violência e com
pena inferior a quatro anos sejam revertidos em serviços comunitários (Campanha Justiça Criminal 2010) ou à tese de que
deve-se dar emprego ao ex-detento (Campanha Começar de Novo 2008).

4. Para encerrar, mais uma breve observação


No presente trabalho, focalizamos a análise de algumas estratégias de legitimação, de credibilização e de
captação acionadas em campanhas publicitárias do Conselho Nacional de Justiça. Longe de queremos esgotar as
discussões acerca dessas estratégias discursivas, gostaríamos de fazer aqui mais uma última observação: na maioria das

767
peças publicitárias que integram as campanhas analisadas nessa pesquisa, há uma constante simulação de diálogo entre e
instância enunciadora e a instância destinatária.
Essa simulação de diálogos ora é realizada através da formulação de perguntas (muitas vezes, retóricas):
(13) “Não é melhor para ele? Não é melhor para todos?” (Justiça Criminal 2010)
(14) “Quem está preso na verdade? O detento? Ou o cidadão que vive com medo?” (Começar de Novo 2009)
Além de ser uma estratégia para interpelar, captar e persuadir a instância destinatária – buscando, ainda, dar a
impressão de uma menor distância entre os interlocutores na situação de comunicação monologal, de não troca – a
simulação de diálogos também contribui para a construção da imagem do CNJ como uma instituição “aberta à conversa, ao
debate”, uma instituição que propõe um direito menos impositivo para o aperfeiçoamento da Justiça brasileira.
Outras vezes, no entanto, essa simulação de diálogo não se dá através de questionamentos, mas de resposta
frente a imaginários acerca da Justiça, tais como morosidade e ineficiência, necessidade de punição rigorosa e não-
recuperação do ex-detento:
(15) “Não é punir menos. É punir melhor.” (Justiça Criminal 2010)
Percebe-se aí também a construção de uma imagem da instância destinatária como uma sociedade ainda
conservadora, alvo dessas campanhas de conscientização e mobilização do CNJ.

Referências
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discourse: elements de sémiolinguistique. Paris: Hachette, 1983.

_______. Une théorie des sujets du langage. Langages et Société, Paris, v. 1, n. 28, jun., 1984, p. 37-52.

_______. Le dialogue dans un modèle de discours. Cahiers de linguistique française, Paris, v. 2, n. 17, jun., 1995, p. 141-
178.

_______. A communicative conception of discourse. Discourse Studies, Londres, v. 4, n. 3, 2002, p. 301-318. Disponível
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_______. Uma análise Semiolingüística do texto e do discurso. In: Maria Pauliukonis; Sigrid Gavazzi (Orgs.). Da língua ao
discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.

_______. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006a.

_______. Un modèle socio-communicationnel du discourse: entre situation de communication et stratégies d'individuation.


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_______. Analyse du discours et communication: l’un dans l’autre ou l’autre dans l’un ?. Semen, Paris, v. 1, n. 23, ago.,
2007. Disponível em: http://semen.revues.org/document5081.html. Acesso em: 28 ago. 2010.

_______. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008a.

_______. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: Gláucia Lara; Ida Machado; Wander Emediato (Orgs.). Análises do
Discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Lucerna, vol. 1, p. 11-30, 2008b.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto,
2004.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2005.

768
Virgínia Leal (vleal@elogica.com.br)
Doutora em Semiótica e Linguística pela USP/Université Paris X. Professora da Graduação e da Pós-Graduação em Letras
da UFPE. Diretora do Centro de Artes e Comunicação da UFPE. Coordena acordos de cooperação internacional nas áreas
da Linguística (Universidade de Coimbra) e das Artes (The Brazilian Endowment for the Arts/NY/USA).

Carolina Pires (carolinapires@hotmail.com)


Currículo: Graduada em Publicidade e Propaganda pela UFPE. Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da UFPE. Atualmente é doutoranda do mesmo Programa (bolsista do CNPq), tutora a distância e supervisora de
material didático do Curso de Licenciatura em Letras a Distância da UFPE.

769
Representações do professor na mídia

LEITE, Maria Alzira


(Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais)

1. Introdução

Neutralidade, informação, tempo real da notícia, eis as palavra-chave que acompanham as novas campanhas
publicitárias da esfera jornalística. Cada vez que surge um novo escândalo político ou uma tragédia, a mídia está ali
presente, criando uma cena de verdade, buscando, até mesmo, a justiça. É neste ponto - da imparcialidade - que os
veículos de comunicação iniciam uma concorrência e se tornam objetos de todas as atenções.
Charaudeau (2006) nos chama a atenção, em seu livro Discurso das Mídias, para a seguinte questão: “as mídias
nos manipulam”?
É uma resposta complexa. Sabemos que um mesmo fato permite muitas leituras. Os acontecimentos noticiados
por jornais, revistas e TV são frequentemente apresentados de maneira bastante variada.
Tendemos a pensar que, ao ler um texto no jornal, automaticamente, sabemos a verdade. Esquecemos que
aquilo é uma versão dos fatos, ou seja, uma história construída por alguém.
O ato de comunicar da esfera jornalística possui um poder que abarca muitos leitores e estes se tornam fiéis,
como este:

“Sou leitor de VEJA há mais de 15 anos e confio piamente no que é publicado. Para falar a verdade eu
nem confiro as publicações, pois acredito na idoneidade da revista.”
Leitor A - MACEIÓ

Isso nos faz lembrar os dizeres de Focault:

Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o
poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas
atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana.” (FOCAULT, 2001, p. 131)

O leitor abre espaço e se deixar seduzir, como nos diz Emediato (2008), o poder delegado à mídia existe porque o
leitor acredita que não existe transparência no mundo social e assim surge o veículo de comunicação para desvendar o que
está oculto.
A crença na credibilidade da mídia está vinculada à maneira de conduzir o discurso, ou seja, à sua
argumentação.

Mas até que ponto essa preocupação pode nortear o discurso do outro?

Para responder essa questão, retomamos conceitos de Mocovicci (1981) Charaudeau (2006/2008), Amossy
(2005), e como corpus a capa da revista VEJA de 20 de agosto de 2008 e o fragmento publicado na Seção Cartas, em 27
de agosto do mesmo ano, para analisar as representações que emergem dos dizeres de um determinado professor; os
mecanismos enunciativos que tornam o discurso persuasivo para assim, percebermos a construção do ethos do trabalho
docente.

770
2. Os diferentes posicionamentos na esfera midiática

Mikhail Bakhtin é um dos filósofos mais respeitados da linguagem no século XX. Seus estudos voltam-se para a
valorização da enunciação, da palavra e da fala dentro de uma natureza interativa e social.
Nessa perspectiva, a enunciação é para ele:

o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um
interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao pertence o
locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor (...) (BAKHTIN
– VOLOCHINOV, 2004, p. 112)

Esse enfoque dado à palavra é de grande relevância nos estudos bakhtinianos, pois provém de um EU e se dirige
para um TU constituindo-se o produto da interação verbal entre o locutor e o ouvinte: “A palavra é uma espécie de ponte
lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor.”
(BAKHTIN, 2004, p. 113)
Assim, a língua se encontra inseparável do fluxo da comunicação verbal, sendo transmitida não como
um produto acabado, mas como algo que se desenvolve permanentemente na corrente da comunicação verbal. A realidade
da língua não se reduz à sua materialidade linguística, mas está justamente em seu conteúdo vivencial e interacional:

LÍNGUA

palavra

EU TU

INTERAÇÃO VERBAL

Quadro 1 – Interação Verbal


Fonte: Elaborado pelo pesquisador

Percebemos, então, a linguagem enquanto uma atividade que se processa por meio da interação verbal entre os
interlocutores, ou seja, que se materializa por meio das enunciações por eles construídas.
Nesse processo de interação, as diversas vozes nos gêneros midiáticos, mais especificamente aquelas presentes
nas capas, nos editoriais e nas cartas dos leitores, sujeitam-se a um narrador centralizante; elas se relacionam
aparentemente em condição de igualdade. Será que poderíamos, então, falar em polifonia ou dialogismo nesses gêneros?
Ora, de acordo com Paulo Bezerra (2005):

O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como regente do grande coro de vozes que
participam do processo dialógico. (...) A polifonia se define pela convivência e pela interação, em um
mesmo espaço do romance, de uma multiplicidade de vozes e consciências independentes e
imiscíveis, vozes plenivalenentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um
determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo.” (BEZERRA, 2005, p.194 e
195)

Tanto o dialogismo quanto a polifonia se definem pela convivência e pela interação em um determinado espaço.
No entanto, alguns pesquisadores chamam a atenção para uma possível distinção entre dialogismo e polifonia.

771
Para Barros (2005), o dialogismo é o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo o discurso. Já a
polifonia se caracteriza por um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver e são percebidas muitas vozes
polêmicas em um discurso. E Barros (2005) deixa claro que:

Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos
monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única voz. Monofonia e
polifonia são, portanto, efeitos de sentido, decorrentes de procedimentos discursivos, de discursos por
definição e constituição dialógicos. (BARROS, 2005, p. 34).

Já, Clark e Holquist (2004), ressaltam que Bakhtin refere-se à polifonia como um fenômeno cujo outro nome é o
dialogismo.
De qualquer forma, as vozes discursivas na mídia se interagem e orientam o discurso.

3. Revista VEJA: o erro é de quem?

Em agosto de 2008 a revista VEJA, em matéria especial, apresentou uma pesquisa que mostra, segundo ela, “a
realidade da educação”. A capa da revista apresentava um aluno escrevendo no quadro o seguinte: “o inssino no Brasiu
é ótimo”, em seguida, com letra de fôrma grande: “OS ERROS NÃO SÃO SÓ DELE”. Abaixo, em letras menores: “Os
estudantes brasileiros são os piores nos rankings internacionais mas... mais de 90% dos professores e pais
aprovam as escolas.”

Imagem 1: Os erros não são só dele


Revista VEJA, Edição 2074. 20 de agosto de 2008.

De acordo com VEJA esta pesquisa sobre “educação” foi encomendada à CNT/Sensus que visitou algumas
escolas públicas e particulares, assistiu e gravou às aulas, e ainda, entrevistou pais, alunos e professores. O resultado geral
dessa pesquisa mostra que “90% dos professores se acham bem preparados para dar aulas e 89% dos pais consideram
receber das escolas um bom serviço em troca do que pagam.”
O primeiro ponto que chama a atenção na reportagem de VEJA é a análise que a própria revista faz da aula de
um professor de história, de Porto Alegre. A revista relata que a aula era “animada por um jogral” e o professor
questionava no decorrer de sua disciplina: “Quem provoca o desemprego dos trabalhadores, gurizada?” Os alunos
respondem: “A máquina”. Indaga, mais uma vez, o professor: “Quem são os donos das máquinas?” E os estudantes: “Os

772
empresários!” No final o professor: “Então, quem tem pai empresário aqui deve questionar se ele está fazendo isso”.
Fim de aula.

VEJA nos apresenta esta aula como:

INÍCIO
1º. Jogral;
2º. Questões orientadas;
3º. Orientação final do professor.
FIM DE AULA

A partir disso, podemos verificar a encenação abaixo:

ENUNCIAÇÃO
Informar/persuader
Locutor: VEJA
Enunciado: “o inssino no Brasiu é ótimo”
Representação da mídia Jornalismo de referência
Comportamento enunciativo: Delocutivo com traços alocutivos
Ethos da mídia: Denúncia
Quadro 2 - Cena Enunciativa
Elaborado pelo pesquisador

Em resumo, “VEJA” apresenta a seguinte imagem do professor na capa:

Posto: O ensino no Brasil está fraco.


Subentendido: A responsabilidade é de alguém.
Pressuposto: Professores, pais e escolas não estão atentos.

E VEJA se apresenta como:


+ jornalismo + denúncia
+ revista + informação
+ VEJA + esclarecimento

A intenção dessa revista vai além de informar algo. Ela almeja orientar o leitor a uma determinada conclusão.
Observe que há indícios que o enfoque maior da matéria esteja para o professor, devido ao ambiente reproduzido
na capa, a postura do aluno escrevendo no quadro, e ainda, o profissional da língua portuguesa, devido a ilustração da
escrita “incorreta.” Talvez se o aluno estivesse fazendo uma operação matemática inadequada, essa capa não fosse tão
peculiar.
Assim, podemos registrar o seguinte efeito persuasivo:

773
BLOCO SEMÂNTICO
SENTIDO DO ARGUMENTO SENTIDO DA CONCLUSÃO
Os estudantes brasileiros são mais de 90% dos professores e pais aprovam
os piores nos rankings as escolas.
internacionais mas...
Quadro 3 - Bloco Semântico
Elaborado pelo pesquisador

A asserção de VEJA remete o leitor para um fato. O sentido argumentativo se instaura com uma afirmação do
verbo “ser”, com o uso do modalizador “mas” e a pontuação reticências, que exprimem uma ressalva de pensamento,
indicado uma advertência. Logo a seguir, a conclusão se inicia com outro modalizador “mais” e reforça a indicação de
quantidade posta pela expressão: “90% dos professores e pais...” O verbo “aprovar”, como um ato ilocucionário, encerra
a “força” com que o enunciado é produzido.
O segundo aspecto que impressiona é a carta de um professor de São Paulo, publicada na semana posterior, a
respeito dessa matéria.
Leia:

“Considerei um verdadeiro presente a reportagem especial da última edição de VEJA. Sou professor e
curso o último semestre de matemática. Promovi uma avaliação em algumas escolas para coletar
dados mais efetivos para meu projeto de pesquisa científica. Fiquei assustado com o que encontrei:
além da absurda e inquestionável falta de conhecimento dos alunos, deparei com professores
despreparados, que mal sabem o que estão dizendo e que dão graças aos céus ao encontrar uma sala
onde impera a desordem, pois assim, podem cruzar os braços. Os jovens de hoje não são menos
capazes; os professores, sim, são muito menos. De nada adianta ficar avaliando o desempenho dos
alunos se quem deve ser avaliado são os professores. Chega de incompetência e mediocridade na
educação.”
Leitor X - Tupã, SP - VEJA, Edição 2075. 27 de agosto de 2008.

Para a uma melhor compreensão do texto, dividiremos o fragmento acima em partes:

Introdução: Elogio a revista;


Apresentação do leitor legitimando-se.

Desenvolvimento: Apreciação do leitor quanto ao conhecimento dos alunos;


Avaliação da imagem do professor;
Apreciação quanto aos professores e jovens de hoje.

Conclusão: O professor deve ser avaliado.

A opinião desse leitor é o reflexo do posicionamento de VEJA. Mas de que maneira isso é feito?
Nas diversas situações de comunicação o locutor ao se posicionar sobre um determinado assunto, constrói o seu
texto e produz um sentido. Retomando Charaudeau (2008, p. 76) ao falar ou escrever, o locutor, organiza o discurso “em
função de sua própria identidade, da imagem que se tem de seu interlocutor e do que já foi dito.”
No caso da mídia, ela está interessada em apresentar uma matéria. Desse modo, constrói a imagem de seu
interlocutor para influenciá-lo Para isso, articula o seu discurso apoiando-se nas crenças e nos valores de seus leitores.

774
De acordo com Emediato (2008), a influência sobre as crenças do leitor surge a partir de uma prática negociada,
regulada e dialógica, isto é, nasce “da crença cidadã de que não há transparência no mundo social”. (p.75)
O leitor – cidadão participante que interage com outras pessoas - escreve aquilo que ele vive e sente, porém de
maneira orientada, tanto pela mídia quanto pela sociedade, que estabelece os seus estereótipos1 e estes se atrelam com as
nossas representações refletindo na formação de uma opinião.
Nesse enfoque, “as ações verbais são mediadoras e constitutivas do social, onde interagem múltiplos e diversos
interesses, valores, conceitos, teorias, objetivos e significações de si e dos outros.” (BRONCKART, 1997, p.42).

4. A formação e o agir representado no texto

Ao observar o discurso2 do professor de São Paulo, percebemos que em seus dizeres há indícios de
representações sociais que contribuem para a sua formação como cidadão, como leitor e como profissional.
Ao tratar de representação é interessante relembrar o seu conceito. Como salienta Moscovici (1981) a
Representação Social, é entendida como um conjunto de conceitos, proposições e explicações que se originam na vida e
no curso de comunicações interpessoais.
Então, a representação é uma forma de conhecimento socialmente elaborada e partilhada, que tem um objetivo
prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.
Assim, na carta em análise, percebemos algumas dimensões que estruturam a sua representação. Uma delas é a
informação. Esta se refere à organização dos conhecimentos que um grupo possui a respeito de um objeto social:

INFORMAÇÃO

EDUCAÇÃO
CONHECIMENTO

Esquema 1 - A informação estruturando a representação


Elaborado pelo pesquisador

Constantemente a mídia veicula o resultado de avaliações do governo mostrando o fraco desempenho dos alunos,
tanto da escola pública quanto particular. A informação que vem à tona é que algo está errado na educação. O campo de
representação da responsabilidade de um possível “fracasso educacional” parece ser direcionado ao professor, profissional

1 Tajfel (1982) apresenta uma visão geral do conceito de estereótipo; "uma imagem mental hipersimplificada de uma determinada

categoria (normalmente) de indivíduo, instituição ou acontecimento, compartilhada, em aspectos essenciais, por grande número de
pessoas. ( p.161).
2 É importante destacar que o discurso do professor está publicado na Seção Leitor e passou por uma avaliação do editor, o que
compromete o sentido.

775
que tem como um modelo de imagem para a instância cidadã como o “conhecedor”, aquele que “transforma a vida das
pessoas por meio da educação.”
Abric (2003) enfatiza que as representações têm a função de situar os indivíduos e os grupos no campo social,
permitindo a elaboração de uma identidade social e pessoal, isto é, compatível com sistemas de normas e de valores social
e historicamente determinados.
Então, a partir da idéia de um possível “fracasso educacional” /“responsabilidade do professor”, percebemos uma
orientação que emerge da sociedade guiando os comportamentos e as práticas sociais. Nesse ponto, se insere a mídia,
que também reproduz o discurso representado pela sociedade, porém seleciona e filtra as informações de acordo com a
sua conveniência; legitima a informação e a torna aceitável por um determinado grupo.
É o que pode se notar no fragmento, em análise, da carta publicada na Seção Leitor
Analisando essa carta, primeiramente destacamos a relação de influência do locutor sobre o interlocutor:
“Considerei ...” Notamos um comportamento enunciativo Elocutivo, ou seja, a primeira pessoa do discurso denota uma
relação do locutor consigo mesmo e assim apresenta o seu ethos de satisfação: “verdadeiro presente a reportagem
especial” Em seguida, o leitor reafirma sua condição de “autoridade” para emitir sua opinião: Sou professor e curso o
último semestre de matemática. Promovi uma avaliação em algumas escolas para coletar dados mais efetivos para meu
projeto de pesquisa científica, reproduzindo o ethos de conhecimento. Nesse sentido, há também um comportamento
enunciativo Elocutivo, porém com traços Alocutivo, pois existe uma relação de influência (locutor/interlocutor). A seguir,
observamos novamente o comportamento enunciativo Elocutivo: “Fiquei assustado com o que encontrei: além da absurda
e inquestionável falta de conhecimento dos alunos, deparei com professores despreparados, que mal sabem o que
estão dizendo e que dão graças aos céus ao encontrar uma sala onde impera a desordem, pois assim, podem cruzar
os braços.” Apresentando o ethos de um professor indignado. Observe que nesse ponto há um conflito entre a idéia
representada pela sociedade de “professor conhecedor” e a representação de um profissional da mesma área “professor
incompetente”, e ainda, a representação também de VEJA dessa idéia. Cabe destacar que como não temos a carta original,
é difícil perceber o que foi selecionado para publicação. Mas há indícios que a carta publicada legitima o que a revista
apresenta. Por mais que esse leitor tenha a imagem construída de um “professor incompetente”, a revista VEJA, com a sua
linha argumentativa, vem reafirmando o seu posicionamento em matérias anteriores sobre o mesmo tema. Dando
prosseguimento, o leitor vai concluindo: “Os jovens de hoje não são menos capazes; os professores, sim, são muito
menos.” Nesse excerto, o comportamento enunciativo Elocutivo se relaciona com o Delocutivo. Há uma apreciação do
locutor a respeito da capacidade do professor e ao mesmo há uma asserção desse ponto de vista, com o modalizador “sim”.
Conclui o seu raciocínio: “De nada adianta ficar avaliando o desempenho dos alunos sem quem deve ser avaliado São
os professores. Chega de incompetência e mediocridade na educação.”
A partir dessa análise, temos a seguinte cena:

ENUNCIAÇÃO
Opinar/persuadir
Locutor: “Leitor” “Editor” VEJA
Enunciado: O fragmento publicado
Representação da mídia Jornalismo de referência
Comportamento enunciativo: Elocutivo
Ethos da mídia: imparcialidade
Quadro 4 - Cena Enunciativa
Elaborado pelo pesquisador

776
Em resumo, o leitor apresenta a seguinte imagem do professor:

Posto: Os professores estão despreparados


Subentendido: Os alunos não têm conhecimento
Pressuposto: Os professores não estão preocupados
com a educação.
E apresenta VEJA como:

+ jornalismo + esclarecimento
+ revista + informação
+ VEJA + exclusividade

Observe que certas expressões da capa e da carta indicam o posicionamento de VEJA e do leitor. A apresentação
de VEJA volta-se em maior ângulo para o esclarecimento: “os erros não são só deles”, enquanto que a do leitor para a
exclusividade: “verdadeiro presente”.

5. Considerações finais

Ao analisar um gênero textual procuramos interpretar nas imagens, nos enunciados e nas palavras possíveis
significados. No entanto, compreender o sentido de um texto, o seu valor e efeito ali, naquele lugar, e a partir disso,
construir possíveis significados, não é uma tarefa simples. Por isso, ao interpretar um texto é importante observar no os
seus aspectos discursivos integrados.
Dentre esses aspectos destacamos os mecanismos enunciativos, os modos de dizer da esfera jornalística e os
encadeamentos argumentativos, que juntos, podem formar uma cena enunciativa persuasiva e contribuir para uma
determinada produção de sentido.
Percebemos que nos enunciados do texto em análise estão inscritas representações de valores tanto por parte de
quem elabora, quanto de quem lê. Ambas estão em uma competência axiológica, avaliando saberes de crença que
circulam na sociedade, assumindo posições, produzindo e interpretando textos.
Amossy (2006) salienta que a noção de doxa (opinião comum) traduz o conjunto de saberes e crenças
coletivos/partilhados que constituem os pontos de ‘acordo’ que fundamentam qualquer argumentação e dos quais depende
o efeito de adesão/persuasão.
Galatanu (1994, p. 95) salienta que “a argumentação comporta uma zona axiológica que recobre uma dimensão
avaliativa não só dos valores morais e éticos, mas também de outros campos da experiência individual.” Afinal, “eu”
escrevo, leio e penso de acordo com a minha vivência. Nesse sentido, o “meu” discurso constrói o mundo social ao avaliá-
lo. Através de enunciados argumentativos, esse discurso constrói uma orientação permitindo avaliar as representações
propostas sobre o mundo.
O texto da capa de VEJA se apresenta como um processo de comunicação entre mídia e leitor. É como se esse
texto ‘falasse’. Nessa comunicação, a sua linha argumentativa, mostra qual é o seu posicionamento frente a um tema. Para
isso, vale-se das vozes dos sujeitos (Mídia, Professor, Leitor, Editor) que compõem aquela cena para atingir o seu objetivo:

777
persuasão. No caso, da nossa análise, VEJA pretende “construir” uma determinada imagem de professor que toda a mídia
televisiva e impressão já estão apresentando.
Assim, é importante ressaltar (Mangueneau: 2005:98,) quando diz que o discurso não é apenas uma cadeia de
argumentação, vai além disso, é sobretudo uma voz que emerge no texto. Isso me faz lembrar Ducrot (1995:132) quando
reitera que o sentido de um segmento S da língua não são informações contidas nesse segmento S, mas os
encadeamentos discursivos evocados por S, ou suas continuações possíveis.
Nesse sentido, observe que a carta, aqui abordada, enfoca a imagem do professor.
A voz do locutor (VEJA) comanda as outras vozes (leitor e professor). No entanto, aquela voz que emerge é de
VEJA. Em seu discurso, há subentendido um ethos de credibilidade, que foi construído ao longo da história dessa revista.
O seu discurso visa, ainda, produzir sua seriedade (condição de sinceridade); a sua virtude – forma como apresenta uma
informação – (condição de desempenho) e sua competência – legitima o que preconiza – (condição de eficácia).

Referências

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AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

ASCOMBRE, J-C.; DUCROT, O. (1995). La théorie de Topoi. Paris : Kimé. pp. 132-133.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1929/1991/2004). A relação entre a infra-estrutura e as superestruturas. In: Marxismo e

Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. pp.41-42.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1979/1992/2003). Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo:

Martins Fontes. Tradução Paulo Bezerra. pp.261-270.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1979/1992/2003). Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo:

Martins Fontes. Tradução Paulo Bezerra. pp.285-286.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOSHINOV) (1929/1991/2004). A interação verbal. In: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São

Paulo: Hucitec. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. pp.123-124.

BAKHTIN, Mikhail (1929/1997) Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obra de Dostoievski. In:

Problemas da poética de Dostoiévski. 2ª. Ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio: Forense universitária. pp.101-180.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de Linguagens, texto e discursos. Por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Ann

Rachel Machado e Péricles Cunha. São Paulo: Educ, 1997/99.

CHARAUDEAU, P. (2008).Princípios de organização do discurso. In: Linguagem e Discurso: modos de organização.

Tradução Ângela M. S. Corrêa & Ida Lúcia Machado.São Paulo: Contexto. pp. 67-105.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. Tradução Angela S. M. Corrêa. São Paulo; Contexto, 2006.

DUCROT O. O Dizer e o Dito. Tradução Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes 1987.

FOCAULT. M. Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 2001.

778
GALATANU, Olga. Convocation et reconstruction des stéréotypes dans les argumentations de la presse écrite . In: Le Lieu

commun, Protée : Théories et pratiques sémiotiques, vol. 22, 2, printemps, 1994, p.75-79.

MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Tradução: GUARESCHI. P. A. RJ:

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Revista VEJA, Edição 2074. 20 de agosto de 2008.

Revista VEJA, Edição 2075. 27 de agosto de 2008.

TAJFEL, H. (1982).Grupos humanos e categorias sociais. Lisboa: Livros Horizonte.

CURRÍCULO DO AUTOR:

Possui graduação em LETRAS pelo Centro Universitário de Belo Horizonte - UNIBH (2001), especialização em
psicopedagogia pelo IEC, PUCMINAS (2002), mestre em Estudos Linguísticos e Língua Portuguesa pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (2009). Atualmente é doutoranda em Linguística, também, na PUCMINAS. Atua
principalmente nos seguintes temas: mídia, gêneros, argumentação, mecanismos enunciativos, representações sociais. É
professora universitária do Instituto Superior Anísio Teixeira, Coordenadora do Curso de Extensão em Língua Portuguesa e
Membro do Conselho de Curso da mesma instituição.

mariaalzira35@gmail.com

779
A subjetividade em discussão: a presença do eu no
discurso do outro

LEMOS, Luana Santos


(UFES – Faculdade Interativa COC)

A inevitável presença da voz do outro em nossa prática de linguagem é uma questão tratada como consenso, nas
últimas décadas, por várias correntes linguísticas que trabalham com texto e com discurso. Para essas correntes, a palavra
alheia é um componente obrigatório da dimensão social da linguagem humana, componente que se torna visível nas
diferentes formas de comunicação. Seja retomando, repetindo ou imitando o que os outros disseram; reconstruindo,
modificando, ou mesmo inovando o dito por meio de um novo ato de enunciação, sempre que falamos em nossas palavras
habitam outras vozes que não a nossa.
Desse modo, a palavra do outro entra na constituição de todo ato de enunciação produzido por um sujeito,
instituindo um dialogismo permanente entre o outro e o sujeito que enuncia, fazendo de todo discurso um discurso
heterogêneo por definição.
De fato, a presença do outro no discurso do eu é uma tese largamente aceita nos estudos linguísticos
contemporâneos, os quais procuram compreender o funcionamento discursivo/enunciativo da linguagem. No entanto, vale
lembrar que, a partir do momento em que a Linguística da Enunciação começou a discutir a concepção de sujeito uno e a
investigar a presença do outro na constituição dos discursos, a subjetividade, a presença do eu começou a perder terreno
nos estudos da linguagem. Ora, reconhecer a presença do outro não significa anular a presença do eu, concebê-lo como
um simples repositório de palavras alheias. Por isso, torna-se relevante investigar esse sujeito que busca o outro para
constituir-se como tal.
Diante desse quadro, queremos chamar a atenção para o fato de que, nos estudos linguísticos atuais, muitas são
as pesquisas que se preocupam com o outro no discurso do eu, porém poucas se voltam para a pesquisa do eu quando
este toma o discurso do outro. Indo nessa direção, nossa preocupação centra-se mais na exploração dos sentidos
produzidos pelo sujeito enunciador e na identificação das suas marcas de subjetividade ao efetuar escolhas e avaliações na
interpretação do discurso do outro; e menos na identificação das formas como o discurso alheio se apresenta no discurso
do eu. Nesse sentido, o objetivo principal do nosso trabalho consiste em investigar a subjetividade na incorporação do
discurso alheio, ou seja, o eu no discurso do outro.
É importante enfatizar que teremos o compromisso de não nos restringir às marcas formais, à questão da
transmissão/recepção do discurso alheio, não reduzindo esse discurso apenas às três formas padronizadas de ensino
(discurso direto, indireto e discurso indireto livre). A palavra do outro aparece, sob diferentes formas, de maneira mais ou
menos explícita, com significações diversas, daí ser necessário distinguir diferentes tipos de heterogeneidade, e observar
como essa heterogeneidade se apresenta na linguagem.
Graças às traduções da obra de Bakhtin (1995 [1929]), muitos estudos sobre o discurso reportado na perspectiva
enunciativa e dialógica privilegiaram a interação entre os discursos, e não mais as formas de citação. Nessa perspectiva,
não se trata mais de considerar o texto como objeto homogêneo produzido por um sujeito também homogêneo, mas um
objeto heterogêneo, produto de um sujeito também heterogêneo.
Todo discurso manifesta a incorporação do discurso alheio. Como afirma Bakhtin (1995 [1929]), a linguagem é por
natureza dialógica, já que nela se cruzam as palavras dos outros. Todo pensamento que se materializa no discurso é

780
resultante de outras falas, outros posicionamentos, não há discurso que seja genuinamente inovador, ele é heterogêneo por
natureza. Em outras palavras, um discurso é heterogêneo porque sempre comporta constitutivamente em seu interior outros
discursos.
Bakhtin (1995), ao tratar das formas do discurso reportado, como o caso do discurso direto e discurso indireto, não
considera essas formas como uma mera transposição de um discurso sobre outro discurso, como é feito tradicionalmente.
Pelo contrário, ele critica essas concepções por não considerarem as alterações estilísticas nem o contexto narrativo.
“[...] Essas formas são apenas esquemas padronizados para citar o discurso. Mas esses esquemas e
suas variantes só podem ter surgido e tomado forma de acordo com as tendências dominantes da
apreensão do discurso de outrem; além disso, na medida em que esses esquemas assumiram uma
forma e uma função na língua, eles exercem uma influência reguladora, estimulante ou inibidora, sobre
o desenvolvimento das tendências da apreensão apreciativa, cujo campo de ação é justamente
definido por essas formas.” (BAKHTIN, 1995 [1929], p. 147)

Flores (2009, p. 85) mostra que, para a teoria bakhtiniana, o discurso reportado é um problema específico de
sintaxe que é tratado impropriamente pelos linguistas. O autor propõe que esse mecanismo seja visto a partir de uma
perspectiva enunciativa, isto é, levando-se em conta as condições reais de fala. Chama a atenção para o fato de que aquele
que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, mas um ser cheio de palavras interiores. Essas palavras
interiores constituem um substrato a partir do qual se dá a interação do discurso citante com o discurso apreendido do
exterior. É no quadro do discurso interior que ocorre a apreensão da enunciação de outrem, sua compreensão e sua
apreciação.
O teórico critica a supervalorização da forma em detrimento de uma concepção ativa de transmissão/recepção do
discurso alheio. Nessa linha, Brandão (2000, p. 161) lembra que uma mesma forma pode produzir efeitos de sentidos
diversos e é isso que se deve levar em conta quando incorporamos discursos alheios à nossa fala.
Segundo Bakhtin (1995 [1929]), o discurso alheio é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa,
que possui uma construção independente e está situada fora do contexto narrativo. Em função dessa existência autônoma é
que o discurso do outro passa para o contexto narrativo conservando o seu conteúdo e, ao menos, parte de sua integridade
linguística e autonomia estrutural primitiva (BAKHTIN, 1995 [1929], p.144-145). O autor considera que, ao incorporar o
discurso alheio, esse discurso sofre modificações e, consequentemente, não é mais o mesmo. No entanto, mesmo sofrendo
alterações, o discurso do outro pode ser reconhecido. Assim, o discurso de outrem não se dilui nem se efetua
completamente (BAKHTIN, 1995 [1929], p. 145).
Dessa forma, Bakhtin afirma que todo discurso é constituído de várias vozes, que o dialogismo é a condição de
existência do discurso. Na linha de Bakhtin, Authier-Revuz (1990) coloca o dialogismo como condição de existência de todo
discurso. A autora distingue duas ordens de heterogeneidade (como já foi exposto anteriormente): a heterogeneidade
mostrada no discurso - que indica a presença do outro no discurso do locutor; e a heterogeneidade constitutiva do discurso -
que dificulta a possibilidade de captar linguisticamente a presença do outro no um.
A autora explica que é da natureza do discurso ser heterogêneo, por isso a heterogeneidade é constitutiva, faz
parte da constituição do discurso. Trata-se da polifonia formada pelas vozes da história e da cultura (e também, do
inconsciente), que se fazem presentes em todo universo discursivo e em relação à qual o autor não tem controle racional e,
às vezes, nem sequer consciência.
Já a heterogeneidade mostrada revela-se de forma explícita na materialidade textual. Diferentemente da
heterogeneidade constitutiva, ela é a indicação na superfície do texto da presença de outros discursos, de outras vozes que
não a do locutor. A heterogeneidade mostrada, ainda segundo Authier-Revuz (1990), inscreve o outro na sequência do

781
discurso e divide-se em duas modalidades: a marcada, da ordem da enunciação e visível na materialidade linguística e a
não-marcada, da ordem do discurso e não provida de visibilidade.
A heterogeneidade mostrada marca o discurso com certas formas que criam o mecanismo de distância entre o
sujeito e aquilo que ele diz. Pode acontecer através de formas marcadas como o discurso direto, o discurso indireto, as
aspas, o itálico e o metadiscurso do locutor (conjunto de expressões, glosas, retoques, comentários). Quando não é
marcada, pode-se citar o caso do discurso indireto livre, da ironia, da metáfora, dos jogos de linguagem, da imitação.
Pela heterogeneidade mostrada, pode-se perceber como os discursos constituem suas identidades, como
delimitam seus limites e fronteiras (AUTHIER-REVUZ, 1990). Por outras palavras, ela nos revela a que vozes os discursos
necessitam recorrer para se constituir, ao mesmo tempo em que estabelecem uma relação entre essas vozes.
Neste contexto, Sírio Possenti (1995) vai questionar que o destaque dado ao papel do outro leva muitas teorias a
negligenciar a importância do eu, a subjetividade. Segundo o autor,
“A própria ideia de heterogeneidade se constitui pela afirmação do outro num lugar que antes não lhe
era previsto. Ora, é má lógica pensar que, então, torna-se obrigatório deixar ao outro todo o lugar e
todos os papéis. Voltaríamos à simplificação de antes apenas invertida.” (POSSENTI, 1995, p.53)

Por isso, acreditamos que, junto a essa questão proposta pelo autor, faz-se necessário, associar à noção de
"heterogeneidade constitutiva de todo discurso" (Authier, 1990) a concepção de um sujeito ativo, que inscreve sua
subjetividade no discurso sob a rubrica de um trabalho efetuado sobre a linguagem e sobre as línguas em particular, do qual
resultam marcas do que Possenti (1995) chamou de "subjetividade mostrada". Em outras palavras, diante da noção de
heterogeneidade mostrada, o autor propõe uma inversão – a ação do sujeito, detectada no discurso do outro, não pode ser
disfarçada; tal trabalho manifestaria, na verdade, uma subjetividade mostrada1. Frise-se que essa inversão, longe de ser
uma simples mudança de nomenclatura, constitui uma quebra de paradigma na questão da constituição do sujeito.
Bem antes do questionamento de Possenti (1995), Othon Moacyr Garcia, um dos precursores dos estudos do
discurso no Brasil2, em seu livro “Comunicação em prosa moderna” (2006 [1967]), já estava atento para o trabalho do
sujeito na incorporação da voz alheia. Segundo o autor, os verbos dicendi, como afirmar, indagar, retrucar, negar, gritar,
solicitar, aconselhar e mandar têm como principal função indicar o interlocutor que está com a palavra.
Garcia (2006 [1967]), então, propõe uma classificação dupla para esses verbos: os verbos declarandi ou dicendi
(de declaração), como verbos de elocução, que se referem à maneira pela qual alguém se expressa; e os verbos sentiendi
ou de sentir (assim chamados, por analogia aos dicendi) que constituem uma espécie de vicários ou variações dos verbos
de elocução, com a função predominante de expressar a carga de afetividade presente na língua falada, caracterizando o
estado de espírito, a reação psicológica, as emoções, as atitudes, os gestos, etc.
Mais recentemente, Marcurshi (1991) também chamou a atenção para a ação desses verbos que introduzem
opiniões, em um artigo intitulado “A ação dos verbos de opinião” (1991, p. 74). Esse foi um dos primeiros textos que tivemos
oportunidade de ler nessa perspectiva, sendo um dos inspiradores para a investigação que nos propomos fazer nesta
pesquisa. A ideia central do artigo compreende que

1 “a estratégia do eu é apresentar-se como se fosse um outro, mas, sutilmente, imiscuir-se no discurso conhecido, no discurso do outro,

alterando-o e deixando a marca de sua presença” (POSSENTI, 1995, p.51).


2 No XII Congresso Nacional de Linguística e Filologia, realizado no Rio de Janeiro entre os dias 25 e 29 de agosto de 2008, cujo

homenageado foi Othon Moacyr Garcia, Vera Lúcia Paredes Silva, na apresentação de uma Conferência, destacou Garcia (1967) como
um precursor dos estudos de discurso no Brasil, pelo fato de que antes mesmo de os estudos de língua portuguesa passarem a intitular-
se estudos de Comunicação e Expressão, já o autor valorizava a língua como meio de comunicação.

782
“[...] os jornalistas, quando reproduzem opiniões de políticos na imprensa, estão submetidos a um
sistema de formulação que não é neutro. (...) A idéia central é que os verbos agem seletivamente sobre
os conteúdos dando-lhes uma intencionalidade interpretativa com características ideológicas. Com isto
mostra-se que a atividade jornalística não é apenas expositiva, mas analítica e interpretativa”.
(MARCUSCHI, 1991, p.74)
Segundo o autor, procede-se, em geral, a uma nova seleção de termos e a outra construção sintática que as do
autor no momento em que se reproduz as opiniões de alguém. Isso cria a possibilidade de distorção ou interferência no
discurso relatado, levando a algumas indagações:
(a) será possível informar opiniões sem manipulá-las?
(b) qual a estratégia usada pelos jornais na informação de opiniões?
Marcuschi (1991) afirma que toda informação é fruto de uma certa compreensão do fenômeno apresentado, a qual
funda-se nas estruturas sócio-político-culturais de quem informa, submetendo a construção da informação ao mecanismo
das condições de produção do discurso. No entanto, mais do que mostrar que a neutralidade é impossível, ele tenta
analisar como a parcialidade se dá na introdução do discurso alheio, seja como interpretação, seleção (de verbos usados)
ou avaliação. “Parto da premissa de que apresentar ou citar o pensamento de alguém implica, além de uma oferta de
informação, também uma tomada de posição diante do exposto” (MARCUSCHI, 1991, p. 75).
Podemos resumir a idéia proposta pelo autor com suas próprias palavras “os verbos introdutores de opiniões
exercem uma ação direta sobre o sentido do discurso relatado e cumprem uma função reordenadora do texto dentro da
economia jornalística e preservando o modo de sua ação” (MARCUSCHI, 1991, p.91). Dessa forma, Marcuschi encerra seu
estudo dizendo que
“é muito difícil informar sem manipular, por melhores que sejam as intenções. Portanto, as estratégias
jornalísticas para relatar opiniões não são uma mera questão de estilo, pois as palavras são
instrumentos de ação e não apenas comunicação” (MARCUSCHI, 1991, p. 92).

Uma proposta teórica que vai respaldar esse questionamento está na gênese proposta por Maingueneau (2008a
[1995]). Como já dissemos anteriormente, para o teórico, o interdiscurso precede o discurso, e esse caráter do interdiscurso
faz com que a interação semântica entre os discursos seja um processo de interincompreensão regrada. Cada discurso
introduz o Outro em seu fechamento, mas introduz o Outro de forma traduzida, produz na verdade um simulacro do Outro, o
seu próprio avesso. (MAINGUENEAU, 2008a [1995], p. 99-100)
Desse ponto de vista, a questão não é haver dois ou mais discursos em contato, o interdiscurso precede o
discurso literalmente: independentemente de haver um Outro, esse Outro será sempre desenhado a partir do Um, e na
forma de simulacro.
Os enunciadores de um discurso dado adquirem o domínio tácito de regras que permitem produzir e interpretar
enunciados que relevam de sua própria formação discursiva e permitem identificar como incompatíveis com ela os
enunciados das formações discursivas antagonistas. Trata-se da aptidão dos enunciadores de reconhecer a
incompatibilidade semântica de enunciados ou da(s) formação(ões) discursiva(s) que constitui(em) seu outro (Maingueneau,
2008 [1995], p. 99-100). E mais do que isso, trata-se da aptidão de interpretar, traduzir esses enunciados nas categorias de
seu próprio sistema de restrições. Esta polêmica, ao invés de prejudicar a estabilidade do discurso, como se poderia
acreditar, é necessária para sua sobrevivência. É importante, porque faz parte da própria constituição do discurso.
Maingueneau também nos mostra que as eternas polêmicas em que as formações discursivas estão envolvidas
não surgem de forma contingente do exterior, mas é a atualização de um processo de delimitação recíproca localizado na
própria raiz dos discursos considerados. (Maingueneau, 1997 [1987], p. 120). A polêmica também é necessária, pois é
nessa relação com o Outro que o discurso cria possibilidade para mostrar a crença em sua superioridade.

783
Segundo o autor, “o discurso não escapa à polêmica tanto quanto não escapa à interdiscursividade para constituir-
se” (Maingueneau, 2008a [1995], p. 117). Sendo a polêmica intrínseca ao discurso, o conflito não se dá de qualquer
maneira, uma vez que a “incompreensão” se transforma em “interincompreensão” porque obedece a regras e estas regras
são as mesmas que definem a identidade das formações discursivas consideradas (Maingueneau, 1997 [1987], p. 120).
Trata-se de ver o outro a partir de suas próprias lentes, de colocar na boca do adversário palavras que decorrem
do registro negativo de seu próprio discurso. O enunciador do discurso imagina que, recusando o outro, como se este
decorresse de seu registro negativo, ele está reafirmando a validade de seu registro positivo. Ou seja, o enunciador de um
discurso que ocupa uma das posições nunca compreende o que se diz a partir de outra posição, mas apenas o que ele diria
se ocupasse a posição do outro, tendo a ideologia que tem.
Nesse sentido, Gavazzi e Rodrigues (2003, p.57-59), inspirados em Maingueneau (1997), sugerem que os verbos
dicendi podem ser classificados como descritivos e avaliativos. No primeiro caso, devem-se incluir os verbos “que situam o
discurso relatado na cronologia discursiva” (2003, p.57), como, continuar, acrescentar, concluir etc., e aqueles “que indicam
o tipo de discurso do interlocutor ou modo de realização fônica do enunciado” (2003, p.57), como perguntar, responder,
descrever, murmurar etc. Quanto aos verbos avaliativos, as autoras postulam que estão mais ligados à credibilidade e à
legitimidade do jornalista – é ele quem traduz as intenções do seu interlocutor, segundo o seu próprio ponto de vista ou de
um grupo que ele representa. Analisando os verbos sob a perspectiva da avaliação, estaríamos, portanto, no âmbito da
ação de tais verbos, que revelariam a intenção do enunciador do discurso citante nas seguintes categorias (Gavazzi e
Rodrigues, 2003, 57-59):
a) Efeito de imparcialidade: aqui se enquadram verbos como dizer, falar, declarar, opinar etc.,
considerados “neutros” em relação a outros modalizadores.
b) Valorização negativa: verbos como jurar, imaginar, garantir, acreditar, sonhar, tentar justificar,
choramingar, desconversar etc., ao serem empregados, desvalorizam a fala do outro, não lhe conferindo
credibilidade.
c) Valorização positiva: nesse caso, enaltece-se a figura do outro, colocando em posição de
superioridade, na qual ele pode aconselhar, explicar, pontificar, analisar, diagnosticar, ensinar, ponderar,
teorizar etc.
d) Polemização: os verbos desta categoria revelam o conflito existente entre pessoas e grupos,
contribuindo para acirrar ainda mais a discussão. São eles: ironizar, devolver (no sentido de revidar uma
ofensa/acusação), atacar, disparar, alfinetar, culpar, gozar, cutucar, discordar, entre outros.
e) Solidariedade: utilizados quando o outro encontra-se, segundo o jornalista, em posição de
injustiça social, solidarizando-se com sua causa: desabafar, queixar-se, indignar-se, lamentar, pedir,
lembrar.
Desse modo, acreditamos, seguindo as autoras citadas, que o uso dos verbos dicendi, ao agirem sobre a
organização do discurso relatado, acabam por agir também sobre a sua interpretação, configurando-se em poderoso
instrumento de manipulação de idéias.
Charaudeau (2006a, 2008) também vai discutir a heterogeneidade constitutiva do discurso. Baseado no
pensamento bakthiniano, o autor faz a seguinte afirmação:
“Todo fato de linguagem poderia ser considerado um discurso relatado se este último fosse definido de
maneira ampla: ao vir ao mundo, cada ser humano é imediatamente mergulhado num oceano de
palavras; não de palavras circulando como anjinhos anunciando seu advento, mas palavras
corporificadas em seres humanos, seres humanos que durante toda vida constituirão esse outro eu
com quem e contra quem cada um deverá travar combates para construir sua identidade. Retomado,
repetindo, imitando, o que os outros disseram, apropriando, reconstruindo, modificando, ou mesmo

784
inovando o dito através de seu próprio ato de enunciação é que se constrói a identidade do ser falante,
o que faz com que falar seja, ao mesmo tempo, dar testemunho de si e do outro, do outro e de si.”
(CHARAUDEAU, 2006a, p.161)

Fica evidente, no excerto transcrito, que Charaudeau reconhece no discurso uma heterogeneidade constitutiva. Ao
se apropriar do conceito de dialogismo de Bakhtin, Charaudeau (2008, p.161) afirma que “a palavra do outro está sempre
presente em todo ato de enunciação de um sujeito falante, instituindo um ‘dialogismo’ permanente entre o outro e o sujeito
que fala”. Dessa forma, o autor concebe que todo discurso é heterogêneo por definição, uma vez que é instituído no
contexto sócio-cultural.
O discurso relatado é uma modalidade complexa que depende da posição dos interlocutores, das maneiras de
relatar um discurso já enunciado, e da descrição dos modos de enunciação de origem (CHARAUDEAU, 2008, p. 102).
Charaudeau (2006a, p.162), priorizando o nível formal, diz que o discurso relatado caracteriza-se pelo encaixe de um dito
num outro dito, pela manifestação da heterogeneidade do discurso. Essa heterogeneidade está marcada por índices que
indicam que uma parte, pelo menos, do que é dito, deve ser atribuída a um locutor diferente daquele que fala. Mas adverte:
“Por vezes essas marcas são discretas e surge então o problema da fronteira entre “discurso relatado”
e “interdiscursividade”, fenômeno geral da inserção de fragmentos de discursos uns nos outros, não
necessariamente explicitada. É que pode ser estrategicamente útil jogar com a possibilidade de não
fornecer índices do dito relatado, ou de sugeri-los, ou de deixá-los à apreciação do interlocutor. Com
isso, o locutor-relator apaga o locutor de origem, como se o que ele enuncia só pertencesse [a] ele. É
nesse jogo de marcação-demarcação, por um lado, não-marcação-integração, de outro, que se situa o
discurso das mídias de informação” (CHARAUDEAU, 2006a, p. 162).
O certo é que no discurso reportado, o enunciador toma por objeto um outro ato de enunciação. Nessa direção,
Charaudeau esquematiza o discurso relatado como um ato de enunciação pelo qual um locutor (Loc/r) relata (Dr) o que foi
dito (Do) por um outro locutor (Loc/o), dirigindo-se a um intelocutor (Interloc/r) que, em princípio, não é o intelocutor de
origem (Interloc/o). A isso é preciso acrescentar que o dito, o locutor e o interlocutor de origem (Do, Loc/o, e Interloc/o)
encontram-se num espaço-tempo (Eo – To) diferente daquele (Er – Tr) do dito relatado (Dr), do locutor- relator (loc/r) e do
interlocutor final (Interloc/r). Esse mecanismo, Charaudeau representa da seguinte maneira:

Eo – To Er – Tr
[ Loc/o Do Interloc/o] -------- [ Loc/r Dr Interloc/r ]
Esquema apresentado por Charaudeau (2006a, p.162)

No entanto, o locutor-relator (Loc/r) não pode coincidir necessariamente com o interlocutor de origem (Interloc/o).
Um ou vários intermediários podem intervir entre os dois, o que pode ocasionar um certo número de problemas em relação
ao grau de fidelidade, ao modo de reprodução e ao tipo de "distância" do locutor. Por exemplo, em “Ele me havia dito
que...”, o locutor-relator coincide com o interlocutor de origem, porém o mesmo não ocorre em “Ele lhe havia dito que...”. A
fidelidade pode estar presente no discurso reportado, em graus diferentes, de acordo com uma intenção clara, ou não, da
parte do relator.
Procurando tecer considerações finais acerca da presente pesquisa, buscamos demonstrar os diversos estudos
que discutem os recursos utilizados pelo locutor para efetuar a articulação da fala do outro em sua própria fala, tirando
partido dessa alternância de vozes. Nosso esforço foi no sentido de retratar a intenção do locutor em marcar ou mascarar
sua posição, de forma que nem sempre o leitor seja capaz de identificá-la. Concluímos, assim, que as diferentes formas de
incorporação da palavra do outro não possuem um caráter de gratuidade, mas, pelo contrário, são utilizadas para sustentar
a linha argumentativa do locutor e exercem diferentes funções no texto.

785
REFERÊNCIAS

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). In: GERALDI, João Wanderley. ILARI, Rodolfo. LEMOS,
Cláudia T. G. de. (Orgs.). Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas – SP, 1990.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da
linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995/ [1929].

______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. 2003/ [1979].

________. Problemas da Poética de Dostoiévski. 3. ed. Traduzido por Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002/ [1970].

CHARAUDEAU. Patrick. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

______. Linguagem e discurso: modos de organização. [PAULIUKONIS, A. L. & MACHADO, I. L.] São Paulo: Contexto,
2008.

FLORES, Valdir & TEIXEIRA, Marlene. Introdução à Linguística da Enunciação. São Paulo, Contexto: 2005.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. Aprenda a escrever, aprendendo a pensar. Rio de Janeiro: FGV,
2006.

GAVAZZI, Sigrid.; RODRIGUES, Tânia Maria. Verbos dicendi na mídia impressa: categorização e papel social. In:
PAULIUKONIS, M. A. L. & GAVAZZI, S. (Orgs.) Texto e discurso : Mídia Literatura e Ensino. São Paulo: Lucerda. 2003, p.
51-61.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em análise do discurso. Campinas, SP: Pontes, 1997/ [1987].

______. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2008a/ [1995].

MARCUSCHI, Luiz Antônio. A ação dos verbos introdutores de opinião. In: Intercom – revista brasileira de comunicação -
64. São Paulo, 1991, p. 74-92.

POSSENTI, Sírio. O “eu” no discurso do “outro” ou a subjetividade mostrada. In: Revista de Linguística ALFA – A análise do
discurso. São Paulo: Editora UNESP/ Universidade Estadual Paulista, 1995, p.45-55.

Mestre em Estudos Linguísticos pela Ufes (2008-2010); Licenciatura Plena em Letras-Português também pela Ufes (2007).
Possui experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso. Atuando como tutora do curso de Letras-
Inglês na Faculdade Interativa COC e professora efetiva da rede estadual do Espírito Santo, luagora@yahoo.com.br.

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Espaço associado e autoridade enunciativa: o
posicionamento da camaraderie do Pequeno Cenáculo

LIMA, Fernanda Almeida


(UFRJ)

Na França, entre o final de 1829 e o início de 1830, uma nova geração de artistas românticos desponta no campo
literário (Bourdieu, 2005). Ofuscados pela resplandecência dos “Grandes Magos” do romantismo francês, rotulados como
artistas menores, esta nova geração de artistas recebeu a denominação de “pequenos românticos” (petits romantiques),
segundo as classificações da história literária. Alguns destes jovens românticos, compartilhando ideais estéticos, assim
como uma acentuada aversão à política mercantil da Monarquia de Julho (1830-1848), se agrupam, numa sorte de confraria
artística, conhecida como Pequeno Cenáculo (Petit Cénacle – 1829-1833). Pétrus Borel, conhecido pelo pseudônimo de
licantropo (homem-lobo, lobisomem), figura como líder desta capela literária, composta por representantes de diversos
campos artísticos, como os escritores Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Philothée O’Neddy, Alphonse Brot, Auguste
Maquet, Joseph Bouchardy, os escultores Jehan Duseigneur e Eugène Bion, os arquitetos Léon Clopet e Jules Vabre,
pintores, vinhetistas e desenhistas, tais como Célestin Nanteuil e Napoléon Thomas. As reuniões do grupo se realizavam no
ateliê de Jehan Duseigneur, localizado na esquina da Rua de Vaugirard, em Paris. No prefácio de sua primeira obra,
Rhapsodies (1832), Pétrus Borel define o grupo do Pequeno Cenáculo nestes termos:
[...] são todos jovens, como eu, de bons sentimentos e de coragem, com os quais evoluo e que são
amados por mim! São eles que me espantam o tédio desta vida; são todos amigos verdadeiros, todos
camaradas de nossa camaraderie, camaraderie estreita, não aquela de M. Henri Delatouche, a nossa,
ele não compreenderia; [...] (BOREL, 1832, p. V-VI)

Ao definir o Pequeno Cenáculo como uma camaraderie, sustentando a legitimidade dos laços de afeto e
companheirismo que uniam seus integrantes, Borel responde às críticas tecidas por Henri Delatouche, no panfleto intitulado
De la camaraderie littéraire, publicado, em outubro de 1829, na Revue de Paris. Tendo como alvo o Grande Cenáculo
(Grand Cénacle), de Victor Hugo, Sainte-Beuve e Alexandre Dumas, entre outros, Delatouche denuncia a prática de
bajulação mútua nos cenáculos e a exaltação de falsos talentos, movidas por amizades afetadas, que encobriam, na
verdade, rivalidades internas.
Alguns integrantes do Pequeno Cenáculo, antes mesmo da formação do grupo, já se conheciam e alimentavam
relações de amizade, como Borel, Vabre e Duseigneur, que frequentaram juntos o ateliê de arquitetura de Garnaud, ou
como Nerval, Gautier e Maquet, que foram colegas no colégio Charlemagne. Entretanto, o estreitamento dos laços e a
reunião de todos os membros do grupo, conforme os nomes elencados acima, data do final de 1829, período marcado pela
mobilização dos românticos para os preparativos referentes à “batalha de Hernani” (25 de fevereiro de 1830). Tal episódio
do romantismo francês constitui o confronto histórico entre clássicos e românticos, tendo como campo de batalha o Théâtre-
Français, por ocasião da primeira representação da peça Hernani, de Victor Hugo, confronto que acabou se estendendo
pelas representações subsequentes. No seio do Pequeno Cenáculo, Victor Hugo é reverenciado como mestre do
movimento. Ao relatar suas memórias de juventude em Histoire du romantisme (1874), Théophile Gautier descreve o ateliê
de Jehan Duseigneur e destaca que, dentre as obras seletas, presentes na biblioteca do ateliê, figurava um exemplar de
Cromwell (1827), contendo a assinatura do mestre e uma gentil dedicatória. Em seguida, Gautier reconhece que, para os
membros do Pequeno Cenáculo, Cromwell representava “o livro por excelência, o livro que continha a doutrina pura”
(GAUTIER, 1874, p.14). Assim, assumindo sua “hugolatria”, a camaraderie do Pequeno Cenáculo participa calorosamente

787
da “batalha de Hernani”, chocando os partidários do classicismo por meio de um comportamento ruidoso e arruaceiro, bem
como pela excentricidade de vestimentas, barbas e cabelos. O batalhão do Pequeno Cenáculo era comandado por Pétrus
Borel, figura central do grupo, admirado por seus pares pela feroz aversão aos padrões clássicos e à política da época.
Como assinala um dos primeiros biógrafos de Borel, Jules Claretie, o líder do Pequeno Cenáculo atuou como um reforço
significativo no recrutamento de soldados para a “batalha de Hernani”, pois “Pétrus Borel representava algo próximo a cento
e cinquenta seguidores [...] e Victor Hugo negociava com ele como com um homem que dispõe de trezentas mãos”
(CLARETIE, 1865, p. 30). Desta forma, é possível avaliar a contribuição dos jovens artistas do Pequeno Cenáculo na vitória
obtida por Victor Hugo, em 25 de fevereiro de 1830. Anthony Glinoer analisa o episódio da “batalha de Hernani”, sob a
seguinte perspectiva:
[...] após 25 de fevereiro de 1830, dia desta tomada da Bastilha literária, o romantismo conquistou
quase tudo e evolui numa situação de quase monopólio sobre o mundo da literatura. A menor
complexidade das instâncias do campo e da rede de escolas literárias, ao mesmo tempo, permitiu,
então, que uma única noite, que um único acontecimento fosse o signo de ligação para a reunião de
todas as sensibilidades, no seio de duas tendências antagonistas: a antiga e a nova literatura. Com sua
vitória, por ocasião da primeira representação de Hernani, esta última obtém um triunfo simbólico total,
incontestável [...] Desde então, o período de 1830-1843, tornando-se a “época romântica”, a luta entre
escolas ou cenáculos não pode se desenvolver livremente, porque ela ainda só pode existir numa
relação de submissão ou de dissidência com uma “escola” dominante demais para poder ser tratada
como tal. Com Hernani, Hugo destrói toda concorrência no seio do romantismo [...] (GLINOER, 2000, p.
405-406)

Constata-se, então, que, para os jovens do Pequeno Cenáculo, a “batalha” de Hernani ilustra a instrumentalização
dos recrutas pelo general Victor Hugo, assim como o início do processo de condenação do grupo, vitimizado pelo triunfo e
grandeza do mestre. Este episódio formatou e definiu o horizonte dos possíveis ou, segundo Glinoer, “dos impossíveis” do
Pequeno Cenáculo. O sociólogo francês Pierre Bourdieu define o espaço dos possíveis “como um espaço orientado e
prenhe de tomadas de posição que aí se anunciam como potencialidades objetivas, [...] ‘movimentos’ a lançar, revistas a
criar, adversários a combater, tomadas de posição estabelecidas a ‘superar’” (BOURDIEU, 2005, p. 265). Desse modo,
projetos estéticos inovadores ou revolucionários só podem ser concebidos como tal, mediante a existência de lacunas
estruturais correspondentes, no sistema dos possíveis já realizados. Com base neste conceito, Bourdieu desconstrói o
postulado de genialidade e liberdade absoluta no processo criador, dado que o projeto estético dos escritores é elaborado
em função do reconhecimento das possibilidades disponíveis no campo literário. Com relação à França de 1830, o campo
literário apresenta uma rígida hierarquização, orientada pelo todo-poderio de Victor Hugo, acarretando, assim, na
dificuldade de inserção dos membros do Pequeno Cenáculo na cena literária da época. Recusando o medíocre papel de
“seguidores” do “profeta” Victor Hugo, a camaraderie do Pequeno Cenáculo empreende estratégias coletivas, no intuito de
exibir a singularidade de seu perfil enunciativo e o devido distanciamento de Victor Hugo, demarcando sua posição no
campo literário. Dentre tais estratégias, o presente trabalho destaca a busca de distinção pela autodepreciação, evidenciada
na composição dos prefácios das obras do grupo, bem como a tentativa de legitimação do Pequeno Cenáculo como
instância reguladora de suas produções. O corpus de análise deste trabalho conta com os prefácios das obras Rhapsodies
(1832) e Champavert, contes immoraux (1833), de Pétrus Borel, Feu et Flamme (1833), de Philothée O’Neddy, e Albertus,
l’âme et le péché (1833), de Théophile Gautier.
A análise dos prefácios elencados acima se fundamenta no conceito de espaço associado, cunhado pelo lingüista
francês, Dominique Maingueneau. Este sustenta que uma das problemáticas centrais do estudo da enunciação literária
consiste na instauração de uma fronteira entre o literário e o não literário. Considerando as formas de subjetivação do
discurso literário, Maingueneau recusa a separação entre sujeito biográfico e sujeito enunciador, propondo a seguinte
tripartição da instância autoral: pessoa (indivíduo dotado de estado civil, vida privada, determinado histórico familiar),

788
escritor (ator da instituição literária, sulcando uma trajetória no campo literário) e inscritor (enunciador do texto e fiador do
contrato discursivo imposto por determinado gênero discursivo). Deve-se, então, admitir o discurso literário como a mescla
de “dois regimes: um regime [...] delocutivo, em que o autor se oculta diante dos mundos que instaura, e um regime
elocutivo, no qual o ‘inscritor’, o ‘escritor’ e a ‘pessoa’, conjuntamente mobilizados, deslizam uns nos outros” (Maingueneau,
2006, p. 139). Tal problemática envolvendo as fronteiras da literatura, bem como o fenômeno de conexão e desconexão das
três instâncias subjetivas manifesta-se, particularmente, no que Maingueneau define como espaço associado: textos que
acompanham as obras, ou melhor, o espaço textual canônico, cuja responsabilidade é atribuída ao autor, como prefácios,
dedicatórias, manifestos, reflexões sobre outras artes, etc. Em textos como o prefácio, por exemplo, o espaço associado
possui função reguladora, permitindo ao criador justificar ou negociar a inserção de sua obra na esfera literária, ou ainda,
sinalizar sua autarquia, numa aberta recusa de todas as normas vigentes. Desta forma, por meio das marcas deixadas pelo
criador no espaço associado, é possível delinear traços de seu posicionamento enunciativo (Maingueneau, 2006), assim
como de sua concepção do exercício legítimo da literatura.
No prefácio de Rhapsodies, Pétrus Borel apresenta sua obra ao público, por meio da seguinte comparação:
É necessário que uma criança esguiche sua baba, antes de falar corretamente; é necessário que o
poeta esguiche a sua, eu esguichei a minha, ei-la aqui!... é necessário que o metal em ebulição no
cadinho expurgue sua escória; a poesia em ebulição no meu peito expurgou a sua: ei-la aqui!... – logo,
estas Rapsódias são baba e escória. [...] (BOREL, 1832, p. I)

Algumas páginas mais adiante, Pétrus Borel desqualifica o próprio prefácio e a obra Rhapsodies, como um todo,
através da seguinte confissão: “eu poderia ter feito, como preliminar, a eleição de um paraninfo, ou minha etopéia, ou ainda,
um longo tratado ex-professo sobre arte, mas me repugna comercializar o prefácio; além disso, seria ridículo falar tanto a
respeito de tão pouco” (BOREL, 1832, p. IX). Numa reação exaltada ao rótulo de “bajulador” e discípulo de Victor Hugo,
Borel maneja habilmente o ostracismo que vitimizou os “pequenos românticos”, passados alguns anos da “batalha” de
Hernani, estruturando a seguinte argumentação:
Se permaneci obscuro e ignorado, se nunca fui difamado por ninguém; se nunca fui chamado de águia
ou de cisne; em compensação, nunca fui palhaço de ninguém; nunca toquei tambor para reunir a
multidão em torno de um mestre, ninguém pode me considerar seu aprendiz. (BOREL, 1832, p.V)

A mesma estratégia de aniquilamento da autoridade enunciativa se faz presente no prefácio de Albertus, l’âme et
le péché, Théophile Gautier, como indicam estas qualificações autorais de cunho irônico:
O autor do presente livro [...] não tem nenhuma coloração política; ele não é nem vermelho, nem
branco, nem mesmo tricolor; ele não é nada, ele só se dá conta das revoluções quando as balas
quebram as vidraças. Ele prefere mais estar sentado que de pé, deitado que sentado. [...] Ele escreve
versos para ter um pretexto de não fazer nada, e não faz nada sob pretexto de que faz versos.
(GAUTIER, 1833, p. I)

Para as possíveis críticas de arte ou de gramática dirigidas a Albertus, Gautier antecipa sua defesa, nos seguintes
termos:
(O autor) conhece muito bem os defeitos e as manchas de seu livro; se ele não evitou uns e não tirou
outros, é porque eles são tão inerentes à sua natureza, que ele não saberia existir sem eles, pelo
menos, é a desculpa que ele apresenta para a sua preguiça.
Quanto aos utilitários, utopistas, economistas, saint-simonistas e outros que lhe perguntarão com o quê
isto rima, - ele responderá: o primeiro verso rima com o segundo, quando a rima não for ruim, e assim
sucessivamente. (GAUTIER, 1833, p. II)

Philothée O’Neddy, por sua vez, apresenta seu volume de poesias Feu et flamme, bem como sua participação na
cena literária da época, com base nesta analogia, desenvolvida no prefácio do livro:
Por um bom tempo, imóvel, de braços cruzados, na soleira de minha choupana de pária, contemplei,
numa ociosa admiração, as jovens muralhas da Babel artística e moral, que a elite intelectual de nossa
época resolveu edificar.

789
Neste momento, minha simpatia, tornada mais profunda, mais imperiosa, mais exaltada, me impele a
misturar um pouco de ação nesta contemplação, indo juntar-me à multidão de trabalhadores.
Assim, eis-me aqui: adiciono às lajes gigantescas um miserável punhado de cimento (O’NEDDY, 1833,
p. VII-VIII).

Verifica-se, então, que a desqualificação do próprio discurso aparece como prática recorrente na composição dos
prefácios, evidenciando a estratégia coletiva empreendida pela camaraderie do Pequeno Cenáculo. Ao invés de constituir
uma instância de captação da simpatia e da benevolência dos leitores ou dos críticos para com a obra apresentada, os
prefácios analisados têm por função flagelar o próprio texto que introduzem. Anthony Glinoer interpreta tal estratégia do
grupo, declarando que, para os jovens românticos do Pequeno Cenáculo “a negação de sua própria autoridade autoral
decorre do questionamento de tudo a que se é reconhecido o direito de impor autoridade” (GLINOER, 2005, p. 164).
Além destas estratégias autodepreciação, a busca de distinção, empreendida pelo grupo do Pequeno Cenáculo,
também orientou a defesa de postulados estéticos paroxísticos e transgressores. As produções literárias do grupo em
questão se caracterizam por uma fusão entre representação do horror e escárnio, privilegiando temas grotescos,
escatológicos, violentos e satânicos. Assim, a camaraderie do Pequeno Cenáculo desenvolve uma estética da exacerbação,
que se convencionou chamar de romantismo frenético de 1830. Em sua composição, o romantismo frenético conta com
elementos do fantástico hoffmaniano, do satanismo byroniano, do erotismo sadiano e do romance gótico inglês. No prefácio
do livro Champavert, contes immoraux, Pétrus Borel ostenta uma filiação explícita aos excessos e subversões do frenesi
literário, como indica este trecho: “[...] cremos que um dever de cortesia nos obriga a prevenir os leitores que andem em
busca e gostem da literatura linfática, que fechem esse livro e passem adiante.” (BOREL, 2002, p. 249). Assim, o autor
assinala a natureza frenética dos contos imorais e, ao mesmo tempo, restringe e qualifica, por exclusão, o público alvo. Por
meio desta declaração, Pétrus Borel exibe e legitima seu posicionamento enunciativo por oposição aos representantes da
literatura linfática, também conhecida como “romantismo lacrimoso”, ou seja, as produções mais sóbrias e harmônicas da
primeira geração de românticos franceses. As práticas sociais do Pequeno Cenáculo, assim como as excentricidades
estéticas, de porte, vestimentas ou de temperamento de alguns membros do grupo também constituem tema ou inspiram a
composição das produções frenéticas. Em Feu et Flamme (1833) de Philothée O’Neddy, os “companheiros” do Pequeno
Cenáculo figuram como personagens, em situações variadas, tecendo críticas à burguesia ou à política da época,
defendendo os excessos do romantismo frenético, reivindicando liberdade de criação, em oposição às regras da Academia,
ou protagonizando cenas de orgia macabra.
No prefácio de Champavert, Pétrus Borel reconhece a dificuldade de inserção no campo literário, compartilhada
pelos jovens românticos de 1830, e declara que ele e seus companheiros recorreram à formação do Pequeno Cenáculo, “a
fim de serem mais fortes em conjunto, como um feixe, para não serem abatidos e derrubados, em seus primeiros passos,
no mundo das artes” (BOREL, 2002, p. 237). Além disso, as afinidades estéticas e o princípio de harmonia e fraternidade
defendido pelos membros do grupo, que utilizavam o termo “companheiro” (camarade) como forma de tratamento, permitem
o desenvolvimento de um processo de criação artística de natureza coletiva, de forma que, ainda hoje, encontramos textos
produzidos pelos membros do grupo, cuja autoria constitui um enigma, suscitando querelas entre biógrafos e estudiosos da
literatura francesa do século XIX. Desse modo, a constituição do Pequeno Cenáculo é justificada como estratégia de
fortalecimento mútuo entre seus componentes, visando delimitar adversários comuns, neutralizar as forças hierárquicas do
campo, facilitando, assim, a subida de todos os membros do grupo à cena literária da época.
Finalmente, o grupo liderado por Pétrus Borel visa legitimar o Pequeno Cenáculo como instância de consagração
das obras produzidas em seu seio. Assim, o grupo recorre à prática da exaltação mútua, por meio de dedicatórias, de
comentários tecidos nos prefácios, da seleção de textos de seus pares para compor a quantidade torrencial de epígrafes de

790
suas obras, da publicação de textos, em periódicos da época, sustentando a qualidade estética das produções de seus
companheiros. No prefácio de Rhapsodies, Borel manifesta total desprezo às instâncias de legitimação externas ao
Pequeno Cenáculo, através da seguinte declaração: “É, principalmente, a vocês, companheiros, a quem ofereço este livro!
Ele foi feito entre vocês, vocês podem reivindicá-lo.” (BOREL, 1832, p. VI). Enquanto espaço de criação e produção
coletivas, e tendo seus integrantes como público restrito e inicial das obras ali nascidas, o Pequeno Cenáculo tenta ele
mesmo assegurar seu reconhecimento, sobretudo considerando o fracasso editorial de suas produções.
Como ressalta Dominique Maingueneau, a própria natureza do espaço associado varia de acordo com o estatuto
do escritor, ao longo do tempo. No século XVII, por exemplo, os gêneros dedicatórios indiciam a relação dos artistas com o
círculo do poder, remetendo a um exercício da literatura sustentado por proteções e gratificações. No caso do grupo do
Pequeno Cenáculo, as estratégias de desqualificação do próprio discurso e de exaltação da convivência e do processo de
criação, no seio da camaraderie artística, estão vinculadas à configuração de um campo literário às vésperas do auge do
processo de autonomia, alcançado, segundo, Pierre Bourdieu, nos anos de 1850. Analisando o campo literário do século
XIX, Maingueneau estabelece uma relação entre a natureza do espaço associado e a defesa da legitimidade do
posicionamento enunciativo reivindicado, como ilustra a passagem abaixo:
[...] A partir do romantismo, a literatura tende à obra absoluta, provocando paradoxalmente a
proliferação de textos autobiográficos e comentários dos escritores sobre sua obra e a arte. Não há na
verdade nada de surpreendente nisso: a partir do momento em que a concorrência entre
posicionamentos se exacerba e se teatraliza, em que as definições da atividade literária são
radicalmente incertas, o autor é levado a multiplicar os textos de acompanhamento. [...]
(MAINGUENEAU, 2006, p. 145)

Considerando o estado específico do campo literário, no momento da formação do Pequeno Cenáculo, verifica-se
que o espaço para constituição de novas posições, assim como os possíveis disponíveis no campo encontram-se
acentuadamente limitados. A posição hegemônica de Victor Hugo, dominando a cena literária romântica de 1830, acaba por
neutralizar toda concorrência no seio do movimento. O grupo do Pequeno Cenáculo, que emerge no campo literário em
meio ao fervor da “batalha” de Hernani, contribui para a vitória do mestre, sendo, em seguida, condenado ao ostracismo.
Entretanto, a ausência de toda e qualquer consagração permitiu ao grupo investir numa busca de consagração às avessas,
pelas vias da autodepreciação. Após a análise realizada no presente trabalho, pode-se concluir que o prefácio das
produções frenéticas de 1830 constitui um espaço privilegiado de reivindicação da autarquia almejada pela camaraderie do
Pequeno Cenáculo. Por meio das estratégias de desqualificação da própria autoridade enunciativa e da tentativa de
legitimação do Pequeno Cenáculo como instância de consagração de suas obras, o grupo liderado por Pétrus Borel
demarca a singularidade de seu posicionamento enunciativo. Com base na rígida hierarquização do campo literário de 1830
e a formatação do espaço dos “impossíveis” oferecido aos recém-chegados no campo, deve-se reconhecer o mérito do
Pequeno Cenáculo que, investindo na autoidentificação por bravata, consegue conjurar uma identidade enunciativa, bem
como uma posição no campo literário condenadas, antecipadamente, à vacuidade, ao fanatismo ou à imitação.

Referências

BOREL, Pétrus. Champavert: contes immoraux. Ed Jean-Luc Steinmetz.Paris: Phébus, 2002.

______ . Rhapsodies. Paris: Levavasseur, 1832. Disponível em: http://gallica.bnf.fr. Acesso em: abril de 2009.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. 2ª ed. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

CLARETIE, Jules. Pétrus Borel le Lycanthrope. Sa vie, ses écrits, sa correspondance. Poésies et documents inédits. Paris:
Pincebourde, 1865. Disponível em: http://gallica.bnf.fr. Acesso em: abril de 2006.

791
GAUTIER, Théophile. Histoire du romantisme. Paris: Charpentier et Cie, Libraires Éd., 1874.

______ . Albertus ou l’âme et le péché. Paris: Paulin, 1833.

GLINOER, Anthony. «Le complexe Jeune-France». In: Bulletin de la Société Théophile Gautier, n. 27, 2005, p. 161-176.

______ . «La difficulté d’être du petit cénacle romantique». In: Lieux littéraires. La Revue. Revue du centre d’études
romantiques et dix-neuviémistes, n. 2, 2000, p. 397-418.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

O’NEDDY, Philothée. Feu et Flamme. Paris: Dondey-Dupré, 1833. Disponível em: http://gallica.bnf.fr. Acesso em: julho de
2008.

Fernanda Almeida Lima é doutoranda em Estudos Literários Neolatinos, Literaturas de Língua Francesa (UFRJ) e bolsista
do CNPq. Participa dos grupos de pesquisa PRISMA (UFRJ) e ARS (UFRJ/FBN). Desenvolve uma tese, em vias de
conclusão, acerca da trajetória de Pétrus Borel no campo literário, sob a orientação da Professora Doutora Celina Moreira
de Mello.

792
Entre diálogos e vozes: a construção das crenças no
ensino de línguas na perspectiva Bakhtiniana – diálogos
entre análise do discurso e linguística aplicada

LIMA, Fernando Silvério de


(UFV/CAPES)

Introdução

Os pressupostos da filosofia da linguagem de Bakhtin tem oferecido implicações importantes para o ensino de
segunda língua (L2) e língua estrangeira (LE), dentre as quais Hall, Marchenkova e Vitanova (2005) ressaltam duas, (I) a
visão de língua como uma ferramenta viva, pois fazemos uso dela nas interações sociais e por meio dela que
compreendemos e tentamos ser compreendidos, ou nos dizeres das autoras, nossos “mundos culturais” (idem) passam a
existir, revelando também a constituição da subjetividade do ser. E (II) a visão de aprendizagem situada nas relações
sociais. Ecoando Holquist (1990)1 as autoras reforçam que nesta perspectiva aprender uma língua “não significa acumular
formas ou estruturas descontextualizadas, mas se inserir em formas de comunicação que são definidas por forças
econômicas, políticas e históricas.” (ibid, p.03).
No processo de ensinar e aprender línguas têm se tornado cada vez mais frequente investigar as crenças dos
envolvidos, que são construídas em suas experiências de aprendizagem. Além disso, torna-se importante observar também
as forças mencionadas por Hall, Marchenkova e Vitanova (2005) que permeiam as relações de interação nestes contextos.
Desta forma, ao considerar o impacto dos discursos que são apropriados por alunos e professores e as ideologias
presentes nestes discursos (cf. GRIGOLETTO, 2005), alguns autores têm integrado perspectivas discursivas em seus
estudos (cf. DUFVA & PIETIKÄINEN, 2006) que podem ser observadas ao se manifestar na voz dos sujeitos destas
pesquisas.
Neste artigo proponho uma reflexão acerca desta perspectiva atual dividida em quatro partes. Na primeira parte
faço uma breve retomada das influências dos estudos de Bakhtin em trabalhos de diversas áreas. Na segunda parte retomo
os conceitos de polifonia e dialogismo, discutindo como estes foram usados por Bakhtin e seu círculo e como as leituras
contemporâneas têm utilizado estes conceitos em suas teorizações na pesquisa de crenças. Na terceira parte, apresento
uma revisão de trabalhos de crenças e (meta)cognição de perfil bakhtiniano discutindo as escolhas teóricas, opções
metodológicas e resultados observados, para ilustrar com exemplos empíricos as observações de alguns linguistas
aplicados para investigar crenças com base nos pressupostos do círculo de Bakhtin. Na quarta parte, e final, concluo
apresentando ao leitor primeiramente perspectivas recentes de estudos de LA que tem buscado diálogo com correntes de
análise do discurso e por fim com sugestões de diálogos futuros entre linguistas aplicados e analistas do discurso para o
estudo de crenças, discursos e ideologias presentes nos contextos de interação para aprendizagem de línguas.

1 HOLQUIST, M. Dialogism: Bakhtin and his world. New York: Routledge, 1990.

793
1. Leituras em Bakhtin: diferentes áreas, diferentes caminhos

No Brasil os textos de Bakhtin têm sido cada vez mais lidos e utilizados em diferentes pesquisas de áreas diversas
(BRAIT, 2005). Suas reflexões sobre linguagem têm sido referência em textos de educação, e outros conceitos como
diálogo, polifonia, dentre outros, são amplamente estudados por diferentes vertentes de estudos discursivos. Nos estudos
do discurso, Flores (1998) cita, por exemplo, os trabalhos de Jacqueline Authier-Revuz com base nos textos de Bakhtin e
seu círculo, integrando com a psicanálise de Freud e Lacan “para tratar da relação entre duas formas de heterogeneidade
(constitutiva e mostrada) para estudar a presença do “outro” no discurso. (ibid, p.6-7). Além disso, o autor chama atenção
para o fato de que há também trabalhos em semiótica e literatura com base nos textos do autor russo. No entanto, seus
textos hoje não se restringem somente aos campos de estudos de Letras (Linguística e Literatura) sendo possível observar
uma “transdisciplinaridade de campos como a educação, a pesquisa, a história, a antropologia, a psicologia, etc.” (BRAIT,
2005, p.08).
Os estudos sobre aprendizagem de línguas sempre se preocuparam em compreender e buscar maneiras para
que este processo pudesse ocorrer de forma eficaz, sem experiências negativas ou barreiras para os envolvidos. E neste
processo de busca, surgiu a necessidade de encontrar também outras teorizações que fornecessem novas perspectivas
sobre o fenômeno da linguagem. De acordo com Hall, Marchenkova e Vitanova (2005) os trabalhos de Mikhail Bakhtin são
um exemplo de “fonte” para reflexão sobre linguagem na atualidade. E nos estudos da Linguística Aplicada os pressupostos
bakhtinianos se fazem presentes em teorizações e problematizações diversas, como a pesquisa de crenças de crianças
(ARO, 2004, 2009) e adultos (HOSENFELD, 2003), sobre o processo de aprendizagem de línguas em contextos (SALO,
1998), identidade (PIETIKÄINEN & DUFVA, 2006; PÖYHÖNEN, S. & DUFVA), gêneros do discurso, dentre outros (cf.
LÄTEENMÄKI & DUFVA, 1998; MAGUIRE, 2006 ).
Neste amplo cenário de produções variadas, algumas noções dos textos do círculo são compartilhadas e em cada
área novas interpretações dos textos surgem e orientam seus estudos. Na seção a seguir retomo dois conceitos básicos de
Bakhtin amplamente discutidos na literatura e na linguística: o dialogismo e a polifonia.

2. Linguagem em conceitos chave: Dialogismo e polifonia

O conceito de polifonia em Bakhtin surge nos textos do autor sobre crítica literária nos estudos do romance. Para
Bakhtin a obra romanesca poder ser observada de duas maneiras, como monológica e polifônica. As vozes de um romance
monológico recaem somente ao autor sem dar voz ao outro (os personagens são meros subordinados do autor), e esse
outro por sua vez “é mero objeto da consciência de um “eu” que tudo informa e comanda.” (BEZERRA, 2005, p.192). Na
literatura, o autor russo observa e ilustra a presença das diversas vozes no romance de Dostoievski e afirma que este foi “o
criador do Romance Polifônico. Criou um gênero romanesco essencialmente novo” (BAKHTIN, 2002, p.05, grifo no original).
Nestas obras Bakhtin concebe “o autor como regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico.” (ibid,
p.194).
Este conceito de multiplicidade de vozes presentes em um romance passou a ser utilizado também em estudos
sobre ensino e aprendizagem de línguas, que veem no diálogo, aspecto fundamental da interação verbal (BAKHTIN, 2006)
a manifestação destas múltiplas vozes nas situações reais de interação entre sujeitos (professores e alunos). A seguir
destaco uma das afirmações fundamentais do texto base de Bakhtin acerca da polifonia, em que:

794
A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes
e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. (BAKHTIN, 2002, p,21)

Autores como Pietikäinen e Dufva (2006) em uma releitura desta perspectiva polifônica de Bakhtin (na literatura)
reforçam também a perspectiva de que as “vozes” são “únicas e compartilhadas” (ibid, p.210, grifo meu). E dessa forma,
surgem estudos na LA que trazem para suas problematizações a noção de “vozes” observada anteriormente no romance
polifônico.
Hosenfeld (2003), por exemplo, atenta para o conceito de dialogismo bakhtiniano em seu estudo sobre a
emergência de crenças construídas sobre o processo de aprendizagem de língua espanhola e observa as diversas vozes
que se manifestam (tanto na modalidade oral quanto escrita) ao relatar suas experiências em um diário pessoal. Dufva
(2003) em uma releitura bakhtiniana concebe o conceito de crenças sob uma perspectiva polifônica, em que as mesmas
são vistas não como “monótonas e/ou um esquema logicamente organizado, mas consiste em diferentes vozes que podem
ser atribuídas às várias fontes das quais elas originam.” (ibid, p.138). Desta forma, é possível perceber que os mesmos
pressupostos bakhtinianos (também utilizados em outras áreas) têm inspirado investigações de tópicos variados dentro da
LA, e que este é um campo em crescimento (cf. HALL, VITANOVA & MARCHENKOVA, 2005). Uma revisão mais detalhada
destes trabalhos será apresentada na seção a seguir.

3. A pesquisa de crenças e (meta)cognição na LA: outras perspectivas

Nesta seção, apresento um panorama de alguns trabalhos analisados para ilustrar como os pressupostos
bakhtinianos têm orientado pesquisas na LA e na pesquisa de crenças. Dentre os trabalhos aqui apresentados, destaco a
presença de textos publicados em livros de LA no exterior (HOSENFELD, 2003; DUFVA, 2003; DUFVA & ALANEN, 2005) e
de uma tese de doutorado (ARO, 2009) defendida na Finlândia. Cada trabalho será revisado nas seções seguintes
(considerando metodologia, aportes teóricos e resultados), nos quais destaco ainda a maneira como tais autores classificam
ou denominam as características das crenças investigadas com base nos textos de Bakhtin.

Tab. 1 – Pesquisas sob a perspectiva bakhtiniana

Pesquisas Objetivo Participantes Metodologia

Hosenfeld Um estudo sobre o caráter A própria Diários com registros


(2003) emergente das crenças pesquisadora sobre aprendizagem de
língua espanhola em um
período de dois meses

Dufva Teorizar sobre crenças na Alunos adultos e - Notas de campo.


(2003) perspectiva dialógica professores de LE - Entrevistas (relatos e
(emergentes, corporificadas, na Finlândia conversas)
situadas e sistêmicas)

795
20 crianças Entrevistas semi-
Dufva & finlandesas estruturadas
Alanen Estudo sobre consciência (aprendizes de
(2005) metalingüística em crianças inglês como língua Gravações em vídeo das
estrangeira) interações da criança e
as pesquisadoras

Aro Um estudo de caso 15 alunos (faixa Entrevistas semi-


(2009) longitudinal sobre as crenças etária de 07, 10 e estruturadas (nos 3 anos
de alunos do ensino 12 anos nas fases de acompanhamento)
fundamental sobre aprender 1, 2, 3 da pesquisa,
Língua Estrangeira na escola respectivamente)
regular (Inglês)

3.1 Crenças: sociais e emergentes

Hosenfeld (2003) analisou o processo de crenças emergentes em um processo de aprendizagem de segunda


língua (Espanhol). Seus instrumentos selecionados foram registros pessoais em diários ao longo de dois meses e
anotações que compreenderam “reflexões, comentários metalingüísticos, análises e interpretações combinadas com
descrições” (ibid, p.42) de suas próprias experiências de aprendizagem de Espanhol. As experiências estavam ligadas aos
tipos de atividades realizadas (leitura de textos, exercícios de compreensão auditiva, vocabulário, dentre outros). Neste
estudo a autora se baseia na ideias de Dewey ao discutir sobre experiências e nos estudos de Bakhtin. E as crenças foram
mapeadas sob uma perspectiva dialógica em que Hosenfeld analisou as “múltiplas vozes” (ibid, p.43) manifestadas nos
registros diários ao longo dos dois meses e que possibilitaram inferir sobre as crenças que emergiram ao longo deste
processo. Foram um total de quatro crenças emergentes relacionadas às experiências de aprendizagem.
A respeito das crenças de uso de múltiplas vozes a autora salienta a ocorrência de vozes diferenciadas ao
perceber que possuía uma “voz pensante interna” em língua espanhola que se diferenciava daquela utilizada para
exercícios de pronúncia ou leitura em voz alta e que se aproximava da voz usada para pensar em língua materna (neste
caso, língua inglesa). Esta interpretação se deu com base em Bakhtin (1981)2 considerando que um discurso pensado
primeiramente como monológico (já que ela aprendia sozinha) era na verdade dialógico, por possuir dois interlocutores (um
eu falante e um eu ouvinte). Com base nesta premissa dialógica bakhtiniana, Hosenfeld (2003) propõe uma interpretação de
linguagem que é composta por dois eixos em funcionamento simultâneo. O eixo vertical que pode ser “uma conversa entre
um falante e um ouvinte em um momento específico do tempo presente (onde ambas as vozes podem ser internas). O outro
é um eixo horizontal que atravessa o eixo vertical e representa o tempo passado e futuro (ibid, p.45)”, portanto, nossos
textos e enunciados mantém (e manterão) diálogos com outros textos e enunciados anteriores (e futuros).
Outra crença observada é a de aprender diálogos em contexto em que a autora notou ocorrência de registros de
cenas de filmes em espanhol com interesse de compreender a interação dos personagens, incluindo emoções e
sentimentos. A terceira crença observada diz respeito a usar símbolos fonéticos para pronúncia. A quarta crença observada
é a importância de avaliar minha melhora no espanhol, nesta crença nota-se a importância de um feedback para que o
aprendiz possa ver/sentir resultados que o motivem. A partir deste estudo, a autora concluiu que o estudo de crenças
emergentes é um campo a ser explorado e que o uso de diários se revela como alternativa bastante apropriada por poder
registrar percepções de aprendizes ao longo do tempo, possibilitando assim estudos longitudinais.

2 BAKHTIN, M. The Dialogic Imagination: Four Essays by M. Bakhtin. (Translated by C. Emerson & M Holquist). Austin, TX: University of

Texas Press. 1981

796
3.2 Crenças: situadas, corporificadas, dinâmicas e sistêmicas

O artigo de Dufva (2003) se difere dos demais por ser de caráter mais teórico. Neste trabalho a autora discute
sobre o conceito de crenças em uma perspectiva bakhtiniana, caracterizando crenças e ilustrando com dados empíricos. É
defendida a ideia de que os estudos de crenças se inserem no campo de estudos da cognição, mas que não são
necessariamente cognitivistas. Há uma desconstrução da visão mainstream de investigar crenças na década de 80, período
caracterizado pela abordagem normativa (BARCELOS, 2001, 2003) em que elas eram vistas como estáticas e acabadas.
Os fatores contextuais eram vistos em segundo plano, pois se acreditava que elementos externos não estariam
relacionados à mente do indivíduo (elemento interno).
Dufva (ibid) se baseia na filosofia da linguagem de Bakhtin e seu círculo no diálogo com outros estudos, como os
da teoria sociocultural de Vygotsky e propõe que estudar crenças consiste em analisá-las como “experiências subjetivas”
(ibid, p.132) em que o pesquisador atenta para as vozes do sujeitos, que se manifestam oralmente (por meio de entrevistas,
por exemplo) ou em narrativas escritas de aprendizagem, dessa forma, em uma pesquisa as crenças emergem no “diálogo
entre o pesquisador e seus sujeitos” (DUFVA, 2003, p. 133). Cabe ressaltar aqui, que a noção de diálogo não se restringe
somente à conversação face a face, pois como salienta Bakhtin (2006, p.127) diálogo deve ser compreendido “não apenas
como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que
seja”. Neste estudo de base dialógica as crenças são vistas como situadas, dinâmicas, sistêmicas e corporificadas.
As crenças são situadas considerando principalmente a influência do contexto social no processo cognitivo que
ocorre em determinado tempo e espaço. Esta visão se difere da concepção tradicional que enfatizava o caráter individual da
autonomia, que não estaria sujeita a fatores externos (socias). São corporificadas rejeitando a visão cartesiana de cognição
de que a mente opera autonomamente em relação ao corpo, pois “é resultado de diferentes sistemas trabalhando como
uma totalidade no cérebro, no corpo e entre o corpo e o mundo.” (ibid, p.135). São dinâmicas por serem vistas em processo
contínuo e interativo (com os outros e com o mundo). E por fim, são sistêmicas por não serem totalmente individuais, uma
vez que emergem em contextos onde sujeitos interagem. Desta forma, Dufva (2003, p.149) conclui que estudar crenças na
perspectiva do dialogismo “reconhece o direito dos sujeitos de falar por si mesmos, respeitando seus pontos de vista” além
de fornecer conhecimento científico para melhor compreender os processos de aprendizagem e as crenças construídas ao
longo deste processo.

3.3 Crenças: sociais e polifônicas – Bakhtin e Vygotsky

Aro (2009) realizou um estudo longitudinal com quinze alunos (sete meninos e oito meninas com faixa etária de 7,
10 e 12 anos em cada fase da pesquisa) de uma escola na Finlândia. O estudo tinha por objetivo investigar as crenças
destes aprendizes em sua natureza e processo de desenvolvimento e os dados foram coletados por meio de entrevistas
(semi-estruturadas). As crenças investigadas diziam respeito à importância de aprender inglês, sobre gostos dos alunos
para aprendizagem, maneiras de aprender (dificuldades), dentre outras. Assim como outros autores aqui citados (cf. DUFVA
& ALANEN, 2005) o estudo incorporou perspectivas vygotskianas e bakhtinianas.
O estudo observou inicialmente a crença da importância de aprender uma LE por questões internacionais, sendo
necessária, por exemplo, para sair do país. Um aspecto importante do estudo, por ter observado o desenvolvimento de
crenças em uma pesquisa longitudinal diz respeito à variação dos motivos e razões para estudar inglês ao longo das fases

797
da pesquisa. Assim como outros trabalhos na LA, o estudo ressalta a importância das experiências pessoais nas crenças e
chama atenção para a polifonia das mesmas, em que além das vozes das experiências pessoais dos aprendizes, foi
possível observar a influência de vozes autoritárias (mais especificamente do professor). Por exemplo, uma das
participantes (Eeva) durante a entrevista ao falar sobre as tarefas em sala de aula constrói a ideia de obrigação dos alunos
em sala com base em discursos da escola que sugere o uso das tarefas para “praticar as palavras”. Desta forma, conclui a
autora:

“Ao invés de uma maneira mais neutra de descrever a tarefa, Eeva neste caso falou das obrigações que
os alunos tem: eles recebem coisas que tem que fazer. Ela também se apropriou a terminologia
específica da tarefa de inglês de praticar palavras” (ARO, 2009, p.129, ênfase no original)

Os estudos com base no dialogismo bakhtiniano ou na polifonia têm contribuído para as pesquisas de crenças na
LA por conceberem o processo interativo de crenças (como tantas outras desde o fim da década de 90 já tem feito mesmo
não compartilhando dos pressupostos das obras de Bakhtin) e por buscarem compreender as outras vozes que se
manifestam e que de alguma forma estão relacionadas às crenças construídas e o desempenhos dos aprendizes.

3.4 Conscientização Metalinguística: visões e representações sobre LE

Dufva e Alanen (2005) analisaram a conscientização metalinguística3 em crianças finlandesas em um estudo


longitudinal (ao longo de seis anos) em relação à aprendizagem de LE. Além de pressupostos bakhtinianos o estudo se
baseou nos estudos socioculturais vygotskianos. Neste estudo as autoras defendem a perspectiva de que a conscientização
metalinguística é repleta de várias vozes e carrega traços de muitos contextos (sala de aula, escola, família), ou seja, sendo
possível perceber que as crianças são influenciadas por discursos que as rodeiam e isso corrobora para a construção de
noções sobre os processos de aprender LE. E esta influência se dá nas interações com os outros, em que se concebe uma
relação mediada por linguagem na perspectiva da teoria sociocultural.
Um dos discursos de maior influência segundo as autoras é o institucional (escolar) e ao chegar à escola, a
criança ressignifica sua visão de linguagem que possuía no contato com os outros e com as tarefas que ali desenvolverá.
Vygotsky, por exemplo, já argumentava que o aprendizado precede o momento em que os aprendizes passam a fazer parte
do contexto escolar, contudo, ressaltava que a educação escolar tem suas contribuições “fundamentalmente novas” para o
aprendiz (VYGOTSKY, 1989a, p.94). Desta forma, além de acrescentar novas visões nas experiências das crianças, o
contexto escolar também “modifica sua qualidade e substitui algumas observações ingênuas com as [observações]
profissionais - aprendidas ou acadêmicas -” (DUFVA & ALANEN, 2005, p.105).
Por meio das entrevistas com os alunos, as autoras categorizaram as principais visões4 dos alunos sobre a
aprendizagem. Uma das primeiras observações é a visão de língua enquanto matéria escolar, que os distanciam de uma
visão mais ampla de língua, como aquela que está presente no seu dia-a-dia, e que faz com que os alunos não relacionem
sua aprendizagem escolar com seu conhecimento de LE adquirido fora dela (nos outros contextos em que vive e interage).
Além disso, os alunos entrevistados concebem língua como aquilo que está nos livros, uma visão literal que segundo as
autoras é justificado pelo fato de que grande parte das aulas se centra em textos escritos. Outro fator apontado é a
objetificação de língua em como uma aquisição de posses, como é o caso do vocabulário que vai se adquirindo, e assim

3 Dufva e Alanen (2005) ressaltam que os estudos de conscientização metalinguística (metalinguistic awareness, nos termos originais)
tem sido orientados tradicionalmente nos modelos cognitivos com base na psicolinguística ou nos estudos de Jean Piaget.
4 No texto original as autoras utilizam os termos “views” (p.108) e “representations” (p.109) para falar sobre as construções e noções

destas crianças sobre aprendizagem de LE, que a meu ver representam as crenças destes aprendizes. A respeito destas discussões
terminológicas vide Barcelos (2000, 2004).

798
percebe-se a língua enquanto “quantificável e mensurável” (ibid, p.110). Com estas observações, as autoras concluem que
a conscientização metalinguística é construída em um ambiente socialmente rodeado por discursos que acabam sendo
apropriados pelos aprendizes. E que no caso destes pequenos aprendizes suas novas concepções (também crenças,
acrescento eu) são muito influenciadas por seus professores e pelo discurso institucional, e dentre as diversas vozes que
permeiam a construção da conscientização metalinguística “algumas são mais fracas do que outras.” (ibid, p.113)

4. Encaminhamentos e Diálogos Possíveis: Concluindo

Os estudos do discurso têm se tornado cada vez mais relevantes para investigação das práticas de sala de aula,
no intuito de compreender as concepções, representações e crenças sobre o que é ensinar uma língua estrangeira, ou
como esta é aprendida em contextos específicos. Alguns linguistas aplicados têm nos mostrado as contribuições destes
estudos em suas teorizações.
Coracini (2003) incorpora pressupostos de estudos do discurso de linha francesa ao discutir noções de sujeito e
heterogeneidade que constituem os sujeitos inseridos em contextos de aprendizagem,

“heterogeneidade essa que não se encontra apenas fora, no outro interlocutor, mas é constitutiva do
próprio sujeito, isto é, do seu inconsciente, do próprio discurso – vozes que se interpenetram, se
embaralham, se adentram umas nas outras – e, conseqüentemente, do próprio texto.” (CORACINI, 2003,
p.2o)

Outro trabalho a ser destacado, por exemplo, é o de Grigoletto (2005) em que a autora retoma a noção de ideologia
com base em Althusser para discutir a relação entre discurso e identidade de professores e alunos de LE, com base em
Michel Pêcheux. É possível notar que os diferentes modos de teorizar em uma mesma área de conhecimento podem
contribuir significativamente para solidificação de diversas linhas de pesquisa, como é o caso da pesquisa de crenças na
LA. E essa variedade corrobora uma visão de LA que concebe LA como lugar “onde se misturam ou se imbricam intuição,
experiências individuais e sociais, conhecimento científico, enfim, lugar onde se imbricam teoria e prática” (CORACINI,
2003, p.29).
Neste ponto, em que se percebe um chamado de outras áreas para se investigar questões de linguagem (e seu uso)
em LA, penso ser importante retomar um dos pontos principais deste artigo, a proposta de diálogo entre estudos de LA e
AD no estudo de crenças. Após a revisão de alguns trabalhos aqui, foi possível perceber (I) a sintonia entre aportes teóricos
em ambas as áreas, como é o caso dos estudos bakhtinianos, (II) necessidade de estudos que observem os discursos que
permeiam as relações de interação, e no caso dos contextos escolares, observar de que maneira as crenças de professores
e aprendizes são influenciadas por outros discursos, como aqueles advindos da sociedade, dos documentos que orientam a
educação, e da mídia a respeito do papel de aprender uma LE na sociedade global ou sobre a visão atual do ensino
brasileiro (escola pública, ensino superior, dentre outros).
Percebo ainda, que além de buscar subsídios teóricos de outras áreas o mais interessante seria a proposta de projetos
em que as perspectivas de linguistas aplicados e analistas do discurso possam ser articuladas, para que conhecimentos (de
vertentes diferenciadas) possam convergir para um mesmo fim. Partindo do pressuposto de que tanto para linguistas
aplicados quanto analistas do discurso o diálogo consiste por excelência como uma forma de interagir e construir
significados eis aí uma sugestão para pesquisas futuras.

799
5. Referências

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Fernando Silvério de Lima é Mestrando em Letras (Linguística Aplicada) da Universidade Federal de Viçosa, sob
orientação da Professora Doutora Ana Maria Ferreira Barcelos e membro do Grupo de Pesquisa CEALI: Crenças no Ensino
e Aprendizagem de Línguas (UFV/Cnpq). Seus trabalhos estão voltados ao estudo de crenças e teoria sociocultural
(Vygotsky) no ensino de LE

Email para contato: Fernando_silverio@yahoo.com.br

801
“Até não parar em pé”: o consumo de bebidas alcoólicas
abordado pela música sertaneja

LIOTO, Mariana
(UNIOESTE)
CATTELAN, João Carlos
(UNIOESTE)

Este trabalho traz as primeiras reflexões de uma pesquisa que será desenvolvida no programa de Mestrado em
Letras. Por se tratar do primeiro texto escrito depois da definição do objeto, a delimitação do referencial teórico ainda está
se compondo. Pelo quadro epistemológico que a compõe e pelos objetivos enquanto disciplina, acredita-se que a Análise
do Discurso (AD) de linha francesa fornece arcabouço teórico sólido para embasar as reflexões. Em sua parte teórica, este
trabalho trará algumas reflexões iniciais sobre como a composição e surgimento da AD podem contribuir para a delimitação
dos efeitos de sentido do objeto selecionado.
É certo que a Análise do Discurso, enquanto disciplina regrada, que visa observar como a linguagem se manifesta
em discursos no cotidiano, tem nas manifestações relacionadas ao uso de bebidas alcoólicas um objeto relevante. Há
músicas que falam de álcool de diversos ritmos e com diversos tons: nas músicas festivas a bebida aparece como elemento
associado à alegria, no Rock muitas vezes a bebida em excesso é retratada como elemento positivo, nas músicas
românticas, por vezes, a bebida é a saída para “afogar as mágoas” diante de problemas amorosos. No entanto, pode-se
dizer que, entre os ritmos musicais onde o tema é mais recorrente, estão as músicas sertanejas.
A Análise do Discurso (AD) surgiu no final da década de 1960 com os estudos do francês Michel Pêcheux, tendo
como marco inicial seu escrito de 1969. A AD propõe um olhar diferenciado para os processos discursivos, baseado na
crença de que os sentidos do discurso são construídos não na individualidade dos interactantes do ato enunciativo, mas
considerando-se a sociedade onde a manifestação discursiva se dá e quais as forças que a regem. Os aspectos do
inconsciente que permeiam os indivíduos também são fatores determinantes dos discursos produzidos. Para tanto, a
disciplina surge a partir da articulação de diferentes áreas do conhecimento:

O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida
aí a teoria das ideologias; A linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de
enunciação ao mesmo tempo; A teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos
processos semânticos. Convêm explicitar ainda eu estas três regiões são, de certo modo, atravessadas
e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica). (PECHEUX, 1975, P. 163-4)

Assim, a linguística não é desprezada, mas aparece em conjunto com o materialismo histórico, baseado em
Althusser, numa releitura de Marx, e também com a psicologia, baseada na noção de inconsciente presente em Lacan,
numa releitura de Freud. Por si só, portanto, falar de língua do ponto de vista da análise do discurso rompe com a
perspectiva que vê a língua como sistema, unívoca e transparente. Para Pêcheux (1975, p. 172) a relação entre processos
discursivos e língua se baseia no fato de que “estando os processos discursivos na fonte da produção dos efeitos de
sentido, a língua constitui o lugar material onde realizam estes efeitos de sentido”. Assim, observa-se que os sentidos não
estão construídos previamente, mas são dados no e pelo discurso.

802
Ao olhar para um texto sobre a ótica discursiva não basta questionar “o que o autor quis dizer?”, nem “o que o
leitor/interlocutor entendeu”, pois o sentido não é único nem pode ser detido por apenas um dos interactantes, ao contrário,
os sentidos são múltiplos e se constroem nas situações de comunicação vistas de forma ampla.

A condição da linguagem é a incompletude. Nem sujeitos nem sentidos estão completos, já feitos,
constituídos definitivamente. Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta,
do movimento. Essa incompletude atesta a abertura do simbólico, pois a falta é também o lugar do
possível. (ORLANDI, 2001, p. 52)

Falar em incompletude, no entanto, não significa afirmar que os sentidos se constituem de maneira aleatória, ao
contrário, eles são sujeitos a processos de determinação. Isto porque os próprios sujeitos ocupam lugares na sociedade e
estão no interior de instituições que regulamento o seu dizer. Ao fazer esta opção, a AD nega as concepções subjetivistas
da linguagem, que acredita que os sujeitos são “donos” do que dizem e fazem livremente suas escolhas no momento da
enunciação. Pêcheux (2009) desconstrói a noção de subjetividade mostrando que, enquanto o sujeito crê ser fonte do que
diz, na verdade o que ocorre é um efeito ideológico, de apagamento. Assim, se AD se propõe a fazer uma leitura
materialista dos processos discursivos “não pode para se constituir, contentar-se em reproduzir, como um de seus objetos
teóricos, o ‘sujeito’ ideológico como ‘sempre-já dado’! (2009, p. 121) mas precisa sim de uma teoria não subjetivista da
subjetividade. O que equivale dizer que a subjetividade existe, mas que ela não é definida pelo próprio indivíduo, pelo lugar
social que ele ocupa.
Este lugar, grosso modo, são as formações ideológica, que compõe-se de diversas formações discursivas (FDs).
Cada FD dá a diretriz acerca do que pode e do que deve ser dito a partir daquele lugar. Assim, o “cantor de música
sertaneja” está localizado em meio a forças sociais que lhe ditam os discursos possíveis para a sua postura, nas palavras
de Mussalin são “regras de formação”, “concebidas como mecanismos de controle que determinam o interno (o que
pertence) e o externo (o que não pertence) de uma formação discursiva. Assim, uma FD, ao definir-se sempre em relação a
um externo, ou seja, em relação a outras FDs” (MUSSALIN, 2001, p. 119). Nas palavras de Pêcheux (1983, p. 315), “uma
FD não é um espaço estrutural fechado, pois é, constitutivamente ‘invadida’ por elementos que vêm de outro lugar (isto é,
de outras FDs) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais”. Os sujeitos também
transitam em mais de uma formação discursiva, ao longo da vida ou até mesmo ao longo de um dia, ao assumirem
diferentes papéis, no trabalho, na escola, na família, no trânsito e na igreja.
Assim, sobre uma mesma base linguística, se compõem processos discursivos diversos, sempre regulados pelas
formações discursivas, por isso os discursos não dizem o novo, mas o possível, dentro daquilo que lhes é determinado. E
desta determinação, decorre o fato que sempre o discurso se compõe a partir do interdiscurso, ou seja, de retomadas
insconscientes daquilo que já foi dito por outra pessoa, em outro lugar. Os dizeres sempre possuem relação com outros
discursos já proferidos, mas que ficam apagados no momento da enunciação, assim, Orlandi (1996, p. 18) afirma que “todo
discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu futuro discursivo). Por isso, na realidade, não se trata
nunca de um discurso, mas de um continuum”. Pêcheux (2009) classifica o interdiscurso sob duas modalidades: o pré-
construído e o processo de sustentação (retorno ao saber), que dariam conta de classificar toda ocorrência interdiscursiva.
O termo pré-construído é proposto por Henry “para designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre
independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado” (PÊCHEUX, 2009, p. 89). O autor critica os que, diante
da dificuldade de expressar como os sentidos se estabelecem, afirmam que há uma “ilusão” e que a dificuldade se deve à
imperfeição da linguagem e insere a segunda possibilidade de leitura do interdiscurso

803
por oposição ao funcionamento do pré-construído – que dá seu objeto ao pensamento sob a
modalidade da exterioridade e da pré-existência –, a articulação de asserções, que se apóia sobre o
que chamamos o “o processo de sustentação”, constitui uma espécie de retorno de saber no
pensamento (PÊCHEUX, 2009, p. 101-102)

Compreende-se que a interdiscursividade, na perspectiva dessas duas possibilidades, é constitutiva do discurso.


Os processos discursivos, não são, portanto, retorno à próprias coisas ou a essência delas, mas sim de reformulações,
dentro do que permitem as formações discursivas, de algo que já foi dito ou de algo que “já sabemos” e retorna ao
pensamento.
Por fim, destaca-se que entender a língua como efeito de sentidos entre interlocutores é observar o processo de
interação não como simples comunicação

Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de
sentidos que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma presentes no
modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de aprender. São pistas que ele
aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua
exterioridade, suas condições de produção. (ORLANDI, 2001, p. 30)

Cabe ao analista pensar porque alguns enunciados são ditos e quais outros poderiam tomar o seu lugar, mas, no
entanto, são silenciados. Os discursos do cotidiano, dentre os quais se incluem as músicas que alcançam o sucesso, são
processos discursivos - sempre determinados, ideológicos e interdiscursivos – que em sua materialidade retratam
imaginários e relações de poder da sociedade.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO: USE SEM MODERAÇÃO

É sob esta perspectiva que observamos a música escolhida. Consideramos que os enunciados que compõe a
música precisam ser lidos não em seu caráter estritamente linguístico, mas sempre levando em consideração qual é a
situação de produção que fundamenta e determina a composição. De um lado, ela vem inserida no contexto da música
sertaneja nacional, gênero popular que possui destaque na mídia e milhões de seguidores.
A música sertaneja surgiu da música caipira, que tem como característica geral o fato de ser composta pela
coletividade e possuir função de fortalecer as relações nas comunidades rurais. Mas a metamorfose veio acompanhada de
mudanças: a música sertaneja passou a ser produzida em meio urbano e em escala industrial, com interesses econômicos,
assim, a música “torna-se um produto a mais à disposição do consumidor. Enquanto a música caipira é meio em si mesma,
a sertaneja é fim cujo objetivo é o lucro”. O deslocamento do papel da música, implica num deslocamento na formação
discursiva a qual pertence os cantores e compositores. A música precisa ser lida não apenas como objeto artístico, mas
como produto que como qualquer outro é feito e reproduzido em grande escala para ser vendido, conquistar o consumidor
entre o universo de produtos disponíveis. E com a mudança do objetivo e do foco, mudam-se também os temas. “Enquanto
a poesia da música caipira é essencialmente religiosa, a música sertaneja apresenta um discurso profano, que fala do amor
na cidades, dos políticos, da condução, do progresso da cidade grande, e assim por diante” (CALDAS, 1987, P. 30). E a
ideia deu certo: a música sertaneja se tornou sucesso de vendas. O marco inicial é considerado a gravação, em 1924, do
disco da Turma Caipira Cornélio Pires, que alcançou muito sucesso.
Com o tempo, a música deixou de ter ligação com o meio rural e de sertanejo restou somente o nome:

804
A rigor, ela hoje é uma modalidade musical igual à chamada música popular brasileira, produzida e
consumida em qualquer lugar. Os compositores e cantores sertanejos dirigem sua música para uma
certa população numericamente muito grande e de baixa escolaridade. Eles têm consciência disso e
amoldam-se ao gosto do público. São, em sua maioria, agricultores, operários, empregadas
domésticas, motoristas, vigias, pedreiros, enfim, grande parte da população realmente assalariada.
Pode-se dizer que a música sertaneja é também a “música proletária”. Pelo menos em termos de
consumo e não de discurso político. (CALDAS, 1987, p. 77-8)

No universo de assuntos possíveis de serem abordados em uma música sertaneja, a canção de referência optou
por retratar um episódio na vida de uma pessoa onde o foco é o consumo de bebidas alcoólicas. A escolha desta temática
só é possível porque vivemos em uma sociedade onde o consumo de bebidas alcoólicas é um hábito. Muitas vezes a
bebida e música dividem o mesmo espaço: nos bares e festas os dois elementos estão presentes. Então, a música
sertaneja alcança um público que, muito provavelmente, é favorável ao consumo de bebidas alcoólicas, então, a abordagem
desta temática, é bem aceita. Com a temática definida, são vários aspectos que podem ser destacados ou silenciados. Na
música analisada, o enfoque, conforme, veremos, se dá num tom de incentivo ao consumo. Acredita-se que a imagem que
o cantor possui de quem é o seu interlocutor influencia a composição, e os sentidos só podem ser lidos se todos estes
elementos forem considerados.
A música “Credo em Cruz, Ave-maria” foi gravada pela dupla Bruno e Marrone, no disco “Sonhos, Planos,
Fantasias”. Este disco foi lançado em 2002 pela Gravadora Abril Music e vendeu mais de 1,3 milhão de cópias. O disco é
composto por 15 faixas e a música “Credo em Cruz, ave-maria” é a primeira faixa do CD. Todas as músicas do disco, com
diferentes enfoques, falam de relacionamentos amorosos e a música em análise é a única onde a temática da bebida
aparece. Esta faixa foi escolhida como uma das “músicas de trabalho” do disco, ou seja, foi divulgada nas rádios e
programas de televisão, ficando bastante conhecida. A música inclusive conta na lista das mais tocadas no ano de 2002 e
2003. Naquela época a dupla estava no auge do seu sucesso no Brasil, em 2002 recebeu o Grammy Latino como melhor
álbum de música sertaneja e entrou para a história com o primeiro DVD sertanejo a receber disco de ouro. Em 2002, 2003 e
2004 os cantores foram escolhidos como os melhores do ano no programa Domingão do Faustão, da Rede Globo. Tudo
isso compõe o fato que a dupla possui prestígio social, e portanto teria um discurso autorizado. O sucesso que diversas
músicas já haviam alcançado, acaba por fazer com que muitos entre o público consumidor de música sertaneja tenha uma
imagem pré-construída positiva da música.
A canção possui um ritmo dançante, mas nesta análise o foco será a letra da música, que segue

Desce uma geladinha


Que hoje eu vou perder a linha
Vou beber até amanhecer
Meu amor me deu um fora
Me xingou, mandou embora
E diz que não quer mais me ver...
Eu “tô" perdido, eu só fico andando a esmo
Se não tem, traz pinga mesmo
Que amanhã é outro dia
Não acredito que ela nunca mais me quer
Se eu perder essa mulher credo em cruz! Ave-maria!”
Eu vou cantar pra ver se a minha vida muda
Se eu errar alguém me ajuda
Na letra ou na melodia
Eu vou beber até não parar em pé
Se eu perder essa mulher credo em cruz! Ave-maria!

A temática principal da música é o ato de beber, e beber em excesso. O I Levantamento Nacional sobre os
Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira, elaborado em 2007, traz dados sobre o consumo de álcool no

805
Brasil. Neste levantamento, 48% da população se disse abstêmia, enquanto 29% afirmou beber com pouca frequência e
24% disseram que bebem frequentemente ou pesado (uma ou mais vezes por semana, mais de cinco doses por ocasião). A
bebida mais consumida é a cerveja, com 61% das doses, seguida do vinho, com 25% e destilados 12%. Entre os destilados
a pinga é a mais consumida, com 60% das doses. No entanto, estes dados não refletem apenas um hábito, mas um
problema social: 28% da população já bebeu excessivamente, e 12% da população tem algum problema relacionado ao
álcool, com mais frequência são citados os problemas físicos, em segundo lugar problemas familiares. No entanto,
conforme veremos, os problemas que o consumo de bebidas alcoólicas pode trazer ficam apagados da música.
A canção já se inicia com o pedido “desce uma geladinha”. O enunciado dialoga com os pedidos feitos aos garçons
nos bares e a “geladinha” é a cerveja, bebida alcoólica, que, como já foi exposto, é a mais consumida no Brasil. Pelo
consumo ser tão recorrente, são diversos os termos utilizados para se referir à cerveja: desde associações à “loira gelada”,
às contrações, “cerva” ou “breja” de acordo com regionalidades de cada local. O fato é que a escolha pelo termo “geladinha”
ou invés de simplesmente “cerveja” já aponta para um ponto de vista positivo para o consumo da bebida, em um país
tropical, o consumo de uma bebida gelada é considerado agradável. O pedido feito com o verbo “desce” ou invés de “traga”
dá um tom de informalidade ao pedido. No geral, o enunciado aciona uma série de pré-construídos a respeito do ambiente
onde normalmente as bebidas alcoólicas são consumidas: local de descontração, amizade e bem estar.
Assim, o hábito de frequentar bares é encarado por uma maioria com naturalidade, no entanto, o ato de beber
retratado na música se afasta da ação de “beber socialmente”, pois ao pedir a primeira dose o enunciador já afirma que “vai
perder a linha e beber até amanhecer”. A expressão “perder a linha” permite pressupor que beber em excesso é uma
atitude errada, e que “quem anda na linha” não bebe até o amanhecer. Este enunciado se baseia em pré-construídos que
alertam sobre o risco do consumo demasiado de bebidas. Em seguida, o locutor explica o porquê deste ato. O enunciador
vê na bebida a solução para acabar com os problemas, no caso, um rompimento com as relações afetivas com uma mulher
que aparece na música como “meu amor”. A briga é retratada com quatro ações diferentes, “dar um fora”, “xingar”, “mandar
embora” e “dizer que não quer mais vê-lo”, a soma das quatro expressões criam o sentido que o desentendimento foi sério,
sem, no entanto, explicitar qual foi a razão da briga. Depois disso, o resultado foi que o enunciador “ficou perdido e só fica
andando a esmo”, pois não quer perder a mulher.
A hipótese da perda, quando levantada, vem seguida de duas interjeições, popularmente utilizada: “credo em cruz!”
e “Ave-maria!”, que também dão título à canção. Gramaticalmente as interjeições são classificadas como uma “classe de
palavras”, assim, como o substantivo ou o adjetivo, outras gramáticas, como Cunha e Cintra (2001), consideram que as
interjeições não são “classificáveis”. Para estes autores, a interjeição seria como um grito que traduz nossas emoções de
um modo mais vivo.

A mesma reação emotiva pode ser expressa por mais de uma interjeição. Inversamente, uma só
interjeição pode corresponder a sentimentos variados e, até, opostos, O valor de cada forma
interjectiva depende fundamentalmente do contexto e da entonação, (CUNHA E CINTRA, 2001, p.
591).

Uma expressão pode ser classificada como interjeição, de acordo com a situação, o que os gramáticos chamam de
“locuções interjectivas”. O termo “ave-maria”, por exemplo, significa também a oração cristã/católica direcionada à mãe de
Jesus Cristo, mas, cotidianamente é utilizada como interjeição que demonstra contrariedade. Da mesma forma, a expressão
“credo em cruz”, normalmente vem associada a um sentimento de repulsa do locutor, que quer afastar o pensamento ou
situação que gerou a interjeição. O fato de as duas expressões serem bastante populares e estarem associadas a
elementos religiosos também precisa ser considerado. O fato de vivermos em uma sociedade onde a maioria é cristã faz

806
com que estes termos sejam usados com recorrência, em diversas situações. Ao ser tomado na composição, é possível que
haja identificação por parte dos interlocutores que cotidianamente reconhecem estas expressões. Apesar de ser um
elemento ligado ao “sagrado”, ele se insere no discurso cotidiano de caráter “profano”, pois o locutor, a partir de sua
posição, acaba influenciado, pelas diferentes formações discursivas que estão em jogo no momento da composição de seu
discurso. Apesar de falar como cantor que retrata uma situação de consumo de bebidas alcoólicas, relaciona à desilusão
amorosa, não se apaga o fato de a maioria da população acreditar em Deus, e habitualmente fazer uso destas expressões
como interjeições.
Se o problema amoroso é sério, a solução apresentada é a bebida. Depois de explicar o porquê quer “perder a
linha”, o enunciador afirma que se não tiver cerveja, o interlocutor – pressupõe-se, o garçom – “deve trazer pinga mesmo,
que amanhã é outro dia”. Este enunciado mostra que o “beber” não se dá pelo apreço ao sabor de determinada bebida, mas
pelo desejo do entorpecimento que a embriaguez traz, qualquer bebida serve, desde que ajude a esquecer os problemas
até o outro dia. Este enunciado aponta para a inconsciência sobre o risco de dependência, afinal, o importante é o hoje,
“amanhã é outro dia”.
Os versos seguintes também remetem para o fato de a ingestão da bebida se dar em excesso. O enunciador
desloca o ponto de vista “da pessoa que sofre pelo amor” para o ponto de vista do “cantor” que encontra na música também
a possibilidade de mudança na vida. No entanto, o estado de embriaguez tamanha que é capaz de alterar a capacidade de
cantar, situação exposta nos versos, “se eu errar alguém me ajude, na letra ou na melodia”. Considerando o caráter
interdicursivo, é possível dizer que neste enunciado se dá o retorno ao saber, o efeito de sentido acionado é “aquele que
bebe, perde ou tem diminuída sua capacidade de executar determinadas tarefas”. Ao mesmo tempo, os versos expressam
uma espécie de “parceria” entre enunciador e enunciatário, pois o primeiro pode precisar da ajuda do segundo. O que era
ídolo apresenta postura de amizade, esperando a contribuição de outros que estão no bar e se mostra como um ser
humano, que também tem problemas amorosos. Problemas que podem ser resolvidos pela bebida – em grandes
quantidades - e pela música, em parceria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que os cantores famosos acabam por serem admirados pelos seus fãs, as atitudes expressas na
música são encaradas com naturalidade ou podem até ser tidas como exemplo pelos que ouvem a canção. Vale destacar
que somente uma das postagens do vídeo com esta música feita no site You Tube, alcançou em um ano mais de 300 mil
visualizações.
Reside aí, acreditamos, o risco de uma canção como esta. A “liberdade de expressão” dá ao cantor/compositor o
direito de falar de qualquer assunto, com qualquer enfoque, em suas músicas. Neste caso, a liberdade é usada para
apresentar o consumo excessivo do álcool como fuga dos problemas e auxílio na resolução de dramas pessoais. Se se
tratasse de uma propaganda, por exemplo, o Conar (Conselho Nacional de Auto-regulamentação Publicitária) determinaria
que fossem inseridos enunciados de alerta, com expressões como “Beba com Moderação” ou “Beba com
Responsabilidade”. Nas músicas, ao contrário, por se tratar de “arte”, não há qualquer restrição, e todos os sentidos
negativos do álcool ficam silenciados: não se fala dos malefícios da bebida para o organismo, da desestrutura familiar que a
dependência causa, dos casos de violência e acidentes de trânsito que têm no álcool seu causador.
Percebe-se, portanto, que “o silêncio não é ausência de palavras. Impor o silêncio não é calar o interlocutor mas
impedi-lo de sustentar outro discurso”. (ORLANDI, 1993, p.105). O silêncio, portanto, estabelece o que cabe ou não à
determinada posição de sujeito declarar:

807
Se tomamos o conceito de formações discursivas como referência, podemos dizer que o silêncio
trabalha os limites das diferentes formações discursivas, isto é, trabalha o jogo de contradições de
sentidos e da identificação do sujeito (...). A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do
sujeito em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos por que se impõe o
sujeito de ocupar certos lugares, certas posições. (ORLANDI, 1993, p.106-107).

Desta forma, os efeitos de sentido que esta música causa podem ser maléficos, pois diante do silêncio sobre os
efeitos negativos do álcool, assumido na formação discursiva pelo cantor de música sertaneja, o uso excessivo acaba
sendo visto como algo normal ou até positivo, capaz inclusive de ajudar na resolução de problemas. Quanto à formação
discursiva que o locutor ocupa no momento da enunciação é possível questionar: São os valores sociais dos interlocutores
que determinam o conteúdo da canção ou a canção que influência no comportamento posterior dos interlocutores?
É possível dizer que as duas hipóteses estão corretas: Ao mesmo tempo que os cantores buscam retratar os
hábitos de uma sociedade que é vista como interlocutora, a forma com que este retrato é pintado pode influenciar o
comportamento dos interlocutores que passam a ver como normal este tipo de ação, sem atentar para o aspecto negativo
do consumo traz. A música reforça os comportamentos que são ou não vistos como naturais.

Referências

CALDAS, Waldenyr. O que é música sertaneja. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CUNHA, Celso. CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3. ed. Rio de janeiro: Nova
Fronteira, 2001.

MUSSALIN, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIN, Fernanda. BENTES, Anna Chrisina. Introdução à Linguística:
domínios e fronteiras. Vol. 2. São Paulo: Cortez, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 3. ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

_________. Discurso e leitura. Campinas, SP: Editora da Unicamp,1996.

_________. As formas do Silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1993.

PÊCHEUX, Michel. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). In: GADET, François
e; HAK, Tony. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. bras.
Campinas: UNICAMP, 1993.

_________. A Análise de Discurso: Três épocas (1983). In: GADET, François e; HAK, Tony. (Orgs.) Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. bras. Campinas: UNICAMP, 1993.

_________. Semântica e discurso: Uma crítica a afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.

SENAD (Secretaria Nacional Antigrogas). I Levantamento Nacional Sobre os Padrões de Consumo de Álcool na
População Brasileira, 2007, disponível em <http://www.feteb.org.br/artigos/pre_e_federadas/i_levantamento_padroes.
pdf>, acesso em 10 jun. 2010.

808
Vozes no discurso: quem se faz presente nos editoriais do
Correio Braziliense, Folha de São Paulo e O Globo

LOPES, Denise
(Universidade Federal do Piauí/ FAPEPI)

1. INTRODUÇÃO

A implantação da TV digital no Brasil vem sendo estudada desde a década de 1990 culminando com a escolha do
padrão japonês para servir de base ao sistema brasileiro em 2006. Esse processo envolveu tanto aspectos tecnológicos quanto
políticos, institucionais, econômicos e sociais. Por se tratar de um processo que envolve várias instâncias da sociedade e afeta
direta ou indiretamente a vida de milhões de brasileiros, a implantação da televisão digital no Brasil foi assunto nos principais
meios de comunicação do país. Neste trabalho, nos propomos a analisar os discursos dos jornais Correio Braziliense, Folha de
São Paulo e O Globo a fim de perceber como eles constroem os sentidos no processo de implantação da televisão digital no
Brasil. Buscamos examinar as vozes e tensões presentes nos editoriais e através da análise discursiva perceber quais atores
tem voz e quais são silenciados nos discursos.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), no Brasil, em 2008, 95,1% dos domicílios
possuíam televisão, sendo o menor alcance na região Norte do país, 90%, e o maior na região Sudeste com 97,6%, superando
itens como geladeira (92,1%) e filtro de água (51,6%). Esses dados revelam a dimensão que a televisão alcançou na vida da
população brasileira, servindo como veículo de informação e entretenimento.
Ao longo dos anos, esse veículo passou por importantes transformações como o sistema em cores e atualmente a
produção, transmissão e recepção digital. Europa e Estados Unidos foram os primeiros a investir em televisão digitalizada,
sendo, logo, alcançados pelo Japão. DVB e ATSC, os padrões europeu e norte americano, respectivamente, entram em
operação em 1998, e o ISDB, padrão japonês, em 2003. Nesse contexto de modernização e de transformação o Brasil dá início
às discussões acerca do assunto.
Com a assinatura do decreto 4.901, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva instituiu o Sistema Brasileiro de Televisão
Digital, objetivando estudar a fundo os padrões mundiais com vistas à escolha daquele que mais se adequasse às necessidades
brasileiras. Por um momento, chegou-se a cogitar o desenvolvimento de um padrão nacional, mas em 2006 outro decreto
presidencial, o 5.820, instituiu o padrão japonês como base para a implementação do sistema brasileiro.
Esse processo de implantação da televisão digital no Brasil se materializou através de negociações envolvendo os
âmbitos político, econômico, tecnológico e discursivo, tornado público através das mídias. Assumindo que a produção de
sentidos deixa marcas na matéria significante, nos propomos a analisar como os jornais nacionais Folha de São Paulo, Correio
Braziliense e O Globo trataram o tema, dando voz ou silenciando os atores sociais envolvidos no processo.

809
Utilizaremos como metodologia a análise de discursos comparativa baseada nos editoriais dos três jornais referentes à
TV digital no período de janeiro de 2003 a dezembro de 2006, anos em que foram publicadas as principais resoluções acerca da
implantação da televisão digital no Brasil.

2. Referencial teórico

Para tratar da existência do outro na organização de um discurso, utilizaremos como suporte o postulado da
heterogeneidade enunciativa da Teoria dos Discursos Sociais organizado por Pinto (2003). Esse postulado reúne os conceitos
de polifonia e dialogismo de Bakhtin (1992) e heterogeneidades enunciativas de Authier-Revuz (1990), para problematizar as
rupturas enunciativas presentes no todo discursivo, ou seja, a forma como o sujeito enunciador convoca outros sujeitos para
firmar sua identidade e posicionamento.
Bakhtin (1992) critica o subjetivismo idealista, visão do ato de fala individual como fundamento da língua, sustentando
que todo enunciado está baseado na interação, e, portanto, os discursos são habitados por diversas vozes. Através do romance
polifônico Bakhtin mostra que a voz do autor não é a única presente no texto, convive com outras e com elas dialogiza para a
construção do discurso.
Authier-Revuz (1990), baseada no pensamento bakhtiniano, propõe uma separação entre as vozes que compõem um
texto, intitulando aquelas identificáveis pelo locutor de heterogeneidade mostrada, e aquelas que só podem ser apontadas
através de um estudo mais amplo das condições de produção de determinado discurso de heterogeneidade constitutiva.

Heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso representam duas


ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos não
menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição. (AUTHIER-REVUZ,1990 p. 32)

Com sua discussão sobre as heterogeneidades presentes no discurso, a autora problematiza a relação do sujeito com
o outro, ou seja, outras vozes com as quais dialogiza para se marcar e se diferenciar.
Do ponto de vista linguístico, o outro pode ser identificado na cadeia discursiva através das formas de
heterogeneidade mostrada, ou seja, através de fragmentos exteriores integrados à cadeia discursiva por marcas como aspas,
itálico, uso de outra língua, de outro discurso, etc. Authier-Revuz (1990) afirma que a heterogeneidade mostrada vai tratar da
relação que se estabelece entre o sujeito e a linguagem através da inscrição do outro no discurso de forma marcada. Assim, as
formas de heterogeneidade mostrada desempenham a função de marcar o exterior dentro do discurso e através da alteridade
constituir esse discurso, além de conceder um estatuto diferente ao outro sem quebrar a linearidade da cadeia discursiva.
A autora enumera alguns pontos considerados como marcas de heterogeneidade: outra língua, outro registro
discursivo, outro discurso, outra modalidade de consideração do sentido, palavras em potencial ou explícitas nas figuras de
reserva, de hesitação e de retificação, e o interlocutor. Essas formas marcadas de heterogeneidade mostrada revelam a relação
estabelecida entre o exterior e o discurso, visto que esse se insere no discurso constituindo-o, bem como marcam a relação
entre o enunciador e a língua em seu discurso, sendo capaz, o enunciador, de distanciar-se, de adotar uma posição de
observador. Se, por um lado, a heterogeneidade constitutiva é formada pelo outro que não podemos localizar nem representar

810
no discurso, ou seja, pelo outro próprio do discurso, por outro lado a heterogeneidade mostrada se baseia na representação, na
diferenciação entre o sujeito do discurso e os outros que aparecem no discurso.
As heterogeneidades mostradas podem ser classificadas ainda em marcada e não-marcada. As primeiras são
responsáveis por dar corpo ao discurso, costurando o sujeito enunciador ao outro, permitindo que a linearidade da cadeia
discursiva não seja quebrada. Ao mesmo tempo conferem uma identidade ao sujeito no momento em que o diferencia do outro.
No caso das formas não marcadas da heterogeneidade mostrada como a ironia, as metáforas, o discurso indireto livre, por
exemplo, o outro dilui-se no sujeito e os contornos de um e outro tendem a desaparecer num jogo entre a heterogeneidade
mostrada e heterogeneidade constitutiva.
Vê-se, assim, que as duas formas de heterogeneidade estão em constante interação, mesmo pertencendo a planos
distintos, sendo a constitutiva do plano das “condições reais de existência do discurso” (Authier–Revuz, 1990, p.35), e a
mostrada do plano das representações que se dão no discurso. É a análise dessas heterogeneidades que vai nos permitir
perceber como os discursos foram construídos, como construíram suas identidades, dando voz a umas e silenciando outras
vozes. É através da análise das heterogeneidades que se pode chegar mais próximo ao contexto de produção, identificando as
marcas pragmáticas, históricas e culturais.
As discussões de Authier-Revuz (1990) sobre as heterogeneidades enunciativas ficam no plano da constituição e das
representações nos discursos das vozes que os constroem. A autora fala das relações do sujeito com o outro no discurso, mas
não distingue entre os diferentes tipos de sujeito que habitam um discurso.
Benveniste (1989) foi um dos primeiros lingüistas a trabalhar com essa problemática ao enveredar pelos estudos
enunciativos, chamando de sujeito da enunciação a maneira como o eu se define no discurso em relação ao tu, ou seja, sua
imagem idealizada, construída discursivamente, que não se confunde com o sujeito real que mobiliza a língua; e de sujeito do
enunciado aqueles que aparecem como personagens no texto, que vêm marcados. Essa distinção entre sujeito da enunciação e
sujeito do enunciado traz a discussão dos sujeitos para o campo discursivo, desconsiderando os sujeitos reais que utilizam a
língua. Só interessam os sujeitos que se constituem e estão marcados dentro do texto, os sujeitos responsáveis por certas
posições defendidas dentro de um texto.
Pinto (1999) acrescenta a esta discussão um outro ponto de vista a cerca da composição dos sujeitos presentes no
discurso e postula a existência de três tipos de sujeitos, assumindo o eu e o tu como vozes sociais ideológicas, são eles o sujeito
do enunciado, sujeito da enunciação e sujeito falado. Essa classificação dos sujeitos contempla os diversos papéis em jogo na
cena enunciativa, ou seja, os diferentes posicionamentos que podem ser assumidos dentro do discurso, sem privilegiar um ou
outro.
O sujeito do enunciado é definido pelo autor como o “eu” que se marca como responsável pelo enunciado e é também
chamado de narrador, emissor ou locutor, dependendo do tipo de texto em que está inserido. O sujeito do enunciado é
classificado como um personagem que age no texto assim como outros personagens. Não se confunde com o autor empírico,
por ser uma entidade discursiva e não real. Trata-se de uma representação que, em certos casos, pode coincidir com esse autor
empírico.
A relação entre o “eu” e o “tu” está no cerne do sujeito da enunciação também chamado de enunciador, que é definido
como a imagem que o emissor faz de si e a imagem que faz do mundo. Diz respeito à relação entre o lugar enunciativo proposto
pelo “eu” a si mesmo e o universo de discurso em jogo.

811
Existe ainda o sujeito falado, que se trata da imagem ou lugar enunciativo proposto àquele a quem o enunciado é
dirigido, em outras palavras, pode ser definido como o lugar que o co-enunciador assume ao se identificar com os enunciadores
que lhe foram atribuídos pelo emissor. Esse sujeito está relacionado com o momento de consumo que também está presente no
texto através da relação de reconhecimento que o destinatário estabelece com os personagens que o emissor traz à cena
enunciativa.

Os três tipos de sujeitos assim definidos, os do enunciado, o da enunciação e o falado, nada mais são do
que uma forma cômoda de se explicitar os diferentes posicionamentos, posições, lugares ou mesmo
discursos, que tecem se tecem nos textos, apoiando-se ou opondo-se entre si. (PINTO, 1999, p. 32)

Trabalhar com a multiplicidade de sujeitos é de grande importância para o entendimento das imagens construídas
discursivamente que somadas a outros fatores proporão um sentido no processo de produção dos discursos. Através dos
processos de circulação e consumo essas imagens poderão ou não conformar o sentido proposto. Conhecer os sujeitos
presentes na cena discursiva é ter acesso às instâncias que mobilizam a língua para a construção dos sentidos.
Tomando como bases os sujeitos presentes na cena discursiva passaremos a analisar a constituição das vozes
presentes nos editoriais dos jornais Folha de São Paulo, Correio Braziliense e O Globo.

3. A implantação da televisão digital na mídia impressa

Os editoriais tem como característica principal revelar o posicionamento do jornal em relação à determinado assunto.
Dessa forma convocam outras vozes para lhes dar sustentação, seja para refutá-las ou reforçá-las. No caso da cobertura da
escolha do padrão de televisão digital que está sendo implantado no Brasil, veremos que os editoriais de O Globo, Folha de São
Paulo e Correio Braziliense constroem seus discursos de maneira bem diferente, revelando posicionamentos por vezes
contrários.
A análise deste trabalho se baseia nos editoriais de janeiro a julho de 2006, período em que o jornal O Globo publicou
um editorial a respeito do tema, a Folha de São Paulo publicou dois editoriais e o Correio Braziliense não dedicou nenhum
editorial ao tema.
O jornal O Globo, pertencente a um dos maiores conglomerados de comunicação do país, as Organizações Globo,
publicou seu editorial no dia seguinte ao anúncio presidencial da escolha do padrão japonês como base para o sistema
brasileiro, no dia 30 de junho de 2006. O título “Rumo certo” marca a primeira tomada de posição de um enunciador dentro do
texto, que assim como o governo Luiz Inácio Lula da Silva acredita que o padrão japonês é o melhor para o cenário brasileiro.
Um enunciador convoca no início do texto uma voz institucional, ou seja, baseia-se na assinatura do decreto para
começar a emitir juízos de valor a respeito da medida. Ao enunciar que “o país optou pelo melhor” O Globo projeta uma imagem
de si ligada aos interesses das emissoras de televisão, mais especificamente da Globo. E partindo desse ponto argumenta sobre
a supremacia da tecnologia japonesa em relação aos interesses da indústria televisiva em detrimento da americana e da
europeia. “Era crucial manter características básicas da TV no Brasil: ser aberta, portanto acessível a todos, e gratuita.[...] Seria
um retrocesso histórico elitizar a TV brasileira”.

812
O uso das palavras crucial e retrocesso marcam um enunciador com opiniões claras a favor do padrão japonês. Esse
fato é evidenciado durante todo o texto, inclusive quando esse enunciador se coloca contra um padrão nacional. “Era uma meta
megalomaníaca e dessintonizada da realidade”.
Ao trazer dados sobre os consórcios criados e os investimentos feitos em pesquisa sobre televisão digital no Brasil, um
enunciador primeiro desqualifica a ideia brasileira para em seguida falar que pelo menos serviu como moeda de negociação.
Em momento algum os enunciadores de O Globo dão voz à sociedade civil, aos empresários da indústria de
eletroeletrônicos ou às entidades a favor da democratização da comunicação. Todos os atores e falas trazidos são orquestrados
de maneira a ressaltar as qualidades do padrão japonês e desqualificar qualquer outra opção diferente dessa, seja ela um
padrão nacional ou internacional.
O jornal Folha de São Paulo dedica dois de seus editoriais no período de janeiro a junho de 2006 para tratar do tema
da implantação da TV digital no Brasil. O primeiro no dia 12 de março e o segundo cerca de um mês depois. Em ambos um
enunciador se coloca contra a decisão governamental pelo padrão japonês.
No editorial de 12 de março um enunciador critica o então ministro das comunicações Hélio Costa, fazendo duras
críticas contra ele. “Hélio Costa (PMDB – MG) não escondeu sua preferência por um dos padrões, quando seu papel seria o de
árbitro da disputa, a fim de maximizar concessões a favor do país, de seus cidadãos e de suas indústrias. Distanciando-se da
sua condição de autoridade pública e aproximando-se do lobby comportou-se como defensor dos interesses das redes de TV”.
As críticas continuam quando um enunciador põe em dúvida a veracidade das informações divulgadas pelo ministro
sobre a negociação com os japoneses que incluíam uma fábrica de semicondutores.
Um enunciador também chama atenção para a convergência tecnológica, fator gerador de conflitos entre empresas de
radiodifusão e empresas de telecomunicações, por exemplo, finalizando com um posicionamento próximo ao do seu público que
considera mais importante a democratização da comunicação e um uso mais racional do espectro, pontos mais importantes que
a disputa entre os padrões e a briga entre os setores comerciais envolvidos.
Com o título “Impressões digitais” um enunciador na Folha de São Paulo marca seu posicionamento frente à questão,
ou seja, contra o ministro Hélio Costa, contra a briga entre os padrões e entre emissoras e empresas de telecomunicações e a
favor de uma comunicação mais justa e com melhor uso do espectro.
No editorial de 16 de abril de 2006 a assinatura de um acordo entre Brasil e Japão com a presença de três ministros no
Japão provoca ainda mais especulações acerca do padrão que será adotado no Brasil, sendo quase certa a escolha do padrão
japonês, e serve de mote para que um enunciador na Folha se posicione novamente contra a escolha governamental.
Esse enunciador utiliza a expressão “pressa na escolha” para revelar que o essencial para ele não foi resolvido, ou
seja, não houve a definição do modelo de negócios que será praticado no país com a televisão digital. A pressa é justificada
ainda pela pressão das emissoras de televisão e a disputa com as companhias telefônicas.
Sugestões são feitas por um enunciador que acredita que ainda existem muitas questões a serem definidas antes da
escolha tecnológica como as contrapartidas do país fornecedor do padrão e a redefinição do marco regulatório do setor de
radiodifusão.
A Folha de São Paulo propõe uma imagem coerente de si que se mantém nos dois editoriais, posicionando-se: contra
o ministro Hélio Costa, contra a pressa na escolha, contra as pressões de emissoras e empresas de telefonia, contra a briga
estritamente tecnológica, a favor da democratização da comunicação e de um melhor uso do espectro.

813
Em Brasília, o jornal Correio Braziliense optou por não posicionar-se sobre o assunto, silenciando todo o processo de
implantação da televisão digital no Brasil nos seus editoriais.

4. Considerações Finais

Utilizando como método a análise de discursos pudemos perceber as vozes convocadas e silenciadas nos editoriais
dos três jornais escolhidos. No Rio de Janeiro, o posicionamento de O Globo está ligado aos interesses das emissoras de
televisão, possivelmente por sua ligação com a Rede Globo. Em São Paulo, a postura do Jornal Folha de São Paulo procura
aliar-se aos interesses do público e das entidades que lutam pela democratização da comunicação, criticando a postura do
ministro das comunicações à época e a pressa na tomada de decisão. O Correio Braziliense não opinou nem deu voz aos atores
envolvidos no processo.
A estratégia utilizada por cada jornal para lidar com o tema leva em consideração muitos aspectos, como o contexto
situacional, as relações que o jornal mantém com o âmbito político, as disputas entre os interesses do setor jornalístico e o setor
comercial das empresas de comunicação, etc. Ao convocar certas vozes e excluir outras há um embate entre as diferentes
esferas para que sejam propostos sentidos. Portanto, o contexto interfere diretamente no sentido proposto no processo de
produção.
Em relação às heterogeneidades, fica claro que mesmo em um texto opinativo, onde o emissor expõe seu ponto de
vista, ele necessita trazer para a cena enunciativa vários enunciadores. São essas diversas vozes que darão sustentação ao
discurso do jornal em questão.
A análise discursiva e comparativa foi o método encontrado para perceber as peculiaridades de cada suporte,
observando como constroem sua própria imagem e como propõem a imagem dos seus leitores. Dessa forma pudemos perceber
que a implantação da televisão digital no Brasil foi abordada de maneira diferente em São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro,
havendo uma alternância de vozes e silenciamentos dos variados atores que participaram desse processo.

5. Referências

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). In Cadernos de Estudos Lingüísticos(19), Campinas,


jul/dez.1990.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia de Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC,
1992.

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In Problemas da Lingüística Geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989.

PINTO, Milton José. Comunicação e discurso - Introdução à análise de discursos. São Paulo, Hacker Editores,1999.

Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialista em Comunicação e Linguagem pela
mesma instituição, atuando principalmente nos seguintes temas: discurso e tv digital. Mestranda no programa de Letras da UFPI
e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí – FAPEPI. Email: denisemariamoura@hotmail.com

814
A interpretabilidade e a transgressão de espaços entre
gêneros de natureza diversa

MADEIRA, Ana Maria Gini


(PBH-MG/UFMG)
MARTINS, Ana Lúcia M. R. Poltronieri
(UERJ-FAPERJ)

1- Sobre os atos de linguagem e as condições de êxito

De acordo com Bakhtin em Estética da criação verbal, os enunciados dispõem de uma forma relativamente
estável, eles se agrupam em subconjuntos dos conjuntos maiores. Ainda segundo o autor, essas formas se introduzem na
nossa consciência de onde são resgatadas no ato da comunicação e reconhecidas pelos interlocutores, que deverão se
posicionar adequadamente em relação a elas. Para Maingueneau, (2002:59) “todo texto pertence a uma categoria de
discurso, a um gênero de discurso que se configura como um dispositivo de comunicação que depende de certas condições
sócio-históricas para existir”. Por se tratar de uma terminologia ainda não criteriosamente estabelecida pelos teóricos que
dela se ocupam, Maingueneau chama atenção para a sua abordagem em relação a essa terminologia. No seu entender, os
gêneros de discurso pertencem a diversos tipos de discurso ligados a vários setores de atividade social. Considerando os
textos de que trataremos neste trabalho, isto é, o texto jornalístico e o texto publicitário, veiculados na mídia impressa, estes
serão enquadrados como pertencentes ao tipo de discurso da imprensa escrita, que, por sua vez, faz parte de um conjunto
mais amplo que é o do tipo de discurso midiático.
De acordo com os estudos da Semiolinguística, propostos por Charaudeau, todo gênero textual está submetido a
um contrato comunicacional, isto é, a “um conjunto de condições”, também chamadas condições de produção e “segundo
as quais todo ato de comunicação se realiza. É o contrato que permite que os parceiros da troca linguageira se
reconheçam” (tradução nossa) (Charaudeau, 2002:140-141). Em abordagem semelhante, Maingueneau (2002: 65-68)
afirma que os atos de linguagem, e assim os gêneros do discurso, estão submetidos a um conjunto de condições de êxito,
entre as quais o autor cita como relevantes: a finalidade do ato, o estatuto de parceiros legítimos, o lugar e o momento
legítimos, um suporte material, uma organização textual. A abordagem do material a ser analisado será feita sob estes dois
aspectos: os gêneros de discurso e as condições de êxito.

2- Gêneros e a transgressão de espaços

Os textos em questão foram publicados no jornal Estado de Minas, veículo da mídia impressa que circula no
estado de Minas Gerais. Dois deles tratam de fatos do noticiário nacional. Sob os títulos Revisão do direito de herança e
Filho de deputado desaparece em rio, são noticiados, respectivamente, o projeto de lei que amplia os direitos de herança
dos companheiros em união estável e o desaparecimento de Pedro Yamaguchi Ferreira, de 27 anos, filho do deputado
federal Paulo Ferreira. A separar o espaço de cada desses textos há um traçado jornalisticamente denominado “fio”, uma
vez que ambos se encontram lado a lado na parte inferior da página. O terceiro texto, de caráter publicitário, divulga a
promoção de um importante centro comercial da cidade de Belo Horizonte para o Dia dos Namorados.

815
Em Discurso das Mídias (2006), ao tratar do gênero “notícia”, Charaudeau considera que “não há captura da
realidade que não passe pelo filtro de um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um
fragmento do real” (CHARAUDEAU, 2006:131). No entender do teórico, “o acontecimento não significa em si”, mas só
“enquanto colocado em discurso” (ibidem). Por essa razão, o autor propõe que o termo “notícia” denomine “um conjunto de
informações que se relaciona a um mesmo espaço temático, tendo um caráter de novidade proveniente de uma
determinada fonte e podendo ser diversamente tratado.” (ibidem, p. 132). Trata-se então a notícia de um minirrelato de um
acontecimento ou fato que se inscreve no domínio do espaço público. Tais considerações nos permitem reconhecer os dois
primeiros textos citados como pertencentes ao gênero “notícia”.
Com relação ao texto publicitário, recorremos às considerações de Claude Chabrol e Patrick Charaudeau em
artigo publicado em 1989, no qual tratam do discurso publicitário. Os autores lembram que “toda encenação linguageira está
sujeita a restrições e, em particular, às do contrato comunicacional por meio das quais os parceiros se encontram ligados”
(tradução nossa) (CHABROL; CHARAUDEAU, 1989:153). Assim, “em se tratando do discurso publicitário, o contrato coloca
o sujeito comunicante numa situação de fazer uma incitação face ao sujeito destinatário” (ibidem). Dessa forma, “a
mensagem publicitária é levada a encenar um discurso de sedução-persuasão na esperança de provocar um certo
comportamento do receptor” (ibidem). Não é outra coisa que se verifica no terceiro texto citado- o publicitário. No que se
refere às condições de êxito a que estão submetidos os gêneros do discurso, buscaremos estabelecer a relação entre
aquelas citadas acima e os textos em questão.
Considerados isoladamente, tanto as notícias quanto o texto publicitário de que estamos aqui tratando parecem
atender às condições propostas por Maingueneau. Enquanto as notícias cumprem a finalidade de informar algo novo, a
publicidade se utiliza de estratégias para seduzir o leitor e levá-lo a consumir o produto oferecido.
Quanto à legitimidade dos parceiros e à adequação do lugar e momento da enunciação desses atos, confirma-se
o esperado: todos têm como suporte as páginas de um veículo de comunicação da mídia impressa; além disso, os
enunciadores, jornalistas e publicitários, ocupam adequadamente o seu lugar de palavra, demonstrando contar com um co-
enunciador capaz de garantir o sucesso pretendido (ou esperado) da enunciação. Também o suporte material- as páginas
de um jornal impresso- se justifica como adequado à veiculação das notícias por meio de palavras e do texto publicitário,
que é, neste caso, constituído de palavras e imagens.
Para Maingueneau (2002: 68), os gêneros de discurso estão associados a uma certa organização textual e é
necessário que, para dominá-los, os enunciadores tenham uma consciência mais ou menos clara dos modos de
encadeamento dos constituintes de cada gênero. E é nesse aspecto que os enunciados aqui tratados se revelam estranhos
ao esperado e ao previamente estabelecido. Cumpre observar que tal “estranheza”, aqui associada à organização textual,
interage com as demais “condições de êxito”. Isso porque uma notícia publicada em um jornal impresso será comumente
constituída de um texto verbal com a possibilidade de uma foto que ilustre o fato reportado, resultando em um enunciado
único que deverá ser apreendido pelo co-enunciador. Já para o texto publicitário, a expectativa é de que o co-enunciador
seja abordado e seduzido por um conjunto formado por um texto verbal e icônico que, convivendo muitas vezes com outros
gêneros de discurso, seja reconhecido em sua individualidade. Nesta propaganda, especificamente, adicionada ao texto
verbal, há a ilustração de dois pares de sandálias que remetem a um dos brindes oferecidos pelo anunciante ao
consumidor.
O que ocorre na página do jornal em questão é que o leitor tem a sua frente, como foi dito anteriormente, duas
notícias e mais o texto publicitário; porém, ao contrário do que se pode esperar, os três textos não se apresentam ao leitor
guardando a sua individualidade genérica, isso porque o texto icônico, os pares de sandália acima citados, estão colocados
no espaço de cada uma das notícias, o que se configura como uma estratégia do enunciador na qual se caracteriza o

816
fenômeno da transgressão. As imagens que deveriam ser relativas ao assunto das notícias são, na verdade, uma parte do
texto publicitário que se desloca do seu espaço previsto.
Neste caso específico, uma vez que não é a única ocorrência registrada do quanto pode ousar o texto publicitário,
cria-se para o leitor uma possibilidade de leitura que pode ser considerada como infeliz, uma vez que na notícia que trata do
desaparecimento de um homem após ser visto nadando em um rio, tais sandálias podem ser “lidas” como sendo a imagem
de uma pista deixada pelo desaparecido. Outra consideração que pode ser aqui feita refere-se ao grau de sucesso
alcançado pelo texto publicitário. Retornando a Maingueneau, o teórico alerta para a diversidade de maneiras de apreensão
dos gêneros do discurso. No que se refere ao jornal impresso, Maingueneau faz referência a pelo menos duas durações
distintas de leitura: pode ser feito, num primeiro momento, um simples levantamento dos elementos destacados em negrito
e em maiúsculas, como títulos e manchetes e, posteriormente, a leitura integral das informações veiculadas. Sendo assim,
em que momento da leitura terá o leitor percebido que as imagens presentes nas notícias eram na verdade uma parte do
texto publicitário? Terá ele, o leitor, tomado consciência do todo da propaganda, ou terá ela (a propaganda) passado
despercebida, não obtendo assim o efeito desejado pelo anunciante?

3- A Abdução e o processo de interpretação

De acordo com a Semiótica de linha peirceana, todo o conhecimento que temos do mundo é fruto de uma rede de
complexas operações que são conhecidas como inferências. Apesar de o ser humano não se dar conta desse processo na
leitura dos diferentes tipos de signos- verbais e não verbais - que o cercam no cotidiano, as inferências são mediadas por
um raciocínio, afastando-se, assim, da ideia simplificadora de que a inferência é um processo advindo da intuição.
Segundo Charles Sanders Peirce, semioticista e pragmático norte- americano do século XX, o processo
inferencial constitui-se de três passos: um caso (causa), um resultado (a consequência, o efeito) e uma regra, que liga a
causa a um resultado. Talvez o mais famoso exemplo de processo inferencial que apresenta os três passos seja o
provérbio “Onde há fumaça, há fogo”, no qual o item lexical “fogo” é o caso, a “fumaça” é o resultado, e a regra é o próprio
provérbio. Esses passos são conhecidos pelo problema dos feijões brancos formulados por Peirce, para explicar os tipos
de inferência que produzimos: a dedução, a indução e a abdução. De acordo com Eco (1999: 198), a fórmula de Peirce é a
seguinte:

Regra = Todos os feijões que provêm deste saco são brancos.


Caso = Estes feijões provêm deste saco.
Resultado = Estes feijões são brancos

A fórmula apresentada por Peirce é, na verdade, um exemplo de raciocínio por dedução, visto que não mostra
nada diferente daquilo que já sabíamos inicialmente, ou seja, que os feijões do saco eram brancos.
Já a indução revela-se por meio de um raciocínio experimental. Nesse sentido, para o problema dos feijões de
Peirce, só teremos certeza de que todos os feijões do saco são brancos quando retirarmos todos os grãos de feijão do
saco. Entre o primeiro grão de feijão branco e o último, temos só uma hipótese de que o próximo feijão será branco. O
raciocínio indutivo é passível de erro, pois, podem aparecer variáveis qualitativas (o saco não tem só feijão branco) ou
quantitativas (o número de grãos é diferente daquele do rótulo). Segundo Volli (2007: 160), a fórmula da indução para o
problema do feijão branco de Peirce seria:

817
Caso = Estes feijões provêm deste saco.
Resultado = Estes feijões são brancos.
Regra = Todos os feijões deste saco são brancos (talvez)

O raciocínio por abdução, ou hipóteses, revela-se bem mais complexo. De acordo com Peirce, a abdução
controla o raciocínio e a percepção humanos. Para Volli (2007: 161), “a abdução é um raciocínio de risco porque implica
um salto lógico ousado”, porque “toda vez que formulamos uma hipótese, fazemos uma aposta” (ibidem). É a regra que nos
mostra Volli (2007: 161) para o problema dos feijões de Peirce, partindo do pressuposto de que em um cômodo só havia
uma mesa e que, sobre ela, estava um saco e também um punhado de feijões brancos:

1-Resultado = Estes feijões são brancos


2-Regra = Todos os feijões que provêm deste saco são brancos.
3-Caso = Estes feijões provêm deste saco.

Note-se que na regra anterior, que formula a abdução, há o problema da causalidade, porquanto nada é realmente
comprovado. Somente iremos saber se os feijões provenientes daquele saco são realmente feijões brancos (o resultado (1))
se pudermos validar a regra (2), ou seja, que o saco contenha somente feijões brancos e também o caso (3)- que eles
vieram daquele saco. Mas, como bem disse Volli (2007) e Eco & Sebeok (2008), a abdução é o campo da hipótese e da
incerteza. Tendo como ponto de partida a teoria de Peirce, Eco (1999) concebe que o processo de interpretação por
abdução constitui-se, na verdade, de quatro tipos. A seguir, veremos as características desses quatro tipos e de que modo
eles interferem no processo de interpretação de um texto no qual o signo verbal entremeia-se com um tipo de signo não
verbal, que, nesse caso, é a imagem.

4- Os quatro tipos de abdução de Eco e análise do texto “Filho de deputado desaparece em rio”

Baseando-se na regra de abdução desenvolvida por Peirce, Umberto Eco (1999), semioticista italiano, desenvolve
quatro tipos de abdução que, para ele, estão em jogo no processo de interpretação: hipótese ou abdução hipercodificada,
abdução hipocodificada, abdução criativa e metabdução.
A abdução hipercodificada ou hipótese se constitui em reconhecer uma lei (legissigno) por meio de uma
ocorrência (token). Normalmente, esse trabalho de interpretação é realizado automaticamente. Eco nos dá um exemplo de
abdução hipercodificada quando Peirce viaja à Turquia e encontra o homem do baldaquim. Porque conhecia a regra geral
segundo a qual um homem de baldaquim, na Turquia, só poderia ter um cargo de autoridade, ele inferiu, por abdução
hipercodificada, que aquele homem de baldaquim era uma autoridade. Nesse exemplo, o homem representa um caso
daquela regra.
De acordo com Eco (1999: 202), a abdução hipocodificada visa selecionar uma regra “dentre uma série de regras
equiprováveis postas à nossa disposição pelo conhecimento corrente do mundo (ou enciclopédia semiótica, cf.Eco, 1979)”.
Assim, selecionar-se-á a regra que seja mais plausível, porém sem a certeza de que ela seja a correta. Quando Peirce
infere que aquele homem de baldaquim, uma autoridade, poderia ser o governador da província, ele está fazendo uso de
uma abdução hipocodificada, porque infere uma hipótese dentre muitas outras hipóteses (por que não pertencer a um outro
cargo no conjunto de autoridades turcas?).
O terceiro tipo de abdução é a criativa. Segundo Eco (1999), a abdução criativa é aquela que acontece nas
descobertas científicas. A palavra – núcleo desse tipo de abdução - é a invenção. Todo processo de abdução criativa passa

818
pela incerteza, pois só há previsões. Para Eco (ibidem: 203) “esse tipo de invenção obriga-nos (mais do que nos casos de
abdução hiper ou hipocodificada) a realizar uma metabdução”, que é o último tipo de abdução desenvolvido por Eco (1999).
A metabdução é o estágio no qual se verifica se as abduções de primeiro nível (hiper e hipocodificadas) são
coincidentes com aquelas advindas de nossa experiência semiótica comum, ou seja, com o conhecimento de mundo. Se
coincidentes, as abduções são reconhecidas como válidas. Em um segundo momento, deve-se verificar se estamos diante
de metabduções que realmente são pertinentes aos resultados daquela ocorrência (token). Para Eco (1999), as
metabduções explicam as descobertas científicas e a dinâmica das estórias de investigação criminal.
O reconhecimento dos tipos de abdução nos conduz à análise do texto “Filho de deputado desaparece em rio”, um
dos corpus deste trabalho. Como já foi dito, há uma estranheza em relação à organização textual, visto que, no corpo da
notícia, pertencente ao gênero jornalístico, aparece um par de sandálias que, na verdade, advém de um outro gênero
discursivo, com características sui generis, que é o discurso publicitário. Além disso, a sandália representa-se por meio de
um signo não verbal, a imagem.
Partindo do princípio de que o processo de abdução está presente em toda e qualquer interpretação, seja de signo
verbal, seja de não verbal, considerar-se-á que o texto só é visto como um signo se as marcas que o representam são
reconhecidas na sociedade em que ele circula. Desse modo, o reconhecimento de um gênero de discurso pelos leitores,
que Volli (2007, 165) denomina “competência intertextual”, é fruto do contato que ele (leitor) tem com textos advindos de
diferentes gêneros textuais. Entende-se, assim, que o leitor de o Estado de Minas seja capaz de reconhecer que a notícia
sobre o desaparecimento do filho do deputado não seja parte de uma publicidade ou de um classificado, pois, todo e
qualquer gênero contém traços icônicos, isto é, traços identificadores. Segundo Simões (2010), o texto tem marcas que o
caracterizam em função de sua iconicidade. A nosso ver, a iconicidade diagramática (SIMÕES, 2009) é a primeira marca
que chama a atenção do leitor. Segundo Simões (2009: 83), “a iconicidade diagramática se manifesta tanto no nível gráfico
ou design textual como nas relações sintagmática e paradigmática”. O texto “Filho de deputado desaparece em rio”
constitui-se de duas colunas, uma ao lado da outra, que, tradicionalmente, caracteriza o nível gráfico do gênero “notícia de
jornal” . Para Simões (2009: 85), a “distribuição das ideias no parágrafo, distribuição destes na página” e o caderno em que
o texto foi inserido (policial, moda, economia) serão marcas para um leitor profícuo de jornal que revelam, por abdução
hipercodificada (ECO, 1999), que ele (leitor) está diante de um texto jornalístico, de uma “lei codificada” (ibidem), ou seja, de
um caso dentro da regra do universo dos gêneros textuais.
E a imagem das sandálias no texto jornalístico? Sabemos que essa imagem resulta de uma transgressão de
espaços de gêneros diferentes, o jornalístico e o publicitário, visto que as sandálias são parte de uma propaganda. O leitor
do jornal Estado de Minas impresso ainda tenha talvez a chance de desfocar os olhos do texto sobre o desaparecimento do
filho do deputado e perceber que aquelas imagens de sandálias no texto são parte da publicidade ao lado, permitindo,
assim, uma outra inferência por abdução hipercodificada. Já o leitor on-line não terá essa chance. A leitura on-line do
Estado de Minas dá-se por direcionamento e única focalização. Clica-se no título da notícia e, consequentemente, somente
ela estará em foco. Há, portanto, uma espécie de apagamento dos textos que circundam a notícia em foco de leitura. Esta
disposição on-line apresenta-se “perigosa” para o percurso de leitura desejado pelo autor-modelo do texto. No caso do texto
analisado do nosso corpus, em versão on-line, o leitor se vê a fazer abduções hipercodificadas, pois inúmeros itens e
expressões lexicais agem icônico e indicialmente com a imagem das sandálias no texto. Temos na categoria dos indiciais:
“desaparecido”, “nadar”, “tomar banho”, “não retornou para casa”, “não deixou informações sobre o paradeiro”; e nos
icônicos temos a expressão “experiência missionária” que infere, por abdução hipercodificada e hipocodificada, que o
desaparecido era um missionário e, por causa disso, só andava de sandálias (essa leitura foi a hipótese de muitos leitores a
quem mostramos o texto). Percebe-se, claramente, que o leitor começa a fazer abduções criativas , isto é, suas invenções

819
em relação ao resultado, como: Teria o filho do deputado retirado a sua vestimenta, inclusive as sandálias, para tomar
banho de rio? Pedro teria deixado as sandálias como uma pista para encontrá-lo? A equipe de buscas encontrou somente
as sandálias de Pedro, mas onde ele estaria? Todas essas inferências por meio de abduções criativas podem mudar o
percurso de leitura a partir do momento que o leitor reconhece essas inferências como válidas para a sua leitura do texto.
Estas inferências são as metabduções, porque são sustentadas pela nossa experiência semiótica comum: “quem toma
banho de rio não vai de sandália”; “uma sandália sem dono é indício de que alguém esteve por ali”; “se há sandália na beira
de um rio, há dono”; entre outras.
Os tipos de raciocínio que sustentam a interpretação de um texto possibilitam-nos pensar que os signos verbais e
não verbais podem ter uma dupla face: uma que nos leva a uma leitura reconhecida pelo autor- modelo, e outra, que
superficialmente parece correta, mas que, ao final, é uma leitura desorientadora.

Conclusão

Por meio deste trabalho, quisemos chamar a atenção para um fato que está ocorrendo quase cotidianamente na
mídia impressa do Brasil: a transgressão de espaços entre gêneros de natureza diferente. Essa transgressão não é de
modo algum sem consequência para o processo de interpretação, como comprovam, neste trabalho, a Análise do Discurso
de linha francesa e as teorias semióticas baseadas na Semiótica de Peirce. Desse modo, compreende-se por que
Marcuschi (2008:155) defende a posição de que “os gêneros são formas textuais escritas ou orais bastante estáveis,
histórica e socialmente situadas” (grifo nosso). Essa estabilidade é a própria gênese do gênero, que constitui uma marca,
espécie de RG (carteira de identidade) que condiciona as escolhas no sistema da língua em diferentes níveis, do léxico
(espaço do sintático, semântico e semiótico) ao discurso.

Referências:

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-263.

CHABROL, Claude; CHARAUDEAU, Patrick. Lecteurs cibles et destinataires vises. A propos de l’argumentation
publicitaire. In: Versus- Quaderno di studi semiotici. N.52-53, janeiro-maio, 1989. Universidade de Turim.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Editora Contexto, 2006.

ECO, Umberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999.

--------; SEBEOK, Thomas A. O signo de três. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2002.

SIMÕES, Darcilia M. Pinto. Iconicidade verbal: teoria e prática. Rio de Janeiro: Dialogarts- UERJ, 2009.

VOLLI, Ugo. Manual de Semiótica. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

820
Ana Lúcia Monteiro Ramalho Poltronieri Martins- graduou-se em Letras (Português- Francês) pela Faculdade de
Filosofia de Campos- RJ (1986) e fez mestrado em Letras na PUC-MG (2000). Atualmente é doutoranda em Letras e
professora- substituta na UERJ, onde faz parte do grupo de pesquisa SELEPROT (Semiótica, leitura e produção de textos).
Suas pesquisas no doutorado são financiadas pelo órgão de pesquisa FAPERJ. E- mail: anapoltronieri@hotmail.com
Ana Maria Gini Madeira- graduou-se em Letras pela UFF (1972) e fez mestrado em Letras na UFMG (2005). É
professora aposentada da PBH-MG. Atualmente exerce o ofício de revisora de textos e tradutora. E-mail:
anagini@task.com.br

821
ANEXO 1

822
ANEXO 2

823
ANEXO 3

824
Análise do discurso (AD) sobre produtos de origem vegetal
orgânica (a trajetória acadêmica do discente de
agroecologia do Colégio Técnico da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro)

MAGIOLI, Tatiana
(CTUR-UFRRJ)

1. INTRODUÇÃO

Resultado inevitável de uma sociedade que caminha para um mundo mais dinâmico e tecnológico, a cada dia
surgem novas máquinas, novos produtos. Essa evolução conduz, de certo, o homem a desequilíbrios, inclusive alimentares.
A economia, sobretudo de tempo, leva o ser humano a optar por fast-foods, pois não há tempo, nem espaço para o preparo
de seu próprio alimento, principalmente, de forma saudável. A qualidade de vida e de alimentação tem sido deixada de lado
em detrimento da dinâmica imposta por um cotidiano que se faz cada fez mais efêmero.
Pensando no que os jovens estão comendo, e tentado avaliar o conhecimento deles a respeito da qualidade de
vida, especificando a alimentação saudável, levanta-se o questionamento: o jovem do século XXI e, mais
especificadamente, os estudantes de Agropecuária Orgânica do Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro – CTUR - sabem o que é um produto orgânico e seus benefícios para uma alimentação saudável?
Este projeto tem a intenção de mostrar, além de outras descobertas, que os produtos orgânicos representam um
avanço qualitativo para a sociedade, no que diz respeito à formação de hábitos alimentares saudáveis, mostrando seus
benefícios e sua adequação a uma vida mais duradoura e produtiva e, também, mostrar que os alunos do Curso Técnico
em Agropecuária Orgânica devem ser pioneiros nesse incentivo a uma alimentação saudável e livre de agrotóxicos e
fertilizantes químicos.
Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, produtos orgânicos são os alimentos produzidos
sem a utilização de fertilizantes sintéticos, solúveis, agrotóxicos e transgênicos. Logo seu consumo é mais seguro e
saudável. Contudo, produção orgânica, seja vegetal, seja animal, não está relacionada apenas à produção livre de qualquer
tipo de insumo (sementes híbridas, fertilizantes sintéticos e agrotóxicos), mas à responsabilidade social e ambiental que são
base para os princípios agroecológicos, bem como as corretas utilizações do ar, da água e do solo como recursos naturais
para o desenvolvimento da sustentabilidade em detrimento do desperdício.
Uma vez que a área de origem, da minha base acadêmica, é a área de Linguagem, trabalharei com a proposta de
Análise do Discurso, e este projeto vem levantar a hipótese de que o discurso do discente do Curso Técnico em
Agropecuária Orgânica - do CTUR - a respeito dos produtos orgânicos de origem vegetal, muda com o passar dos três anos
mínimos de estudo, devido às aulas teóricas e práticas que os mesmos têm durante o curso nesta instituição de ensino, a
qual valoriza esse tipo de produção agrícola.

825
2. Os benefícios de uma alimentação saudável

O desenvolvimento econômico traz consequências, muitas vezes, irreversíveis para a sociedade. Mudanças de
hábitos alimentares se incluem, certamente, nesse processo. O uso constante de uma alimentação baseada em altos
consumos calóricos produz, em médio prazo, um desastroso resultado na saúde da população. Nesse contexto, os jovens
se inscrevem como os mais afetados pela cultura alimentar baseada numa dieta pobre e de muitas calorias.
O conhecimento de produtos orgânicos é escasso entre a população, especialmente entre os jovens. Soma-se a
isso o fato de serem pouco divulgados na mídia e o mito de possuírem um preço elevado. Dessa forma sua aceitação e
credibilidade se mantêm num ponto entre o pouco conhecido e o quase desnecessário. Acredita-se que grande parte da
população não saiba definir um produto vegetal orgânico, muitas vezes confundindo-o com outras técnicas como os
hidropônicos, fato que se torna mais evidente pela ausência de alimentos orgânicos nas prateleiras dos mercados.
Este estudo foi idealizado por dois motivos. O primeiro é o de mostrar a verdadeira face dos produtos orgânicos de
origem vegetal, suas técnicas de plantio, manuseio, comercialização, enfim, tudo o que de fato torna um vegetal orgânico. O
segundo motivo, e esse mais relevante para o estudo, parte de uma averiguação para saber até que ponto os estudantes do
curso de Agropecuária Orgânica do CTUR não conhecem o produto orgânico e, por isso, ao ingressarem no curso, não
possuem um conhecimento mínimo do que seja esse tipo de produto e de todos os seus benefícios para uma alimentação
saudável.
O CTUR, ao longo de 10 anos, vem trabalhando com um enfoque nos orgânicos. Ao justificar o projeto, tem-se a
intenção de verificar até que ponto o CTUR consegue internalizar a ideia de consumo consciente para a mudança da práxis
desse aluno.

3. O progresso do discurso

Tem-se como objetivo geral deste trabalho, analisar o progresso do discurso do aluno, no que diz respeito ao
conhecimento sobre produtos orgânicos, ao longo de sua permanência no Curso Técnico de Agropecuária Orgânica.
Contudo, para que tal análise seja concluída será necessária a investigação sobre o conhecimento prévio do
aluno, que ingressa no CTUR, sobre a produção orgânica de vegetais. Posteriormente a essa investigação, analisar se
houve, por parte do aluno, aprendizagem ao final das disciplinas de Agropecuária Orgânica, à medida que vai tomando
conhecimento, ao longo do curso, do que é um produto orgânico. Por fim, verificar, também, a mudança de pensamento do
discente que se refletirá na transformação do discurso a respeito do que o mesmo pensa sobre o produto orgânico, no final
de sua formação acadêmica no curso de Agropecuária Orgânica.

4. O Colégio Técnico da UFRRJ

O Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – CTUR - é uma instituição de ensino técnico
em nível médio vinculado à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro situado às margens da BR – 465, antiga Rio –
São Paulo, Km 47, no município de Seropédica, Rio de Janeiro.

826
O CTUR foi criado pelo artigo 125 de seu estatuto, substituindo os antigos estabelecimentos de ensino: Colégio
Técnico Agrícola Ildefonso Simões Lopes e Colégio Técnico de Economia Doméstica.

Segundo Pamplona (2008), “O CTUR é fruto da junção, em 1973, de duas instituições: O Colégio Técnico de
Economia Doméstica (CTED) e o Colégio Técnico Agrícola Ildefonso Simões Lopes. No entanto, sua história começou como
Aprendizado Agrícola, em 1943”, logo completa neste ano de 2010, 67 anos.

O CTUR, em seu início, disponibilizava os cursos técnicos de nível médio de Agropecuária e o de Economia
Doméstica. Hoje, os cursos concomitantes ao Ensino Médio, no CTUR são Agropecuária Orgânica e Hotelaria. Tais cursos
têm a duração de 3 anos e conferem aos alunos o diploma de técnicos em suas referentes áreas.

5. Análise do Discurso

A Análise do Discurso (AD), segundo Maingueneau (1989), surgiu na década de 60 associada a uma tradicional
prática escolar francesa: a explicação de textos. Trata-se, portanto, de uma metodologia que valoriza a
interdisciplinaridade, criando pontes com diversas ciências.
“A linguagem é uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social e cuja encenação resulta de
vários componentes, cada um exigindo um “savoir-faire”, o que é chamado de competência. Uma competência situacional,
pois não há ato de linguagem que se produza fora de uma situação de comunicação” (Charaudeau, 2009). Para este
trabalho, a linguagem e a comunicação serão o próprio corpus para a análise do discurso.
A análise do discurso, para Orlandi (1996), é uma disciplina de entremeio que se estrutura no espaço que há entre
a lingüística e as ciências das formações sociais. A AD repensa e questiona conceitos contraditórios entre as duas
disciplinas, pois nos permite trabalhar em busca dos processos de produção do sentido e de suas determinações histórico-
sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na
existência de um sentido literal, já posto, e, nem mesmo, que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é
regida por condições de produção. A AD propõe um deslocamento das noções de linguagem e sujeito que se dá a partir de
um trabalho com a ideologia. Assim, passa-se a entender a linguagem enquanto produção social, considerando-se a
exterioridade como constitutiva.
Assim como para Charaudeau & Maingueneau (2004) prefere-se “associar a análise do discurso, sobretudo à
relação entre texto e contexto”. O sujeito, por sua vez, deixa de ser centro e origem do seu discurso para ser entendido
como uma construção polifônica, lugar de significação historicamente constituído.
Pêcheux (1995) diz que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem ideologia. Todo discurso pressupõe um
autor na sua materialidade, já que o sujeito, como constitutivo da linguagem, também se converte em sujeito-autor, e os
sujeitos-autores desta pesquisa serão discentes do curso de Agropecuária Orgânica, que participarão de questionamentos
para o levantamento de dados sobre a utilização de produtos vegetais orgânicos.
Ainda parafraseando Pêcheux (1988), o sentido de uma palavra não existe em si mesmo, só pode ser constituído
em referência às condições de produção de um determinado enunciado e muda de acordo com a formação ideológica de
quem o (re) produz, ou de quem o interpreta, logo, este estudo é, também, um espaço para analisar a proposta do discurso
elaborado por esse sujeito-autor.

827
A fim de analisar o aluno, como sujeito do discurso, serão feitas leituras, para embasamento teórico, focadas em
Charraudeau, Foucault, Maingueneau, Orlandi, Pêcheux, entre outros, autores que analisam o discurso.

6. A pesquisa em foco

A pesquisa terá como sujeito alunos do curso técnico agrícola, em especial, os alunos do Curso em Agropecuária
Orgânica do CTUR – Colégio Técnico da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, RJ.
Tal projeto tem como base o discurso do discente. O primeiro passo será dado a partir de entrevistas pré-
elaboradas com base em questionário, apenas para fazer uma triagem dos alunos que se propõem a colaborar, por livre-
vontade, com a pesquisa em questão visando investigar com que conhecimento sobre produtos orgânicos esse aluno chega
ao colégio.
Far-se-á uma pesquisa com alunos do CTUR que cursam o Ensino Técnico de Agropecuária Orgânica, e que, no
decorrer deste, vão aprendendo o que é um produto orgânico, como se produz, quais são as maiores dificuldades de
produção, entre outros aspectos.
Tal pesquisa se baseará em uma análise qualiquantitativa, pois há não só a necessidade de quantificar os alunos
que conhecem ou consomem o produto vegetal orgânico, mas também de qualificar as ideias desses alunos sobre tais
produtos, observando o compartilhamento das mesmas.
Para analisar o discurso, será utilizado o software QUALIQUANTISOFT, um programa de computador elaborado
por professores da USP. Tal software, utilizado como instrumento, facilitará a pesquisa, pois a mesma se baseia na análise
do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), que é a proposta do software.
A pesquisa pode ser caracterizada como qualiquantitativa, de cunho exploratório que se caracteriza como um
estudo de caso, uma vez que o universo e o sujeito da pesquisa serão delimitados.
O software, usado em pesquisas de opinião, consiste em analisar depoimentos provenientes de questões abertas,
agrupando os estratos dos depoimentos se sentidos semelhantes em discursos. Aproxima-se, então, do que Charaudeau
(2009) chama de “expectativa múltipla” do ato de linguagem, pois também dependerá do ponto de vista dos atores, no caso
os alunos do Curso de Agropecuária Orgânica, envolvidos no diálogo sobre os produtos orgânicos, que serão gerados a
partir de questionamentos, para posterior produção textual.
Em um número de ocasiões, deseja-se saber ou investigar o que pensa uma dada coletividade – o próprio grupo
dos alunos – sobre um dado tema: Os produtos vegetais orgânicos, como por exemplo:
• O que pensa ou sabe o discente iniciante, do Curso Técnico de Agropecuária Orgânica (CTUR), sobre
os produtos orgânicos;
• O que pensa ou sabe o discente mediano, do Curso Técnico de Agropecuária Orgânica (CTUR), sobre
os produtos orgânicos de origem vegetal;
• O que aprendeu o discente, em final do Curso Técnico de Agropecuária Orgânica (CTUR), sobre os
produtos orgânicos de origem vegetal.
A produção textual, cujo gênero escolhido é a dissertação-argumentativa, tenderá à hipótese de que o discente e
produtor dos textos, em início de curso, pouco sabe sobre os produtos orgânicos, contudo, ao final do curso, apresentará a
tese em defesa dos mesmos, tendo em vista todo o currículo estudado. Tal tese partirá de uma “razão demonstrativa
associada a uma razão persuasiva” (Charaudeau, 2009).

828
A persuasão não partirá de uma única ideia, mas de um conjunto semiolinguístico, porquanto, além dos textos
verbais, os alunos vivenciam o dia-a-dia da produção vegetal agrícola no colégio.
Com isso, o trabalho procura mostrar, através de uma pesquisa feita com o discurso do aluno (produção textual
oral e escrita), que, à medida que o mesmo vai avançando nos estudos e entrando em contato com os orgânicos, vai,
também, mudando sua opinião sobre o conhecimento e a importância desses produtos.

7. Referências

CHARAUDEAU, P. Linguagem e Discurso: modos de organização.São Paulo: Contexto, 2009.

CHARAUDEAU, P & MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

LEFEVRE F, LEFEVRE AMC. Apostila e software: Discurso do Sujeito Coletivo – Qualiquantisoft. São Paulo: 2010

MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1989.

MUSSALIM, f & BENTES, A.C.(org.) Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos, volume 3 – 2 ed. Pag. 353-
392. São Paulo: Cortez, 2005

PAMPLONA, Ronaldo M. As relações entre o Estado e a escola: um estudo sobre desenvolvimento da educação
profissional de nível médio no Brasil. – Dissertação de Mestrado UFRRJ/ PPGEA, 2008.

PASCHOAL, Adilson D. Produção Orgânica de Alimentos: Agricultura Sustentável para os séculos XX e XXI. São
Paulo: Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, USP: 1994.

PÊCHEUX, M (1988) Tradução brasileira de Eni Orlandi. Pêcheux M. O discurso: estrutura ou acontecimento. 3. ed.
Campinas, SP: Pontes, 2002.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do Óbvio. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.

ORLANDI, E. Interpretação. Petrópolis,RJ: Vozes, 1996.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 3ª edição, 2001.

Tatiana Souza Magioli é mestranda do PPGEA, Programa de Pós Graduação em Educação Agrícola da UFRRJ, com foco
no trabalho da Análise do Discurso dos alunos do Colégio Técnico da UFRRJ, onde leciona como professora substituta e é
professora assistente da Faculdade Machado de Assis (FAMA), em Santa Cruz.
Email de contato: tmagioli@ig.com.br

829
O papel argumentativo das metáforas em anúncios
publicitários

MAIA, Suelen Nunes


(UFF)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

É impossível interagir verbalmente a não ser por um texto e cada texto é particular em sua composição discursiva
e enunciativa. Essa visão defende a ideia de língua como uma atividade social, histórica e cognitiva, além de privilegiar sua
natureza funcional e interativa. É com esse olhar sobre a língua que se desenvolve essa pesquisa.
De acordo com Marcuschi (2003), “os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir
sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo”. A noção de gênero textual refere-se, portanto, a situações
materiais concretas do cotidiano que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica. Assim, quando se tem domínio de um gênero textual, não se dominam
estruturas linguísticas, mas uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares.
Com base na visão supracitada, decidiu-se trabalhar, nessa pesquisa, com o gênero publicidade pelo fato de
exercer uma influência muito forte na sociedade dos dias atuais, interferindo na formação de conceitos sociais e induzindo
mudanças de comportamento e mentalidade de seus co-enunciadores.
O foco desse trabalho encontra-se na aplicação do conceito de metáfora conceptual (LAKOFF e JOHNSON, 2002)
nos discursos publicitários de base metafórica. Segundo Lakoff e Johnson (2002:45), “nosso sistema conceptual ordinário,
em termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza”. Isso significa
que os conceitos que administram aquilo que pensamos não são simples questões da mente. Eles estruturam o que
percebemos, a maneira como nos comportamos e o modo como nos relacionamos com outras pessoas. Portanto, esse
sistema de conceitos exerce papel nuclear na definição da realidade cotidiana de qualquer indivíduo.
Assim, compreender o papel das metáforas na construção de textos publicitários é de fundamental relevância por
demonstrar que a metáfora não é um fenômeno de linguagem apenas, ou seja, um rebuscamento linguístico, sem qualquer
valor cognitivo. Ela transpassa o conceito de mero agente embelezador para fazer do texto publicitário um discurso
complexo e rico de sentidos, ao ser capaz de ativar diferentes sistemas cognitivos, criar novos conceitos ou resgatar
conceitos já existentes na sociedade.
Além disso, espera-se desmistificar a metáfora como sendo algo pertencente apenas ao mundo poético, distante
da realidade humana. Como será visto, o uso de metáforas é tão comum ao cotidiano humano que, muitas vezes, nem são
percebidas como tais.

830
2. ANÁLISE DO DISCURSO: TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA

A teoria semiolinguística tem como seu principal representante o francês Patrick Charaudeau. De acordo com os
seguidores dessa visão teórica, o discurso compara-se a um “jogo comunicativo” e o ato de linguagem a uma “encenação”,
no qual enunciador e interlocutor atuam construindo imagens, representando sujeitos sociais e discursivos. Para poder
interpretar um texto, é necessário saber quais os referentes desses sujeitos, ou seja, do “eu” e “tu” empregados no discurso.
Essa representação de sujeitos é denominada por Charaudeau de sujeitos do ato de linguagem.
O autor (2008:53) chama de circuito externo – esfera do FAZER - o meio no qual estão inseridos os sujeitos do
mundo real, os sujeitos sociais (eu-comunicante e tu-interpretante) e denomina circuito interno – esfera do DIZER - o
ambiente no qual atuam os sujeitos do discurso (eu-enunciador e tu-destinatário). O esquema seguinte ilustra a questão:

Sujeitos do mundo real – circuito externo

EU-COMUNICANTE TU-INTERPRETANTE

Quem fala ou escreve Quem ouve ou lê

Sujeitos do discurso – circuito interno

EU-ENUNCIADOR TU-DESTINATÁRIO

Imagem de si mesmo que o Imagem que o eu-comunicante


eu-comunicante pretende passar tem do tu-interpretante

Quadro 1
(Adaptado, pela autora, de CHARAUDEAU - 2008:52)

Além dos “eus” e “tus”, de acordo com Charaudeau, existem ainda os “eles”, que se referem a tudo aquilo de que
se fala, um “ça” (termo emprestado de Barthes, cf. OLIVEIRA, 2003:31), que é a noção de que, ao produzir um texto, não é
só o indivíduo produtor que fala, mas também “vozes sociais” incorporadas a ele, e um “on” (cf OLIVEIRA, 2003:32), uma
“voz do povo”, um sujeito coletivo que aparece em determinados textos.
Para que o ato comunicativo tenha êxito, segundo Charaudeau (2001), os sujeitos sociais devem possuir três
competências: a competência situacional, a competência discursiva e a competência semiolinguística.
A competência situacional refere-se à aptidão que o sujeito deve ter para produzir seu discurso em função das
circunstâncias da situação comunicativa. A competência discursiva é a capacidade de utilizar estratégias e recorrer a
relações intertextuais. A competência semiolinguística se subdivide em duas outras: a competência semântica, que
refere-se à aptidão para organizar os diferentes tipos de saberes e a competência linguística, que é a capacidade de
estruturar um texto, utilizar adequadamente o sistema da língua e o léxico.
Para a teoria semiolinguística, todo ato de fala está inserido numa situação comunicativa, da qual depende a
interpretação do mesmo. Esse fato permite a percepção da impossibilidade de se falar/escrever o que se quer, da forma
que se quer, no momento em que se quer etc., sem levar em conta as singularidades de cada atividade comunicativa. Os
atos de fala ocorreriam, portanto, orientados por certas restrições e liberdades que coordenam a “movimentação”

831
comunicativa de cada indivíduo. Esses limites linguísticos são estabelecidos por uma espécie de acordo entre os
participantes de uma atividade comunicativa. É o que Charaudeau (2008:56) denomina contrato de comunicação.
Ao falar ou escrever, o produtor possui uma meta e procura uma maneira de alcançá-la, ou seja, tem um projeto
de comunicação. Para que esse projeto tenha êxito, é necessário administrar bem as restrições e liberdades do contrato
de comunicação em que se insere.
Segundo a teoria semioliguística, o discurso está inserido numa relação entre os fatos de linguagem e outros
fenômenos psicológicos e sociais: a ação e a influência (CHARAUDEAU, 2005). Essa visão refere-se ao fenômeno da
construção psico-socio-linguageira do sentido, que é produzida por meio de um sujeito que também é psico-socio-
linguageiro.
Assim, o processo de semiotização do mundo apresenta, portanto, duas etapas: a primeira é o processo de
transformação, ou seja, um “mundo a significar” transforma-se em um “mundo significado” por meio de um sujeito falante; a
segunda é o processo da transação, isto é, o “mundo significado” torna-se objeto de troca entre o sujeito falante e um
outro sujeito destinatário deste objeto.
Para fazer uso das diferentes operações que articulam sentidos e formas, é necessário, segundo Charaudeau
(1995:12):

■ De um lado, mobilizar o sentido das palavras e suas regras de combinação. O sentido das palavras resulta de um
processo semântico-cognitivo de ordem categorial que consiste, dentro de um movimento centrípeto (que agrupa) de
estruturação do sentido, em atribuir às palavras traços distintivos, caracterizando-as, sendo dada a rede de relações na qual
eles se acham inseridos. Essa atividade classificatória determina as “instruções de sentido” descritivas e funcionais que se
prendem às palavras, segundo certo grau de “especificidade”, indicando que eles se prendem às palavras de maneira
própria, mas não exclusiva. Assim, mobilizando o sentido das palavras, o sujeito comunicante constrói um sentido que pode
ser denominado literal ou explícito. Esse é um sentido de língua que se mede segundo critérios de coesão. Esse processo
de ordem categorial que termina no reconhecimento do sentido da língua pode se chamar “compreensão”.

■ Por outro lado, construir um sentido que corresponda a sua intencionalidade, que lhe permita passar do sentido das
palavras ao sentido de seu discurso. Para isso, ele deve seguir um processo semântico-cognitivo que consiste, dentro de
um movimento centrífugo de estruturação do sentido em relacionar as palavras e sequências portadoras de sentidos de
língua com outras palavras e sequências que se acham registradas na memória de experiência do sujeito. Trata-se de um
processo de ordem inferencial que produz deslizes de sentido (glissements de sens) (de ordem metonímica e metafórica)
construindo os “topoi” (O. Ducrot) ou “estereótipos” (H. Putnam). Assim, através dessa atividade, frequentemente chamada
intertextualidade ou interdiscursividade, o sujeito comunicante constrói um sentido que pode ser chamado indireto ou
implícito (esse é um sentido de discurso, que se mede segundo critérios de coerência). Esse processo duplo (discursivo e
situacional) de ordem inferencial que leva ao reconhecimento/construção do sentido de discurso problematizado e
finalizado pode ser chamado “interpretação”.

Portanto, enquanto o ato de compreensão apenas reconhece o sentido de língua, o ato de interpretação relaciona
esse sentido às circunstâncias que regem a finalização do ato de comunicação, mobilizando, dessa forma, o sentido de
discurso.

832
Assim, como pôde ser observado, a abordagem semiolinguística localiza-se entre aquelas que se limitam ao
estudo da fonologia, da morfossintaxe, da semântica da língua e as excessivamente focadas no extralingüístico (como a de
Pêcheux), que se confundem com as próprias ciências humanas.

3. METÁFORA

O termo metáfora vem do grego ‘metapherein’, que significa ‘transferência’ ou ‘transporte’. Se analisado
etimologicamente, verificar-se-á que é formado por ‘meta’, que tem como significado ‘mudança’ e por ‘pherein’ que quer
dizer ‘carregar’ (SARDINHA, 2007:21). Sendo assim, numa primeira conclusão, a metáfora seria uma espécie de
transferência de sentido de uma coisa para outra.
A tradição retórica, iniciada com Aristóteles, sempre viu a metáfora como mero fenômeno da linguagem,
desvinculado do pensamento. No entanto, na década de 70, George Lakoff e Mark L. Johnson, um linguista e um filósofo
americanos, respectivamente, elaboraram a chamada teoria da metáfora conceptual, iniciando uma mudança de
paradigma, uma vez que, nessa nova visão, a metáfora era vista como um fenômeno cognitivo de grande importância.
A metáfora está em toda parte. É um recurso tão natural, empregado na vida cotidiana, que o ser humano, na
maioria das vezes, não a percebe. Quem nunca ouviu frases do tipo “Gostei que ele comprou minha ideia” ou “Precisamos
ganhar tempo”? E, com certeza, todos as entenderam perfeitamente. São dois exemplos comuns do dia-a-dia linguístico de
um brasileiro, mas quase ninguém se dá conta de que são dois exemplos de metáfora, que agregam conceitos bastante
distintos: comprar/ideia e tempo/dinheiro, respectivamente.
A linguagem humana é de extrema complexidade. De uma só palavra, podem ser extraídos vários sentidos.
Assim, é possível dizer “Quebrei a cabeça com esse problema” sem sequer ter sofrido qualquer arranhão ou ter reduzido
minha cabeça a pedaços; como também “Ganhei uma bolada na loteria” sem que ninguém tenha me acertado nenhuma
bola. Esses são exemplos clássicos de expressões metafóricas.
Cabe, nesse momento, fazer uma distinção entre metáfora e expressão metafórica, dois dos principais conceitos
da teoria da metáfora conceptual. Metáfora conceptual ou mental é “uma maneira convencional de conceitualizar um
domínio de experiência em termos de outro, normalmente de modo inconsciente” (LAKOFF, 2002). Elas são assim
chamadas porque conceituam algo. Já expressão metafórica é uma expressão linguística que representa uma
manifestação da metáfora conceptual. Assim, na frase ‘Não posso perder tempo’, a expressão metafórica ‘perder tempo’ é a
manifestação linguística da metáfora conceptual TEMPO É DINHEIRO1.
De acordo com Sardinha (2007:14), as metáforas funcionam na mente dos indivíduos, a despeito de serem
utilizadas na linguagem. Se digo ‘Não posso perder tempo’, qualquer pessoa entende que levei tempo demais para fazer
algo, o que é ruim. Tempo não é um objeto que possa ser perdido. Mas no mundo ocidental, movido pelo capitalismo, o
tempo é considerado um bem preciosíssimo, que não pode ser esbanjado. A frase exemplificadora só pode ser entendida
assim pelo fato de que, por trás dela, existe uma metáfora mental segundo a qual TEMPO É DINHEIRO.
O exemplo apresentado no parágrafo anterior ressalta um dado importante: as metáforas mentais são culturais.
Ou seja, é possível dizer ‘Não posso mais perder tempo’, porque na sociedade capitalista ocidental, tempo e dinheiro são
bens valiosos. Não haveria possibilidade, por exemplo, de dizer ‘bebi o tempo’, dando a entender uma metáfora de que
TEMPO É UM LÍQUIDO, pois isso seria considerado muito estranho.

1 O convencional é escrever as metáforas mentais em caixa alta.

833
É importante salientar que normalmente um indivíduo não tem consciência desse sistema conceptual; pensa e
age, na maioria das vezes, inconscientemente. Isso revela que o acesso às metáforas conceptuais é automático, ou seja,
não é necessário qualquer esforço para entender uma expressão metafórica como ‘perder tempo’, já que ela
automaticamente aciona sua metáfora conceptual correspondente na nossa mente, TEMPO É DINHEIRO.
A questão do acesso às metáforas ser automático está ligada ao fato de as metáforas conceptuais serem
convencionais. Na maioria das vezes em que são utilizadas, não parecem metáforas para os indivíduos, no sentido
tradicional do termo, isto é, uma figura de linguagem que está ali para enfeitar, para fazer um truque de linguagem, mas sim,
algo pertencente ao senso comum.
Além dos conceitos de metáfora mental e expressão metafórica, a teoria da metáfora conceptual postula outros
três importantes conceitos: a) domínio (área do conhecimento ou experiência humana), b) mapeamentos (relações
estabelecidas entre os domínios), c) desdobramentos (inferências que podem ser feitas a partir de uma metáfora
conceptual).
As metáforas conceptuais são subdivididas em cinco tipos (Lakoff e Johnson, 2002):

1) Primárias: são metáforas básicas, comuns em muitas culturas e motivadas por aspectos físicos do corpo humano. Por
exemplo: DISCUSSÃO É GUERRA é uma metáfora básica, que gera expressões metafóricas como “Meus argumentos
foram todos derrubados”.

2) Estruturais: são metáforas que resultam de mapeamentos complexos. Um conceito é estruturado metaforicamente em
termos de outro. Por exemplo: VIDA É VIAGEM, que é formada de mapeamentos entre viajante e indivíduo, caminho
percorrido e anos de vida, fim da viagem e morte etc. Essas são as prototípicas metáforas conceptuais, aquelas que servem
de exemplo.

3) Orientacionais: são metáforas que envolvem uma direção e que são gerais. Aqui, um conceito não é estruturado em
termos de outro. As metáforas orientacionais dão a um conceito uma orientação espacial, como, por exemplo, TRISTE É
PARA BAIXO. O fato de o conceito TRISTE ser orientado PARA BAIXO aponta para expressões como “Achei Ana pra baixo
hoje”. Tais orientações metafóricas não são arbitrárias, pois têm base em experiências físicas e culturais.
4) Ontológicas: são metáforas que concretizam algo abstrato, sem estabelecer mapeamentos. Essa concretização é
expressa em termos de uma “entidade” que pode ser contada, medida, fracionada etc. Por exemplo, a metáfora MENTE É
UMA MÁQUINA leva a expressões como “Tenho que colocar a cabeça pra funcionar, ou não conseguirei resolver esse
problema”. Como no caso das metáforas orientacionais, as metáforas ontológicas, na maioria das vezes, nem sequer são
reconhecidas como metáforas. Uma razão para isso é que as metáforas ontológicas, como as orientacionais, servem para
uma variedade limitada de objetivos – referir-se, quantificar etc.

5) Personificação: são um tipo de metáfora ontológica em que a entidade é especificada como sendo uma pessoa. Como
exemplo, temos a metáfora CRISE ECONÔMICA É UMA PESSOA, de que se extraem expressões como “A crise
econômica levou tudo o que guardei na poupança”.

Assim, após todo o exposto, conclui-se que a metáfora é um importante recurso linguístico, na construção de
sentidos, que expressa modelos cognitivos e culturais e que funciona como elo entre mente, corpo e mundo. A metáfora

834
seria, portanto, uma forma de organizar-se cognitivamente. Sua compreensão permite-nos entender melhor quem somos e
como e porque agimos de determinada maneira no mundo.

4. A PUBLICIDADE

Segundo Monnerat (2003:11), a publicidade é uma das interfaces da comunicação de massa. Nesse discurso, os
processos comunicativos são intensificados com um único objetivo: divulgar e vender produtos.
Portanto o papel da publicidade é vender. Vender um produto, uma ideia, um desejo, um sonho, um status. Para
tanto, constrói sua mensagem de forma a influenciar psicologicamente o receptor, para provocar nesse uma mudança de
comportamento, com relação ao que está sendo anunciado.
Assim, no mundo da publicidade, o texto é criado com base no efeito que se espera causar. Ou seja, cria-se a
causa, depois de haver estudado as consequências.
A necessidade da existência da propaganda está diretamente ligada às camadas sociais. Vestergaard e Schroder
(2004:5) afirmam que não existirá lugar para a propaganda se “o aparelho de produção de uma sociedade não estiver
suficientemente desenvolvido para satisfazer mais que as meras necessidades materiais da sua população...” Ou seja, para
que a propaganda esteja inserida numa sociedade, é necessário que boa parte de sua população esteja acima do nível da
subsistência. Dessa forma, a propaganda será “inevitável, e inevitavelmente persuasiva”. (op.cit. 2004:9)
De acordo com Vestergaard e Schroder (2004:12), o ser humano, por meio do consumo, satisfaz conjuntamente
necessidades materiais e sociais. Isso ocorreria pelo fato de que ao anunciar uma mercadoria, a propaganda não transmite
o valor real de uso do produto. Ao invés disso, ela explora os sentidos, os desejos, as angústias do indivíduo, garantindo-lhe
- caso adquira o produto anunciado - felicidade, respeito, valorização, status etc.
O universo da comunicação exerce grande influência na sociedade por representar um tipo de satisfação
substituta frente a uma realidade repleta de frustrações. Essa influência ocorre por meio do domínio da consciência, do
estreitamento dos ideais de vida, da imposição de um único objetivo de vida, que é o consumo ilimitado.
Esse domínio tão sutil e, por isso, tão perigoso procura barrar o questionamento crítico sobre a organização social.
A publicidade, ao invés de provocar seu interlocutor a refletir sobre sua condição socioeconômica e a agir em busca da
transformação dessa condição, antes, distrai o indivíduo da necessidade dessa mudança, fazendo-o direcionar seu
descontentamento e suas ansiedades para o que a publicidade julga ser o que realmente interessa ser cultivado: o
consumo individualista.
A linguagem utilizada pela publicidade é uma das grandes responsáveis, se não for a maior, por esse domínio da
consciência. Por meio de uma mensagem minuciosamente planejada, a propaganda convence seu destinatário de que seu
produto/serviço é o melhor.
Esse tipo de linguagem trabalha com as partes sensoriais do ser humano, além de tocar seus mais profundos
sentimentos e desejos, dizendo-lhe aquilo que quer ouvir, mostrando-lhe o que quer ver, afirmando-lhe que é exatamente
aquilo que almeja ser.
Comumente, falar de linguagem publicitária é falar de manipulação. Entretanto, a verdade é que a publicidade
utiliza-se de recursos estilístico-argumentativos para construir sua informação e manipulá-la. A publicidade joga com o leitor,
por meio da linguagem verbal e visual, buscando o estabelecimento de uma comunicação direta com o subconsciente de
seu interlocutor - lugar onde se dão as escolhas de cada indivíduo - por acreditar que o envolvimento emotivo ocorre num
momento pré-lógico e não-racional.

835
Portanto, uma informação nunca é transmitida de forma neutra, vazia de intenções no discurso publicitário; por
trás existe um controle por parte do emissor que visa não só persuadir o receptor, mas também seduzi-lo.
O princípio da persuasão articula-se, portanto, à razão persuasiva2 e fundamenta-se no ato de levar o receptor a
crer em algo, objetivando sua aceitação. A função persuasiva presente na linguagem publicitária consiste, assim, em tentar
modificar os atos do receptor. Para que isso ocorra, o publicitário deve considerar o destinatário ideal da mensagem, isto é,
o público-alvo para o qual a mensagem está sendo criada.
O princípio da sedução, por outro lado, relaciona-se ao ato de conceder prazer ao outro, a levá-lo, influenciado
por suas emoções, a sentir a necessidade de realizar determinada atitude, que coincide exatamente com os objetivos do
emissor.
Sendo assim, conclui-se que a publicidade deixa de ser um simples veículo informacional e divulgador de
produtos, para se preocupar, sobretudo, em construir ao redor do produto por ela anunciado um universo mágico que faz
com que o indivíduo acredite depender do mesmo para ser feliz. Em outras palavras, o consumidor passa a comprar não
um produto, mas ideologias, desejos, sentimentos, sonhos, em suma, não o que ele deseja ter, mas o que ele deseja ser.

5. ANÁLISE DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO

(www.sushicomtruco.com.br, acesso em 16/03/2010)

Como pode ser percebido, o anúncio publicitário escolhido, no nível visual, traz um jovem usando o novo Axe
Compact. Por suas características físicas, observa-se que ainda não é um homem formado, que se aproxima mais de um
adolescente. Percebe-se, ainda, que em seu rosto e em toda a construção de sua imagem (ao aparecer sem camisa, suado,
com parte de sua roupa íntima aparecendo), há um ar de sedução - maximizado pela utilização do novo desodorante Axe -,
típico dessa fase da vida, na qual os desejos sexuais começam a aflorar.

2 Segundo Charaudeau (2008: 207-8), a argumentação se estabelece com base numa dupla perspectiva de razão demonstrativa e

razão persuasiva. A razão demonstrativa se baseia num mecanismo que busca estabelecer relações de causalidade diversas. Os
componentes dessas relações estão ligados, ao mesmo tempo, ao sentido das asserções, aos tipos de relações que as unem e aos tipos
de validação que as caracterizam. Já a razão persuasiva se baseia num mecanismo que busca estabelecer a prova com a ajuda de
argumentos que justifiquem as propostas a respeito do mundo, as relações de causalidade que unem as asserções umas às outras. Esse
mecanismo depende muito particularmente de procedimentos de encenação discursiva do sujeito argumentante.

836
O que é interessante notar é que se se vincula o texto publicitário à imagem transmitida, extraem-se novos
caracterizadores do público-alvo dessa propaganda, que serão de extrema importância para que os anunciantes atinjam seu
objetivo maior: que seus interlocutores comprem, experimentem e tornem-se consumidores fiéis do novo Axe Compact.
A realidade dos adolescentes, especialmente aqueles que pertencem à classe média, é apenas estudar. Não
trabalham, mas ganham, muitas vezes, a chamada “mesada”, um tipo de remuneração mensal por não fazerem nada! Além
disso, uma característica típica dos jovens de hoje, nessa fase, é a preguiça. Não gostam de carregar muita coisa; são
adeptos da praticidade.
Sendo assim, o anúncio da Axe une o útil ao agradável. Em outras palavras, faz uso de uma expressão metafórica
do tipo ontológica bastante comum na cultura brasileira, “cabe no seu bolso”, para dizer, ao mesmo tempo, ao seu público
alvo, que, além do seu produto ser compacto no tamanho, e, por isso mesmo, cabe no bolso de qualquer roupa, bolsa,
mochila, ele também é compacto no preço, custa pouco, ou seja, é compatível com a realidade financeira de um adolescente
que não se sustenta.
Portanto, nessa peça publicitária, a mensagem icônica e, principalmente, a expressão metafórica “cabe no seu
bolso” são recursos ativadores de sentidos essenciais para a efetivação das intenções do enunciador.

6. CONCLUSÃO

Com base em todo o exposto, conclui-se que o uso das metáforas é, na maioria das vezes, natural, espontâneo,
pois elas são próprias do cotidiano humano. Além disso, seu papel no texto publicitário não é meramente embelezador, pelo
contrário, é altamente motivador, uma vez que exerce uma grande força argumentativa na construção da persuasão, própria
da mensagem publicitária, dando evidência a elementos intimamente relacionados à nossa forma de pensar e agir sobre o
mundo.
Portanto a metáfora não só é utilizada na publicidade para persuadir seu interlocutor, mas também está ligada
diretamente a essa forma de pensar e agir de cada indivíduo, mostrando uma maneira de se entender a realidade, o que
confirma a teoria de Lakoff e Johnson (2002) de que a linguagem é composta de várias metáforas que administram os
pensamentos e as ações do ser humano.

7. REFERÊNCIAS

CARVALHO, N. de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2006.

CHARAUDEAU, P.. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2009.

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Currículo: Graduada em Letras Português/Espanhol (UFF) e Especialista em Língua Portuguesa (UFF). Mestranda em
Estudos de Linguagem (UFF). Professora do Ensino Fundamental e Médio há seis anos. Atualmente, professora substituta
de Língua Portuguesa do Colégio Universitário Geraldo Reis (CAP-UFF).

838
O estilo é o candidato: Buffon passaria no vestibular?

MALFACINI, Ana
(UERJ- UniFOA- UGB)

1. Introdução
E aqui tocamos no ponto crucial: a escolha. Aí está a alma do estilo. A
língua oferece possibilidades: o sujeito elege uma e rejeita a outra.
(Chaves de Melo, 1976: 23)

Vivemos um momento histórico especial. O atual ministro da educação, Fernando Haddad, numa atitude que pegou a
todos de surpresa, decidiu instituir o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como principal forma de ingresso nas
universidades do país. A medida, ímpar, visa a garantir a acessibilidade de todos os brasileiros à educação superior e busca
acabar com a decoreba e com as fórmulas desgastadas de ensino, encontradas sobretudo nas escolas brasileiras de Ensino
Médio. Aqui, o que nos interessa objetivamente é a mudança no ensino de língua portuguesa, mormente no que diz respeito à
leitura e à produção textual.
Pensando em todos esses acontecimentos, decidimos focar nosso trabalho sobre o gênero dissertativo, a modalidade
textual mais pedida em vestibulares e concursos públicos brasileiros. O objetivo desta pesquisa é verificar o quanto o estilo pode
ser fundamental para um aluno (e seu texto) destacar-se numa prova com tantos concorrentes. Nesse sentido, buscamos nos
estudos estilísticos explicações pertinentes para a predileção das bancas por textos com marca de autoria. Acreditamos que
romper a fronteira do senso comum com uma pitada de ousadia, desde que sem ferir as características principais do gênero
escolhido, pode ser o diferencial para a aprovação de um candidato a exames tão concorridos.
Assim, começaremos este trabalho com uma fundamentação teórica calcada na ciência Estilística. Em seguida,
defenderemos nossa escolha pelos textos destacados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passando à análise
do corpus, demonstrando como o estilo pessoal de um candidato pode ser um indício de seu conhecimento pragmático-
linguístico proficiente da língua portuguesa.
Esperamos, com isso, comprovar a validade dos estudos estilísticos em sala de aula, tentando desfazer alguns
preconceitos que a a Estilística ainda sofre no mundo acadêmico. Por conseguinte, pretendemos evienciar como é importante ao
professor sua capacitação com tão importante ferramenta didático-pedagógica, na expectativa de tornar suas aulas de produção
textual um momento de leitura crítica e reflexão relevante sobre os textos de outros alunos.

2. Estilo e Estilística nas aulas de Produção Textual

A Estilística é a disciplina lingüística que estuda os recursos afetivo-expressivos da língua ou sistema, no sentido
estruturalista de Ferdinand de Saussure (Carvalho, 2002); é a disciplina que estuda os elementos de expressividade da
linguagem, isto é, os elementos capazes de impressionar, emocionar, sugestionar, convencer (Krause, 1985: 85); é o campo da
linguística que estuda as variações da língua em dado contexto. Na estilística, analisa-se a capacidade de provocar sugestões e

839
reações no leitor usando certas fórmulas e efeitos de estilo. Nas palavras de Sílvio Elia (1978: 76), estilo é o máximo de efeito
expressivo que se consegue obter dentro das possibilidades da língua.

O estilo sempre aparece como uma marca de si mesmo, quando se tem uma expressão individualista ou personalista
nos mais diversos atos humanos (Rei, 2007:17). Como bem disse Murry (1968: 17), tudo aquilo que possa contribuir para tornar
reconhecível o que um homem escreve inclui-se no seu estilo. Em outras palavras, com um estilo reconhecemos características
que mostrem uma estilística individual, um traço distintivo do autor em relação a outros. O termo estilo alude, então, a um fato
diferencial (Fiorin, 2008: 96).

Com isso, vemos que o estudo de um determinado estilo realiza-se não mais dentro do tradicional levantamento e
nomeação de figuras de linguagem, por exemplo, mas à luz dos conhecimentos hodiernos da Literatura, da Pragmática, da
Semiótica e da Estilística. Nas palavras de Simões (s/d), a Estilística subsidia a investigação dos subterrâneos do texto, por meio
da perscrutação do signo lingüístico (...), buscando extrair deste as marcas deixadas pelas sensações e reações
experimentadas pelo autor e inscritas na superfície dos textos por meio da trama sígnica.

Ainda conforme Simões (2009:77-8), podemos ver como é importante o casamento da Semiótica e da Estilística, já
que

do ponto de vista da análise verbal, a iconicidade pode ser observada não só no plano da estruturação
gramatical, mas também num plano maior, mais abrangente, da trama textual. É observável: a seleção
vocabular como representativa de usos e costumes diversos; a colocação dos termos nos enunciados como
imagens das opções de enfoque ou das posições discursivas; a eleição do gênero e do tipo textual como
indicador da relevância dos itens temáticos e lexicais contemplados no texto, etc. Também o projeto de
texto, na sua arquitetura visual ou sonora, é material icônico a ser observado.

Por ser a Estilística uma disciplina lingüística que se fundamenta nos fatores de expressividade, subjetividade e
afetividade, seu papel é depreender todos os processos lingüísticos que permitem a atuação da manifestação psíquica e do
apelo dentro da língua intelectiva (Câmara Jr., 1988: 137). É nessa perspectiva que defendemos a abordagem estilística nas
aulas de produção textual: mesmo embora um aluno não seja necessariamente um artista da palavra, é papel do professor de
língua materna apresentar aos educandos uma variedade de textos que lhe possibilitem escolhas a partir da identificação com
autores, gêneros e até mesmo estilos diversos antes do trabalho de produção de suas redações. Através desse trabalho
mimético, o aluno pode optar por seu estilo próprio, sabendo das possibilidades que um gênero pode abarcar.

3. O gênero dissertação nos moldes do vestibular: a dissertação argumentativa

Não obstante seja difícil definir os gêneros textuais, sabemos que são os textos que encontramos em nossa vida diária
(cf. Marcuschi, 2009). Caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas
peculiaridades linguísticas e estruturais, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio-pragmáticos,
caracterizados como práticas sócio-discursivas que agem sobre o mundo e dizem o mundo, constituindo-o de algum modo. Em
palavras mais simples, podemos dizer que, toda vez que falamos ou escrevemos algo, (re)produzimos gêneros textuais.

840
Segundo Schnewly e Dolz (apud Bezerra, 2005: 41), o gênero é utilizado como meio de articulação entre as práticas
sociais e objetos escolares, mais particularmente no domínio do ensino da produção de textos orais e escritos. Para esses
autores, uma crítica que pode ser feita é que, na expectativa de favorecer a aprendizagem escrita de textos, a escola trabalha
com os gêneros, mas os restringe aos seus aspectos estruturais ou formais. Assim, a desconsideração dos aspectos
comunicativos e interacionais contribui para que alunos e professores tratem a forma do texto em detrimento de sua função, o
que contribui para que os textos sejam vistos limitadamente como esquemas de um formulário preenchido (para leitura) ou a
preencher (para a escrita).

Tomemos o caso da dissertação, que, por definição, é o gênero que analisa e interpreta dados da realidade através de
conceitos abstratos. Nela, a referência ao mundo real se faz por conceitos amplos, genéricos, via de regra abstraídos do tempo
e do espaço (Platão e Fiorin, 1996: 299). É um tipo de linguagem que demonstra operações intelectivas responsáveis por
formulações conceituais, abstratas e teóricas, portanto, relacionadas com os mecanismos básicos do raciocínio (Santaella, 2009:
348)1. No geral, dintingue-se do texto argumentativo pela capacidade de convencimento e persuasão.

Retomando a crítica de Schnewly e Dolz, a maioria das escolas no Brasil tem voltado a produção do texto dissertativo
única e exclusivamente para o vestibular. Assim, esvazia-se o sentido do texto, na medida em que o aluno não tem outra
motivação, se não produzi-lo para ser avaliado por uma banca; não tem outro leitor que não seja um professor avaliador; não
tem outro espaço que não sejam as tradicionais trinta linhas. Lamentavelmente, muitos professores acabam por reduzir a tarefa
de produção escrita a um sem-fim de regras e fórmulas, na expectativa de ensinar como o aluno pode ter sucesso numa prova.
Introdução, desenvolvimento e conclusão passam a ser vistos como número de linhas a ser preenchido, sem que
necessariamente haja uma finalidade ou conteúdo relevante para ser transmitido ali. A proposta argumentativa muitas vezes é
deixada para um segundo plano.

Uma outra crítica está no que se ensina sobre o uso da impessoalidade na dissertação. Para muitos, é proibido o uso
da primeira pessoa do singular, em virtude de uma possível interferência na força argumentativa no texto, sendo, portanto, lícitos
apenas os usos da primeira pessoa do singular (como uma estratégia de aproximação entre autor e leitor) e da terceira do plural
(para alcançar com mais facilidade um auditório universal). O pior é que o estabelecimento dessas falsas regras faz com que o
aluno sinta-se tolido, fazendo com que se produza um texto sem voz.

Sobre esse problema, argumenta Krause (1985: 87),

Na “academia” (universidades, escolas, certos livros), parece que ninguém fala, que não há sujeitos.
Observa-se. Nota-se. Constata-se. Conclui-se. O discurso da academia, universal e abstrato, está solto no
ar, aparentemente sem dono (...). Um discurso marcado pela impessoalização, vendendo a falsa imagem de
que a “Verdade” não tem dono, não tem origem. De que a “Verdade” é uma só, só por acaso, mera
coincidência, na boca e na pena dos que decidem e dominam.

1 Adotaremos aqui a nomenclatura dissertação argumentativa, por acreditarmos que o texto requerido no vestibular seja mais do que uma
opinião sobre o que é ou o que parece ser (Garcia, 1997: 370); ele procura principalmente formar a opinião de um leitor ou ouvinte, na busca
de convencê-lo que o autor do texto está de posse da verdade. A dissertação argumentativa, portanto, seria a forma mais legítima da
dissertação, quando o discurso verbal se encontra intimamente ligado aos mecanismos do reciocínio dedutivo (Santaella, 2009: 361).

841
Diante dessas críticas, é normal o professor se questionar frente a alguns dilemas profissionais: deverá ele seguir as
teorias linguísticas contemporâneas e abandonar o trabalho preparatório voltado para determinados concursos? Como ensinar
os gêneros sem contemplar características limitadas por tal ou qual banca de vestibular? Em suma, é justo ensinar seu aluno a
escrever sem mencionar certas dicas, sabendo que vários concursos valorizam regras de produção textual altamente
específicas? E quanto àqueles professores que fazem parte de bancas e, antieticamente, contemplam seus alunos com
informações relevantes, a que só aquele público específico terá acesso?

Enfim, as respostas para essas perguntas só a prática profissonal poderá nos dar, não sendo nossa intenção, portanto,
prescrever respostas como verdades únicas e universais para esses conflitos. Entretanto, pensamos que seja preconceituoso
acreditar que todos os textos de concursos públicos privilegiem uma forma específica em detrimento do estilo, conforme
veremos a seguir. Generalizações são falaciosas, pois há quem consiga associar a estrutura dissertativa a uma abordagem
temática interessante, com rica escolha lexical e repertório diferencial em relação à média geral dos concursandos.

4. A prova da UFRJ e a escolha do corpus


Há algumas décadas, a prova de redação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é considerada um
modelo para outras instituições de ensino.
Para escolher os temas de redação, a banca examina o que foi pedido nos últimos anos pela instituição e também por
outros vestibulares, a fim de oferecer oportunidades de dissertação diferentes aos candidatos. Via de regra, a proposta
escolhida serve de ponto de contato entre as provas de língua portuguesa e de literatura brasileira, na expectativa de que o
candidato conte com uma vasta leitura de autores e gêneros antes de produzir seu próprio texto.
Ademais, há um conjunto de pequenos textos que precede a proposta de redação, intitulado coletânea. Nela, os
candidatos ainda encontram pequenos fragmentos de músicas, definições, aforismos, além de outros textos colhidos na internet
com o intuito de enriquecer sua bagagem cultural. Nesse sentido, a própria prova serve como um referencial diversificado no
qual os alunos podem basear-se, o que não só contribui para a produção de seus próprios textos, como também pode influir
positivamente na nota obtida no fim do processo.
Cada prova é corrigida por dois corretores, professores da própria UFRJ e/ou do Ensino Médio2. Se existe
discrepância, ou seja, grande diferença de pontos entre as notas atribuídas, o texto é reavaliado por uma dupla de avaliadores
que relê e discute o texto, atribuindo-lhe uma nota final. Os quesitos que fundamentam a correção, amplamente divulgados pela
banca na mídia em geral, são cinco: adequação ao tipo de texto (dissertação); tema (atendimento à proposta); coerência textual
(conectividade de ideias, sequência lógica); coesão textual (estrutura interna da frase); e padrão escrito culto (adequação à
modalidade escrita, concordância, regência, ortografia). Cada um desses critérios pode receber nota de zero a 2,0, entretanto,
se o candidato obtiver nota zero nos itens tipo de texto ou tema, será eleiminado do concurso.
A escolha do corpus ocorreu a partir da análise da publicação da revista Guia do Estudante “Redação Vestibular +
ENEM”, nas bancas no mês de setembro de 2009. Dela, retiramos três redações modelares (“redações campeãs”, conforme
intitulou a revista) selecionadas pela banca como destaque frente às demais. O tema do vestibular daquele ano pedia que o
aluno produzisse um texto de caráter dissertativo-argumentativo em que tecesse considerações sobre a relação entre

2 Essa realidade diz respeito à correção do vestibular de 2009. Não estamos levando em consideração ainda aqui as modificações a serem
realizadas pela IES com o novo ENEM.

842
normalidade/anormalidade no convívio social. Nossa intenção, como veremos abaixo, é verificar como o estilo pessoal do
candidato ratifica essas notas 10,0.

5. Análise do corpus

Optamos por reproduzir na íntegra os três textos analisados nesta pesquisa. Abaixo de cada um deles virão os
comentários específicos sobre seu estilo, com ênfase nos aspectos que nos chamaram a atenção nos mesmos.

Texto 1
Verdade (pessoalmente) relativa
A sociedade do mundo moderno - oriunda da inolvidável dispersão cultural - vem sofrendo um fenômeno peculiar: a
convergência de costumes e pensamentos. Há uma tendência ao pensamento egocêntrico e limitado em relação a escolhas
pessoais e culturais. A liberdade de expressão - apresentada ao novo século - não é tão livre assim.
A vida é, indiscutivelmente, um fundamento singular. A palavra remete a um intervalo de tempo onde um ser executa
seus deveres e vontades. Na prática acontece assim e cada um tende a ver sua vida como padrão. Entretanto, esse conceito
acaba se tornando uma rotina de muitas pessoas, criando o famoso “padrão social”. Tal fenômeno é nada mais que influência do
meio histórico e das fontes de cultura.
Normal. Intrínseco membro do movimento de padrão social. Verdade relativa. Essa convergência gera um limite cutural
alarmante, já que remete a visões dúbias em relação ao normal e ao diferente. As escolhas pessoais não mais dependem do
fator sentimental, mas sim do valor-padrão. Limites.
Alguns não concordam com a trajetória retilínea da sociedade, seguindo os verdadeiros instintos pessoais. Esses
indivíduos deixam a tangência e usufruem da sã inteligência. Valor pessoal. Verdadeiramente singular. Obviamente, são livres
no próprio pensamento e ausentes na sociedade cujos padrões não abrem exceções, tornando o normal algo apenas inerte.
Sombras da modernização.
O normal é, portanto,o estar na mente, apesar de que a sociedade imponha condições de anormalidade, cuja base
está em influências históricas e culturais - oriundas do pensamento convergente contemporâneo. Verdade (emocionalmente)
relativa.

O texto 1 destacou-se por sua subjetividade, apresentada já no título, através do advérbio pessoalmente. Com uma
abordagem intimista, o candidato conseguiu revelar um diferencial na organização do texto, aproximando muitas vezes sua
redação de uma crônica argumentativa. É importante notarmos que tal estratégia poderia oferecer um risco de fuga ao tipo de
texto pedido, mas construindo-se num limiar em que a subjetividade foi utilizada na abordagem do tema proposto, a banca
considerou corajoso o estilo escolhido pelo aluno.
O que mais chama a atenção aqui é a predileção do texto pelas frases nominais, incomuns na estrutura dissertativa.
Com um alto poder descritivo, esses sintagmas ressaltaram um olhar mais analítico do candidato em relação ao tema, uma vez
que, através de sentenças curtas e precisas, o aluno mostrou seu potencial reflexivo em vários segmentos do texto,
especialmente no terceiro parágrafo. Repare que este começa com a palavra “normal”, seguida de uma metáfora (“intrínseco
membro do movimento de padrão social”) construída com a finalidade de direcionar a interpretação evocada pela frase anterior.
Em uma sequência de três frases nominais, o candidato conseguiu relacionar a palavra “normal” a uma “verdade relativa”,
demonstrando sua visão sobre a (a)normalidade na sociedade em que vivemos. Como flashes de uma máquina fotográfica, os
sintagmas nominais deram ao texto certa plasticidade, principalmente com a escola das palavras-chave “normal” e “limite” para
abrirem e fecharem o parágrafo, respectivamente.
Um outro aspecto que se destacou aqui foi a capacidade de síntese que as frases nominais conseguiram oferecer ao
texto. Em muitos momentos, interpretações foram evocadas não exatamente por aquilo que estava escrito, mas pela quantidade

843
de inferências que puderam ser feitas a partir do que estava subentendido no texto. Dessa forma, o candidato conseguiu,
através da organização tópica utilizada e da sequência lógico-discursiva escolhida na elaboração dos argumentos, conferir a seu
texto não só informatividade e persuasão, mas, sobretudo, um potencial icônico que fez destacar sua redação em centenas de
milhares de outras redações.
Para finalizar, ressaltamos ainda uma outra estatégia que se apresentará neste corpus como um padrão de estilo
interessante: o resgate do título - “Verdade (pessoalmente) relativa” - pela frase final da conclusão - “Verdade (emocionalmente)
relativa”. Em um típico diálogo intratextual, o candidato consolida o projeto de sua dissertação fazendo com que haja uma
retomada (coesa) do desfecho para o título, o que confere a este o papel de uma síntese sugestiva do texto, demonstrando que
o texto foi submetido a um planejamento antes de sua redação final. Uma estratégia inteligente, reconhecida pelas bancas como
indício da maturidade e do domínio que o candidato possui sobre aquilo que escreve.

Texto 2
Maniatria

Normalidade pode ser entendida como a característica dada a alguém que segue as normas estabelecidas
por determinadas sociedades. Nesse sentido, usa-se o prefixo “a” para indicar as pessoas que negam essas regras, os
anormais. No entanto, talvez seja possível identificar esse processo de formação de palavras como sendo passivo ou ativo e ali,
quem sabe, reconhecer na loucura alguns vestígios da própria personalidade.
A taxação(sic) pode ser considerada como um processo passivo de prefixação. Isso porque, nesse caso, a
condiçao de anormalidade é imposta a um determinado grupo ou pessoa por aqueles que se pré-estabeleceram normais. Esse
processo pôde ser observado no período da colonização brasileira, por exemplo, na qual os portugueses julgaram os índios
seguindo seus padrões europeus e assim, para torná-los normais, fizeram-nos viver segundos o modelo de vida português.
No entanto, em algumas épocas da história, alguns negaram por vontade própria seus padrões, prefixando
ativamente sua normalidade e se auto-considerando anormais. De fato, a revolução pode ser entendida como um movimento
que visa destruturar antigos padrões. Dessa forma, pode ser analisada como uma rejeição consciente de um modelo específico
e defesa da idéia da criação de um novo, mesmo que essa refute o que antes era considerado normal. Os mordernistas
brasileiros revolucionaram a construção poética em 1922 sendo considerados não só anormais, mas loucos.
Todavia, ao contrário do que muitos esperavam, essa última denominação foi entendida por eles como um
elogio. Isso porque esses revolucionários perceberam que eles eram assim chamados apenas por terem querido se libertar das
algemas formais e deixar a inspiração e a brasilidade falarem mais alto que a “arte pela arte” européia. Assim, se lhes taxavam
de loucos por serem inovadores, eles se auto-taxavam (sic)de insanos, exatamente pelo mesmo motivo.
Nesse sentido, é possível perceber que a relação entre normalidade e anormalidade pode ser entendida
como algo efêmero que depende do ponto de vista. Se a socidade é tão dinâmica é porque os anormais ativos sempre existiram
e sempre existirão para questionar o normal. Adorar os loucos revolucionários parece ser algo cada vez mais comum em uma
realidade de crises sucessivas. Se fosse possível juntar o radical “mania”, de loucura, e o radical “atria”, de adoração, talvez a
nova palavra se tornasse a religião dos que anunciam a necessidade de mundaças, mas nunca são compreendidos.

A dissertação acima surpreende desde o início, em função do título “Maniatria”, um neologismo criado pelo candidato.
Com a junção dos morfemas “mania”, que o aluno relaciona a loucura, e “atria”, associado a adoração, o texto gera uma
expectatativa positiva no leitor, que espera um projeto audacioso na abordagem temática, fato que é comprovado com o
decorrer da leitura.
Desde a introdução, o candidato demonstra um conhecimento linguístico acima da média dos vestibulandos,
especialmente quando faz referência metalinguística ao processo de formação de palavras da língua, ao explicar o valor
semântico do prefixo “a” no vocábulo anormais. Mesmo embora tenha grafado inadequadamente no decorrer do texto as
palavras taxação e auto-considerando (aqui levando-se em conta o novo acordo ortográfico da língua portuguesa), isso não
desabona o uso da modalidade culta da língua visto na redação como um todo. Sua escolha vocabular é bem sucedida, assim

844
como o uso de conectores entre os parágrafos, por exemplo. Poderíamos inclusive dizer que o aluno soube valer-se da
competência linguística, estratégia defendida por alguns professores como uma maneira de valorizar sua abordagem frente às
demais.
No que tange à argumentação, sua tese é clara e frequentemente resgatada no texto. No segundo parágrafo, o aluno
mostrou seu repertório ao citar a colonização brasileira como exemplo de seu ponto de vista, evidenciando-se aqui a
interdisciplinaridade como ponto forte do projeto argumentativo da redação. No terceiro, aludiu à literatura brasileira com o
movimento modernista de 1922 e com o trecho de Drummond apresentado pela coletânea da prova, reforçando sua visão de
que normalidade e anormalidade são conceitos efêmeros. No desfecho, reforçou a tese outrora apresentada, aproveitando para
“arrematar” a dissertação com a explicação do título escolhido, o que o alçou à condição de índice orientador de leitura de sua
prova. Em suma, o candidato soube conduzir sua dissertação consistentemente, ao optar por ilustrações factuais e por uma
argumentação diferencial para a materialidade do texto.
Com uma estrutura considerada padrão e autenticidade na abordagem do tema, Maniatria pôde mostrar como o
processo criativo não implica fuga do tema, do tipo de texto requerido ou sequer inovação na tese defendida. Basta uma seleção
de argumentos bem feita e uma certa originalidade na apresentação destes para que um candidato evidencie seu estilo próprio.

Texto 3
Todos os gestos da incredulidade

Eu não compro Baton, não votaria no Obama, não gosto de futebol, e acredito que o uso da 3ª pessoa na
dissertação é só mais uma marca do racionalismo excessivo e da impassibilidade das relações interpessoais atuais. Seria
loucura escrever diferente do recomendado, do previsível, do normal. Seria acusado, mas não seria covarde. De fato, o melhor a
fazer é tentar entender por que muitos não o fariam, porque a criatividade e a imaginação entraram em falência e levaram junto
um pouco da natureza humana.
Questão primordial é entender que na contemporaneidade esse comodismo, que sempre existiu, agravou-se
devido a certa falência de utopias e ideologias do último século. Nem as idéias de Marx, ou a tentativa de Lênin trouxeram a
igualdade, a ONU não entendeu o desejo de nenhuma Miss, o “american way of life” trouxe também a aspirina e o prozac. Essa
conjuntura cria um certo pessimismo e corrobora para dificultar o vislumbramento de mudanças na sociedade, tornando o
indivíduo acomodado e passivo. Émais fácil manter-se incluído na normalidade, sem questionar “o sistema”, a ser taxado de
“louco” e decepcionar-se ao tentar.
Espantoso é perceber que essa taxação, e o receio dela, sempre foi regra. Quando Darwin propôs a
evolução, ou Freud, a interpretação dos sonhos, ambos receberam o mesmo título: loucos. Sem dúvida, quando a sociedade se
depara com conjecturas e posturas que põem em xeque seus modos de agir e de pensar é compreensível que ocorra certo
medo e aversão. O equívoco desse postura está, no entanto, em se ignorar que a inventividade e a crítica estão na base da
evolução das sociedades, só a imaginação permite a criação e a inovação.
Por outro lado, o problema maior não é as novidades se tornarem rarefeitas, e sim que ao fazer isso, abdicar
do poder de enlouquecer-se contra a cosmovisão vigente, o indivíduo abdica de sua própria racionalidade. O homem é um ser
social que trasforma a natureza com seu trabalho (mental e braçal), o que exige inferência, senso crítico. Para isso, é necessário
que se tente enxergar fatos por outras perspectivas, que exista inferência e crítica ao que apenas os olhos veêm. Sempre foram
poucos os que conseguiram fazer isso, Rousseau, Kant, Nietsche, mas foram os desvarios deles que influenciaram diretamente
a formação da sociedade ocidental atual.
Torna-se evidente, portanto, que o medo da quebra da anormalidade pode até ser normal naqueles que
estão tão afogados em suas culturas que se alienaram em realidades que desejam ser imutáveis. Contudo, é dever dos “loucos”
os salvarem, emergindo de novo, sua condição humana, sua capacidade de colocar o mundo a sua volta em crise, insatisfazer-
se. A realidade contemporânea, entretanto, conta com problemas que tornam essa ferida mais difícil de cicatrizar, como o
indivudualismo. O irônico é ver aqueles que defendem essa ação coletiva para o retorno da criatividade escreverem na 1ª
pessoa do singular: são as contradições de uma sociedade que mantém seu lado humano vendado e só enxerga quando quer.
Parafraseando Machado de Assis: “Abane a cabeça, leitor”.

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Indiscutivelmente, o texto 3 tem muitas qualidades, destacando-se não só por seu vasto repertório, mas sobretudo
pela ousadia com que o candidato apresentou sua argumentação.
Logo no parágrafo introdutório, o texto surpreendeu pelo uso da primeira pessoa do singular. Indo de encontro às
convenções didáticas, que defendem a obrigatoriedade do discurso impessoal na dissertação, o aluno mostrou suas convicções
ideológicas através de frases negativas, opondo-se ao senso comum. Mantendo sua estratégia argumentativa, no final da
redação, o candidato justificou-se pela pessoalidade, incluindo a si próprio na tese defendida - ele também seria um louco
disposto a salvar os “que estão tão afogados em suas culturas que se alienaram em realidades que desejam ser imutáveis”,
mesmo que fosse irônico defender uma ação coletiva escrevendo no singular. Enfim, o candidato soube dosar sua audácia à
temática, o que valorizou ainda mais seu texto.
No que tange à ironia, esta foi uma marca do texto em vários momentos. Um importante exemplo ocorreu no segundo
parágrafo, quando o candidato afirmou que “Nem as idéias de Marx, ou a tentativa de Lênin trouxeram a igualdade, a ONU não
entendeu o desejo de nenhuma Miss, o ‘american way of life’ trouxe também a aspirina e o prozac”. O humor e até um leve
sarcasmo fizeram parte, assim, do projeto argumentativo da redação, ressaltando as opiniões do aluno.
Outro aspecto relevante no texto é a quantidade de referências intertextuais. Da citação de personalidades famosas,
incompreendidas em seu tempo, à paráfrase final, de Machado de Assis, o candidato soube valorizar seu conhecimento de
mundo no decorrer da redação. Destacamos aqui o próprio título, Todos os gestos da incredulidade, intertextualidade implícita
com o começo do capítulo XLV da obra Dom Casmurro. Não podemos nos esquecer de que Machado de Assis foi um autor que
privilegiou a loucura em suas obras, o que nos leva a deduzir que a referência a ele não foi mera coincidência. Em outras
palavras, o repertório do aluno foi ponto crucial para estabelecer estilo ao texto.
Enfim, o candidato não teve medo de arriscar-se e foi recompensado por isso. Entretanto, não foi a criatividade,
apenas, que lhe valeu a boa avaliação, mas todo um projeto de texto construído de maneira consistente, com argumentos
relevantes, boa estruturação e muita informatividade. Surpreendente e encantadora, a redação foi um bom exemplo de que o
gênero dissertativo não é apenas um texto de fórmulas prontas, e que nele cabem muitas oportunidades de um aluno mostrar
sua competência comunicativa em uma situação altamente específica, com graça, estilo e pertinência lógico-discursiva.

6. Conclusões parciais

Nosso objetivo com a pesquisa acima era demonstrar a versatilidade e a importância da Estilísticada nas aulas de
produção textual. Quisemos comprovar sua validade analisando um gênero especial, o dissertativo-argumentativo, que caminha
na contracorrente das teorias linguísticas conemporâneas. Isso porque, apesar de hoje sabermos que um aluno deve viver
produções de texto reais, presentes em seu cotidiano, o que vemos na prática escolar ainda é um trabalho arcaico com a leitura
e a redação, via de regra limitadas a sugestões de livros didáticos. Embora esse não fosse o foco da discussão ora
encaminhada, pudemos observar que mesmo um texto técnico como o dissertação, ensinado em salas de aula com uma série
de especificidades (para não dizer macetes de concursos), produzido em situação atípica (com data, hora e número de linhas
pré-definidos), pode ser exemplo do quanto o estilo pode ser evidência de que existem alunos ainda que (por razões diversas
que não foram discutidas aqui) rompem-se dos modelos pré-estabelecidos e controem textos criativos, audaciosos e
inteligentes, sem ferir as peculiaridades exigidas pelo gênero.

846
Lembramos que nossa perspectiva aqui não era o trabalho voltado para o diálogo com os alunos, mas com
professores de Língua Portuguesa que se veem, muitas vezes, perdidos entre um trabalho com o texto de acordo com o que
aprenderam em seus cursos universitários e uma prática diária voltada para resultados. Assim, defendemos a Estilística como
aporte importante. Mesmo ainda sendo considerada uma ciência em construção, com limites não muito bem definidos com
outras áreas de estudo do texto, sua aplicabilidade é válida, pois desperta a sensibilidade lingüística e o gosto literário do aluno,
além de motivar e tornar menos árido o estudo da matéria gramatica (Carvalho, 2002: 04). Não é simplesmente uma questão
metalinguística, em que uma teoria pomposa é usada como forma de garantir a respeitabilidade do professor, porém, sobretudo,
uma maneira de imprimir ao trabalho com a língua toda seriedade que merece, sendo tarefa maior do professor de Português
orientar seus alunos para observarem o que de fato vale a pena ver e sentir em um texto.
À luz do trabalho com o texto dissertativo na escola, ao que nos parece, há um caminho de mão dupla que precisa ser
conduzido com muita seriedade. Caberá ao professor definir se o ensino do texto deve primar pela exigência da correção ou
pela exigência da criatividade.
A obrigatoriedade da correção linguística é, indubitavelmente, importante, a partir do momento em que nos
comunicamos através de um código comum e pré-estabelecido, e que este é um critério utilizado em todas as bancas de
concursos vestibulares. Entretanto, o código também deve ser trabalhado em sala, com os alunos, como uma possibilidade de
mostrarmos nosso estilo, através do uso que fazemos da língua, de nossas escolhas sintático-semântico-lexicais. Guimarães
Rosa, por exemplo, é conhecido pela expressividade que define seu estilo, mas poucos sabem que o autor era poliglota e que
combinou seu conhecimento de línguas difererentes para construir seus tão famosos neologismos. Em geral, não se cria do
zero, mas sim contra o que se nos oferece. Daí a necessidade de conhecer, até mesmo para subverter. (Krause, 1985: 89).
Por sua vez, a exigência da criatividade pode ser perigosa. Considerada moda no Brasil nas décadas de 60 e 70,
quando a ditadura militar era um fantasma que aterrorizava professores, muitos professores talvez a valorizassem em função do
parco trabalho com produção de texto feito nas escolas. Ainda era comum vermos a prática da redação “Minhas férias” e de
tantas outras que eram aplicadas como castigo de alunos agitados e falantes. Os estudantes pouco se envolviam com o assunto
pedido e escreviam muito mais por uma necessidade de obter nota na disciplina. Raras eram as vezes em que se conversava
em grupo sobre o tema do texto, e a coletânea não era uma prática comum nas provas. Assim, a criatividade de que se tratava
aqui era mascarada, em parte como um reflexo, na pedagogia, da própria ditadura: permitir criatividade onde fosse inócua, para
não permitir onde se apresentasse transformadora e contestadora. Se pararmos para pensar, ainda hoje o quesito criatividade é
altamente subjetivo, e a menos que seja relacionado a alguma estratégia específica, está muito mais relacionado ao gosto do
leitor do que à perspicácia do autor do texto.
Cumpre lembrarmos que, nessa situação, devemos apelar ao bom senso, procurando pontuar nossas correções em
quesitos específicos, de preferência discutidos com os alunos de antemão, para que saibam em quais aspectos seus textos
estão sendo relevantes ou não. A criatividade, avaliada criteriosamente, não é a vilã das correções, e deve ser destacada,
quando a correção é justa e verdadeira, para aumentar a autoestima dos alunos. Não há mal em associá-la a alguma pontuação,
injusto é fazer dela um quesito fundamental para se atribuir zero ou 10,0 a uma redação,
Para terminarmos, gostaríamos de fazer das palavras de Krause (ib.), mais uma vez, as nossas, esperando que outros
colegas, ao lerem este trabalho, reflitam sobre a pergunta feita como título da presente pesquisa. Se o estilo é o homem, é
também o candidato; se a criatividade for exigida como uma necessidade do texto, deixará de haver estilo e este passará a um
lugar-comum. Sim, Buffon passaria no vestibular, assim como outros que tiverem coragem de ousar mostrar seus argumentos

847
envoltos em um estilo próprio, não necessariamente poético, mas pessoal, que evidencie uma opinião a ser discutida com
argumentos relevantes - e não apenas um texto inócuo, sem vida, escrito só para agradar um corretor.
Criatividade não se exige. Criatividade não se pode exigir, posto sua imprevisibiliadde e natureza
subversiva. O professor que atibui nota a criatividade ou originalidade deixa o aluno num duplo nó sem
saída. Se for criativo como o professor espera, então não o será por si. Se não atender ao que o professor
espera, se machuca do mesmo jeito. Acaba recebendo a punição em qualquer caso: ou por escrever
copiando o professor, ou por não copiar o desejo do professor.
A questão do estilo nos traz a necessidade da diferença, e não passa por exigências. Passa, talvez, pela
coragem que o desejo nos empresta.

Resta-nos agora a coragem de admitir que nem sempre despertamos esse desejo em nossos alunos.

7.Referências

CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Contribuição à Estilística Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1988.
CARVALHO, CASTELAR. A Estilística e o ensino de Português. Disponível em
http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno12-02.html. Acesso em 20 de julho de 2010.
CHAVES DE MELO, Gladstone. Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: PADRÃO, 1976.
DUTRA, V. L. R. & SIMÕES, D. M. P. A iconicidade, a leitura e o projeto do texto. Pelotas: EDUCAT, 1998. Linguagem e
ensino. Revista do Mestrado em Letras – Universidade Católica de Pelotas. Vol. 1, n. 1.
ELIA, Silvio. Orientações da linguística moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978.
FIORIN, J.L. Uma concepção discursiva do estilo. In: Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008.
GARCIA, O. M. Comunicação em prosa moderna. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
KRAUSE, Gustavo B. Redação inquieta. Rio de Janeiro: Globo, 1985.
MARCUSCHI, L. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. e outros (org.). Gêneros Textuais e Ensino.
Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
MURRY, J. Middleton. O Problema do Estilo. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1968.
PLATÃO, F. & FIORIN, J.L . Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996.
REI, Cláudio Artur O. A Herança Estilística das Cantigas de Amigo na Lírica de Chico Buarque. Rio de Janeiro: UERJ -
Tese de Doutorado, 2007.
Revista Guia do Estudante. “Redação Vestibular + ENEM”. Abril Editora. Setembro, 2009
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2006.
________. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras. FAPESP, 2005.
SIMÕES, D. M. P. Leitura e produção de textos: subsídios semióticos. In: AZEREDO, J. C. S. de. Aulas de Português:
Perspectivas Inovadoras. Petrópolis: Vozes, 1999.
________. Semiótica e ensino: reflexões teórico-metodológicas sobre o livro-sem-legenda e a redação. 2ª ed. Digital em
CD. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
________. Iconicidade verbal. Teoria e prática. RJ: Dialogarts publicações, 2009.

Ana Malfacini é professora de Produção Textual no ensino médio e superior, com vasta experiência em cursos preparatórios.
Doutoranda em Língua Portuguesa (UERJ), desenvolve como pesquisa de tese a aplicabilidade da Teoria da Iconicidade Verbal
nas aulas de Leitura, sendo orientada pela Dra. Darcilia M. P. Simões, referência nos estudos sobre a Semiótica Peirceana no
Brasil. Contatos: anamalfacini@hotmail.com; @Amalfacini.

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Discurso publicitário, vozes e silêncio: a imagem da família
construída pela margarina Qualy

MANZONI, Ahiranie Sales dos Santos


(UFAL)
ROSA, Daniela Botti da
(UFAL)
OLIVEIRA, Lisiane Alcaria de
(UFAL)

1- Introdução

Apreender, compreender, desvelar os sentidos parece uma tarefa simples, mas não é. O fato de apresentarmos
este trabalho como um estudo aprofundado do discurso publicitário não significa dizer que esgotaremos os sentidos
existentes na materialidade discursiva que traremos aqui; buscaremos à luz da Análise do Discurso (AD) trilhar um caminho
para compreendermos a construção dos sentidos nos comerciais (novela) da Margarina Qualy, elegendo algumas
categorias da AD que consideramos essenciais neste estudo.
Falar em discurso publicitário é falar em fascínio, em conquista, em sedução. Isso significa dizer que há uma
relação entre um objeto que se deseja vender e um sujeito que deseja comprar e ao qual é atribuído um potencial de
comprar. É nesse instante que existe a troca de olhares, a marca da sedução e, consequentemente, a persuasão. De
acordo com Malanga (1979), a publicidade, que é uma decorrência da propaganda, é persuasiva e tem um objetivo
comercial bastante caracterizado. O autor a define como a arte de despertar no público o desejo de compra, levando-o à
ação.
Há muito tempo que os informes publicitários deixaram de se concentrar nas características do produto a ser
vendido e passaram a fabricar desejos. Ao vender uma marca, um produto, o discurso publicitário busca vender uma ideia,
passar uma mensagem ao consumidor que permita alçar o produto à categoria de objeto do seu desejo.
O desejo, segundo a teoria psicanalítica de Sigmund Freud, conforme retomada por Lacan, é a mola mestra de
todo agir humano. O ser humano, enquanto ser social, que se constitui em relação ao Outro, é um ser faltoso em essência.
Segundo Lacan (1995), para que um sujeito se constitua, é preciso que aquele que ocupa o lugar de grande Outro para a
criança – em geral a mãe – não seja completo, é preciso que lhe falte algo. Por ser um ser faltante, esse Outro deseja. Esse
desejo, gerado pela incompletude, busca sempre se satisfazer, e cada indivíduo que vem ao mundo é investido como objeto
que poderia completar a falta desse Outro materno. Ao desejar, a mãe constitui na criança um sujeito, que se coloca a falar
no mundo na tentativa de completar esse Outro. O desejo do Outro institui a falta na criança, que, por sua vez, se pôe a
desejar constantemente na busca de satisfação, de fechar um “buraco” que nunca se completa.
Os objetos de consumo se colocam como derivações de um objeto com o qual os sujeitos buscam completar-se. E
como essa fome desejante não pode jamais ser saciada – já que o desejo é sempre desejo de outra coisa, a fome sempre é
fome de outra coisa – o desejo se desloca metonimicamente de objeto em objeto.
Dessa forma, podemos observar que a sedução é uma estratégia utilizada para atrair e persuadir fortemente o
consumidor; o sentido dominante de que o produto/objeto é necessário, é ideal, aumenta o desejo pelo consumo imediato,
fazendo com que outros sentidos sejam interditados. Por isso, Carvalho (2001) afirma que o discurso publicitário objetiva
interagir com os indivíduos apresentando-lhes os bens de consumo da sociedade capitalista e os incentiva a tornarem-se

849
autênticos e vorazes consumidores.
Em nossa posição de analistas do discurso, de linha francesa, defendemos que mais do que interagir e incentivar
(como citado pela autora) o discurso publicitário almeja investir e persuadir os indivíduos através dos seus comerciais que
oferecem o melhor, o ideal, mas que silenciam outros sentidos não apreendidos pelo público consumidor. A sua relação
(publicidade) com a mídia é de extrema relevância, pois a veiculação de seus produtos se dá, em sua maioria, pelos meios
de comunicação. E, desse modo, poderemos identificar que o lugar (televisão, rádio, mídia impressa, internet), o horário, o
tempo do comercial constrói sentidos direcionados, induzindo o público consumidor a um desejo maior pelo produto.
Para apreendermos, compreendermos e desvelarmos esses sentidos, selecionamos um anúncio da Margarina
Qualy – que está sendo veiculado atualmente pela mídia televisiva como episódios de novela – para realizarmos nossas
análises que terão como suporte teórico-metodológico a AD de linha francesa de Michel Pêcheux.
O que veremos neste comercial – que está dividido atualmente em três episódios – é a construção da família
contemporânea, diferentemente dos anúncios realizados, há alguns anos, pela empresa, este (anúncio publicitário atual)
apresenta novos perfis para os personagens – uma mulher, que não possui marido/companheiro, mora na casa da mãe
com seu filho de sete anos e que tem um relacionamento com um homem que não é o pai do menino.
Para a compreensão do funcionamento do discurso – quem o produz, de que lugar, para quem se dirige, enfim,
como os sentidos são construídos – traremos o conceito de acontecimento e as seguintes categorias analíticas: formação
discursiva, formação ideológica, condições de produção, e silenciamento.

2- Percurso Teórico
Para iniciar esse percurso teórico que sustentará as análises posteriores, tomamos a noção de acontecimento.
Segundo os desenvolvimentos teóricos de M. Pêcheux em seus últimos estudos, o discurso não se constitui apenas de uma
estrutura que mobiliza memórias, fazendo com que os sentidos produzidos sejam sempre uma retomada de dizeres
anteriores e exteriores ao sujeito. Em certos momentos, infrequentes, novos gestos de produção de sentidos inauguram
novas redes de memória. Quando dizemos “inauguram”, não estamos dizendo que esse novo evento discursivo – o
acontecimento – não traz uma memória em seu processo de formulação e constituição, mas que o acontecimento é “...o
ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 1990, p. 17).
Todo acontecimento discursivo rompe com uma cadeia de retomadas de memória e traz a marca tanto da cadeia
com a qual rompe como da cadeia que inaugura. Inicia uma nova série de retomadas, reformulações, paráfrases e
derivações polissêmicas. Nas análises, articularemos a nova imagem de família que vem se construindo na sociedade
contemporânea a um comercial de margarina. Os comerciais de margarina têm como uma de suas marcas registradas a
apresentação de uma família perfeita, padrão (essa é a cadeia antiga), enquanto os anúncios da Qualy analisados trazem a
imagem de uma família que até então não tinha sido considerada como uma família modelo (a nova cadeia de produção de
sentidos).
A noção de acontecimento vai estar muito imbricada nas condições de produção do discurso. As condições de
produção dizem respeito aos sujeitos, ao contexto em que estes estão inseridos no discurso e às formas como eles se filiam
às condições sócio-histórico-ideológicas no dizer. Segundo Orlandi (2003), a memória também constitui a produção do
discurso. “A maneira como a memória ‘aciona’, faz valer, as condições de produção é fundamental” (op.cit, p. 30), que são,
por sua vez, classificadas em estritas e amplas.
As condições estritas de produção do discurso referem-se às condições imediatas que permeiam o que se diz.
Courtine (1981) trata este conceito como definição empírica, pois situa o dizer no contexto do ato do discurso. Já as
condições amplas remetem ao conjunto de elementos que assentam o sujeito na história, isto é, no contexto social e

850
ideológico. Cavalcante (2007, p. 37) explica esse conceito dizendo que este é,

a forma como esses acontecimentos significam e afetam os sujeitos em suas diferentes posições
políticas na sociedade, como se organiza o poder, distribuindo posições de mando/subordinação x
resistência; de exploração x explorado; de sedução/adesão x rejeição etc. Como diz Bakhtin (1981),
os sentidos do discurso são determinados, pela situação social mais imediata que, por sua vez,
resulta do meio social mais amplo.

Assim, percebemos que os sentidos no discurso emanam exatamente dessa relação do sujeito com o meio social,
com a história, com o seu tempo e com as influências a que é submetido, através da ideologia. Pois, como diz Orlandi
(2003, p. 17), em uma paráfrase do dizer de Pêcheux, “não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem ideologia [...]”
Por sua vez, as condições de produção também se articulam com as formações discursivas e com as formações
ideológicas, duas outras categorias da AD. As formações ideológicas são as formas que a ideologia toma em cada
formação social. É um conjunto de práticas sociais, idéias, representações, que fundamentam uma sociabilidade. Na
formação social capitalista, encontram-se duas grandes formações ideológicas: uma que fundamenta o capitalismo
(formação ideológica do capital), que faz com que os sujeitos tenham como naturalizada a divisão de classes, a exploração
do trabalho, o lucro, o consumo, a propriedade privada (elementos fundamentais da sociedade capitalista); e uma outra que
contradiz o capitalismo, fundamentando a possibilidade de uma prática social para além do capital (formação ideológica do
trabalho). As formações ideológicas são expressões da conjuntura ideológica de uma formação social,

As formações ideológicas são representadas pela via de práticas sociais concretas, no interior das
classes em conflito, dando lugar a discursos que pôe à mostra as posições em que os sujeitos se
colocam/são colocados. (FLORÊNCIO et al, 2009, p.69)

A formação discursiva, por sua vez, é

aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob
a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc).
(PÊCHEUX, 2009, p.147).

As formações discursivas, portanto, dependem das formações ideológicas para estabelecerem seus sentidos:
“Dependendo da FI, haverá um conjunto de Formações Discursivas (FD), isto é, de lugares de dizer que funcionarão como
incentivadores e ou/repressores do dizer do sujeito.” (MAGALHÃES, 2005, p. 27).
Apesar de sempre haver uma FD que domina sobre as outras, é possível notar diferentes formações discursivas
presentes em um discurso. E, a partir dessa compreensão, entendemos que o mesmo dito pode ganhar sentidos diferentes
dependendo em qual formação discursiva esteja ele inscrito,

Pode-se falar das mesmas coisas, atribuindo-lhes diferentes sentidos, porque as palavras mudam de
sentido ao passarem de uma formação discursiva para outra. [...] Assim, a formação discursiva assume
caráter plural, com fronteiras tênues e instáveis, sempre passíveis de deslocamentos provocados por
contradições ideológicas. (FLORÊNCIO et al, 2009, p. 74)

Os sentidos, portanto, provêm dessa relação com as palavras e sua história: “As palavras falam com as outras”
(ORLANDI, 2003, p.32), como também silenciam outras.
Pensando a relação entre os anúncios publicitários da Qualy e a produção dos sentidos, observamos que o
direcionamento ou o sentido dominante que eles procuram produzir é: a família que tem a margarina à mesa é sempre
unida e feliz, independente de ser tradicional (dos antigos anúncios) ou contemporânea (da pequena novela atual). No
entanto, o fato de dizer algo implica necessariamente deixar de dizer . Há, dessa forma, o apagamento de outros sentidos

851
possíveis, mas não desejáveis. Neste momento, trazemos a fala de Orlandi (1997, p.24) que defende que “ para dizer é
preciso não dizer” . E, ainda, “dizer e silenciar andam juntos”.
Efeitos de sentido e silenciamento são duas categorias que estão intrinsecamente relacionadas, o
funcionamento de uma depende da outra. Ou seja, quando elaboramos/produzimos o discurso, que é repleto de sentidos,
sempre colocamos em silêncio outros dizeres, outros sentidos. De acordo com Orlandi (op.cit., p. 75), o silenciamento
“produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, isto é, se diz 'x' para não (deixar) dizer 'y' este sendo o sentido a
se destacar do dito”.
É no silenciamento que buscaremos desvelar os sentidos que não estão na superficialidade do discurso
(aparentes). O fato de termos como objeto de análise um anúncio publicitário que é veiculado pela mídia televisiva nos
permite refletir sobre as múltiplas possibilidades de sentido que não são apreendidas pelos consumidores, mas que , no
entanto, estão postas.
A partir dessas reflexões do nosso percurso teórico, poderemos passar para a próxima etapa do nosso trabalho: a
análise do nosso corpus.

3- Considerações sobre a imagem da família no anúncio publicitário da margarina Qualy: análise de um


Acontecimento
Antes de fazermos as análises, apresentaremos a descrição dos episódios da novela Qualy que têm sido
veiculados pela mídia televisiva. O comercial apresenta quatro personagens: Ana (mãe), Rafa (menino), Beto (namorado
de Ana) e a Avó do Rafa.

Episódio 1 – A notícia
Ana- Rafa, “cê” sabe o Beto aquele meu amigo?
Rafa- Beto? Não, não sei quem é não.
Avó- Ah, mas vai saber. Sua mãe oh... tá namorando.
Ana- Mãe?!
Rafa- Mãe, que história é essa?
Slogan – (Ana) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia.

Episódio 2 – O encontro
Rafa- Esse aí é o Beto. Se ele tá aqui e eu tô aqui, isso é um péssimo sinal.
Beto- E aí “rapá”? Tava louco pra vim aqui te conhecer.
Rafa- Você pode namorar minha mãe, mas aqui tem regras: dez horas em casa. Beijo na boca? Uhgh! Nem pensar. E o
pote da Qualy é meu.
Ana- Licença (A mãe o retira da mesa).
Rafa- Tô de olho em você.
Avó- Liga não! Esse menino é muito careta.
Slogan – (Rafa) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia.

Episódio 3 – Convite
Beto- (Chegando com os pães) Bom dia!
Ana- Bom dia!

852
Rafa- A coisa por aqui tá cada dia mais séria. Por isso eu resolvi lidar com a situação de forma bem madura: decidi que o
Beto não existe (Flash back: Beto oferece presentes – bicicleta, sorvete e cachorro – os quais o menino recusa). Não é fácil,
mas eu tenho que ser duro para o meu próprio bem (Beto oferece um pote cheio de margarina Qualy quando vê o pote do
Rafa vazio). É... o cara é bom!
Slogan – (Beto) Qualidade de vida começa com Qualy da Sadia.

Análises:
Há algum tempo, a instituição família vem ganhando novos contornos a partir de mudanças que a própria
sociedade impõe. As condições amplas de produção de discurso que analisamos referem-se a um novo modelo de família,
a uma nova posição da mulher na sociedade e a uma maior participação das crianças nas decisões familiares e no
consumo. Segundo pesquisa do IBGE, em 1996 , havia 10,3 milhões de mulheres chefes de família no Brasil e, em 2006,
foram registrados 18,5 milhões, ou seja, um aumento de 79%. Esses dados nos mostram que o formato da família sofreu
alterações significativas nos últimos tempos.
Se observarmos o comercial atual da margarina, a posição da criança é de querer sobrepor sua vontade e ser
autoritário como nas falas do episódio 1: Rafa- Mãe, que história é essa? E do episódio 2: Rafa- Você pode namorar minha
mãe, mas aqui tem regras: dez horas em casa. Beijo na boca? Uhgh! Nem pensar. E o pote da Qualy é meu. Assim,
percebemos a posição da criança que impõe sua vontade prevalecente na sua relação com os adultos.
No primeiro episódio, colocam-se as quatro principais personagens da novela, e se definem seus papéis. A mãe –
solteira/divorciada/viúva - que procura, com muito cuidado, contar ao filho que está namorando. O filho que tenta fazer de
conta que não está entendendo. A avó moderninha que fala as coisas sem meios termos. E o ainda ausente namorado, o
Beto. Percebemos, em um primeiro olhar, que a mãe age como uma filha pedindo autorização para o pai para poder
namorar, o que fica visível na forma hesitante com que tenta falar ao filho sobre o namorado. Enquanto isso, o menino age
com autoridade, de forma patriarcal com a mãe (que história é essa, mãe?). Já a avó, representante de uma geração que
viveu sua juventude em meio aos movimentos de contestação dos anos 60/70, não reproduz, não alimenta a hesitação da
filha, dá a notícia de uma vez, sem se intimidar com a posição do menino. Esses movimentos de inversões entre as
gerações, entre as figuras familiares, representa as práticas sociais que cercam a família contemporânea. Muito se fala hoje
da predominância dos desejos das crianças no interior da família, em uma geração em que, pela primeira vez, não são os
filhos quem precisam pedir autorização para os pais, mas o contrário.
Essas modificações sociais fazem parte do conjunto de práticas que configuram as formações ideológicas, em
constante processo de movimentação. A publicidade da Qualy, nesse caso, materializa discursivamente o que ocorre nas
formações ideológicas. No momento em que um discurso – o discurso publicitário dos comerciais de margarina sobre a
família – traz alguma transformação em sua formulação, podemos perceber que as práticas sociais já permitem que essas
transformações se materializem nos dizeres.
A configuração contemporânea da família difere muito da família tradicional, matriz da consolidação da sociedade
burguesa. Onde antes a imagem da família abarcava a mãe dona-de-casa, o pai provedor e os filhos obedientes, todos
reunidos em torno da mesa do café da manhã, cumprindo um ritual de família feliz, neste comercial a familia representa as
novas possibilidades que surgem com o aumento do número de divórcios, com a consolidação da mulher no mercado de
trabalho e com a nova situação dos filhos em relação à autoridade dos pais. No comercial da Qualy, o café da manhã não é
apresentado como um ritual, mas como um momento casual, tranquilo, em que a mãe tenta, com receio, explicar a sua
situação ao filho.
O que podemos apreender do que está silenciado nesse discurso é que apesar de a mulher ter conseguido um

853
espaço no mercado de trabalho, assumido um outro papel (de provedora do lar) que antes era do homem, ainda continua a
cumprir suas funções de dona de casa. O lugar da mulher é sempre colocado como aquele que sempre lhe foi atribuído
pela sociedade machista – esposa e mãe. Ainda que o anúncio procure se adequar às novas exigências da sociedade
contemporânea (mulher independente, provedora) existe sempre uma ressalva para mostrar que ainda o seu papel é o de
cuidar. O discurso da criança (Rafa) nos mostra que homens e mulheres se mantêm em posições bastantes distintas, o
controle por parte deles e a submissão por parte delas.
Na atualidade, o sentimento de valorização da infância chegou a tal ponto que temos uma inversão, a infância e a
juventude como valores absolutos da sociedade, e o número de produtos destinados a essas faixas etárias – cada vez mais
especializados e diversificados – aumenta a cada dia, alimentando um mercado em constante reinvenção.
No segundo episódio, a linguagem das personagens nos permite tratar das diferentes posições sujeito e inversões
de papéis desses sujeitos em relação à família tradicional. Enquanto Beto e a avó usam uma linguagem mais coloquial,
linguagem que seria apropriada aos mais jovens (em uma estrutura convencional), assumindo, no discurso, uma posição
de sujeito mais moderna, Rafa utiliza uma linguagem mais formal, fala com autoridade de um pai de família (aqui tem
regras) e utiliza do pensamento analítico (se ele tá aqui e eu tô aqui, isso é um péssimo sinal). Essa inversão de posições
se confirma com a fala da avó (esse menino é muito careta).
Quando se fala que alguém é “careta”, os sentidos produzidos (sentidos construídos historicamente) se referem a
alguém “certinho” demais, que tem uma visão retrógrada da vida, da sociedade e do comportamento das pessoas. É
comum que os representantes de uma geração designem como “caretas” os representantes da geração precedente. Na
propaganda que analisamos, ocorre o contrário: alguém de uma geração anterior chama de “careta” o membro mais novo
da família. Conforme diz Pêcheux, os sujeitos não são livres para dizer qualquer coisa em qualquer lugar. As formações
discursivas determinam o que pode/deve ser dito por sujeitos identificados a elas. Os sentidos possíveis são construídos
historicamente, e se movimentam no percurso histórico. É o que nos permite dizer que no discurso familiar - que se faz
representar nos comerciais de margarina – opera-se atualmente uma permeabilidade entre os dizeres. Materialização de
práticas sociais (a inversão ou mescla de papéis dos membros da família), o discurso permite a inversão (a avó chamar o
neto de careta).
E como ocorre a materialização das práticas sociais? E como ocorrem as mudanças dessas práticas? Tomemos
como exemplo a questão da velhice.
Os avanços da medicina, a conscientização sobre a alimentação saudável e a prática regular de exercícios físicos
são os grandes responsáveis pelo aumento na expectativa de vida dos brasileiros. Com isso, o mercado de produtos e
serviços tem investido muito nos idosos. As agências de turismo fazem, com freqüência, pacotes especiais de viagem para
a “feliz idade” e já existem grupos de modelo dessa faixa etária desfilando no São Paulo Fashion Week. Além disso, os
idosos ajudam a manter a renda de 10.000.000 de lares no Brasil. Assim, por tudo que precede, percebemos que o idoso
que apresenta saúde tem alterado seus hábitos de comportamento, renegando a imagem de uma pessoa frágil e
decadente, conquistando voz ativa no espaço familiar.
Dessa feita, percebemos que essas mudanças atreladas aos discursos sobre “a melhor idade”, tão disseminados
nos últimos anos, têm influenciado a forma como os idosos se veem e são vistos no seio social.
E esses discursos têm sido recorrentes nos anúncios publicitários e em programas de TV. Nas décadas de 60, 70
e 80 do século passado era comum se ver a figura dos vovôs com deficiência de audição e de locomoção em programas de
humor e em anúncios comerciais, o que contribuía para consolidar os efeitos de sentido que atrelavam o grupo de idosos a
uma faixa etária decadente. Hoje, percebemos uma nova tendência nas formas de ver o velho, como, por exemplo, o modo
como o idoso é representado na novela “Cama de Gato”, recentemente exibida pela Rede Globo de Televisão, em que os

854
atores Pedro Paulo Rangel, Suely Franco, Berta Loran e Luiz Gustavo interpretam personagens da terceira idade que vivem
em um asilo nada convencional. Suas atitudes, nessa novela, são frequentemente identificadas com as dos jovens.
Interessante é observar, nessas encenações, as representações do antigo velho e o do novo velho, visto que os discursos
desses personagens dialogam com o discurso da personagem de Lupe Gigliotti que se apresenta ainda no modelo
conservador de idoso. Assim, verificamos dois tipos de idoso nessa dramaturgia: um antiquado e o outro, moderno.
Semelhante ao exemplo acima são algumas campanhas publicitárias da cerveja Skol que têm explorado bastante
essas mudanças no comportamento dos idosos. Um comercial dessa companhia veiculado recentemente pela TV,
intitulado Asilo Redondo Skol, exibe muitos velhinhos em uma casa de repouso assistindo ao jogo da Seleção Brasileira na
Copa do Mundo de Futebol. Quando a Skol é servida, eles saltam e fazem uma festa, cantando, em ritmo de rock,
“Redondo, redondo, Skol desce muito mais...” O comportamento também é, mais uma vez, identificado com o dos jovens.
Em 2006, essa conhecida indústria de cerveja patrocinou também as campanhas Roqueiros Skol e Gatinhas Skol . Na
primeira, aparecem quatro velhinhos, sentados à mesa de um bar, os quais se levantam e começam a cantar e dançar
como roqueiros metaleiros. A segunda, semelhante à primeira, quatro velhinhas fazem o mesmo.
É possível perceber, portanto, como as mudanças nas práticas sociais ocorrem e como a palavra reflete e refrata
essas mudanças nos discursos da vida cotidiana.
No terceiro episódio, percebemos a marca das necessidades criadas nos sujeitos para que eles consumam os
produtos à venda. Beto tenta seduzir o menino com vários objetos de interesse comum às crianças (sorvete, bicicleta,
cachorro). Mas a publicidade, como dissemos acima, tem a missão de vender um ideal, e não um produto concreto. Rafa
rejeita tudo aquilo que engataria o desejo de um menino, mas não resiste a um pote de Qualy. A falácia, o engodo é de que
um garoto iria preferir um pote de margarina a uma bicicleta. O comercial constrói o sentido de que tudo está bem e se
resolve bem se a Qualy está presente.
Apenas para traçar uma relação desse terceiro episódio com a prática de produzir necessidades, trazemos um
cartoon da Mafalda, personagem de Quino:

A mídia constrói necessidades artificiais, que os sujeitos acabam investindo como necessidades reais como afirma
Charaudeau (2009, p. 29) as mídias manipulam e , dessa forma, “os jogos de aparências se apresentam como informação
objetiva, denúncia do mal e da mentira, explicação dos fatos e descoberta da verdade”. Assim, a imagem da Qualy passa a

855
ser associada a um ideal de família e de realização pessoal, de felicidade. No entanto, se a mídia constrói castelos de
sonhos, não o faz sobre as nuvens, isto é, se ela constrói desejos e imagens, faz sobre a base das práticas sociais
cotidianas. É por isso que podemos dizer que as novas articulações socias da família sustentam o discurso da margarina
Qualy. Os desejos são construídos sobre o terreno firme da vivência cotidiana da sociedade. Lembrando que o discurso é
materialização da ideologia (via formações discursivas e ideológicas), dizemos que ele não diz mentiras, não cria uma
realidade falsa, mas oculta, não diz toda a verdade, maquia, mascara.

Considerações Finais

Como vimos, vozes e silêncios no discurso materializado na novela Qualy se entrecruzam e estes ainda se
imiscuem e se contradizem com a memória dos lugares e papéis ocupados pelos sujeitos na instituição familiar no seio
social.
Percebemos que o acontecimento discursivo emerge exatamente dos sentidos dos dizeres dos sujeitos que
rompem com a estrutura da língua, visto que emanam não apenas desta última e o contexto imediato da enunciação, mas
também da relação das mudanças sociais com a língua.
E, para finalizar, citamos Ana Zandwais (2009, p.36) que, ao comentar sobre o conceito de desidentificação do
sujeito apontado por Pêcheux, assim afirma,

Trata-se, portanto aqui, de uma modalidade de subjetivação que rompe com os saberes próprios das
FDs, estilhaçam pré-construídos, substituindo-os por outros, reverte saberes e práticas,
reconfigurando, assim, tanto a formação ideológica como a formação discursiva que apresentam o
indivíduo como sujeito em uma dada conjuntura histórico-social, para que se instaurem novas práticas
sociais, capazes de identificar a formação ideológica, novas ideologias e discursos, em que os sentidos
apontam para efeitos interditados ou castrados pela instituição, pela lei, pelo Estado, em virtude das
desigualdades sociais, ou ainda sentidos impensados em função da cristalização de saberes, da
dominância das condições de reprodução sobre as condições de transformação.

Em discursos materializados em anúncios de margarina mais antigos, era, para o público consumidor,
“impensado”, figurar uma mulher sem marido, um filho que impõe sua vontade, uma avó que chama o neto de careta.
Percebemos, portanto, no discurso da margarina Qualy, a desidentificação de um sujeito que outrora fora identificado com
um determinado tipo de prática social.
Vemos, portanto, nesse novo modo de fazer publicidade da novela Qualy, o irromper, na palavra, de “novas
práticas sociais [...], novas ideologias e discursos”. É o signo na/da história, fazendo nova história.

856
Referências

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
CARVALHO, N. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2002.
CAVALCANTE, Maria do Socorro Aguiar de Oliveira. Qualidade e cidadania nas reformas da educação brasileira: o
simulacro de um discurso modernizador. Maceió: Edufal, 2007.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2009.
COURTINE, Jean Jacques – Analyse Du discours politique (Le discours communiste adressé aux chrétiens) in:
Langages – Paris, Larousse, 1981.
FLORÊNCIO, Ana Gama et alli. Análise do Discurso: fundamentos e prática. Maceió: Edufal, 2009.
LACAN, J. O Seminário, Livro 4: A Relação de Objeto. RJ: Zahar, 1995.
MAGALHÃES, Belmira. As marcas do corpo contando a história: um estudo sobre a violência doméstica. Maceió:
EDUFAL, 2005
MALANGA, Eugênio. Publicidade – uma introdução. Atlas: São Paulo, 1979.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 1999.
______.As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4.ed. São Paulo:Unicamp, 1997.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Orlandi. São Paulo: Pontes, 1990.
______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
ZANDWAIS, Ana. Perspectivas da análise do discurso fundada por Michel Pêcheux na França: uma retomada de
percurso. Santa Maria: UFSM, Programa de Pós-graduação em Letras, 2009.

Informações sobre as autoras:

Ahiranie Sales dos Santos Manzoni – Doutoranda em linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Alagoas.
Linha de pesquisa: Análise do Discurso. (ahiranie@hotmail.com)
Daniela Botti da Rosa – Doutoranda em linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Universidade Federal de Alagoas.
Linha de pesquisa: Análise do Discurso. (dani.botti@hotmail.com)
Lisiane Alcaria de Oliveira – Mestranda em linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade
Federal de Alagoas.
Linha de pesquisa: Análise do Discurso. (lisialca@hotmail.com)

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A ação coadjuvante do leitor na produção do discurso
midiático

MARCHON, Amanda Heiderich


(UFRJ)

Ao considerarmos que o homem vive e constrói sua humanidade por meio da linguagem, torna-se de fundamental
importância analisar as várias formas de comunicação social presentes nas interações discursivas.
A Língua coloca à disposição dos falantes uma infinidade de recursos que precisam os limites dos sentidos da fala
e de sua utilização. Como estudar a Língua implica levar-se em conta a enunciação, que se manifesta no enunciado e nele
imprime suas marcas, a Análise do Discurso, no interior das Ciências da Linguagem, preocupa-se com as várias maneiras
de se perceber a realidade e considera que há um sujeito que atravessa a relação linguagem–mundo, sujeito este que
registra, por meio de certos elementos linguísticos, seu maior ou menor comprometimento em relação ao conteúdo que
enuncia, expressando diferentes atitudes, em função de seus objetivos e condicionamentos situacionais e interacionais.
Em virtude da influência que os textos midiáticos exercem sobre a sociedade, o presente estudo tem por objetivo
analisar a subjetividade discursiva dos textos midiáticos. Sob a hipótese de que todo sujeito define-se na medida em que se
dirige a um outro – problemática da alteridade, estudada por Bakhtin –, tentaremos revelar as operações linguístico-
discursivas que um mesmo comunicante utiliza para atingir diferentes destinatários – podendo, até mesmo, constituir
múltiplos sujeitos enunciadores. Coletamos notícias e reportagens dos jornais EXTRA e O GLOBO – veículos de
comunicação das Organizações Globo – publicadas na primeira dezena do mês de março de 2009, sobre a interrupção da
gravidez da menina de nove anos, que ficou grávida de gêmeos após ter sofrido abusos sexuais do padrasto.
Ao analisarmos os índices de subjetividade mais frequentes no discurso dos referidos periódicos, pretendemos
investigar a ideologia que os norteia, bem como observar as marcas linguísticas que revelam seus ethé discursivos –
segundo a retórica clássica, imagem de si projetada pelo locutor através de seu discurso –, além dos dispositivos de que se
valem os jornalistas para atingir seus leitores e aferir legitimidade e credibilidade à imagem dos enunciadores veiculada pela
mídia impressa.
Sob a perspectiva da Semiolinguística, de Patrick Charaudeau, uma das bases teóricas para esta pesquisa,
buscaremos focalizar a voz que está por trás das notícias, cuja situação de comunicação se inscreve em um duplo contrato:
um de informação e outro de captação.
Assim, considerando que a significação discursiva é fruto da relação entre forma e situação sócio-linguageira, e
aceitando que o ethos possui materialidade linguística, já que se firma em marcas da enunciação, buscaremos, pois, discutir
a neutralidade ilusória que perpassa o discurso jornalístico, bem como o perfil dos jornais em estudo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA


Constituem-se como embasamento teórico da pesquisa as noções de enunciação e intersubjetividade de Émile
Benveniste, de alteridade de Bakhtin, aliadas aos avanços das teorias do texto visto como resultante da co-construção
dinâmica de um ato de comunicação, conforme princípios desenvolvidos pela Semiolinguística, de Patrick Charaudeau.
Em linhas gerais, a literatura teórica subsidiou a análise da enunciação que constitui os textos do corpus numa
abordagem do discurso mais preocupada com o fenômeno das interações sociais, buscando a reconstrução do espaço

858
interativo como um dos elementos significativos do ato da linguagem. Para tanto, foram colocados em evidência as relações
entre os atores enunciativos, a construção de sua imagem (identidade) e função social (ethos).
Nessa perspectiva de busca de sentido para os enunciados estudados, é de fundamental importância, para a
Teoria Semiolinguística, a noção de contrato de comunicação, responsável pela estruturação da matéria linguística de
acordo com a funcionalidade característica de cada gênero textual.
Em relação aos gêneros textuais analisados, optamos por compor nosso corpus por notícias e reportagens
publicadas pelos jornais EXTRA e O GLOBO, entre os dias 01 de março e 10 de março de 2009, sobre as repercussões do
abordo feito na menina de nove anos que era violentada sexualmente por seu padrasto. A opção por tais gêneros se
justifica pelas supostas – e ilusórias – neutralidade e imparcialidade características de tais textos.
Foram escolhidos os periódicos já citados, ambos das Organizações Globo, para uma melhor compreensão dos
processos de construção do ethos discursivo dos enunciadores em função dos receptores. Em outras palavras, buscamos
avaliar as estratégias de manipulação da linguagem de um mesmo EU enunciador em relação à captação de diferentes
leitores (TU destinatários).

O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO
Segundo Charaudeau, o ato da linguagem não deve ser concebido como um ato de comunicação resultante da
simples produção de uma mensagem que um emissor envia a um receptor. Ele deve ser considerado sob duas
perspectivas: a de produção e a de interpretação - interpretação – um encontro imaginário de dois universos de discurso
não idênticos, em que múltiplos sujeitos participam.
Do ponto de vista da produção do discurso, o sujeito que comunica - o EU- comunicante (EUc) -, ao produzir seu
discurso, idealiza um destinatário, um sujeito interlocutor, o TU-destinatário (TUd).
Já sob a perspectiva da interpretação, há um TU-interpretante (TUi) - que pode ou não coincidir com a idealização
do EUc – que interpreta a enunciação produzida. Esse sujeito, independente do EUc, constrói para si uma imagem deste, o
EU-enunciador (EUe), instituído a partir do ato discursivo.
Vale ressaltar que esse EUe, uma vez “gerado” a partir do ato enunciativo, é também constituído pelo próprio EUc,
que projeta uma imagem de si mesmo, o ethos discursivo, formado não pelo o que é dito, mas pela maneira como é dito.

SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO

DIZER

EUe TUd
Locutor – EUc Receptor –
Destinatário TUi
(Sujeito Enunciador
Comunicante (Sujeito
ESPAÇO INTERNO
– ser social) Interpretante –
ESPAÇO EXTERNO

Figura 1: A representação do ato de linguagem (CHARAUDEAU, 2009:52)

Nesse cenário, constrói-se o contrato de comunicação, caracterizado pela reunião de processos linguísticos e
psicossociais determinados pela situação de comunicação. Para tratar daquilo que torna legítima a construção dos sentidos

859
durante as interações humanas, o contrato é o que rege as expectativas mútuas dos sujeitos do ato de linguagem. Ato este
que pressupõe uma intencionalidade (dos sujeitos), depende da identidade dos parceiros, visa uma influência, é portador de
uma proposição acerca da realidade e realiza-se num tempo e num espaço determinados (a situação).
O contrato de comunicação impõe a obediência a dois princípios básicos: o direito à palavra – que um parceiro
deve conceder ao outro para que se processe o jogo comunicativo - e a exigência de um saber comum partilhado - que
pode ser de ordem linguística, experiencial ou interdiscursiva.
Toda situação de comunicação depende, portanto, de um contrato (normalmente implícito), que prevê um espaço
de estratégias discursivas - uma margem de manobra que os sujeitos comunicantes dispõem para executar seu projeto de
fala -, bem como um espaço de restrições – condições mínimas às quais é necessário atender.

O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO MIDIÁTICO


Para Charaudeau, a situação da comunicação midiática se inscreve em um duplo contrato: um de informação e
outro de captação.
O contrato de informação centra-se na informação propriamente dita e tende a produzir um objeto de saber
segundo uma lógica cívica: informar o cidadão. A obediência a certas regras busca garantir a credibilidade do jornal e do
conteúdo veiculado: emprego de recursos gramaticais que simulam o afastamento do sujeito comunicante (uso de 3ª
pessoa, voz passiva etc.); autenticidade dos fatos e imparcialidade nos relatos (reconstrução narrativa dos acontecimentos
através das vozes discordantes, que representam diferentes visões e interpretações); os julgamentos, quando ocorrem,
devem ser balizados por informações precisas de dados ou por depoimentos de testemunhas.
O contrato de captação procura produzir um objeto de consumo segundo uma lógica comercial – captar as
massas para sobreviver à concorrência. Busca seduzir os leitores através de formas retóricas e interpelativas: as
manchetes, os conteúdos chocantes e dramáticos, os sinais de identificação afetiva e axiológica etc.
Dessa forma, as empresas de mídia se constroem numa visão psicossociológica do público que passa a guiar as
escolhas redacionais e as estratégias de funcionamento do jornal, constituindo uma base relevante de elaboração dos
parâmetros contratuais que orientam a comunicação. A escolha dos conteúdos e o tratamento da informação estão
relacionados com a identidade dos leitores, dessa forma, co-autores do discurso da informação.

NOTÍCIA & REPORTAGEM


A informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem não é
transparente ao mundo, ela apresenta sua própria opacidade através da qual se
constrói uma visão, um sentido particular de mundo. (CHARAUDEAU, 2007:19)

Charaudeau propõe chamar notícia a um conjunto de informações:


• que se relaciona a um mesmo espaço temático: o acontecimento é um fato que se inscreve num certo domínio do
espaço público, e que pode ser reportado sobre a forma de minirrelato.
• que tem caráter de novidade: não significa, necessariamente, que não se tenha falado antes do acontecimento, mas é
trazido um novo elemento que, até então, era desconhecido.
• que pode ser diversamente tratado: no mesmo instante em que se dá a notícia, ela é tratada sob a forma discursiva
(descreve o que passou, reporta reações, analisa fatos).

860
A reportagem, apesar de preexistir ao surgimento da notícia, não está, necessariamente, ancorada na atualidade.
Ao relatar um acontecimento, deve adotar um ponto de vista distanciado e global e deve propor, ao mesmo tempo, um
questionamento sobre o fenômeno tratado, integrando um comentário.
Contudo, a garantia de imparcialidade da reportagem é um tanto ilusória, uma vez que, não há questionamento
nem tentativa de análise que possa fazer-se fora de um modo de pensamento crítico: toda construção de sentido depende
de um ponto de vista particular e todo procedimento de análise implica tomadas de posição.
Charaudeau explica que a neutralidade dos gêneros textuais que compõem nosso corpus pode ser preservada –
ou disfarçada – o jornalista adota a técnica da “gangorra”, ou seja, propõe pontos de vista diferentes, até mesmo contrários,
sem hierarquizá-los (ou fazendo em dose mínima), e cuja conclusão se resume numa série de novas questões, cujas
respostas ficam a cargo do leitor para que este possa construir seu pensamento.

A MESMA EMPRESA, DOIS JORNAIS


Com o propósito de identificar a presença dos múltiplos sujeitos envolvidos no ato enunciativo e de apontar que a
intenção comunicativa de um mesmo comunicante pode levá-lo a construir um sujeito enunciador distinto, a depender do
destinatário que ele idealiza, com base nos pressuposto apresentados, propomo-nos a analisar as notícias e reportagens,
publicadas na primeira dezena do mês de março de 2009, sobre o abordo feito pela menina de nove anos após ter sido
estuprada pelo padrasto.
Em relação aos dois veículos de comunicação ora analisados, podemos afirmar que detém o mesmo sujeito
comunicante, já que pertencem à mesma empresa (Organizações Globo), e, na maioria das vezes, apresentam os mesmos
jornalistas responsáveis pela cobertura das matérias. Ao comparar as notícias e reportagens no interior do jornal, fica
evidenciado que retratam, basicamente, os mesmo fatos, sendo, inclusive, muitos textos idênticos. Todavia, o sujeito
enunciador é bastante distinto, projetado a partir das diferenças socioeconômicas e culturais dos sujeitos destinatários de
cada periódico.
Quanto a essa instância receptora dos textos midiáticos, vale lembrar que é projetada, pela instância de produção,
a partir de hipóteses feitas sobre um conjunto impreciso de valores étnico-sociais e afetivo-sociais.
De acordo com Charaudeau, os leitores, quanto à dupla finalidade do contrato de comunicação, podem ser
abordados de duas maneiras: como alvo intelectivo ou como alvo afetivo.
O alvo intelectivo é considerado capaz de avaliar seu interesse com relação àquilo que lhe é proposto,
à credibilidade que confere ao organismo que informa, a sua própria aptidão para compreender a
notícia, isto é, ter acesso a ela. Um alvo intelectivo é um alvo ao qual se atribui a capacidade de
pensar. (CHARAUDEAU, 2007: 80)

Um alvo afetivo é, diferentemente do precedente, aquele que se acredita não avaliar nada de maneira
racional, mas sim de modo inconsciente através de reações de ordem emocional. Assim sendo, a
instância midiática constrói hipóteses sobre o que é o mais apropriado para tocar a afetividade do
sujeito alvo. (CHARAUDEAU, 2007: 81)

EXTRA: O TOM HIPERBÓLICO


O jornal Extra é, em geral, lido pelas camadas mais populares da sociedade, um público socioeconomicamente
menos abastado. Na análise de seus textos, não percebemos uma preocupação com o emprego de estruturas linguísticas e
termos rebuscados. Ao contrário, notamos a aproximação maior da linguagem coloquial, sugerindo, então, a imagem de um
sujeito enunciador que conhece e legitima os interesses do público alvo, considerando-os relevantes, “falando a mesma
língua”, dando-lhes espaço e voz, numa sociedade em que isso não ocorre. Comparativamente com O Globo, em relação

861
ao conteúdo veiculado, percebemos um significativo enfoque a fatos polêmicos e que apelam para a emoção do leitor, como
relatos de mortes e crimes, por exemplo.
Por apresentar esse teor, com relação à interrupção da gravidez da menina de nove anos que era violentada pelo
padrasto, no município de Lagoinha, no agreste de Pernambuco, surpreendeu-nos, inicialmente, o discreto enfoque dado ao
caso de violência alarmante que levou os dogmas da Igreja Católica ao júri popular: autoridades governamentais e
religiosas, católicos e não-católicos discutiram a decisão do arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, de
excomungar a mãe da vítima e os profissionais envolvidos no aborto. Entre os dias 01 de março de 2009 e 10 de março de
2009, o Extra publicou três notícias e uma reportagem sobre o assunto, enquanto O Globo dedicou cinco reportagens ao
caso.
Inicialmente, no dia 02 de março de 2009, o periódico publicou uma pequena notícia explicando as circunstâncias
em que ocorreu a concepção dos gêmeos – desde que tinha 6 anos, a vítima era estuprada pelo padrasto, que, ainda
violentava a outra enteada, de 14 anos e deficiente física – e a descoberta da gravidez – após se queixar de dor a criança
foi levada, pela mãe, ao hospital.
O texto, intitulado GRAVIDEZ DE MENINA, DE 9 ANOS, SERÁ INTERROMPIDA, informa que a família da garota
solicitou o aborto por conta dos riscos. Contudo, nenhum questionamento sobre tal solicitação foi levantado, aliás, o termo
aborto nem é empregado, apenas expressões como interrupção da gestação e interromper a gravidez, o que sugere um
procedimento normal em casos como o descrito.
No dia 05 de março, após a cirurgia para a retirada dos fetos, o jornal publica nova notícia sobre o acontecimento,
desta vez, trazendo uma foto da menina de mãos dadas com um adulto, cuja legenda enfoca a fragilidade da vítima e a
violência cometida pelo padrasto: Menina estuprada pelo padrasto tem 1,33m e pesa 36 Kg. O sintagma nominal menina
estuprada ganha destaque em negrito e em letras maiúsculas, o que remete a um campo semântico em que se constrói a
antítese entre infância, pureza versus sexo, violência.
Em tom hiperbólico e, desta vez não poupando o emprego dos termos estupro e aborto, a manchete APÓS O
ESTUPRO, ABORTO DE GÊMEOS, cria um universo violento, em que duas vidas são sacrificadas. Na tentativa de captar o
leitor – uma das finalidades do contrato de comunicação midiático –, a escolha lexical mexe com as emoções do receptor e
aborda-o enquanto alvo afetivo.
Apesar de o subtítulo se referir ao posicionamento da Igreja em relação ao fato –“Igreja tentou evitar a cirurgia” – e
de o texto citar que o arcebispo de Olinda lamentou o aborto, a notícia passa a construir um cenário racional, ao justificar a
interrupção da gravidez, publicando a declaração feita pelo diretor da maternidade onde a cirurgia foi feita:

- O risco maior seria a continuidade da gravidez. Uma criança de 9 anos não tem ainda seus órgãos
formados. Se tudo correr bem, ela deve ter alta amanhã.

As palavras do médico – um testemunho de autoridade - ganham ainda mais força quando associadas à foto e à respectiva
legenda, em que aspectos físicos da menina são descritos com precisão, abordando o leitor, desta vez, como alvo
intelectivo, como prevê a teoria semiolinguística.
Na única reportagem dedicada ao caso que chocou o país e o mundo, o jornal, no dia 06 de março de 2009,
aborda a decisão da Igreja de excomungar todas as pessoas envolvidas no aborto e as críticas a essa pena feitas por
ministros do governo brasileiro, intitulando o texto de UMA TROCA DE CONDENAÇÕES.
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, condena a decisão da Igreja Católica e considera “lamentável” a
atitude do arcebispo. Já o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, é mais enfático e considera o ato “medieval”. Vale

862
ressaltar que os adjetivos empregos pelos governantes para qualificar a posição do religioso aparecem destacados por
aspas também no texto original.
O emprego do verbo ratificar imprime a posição firme da Igreja em condenar o ato que considera criminoso:
Todos os profissionais que participaram do aborto estão excomungados. Foi o que ratificou o
Arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, ao reagir às críticas do
Ministro da Saúde à posição da Igreja Católica. (grifos nossos)

Se considerarmos que o texto resulta de uma certa “mise-en-scène” organizada pelo sujeito enunciador – um dos
princípios teóricos seguidos nesta pesquisa –, o verbo reagir adquire contornos especiais e remete o leitor a um ambiente
de luta e discórdia, o que justifica a manchete.
Outro ponto interessante nessa reportagem é a organização sintática do subtítulo – Igreja excomunga mãe e
médicos que fizeram aborto em menina no Recife e é criticada por ministros de Lula –, em que as cláusulas paratáticas
(orações coordenadas, na Gramática Tradicional) remetem a uma leitura hipotática, ou seja, adquirem contornos de oração
adverbial, sugerindo a seguinte interpretação: Igreja é criticada por ministros de Lula porque excomunga mãe e médicos
que fizeram aborto em menina no Recife, como se o governo tivesse poderes para julgar os atos religiosos. O emprego do
adjunto adnominal de Lula ainda sugere que também o presidente compartilha de tais críticas, sem, contudo, ter se
pronunciado. Esse recurso discursivo, sutilmente, denuncia a posição do enunciador contra o governante, ao criar um clima
de rivalidade entre Estado e Igreja, o que fere a fé do povo e pode prejudicar a popularidade do governo.
Apenas no dia seguinte (07 de março de 2009), o periódico publica as declarações do presidente, que ainda não
havia se manifestado sobre o fato – embora a reportagem do dia anterior sugerisse seu posicionamento. A manchete (LULA
CRITICA A IGREJA E APÓIA O ABORTO), de início já causa impacto pelo tom autoritário empregado, criando um jogo de
contraste entre os verbos criticar e apoiar, bem como o distanciamento entre Estado e Igreja. Todavia, o subtítulo, num tom
muito mais ameno modaliza o discurso e justifica a opinião do presidente: “Presidente defende cirurgia, já que menina corria
riscos.”. Não se fala mais em aborto, mas em cirurgia, genericamente, um procedimento médico usado para salvar vidas. O
conectivo já que estabelece um elo entre as duas orações e deixa explícito que a intenção de Lula é preservar a menina. De
acordo com Halliday (2004:587), a conjunção fornece ao falante/escritor o recurso para marcar uma transição no
desenvolvimento do texto, isto é, permite-lhe expandi-lo, passo a passo, delimitando as relações retóricas utilizadas. O autor
afirma, ainda, que as relações marcadas por conjunções são semânticas, organizando o texto como um fluxo de
significados.
Para atribuir credibilidade à notícia – ou criar mais polêmica –, o jornal publica, sob a forma de discurso direto, a
comparação que Lula faz entre ciência e religião:
- Não é possível permitir que uma menina estuprada por um padrasto tenha esse filho, até porque a
menina corria risco. Acho que, neste aspecto, a medicina está mais correta do que a Igreja.

Ao longo da análise qualitativa dos textos do Extra, observamos que este periódico busca seduzir o leitor por meio
da manchete, em que as escolhas lexicais buscam envolver o leitor por meio do emprego de um vocabulário simples, mas
que, ao mesmo tempo, remete a um campo semântico violento. O processo de semiotização do mundo se dá sem
eufemismo ou sutileza.
Por outro lado, os textos se restringem à focalização dos fatos em si mesmos, limitando-se à narração dos
acontecimentos, sem questionamentos explícitos ou implícitos – na verdade, um resumo do texto publicado pelo jornal O
Globo e assinado pelos mesmos jornalista. Aventuramo-nos a dizer, inclusive, que o enunciador idealiza um leitor passivo,
apenas receptor de um texto curto e que não o convida a pensar.

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O GLOBO: FORMADOR DE OPINIÃO
Veículo de comunicação consumido, genericamente, pelas elites sociais A e B, as escolhas dos títulos e temas
abordados, cuja ênfase recai sobre questões políticas e econômicas, a seleção vocabular, a linguagem cuidada nos levam a
reconstruir uma imagem de enunciador que busca ratificar o poder de decisão centrado nas classes sociais às quais se
destina.
Num processo que tenta relacionar os componentes situacional e linguístico (bases da semiolinguística), o veículo
busca, nas escolhas lexicais e nas estratégias de apresentação do fato, construir determinada “leitura” a respeito da
discussão sobre o aborto feito pela menina de nove anos que engravidou do padrasto após abusos sexuais constantes
praticados pelo mesmo.
Enquanto o Extra publica, no dia 02 de março, a notícia do aborto que ainda será realizado, O Globo só noticia o
fato depois que a cirurgia foi realizada, já levantando a polêmica em relação à legitimidade da intervenção cirúrgica para a
retirada dos fetos.
A reportagem do dia 05 de março é bem mais detalhada do que a publicada, no mesmo dia, pelo outro jornal em
estudo. Embora traga a mesma foto – a da menina de costas e de mãos dadas com uma mulher de branco –, a legenda não
faz menção aos aspectos físicos da garota, que a impossibilitariam de levar até o fim a gravidez de gêmeos, como no Extra.
Contudo, a própria imagem já apela para isso, num destaque muito mais nítido à diferença de tamanho entre a criança e a
adulta que a guia. Espera-se que o leitor, ao observar a foto, faça tais inferências.
Apesar da maior sutileza na escolha lexical, característica d’O Globo, a manchete emprega palavras de um campo
semântico repleto de violência: MENINA DE 9 ANOS ESTUPRADA POR PADRASTO ABORTA, abordando o leitor como
alvo afetivo. O subtítulo relata a posição contrária da Igreja em relação à decisão da mãe da menina, entretanto, o
enunciador, sutilmente, por meio de uma oração concessiva ressalta que tudo foi feito dentro da lei, o que vai de encontro à
instituição religiosa: Igreja Católica ameaça processar mãe da vítima por interrupção da gravidez, mesmo tendo sido feita
dentro da lei (grifos nossos).
O jornal, fazendo uso da técnica da “gangorra” para garantir sua imparcialidade, coloca em confronto os discursos
do arcebispo que excomungou os responsáveis pelo aborto e do médico que o realizou. Todavia o destaque maior é dado
para a voz da ciência.
O mesmo acontece quando cita os argumentos usados pelo advogado da Arquidiocese, que apresentará denúncia
com base nos artigos 1º e 5º da Constituição, que asseguram a inviolabilidade do direito à vida. Numa hierarquia de
poderes, o Ministério Público afirma que acompanhará o caso, mas ressalta que a legislação brasileira permite o aborto em
vítimas de estupro.
A reportagem do dia seguinte (06 de março) traz as fotos da diretora do hospital onde foi feito o aborto e a do
religioso que condenou o ato. É interessante que a disposição gráfica das fotografias sugerem um confronto entre a médica
e o arcebispo, como em apresentações de jogos ou lutas, em que as imagens concorrentes são separadas por um X
(versus).
Na tentativa de proteger a face, a argumentação do periódico contra a decisão da Igreja é camuflada pela
declaração do Ministro da Saúde que também condenou a excomunhão, um exemplo típico de testemunho de autoridade.
O posicionamento do enunciador torna-se mais explícito ao trazer um quadro com três opiniões de leitores sobre o
assunto: duas contra a decisão da Igreja e apenas uma a favor.
O apoio à interrupção da dita gravidez é reforçado com um outro quadro que relata um caso semelhante e que
não teve o mesmo desfecho. O enunciador começa esse texto (CRIME E DEMORA: Pai adotivo engravidou garota de 10
anos), com a seguinte afirmação:

864
A burocracia e a desinformação condenaram uma menina de 10 anos, da pequena estância gaúcha, a
levar até o fim um gravidez resultante do estupro cometido pelo padrasto.

No decorrer do texto, é explicado que os responsáveis não foram orientados a pedirem a interrupção da gravidez e, por
isso, a justiça não interveio, o que justifica o emprego dos substantivos burocracia e desinformação. Atentemos também
para o emprego do verbo condenar, impregnado de negatividade, explicitando a avaliação do jornal a respeito do episódio.
No dia 07 de março, O Globo continuou dando ênfase ao caso. Desta vez, a manchete, explicitamente, questiona
a atitude da Igreja, ao citar uma frase dita pelo arcebispo e, em seguida, condena a decisão no subtítulo: ‘ABORTO É MAIS
GRAVE QUE ESTUPRO’: Arcebispo excomunga médicos, mas não o estuprador de menina de 9 anos. A mesma
construção sintática de oposição, em que o argumento mais forte aparece depois da conjunção adversativa, é usada no
título do texto à parte: CNBB DEFENDE ARCEBISPO QUE EXCOMUNGOU MÃE E MÉDICOS E PEDE PUNIÇÃO AO
AGRESSOR, MAS NA JUSTIÇA.
Ainda em relação a essa reportagem, o trecho a seguir ilustra bem a questão da neutralidade ilusória das notícias
e reportagens discutida por Charaudeau.
O arcebispo de Olinda afirmou que o crime de estupro é “menos grave” que o de aborto. O arcebispo
fez a comparação ao justificar a excomunhão de todos os envolvidos no aborto legal realizado em uma
menina de 9 anos, estuprada pelo padrasto em Pernambuco, enquanto o criminoso não sofreu
qualquer punição da Igreja. (grifos nossos)

Numa leitura discursiva, além do uso das expressões sublinhadas, o emprego da cláusula secundária introduzida
pelo conector enquanto denuncia a posição do enunciador diante da polêmica excomunhão dos envolvidos no aborto feito
na menina violentada. O jornal O Globo discorda da decisão do religioso e ainda sugere que a Igreja, além de condenar
erroneamente a mãe da garota e os médicos que decidiram pela interrupção daquela gravidez, nada fez em relação ao
estuprador, o verdadeiro criminoso.
Um dia depois desta publicação, uma nova reportagem coloca em choque o Estado e a Igreja – o que o Extra
começou a fazer no dia anterior, ressaltando que a Igreja é criticada por ministros de Lula. A manchete subestima a
capacidade intelectual do presidente, considerado desabilitado pelo arcebispo para tratar de assuntos ligados à religião:
ARCEBISPO ACONSELHA LULA A CONSULTAR TEÓLOGO.
Em 10 de março, o tema volta às páginas d’O Globo – o Extra nada publicou – sob dois ângulos: possível
julgamento da mãe por negligência, caso seja comprovado que ela tinha conhecimento dos abusos sofridos pela filha; jornal
católico francês condena a excomunhão.
Novamente, a ênfase recai sobre a crítica à Igreja. A reportagem destaca que o periódico da França reconhece a
missão da Igreja, que proclama que a vida começa no momento da concepção, de defender esse direito à vida, mas
pergunta: E a vida da garota 9 anos não deve ser também protegida? É preciso ainda punir a mãe e os médicos? É
necessário punir as mulheres pelo crime dos homens?
Ao longo das análises, chamou-nos a atenção a repetição da expressão aborto legal em todos os textos do jornal
em tela, bem como a abundância de períodos complexos, especialmente de orações adversativas empregadas para refutar
a decisão da Igreja. Além disso, a opinião de especialistas e governantes mereceram destaque, estabelecendo uma
discussão ética a respeito do tema e convidando o leitor a tirar suas próprias conclusões, embora um tanto guiado a
concordar com o posicionamento do jornal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

865
Uma questão importante relacionada à produção textual reside na presença da subjetividade, que pode ser
evidenciada mediante marcas linguísticas deixadas pelo enunciador. No domínio discursivo do jornal, a questão ainda é
mais discutida, uma vez que a maior parte dos textos tem a função primeira de informar, e informar com imparcialidade.
Vários estudiosos discutem a neutralidade ilusória que permeia os gêneros jornalísticos, como Landowiski, que
afirma que o texto jornalístico é “uma forma objetivante de narrar o cotidiano, mas que necessariamente passa pela forma
subjetivante imposta pela constituição de um discurso.”
Assim, as notícias que inundam os periódicos diários são simples relatos de acontecimentos, ou seja, uma
interpretação de quem os relata, sob certo ponto de vista, determinados por uma perspectiva socioeconômica e balizados
por interesses comerciais. Esses fatores condicionantes contribuem para explicitar as ideologias que norteiam os veículos
de comunicação midiáticos, denunciam a presença de um sujeito que atravessa a relação linguagem-mundo, bem como
corroboram para a delineação do ethos discursivo que caracteriza cada jornal.
Portanto, desde a escolha dos fatos a serem veiculados até o tratamento redacional dado na transformação do
evento à notícia, percebe-se que a subjetividade é inerente ao processo de produção de texto, assim como o é a presença
de diversos sujeitos na interação comunicacional.
Através deste estudo, procuramos discutir, mediante a identificação de marcas linguísticas, a intencionalidade
discursiva que caracteriza e individualiza os jornais submetidos às análises, em especial Extra e O Globo, em função dos
leitores, verdadeiros co-autores dos textos publicados na mídia.
Ao longo desta pesquisa foi possível comprovar que o enunciador, no caso as Organizações Globo, apresenta o
mesmo posicionamento nos dois jornais, ainda que apresentando construções sintáticas distintas e vocabulários que tentam
se aproximar do público consumidor, como já discutimos. Em outras palavras, concluímos que um mesmo comunicante
utiliza estratégias linguísticas distintas em função dos destinatários – uma clara obediência ao duplo contrato de
comunicação midiática, que busca informar e seduzir os leitores.

REFERÊNCIAS
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Maria Aparecida Lino & GAVAZZI, Sigrid. (orgs.). Texto e discurso: mídia literatura e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna,
2005.

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BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2006

CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

____________________ Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

EMEDIATO, Wander. O problema da informação midiática entre as ciências da comunicação e a análise do discurso. In:
MACHADO, I. L., SANTOS, J. B. C. e MENEZES, W. A. (orgs.). Movimentos de um percurso em análise do discurso –
Memória Acadêmica do Núcleo de Análise do Discurso da FALE/UFMG. Belo Horizonte: NAD/POSLIN/UFMG, 2005.

GOMES, Regina Souza. A modalização em reportagens jornalísticas. In: Diadorim: revista de estudos linguísticos e literários
– N. 4, (2008). Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2008.

GOUVÊA, Lúcia Helena Martins. Leitura de texto informativo sob uma perspectiva semiolinguística. In: Diadorim: revista de
estudos linguísticos e literários – N. 4, (2008). Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas,
2008.

866
PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino, WERNECK, Leonor. & GAVAZZI, Sigrid. Jornal televisivo: estratégias argumentativas
na construção da credibilidade. In: CARNEIRO, Agostinho Dias (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor,
1996.

___________________. Estratégias argumentativas no discurso publicitário. In: PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino &
WERNECK, Leonor (orgs.). Estratégias de Leitura: Texto e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006.

AMANDA HEIDERICH MARCHON

Licenciada em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia.
Mestranda em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – Orientadora: Maria Aparecida Lino
Pauliukonis. Atuação profissional: Professora de Língua Portuguesa das redes estadual, municipal e privada de ensino,
respectivamente, Colégio Estadual Almirante Protógenes, Colégio Municipal Dermeval Barbosa Moreira e Colégio Nossa
Senhora das Dores, em Nova Friburgo.

ENDEREÇO ELETRÔNICO: claraeamanda@hotmail.com

867
A perspectiva da análise do discurso na cognição em
redes virtuais: a validade na relação entre ethos, logos e
pathos no processo de sociabilidade

MARINHO, Karla Azeredo Ribeiro


(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Considerações iniciais

Com o objetivo de desvendar o processo de comunicação numa comunidade virtual, foram observadas as práticas
discursivas dos atores sociais em interação no site Tornadeiros, de modo que se pudesse identificar como essas práticas
discursivas se encontram em constante reconstrução a partir do ethos1 descrito por Maingueneau (2005), que pressupõe
uma negociação permanente entre os sujeitos envolvidos em tais práticas sociais.
Antes, porém, foi preciso traçar uma espécie de genealogia das tribos de motociclistas, para dar conta de uma
análise fiel do objeto que se pretende investigar. Para dar conta desta investigação, situaremos historicamente o surgimento
das tribos de motociclistas, tomando como referência o estudo de Thompson (2004 apud MAIA & MESQUITA, 2007) que
reconhece as primeiras manifestações de tribos de motociclista, denominadas Moto Clubes no cenário de meados de 1940,
nos Estados Unidos da América, tomando parte do que seria conhecido posteriormente como contracultura. Esses grupos
eram constituídos por jovens maiores de idade e com boas condições financeiras capazes de adquirir uma motocicleta e
viajarem pelas estradas do país. Outra origem destes grupos ainda é datada do fim da II Guerra Mundial, quando alguns ex-
combatentes, decidiram viajar sem destino para esquecer os horrores de guerra, apresentando por onde passavam um
comportamento arredio e violento oriundo do trauma pós-guerra.
Nesta época, era comum, estes motociclistas pegarem as motos vindas de guerra e modificá-las, adaptando-as de
acordo com as características de cada dono. Seria o que hoje chamamos de customização. Deixar de acordo com o gosto
do proprietário usando de recurso artístico e criativo. Desse modo, percebe-se já nesta época, a tecnologia - materializada
na motocicleta – povoando o imaginário do homem.
Esse imaginário foi alimentado pela indústria cinematográfica de Hollywood com o lançamento de “The Wild One”
(O Selvagem, 1953) com Marlon Brando, “Easy Rider” (Sem Destino, 1969) com Peter Fonda e Denis Hopper e muitos
outros que se seguiram fomentando a idéia de que os motociclistas eram pessoas livres, selvagens, grupos reunidos e
libertos de todas as convenções sociais. Thompson afirma (2004 apud MAIA & MESQUITA, 2007) que este imaginário foi
responsável pelo surgimento do mito do “motociclista anti-social” e da motocicleta como símbolo de rebeldia, liberdade e
irreverência.
Nesta breve incursão histórica, vimos que o uso da tecnologia pelo homem prescreve novos modos de vida já em
outros momentos da história das sociedades. Para tal, esta tecnologia antes se encarrega de povoar o imaginário dos
atores sociais fornecendo os ingredientes necessários para que estes ultrapassem o domínio da razão e constituam uma

1 Maingueneau vai além do caráter persuasivo do conceito de ethos cunhado por Aristóteles, considerando-o como um
processo a partir do qual se pode refletir sobre o mecanismo de adesão dos sujeitos a determinado posicionamento. O autor
caracteriza o ethos como sendo ligado a uma cena de enunciação, não apenas pela dimensão verbal, mas também por um
aspecto peculiar que sugere o aparecimento de um fiador, que surge como o legitimador do que é dito, com seu tom
peculiar do que se tem a dizer.

868
relação social, já que o imaginário, ao se comunicar simbolicamente e atuar emocionalmente constitui uma força que
ultrapassa os domínios da racionalidade e gera vínculos de identificação entre um grupo.
A compreensão do imaginário pode ser descrita como a faculdade de onde provêm todos os desejos, angústias e
percepções culturais do homem. Como assinala Morin (2002, p.80).

[...] é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, e no qual se banham igualmente nossas
vidas [...]. É a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos real, e sem a qual, sem
dúvida, não haveria o real para o homem, ou antes, não haveria realidade humana.

Maffesoli (1998, p.80) entende que “o imaginário é determinado pela idéia de fazer parte de algo. Partilha-se uma
filosofia de vida, uma linguagem, uma atmosfera, uma idéia de mundo, uma visão das coisas [...].” Sendo assim, esta
percepção, seja ela cultural, espiritual ou simplesmente afetiva, assume a forma de uma construção mental que une um
grupo ou uma comunidade por meio de vínculos engendrados a partir desta relação estabelecida.
Durand (2004, p. 41) dialoga com Maffesoli (1998) quando afirma que a realidade humana não é constituída de
fatos e sim de percepções. Desse modo a razão, a linguagem, a ciência, arte e os próprios sentimentos são da ordem do
imaginário. Como explica o autor, as pulsões subjetivas do indivíduo se encontram com as experiências objetivas de suas
próprias vivências. Igualmente, vive-se a realidade a partir das percepções que temos do nosso dia a dia, dos
acontecimentos que nos cercam, da nossa realidade “imaginária”.

Tribo Virtual: um laboratório social para análise do discurso

As inovações tecnológicas experimentadas na pós-modernidade provocaram mudanças neste imaginário dos


atores sociais, em sua forma de se relacionar entre si e com a própria tecnologia. Surge um novo estatuto social
cristalizando um novo sentimento de pertencimento, de afeição, de sociabilidade: as tribos virtuais. Esta nova modalidade
de relação, possibilitada pelo uso social da tecnologia, se instaura por meio de um pertencimento a distância que modula
novos laços sociais através de uma simbólica e imaginária territorialidade, já que os membros destas comunidades virtuais
são separados pela distância física e geográfica.
A tribo de Motociclista Tornadeiros, um portal virtual criado em 2005 por estudantes de engenharia da UFF, é uma
experiência desta natureza. Nasceu em Niterói/RJ e conta atualmente com mais de 7.000 membros inscritos em todo o
Brasil, tendo nos últimos anos realizado atividades de aventura e integração para os amantes de duas rodas em diversos
Estados do país.
Alexandre Ferreira, um dos idealizadores do site, afirma que o desejo de construção do mesmo nasceu da
percepção de “que os amantes de motociclismo careciam de um ambiente mais dinâmico onde fosse capaz se comunicar,
trocar idéias, promover eventos de forma mais direcionada e organizada”.
O fato de que “grande parte do processo de sociabilidade está baseado nas impressões que os atores sociais
percebem e constroem quando iniciam sua interação” (DONATH apud RECUERO, 2009, p.29) foi o fator preponderante
para a tomada de decisão dos atores sociais envolvidos no processo de negociação para a construção do site.
O site foi assim se delineando na expressão dos seus idealizadores e na medida em que este se propagava nas
malhas da Internet, outros atores eram tocados pelo mesmo sentimento de identificação e reconhecimento de si no outro,
nas experiências do outro, nas aventuras do outro, constituindo o “espírito Tornadeiro”, cujo lema é descrito na página
principal do site, numa espécie de síntese do sentimento que promoveu este vínculo motivador da afiliação destes atores

869
sociais que constituíram as notas iniciais do acorde deste projeto de sociabilidade a partir de uma paixão, a despeito das
diferenças e distâncias que os separam.

Figura I. Trecho extraído da página principal do site Tornadeiros

Ademais, o sentimento recíproco e vinculante dos membros promoveu a identificação de seus interesses em
comum gerando uma espécie de sociação (SIMMEL, 2006) que segundo o autor, este processo “constitui uma fluidez e
pulsação entre os indivíduos”, conectando-os. Uma vez o site em funcionamento, todos os assuntos negociados pelos seus
administradores foram sendo tecidos como teias de uma rede de conhecimento e troca de experiências sobre assuntos
relacionados a motos. A partir daí, os novos membros foram agregando contribuições individuais para compor o que então
se tornaria a comunidade virtual Tornadeiros.

Análise do portal em Maingueneau

Pensando na semântica global do portal Tornadeiros, remetemo-nos ao cenário das interações, como um
ambiente apropriado para dar sentido às práticas discursivas que ali serão construídas. Basta observar a figura I, que já na
página inicial sugere o tipo de público que se pretende atrair. A partir daí, nota-se certa hierarquização que delineia o portal,
de modo a determinar, pelo número de acessos, como cada membro se coloca no ato de enunciação.
Uma espécie de “ranking” como é chamado pelo administrador do site, o usuário recebe uma titulação de acordo
com o número de mensagens que têm postadas nos fóruns. Na medida em que o número de mensagens de determinado
membro aumenta, vai aumentando sua “graduação”. Essa mensuração é feita da seguinte maneira:

870
Figura II. Trecho extraído do Fórum Geral do site Tornadeiros.

Esta hierarquia, por assim dizendo, evidencia o que Maingueneau (2005) postulou como sendo o contrato de
fidúcia2 que torna um ou mais atores neste processo de interação uma espécie de autoridade cognitiva, pois a este é
conferido um papel privilegiado de confiança e constante enunciação. São estes sujeitos sociais, os fiadores, em se
tratando do site Tornadeiros aqueles que, como o “Piloto Sênior” (Figura II, pag.5), por exemplo, acabam produzindo um
papel estratégico de retroalimentar o site com suas postagens, informações, fotos, vídeos, comentários; afetando assim, a
gênese dos demais, que iniciam ou se encontrarem em expansão cognitiva mediante as interações.
As marcas lingüísticas são muito presentes na identificação deste contrato de fidúcia quando observamos o fiador
em uma ação discursiva e quando este é interpelado por outro membro do grupo.

2A figura do fiador se estabelece através de sua postura, seu agir, sua fala, certa identidade que deve estar em concordância com a cena
de enunciação (o universo do site) que ele faz emergir em seu discurso e que, por conseguinte, necessita validá-la ao mesmo tempo em
que a constrói.

871
Figura III. Trecho extraído do Fórum Oficina do site Tornadeiros.

Observe que na prática discursiva acima podemos evidentemente notar a relação de fidúcia construída entre o
membro do grupo que se intitula novato (visto que no ranking, inclusive, este se encontra ainda na “graduação” fraldinha)
com o Piloto Master que, em sua enunciação (discurso) impõe segurança dando uma resposta satisfatória que atenda a
necessidade daquele que o interpelou.
Aristóteles considera que o discurso engendra três provas - ethos, logos e pathos - que são, na realidade,
qualidades que o orador deve demonstrar ao proferir um discurso. Essas provas seriam, basicamente, de três espécies: as
que residem no caráter moral do orador, outras, baseadas na disposição do ouvinte e, por último, mas não menos
importantes as que se baseiam no próprio discurso. Dessa forma, para Aristóteles, a persuasão está garantida quando:
persuade-se pelo caráter (ethos), persuade- se pela disposição dos ouvintes quando estes sentem emoção (pathos) e,
enfim, persuadimos pelo (logos) discurso em si. (EGGS, 2005).
Produzindo uma releitura destes conceitos, Maingueneau (2005) toma o ethos do fiador, como a imagem que ele
cria de si, por meio de sua experiência, torna-o referência para que este desperte nos ouvintes o pathos, a paixão, o
entendimento, a admiração e legitimação do que foi falado. O pathos, assim, seria o modo pelo qual é recebido o discurso
(logos) do enunciador, dado a capacidade deste de convencer seu público, como diria Maingueneau (2005), seu auditório.
Ao observar a figura IV abaixo, pode-se buscar na análise do discurso de base pragmática de Maingueneau
(2005) uma série de ferramentas que iluminarão conceitos que podem abarcar a análise das práticas discursivas tecidas no
site permitindo-nos identificá-lo como um cenário favorável para a sociação (SIMMEL, 2006) entre os membros filiados ou
não, mas que partilham do mesmo afeto por motos.

872
Figura IV. Trecho extraído da página principal do site Tornadeiros.

Na mensagem de saudação do portal aparece um fiador (neste momento o próprio site como um ator social)
aventureiro, livre, seguro, firme de seu propósito que se revela no tom pelo qual descreve o que é ser Tornadeiro, “sentir o
vento no rosto independente da direção e velocidade” reforçando o imaginário do motociclista de aventura e liberdade.
A forma da enunciação torna patente o tom aventureiro com o qual o site se apresenta, atraindo, numa
perspectiva de sociação (SIMMEL, 2006) entre iguais, pessoas que se identifiquem com o ethos do site, revelado nesta
saudação.
O ethos, portanto, estaria ligado ao orador (na figura do próprio site como um sujeito social ou de algum membro
fiador), ao seu caráter, à sua virtude, na confiança que ele pode gerar no auditório. Enquanto para Aristóteles (apud EGGs,
2005, pag.30) o ethos (virtude) do orador constituirá elemento importante na persuasão por meio do “discurso proferido de
tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé”, Maingueneau (2005) crê que não exista um ethos
preestabelecido e sim construído na atividade discursiva. Para o autor, isso ocorre no momento em que um enunciador
toma a palavra e por meio do seu discurso se expõe ao seu auditório.
No portal Tornadeiros, podemos exemplificar esta questão ao analisar a o Gráfico I que representa os principais
fiadores do site.

873
Gráfico I – Rede de Fiduciários do Site Tornadeiros
Estes nodos da rede são os enunciadores que mais constantemente são invocados nos fóruns a postar e ou
responder mensagens retroalimentando o ambiente de interação.
Isso nos leva a crer, que, os sujeitos sociais com maior número de nodos no Gráfico I, através de suas marcas
discursivas, revelam pistas de sua importância no processo de comunicação estabelecido no site, e, continuamente
reforçam sua imagem de fiadores no âmbito do discurso, já que se mantém como os laços fortes desta rede de interações.
Ao citar as marcas discursivas dos fiadores como sendo aspectos importantes para a manutenção da condição de
“autoridade cognitiva” do ambiente de interação, pode-se pensar em estabelecer em Maingueneau um diálogo estreito,
porém legítimo com a Análise Crítica do Discurso, em sua vertente sociocognitiva (VAN DIJK apud GIL, 2007). Este atenta
para o fato de que as escolhas lexicais nos usos dos discursos específicos definem uma visão do mundo ao qual o próprio
fiador pertence, logo, tornando-o mais próximo daqueles a quem se reporta.

Considerações finais

Pensar a análise do discurso presente numa comunidade virtual não é uma tarefa fácil, pois como propriedade da
própria prática discursiva num ambiente dinâmico, esta prática encontra-se em constante mudança.
Entretanto, a partir de alguns conceitos empreendidos pela Análise Pragmática do Discurso em Mangueneau, foi
possível perceber que em sua constituição, uma comunidade virtual tem como aspectos indispensáveis para sua
manutenção e retroalimentação a interação entre os seus membros. Estes, por sua vez, elegem um ou mais sujeitos sociais
que atuam como fiadores para atribuir-lhes a segurança, referência, virtude ou como dialogariam Aristóteles (1998) e
Mangueneau (2005) o ethos, que os definiria como mediadores do processo de polifonia discursiva em constante dinâmica
no portal.
Sendo assim, para pensar a construção da imagem destes fiadores como os nodos mais fortes na rede de
interações do portal Tornadeiros, vale ressaltar que esta construção de fidúcia só acontece em função da partilha pelo
mesmo afeto entre os membros, pelo pathos, descrito na figura I (pag.2) como o “espírito Tornadeiro”, o que permitiria a
identificação dos membros com o discurso (logos) dos fiadores.

874
Pensando no cenário do portal - com seus fóruns de debate, tutorial, compartilhamento de fotos, vídeos, fotos e
tudo o que mais oferece - como a instância que permite a interação entre os membros com base na interincompreensão3
entre estes, o que Mangueneau caracteriza como uma negociação entre os sujeitos que jamais chegará a uma
compreensão mútua, mas se manterá sempre em busca desta por meio da interação, dinamizando a prática discursiva
enquanto o pathos mantiver vivos os vínculos sociais que neste espaço foram criados, de modo a fortalecer a sociação
(SIMMEL, 2006) entre os atores, unidos pelo mesmo afeto: a paixão por motos.

Referências

DURANT, G. O imaginário: ensaios acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: Difel, 2004.

EGGS, E. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no discurso: a
construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

GIL, B. D. Aspectos ideológicos nas escolhas lexicais de Bezerra da Silva. In: VIII Encontro Nacional de Interação em
Linguagem Verbal e Não-Verbal e II Simpósio Internacional de Análise Crítica do Discurso, 2008, São Paulo. Anais do VIII
Encontro Nacional de Linguagem Verbal e Não-Verbal e II Simpósio Internacional de Análise Crítica do Discurso,
2008.

MAFFESOLI, M. O tempo das tribos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

MAIA, C. E. S; MESQUITA, M. E. A. Territórios e territorialidades urbanas em Goiânia: as tribos dos moto-clubes. Boletim
Goiânio de Geografia. Goiânia: V. 27, n. 3, p.125-142, jul./dez. 2007.

MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Tradução de Sírio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2005.

MEDEIROS, V. G. Da heterogeneidade no discurso cronístico. In: X Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, 2006,
Rio de Janeiro. Anais do X Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, 2006.

MORIN, E. Cultura de Massa no Século XX: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

RECUERO, R. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

MARINHO, Karla Azeredo Ribeiro. Mestranda em Comunicação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Atualmente desenvolve pesquisa na área de Tecnologias da Comunicação e Cultura com ênfase em Sociabilidade e Redes
e participa de atividades acadêmicas no âmbito de docência e extensão em Novas Tecnologias da Comunicação. E-mail:
karlamarinho@uerj.br

3 A inter-incompreensão consiste na penetração em uma formação discursiva de uma outra formação discursiva que é, então, re-
significada, isto é, que é interpretada a partir das categorias da formação discursiva em que se insere. Cada formação discursiva tem
seus próprios pré-construídos e seus próprios silenciamentos e é com eles que a entrada de enunciados de outras formações funciona.
(MEDEIROS, 2006)

875
Tradução no ensino de FLE

MATIAS, Andréia Azevedo


(UFRJ)

Introdução

Em A tradução vivida (1975, p.16), Paulo Rónai inicia sua obra dizendo que a tradução é um ato inerente ao homem, e
fundamenta tal afirmação definindo quatro tipos de tradução: a interlingual, que consiste na formulação de uma mensagem em
um idioma diferente daquele em que foi concebida; a intralinguística, que ocorre ao traduzimos, em nossa própria língua, um
conteúdo que estava confuso em nosso pensamento; a sociolinguística, que se manifesta no momento em que versarmos sobre
as fórmulas sociais utilizadas por nosso interlocutor; e a intersemiótica, que se estabelece quando procuramos interpretar o
significado de uma expressão fisionômica, um gesto ou um ato simbólico.

TRADUÇÃO PROFISSIONAL E TRADUÇÃO PEDAGÓGICA

Em Fonctions de la traduction em didactiques des langues: aprendre une langue em apprenant à traduire. Lavault
chama a atenção para o fato de que, mesmo no momento mais radical da Metodologia Direta (MD), a tradução, como forma de
controle gramatical e literária, está destinada a alunos de níveis mais avançados e sempre esteve presente no ensino de LE.
Lavault diz ainda que a decisão de traduzir ou não traduzir independe das metodologias de ensino. Segundo a autora,
tanto no ensino da LM quanto no da LE, o aluno, sobretudo, o adulto, busca conceituar e compreender determinados fenômenos
linguísticos com base em explicações mentais lógicas, por meio da tradução intralinguística e interlinguística. Também ressalta
que nem mesmo o aluno tem o controle total desse processo de tradução mental.
Nos anos 1970 e 1980, a AC, baseada na sociologia da comunicação e na psicologia, reinsere a LM e a tradução no
ensino. Contudo, Lavault critica o espaço concedido à tradução no ensino de língua, atentando para o fato de que essa prática
continuava muito aquém da real prática tradutória do tradutor. Segundo a autora, o papel do tradutor não se limita a traduzir
palavras ou frases, mas, compreende também a tradução de textos reais, destinados a um público definido (DELILE, 1980, p.
42, apud LAVAULT,1988 p.20). Já a tradução pedagógica se caracteriza pelos exercícios de tradução/versão e pelo seu
objetivo, essencialmente, didático.
Nessa mesma linha de pensamento de Lavault devemos citar o livro Traduire: théorèmes pour la traduction, de Jean
René Ladmiral (1979), no qual o autor questiona a abordagem mecanicista e descontextualizada atribuída à tradução no ensino
de LE. De acordo com Ladmiral, a tradução profissional visa à publicação e à leitura de um texto, dispensando o leitor de ler o
original.
Além disso, o autor diz que a tradução no ensino de línguas modernas se dá, normalmente, a partir de normas
pedagógicas rígidas, restritivas e artificiais, muito diferente da real prática tradutória. Como exemplo disso, menciona os
enunciados dos exercícios construídos por verbos no imperativo, limitando a criatividade dos alunos e exigindo deles respostas
exatas. Ladmiral cita também os cortes pedagógicos, com o intuito de ocultar certos problemas.

876
No que concerne à versão, os exercícios aplicados são utilizados apenas para fixar os conhecimentos gramaticais já
ensinados na LE. No caso da tradução, os erros cometidos nessa atividade são reconhecidos apenas como erros de
decodificação, não havendo uma preocupação em interpretar, em recuperar na LM o sentido do texto da língua fonte (LE)
(LADMIRAL,1979. p. 47-56).
Por último, Ladmiral critica as interferências da norma linguística e da norma pedagógica veiculadas à atividade
tradutória. No que diz respeito aos exercícios de tradução, o autor contesta o modo simplificado e, por sua vez, irreal com que a
LM é apresentada ao aluno. Quanto à versão, alega que a LE é reduzida a exercícios gramaticais, repletos de armadilhas,
elaborados com um elevado grau de dificuldade, levando o aluno a conceber essa atividade como impraticável.
Para abordar a tradução no ensino de língua, Lavault (1998, p. 53) propõe, inicialmente, aos professores que eles
conheçam a teoria do sentido ou a teoria interpretativa dos tradutores e dos intérpretes da Escola Superior de Intérpretes e de
Tradutores de Paris (ESIT), visto a experiência desses profissionais no que diz respeito à prática tradutória no ensino. Nessa
teoria, o pré-requisito é que os tradutores não traduzam línguas, mas, sim, textos.
Retomando a tradução no ensino de língua, Lavault aponta que a primeira contribuição dessa teoria interpretativa no
ensino de língua estaria em desconstruir a ideia, muito comum entre os alunos, de sinônimos perfeitos. Além disso, ela assevera
que, apesar de o aluno-tradutor não possuir os mesmos conhecimentos linguístico e intelectual de um tradutor profissional, os
sujeitos, em geral, têm conhecimentos cognitivos e extralinguísticos que lhes permitem compreender o sentido de um texto.
Quanto à reformulação de um texto em outra língua, Lavault propõe que se promova antes um ensino voltado para o
sentido, objetivando desenvolver nos alunos as competências de compreensão e de reexpressão, como é proposto pela escola
ESIT de Paris. Nesse sentido, ela lança uma crítica aos cursos de língua, alegando que estão baseados, em geral, na descrição
da língua.
No entanto, apesar dessas diferenças, Lavault (1998) compreende que seja possível reportar para esses cursos
algumas orientações da teoria interpretativa da escola ESIT, e cita quatro motivos para integrar a tradução no ensino de língua.
Com o primeiro motivo, denominado savoir-faire, Lavault (p.74) alega o aprendizado da tradução no ensino de línguas
com vistas à vida profissional. Segundo a autora, muitos profissionais, ainda que não sejam nem tradutores e nem intérpretes,
precisam executar essa tarefa em suas atividades; porém, em geral, encontram dificuldades em realizá-la, na medida em que
desconhecem os princípios básicos da prática tradutória.
Sendo a tradução frequente por quem fala outra língua, no âmbito profissional, social e pessoal, Lavault diz ainda que
os centros de língua deveriam não apenas atribuir um espaço para a prática tradutória em sala de aula, como também
considerar a tradução como quinta competência de comunicação. A saber, conferir à tradução o mesmo valor dado a outras
atividades de comunicação, a fim de que alunos/sujeitos desenvolvam, além da competência de ler, escrever, entender e falar, a
competência de traduzir.
Como segundo motivo, Lavault aduz a demanda dos alunos. De acordo com a autora, é bastante recorrente que
alunos solicitem a tradução de uma palavra, de uma expressão, de uma frase aos seus professores. Quanto às diretrizes
didáticas, lembra que, a partir dos anos 1970 e 1980, o uso da LM deixa de ser nocivo no ensino de LE e passa a atuar como
mais um recurso em prol da aprendizagem do aluno.
Na defesa da tradução no ensino de línguas, Lavault explicita como terceiro motivo o aperfeiçoamento da LE mediante
a tradução, embasando-se, sobretudo, nas teorias contrastivas de J.P. Vinay e J. Darbelnet em Stylistique comparée du français
et de l’anglais. Nessa obra, eles alegam que a análise contrastiva, a partir da aproximação e da confrontação de duas línguas,

877
ajuda os alunos a verificar as semelhanças e as diferenças entre as duas línguas em jogo e, por conseguinte, a evitar certo tipo
de interferências no ensino de línguas.
Por último, Lavault menciona o aperfeiçoamento da LM. Nesse caso, afirma que os exercícios de tradução obrigam os
alunos a pensar na língua materna; a observar o vocábulo utilizado, o estilo empregado; a perceber as estruturas idiomáticas da
própria língua.
Na conclusão, Lavault reforça que a tradução, baseada no sentido, é efetivamente possível no ensino de línguas
porque demanda dos alunos uma compreensão e interpretação do texto como um todo. Além disso, acrescenta que a tradução
nesse espaço poderá ser útil para o aperfeiçoamento linguístico, bem como permitirá que os alunos desenvolvam competências
relacionadas à prática tradutória, solicitada muitas vezes tanto nos espaços informais – viagens de férias entre amigos ou
familiares – quanto no trabalho e na vida acadêmica por quem domina outro idioma.
Devemos esclarecer, no entanto, que o desejo de incluir a competência de traduzir como quinto objetivo no ensino,
após entender, falar, ler e escrever, é antigo. Na última fase do Método Direto, Louis Marchand (MARCHAND, 1950, apud
CHAGAS, 1979, p. 383) já manifestava tal desejo e era criticado por estudiosos como Viëtor (VIËTOR apud CHAGAS, 1979, p.
385), com base no argumento de que a tradução é uma arte totalmente alheia aos objetivos da escola.

QUADRO EUROPEU COMUM DE REFERÊNCIA E MEDIAÇÃO

Em 2001, o Conselho da Europa cria o Quadre Européen Comum de Référance pour les langues (CECR) – Aprender,
ensinar, avaliar. Nesse documento, os seus elaboradores estabelecem uma base comum na elaboração de programas, provas,
manuais, certificados no ensino de línguas estrangeiras; descrevem as competências que os aprendizes e sujeitos precisam
dominar para poder se comunicar em outra língua; buscam ajudar administradores, criadores de programas, professores, dentre
outros usuários, a repensar suas práticas; bem como abordam a questão da diversidade cultural.
Com relação ao aspecto cultural, os elaboradores do CECR esclarecem que o ensino de línguas, no atual contexto,
ultrapassa a ideia de domínio de uma ou mais línguas como locutor nativo ideal e preconiza um aprendizado de línguas voltado
para o plurilinguismo. E, na tentativa de demonstrar essa postura de tolerância e de respeito com outro, os elaboradores do
CECR defendem o uso de gestos, de palavras estrangeiras e da mediação (tradução oral e/ou escrita), já desprestigiados por
algumas metodologias de ensino, alegando ser estes, muitas vezes, os únicos recursos que indivíduos de línguas e de culturas
diferentes têm para interagir.
Ancorado no pressuposto teórico de um ensino de língua plurilíngue, o CECR adota, sobretudo, como orientação
metodológica, a Perspectiva Acional (PA). Nessa orientação, convém dizer que os aprendizes de uma língua e os sujeitos são
considerados como atores sociais que devem realizar “ações comunicativas e não comunicativas” (p.15). O que significa dizer
que o domínio apenas dos atos de linguagem, da comunicação com o outro somente para informar e se informar, da abordagem
anterior, torna-se insuficiente.
O CECR define como não comunicativas as competências que compreendem: o saber, o saber-fazer, o saber-ser e o
saber-aprender. No que diz respeito à competência comunicativa, o CECR diz que esta é constituída pelas competências
linguística, pragmática e sociolinguística.
A competência linguística se refere ao léxico, à fonética, à fonologia, à sintaxe e à gramática. A pragmática se ocupa
do uso funcional dos recursos linguísticos, de acordo com o contexto e a situação interativa, e da competência discursiva. Já a

878
sociolinguística compreende as normas e os rituais sociais, as expressões populares, os diferentes tipos de registros, os dialetos
e as pronúncias.
Quanto à realização dessa competência comunicativa pelo aprendiz/sujeito, o CECR diz que ela depende das
atividades de comunicação (recepção, produção, interação e mediação), dos domínios (público, profissional, educacional e
pessoal) e da inscrição dessas atividades no interior desses domínios.
A respeito dos domínios, devemos salientar que, embora os espaços interativos sejam diversos, o CECR os restringe
em apenas quatro no ensino. Sobre a atividade de comunicação, o Quadro inclui a interação e a mediação entre as atividades
de comunicação e define a mediação desta forma:
Participando ao mesmo tempo da recepção e da produção, as atividades escritas e/ou orais de mediação
permitem, pela tradução ou interpretação, pelo resumo ou relatório, produzir à intenção de um terceiro uma
reformulação acessível de um texto primeiro ao qual esse terceiro não tem, a princípio, acesso direto. As
atividades linguísticas de mediação, retratando um texto prévio, têm lugar considerável no funcionamento
linguístico comum de nossas sociedades.1

Ainda sobre a competência comunicativa, o CECR diz que, além das atividades de comunicação e dos domínios, a
atividade comunicativa exige também a realização de tarefas, isto é, de ações praticadas pelos atores sociais e/ou aprendizes.
Como ilustração, o CECR cita a tradução, cuja realização demanda dos sujeitos envolvidos inúmeras tarefas, tais como: saber
utilizar dicionários, livros; pesquisar traduções realizadas sobre o texto estudado; buscar ajuda de amigos, etc.(p.19).
No entanto, apesar desse discurso a favor da tradução no ensino de FLE, os termos tradução e mediação não são
citados no quadro dos Níveis comuns de referência, no qual estão descritos os seis níveis de usuários – usuário básico (A1 e
A2); usuário independente (B1 e B2); usuário experiente (C1 e C2) – e as respectivas competências que alunos e falantes
devem dominar para poder se comunicar em tal língua.
No segundo quadro, denominado autoavaliação (p.27), é abordado o que o sujeito pode fazer com relação às
atividades de comunicação em cada nível; e, no terceiro quadro, intitulado de Níveis comuns de competências – aspectos
qualitativos da utilização da língua falada (p. 28), são apresentados os aspectos qualitativos do uso da língua falada, sendo
mencionadas também as expressões mediação e tradução. Logo, como saber o que se pode em relação à mediação? Como se
deve mediar? Como os usuários do CECR vão considerar e explicitar a mediação?
Cabe dizer que esses quadros descritivos constituem, geralmente, a principal orientação para professores, formadores
de ensino de LE e instituições. Para exemplificar isso, a Aliança Francesa de Paris elaborou um livro, em 2008, intitulado
Référentiel de programmes contempladas, com base no CECR. No entanto, são abordados apenas os seis níveis de referência,
com suas respectivas competências, e as atividades de comunicação escutar, ler, escrever, falar individualmente e interagir com
outro(s). A mediação foi excluída.
É importante também ressaltar que a Aliança Francesa de Paris esclarece que o objetivo desse livro é sintetizar as
orientações do CECR a fim de ajudar o professor de FLE em suas práticas. Por que esses utilizadores do CECR negligenciaram
a fundamentação teórica desse documento e se limitaram aos quadros teóricos? Por que não citaram a mediação entre as
atividades de comunicação?

1No original: “Participant à la fois de la reception et de la production, les activités écrites et/ou orales de médiation, permettent, par la traduction
ou l’interprétariat, le résumé ou le compte rendu, de produire à l’intention d’un tiers une reformulation accecible d'un texte premier auquel ce
tiers n’a pas d’abord accès direct. Les activités langagières de mediation, retraitant un texte déjà là, tiennent une place considérable dans le
fonctionnement langagier ordinaire de nos sociétés” (CECR, 2001, p. 18).

879
No quarto capítulo, em conformidade com as orientações da PA, esse documento diz que o aprendizado de línguas e
culturas estrangeiras não compromete a língua e nem a cultura maternas. E ressalta que aquisição de uma LE depende dos
conhecimentos já adquiridos na LM. Além disso, entende que o uso da LM e da mediação é primordial para a concepção
plurilíngue e interculturalista de alunos e sujeitos.
Nesse trecho, podemos observar que os elaboradores do CECR se atêm a mostrar que o ensino de uma LE não
representa nenhuma ameaça para a língua e cultura de outro povo. Além disso, mostram defender, com base no plurilinguismo e
na mediação, a importância do aprendizado e da difusão das línguas estrangeiras nesse cenário globalizado em que vivemos.
Dessa forma, verificamos mais uma vez a presença de um discurso paralelo implícito, ou seja, o discurso da língua
estrangeira como ameaça à identidade, à cultura e à língua nacional. Segundo Ducrot e Guimarães (apud SERRANI, 2005,
p.25), o uso da forma negativa, pelo ensinamento da semântica argumentativa e da análise do discurso, nesse sentido, tem
implícita afirmação da proposição que se nega. Nessa linha de pensamento, Serrani lembra, também, que tudo o que é “dito”
resulta de um “não dito” que deixa de ser formulado pelo mesmo movimento enunciativo (ORLANDI, 1988).
Nesse mesmo capítulo, os elaboradores do CECR esclarecem que esse documento não tem nenhuma pretensão de
responder a todas as questões de autores de manuais, professores, examinadores, dentre outros. Também explicitam que o
objetivo da elaboração do documento não é prescrever normas, mas, sim, propor aos seus usuários orientações que os ajudem
em suas atividades.
A respeito das orientações, devemos reconhecer que os preconizadores do CECR, ao longo do documento, tocam em
inúmeras questões que os professores, os elaboradores de métodos, os formadores de professores e outros usuários procuram
compreender. Entretanto, no que concerne à prática tradutória no ensino, o CECR desconsidera a mediação e menciona apenas
o que os usuários precisam considerar e explicitar para alunos e sujeitos sobre essa atividade.
Como ilustração disso, sobre as atividades de comunicação (falar, escrever, escutar, ler, interagir e mediar), os
elaboradores do CECR (p. 49-72) pedem que os usuários considerem e explicitem as diversas atividades de produção e
recepção oral e escrita; tratem das estratégias de produção textual oral e escrita; e apresentem as competências que os sujeitos
podem realizar nessas atividades de produção oral e escrita, a partir de quadros descritivos, No entanto, com relação à
mediação e à tradução, nada é explicitado nesse primeiro momento.
Ao abordar a atividade de interação, o CECR pede para os seus usuários que mostrem aos aprendizes/sujeitos a
importância da colaboração e da cooperação dos envolvidos na atividade interativa, mas não faz nenhuma alusão à mediação
nesse espaço.
Quanto à interação, outro fator observado nesta pesquisa foi o elevado domínio de língua descrito no quadro, pelo
CECR, sobre a atividade interativa (p.68-78) para o usuário experiente, exigindo que este possua a mesma competência de um
locutor nativo. O que significa dizer que o desejo de locutor nativo ideal, negado no primeiro capítulo do documento, parece estar
presente na imagem de língua desses elaboradores.
A respeito da atividade de mediação, em específico, o CECR não apresenta nenhum quadro explicitando o que os
aprendizes, em função dos seus níveis, deverão saber fazer sobre a atividade de mediação, como esboçou para as outras
atividades de comunicação. Entretanto, os elaboradores desse documento pedem que os usuários considerem e explicitem aos
alunos e sujeitos o papel de mediador que estes podem exercer entre interlocutores incapazes de se compreender de modo
direto.

880
Também reivindicam que os usuários explanem sobre as tarefas que essa atividade demanda e citem os possíveis
tipos de mediação oral (congressos, visitas guiadas, cartazes, etc.) e escrita (contratos, textos científicos, poesias, artigos de
jornais e revistas, etc.) com que falantes de uma língua estrangeira podem deparar.
Devemos ressaltar que apenas no quadro de correção sociolinguística, no nível C2 (p.95), o CECR cita o termo
mediação, esclarecendo que o aprendiz/usuário pode, nesse estágio, não apenas desempenhar o papel de mediador entre
locutores de língua materna e estrangeira, bem como considerar as diferenças socioculturais e sociolinguísticas das culturas em
jogo.
Em suma, após essas observações sobre o CECR, podemos concluir que o seu interesse pela tradução parece se
limitar apenas à mediação como meio de se promover o sentimento plurilinguista. As orientações do CECR para alunos e
usuários parecem apenas reconhecer a tradução no ensino. O desejo de Louis Marchand e de Lavault de desenvolver a
competência de traduzir como quinta competência comunicativa no ensino de língua, discutido neste trabalho, parece se mostrar
ainda muito longe do que propõe o CECR.
No estágio realizado por Christian Puren na Aliança Francesa do Rio de Janeiro, denominado Formação de
formadores, em março de 2010, ele foi questionado por mim sobre a abordagem superficial atribuída à mediação no CECR,
confirmando que esse item precisa ser ainda mais aprofundado no ensino de LE. Segundo o autor, os elaboradores do CECR
não tiveram tempo necessário para abordar a mediação de forma mais detalhada nesse documento; porém, considera que a
menção da mediação seja um passo importante para se repensar a tradução no ensino.

REFERÊNCIAS

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AUTORA
Andréia Matias Azevedo é mestranda em Estudos Linguístico pela UFRJ, é graduada em Letras Português/Francês pela UFRJ
(1996) e especializada em Tradução pela UERJ (1999) e em Leitura pela UCB (2008). Atua como professora de Francês e seu
interesse de pesquisa é a tradução no ensino de línguas estrangeiras.
E-mail: deiamatias@ig.com.br

882
A figuratividade da linguagem ou a literaçodade da
metáfora
MATOS, Lucia Helena Lopes de
(UFRuralRJ)

A importância que se vem dando ao estudo da metáfora está, de certa forma, condicionada à importância
crescente dada ao fenômeno da significação linguística e ao processo de interpretação em geral. E esse trabalho, alinhado
a teóricos que trabalham as questões da desambiguação metafórica, pretende apontar para o esforço cognitivo que se
apresenta, basicamente, o mesmo para qualquer uso da linguagem.
Como a linguagem é matéria-prima fundamental na construção do conhecimento e na produção de mundos
processados na interação sócio-histórico-cultural, e como o paradigma científico atual questiona a abordagem objetivista de
apreensão do real, o estudo da metáfora, na medida que funciona como veículo para aferição das teorias que se interessam
pelo significado, vem questionar o mito que, até então, vigorava na sociedade ocidental cartesiana. Embora esse caminho
tenha possibilitado enfoques inovadores para a metáfora, muitos pesquisadores ainda localizam a metáfora dentro do
bipolarismo que separa a linguagem literal, que serve para veicular a verdade, e a linguagem figurada, que conduz ao erro e
a imprecisão.
Mesmo os teóricos que abraçam a Pragmática trazem uma visão mais dicotômica que dialética e examinam as
proposições metafóricas como a “Semântica das Condições de Verdade”, privilegiando “a distinção entre significado do
falante e significado da sentença como propunha Grice”.1
Finger, em Metáfora e Significação (1996), faz um levantamento de como alguns teóricos, voltados para o
raciocínio positivista, estudam a metáfora, começando por Grice, que “exige que sejamos capazes de explicar como é
possível que, a partir de um dado proferimento, seja comunicado muito mais do que é literalmente dito”. Martinich2 amplia as
teorias de Grice, argumentando que as metáforas não se inserem nos estudos semânticos, mas no circuito da Pragmática,
pois só o uso vai definir a literalidade ou não de um enunciado. Para ele, a metáfora é um jogo de faz-de-conta que
depende de um pacto cooperativo entre falante e ouvinte para ser interpretado, envolvendo, dessa maneira, as “implicaturas
conversacionais”. Searle (1993: p. 83-111), ainda pelo mesmo caminho, diz que o enunciado será sempre literal, mas o
falante pode torná-lo metafórico no seu proferimento; logo há, também, um significado para a sentença diferente do
significado do falante, e isto é demonstrado com os atos de fala.
De uma maneira ou de outra, todos esses teóricos e outros como Bergmann3 e Davidsom,4 procuram explicar, sem
violar suas convicções, como o falante ao proferir uma metáfora não está se comprometendo com uma falsidade e como a
colaboração inferencial do ouvinte (Almeida & Finger)5 é necessária para que a proposição linguística tenha força de
verdade.
Na investigação psicolinguística, Gibbs traz os resultados de pesquisas nas quais se demonstram que o
entendimento da linguagem figurada não tem necessariamente de passar pelo reconhecimento de uma paráfrase literal ou o

1 Grice, 1987, apud Finger, 1996, 19-30.


2 Martinich, A. P. A theory for Metaphor, originalmente publicado em Journal of Literary Semantics, v.13, p. 35-56, 1984, apud Finger,
1996, 31-38.
3 Bergmann, M. Metaphorical Assertions, publicado originariamente em The Philosophical Review, v.91, 229-245,1982 apud Finger,

1996, 59-65.
4 Davidson, D. What Metaphors Mean. In: DAVIDSON, D. Inquires into Truth and Interpretation. Oxford, Clarendon Press, 245-264,

1984, apud Finger, 1996, 40-42 e 67-69.


5 Para Almeida & Finger, a colaboração inferencial receberia o nome de “Princípio de Caridade que expressa a tentativa (preocupação) do

ouvinte de maximizar a coerência no sistema de crenças atribuído ao falante” (p.78).

883
reconhecimento de um significado literal anômalo, ou ainda pelo reconhecimento da figuratividade e pela posterior rejeição
ao significado literal, quando há um contexto que dá apoio aos conhecimentos sociais partilhados. A facilidade que temos
para reconhecer enunciados figurados é, possivelmente, derivada do nosso sistema conceptual, que tende a metaforizar,
num processo inconsciente, nossas experiências mais básicas.
Isso, porém, não prova a inexistência de linguagem não-figurada ou literal. A intenção é derrubar alguns mitos que
afirmam que toda linguagem convencional cotidiana é literal, e que somente a linguagem literal pode ser falsa ou
verdadeira, as categorias gramaticais de uma língua são literais e não comportam figuratividade.
A linguagem figurada nem sempre requer um esforço cognitivo adicional e muitas expressões metafóricas (como,
por ex., “cirurgiões são açougueiros”)6 são mais prontamente compreendidas que sua paráfrase literal. Na verdade, as
investigações (Gibbs,1994, 2001) trouxeram a evidência de que os processos de compreensão e interpretação usados para
a metáfora são os mesmos usados para o entendimento da linguagem literal. O processo de compreensão de linguagem
figurada ou literal é uma construção por parte dos sujeitos envolvidos que devem levar em conta a informação disponível,
distinguindo as linguísticas e as extralinguísticas que se ajustam para dar sentido ao todo.
Katz e Ferreti, segundo Gibbs, adotam o modelo de “constraint satisfaction”7 para explicar como a compreensão de
provérbios usuais e desconhecidos é afetada pelo contexto. Os primeiros são entendidos rapidamente, porque todas as
informações pertinentes já estão processadas no sistema mental; já os últimos levam um tempo maior, principalmente se
não estiverem emoldurados pelo contexto.

Atravessa-se o rio onde é mais raso


Bezerro manso mama na mãe dele e na dos outros.
Na vida é assim: uns armam o circo, outros batem palma
Em terra onde não há carne, urubu é frango
Do prato à boca é que se perde a sopa.
Enquanto o pau vai e vem folgam as costas
Não se pode querer sol na eira e chuva no nabal.

Se tomarmos como exemplo os provérbios acima, embora não façam parte do uso corrente, não teríamos
dificuldade em inseri-los metaforicamente em nossas produções ou interpretá-los inseridos num contexto figurativo, com
exceção do último provérbio, cujas informações linguísticas e extralinguísticas precisam ser processadas para que a
interpretação figurada seja alcançada (eira: local onde se secam os cereais/ nabal: plantação de nabos que precisa de
muita água).
Através de levantamentos de dados como esses é que os teóricos citados demonstram que a linguagem figurada no
nível da palavra, da frase e do mais alto nível textual é entendida direta ou indiretamente.
Gibbs acentua que a forte dicotomia entre literal/figurado se deve à confusão entre os processos e os produtos da
interpretação linguística que se efetivam em nossa compreensão em tempo real, sendo necessário, apenas, um primeiro
milésimo de segundo para a análise reflexiva. Trata-se, então, de um continuum temporal que corresponde, irregularmente,
aos seguintes níveis de entendimento:
1) Compreensão da linguagem, ou seja, a inter-relação da competência linguística do sujeito (ao nível fonológico,
lexical e sintático), do seu conhecimento de mundo e do contexto.

6O estudo sobre esse exemplo encontra-se no artigo de Gibbs in Ortony, 1993, 254.
7“constraint satisfaction” é um modelo que valoriza a compreensão em nível textual e tem sido valorizado pela ciência cognitiva. (Katz, A.
N & Ferreti, T. R. Momente-by-moment reading of proverbs. In: Literal and Nonliteral Contexts: Metaphor and Symbol, 16, 193-221,
2001.)

884
2) Recognição, ou seja, o momento em que a proposição figurada é identificada como categoria conceptual e
semântica diferente, isto é, determina-se se uma dada expressão convém ao significado literal, metafórico,
irônico etc., embora não haja qualquer evidência de que esse seja um processo consciente ou não.
3) Interpretação, ou seja, o processo monitorado pela consciência numa interação de conhecimentos partilhados,
crenças e modelos culturais possibilitando hipóteses interpretativas.
4) Apreciação, ou seja, o prazer estético provocado pela linguagem figurada, que requer um processo mental
diferente da compreensão, cada uma refletindo diferentes partes do continuum temporal, e nesse caso é o
arranjo linguístico que entra em foco.

Outra confusão que se estabelece é em relação às funções do sentido literal na interpretação do enunciado
figurado, as quais, segundo alguns teóricos, funcionam como uma violação das máximas conversacionais. Esse problema
se deve à falta de consenso para a definição do sentido literal.
Segundo a visão cognitivista de construção do significado, ao contrário do que prega Grice (1987) e Searle (1993),
nos atos de fala, não há um processo que envolve reconhecimento de um significado para o que é dito e outro para o que
se quer dizer, porque a maioria das implicaturas conversacionais são convencionalizadas e entendidas sem qualquer
análise do significado das palavras. Ao ouvir uma frase como “Está calor aqui”, proferida em um contexto de enunciação, o
ouvinte imediatamente interpreta como representação de pensamentos que são relevantes para o falante e por esse motivo
imediatamente deduz que alguma ação está sendo requisitada (“Por favor, abra a janela ou ligue o ventilador ou o ar
condicionado”) dado o pragmatismo da situação. Nesse caso, a inferência de um significado indireto ou não-literal não
demanda um processo de implicatura conversacional mais elaborado para chegar ao significado pretendido pelo falante,
nem há violação das máximas conversacionais.
Em relação às metáforas conceptuais, vale dizer que elas não requerem grande esforço de compreensão por
estarem associadas às nossas experiências físicas e corpóreas, além de traduzirem concretamente nossas experiências
subjetivas. Já as metáforas literárias, na instância da interpretação, exigirem processo semelhante ao da produção, isto é,
uma dosagem maior de criatividade, critério essencial quando os aspectos figurados fogem ao convencional, ainda que se
realizem através de um mesmo mapeamento conceptual básico que ilumina alguns aspectos mais prototípicos na
linguagem convencional do dia a dia ou focaliza os mais periféricos quando o enfoque é mais criativo.
Visto dessa maneira, percebemos que há uma fluidez nos limites entre linguagem literal e figurada (tal como um
continuum), já que a última perde seu caráter de desvio e de anormalidade para assumir o caráter de ubiquidade como fator
de cognição e de construção do real.
Existe uma transição gradual, perceptível pela competência semântica que está codificada no sistema mental, da
literalidade para os diferentes graus de figuratividade, diluindo a linha que a tradição delimitou.
É o que se pode observar no quadro que Silva (2003:18-19) adapta do exemplo trazido por Taylor,8 em que
diferentes usos do adjetivo “alto” passam por uma gradação de literalidade/figuratividade.

8 TAYLOR, John. Linguistic Categorization: Prototypes. In: Linguistic Theory. Oxford: Clarendon Press, 1995.

885
Literal Metonímico Metafórico
(1) (2) (3) (4) (5)
edifício alto maré alta temperatura alta preços altos Alta qualidade
tecto alto
Quadro I. Continuum literal-figurado.

(1) Alto: usado literalmente (= grau superior), tanto na extensão/verticalidade, quanto na posição (teto alto).
(2) Alta: parcialmente metonímico, pois aí, pressupõem-se tanto a verticalidade quanto a horizontalidade (alta em
lugar de acima e mais).
(3) Alta: inteiramente metonímico (efeito pela causa → temperatura quente faz subir o termômetro).
(4) Altos: oscila entre a metonímia (linha traçada no gráfico de representação de preços: coisa pela sua
representação) e a metáfora (mais é acima).
(5) Alta: metáfora (escala avaliativa: bom é acima)
Verifica-se, por essa escala, que no continuum de figuratividade a metonímia é mais referencial que a metáfora.
Andrew Ortony, numa obra de referência, Metaphor and Thought (1993), reúne os estudiosos mais recentes da
metáfora e, em seu artigo, propõe uma divisão desses estudos obedecendo a duas linhas diferentes, ainda problematizando
a questão literal/figurado: uma partindo de uma posição construtivista da metáfora, e outra, de uma posição oposta, não-
construtivista.
Para Ortony, o confronto está centrado na cognição, processo resultante de uma construção mental que se apoia
num conhecimento de realidade distanciado do positivismo lógico cujo mundo objetivo não é diretamente acessado, mas é
construído pela linguagem, pela percepção e pelos conhecimentos pré-existentes no sujeito.
Podemos sintetizar o exposto acima pelo seguinte quadro:

ABORDAGEM COGNITIVISTA ABORDAGEM NÃO COGNITIVISTA

1 – importância da metáfora tanto na linguagem 1 – a metáfora é desviante e se distingue do “uso


quanto no pensamento; normal”;

2 – rompe com a oposição entre literal e figurado; 2 – a metáfora necessita de explicação, caracteriza
a retórica e não o discurso científico.
3 – tanto a produção quanto a compreensão da
linguagem é essencialmente criativa, seja literal
ou metafórica.

Tanto a metáfora quanto outras figuras do discurso, algumas vezes, demandam um pouco mais de criatividade
que a linguagem literal para serem interpretadas, mas a diferença é quantitativa e não qualitativa.
Meu trabalho adota a perspectiva de que existe uma gradação entre literal e figurado, apoiada mais na diferença
quantitativa que qualitativa. Acredito que haja exatamente o mesmo processo na graduação quantitativa das estratégias
para a compreensão e na quantificação da criatividade para a produção da metáfora literária, da metáfora científica ou dos
usos metafóricos da linguagem convencional. Isso se deve ao fato de que há uma imagem que se apoia nas nossas
experiências mais básicas e se expande em desdobramentos até revelar o inusitado que marca a metáfora poética. Na
verdade, a metaforicidade já se estabelece no pensamento que constrói o nosso sistema conceptual e se materializa nas

886
categorizações linguísticas, marcando um patamar de grau zero até expansões mais criativas, daí a afirmação de que as
estratégias de compreensão e de produção dos diferentes usos da linguagem são as mesmas. Se o leitor/ ouvinte for capaz
de perceber, no nível da consciência, os processos mais básicos de metaforização, levando em conta suas experiências
físicas e corpóreas, seu conhecimento de mundo e o contexto em que as proposições se inserem, vai também construir as
significações mais extensivas e elaboradas por terem processos semelhantes.
Por exigir mais criatividade para a desambiguação dos enunciados com maior grau de figuratividade, deduz-se que,
a partir dos índices do contexto, o sujeito infere, pressupõe e estabelece coerência e sentido na situação de discurso.

Metonímias / Metafonímias
Historicamente há uma certa familiaridade entre a metáfora e a metonímia, basta nos reportarmos a Aristóteles,
que já considerava a metáfora o transporte do gênero para a espécie, o transporte da espécie para o gênero, o transporte
da espécie para a espécie, o transporte por analogia, sendo, mais tarde, os dois primeiros atributos à sinédoque e à
metonímia, que são aqui tratadas como um princípio único, de figuratividade.
Há ainda os teóricos que hoje consideram a metonímia num continuum entre literal e figurado, um caso primário
de metáfora, o que se pode comprovar com o quadro, apresentado anteriormente, com diferentes usos do adjetivo atributivo
“alto” e a sua transição gradual da literalidade para diferentes graus de figuratividade.
Aqui nos importa assinalar que tanto a metáfora quanto a metonímia são processos cognitivos, estando ambas
inseridas no discurso das comunidades como reflexo das nossas atuações e dos nossos pensamentos e, assim, se
manifestam na linguagem como expressão das nossas estruturas conceptuais formadas a partir das nossas experiências e
relações com o mundo bio-psico-social.
De acordo com a tradição, as duas figuras se distinguem pelas relações que estabelecem de similaridade
(metáfora) e contiguidade (metonímia), mas a Linguística Cognitiva revê estas relações, pois nem toda relação de
similaridade é metafórica, já que não há nenhuma metaforicidade entre a similaridade de um pardal (membro prototípico da
categoria ave) e um pinguim (membro periférico da mesma categoria). Enquanto a “similaridade que está na base da
expressão ‘ave rara’ atribuída a uma pessoa, essa já é metafórica” (Silva, 2003:25). O mesmo se verifica nas relações de
contiguidade entre ‘rosa e flor’ e ‘beber um copo’, em que na primeira verifica-se apenas um caso de hiponímia, enquanto
na segunda, recipiente e líquido podem ser referidos separadamente, daí poderem ser “uma relação metonimicamente
explorada” (idem,ibidem).
A metáfora vem sendo, ao longo dos tempos, mais estudada que a metonímia, mas esta tem recebido por parte
da Linguística Cognitiva uma atenção especial justamente por, tal como a metáfora, fazer parte do nosso discurso cotidiano
e se apoiar nas nossas experiências. Segundo os principais estudiosos desse novo enfoque linguístico (Lakoff e Johnson,
1980; Lakoff e Turner, 1989; Gibbs, 1994), em relação à estrutura, o que as identifica é que “ambas constituem processos
conceptuais que relacionam entidades” (Cuenca e Hilferty, 1999, p.111) e o que as distingue é que na metáfora há uma
projeção de entidades do domínio-fonte para o domínio-alvo, enquanto a metonímia opera dentro de um único domínio,
associando duas entidades conceptualmente contíguas.
Para Croft (1993),10 a metonímia é processada através de uma “salientação de domínios”, isto é, a entidade pouco
saliente de um domínio é ativada mentalmente em referência a uma outra entidade mais saliente, o mesmo processo
categorizado como ‘ponto de referência (PR) e zona ativa (ZA)’, segundo o exposto por Langacker (1984, 1993, 1999).11

10 CROFT, Willian. The role of domains in the interpretation of metaphors and metonymies. In: Cognitive Linguistics 4-4, 335-370.
11 1984 Active zones”, Berkeley Linguistics Society 10, 177-188.
1993 Reference-point constructions. In: Cognitive Linguistics, 4, 1-38.

887
Para este, se uma determinada entidade (por exemplo, carroceria [ZA]) de um domínio (carro [PR]) é ativada numa situação
X (lavar o carro), isso significa que em uma outra situação Y (fazer a revisão do carro) a componente mecânica é que será a
entidade ativada. Carro, nesse caso, não possui estatuto polissêmico, porque se trata de saliência de entidades diferentes
de um mesmo domínio generalizado na realização do esquema metonímico PARTE PELO TODO.
Cuenca e Hilferty (1993: 111) esquematizaram a explicação dada acima:

Metonímia → um único domínio Metáfora → domínio origem e domínio alvo

A 1
PR PPPZA
B 2

C 3

PR = ponto de referência
ZA = zona ativa
A, B, C = atributos do domínio-origem
1, 2, 3 = atributos do domínio-alvo

No quadro a seguir, Cuenca e Hilferty apresentam as metonímias mais frequentes com os respectivos Pontos de
Referência (PR) e Zonas Ativas (ZA):

PARTE PELO TODO


É um turbo diesel fantástico PR: motor ZA: carro
TODO PELA PARTE
Lavo meu carro uma vez por PR: carro ZA: exterior
semana
CONTINENTE PELO CONTEÚDO
Bebo um copo de leite diariamente PR : copo ZA: o líquido
MATERIAL PELO OBJETO
Pegue o vidro na geladeira PR : substância ZA: objeto feito de
PRODUTOR PELO PRODUTO
Preciso comprar uma gilete PR : marca Gilete ZA: lâmina de barbear
LUGAR PELA INSTITUIÇÃO
O Planalto interferiu no processo PR : Palácio do Planalto ZA : o governo
O LUGAR PELO EVENTO
“o Haiti é aqui” PR:Haiti ZA:a pobreza
INSTITUIÇÃO POR PESSOAS

1999 Grammar and Conceptualization, Berlin/New York: Mouton de Gruyter.

888
A Universidade abriu um novo PR : Universidade ZA: responsáveis
curso
PESSOA PELO NOME
Você não está na lista PR : você ZA: o seu nome
CAUSA PELO EFEITO
Tenho tudo o que meu trabalho me PR : trabalho ZA: dinheiro

O próximo quadro foi sistematizado por Silva (2003, p.44) baseando-se nos estudos de Kövecses (1986,1988,
1990, 2000)12 para demonstrar como o domínio das emoções e sentimentos é produtivo para a metonímia conceptual em
que o efeito fisiológico substitui a emoção/sentimento, ativando o esquema mais geral O EFEITO PELA CAUSA:

EFEITO FISIOLÓGICO EMOÇÃO/ SENTIMENTO

Aumento da temperatura do corpo Fúria, alegria, amor

Abaixamento da temperatura do corpo Medo

Vermelhidão da cara e pescoço Fúria, amor

Palidez Medo

Gritos e lágrimas Fúria, tristeza, medo, alegria

Suor Medo

Secura na boca Medo

Aumento de pulsação e sangue Fúria, revolta

Ansiedade,palpitações Medo, amor

Arritmias Medo

Postura erecta Orgulho

Cabisbaixo Tristeza, vergonha

Incapacidade de se movimentar Medo

Saltar Alegria

12 1986 Metaphors of Anger, Pride, and Love: A Lexical Approach to the Structure of Concepts, Amsterdam: John Benjamins.
1988 The Language of Love,Lewisburg. Bucknell University Press.
1990 Emotion Concepts. New York: Springer-Verlag.
2000 Mataphor: A practical introduction. Oxford: Oxford University Press.

889
Abraçar Alegria,amor

Agitação física geral Fúria, revolta, medo, alegria, amor

É na figuratividade das emoções que a interação entre metáfora e metonímia é mais produtiva, ativando até a
criação do termo “metafonímia”,13 que espelha ou uma integração entre as duas figuras (‘metonímia dentro da metáfora’, ou
mais esporadicamente ‘metáfora dentro da metonímia’) ou uma cumulação (‘metáfora a partir de uma metonímia’ ou mais
esporadicamente ‘metonímia a partir de uma metáfora’).
Na conceptualização das emoções, a partir da metonímia EFEITO PELA CAUSA, em que são salientados os
efeitos fisiológicos em contiguidade com as respectivas causas, várias metáforas são criadas levando em conta esquemas
imagéticos acionados por esses efeitos que estão ligados a reações corporais primárias. O aumento da temperatura do
corpo para expressar fúria, alegria, amor, vai dar sustentação para imagens como a do fluido dentro de um contentor que de
acordo com a intensidade da temperatura pode explodir em raiva, amor, alegria ou chegar a níveis bem baixos provocando
o frio do medo (Senti um frio na barriga de tanto medo). É, talvez, baseado nesse princípio da primariedade das
experiências corporais que alguns autores, entre eles Barcelona (2000, p.52), dizem: “Experiências baseadas na conexão
entre dois diferentes domínios são frequentemente encapsuladas por significados de abstrações metonímicas.”
Silva (1997,1999, 2003) – pesquisador português cujas publicações orientam esse trabalho na busca das fontes
para a compreensão dos contributos dos diferentes teóricos para os principais fundamentos da Linguística Cognitiva – se
baseia em Andreas Blank14 para afirmar que a motivação para o uso da metonímia “vem responder aos princípios da
maximização do sucesso cognitivo e comunicativo e da minimização do esforço linguístico” (2003, p.51), e ainda acrescenta
com mais detalhes:
Também Kövecses & Radden (1998) e Radden & Kövecses (1999) identificam princípios cognitivos e
comunicativos para a explicação do mecanismo metonímico (em particular, no que diz respeito à
seleção do “ponto de referência”, que permite aceder à “zona activa”). Um dos princípios cognitivos é o
da experiência humana: a nossa perspectiva antropocêntrica do mundo leva a preferir o ‘humano’ em
detrimento do ‘não-humano’ (daí, por exemplo, as metonímias POSSUIDOR POR POSSUÍDO,
CONTROLADOR POR CONTROLADO, PRODUTOR POR PRODUTO), o ‘concreto’ em detrimento do
‘abstrato’ (FÍSICO POR MENTAL, FÍSICO POR EMOCIONAL). Um outro é o da seletividade
perceptiva: tendemos selecionar o ‘imediato’ (por exemplo, os efeitos afetam-nos mais imediatamente
do que as causas, e daí a metonímia EFEITO PELA CAUSA), o ‘real’, o ‘domínio’ (donde, por exemplo,
a metonímia CAPITAL PELO PAÍS), o ’delimitado’ e o ‘específico’. Um terceiro princípio cognitivo é o
das preferências culturais, pelo qual é atribuído estatuto proeminente a elementos de um domínio
culturalmente marcados. Daí a preferência pelo ‘estereotípico’ em detrimento do ‘não-estereotípico’, do
‘prototípico’ em detrimento do ‘não-prototípico’, do ‘central’ pelo ‘periférico’, do ‘importante pelo ‘menos
importante’, do ‘ideal pelo ‘não-ideal’, do ‘comum’ pelo ‘raro’, etc. Os autores acrescentam dois fatores
comunicativos: o princípio da clareza e o princípio da relevância.

13 Termo criado por GOOSSENS, Louis. Metaphtonymy.The interaction of metaphor and metonymy. In: Expressions for linguisstic

action. Cognitive Linguistics, 1-3, 323-340, 1990.


14 BLANK, Andreas. “Co-presence and succession: A cognitive typology of metonymy” In: K.-U. Panther& G. Radden (eds.). Metonymy in

Language and Thought. Amsterdam: John Benjamins, 1999: 169 – 191.

890
Conclusão

Trocando em miúdos, as experiências e conhecimentos que acumulamos ao longo da nossa existência ficam
armazenados na memória em arquivos chamados de domínios, que são definidos por áreas de sentidos. Entre esses
domínios ocorrem as projeções metafóricas, as ativações de entidades ou subdomínios que selecionam, num processo de
saliência, a relação metonímica, os deslizamentos semânticos perfilados entre os membros prototípicos e os membros
periféricos e a polissemia. Essas informações armazenadas são acessadas pelo usuário da língua, organizadas em
pensamentos e estruturadas em linguagem que se atualiza em um determinado contexto, possibilitando que uma mesma
forma possa ter sentidos diferentes se a situação comunicativa assim o exigir.
É através dessas correspondências entre domínios mentais sancionados pelos esquemas imagéticos , os modelos
cognitivos idealizados e os esquemas culturais que vai tomando forma a organização da gramática das línguas naturais,
totalmente contaminada pelos processos figurativos.

Referências

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Metaphor and Metonymy at the Crossroads: A Cognitive Perspective. Berlin/New York: Mouton de Gruyter, 2000. P. 31-
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CUENCA, Maria Josep; HILFERTY, Joseph. Introducción a la linguística cognitiva. Barcelona: Ariel, 1999

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SILVA, Augusto Soares da. A Linguística Cognitiva: uma breve introdução a um novo paradigma em Linguística. In: Revista
Portuguesa de Humanidades, vol.1, Fasc. 1-2, 1997, p. 59-101.

______. A abordagem cognitiva em Semântica Lexical. In: A semântica de deixar: uma contribuição para a abordagem
cognitiva em semântica lexical. Braga, PT: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pp 10 – 76.

______. O poder cognitivo da metáfora e da metonímia. In: Revista Portuguesa de Humanidades, Faculdade de Filosofia
da Universidade Católica Portuguesa, 7, p. 13-75, 2003.

891
SOBRE O AUTOR

Possui graduação (1974) em Letras pela UFF, mestrado (2002) e doutorado (2006) ambos em Letras pela UERJ.
Atualmente é professora adjunta na UFRuralRJ e vice-coordenadora do curso de Letras. Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: linguística, leitura, ensino da
língua portuguesa e literatura.

E-mail: lhlmatos@yahoo.com.br

892
Sujeitos, enunciação, enunciado e ethos em um conto de
Machado de Assis

MEDEIROS, Luiz Claudio Valente Walker de


(UFRuralRJ)

0. Introdução
Ao se estudar o texto no nível fundamental da escola, sob rótulos de, por exemplo, “comunicação e expressão” ou
“redação”, é comum, para fins didáticos, que este texto seja dividido em partes, algo como “introdução, desenvolvimento e
conclusão”. Pode-se relacionar esse procedimento didático de divisão do texto em partes com o esquema jakobsoniano
segundo o qual a comunicação linguística é representada esquematicamente da seguinte maneira (Kerbrat-Orecchioni:
1977, p.17):

contexto
emissor ........ mensagem ........ destinatário
contato
código

A técnica didática de divisão dos textos em partes destaca em especial dois desses elementos do esquema de
Jakobson, a mensagem e o código, e os analisa a fundo. Apesar de essa técnica ser bastante proveitosa para os fins a que
se destina, devido seu caráter eminentemente didático, ela não dá conta de uma série de problemas com os quais a Análise
do Discurso se preocupa. Essa insuficiência notada reflete exatamente o fato de o esquema jakobsoniano não apresentar
toda a complexidade comunicação linguística. Tal incompletude é bem observada quando, após a divisão do texto em
partes e a posterior soma dessas partes, o resultado, ou seja, o texto obtido é sem dúvida maior que a soma das partes
analisadas; deve-se ainda lembrar que o sentido da cada parte, elas próprias, só pode ser apreendido corretamente a partir
do entendimento do texto como um todo.
Uma das principais deficiências do esquema jakobsoniano, e da técnica didática a ele relacionada, está no fato de
considerar emissor e receptor como entidades que estão, sim, em contato, ligados pela situação discursiva, mas de uma
maneira muito estanque, sem que o texto e a sua compreensão/interpretação sejam frutos de um processo ativo,
participativo e solidário entre emissor e receptor.
Já vem de muito a ideia de que o receptor do texto não é uma tábula rasa, que recebe as informações sem
participar da construção do sentido. Os conhecimentos do receptor e a ideia que o emissor faz dele são exemplos da
importância fundamental que tem o receptor no jogo da comunicação. Por isso, o discurso, assim como o sentido
depreendido do texto, não é um produto acabado, mas um processo de construção de sentido do qual emissor e receptor
são partes imprescindíveis, que não podem ser dissociadas uma da outra.
Pretende-se, nesse trabalho, analisar, em um conto de Machado de Assis (“Um incêndio”), algumas dessas
propriedades que conferem ao receptor a mesma relevância que tem o emissor e que dão ao texto um “algo a mais” que a
simples soma de suas partes, a saber: os protagonistas da linguagem (na concepção de Charaudeau), a relação
enunciação/enunciado e o ethos.

893
1. Sujeitos e enunciação
Já se viu que a concepção estabelecida por Jakobson para descrever a comunicação não é suficiente, uma vez
que não trata de uma série de fenômenos inerentes ao discurso, à construção de sentido e à comunicação.
Uma insuficiência da teoria jakobsoniana que salta aos olhos é a da descrição dos participantes do discurso.
Jakobson os restringe a emissor e receptor, que se comunicam através de um código, e não se posiciona no que diz
respeito à maneira como se configura a interação entre esses agentes.
Por conta dessa insuficiência, é interessante apontar a teoria de Charaudeau (1983) que interpreta o ato de
linguagem como um ato interenunciativo, visto que os interlocutores do discurso são elementos solidários na produção
textual, sendo o texto fruto de uma co-construção desses dois elementos. Por isso mesmo, Charaudeau faz uma nova
análise das noções dos interlocutores do discurso: como eles são solidários na produção do texto, cada um constrói do
outro uma imagem de seu interlocutor, imagem essa que não corresponde necessariamente com a real. Assim, Charaudeau
apresenta uma nova designação para os agentes do discurso, tratando o emissor por EU e o receptor por TU. Mas não se
trata de uma simples questão terminológica, dado que, para dar conta dessa e de outras assimetrias, bem como da relação
de solidariedade em que os agentes do processo verbal se encontram para a produção de textos, Charaudeau afirma:
O TU não é um simples receptor da mensagem, mas um sujeito que constrói uma interpretação em
função do ponto de vista que ele possui sobre as circunstâncias do discurso, e, assim, do EU
(interpretar é sempre fazer um processo do EU); correlativamente, o TU-interpretante não é o mesmo
que o TU-destinatário ao qual se dirige o EU. Em consequência disso o TU-interpretante, pelo fato de
sua interpretação, remete ao EU uma imagem diferente da que o EU acreditava (queria?) ser. Em
outras palavras, o EU se dirige a um TU-destinatário que ele crê (quer) adequado a seu propósito
linguageiro, e, descobrindo que o TU-interpretante não é o mesmo que ele imaginou (fabricou), ele
também se descobre um outro EU, sujeito falante suposto pelo TU-interpretante. (grifos acrescidos).
Charaudeau, extrapolando a interpretação um tanto passiva do receptor na teoria jakobsoniana, faz com que o
receptor se transforme em uma parte ativa do ato de linguagem, e este ato, por sua vez, deixa de ser um processo
mecânico, no qual o emissor detém toda a importância no que diz respeito à construção de sentido; assim, a comunicação
passa a ser um ato interenunciativo entre não dois (o emissor e o receptor jakobsoniano), mas sim entre quatro
protagonistas:
1) o TU-destinatário (TU-d), que é o interlocutor fabricado por EU como destinatário ideal, e por isso o TU-d é
sempre adequado ao ato de enunciação do EU, para quem o TU-d é sempre transparente e está sempre
presente;
2) o TU-interpretante (TU-i), interlocutor independente do EU, mas que atua no ato de linguagem, encontrando em
um estado de opacidade em relação à intenção do EU;
3) o EU-comunicante (EU-c), que é o produtor da fala, sujeito que constrói de si mesmo uma imagem que tenta
passar ao TU; e
4) o EU-enunciador (Eu-e), que é, pelo lado da produção, a imagem que o enunciador constrói de si, e, pelo lado
da interpretação, a imagem que o TU-i constrói como hipótese da intencionalidade do EU-c.

Essa descrição dos sujeitos da linguagem sugerida por Charaudeau é bastante interessante na medida que inclui
em seu bojo uma série de princípios relevantes para a comunicação e para o processo de construção de sentido pelo texto;
essa concepção não apenas nivela a relevância que os sujeitos têm no ato interacional de linguagem, mas também executa
importantes abstrações ao levar em conta, por um lado, a intenção e a subjetividade de cada elemento do discurso, e, por

894
outro, a visão que constrói de si próprio e de seu interlocutor. São exatamente esses fatores (subjetividade, abstração,
construção do interlocutor) que fazem com que a análise de Charaudeau seja um passo a frente na de Jakobson.
Voltando aos protagonistas da linguagem, importa fazer uma aproximação entre o EU-e e o TU-d: já se afirmou
que este é sempre transparente, uma vez que é fabricado pelo EU-e; ora, o EU-e também é construído no processo de
comunicação (pelo TU-i, do ponto de vista da interpretação, e pelo enunciador, do ponto de vista da produção); então, este
EU-e também é, até algum ponto, transparente. Em outras palavras, “EU-e e TU-d são em parte transparente na medida em
que estão inscritos no ato de linguagem pela sua configuração particular”. (Charaudeau, 1983)
No entanto, tal transparência é parcial, visto que “o ato de linguagem é uma totalidade que integra os
protagonistas externos à configuração verbal que são EU-c e TU-i”; isso porque o “EU-c, como o TU-i, é um sujeito que age
instituindo-se emissor e articulador da fala. (...) Ele é o iniciador do processo de produção que constrói em função das
circunstâncias do discurso que o ligam ao TU e ao ELE, e que constituem sua intencionalidade”.
Do que até agora foi dito a respeito do EU-e, pode-se afirmar que ele não está diretamente relacionado com o
EU-c, pois aquele “nada mais é do que uma representação linguageira parcial do EU-c”, e estes EUs se encontram em uma
relação englobado (EU-e)/englobante (EU-c), sendo, então, o EU-e “uma máscara de fala colocada sobre o EU-c”. (id., ibid.)
Essa máscara serve exatamente para colocar a intenção do EU-c em segundo plano, do ponto de vista do enunciado, mas
em primeiro plano, do ponto de vista do sentido e da intencionalidade discursiva. Isso comprova a relação indireta entre os
dois EUs do processo comunicativo e a falta de total transparência do EU-e.
De acordo com o que foi até aqui exposto, pode-se fazer algumas afirmações genéricas interessantes a respeito
do sujeito, seja ele EU ou TU: (id., 1999):
1) o sujeito se define em uma empiria de trocas comunicativas, sendo então construído e/ou teorizado em função
da teorização e/ou construção destas trocas;
2) o sujeito é definido como sujeito de comunicação, que por sua vez se define através de sua identidade psico-
social, por uma série de restrições que sofre para se inserir na comunicação, por um comportamento que tem
para um determinado fim e por suas intenções em relação ao outro; e
3) o sujeito se encontra em uma relação de alteridade, ou seja, de intersubjetividade em relação ao outro, e muda
sua posição no discurso de acordo com sua posição de produtor ou receptor.
Já se disse que a concepção dos sujeitos da linguagem de Charaudeau nivela a relevância dos sujeitos no ato
interacional de linguagem e efetua importantes abstrações ao considerar a intenção e a subjetividade de cada elemento do
discurso e a visão que cada elemento (cada personagem do discurso) constrói de si próprio e de seu interlocutor. Deve-se
sempre ter em mente que esses interlocutores podem não ser encontrados na superfície do texto, ou seja, em suas marcas
linguísticas, mas na maneira como se diz algo. Daí a relevância das noções de enunciação e enunciado.

2. A enunciação e o enunciado
Todo e qualquer texto tem uma materialidade linguística que se apresenta concretamente de maneira linear, como
se observa na sequenciação de seus elementos. Mas essa linearidade não se dá apenas no enunciado, apesar de aí ser de
mais fácil visualização, mas é observada “sobretudo na enunciação, como resultado de um modo múltiplo e complexo de
conexão, ativado toda vez que ocorrem atos interativos” (Pauliukonis: 2001). De acordo com essa concepção, o texto
então não é mais um produto, mas um processo, no qual os sujeitos da linguagem atuam e constroem a imagem que
querem passar deles próprios e a imagem que fazem do outro.
Como afirma Fiorin (2001), “enunciação é o ato de dizer, enquanto o enunciado é o dito, o resultado da
enunciação”, sendo então a enunciação anterior ao enunciado, ou seja, este é fruto daquela. No enunciado estão as marcas

895
materiais linguísticas, que se apresentam linearmente; a enunciação também se projeta nesse enunciado e em suas
marcas. Aqui, retoma-se a ideia de que o texto é mais que a soma de suas partes; é a interpretação do enunciado
extrapolanso a superfície linear linguística “formada por unidades dotadas de sentido que bastaria identificar e combinar”.
Logo, a interpretação do enunciado é antes entendida “como uma rede de instruções que permitem que o co-enunciador
construa o sentido”. (Maingueneau, 1996, p.21)
Até agora, percebem-se três constituintes fundamentais na comunicação linguística: 1) o sujeito da enunciação,
que representa a subjetividade, assumindo o discurso e se manifestando através dele; 2) o destinatário, constituinte sem o
qual não há enunciação (mesmo em um monólogo, o destinatário e o emissor se confundem: a pessoa fala consigo
mesmo); e 3) o enunciado, concretização posterior à enunciação, no qual o enunciador se posiciona dentro da situação
comunicativa.
É através das marcas do enunciado que a enunciação constrói os sujeitos da linguagem. “A teoria da enunciação
deixou a questão do autor e do leitor reais, para tratar diferentemente de um autor e um leitor criados pelo texto.” (Fiorin,
2001) Assim, como os sujeitos da linguagem atuam de maneira solidária, o texto é resultado de uma co-construção entre
esses sujeitos, e assume um aspecto dinâmico. A textualidade, consequentemente, é um produto de um processo
colaborativo entre emissor e receptor.
Nota-se, de maneira clara, que a questão enunciado/enunciação está intimamente relacionada com a questão dos
sujeitos da linguagem, pois esses (em especial o EU-e) se apresentam e se fazem perceber através da enunciação. Isso
porque, sendo a enunciação um processo indicativo da maneira como o falante (EU-c) ‘se apropria’ da língua para organizá-
la em discurso, “o sujeito falante é levado a se situar em relação a seu interlocutor, em relação ao mundo que o cerca e em
relação ao que diz” (Charaudeau: 1992 apud Almeida: 2003, grifos no original).
Assim, da mesma maneira que o enunciado é fruto da intenção (que subjaz à enunciação) de um sujeito
constituído, o EU-c, é pelo mesmo enunciado que este EU-c legitima sua posição de enunciador, deixando implícita a sua
intenção e construindo, assim, a imagem que quer passar e faz de si, o EU-e.
Interessa notar que essa imagem que o EU-c quer passar de si, bem como a intenção, não precisam,
necessariamente, estar nas marcas concretas do enunciado, ou seja, no que está dito (aliás, na maior parte das vezes, seja
no texto escrito seja no falado, não está), mas na maneira como se diz. Esse fato é paralelo ao que fechou o tópico anterior,
qual seja, que a construção dos sujeitos da linguagem pode não se encontrar no enunciado, mas na enunciação. Outro
aspecto que aproxima muito esses dois tópicos é a já comentada ‘máscara’ da qual se vale o Eu-c para criar o Eu-e.: para
criar essa máscara, o Eu-c se vale tanto do que o enunciado fornece quanto do que possibilita a própria maneira de
enunciar.
Segundo Maingueneau (1996, p. 115), há as leis do discurso (Charaudeau: 1992 apud Almeida: 2003, grifos no
original), e, entre estas, destaca-se, quanto ao aqui estudado, o princípio de cooperação, uma espécie de metaprincípio:
“que a sua contribuição para a conversação corresponda ao que é exigido de você, no estágio atingido por esta, através do
objetivo ou da direção aceita do intercâmbio falado no qual você está envolvido”.
Assim, segundo esse metaprincípio, é importante salientar a identidade que o interlocutor deseja criar de si. Isto
torna a comunicação a mais perfeita possível. Entretanto, a imagem que um interlocutor cria do outro deve ser o mais
possível conformada, pois o limite prático é que define as imagens. Obviamente, tudo isso tem um limite prático, ao qual o
metaprincípio citado está subordinado. Um desses princípios, a saber, o da sinceridade, é, como se verá, de grande
importância para a análise do conto de Machado feita mais adiante.
Conclui-se então que as questões destes dois tópicos, bem como a tratada no próximo, o ethos, estão
intimamente imbricadas.

896
3. Ethos
A construção da personalidade que o locutor transmite (ou deseja transmitir) de si mesmo denomina-se ethos.
Nesse tópico, o mais importante é a capacidade de conferir credibilidade àquilo que se diz; ou seja, deseja-se persuadir o
interlocutor para faze-lo confiar plenamente no que está dito e no que se deseja passar. O Eu-c deseja o seu co-enunciador
plenamente identificado com o Eu-e.
Porém, como “toda fala implica a construção de uma imagem de si” (Amossy, 1999, p.9 apud Almeida, 2003, p.
75), o ethos é um aspecto de toda enunciação. E para construir essa imagem de si mesmo,
não é necessário que o locutor faça seu retrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale
explicitamente de si próprio. Seu estilo, suas competências de linguagem e enciclopédicas, suas
crenças implícitas bastam para dar representação de sua pessoa. Deliberadamente ou não, o locutor
efetua assim no seu discurso uma apresentação de si. (id., ibid.)

Um texto pode, ou deve, “encarnar” as propriedades comumente associadas ao comportamento ou às


características ordinárias daqueles para os quais se destina; e isso por sua própria enunciação, dado que é por meio dela
que se revela a personalidade do enunciador (Maingueneau: 2000, pp.96-98). Assim, se um texto é dirigido a homens de
negócio, por exemplo, sua estruturação (em nível lexical, morfofonológico, sintático, etc.) pode ser ágil, dinâmica e precisa,
a fim de se identificar com o que é usualmente entendido como positivo para essa classe; já se o texto se destina
primordialmente para um público alvo cujo objetivo é o descanso e a diversão, a enunciação ela própria pode recorrer a um
estilo mais pousado e agradável.1
Segundo Barthes (L’ancienne rhétorique, in Comunications, 1996, n. 16, p. 212 apud Maingeneau, 2000, p. 98),
ethos “são os traços de caráter que o orador deve mostrar: são os ares que assume ao se apresentar [...] O orador enuncia
uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo”. Esta definição foi originalmente formulada para o
modelo de retórica da antiguidade greco-romana, mas também é válido para qualquer discurso: o oral, o escrito, o literário,
o midiático, etc. Entre estes, destaca-se para os fins aqui propostos o discurso escrito, já que a leitura faz “emergir uma
instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito”.

4. Análise do conto “Um Incêndio”, de Machado de Assis


A melhor parte deste conto que serve para ilustrar toda a discussão teórica feita nos itens anteriores está
exatamente no primeiro parágrafo: nele, o narrador afirma que narra algo não inventado por ele nem por aquele que lhe
relatou os fatos, mas é um fato verídico. Além disso, ele assume que pode falhar em alguns momentos, perdendo-se a
respeito da forma, mas não da substância.
Em outras partes de sua narração, volta a utilizar essa estratégia do primeiro parágrafo: no 15o parágrafo, ele
reconhece que a situação de perigo e temor pela qual passa o seu personagem transtornou-lhe a tal ponto que chegou a
alterar a sua percepção de tempo, não sendo mais capaz de determinar se passaram dois segundos ou dois minutos
naquele temor. No parágrafo seguinte, o narrador reconhece que o seu personagem não podia se lembrar de como havia
superado este temor e agido de maneira heroica, entrando em um prédio em chamas para, supostamente, salvar uma vida.

1 Percebe-se que essa questão é muito importante para o texto midiático, cujo autor, em uma sociedade cada vez mais especializada
como a atual, dever reconhecer a personalidade do público-alvo do produto que deseja vender, a fim de criar a maior identificação
possível produto/consumidor, e assim obter êxito em seu objetivo, qual seja, vender o produto. Porém, “se o ethos é particularmente
evidente nos textos publicitários, ele também diz respeito, com a mesma pertinência, a todo o conjunto dos enunciados escritos”.
(Maingeneau: 2000, p. 100)

897
Ora, para fins de ilustração e demonstração das habilidades de seu herói, seria melhor narrar com detalhes as ações de seu
herói; porém, não o fazendo, o narrador reconhece que não detém todos os fatos, mesmo porque quem os viveu tinha sua
percepção alterada pelos sentimentos. E ao reconhecer essas “falhas” em seu conto, o narrador reforça sua sinceridade e,
consequentemente, a veracidade dos fatos.
Além desse reconhecimento, o narrador utiliza uma outra estratégica, esta tão cara a Machado de Assis: a ironia.
O suposto ato de bravura de sua personagem acaba por se revelar inconsequente, pois não havia mais ninguém preso no
prédio em chamas, a não ser um manequim de costura, e seus atos acabaram por render-lhe risco de vida, uma quase
prisão (por ser confundido com um ladrão que se aproveitava da situação) e uma perna quebrada. Após um período de
convalescença, “foi mandado a Calcutá onde descansou da perna quebrada, e do desejo de salvar ninguém”.
Essas estratégias são usadas para ativar em seu leitor uma das leis do discurso, a saber, o princípio da
sinceridade, que pode ser definido como um acordo entre os co-enunciadores para que aquilo que se diz seja sempre
interpretado como verdade.
E, ao ativar este princípio, o narrador está construindo uma imagem de si e a deseja acreditada por seu
interlocutor, e para isso começa colocando em pauta uma série de restrições presentes em sua narrativa, as quais
raramente são assumidas. Nem ele nem a pessoa que lho contou presenciaram o fato (assim, ele é o terceiro pelo qual
passa a história antes de ela ser colocada no papel); ele também assume que não possui o dom de colorir a narrativa, como
o possui aquele que a narrou para ele. Não se podem esquecer as outras “inconsistências” na narrativa, como as já citadas
imprecisões na marcação do tempo e da forma como conseguiu entrar no prédio em chamas. Soma-se a todas essas ditas
inconsistências a de que o narrador não sabia precisar como o seu herói quebrou a perna, uma vez que o fato ocorreu
quando ele já estava fora do prédio em chamas (“[...] uma tábua, um ferro, o que quer que era caiu do alto e quebrou-lhe a
perna [...] Não sei donde veio nem quis sabê-lo. Os jornais contaram a coisa, mas não li essa parte das notícias”, parágrafos
19 e 21).
Porém, feitas todas essas restrições, ele obtém sucesso ao apresentar um alto grau de sinceridade, e com isso
todos os demais fatos que ele narra não podem ser contestado; ora, se ele foi tão sincero a ponto de reconhecer tantas
restrições em sua narrativa, por que todo o mais que ele conta, e este todo mais é sem dúvida o mais importante no conto,
teria alguma inverdade? Por isso, sua estratégia é muito pertinente, servindo também para gerar um certo suspense em
torno do que é narrado a seguir.
Assim, o narrador funciona como um arquiteto do texto, a partir do momento que utiliza também um processo
meta-enunciativo: ao comentar, principalmente no primeiro parágrafo, sobre o que vai narrar, ele se posiciona em relação
ao texto, e ao mesmo tempo constrói uma imagem de seu texto e de si próprio.
Importa notar que o narrador em momento algum utilize as marcas formais do texto para alcançar êxito na
tentativa de se pintar como sincero; ele nunca diz: “Serei muito sincero em relação aos fatos que vou narrar.” Se o fizesse,
provavelmente não alcançaria o mesmo sucesso que obteve ao se valer das estratégias antes analisada. O que ele faz é
colocar em sua face uma máscara para fazer com que o Eu-c passe a ser Eu-e; e coloca esta máscara, como já se disse,
não através das marcas formais do enunciado, mas através da maneira como diz, de suas intenções comunicativas, da
enunciação. Colocando essa máscara, o narrador está cria uma personalidade que deseja transmitir a seu interlocutor, e
conferindo credibilidade àquilo que diz, persuade o interlocutor a tal ponto que este não deixe em momento algum de confiar
no que está dito e no que se deseja passar; assim, O Eu-c faz com que seu co-enunciador se identifique plenamente com o
Eu-e, e este é o fato mais relevante do ethos.
Outra característica que se destaca é a rica caracterização dos personagens: Abel, quem lhe contou originalmente
os fatos, é um engenheiro capaz de colocar “alma própria” a tudo o que exprime, seja ou não uma ideia original dele; o herói

898
do conto, denominado B..., “era um oficial da marinha inglesa, 32 anos, alto, ruivo, um pouco cheio, nariz reto e pontudo, e
os olhos dois pedaços de céu claro batidos de sol. Convalescia de perna quebrada” e era bastante aberto a contar história
(apesar de a narrada no conto ter sido tirada dele com certo esforço, por motivos óbvios: “Enfim, arrancou do peito a história
que queria guardar [...]”); o outro personagem é um padre, também inglês, que fez com que B... acabasse por relatar o que
lhe sucedeu. Toda esta descrição das personagens é bastante rica, valendo-se, em especial no caso do oficial inglês, de
farta adjetivação. Mas o narrador nada diz de si, realçando o fato de que sua própria caracterização muitas vezes não se
dá pelas marcas formais do texto, mas sim pela forma como a enunciação estrutura o enunciado, pela forma como se diz.

5. Conclusão
O objetivo do trabalho nesse capítulo não se restringe apenas a uma discussão teórica acerca de alguns tópicos
que são de central importância para a análise do discurso; deseja-se também mostrar como eles se relacionam de maneira
tão imbricada que mesmo a definição de um deles não pode ser feita sem levar em conta os demais.

Com isso, ficou provada a relevância que os temas sujeitos do enunciado, enunciação/enunciado e ethos têm
para a análise do discurso, por se tratarem de noções fundamentais, sem as quais qualquer outra discussão mais profunda
nesse ramo da lingüística fica mais empobrecida.

Referências

ALMEIDA, Fernando Afonso. Enunciação, Ethos e Gênero de Discurso na Análise da Interação. In: PAULIUKONIS, Maria
Aparecida Lino & GAVAZZI, Sigrid. Texto e Discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, pp. 71-84.

CHARAUDEAU, Patrick. Langage et Discours: éléments de semiolinguistique. Paris: Hachette, 1983.


_______. Análise do Discurso: controvérsias e perspectivas. In: MARI, Hugo et al. Fundamentos e Dimensões da Análise
do Discurso. Belo Horizonte: Coral Borges/Núcleo de Análise do Discurso-Fale UFMG, 1989.

FIORIN, José Luiz. Ethos Discursivo. Rio de Janeiro: UERJ. Resumo de palestra; mimeo, 2001

KEBRAT-ORECCHIONI, Catherine. La Enunciacion de la Subjetividad en el Lenguaje. Buenos Aires: Edical, 1977.

MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o Discurso Literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

______. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2000.

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino. Princípios Gerais que Comandam Processos Lineares na Textualização. Ceará:
Congresso da Abralin, 2001.

______; GAVAZZI, Sigrid. Texto e Discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.

SOBRE O AUTOR
Possui graduação (1996) em Letras pela UFRJ, mestrado em Letras pela UERJ (2002) e doutorado em Língua Portuguesa
pela UFRJ (2006). Atualmente é professor adjunto na UFRuralRJ, já tendo ministrado aulas na UFRJ, UFF e UERJ, com
ênfase em Língua Portuguesa, atuando principalmente nos seguintes temas: linguística, gramática e ensino da língua
portuguesa.
E-mail: claudiowalker@gmail.com

899
O discurso oficial sobre os profissionais da educação:
silenciamento e consenso

MELO, Kátia Maria Silva de


(UFAL)

1. Considerações preliminares

A docência tem sido objeto de inúmeras pesquisas e discussões e, ao longo dos anos 1990, o discurso oficial enfatiza
a importância da profissionalização dos professores pressupondo que a melhoria da qualidade da educação vincula-se à
atuação dos docentes. Neste trabalho objetivamos compreender os sentidos produzidos pelo discurso oficial, partindo do texto
da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB n° 9.394/96), que, em seu Título VI, designa os professores
“profissionais da educação”. Delimitamos essa designação discutindo a ressignificação da docência na contemporaneidade, pois
a LDB, situada nos atos do Poder Legislativo e sancionada pelo Presidente da República, estabelece diretrizes e bases visando
estabelecer também uma determinada concepção de docência, um consenso sobre a atuação e a identidade dos professores.
Norteamos nossa pesquisa pelos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso de origem francesa
(AD), filiada a Pêcheux. Consideramos que o discurso é constituído nas relações históricas materializadas na língua, pois
compreender os seus sentidos exige abordar as relações entre língua, história e ideologia. Ao focalizarmos a designação,
objetivamos investigar seu funcionamento no processo discursivo, entendendo que esse funcionamento se desenvolve “num
sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos lingüísticos – ‘significantes’ –
em uma formação discursiva dada” (PÊCHEUX, 1997, p. 161). Sendo assim, os sentidos produzidos pelo discurso materializado
no texto da LDB dialogam com um conjunto de outros discursos que compõem uma rede de formulações sobre a docência.
Segundo Courtine (1981, p. 50),

Uma rede de formulações consiste em um conjunto estratificado ou desnivelado de formulações, que


constituem as reformulações possíveis dos enunciados. O que nós chamaremos “estratificação” ou
“desnivelamento” das formulações remete à dimensão vertical (ou interdiscursiva) de um enunciado.

Portanto, a “rede” corresponde às diferentes formulações possíveis do enunciado no interdiscurso e o conjunto de


redes associadas a uma formação discursiva representa o processo discursivo inerente a esta formação discursiva (idem). No
caso de nossa pesquisa, ao abordar o funcionamento discursivo, será produtivo considerar “a função interdiscursiva, entendida
como domínio de memória que permite ao sujeito o retorno e o reagrupamento de enunciados assim como o seu esquecimento
ou apagamento” (COURTINE, 2006, p. 79).
Entendemos como fundamental partir da designação “profissionais da educação”, tendo em vista que ela norteia
atualmente o discurso sobre a docência e o projeto de profissionalização dos professores, inscrevendo-se numa rede de
formulações sobre o trabalho docente.

900
2. “Dos profissionais da educação”

Ao designar os professores “profissionais da educação”, o discurso oficial convoca sentidos de “profissional” e de


“educação”. Esses sentidos são determinados pelas relações capitalistas, marcadas pela reconfiguração das relações de
trabalho e pelo delineamento de um novo perfil profissional. Sendo assim, os efeitos de sentidos produzidos pela designação
referida consubstanciam-se nessas relações, inscrevem-se nas práticas discursivas contemporâneas. Segundo Pêcheux (1997,
p. 213),

toda prática discursiva está inscrita no complexo contraditório-desigual-sobredeterminado das formações


discursivas que caracteriza a instância ideológica em condições históricas dadas. Essas formações
discursivas mantêm entre si relações de determinação dissimétricas (pelos “efeitos de pré-construído” e
“efeitos-transversos” ou de “articulação” [...]), de modo que elas são o lugar de um trabalho de
reconfiguração que constitui, segundo o caso, um trabalho de recobrimento-reprodução-reinscrição ou um
trabalho politicamente e/ou cientificamente produtivo.

Acessar os sentidos da designação “profissionais da educação” torna necessário abordar essas práticas discursivas
em suas relações com outras práticas discursivas que configuram a história do magistério, ou seja, considerar a memória do
discurso sobre a docência. Segundo Orlandi (2007, p. 64), no sentido discursivo “a memória [...] é o saber discursivo que faz
com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer.” O discurso oficial,
ao designar os professores “profissionais da educação”, forja processos de identificação1 do professor que movimentam as
redes de filiações dos sentidos da docência. Diante da memória do discurso sobre a docência, questionamos: o que é ser
profissional da educação? Quais os efeitos de sentido produzidos por um discurso que se organiza em torno do conceito de
profissão? Essas questões nos remetem a uma discussão sobre o conceito de profissão estudado pela sociologia das profissões
e marcado por diversas acepções de acordo com a perspectiva norteadora. Para entender o que é ser “profissional da
educação” precisamos partir de uma questão anterior: o que é ser profissional? Não pretendemos, entretanto, realizar um estudo
histórico sobre os conceitos de profissão e profissional, mas observar as relações desses conceitos com a designação
“profissionais da educação”.
Inscrito no campo da sociologia das profissões, o conceito de profissão situa-se no ideário liberal e delimita o lugar
social de um grupo de trabalhadores que conquistou um conjunto de condições que lhe permite uma atuação e posição
diferenciadas em relação aos demais trabalhadores. Abordando as ambiguidades da docência, Enguita (1991) examina o que
professores compartilham com os demais profissionais e apresenta cinco características básicas dos profissionais: competência
(ou qualificação num campo de conhecimento); vocação (ou sentido de serviço a seus semelhantes); licença (ou exclusividade
em seu campo de trabalho); independência (ou autonomia, tanto frente às organizações como frente aos clientes);
autorregulação (ou regulação e controle exercido pela própria categoria profissional). Comparando-se os professores com essas
características, Contreras (2002) conclui que são semiprofissionais, pois lhes falta autonomia com relação ao Estado, que
delimita e regula o trabalho docente.

1 Compreendemos os processos de identificação como resultantes da interpelação/identificação ideológica que constituem o sujeito do
discurso a partir da inscrição do indivíduo em posições de sujeito delimitadas pela relação contraditória e móvel das formações discursivas no
interdiscurso (ZOPPI-FONTANA, 2003).

901
Entretanto, o conceito de profissão não é estático, sofrendo modificações ao longo da história e configurando-se
conforme as relações de forças estabelecidas. Discutindo esse conceito, Franzoi (2006) esclarece que o termo ‘profissão’ deriva
da ‘profissão de fé’ consumada nas cerimônias rituais de entronização nas corporações de ofício. Por meio dessa ‘profissão de
fé’ o membro comprometia-se com os deveres da corporação e era integrado a um sistema de regulações que assegurava um
estatuto social diferenciado (idem).
Ao retomarmos a história do magistério, observamos que o trabalho docente não pode ser identificado, inicialmente, ao
conceito de profissão (tal como definido pela sociologia das profissões). Esse conceito pressupõe uma série de prerrogativas
das quais a docência estava distanciada. No caso dos professores consideramos mais apropriado trabalhar com o conceito de
profissionalização, entendido como o processo pelo qual um grupo de trabalhadores constitui a sua profissionalidade, ou seja,
ocupa um lugar no “espaço profissional” (FRANZOI, 2006, p. 51). Compreender como esse processo imbrica-se com a produção
de sentidos para o trabalho docente exige abordar as condições de produção do discurso.

3- As condições de produção do discurso da profissionalização docente

Diante do estudo do percurso de constituição da profissão docente, constatamos que a atuação do professor foi
inicialmente balizada pelos valores religiosos para progressivamente passar por um processo de controle do Estado, no qual vai
configurando-se a influência do ideário liberal. Nesse percurso é relevante considerar o processo de feminização do magistério
que marca a profissão e contribui para a constituição de uma ideologia de domesticidade, bem como para a vinculação do
magistério ao sacerdócio. Segundo Almeida (2006, p. 178-179),

A articulação entre os papéis de professoras e de mães continuou sendo enfatizada de maneira absoluta e
o trabalho profissional tinha uma conotação piedosa. No seu exercício repousavam os mais caros ideais de
fraternidade e solidariedade, o que se constituía um apanágio da profissão ao longo do tempo e
impregnava a imagética social acerca do trabalho docente, pois o professor era aquele que professava, o
que demonstrava uma íntima relação com o sacerdócio.

Num outro momento, com o afastamento da educação escolarizada da tutela da Igreja, o professor passa a professar
os ideais do Estado Liberal. Ideais esses norteadores da formação realizada nas escolas normais, que “davam a norma”,
orientando a atuação docente na direção dos procedimentos adequados. Nesse contexto, o trabalho do professor especializou-
se e observamos, então, que no processo de significação da docência opera a contradição entre os sentidos de “novo” e de
“velho”, pois o professor formado na Escola Normal é visto como detentor de relevante missão social, distanciando-se do velho
mestre escola que não detinha uma formação específica.

Ao tratarmos das Condições de Produção do Discurso da profissionalização docente nos remetemos às condições
imediatas, que entendemos como o contexto da reforma educacional da década de 1990, marcado pela redefinição do papel do
Estado e das políticas públicas, e às condições de produção mediatas, que nos remetem à história de constituição do magistério,
ao longo do século XIX, quando ocorre a institucionalização da formação docente, com a criação das escolas normais. Segundo
Orlandi (2005b, p. 30), as condições de produção “compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a
memória faz parte da produção do discurso. A maneira como a memória ‘aciona’, faz valer, as condições de produção é
fundamental [...]”. No caso de nossa pesquisa, questionamos: como a memória “aciona, faz valer” as condições de produção do
discurso da profissionalização docente?

902
Para responder essa questão pressupomos que “todo discurso nasce de outro discurso e reenvia a outro, por isso não
se pode falar em um discurso, mas em estado de um processo discursivo, e esse estado deve ser compreendido como resultado
de processos discursivos sedimentados, institucionalizados” (ORLANDI, 2006, p. 26). O discurso oficial, situado na reforma
educacional iniciada a partir de 1990, ao designar os professores “profissionais da educação” aciona uma memória sobre a
docência, sobre os professores. Segundo Orlandi (2005, p. 31),
essa memória, ao ser pensada em relação ao discurso é tratada como interdiscurso. Este é definido como
o que fala antes, em outro lugar, independentemente. Contudo, é o interdiscurso que disponibiliza dizeres
que afetam o modo como o sujeito significa numa determinada situação discursiva.

O discurso da profissionalização docente, produzido ao longo dos anos 1990, aciona um interdiscurso que articula
elementos de saber do discurso religioso e do discurso político/liberal. Tais elementos de saber regulam a definição da
identidade do professor e da sua atuação, vinculadas às imagens do sacerdócio, do regenerador moral da sociedade, do
funcionário, do agente do progresso. Esses elementos concernem ao saber de uma formação discursiva, funcionando como um
princípio de aceitabilidade discursiva para um conjunto de formulações, (determinando “o que pode e deve ser dito”) e, ao
mesmo tempo, como princípio de exclusão (determinando “o que não pode/deve ser dito) (COURTINE, 1981, p. 49). No caso do
discurso oficial que analisamos, contemporaneamente, esses elementos de saber inscrevem-se na Formação Discursiva do
Mercado (FDM):
A Formação Discursiva do Mercado se define como um lugar de encontro entre elementos de saber já
sedimentados; ou seja, elementos pré-construídos, produzidos em outros discursos, que são convocados
no interior dessa formação discursiva, quer seja para serem confirmados, quer seja para serem negados,
mas sempre para organizar os discursos que a representam; [...] Os elementos de saber da Formação
Discursiva do Mercado estão ancorados em fundamentos da formação ideológica capitalista que considera
que para a felicidade e a liberdade do homem só existe um caminho: seguir as determinações do mercado
(AMARAL, 2005, p. 137).

Sendo assim, as determinações do mercado impõem a necessidade de rever a formação dos


trabalhadores/professores, pois esta não atende às exigências do processo de reestruturação produtiva, dos novos processos
de trabalho. Essa formação passa a ser norteada pelas noções de competência, empregabilidade, polivalência, capacidade de
adaptação. Nesse contexto, o professor tem seu trabalho questionado e sua formação redefinida, diante da configuração de um
novo perfil profissional e da definição de um projeto educacional voltado para a adequação da escola ao mundo do trabalho.
Observaremos, então, uma ressignificação da profissão docente ancorada na FDM materializada num conjunto de formulações
sobre a docência, apresentado nos diversos documentos regulamentadores da educação escolar, voltados para a produção do
consenso em torno do perfil adequado aos “profissionais da educação”.

4. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: silenciamento e consenso

Os sentidos produzidos pelo discurso oficial, filiado a FDM, são produzidos no confronto com outros discursos, tendo
em vista concebermos a Formação Discursiva (FD) como um espaço constituído pela heterogeneidade. Esse confronto pode ser
percebido no funcionamento do discurso materializado no Título VI da LDB 9.394/1996:
Título VI: Dos Profissionais da Educação

903
Art. 61 A formação dos profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e
modalidades de ensino e às características de cada fase de desenvolvimento do educando, terá como
fundamentos:
I - a associação entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação em serviço;
II - aproveitamento da formação e experiências anteriores em instituições de ensino e outras atividades.

Ao realizarmos a análise desse título, observamos que ele não define quem são os “profissionais da educação”,
iniciando-se pelo artigo 61, no qual são apresentados os fundamentos para a formação desses profissionais. Consideramos que
o silenciamento dessa definição revela os embates entre projetos educacionais travados ao longo do processo de elaboração da
LDB/1996 e a polêmica em torno da definição da identidade docente. Abordando o funcionamento do silêncio, Orlandi (1997, p.
17) esclarece:
O funcionamento do silêncio atesta o movimento do discurso que se faz na contradição entre o “um” e o
“múltiplo”, o mesmo e o diferente, entre paráfrase e polissemia. Esse movimento, por sua vez, mostra o
movimento contraditório, tanto do sujeito quanto do sentido, fazendo-se no entremeio entre a ilusão de um
sentido só (efeito da relação com o interdiscurso) e o equívoco de todos os sentidos (efeito da relação com a
lalague).

A identidade docente vem sendo discutida pelo movimento dos educadores e fundamenta-se numa concepção sócio-
histórica, na qual a docência é a base da identidade profissional. O acesso a tal concepção nos é fornecido pelos documentos da
Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope), nos quais a identidade dos profissionais da
educação é concebida de maneira ampla, no âmbito de um processo de contraposição à concepção tecnicista, então
predominante. A esse respeito, Freitas (2002, p. 140) acrescenta:

No âmbito do movimento da formação, os educadores produziram e evidenciaram concepções avançadas


sobre formação do educador, destacando o caráter sócio-histórico dessa formação, a necessidade de um
profissional de caráter amplo, com pleno domínio e compreensão da realidade de seu tempo, com
desenvolvimento da consciência crítica que lhe permita interferir e transformar as condições da escola, da
educação e da sociedade.
Ao não definir quem são os “profissionais da educação”, a LDB 9.394/1996 dificulta o questionamento da concepção
oficial de identidade docente, obstaculiza a contraposição ao projeto oficial de profissionalização, simula um consenso entre
projetos distintos. O distanciamento do projeto oficial em relação ao projeto dos educadores/trabalhadores é ocultado, tendo em
vista que no texto da LDB atual é utilizada a mesma designação da Anfope, “profissionais da educação”. Nos títulos e capítulos
da LDB anterior, Lei n.˚ 4.024/1961, a designação “profissionais da educação” estava ausente. Em seu Título VlI (Da educação de
grau médio), subdividido em quatro capítulos, o Capítulo IV era intitulado: “Da formação do magistério para o ensino primário e
médio”. A LDB de 1961 foi reformada durante a ditadura militar através das leis 5.540/68 (Lei da Reforma Universitária) e
5.692/71 (Lei da Reforma do Ensino de 1˚ e 2˚ graus). Observando os títulos e capítulos dessas duas leis, constatamos que a
designação “profissionais da educação” também não estava presente. Na Lei n˚ 5.540/68 o Capítulo II era intitulado: “Do corpo
docente” e na Lei n˚ 5.692/71 o Capítulo V era intitulado: “Dos professores e especialistas”.

Entretanto, apesar de o discurso oficial utilizar a mesma designação da Anfope, “profissionais da educação”, as
palavras, expressões, proposições não são neutras, mas produzem sentidos filiados às formações discursivas que representam
e que, por sua vez, representam formações ideológicas (PÊCHEUX, 1997). Os sentidos de “profissionais da educação” no
discurso oficial e no discurso da Anfope não são os mesmos, pois se inscrevem em diferentes formações discursivas. Portanto,

904
no tocante ao discurso materializado na atual LDB identificamos um funcionamento discursivo marcado pelo confronto entre a
Formação Discursiva do Mercado (FDM) e a Formação Discursiva dos Trabalhadores (FDT). Concebemos a FDT como um lugar
de encontro dos discursos que se contrapõem à perpetuação das relações de exploração vigentes na sociedade capitalista.
Essa formação discursiva mobiliza e congrega um conjunto de elementos de saber constituídos pelos trabalhadores em suas
instâncias de luta e resistência; tais elementos são norteados pela defesa da superação das relações de dominação e
expropriação do trabalhador; elementos que são convocados para confirmar ou negar os discursos que a representam (MELO,
2010).
Ao definirmos a FDT enquanto lugar dos discursos representativos dos interesses da classe trabalhadora, entendemos
que ela se apresenta como uma categoria teórico-metodológica ampla que nos auxilia na investigação dos antagonismos, dos
conflitos estabelecidos no processo de produção dos efeitos de sentido dominantes, tendo em vista que os sentidos oficiais da
designação “profissionais da educação” são produzidos no confronto com discursos inscritos nessa FD.

5. Considerações Finais

A designação “profissionais da educação” vincula os profissionais (professores) à educação. Como dito anteriormente,
mobiliza os sentidos de “profissional” e de “educação”. Podemos inferir que os “professores”, enquanto “profissionais”,
professam princípios, concepções e valores norteadores da educação. Neste caso, a educação escolar, pois a LDB/1996
apresenta as “diretrizes e bases” da educação escolar: “Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve,
predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias” (LDB/1996, art. 1º, § 1º). Assim, os sentidos do trabalho
docente e a atuação do professor vinculam-se aos sentidos da educação escolar, e o movimento de ressignificação/produção de
efeitos de sentido para a docência inscreve-se no processo de ressignificação do ensino, realizado no âmbito do projeto
educacional contemporâneo

Os sentidos de “educação”, produzidos contemporaneamente, e materializados no discurso oficial, apresentam um


caráter conservador, pois a ideia de adaptação faz-se presente em diversas formulações do discurso oficial, afirmando-se uma
concepção de educação segundo a qual a escola “deve levar cada um a tomar consciência de si próprio e do meio ambiente que
o rodeia, e a desempenhar o papel social que lhe cabe enquanto trabalhador e cidadão” (Relatório UNESCO, 2000, p. 18).
Entretanto, o caráter eminentemente conservador da educação escolar e, consequentemente, do trabalho docente é silenciado
por um discurso que apela para a noção de “mudança”, pois o professor é predicado no referido relatório como “agente de
mudança” (idem, p.152).

A realização deste trabalho nos permitiu compreender que o funcionamento discursivo oculta, sob a pretensa
transparência da linguagem, os processos ideológicos que se materializam e sedimentam no texto legal, veiculando um
determinado discurso sobre a profissionalização docente. Ao analisá-lo, foi possível perceber o silenciamento do conflito
presente no processo de redefinição da identidade e da atuação dos professores da Educação Básica. Esse discurso nos
fornece “o que é e o que deve ser o professor” (Pêcheux, 1997, p. 159), produzindo um efeito de evidência sobre a atuação e
identidade docentes que vem se sedimentando ao longo da história do magistério.

905
REFERÊNCIAS

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século XIX. In: SAVIANI, Dermeval [et. al.] O legado educacional do século XIX. 2ª edição. Campinas, SP: Autores Associados,
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906
Sobre a autora:
Kátia Maria Silva de Melo. Professora Adjunta do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. Possui graduação
em Pedagogia, Mestrado em Educação e Doutorado em Linguística. Tem experiência na área de formação de professores e
atualmente ministra as disciplinas Profissão Docente, Estágio 3 e Projetos Integradores 7 no Curso de Pedagogia.

E-mail: katia-melo@uol.com.br

907
Estratégias argumentativas e procedimentos enunciativos em
publicidades televisivas

MELO, Mônica Santos de Souza


(UFV/FAPEMIG)

Organização enunciativa
A publicidade de TV revela um quadro enunciativo bastante complexo. Essa complexidade se percebe tanto na
composição do circuito externo da comunicação publicitária, quanto no seu circuito interno.
O sujeito-comunicante desse tipo de texto, é, na verdade, uma entidade composta, de um lado, pelo anunciante,
figura que representa o fabricante do produto e, de outro lado, pelo publicitário, que corresponde geralmente, não a uma única
pessoa, mas a uma equipe de profissionais que trabalha conjuntamente.
O projeto de fala do sujeito comunicante visa a transformar, através do uso de estratégias discursivas, o
consumidor da publicidade em consumidor efetivo da mercadoria anunciada. Essas estratégias vão mobilizar os modos de
organização do discurso e, ao mesmo tempo, ativar determinados conteúdos semânticos.
No circuito interno, o enunciador não se revela como publicitário ou como seu representante, apesar de ter
sempre o papel de apresentador de um produto, a respeito do qual afirma um certo número de coisas; em alguns casos ele parece
se identificar com o anunciante, isto é, com o produtor do bem de consumo anunciado. Essa seria apenas uma estratégia para
produzir um efeito de real, fazendo acreditar que o enunciador e o comunicante são um só sujeito. O enunciador é o sujeito
responsável pelo discurso e é, ao mesmo tempo, responsável pela construção da imagem do comunicante.
O enunciador pode, portanto, assumir várias "faces" diante do público destinatário. Identificamos, a partir de
Charaudeau e Soulages (1994), três formas principais pelas quais ocorre essa espécie de "mascaramento" no nosso corpus:

1. o enunciador assume a figura de um representante da empresa que fabrica o produto, colocando-se ao lado do público,
assistindo-o e aconselhando-o. Para isso, utilizam-se certas marcas de enunciação (elocutivas) que, ao lado de outras estratégias,
colaboram na construção da imagem do enunciador como um benfeitor generoso e desinteressado:
Ex. 1: Conte comigo. Chevrolet. (Pub 1)

2. o enunciador pode interpelar diretamente o destinatário, através da utilização da modalidade alocutiva. Essa postura funciona
como estratégia que consiste em criar a ilusão de uma situação de diálogo, em que o destinatário teria a ilusão de ser único,
especial. No nosso corpus teríamos:
Ex. 2: Você já experimentou saborear a vida com mais calma? Experimente! (Pub 16)

3. o enunciador pode se esconder sob certas marcas da enunciação (delocutivas). Essa espécie de ocultamento compõe uma
estratégia que consiste em criar uma "ilusão de evidência", como se o saber contido no enunciado fosse absoluto. Nesse caso,
quem fala, aparentemente, é um terceiro ausente, que está num lugar de verdade total. É o que observamos em:
Ex. 3: A terra faz tudo crescer. (Pub 1)

908
É necessário, porém, que se deixe claro que, qualquer que seja a posição assumida pelo enunciador ao
representar um anunciante, esse enunciador vai sempre se apresentar como um benfeitor, como alguém que oferece um bem capaz
de satisfazer às necessidades do consumidor.
Com relação ao destinatário, pode-se também perceber, em geral, um processo de “mascaramento” semelhante ao
que ocorre com a figura do enunciador, já que o destinatário dificilmente é designado, no texto publicitário, como consumidor, mas
sim como alguém que pode ter algo a ver com tudo o que é dito a propósito do produto e que pode ser um utilizador eventual desse
produto. O receptor da publicidade vai existir no texto publicitário finalizado, como um consumidor do produto.

O dispositivo enunciativo da publicidade de TV


Para Soulages (1999), a comunicação midiática é um processo ritualizado e contratualizado, que depende daquilo
que ele denomina dispositivo enunciativo de mediatização, mecanismo que comanda o posicionamento não só do enunciador, mas
também do espectador, e diz respeito tanto à comunicação verbal quanto à comunicação visual.
Considerando a existência dessas duas formas de comunicação, parece-nos interessante a proposta de Lochard
(1993) pela qual a comunicação televisual, em seus diferentes gêneros, é sempre a resultante de uma dupla enunciação: uma
enunciação verbal, de um lado, envolvendo os diferentes atores midiáticos que obedecem às restrições de cada gênero, e uma
enunciação visual.
Dentre os dispositivos enunciativos descritos por Soulages, nos deteremos naqueles que interessam mais
diretamente à descrição do nosso corpus, quais sejam, os dispositivos de mostração e de ficção.

Dispositivo enunciativo de mostração


Esse dispositivo se constrói a partir de um enunciador real que se afirma como pertencente ao mesmo universo que
seu destinatário, interpelando-o. Esse enunciador será por nós denominado “comentarista” e a sua fala “comentário”. O destinatário
é, conseqüentemente, constituído e construído como um sujeito individualizado. Estabelece-se, portanto, sobre uma aparente
ausência de mediação entre a cena representada e o sujeito observante, privilegiando-se a transparência e o contato
individualizado. Esse dispositivo tem como modo de direcionamento típico o chamado direcionamento direto, processo que
predomina, por exemplo, nos jornais televisivos ou nas publicidades de conteúdo puramente comercial, denominadas, de forma um
pouco pejorativa, “reclames” (denominação atribuída às publicidades dos anos 50 e 60). As estratégias discursivas empregadas
nesse caso propõem uma articulação direta com o espaço externo de consumidores potenciais (Tu-i), na qual a promoção do
produto e o contrato comercial permanecem explícitos, sendo o produto e seus atributos o centro da troca. Trava-se uma espécie de
diálogo, onde o comentarista interpela o telespectador e apresenta o produto e seus benefícios. Nesse caso, o enunciador cria a
figura do comentarista, que se identifica como publicitário, usuário ou expert. Em qualquer desses casos, assume-se explicitamente
a promoção de um produto e, conseqüentemente, o contrato publicitário. Já o destinatário, consumidor ideal do produto, é
identificado, explicitamente, como consumidor do produto.

Ex. 2. a) Só Apracur é mais malvado que a gripe.(pub 8)

b) Você já experimentou saborear a vida com mais calma? Experimente! Viva mais tranqüilo.(pub 12)

909
Dispositivo enunciativo de ficção
Esse dispositivo propõe uma realidade espaço-temporal independente, no formato de pequenas cenas, o que exige
do sujeito interpretante um esforço cooperativo no sentido de acreditar no que está sendo exibido. Nessas pequenas narrativas tudo
é previsto e planejado, desde a produção do universo que será mostrado até a integração dos diferentes personagens nesse
universo.
Quando a mensagem publicitária assume o formato de uma narrativa, cria-se um universo por onde circulam
personagens que favorecem a identificação com o destinatário.
Considerando a possibilidade do discurso publicitário de televisão se articular em torno desses dois dispositivos
enunciativos, propomo-nos, a partir de agora, a fazer uma reflexão em duas etapas, considerando, primeiramente, a enunciação
verbal e, a seguir, a enunciação visual, nas publicidades televisivas analisadas.

A enunciação verbal nas publicidades televisivas


Na enunciação verbal predominam os comentários (chamadas, slogans, depoimentos, apresentações,
advertências) direcionados ao telespectador. Nesses comentários, os atos alocutivos são pouco freqüentes e assumem o formato
de uma interrogação ou sugestão:

Ex. 3: Você já experimentou saborear a vida com mais calma? Experimente! Viva mais tranquilo.(pub 12)

Já os atos elocutivos são típicos do depoimento, já que pressupõem a presença explícita do enunciador.

Ex. 4: Por isso Sonridor é a minha escolha. (pub 3)

Por fim, os atos delocutivos são os mais freqüentes, caracterizando-se como afirmações aparentemente isentas de
qualquer avaliação pessoal, mas que visam exaltar as qualidades do produto:

Ex. 5: a) Fiat idea adventure. A vida na cidade é uma aventura.(pub 2) – slogan.


b) Doriana apresenta: assuntos para o café da manhã. Assunto de hoje: que horas?(pub 6)
c) Knorr desidrata o melhor da natureza (...) (pub 11)
d) O mundo tem uma nova referência, um novo conceito de Sedan.(pub 13)
e) Pra quem tem a vida agitada e quer acabar rápido com as dores, Sonridor.” (pub 3)

Os atos delocutivos também podem aparecer como expressões de verdades consideradas incontestáveis. A
utilização desse tipo de afirmação parece ter como objetivo criar um espaço consensual, de identificação com o destinatário, para, a
partir daí, desenvolver-se uma exposição de idéias, que inclui a apresentação do produto, que já vai contar, de antemão, com uma
aceitação, do dito.

Ex. 6: a) A terra faz tudo crescer. (Pub 1)


b) A vida na cidade é uma aventura. (Pub 2)

910
A enunciação visual nas publicidades televisivas
O ato de comunicação televisual se fundamenta nas escolhas da instância de realização com relação aos
procedimentos de visualização a serem utilizados.
Lochard e Soulages (1991) propõem que o objeto televisual seja analisado a partir de um desdobramento em dois
espaços distintos: um espaço comunicacional (circuito externo) e um espaço discursivo (circuito interno). No circuito externo, há três
parceiros: a instância de realização de um projeto de comunicação (Eu-comunicante); o telespectador, receptor concreto do ato
midiático (Tu- interpretante) e os atores midiáticos.

Nessa situação, os parceiros e os protagonistas fazem parte de um duplo jogo que se forma em torno do texto
fílmico. O sujeito mostrador, que é instituído pela instância de realização, exibindo-se ou mascarando-se, lança mão de um ou mais
sujeitos observados, para criar lugares possíveis de adesão do telespectador, visto como um sujeito observante, alguém que poderá
se identificar com aquilo que está sendo mostrado.
Nas publicidades analisadas, predomina uma sobreposição dos dispositivos enunciativos de ficção e mostração:
enquanto as imagens são responsáveis pela construção de um universo narrativo, o estrato verbal simula uma interação direta com
o público, típica do dispositivo enunciativo de mostração.

Ex. 7:

Pra quem tem vida agitada e quer acabar rápido com as dores, Sonridor.

Sugere-se, desta forma, que as ações encenadas pertencem a um momento anterior ao dos comentários, que, por
sua vez, parecem coincidir com o tempo do destinatário, criando a ilusão de um diálogo autêntico com o público.
Nos casos em que o personagem-comentarista interpela o público através do direcionamento direto, pode-se
verificar duas situações:
i. o ator pode interromper a encenação, sendo retratado num tempo e/ou espaço diferentes do cenário onde se desenrola a
cena, dando uma espécie de depoimento, como em:

911
Ex. 8

Só Apracur é mais malvado que ela.

ii. o ator pode “acumular” dois papéis. Nesse caso, o personagem-comentarista permanece inserido no cenário ao qual
pertence e, numa espécie de parêntese, passa a se dirigir ao telespectador, como alguém que tem consciência de estar sendo
observado surpreenderia seu voyeur, dirigindo-se a ele.

Ex. 9:

Por isso Sonridor é a minha escolha

Adota-se, nesse caso, o chamado ”ponto de vista direcionado”, que ocorre, freqüentemente, nos depoimentos,
quando o personagem ou cometarista fala do produto. Ocorre, também, uma espécie de parêntese, em que o telespectador é
colocado numa posição de confidente ou cúmplice, com o qual, aparentemente, compartilha-se um segredo. Ao se adotar o ponto de
vista direcionado (ou sujeito-observado-observante), cria-se a ilusão de que o foco da percepção é o sujeito observador
(telespectador), que assume o papel não de mero espectador, mas de interlocutor da comunicação. Assim, quando o ator midiático
interpela explicitamente o destinatário visual (o telespectador), ao mesmo tempo em que abandona temporariamente o universo
narrativo ao qual estava “confinado”, atribui ao sujeito observador um estatuto de protagonista, sublinhando o projeto comunicacional
do qual ele é suporte. Esse procedimento corresponde ao eixo de filmagem olhos-nos-olhos, por meio do qual o ator midiático
estabelece deliberadamente um contato individualizado com o telespectador. Isso vai contribuir para valorizar a presença do
comentarista que olha o telespectador e se dirige a ele, provocando um efeito de “desficcionalização”, sendo esse recurso atípico
em enunciados fílmicos ficcionais.

Organização argumentativa
Para Charaudeau (2006), a argumentação é um processo intersubjetivo, já que exige, além de um sujeito que
desenvolva uma asserção sobre uma tese, um outro sujeito que constitui o alvo da argumentação e a quem o sujeito que

912
argumenta pretende levar a partilhar não a mesma verdade, mas uma veracidade, que dependeria das representações socio-
culturais partilhadas pelos membros de um grupo dado em nome da experiência e do conhecimento; assim, a existência de um
dispositivo argumentativo não determina a forma particular que assumirá a argumentação num texto, mas essa depende dos fatores
situacionais, isto é, da influência determinada pela situação de troca e pelo contrato de fala.
Para Lochard (1998), o discurso publicitário possui uma finalidade essencialmente argumentativa e apresenta um
caráter conotativo, que recorre a sentidos culturais. Para alcançar seu objetivo, a publicidade lança mão de diversas construções (a
descrição ou a narração, por exemplo).
Possuindo o discurso publicitário, um caráter pragmático, ele deve usar artifícios para seduzir/persuadir a maior
parte do público, já que não tem autoridade nem direito de obrigá-lo a comprar o produto. Assim, a argumentação publicitária se
baseia essencialmente no implícito do discurso. Ela se constrói a partir de um esquema simples:

A1 A2
(Se) (então)

esquema esse, em geral, implícito. Ele pode ser interpretado como: Se você quer..... então deve usar o produto X. Todo produto,
representa, portanto, de forma mais ou menos explícita, a promessa de um tipo de satisfação.
Ex. 10: Pra quem tem vida agitada e quer acabar rápido com as dores, Sonridor. (Pub 3)

É freqüente a expressão de argumentos para convencer o telespectador. Eles são apresentados nos comentários
em off, que se sobrepõem ou se intercalam às narrativas encenadas. Eles se apóiam na tese de que utilizando o produto o
consumidor ficará satisfeito, trazendo, implícita, uma promessa de felicidade.
Considerando que a argumentação publicitária se baseia mais no implícito que no explícito do discurso,
focalizaremos aqui os procedimentos semânticos, conforme descritos por Charaudeau (1992) tentando recuperar, através deles,
valores partilhados pelo público ao qual a publicidade se destina.

Os procedimentos discursivos e semânticos


Os procedimentos discursivos consistem em utilizar certas categorias da língua ou procedimentos dos outros
modos de organização do discurso para produzir efeitos de persuasão. Dentre os procedimentos discursivos próprios do discurso
publicitário, destacam-se a descrição narrativa e o questionamento. Esses procedimentos são, no entanto, contemplados quando
tratamos, respectivamente, das organizações descritiva, narrativa e enunciativa, nos capítulos anteriores.
Os procedimentos semânticos consistem na utilização de argumentos baseados num consenso social e nos
valores partilhados por um grupo. Eles vão se referir, basicamente, aos domínios de avaliação pragmático, verídico, hedônico, ético
e estético.
Procuramos determinar a freqüência de utilização desses domínios de avaliação no nosso corpus. Esses argumentos podem
aparecer inseridos nas várias formas textuais das publicidades: nos comentários, diálogos, depoimentos e slogans, por exemplo.
No nosso corpus destaca-se a utilização dos domínios de avaliação pragmático e hedônico.

913
O domínio de avaliação pragmático consiste em definir coisas ou ações em termos de sua utilidade. No nosso
corpus, as publicidades que fizeram uso de argumentos de caráter pragmático foram as de medicamentos, produtos alimentícios,
estabelecimento bancário, automóvel. As publicidades que adotam esse tipo de avaliação sugerem um comportamento que pode
estar baseado:

(i) na praticidade do produto:


Ex. 11: a) Sonridor. Duas vezes mais rápido. (pub 3)
b) O novo Gol tem a maior autonomia da categoria. Faz 21 km por litro. Foi de São Paulo a Brasília sem uma única parada.
(pub 19)

(ii) em modelos pré- estabelecidos:


Ex. 12: A Terra faz tudo girar. E a gente sabe disso, porque veio do mesmo lugar. (pub 1)

(iii) na diferença como argumento de sedução:


Ex. 13: Sadia. Para uma vida mais gostosa. (pub 10)

(iv) na segurança do produto:


Ex. 14: Me sinto segura porque age rápido e não irrita o meu estômago. (pub 3)

(v) na modernidade do produto:


Ex. 15: a) Para um carro ser completo, ele só precisa ser um: Novo Vectra Elite 2.0 (pub 18)
b) Novo Gol. Tecnologia como nunca. (pub 19)

Os argumentos de natureza hedônica aparecem com destaque nas publicidades de cerveja, produtos alimentícios
e automóveis. Ressaltam o prazer proporcionado pelo produto.

Ex. 16: a) É muito bom praia com a rapaziada, mas com Itaipava é sem comparação.(pub 17)
b) Agora o líder da categoria vem com um novo item de série. Viajar TAM pra onde você quiser.(pub 4)
c) Viva mais tranqüilo. Descubra os pequenos prazeres. A vida é mais gostosa quando você aproveita os instantes
sem pressa. (pub 16)
d) Chegou o novo Corolla. Trazendo mais estilo. Sofisticação. O prazer de dirigir. (pub 13)

Argumentação icônica
Para Adam (1997), a contextualização do objeto publicitário passa pela construção de um universo de natureza
narrativa. Na televisão, essa construção passa obrigatoriamente pela imagem, o que nos leva a considerá-la como um componente
importante da organização argumentativa do discurso publicitário. Trata-se de uma “argumentação pela sedução”, que gira em
torno do emocionar e agradar e tem como objetivo influenciar o interlocutor por meio de apelos de natureza afetiva.
Com relação às publicidades, a imagem participaria do seu dispositivo estratégico basicamente através da
encenação em que o produto é mostrado de forma atrativa. Percebemos que a imagem publicitária, associada ao texto, seduz pela

914
visualização de um universo atraente e pela concretização dos valores ligados aos domínios de avaliação pragmático e hedônico,
que são os mais explorados no nosso corpus.
Em termos do domínio pragmático, verifica-se uma ilustração, através da imagem, que corrobora os argumentos
apresentados no estrato lingüístico e sintetizam atributos associados ao produto. Um exemplo desses atributos seria a segurança
do produto. Essa característica é valorizada em publicidades de alimentos e medicamentos. No primeiro caso, percebe-se que as
imagens insistem em mostrar crianças consumindo os produtos que, geralmente, são oferecidos pelas próprias mães, o que sugere
que se trata de produtos confiáveis e de excelente qualidade. Nas publicidades de medicamentos encontramos, além da legenda
que indica a formulação do produto ou seu registro no Ministério da Saúde, imagens de autoridades (um químico, por exemplo),
manipulando o produto:

Ex.17:

(pub 6) (pub 11) (pub 3)

Já o domínio de avaliação hedônico, explorado em publicidades de cerveja, produtos alimentícios e automóveis, é


representado visualmente por situações em que os personagens deixam transparecer sua satisfação e alegria ao utilizar ou
consumir o produto. O consumo está frequentemente associado a situações de comemoração, confraternização ou reunião entre
amigos. Esse apelo é freqüente em publicidades de cerveja e alimentos.

Ex. 18:

(pub 13) (pub 17) (pub 9)

915
Conclusão
Pode-se concluir que é na interrelação entre os planos linguístico e visual que se constrói a argumentação
publicitária televisiva, uma vez que a imagem publicitária depende do apoio lingüístico para ser interpretada. Trata-se de uma
espécie de “argumentação pela sedução” que gira em torno do emocionar e agradar e tem como objetivo influenciar o interlocutor
por meio de apelos de natureza afetiva.

Referências

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Currículo resumido do autor


Mônica Santos de Souza Melo: É Doutora em Estudos Lingüísticos pela UFMG. É Professora Adjunta IV de Linguística no
Departamento de Letras da Universidade Federal de Viçosa, onde atua na graduação e no Mestrado. Desenvolve pesquisas e
orienta pesquisas, tanto na Graduação quanto no Mestrado, em Análise do Discurso, tendo como foco temas como discurso
midiático, religioso e político.
e-mail: monicassmelo@yahoo.com.br

916
A organização relacional discursiva nos gêneros Artigo de
opinião e Carta ao leitor

MENDES, Fernanda Teixeira da Costa


(UFMG)

INTRODUÇÃO

O Modelo de Análise Modular (MAM), proposto por Roulet e sua equipe e retomado em Roulet, Filliettaz e Grobet
(2001), propõe um quadro de reflexão que possibilita a descrição de como se organizam os discursos autênticos em uma
interação verbal, com uma proposta que visa à integração entre os níveis linguístico, textual e situacional.
O presente trabalho tem o propósito de mostrar como se determinam, nos textos dos gêneros artigo de opinião e
carta ao leitor da Revista Veja, as relações genéricas de argumento e de contra-argumento, a partir da análise da
organização relacional discursiva. É com base nessa forma de organização que é possível perceber como os conectores
sinalizam relações discursivas que auxiliariam no processamento dos sentidos dos textos. Portanto, este trabalho entende
conector conforme expõe Roulet (apud, MARINHO, 2006, p. 199):

Os conectores são definidos como formas lingüísticas que indicam ou determinam uma relação
ilocucionária ou interativa entre constituintes do texto e informações estocadas na memória discursiva¹
e que oferecem instruções procedimentais, de modo a facilitar o acesso à informação relevante.

Ao procurar perceber como se dão as relações genéricas de argumento e de contra-argumento em artigos de


opinião e em cartas ao leitor, partiu-se da hipótese de que os dois textos, por serem mais próximos do pólo do comentário e,
assim, veicular opiniões, tenderiam a apresentar uma forma de organização relacional semelhante, evidenciada,
primordialmente, pela presença explícita e/ou implícita de conectores. Pensou-se na possibilidade da semelhança da
organização relacional, porque os dois textos veiculam opiniões e, por esse motivo, seria inevitável a presença de
argumento e de contra-argumentos. A partir da hipótese formulada, procuraram-se respostas para as seguintes perguntas:
A organização relacional dos gêneros Artigo de Opinião e Carta ao Leitor é, de fato, semelhante? As relações de argumento
e de contra-argumento são fundamentalmente marcadas por conectores nesses dois gêneros textuais?

____________
¹
Memória discursiva é um conjunto de saberes compartilhado pelos interlocutores.
O artigo de opinião e a carta ao leitor são textos que pertencem ao domínio jornalístico e foram escolhidos pelo fato de ambos
serem mais próximos do pólo do comentário, conforme expõe Marinho (2008), com base em Adam (1997).

917
pólo distanciamento - informação
Enquete
Reportagem
Notícia
Entrevista
Resenha
Análise
Editorial
Cartas dos leitores
Artigo de opinião
Crônica
pólo engajamento - comentário
Figura 1

De acordo com essa figura, os textos do domínio jornalístico pertencem a dois grandes grupos: o pólo da
informação (notícia, reportagem, etc) e o pólo do comentário (artigo de opinião, carta ao leitor, carta do leitor, etc). Em
relação ao primeiro, a intenção comunicativa está mais ligada à informação de um fato; já no segundo, há a veiculação de
ideias/pontos de vista, em que há a intenção comunicativa de se opinar sobre determinados assuntos. Nesse sentido, por
se aproximarem do pólo do comentário e veicularem opiniões, é possível supor que textos como artigo de opinião e carta ao
leitor apresentam argumentos e/ou contra-argumentos, com o objetivo de discutir um determinado assunto, a partir da
veiculação de pontos de vista diversificados.

ESTRUTURA HIERÁRQUICA E ORGANIZAÇÃO RELACIONAL

Para analisar a forma de organização relacional dos gêneros artigo de opinião e carta ao leitor, torna-se
necessário interpretar como o texto se estrutura hierarquicamente. Descrever e analisar a estrutura hierárquica significa que
essa estrutura espelha um processo de negociação subjacente a toda situação de comunicação, segunda a abordagem
modular do discurso.
O processo de negociação entre os interlocutores envolve uma proposição, uma reação e uma ratificação. De
acordo com Roulet (1999), a negociação pode se dar de forma linear a ser representada por uma troca formada de três
intervenções: proposição, reação e ratificação.
No caso do artigo de opinião e da carta ao leitor, há a hipótese de que ambos representam um processo de
negociação entre os interlocutores, na medida em que os dois textos são uma intervenção complexa representada pela fase
de reação. Essa reação é provocada por um determinado acontecimento que levaria os autores do artigo de opinião e da
carta ao leitor a escreverem os textos. O assunto que instiga os autores, portanto, estaria no nível da proposição. A
ratificação seria a avaliação positiva ou negativa dos leitores, em forma de cartas do leitor, por exemplo. O esquema a
seguir permite a visualização da hipótese do processo de negociação:

918
Proposição Reação Ratificação
Fato Acontecido ____ Artigo de Opinião _____ Avaliação pelo
Carta ao leitor leitor

Representação de processo de negociação do artigo de opinião e da carta ao leitor


Figura 2

No módulo hierárquico, há a definição dos constituintes da base de um texto e das regras que possibilitam
depreender estruturas hierárquicas para os diferentes textos. O papel do analista adquire fundamental importância, uma vez
que sua interpretação possibilita uma determinada estrutura hierárquica que é subjacente. É nesse sentido que não há uma
orientação interpretativa rígida, nem estruturas hierárquicas pré-determinadas. Por outro lado, há algumas regras que
auxiliam a montagem da estrutura e que devem estar associadas à compreensão do texto por parte do analista. A tabela, a
seguir, mostra essas regras:

Regras que regem uma estrutura hierárquica


Toda troca é formada por intervenções. As trocas confirmativas são compostas por duas
intervenções, no mínimo. As trocas reparadoras podem ter três intervenções, cinco, sete ou
mais, se houver reações negativas.
Uma intervenção é formada, pelo menos, por uma intervenção ou por um ato, que pode ser
antecedido ou seguido de um ato, uma intervenção ou de uma troca.
Todo constituinte pode ser formado de constituintes de mesmo nível coordenados
Tabela 1

Na estrutura hierárquica de um texto, os constituintes discursivos, que podem ter estatutos de subordinado (S) e
principal (P), se organizam em três níveis denominados atos (A), intervenções (I) e trocas (T). Esses três níveis podem
estabelecer entre si relações de dependência, independência e interdependência. Entende-se a dependência como uma
relação em que um constituinte depende de outro. Nesse sentido, quando um constituinte pode ser suprimido sem
comprometer o texto, chama-se subordinado; o outro é denominado de principal. A independência acontece quando um
constituinte não depende de outro. Isso significa que os constituintes são coordenados entre si. A interdependência ocorre
quando um constituinte não pode existir sem o outro, no nível de uma troca.
A compreensão das relações de dependência e independência entre os atos e as intervenções visualizadas na
estrutura hierárquica, a partir da interpretação do texto pelo analista possibilita, conforme afirma Marinho (2004, p. 79.) “(...)
a visualização das hierarquias e relações existentes entre os constituintes, sendo assim considerada uma ferramenta
preciosa para a descrição do discurso”. Desse modo, vale destacar que a estruturação hierárquica de um texto não
representa a análise um traço exclusivamente formal, pois representa uma hipótese de interpretação de uma negociação
entre os interlocutores, exatamente por definir os constituintes, suas relações em diferentes níveis e as estratégias do
discurso. A partir da estrutura hierárquica, é possível a elaboração ou a confirmação de hipóteses referentes à organização
discursiva de qualquer texto.
No que se refere à organização relacional, as informações vêm dos módulos lexical, hierárquico e referencial. Sua
descrição tem como objetivo a identificação de relações ilocucionárias e relações interativas genéricas, a partir dos

919
constituintes da estrutura hierárquica e das informações estocadas na memória discursiva. Os conectores são elementos
que sinalizam relações interativas que podem ser categorizadas genericamente, conforme tabela apresentada a seguir.
Neste trabalho, as relações interativas genéricas de argumento e de contra-argumento constituem o foco da análise.

Relações interativas genéricas Conectores


Argumento porque, pois, visto que, devido a, se, etc.
Contra-argumento mas, contudo, entretanto, embora, etc.
Reformulação Ou seja, ou melhor, enfim, etc.
Topicalização quanto a, deslocamento à esquerda, etc.
Sucessão Em seguida, depois, etc.
Preparação (o constintuinte subordinado Não possuem marcas específicas.
precede o principal)
Clarificação Não possuem marcas específicas.
Comentário(o constituinte subordinado Não possuem marcas específicas.
sucede o principal)
Tabela 2
O artigo de opinião - A metade do caminho - e a carta ao leitor - Uma lição dos jovens - textos representados
no processo de negociação como uma intervenção reativa, foram segmentados em atos. Os critérios adotados para a
segmentação em atos foram:

- Autonomia pragmática da unidade textual.


- Estruturas clivadas.
- Deslocamento de sintagmas à esquerda.
- Orações coordenadas justapostas.
- Pontuação em fim de enunciados.
- Sintagmas deslocados à esquerda.
- Sintagmas adverbiais oracionais ou não.
- Orações subordinadas adjetivas explicativas.
- Orações subordinadas substantivas não constituem atos.
- Palavras ou expressões repetidas no enunciado não constituem atos.
- Aposto e vocativo não constituem atos.
- Intercalação de vocábulos e expressões no interior dos enunciados não são atos.

Com a segmentação do texto em atos, é possível montar as estruturas hierárquicas, representadas por esquemas
arbóreos. Essa estruturação se dá a partir do entendimento do analista sobre o texto, para que posteriormente proceda-se à
organização da estrutura hierárquica, com o objetivo de analisar as relações genéricas discursivas que podem ser ou não
sinalizadas por conectores. A seguir, há a apresentação da macro-estrutura hierárquico-relacional do artigo de opinião e da
carta ao leitor, respectivamente.

920
Ip
Is (1- 12)
Arg
I (1-63) Is
(1-66) (13-63)
Ip C-arg
(64-66)

Artigo de Opinião
Is
Prep
I (1-9) Is
Ip Arg (10-24)
(10-26)
Ip (25-26)

Carta ao leitor

Figura 3 – Macro-estrutura hierárquico-relacional

Conforme se observa na figura 3, o artigo de opinião apresenta uma estrutura hierárquico-relacional composta de
uma intervenção complexa (I) formada basicamente de duas intervenções: intervenção subordinada (Is de argumento - arg)
e uma intervenção principal (Ip) correspondente à conclusão do texto. A partir da intervenção subordinada de argumento, há
uma intervenção principal, constituída da apresentação inicial do assunto a ser desenvolvido; há também uma intervenção
subordinada em que se detecta a apresentação de pontos de vista que expressam relações de argumento e de contra-
argumento.

Na carta ao leitor, a macro-estrutura também é representada por uma intervenção complexa (I) que apresenta
uma Is (intervenção subordinada) correspondente aos atos (1-9). Essa intervenção introduz o assunto, preparando para o
desenvolvimento de pontos de vista e, por isso, é uma Is prep. Esta se subordina a uma Ip (intervenção principal)
representada pelos atos (10-26) que trata da apresentação dos pontos de vista e do fechamento do assunto. A partir desta
intervenção principal, há uma Is (arg) sinalizada pelos atos (10-24), específica para o desenvolvimento do assunto e outra
principal, marcada pelos atos (25-26) que corresponde ao fechamento do tema.

Segundo a descrição exposta sobre as macro-estruturas hierárquico-relacionais do artigo de opinião e da carta ao


leitor percebe-se que as macro-estruturas não são semelhantes, embora representem textos próximos do pólo do
comentário e abordem assuntos que possibilitam a exposição de opiniões. Uma hipótese seria o fato de serem textos
escritos por pessoas diferentes, com estilos específicos de escrita e, consequentemente, formas diversificadas de estruturar
os textos.

No artigo de opinião analisado, as relações de argumento e de contra-argumento são basicamente marcadas por
conectores. Para uma visualização esclarecedora do fenômeno, ressalta-se a estrutura hierárquica dos atos 13 a 30,
apresentada na figura 4, para que se possa perceber a atuação dos conectores como sinalizadores de relações de
argumento e de contra-argumento. Conectores como e (As 18), mas implícito (Ap 19), porque (As 20), como (As 25),

921
enquanto (As 30) são algumas marcas linguísticas que apontam para as relações genéricas já referidas e que auxiliam o
leitor no processamento do sentido do texto.

Ap (13) Há um bocado ...


Is
Arg As (14) um dia, lá na frente, ...
Ip (13-15) Arg
Arg Ap (15) Existem fatos de sobra ...
Arg
As (16) Está melhor ...
Ip
Ap (17) não em aparências,
Ip C-arg
Is C-Arg As (18) e está melhor de verdade,
Is
Is (16-21) C-arg Ap (19) não porque quem diz...
C-arg C-arg
As (20) até porque boa parte ...
Is
C-arg Ap (21) mas apesar delas.
C-arg
Is (16-30)
C-arg As (22) O problema é outro.
Ip Prep
Ap (23) Podemos ter ...

Ip (22-30) Ap (24) Podemos entregar,


Is
Arg As (25) como acaba de ocorrer,
Ip Arg
Ap (26) 25 milhões ...

Is As (27) Podemos nos firmar ...


C-arg
Is As (28) Podemos ter e ser ...
C-arg Is
Is C-arg Ap (29) mas vamos continuar ...
C-arg C-arg
As (30) enquanto se mantiver ...
Arg

Figura 4

É importante frisar que entre os atos 16-17 não há a presença explícita de um conector para apontar uma relação
de contra-argumento. Isso também ocorre entre os atos 20-21, “(...) Está melhor em questões essenciais, (21) não em
aparências (...)”.Outro exemplo de um conector não explícito, porém de análise semelhante à dos atos (20-21), é

922
representado também pelos atos (19-20). No ato principal – “Ap (19) não porque quem diz isso ... “ – o conector mas
também está implícito e pode ser inserido entre os constituintes para sinalizar uma relação genérica de contra-
argumento.No que se refere às relações genéricas sinalizadas no artigo de opinião, há uma considerável presença da
relação de argumento, conforme se observa em toda sua estrutura hierárquico-relacional, no anexo.

No fragmento da estrutura hierárquica correspondente aos atos 13 a 26, exposto na figura 4, também nota-se a
existência das relações de argumento basicamente nas intervenções principais. Isso mostra a importância dos argumentos
para se difundir pontos de vista a serem desenvolvidos no texto. Quando a relação de argumento aparece em uma
intervenção subordinada, significa que há uma complementação do ponto de vista que começou a ser desenvolvido na
intervenção principal.
As relações de contra-argumento aparecem com menor freqüência no artigo de opinião, em intervenções
subordinadas. Na figura 4, os atos 17, 21 e 29 são marcados por conectores contra-argumentativos, como o mas. A menor
recorrência das relações de contra-argumento, em intervenções subordinadas, pode apontar para o fato de que o articulista
apenas apresenta um ponto de vista diferente, para causar a impressão de que se caminha para uma tomada de posição
frente ao assunto abordado. Como se pode perceber, essa visão pretensamente opinativa de contestação pode ser vista
quando o autor faz uso da primeira pessoa do plural, no ato 29 especificamente: “ (28) Podemos ter e ser mais uma porção
de coisas, (29) mas vamos continuar sendo um país subdesenvolvido (30) enquanto se mantiver essa situação em que
tão pouca gente, na população brasileira, tem acesso real a uma vida efetivamente melhor”. A inclusão da voz do autor, ao
fazer uso da primeira pessoa, é mais um fator que leva o leitor a pensar que há um posicionamento do articulista/revista. Na
verdade, o uso de contra-argumentos, neste artigo, favorece a exposição de visões diferenciadas sobre o assunto, sem que
a revista se comprometa, adotando uma ou outra opinião, especificamente.
Em relação à carta ao leitor intitulada Uma lição dos jovens, é possível perceber, em sua estrutura hierárquica, um
uso reduzido de conectores, se comparada à estrutura do artigo de opinião. A presença dos conectores no artigo de opinião
pode ser um indício de que haja uma intenção de se sinalizar relações genéricas de argumento e de contra-argumento com
maior precisão para o leitor, para conduzi-lo a um tipo de leitura que possa ir, mais facilmente, ao encontro dos pontos de
vista defendidos pelo produtor do artigo. Assim, o esforço do leitor seria menor, uma vez que o uso mais frequente de
conectores marcaria as relações de argumento e de contra-argumento mais explicitamente.

Nesse sentido, para não expressar tão claramente a opinião da revista, o que significaria orientar mais
persuasivamente o leitor pela sinalização das relações que os conectores instruem, houve o pouco uso de conectores na
carta ao leitor se comparada ao artigo de opinião. Sendo assim, o pouco uso dos conectores pode ser também um recurso
para que o leitor tenha um esforço maior no processamento dos sentidos de um texto. Também é possível que seja uma
estratégia para que a opinião e o posicionamento da revista não se mostrem tão claramente, conforme preconiza a mídia
quanto à pretensa neutralidade, ao tratar os diferentes assuntos.

A própria organização dos constituintes do primeiro parágrafo e as relações interativas que sinalizam, apontam
para uma abordagem do assunto, de forma que não haja, por parte do produtor do texto, uma tomada de opinião, revelando
um posicionamento explícito por parte da revista.

923
As (1) Uma reportagem especial
Is Prep
Prep Ap (2) Eles formam uma ...
Is
Prep Ap (3) É uma realidade ...
Ip
As (4) justamente na idade ...
Com
Is As (5) Fazer parte ...
Prep Ip
(1-9) Ap (6) ser aceito sem se ver ...
Is
Ip Arg As (7) e sem ser o alvo ...
Arg
As (8) quando não ...
Is Arg
Arg Ap (9) é a melhor tradução ...

Figura 5

Como se evidencia na estrutura hierárquico-relacional, os dois primeiros atos são marcados por uma intervenção
subordinada de preparação que se apoia no assunto abordado em uma reportagem da revista, publicada na mesma edição.
O fato de o texto se ancorar no assunto da reportagem, o que também é mostrado no início do segundo parágrafo no ato
subordinado “(10) A reportagem mostra que se revelar homossexual para os pais ainda é algo tenso, complexo e sofrido
para um jovem.”, significa que há uma estratégia para uma não tomada de posição e mostrar, assim, uma postura de
neutralidade.
Além disso, é visível o pouco uso de conectores explícitos e implícitos, recurso que se observa ao longo de toda a
estrutura hierárquico-relacional da carta. Por um lado, o pouco uso de conectores pode ser um indício de que o leitor terá
maior esforço para perceber as relações interativas, para processar o sentido do texto. Por outro lado, usar conectores
explícitos e implícitos mostra que as relações interativas estão mais evidentes e pode ser um indício de que as explicações,
as justificativas, os contra-argumentos podem revelar, quando usados, pontos de vista claros da revista sobre o tema
abordado.
Não é ocasionalmente que o último parágrafo da carta ao leitor comece com um ato sem conector “(17) Encarar a
homossexualidade com naturalidade é uma bela lição que os jovens brasileiros estão ministrando aos adultos.” Em seguida,
inicia-se o ato 18 com uma expressão de caráter geral “(18) De modo geral (...)”. Para finalizar a carta, há um conector
implícito de conclusão (então, portanto) que poderia levar o leitor a perceber uma tomada de posição frente ao assunto
abordado. O não posicionamento fica evidente no ato 26 “devolvendo-a ao arbítrio de cada um na confecção da imensa teia
de afeição e rejeição que define a condição humana”, quando aponta para o leitor de se posicionar “livremente”, com o uso
do termo “arbítrio”.

924
Ap (25) Isso leva a questão ...
Ip Arg
As (26) devolvendo-a ...

Figura 6

No que se refere às relações genéricas de argumento e de contra-argumento na carta ao leitor, ao observar sua
estrutura hierárquica, há o predomínio evidente das relações de argumento, se comparadas às de contra-argumento.
Conforme se observa em parte da estrutura hierárquica da carta, a relação de contra-argumento, marcada pelo conector
mas, aparece apenas nos atos (11 e 24); já a relação de argumento pode ser evidenciada ao longo de toda a estrutura
hierárquica.

Nota-se que em partes da estrutura hierárquica da carta, há relação de argumento em intervenção subordinada a
partir da qual se apresentam outras intervenções subordinadas e principais também marcadas pela relação de argumento.
Há essa variação porque em alguns momentos do texto um determinado ponto de vista exposto assume o caráter de
principal e outro está subordinado a ele, completando a abordagem.

É importante ressaltar que, de modo diferente do artigo de opinião, os contra-argumentos que aparecem na carta,
embora estejam em intervenções subordinadas, expressam uma relativização de ponto de vista. Essa relativização está
relacionada à idéia do convívio com a diferença, como uma aprendizagem ao longo dos tempos, evidenciada não como
uma tomada de posicionamento, mas como uma ideia exposta na reportagem na qual a carta se apoia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a análise realizada sobre a organização hierárquico-relacional do artigo de opinião e da carta ao


leitor, em consonância com os preceitos teóricos do Modelo de Análise Modular retomados em Roulet, Fillietaz e Grobet
(2001), é possível desenvolver uma análise que envolva as dimensões linguística, textual e discursiva, conforme se
detectou nas considerações sobre a estrutura hierárquica e a organização relacional discursiva.
Este estudo foi norteado pelas seguintes perguntas: As relações de argumento e de contra-argumento são
fundamentalmente marcadas por conectores? A organização relacional do Artigo de Opinião e da Carta ao Leitor é
semelhante?
No artigo de opinião A metade do caminho, as relações de argumento e de contra-argumento foram
predominantemente marcadas por conectores explícitos; em alguns casos houve constituintes que sinalizaram relações
pelo uso de conectores implícitos. Isso aponta para o fato de que a explicitação desses elementos auxilia o leitor no
processamento do sentido do texto. Além disso, as relações sinalizadas por conectores são um dos recursos que podem
influenciar no convencimento mais efetivo do ponto de vista exposto, para que o leitor seja persuadido a compartilhar os
pontos de vista do texto.
Por outro lado, a menor presença de conectores explícitos na carta ao leitor, pode apontar para uma estratégia
ligada à própria característica do gênero de não tornar explícita a opinião da revista sobre um determinado tema. Um outro
argumento pertinente consiste na ideia de que não explicitar conectores dificulta para o leitor a percepção das relações
discursivas entre os constituintes. Não haveria, então, uma marcação mais evidente das relações genéricas de argumento e

925
de contra-argumento, exatamente para anunciar a neutralidade pretendida pela revista e, desse modo, não revelar opiniões
claras sobre um determinado assunto.
Em relação à outra pergunta que norteou as análises do artigo e da carta - A organização relacional do Artigo de
Opinião e da Carta ao Leitor é semelhante? Segundo a descrição exposta sobre as macro-estruturas do artigo de opinião e
da carta ao leitor percebe-se que, embora representem textos próximos do pólo do comentário e abordem assuntos que
possibilitam a exposição de opiniões, as macro-estruturas hierárquico-relacionais não são semelhantes. Uma hipótese
consistiria no fato de serem escritos por pessoas diferentes, com estilos específicos de escrita e, consequentemente,
formas diversificadas de estruturar os textos. Além disso, as macro-estruturas dos dois textos possibilitam visualizar essas
formas diferentes de lidar com os temas do artigo e da carta, em função das características das intervenções.

Vale ressaltar que essa abordagem inicial sinaliza para a necessidade de um aprofundamento da análise de
outros artigos e de outras cartas, como forma de se verificar a semelhança ou não da macroestrutura hierárquico-relacional
desses textos. Isso possibilitou o surgimento de perguntas como: Os artigos de opinião de um mesmo autor da Veja
seguem, de fato, uma macro-estrutura hierárquico-relacional semelhante? A revista orienta os articulistas a abordarem os
assuntos de determinada maneira, o que levaria os diferentes autores dos artigos da Veja a estruturarem os textos de modo
parecido? Essa segunda questão possibilitaria que macro-estruturas hierárquico-relacionais fossem semelhantes? As cartas
ao leitor da Veja também teriam uma macroestrutura hierárquico-relacional parecida?

As análises trouxeram uma contribuição importante porque proporcionaram os questionamentos expostos. Além
disso, as análises mostraram que as relações de argumento e de contra-argumento são sinalizadas por conectores
explícitos primordialmente, considerando o artigo de opinião. Isso é um dado interessante porque no desenvolvimento de
pontos de vista em que se pretende persuadir o leitor, o uso de conectores pode ser uma estratégia para auxiliar a
compreensão do texto, em uma tentativa de convencer mais claramente o leitor. Além disso, torna-se pertinente verificar o
uso dos conectores em gêneros que não pertençam ao pólo do comentário, para se perceber como se dão a sinalização
das relações de argumento e de contra-argumento. É importante ressaltar que outras análises sobre esses mesmos
gêneros tornam-se necessárias para confirmar ou refutar os apontamentos gerados sobre o artigo A metade do caminho e a
carta Uma lição dos jovens.

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Meu nome é Fernanda Teixeira da Costa Mendes. Faço Doutorado na Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa Análise do discurso – textualidade e textualização. Fiz o Mestrado na UFMG,
na linha de pesquisa Gêneros e tipos textuais. Atividades como docente são: aulas na Faculdade de Santa Luzia e no nono
ano do Ensino Fundamental da Prefeitura de Belo Horizonte.

927
ANEXOS

SEGMENTAÇÃO EM ATOS DO ARTIGO DE OPINIÃO - A METADE DO CAMINHO

(1) Está entre os maus hábitos permanentes do Brasil a ilusão de achar que é possível conviver, sem maiores
prejuízos, com a combinação com a qual tem convivido até hoje uma geléia geral que junta a incompetência da máquina
pública na execução dos seus deveres, a indiferença de um eleitorado sem interesse, paciência ou informação para
acompanhar o que os políticos fazem com o seu dinheiro e os vícios de um sistema político que está entre os piores do
mundo. (2) O sentimento da maioria é que não compensa esquentar a cabeça com esse vale de lágrimas, (3) quando o dia
a dia tem assuntos mais urgentes para o cidadão resolver. (4) Mas o pouco-caso com a realidade, infelizmente, sempre
cobra um preço alto. (5) Não se trata de uma cobrança que vai ficar para o futuro, (6) como frequentemente se imagina. (7)
O preço já está sendo pago há muito tempo, (8) e tende a ficar cada vez mais alto. (9) Basta ver tudo de que o Brasil de
hoje precisa com urgência, (10) e não tem (11) – e tudo o que tem de sobra, (12) e de que não precisa.
(13) Há um bocado de esperança, diante dos avanços reais que o país tem feito, de que, com perseverança,
paciência e uma atitude mental afirmativa, dá para ir tocando as coisas; (14) um dia, lá na frente, o grosso dos problemas
estará resolvido. (15) Existem fatos de sobra para demonstrar que o Brasil, neste momento, está muito melhor do que já foi
em qualquer outra época do passado. (16) Está melhor em questões essenciais, (17) não em aparências, (18) e está melhor
de verdade, (19) não porque quem diz isso é a propaganda boçal dos governos – (20) até porque boa parte desse
progresso não foi feita pelas autoridades constituídas, (21) mas apesar delas. (22) O problema é outro. (23) Podemos ter
crescimento de 6% ao ano, reservas de 250 bilhões de dólares e mais uma promoção no rating das agências internacionais
que avaliam nossa capacidade de pagar dívidas. (24) Podemos entregar, (25) como acaba de ocorrer, (26) 25 milhões de
declarações de renda à Receita Federal. (27) Podemos nos firmar como a sétima ou a oitava maior economia do mundo.
(28) Podemos ter e ser mais uma porção de coisas, (29) mas vamos continuar sendo um país subdesenvolvido (30)
enquanto se mantiver essa situação em que tão pouca gente, na população brasileira, tem acesso real a uma vida
efetivamente melhor.
(31) Basta pensar durante cinco minutos sobre certas realidades para constatar o disparate que é considerar o
Brasil atual um país bem-sucedido, (32) quando 50% da população, por exemplo, não é servida por rede de esgotos – (33)
e, principalmente, quando uma calamidade desse tamanho é tratada com a maior naturalidade do mundo pelos outros
50%, (34) em especial os que têm a obrigação de resolver o problema. (35) O assunto, na verdade, é visto como uma
tremenda chatice. (36) Nem poderia mesmo ser diferente, (37) quando se verifica que ainda não apareceu, em toda a
história política do Brasil, um único homem público bem-sucedido que tenha elegido como prioridade em sua carreira a luta
por instalação e tratamento de esgotos. (38) Só um débil mental seria capaz de agir assim; (39) pela sabedoria política em
vigor, (40) obra que não se vê é obra que não existe. (41) Estamos avançando, é claro. (42) Em 510 anos já se conseguiu
chegar à metade do caminho; (43) um dia, (44) se Deus quiser, (45) todos estarão atendidos. (46) Mas a única pergunta
que interessa, nessa e em outras questões do mesmo tipo, é: (47) quando? (48) Para os quase 100 milhões de brasileiros
que não têm esgoto, (49) faz toda a diferença.
(50) Não se trata de uma questão isolada. (51) Recentemente, num artigo que escreveu para VEJA, (52) o
professor Gustavo Ioschpe observou que só 25% da população brasileira alfabetizada está em condições de entender um
texto como aquele. (53) Não lidava, ali, com nenhum ponto de trigonometria avançada; (54) era apenas uma página de
revista, escrita em português corrente (55) e que deveria ser acessível a todos os que completaram os primeiros oito anos
de escola. (56) É uma excelente notícia para os políticos, (57) a começar pelos que mandam no atual governo – (58) vivem
se gabando de que o “povão” não lê nada do que a imprensa escreve (59) e, portanto, as críticas que recebem não têm
efeito nenhum. (60) Mas, para os 75% que não conseguem entender o artigo do professor Ioschpe, (61) essa situação é um
desastre. (62) É para eles que estão reservados, no Brasil que cresce a 6% e tem “grau de investimento”, os empregos com
trabalho mais pesado, os piores salários e, em vez de carreiras profissionais, ocupações sem futuro algum – (63) isso
quando conseguem emprego, num mercado em que competem em desvantagem cada vez maior.
(64) Dá para ir levando assim, é claro. (65) Mas, como informa o artigo que tão poucos brasileiros conseguem ler,
(66) não existe nenhum país desenvolvido no mundo com o abismo social do Brasil.
J.R. Guzzo

Editora Abril – Edição 2164 – ano 43 – nº 19 – 12 de maio de 2010

928
ESTRUTURA HIERÁRQUICO-RELACIONAL DO ARTIGO DE OPINIÃO - A
METADE DO CAMINHO

MACROESTRUTURA
Ip
Is (1- 12)
Arg
I (1-63) Is
(1-66) (13-63)
Ip
C-arg
(64-66)

Ap (1) Está entre os maus hábitos

Ap (2) O sentimento da maioria ...


Ip (1-4) Ip
Arg Arg As (3) quando o dia a dia tem .
Is Arg
Arg Ap (4) Mas o pouco-caso com ...
C-arg
Ip Ap (5) Não se trata de uma ...
Arg Is
(1-12) Arg As (6) como frequentemente ...
Ip (5-8) Arg
Arg Ap (7) O preço já está sendo...
Ip
Is As (8) e tende a ficar cada vez ...
(5-12) Arg
As (9) Basta ver tudo de que ...
Ip
Ap (10) e não tem
Is (9-12) C-arg
C-arg As (11) – e tudo o que tem ...
Is
C-arg Ap (12) e de que não precisa.
C-arg

929
Ap (13) Há um bocado ...
Is
Arg As (14) um dia, lá na frente, ...
Ip (13-15) Arg
Arg Ap (15) Existem fatos de sobra ...
Arg
As (16) Está melhor ...
Ip
Ap (17) não em aparências,
Ip C-arg
Is C-Arg As (18) e está melhor de verdade,
Is
Is (16-21) C-arg Ap (19) não porque quem diz...
C-arg C-arg
As (20) até porque boa parte ...
Is
C-arg Ap (21) mas apesar delas.
C-arg
Is
C-arg As (22) O problema é outro.
Ip Prep
Ap (23) Podemos ter ...

Ip (22-30) Ap (24) Podemos entregar,


Is
Arg As (25) como acaba de ocorrer,
Ip Arg
Ap (26) 25 milhões ...

Is As (27) Podemos nos firmar ...


C-arg
Is As (28) Podemos ter e ser ...
C-arg Is
Is C-arg Ap (29) mas vamos continuar ...
C-arg C-arg
As (30) enquanto se mantiver ...
Arg

930
Ap (31) Basta pensar ...
Ip
Arg As (32) quando 50% ...
Ip (31-34) Arg
Arg As (33) e, principalmente ...
Is
Ip Ap (34) em especial os que ...
Ref

Ap (35) O assunto, na verdade ...


Is (35-37) I Ref
Ip Arg As (36) Nem poderia mesmo ...
Is
(31-45) Arg Ap (37) quando se verifica ...
Arg
Ap (38) Só um débil mental ...
Is
Arg As (39) pela sabedoria política ...
Ip Arg
Ip (38-41) Arg As (40) obra que não se vê ...
Arg
Is As (41) Estamos avançando, ...
Arg
As (42) Em 510 anos já ...
Is (42-45)
Arg Ap (43) um dia,
Is
Is Ip Arg As (44) se Deus quiser,
Arg Arg
Ap(45) todos estarão atendidos.

As (46) Mas a única pergunta ...


C-Arg
Is As (47) quando?
C-arg Arg
Ip As (48) Para os quase ...
Arg Is Arg
Is Arg Ap (49) faz toda a diferença.
(46-50)
C- arg Ap (50) Não se trata ...

931
As (51) Recentemente, ...
Is Top
Is Ap (52) o professor Gustavo ...

Ap (53) Não lidava, ali, ...


Ip (51-55)
Ap (54) era apenas uma página ...
Ip
Arg As (55) e que deveria ser ...
Arg

Ap (56) É uma excelente ...


Ip
Is As (57) a começar pelos ...
Ip Arg
Arg As (58) vivem se gabando ...
Is
Arg Ap (59) e, portanto, as críticas...
Ip Arg
Arg Ap (60) Mas, para os 75% ...
Is C-arg
Is (56-63) C-arg As (61) essa situação ...
Is Arg
Ap (62) É para eles ...
Is
Arg As (63) isso quando ...
Arg

Ap (64) Dá para ir levando ...


Ip (64-66)
C-arg Ap (65) Mas, como informa ...
Is C-arg
C-arg As (66) não existe nenhum país ...

J.R. Guzzo

Editora Abril – Edição 2164 – ano 43 – nº 19 – 12 de maio de 2010

932
SEGMENTAÇÃO EM ATOS DA CARTA AO LEITOR - UMA LIÇÃO DOS JOVENS

(1) Uma reportagem especial desta edição de VEJA revela a existência de um fenômeno recente entre parcela
considerável dos adolescentes e jovens brasileiros. (2) Eles formam uma geração que cultiva a tolerância em um nível
jamais atingido em outros períodos da nossa história. (3) É uma realidade positiva em especial para os jovens
homossexuais, (4) justamente na idade em que a aprovação dos pares é mais vital para o amadurecimento emocional do
que a da própria família. (5) Fazer parte de uma turma, (6) ser aceito sem se ver obrigado a fingir (7) e sem ser o alvo
preferencial de gozações, (8) quando não de hostilidades, (9) é a melhor tradução de felicidade na adolescência.
(10) A reportagem mostra que se revelar homossexual para os pais ainda é algo tenso, complexo e sofrido para
um jovem. (11) Mas o convívio com a diferença, antes verificado apenas no ambiente de vanguardas e círculos intelectuais
e artísticos, está se tornando a norma nos grandes centros urbanos brasileiros. (12) O fato de alguém ser gay não traz mais
aquela marca dominante em torno da qual orbitavam todas as demais qualidades e defeitos do garoto ou da garota. (13)
Perante os colegas e amigos, (14) a orientação sexual de um adolescente, (15) que até há bem pouco tempo era a
característica primordial de sua essência, (16) passa a contar apenas como uma das muitas facetas da personalidade.
(17) Encarar a homossexualidade com naturalidade é uma bela lição que os jovens brasileiros estão ministrando
aos adultos. (18) De modo geral, (19) quando escapa da galhofa pura e simples, (20) a homossexualidade é tratada com
hipocrisia (21) ou usada como bandeira por grupos militantes que vitimizam sua condição (22) e são paparicados por
políticos em busca de votos. (23) Os jovens estão demonstrando que ser homossexual não necessariamente implica que
um indivíduo seja pior ou melhor, mais forte ou mais fraco do que o outro – (24) mas apenas diferente. (25) Isso leva a
questão para longe das piadas, das bandeiras, das passeatas, das religiões, dos julgamentos morais e até das legislações,
(26) devolvendo-a ao arbítrio de cada um na confecção da imensa teia de afeição e rejeição que define a condição humana.

Editora Abril – Edição 2164 – ano 43 – nº 19 – 12 de maio de 2010

933
ESTRUTURA HIERÁRQUICO-RELACIONAL DA CARTA AO LEITOR - UMA LIÇÃO DOS JOVENS

MACROESTRUTURA

Is
Prep
I (1-9) Is
Ip Arg (10-24)
(10-26)
Ip (25-26)

As (1) Uma reportagem especial


Is Prep
Prep Ap (2) Eles formam uma ...
Is
Prep Ap (3) É uma realidade ...
Ip
As (4) justamente na idade ...
Com
Is As (5) Fazer parte ...
Prep Ip
(1-9) Ap (6) ser aceito sem se ver ...
Is
Ip Arg As (7) e sem ser o alvo ...
Arg
As (8) quando não ...
Is Arg
Arg Ap (9) é a melhor tradução ...

934
As (10) A reportagem ...
Is
C-arg Ap (11) Mas o convívio ...
Is C-arg
Arg Ap (12) O fato de alguém ...

Ip As (13) Perante os colegas ...


Arg Ip Top
Ap (14) a orientação sexual ...
Is
Arg As(15) que até há bem ...
Is Is Arg
Arg Arg Ap (16) passa a contar ...
(10-24)
Ap (17) Encarar a

As (18) De modo geral,


Ip
As (19) quando escapa ...
Ip Ip Arg
Ap (20) a homossexualidade...
Is
Ip (10-26) Arg As (21) ou usada ...
Is Is Arg
Arg Ap (22) e são paparicados ...

As (23) Os jovens ...


Is
C-arg Ap (24) mas apenas diferente.
C-Arg

Ap (25) Isso leva a questão ...


Ip Arg
As (26) devolvendo-a ...

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935
O contrato de comunicação nas páginas de abertura das
operadoras de telefonia móvel

MENDES, Renata dos Santos


(Funcec/ Uemg)

1 INTRODUÇÃO

O homem, quando utiliza o discurso, interage em sociedade, a partir de um processo de interlocução que abrange
as imagens recíprocas e o jogo de representação que outro faz do eu. Diante disso, discurso e comunicação devem-se
apresentar como indissociáveis, cujos parâmetros sejam o uso, explícito ou não, de elementos primordiais à compreensão
do corpus.
Existem várias formas para acontecer a enunciação, cujas ações básicas se dividem, dentre tantas, em: informar,
opinar, pedir, encantar, seduzir, influenciar, criticar, provar, revelar, explicar, chatear e persuadir. Aliás, não só isso faz o
processo interlocutório, como também alguns fatores que interferem nessa situação discursiva, a saber: ambiente,
momento, interlocutores, modalidades, circulação dentre outros. Na verdade, a estrutura da enunciação é determinada pela
situação e meio sociais haja vista que há interação entre dois seres socialmente organizados. Isso mostra que a função
central dessa interação verbal é a comunicação, cuja condição necessária é a harmonia dialógica entre os interlocutores, a
ação de linguagem.
Para se entender a situação da ação de linguagem, devem ser consideradas as representações sociais advindas
dos mundos físico, social e subjetivo. Por sua vez, em uma situação de produção, duas ações se fazem presentes: a de
linguagem externa (descrição objetiva) e a de interna (interiorização subjetiva), sendo esta a que mormente influi sobre a
produção do texto empírico. Ainda, analisando a relação entre uma situação de ação e um texto empírico, não se pode
prever deste o conjunto das características que o produziu, mas apenas apresentar hipóteses. Assim, para a produção de
um enunciado, consideram-se: o contexto da produção (baseada nas representações dos mundos físico, social e subjetivo)
e o possível controle pragmático ou ilocucional desses mundos.
Esclarecendo os parâmetros que influenciam na produção dos enunciados, entende-se que, em relação ao mundo
físico, são influentes o lugar e o momento de produção além dos coenunciadores. Por sua vez, no que tange o social e o
subjetivo, a interação comunicativa ocorre a partir do lugar social dos interlocutores e do objetivo da interação. Na verdade,
algumas normas devem ser respeitadas e o gênero do discurso em questão deve estar adequado, se pretendem produzir a
resposta esperada. Isso significa que existirá algo próprio desse ato interlocutório, estabelecido por Charaudeau
(MAINGUENEAU, 2004, p. 34) como “contrato de comunicação”.
São vários os gêneros que definem a situação comunicacional entre interlocutores que se encontram, para uma
situação real de comunicação, em um contexto social e histórico. Um deles são os corpus nas aberturas dos sites das
operadoras de telefonia móvel do Brasil, dos quais se buscou verificar a existência do contrato de comunicação que
expressa a relação direta entre o poder de persuasão do locutor – operadora de telefonia móvel – e a aceitação do
alocutário – cliente de telefonia móvel, por meio de uma pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa, e, quanto aos
procedimentos técnicos, classificada como bibliográfica. Além disso, sob a perspectiva teórica da Linguística Textual e da
Análise do Discurso, o embasamento teórico principal ficou a cargo de Maingueneau (2004).
Pretende-se, com isso, apresentar um referencial teórico que aborde a Análise do Discurso como uma forma

936
necessária de mediação entre o homem e as realidades natural e social (ORLANDI, 2003). É mostrar, ainda, que o estudo
discursivo considera, em suas análises, o dito em um dado momento, o que já foi dito e o não-dito, atentando-se para as
posições social e histórica dos sujeitos bem como suas formações discursivas.

2 A ANÁLISE DO DISCURSO

Iniciada nos anos 60 do século XX, a Análise do Discurso busca estudar a língua como um acontecimento que
tem como finalidade a produção de sentidos. O objeto da análise discursiva, o discurso, não é apenas transmissão de
informação, mas a constituição dos sujeitos (coenunciadores) e a produção de sentidos que eles realizam. Recorrendo a
informações benvenisteanas1 (1966, p. 266 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 169), “[...] ‘discurso’ está
próximo de ‘enunciação’: é a ‘língua como assumida pelo homem que fala, e na condição de intersubjetividade que só a
comunicação lingüística torna possível”.
Convém, sucintamente, explicitar que os sujeitos do ato de comunicação realizam duas atividades, a de produzir e
a de interpretar, de que participam quatro protagonistas: o EU comunicante, o EU enunciador, o TU participante e o TU
destinatário. (CHARAUDEAU2, 1992 apud SOARES, 2009, p. 73).
Em linhas gerais, definindo esses sujeitos, pode-se estabelecer que o eu é também identificado como enunciador
e locutor; este, como sujeito exterior, bastante ligado ao ato da enunciação, e aquele, no interior. Quanto ao tu, exterior ao
processo de enunciação, é identificado como receptor (recebe e interpreta a mensagem); e incluso no ato de enunciação, é
o sujeito ideal.
Explicitados os sujeitos da comunicação, é primordial estabelecer o contrato de Charaudeau (MAINGUENEAU,
2004), o qual implica a existência de normas (leis do discurso), o reconhecimento mútuo e amplo entre os interlocutores e a
situação da comunicação (múltiplos gêneros do discurso).

2.1 O poder da enunciação nos textos de comunicação

Todo enunciado, produto do ato da enunciação, para se fazer explícito, deve apresentar claramente as intenções
desejadas ao contexto, uma vez que o coenunciador nem sempre interpreta/decifra as representações impostas por aquele.
Isso é bem explorado por Maingueneau (2004, p. 20) quando ele informa que compreender “[...] um enunciado não é
somente referir-se a uma gramática e a um dicionário, é mobilizar saberes muito diversos, fazer hipóteses, raciocinar,
construindo um contexto que não é um dado preestabelecido e estável”.
Nesse sentido, os coenunciadores buscam nos enunciados os sentidos comunicativo e social bem como utilizam
termos de competências comunicativa, situacional, pragmática ou dialógica, os quais delimitam que “[...] a competência de
produção/interpretação ultrapassa o simples conhecimento das palavras e de suas regras de combinação e requer um
saber bem mais global, que compreende outros elementos da interação social [...]”. (CHARAUDEAU, 1999, p.30).
Em especial à competência pragmática, algumas marcas linguísticas devem ser observadas, tendo em vista a
relação que se pretende estabelecer entre os coenunciadores. Para Maingueneau (2004), a interpretação de um enunciado
leva em consideração três tipos de contexto: o ambiente físico da enunciação (contexto situacional), o cotexto (sequências
verbais que se arrolam antes ou depois da unidade que se deseja interpretar) e os saberes anteriores à enunciação.

1 BENVENISTE, E. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966.


2 CHARAUDEAU, P. Grammaire du sens et de léxpression. Paris: Hacette, 1992.

937
Dijk3 (1996, p. 81 apud SAUTCHUK, 2003, p. 25), por sua vez, expõe que a atividade pragmática “[...] se ocupa da
relação entre a estrutura textual e os elementos da situação comunicativa sistematicamente ligados a ela [...], isto é,
aqueles que determinam a estrutura e a interpretação dos enunciados”.
Em suma, deve-se valer de procedimentos pragmáticos a fim de proporcionar ao co-enunciador elementos que lhe
permitam chegar a mais provável interpretação, atingindo, pois, o seu propósito comunicativo.

2.2 A importância das leis do discurso para a produção e interpretação dos enunciados

Tendo em vista que o enunciado possui uma função comunicativa e de que é produto da atividade verbal, e que o
não-dito se faz presente em uma troca comunicativa, algumas leis são necessárias, as quais atendem ao princípio geral da
cooperação. De acordo com esse princípio, subentende-se que, no ato de comunicação, duas ou mais pessoas cooperarão
para que a interlocução transcorra da melhor forma possível. Para isso, entram em cena as máximas conversacionais.
Introduzidas, na década de 60, pelo americano Paul Grice, as máximas também são conhecidas como leis do
discurso, que se encontram dependentes do princípio de cooperação, lei superior que apresenta o seguinte parâmetro: a
contribuição à conversação, no momento em que acontece, deve estar de acordo com o que é imposto pelo objetivo ou pela
orientação da troca verbal da qual se está participando. (GRICE4, 1979 apud MAINGUENEAU, 2004). As máximas
griceanas podem ser divididas em:
- Máxima da Quantidade: “não diga nem mais nem menos do que o necessário”.
- Máxima da Qualidade: “só diga coisas para as quais tem evidência adequada; não diga o que sabe
não ser verdadeiro”.
- Máxima da Relação (Relevância): “diga somente o que é relevante”.
- Máxima do Modo: “seja claro e conciso; evite a obscuridade, a prolixidade, etc.”. (KOCH, 1992, p. 27-
28).

As leis do discurso não são consideradas normas de uma conversação ideal; na verdade, elas apresentam um
importante diferencial para a compreensão dos enunciados. Pelas palavras de Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 297,
grifos dos autores), as leis do discurso têm “[...] por função permitir a derivação de significações ‘não ditas’ e, de uma
maneira geral, reestruturar a significação das trocas, de modo a conservar sua coerência, racionalidade e cortesia”. Elas
podem receber classificações diversas, variando de autor para autor. Ducrot5 (1972 apud CHARAUDEU; MAINGUENEAU,
2004) classifica-as como: leis de exaustividade, informatividade, economia, lítotes, interesse e encadeamento. Com um
alcance geral, por abordagem maingueneana, as leis se classificam em de pertinência (enunciação extremamente
adequada ao contexto, fornecendo ao destinatário informações que modifiquem a situação), da sinceridade (empenho do
enunciador no ato de comunicação que realiza), da exaustividade (máximo de informação dada pelo enunciador, tendo em
vista a situação comunicacional) e da informatividade (fornecimento de informações novas ao coenunciador).
Além dessas leis, para se produzir e interpretar um enunciado, outras instâncias devem ser levadas em
consideração: componentes essenciais da competência comunicativa (aptidão para produzir e interpretar enunciados
conforme a situação cotidiana) bem como as especificidades de cada gênero de discurso. Outras competências, ainda,
devem ser consideradas, a saber: a linguística (domínio da língua), a enciclopédica (conhecimento do mundo) e a genérica
(conveniência e experiência do coenunciador com os múltiplos gêneros de discurso).
Enfim, percebe-se que a importância das leis, principalmente, está no ponto de apoio que elas apresentam para a

3 DIJK, Van. La ciencia del texto. 4. ed. Trad. Sibila Hunzinger. Buenos Aires: Paidós, 1996.
4 GRICE, Paul. Logique et conversation. Communications, n. 30, 1979.
5 DUCROT, O. Dire et ne pás dire, Príncipes de sémantique linguistique. Paris: Hermann, 1972.

938
produção e compreensão dos enunciados, cujo processo de coenunciação é facilitado pelas características específicas de
cada gênero de discurso.

2.3 Informações relevantes sobre discurso e seus gêneros

Várias são as abordagens que procuram explicar o que é discurso, o que se define tanto como atividade verbal em
geral quanto cada evento de fala. Referindo-se, em especial à Análise do Discurso, Charaudeu e Maingueneau (2004, p.
169) assim relatam: “Um olhar lançado sobre um texto do ponto de vista de sua estruturação ‘em língua’ faz dele um
enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção desse texto fará dele um discurso”6.
Como características essenciais ao discurso, elencam-se: organização transfrástica, ou seja, situada para além da
frase; orientado, ou seja, constrói-se em função de uma finalidade, cuja intenção é monitorada incessantemente pelo
locutor; forma de ação, ou seja, um ato que procura modificar uma situação, apresentar modificações no coenunciador;
interativo, evidenciado pela conversação entre os coenunciadores; contextualizado, cuja modificação ocorre no curso da
enunciação (mudança de ethos); assumido por um sujeito, que indica o responsável pelo que se está dizendo; regido por
normas, haja vista as leis do discurso; assumido em um interdiscurso, ou seja, adquire sentido o interior do universo de
outros discursos.
Além desse termo, é comum que sejam utilizados enunciado e texto, cujos significados recebem acepções
diversas. Reportando a enunciado, as definições mais usuais são: marca verbal da enunciação; sequência com sentido e
sintaticamente completa; unidade linguística inserida em um determinado contexto; frase inscrita em um contexto particular;
“[...] unidade real, precisamente delimitada da alternância dos sujeitos do discurso, a qual termina com a transmissão da
palavra ao outro [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 275); e sequência verbal que se prende à orientação comunicativa de um
determinado gênero de discurso. Por sua vez, texto, unidade verbal pertencente a um gênero de discurso, é conceituado
como “[...] produções verbais orais ou escritas, estruturadas de forma a perdurarem, a se repetirem, a circularem longe de
seu contexto original”. (MAINGUENEAU, 2004, p. 57).
Abordando agora os gêneros de discurso, convém ressaltar que os locutores possuem uma infinidade de termos
que categorizam a variedade dos textos existentes, os quais correspondem às necessidades do cotidiano. Dessa forma,
entende-se que sejam elementos da interação verbal que acontecem conforme a condição sócio-histórica presente. E
ainda: que pertencem a tipos de discursos diversos, e que ocorrem tendo em vista os setores de atividade social, um lugar
institucional, o estatuto dos parceiros e a natureza ideológica. Isso mostra a utilidade dos gêneros de discurso, que é
bastante influenciável no ato de comunicação pelo domínio que dele tem o locutor, ou seja,
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e
nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos
de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais
acabado o nosso livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 285).

Além disso, os gêneros são submetidos a condições de êxito, assim identificadas por Maingueneau (2004): a
determinação correta de uma finalidade contribui para que o alocutário produza a resposta esperada, ou seja, torne-se um
coenunciador; a identificação dos coenunciadores, com papéis específicos para cada um, é amparada pelo gênero de
discurso assumido; a identificação de um lugar e um momento legítimos, que se embasam na periodicidade, no
encadeamento, na continuidade deste e na validade; a existência de um suporte material adequado às finalidades do

6
Citação de L. Guespin, extraída de “Problématique des travaux sur le discours politique”, publicado na Revista
Langages, n. 23, páginas 3 a 24, em 1971.

939
gênero escolhido para o ato de comunicação; a forma correta de organização textual, ou seja, saber utilizar os modos de
encadeamentos dos constituintes de um gênero, tendo em vista a linguística textual.
koch (2003, p. 54) impõe, em termos bakhtinianos, que os gêneros são “[...] entidades escolhidas tendo em vista
as esferas de necessidade temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor”.
A concordância para todo estudioso é que os gêneros devem ser constituídos tendo em vista a função das
circunstâncias sociais, os parâmetros da situação, enfim, características que facilitem o processo de coenunciação.

2.4 Persuasão: retórica argumentativa como facilitadora do processo de coenunciação

Os gêneros discursivos são perpassados pela argumentação, que expressa a intenção de persuadir, isto é, “[...]
de comunicar, explicar, legitimar e fazer compartilhar o ponto de vista que ali se exprime e as palavras que o dizem; ou
então, ao contrário, de eliminar os discursos concorrentes para reinar soberano em seu domínio”. (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 376). Koch (2002, p. 18) apresenta que “[...] o ato de persuadir, por sua vez, procura atingir a
vontade, o sentimento do(s) interlocutor(es), por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis e tem caráter ideológico,
subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um ‘auditório particular’ [...]”.
A base, aliás, do ato argumentativo está nas condições para a interpretação do enunciado. Cabe ao locutor,
sabendo que o seu discurso escrito pode circular longe de sua origem e encontrar públicos diversos, apresentar propósitos
comunicativos que permitam ao alocutário elaborar interpretações condizentes ao que foi inicialmente proposto. Se não
houver comandos implícitos, ou até mesmo explícitos, no texto, abarcados pela estruturação linguística, a coenunciação
provavelmente não acontecerá, ou ocorrerá de forma truncada, sem foco e sem propósito.
Contribuem para isso os atos de linguagem austinianos, identificados como locutórios (ato de dizer qualquer
coisa), ilocutórios (atos que se efetuam ao dizer qualquer coisa) e perlocutórios (atos que se efetuam pelo fato de ter dito
qualquer coisa). (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004). Eles são imbuídos de três atos: o falar, o dizer e o mostrar,
ambos com o intuito de produzir significação, tendo em vista a relação entre os homens e a linguagem, perpassada pela
pragmática.

3 CARACTERIZAÇÃO GERAL DAS OPERADORAS DE TELEFONIA MÓVEL

Para realizar a investigação científica, sob a perspectiva teórica da Linguística Textual e da Análise do Discurso, o
corpus selecionado é composto por quatro textos publicitários constantes nas aberturas dos sites das operadoras de
telefonia móvel do Brasil, aqui simplesmente identificados por números, haja vista a pretensão de se manter a ética quanto
às informações coletadas.
A Operadora 1, que se apresenta como possuidora de aproximadamente 57 milhões de clientes, dos quais cerca
de 32 milhões são específicos da telefonia móvel, intitula-se como pioneira na prestação de serviços no país e oferece
opções diversificadas de serviços, dentre os quais podem ser citados: telefonia móvel, internet, entretenimento e
transmissão de voz local e de longa distância. Informa, também, que possui comprometimento considerável com a
responsabilidade social além de oferecer uma página de fácil navegação.
A Operadora 2, por sua vez, apresenta, em destaque, que investe em inovação e serviços personalizados, tendo a
adesão de cerca de 38 milhões de assinantes, os quais podem contar com serviços que incluem telefonias móvel e fixa,
acesso à internet móvel e até TV por assinatura, dentre outras opções. Assim como a Operadora 1, é comprometida com a
sustentabilidade empresarial e apresenta uma página de fácil navegação.

940
Abordando agora as informações sobre a Operadora 3, que também é destaque em facilidade para navegação,
ela se intitula líder, no país, em comunicação celular, com aproximadamente 39 milhões de clientes. Além de se preocupar
com a responsabilidade social, dentre os serviços prestados, garante roaming internacional, preços melhores, planos,
aparelhos, serviços, inovação e a melhor qualidade em ligação.
Caracterizando-se como o maior grupo de telefonia móvel das Américas, a Operadora 4 tem cerca de 172 milhões
de clientes, dos quais aproximadamente 35 milhões estão no Brasil. Considera-se, ainda, a pioneira na oferta de serviços
de terceira geração (3G) e lista, como diferencial, planos diversificados que atendam ao perfil de todos os clientes além de
alta velocidade para a internet bem como aparelhos modernos, TV, toques diferenciados dentre outros. Assim como as
anteriores, também se agrega a ações que visam à responsabilidade social e apresenta facilidade para navegação em sua
página.

4 ANÁLISE DO CORPUS

O objetivo desta seção será, fundamentada por Maingueneau (2004), analisar o corpus que compõe as páginas
de abertura dos sites de quatro operadoras de telefonia móvel que atuam no Brasil.
Com um fundo basicamente composto por representações mescladas de lilás, o corpus da Operadora 1 apresenta
uma mulher jovem e alegre, coenunciadora caracterizando-se como o ethos de um cliente dinâmico, que, com o uso de
luzes, versatilmente escreve uma frase de duas palavras, as quais têm a função de atrair, persuadir por meio da
autoconfiança. Esse empoderamento, ação protagonista, também pode ser resgatado em uma frase afirmativa, estruturada
apelativamente em letras maiúsculas com o uso do verbo no tempo presente e do advérbio de afirmação. Buscando
persuadir, faz uso de três frases curtas no imperativo afirmativo.
Por sua vez, a Operadora 2, utilizando o fundo azul, apresenta três ethos de clientes alternados a um trio de
artistas que é reconhecido como exemplo único de comunicação. Além disso, o slogan, formado por três palavras (sendo
uma delas o dêitico “você”), sugere a proximidade das inovações tecnológicas aos clientes. Apresenta, também, uma frase,
apelativa em letras maiúsculas e com trechos em negrito, que interpela o coenunciador e aponta a quantidade de clientes
com os quais a empresa mostra facilidade para os contatos. Quanto às frases imperativas afirmativas, utiliza três.
O corpus da Operadora 3, com o fundo claro, apresenta três situações em que o ethos de cliente satisfeito com o
serviço está expresso pelo sorriso de quem não larga o celular, ou seja, mantém-se, a todo momento, conectado com o
mundo. A única frase utilizada apresenta a empresa como enunciadora direta que estabelece uma interlocução com o
coenunciador, a partir do dêitico “você”. Apresenta uma frase no imperativo afirmativo e uma inferência às outras
operadoras, mostrando, nas entrelinhas, que fornece conexão de qualidade;
Por fim, no corpus da Operadora 4, o fundo claro é preenchido apenas por um coenunciador que segura,
satisfeito, um celular próximo ao rosto e que, no visor, tem a foto de uma mulher. A única frase de efeito é evidenciada por
um verbo no imperativo afirmativo, o qual, semanticamente, atribui a responsabilidade de opção ao ethos cliente. Assim
como as outras operadoras, apresenta uma frase imperativa que permite selecionar o Estado de origem do coenunciador.
Resgatando as leis do discurso, todas as operadoras atendem à pertinência, à sinceridade e à exaustividade, uma
vez que, respectivamente, aquelas têm o enunciado adequado ao contexto em que se encontra inserido, mostram um
desejo que querem ver realizado (a satisfação do cliente) bem como apresenta as informações mais fortes e necessárias de
interesse do coenunciador (estar conectado ao mundo). Quanto à lei da informatividade, tendo em vista que está em análise
somente o corpus de abertura dos sites, isso está presente para as Operadoras 1 e 3.
Quanto ao êxito do discurso publicitário utilizado pelas operadoras, conforme abordagem de Maingueneau (2004),

941
ressalta-se que as quatro operadoras:
a) determinam corretamente sua finalidade, o que contribui para que o alocutário produza a resposta esperada, tornando-
se um coenunciador, haja vista que todas têm mais de 30 milhões de clientes;
b) identificam seus coenunciadores, com papéis específicos para cada um, tendo em vista o gênero de discurso assumido
e a possibilidade de seleção de perfil. O corpus de todas as operadoras analisadas permite, pelos termos “Selecione” e
“Escolha”, que os coenunciadores tenham o acesso personalizado;
c) identificam um lugar e um momento legítimos, embasando-se na periodicidade, no encadeamento, na continuidade
deste e na validade. Todas, em sua página de abertura, apresentam “[...] um fragmento curto em letras grandes que
condensa a informação e atrai o olhar [...]” (MAINGUENEAU, 2004, p. 67);
d) utilizam um suporte material adequado às finalidades do gênero escolhido para o ato de comunicação, ou seja, o
mídium internet, o qual permite, com apenas um clique, ter acesso a informações diversas;
e) conseguem organizar textualmente o seu discurso publicitário, utilizando os modos de encadeamentos dos constituintes
do gênero em questão, cujo principal objetivo é divulgar um produto em que, pelas palavras de Maingueneau (2004, p.
99), o ethos de cliente leva “[...] o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores
socialmente especificados”.
Citando, por fim, a persuasão, não se pode esquecer da argumentação que é, na verdade, uma atividade
linguística fundamental que influencia intencionalmente o meio social e provoca alterações no modo de pensar dos
alocutários. Isso certamente é encontrado nas operadoras analisadas, pois todas estão no mesmo limiar quantitativo de
clientes: 30 milhões em telefonia móvel. Encontra-se no corpus de todas elas um exercício de linguagem que busca formar
comportamentos, atitudes e ideias, que acarretam no convencimento, na afirmação de valores e na construção de
consensos, ou seja, no contrato de comunicação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde o início deste estudo, o principal objetivo foi verificar se quatro operadoras de telefonia móvel, no Brasil,
conseguiam manter um contrato de comunicação com seus coenunciadores. A base de estudo foi o corpus da página de
abertura dos sites das operadoras analisadas, cujo texto publicitário remetia à ideia de que todas elas poderiam oferecer um
mundo melhor. Em todas elas, percebeu-se a preocupação quanto à materialidade discursiva (relação de elementos verbais
e não-verbais) e à persuasão, principalmente, porque, no anúncio publicitário, é indicado ao coenunciador que lhe falta algo.
Surge, pois, a situação interlocutiva na forma de um contrato de comunicação.
Acerca das leis do discurso, pertinência, sinceridade, exaustividade e informatividade, somente esta não se
apresentou em todas. Apenas as Operadoras 1 e 3 deixaram margem à inferência de que podiam algo mais que as outras.
Quanto às condições de êxito a que são submetidos os gêneros, o corpus de todas as operadoras analisadas demonstrou
atender a isto: finalidade reconhecida, papel reconhecido de enunciador e coenunciador, constitutivo de lugar e momento
legítimos, suporte material e organização textual.
Na verdade, pode-se concluir que o contrato de comunicação é cooperativo e regido por normas. É uma forma de
permitir que os coenunciadores conheçam sua identidade, a finalidade do enunciado, o propósito do ato interlocutório bem
como as circunstâncias em que ele ocorre, o que se mostrou transparente para todas as operadoras, que buscam o
reconhecimento do saber e do poder além da insistente conquista da credibilidade.

942
REFERÊNCIAS

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______.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. Coordenação de tradução: Fabiana Komesu. SP:
Contexto, 2004.

KOCH, I. G. V. A inter-ação pela linguagem. SP: Contexto, 1992. p. 24-57.

______. Argumentação e Linguagem. 7. ed. rev. SP: Cortez, 2002. cap. 1, p. 17-28.

______. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. SP: Cortez, 2003. cap. 4, p. 53-60.

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ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. SP: Pontes, 2003. p. 15-42.

SAUTCHUK, I. A produção dialógica do texto escrito: um diálogo entre escritor e leitor interno. SP: Martins Fontes, 2003.
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SOARES, D. A. Elementos básicos para a análise de textos argumentativos em Língua Portuguesa. Trabalhos em
Lingüística Aplicada, Campinas, v. 48, n. 1, p. 71-86, jan./jun. 2009. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/tla/v48n1/06.pdf>. Acesso em: 17 set. 2009.

Mestra em Educação, graduada em Letras e Pedagogia, pós-graduada em Informática Aplicada à Educação, Língua
Portuguesa, Gestão Organizacional, Administração/ Supervisão Escolar. Leciona Metodologia Científica e Português
Instrumental. Chefe de Departamento na FaEnge/Uemg. Membro do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão e do Núcleo
Docente Estruturante da Funcec.

renatamendes@uol.com.br

943
Ethos e cenografia no ensino superior privado

MENDES, Silma Ramos Coimbra


(Unipinhal/PUCSP/CNPQ)

1. Introdução

O tema desta comunicação diz respeito às mudanças que vêm ocorrendo no mundo da educação a partir da
Reforma do Estado1, empreendidas, por sua vez, em função das transformações no mundo do trabalho, com a introdução
do chamado capitalismo flexível2.
O século XX assistiu à crise do capitalismo, iniciada nos anos 1970, em decorrência do esgotamento do modelo
taylorista/fordista, a qual demandou uma resposta capaz de promover uma forma de acumulação diferente da anterior,
denominada por Harvey (1993) de “acumulação flexível”. Nesta nova versão, o Estado passa de interventor a gestor,
transferindo ao mercado funções específicas e historicamente exercidas por ele, iniciando-se, assim, um processo de
privatização de serviços públicos fundamentais, dentre os quais destacam-se a saúde e a educação, que passam a ser
regidas pela lógica das leis do mercado.
Tais alterações se fazem acompanhar por um ideário neoliberal que atribui ao Estado a responsabilidade pela
crise e propõe uma nova ordem, como a única via possível de sociabilidade humana. Assim como o trabalho, a educação
superior é atingida por esse receituário. A idéia presente nas reformas educativas, nas décadas de 1980 e 1990, em
consonância com os organismos internacionais, é de que os sistemas de ensino devem se tornar mais diversificados e
flexíveis, objetivando maior competitividade, com drástica contenção nos gastos públicos. Dessa forma, todas as
universidades e instituições de ensino superior estão tendo suas histórias e identidades afetadas por essas mudanças,
sendo levadas a se re-organizarem segundo outros paradigmas. (SGUISSARDI, 2000:158)
Distanciando-se paulatinamente de sua função precípua de formar cidadãos reflexivos e críticos, inspirada pelo
projeto iluminista de universidade moderna (Santos Filho, 2000:21), o ensino superior, em geral, e o privado, em particular,
são atualmente alvos de incisiva política oficial de reconfiguração econômica, ideológica e cultural, o que permite entrever o
delineamento de novas tendências em sua atuação e de novos traços caracterizadores de suas identidades (SGUISSARDI,
2000:156).
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre essas novas tendências e processos identitários, sob uma perspectiva
discursiva. Para tanto, concentrar-se-á na análise da cenografia e ethos de algumas campanhas publicitárias de alguns
estabelecimentos particulares de ensino superior privado, produzidas no período do vestibular, e disseminadas pela mídia
impressa, ao longo dos anos de 2008 a 2009.
O quadro teórico desse estudo está baseado na Análise do Discurso (AD) de linha francesa, tendo, como
referencial primeiro, o dispositivo enunciativo-discursivo proposto por Maingueneau em Gênese dos Discursos (2005)3;
baseia-se também nos trabalhos teóricos que vêm se desenvolvendo sobre o trabalho no mundo contemporâneo (Antunes,

1 Segundo Chauí (2000:175), está em curso, no Brasil, a chamada Reforma do Estado. Seu Plano (desenhado em organogramas e

fluxograma) e sua implantação ( justificada em dezenas de ‘exposições de motivos’) pretendem ser uma ‘engenharia política’ que visa
adaptar o Estado brasileiro às exigências impostas pela nova forma de capital, que não carece mais, como careceu nos anos 1940-1970,
do Estado como parceiro econômico e regulador da economia.
2 A designação “capitalismo flexível”, embora seja bastante freqüente nos textos pesquisados, é retomada por outros autores como “novo

capitalismo”, “acumulação flexível”, “capitalismo atual”.


3 Gênese dos Discursos foi publicado originalmente em 1984, sendo reeditado em 2005. Usarei, como referência, este ano, a fim de

padronizar as citações.

944
1999; Sennet, 2006; Schwartz;1997) e sobre a educação, sob o signo do neoliberalismo (Mancebo, 1996; Gentili, 2002;
Sguissardi, 2000), a fim de fundamentar a análise de uma prática discursiva de natureza publicitária, que se articula em
torno da adequação das IES aos “novos tempos”.
Tomamos como eixo norteador da análise o princípio da Semântica Global (Maingueneau, 2005a), segundo a qual
todos as dimensões do discurso estão integradas, embora a análise recaia mais sobre a constituição de duas dessas
dimensões – cenografia e ethos – “produzidas” pelo(s)/no(s) discurso(s) que circulam nesses materiais.
Cumpre ressaltar que as manifestações não-verbais no material de análise se inscrevem no mesmo movimento
discursivo das verbais, submetidas que estão aos mesmos sistemas de restrição semântica, embora materializadas de
outras formas. A análise, portanto, remete a uma perspectiva discursiva verbo-visual, para a produção de efeitos de sentido
(MAINGUENEAU, 2005). Considera que a depreensão dos ethé e cenografias dessas campanhas concorre para a
apreensão do mecanismo discursivo/ideológico que faz possível a emergência de um “novo” indivíduo, a partir desse
discurso publicitário.

2. A mercadorização do ensino superior privado

Se comparadas às campanhas produzidas no passado, em que os materiais eram simples, com textos breves,
curtos, diretos, informativos, distribuídos aleatoriamente nas portas de cursinhos de preparação para o vestibular e escolas
de segundo grau, as atuais são verdadeiras obras-primas, primam pela sofisticação, disputam espaço em outdoors, ocupam
páginas inteiras de jornais diários e revistas semanais de grande circulação.
Empresas especializadas em consultoria de marketing e planejamento estratégico para IES afirmam que os
gastos publicitários atingem de 3% a 5% do faturamento bruto das escolas4. A maior parte dessa verba é utilizada em
campanhas de processo seletivo, por meio da confecção de catálogos, outdoors e anúncios em várias mídias (impressas e
televisivas) – em função do preço e da eficiência relativa. Com esses materiais, as IES procuram combater o fluxo
migratório de alunos de uma escola para outra, causado pelo aumento do número de vagas e escolas destinadas às
classes econômicas A e B, as que predominam nesse universo e cujo crescimento tem se mantido estável 5. A publicidade,
portanto, tem sido uma peça importante na captação de alunos e na formação da imagem das instituição de ensino superior
(IES), visto que a disputa pela clientela aumenta consideravelmente a cada ano.
No entanto, tal empreendimento é considerado inusitado em função do “produto a ser vendido”. Diferentemente de
sabões, detergentes ou pastas de dentes, o que está sendo comercializado aqui são cursos acadêmicos. É importante
considerar que o estranhamento se deve ao fato de uma IES convencionalmente ser (re)conhecida pela sociedade, por
meio de seu discurso acadêmico/pedagógico, de busca e difusão do conhecimento, diferentemente de uma empresa que
comercializa um produto ou um bem de consumo com o único objetivo de obter lucro.
Dessa forma, o fato de as IES estarem freqüentando o universo publicitário abre uma perspectiva interessante, no
que se refere ao modo de considerar o “produto” educacional, na interface com a mídia. Ao mesmo tempo, permite

4 Segundo a revista Ensino Superior, “o valor de uma campanha varia muito, dependendo do tamanho da instituição e da cidade onde ela

está situada. Na cidade de São Paulo, por exemplo, uma IES de 10 mil alunos gasta em torno de R$ 3 milhões, e uma de mais de 20 mil
alunos gasta de R$ 5 milhões a R$ 10 milhões. Em cidades do interior, IES com mais de 5 mil alunos conseguem o mesmo espaço na
mídia por valores que variam de R$ 400 mil a R$ 600 mil ( dados da Hoper Educacional ) Fonte: REVISTA ENSINO SUPERIOR, EDIÇÃO
97, ANO 2007.
5 As instituições que mais investiram em 2007 foram, pela ordem: Centro Universitário Nove de Julho (Uninove - SP) com R$ 30,7

milhões, Universidade Estácio de Sá (RJ) com R$ 25,7 milhões, Universidade Paulista (Unip - SP) com R$ 24,1 milhões, Universidade
Bandeirante (Uniban - SP) com R$ 16,6 milhões e Faculdades de Campinas (Facamp - SP) com R$ 12,9 milhões. (Fonte: REVISTA
ENSINO SUPERIOR, EDIÇÃO 97, ANO 2007.

945
observar como tais manifestações são reveladoras de uma formação discursiva que se inspira no modelo neoliberal de
educação, o qual contribui para a construção e disseminação de um novo modelo de indivíduo - alguém que seleciona uma
IES com a finalidade de obter sucesso e reconhecimento como profissional. Como agente promotor de si mesmo, esse
indivíduo é representado, nas propagandas, como capaz de enfrentar a competição e a exigência do atual mercado de
trabalho, por meio das escolhas individuais, onde o senso de decisão coletiva é insignificante e, na perspectiva desse
homem novo, desinteressante.

3. Ethos e cenografia nas propagandas de IES privadas

Tanto o ethos como a cenografia são dimensões de uma mesma semântica global. Funcionam de modo integrado:
o ethos emerge da cenografia e é por ela validado, enquanto esta vai sendo construída. Ao mesmo tempo, sua depreensão
permite observar como se efetua o processo de adesão de sujeitos a uma certa formação discursiva, mais facilmente
possível de ser detectada em áreas em que são desenvolvidas estratégias argumentativas, como a publicidade.

De maneira geral, o discurso publicitário contemporâneo produz, por natureza, uma ligação privilegiada com o
ethos; ele busca efetivamente persuadir ao associar os produtos que promove a um corpo em movimento, a uma
maneira de habitar o mundo. Em sua própria enunciação, a publicidade pode, apoiando-se em estereótipos
validados, “encarnar” o que prescreve. (Maingueneau, 2008. p.19).

Para a depreensão dos ethé das peças publicitárias aqui destacadas, foi necessário considerá-las no conjunto do
quadro da comunicação produzido como “um comportamento” no qual se articulam aspectos verbais e não verbais, que
provocam nos co-enunciadores “efeitos multi-sensoriais”.
Considerando-se essa integração, a diferenciação, do ponto de vista visual, entre as instituições de ensino
superior pode traduzir-se na seleção de fotos, dependendo do perfil da escola e do público que ela quer atingir, de
instalações internas – bibliotecas, laboratórios, salas de computadores, auditório, ginásio de esportes, entre outros – até
fotos panorâmicas do campus, que atestam a modernidade e a infraestrutura privilegiada da instituição em foco, conforme a
Figura 1.
Na propaganda mencionada, a composição gráfica do material inclui, além das fotos, um texto publicitário,
introduzido por um título em caixa alta - A NOSSA PROVA É DE MÚLTIPLA ESCOLHA. VOCÊ PODE ESTUDAR EM 30
UNIVERSIDADES DE 18 PAÍSES, que produz um efeito de sentido interessante: por meio do sistema de avaliação
adotado, de um modo geral, pelas instituições privadas do país, o teste de múltipla escolha, faz-se referência ao conjunto de
opções destinadas aos alunos que querem ingressar em um de seus cursos - trata-se da primeira universidade mundial do
país. Esse dado se acha reforçado no campo superior direito, junto à logomarca da instituição.
Por meio da “leitura” dessa imagem, insere-se o
co-enunciador em um mundo ético tecnológico, poderoso,
impessoal, alinhado ao nível de internacionalização a que
a instituição se propõe, o que também contribui para que
as dimensões de lugar e tempo sejam percebidas como
neutras, sem referências específicas que possam
identificá-la e distingui-la das demais, inscrevendo-a numa

Figura 1. Capa Folder Processo Seletivo da espécie de lugar-nenhum e todos os lugares, ao mesmo
Universidade Anhembi Morumbi tempo. Ou seja, as imagens remetem a um espaço que
pode ser encontrado em qualquer lugar do mundo.

946
Uma tendência que se afirma também na cenografia criada por essa campanha é a ausência de fotografias de
jovens alunos sorridentes, habitando os espaços internos e externos dos estabelecimentos de ensino. Em algumas delas,
eles não estão mais presentes, sendo mais valorizada a grandiosidade das instalações físicas e seu aparato tecnológico.
Neste caso, a instituição parece investir na promoção da arquitetura de seu prédio, que lembra a de um prédio comercial, ou
até um shopping center de luxo6 de qualquer grande cidade do mundo.
Observa-se que as instituições de ensino superior privado, nos dias atuais, vem optando por uma segmentação
cada vez maior de seu público, por meio do oferecimento de novas carreiras, com base nas novas exigências do mercado
de trabalho, contribuindo, assim, para sua diferenciação entre as escolas de igual perfil.

4. As propagandas e as cenas validadas

Nas escolas cuja ênfase recai sobre a criatividade e inventividade de seus cursos, as imagens procuram
incorporar um tom de descontração, informalidade e singularidade que sejam compatíveis com eles e com as atividades que
são realizadas em suas dependências. Nelas, o jovem vestibulando é caracterizado como se já fosse aluno da instituição,
realizando atividades curriculares, conforme mostra a Figura 2.
Tal incorporação é observada nesta campanha, em que fotos das instalações do campus da universidade ocupam
praticamente todo o espaço. O componente textual se resume ao calendário das provas e à enumeração dos cursos que a
instituição oferece. A novidade aqui é que as imagens mostram jovens universitários utilizando os ambientes externos e
internos, envolvidos em eventos acadêmicos, criando uma cenografia diferenciada da anterior, visto que incorpora um certo
estilo de vida, em sintonia com o perfil de seus cursos.
As imagens alternam situações mais convencionalmente relacionadas ao ambiente acadêmico a outras, nas quais
o aluno antecipa seu futuro profissional, por meio de atividades ligadas à profissão escolhida e vivenciada nos muros da
universidade. O leitor é convidado a entrar num mundo ético profissionalizante em que as propostas de curso caminham
lado a lado com a prática profissional. Como estereótipos na cultura de massa, as profissões que a instituição oferece
“mostram-se” em sua plena ação. A ativação do ethos se faz, com base na memória discursiva, que, por meio da utilização
de cenas validadas, aquelas instaladas na memória coletiva, como modelos valorizados pela comunidade discursiva,
promove a idealização do exercício da profissão, como algo agradável, bonito, sofisticado e seguro, sem que sejam
“sentidas” as coerções impostas aos indivíduos à sua absorção futura pelo mercado de trabalho.
No mundo ético depreendido pela cenografia abaixo, não haveria dificuldades para o aluno se posicionar nesse
mercado: há vagas garantidas para todos. As imagens que apelam para a sofisticação dos ambientes internos e externos
da instituição parecem elidir as dificuldades, os obstáculos, os empecilhos ao exercício pleno das profissões oferecidas,
característica que o modelo neoliberal procura “vender”, por meio da publicidade, ao seus co-enunciadores.

6 Interessante registrar que matéria publicada no caderno Cotidiano da Folha de São Paulo de março de 2008 traz a informação de que

somente na região metropolitana do Rio, há pelo menos 9 instituições que se instalaram em shoppings centers da cidade. Em São Paulo,
o fenômeno começou no ano anterior, com a instalação de novas faculdades nas zonas leste da capital.

947
Figura 2. Terceira Capa Revista Figura 3. Revista Guia do Estudante
Superinteressante. Ed. Abril. Ed. 254 / 2009, p.129
Julho 2008

Ao mesmo tempo em que “silenciam” os entraves próprios a um mundo globalizado, em que não há lugar
garantido para todos, algumas propagandas carregam nas “vantagens” deste modelo, reforçando as cenas validadas. É o
caso da Figura 3. Nela, o apelo a essas cenas é expressivo, o que demonstra que hoje se tornou quase uma “obrigação”
para a publicidade dos estabelecimentos de ensino utilizar fotos que comprovem a sofisticação de seu parque tecnológico e
de informática. O foco da propaganda são as instalações da instituição – bibliotecas, laboratórios, auditórios, estúdios de
rádio e TV, quadras poliesportiva, etc, com destaque para as carreiras consideradas como referência para a instituição. Por
meio dessa cenografia, as escolas procuram mostrar que estão em dia com as inovações advindas da globalização e,
consequentemente, com as exigências do futuro. Excelência, tecnologia e gestão fazem parte de um léxico adequado ao
discurso mercadológico e reforçam o ethos de modernidade que a instituição quer transmitir.

5. Qualidade e competitividade na publicidade das IES

Na esfera educativa, observamos também que “a idéia da excelência e de qualidade mobiliza a competitividade
entre as instituições, o que põe uma ênfase exacerbada na medição, nos critérios padronizados para averiguação dos
êxitos cognitivos dos alunos e da produção docente, sugerindo que o simples ordenamento hierárquico diagnostica e
melhora por si mesmo a situação educacional”. (MANCEBO, 1996)
O que a cenografia da campanha mostrada na Figura 4 enfatiza vai nessa direção - o argumento de quantidade e
ordem (o número 1, muito comum em propagandas de cerveja, telefonia, etc.) funciona como um índice de valorização
daquelas que chegam em primeiro lugar, no caso, as instituições que obtiveram boa classificação nos sem-número de
avaliações impostas a elas atualmente (Enade, Relatório do MEC,Programa de Iniciação Científica, bolsas de Iniciação
Científica, Recomendação pela Capes, etc.).

948
Tal como as empresas que, diante de problemas
técnicos, propõem soluções também técnicas, construindo, nesse
âmbito, a gerência da qualidade total (GQT), as instituições de
ensino superior, quando são apontadas como ineficientes, mal
geridas, improdutivas, de fato, estão sendo avaliadas por meio dos
critérios há muito utilizados pelas empresas. A crise na educação,
segundo essa concepção, teria que ser combatida pela
incorporação de critérios empresariais que sistematicamente
avaliassem os “serviços” oferecidos aos clientes e
sistematicamente medissem o seu índice de aproveitamento.
É o que vemos na cenografia utilizada na Figura 5, em
Figura 4. Revista Enem 2008/ Guia do que uma jovem, em ambiente externo, com um livro aberto nas
Estudante – Ed. Abril/Edição 4, p.6
mãos, leve sorriso, fixa os olhos em um ponto do cenário ao seu
redor. No canto superior direito, veem-se três quadrados similares àqueles que são utilizados em testes, nos quais se
enunciam as seguintes alternativas:
1. No vestibular, você escolhe a faculdade. 2. E o mercado, como vai escolher você? 3. O mercado escolhe quem escolhe a
Metodista.
Da metade da imagem para baixo, aparecem a
enumerados e pontuados os cursos que receberam aprovação
pelo Guia do Estudante 2008, publicação da editora Abril. À
semelhança do que ocorre com eventos artísticos e hotéis, a
avaliação e a pontuação ocorrem por meio da atribuição de
estrelas aos cursos da instituição.
Neste caso, o leitor é convidado a penetrar no mundo
moderno da competência e da eficiência, atrelado a uma
concepção de educação que cultua o ideal de “qualidade”. A
retórica liberal trata de fazer com que escolas e universidades
alertem seus alunos para as exigências de um mercado
competitivo que premia apenas aqueles melhor preparados para
competir no mercado. “Enquanto propriedade (que se compra e se
vende), a categoria educação é esvaziada no seu sentido de um

Figura 5. Revista Enen 2008 / Guia do direito social” (...) “é parte constitutiva este tipo de informação
Estudante – Ed. Abril / nº4, p.23 utilizar o espaço educativo institucionalizado como veículo de
transmissão das idéias que ressaltam as excelências do livre
mercado e da livre iniciativa” (MANCEBO, 1996).
Os medidores da suposta qualidade desses cursos são, dessa forma, supervalorizados transformando-se em
espécie de moeda corrente, com a qual sua mercadoria se torna mais ou menos valorizada nas trocas comerciais. Feita a
avaliação e estabelecida a clivagem, a distribuição de verbas em função do ‘ranking’ alcançado faria ‘o resto do serviço’,
aprofundando ainda mais a situação de deterioração da maioria das instituições de ensino superiores do país.
Na Figura 6, observamos a mesma retórica. Como as anteriores, a propaganda ressalta uma cenografia que
valoriza o mérito traduzido em notas e índices de avaliação e qualidade atribuídos à instituição, com as devidas premiações

949
(resultados do ENADE, selo de qualidade da OAB Recomenda, etc.). No entanto, há ainda um elemento da cenografia
dessa propaganda que aponta para o peso da tradição e da experiência.O nome da instituição surge como uma garantia,
uma espécie de chancela, a respaldar seu valor e prestígio, simbolizada pela logomarca da instituição.
O ethos de credibilidade decorre do peso dessa tradição – fruto da
experiência comprovada no mercado: segundo o texto, são 37 anos de história
. Ao mesmo tempo, o enunciador faz apelo ao futuro (ethos de modernidade),
explorando as cenas validadas que compõe o canto inferior da imagem: fotos
das instalações modernas e de espaços externos ao seu redor. O slogan-mote
resume essa articulação passado / qualidade / futuro (Universidade São Judas
– seu futuro com qualidade reconhecida) e está explicitado no texto que
acompanha a imagem:
São Judas: seu futuro com qualidade reconhecida. A qualidade de ensino faz parte da
tradição de 37 anos da Universidade São Judas. E sua visão de futuro a coloca como
uma das mais capacitadas para a formação do profissional-cidadão. Segundo
resultados do ENADE, a São Judas está entre as melhores universidades particulares
de São Paulo. E seu curso de Direito recebeu em 2007, o selo de qualidade OAB
Recomenda.
São Judas: O valor da tradição motivando o futuro.
Figura 6. Revista Guia do
Estudante – Ed. Abril/ Edição A lógica que rege a produção desse tipo de material também está
2009, p. 243
presente na produção da campanha publicitária da instituição a seguir (Figura
7), de natureza institucional, que tem como objetivo atingir o público do vestibular. Trata-se da última folha e 2ª capa do
caderno Guia do Vestibulando 2008/2009, produzido pela própria faculdade e colocada como encarte na Revista Guia do
Estudante – Profissões Vestibular, edição 2009, publicação da editora Abril.
A campanha ocupa duas páginas (3ª e 4ª capas) do
encarte do Guia do Vestibulando FMU. Na primeira, o título em
caixa alta - Você ainda não fez o vestibular. Mas já pode conhecer a
sua faculdade - é seguido de um texto em letras bem menores que
apresenta o programa de visita à instituição por parte dos
interessados, por meio de um agendamento individual ou em grupo.
A contracapa é dedicada a enumerar os itens que supostamente
atestam a qualidade da FMU: são mais de quinze itens que estão
“por trás” da qualidade FMU, desde aqueles relacionados à
Figura 7. Encarte Guia do Vestibulando experiência comprovada (40 anos de tradição) aos que oferecem
FMU – 2008/2009 , 3ª e 4ª capas
serviços, programas, cursos de extensão, relacionamento com
órgãos de fomento à pesquisa, bancos, bibliotecas informatizadas, convênios, clínicas, etc. Entre uma e outra figura,
estabelece-se uma relação de encadeamento. Ficamos “conhecendo” a instituição, antes mesmo de visitá-la pessoalmente.
Basta saber que ela “abriga” tantos cursos e “oferece” tantos serviços. Embora o ethos de qualidade seja projetado e
depreendido dessa cenografia, paradoxalmente foi criada uma atmosfera na qual o valor creditado à instituição vem da
quantidade de “produtos” que ela oferece.

6. Considerações Finais - A emergência de um novo indivíduo

950
As transformações que o neoliberalismo opera nas esferas econômica, política e social são acompanhadas por
outras de natureza cultural e ideológica que possam sustentar as primeiras e garantir uma “nova” ordem global. Cria-se uma
“realidade” e, ao fazê-lo, interdita-se outra, por meio do apagamento dos sistemas que nos permitiam pensar, ver e dizer
certas coisas, de tal modo que, por meio dessa reordenação, nada tenha mais sentido fora das categorias que justifiquem o
arranjo social capitalista.
A educação, para o projeto neoliberal, é fundamental, porque permite, por seu intermédio, avançar e estender sua
concepção de modernização conservadora pela produção e promoção de novos sentidos à educação e pelo apagamento e
ocultação daqueles considerados inadequados à nova lógica que passa a regê-la.
Nesse sentido, a mídia vem ocupando papel importante na construção social da identidade das IES atuais, em
seus variados suportes, por meio da disseminação de um ideário que funciona à maneira de um ethos pedagógico, no
sentido de utilizar a educação como veículo de propagação das excelências do livre mercado e da livre iniciativa (SILVA,
1994).
A propaganda encarna essa função. Para isso, precisa produzir um novo ser: “Para que os dispositivos neoliberais
sejam eficazes, é preciso contar-se com um homem novo. É preciso que os indivíduos introjetem o valor mercantil e as
relações mercantis como padrão dominante de interpretação dos mundos possíveis, reconhecendo no mercado o âmbito
em que, “naturalmente”, podem e devem desenvolver-se como pessoas humanas” (MANCEBO, 1996).

Figura 8. Contracapa da Revista Figura 9. Contracapa da Revista


ENEM / Guia do Estudante / 2008 ENSINO SUPERIOR, Set/2008

As imagens selecionadas (Figuras 8 e 9) corporificam esse credo. Foram produzidas pela instituição para o
vestibular do ano de 2008. A cenografia aposta na idéia de que o gênero humano (masculino e feminino), aqui
metonimicamente representado por uma cabeça (“a parte mais nobre” do todo) fotografada de perfil, é, nos moldes do novo
capitalismo, peça fundamental, pois “carregam” o conhecimento, que, no investimento neoliberal, é uma moeda de compra
e venda (O conhecimento é o único investimento que dá retorno a curto, médio e longo prazo).Utilizando linguagem oriunda
do mundo dos negócios (investimento, retorno), aprofunda a dimensão “material” do conhecimento. A propaganda também
investe na capacidade de o indivíduo introjetar esse valor mercantil do conhecimento, por meio da certeza da mudança (
Nos próximos 4 anos vão ser produzidas tantas informações quanto nos últimos 400. Em quatro anos, muitas coisas vão
mudar. Seja uma delas.) O enunciado exorta o indivíduo a transformar-se e ir moldando sua vida como uma empresa de si

951
mesmo. Uma das estratégias discursivas neoliberais é a produção de uma nova educação. Mas para isso, é necessário
produzir um novo sujeito.
A produção dessa nova subjetividade, em que são desconsideradas a esfera pública e a construção coletiva e
valorizadas a intimidade e a preocupação com o “eu”, como algo precioso, é assumida, pela instância educacional, como
sendo de sua competência construir, por meio da publicidade que lhe representa, já que, dada sua natureza persuasiva,
tem condições mais concretas de convencer os indivíduos a se auto-interessarem por si mesmos, vendo na educação o
caminho para o que Gordon (1991) chamou de “o empresário de si mesmo”. De um modo geral, os materiais de
propaganda das IES persuadem pela confiança e certeza que transmitem ao seu jovem consumidor de fornecer-lhe o
instrumento necessário para tal. O diploma, nesse caso, é o passaporte. A instituição é a plataforma.

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Silma Ramos Coimbra Mendes é doutora em Linguistica Aplicada pela PUCSP, mestre em Linguistica pela UNICAMP,
especialista em Publicidade e mercado (ECA-USP). Atua como docente na Unipinhal em cursos de saúde, educação e
comunicação social (Propaganda e Publicidade). É pesquisadora do Grupo Atelier Linguagem e Trabalho (CNPQ) da
PUCSP. Desenvolve pesquisas na área de Análise do Discurso.
Email: silma.rcm@uol.com.br

953
Patemização e relações socioculturais: a formação do
ethos do Brasil no cenário internacional

MENEZES, Clarice Cristine Ferreira


(IBMEC-BH/UFMG)

Introdução

Durante toda a história da República, os governantes ensaiaram, de uma forma ou de outra, a criação de uma
imagem favorável do país no âmbito internacional. Essa tentativa tem, por princípio básico, a construção de uma impressão
moral do país (ethos Estatal) favorável à sua atuação junto aos outros Estados.
Para criar uma boa reputação, os representantes brasileiros apostam em discursos que ressaltam o caráter
pacífico e de busca pelo consenso da política externa brasileira que se basearia na promoção da justiça social e do
desenvolvimento equitativo. Nesta medida, há uma articulação de valores nacionais e internacionais, exaltados em fóruns
multilaterais.
O objetivo desse trabalho é observar como se dá, pelo discurso de seus representantes, a tentativa brasileira de
conquistar maior possibilidade de ação no âmbito internacional. Para tanto, nos propomos à análise de trechos do discurso
do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, durante a abertura do Colóquio “Brasil, ator global” (2005).

Identidade, ethos e representações

A questão da identidade nacional passa a ser estudada na academia na medida em que ela aparece, também,
na vida social e política da história mundial. De fato, é a partir do século XVIII, com o reordenamento político e social do
mundo, que aparecem as primeiras vagas nacionalistas e tentativas de se criar identidades para as nações. Como observa
Eric Hobsbawn (2004), é a partir da queda do mundo de reinados e religião, da formação dos Estados Nacionais que a
identidade nacional se transforma na religião laica dos Estados. A identidade é então compreendida como a forma como os
indivíduos se percebem e se identificam com seus pares dentro do território, agora Estado-Nação.
A partir da contribuição dos recursos midiáticos (impressos, áudio e vídeo), torna-se mais fácil perceber
semelhanças e diferenças, criar um sentimento de identificação com uns e de alteridade com relação a outros. Assim, para
Benedict Anderson (2002), não se deve esquecer a importância do desenvolvimento do capitalismo e, principalmente, do
advento da impressão, para a construção deste sentimento da solidariedade entre os indivíduos, contribuintes diretos para o
imaginário nacional.
Esse sentimento de pertença faz com que o indivíduo construa, para si, um discurso baseado na moral e nos
valores que são compartilhados pelo grupo, que caracterizaria o ethos como “estratégia de apresentações de si, uma forma
de autoridade difusa que vem para apoiar/reforçar o discurso” (Plantin, 2009:50). Assim, identidade e ethos de um seriam
produzidos em oposição ao outro.

954
Se o ethos se apresenta através do discurso do indivíduo ou grupo em oposição ao outro, ao utilizar meios de
comunicação para veicular essa “imagem de si”, os indivíduos conseguem tornar suas idéias algo possível de se trabalhar
em relação aos outros. Para tanto, será útil também ao processo que sejam consideradas formas de representações
objetivas de palavras bem como de imagens. Sendo assim, a forma como o mundo é percebido depende não mais da
realidade objetiva, mas da leitura que se faz desta realidade através do entendimento produzido pela reflexividade da
construção figurada do mundo. A partir do duplo processo de simbolização e auto-apresentação que envolve a
representação, o sujeito é capaz de construir uma imagem do mundo e se definir com relação a ela, forjando sua própria
identidade (Charaudeau, 2000:132) e fazendo com que esta também circule no mundo. Essas representações dependerão
da articulação e do entendimento de um conjunto de símbolos, a serem explorados nos meios nos quais os indivíduos
interagem.
Tanto a imagem que o indivíduo constrói de si a partir do discurso, quanto sua forma de interpretação do mundo
e criação de sua identidade dependem, em grande medida, dos sentimentos que são articulados em todo o processo. Ao
produzir um julgamento de valor baseado nos princípios e na moral individual e coletiva – baseados nas normas sociais –
ocorre, também, uma reação sentimental a toda e qualquer ação humana. Assim, as emoções irão guiar o comportamento
do sujeito e, ao mesmo tempo, serão controladas pelas normas sociais resultantes das crenças articuladas na coletividade
(Charaudeau, 2000:134).
Se as emoções se manifestam no comportamento dos indivíduos, é de se esperar que elas se façam presentes,
também, na sua articulação com a linguagem: «Sabemos perfeitamente que a palavra, expressão do código linguístico, é
suscetível de exprimir emoções e de provocá-las», observa Cosnier (2000: 59). Partindo deste princípio, tendo sua
identidade de grupo definida, o sujeito transmite, a partir da interação discursiva, traços de sua identidade e dos
sentimentos que se estabelecem em relação a determinados assuntos.

Identidade, representação e imaginários transversais : Brasil, mostra a sua cara

No caso brasileiro, os questionamentos sobre a identidade nacional são objeto de estudo desde o século XIX, com
a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que se propunha a escrever a história do Brasil tendo em vista
que «não há país sem história»1. Assim, a miscigenação se torna o tema principal quando se trata da construção da
identidade nacional brasileira2.
Ora tratada como mácula, ora exaltada como benefício, a questão da miscigenação tornou-se o principal
elemento para tratar da identidade brasileira. Há uma rearticulação constante da heterogeneidade da população,
romanceada por Freyre (2006) no mito das três raças, ao criar o brasileiro – festivo, trabalhador, pacifista – e a identidade
elaborada por Hollanda (2005) tendo por princípio o «tipo ideal» weberiano, em que o homem cordial, brasileiro por
excelência, nada mais é do que um amálgama de contradições – resultado de uma cultura personalista e patriarcal em que
todas as formas de ritualização do comportamento que colocam em perigo as relações humanas simples e diretas são
ignoradas. Estes elementos, realçados por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, serão, a partir de então,
percebidos como constitutivos da cultura popular e política do Brasil, em seu entrelaçamento constante.

1Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, 1844.


2Na primeira edição da revista do IHGB publicada em 1845, foi realizado um concurso de monografias a partir da temática “como se
escrever a história do Brasil?”. Dentre os vários textos, foi escolhida a produção de Von Martius, um botânico alemão que vivera no Brasil
durante um período de 10 meses e considerava que a história do Brasil é a história da miscigenção e da produção de um novo povo.

955
A representação histórica e recorrente de certos símbolos aponta para a existência de um imaginário
preponderante do que vem a ser o brasileiro, fazendo com que certos valores permaneçam presentes em nossa sociedade,
mesmo em contextos de mudança político-social, como foram o caso do período ditatorial recente e da reabertura política.
O que se percebe é que, na busca de um papel preponderante internacionalmente, o Brasil lança mão de
estratégias que conjugam as representações que os demais atores fazem do país e efeitos de patemização. Isso pode ser
percebido na atuação de representantes brasileiros em fóruns como a ONU, que assumem uma postura conciladora, a
partir de um ethos internamente construído e que se baseia também nas representações que outras nações fazem do
Brasil.

Razão e emoção nos discursos do Brasil. Rearticulando uma posição

Em Relações Internacionais, mensura-se o poder pela habilidade de um ator de fazer com que o outro aja de
acordo com os seus interesses. O poder é, então, dividido em duas categorias hard – o poder duro, expresso pelo poderio
militar e econômico – e o soft – o poder advindo das idéias, do discurso e da cultura, que envolvem o parceiro de tal forma
que ele acredita que os ideais do outro são também seus ideais. No caso do Brasil, é patente, mesmo nos discursos dos
representantes do Estado, que o país não teria força suficiente para direcionar a ação do outro por meios militares ou
econômicos. Por isso, o país passou a se dedicar, desde o início de sua atuação no ambiente internacional, à consecução
do poder dito soft3.
Segundo Cervo (2008), a matriz brasileira de relações exteriores, juntamente com outros países pacifistas, se
pauta por práticas não confrontacionistas baseadas na boa convivência das diferenças culturais. Exemplo disso seria a
tentativa histórica de representantes brasileiros em participar, no âmbito internacional, da maioria dos organismos
internacionais de tomada de decisão que tivessem a negociação pacífica como eixo principal. Fazendo alusão à capacidade
dos brasileiros para enfrentar as adversidades – tendo em vista seu «jogo de cintura» - e de se relacionar com diferentes
culturas – legado da intermitente miscigenação, de um passado e presente multicultural – tais representantes buscam, no
discurso e nos plenários internacionais, chances para que o Brasil alcance uma plena visibilidade.
Essa tendência pacifista – embora muitas vezes ilusória ou única alternativa de ação do Brasil – passou a fazer
parte do imaginário internacional, sendo incorporada aos traços da cultura nacional e transformando-se em parte do
discurso brasileiro no cenário internacional. É assim que, em 1947, durante a abertura da primeira Assembléia Geral das
Nações Unidas, se inaugura a tradição que, perpetuada, confere certo status ao Brasil dentro da Organização: o
representante brasileiro é o primeiro orador no foro internacional4.
Mais recentemente, o discurso do Presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva, em especial o proferimento
intitulado «Brasil ator Global», é também, em nosso entender, resultado de um intercâmbio do jogo de influências mútuas
não apenas do orador com o público, mas dos imaginários que circundavam tal discurso. Pronunciado para um grupo de
cientistas franceses e brasileiros na capital francesa em 13 de julho de 2005, ele marca o início oficial do Ano do Brasil na

3 Segundo a tipologia proposta por Joseph Nye, o poder se dividiria em Hard Power (poder bruto) e Soft Power (poder brando). O Soft
Power seria “a capacidade de um Estado de conseguir o que deseja pela atração, mais do que pela coerção ou por pagamentos. Este
poder derivaria da capacidade de atração da cultura de um país, de suas idéias políticas e políticas públicas, traduzidas nas instituições
que ele preconiza. Assim, quando as condutas de um Estado parecessem legítimas aos olhos de outro Estado, o seu Soft Power seria
reforçado (...)” (NYE, 2004: X e XI).
4 Em 1947, o brasileiro Oswaldo Aranha presidiu a Assembléia Geral das Nações Unidas, em que foi decidida a partição da Palestina,

culminando na criação do Estado de Israel.

956
França5 e a presença oficial brasileira para as comemorações da «Fête de la République», 14 de julho. A homenagem era,
então, dupla: à França e ao Brasil. Apesar de pronunciado a apenas parte de uma elite intelectual, a divulgação do discurso
em forma de texto buscava alcançar um público maior, o que, de fato, ocorreu. O texto foi retomado, em diversas análises
de Relações Internacionais, na tentativa de perceber qual seria o posicionamento brasileiro no cenário internacional6.
Interessa-nos mostrar como, em seu pronunciamento, o Presidente da República buscou construir um ethos do Brasil que
se baseava, também, na memória e nos aspectos identitários que ligavam Brasil e França.
A construção do ethos é explicada em Retórica como produto de uma estratégia discursiva que constrói uma
autoridade complexa baseada em três componentes: prudência, virtude e benevolência. Ao demonstrar inteligência,
honestidade e solidariedade, o orador faz com que se desenvolva nos outros o sentimento de confiança em relação a si,
que combina uma intuição afetiva e intelectual – denotando a estrutura patêmica do ethos (PLANTIN, 2009: 51).
No caso do Presidente Lula, este sentimento de confiança foi criado não apenas pelo imaginário construído
sobre o Brasil na França, como também pela história do Presidente enquanto indivíduo. Lula já era conhecido publicamente
na França antes mesmo de sua primeira eleição: como sindicalista e militante do Partido dos Trabalhadores, ele havia
participado das campanhas presidenciais francesas em apoio aos candidatos de esquerda. Durante as eleições, foram
produzidos documentários e vários artigos foram publicados em jornais de grande circulação, tornando conhecida do
público francês a história de vida do Presidente e suas aspirações para o Brasil e para o mundo. Assim, a autoridade do
Presidente é baseada pela combinação de «moralidade, perícia e doçura em um sentimento único de confiança» (Plantin,
2009:51) que permeia o imaginário internacional sobre o Brasil e sobre a figura do Presidente. E Lula reconhece isso em
seu discurso :
(..) Minha experiência pessoal, como líder operário, ensinou-me que em qualquer negociação a credibilidade
é um fator fundamental. E para ter credibilidade é preciso conhecer as forças de que dispomos…

O argumento do Presidente tem um conteúdo emocional evidente: ao fazer referência à sua experiência pessoal
e ao demonstrar o lugar que teria a credibilidade do país para um posicionamento do Brasil no exterior. Lula busca, então,
suscitar essa credibilidade ao apontar para a ação do Brasil, baseada na busca pela «justiça social»

Não fugimos a nossas responsabilidades, por timidez ou por temor aos mais poderosos. Nosso desafio é o de
tentar entender, e de afirmar, como o Brasil pode colaborar para a construção de uma nova relação de forças
internacional.(…)

Assim, é interessante constatar que Lula sublinha o caráter combativo não apenas de sua história, mas da
história brasileira. Ao enunciar as emoções «timidez» e o «temor», Lula trata, de forma clara, de dois sentimentos que
estariam ligados a posição de países que, como o Brasil, ocupariam um lugar secundário no cenário internacional, os
países em desenvolvimento. O «drama» de tais países estaria ligado ao seu passado de ‘sofrimento, exploração,

5 Desde a década de 1980, uma a França vem promovendo estes anos temáticos, ou saisons culturelles com o intuito de melhorar o

entendimento cultural dos franceses sobre os outros povos. No Ano do Brasil na França, além da aproximação política e da oportunidade
de intercambio cultural, foi dada uma ênfase na pluralidade da cultura brasileira, já presente no slogan escolhido “Brésil, Brésils” e mais
de 150 cidades francesas receberam eventos culturais brasileiros. A cultura brasileira passou a fazer parte do universo francês e ganhou
destaque expressivo em diversas localidades, fazendo com que, mesmo que naquele momento houvesse uma situação de crise política
no Brasil, com denúncias de corrupção, menções à crise ficaram restritas aos editoriais de política, sem receber grande destaque, como
observa Laan Mendes Barros, 2006.
6 A exemplo, citamos o trabalho de Steinfus, Zanella e Marques (2007), disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-73292007000200002 e Almeida (2006), disponível em :
http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1587BiblioDiploGovLula.pdf

957
condicionamento, submissão e constrangimentos’ que, no caso brasileiro, levaram a uma reação: o combate e luta pelo
«aprofundamento da solidariedade internacional». A escolha dos termos demonstra o estado emocional negativo que a
colonização deixou na leitura das possibilidades de desenvolvimento do Brasil: as chances de superação seriam mínimas
se, no país, não existissem personagens combativos, que lutam pela solidariedade internacional. Ao fazer uso de tais
enunciados, Lula articula, também, uma possibilidade de provocar um sentimento de culpa junto aos franceses: a França
participara de todo o processo de colonização entre o século XVI e XX, existindo, ainda hoje, dificuldade no relacionamento
com ex-colônias, na África e na Ásia. Então, seria de se esperar que, reconhecendo essa problemática, ela participasse de
projetos que se baseassem na promoção da equidade. Ora, esse enunciado aponta para o senso de justiça na tentativa de
persuadir o outro a agir de acordo com o que seria ‘correto’ dentro das novas normas da sociedade internacional.
A argumentação busca, então, apresentar o quadro de realidade objetiva ao qual o discurso do Presidente faz
alusão. São apresentados dados concretos, estatísticas e prospectos da situação sem que haja mudança, exatamente para
causar uma emoção no público que leve a uma reação desejada:

«(…) combate à fome e à miséria. (…)Precisamos encarar esse problema de frente. É intolerável que 1
bilhão de dólares seja gasto a cada dia em subsídios à exportação e em medidas de apoio doméstico à
produção agrícola. Não é humano e racional que uma vaca tenha um subsídio superior à renda individual de
centenas de milhões de homens e mulheres. (…) mais de 500 milhões de pessoas da situação de pobreza.»

O discurso do Brasil de combate à fome é algo históricamente reconhecido dentro da dinâmica das Relações
Internacionais7. Assim, ao falar da temática a professores e reitores de universidades, o Presidente do Brasil está
retomando uma memória coletiva sobre a participação do país na tentativa de mudar tal quadro. A argumentação do
Presidente Lula se encontra apoiada, então, em três bases: uma mémoria coletiva sobre o assunto e a participação
brasileira para sua resolução; uma iniciativa pessoal do Presidente com relação à situação, tendo em vista seu passado,
sempre retomado; as tentativas atuais do governo brasileiro de tratar do problema em duas arenas, a nacional e a
internacional.
Ao utilizar expressões como «é intolerável», «não é humano e racional», a argumentação de Lula mobiliza um
sentimento de repulsa em seu auditório para o rumo que as ações no âmbito internacional têm dado ao tratamento do
problema. Ligando a temática a questões como o comércio internacional, o Presidente busca mostrar que a ação de
combate à fome ocupou, até sua eleição, um lugar periférico, fazendo com que animais tivessem uma importância maior
que grande parte da população mundial. Se suprimirmos esta informação (dos subsídios às vacas), o efeito do enunciado
será bem menor, afinal, trataria de uma falta de opção de mudança. Ao evidenciar problemas estruturais, a estratégia de
comoção torna-se eficaz. Segundo Aristóteles, citado por Amossy (2000: 317), sentimos compaixão por aqueles que
passam por infortúnios que poderia ocorrer conosco e indignação quando vemos prosperidade e dedicação de honrarias
para aqueles que não merecem. O objetivo é claro: deseja-se suscitar a piedade do público em relação aos milhares de
indivíduos que vivem em situações de pobreza e miséria e, por outro lado, indignação em relação àqueles que, percebendo
esse quadro de desigualdade, deixam que ele perdure.

7 Josué de Castro, um professor e político brasileiro, começara a levantar a problemática da fome e da miséria na década de 1930,

quando, em seus estudos, desnaturalizou tal problema, ao demonstrar que a fonte dos problemas era de cunho político «um flagelo
fabricado pelos homens contra outros homes». Em 1946, Castro publicou «Geografia da fome», em 1947, quando da criação da
Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO – Josué de Castro torna-se Membro do Comitê Consultivo
Permanente de Nutrição. Foi Presidente do Conselho da FAO entre 1952 e 1956 2, durante os anos subsequentes, recebeu vários
prêmios e medalhas, dentre eles o Prêmio Internacional da Paz (1954) e o de Oficial da Legião de Honra (Paris, 1955). Com o regime
militar, Castro foi obrigado a se exilar em Paris, onde morreu em 1973.

958
Cooptando um parceiro

A tentativa brasileira de construir um Brasil «ator global», no caso da França, recebe a contribuição de um
histórico de ações conjuntas e, também, de uma política externa brasileira que tem sua fonte em bases francesas. Em seu
discurso, o Presidente brasileiro retoma essas características, ao tentar projetar um inconsciente coletivo de lutas
compartilhadas. Primeiramente, ao exaltar as lutas empreendidas pelos franceses, que teriam servido de «fonte de
inspiração» aos movimentos brasileiros:
Ao considerar esses temas que dizem respeito ao ordenamento internacional, permito-me fazer um recuo
histórico e falar um pouco da convergência de pontos de vista entre o Brasil e a França. Nossa crença na
liberdade como valor fundamental (…). As idéias do iluminismo francês e a própria Revolução Francesa (ao
lado da Revolução Americana) tiveram impacto direto no Brasil. Foram fontes de inspiração para idéias
republicanas e movimentos de rebeldia (…) Esses movimentos foram duramente reprimidos, mas deixaram
uma herança de lutas que contribuiu para acelerar nossa independência. Joaquim Nabuco, outro
pernambucano, chegou a afirmar que "todas as nossas revoluções (antes da Independência) foram ondulações
que começaram em Paris". Os que reprimiam os movimentos nativistas e republicanos falavam em erradicar "os
abomináveis princípios franceses". São os princípios que se celebram no 14 de julho, não apenas pela França,
mas por todos os que amam a liberdade e crêem na solidariedade humana. A França foi para o Brasil, em
muitos momentos, uma inspiração de liberdade.

A argumentação trabalha, então, com os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade – palavras de ordem
da República Francesa. Ao fazê-lo, ela aciona um ideário que o auditório tende a compartilhar. Lembrando aqui que o
discurso foi proferido no dia 13 de julho, um dia antes das comemorações da Revolução Francesa. A estratégia está
pautada em expressões que causam emoção no público «fontes de inspiração», «herança», «por todos que amam... e
crêem…». Sem essa parte do discurso, o Presidente poderia, talvez, suscitar a emoção, mas sem atentar para o espírito
combativo, importante em sua idéia de mudança. Afinal, aqueles que amam a liberdade e crêem na solidariedade têm que
participar de ações por um mundo mais equitativo, isto estaria ligado aos saberes de crença, aos valores morais que
guiariam franceses e brasileiros, a um sentimento de justiça a ser feita. Esse sentimento vai guiar, também, a continuação
do discurso presidencial: ao retomar a ditadura no Brasil, o exílio de brasileiros em Paris, a invasão da França durante a II
Guerra e os esforços de brasileiros na resistência francesa:
Durante os anos de autoritarismo, muitos brasileiros, injustamente perseguidos em nosso país, encontraram
refúgio e proteção em terras francesas. Guardamos uma dívida de gratidão com o povo francês por essa
solidariedade em uma hora difícil de nossa vida nacional. Orgulhamo-nos, ao mesmo tempo, de ver que as
atividades do Ano do Brasil na França incluem homenagens a dois brasileiros que lutaram lado a lado com o
povo francês em momentos difíceis para a França. Na clandestinidade e com grande sacrifício pessoal, meu
amigo e companheiro Apolônio de Carvalho deu contribuição destacada à resistência e à libertação da França
do jugo nazista. Na diplomacia, a coragem do embaixador Luiz Martins de Souza Dantas ajudou a salvar
centenas de vítimas inocentes. São exemplos dos laços humanos que vinculam a França e o Brasil. Isso
confere à nossa parceria um significado muito especial, porque a defesa dos direitos humanos e a
consolidação da democracia são hoje tarefas inadiáveis no plano internacional.

Assim, Lula deseja mostrar que a ação brasileira está baseada em um princípio moral de busca pela justiça
social, princípio este que, em outras épocas, havia levado à resitência e ao exílio de brasileiros e franceses. São
sentimentos que serão associados a reações afetivas, mas que se apóiam, também, em racionalidades. Como observa
Boudon, citado por Amossy (2000: 317), a indignação que sentimos ao ver inocentes obrigados a se exilar e os fracos
cassados pelos mais fortes, pode ser defendida por argumentos aceitáveis, que as pessoas que se indignam sejam ou não
conscientes das razões que fundam seus julgamentos. Neste sentido, as normas, valores e crenças que guiariam a ação

959
brasileira no plano internacional seriam justamente baseadas nas palavras de ordem da República Francesa e que levaram
a resistência em ocaisões de tensão e opressão. Ao colocar em evidência o orgulho que deve-se sentir de tais personagens
da resistência, o Presidente lança seu apelo para que tarefas inadiáveis ligadas, mais uma vez, à memória e valores
compartilhados (promoção da democracia e dos direitos humanos) sejam realizadas com o auxílio de Brasil e França em
todo o mundo.

Considerações Finais

Classificado como um tipo de comunicação emotiva, que Plantin (2009: 135) considera uma estratégia
intencional de evidenciar informações afetivas, na fala e na escrita, com o intuito de influenciar as possíveis interpretações
dos parceiros sobre determinada situação e atingir certos objetivos, o discurso de Lula tem, por objetivo, influenciar a
opinião dos franceses sobre a capacidade brasileira de responder aos desafios globais. Busca-se causar uma reação
emocional no público ao incorporar ao discurso da nação, uma história pessoal e também, internacional.
A utilização de enunciados de emoção («minha alegria», «meu sentimento», «meu agradecimento», «se
sensibilizou») em meio a todo o discurso do Presidente, nos mostra a utilização da estratégia «mostrar-se emocionado para
melhor emocionar». Tal estratégia, fortalece a tentativa de Lula de causar um impacto que gere mudanças reacionais no
público.
Ora, como observa Amossy (2000: 314), sentimento e razão coexistem e trabalham, em conjunto na interação
argumentativa. Em uma situação de comunicação em que um orador se dirige a um auditório (público específico), ele deve
não apenas, fazer uma imagem daqueles que ele busca persuadir, como também se adaptar a eles, se ele deseja que suas
palavras sejam eficazes.
Enfim, o que tentamos salientar em nosso trabalho foi a formação de uma estratégia observada por teóricos das
Relações Internacionais, de que, a ação brasileira no nível internacional está baseada em uma perspectiva de diálogo e luta
pela justiça social, em que valores como igualdade e solidariedade são rearticulados nos discursos em busca da formação
de um poder pela persuasão (soft power). O discurso pretende atender às expectativas da política externa brasileira
levando-se em conta a existência de um ethos pré-constituído da figura de Lula enquanto alguém que busca, pessoalmente,
mudanças sociais e, também, do Brasil, por suas ações e posições passadas. O avanço das ações brasileiras durante o
governo Lula habilitariam o país, segundo o discurso do Presidente, a almejar por uma posição de ator global e, esta,
deveria receber o apoio francês tendo em vista um passado de alianças em prol da justiça.

Referência

ANDERSON, Benedict. L’imaginaire national : réflexions sur l’origine et l’essor du nationalisme. Paris : La Découverte, 2002.

AMOSSY, R. Pathos, sentiment moral et raison : l’exemple de Maurice Barrès. PLANTIN et all. Les émotions dans les
interactions. Collection Ethologie et psychologie des communications. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2000, pp.313-
326.

BRASIL. Luiz Inácio Lula da Silva. Presidente da República. Discurso na abertura do Colóquio "Brasil: Ator Global" em
Paris, França, 2005. Brasília : FUNAG, 2008, pp.41-53.

960
CHARAUDEAU, P. Une problématisation discursive de l’émotion: à propos des effets de pathémisation à la télévision.
PLANTIN et all. Les émotions dans les interactions. Collection Ethologie et psychologie des communications. Lyon: Presses
Universitaires de Lyon, 2000, pp. 125-155.

COSNIER, J. Les deux voies de communication de l’émotion: en situation d’interaction face à face. COLLETA et
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HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2005.

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PLANTIN, C. Les bonnes raisons des émotions : arguments, fallacies, affects. Disponível em: http://icar.univ-
lyon2.fr/membres/cplantin/documents/Raisons_Emotions.pdf Consultado em 10 de julho de 2010.

PLANTIN, C. Structures verbales de l’émotion parlée et de la parole émue. COLLETA et TCHERKASSOF. Les émotions:
cognition, langage et développement. Bruxelas: Mardaga, 2003, pp. 97-130.

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VON MARTIUS, K. Como se deve escrever a História do Brasil.In. Revista Trimestral de História e Geografia ou jornal do
Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, nº 24, Rio de Janeiro de 1845. Disponível em:
http://www.4shared.com/document/9v_oN6eP/Como_se_deve_escrever_a_Histri.htm Consultado em 11 de julho de 2010.

Professora no curso de Relações Internacionais no IBMEC-BH, é bacharel em Relações Internacionais pela PUC-Minas e
Mestre em Estudos Internacionais – História e Política – pelo Institut de Hautes Etudes Internationales et du Devéloppement
(Genebra). E-mail: clairecristine@yahoo.com.br

961
Análise dos ethé de credibilidade legitimados por sujeitos
testemunha no horário gratuito de propaganda eleitoral
2008

MESTI, Paula Camila


(UEM-PR)
PASSETTI, Maria Célia Cortez
(UEM-PR)

1. INTRODUÇÃO
A eleição é concebida como um momento e um procedimento de escolha daqueles que irão exercer “poderes” na
sociedade. Neste rito periódico e legitimado, escolhem-se aqueles que estarão em lugares de comando, aqueles que terão
parcelas substanciais de poder para governar. A primeira eleição para prefeito de Maringá foi realizada em 1952, elegendo
Inocente Villanova Junior com 32% dos votos válidos.
Dada a conjuntura sócio-histórica da política maringaense, percebe-se nela a grande participação da família
Barros na política local e a utilização maciça de recursos midiáticos em suas campanhas, em consonância com as novas
tendências do discurso político eleitoral na contemporaneidade. Desta sorte, cabe fazer uma retomada no contexto das
duas últimas campanhas para prefeito de Maringá.
Em 2004, João Ivo Caleffi (PT), prefeito da situação, candidata-se à reeleição, tendo como principais adversários
no primeiro turno o Dr. Batista (PTB) e Silvio Barros (PP). Finalizado apenas no segundo turno, este pleito foi decidido entre
João Ivo Caleffi e Silvio Barros, sendo esse eleito com 53,5% dos votos válidos. Durante a campanha de 2008, ao ser o
político da situação, pois estava na condição de prefeito que se recandidatava, o sujeito Silvio Barros buscou autoridade e
credibilidade para não só se manter no cargo como se mostrar digno de nele continuar, fato que se concretizou ao ser o
primeiro prefeito a se reeleger na cidade.
Se antes os atores políticos faziam seus discursos em comícios, mostrando suas capacidades eloquacionais, hoje
o espaço mais importante da campanha é o espaço eletrônico, mais especificamente o televisivo, pois a conduta e a prática
social agora se estruturam e se ambientam na mídia. Desta maneira, surgem novos formatos na tela para o acontecer
político, como os horários e os debates eleitorais. São as gravações e as transcrições dos HGPE de 2008 que compõem o
corpus de análise deste trabalho. Ao se verificar o corpus, observou-se que em algumas situações a imagem construída do
sujeito político – ethos – não era legitimada por meio de seu próprio discurso, mas pelo discurso de outras pessoas em seu
favor.
Baseando-se na tipologia de ethé proposta por Charaudeau (2008), este artigo tem como objetivo demonstrar
como esses sujeitos testemunha contribuíram para a consolidação dos ethé de credibilidade do candidato Silvio Barros,
reforçando sua imagem de homem sério e competente1. A identificação dos ethé legitimados por terceiros será feita por
meio da análise de sequências discursivas em que aparecem diversos sujeitos falando sobre o poder de realização que o
candidato em questão mostrava possuir e também sobre a confiança que estas pessoas depositavam neste político.

1 O tema discutido neste artigo é resultado das análises realizadas na dissertação de mestrado de Paula Camila Mesti – Análise

Discursiva dos Ethé de um Sujeito Político em campanha eleitoral. Orientada pela Professora Dra. Maria Célia Cortez Passetti e
defendida em 2010, esta dissertação tematiza o modo de construção das imagens que o sujeito político Silvio Barros dá de si em seus
discursos para prefeito de Maringá-PR nos HGPE de 2004 e 2008.

962
Apoiando-se nos conceitos basilares da Análise do Discurso, principalmente os que abarcam a noção de memória
discursiva, efeitos de sentido e ethos, neste trabalho, especificamente, serão identificados os sujeitos testemunha que
deram suporte aos ethé do candidato, demonstrando como os efeitos de sentido podem ganhar mais força quando, por
exemplo, quem enuncia é um político de renome ao invés de um cidadão comum.

2. A NOÇÃO DE ETHOS E O DISCURSO POLÍTICO


Usada para designar a “[...] construção de uma imagem de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento
oratório” (AMOSSY, 1998, p.10), na antiguidade o ethos referia-se aos traços de caráter do enunciador, a maneira de se
mostrar ao público tendo como objetivo causar boa impressão, sem importar se o que foi mostrado é verdade. Esta
apresentação de si é construída através do estilo, da competência lingüística e enciclopédica, crenças implícitas que o
locutor mostra pelo modo que se expressa.
À luz dos estudos feitos por Maingueneau (2008, p.60), pode-se compreender a noção de ethos sob três aspectos,
a saber: a) por se constituir por meio do discurso, o ethos não é uma “imagem” do locutor exterior à fala, mas uma noção
discursiva; b) é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; c) não pode ser apreendido fora de
uma situação de comunicação precisa. Assim, o referido autor descreve o ethos como um dos elementos do sistema
semântico global de uma dada formação discursiva e considera o contexto sócio-histórico como caráter que constitui e
configura a existência de determinados ethé em detrimento de outros.
Partindo da afirmação: “O ethos é como um espelho no qual se refletem os desejos uns dos outros”
(CHARAUDEAU, 2008, p. 87), pode-se compreender que no âmbito político, existe um diálogo entre a instância cidadã e a
instância política, para que ocorra a construção do ethos do sujeito político. Essa situação acontece porque é da natureza
do cidadão ambicionar melhorias para sua cidade, seu país, sua vida, bem como é da natureza do candidato ao cargo
convencer o eleitor de que ele é a pessoa ideal para realizar tais melhorias.
De acordo com Maingueneau (2002 apud CHARAUDEAU, 2008, p. 118): “As idéias são construídas por maneiras
de dizer que passam por maneiras de ser [...]”, bem como as maneiras de ser também determinam as de dizer. Seguindo
este raciocínio, entende-se que uma coisa não pode ser separada da outra, ou seja, não é possível separar o ethos das
ideias. Na política, as ideias só possuem valor quando atreladas aos sujeitos que as divulgam, que as defendem, que
prometem sua aplicação e, mesmo assim, é necessário que tais sujeitos sejam críveis e capazes de dar suporte de
identificação à sua pessoa.
Diante do exposto e seguindo a tipologia proposta por Charaudeau (2008), convém ressaltar que estas figuras
identitárias do discurso político dividem-se em dois tipos de ethé: os de identificação, ligados ao discurso do afeto, e os de
credibilidade, ligados ao discurso da razão.
Os ethé de identificação estão relacionados ao discurso afetivo, pois o cidadão se identifica com o político através
de um processo irracional. Assim, visando alcançar a identificação com o maior número de eleitores, o ethos político se
constrói a partir de uma mistura “[...] de traços pessoais de caráter, de corporalidade, de comportamentos, de declarações
verbais, tudo relacionado às expectativas vagas dos cidadãos, por meio de imaginários que atribuem valores positivos e
negativos a essas maneiras de ser.” (CHARAUDEAU, 2008, p. 137).
Feito de maneira que leve as pessoas a aceitarem que são dignos de crédito, os sujeitos políticos constroem seus
ethé de credibilidade buscando serem aceitos. Entretanto, são impostas algumas condições para que se julgue se um
indivíduo é digno de crédito ou não: a) condição de sinceridade: quando se verifica se o que é dito pelo sujeito corresponde
aos seus pensamentos; b) condição de performance: quando se observa as condições, os meios que o sujeito têm em

963
colocar em prática suas promessas; c) condição de eficácia: quando se comprova que suas ações são seguidas de efeitos
positivos.
No interior dessas categorias propostas pelo referido autor, encontram-se diversas subcategorias de ethos: a)
pertencentes aos ethé de identificação: potência, caráter, inteligência, humanidade, chefe e solidariedade; b) as que
pertencem aos ethé de credibilidade: sério, virtuoso e competente.

3. ETHÉ LEGITIMADOS PELOS SUJEITOS TESTEMUNHA


Durante as leituras teóricas e as análises feitas na dissertação, observou-se que em algumas situações a imagem
construída do sujeito político não é legitimada por meio de seu próprio discurso, mas por outras pessoas que
“testemunham” em seu favor. Este mecanismo serve mais como uma estratégia que valida e dá mais credibilidade aos ethé
já existentes. De acordo com Charaudeau (2008, p. 182): “Evidentemente, aqui o ethos não é mais construído pelo próprio
político, mas a imagem de si resulta tanto de estratégias dele próprio, quanto da que lhe é atribuída pelo público, por boatos
e pela mídia.”
Produzindo um efeito de sentido positivo junto ao eleitor / telespectador, esta estratégia de “[...] deixar que sua
imagem seja construída por declarações de um terceiro [...]” (CHARAUDEAU, 2008, p. 159) faz com que se obtenha mais
credibilidade, garantindo-lhe a legitimidade dos “adjetivos”, uma vez que a instância cidadã valoriza e aceita mais facilmente
quando outras pessoas “falam bem” do candidato. Sem esquecer que o excesso de virtudes construídas e mostradas por
este sujeito político em seu próprio discurso poderia produzir efeitos de arrogância, falta de humildade e falsidade.
Dentro do âmbito da caracterização desta outra maneira de pensar o ethos, pode-se dizer que são verificados
feixes de traços psicológicos que outras pessoas reforçam do sujeito de quem enunciam, objetivando mostrar que existe
uma identificação entre elas, o candidato e o eleitor / telespectador. Tem-se, ainda, a oportunidade de se refletir sobre o fato
de que as características ressaltadas por estas “testemunhas” apontam o imaginário que a instância cidadã possui daquilo
que é ser bom político e, por seguinte, aprovam a candidatura do sujeito sobre o qual estão produzindo enunciados.
Vale destacar que ao se identificar os sujeitos que dão suporte aos ethé – cidadãos maringaenses, jornalistas do
Estúdio 11 e políticos favoráveis –serão verificados os efeitos de sentido produzidos pelos ethé construídos por estas
testemunhas.
Nos ethé de credibilidade legitimados por terceiros são consideradas as sequências discursivas em que aparecem
outras pessoas, e não o sujeito político, falando sobre o poder de realização que o candidato Silvio Barros mostrava possuir.
O ethos de sério foi observado nas sequências discursivas em que outras pessoas falam da seriedade, do
compromisso e da energia para o trabalho que este sujeito político possuiria. Também presente nos enunciados que
mostram os compromissos e promessas assumidas pelo candidato, mais ainda, caracterizam-se por demonstrações de
confiança e apoio que os sujeitos testemunha depositam no sujeito político Silvio Barros. A fim de exemplificar esse tipo de
ethos e demonstrar um possível gesto de interpretação, serão consideradas as seguintes sequências discursivas:

José Carlos Schiavinato (Político Favorável) em 27/08/2008: Aqui em Toledo deu muito certo, eu
não tenho dúvida, aí em Maringá com esse trabalho do prefeito Silvio Barros, vai conseguir com que as
pessoas da terceira idade tenham uma melhoria considerável em sua vida. É a cidadania por inteiro
sendo oferecida à população.

Jornalista Estúdio 11 em 20/08/2008: Vai conhecer também as propostas e as inovações para o


próximo mandato de Silvio. Com seriedade, profissionalismo e, sobretudo, transparência.

Cristian Marcos da Silva (Cidadão Maringaense) em 01/09/2008: Quando eu entrei pra vender,
comecei vender, me falaram: cuidado que você vai vender porque a prefeitura não paga. Nessa gestão

964
agora eu tô recebendo certinho, vendo carne lá para o bosque, para as creches e estão me pagando
certinho.

O sujeito testemunha político favorável produz enunciados que contribuem para legitimar o ethos de sério do
sujeito político Silvio Barros ao mencionar a seriedade em melhorar a qualidade de vida da população: “[...] aí em Maringá
com esse trabalho do prefeito Silvio Barros, vai conseguir [...]”. Deve-se ressaltar que José Carlos Schiavinato era prefeito
da cidade de Toledo-PR, pertencia ao mesmo partido do sujeito político Silvio Barros e, na ocasião, também se candidatava
à reeleição. Ambos foram reeleitos.
A campanha eleitoral do sujeito político Silvio Barros apresentou uma especificidade em 2008: o HGPE seguia a
cenografia de um telejornal denominado Estúdio 11. Nesta cenografia, jornalistas interagiam com o sujeito político e
produziam enunciados que reforçavam os ethé já construídos, como é o caso dessa passagem em que Sérgio Mendes
atribui adjetivos às práticas político-administrativas do candidato: “[...] seriedade, profissionalismo e, sobretudo,
transparência.”
Na sequência discursiva que tem como testemunha um cidadão maringaense observa-se que o sujeito
testemunha contribui para a intensificação do ethos de sério do sujeito político ao elogiar a gestão da atual administração e,
ao mesmo tempo, criticar a gestão anterior a de Silvio Barros (PP), a saber, José Cláudio e João Ivo Calleffi (ambos do PT),
pois primeiro enuncia “[...] a prefeitura não paga” e em seguida continua: “Nessa gestão agora eu tô recebendo certinho”. Ao
desqualificar o ex-prefeito, este sujeito testemunha demonstra seu apoio ao sujeito político em campanha, mostrando sua
seriedade na administração da cidade ao revelar que recebe pontualmente o pagamento pelos serviços prestados à
prefeitura.
Ao ser legitimado por sujeitos testemunha, o ethos de virtuoso se caracteriza por apresentar sequências
discursivas que apontam a honestidade, a sinceridade e a fidelidade do sujeito político. Além de exaltar a lealdade que o
candidato possui perante seus adversários e o respeito pelos cidadãos. Esta categoria de ethos não foi identificada no
HGPE de 2008.
Quando terceiros falam do percurso político que o candidato fez com o intuito de comprovar que este está apto
para exercer o cargo de prefeito, pode-se dizer que se formulou um ethos de competente. Também é verificado este ethos
quando os sujeitos testemunha falam de todos os feitos, as obras, as melhorias que o candidato realizou ou simplesmente
por apresentar indícios de que é capaz de realizá-las. Seguem os exemplos:

Marcio Fortes (Político Favorável) em 15/09/2008: Alguns vão pensar. Não, o Márcio só deu o
recurso ao Silvio porque ele é do mesmo partido. Não é isso que vão pensar? Será que foi por isso?
Ou será que o Silvio é competente! Será que o Silvio sabe fazer projeto. Essa é a verdade, não adianta
ser amigo. É importante saber fazer as coisas. É importante você saber qual é o pedido de cada
cidadão. É isso que faz o Silvio e é isso que faz o meu Ministério.

Dani Luz (Jornalista Estúdio 11) em 29/09/2008: E quem viu as realizações e conhece os
compromissos que ele está assumindo agora, não tem mais dúvidas.

Adel Batista de Souza (Cidadão Maringaense) em 22/08/2008: O Silvio Barros pra mim está sendo
um ótimo governo. Eu não posso reclamar, porque tudo que ele tem feito pela cidade, está sendo uma
coisa muito bem feita.

Nestes exemplos o ethos de competente é marcado no “saber fazer”. No caso do sujeito testemunha político,
deve-se observar a importância deste sujeito no quadro das relações políticas nacionais. Não é qualquer político que reforça
o ethos do candidato, mas Márcio Fortes, representante do PP no governo Lula que, desde 2005, cumpre a função de
Ministro das Cidades. Atendendo as reivindicações de movimentos sociais que lutavam pela reforma urbana, o Ministério

965
das Cidades, criado em janeiro de 2003, objetiva contestar as desigualdades sociais, ambicionando a transformação das
cidades em espaços mais urbanizados, proporcionando à população amplo acesso à moradia, ao saneamento e ao
transporte. Assim, ao conhecer este contexto, torna-se correto afirmar que o ethos reforçado por esta testemunha possui
mais legitimidade e produz efeitos de sentido positivos ao se enunciar sobre a capacidade do candidato em “[...] saber fazer
projeto”, “[...] saber fazer as coisas” e “[...] saber ouvir o pedido de cada cidadão”.
Ao analisar o enunciado da jornalista do Estúdio 11, verificou-se que os ethé também são construídos dentro da
lógica argumentativa, utilizando-se de raciocínios lógicos implícitos no discurso. Assim, este sujeito testemunha comprova
que o candidato é capaz: “E quem viu as realizações e conhece os compromissos que ele está assumindo agora, não tem
dúvidas”. Esta sequência discursiva pode ser interpretada da seguinte maneira: ora, só se é possível ver as realizações, de
alguém que as fez, e, se foram feitas, esse alguém comprovou ser competente o suficiente para realizá-las, e, se as
realizou, também será competente para efetuar as próximas realizações, que cumprirá os novos compromissos assumidos.
Ao tecer comentários sobre a atuação do sujeito político como administrador da cidade, o sujeito testemunha
cidadão legitima o ethos de competente do candidato e o solidifica ao produzir enunciados que apontam uma excelência no
saber fazer, ainda que este sujeito testemunha não relacione as práticas realizadas: “[...] porque tudo que ele tem feito pela
cidade, está sendo uma coisa muito bem feita.”

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao dividir o discurso dos sujeitos testemunha em sequências discursivas foi possível contabilizar os ethé e
formular tabelas quantitativas que demonstram a incidência dos tipos de ethé legitimados pelos sujeitos testemunha na
campanha de 2008. De acordo com os dados numéricos, os ethé de credibilidade somam 67,5% do total.

Porcentagem dos tipos de Ethé reforçados por sujeitos


testemunha em 2008
Tipos de Político
Jornalistas Cidadãos Total
Ethé Favorável
Sério 1,9% 15,2% 16,5% 33,6%
Competente 3,9% 19,8% 9,9% 33,6%

Nesta tabela é possível verificar que houve um empate ao que se refere ao índice de ethé: tanto os de sério
quanto os de competente tiveram a marca de 33,6% do total para cada um. Estes dados indicam a importância desses dois
tipos de ethos para o discurso político, pois mostram que o sujeito político deve ter a seriedade para assumir compromissos
e a competência para realizá-los.
Do total atribuído ao ethos de sério, cerca de 16,5% foram legitimados por cidadãos maringaenses, já o ethos de
competente foi produzido em sua maioria pelos jornalistas do Estúdio 11 – 19,8%.
O alto índice de sujeitos testemunha legitimando os ethé de credibilidade faz inferir que tais sujeitos testemunha
possuem a função de apoiar e reforçar as virtudes e os traços de competência do candidato. Configurou-se como uma
característica própria do discurso político eleitoral no gênero propagandístico, como forma de dizer e atestar o que o sujeito
político candidato apenas deve mostrar para evitar derivas de sentidos negativos à sua imagem. Os sujeitos testemunhas
variam do cidadão comum a grandes autoridades, pois o que interessa é o efeito de verdade produzido na sustentação dos
ethé do sujeito candidato e a contribuição dada ao processo de identificação do eleitor com o candidato.

966
Acredita-se que estas reflexões iniciais possam contribuir para a ampliação satisfatória do quadro teórico-
metodológico das pesquisas feitas em Análise do Discurso político contemporâneo eleitoral, mesmo sabendo de sua
instabilidade, pois há de se considerar a velocidade das metamorfoses do discurso político que já não se apóiam mais nos
monólogos intermináveis, mas na predominância da imagem, na velocidade da transmissão de informações e na
impossibilidade de se separar o verbo do corpo que enuncia.

REFERÊNCIAS

AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 1998.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. Trad. KOMESU, Fabiana; CRUZ, Dílson Ferreira da. 1ª ed. 1ª reimpressão. São
Paulo: Contexto, 2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Problemas de ethos. In: Cenas da enunciação. POSSENTI, Sírio; SOUZA-E-SILVA, Maria
Cecília Pérez de (orgs.). São Paulo: Parábola Editorial, 2008, p. 55-73.

Currículo das autoras:

Maria Célia Cortez Passetti possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Maringá (UEM-1986), mestrado
(1995) e doutorado (2002) em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é professora
adjunto da UEM e líder do grupo de pesquisa Gepomi que reúne pesquisadores em torno do discurso político e midiáticos
contemporâneos. E-mail: passetti@wnet.com

Paula Camila Mesti é graduada em Letras, Licenciatura em Português-Inglês pela Universidade Estadual de Maringá
(2007). Mestre em Letras, área de concentração dos Estudos Lingüísticos pela Universidade Estadual de Maringá (2010).
Atua como tutora a distância no Curso de Letras da Universidade Estadual de Maringá. E-mail: paulamesti@hotmail.com

967
Autoria ou aporia? Discursos, práticas e representações da
função-autor na cibermídia

MOMESSO, Maria Regina


(UNIFRAN)
SILVA, Mauricio Junior Rodrigues
(UNIFRAN)

1. INTRODUÇÃO

Importa quem fala? Eis o questionamento fundamental que Foucault (2002) empreende em seu texto O que é um
autor?. Contido no terceiro volume da obra Ditos e escritos (2002), o texto mostra como a noção de autoria se construiu ao
longo da História.
Na Antiguidade, por exemplo, narrativas, contos e comédias eram postos em circulação e aceitos socialmente
sem a necessidade de se especificar o nome dos autores. Na modernidade, sobretudo a partir da Filosofia cartesiana -
momento em que a noção de sujeito ganhou relevância científica - a noção de “autoria” tornou-se preponderante para a
valorização de determinada obra.
Ao dialogar com a historicidade, é possível compreender que a autoria é antes uma posição ou uma função que
foi legitimada historicamente, do que uma propriedade que o sujeito tem sobre seus escritos. Dito de outro modo, o autor
“não é nem produtor, nem inventor de seus textos”, justamente porque sua posição situa-se antes no campo histórico-
discursivo do que em outra realidade qualquer. (FOUCAULT, 2002, p. 264)
Diante isso, cabe ao presente trabalho investigar como esse conceito se apresenta discursivamente na
contemporaneidade. Essa proposta há de ser desenvolvida em um campo fundamentalmente contemporâneo: a cibermídia.
É possível entender a cibermídia como um conjunto de mídias digitais que não se limitam ao plano virtual ou à tela
de um computador, mas se estendem a interfaces externas como a telefonia celular móvel, as tecnologias wireless, os ciber
centers, e as lan houses (MCADAMS, 2008).
É de suma importância delimitar o significado do termo, como também distingui-lo da palavra “ciberespaço”. Para
isso, Berguel & Berleant nos explicam que:

Cyberspace in this sense is the union of multimedia information sources which are accessible through
the digital networks by means of client-server technologies. As a working characterization, we will refer
to the entire body of this multimedia information as cybermedia. Currently cybermedia consists of audio
information (e.g., Internet Talk Radio), video information (e.g., mpeg videos), a-v programming (movies),
3-D images and animations (e.g., 3DRender files), interactive algorithmic animations via telnet,
conventional text + graphics, and much more. Laboratory work is underway to bring the entire spectrum
of sensory information under the cybermedia rubric, with digitized touch the next cybermedium.1

Pelo excerto, é possível perceber que o ciberespaço, diferente do termo cibermídia, pressupõe um imanente
contato com a realidade virtual. Embora exista essa proximidade conceitual, os termos não se confundem.

1 Ciberespaço, nesse sentido, é a união de fontes de informação multimídias que são acessíveis através das redes digitais por meio de

tecnologias de cliente-servidor. Como um trabalho de caracterização, nos referimos a todo o corpo da informação multimídia, como
CyberMedia. Atualmente a CyberMedia é composta por informações de áudio (por exemplo, Internet Talk Radio) por exemplo,
informações (vídeo, vídeos mpeg), programação av filmes), imagens 3D e animações (por exemplo, os arquivos 3DRender), animações
interativas algorítmicas via telnet, o texto convencional + gráficos,e muito mais. O trabalho do laboratório está em andamento para trazer
todo o espectro de sentidos informação sob a rubrica CyberMedia [...].(BERGHEL; BERLEANT, 1994., Acesso em: 06 mai. 2010,
tradução nossa)

968
Para reiterar as diferenças entre eles, é conveniente citar as palavras de Maria Regina Momesso de Oliveira e
Maria Silvia Olivi Louzada. Segundo as quais:

[Pode-se] afirmar que a cibermídia é diferente de ciberespaço, na medida em que não tem
necessidade, especificamente, da ´imersão´ em uma realidade virtual. Ao contrário de ciberespaço, a
experiência com a cibermídia permite ao usuário distinguir a realidade física da digital, ou seja, o
ciberespaço é constituído de um espaço imaterial por onde trafega a informação e independente da
conexão de sentidos, enquanto cibermídia precisa, obrigatoriamente, fazer um uso efetivo da
informação vinda do mundo real/material. (OLIVEIRA; LOUZADA, 2008, p. 202).

Feitas essas distinções, é valido mencionar que no campo da cibermídia arrojam-se continuadamente diversas
práticas de discurso, que produzem diferentes perspectivas de representação e de identidade acerca do que se entende por
“autor”.
Ao investigar a autoria nesse lugar discursivo, é forçoso que se contemple também uma reflexão acerca da
intelectualidade e do saber na contemporaneidade.
Para isso, elegeu-se como corpus e-textos, vídeos, e imagens do site CPFL Cultura, notadamente discursos que
tratem do Café Filosófico: uma série de encontros e palestras sobre temas fundamentais de diversas áreas do saber, como
a Psicanálise e a Filosofia.

Fig. 01: Tela de apresentação do Café Filosófico transmitido na TV Cultura.


Acesso em: 30 ago. 2010 – Disponível em:
<http://4.bp.blogspot.com/_F5J_5LLpJco/Sj7qbVEyksI/AAAAAAAAAlY/JQEg8qqhhKI/s400/CAF%C3
%89+FILOS%C3%93FICO+1.jpg>

O programa Café Filosófico consiste em uma parceria firmada em 2003 entre a CPFL Energia e a Fundação
Padre Anchieta, visando divulgar os encontros culturais tanto na mídia televisiva – TV Cultura – quanto por meio da internet
– site da CPFL Cultura.
Frente a esse corpus, pode-se retomar o questionamento precípuo do trabalho e se perguntar como é possível
observar a questão da autoria nos encontros do Café Filosófico. Diferente do que propõe Foucault, a função-autor há de ser
examinada tanto em discursos escritos - manifestações discursivas da empresa – quanto na oralidade dos intelectuais.

969
Diante desse objeto de análise, surgem questões como: existe um autor-intelectual que fala ou o mesmo é parte da
estratégia discursiva de uma empresa? Quais são as estratégias discursivas que o sítio em questão apresenta e como ela
se relaciona à produção de práticas representativas atinentes à intelectualidade?
Para enfrentar esses questionamentos, o trabalho tem sua base teórica em Análise de Discurso Francesa
derivada de Michel Pêcheux e em Michel Foucault, sobretudo na perspectiva de se considerar o saber e o poder como
âmbitos inerentes e indissociáveis. (FOUCAULT, 2000). Ao relacionar esse escopo teórico ao objeto proposto, retoma-se o
questionamento foucaultiano para investigar se o discurso do sítio interfere na fala dos palestrantes.
Em resumo, surge a seguinte questão: existe uma livre autoria nas palestras ou uma aporia2 que contrapõe a fala
dos intelectuais a um discurso maior?
Antes de desafiar essa questão e adentrar na análise dos discursos que permeiam o Café Filosófico e o site da
CPFL Cultura, é de suma importância que se trace um breve histórico da empresa.

FIG. 02: Tela inicial do site da CPFL Cultura.


Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/>. Acesso em: 12 ago. 2010.

2 Aporia: em Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), problema lógico, contradição, paradoxo nascido da existência de raciocínios igualmente
coerentes e plausíveis que alcançam conclusões contrárias (HOUAISS, 2005).

970
2. UM COMPÊNDIO À HISTÓRIA DA CPFL CULTURA & ENERGIA

O sítio em questão advém da CPFL Cultura, uma empresa vinculada à Companhia Paulista de Força e Luz, que
surgiu com o objetivo de incentivar, divulgar ou patrocinar eventos culturais.

FIG. 03: Espaço Cultural CPFL em Campinas/SP.


Disponível:<http://3.bp.blogspot.com/_VAPFALEQjl8/SojJT-d1e1I/AAAAAAAAAXk/FSV-
StaYYnA/s400/EspacoCulturalCPFL.jpg >. Acesso em: 11 ago. 2010.

O grupo CPFL Energia surgiu em 1912 a partir da junção de quatro pequenas empresas de energia que atuavam
no interior paulista. "[...] em 1927 a companhia foi adquirida pela American & Foreign Power (Amforp), – empresa do grupo
norte-americano Electric Bond & Share Corporation (Ebasco), ligado a General Eletrict, permanecendo sob seu controle até
1964, quando passou ao controle da Eletrobrás, do governo Federal. Em 1975, o controle acionário da CPFL Paulista foi
transferido para a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), do governo do Estado de São Paulo”.
No ano de 1997, a empresa passou por um processo de privatização, que levou a mesma a ser controlada pela
"VBC Energia (Grupo Votorantim, Bradesco e Camargo Corrêa), pelo Fundo de Pensão dos Funcionários do Banco do
Brasil (Previ), e pela Bonaire Participações (que reúne os fundos de pensão Funcesp, Sistel, Petros e Sabesprev)."
A partir dessa reformulação em sua gestão, a empresa passou a se pautar por um discurso de maior participação
social. Prova disso é que a empresa instituiu, em 2003, a CPFL Cultura. Segundo o sítio da empresa: "[A CPFL Cultura se
constitui enquanto] um amplo programa cultural que promove reflexões sobre os desafios e oportunidades da
contemporaneidade.” 3
A programação cultural da empresa teve início com o Café Filosófico, [um] ponto de encontro dos mais renomados
intelectuais com os mais diversos públicos, onde se organizam teorias e onde informações são transformadas em
conhecimento. Os encontros do Café Filosófico ganharam maior divulgação e popularidade, sobretudo graças à transmissão
dos encontros pela Tv Cultura. Essas transmissões ajudaram a confirmar e robustecer a CPFL Cultura como uma
importante empresa no trato com a intelectualidade e com o saber. Passados sete anos de sua criação, a empresa, com
encontros e palestras anteriormente restritos à cidade de Campinas, ampliou seu campo de ação e chegou a mais seis
cidades da área de atuação da CPFL Energia: Bauru, Caxias do Sul, Santos, São Paulo, Sorocaba e Ribeirão Preto.

3 CPFL CULTURA. O que é? Institucional. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/o-que-e/>. Acesso em: 05 ago. 2010.

971
Alguns números postados pelo site da CPFL Cultura retratam a importância da empresa no trato com a cultura e
com o saber. Segundo o sítio, em 5 anos de atividade, foram 2,5 mil atividades realizadas; mais de 400 mil freqüentadores;
260 programas editados, 4 exibições semanais na TV, com 150 mil telespectadores por exibição na Grande São Paulo
(fonte: IBOPE); mais de mil registros em vídeo no acervo. Além dessas importantes formas de divulgação, uma forma
específica, não citada, nos chama a atenção: sítio da CPFL Cultura. Eis o objeto a ser analisado pelo presente trabalho.

3. SER OU NÃO SER? EIS A QUESTÃO: CPFL CULTURA E O DISCURSO DA ALTERIDADE

Como vimos, a CPFL Cultura é um empresa vinculada à CPFL Energia que atua na divulgação de eventos,
espetáculos artísticos e palestras que a instituição promove e patrocina. O site da empresa desempenha papel importante
para execução dessa função, pois atua como com um catálogo virtual dos eventos oferecidos, trazendo suportes de
interação, como vídeos, podcasts e entrevistas.
Em sua tela inicial – representada na fig. 02 - o site da CPFL Cultura apresenta um mosaico de fotos relacionadas
aos eventos que a instituição patrocina ou divulga. Estes envolvem desde a apresentação de vídeos do Café Filosófico, até
informações sobre teatro, concertos e televisão.
Dos conteúdos apresentados, nos chama a atenção o modo como a CPFL Cultura é definida em sua
apresentação. Consta na subseção O que é? da seção Institucional do sítio que:

[...] a CPFL Cultura não é apenas um espaço, mas um conceito. [...]


A CPFL Cultura prima pela multiplicidade, o diálogo e a diferença e, desta maneira, busca cruzar as
fronteiras dos públicos, das disciplinas e das visões de mundo para refletir, experienciar e inventar o
contemporâneo. (CPFL, online. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/o-que-e/>. Acesso
em: 05 ago. 2010)

Pelo excerto, nota-se o discurso de uma instituição que pretende se apresentar como democrática e livre de
arbitramentos sobre o saber. A utilização de palavras como “multiplicidade”, “diálogo”, e “diferença" contribui para compor
essa formação discursiva.
Essa abordagem discursiva que supostamente contempla a alteridade, a multiplicidade e a democracia, só é
legítima por ser enunciada em um contexto histórico em que é preponderante a adoção de um discurso sócio-ambiental por
parte das empresas para que as mesmas tenham relevância no mundo empresarial. Desse modo, no mundo
contemporâneo,

É crescente a valorização das questões ambientais no segmento empresarial, atendendo às novas


exigências legais, de mercado e da sociedade em geral. O enfoque econômico, antes preponderante
no planejamento, vem sendo substituído por um conceito mais amplo de desenvolvimento sustentável
[...] (SILVA & QUELHAS, 2006, p. 385)

Em outros termos, para que uma empresa possua uma boa fama empresarial na modernidade líquida (BAUMAN,
2005), não basta que ela apresente bons produtos ou serviços adequados, mas que a mesma atue em observância aos
componentes sociais, ambientais e culturais. O termo “sustentabilidade” acompanha essas exigências e, em razão disso,
não se restringe ao campo ambiental. Assim sendo, o conceito de desenvolvimento sustentável

[...] vem se aprimorando ao longo do tempo, num processo contínuo de reavaliação da sociedade em
relação ao crescimento econômico e meio ambiente. [...] Por seu lado, o segmento corporativo tem

972
buscado o equilíbrio entre o que é viável em termos econômicos e o que é ecologicamente sustentável
e socialmente desejável. (SILVA & QUELHAS, 2006, p. 393).

A partir disso, ao se posicionar como um “conceito que prima pela multiplicidade”, a CPFL Cultura parece aderir a
esse discurso administrativo contemporâneo, no qual a observância de questões ambientes é de suma importância. Isso
fica evidente, quando o próprio sítio destaca que:

Sustentabilidade e responsabilidade corporativa fazem parte da estratégia da CPFL Energia. Além de


agir para promover e disseminar a cultura no País, a empresa incorpora o desenvolvimento sustentável
e inclusivo em sua visão e em suas atividades. (CPFL, online. Disponível em:
<http://www.cpflcultura.com.br/site/o-que-e/>. Acesso em: 05 ago. 2010).

A fim de cumprir essa demanda empresarial hodierna de engajamento social, cultural e ambiental (SHOMMER,
2000, p. 146), a empresa, por meio do sítio, se vale de termos como “sustentabilidade” e “responsabilidade corporativa”,
para criar o efeito de sentido de uma instituição responsável socialmente. Ao proceder desse modo, fica evidente a FD4 da
responsabilidade social empresarial, que tem como lugar discursivo um discurso propagandístico próprio da modernidade
liquida (BAUMAN, 2005).
Outra FD constante no sítio da empresa, que corrobora para a adequação ao referido discurso empresarial
proposto, é a da imparcialidade. Segundo o site:

Todas as atividades realizadas pela CPFL Cultura são gratuitas. A programação é aberta a todas as
correntes de pensamento, sem predominância de nenhuma ideologia, a fim de contribuir para o
aproveitamento das possibilidades do tempo presente e planejamento futuro. (CPFL, online, grifo
nosso. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/o-que-e/>. Acesso em: 05 ago. 2010, grifo
nosso)

Assim, ao enunciar que a empresa atua “sem a predominância de nenhuma ideologia”, fica evidente a tentativa de
criar um efeito de sentido de uma empresa imparcial, sem vínculos políticos, econômicos ou de qualquer outra espécie.
Esse discurso supostamente neutro e imparcial é importante para que a empresa possa galgar uma melhor visibilidade
mercadológica.
O usuário ou internauta que tem acesso ao sítio, tende a ver a empresa de forma positiva, enquanto uma
instituição que incentiva o saber e a cultura. Por meio de um discurso situado historicamente e marcado ideologicamente, o
sítio consegue criar o efeito de sentido de empresa democrática, que partilha de um saber sem paradigmas, “sem
predominância de ideologias”.
Deve-se destacar que essa pretensa isenção da empresa se contradiz no próprio discurso da mesma. Pois, para
ser um "conceito" que se proponha a "inventar o contemporâneo", é preciso antes intervir no mesmo, alterá-lo, configurá-lo.
A simples realização desses atos já implica em uma mínima participação, ou conforme os pressupostos da Análise do
Discurso, já implica em tomar uma posição ideológica. (PECHÊUX, FUCHS, 1997). Ao proceder desse modo, o discurso a
empresa parece repetir a máxima shakespeareana, no qual “o ser ou não ser5” parcial é a questão primacial.

4 Doravante, tartar-se-á formação discursiva como FD.


5 A famosa frase “ser ou não ser”, constante na obra Hamlet de William Shakespeare, pode ser considerada uma aporia, uma vez o termo
também pode designar a figura de retórica referente aos momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a
forma de se expressar ou de agir.

973
4. INTELECTUAL, UM PONTO DE FUGA DA FUNÇÃO-AUTOR?: O CAFÉ FILOSÓFICO & A FUNÇÃO-AUTOR
ENTRE DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES

No site da CPFL Cultura, o Café Filosófico pode ser acessado de duas formas: por meio dos vídeos – constantes
na seção multimídia - referentes a eventos já ocorridos; ou na seção ao vivo – fig. 03 - em que constam as apresentações
programadas, o horário da transmissão em tempo real, a interatividade pelo twitter, facebook, bem como a possibilidade de
fazer perguntas e questionamentos aos palestrantes.

FIG. 04: Tela seção ao vivo do site da CPFL Cultura.


Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/category/aovivo/>. Acesso em: 30 ago. 2010.

Quando o sujeito-navegador se põe em contato com uma dessas subseções, ele tem acesso a uma série de
vídeos que descrevem a atuação de cada intelectual, o assunto tratado e o local onde foi proferida a palestra. Preceitos
basilares a construção da função-autor. (FOUCAULT, 2002, p. 280)
Nesse contexto do site e dos Cafés, o intelectual pode ser considerado como um ponto de fuga6 7 dessa função.
No sentido geométrico do termo, é a direção ou o instrumento em que a autoria se evidencia por meio do discurso do site;
no sentido literal, é a possível válvula de escape dessa função. Dito de outro modo, ao mesmo tempo em que atua sob uma
alcunha posta e delimitada historicamente, o intelectual evidencia sua condição empírica ao suscitar problemas filosóficos,
existenciais, lingüísticos, etc.
Para que essa perspectiva fique mais clara, pode-se tomar como exemplo a descrição discursiva que o sítio dá a
dois palestrantes: o músico Lobão e o cientista Max Sandor.
Na introdução da palestra “A volta dos deuses embusteiros”, do músico Lobão, o apresentador categoriza
discursivamente o palestrante como "um cara que já expôs muito [...] que acaba revelando as verdades que as pessoas

6 Ponto de fuga: o ponto de convergência das linhas que descrevem a profundidade dos objetos; é a direção para onde o objeto segue; se
aprofunda. (HOUAISS, 2005).
7 A utilização do termo “ponto de fuga”, ao tomarmos a duplicidade de significação – a da literalidade e da definição geométrica, visa

também suscitar

974
precisam saber [...] encapsulado em uma máscara jocosa8". No artigo da palestra, ao descrevê-la e fazer referência ao
palestrante, o sítio enuncia "O papel do artista como desbravador, como desestabilizador9".
Já a descrição do palestrante Max Sandor contempla um recorte discursivo recorrente no sítio: a alteridade.
Segundo a descrição, Max Sandor:

[...] é cientista na área da matemática e computação, com contribuições de vanguarda no campo da


Inteligência Artificial e Robótica. Formado em engenharia elétrica, é também Indologista, respeitado
pelas traduções dos antigos textos budistas na linguagem Pali. É Babalawo e Oluwó por Ilé Ifé. Como
consultor, trabalhou com ganhadores do Oscar, de medalhas olímpicas e do Prêmio Nobel, e também
nas favelas de Bombaim e para as vitimas do Khmer Vermelho no Camboja. (CPFL, online, disponível
em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/09/21/max-sandor/>. Acesso em: 30 ago. 2010)

Ao proceder desse modo, fica evidente a função-autor, pois é aquele sujeito já categorizado por certos aparatos
discursivos, que vai apresentar sua obra, nesse contexto, a palestra. No caso de Lobão, há a descrição de um autor
“desbravador, desestabilizador”; no caso de Max Sandor, um “autor” múltiplo, ao mesmo tempo cientista e pai-de-santo.
Esses dois exemplos são propícios para se perceber como o discurso do sítio de antemão constrói uma "projeção"
(FOUCAULT, 2002, p. 280) do palestrante. Quando os descreve, o discurso do site revela "os pronomes pessoais, os
advérbios de tempo e de lugar, a conjugação dos verbos” (ibidem) adequados à construção dos efeitos discursivos que se
quer dar aos mesmos.
Ao pensar o intelectual como “o ponto de fuga” para onde a noção de autoria converge, é possível observá-lo
enquanto fragmento de uma atividade intelectiva muito maior: a atuação da própria empresa. Embora isso não seja
expresso, pelas dispersões discursivas é possível perceber que o "conceito" que a empresa julga “ser” é, em um primeiro
momento, mais importante do que a contingência da fala do próprio intelectual. Nesse sentido, as palestras, os encontros,
os cafés, os próprios “autores” aparecem como instrumentos de um saber institucionalizado, pelo qual há padrões e regras
a cumprir.
Contudo, quando os palestrantes começam a falar, a atuação discursiva do sítio, já inscrita na memória discursiva
recente do sujeito-navegador, se esmorece frente a sujeitos empíricos que propõem problematizações distintas. Com o
despojamento que lhe é peculiar, Lobão questiona o contato com o sagrado, com entidades, com a morte, revela aspectos
de sua própria vida, para fazer o sujeito-navegador questionar o ceticismo, a materialidade, o abstracionismo e o
imediatismo da vida contemporânea. Já Max Sandor, aborda a tríade religião, ciência e tecnologia, levando o sujeito-
navegador a perceber a importância do equilíbrio entre esses elementos, uma vez que a falta dessa estabilidade é um dos
fatores de desorganização da vida hodierna.
Assim, quando a empresa enuncia em seu sítio que determinado intelectual profere certa palestra ou curso, ela
trata o mesmo como mera posição ou função que atua em consonância aos ditames discursivos da mesma e que, por isso,
também se apresenta “sem dogmas”, pretensamente democrático, quase apolítico. Contudo, quando o sujeito-navegador
tem acesso aos vídeos, e se coloca frente aos questionamentos filosóficos, existenciais, religiosos, propostos pelo
intelectual em questão, ele não se vê frente a uma função determinada ou a uma projeção engendrada por um discurso
cibermidiático, mas frente a um sujeito empírico que o leva a problematizar uma dada contextura.
Em suma, o que ocorre no sítio e nos vídeos dos Cafés é um diálogo de contrários10, uma aporia que insurge
contra a clara delimitação do que é ser "autor". Se por um lado, a função-autor é exercida quando passa pelo filtro

8 CPFL CULTURA. A volta dos deuses embusteiros. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/12/01/integra-a-volta-dos-

deuses-embusteiros-lobao-campinas/>. Acesso em 30 ago. 2010


9 Ibidem.

975
discursivo do sítio, a mesma é confrontada quando o intelectual atesta sua posição empírica e conduz os "expectadores" à
“trilha que leva [ao questionamento e] ao malfeito” (FULLER, 2006, p.29).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se o artigo ressaltando a importância do tema analisado, tanto por perpassar um campo de crescente
influência na contemporaneidade, tanto pela quantidade exígua de estudos sobre o mesmo.
A finalidade do trabalho foi suscitar como a intelectualidade, o saber e questão da autoria são tratados
discursivamente no cenário da internet. Utilizou-se como corpus e-textos da subseção O que é? do site CPFL Cultura, bem
como informações do Café Filosófico disponíveis no site. Esses objetos de análise nos auxiliaram a compreender como o
discurso de uma empresa subsume a um momento histórico de enunciação em que se demanda discursos
propagandísticos ligados a questões sociais e ambientais.
A partir disso, foi possível perceber como essa estratégia de se criar um discurso pretensamente inerme e
democrático, de sustentabilidade, de apoio ao saber, corrobora para a construção de efeitos de sentido de uma empresa
dita moderna, preocupada com demandas culturais, sociais, e ecológicas. Esses efeitos denotam uma posição instituidora
do saber, que determina quais falas intelectuais participarão dos encontros e dos cafés.
Esse modus operandi da empresa é determinante à instituição de uma função-autor dos palestrantes, bem como à
inscrição dessa função na memória discursiva dos sujeitos navegadores. Assim, ao cumprir com uma demanda empresarial
moderna e se enveredar no campo da cultura, da intelectualidade e do saber, o sítio acaba por padronizar conceitos,
instituir estratégias e determinar os “autores” participantes desse jogo discursivo.
Apesar do intelectual atuar, em um primeiro momento, em consonância ao discurso do sítio, por meio de sua fala,
exposta nos vídeos, o mesmo consegue situar-se empiricamente frente a um sujeito navegador, que passa a se defrontar
não somente com uma posição discursivamente delimitada, mas frente a um sujeito que o faz questionar sua própria
realidade.
Como conseqüência desse embate, há um diálogo de contrários, ou conforme Aristóteles, uma “aporia” que
contradiz a clara delimitação do que é ser "autor" segundo o discurso do sítio.
A partir disso, se por um lado a função-autor é determinada quando o sítio emite seu discurso, a mesma é
confrontada quando o intelectual atesta sua posição empírica, apresenta problemas filosóficos, sociais da
contemporaneidade que conduzem os "expectadores" a uma problematização de sua própria condição no mundo.
No que concerne às condições de possibilidade de recepção, o usuário do sítio se vê frente a uma dupla aporia:
em primeiro lugar, quando o sítio se coloca como imparcial e ao mesmo tempo se propõe a intervir em uma realidade para
inventar o contemporâneo; e em segundo lugar, quando suscita a “função-autor” em seu discurso e, ao mesmo tempo, abre
a possibilidade do usuário defrontar o empiricismo e a problematicidade da fala de um palestrante.
Ao concluir, espera-se que o texto tenha traçado satisfatoriamente as bases para o entendimento do tema
abordado, e desta forma, possibilitado uma macro visão exemplificativa de como a cibermídia atua na abordagem da
intelectualidade, o saber e a questão da autoria.

10Para Aristóteles (2001, p. 148), a aporia resulta de um raciocínio se achar encadeado por argumentos opostos, sentindo-se incapaz de
avançar ou retroceder.

976
5. REFERÊNCIAS

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BAUMAN, Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BERGHEL, H. BERLEANT D. . The challenge of customizing cybermedia. Heuristics. 7. Summer/Fall 1994, pp. 33-43.
Disponível em : <http://ifsc.ualr.edu/jdberleant/papers/challenge.pdf> Acesso em : 06 mai. 2010.

DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. 6.ed. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.

________________. Ditos e Escritos: Estética – literatura e pintura, música e cinema (vol. III). Rio de Janeiro : Forense
Universitária, 2002. p. 264-298

FULLER, Steve. O intelectual: o poder positivo do pensamento negativo. Trad. Maria da Silveira Lobo. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2006.

MCADAMS, M. Cyberspace: two flawors. Disponível em: <http://mindymcadams.com/cybermedia/cyberspace.htm>.


Acesso em: 15 mai. 2009.

OLIVEIRA, Maria Regina M. de; LOUZADA, Maria Sílvia O.. Jornalistas e blogueiros: cindidos nas malhas identitárias da
cibermídia. In: FIGUEIREDO, Maria Flavia et al. Sentidos em Movimento: identidade e argumentação. Franca: Unifran,
2008.

PECHÊUX, M.; FUCHS, C. A propósito da análise automática do discursco: atualização e perspectivas. In: GADET, F.;
HAK, T. (org). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pecheux. Tradução Bethania S.
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SILVA, Lílian Simone Aguiar da; QUELHAS, Osvaldo Luiz Gonçalves. Sustentabilidade empresarial e o impacto no custo de
capital próprio das empresas de capital aberto. Gestão e Produção. vol.13, n.3, set-dez. 2006, pp. 385-395.

SCHOMMER, Paula Chies. Investimento social das empresas: cooperação organizacional num espaço compartilhado.
Salvador: NPGA/UFBA, 2000. (Dissertação de mestrado).

6. WEBIBLIOGRAFIA

CPFL CULTURA. A volta dos deuses embusteiros: Lobão. Campinas. Disponível em:
<http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/12/01/integra-a-volta-dos-deuses-embusteiros-lobao-campinas/>. Acesso em 30
ago. 2010 [vídeo]

_______________. O que é? Institucional. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/o-que-e/>. Acesso em: 05


ago. 2010

________________. Max Sandor. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/09/21/max-sandor/>. Acesso


em: 30 ago. 2010

CPFL ENERGIA. História. Disponível em: <http://www.cpfl.com.br/HistóriaCPFLEnergia/tabid/106/Default.aspx>. Acesso


em: 06 ago. 2010

977
MARIA REGINA MOMESSO
Doutora Lingüística – UNESP/Araraquara-Sp, Coordenadora, Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação -
Mestrado em Linguística da Unifran, e pesquisadora do grupo de pesquisa GTEDI, UNIFRAN. Doutorado. E-mail:
reginamomesso@uol.com.br e/ou reginamomesso@unifran.br .

MAURICIO JUNIOR RODRIGUES DA SILVA


Graduado em História – UNESP/Franca-Sp. Mestrando do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Linguística da
Universidade de Franca (UNIFRAN). Discente pesquisador do grupo de pesquisa GTEDI, UNIFRAN. Mestrando. E-mail:
mauriciojrs@bol.com.br .

978
Posicionamento e Projeto Estético no teatro de Alfred de
Musset: da leitura à cena

MONTEIRO, Luiz Paulo dos Santos


(UFRJ)

1. Introdução:

Propor uma releitura da obra dramática de Alfred de Musset pressupõe a


observação de dois espaços de realização diferentes: o primeiro, a poltrona e, o segundo, a cena francesa. Se o fracasso
da encenação da peça La Nuit Vénitienne, em 1830, no teatro Odéon, torna-se emblemático para a carreira de Musset e o
afasta da cena francesa, a decisão de escrever peças de teatro para a leitura nos reserva algumas interrogações. A leitura
de uma peça de Musset que integra a coletânea Un spectacle dans un fauteuil (1832-1834), não é entendida por nós,
apenas, como consequência da impossibilidade do autor de fazer representar esse texto. Além disso, o afastamento da
cena, por parte de Musset, é temporário em sua carreira: em 1847, a peça Un caprice, cujo texto havia sido publicado na
Revue des Deux Mondes em junho de 1837, é encenada na Comédie-Française (Cf.LESTRINGANT, 1999, p.681).
Após esta encenação, Alfred de Musset adapta duas de suas peças que integram a coletânea de Un spectacle
dans un fauteuil (1834) escritas em prosa e as mesmas são representadas, são elas: André del Sarto (1833) e Les caprices
de Marianne (1833). O autor escreve, ainda, peças voltadas apenas para a representação como Louison, comédia em
versos representada no Théâtre-Français, em 1849. De 1847 a 1851, Alfred de Musset tem dez de suas peças
representadas em teatros franceses (Cf.LESTRINGANT, 1999, p.670-687). Cabe ressaltar que Musset investe na
representação de seus textos para a cena, após a nomeação de Buloz, editor que o contratara para escrever na Revue des
Deux Mondes (Cf. MUSSET, 1990, p. XL), como administrador da Comédie Française. Desse modo, Musset repensa seu
trabalho e investe em um empreendimento artístico que descartara muitos anos atrás. Essa mudança em seus
investimentos genéricos compreende uma nova forma no “dizer” do escritor, provocando uma nova leitura de sua obra.
2. Quadro teórico:

Nossa leitura se desenvolve em consonância com o projeto de tese entitulado O projeto estético de Alfred de
Musset: cena genérica, trajetória e posicionamento. O tema desse projeto é o estudo da cena genérica das peças de teatro
para a leitura nas duas coletâneas de Un spectacle dans un fauteuil (1832-35), das peças adaptadas para a cena, e
daquelas escritas para serem diretamente representadas. Esse estudo se desenvolve à luz dos conceitos dos conceitos de
paratopia enunciativa da análise do discurso francesa de Dominique Maingueneau e de trajetória do sociólogo Pierre
Bourdieu.
Nessa perspectiva, faz-se importante descrever a abordagem crítica que sustenta nossa releitura. Dominique
Maingueneau define o fato literário como um ato de comunicação complexo. Segundo ele, refletir sobre a enunciação nos
conduz à leitura de um texto como um “conglomerado” de marcas linguísticas, sendo o discurso literário uma atividade que
não está desvinculada das instituições que norteiam a enunciação (Cf. MAINGUENEAU, 2001, p.19). Maingueneau atenta
para o fato de que as teorias linguísticas não separam os planos linguístico e extralinguístico, apresentando-nos a noção de
situação de enunciação.

979
A situação de enunciação pode ser entendida como sendo o contexto empírico da produção do enunciado, ou
como o autor explica: “a situação implicada pela enunciação de tal ou tal gênero de texto, a encenação da fala”1 A situação
de enunciação nos permite associar o texto a seu contexto. E nessa relação, não entendemos o contexto como algo exterior
à obra. A produção de um texto literário é gestora de seu próprio contexto. A obra se faz presente no mundo que pretende
representar por meio de sua enunciação, interferindo nessa representação que ela mesma constrói (Cf. MAINGUENEAU,
2001, p.19).
A relação entre o texto do autor e a recepção do leitor se processa por meio de um dispositivo ritualizado que
sugere uma negociação entre as partes. Assim, destacamos o conceito de cena de enunciação, sendo esta a situação de
que o texto pretende surgir, conjunto de marcas enunciativas que caracterizam o sentido de uma obra como fruto da
negociação entre as posições do autor e do receptor, envolvendo, ainda, a condição do escritor na sociedade, os modos de
elaboração e de difusão de um texto, como destaca Dominique Maingueneau:
(...) A obra é indissociável das instituições que a tornam possível: não existe tragédia
clássica ou epopéia medieval fora de uma certa condição dos escritores na sociedade, fora
de certos lugares, de certos modos de elaboração ou de circulação de textos.
(MAINGUENEAU, 2001, p.19)

A cena de enunciação desenvolve-se em três planos complementares: a cena englobante, a cena genérica e a
cenografia. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso da obra, de modo que o leitor, ao ler o texto, possa
identificar a que tipo de discurso ele se associa (religioso, político, filosófico). Marcas enunciativas que permitem ao leitor
seguir os roteiros de leitura (Cf. MAINGUENEAU, 1996, p.46-49). A cena genérica define-se como um conjunto de normas
próprias a determinado gênero, dimensionando a expectativa do público (Cf. MAINGUENEAU, 2003, p.13).
No que concerne à obra de Alfred de Musset, a criação de um gênero de teatro para a leitura, com as duas
publicações de Un spectacle dans un fauteuil (1832-34), prevê uma negociação com o público para legitimar esse gênero
de teatro. Assim, Alfred de Musset incita o leitor a reconhecer seus textos como dramáticos, mesmo sem os fazer encenar,
permitindo, assim, que suas peças integrassem o discurso literário. A cenografia enunciativa é a situação enunciativa de um
texto, sendo este oral ou escrito, o espaço, o tempo e as condições do enunciador e do co-enunciador, criados pelo autor
para legitimar sua enunciação. A cenografia enunciativa não deve ser entendida como algo preestabelecido, pois ela varia
de acordo com a época e com a sociedade na qual a criação se situa (Cf. MAINGUENEAU, 1996, s.v. scénographie).
Para fundamentar nossa leitura, baseamo-nos, do mesmo modo, em três conceitos do sociólogo Pierre Bourdieu:
campo, posicionamento e trajetória. Campo é um conceito que designa grupos sociais, situados em uma macroestrutura
social. Tais “microcosmos sociais” (BOURDIEU, 1994, p.68) atingem os ramos da política (campo político), da pintura
(campo pictórico), da literatura (campo literário), etc. Campo pode ser entendido como “microcosmos sociais, espaços
separados e autônomos (...)” (BOURDIEU, 2002, p.207) de dominação e sujeição que se definem a partir dos interesses de
seus agentes e de acordo com a disponibilidade dos diferentes tipos de capital próprios a um determinado campo. Cada
campo possui regras próprias de funcionamento relativas a sua própria história. Bourdieu descreve o conceito, no que se
refere ao campo literário:

O campo literário(etc.) é um campo de forças a agir sobre todos aqueles que entram nele, e de
maneira diferencial segundo a posição que aí ocupam (seja, para tomar pontos muito
afastados, a do autor de peças de sucesso ou a do poeta de vanguarda), ao mesmo tempo

1
“(...) la situation d’énonciation est la situation impliquée par l’énonciation de tel ou tel genre, la mise
en scène de la parole.” MAINGUENEAU, Dominique. Linguistique pour le texte littéraire. 4ed. Paris:
Nathan, 2003, p. 10. Tradução do autor exceto quando explicitamente referido.

980
que um campo de lutas de concorrência que tendem a conservar ou a transformar esse campo
de forças. (BOURDIEU, 2002, p.262-263)
A estrutura de um campo corresponde à forma de distribuição de capital em seu interior. O capital distribuído de
forma desigual provoca um antagonismo entre os agentes dominantes, maiores acumuladores de capital específico ao
campo, e os dominados, aqueles que acumulam tal capital em menor quantidade. A distribuição de capital em um campo é
fruto de uma relação histórica de força entre agentes e instituições que coabitam em seu interior. A tentativa de mudança na
estrutura do campo envolve uma luta por apropriação de capital específico ao campo, que alteraria a posição dos agentes.

Assim como outros campos, o campo literário é um espaço social simbólico, onde seus agentes disputam capitais,
mediante lutas simbólicas. Essas lutas não se dão de forma física, corporal, são lutas entre agentes que ocupam diferentes
posições no campo literário e investem para manter a estrutura do campo com suas normas e conceitos, ou lutam para a
implementação de novos parâmetros para a produção do discurso literário, de acordo com seus interesses. Pierre Bourdieu
defende a idéia das relações sociais associadas à prática do jogo, da negociação, que pressupõe estratégias, tomadas de
posição, mediante as possibilidades de obtenção de capital. Bourdieu comenta:

As estratégias dos agentes e das instituições que estão engajadas nas lutas literárias, ou
seja, suas tomadas de posição (específicas, estilísticas, por exemplo ou não específicas,
políticas, éticas, etc.), dependem da posição que eles ocupam na estrutura do campo, na
distribuição do capital simbólico específico, institucionalizado ou não(...). (BOURDIEU,
1994, p.71)

Quanto a posicionamento, o conceito refere-se a uma “identidade enunciativa forte, em um lugar de produção
discursiva bem especificada”. (MAINGUENEAU, 2002, s.v. positionnement) Dominique Maingueneau explora um duplo
sentido do termo posição, aliando “tomada de posição” e “posição militar”. Essa ligação nos remete aos conflitos
interdiscursivos, dos quais as identidades enunciativas participam a fim de se imporem umas perante as outras. Em uma
obra literária, um posicionamento não se restringe apenas aos conteúdos, podendo abranger as diversas dimensões do
discurso. Ele se manifesta também nas escolhas de gênero, de uma citação, etc. Os posicionamentos de um autor estão
ligados a sua postura no meio social, os lugares por ele freqüentados e seus investimentos sociais ou estéticos, sendo
possível um escritor posicionar-se de formas diferentes, seguidamente, ou simultaneamente (Cf.MAINGUENEAU, 2006,
p.151).

O investimento de um escritor em um determinado gênero marca uma estratégia de posicionamento no campo


literário, isso porque, a legitimação de uma obra acarreta, de certa forma, uma intervenção na hierarquia dos gêneros
instituída em seu interior. Dependendo da posição ocupada no campo literário, o autor escolhe um determinado gênero em
detrimento de outro, contando que o gênero escolhido lhe proporcione a oportunidade de legitimar o que diz. A mensagem
que o autor pretende enunciar com seu texto deve estar ligada a um gênero para que o leitor possa identificá-lo, interpretá-
lo e, com isso, aderir ao seu discurso, tornando a comunicação literária bem sucedida (Cf. MAINGUENEAU, 1996, p.15).

A relação cena, leitura e crítica na obra de Musset, possibilita-nos o emprego do conceito de trajetória. Definimos
este conceito com Bourdieu como “série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor nos estados
sucessivos do campo literário” (BOURDIEU, 1994, p.78). A trajetória de um autor se constitui a partir da publicação em uma
determinada revista, em uma dada época, por acordos com editores, pela filiação a um determinado grupo, investimento em
determinado gênero ou estética. A trajetória se caracteriza também pela sucessividade, ou seja, pelas diferentes posições
históricas de um autor no campo e esta se refletirá em suas escolhas. Essa posição “histórica” no campo, faz com que o
escritor avalie seu trabalho e seus investimentos, muitas vezes inconscientemente, e, em conseqüência disso, também

981
reavalie suas estratégias e invista em novos projetos ao longo de sua carreira.

2. Da leitura à cena

Alfred de Musset, ao publicar textos dramáticos para a leitura, recusando a cena, posiciona-se no campo literário,
em contraposição a outros escritores que escreviam peças de teatro voltadas para a representação. Segundo as regras
vigentes no campo literário, nos anos 1830, para ser reconhecido como grande escritor, o poeta deveria escrever para as
cenas de prestígio dos teatros franceses subvencionados e frequentados por um público composto por membros das elites
social e intelectual da época, como fizera Musset ao tentar encenar sua peça La nuit Vénitienne no teatro Odéon
(Cf.NAUGRETTE, 2001, p.83).

Mas, se essa posição de Musset nos parece de ruptura extrema com o grupo dos poetas que o cercavam, isso
não se concretiza. Musset adere ao gênero teatral do drama romântico, com a publicação de Lorenzaccio, em 1834, pela
Revue des Deux Mondes, adotando um gênero de prestígio em certos grupos no campo literário francês. Musset, membro
do Cénacle romantique e do salão do Arsenal tinha a oportunidade de se relacionar com escritores, pintores e escultores,
que se reuniam para discutir as tendências da arte, naquele período.

Nessas reuniões, Alfred de Musset teve a chance de conhecer autores consagrados na sociedade francesa. No
salão do Arsenal, a presença de Alphonse de Lamartine, Alfred de Vigny, Charles Augustin Sainte-Beuve e dos irmãos
Deschamps era notada. No Cenácle romantique, além dos autores supracitados, registrava-se a presença de Prosper
Mérimée e Louis Boulanger (Cf. MUSSET, 1888, p. 78). Nas reuniões do Cénacle, que eram realizadas na casa de Victor
Hugo, os debates assumiam um caráter militante, onde a literatura e a política se misturavam e a escola romântica tinha na
imagem de Victor Hugo, aquela de um chefe. Musset, em seu texto De la politique en littérature et de la littérature en
politique, publicado no jornal Le Temps, na série Revues fantastiques, em 1831, defende uma separação extrema entre
literatura e política:

Se a literatura quer existir, é nesessário que ela rompa completamente com a política (...) A política
segue a ação, a literatura, o pensamento (...) Se o pensamento quiser existir por si próprio, é
necessário que ele se separe inteiramente da ação (...) (MUSSET, 1951, p.777)

Dos dois espaços frequentados por Musset, que recusa à miltância política através das letras, o Arsenal, cujas
reuniões ocorriam na casa do escritor Nodier, era o de sua preferência. Nesses encontros predominavam as relações
sociais, como no Antigo regime, e a literatura preservaria seu traço de elegância (Cf.LESTRINGANT, 1999, p.69). Os
membros do Cénacle priorizavam a criação em oposição à cópia, não admitiam a instauração de um mestre que
implantasse modelos estéticos ao restante do grupo. Alfred de Musset, cujas referências literárias estavam ligadas ao
século XVIII, deveria se adaptar a esse novo espaço e, ainda jovem, integrar uma geração na qual os grandes temas
literários eram difundidos pelos autores da escola romântica. Alain Heyvaert destaca o dilema de Musset, que busca
legitimar seu discurso diante de um grupo de escritores consagrados e cultuadores da originalidade:

Imitar Homero ou aplicar os preceitos de Aristóteles é uma coisa; desejar ser Chateaubriand ou
Schiller (contemporâneos), já é bem diferente. Sobretudo se, como Musset, frequentam-se círculos
onde o jovem Hugo já surge como mestre. Ser original como tal ou qual que vive ainda e o esmaga
com a sua glória (Lamartine) ou de sua fama nascente (Hugo) ou outro que possui centenas de
pálidos imitadores (Byron) é viver na contradição e privar-se da liberdade de existir, no momento
mesmo onde se declara existir. (HEYVAERT, 1996, p.58)

982
Dessa maneira, o investimento genérico de Alfred de Musset em um teatro para a leitura pode ser lido como uma
tentativa do escritor de ser original, buscando um caminho inverso àquele de seus pares, que já possuiam obras
consagradas. Ao mesmo tempo, Musset segue as regras do campo literário de sua época, onde o escritor para ser
reconhecido como autor e legitimar seu discuro deveria escrever peças de teatro. O fato de Musset escrever peças que
negam a cena, denota um posicionamento de distanciamento do autor em relação ao grupo de autores conhecidos como
românticos. Todavia, os espaços de negociação frequentados por Musset, permitem-lhe avaliar, face a seus pares, formas
de legitimar seu discurso. Embora se distancie das tendências dessa escola romântica, Musset integra a mesma,
denunciando sua condição paratópica no campo literário. Maingueneau explica, por meio do conceito de paratopia
enunciativa, a condição de Musset, que não pode ser vista apenas como contraditória:

Esse pertencimento paradoxal que é a “paratopia” não é origem nem causa, e menos ainda uma
condição: não é necessário nem suficiente ser reconhecidamente marginal para ver-se tomado por um
processo de criação. A paratopia não é uma condição inicial: só existe paratopia elaborada mediante uma
atividade de criação e de enunciação. (...) A paratopia é simultaneamente aquilo de que se precisa ficar
livre por meio da criação e aquilo que a criação aprofunda: é a um só tempo aquilo que cria a
possibilidade de acesso a um lugar e aquilo que proíbe todo pertencimento. (MAINGUENEAU, 1996,
p.109)

No segundo Spectacle dans un fauteuil (1834), onde são publicadas peças em prosa, Musset inscreve dois
personagens pintores, habitantes da Florença do Renascimento. Na peça André del Sarto, que já havia sido publicada, em
1833, também pela Revue des Deux Mondes, Musset apresenta um pintor de sucesso, um mestre. No drama Lorenzaccio,
texto inédito quando da publicação do Spectacle, Musset nos apresenta um personagem que possui um duplo estatuto
artístico. Na cena II,2, Tebaldeo nos é apresentado como um pintor-artesão, que vendia obras de pequeno valor artístico
nas ruas e se diz aluno de Rafael: “Era meu mestre. Tudo o que aprendi vem dele” (MUSSET, 1990, p.176). Na cena II,6 de
Lorenzaccio, o mesmo personagem está inserido na corte de Alexandre de Médicis onde pinta o retrato do duque.
Desse modo, Tebaldeo passa a ocupar a posição social de artista, uma vez que para pintar o retrato de um
membro da corte, no Renascimento, o pintor deveria dominar as técnicas de pintura e ter seguido um aprendizado formal
(Cf.HEINICH, 1993, p.44) o que não ocorre com Tebaldeo. Esse personagem chega à corte após ser convidado pelo
protagonista da trama a pintar um retrato do duque, que fica inacabado. Após o roubo da malha metálica que protegia o
duque de um possível atentado, por parte de Lorenzo, seu assassino, Tebaldeo encerra seu trabalho e não figura mais no
texto. Assim, Musset expõe a existência de uma relação entre o título de artista e as negociações do personagem pintor
com o poder que o conduzem a participar de um assassinato de caráter político.
A presença de André del sarto, em André del Sarto (1833) e Tebaldeo em Lorenzaccio (1834) situados na
Florença do Renascimento, não é, em nossa leitura, apenas fruto do recurso da cor local dos dramas em questão. Musset,
participa, desse modo, de uma discussão própria ao campo pictural entre os pintores de Veneza, coloristas e, os pintores
de Florença, desenhistas. Musset, com essas referências à arte do Renascimento, posiciona-se no campo pictórico no
século XIX, uma vez que os pintores da escola romântica eram conhecidos como coloristas, em oposição aos pintores da
escola clássica, vistos como desenhistas. Essa diferenciação no trabalho dos pintores remete-nos a divisão da pintura em
arte liberal e arte mecânica. Celina Mello comenta:
A oposição entre arte da composição e arte da execução representa a mesma clivagem que separa a
pintura vista como arte liberal e nobre, da pintura arte mecânica e vil. Distingue-se, aqui, o pintor
intelectual, o desenhista, do pintor artesão, que domina a técnica de preparação e uso das tintas, o
colorista. (MELLO, 2004, p.35)

A presença desses artistas e a participação de Musset nos debates do campo pictórico se aliam ao seu trabalho

983
de crítica de arte. Alfred de Musset publica, em outubro de 1830, Exposition du Luxembourg. Neste texto, Musset questiona
a classificação dos pintores entre coloristas e desenhistas, faz menção a Rafael e evoca, ainda, o mito da Idade de Ouro do
Renascimento para falar da produção artística que ele observa, naquela época. Tais aspectos se repetem no texto Un mot
sur l’art moderne, publicado em setembro de 1833, assim como em André del Sarto e Lorenzaccio.

Rafael, que, segundo Musset, era um modelo de artista a ser seguido, cuja imagem corresponderia àquela de
Tebaldeo, na cena II,2 de Lorenzaccio (1834), um artista puro. A ligação entre a pureza da arte e a imagem de Rafael, pintor
desenhista, já tinha sido apresentada por Musset na poesia Les secrètes pensées de Rafael, em 1830 : “Rafael (meu héroi)
cochilando docemente / observe bem leitor, e não se aborreça / pois é completamente diferente de um herói de romance”
(MUSSET, 1957, p.120). Além de criticar os heróis produzidos pela literatura de seu tempo, nesse poema, Musset se
posiciona em favor dos mestres, contrariamente aos escritores da escola romãntica: “mestres, mestres divinos, onde eu
encontrarei, ai de mim !” (MUSSET, 1990, p. 39).

Na fala do personagem Lionel, na quarta cena do primeiro ato de André del Sarto (1833), Musset compara os
tempos de Rafael com a arte de seu tempo e, afirma o caráter da arte como mercadoria, atividade lucrativa: “No tempo de
Rafael, as escolas eram verdadeiros campos de batalha; hoje, trabalha-se para viver, e as artes transformaram-se em
profissões” (MUSSET, 1990, p.39) O posicionamento enunciativo de Alfred de Musset constrói-se em seus textos de crítica
como em suas peças de teatro. Para que possamos ler o posicionamento de Musset por meio de suas peças, recorremos
ao conceito de arquienunciador, “instância distinta do escritor encarregada de uma rede conflitual de posições enunciativas”
(MAINGUENEAU, 1996, p.160).
O conjunto de enunciados que compõem uma peça de teatro, oriundos de suas personagens associam-se ao
arquienunciador, “fonte enunciativa invisível”. (MAINGUENEAU, 1996, p.160) O discurso de um arquienunciador emerge da
instabilidade do estatuto da linguagem dramática. Os enunciados de uma peça são depreendidos por um leigo, como
múltiplos discursos enunciados por personagens em um espaço qualquer, embora constituam falas criadas pelo autor em
uma situação específica por ele projetada (Cf. MAINGUENEAU, 1996, p.171).
Lembrando a aliança entre poetas e pintores no campo artístico francês, ao longo do século XIX, e a identidade
comum que os une na figura do artista, nos anos 1830, os personagens de Tebaldeo e de André del Sarto, não
representariam apenas o pintor, mas também o poeta. Através dessas representações de artista, Alfred de Musset enuncia
suas próprias reivindicações em relação ao seu trabalho e suas aspirações enquanto escritor, projetando para o leitor, sua
própria representação de artista, que é aquela de um poeta. A relação entre o mecenas e o artista, as interferências do
primeiro no trabalho do pintor, sua luta pelo título de artista e a consequente consagração social que lhe garantiriam
encomendas de prestígio, as sujeições ao poder político, são alguns aspectos apresentados por Musset através das
representações dos personagens pintores em André del Sarto (1833) e Lorenzaccio (1834).
De nossa leitura, originam-se três problemas que constituem nossa pesquisa de doutorado. O primeiro: Quais as
cenas genéricas do teatro de Alfred de Musset? Em seguida: Qual a relação entre a crítica de arte e a obra teatral de
Musset? E por fim: Qual o posicionamento enunciativo de Musset ? Tendo em vista nosso primeiro problema, acreditamos
que o fato de Musset publicar textos de peças de teatro que negam a cena por meio dos dois Un spectacle dans un fauteuil
(1832-1834) consiste em uma tentativa do poeta de assegurar o seu lugar de fala e assumir o seu papel enquanto autor.
No prefácio do segundo Un spectacle dans un fauteuil, o poeta apresenta ao leitor a coletânea de peças como um livro que
pode ser considerado como um estudo (Cf. MUSSET, 1990, p.6). Mais tarde, o fato de adaptar seus textos para a cena
francesa e de escrever exclusivamente para a cena consistem em uma mudança nas escolhas genéricas de Musset, o que
representaria uma mudança em seu projeto estético, em dois momentos de sua trajetória.

984
Diante do segundo problema, entendemos que embora as peças de Musset que compõem Un spectacle dans un
fauteuil não sejam apresentadas ao público como textos de crítica de arte, podem ser vistas como parte integrante do
trabalho crítico desenvolvido pelo autor, uma vez que participam da construção de seu posicionamento no campo artístico.
Naquilo que concerne ao terceiro problema, nossa terceira hipótese é de que as publicações de Un spectacle dans un
fauteuil com peças do gênero drama romântico possibilitaria um lugar de fala para Alfred de Musset no círculo dos poetas
românticos, mesmo que se opusesse, em certa medida, às regras estéticas ditadas por aquele grupo, sustentando assim,
sua situação paratópica no campo literário da época.

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Luiz Paulo dos Santos Monteiro é aluno do curso de Doutorado do Programa de Letras Neolatinas, em Estudos literários.
Desenvolve, sob a orientação da Profª Drª Celina Maria Moreira de Mello, a pesquisa que estuda o projeto estético de Alfred
de Musset. Luiz Paulo é professor de francês da Aliança Francesa do Rio de Janeiro. E-mail: lupamont@gmail.com

986
Língua, discurso e identidade: quem é o jovem excluído
para o PROJOVEM urbano1

MORAIS, Argus Romero Abreu de


(Universidade Federal do Ceará – UFC)

1. Considerações iniciais

A idéia inicial deste estudo decorre da experiência profissional obtida durante o período de 2005 a 2007 no quadro
docente do Programa Nacional de Inclusão de Jovens- ProJovem Urbano. Nesse período, mantivemos contato direto com a
sua execução. Partindo dessas experiências, algumas inquietações surgiram e, com elas, a necessidade de pesquisar a
respeito.
O ProJovem Urbano, cumpre-nos destacar, compõe a Política Nacional de Juventude brasileira, criada em 2005.
Sua proposta é reinserir pessoas de 18 a 29 anos no sistema educacional que, por algum motivo, abandonaram a escola
durante o Ensino Fundamental, perdendo, por conseguinte, o vínculo com as mesmas desde então (CONSELHO
DELIBERATIVO, 2008).
Neste estudo, investigaremos como em um corpus composto por documentos oficiais do Programa Nacional de
Inclusão de Jovens (doravante ProJovem Urbano), a saber, a Resolução nº 22 de 26 de maio de 2008, do Conselho
Deliberativo (2008), e os Guias de Estudo (2008), se define lingüístico-discursivamente uma identidade para o jovem
excluído.
Para tanto, unimos, metodologicamente, a paráfrase às sequências discursivas de referência (SDR). No que tange
à primeira, segundo Orlandi (1996), a paráfrase é condição necessária para a existência do mundo discursivo. Sem ela, não
seria possível haver estruturas relativamente estáveis de enunciados. A incessante mudança impossibilitaria a repetição em
prol de uma realidade discursiva inconsistente e não analisável.
No entanto, apesar de reaparecerem em diferentes momentos e se dispersarem por diferentes conteúdos, os
enunciados resguardam, em certa medida, seus padrões semânticos por meio das relações de sinonímia. Dessa maneira,
ao mesmo momento em que possibilitam a geração de novos sentidos, os enunciados se repetem, o que sugere um certo
padrão semântico (ORLANDI, 1996).
No que diz respeito às segundas, através delas realizamos o recorte de passagens que serviram para a
constituição do nosso corpus discursivo (COURTINE, 1981). Contudo, diferentemente de Courtine (1981), nosso trabalho
não se enquadra no âmbito da diacronia. De modo contrário, nosso corpus discursivo é constituído por seis SDR
sincrônicas recortadas de um corpus empírico atual. Em vista disso, os domínios de memória, de atualidade e de
antecipação, como propõe o autor, em nosso trabalho, serão vistos em uma perspectiva sincrônica. Cumpre-nos destacar
como faremos isso.
Todas as formulações selecionadas para a nossa análise são retiradas de um corpus cronologicamente composto
em 2008. Portanto, elas estão organizadas na ordem em que foram selecionadas. A partir da análise da SDR 1,

1Trabalho realizado sob a orientação da professora Dra. Lívia Márcia Tiba Rádis Baptista, vinculada ao Departamento de Línguas
Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará (DLE-UFC).

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identificamos sua recorrência como “já dito” que atualiza e antecipa as outras formulações ao longo do corpus. Da mesma
forma, por estarem em relação parafrástica, cada sequência analisada atualiza e antecipa as demais.
Seguindo esse caminho analítico, averiguaremos como os “discursos de poder”, no caso o do ProJovem Urbano,
estabelecem “identidades-controle”, como é o caso da do jovem excluído. Tais identidades instauram padrões e funcionam
de modo a pressionar os indivíduos a se adequarem a determinadas demandas sócio-econômicas e políticas.

2. Quem é o jovem excluído para o ProJovem Urbano?

Nesta seção, analisaremos as seis sequências discursivas de referência, doravante SDR, selecionadas com o fim de
descrever como, por meio de relações parafrásticas entre essas sequências, se instaura uma dada identidade para o jovem
excluído no discurso da inclusão social do Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem Urbano. Seguindo esse
raciocínio, passaremos à SDR 1:

Considerando a necessidade de implementar o Programa Nacional de Inclusão de Jovens - ProJovem


Urbano nos Estados, no Distrito Federal e em municípios para garantir aos jovens com idade entre
dezoito e vinte e nove anos ações de elevação de escolaridade, na forma de curso, visando a
conclusão do ensino fundamental, qualificação profissional inicial e participação cidadã.
Considerando a necessidade de promover ações de cidadania voltadas a jovens que, por diferentes
fatores, foram excluídos do processo educacional, de modo a reduzir a exposição desses jovens a
situações de risco, desigualdade, discriminação e outras vulnerabilidades sociais (GUIA DE
ESTUDO, 2008a, p.1, grifo nosso).

Como podemos observar na sequência acima, de acordo com o enunciador, implementar o Programa torna-se
necessário para garantir aos jovens de 18 a 29 anos ações de elevação da escolaridade (“Considerando a necessidade de
implementar o Programa Nacional de Inclusão de Jovens - ProJovem Urbano nos Estados, no Distrito Federal e em
municípios para garantir aos jovens com idade entre dezoito e vinte e nove anos ações de elevação de escolaridade”).
Continuando a leitura do excerto, é possível chegar a uma relação entre “Considerando a necessidade de
implementar o [...] ProJovem Urbano [...] para garantir ações de elevação de escolaridade” e “Considerando a necessidade
de promover ações de cidadania voltadas a jovens”. Para nós, na relação estabelecida entre tais orações, explicita-se que
as ações de escolaridade são constituintes das de cidadania. Aquelas, portanto, fazem parte destas.
Dessa forma, concretizar ações de escolaridade implica pôr em prática uma ação cidadã, que apesar de não se
resumir à primeira, pode ser alcançada através dela. Assim, no espaço intrasequência, está posto uma relação de
implicação entre escolaridade e cidadania, em que realizar uma dada ação possibilita chegar a um dado estado, o de
cidadão.
Importante destacar que, no decorrer do texto, utilizando-nos de uma linguagem formal, o símbolo (↔)
representa equivalência, enquanto o símbolo (→) representa implicatura. Tomando, por exemplo, os efeitos de implicação
impostos pelo enunciador, na primeira formulação, entre escolaridade e cidadania, a descrição assume a seguinte forma:

a) Escolaridade → cidadania

O vínculo estabelecido entre escolaridade e cidadania é fundamental para o posicionamento do enunciador


sobre três questões essenciais, a saber: a legitimação do ProJovem Urbano, a identificação do jovem excluído e,
consequentemente, a identificação do jovem incluído.

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O primeiro dos casos, concernente à legitimação do ProJovem Urbano, alude à tentativa de o enunciador validar a
existência do Programa como ação pública (“ação de elevação da escolaridade” e “ação de cidadania”) e de justificá-lo
como meio necessário para a transformação da realidade dos jovens em situação de exclusão. Importante destacar que a
“SDR 1”, por ser composta pelos dois primeiros parágrafos da Resolução n° 22 de 26 de maio de 2008 (CONSELHO
DELIBERATIVO, 2008), representa a justificativa legal e pública da necessidade de se implementar um Programa que tenha
por intuito agir sobre jovens considerados excluídos.
Não por acaso, o Programa se intitula Programa Nacional de Inclusão de Jovens. Seus objetivos, expressos no
próprio título, são claros no que diz respeito à promoção da inclusão. Curiosamente, como veremos, o ProJovem valida,
para si, uma posição como meio necessário, mas não determinante, no processo inclusivo.
Para tanto, é necessário que o enunciador estabeleça parâmetros do que é ser incluído e do que é ser excluído. A
definição dessas categorias ocorre por oposição. Assim, se é preciso incluir, é fundamental que se tenha uma descrição do
que é ser excluído. O jovem incluído funciona, portanto, como padrão que define, pela ausência, o jovem excluído.
Se o Programa atua na promoção do ensino fundamental, da qualificação profissional e da participação cidadã,
podemos supor, então, que o jovem de 18 a 29 anos é excluído devido ao fato de estar privado do sistema escolar
(proposta da Educação Básica), de estar excluído do mercado de trabalho (proposta da Qualificação Profissional Inicial), e,
por último, por não ser considerado cidadão (logo, há a necessidade de se ensinar a “Participação Cidadã”).
A “forma de curso”, destacada na quarta linha da SDR, garante que esses instrumentais serão dispersos por
intermédio de uma prática escolar, permeada, portanto, pelo discurso da educação, que também é composto por um
discurso cívico, pois propõe, além de assegurar os instrumentais formais básicos necessários ao exercício da cidadania,
estabelecer normas e critérios a serem seguidos para que se possa ser considerado um cidadão (ORLANDI; LAJOLO;
IANNI, 1997).
Por consequência, ambos os discursos, o cívico e o educacional, se unem na apropriação e dispersão dos
discursos científicos de diversas áreas, que, no Programa, são tornadas disciplinas, quais sejam: Português, Ciências
Humanas (História e da Geografia), Ciências da Natureza (Biologia, Química e Física), Matemática (Ciências Exatas),
Inglês, Informática (Ciências da Computação), Qualificação Profissional (discursos técnico-profissionalizantes), Participação
Cidadã (Assistência Social).
Ademais, o público-alvo do Programa (o jovem excluído) é composto por jovens que têm como característica
comum o fato de terem sido “excluídos do processo educacional, [e estarem expostos] [...] a situações de risco,
desigualdade, discriminação e outras vulnerabilidades sociais”. Esses atributos particularizam os jovens em questão para
poderem identificá-los como grupo submetido a condições comuns de exclusão e, em decorrência disso, susceptíveis a
assistência do Governo Federal.
Considerando as características apontadas para o jovem excluído até então, verificamos que há uma lógica
estabelecida no processo de constituição de tal identidade. Essa lógica se utiliza de efeitos de implicação, em que uma
dada ação/postura implica chegar a um dado estado. Para tanto, institui-se uma oposição entre a identidade do jovem
incluído e a do jovem excluído.
Assim sendo, definindo P como as qualidades e atitudes atribuídas, pelo enunciador, ao jovem incluído, X como o
jovem incluído e Y como o jovem excluído, em que este, devido ao efeito de antagonização firmado entre as identidades
desses jovens, se equivale à negação daquele (logo, Y = não-X), inferimos que:

Se ser P implica ser X, então, ser Y é não ser P.

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Em linguagem formal:

(P → X) → (Y → ~ P)

Nos termos da SDR 1, para que fique mais claro, temos a seguinte forma:

Se ser qualificado, participativo, incluído no processo educacional, etc. implica ser jovem incluído, então, ser
jovem excluído é não ser qualificado, participativo, incluído no processo educacional.

Notemos, então, como a política educacional investigada parece se encaixar na intrínseca relação entre
educação, trabalho e o modelo de cidadão neoliberal, tendo por finalidade básica inserir os indivíduos de forma competitiva
no mundo do trabalho e, por conseguinte, transformá-los em cidadãos ativos frente às demandas do mundo globalizado,
sujeitos com direitos e, teoricamente, imunes às vulnerabilidades sociais que competem para a manutenção das situações
de risco, de discriminação e de desigualdades (POCHMANN, 2004).
Partindo disso, seguiremos o seguinte caminho: verificaremos como o sintagma “participação cidadã”, ao ser
redito nas sequências selecionadas, constitui, por consequência, uma dada identidade para o jovem excluído. Percorrendo
esse trajeto, investigaremos também como se dão as relações sinonímicas intersequências (relações parafrásticas
existentes entre uma sequência e outra) e intrasequência (relações parafrásticas existentes na própria sequência), levando
em consideração como determinados léxicos se redizem e assumem funcionalidades semelhantes apesar das alterações
que possam ocorrer.
Cumpre-nos destacar que no processo enunciativo de organização textual, como materialidade linguístico-
discursiva, de forma paralela, o enunciador define parafrasticamente quem é o jovem incluído e o excluído e organiza tais
informações de modo a compor efeitos de implicação, em que o jovem excluído, ao possuir tais características, ou melhor,
ao constatá-las com a ajuda do Programa, pode alterar sua postura e realizar ações que o possibilitem mudar de status, do
não-cidadão para o cidadão.
Nesse contexto, para que compreendamos que discursos legitimam a identidade em questão, realizamos também
uma análise interdiscursiva, dando consistência à análise parafrástica, pois, como podemos notar, para que se conforme a
identidade do jovem incluído e excluído, é necessário que o enunciador se lance ao interdiscurso, apropriando-se de
discursos passíveis de embasar a constituição dessas identidades (MAINGUENEAU, 2007). Passemos, então, à “SDR 2”:

O aluno [jovem] deve sentir-se sujeito da história, que não apenas vive a história, que não apenas
está na história, mas faz, participa, produz, narra, escreve a sua própria história e a de seu grupo
(GUIA DE ESTUDO, 2008c, p.17, grifo nosso).

Nessa passagem, temos duas paráfrases possíveis. Considerando que, no âmbito intrasequencial, “sujeito da
história” é retomado como sujeito que “faz, participa, produz, narra, [e] escreve [...]”, estabelece-se a paráfrase que retoma a
“participação cidadã”, da sequência anterior, e a relê como uma “participação dos sujeitos históricos”, que são, entre as
outras características apontadas, sujeitos participativos. Assim, a relação sinonímica intersequência relaciona:

b) Participação cidadã ↔ sujeito da história; e associa, no âmbito da intrasequência;


c) Sujeito da história ↔ sujeito que faz ↔ que participa ↔ que produz ↔ que narra ↔ que escreve.

Nesse sentido:

Se ser sujeito da história, participante, produtor, narrador, escritor implica ser jovem incluído, então, ser Y
jovem excluído é não ser sujeito da história, participante, produtor, narrador, escritor.

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Reconhecer o papel de sujeito ativo não é apenas uma possibilidade, mas uma obrigação, destacada pelo uso do
deôntico “dever” (“o aluno [jovem] deve sentir-se sujeito da história”), em que o enunciador frisa a necessidade de cada
aluno “fazer”, “produzir”, “narrar”, etc.
Somente por meio do agir como sujeito, o aluno poderá transformar a sua realidade e superar as suas condições
de exclusão. Caso não o faça, estará descumprindo sua função para consigo mesmo e para com a sociedade. Se é um
dever, não é um direito. O aluno, deste modo, não tem direito a se excluir, pois, se o fizer, irá contra a sua natureza e o
bem-estar comum da sociedade.
Nesse sentido, cada jovem (excluído) precisa resgatar-se (sujeito ativo) das margens da sociedade, situação em
que ele “apenas vive e está na história” (sujeito passivo) e que não participa por não se sentir sujeito dela.
Por isso, metaforicamente, esse jovem não produz história, não a escreve, nem a narra. Entretanto, segundo as
orientações do enunciador, sua imersão no Programa dará possibilidades para que o jovem conheça os seus deveres
(deôntico “dever") e resgate o seu empoderamento, tornando-o sujeito ativo, participativo, produtor, narrador, escritor de si e
de seu grupo.
A presença da negação “não” (“o aluno [jovem] deve sentir-se sujeito da história, que não apenas vive a história,
que não apenas está na história”), logo após a apresentação dos deveres dos jovens, no caso, sentir-se sujeito da história,
gera um efeito de antagonização entre o que é ser incluído (“sujeito da história”) e o que é ser excluído (“apenas vive a
história”).
O pronome reflexivo “se”, aliado ao verbo “sentir” (“o aluno [jovem] deve sentir-se sujeito da história”),
acompanhado pelo deôntico “dever”, reforça a concepção de sujeito ativo ao jogar para ele próprio a responsabilidade de se
sentir como um “sujeito da história”.
Fazendo isso, resgatando esse sentimento, é possível mudar a sua situação. Através de posturas mais ativas em
relação a si e ao mundo que o rodeia, e que o exclui, o jovem poderá realizar o seu processo de inclusão, juntamente com a
atuação catalisadora de políticas públicas como o ProJovem Urbano.
Contudo, não obstante destacar as condições sociais de exclusão, o discurso do Programa, gradualmente, delega
para si o papel de apenas orientador no processo de inclusão, destinando aos excluídos a responsabilidade efetiva de
tornar a inclusão exitosa ou não.
Dessa forma, se, por um lado, o jovem excluído está submetido a condições de exclusão, por outro, a chance de
superação dessas condições se dá por meio de duas vias: as “ações de cidadania” do Estado e as “ações auto-includentes”
dos próprios indivíduos excluídos.
As primeiras se equivalem às ações afirmativas, desempenhadas através de políticas compensatórias destinadas
a grupos considerados marginais. Essas iniciativas públicas são os meios mais usuais, ainda que com eficiência limitada, de
intervenção do Estado na realidade desses grupos. Apesar disso, a postura assistencialista dessas ações é eficiente em
produzir uma imagem positiva para os governos (POCHMANN, 2004). Já as segundas, para o enunciador, são as ações
desenvolvidas pelos sujeitos, após reconhecerem suas potencialidades, no intuito de superar a sua situação marginal.
Como podemos perceber na SDR 3:

O aluno [jovem excluído] se auto-exclui da história, não se sente sujeito da história, da sociedade,
não acredita na sua capacidade de produzir algo, o que o leva a desvalorizar a cultura de sua
comunidade e aceitar como um dado natural a desigualdade social [...]. Essa posição auto-
excludente é fruto de um processo social injusto e de uma educação escolar que muitas vezes
reproduz e reforça as exclusões operadas nas escolas (GUIA DE ESTUDO, 2008c, p. 17, grifo nosso).

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O sintagma “participação cidadã”, neste caso, é, novamente, retomado pelo “sujeito da história”. Participação
cidadã ou cidadão participante é aquele que se sente sujeito da história e, como tal, segue uma série de posturas. Nessa
SDR, em específico, há um efeito de antagonização significativo entre aqueles que praticam a autoinclusão, portanto são
cidadãos participantes, e aqueles que tomam posturas diametralmente opostas, praticando a autoexclusão, como é o caso
do jovem excluído.
Dessa maneira, há um efeito de paráfrase seguido de um efeito de implicação, que se estabelecem da seguinte
forma:

d) Ser autoexcludente ↔ não se sentir sujeito da história ↔ não acredita na sua capacidade de produzir algo →
desvaloriza a cultura de sua comunidade → aceita como um dado natural a desigualdade social.

Notemos, então, como, para o enunciador, uma postura considerada autoexcludente pode desencadear todo o
processo de exclusão vivido por esses jovens, coadunando, portanto, com as condições marginais a que estão submetidos.
Retomando as sequências anteriores forma-se a seguinte cadeia sinonímica para o jovem excluído:

e) Jovem excluído ↔ sujeito auto-excludente ↔ sem qualificação profissional ↔ sem educação básica ↔ sujeito a
situações de risco ↔ sujeito às desigualdades ↔ sujeito à discriminação ↔ sujeito às vulnerabilidades sociais.

Imerso à sequência temos a seguinte cadeia:

f) Sujeito excluído ↔ auto-excludente ↔ não acredita na sua capacidade de produzir algo ↔ desvaloriza a sua cultura
↔ submetido a um processo social injusto ↔ submetido a uma educação escolar excludente.

Por antagonismo, temos a cadeia do jovem incluído:

g) Participação cidadã ↔ sujeito da história

Na sequência, o jovem incluído está posto do seguinte modo:

h) Sujeito da história ↔ sujeito autoincludente ↔ sujeito capaz de produzir ↔ sujeito valorizador da sua própria cultura
↔ desnaturalizador das desigualdades.

Sendo assim, podemos inferir que:

Se ser sujeito da história, autoincludente, crente na sua capacidade de produzir algo, valorizador da cultura de sua
comunidade implica ser jovem incluído, então, ser jovem excluído é não ser auto-includente, sujeito da história, não ser
crente na sua capacidade de produzir algo.

Mais uma vez, é possível notar como a exclusão representa o sujeito incapaz de produzir e se contrapõe ao
sujeito sócio-histórico. Contudo, nesse caso, queremos destacar, em especial, a incorporação do segmento lexical “auto”,
dando clara conotação do poder do sujeito de excluir a si mesmo.
Esse segmento é reforçado pela frequência do pronome reflexivo “se” (se auto-exclui, não se sente sujeito) e pela
presença dos possessivos “sua” (“não acredita na sua capacidade de produzir algo, “o leva a desvalorizar a sua
comunidade”), demonstrando para os jovens as consequências da postura de autoexclusão.
Dessa forma, se o jovem excluído é fruto de um “processo social injusto” e de uma “educação escolar que muitas
vezes reproduz e reforça as exclusões”, ele também corrobora essas posições ao não querer se incluir ou se autoincluir.
Com isso, não é mais um ser capaz de produzir (“não acredita na sua capacidade de produzir algo”), que valoriza a si e o

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seu grupo, mas um ser que desvaloriza sua cultura (“o leva a desvalorizar a cultura de sua comunidade”) e aceita sua
condição desigual (“aceitar como um dado natural a desigualdade social”).
Destarte, jovem excluído é aquele que se autoexclui por diversos fatores, entre eles, os de acomodação ao
processo social injusto no qual tem vivido. Nesse viés, o aluno do ProJovem está debilitado em consequência de sua
imersão em um quadro de exclusão constituído ao longo de gerações de marginalidade e de esquecimento do poder
público. No entanto, de acordo com o ProJovem Urbano, ainda há chances de superação dessa realidade e, para isso, são
necessárias apenas ações afirmativas que mostrem, por meio da reflexão e do aprendizado, que eles são ontologicamente
sujeitos.
A participação cidadã, nesse caso, atrela-se ao sujeito autoincludente, que é capaz de produzir a sua realidade e
reverter o processo de exclusão. É necessário, para isso, somente a orientação desempenhada pelo ProJovem Urbano
(GUIA DE ESTUDO, 2008b). Como podemos constatar na SDR 4:

Fazendo o ProJovem Urbano, (...) [o jovem] vai compreender melhor quais são os seus direitos de
cidadania e terá uma visão mais clara de como participar ativamente da vida na comunidade (GUIA
DE ESTUDO, 2008b, p.12, grifo nosso).

Nessa sequência, “participar ativamente” parafraseia a concepção de “participação cidadã”. O significado de


cidadão, outra vez, se constitui como o ser participativo. Por conseguinte, se o jovem deseja deixar de ser excluído para se
tornar incluído, é necessário que haja a sua correspondência identitária com a postura de um indivíduo que participa
ativamente.
Nesse sentido, seguindo o raciocínio parafrástico desenvolvido até então, inferimos que, na SDR 4:

Se ser um indivíduo que participa ativamente implica ser jovem incluído, então, ser jovem excluído é não ser
um indivíduo que participa ativamente.

Além disso, ao propor incluir, o Programa já está incluindo. Cada jovem, ao se tornar discente, necessariamente,
imerge nesse processo de inclusão. Como podemos notar, há uma relação de implicação firmada entre:

i) Fazer o ProJovem Urbano → compreender melhor quais são os direitos de cidadania e [...] de como participar
ativamente.

Dito de outra forma, a conexão lógica situa-se no seguinte sentido:

j) Fazer o ProJovem Urbano → ser jovem incluído/cidadão participativo/ sujeito da história.

Essa implicatura confirma a necessidade de o ProJovem se legitimar como meio de inclusão necessário, mas não
determinante, ao mesmo tempo em que define as duas identidades em questão, a do jovem incluído e a do jovem
excluído.Assim, cabe ao aluno a decisão de seguir ou não os seus ensinamentos. Portanto, caso a inclusão se efetue, o
jovem gozará do status de cidadão, caso contrário, apesar da ajuda do Programa, ele não atingirá as metas desejadas.
Consoante o enunciador, cada jovem poderá aclarar sua visão (“terá uma visão mais clara”) sobre os problemas
que enfrenta e o exclui. O “como”, em referência ao modo, representa bem a postura do ProJovem Urbano como orientador
dos caminhos a serem seguidos. Funciona como se fosse uma “receita” para ser cidadão.
Ademais, ao empregar “compreender”, “direitos” e “cidadania”, vinculados a “participar ativamente”, demonstra-se
como a exclusão torna-se consequência da não compreensão, por parte do jovem, dos seus direitos de cidadania; e de

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como, ao não compreender tais direitos, fica obscurecido (necessidade de “compreender” e “ter uma visão mais clara”) os
motivos pelos quais cada um poderia participar na vida social.
Esses léxicos ajudam a constranger os sentidos associados ao indivíduo que participa ativamente, sinônimo do
sintagma “participação cidadã”. Esse raciocínio é complementado pela “SDR 5”:

O aluno [jovem] que se sente sujeito, ator social capaz de produzir conhecimento e história, vai
sentir-se e agir como cidadão, sujeito político possuidor de direitos e, conseqüentemente, apto a
lutar e defender esses direitos e sua cultura e a participar da vida em sociedade (GUIA DE
ESTUDO, 2008c, grifos nossos).

Nessa sequência, considerando “participação cidadã” na cadeia referente ao cidadão participativo, remontando ao
sujeito da história e demais sinônimos, tal sintagma refere-se tanto ao “participar da vida em sociedade” como a “ator
social”, a “cidadão” e a “sujeito político”. No espaço intrasequência, a cadeia sinonímica se dá por meio do atrelamento:

k) Sujeito ↔ator social ↔ cidadão ↔ sujeito político que têm por características serem capazes de sentir ↔ produzir ↔
agir↔ possuir ↔ lutar ↔ defender ↔ participar.

Nesse sentido:

Se ser sujeito, ator social implica ser jovem incluído, então, ser jovem excluído é não ser sujeito, ator social.

Continuando nesse raciocínio, há uma relação de implicação instituída entre:

l) O aluno [jovem] que se sente sujeito, ator social capaz de produzir conhecimento e história → vai sentir-se e agir como
cidadão, sujeito político possuidor de direitos e, → consequentemente, apto a lutar e defender esses direitos e sua
cultura e a participar da vida em sociedade.

O verbo “ir”, flexionado para a forma “vai”, e o advérbio “consequentemente”, quando relacionados ao modo como
o aluno se porta, criam um efeito de implicação, que reforça o caminho a ser seguido para que se torne cidadão. Essa
implicatura, posta em prática pelo enunciador, simplifica o processo de inclusão, assim como institui a idéia de reação em
cadeia desencadeada pela tomada de atitudes simples.
Assim, “sentir-se sujeito/ator social” implica “sentir-se cidadão/sujeito político” que implica “a aptidão para lutar e
defender os seus direitos e a participar [...]”. A partir do momento em que cada jovem puder desenvolver em si mesmo o
sentimento de potencialidade, estará em movimento uma reação em cadeia em prol da sua inclusão cidadã.
Verbos como “sentir”, “produzir”, “agir”, “lutar”, “defender” e “participar” são fundamentais nessa passagem, pois
retratam as potencialidades da subjetividade individualista, do ser que sente, que produz, que age, que luta e defende,
enfim, que participa.
Destarte, os qualificadores vão se conectando ao item lexical “sujeito” para formar expressões como “sujeito
político”, que se refere, sinonimicamente, a “sujeito histórico”. Ainda nesse sentido, não só os elementos lexicais de
natureza substantiva e adjetiva são empregados para descrever o jovem excluído/incluído, mas também os léxicos verbais,
que reforçam as potencialidades do sujeito.
Os reflexivos “se” são retomados no âmbito da intrasequência (mas, por vezes, eles recorrem entre as
sequências) para destacarem a importância de o jovem agir sobre si no processo inclusivo. Sua ligação com o verbo “sentir”
(“se sente sujeito”, “sentir-se”) é a forma mais recorrente desse reflexivo, embora possamos notar sua aliança com outros
verbos.

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O verbo “ser”, por sua vez, denota a presença de um discurso naturalizante, em que o jovem é definido em sua
essência, naquilo a que não pode escapar. Não é histórico, é biológico. Refere-se ao que ele é, ainda que tenha esquecido.
O ProJovem Urbano foi instituído para lembrá-lo disso.
Essa naturalização possibilita a construção de um ser individualizado, descrito em sua essência, que no discurso
da inclusão social torna-se base para a construção de um discurso neoliberal, que, em associação com o discurso
paternalista, constitui o jovem excluído na contradição entre o “fraco” e o “forte”.
No primeiro caso, referente ao “fraco”, o enunciador ressalta tal característica para fazê-lo notar a necessidade de
políticas públicas como o ProJovem e reconhecer sua natureza salvadora e benevolente. Apesar de encontrar os jovens em
situações fragilizadas, o Programa apresenta o caminho, de forma paternal, para que sejam fortes. No segundo,
concernente ao “forte”, o enunciador se exime de responsabilidades maiores e coloca aos jovens o encargo social de se
incluir, representando o discurso neoliberal (POCHAMNN, 2004).
Com isso, ora o ProJovem acirra a visão conflituosa, ora a minimiza. Quando ocorre o primeiro caso, o Programa
se propõe a funcionar como uma ponte necessária entre esses dois patamares, o de inclusão e o de exclusão.
Responsabilizando o jovem fragilizado por aceitar ou não esse desafio, pois, se o seu desempenho for condizente com os
direitos e deveres que devem ser cumpridos pelo modelo ideal de cidadão, sua inclusão será eficaz. Nesse caso, o Estado,
consoante o enunciador, a despeito dos grupos dominantes, se porta como o protetor dos excluídos. Assim, o enunciador
legitima o governo na seguinte relação: Estado + Excluídos (mais pobres) x Incluídos (mais ricos).
No segundo caso, Apenas os patamares de cidadania é que são diferenciados. A inclusão no mercado e o acesso
aos direitos sociais podem assegurar uma vida digna, ainda que a inclusão não seja plena. Nesse outro momento, o
enunciador legitima o governo na seguinte relação: Estado + Incluídos (mais ricos) x Excluídos (mais pobres), pois assegura
àqueles as condições estruturais que os favorecem.
Contudo, é importante notar que para que o discurso paternalista funcione, é preciso que apenas a primeira
posição seja expressa, de forma clara, para o coenunciador (jovens excluídos). Caso o enunciador não o faça, os efeitos de
sentido, os efeitos de autoridade e os efeitos de verdade não serão eficientes (PÊCHEUX, 1997). É preciso representar os
excluídos como fracos para que possam dar o retorno político necessário ao governo estabelecido.
Desse modo, o discurso paternalista dissimula o neoliberal, que, apesar de sua presença, não pode ser declarado,
pois as condições de produção no Brasil atual já não são tão favoráveis às práticas deste último como o foram na década
de 1990 (POCHMANN, 2004).
Dando seguimento à análise, levando em consideração as diversas sequências analisadas, é possível reconstruir
o enunciado que está sendo redito. As recorrências encontradas em tais formulações nos possibilitam atestar a existência
de estruturas linguístico-discursivas que constituem a forma geral do enunciado, que, apesar das mudanças ocorridas em
cada redizer de si, mantêm presentes certos elementos (COURTINE, 1981).
Da mesma forma, constatar a recorrência desses elementos, assegura a existência de uma cadeia parafrástica,
em que o enunciador se utiliza da repetição como forma de garantir os efeitos de sentido do discurso da inclusão social do
ProJovem Urbano. Essa cadeia, como vimos, legitima significados para o jovem excluído/incluído, entrelaçando esses
sintagmas em uma rede discursiva atravessada por diversos discursos (ORLANDI, 2008). Dito isso, podemos pensar o
enunciado da cadeia parafrástica nos termos subsequentes:

Se o jovem for participativo, consciente, autoincludente, crítico-reflexivo, se sentir sujeito, ator social, entre outros, ele se
incluirá na atual sociedade brasileira, sujeita às condições de globalização. Por outro lado, caso não deseje tomar tais atitudes e
desenvolver tais qualidades, a despeito do auxílio do Projovem Urbano e de sua condição inerente de cidadão, ele continuará sujeito às
condições de exclusão.

995
A maneira como essa rede discursiva relaciona o “jovem excluído” a sintagmas como “participação cidadã” e a
léxicos sinonímicos, como os de natureza substantiva, verbal, adverbial e adjetiva, conforma uma dada identidade para os
sujeitos, no caso, os jovens excluídos do ProJovem Urbano (1996) .
Tal identidade surge, portanto, na confluência de diversos discursos, que, em condições de produção específicas,
interagem e estabelecem as regras de enunciação relacionadas ao discurso (dito) inclusivo, no qual está materializado o
referente “jovem excluído” (MAINGUENEAU, 2007).
A identidade desse jovem, diferentemente de uma descrição da realidade como está assentada, se configura
como a legitimação ideológica de um padrão identitário frente a outros possíveis, construída na e pela realidade discursiva
(HALL, 2003; BAUMAN, 2008).
Além disso, o sintagma “participação cidadã”, mantido no singular, representa a existência de apenas um padrão
de cidadania, bem como um de inclusão/exclusão. Não é possível a existência de participações cidadãs, pois existe apenas
uma, a que o Programa procura apresentar a seus alunos.

3. Considerações Finais

Neste estudo, realizamos a análise da constituição da identidade do jovem excluído no discurso da inclusão social
do ProJovem Urbano. Para tanto, embasamo-nos nas contribuições teórico-metodológicas das teorias do discurso. No
entanto, devido à complexidade do objeto de pesquisa, ampliamos o horizonte teórico por meio de leituras interdisciplinares,
em que nos voltamos para as diferentes áreas, a saber, as Ciências da Educação, Sociologia e a Economia.
Como vimos, no decorrer da análise, propomos uma forma geral do repetível, que está materializada do seguinte
modo: se ser P implica ser X, então, ser Y é não ser P. Destarte, a utilização de efeitos de implicação, calcados no uso
constante do condicional “se”, se apresenta como característica da organização textual por parte do enunciador no decorrer
da definição parafrástica dos jovens excluídos/incluídos. Essa forma de dispor as sequências, como qualidades/posturas
que implicam um status, produz efeitos de verdade mais eficientes, pois simplificam um processo social bastante complexo.
Por fim, com o exame dos trabalhos produzidos acerca da temática até então, verificamos que os discursos da
inclusão estão se tornando cada vez mais numerosos na sociedade brasileira, apontando para similitudes e divergências
quando os relacionamos ao nosso objeto. O jovem excluído, portanto, pareceu-nos se configurar como uma identidade
constituída no contexto de um padrão identitário mais amplo, referente aos sujeitos no mundo contemporâneo ocidental.

4. REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CONSELHO DELIBERATIVO. Estabelece os critérios e as normas de transferência automática de recursos financeiros a


Estados, ao Distrito Federal e a Municípios para o desenvolvimento de ações do Programa Nacional de inclusão de jovens /
ProJovem Urbano. Resolução n.22, de 26 de maio de 2008. Lex: Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação,
Brasília, p.1, set./out. 2008. Legislação Federal e Marginália.

COURTINE, Jean Jacques. Analyse du discours politique: le discours communiste adressé aux chrétiens. Langages:
Paris, n.62, p. 9-128, 1981.

GUIA DE ESTUDO: Unidade Formativa I. Maria Umbelina Caiafa, Ana Lúcia Amaral (Orgs.). Revisão de Leandro Bertoletti
Jardim. Brasília: Programa Nacional de Jovens, 2008a. Anual. (Coleção ProJovem Urbano).

GUIA DE ESTUDO: Unidade Formativa II. Maria Umbelina Caiafa, Ana Lúcia Amaral (Orgs.). Revisão de Leandro Bertoletti
Jardim. Brasília: Programa Nacional de Jovens, 2008b. Anual. (Coleção ProJovem Urbano).

996
GUIA DE ESTUDO: Unidade Formativa III. Maria Umbelina Caiafa, Ana Lúcia Amaral (Orgs.). Revisão de Leandro Bertoletti
Jardim. Brasília: Programa Nacional de Jovens, 2008c. Anual. (Coleção ProJovem Urbano).

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba, PR: Criar edições, 2007.

ORLANDI, Eni Puccineli. A linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. 4ª Ed., Campinas, SP: Pontes,
1996.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Puccineli Orlandi. 3.ed.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

ORLANDI, Eni Puccineli; LAJOLO, Marisa; IANNI, Octávio. Sociedade e linguagem. Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
1997.

POSSENTI, Sírio. Os limites do discurso. São Paulo: Criar edições, 2004.

POCHMANN, Márcio. O desafio da inclusão social no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 2004.

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum a consciência filosófica. São Paulo: Cortez: 1980.

Possui graduação em História pela Universidade Federal do Ceará (2005), é especialista em Ensino de História pela
Faculdade Farias Brito (2008) e é mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará (2010). A pesquisa
desenvolvida no mestrado tem como referencial teórico a vertente francesa da Análise do Discurso, posicionando-se numa
interface entre a Linguística, a História e a Filosofia da Linguagem. Email: argusromero@yahoo.com.br

997
Modalidades alocutivas no discurso de uma professora-
formadora: uma identidade em (re)construção

MOREIRA, Andréia Godinho


(PUC Minas)

Introdução

A reflexão que aqui se propõe parte da premissa de que “comunicar é proceder a uma encenação”
(CHARAUDEAU, 2008, p. 68). Nessa perspectiva, os modos de dizer do locutor tendem a ser regulados consoante o efeito
de sentido que se pretende produzir. Isso implica dizer, à luz do autor citado, que uma situação de comunicação reúne
sujeitos ou parceiros da troca linguageira, ligados por um contrato de comunicação. Na visão de Charaudeau e
Maingueneau (2008), o contrato permite aos parceiros de um evento comunicacional

reconhecerem um ao outro com os traços identitários que os definem como sujeitos desse ato
(identidade), reconhecerem o objetivo do ato que os sobredetermina (finalidade), entenderem-se sobre
o que constitui o objeto temático da troca (propósito) e considerarem a relevância das condições
materiais que determinam esse ato (circunstâncias). (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2008 b, p.
132).

Sob esse enfoque, é possível afirmar que o estabelecimento de um contrato entre os partícipes de um evento
discursivo vai depender de um processo de identificação entre os sujeitos envolvidos na situação de comunicação, por meio
de trocas intersubjetivas no curso da interação.
Para Charaudeau, uma situação de comunicação

determina a identidade social e psicológica das pessoas que comunicam. E (...) ao comunicar, essas
pessoas se atribuem também uma identidade propriamente linguageira que não tem a mesma natureza
da identidade psicossocial. (CHARAUDEAU, 2008 a, p. 76, ênfase do autor).

No tocante a esse aspecto, que remete à situação de comunicação, esse autor distingue quatro sujeitos. Aqueles
que existem no espaço externo ao ato de linguagem são os parceiros ou seres sociais e psicológicos. O sujeito que se
encarrega da produção discursiva recebe o nome de sujeito comunicante (EUc) e quem recebe o discurso do locutor,
interpretando-o e reagindo a esse ato de fala denomina-se sujeito interpretante (TUi). No outro lado do ato de linguagem, no
circuito interno, localizam-se os protagonistas ou seres de fala, que se definem por papéis linguageiros. Esses sujeitos são
o enunciador (EUe), que se inscreve ou se apaga no discurso, e o destinatário (TUd), que recebe um lugar discursivo
determinado pelo locutor.
Nessa perspectiva, um ato de linguagem constitui-se por um “encontro dialético [...] entre dois processos:
processo de produção, criado por um EU e dirigido a um TU-destinatário; processo de interpretação, criado por um TU’-
interpretante, que constrói uma imagem EU’ do locutor.” (CHARAUDEAU, 2008 a, p. 44, ênfase do autor).
Charaudeau designa o ato de linguagem como

“[...] um fenômeno que combina o dizer e o fazer. O fazer é o lugar da instância situacional que se auto-
define pelo espaço que ocupam os responsáveis deste ato [...]. O dizer é o lugar da instância discursiva

998
que se auto-define como uma encenação da qual participam seres de palavra [...]. Esta dupla realidade
do dizer e do fazer nos leva a considerar que o ato de linguagem é uma totalidade que se compõe de
um circuito externo (fazer) e de um circuito interno (dizer), indissociáveis um do outro. (CHARAUDEAU,
2001, p. 28).

Essa definição de ato de linguagem, na perspectiva de Charaudeau (2001), engloba aqueles que se
responsabilizam pelos processos de produção e interpretação desse ato, ou seja, os sujeitos da linguagem, que se
distribuem nos espaços do dizer e do fazer. Tendo em vista os partícipes que interagem numa dada situação de
comunicação, passo a descrever, na sessão seguinte, os sujeitos deste estudo.

A constituição do papel institucional de professora-formadora da SMED

O evento discursivo que este trabalho se propõe a analisar envolve professores do ensino fundamental da Rede
Municipal de Ensino de Belo Horizonte (RME/BH). O corpus deste estudo é composto por uma reunião de formação em
serviço, ocorrida em novembro de 2008, em uma escola da RME/BH. Participam dessa reunião quatro professoras que
lecionam para estudantes que se encontram no último ano do primeiro ciclo de formação1, duas coordenadoras
pedagógicas e uma professora-formadora que trabalha na Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte
(SMED/BH).
No quadro profissional apresentado, no âmbito da SMED, todas as professoras e coordenadoras envolvidas na
reunião pedagógica que compõe o corpus deste trabalho ocupam a função de professoras do ensino fundamental, o que as
habilita a ministrar aulas aos estudantes que se encontram no 1º ao 6º ano desse nível de ensino. Esclarece-se que quem
coordena a reunião é uma professora municipal que compõe, temporariamente, a equipe pedagógica da SMED, no
exercício do papel de professora-formadora, o que a habilita a ministrar cursos de formação continuada e/ou em serviço
para professores do ensino fundamental da RME/BH, além de produzir materiais voltados para o ensino e aprendizagem de
Língua Portuguesa, no tocante à alfabetização e ao letramento dos estudantes dessa rede de ensino.
Sob o enfoque enunciativo-discursivo que orienta a reflexão aqui proposta, é possível admitir que exercer o papel
institucional de professora-formadora da SMED implica representar um lugar socialmente representado nos discursos, que
pode lhe exigir a assunção de determinados posicionamentos identitários, tendo em vista os discursos autorizados na (e
pela) SMED. Por enunciar em nome da esfera responsável pelo gerenciamento das escolas da RME/BH, nos âmbitos
administrativo e pedagógico, a professora-formadora da SMED precisa posicionar-se, muitas vezes, como uma gestora, que
coordena as reuniões de formação em serviço dos professores de determinadas escolas, sendo responsável pelo
encaminhamento de propostas pedagógicas e/ou determinações a serem cumpridas pelos professores que participam das
reuniões de formação.

1 O último ano do primeiro ciclo corresponde ao terceiro ano do ensino fundamental.

999
O fato de assumir o papel institucional de professora-formadora da SMED, como dito, tende a inscrever essa
profissional em um lugar social que a habilita a dizer o que diz e da maneira como o faz diante dos interlocutores, os
partícipes das reuniões de formação em serviço em escolas da RME/BH.

Os sujeitos da linguagem e o modo enunciativo de organização do discurso

Tendo em vista a finalidade comunicativa da professora-formadora, evidenciada no evento discursivo em exame


neste artigo, pode-se dizer que seu discurso organiza-se conforme o modo enunciativo, cujo foco volta-se para os
protagonistas, classificados por Charaudeau (2008 a) como seres de fala, internos à linguagem, o que corresponde ao
enunciador (EUe) e ao sujeito destinatário (TUd).
Na perspectiva desse autor, enunciar indica um fenômeno referente à organização das categorias da língua,
segundo a posição ocupada pelo sujeito comunicante em relação ao interlocutor, no que tange aos modos de dizer de si e
do outro. Esse modo organiza-se consoante três funções que regulam o que se denomina comportamento alocutivo,
delocutivo e elocutivo.
Como este trabalho volta-se para a relação de influência que a locutora (professora-formadora) exerce sobre as
interlocutoras (professoras em formação), a análise do corpus do estudo terá como foco o comportamento alocutivo, ou
seja, o fato de o locutor agir sobre o interlocutor (CHARAUDEAU, 2008 a). Como no modo enunciativo o interlocutor recebe
a influência do locutor, seja qual for sua identidade psicossocial, é preciso que este reaja ao ato de linguagem postulado
pelo locutor, aceitando ou não a proposta/imposição do sujeito comunicante.
Como mencionado, numa situação de comunicação, o locutor costuma atribuir papéis linguageiros a si e ao(s)
interlocutor(es). Na assunção desses papéis, o sujeito comunicante pode assumir uma posição de superioridade em relação
ao(s) interlocutor(es), atribuindo-lhe(s) ações a executar, o que configura, segundo o autor, uma relação de força,
representadas, neste estudo, pela modalidade alocutiva, nas categorias de injunção e sugestão.
Passemos, então, à análise dos dados deste estudo, aqui representados na forma de alguns trechos da reunião
pedagógica de formação de professores, ocorrida em uma escola da RME/BH, envolvendo os sujeitos já mencionados, com
vistas a flagrar a injunção e a sugestão, pressupostas pelo modo alocutivo, e sua relação com a assunção de
posicionamentos identitários por parte da professora-formadora2.

2 No trecho em análise, as partícipes da reunião estão identificadas como: PF (professora-formadora, C2 (coordenadora pedagógica) e P1 (professora). As transcrições foram baseadas nas normas adotadas
por: PRETI, Dino e URBANO, Hudinilson (1991), a saber: a) incompreensão de palavras ou segmentos: (); b) hipótese do que se ouviu: (hipótese); c) truncamento: /; d) prolongamento de vogal ou consoante:
::::; e) entoação enfática: maiúsculas; f) comentários descritivos do transcritor: ((risos)); g) qualquer pausa: ...; h) citações literais: “ “; i) superposição, simultaneidade de vozes [[

1000
(1) PF: (...) então todo mundo recebe o consolidado dia do::ze e no dia dezessete já vão tá com a
escrita toda pronta do boletim... né? e dos diários... dezoito é o último dia de entrega do diário...
né isso? ah tá... nô diário tem que colocar atrás do diário... no/ na última parte (ele é assim né) nã nã
nã abriu observações... aí tem que colocar assim ó... frequência apurada até o dia onze do doze de
dois mil e oito...
2) C2: boletim que ocê tá falando
(3) PF: boletim
(4) C2: ah tá
(5) P1: então cumé que é?
(6) PF: frequência apu-rada até on-ze do do-ze de dois mil e oito... ta aí nessa circular zero zero meia
dois mil e oito tá escrito aí embaixo assim... observação... ok? é até onze do doze... esse restante que
tá escrito aqui até quinze nada disso
(7) P1: então isso significa que a data lá embaixo então é pra poder fechar onze do doze não?
(8) C2: não... lá é o último dia letivo... o último dia letivo
(9) P1: então dezenove
(10) C2: é
(11) PF: dezenove
(12) P1: é dezenove que tem que lançar?
(13) PF: é... último dia letivo dezenove

Nessa sequência discursiva, nota-se a emergência de um enunciador dotado de autoridade para prescrever aos
destinatários ações com prazo para execução, como se observa nos trechos destacados. No segmento (6), PF parece
legitimar sua atitude prescritiva por meio de um documento normatizador, uma circular enviada às escolas pela SMED,
como se observa no seguinte trecho: “ta aí nessa circular zero zero meia dois mil e oito tá escrito aí embaixo assim...
observação... ok?”.
No tocante ao modo de organização do discurso de PF, observa-se que o foco recai sobre os seres de fala, os
intralocutores, localizados no circuito interno à linguagem, ou seja, EUe e TUd. Isso se explica pela maneira como o sujeito
comunicante atua na encenação do ato de linguagem, ocupando uma posição em relação ao que diz e àquilo que o outro
diz. Relativamente à influência que PF exerce sobre as professoras em formação, nesse evento discursivo, pode-se afirmar
que ocorre uma relação de força balizada pelo posicionamento da locutora, ao impor às interlocutoras a execução de uma
ação, ou melhor, “fazer fazer”, nas palavras de Charaudeau (2008 a, p. 82). Nesse evento, o comportamento alocutivo é
representado pela injunção, que pressupõe uma posição de superioridade do locutor em relação ao interlocutor.

1001
Agindo dessa maneira, PF estabelece uma ação a ser realizada pelas interlocutoras, o que se observa, nos
trechos seguintes, pela construção perifrástica (tem que + infinitivo, no caso o verbo colocar): “nô diário tem que colocar
atrás do diário”; “aí tem que colocar assim ó...”.
Tendo em vista a identidade social de PF, pode-se dizer que seu comportamento alocutivo, com a utilização da
modalidade injuntiva ancora-se no papel social que representa na SMED, que a habilita a enunciar do lugar social de quem
possui legitimidade para impor determinadas ações às interlocutoras. O fato de falar em nome de uma esfera que gerencia
o funcionamento das escolas tende a regular os modos de dizer de PF, confere-lhe uma identidade social, o que lhe dá o
direito de tomar a palavra e de se inscrever como ser comunicante, que representa um papel na situação de comunicação.
(CHARAUDEAU, 2006).
Ainda que a professora-formadora assuma uma identidade social que lhe dá o direito de dizer o que diz de uma
determinada maneira, como demonstrado na sequência em análise, cumpre ressaltar, com Hall (2006) que a identidade de
um sujeito não é fixa, mas construída na interação. A esse respeito, Silva & Matencio (2005) acrescentam que as
identidades são multifacetadas, fragmentadas, plásticas, sendo (re)construídas em movimentos de ambivalência que
pressupõem tanto a integração quanto a exclusão do outro.
Na realização da atividade profissional, nem sempre é possível, necessário ou recomendável ao professor-
formador a imposição de tarefas aos partícipes da reunião de formação. Em determinadas ocasiões, como pode ser notado
nos trechos em análise, o discurso da professora-formadora deixa entrever um enunciador que tenta negociar a realização
de determinadas tarefas junto ao grupo que participa da formação em serviço, o que reforça a ideia de que a identidade
individual é construída na (e pela) interação. Vejamos o excerto seguinte:

(104) PF: (...) quando eu fiquei sabendo que a primeira fase do


segundo ciclo ela ia ficar toda à tarde... aí eu questionei novamente
falei com a J. então perdeu o sentido... né? perdeu o sentido porque se
a meu ver esses meninos iam ser retidos porque precisava fazer um
trabalho com eles de alfabetização e era essa equipe aqui que dava
conta disso... né? hoje... os meninos da primeira fase vão estar com
essa equipe que é a equipe da alfabetização... né? e que a defasagem
deles pode ser tratada aqui... no mesmo grupo... com o mesmo/ com
as mesmas pessoas ...então o que que acontece? eu estou
defendendo a não retenção... eu num vejo sentido nela
(105) P: uhn uhn
(106) P1: eu vejo ainda
(107) PF: e aí é isso que eu quero dizer porque tá aberto pra quem ()
a SMED tá
(108) P: uhn uhn
dizendo o seguinte... pra reter tem que fazer um relatório... tem que
fazer um relatório dos três anos... da evolução desse menino nos três
anos de ciclo né? e aí assim... a indicação da retenção é DE vocês
entendeu? então a minha
(109) P: uhn uhn
parte ela se encerra aqui... né? então eu acho que ocê pode ver C. ocê
tem toda:: né?

No segmento (104), nota-se a argumentação de PF a fim de defender a não retenção de alunos no final do 1º
ciclo, o que aparece como sugestão: “eu estou defendendo a não retenção... eu num vejo sentido nela”. Na categoria

1002
alocutiva de sugestão, segundo Charaudeau (2008 a), o locutor, ao pressupor que o interlocutor esteja numa posição
desfavorável, propõe-lhe a execução de uma tarefa como uma maneira de melhorar aquela situação. Para tal, o locutor
pode agir como se fosse o interlocutor. Note-se, nessa fala, a emergência de um enunciador que se posiciona como quem
sabe o que fazer e como fazer, no entanto, não impõe a execução da tarefa às professoras em formação, uma vez que a
possibilidade de retenção é considerada pela SMED.
Diante da resposta de P1, no segmento (106), PF posiciona-se, mais uma vez, como alguém que possui poder
sobre as interlocutoras, ao determinar o cumprimento de uma tarefa para que a retenção seja realizada, o que se comprova
pelo trecho: “pra reter tem que fazer um relatório... tem que fazer um relatório dos três anos... da evolução desse menino
nos três anos de ciclo né?”.
Note-se, mais uma vez, a ocorrência da modalidade injuntiva, evidenciada pela perífrase (tem que fazer um relatório),
utilizada enfaticamente por PF.
Observa-se também a tentativa de apagamento do enunciador, que tenta imputar às interlocutoras toda a
responsabilidade pela execução da tarefa. No momento em que diz, no segmento (109): “a minha parte ela se encerra
aqui”, é possível identificar um sujeito que assume, naquele momento, a incapacidade de influenciar o comportamento das
interlocutoras, a ponto de levá-las a uma ação (não reter os estudantes do final do 1º ciclo).
Nos segmentos seguintes ocorre uma discussão, segundo a qual duas professoras tentam convencer a
professora-formadora da necessidade de retenção de alguns alunos que não apresentam um rendimento satisfatório ao
final do 1º ciclo, no que concerne aos processos de alfabetização e letramento. Vejamos um excerto dessa discussão:

(135) PF: entendi... o que ocê tá me dizendo é que um a::no pra


esses meninos é pouco... () um ano do segundo ciclo seria pouco pra
ele... ele teria que ter o terceiro ano do primeiro ciclo novame::nte
pra depois tá no primeiro ano do segundo ciclo pra resolver uma
questão ()
(136) P1: isso
(137) P1: eu acho que se a gente tem uma facilidade ()
(138) ((simultaneidade de vozes))
(139) P1: () entendeu? porque se ele for agora... D. (PF) por
exemplo... vai continuar a mesma... se ele ficar é a mesma equipe...
se ele for... tudo bem é a mesma equipe
(140) PF: si::m
(141) PF: é porque eu cheguei a falar com a J.((coordenadora
pedagógica)) ... J. eu num tô entendendo o seguinte... o trabalho que
vai ser feito com esses meninos é o mesmo
(142) P1: é mais ou menos o mesmo
(143) PF: seja lá ou seja aqui:: é esse trabalho que tem que ser feito

Nessa sequência, diante dos argumentos de P1, PF parece relativizar o posicionamento contrário à retenção de
alunos, demonstrado no segmento (104). Isso se torna evidente no segmento (143), no qual a professora-formadora parece
concordar com a possibilidade de retenção, ao dizer: “seja lá (no segundo ciclo) ou seja aqui:: (no primeiro ciclo) é esse
trabalho que tem que ser feito”. Do ponto de vista de Hall (2006, p. 13), “dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.”
Nesse sentido, como dito, a identidade da professora-formadora vai sendo (re)negociada, no evento discursivo, no
curso da interação com as professoras em formação, à medida que estas se posicionam perante os atos de linguagem que
postula. Conforme Charaudeau (2006 a), é possível dizer que a (re)construção identitária por parte da professora-formadora

1003
trata-se de um movimento gerado na tentativa de estabelecer e/ou manter uma relação contratual com as partícipes da
reunião de formação.
Para finalizar, ressalte-se a modalidade injuntiva, exteriorizada, novamente, pela professora-formadora, destacada
no seguinte trecho do segmento (143): “é esse trabalho que tem que ser feito”. Esse trecho reflete a tomada de posição da
professora-formadora que parece legitimar o lugar social de onde se enuncia, deixando à mostra, mais uma vez, a posição
de quem sabe o que fazer, ou seja, os saberes teóricos e experienciais presumíveis pelo papel institucional de professora-
formadora da SMED.

Palavras finais

Com base nos resultados do trabalho investigativo descrito neste estudo, à guisa de conclusão, pode-se dizer que
a constituição identitária de um sujeito é plástica, maleável ou, como preconiza Hall (2006, p. 13), “a identidade torna-se
uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.”
No caso em exame, a identidade da professora-formadora da SMED é uma construção discursiva, reflexo de uma
negociação de posicionamentos que emanam dos diversos enunciadores que o locutor (sujeito comunicante) deixa entrever
no discurso, a fim de estabelecer e/ou manter um contrato de comunicação com os destinatários dos atos de linguagem que
postula.
A necessidade de a professora-formadora negociar sua identidade nas reuniões de formação em serviço pode ser
explicada pela relação de força que se estabelece entre essa profissional e as partícipes da reunião pedagógica, sobretudo
nas ocasiões em que utiliza a modalidade injuntiva, legitimada pelo papel institucional que representa, com vistas a levar as
interlocutoras à execução de determinadas ações, na esfera escolar.

Referências

CHARAUDEAU, Patrick. Identité sociale et identité discursive, le fondement de la compétence communicationnelle. In:
Gragoatá. Publicação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. Niterói: EdUFF,
2006.

CHARAUDEAU, Patrick Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008 a.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008 b,
p. 132.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio
de Janeiro: DP&A, 2006.

PRETI, Dino; Urbano, Hudinilson. Linguagem falada culta na cidade de São Paulo: estudos (vol. 4). São Paulo: T. A.
Queiroz / FAPESP, 1990.

SILVA, Jane Quintiliano Guimarães; MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Referência pessoal e jogo interlocutivo:
efeitos identitários. In: KLEIMAN, Angela B; Matencio, Maria de Lourdes Meirelles (orgs.). Campinas: Mercado de Letras,
2005, p. 245-265.

1004
Professora de Língua Portuguesa do ensino fundamental, mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas e
bolsista da CAPES. Atualmente trabalha na Secretaria Municipal de Ensino de Belo Horizonte (SMED/BH), com programas
de formação de professores. E-mail: deiagm2007@gmail.com

1005
Conotações e discurso: o sujeito como efeito de sentido

MOREIRA, Jorge de Azevedo


(Colégio Pedro II)

1. Objetivos gerais
O presente trabalho representa um desdobramento das ideias formuladas em nossa tese intitulada Conotações e
construção de sujeitos no discurso: uma análise do discurso midiático da boa forma física, defendida em 2008. Buscamos
aqui discutir os tradicionais conceitos de denotação e conotação, propor uma tipologia de conotações e estabelecer a noção
de ethos como um efeito conotativo global. Nosso investimento metodológico será guiado fundamentalmente pelos
princípios teóricos da análise semiolonguística do discurso, já que pensamos a noção de sentido necessariamente dentro
de atividades discursivas.
Ilustraremos nossas posições, no mais das vezes, com enunciados autênticos, retirados das revistas Boa Forma e
Corpo a Corpo (doravante representadas, respectivamente, pelas siglas “BF” e “CC”), que constituíram o corpus de nossa
tese.
Principiemos por reavaliar alguns conceitos habituais acerca da denotação e da conotação.

2. Sentido de língua e sentido de discurso


As noções de denotação e conotação aparecem desde cedo na escola, sendo definidas de modo bastante
elementar: a denotação seria uma espécie de sentido “direto”, “real”, enquanto a conotação seria de natureza indireta,
associativa. Contudo, uma análise mais detida sobre o assunto nos revela algumas incoerências conceituais. Para mostrá-
las, debateremos algumas noções veiculadas tradicionalmente, que acabam se escorando em oposições cujos polos
costumam ser “sentido de dicionário” e “sentido contextual”, ou, ainda, “sentido de língua” e “sentido de discurso”.
Comecemos pela exposição do assunto feita por um livro didático atual voltado para o ensino médio, Português:
de olho no mundo do trabalho (2004), cujos autores são Ernani Terra e José de Nicola. Eis o que nele se apresenta acerca
dos conceitos que analisamos:
– denotação: a palavra apresenta-se em seu sentido básico, tal como aparece no dicionário.
– conotação: a palavra apresenta-se com seu significado alterado, permitindo diferentes
interpretações, sempre dependendo do contexto em que aparece. (TERRA & NICOLA, 2004. p. 347)

À luz de linhas de estudo como a análise do discurso e a lexicografia, tais definições se mostram inconsistentes.
Em primeiro lugar, trata-se de um equívoco considerar o dicionário como uma instância totalmente
descontextualizada. Qualquer bom dicionário registra, além do chamado sentido denotativo, várias outras acepções de
natureza conotativa, ilustrando-as frequentemente com frases.
A esse respeito, José-Alvaro Porto Dapena comenta que para determinados linguistas, como Eugenio Coseriu,
não haveria exatamente dicionários de língua – aqui entendida aproximadamente como a langue de Saussure –, já que esta
é vista como uma virtualidade; seria, antes, mais apropriado falar de dicionários de "norma" ou "fala", porquanto as
acepções arroladas num dicionário se referem a usos concretos no discurso (PORTO DAPENNA, 2002, p.196-197).
Em segundo lugar, ao se considerar que o sentido denotativo é o sentido “básico”, dá-se a entender que este
preexiste e independe de todo e qualquer contexto, servindo, além disso, de referência obrigatória para o entendimento dos
sentidos conotativos. Tal questão é atualmente vista com grandes reservas, sem que se tenha chegado a um consenso

1006
absoluto: segundo Luiz Antonio Marcuschi há linguistas que defendem que o acesso ao sentido conotativo por parte do
falante se dá necessariamente via sentido denotativo; outros, diferentemente, afirmam que, em certas circunstâncias, o
entendimento do sentido conotativo é direto, não mediado pelo sentido denotativo (MARCUSCHI, 2007, p. 90). Até que
ponto, quando falamos que uma pessoa é "burra" – caso do exemplo citado anteriormente – pensamos de fato no animal
quadrúpede? Ademais, parece ser mais acertado dizer que o sentido denotativo é também contextual, já que não há como
conceber comunicação sem contexto.
Habitualmente, empregam-se também os termos “sentido de língua” e “sentido de discurso” para se falar,
respectivamente, de denotação e conotação. Todavia, numa perspectiva discursiva, que encara a língua como um processo
interativo e não apenas como estrutura, só é cabível pensar em sentido dentro do âmbito discursivo – pois discurso, nesse
caso, é interação e é por ela que emerge o sentido.
A análise semiolinguística do discurso, idealizada por Patrick Charaudeau, nos dá boas lições acerca desse
assunto. Em seu livro Langage et Discours (1983), Charaudeau estabelece a disciplina semiolinguística como um espaço de
reflexão acerca da relação entre formas e significados nas atividades linguageiras. Uma importante ideia proposta é a de
que não se deve tomar as formas linguísticas como portadoras de um sentido básico que se alteraria e se diversificaria no
discurso. As conotações, consideradas geralmente como valores semânticos secundários, constituem na verdade parte
integrante de determinadas práticas discursivas. Quando se fala, por exemplo, algo do tipo “Ela é mulher, dirige muito mal”,
não teríamos aí, no entender de Charaudeau, um sentido denotativo ao qual se agrega no discurso um matiz pejorativo.
Esse caráter pejorativo, presumivelmente machista, é parte integrante e indissociável do ato de linguagem em questão.
Além disso, a noção de “sentido de língua” pode se mostrar inconsistente, de acordo com a linha teórica seguida.
Se definirmos “língua” como uma estrutura de combinações paradigmáticas e sintagmáticas, na qual não existem senão
diferenças – tal como a concebiam os estruturalistas –, ela representará a contraparte abstrata de realizações linguageiras
concretas, ou seja, o discurso.
Contudo, enquanto no estruturalismo concebia-se o sentido de um signo como um elemento estável dentro de
uma rede de paradigmas que se ampliaria no discurso – tornando-se então instável –, na semiolingüística trabalha-se com
regularidades discursivas que vão fixar diferentes paradigmas – portanto, instáveis – dentro de uma virtualidade linguística.
Ou seja, para Charaudeau, não é a língua, com suas regras e redes de oposições, que é convocada para dar sentido ao
discurso; ao contrário, é o discurso que acaba por fixar as regras e redes de oposições da língua.
Para ilustrar esse ponto de vista, consideremos o seguinte par de enunciados:
(1) O rato conseguiu fugir.
(2) Aquele político é um verdadeiro rato.

Verificamos que as combinações paradigmáticas em (1) são distintas das de (2). De fato, no enunciado (1), o
signo “rato” poderia ser substituído por palavras do campo semântico de animais: “cachorro”, “gato”, “tartaruga”, o que
evidencia seu sentido literal. Já no exemplo (2), o signo “rato” seria tomado numa análise tradicional como estando em seu
sentido conotativo, já que suas combinações paradigmáticas girariam agora em torno de signos relativos à apreciação de
caráter, tais como “desonesto”, “corrupto”, “leviano” e outros.
Assim sendo, concluiríamos, dentro da visão semiolinguística, que o sentido efetivo de uma unidade lingüística se
dá no discurso e é a partir deste que se dispersa, constituindo o fenômeno conhecido como polissemia. Portanto, os
sentidos denotativo e conotativo devem ser vistos como instâncias intersubjetivas, voltadas para fins discursivos variados.
Cumpre ressaltar que a ideia do sentido denotativo como pertencendo também à esfera do discurso não constitui
uma tese moderna. Ao comentar sobre os fatores que contribuem para a produção de sentidos conotativos, Mattoso

1007
Câmara Jr., ainda dentro dos quadros estruturalistas, estimava que a própria denotação pode manifestar sensações
agradáveis e desagradáveis (CÂMARA JR., 1974, p.121). Ao qualificar, por exemplo, uma pessoa como magra ou como
gorda, por mais que objetivemos destacar um aspecto da realidade, certamente estaremos indo além da referencialidade
dessas palavras, nos aproximando do elogio ou da ofensa, conforme o caso.
Dentro dos estudos discursivos, costuma-se empregar a expressão “efeito de sentido”, para designar tais
conotações afetivas. Sendo assim, cremos ser coerente considerar que a denotação constituiria um efeito de sentido
visando à neutralidade e à objetividade dentro das práticas discursivas e não um fato lingüístico natural – como se a língua
fosse natural e preponderantemente voltada para representar o mundo. Em vez disso, a língua, enquanto discurso,
representa um espaço de colocação de sujeitos num processo de interinfluência, movidos por um propósito comunicativo.
Essa perspectiva conduz a uma interessante inversão conceitual: em vez de tomarmos a denotação como base
da produção de sentidos conotativos, assumiríamos que a denotação é, do ponto de vista do discurso, uma conotação entre
outras, que visa à referencialidade pura – já que, se costumamos empregar a língua para eventualmente ser belicosos ou,
ao contrário, agradáveis, também podemos desejar meramente ser neutros ou objetivos.
Na verdade, se levarmos em conta a noção de efeito de sentido, seríamos conduzidos a estabelecer, pelo menos,
dois tipos distintos de conotação, diferença que em geral não é explicitada por livros didáticos ou mesmo por obras
específicas de semântica. De um lado teríamos sentidos conotativos relativos a associações semânticas, mormente por
processos metonímicos ou metafóricos; de outro, haveria um conjunto de conotações concernente à produção de certos
valores afetivos no discurso. Tais modalidades não se excluiriam, entretanto. Ao chamar alguém de “burro”, por exemplo,
teríamos um sentido de base metafórica, conforme já comentamos, e também um efeito de ofensa.
Torna-se necessário, portanto, discutir esses diferentes tipos de conotação, e outros mais, sob a perspectiva dos
estudos sobre o discurso.

3. Para uma tipologia de conotações


Seria possível categorizar até aqui, conforme demonstramos acima, pelo menos duas diferentes modalidades de
conotação. Chamaríamos uma delas de “conotação associativa”, caracterizada por deslizamentos semânticos de ordem
metafórica ou metonímica. Poderíamos apresentar o seguinte exemplo:
(3) Pense magro e faça as pazes com a balança. (CC222, p.138)

O enunciado acima traz uma metonímia (“pensar magro”, ou seja, formular uma conduta para ficar “magro”) e uma
personificação (fazer as “pazes com a balança”, isto é, usá-la sem nenhuma contrariedade).
Outro tipo de conotação, já levantado anteriormente, seria a “apreciativa”, relacionada a julgamentos de valor, a
expressões afetivas e mesmo a condicionamentos ideológicos. É interessante notar que uma mesma unidade lingüística,
como um substantivo, pode assumir valores afetivos diversos, conforme o texto dentro do qual se encontra. É o caso do
enunciado seguinte, em que figura a palavra “magrinha”:
(4) Como uma magrinha ganha músculo? (CC, n.207, p.70)

Dentro da matéria em que se encontra esse enunciado, “magrinha” assume uma conotação negativa, já que,
nesse caso, o corpo musculoso é mais valorizado que o corpo simplesmente magro. Contudo, em outros contextos, na
verdade na maioria das reportagens desse tipo de publicação, “magrinha” (ou “magra”), seja como adjetivo, seja como
substantivo, costuma assumir uma conotação francamente positiva.

1008
A esses dois tipos de conotação mencionados acima, acrescentaríamos um terceiro. Se levarmos em conta que
“conotação” seria toda produção semântica que fugiria ao efeito de referencialidade da linguagem, deveríamos também
voltar nossa atenção para aquilo que os estudos de análise do discurso e pragmática chamam de “implícitos”. Quando
objetivamos construir enunciados literais, buscamos um efeito de transparência entre a cadeia significante e seus
respectivos significados. Entretanto, na maioria das vezes, até por uma questão de economia de tempo, restringimos ao
máximo a extensão de nossos enunciados, confiando que nosso interlocutor possa compreendê-los. Um enunciado como
“A porta está aberta” pode significar, por exemplo, muito mais do que a constatação de um estado acerca de um objeto do
mundo físico. Há situações nas quais, ao empregarmos esse enunciado, desejamos que uma pessoa entre ou, ao contrário,
saia. Nessas circunstâncias, o signo “porta” certamente se esvazia de seu conteúdo referencial, participando então de um
enunciado performático, isto é, de um ato de fala.
Chamaríamos a esse gênero de conotação de “inferencial”, uma vez que sua interpretação se faz por inferências
daquilo de que não foi dito claramente. É fácil observar que esse tipo conotação se encontra em determinados tipos de
interrogações que se comportam, na realidade, como atos de fala indiretos. Nesses casos, os enunciados interrogativos não
indagam sobre um estado do mundo, antes representando uma ordem ou solicitação, razão pela qual bloqueiam respostas
como “sim” ou “não”. É o que acontece, por exemplo, quando se pergunta “Você tem horas?”, ocasião em que uma resposta
isolada como “sim” não é a esperada.
Finalmente, podemos postular a existência de um quarto tipo de conotação vinculada à imagem que o sujeito
constrói de si mesmo no discurso, ou seja, a seu ethos. Partimos do princípio de que ao produzir um enunciado, seja
denotativo ou conotativo, o sujeito enunciador inevitavelmente passa uma determinada imagem de si a seu interlocutor.
Mesmo nos mais prosaicos enunciados, como um simples “Bom dia!”, constrói-se uma dada imagem – no caso, a de uma
pessoa que pretende ser educada. Nessa linha de raciocínio, enunciados claramente denotativos implicariam certos efeitos
de sentido, como o de objetividade e o de precisão técnica. Desse modo, poderíamos chamar esse efeito de “conotação
identitária”, por colaborar na expressão de uma identidade específica de um sujeito no discurso.
Como situamos este trabalho nos quadros da análise semiolinguística do discurso, que busca estudar o texto e
seus efeitos de sentido globais em vez de se debruçar em frases isoladas, o estudo da conotação identitária se revela mais
interessante que o das demais, motivo pelo qual lhe daremos mais destaque na seção seguinte, exemplificando-a
oportunamente com textos publicados.

4 Conotação identitária, discurso e ethos


Muitas são as imagens que podem ser criadas de um sujeito no discurso. Obviamente, esse processo não é de
todo livre, uma vez que o poder de manipulação do discurso é limitado por uma série de coerções (gênero, situação,
sistema lingüístico). De qualquer modo, resta ao chamado sujeito comunicante (ser do mundo social) um espaço razoável
de criação, dentro do qual ele pode forjar a imagem de um sujeito enunciador específico (transformando-se em ser do
discurso).
No corpus examinado em nossa tese, composto de textos voltados para a boa forma física feminina, o sujeito
enunciador, dono da “voz” que tenta instigar seu público leitor a aderir a um dado número de procedimentos estimados
como salutares – dietas e exercícios físicos –, reveste-se de diferentes conotações identitárias. É assim que, para ter êxito
em seus objetivos, o enunciador se apresenta como motivador, como competente e honesto naquilo que diz, além de
buscar vínculos de identificação com o leitor. Tecemos, a seguir, comentários acerca dessas conotações, ilustrando-as com
trechos das revistas Boa Forma e Corpo a Corpo.

1009
4.1 Conotação identitária de motivação
Naturalmente, uma das maneiras mais óbvias de propor alguém a fazer algo é motivando-o. Isso pode ser feito
com o recurso de promessas:
(5) Perca 4 kg em 7 dias (CC205, capa)
(6) Seque 2 kg por semana (CC232, p.108)
(7) Temos um plano alimentar especial para cada situação que, além de ajudá-la a comer direito, emagrece 3 kg em 14 dias
(CC206, p.102)

Em alguns casos, as promessas se constroem de maneira específica, estabelecendo particularidades do método


proposto. Isso costuma ocorrer com frequência em peças publicitárias. Estamos diante, então, do que chamamos em nossa
tese de “singularização”: trata-se do processo pelo qual uma determinada atitude, considerada corrente dentro da sociedade
ou de um determinado círculo social, é negada ou retificada em prol de outra, estimada geralmente como inovadora.
Reconhecemos que o termo “atitude” se mostra bastante vago, motivo por que o entendemos como uma série de crenças,
posicionamentos discursivos e comportamentos direta ou indiretamente ligados ao interlocutor. É por isso que a
singularização se constrói numa perspectiva de interdiscurso, pois, muitas vezes, um discurso tido como contrário é
invocado para, em seguida, ser negado. Poderíamos apontar os seguintes exemplos:
(8) Pedalar uma hora na bicicleta estacionária pode parecer chato e cansativo, mas não é. Acredite! A gente esquece que está
fechada numa sala e o pensamento voa longe, indo até montanhas e trilhas. (CC216, p.94)
(9) Foi-se o tempo que o chá era coisa da vovó. Nos últimos anos ele virou bebida de mulher inteligente, preocupada com a
boa forma e a saúde (B252, p.103)
(10) Chega de usar o dia-a-dia agitado como desculpa para deixar a ginástica em segundo plano. Não importa quanto tempo
você tem disponível: dá para usá-lo a seu favor em uma aula que mexe o corpo inteiro (CC232, p.90)
Em (8) e (9) são defendidos de eventuais críticas, respectivamente, os exercícios em bicicletas ergométricas e o uso
do chá. Já especificamente em (10), a motivação se fundamenta na oposição a um possível discurso do interlocutor que
justificaria o fato de não se exercitar pela falta de tempo.

4.2 Conotação identitária de cumplicidade


É comum tentarmos atingir nosso interlocutor aproximando-nos dele, criando, assim, um vínculo de identificação.
Por esse motivo, muitos trechos analisados simulam um diálogo direto com o leitor, incluindo aí o emprego de interjeições,
que expressam um ar de oralidade:
(11) Ah, correr não é tão difícil assim, vai! (CC206, p.77)
(12) Ok, você tem o direito a mais um pedacinho (só um, hein!) quando estiver triste, cansada ou estressada. (BF251, p.93)
(13) U-hu! Você sobreviveu à corrida durante um mês inteirinho! (CC206, p.86)

Note-se que em (12) e (13) há vocábulos no diminutivo, que são próprios do linguajar feminino. Costuma-se fazer
uso, aliás, de unidades lexicais próprias da linguagem coloquial, a fim de criar um efeito de descontração:
(14) Sua amiga fez uma dieta, emagreceu horrores. (BF231, p.108)
(15) Resultado: somando todos esses recursos à sua firmeza, a bela passou na prova e ganhou a personagem magérrima.
(CC225, p.117)

1010
A respeito do emprego de determinados itens lexicais, é importante ressaltar o uso de certos estrangeirismos, que
concedem aos enunciados um certo teor de sofisticação:
(16) Importante mesmo é se mexer e dar start ao treino o quanto antes (CC225, p.102)
(17) [...] preparando esses órgãos para fazer seu serviço, ou seja, triturar o alimento no ponto certo para ser assimilado pelo
intestino e daí enviado para o sangue que faz o delivery para as células [...] (BF228, p.96)

Ao lançar mão de tais estrangeirismos, o enunciador constrói não apenas a sua própria imagem, mas também a
de um interlocutor com um nível equivalente de sofisticação, já que se mostra capaz de entender tais vocábulos. É
importante perceber que as duas palavras inglesas vistas acima encontram-se em seu sentido referencial, porém revestem-
se de uma conotação específica no texto.

4.3 Conotação identitária de competência


Para ganhar a confiança do interlocutor não é suficiente se aproximar dele. Mostra-se necessário, também,
apresentar conhecimentos consistentes a respeito daquilo que é dito e proposto. Por isso, é comum invocarem-se
argumentos de autoridade, citando-se especialistas de um dado assunto, bem como os locais em que atuam:

(18) Para derrubar esse conceito, a nutricionista Márcia Regina Del Medico, do Spa Jardim da Serra (SP) elaborou um menu
acessível, no qual você vai gastar cerca de R$ 10,00 por dia. (CC216, p. 92)
(19) O professor de ginástica Ronaldo Martinelli, da [academia] Bio Ritmo (SP), explica como é a aula [...] (CC216, p. 92)

Também são feitas alusões a pesquisas específicas, com a apresentação de dados estatísticos na maioria das
vezes, bem como de informações técnicas:
(20) Prova disso é uma pesquisa realizada justamente pelo Ambulatório de Ginecologia da Adolescentes do Hospital das
Clínicas da USP (SP), que mostrou que 75% das 45 meninas entrevistadas, que tinham entre 10 e 20 anos, fazem somente
uma ou, no máximo, duas refeições por dia quando querem secar. (CC205, p.122)
(21) Lucyanna Kalluf, farmacêutica especialista em fitoterapia e nutricionista funcional do Instituto Alpha, também em São
Paulo é mais otimista: “O chá verde aumenta em 4% o ritmo do metabolismo, segundo pesquisa publicada na conceituada
revista American Journal of Clinical Nutrition, dos Estados Unidos. O branco pode acelerar em até 8%, de acordo com
resultados clínicos” (BF252, p.103)

Mais uma vez atentamos para o fato de que a denotação em si é capaz de gerar conotações, nesse caso
construindo um ethos de competência. Expressões nominais como “nutricionista” e “professor de ginástica”, nomes próprios
(de profissionais, de centros de pesquisa ou de obras especializadas) e mesmo numerais encontram-se todos em seu
sentido referencial, conferindo ao texto uma imagem de objetividade e exatidão. É justamente essa objetividade que pode
impressionar positivamente o interlocutor, convencendo-o da qualidade dos métodos que lhe são propostos.
Vale lembrar, ainda, que é possível que o autor real desses textos tenha conhecimentos pouco avançados nas
áreas de educação física, nutrição ou fisiologia do esporte. Contudo, a imagem passada ao interlocutor no processo
discursivo é a de um entendido nessas áreas, o que evidencia a tese de que o sujeito pode ser considerado, até certo
ponto, como um efeito de sentido.

1011
4.4 Conotação identitária de honestidade
Finalmente, podemos considerar que uma das maneiras que o enunciador tem de persuadir seu interlocutor a
aderir às atividades sugeridas é mostrar-se honesto para com ele. Faz-se necessário lançar mão de certos procedimentos
discursivos que tornem o texto mais realista e moderado, refreando eventuais exageros dos resultados prometidos. Assim
sendo, é comum encontrarmos trechos em que se admitem as dificuldades a serem enfrentadas:
(22) Por falta de tempo, Carina prefere se exercitar em casa, sozinha. Até aí tudo bem. O problema é que a falta de orientação
profissional, pelo menos no início do programa, pra que o professor instrua a correta execução dos exercícios, aumenta muito
as chances de não se conquistar o resultado esperado. (CC206, p.84)

Por vezes, tais dificuldades são realçadas com o emprego de conectivos de oposição:
(23) Melhor ainda que conquistar um corpo bacana é conseguir manter tudo no lugar. Mas a gente sabe que a segunda parte
dessa história não é tão fácil de se tornar realidade. (BF224, p.82)

Em outros casos, recorrem-se a descrições marcantes para sensibilizar o interlocutor, com sequências de
expressões nominais:
(24) Todo ano é a mesma história: o calor vai se despedindo e leva junto um pouco de nosso pique. Os dias frescos, o céu
nublado, a cama quentinha e aquela chuva fina que não pára são um convite para que nossa vontade de treinar vá para o
espaço [...] (CC232, p.98)
(25) Cansaço, dor, monotonia, solidão... seja qual for o motivo que a fez desistir, saiba que essa história pode ter um final feliz.
(CC206, p.86)

Também ocorre de a conotação identitária de honestidade mesclar-se a um certo efeito de cumplicidade.


Linguisticamente, isso é obtido por intermédio do pronome pessoal “nós” e das desinências verbais de primeira pessoa do
plural, bem como da participação de pronomes indefinidos:
(26) A cena é comum, todos nós já presenciamos, mas, convenhamos, é constrangedor. Estamos falando do comportamento
de quem faz dieta. Para essa turma que controla calorias, participar de eventos sociais perde o sentido verdadeiro (de estar
bem com quem se gosta) e vira uma tortura.(CC206, p. 94)
(27) Toda mulher sabe que não é fácil acabar com a celulite. E também ouvimos falar de todas as possíveis causas genéticas.
(BF252, p.88-89)

Verificamos, assim, que é perfeitamente possível a expressão de duas ou mesmo mais conotações identitárias no
discurso, todas voltadas para um objetivo maior – nos casos analisados, o de persuasão do interlocutor.

5. Conclusões
Apesar de bastante disseminada na tradição escolar, percebemos que os conceitos de denotação e conotação
não são de definição tão simples. Partindo de uma visão discursiva, propomos uma tipologia de quatro modalidades de
conotação: a associativa; a apreciativa; a inferencial; e a identitária.Temos aí não uma classificação hierárquica de níveis,
mas dimensões distintas de um mesmo fenômeno semântico que é o afastamento da língua de seu potencial de
representação direta da realidade. É por isso que um mesmo enunciado pode manifestar, de uma só vez, essas quatro
modalidades. Defendemos, ainda, a reavaliação de determinadas dicotomias, como a oposição entre “sentido de língua” e
“sentido de discurso”: postulamos que só se pode falar de “sentido” (seja ele denotativo e conotativo) no discurso.

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Um trabalho de análise do discurso poderia enfocar, em graus diversos, qualquer uma dessas quatro conotações.
Todavia, se quisermos ressaltar o aspecto da interinfluência dos sujeitos discurso, a conotação identitária parece ser a mais
relevante, por consubstanciar-se à noção do ethos, gerada nos atos de linguagem com fins específicos.
Por fim, concluímos que, dependendo da abordagem, “denotação” e “conotação” não representam conceitos
opostos. Dentro do que consideramos como conotações apreciativa e identitária, a denotação pode, por si só, gerar efeitos
bem além do chamado sentido literal ou referencial.

6 Referências
CÂMARA JR., Joaquim Mattoso (1974). Dicionário de filolofia e gramática. 6ª ed. Rio de Janeiro: Jozon.

CHARAUDEAU, Patrick (1983). Langage et Discours : Eléments de sémiolinguistique (Théorie et pratique). Paris : Hachette.

______ (2005). Uma análise semiolingüística do discurso. Trad. de Angela Corrêa. In: PAULIUKONIS, Maria Aparecida
Lino & GAVAZZI, Sigrid (Org.). Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucerna. p. 11-29.

______ (2008). Linguagem e discurso: modos de organização. Trad. de Angela Corrêa, Ida Lúcia Machado et alii. São
Paulo: Contexto.

DUCROT, Oswald. (1984). Le dire et le dit. Paris : Minuit.

GARCIA, Othon Moacir (1996). Comunicação em prosa moderna.17ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.

MAINGUENEAU, Dominique (2005). Ethos, Cenografia, incorporação. Trad. de Sírio Possenti.In: AMOSSY, Ruth (Org.)
Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto. p. 69-92.

MARCUSCHI, Luiz Antônio (2007). Interação, contexto e sentido literal. In: ___. Fenômenos da linguagem: reflexões
semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: Lucerna. p. 76-98.

MARQUES, Maria Helena Duarte (2003). Iniciação à semântica. 6ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

MOREIRA, Jorge de Azevedo (2008). Conotações e construção de sujeitos no discurso: uma análise do discurso midiático
da boa forma física. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. 228 p.

POSSENTI, Sírio (2001). Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes.

TERRA, Ernani & NICOLA, José (2004). Português: de olho no mundo do trabalho. São Paulo: Scipione.

CURRÍCULO DO AUTOR

Nome: Jorge de Azevedo Moreira


Formação acadêmica: Mestre em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa, pela UFRJ; Doutor em Língua
Portuguesa, pela UFRJ.
Área de atuação profissional: Professor de Língua Francesa do Colégio Pedro II
Áreas de interesse: semântica; análise do discurso; ensino do FLE
E-mail: jorgedeazevedo@hotmail.com

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O rap, uma rítmica?
MOTTA, Ana Raquel
(PUC-Campinas / FEsTA)

Em uma enquete organizada por Anscombre (2000), as pessoas mostraram reconhecer como sendo provérbios
também provérbios que não conheciam. Esse reconhecimento dependia de conseguirem imaginar uma situação de
aplicação para aquele provérbio, o que parece indicar que um provérbio não é apenas uma forma fixa, é preciso ter também
um conteúdo proverbial. Para Kleiber (2000), esse conteúdo está relacionado às situações genéricas implicativas que os
provérbios denominariam, o sentido de um provérbio estaria relacionado a todas as situações em que ele já foi e/ou poderia
ser enunciado.
Se as pessoas conseguem perceber como provérbio uma frase que não têm memorizada como tal, é possível
postular que existam mecanismos de proverbialização, de criação de provérbios, como propõe Charlotte Schapira (2000). A
autora afirma que, enquanto alguns provérbios e quase todos os ditados rurais desapareceram, “outros provérbios (...) estão
se criando em nossos dias, debaixo de nossos olhos” (p.83)1.
Para analisar os mecanismos de proverbialização, o que pode ser importante para um trabalho como o meu, que
quer verificar como os rappers constroem enunciados destacáveis e aforizantes, com pretensão de ser repetidos,
memorizados, é necessário considerar o que seria preciso para que viessem a fixar-se.
Anscombre (2000) parte de uma tese clássica (Greimas, 1975 [1970]; Milner, 1969), e a comprova em uma
enquete sobre a competência linguística dos falantes de francês. Um provérbio tem estrutura bipartida e/ou tem rima e/ou
isossilabismo2. Mas há inúmeros provérbios que não são bipartidos e nem contêm propriamente rima, e sim apenas algum
tipo de repetição formal (assonâncias ou aliterações). Claro que a bipartição e a rima são possibilidades fortes para os
provérbios, mas não constituem características obrigatórias. Talvez, a exemplo do que propõem Ilari & Geraldi (1991) sobre
o status da estrutura sujeito + predicado para a oração, pudessem ser considerados estereótipos de provérbios.
No entanto, para Anscombre, é preciso deslocar o olhar de análise da rímica para a rítmica. Os provérbios têm
regularidades rítmicas, mais do que rímicas; mais do que ter regularidades rítmicas, são ocorrências de certas
configurações rítmicas. É possível aproximar a estrutura proverbial à da poesia, ou seja, os provérbios “representam uma
espécie de poesia ‘natural’ própria à língua (...). É sem dúvida dessa poesia natural presente em língua que nasce a poesia
em sentido estrito, após uma lenta maturação”(p. 19)3. No campo musical, é possível uma aproximação do conceito de
“poesia ‘natural’ própria à língua” de Anscombre ao “grão da voz” proposto pela primeira vez por Barthes (1977). A
postulação de Barthes, de que há um “grão da voz” que fala na voz que canta, foi assumida e levada ao extremo por Luiz
Tatit (1994; 2004; entre outros), que propõe que a apropriação da entoação da fala cotidiana é um dos principais aspectos
da canção popular brasileira. Articulando Anscombre (2000), Barthes (1977) e Tatit (1994; 2004; entre outros), proponho
que os cancionistas brasileiros se apropriariam dessa espécie de poesia natural da língua.
Por que as manifestações do campo parêmico (dentre as quais podemos incluir os provérbios, ditados, máximas,
mas também grande parte dos slogans) recorrem aos esquemas rítmicos? Para Anscombre (2000), a explicação através da

1 “D’autres proverbes (...) sont em train de se créer de nos jours, sous nos yeux.” (2000: 83)
2 Nas palavras de Anscombre (2000: 17): “a língua parece evitar disparidades silábicas muito grandes entre os dois membros”
[“la langue semble éviter les trop grandes disparités syllabiques entre les deux membres”].
3 “... représentent une sorte de poésie ‘naturelle’ propre à la langue (...). C’est sans doute de cette poésie naturelle présent en langue

qu’est née la poésie tout court, après une lente maturation” (p. 19).

1014
função mnemônica não é suficiente, afinal decoramos locuções fixas, presentes em muito maior número em língua, sem
recorrer a procedimentos rítmicos específicos.
O autor lança a hipótese, segundo ele, aventurando-se na fronteira entre linguística e etnologia, de que a noção
de ritmo envolve o canto e a dança, que, em épocas ancestrais da humanidade, eram considerados um fenômeno único,
equivalente ao que hoje chamaríamos recitação. A métrica reenvia à poesia, mas também a um elemento musical, marcado
pelo metrônomo. Anscombre relaciona os pés da música aos pés com que marcamos o ritmo, lembrando – o que é sempre
necessário para a linguística – que a voz sai de um corpo4. A estrutura rítmica fixa evoca uma palavra sagrada, que não
pode ser mudada, trocada por um sinônimo. Não é a palavra comum.
Nesse ponto, novamente o que propõe Anscombre (2000) se aproxima dos estudos sobre a canção de Luiz Tatit
(1994; 2004; entre outros), para quem, na fala cotidiana, conserva-se o sentido intelectivo e não os elementos prosódicos.
Embora os elementos prosódicos sejam fundamentais para a constituição da linguagem, são, de certa maneira,
“descartáveis” na fala cotidiana. Para parafrasear o que uma pessoa falou, ainda que se utilize a teatralidade do discurso
direto, não é necessário repetir a prosódia da fala que está sendo parafraseada. De forma contrária, na canção, o mais
importante é a prosódia. Podemos não saber exatamente uma letra (ou mesmo quando a canção é em uma língua que
desconhecemos) e mesmo assim cantarolá-la, substituindo as palavras por sons que não caracterizam necessariamente
palavras. Esse é inclusive o processo mais comum para composição de canções: cantarolar uma melodia até encontrar as
palavras intelectivas que “se encaixem”5.
Novamente articulando Anscombre (2000) e Tatit (1994; 2004; entre outros), proponho que a palavra proverbial
associa uma fixidez prosódica – a forma fixa na rímica, rítmica e entoação – a uma fixidez intelectiva – o aspecto
denominativo do provérbio. Unindo esses dois aspectos, o provérbio aproximaria a fixidez da forma da canção à importância
intelectiva da fala cotidiana: seria uma fala cotidiana com forma fixa.
Há bastante semelhança entre essa conceituação que proponho para o provérbio e uma descrição que se poderia
fazer do rap, ressalte-se, uma sigla para ritmo e poesia! E de modo mais marcado que no provérbio, o rap tem uma métrica
não apenas subjacente em nossas marcações mentais6, mas também uma base musical, em compasso quaternário,
marcando a duração dos versos. É uma forma de desvinculação da poesia não só do papel, mas também da contagem de
sílabas da métrica. Diferentemente da poesia modernista, que propôs uma métrica não necessariamente restrita aos
cânones, no rap, a métrica não é a do verso livre, e sim marcada pela contenção do compasso, em que pode haver
plasticidade do número de sílabas.
Não estou de modo algum postulando que os raps sejam encadeamentos de “candidatos a provérbios”, mesmo
porque nem todos os versos de um rap são sentenciosos ou têm sentido implicativo, mas é bastante relevante comparar os
resultados obtidos por Anscombre para os provérbios com os raps. Para esse autor, o ritmo é, no provérbio, mais

4 Joana Plaza Pinto (2006) faz uma crítica bastante interessante sobre o (não) lugar do corpo na maioria dos trabalhos
lingüísticos. O corpo, quando aparece, é na patologia (nos estudos de afasia, por exemplo). Nos demais estudos, é como se a língua
viesse de uma máquina sem forma. As pesquisas sobre ethos visam mudar essa concepção.
5 O momento de criação de “Vai Passar”, de Francis Hime/ Chico Buarque (1984), que pode ser ouvido em
http://www.chicobuarque.com.br/texto/index.html , exemplifica esse processo.
6 Entendo que o padrão rítmico do provérbio, postulado por Anscombre (2000), não é resultado de um trabalho poético de
algum “autor” (o termo autor aqui poderia corresponder empiricamente a um indivíduo ou a um grupo que compartilha princípios
estéticos), o que seria impossível, até porque a autoria do provérbio não é identificável, o autor é um “ON-enunciador”. Entendo que é
essa ausência de trabalho autoral na formatação de um provérbio que leva Anscombre a qualificá-lo como “poesia ‘natural’ própria à
língua”. Se esse padrão rítmico não é fruto de um trabalho autoral, ele é, de algum modo, “natural” em língua (ser “natural”, conforme
proponho, não se opõe de maneira alguma a ser “histórico”, o que é “natural” em língua é histórico). Faz, portanto, parte da gramática
internalizada. Sobre gramáticas internalizadas, reproduzo a explicação de Possenti (1996: 69): “Dada a maneira constante – isto é, que se
repete – através da qual as pessoas identificam frases como pertencendo à sua língua, produzem e interpretam sequências sonoras com
determinadas características, é lícito supor que há em sua mente conhecimentos de um tipo específico, que garantem esta estabilidade”.

1015
importante que todas as outras marcas. Ora, o rap é cantado sobre uma base rítmica, com as palavras sendo encaixadas
nessa base. Essa base é, de certo modo, invariável: sempre um compasso quaternário. É comum vermos depoimentos de
rappers que contam que, no início da carreira, e nem sempre contando com equipamentos de som adequados, cantavam
seu rap em cima de qualquer base, ou até marcando o compasso com batidas nas latas de lixo7. Isso não indica que não
haja melodia fixa nos raps, que a melodia seja a da fala comum. Não é. Mas indica que a melodia é, muito mais que na
canção, autônoma em relação à música.
Além do ritmo, há as três marcas formais estereotípicas para os provérbios: a estrutura bipartida e/ou a rima e/ou
o isossilabismo. Quanto ao isossilabismo, temos que considerá-lo a partir da estrutura do compasso, o que produz não
necessariamente um isossilabismo, mas uma equivalência na duração temporal marcada pelos tempos do compasso.
Essas três marcas são exatamente as principais marcas formais do rap. Elas estão presentes em praticamente todos os
versos dos Racionais, conforme podemos confirmar nos exemplos abaixo:

Eu tenho algo a dizer e explicar pra você


Mas não garanto porém que engraçado eu serei dessa vez
Para os parceiros daqui para os parceiros de lá
Se você se considera negro pra negro será
MANO!!8

O primeiro verso é bipartido e rimado (“dizer / você”), sendo que sua primeira parte – “eu tenho algo a dizer” - é
cantada sobre os dois primeiros tempos do compasso, e a segunda parte – “e explicar pra você” - é cantada sobre os dois
últimos. A essa bipartição formal corresponde, nesse caso, uma bipartição na sintaxe: há dois termos associados pela
conjunção “e”. No segundo verso não há rima, mas há também bipartição rítmica com uma primeira parte – “mas não
garanto porém” – sendo cantada nos dois primeiros tempos do compasso e uma segunda parte – “que engraçado eu serei
dessa vez” – sendo cantada nos dois últimos tempos do compasso. Novamente há correspondência da bipartição rítmica na
sintaxe: dois termos separados pela conjunção “porém”. O terceiro verso é também bipartido, sendo a primeira parte – “para
os parceiros daqui” – cantada nos dois primeiros tempos do compasso, e a segunda parte – “para os parceiros de lá” –
cantada nos dois últimos tempos. Nesse verso, além de haver correspondência entre a bipartição rítmica e a bipartição
sintática – com os dois termos formando uma enumeração, há correspondência semântica, sendo que a primeira parte tem
por última palavra “daqui” e a segunda parte repete a primeira, com exceção das últimas palavras “de lá”. Portanto há, no
interior desse verso, repetição de termos (o que vai além da aliteração silábica) e a separação das duas partes é reforçada
pelo sentido espacial antagônico do par “daqui / de lá”. No quarto verso não há bipartição rítmica tão marcada, mas há uma
duplicação dentro da segunda parte que a torna bipartida e espelhada – “negro pra negro”, e também uma repetição de
palavra (indo novamente além da aliteração silábica). Além disso, o quarto verso rima com o terceiro (“de lá / será”),
reduplicando as bipartições. Os exemplos são realmente muitos, sem dúvida alguma trata-se de uma regra geral, uma
fórmula composicional.

7 Era assim que se marcava o ritmo na Estação São Bento do metrô e na Praça Roosevelt, na década de 1980, primórdios do
rap nacional, quando não havia aparelho de som ou acabavam as pilhas (cf. Motta, 2004; Rocha et al, 2001). Brown contou, no programa
Ensaio, que antes da formação dos Racionais, ele e Ice Blue formavam uma dupla de MCs (os BBBoys), mas, como não contavam com
um DJ, cantavam em cima de qualquer base que estivesse disponível nas apresentações.
8 “Voz Ativa”. Escolha seu caminho, 1992.

1016
Para que seja possível visualizar esta estrutura rítmica no compasso, a seguir apresento uma análise acústica dos
quatro primeiros compassos da faixa “Voz Ativa (capela)”, digitalizada a partir do LP Escolha seu Caminho9. O arquivo
originalmente era stéreo, e foi lido como mono pelo software Praat. À música original foi adicionado um sinal sonoro de
metrônomo10. O metrônomo foi regulado de acordo com a base musical original do rap “Voz Ativa (versão rádio)”, em
fórmula de compasso 4/4.
O sinal sonoro conseguido foi segmentado de três formas diferentes:
- na primeira linha, os tempos do compasso quaternário foram marcados manualmente, de acordo com o sinal
sonoro, e especificados como 1,2,3,4, de acordo com o tempo correspondente do compasso;
- na segunda linha, cujas segmentações reproduzem as da primeira, o texto cantado foi transcrito e distribuído
temporalmente, a fim de possibilitar um acompanhamento das palavras correspondentes à frequência fundamental (F0).
Essa divisão não foi exata, e sim aproximada, uma vez que apenas tinha a função de guia;
- na terceira linha há a segmentação do trecho vogal a vogal (V-V), a fim de que se possa comparar o que ocorre
acusticamente no início de cada tempo.

Figura 1: análise acústica do primeiro compasso de “Voz Ativa (capela)”.

9 Através de uma placa de som Sound Blaster Live 5.1.


10 Com auxílio do programa Cakewalk Sonar 5.0.

1017
Figura 2: análise acústica do segundo compasso de “Voz Ativa (capela)”.

Figura 3: análise acústica do terceiro compasso de “Voz Ativa (capela)”.

Figura 3: análise acústica do terceiro compasso de “Voz Ativa (capela)”.

1018
Figura 4: análise acústica do quarto compasso de “Voz Ativa (capela)”.

Os espectogramas dos quatro primeiros compassos de “Voz Ativa” permitem verificar a bipartição na estrutura
temporal dos compassos quaternários, o que proponho ser equivalente ao que Anscombre postula como a bipartição
isossilábica nos provérbios. A análise do início de cada tempo do compasso mostra uma frequente ocorrência de onset de
vogal, o que indica que os tempos do compasso são elementos organizadores das taxas de elocução nos raps.
Vejamos em mais um caso:

Se o seguro vai cobrir


Foda-se, e daí?11

Esses dois versos, nesse rap, são cantados logo após um assassinato, em que um segurança de banco tenta
impedir um assalto e é morto por um dos assaltantes. É importante dizer que o narrador desse rap é um dos assaltantes.
Nesses dois versos ocorre um uso interessante do silêncio para compor a bipartição. Nos dois primeiros tempos de ambos
os compassos há uma pausa no canto, ficando apenas a base musical (que também é modificada e parcialmente suspensa
nesses tempos, mantendo-se só a marcação rítmica). Desse modo, temos dois versos bipartidos em que os dois primeiros
tempos são de silêncio – se não silêncio completo, ao menos suspensão de palavras - e o texto verbal é concentrado nos
últimos dois tempos, dando um efeito de solenidade e tensão, um efeito de morte. Multiplicando a bipartição, há as rimas.
As últimas palavras dos dois versos rimam – “cobrir/ daí” – e, numa licença poética, podemos dizer que os silêncios das
duas primeiras partes também rimam.
Um outro exemplo interessante:

11 “Eu tô ouvindo alguém me chamar”. Sobrevivendo no Inferno, 1997.

1019
Talarico nunca fui, é o seguinte
Ando certo pelo certo, como dez e dez é vinte12

Nesse caso, o primeiro verso não apresenta bipartição marcada nem rima interna nem isossilabismo, apenas
rimando com o segundo verso – “seguinte / vinte”. Já o segundo verso é de uma riqueza formal impressionante. É divido em
duas partes rítmicas, com correspondência sintática, pois a segunda – “como dez e dez é vinte” – é uma retomada anafórica
da locução adverbial da primeira – “certo pelo certo”. Portanto, nesse verso há uma grande bipartição. Dentro da primeira
parte, também há outra bipartição, com estrutura espelhada “certo pelo certo”, que corresponde a uma bipartição semântica,
uma espécie de tautologia. Na segunda parte, há mais duas bipartições: é enunciada uma estrutura matemática de
igualdade (bipartida por natureza) e as duas parcelas somadas são iguais (“dez e dez”). Embora seja uma soma e não uma
multiplicação, a prosódia dessa estrutura matemática é semelhante ao “cantar a tabuada”, outra forma bipartida de estrutura
fixa prosódica, bastante popular13.
Essa estrutura rítmica e formal, tão forte para o rap, engloba a estrutura rítmica e formal dos elementos
linguísticos cristalizados (provérbios, frases fixas de sabedoria, expressões fixas, bordões, parlendas, entre outros). Além de
englobá-las, a estrutura rítmica e formal do rap se serve da estrutura rítmica e formal dos elementos fixos, ampliando-as.
O que ocorre na estrutura rítmica e formal do rap, de certa forma abolindo as fronteiras entre o que é já fixo em
língua e o que é relativamente novo, ocorre também em seu sentido. O tom de verdade absoluta, ou verdade acima das
comuns, dos provérbios e demais formas sentenciosas, também é englobado pelo tom geral do rap, que é também de
sabedoria, potência e virilidade. Além de englobar o tom sentencioso das expressões e frases fixas, o rap se serve desse
tom sentencioso para compor seu próprio tom.
Portanto, mesmo que nem todos os versos sejam um a um sentenciosos, todos eles compõem esse modo
aforizante de enunciar: com estrutura bipartida e/ou rimada e/ou ritmada e/ou issossilábica, com enunciados que
reivindicam direitos, denunciam, chamam para a mobilização, proferidos por um fiador que pode ser caracterizado como o
“preto tipo A”14.
Para Anscombre, em sua conclusão etno-linguística, a estrutura rítmica repetitiva ou fixa reenvia à palavra
sagrada, que se opõe à palavra profana. A fala proverbial, não podendo contar com as garantias do discurso lógico, que
forja suas próprias evidências, usa garantias de certa forma “naturais”, no sentido de que certas leis naturais são
consideradas como expressões diretas da natureza das coisas. Podemos traçar mais uma relação aqui com o discurso do
rap, que se pretende um “raio x”15 da realidade. Os provérbios, como crenças coletivas, fariam parte dessa categoria, por
isso a forma fixa e, de certa maneira, mágica: com rimas, redobramentos, ritmo certo. Em língua, acontece o mesmo com as
onomatopeias, que apresentam certas estruturas – redobramentos, assonâncias, aliterações – análogas às presentes nos
provérbios.
Para Anscombre “a rima se opõe à razão” (2000: 26). Então, se o provérbio não é lógico, ele é, de certo modo,
mágico, sagrado, uma verdade superior. Também nesse aspecto, a palavra do rap se assemelha à palavra proverbial. Mano

12 “Vida Loka – parte I”. Nada como um dia após o outro dia – Chora Agora, 2002.
13 Há uma piada infantil bastante conhecida em que o famigerado “Juquinha” (mau aluno estereotípico das piadas) é chamado
pela professora para cantar a tabuada do 7 na frente da turma. Então ele canta: “nã-nã-ni [pausa] nã/ nã-nã-ni [pausa] nã, ...” e a
professora, indignada, pergunta: “O que é isso, Juquinha?”, ao que ele responde: “Decorei a música e esqueci a letra”.
14 Em Motta (2004; 2008) caracterizei este fiador.

15 Raio X do Brasil é título do disco dos Racionais de 1993. É muito comum a afirmação, pelos rappers, de que cantam o que
vêem, o que vivem, o que presenciam. Um exemplo contundente é a fala final de Mano Brown, em prosa, no rap “Negro Drama”: “É desse
jeito que você vive. É o negro drama. Eu não li, eu não assisti, eu vivo o negro drama, eu sou negro drama, eu sou fruto do negro drama.”

1020
Brown afirmou que se fosse nomear o grupo hoje, ele deveria se chamar Emocionais MCs. Porque, para ele, de racionais,
eles não têm nada16.
Os textos religiosos, ao longo da história, têm a característica de se propagar através do canto, da dança e/ou da
imitação. A enunciação proverbial também só se concretiza na repetição, na imitação. E, se considerarmos, com
Anscombre, toda a particularidade de sua prosódia, podemos ver aí uma espécie de canto, ou ao menos de recitação. A
respeito de provérbios, é mais exato dizer que “se recitam” do que “se dizem”. Com o rap, tais características são levadas
ao extremo: ele é feito para cantar, dançar e imitar. Assim como a organização que conhecemos dos textos da Bíblia, ele
apresenta uma estrutura já “dividida”, pronta para ser citada. Cabe lembrar que são vendidos LPs aos DJs só com as faixas
“à capela”, para facilitar esse recorte e incidência em outros raps, através de samples. E, em consonância com sua
característica de visar à memorização, nos encartes dos CDs, discos e DVDs, poucas vezes (no caso dos Racionais,
nenhuma vez) há as letras dos raps, o que sinaliza para uma distância em relação à palavra escrita e uma proximidade com
a palavra vivenciada no próprio corpo.
Anscombre também assinala certo parentesco entre os provérbios e os mitos: assim como os mitos, os provérbios
são crenças coletivas e representam um modo de conhecimento subjetivo – sem distância entre sujeito e objeto – em
oposição a um modo de conhecimento objetivo que coexiste paralelamente ao precedente. Greimas (1975 [1970]: 295), do
mesmo modo, relacionou provérbio e mito – este autor acrescenta ainda o sonho e o folclore - como “simbolismos”.
Alguns textos religiosos, dogmáticos e autoritários importantes na história da humanidade apresentam elementos
estruturais semelhantes aos dos provérbios. São verdades apresentadas como eternas e fundadas sobre práticas
exemplares. Anscombre lista, em textos deste tipo, os provérbios, os slogans publicitários e o Eclesiastes, da Bíblia, aos
quais credita um extraordinário poder de convencimento17.
Os raps também podem ser inseridos nesse conjunto: é uma palavra ritmada, rimada, assonante, com poder
argumentativo e dogmático, que versa sobre comportamentos humanos, chamados por essa comunidade discursiva de
“proceder”. O “verdadeiro” rapper tem que ter proceder, para Edi Rock, “siga a minha estreita trilha”18, para Mano Brown,
“revolução não é pra qualquer um, só quem é camicase leal, o guerreiro de fé”19.

Referências
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setembro/2000. p. 6-26.

BARTHES, Roland. O grão da voz. In: O óbvio e o obtuso. Porto: Edições 70 (distribuído no Brasil por Livraria Martins
Fontes), 1977.

GREIMAS, Algirdas Julien. Os provérbios e os ditados. Tradução Katia Harim Chalita. In: Sobre o sentido: ensaios
semióticos. [1970] Petrópolis: Vozes, 1975. p. 288-295.

ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley. Semântica. São Paulo: Editora Ática, 1991.

KLEIBER, Georges. Sur le sens des proverbes. In: La parole proverbiale. Paris: Langages n. 139, setembro/2000. p. 39-
58.

MILNER, Georges B. Quadripartite Structures. In: Proverbium n.14, 1969. p. 393-398.

16 Programa Ensaio com Racionais MCs, TV Cultura, 28/01/2003.


17 Erich Auerbach, no capítulo 1 de Mímesis, chega a conclusões semelhantes a respeito do texto bíblico.
18 “De volta a cena”. Nada como um dia após o outro dia – Ri Depois, 2002 (anexo 5b).
19 “1 por amor, 2 por dinheiro” Nada como um dia após o outro dia – Chora Agora, 2002 (anexo 5a).

1021
MOTTA, Ana Raquel. Entre o artístico e o político. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Ethos discursivo. São Paulo: Contexto,
2008a. p. 97-106.

________. “A favela de influência”: uma análise das práticas discursivas dos Racionais MCs. Dissertação (Mestrado em
Lingüística). Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004.

PINTO, Joana Plaza. O corpo de uma teoria: estudos contemporâneos sobre atos de fala. Conferência apresentada no III
Encontro Nacional do GELCO (Grupo de Estudos da Linguagem do Centro-Oeste), em 10 de outubro/2006.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB/ Mercado de Letras, 1996.

PROGRAMA ENSAIO com Racionais MCs. TV Cultura, 28/01/2003.

RACIONAIS MCs. Escolha seu caminho. São Paulo: Zimbabwe Records, 1992. (LP)

__________. Sobrevivendo no Inferno. São Paulo: Cosa Nostra,1997. (CD)

__________. Nada como um dia após o outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002. (CD)

ROCHA, Janaína; DOMENICH, Mirella; CASSEANO, Patrícia. Hip Hop a periferia grita. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2001.

SCHAPIRA, Charlotte. Proverbe, proverbialisation et déproverbialisation. In: La parole proverbiale. Paris: Langages n. 139,
setembro/2000. p. 81-97.

TATIT, Luiz. O século da canção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004.

___________. Semiótica da canção: melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994.

Ana Raquel MOTTA é professora da Faculdade de Letras da PUC-Campinas, atuando nos cursos de Letras e Pedagogia e
também como coordenadora da área de Letras do PIBID – Capes – PUC-Campinas. Tem doutorado em Linguística pela
Unicamp e é pesquisadora vinculada ao Centro de Pesquisa Fórmulas e Estereótipos – Teoria e Análise (FEsTA), do IEL –
Unicamp.
e-mail: anaraquelms@gmail.com

1022
“Piauí: é feliz quem vive aqui” – efeitos de patemização na
mídia

MOURA, João Benvindo de


(UFPI/UFMG)
MELLO, Renato de
(UFMG)

1. Introdução

O título deste trabalho retoma um slogan do atual governo do estado do Piauí bastante utilizado nos meios de
comunicação daquela unidade federativa. Tal fenômeno nos mostra que a mistura entre emoção e mídia nos últimos
tempos fez com que os meios de informação das massas, aliados ou não ao Estado, facilitassem a construção e
desconstrução de imagens, bem como, promovessem a divulgação de modelos de vida e de pensamento ao mesmo tempo
diversos e dominantes. Já não se pode mais ignorar a emoção como o fizeram Platão, seguido por outros tantos filósofos
como Santo Agostinho até chegar em Kant e Descartes. Para o último, as paixões seriam signo de doença e, somente se
fossem alijadas, a mente estaria em perfeita saúde.
Em minha pesquisa de mestrado (Moura, 2007), afirmo que o estudo da argumentação, em todo e qualquer
evento discursivo, deve considerar os elementos que compõem a cena enunciativa. A emoção, certamente é um deles. No
presente artigo, proponho uma análise discursiva acerca da patemização no gênero midiático editorial. Considerando-se
que, em sua materialidade discursiva, o conteúdo de um editorial é predominantemente dissertativo-argumentativo, é
natural que o mesmo apresente uma linguagem impessoal, objetiva e denotativa. Apesar de serem discursos racionais
supostamente despidos de afetividade, vale recordar Amossy (2005) quando afirma que o pensamento é passional e a
racionalidade é puramente afetiva, ou seja, poder-se-ia falar, assim, na existência das “razões das emoções”. Razão e
sentimento (logos e pathos), para a autora, coexistem na elaboração de um argumento.
Tal temática está inserida em minha pesquisa de doutoramento na UFMG, na qual analiso os processos
argumentativos mobilizados nos editoriais do Jornal Meio Norte, do estado do Piauí, no período de 2007 a 2010. Sendo este
artigo apenas um recorte, inicio fazendo uma exposição acerca da imprensa escrita piauiense e analiso um editorial do
referido jornal, publicado em três de abril de 2010, intitulado “O legado de Wellington”. No referido editorial, sublinho e
analiso o potencial patêmico dos marcadores argumentativos que reforçam a verdade, isto é, a ideia sobre a qual o orador
deseja que seu auditório reflita e acolha. No discurso analisado, a emoção funciona como uma representação social,
originando-se numa “racionalidade subjetiva”. Tal possibilidade faz do enunciador um porta-voz da sociedade, capaz de
operacionalizar uma rede discursiva que favoreça o surgimento de adesões e comportamentos positivos frente ao conjunto
de ideias formulado.

2. As emoções no discurso

Os estudos que tratam da manifestação das emoções no discurso obtiveram um crescente interesse nos dias
atuais, tornando-se objeto de ampla discussão pelo Núcleo de Análise do Discurso (NAD) da Faculdade de Letras (FALE)
da UFMG. No bojo dessa efervescência, a mídia consolidou-se como um suporte em potencial no processo de

1023
externalização das emoções. No entanto, ao adotar como corpus um gênero midiático supostamente frio e formal, surge a
indagação: existe algum indício de patemização nos discursos dos editoriais?
Um editorial não é meramente um artigo que exprime a opinião de um órgão de imprensa, em geral escrito pelo
redator-chefe, e publicado com destaque. Muito mais que isso, um editorial é um discurso, sendo capaz de orientar
retoricamente pontos de vista, estados emocionais e até atitudes.
O editorial, tal qual o texto científico, é visto pelo imaginário social como algo frio, impessoal, não emocional. Ao
observarmos esse gênero textual, verificamos que razão e emoção parecem pertencer a domínios completamente
antagônicos. Sem dúvida as origens dessa separação remontam à oposição instaurada entre a razão e a emoção, que
surge muito cedo na história da Filosofia.
Esta oposição entre emoção e razão pressupõe frequentemente uma hierarquia entre esses dois polos,
de tal forma que a emoção, primitiva, bestial, perigosa, desempenha um papel inferior ao da razão, sob
o controle da qual deve ser colocada (Solomon, 1993).

De acordo com Doury (2002), a estrutura científica, essencialmente processual, onde o pensamento avança sob o
controle rigoroso de protocolos lógico-experimentais, é vista como antinômica das emoções. Ainda a respeito da frieza
científica, Doury (2002) afirma que essa virgindade emocional da ciência não constitui uma descrição da prática científica
efetiva. Embora o editorial não seja necessariamente um texto científico, possui alguns elementos que o assemelham a tal,
quais sejam: a linguagem formal, o uso de argumentos lógicos, a predominância da função referencial, etc. Quais seriam,
portanto, os vestígios emocionais existentes na argumentação de um editorial? Se considerarmos a definição de
argumentação na Nova Retórica, perceberemos que ela é vista como um “ato”, a saber, o de “provocar ou aumentar a
adesão dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento”. (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2005:50). Tais
características remetem a uma discussão mais ampla sobre o discurso de informação.
Parafraseando Charaudeau (2010) ao discorrer sobre a comunicação televisiva, podemos dizer que o jornal
impresso é um subconjunto da comunicação midiática que é ela própria um subconjunto do discurso de informação.
Passaremos então a discorrer sobre a proposta desse autor no tocante a análise do discurso midiático.
Para Charaudeau (2010), o objeto de estudo da análise do discurso não pode ser aquilo que os sujeitos realmente
sentem, nem aquilo que os motiva, nem as normas gerais que regulam o comportamento social. O objeto de estudo da
análise do discurso é, portanto, a linguagem numa relação de troca, uma vez que é portadora de algo que está além dela.
Para este autor “as emoções são de ordem intencional, estão ligadas a saberes de crença e se inscrevem em uma
problemática da representação psicossocial.” (Charaudeau, 2010:26).
Ao afirmar que as emoções são de ordem intencional, o autor quer dizer que as mesmas não são totalmente
irracionais e não são, por conseguinte, redutíveis àquilo que é da ordem da simples sensação ou da pulsão irracional.
Nesse sentido, Charaudeau (2010) concorda com o pensamento de Amossy (2005) citado na introdução deste artigo, ou
seja, para ele, as emoções também se inscrevem num quadro de racionalidade.
Falar em saberes de crença, por sua vez, implica em dizer que o sujeito não somente deve perceber algo que está
ligado a um saber, mas que ele possa se posicionar em relação a este saber para poder vivenciar ou exprimir emoção.
Já a representação, de acordo com o autor, procede de um duplo movimento de simbolização (que seria a própria
definição do signo linguístico) e auto-representação, visto que, a partir de uma construção imaginada do mundo o sujeito
constrói sua própria identidade. Ainda nesse sentido, Charaudeau alerta que podem existir “representações patêmicas” e
“representações sociodiscursivas”. As primeiras se referem à descrição de uma determinada situação a partir de um
julgamento de valor que é partilhado pela coletividade e é instituído como norma social, colocando em destaque um sujeito,
que é vítima ou algoz. As representações sociodiscursivas, por sua vez, acontecem quando o processo de configuração

1024
simbolizante do mundo se faz por meio de um sistema de signos. Não signos isolados, mas enunciados que significam os
fatos e os gestos dos seres do mundo.
Sintetizando, Charaudeau acredita que as emoções se inscrevem dentro de uma problemática das representações
psicossociais, pois a consciência psíquica do sujeito é construída a partir de sua experiência intelectual e afetiva, por meio
das trocas sociais das quais ele participa. De acordo com Mello (2003, p. 37) “a atividade do sujeito não se dá apenas em
relação aos e sobre os próprios mecanismos sintático e semântico”. Portanto, é nesta atividade que o sujeito se constitui
enquanto tal, e exatamente por esta atividade.
O autor argumenta ainda que, sendo a informação a finalidade global da comunicação midiática, tal fato faz com
que nos encontremos na presença de um dispositivo de três polos: um polo fonte de informação, um polo instância de
mediação-transmissão e um polo instância de recepção (ao mesmo tempo “alvo” da transmissão e “público” origem de
interpretação).
O polo fonte de informação representa a realidade daquilo que se passa no mundo, constituindo o referente do
discurso de informação. O polo instância midiática (de mediação-transmissão) representa o próprio canal, devendo
equilibrar, ao mesmo tempo, uma postura simbólico-democrática, apresentando a realidade como ela é e, por outro lado,
garantindo sua sobrevivência numa concorrência mercadológica, tendo que atingir, portanto, o maior número de pessoas
possível. Sua finalidade discursiva é, desse modo, marcado por uma dupla tensão de “credibilidade/captação”.
Por último, a instância de recepção seria um público alvo. De certa forma, poderíamos dizer que é, ao mesmo
tempo, um “público ideal” na concepção de Aristóteles, porque se refere a modos de raciocínio e objetos válidos para todos,
e um “público universal”, na acepção de Perelman, ou seja, um público médio que pode ser influenciado pelos efeitos do
ethos ou do pathos.
Por fim, Charaudeau (2010) propõe quatro grandes tópicas, cada uma duplamente polarizada, (em afeto, negativo
ou positivo, visto que a patemia não é só o sofrimento), nomeadas por meio de termos que não têm senão um valor
emblemático: a tópica da “dor” e seu oposto, a “alegria”; a tópica da “angústia” e seu oposto, a “esperança”; a tópica da
“antipatia” e o seu oposto, a “simpatia” e, por último, a tópica da “repulsa” e seu oposto, a “atração”.
A seguir, farei uma breve exposição sobre o percurso da imprensa escrita no Piauí, para, a seguir empreender a
análise dos dados com base no instrumental teórico acima.

3. A imprensa escrita piauiense e o perfil do Jornal Meio Norte

De acordo com Said (2001), muitos pesquisadores poderiam sugerir como primeiro indício de formação de um
sistema comunicativo no Piauí, as pinturas rupestres encontradas em São Raimundo Nonato e Sete Cidades. No entanto,
dado que estas manifestações iniciais reportam a uma época muito remota, antes mesmo da interferência colonizatória
ocidental, parece ser mais prudente tratar das mesmas apenas como recurso ilustrativo.
Os registros sobre o surgimento da imprensa no Piauí não são muito claros. Conforme constatou Rêgo (2001), a
escassez de fontes provocou uma manipulação excessiva do material impresso, principalmente dos jornais do século XIX,
“acarretando em um acelerar no processo de deterioração dos exemplares, hoje quase indisponíveis para pesquisa.” (Rêgo,
2001:25)
Sabe-se, no entanto, que a imprensa no Piauí, a exemplo do Brasil, também surge em meados do século XIX.
Conforme Pinheiro Filho (1972) e Costa (1974), O primeiro jornal do Piauí, denominado O Piauiense, surgiu em Oeiras e
teve sua primeira edição publicada no dia 15 de agosto de 1832. Mas era um jornal oficial, destinado a dar publicidade aos
atos governamentais. Durante a década de 1830, surgem outros impressos, tais como O Correio da Assembléia Legislativa

1025
e, em 1839, O Telégrafo, de caráter oficial e político, com o objetivo primeiro de manter a opinião pública a favor do governo
e do Visconde da Parnaíba no episódio da Balaiada. Configura-se, portanto, como o primeiro jornal noticioso, embora semi-
oficial.
O primeiro jornal piauiense de cunho político e doutrinário, O Liberal Piauiense, só surge após a queda do
Visconde da Parnaíba. Mas a imprensa escrita no estado somente iria ser consolidada a partir de David Moreira Caldas,
considerado pelos historiadores piauienses como um dos maiores jornalistas de todos os tempos. Em 1868 ele funda o
jornal O Amigo do Povo Conforme Sodré (1983:212), que, a partir de 1 de fevereiro de 1873, passa a se chamar Oitenta e
Nove numa alusão profética à Proclamação da República que aconteceria 16 anos depois.
Nos dias atuais, espalhados por diversos municípios do Piauí circulam centenas de pequenos jornais com
periodicidade semanal ou mensal, em sua maioria, impressos em gráficas de Teresina. Verifica-se, no entanto, que muitos
desses veículos estão deixando de circular no formato impresso para ocupar espaços virtuais na rede mundial de
computadores, a Internet.
O Piauí tem hoje três jornais de circulação estadual. O mais antigo é o jornal O Dia, criado em 1951. Tal veículo é
de propriedade da família Miranda. Foi pioneiro na utilização de impressão off-set no estado, trazendo a tecnologia na
edição de 29 de julho de 1972. Com isso, expandiu o setor comercial, pois as impressões dos anúncios apresentavam
maior qualidade gráfica. Assim, reposicionou-se no mercado e através de ações de marketing tornou-se “jornal de
credibilidade”. Em seguida aparece o jornal Diário do Povo, fundado em 1987. De propriedade do empresário Danilo
Damásio, disputa há muito tempo a segunda colocação entre os jornais mais lidos no estado.
Por último, o Jornal Meio Norte, existente desde 1996, é o mais recente noticiário impresso do estado sendo
substituto do jornal O Estado, do jornalista Helder Feitosa. Graças a um alto volume de investimentos por parte de seu
proprietário, o empresário Paulo Guimarães, a publicação foi pioneira no estado em uma série de inovações tecnológicas e
mercadológicas, além de se tornar o periódico de maior abrangência nas cidades do interior, possuindo a maior circulação
(assinaturas e vendas avulsas) e estrutura física. Esse jornal faz parte do Sistema de Comunicação Meio Norte, composto
de rádio, TV, jornal, revista e portal, agregados em um único prédio a partir de 2005.
O público do jornal Meio Norte é o mesmo de seus concorrentes: classe média e alta, profissionais liberais,
intelectuais e alguns servidores públicos mais abastados. Uma minoria que tem condições e interesse de comprar jornais
todos os dias. Possui uma tiragem diária em torno de dez mil exemplares, a maior do estado. Este veículo procura transmitir
uma ideia de valorização do que é da terra, na intenção de assumir uma proximidade com o público leitor.
O jornal Meio Norte apresenta variabilidade de tamanho e quantidade de páginas e cadernos. Durante os quatro
anos de pesquisa, observamos que o mesmo circula no tamanho standard1 (56cm x 31,5cm) com uma quantidade de
páginas que varia entre 48 e 76 agrupadas em cinco e, às vezes, seis cadernos, sendo que, aqueles que contêm os
classificados, apresentam-se em tamanho menor. Às segundas-feiras, circula com apenas 24 páginas no tamanho tablóide
(40cm x 30cm), compondo apenas um caderno.
A página dois, dedicada à opinião contém uma coluna de alto a baixo, à esquerda, denominada “Informe” e
assinada pelo jornalista Efrém Ribeiro. Ao final da mesma há um espaço denominado “Blogueiro” e, em seguida, o
expediente, composto pelo nome do jornal, o slogan “Como é bom ser piauiense” e os nomes dos principais diretores,
cargos atualmente ocupados por: José Osmando de Araújo, Consultor executivo de jornalismo; Edilson Carvalho, Diretor
comercial e Arimatéa Carvalho, Editor executivo. Este último, supõe-se, seja o responsável pela feitura dos editoriais,

1 A título de comparação, é o mesmo tamanho do Jornal Folha de São Paulo.

1026
embora não sejam assinados. No expediente, o jornal informa ainda que é aferido pelo IVC – Instituto Verificador de
Circulação e filiado à ANJ – Associação Nacional de Jornais.
O editorial ocupa o lado direito da página de opinião, tendo, abaixo do mesmo, uma charge assinada pelo
chargista Moisés. O espaço abaixo é composto por, geralmente, dois artigos de opinião escritos por articulistas ou leitores
do jornal. A partir de julho de 2009, às terças-feiras, os dois artigos foram substituídos pela “Coluna do presidente”, espaço
reproduzido em diversos jornais do Brasil, no qual o presidente Lula responde perguntas de cidadãos comuns. Por fim, há o
endereço da sede do jornal e os telefones dos diversos departamentos. Passemos então à análise de um editorial do Jornal
Meio Norte.

4. Análise dos dados

Antes de avaliar os aspectos patêmicos, propriamente ditos, presentes num único editorial publicado em abril de
2010, apresento uma síntese de todo o corpus com a finalidade de proporcionar ao leitor uma visão do todo que representa
a pesquisa.
Ao mapear os editoriais publicados pelo jornal Meio Norte no período de janeiro de 2007 a julho de 2010, observo
que, de acordo com as técnicas argumentativas de Perelman & Olbrecht-Tyteca (2005) os argumentos mais utilizados foram
os pragmáticos (ou juízos de valor – aqueles que permitem apreciar um ato ou um acontecimento consoante suas
consequências favoráveis ou desfavoráveis) os de quantidade (que representam lugares-comuns, afirmando que alguma
coisa é melhor do que outra por razões quantitativas) e os argumentos pelo exemplo (aqueles que permitem uma
generalização a partir de casos particulares).
No mesmo período analisado, verifiquei que a temática social, seja ela estadual ou nacional, permeou a grande
maioria dos editoriais publicados, cerca de 63%. Os acontecimentos políticos, tais como: eleições, candidaturas, filiações e
desfiliações, apoios, pesquisas, coligações, criação e dissolução de partidos, denúncias de compra de votos, etc. ocuparam
36%. Outros temas representaram apenas 1% dos textos publicados, como é o caso do editorial veiculado no dia 2 de
janeiro de 2007, cujo título é “o gerundismo é uma praga”, discorrendo sobre o uso do gerúndio como vício de linguagem.
Tais dados nos permitem fazer as primeiras inferências acerca do pathos. Em primeiro lugar, a preferência por
determinados tipos de argumentos em detrimento de outros, revela um conhecimento profundo acerca da instância de
recepção fato que permite ao sujeito enunciador utilizar-se dos saberes de crença, mobilizando-os no intuito de alcançar a
“adesão dos espíritos”. Em segundo lugar, a temática abordada nos editoriais sutilmente aborda problemas sociais, muito
embora estejam correlacionados a aspectos políticos, revelando novamente a mobilização dos saberes de crença e das
representações patêmicas com o mesmo intuito.
O editorial tomado como objeto de estudo para este artigo não foge a estas características. Intitulado “O legado de
Wellington”, foi publicado em 3 de abril de 2010, um dia após a renúncia do então governador Wellington Dias, em função
de sua candidatura ao senado.

1027
O texto remete, logo no primeiro parágrafo, a uma situação altamente patêmica: o choro do governador durante a
cerimônia de passagem do cargo para o seu sucessor. Através da seleção lexical, o vocábulo “chorou” está entre aqueles
apontados por Charaudeau como sendo capazes de descrever de maneira transparente, determinadas emoções. Porém, é
preciso cautela, pois a existência de uma palavra, cuja essência remeta a um conteúdo patêmico não é, por si só, garantia
de que o sujeito que a emprega a sinta como emoção (problema da autenticidade), nem que ela produz um efeito patêmico
no interlocutor (problema de causalidade). Faz-se necessário, portanto, uma investigação mais criteriosa acerca das
expressões e dos enunciados seguintes.
O enunciador passa a apontar sequencialmente uma série de fatos e argumentos pragmáticos para justificar toda
a cena enunciativa, a saber:
a) A fala do governador externando a sensação de dever cumprido, revelando um sentimento de
completude, seguida de um exemplo de sensatez:
“Disse que deixava o Palácio de Karnak com a sensação do dever cumprido, mas, como é de praxe e
sensato, informou também que muito está para ser feito.”

b) A referência à situação de pobreza histórica imputada ao Piauí:


“Desafios e problemas sobram em um estado pobre que precisa se esforçar para manter serviços
públicos funcionando, expandir os investimentos públicos que favorecem o crescimento econômico, bem
assim fazer frente às demandas crescentes.”

c) A avaliação positiva do governo e seu legado:


“Pode-se afirmar que a administração encerrada na quinta-feira foi, sim, bastante positiva para o Piauí.
Wellington Dias legou ao estado uma obra não física que certamente é fundamental: a organização da
sua estrutura administrativa e funcional.”

d) E, principalmente, no último parágrafo, a alusão à origem humilde do governador, ressaltando o seu


distanciamento das elites o que possibilitou, na visão do enunciador, uma maior proximidade com o povo
e, consequentemente, com seus anseios e necessidades:

1028
“O estado do Piauí certamente vai ter bastante tempo doravante para discutir o legado que fica de um governador
com perfil político distanciado das elites políticas e que se valeu disso para estabelecer também outra construção
definitiva: o governante tem que ouvir mais a sociedade e tirar dela práticas positivas para a gestão pública.”

Os enunciados acima revelam uma ligação estreita entre as emoções e a racionalidade fazendo emergir aspectos
como alegria, esperança, simpatia, adesão, repulsa ao passado, etc. Tais índices de patemização são, assim, o produto de
uma interação constante entre orador e auditório, cujas características passamos a explorar abaixo.
Observamos que as emoções suscitadas não acontecem por acaso, não consistem apenas em simples
sensações. Elas são da ordem do intencional, tendo em vista que remetem a uma base cognitiva, estão a serviço de um
agir para alcançar um objetivo, compreendendo, assim, de acordo com Charaudeau, uma “visada acional”. Há, portanto,
uma intenção do orador e uma pré-disposição do auditório em vivenciar essas emoções. Diversos outros argumentos
poderiam ter sido mobilizados para ilustrar o mesmo fato, mas houve uma escolha entre um conjunto de possíveis. E para
escolher entre esse conjunto, é preciso ter alguns conhecimentos sobre as vantagens e os inconvenientes de cada um
deles, ou seja, uma representação dos mesmos. E como esses conhecimentos são relativos ao sujeito, às informações que
ele recebeu, às experiências que ele viveu e aos valores que ele lhes atribuiu, chegamos a outra constatação importante: as
emoções suscitadas no editorial em análise estão ligadas a saberes de crença.
Não basta, por exemplo, que o leitor do jornal perceba a existência do editorial ou que ele saiba que o editorial
carrega dentro de si um saber. É necessário também que esse leitor tenha condições de avaliar esse saber, posicionando-
se em relação ao mesmo, para, a partir de então, vivenciar ou exprimir uma emoção. Trata-se, portanto, de um saber de
crença que se opõe a um saber de conhecimento, o qual se baseia em critérios de verdade externos ao sujeito.
Tais constatações somente podem ser inferidas a partir da tomada de consciência da existência de
representações “sociodiscursivas” através da qual o mundo passa a ser simbolizado por um sistema de signos. Não são
signos isolados, arbitrários, produzidos por qualquer pessoa, mas enunciados que produzem sentidos imediatos para os
sujeitos envolvidos pelo contrato de comunicação midiática. Objetivam produzir determinada empatia entre orador e
auditório, de tal forma que os mesmos possam compartilhar traços comuns ligados ao universo vocabular, social, cultural e
ideológico culminando com as adesões.
As representações sociodiscursivas estão ligadas diretamente aos saberes de crença uma vez que engaja o
sujeito numa tomada de posição no que diz respeito aos valores em oposição aos saberes de conhecimento que lhes são
exteriores, não lhe pertencem, vêm até ele e não o implicam. Dizer: “o governador transferiu o cargo ao vice em função de
sua candidatura ao senado” advém de um saber de conhecimento; mas dizer “o governador chorou” advém de um saber de
crença que descreve propriedades qualitativas e essencialistas de um indivíduo. Esses enunciados circulam na comunidade
social constituindo o chamado “imaginário sociodiscursivo”.
Por fim, observamos no editorial analisado a existência de algumas tópicas, que diferentes imagens vêm
preencher com a ajuda dos enunciados. Dentre elas, a tópica da angústia/esperança e a tópica da repulsa/atração. Essas
tópicas também são constituintes do imaginário sociodiscursivo.
O editorial pode fazer suscitar a tópica da angústia, no momento em que apresenta o choro do governador. Traduz
a incerteza pelos dias que virão, um estado de espera desencadeado pela cena enunciativa podendo representar um perigo
para o estado. Ao mesmo tempo suaviza a tensão mobilizando a imagem do dever cumprido, do estado organizado
financeiramente, da democracia implantada. Tais recursos remetem à esperança por tempos melhores e justificam o choro.
Ao explicitar o fato de que o governador não pertence às elites, o texto induz a uma repulsa aos diversos outros
governadores piauienses ligados à famílias oligárquicas, oriundos da casta privilegiada com o poder econômico. Em

1029
seguida, ao expor a proximidade do governador com a sociedade ouvindo seus desejos e anseios, e, atribuindo a esta
atitude um valor positivo, desencadeia a atração, ou em outras palavras, a “adesão dos espíritos”.

5. Conclusões

O editorial analisado possui uma intencionalidade. Mobiliza uma série de saberes de crença: a situação de
pobreza do estado do Piauí, a existência de sucessivos governos ligados à elite dominante e a ascensão de um jovem
bancário ao posto de governador, destoando da lógica até então estabelecida. Verifica-se, portanto, que essas crenças são
mobilizadas por um saber polarizado em torno de valores socialmente compartilhados. O desencadeamento das emoções
suscitadas coloca então o sujeito enunciador numa situação de sanção social que culminará em julgamentos diversos de
ordem psicológica ou moral, pelos vários tipos de leitores do jornal.
Por fim, a análise demonstra que quanto maior for o conhecimento do orador acerca do auditório, compreendendo
as características e inclinações afetivas deste, maiores serão as suas chances de produzir a emoção-adesão.

6. Referências

AMOSSY, R. (Org.). Imagens de si no Discurso: a Construção do Ethos. São Paulo: Contexto, 2005.
CHARAUDEAU, Patrick. A patemização na televisão como estratégia de autenticidade. In. MENDES, Emília; MACHADO,
Ida Lúcia. (orgs.) As emoções no discurso. Vol. 2. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010.
COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do estado do Piauí. Teresina: Artenova, 1974.
DOURY, Marianne. A refutação por acusação de emoção: exploração argumentativa da emoção em uma discussão de
caráter científico. In: MACHADO, Ida Lúcia et alli.(orgs.) As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.
MELLO, Renato de. Os Múltiplos sujeitos do discurso no texto literário. In: MARI, H.; MACHADO, I. L.; MELLO, R. (orgs.)
Análise do Discurso em Perspectivas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2003. p. 33-50.
MOURA, J. B. Identidade, produção e disputas de sentido nos discursos do PT. 2007. Dissertação (Mestrado em Letras).
Universidade Federal do Piauí, UFPI, Teresina – PI.
PERELMAN, C. & OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PINHEIRO FILHO, Celso. História da Imprensa no Piauí. Teresina: COMEPI, 1972.
RÊGO, Ana Regina. Imprensa Piauiense: Atuação política no século XIX. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves,
2001.
SAID, Gustavo. Comunicações no Piauí. Teresina: APL/BNB, 2001.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
SOLOMON, R.C. The Philosophy of Emotions. In: LEWIS, M. & HAVILAND, J. M. (eds.) Handbook of Emotions, New York:
The Guilford Press, 3-15.

João Benvindo de Moura é Professor Assistente da Universidade Federal do Piauí e doutorando em Estudos Linguísticos
pela UFMG. Sua pesquisa trata da Análise discursiva de editoriais do Jornal Meio Norte, do estado do Piauí com ênfase na
argumentação e retórica. Contato: jbenvindo@ufpi.edu.br

1030
A descoberta do Brasil urbano: a crônica e o campo literário

MOURA, Sérgio Arruda


(UENF)

Introdução

A literatura, o mundo da imprensa e a cidade nos aparecem entre os pilares da modernidade cultural. Estas categorias
se reinventam em um momento crucial de autenticação do estado liberal, flexível e orgânico, contexto ao qual imprensa e
literatura fazem eco. Ainda nesse termos, é importante nos concentrarmos no papel que teve a Europa no que chamo de
descoberta do Brasil, pelos próprios brasileiros, em um contexto de urbanização que se acelerou no início do século XX, no Rio
de Janeiro com o prefeito Pereira Passos, da presença cada vez mais marcante da imprensa no cotidiano do brasileiro urbano e,
evidentemente, do papel da literatura retroalimentando o espírito do tempo.
Sobre imprensa e literatura, saliento o trabalho de Marie Françoise MELMOUX-MONTAUBIN (2003), para quem o
romance, a partir da década de 1830, sobretudo após os eventos da revolução de 1836, na França, nutriu-se da experiência
jornalística, abriu-se às aquisições da técnica jornalística, e provocou influência da imprensa sobre a escritura literária,
renovando as letras, pela via do trabalho com o real. Também com Marie-Éve THÉRENTY (2003), lemos que “a imbricação
constante entre os meios jornalísticos e a literatura no século XIX explica as mutações estéticas e sociológicas da literatura” e a
Revue de Paris, nesses termos,.
oferece uma solução estética e econômica a toda uma população de escritores com
problemas de reconhecimento e de suportes para publicação. Ela suscita
igualmente a criação de numerosas outras revistas e favorece assim a emergência
do gênero romanesco e roancistas (THÈRENTY, 2003: 12).

Nasce assim, na França, o escritor-jornalista, ou jornalista-escritor, ser híbrido, agente das letras, negociando sua
emergência a partir de solos em ascensão (a imprensa), fenômeno social que se repete no Brasil mais tarde e do qual
destacaremos alguns dos nossos escritores que assim e nesse meio atuaram.
Constitui este, pois, o nosso foco de estudo: os novos termos de circulação do texto literário a partir de então, na
França, é ela, em si, responsável por parte da constituição mesma do mundo da escrita já que ali se esboça a luta de escritores
e jornalistas às voltas com o legítimo pertencimento a uma cultura das letras. No Brasil, essa “revolução” tem início a partir de
fins do século XIX e se fortalece a partir das primeiras décadas do século XX, como pode atestar a carreira de escritores-
jornalistas como Machado de Assis e João do Rio, e, mais tarde, as de Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Nelson Rodrigues,
apenas para citar uns poucos.

Campo literário e instituição literária

Em nosso tempo de estudante de mestrado em letras na Universidade Federal de Pernambuco, na primeira metade
dos anos 1980, noções de autor e autoria eram terminantemente proibidas num universo onde se desenvolviam críticas e teorias
em torno da imanência e da autonomia textual. “Falar de autor não pode, só da voz narrativa e do texto em si nas suas

1031
coerências internas”, era a sentença ouvida e repetida pelos jovens estudantes. Ora, ocorre que, embora já apontassem nos
horizontes críticos a noção de discurso desde os anos 1960, foi só nos anos 1990, que surgiram obras capitais orientando a
crítica e a abordagem da literatura no sentido inverso ao da crítica imanente. E foi só em 1992, que o conceito de campo literário
em Bourdieu surgiu. Bourdieu, evidenciou que a obra não se relacionava diretamente à sociedade considerada em sua
globalidade, “mas a um setor bem limitado daquela sociedade, que no século XIX tomou a forma de um 'campo' que obedece a
regras específicas” (Maingueneau, 2010: 49). Em As regras da arte (op. cit.), a análise que Bourdieu faz do romance Educação
sentimental, de Flaubert, nesses termos, deixa claro em que consiste a teoria do campo literário.
Antes disso, porém, lutávamos com as sociologias do romance de Lukács e Goldmann para aprender que a obra é um
espelho deformado da sociedade. Também a crítica estilística não nos permita “espiar” um fora-texto já que ela era o resultado
de investimentos em desvios positivos e inspirados e inspiradores da linguagem, linguagem essa distante, daquela do cotidiano.
Em nossa consciência, crescia a noção de distância entre o que se consagra como criadora (a literatura) e o trivial (a linguagem
comum), e que a literatura só pode ser abordada nessa condição. Essa história crítica da crítica que fecha o conceito de
contexto como pertinente apenas ao texto, estão delineados em O contexto da obra literária (MAINGUENEAU, 1995) e
retomados em Discurso Literário (2005).
Com essa ferramenta teórica, a análise do romance nos termos da AD, “a unidade de análise pertinente não é o
discurso em si, mas o sistema de relação com outros discursos por meio do qual ele se constitui e se mantém” (Maingueneau,
2010: 50). Está caracterizada pois o caráter interdisciplinar de análise do literário, fator que abre o campo das letras a
diversidade de campos das ciências humanas e sociais aplicadas.
De campo literário à instituição literária. Este é o termo reaparelhado por Maingueneau porque para ele, “toda teoria do
campo discursivo literário consequente implica que se coloque a instituição no coração da instância criadora” (id.). Isso vai de
encontro não só a doxa romântica, que privilegia a supremacia do gênio criador solitário (contrariamente ao caráter institucional
do exercício da literatura), dos quais Proust foi um dos últimos defensores, mas a todo um império da crítica da imanência
textual, dentre as quais o estruturalismo.
Ocorre ainda – e em função do caráter institucional da atividade literária – que esta atividade é por princípio instável.
Não se vive da literatura especialmente no Brasil, país cuja cultura literária não está no centro. No extenso trabalho do sociógo
Lahire (2006), a atividade literária não é formalmente remunerada. Aparecer no campo, ou seja, emergir no campo implica
estratégias de pertencimento, reconhecimento, que consiste na recompensa simbólica e material, de um autor de carne e osso
que precisa se submeter ao duro trabalho formal pelo qual é remunerado.

Os agentes da instituição literária

Precisamos pôr em ação outros fatores de análise do literário, ou melhor, de análise de toda uma sistemática que
envolve o fenômeno da literatura para darmos conta do que se entende por literatura como atividade. Para nós, e retomando o
que move esse trabalho, imprensa, escritor-jornalista e aparelhos forma o tripé básico da instituição literária.

1032
Desenha-se o seguinte esquema:

Instituição literária

o escritor-jornalista a imprensa periódica aparelhos ou lugares físicos de


pertencimento

Decidimos isolar a imprensa periódica do conjunto de aparelhos (e pensá-la como ponte entre esses dois extremos por
conta de sua ação mais agressiva na caracterização da instituição literária e por ter agido durante muito tempo como elemento
determinante da ascensão do escritor. Veremos, nas análise que se seguem, que a cidade, centro urbano investido de
importância na cultura moderna, aparece como um dos aparelhos institucionais da literatura, desde o exemplo do spleen de
Paris, descoberto pela crítica de Benjamim sobre a obra de Baudelaire.Na verdade, a cidade é um campo de enunciação que
aparelha parte do campo; porém, quando a percebemos na sua espacialidade, nos seus tipos, nos seus objetos (o carro, por
exemplo, que tanto impressionou o cronista João do Rio), é possível vê-la como aparelho. De qualquer forma, os aparelhos
compõem a cena enunciativa.

Clarice Lispector jornalista e cronista

No século XX, a atuação de uma certa escritora na imprensa se dá de forma singular e esclarecedora do que
pretendemos demonstrar, porque seu exemplo engrossa a discussão em torno da vivência do escritor no campo literário e
jornalístico. Clarice Lispector, em um dado momento de sua carreira de escritora, assumiu três colunas de jornais sob
pseudônimo: Tereza Quadros (na revista Comício, em 1952), Helen Palmer (no Correio da Manhã, entre 1959 e 1961) e como
ghost-writer da atriz Ilka Soares (no Diário da Noite, em 1960), segundo o apurado estudo de Nunes (2006).
Sua trajetória na imprensa não é das menos conturbadas. Admitida como escritora no campo literário desde a
publicação de Perto do coração selvagem, seu romance de estréia em 1943, Clarice se faz representar como tal, pertencente ao
campo da literatura, campo que não deve ser confundido com o do jornalismo, e ainda mais um jornalismo de colunas. Os
originais de Perto do coração selvagem foram recusados pela editora José Olympio, mas acabaram sendo publicados pela
empresa do jornal A Noite nas seguintes condições: “A autora não pagaria nada pelo lançamento (mil exemplares) mas
tampouco receberia nenhuma parte dos lucros obtidos. A primeira edição logo se esgota. Diante do sucesso de vendagem e
crítica, Clarice desabafa numa entrevista: ‘Ao publicar o livro, eu já programara para mim uma dura vida de escritora, obscura e
difícil; a circunstância de falarem de meu livro me roubou o prazer desse sofrimento profissional’ (Nunes, op. cit., 66). Parece
que aí fica clara uma certa intuição paratópica que cerca todo escritor.
Ora, até mesmo o lançamento de sua carreira de escritora foi inteiramente patrocinado por uma empresa editora
proprietária de jornal; o momentâneo e imediato sucesso de estreante também parece tê-la frustrado, convencida que estava do
duro ofício de escritora.

1033
Temos aqui uma Clarice orgulhosa de seu pertencimento à confraria de escritores, que começa a ser admirada e a
viver o “prazer do sofrimento profissional”, mas que não reconhece o jornal como participante deste mundo de consagração
pelos seus pares. Vejamos porquê.
Esta escritora vai ser abordada pelos seus colegas para que traduza seu talento em um campo “menor”, profissional
sim, mas imediato e isento: o jornal. “Numa entrevista para o jornal Minhas Gerais, em 1968, ela revela seus receios, dizendo
saber que o lugar-comum jornalístico pode corromper a palavra do escritor” (op. cit.: 114). O destino assim cobrou dela o ônus
do ofício de escritor: o jornalista Alberto Dines a levou para trabalhar no Jornal do Brasil, fundamentalmente para escrever
crônicas. Contudo, não se sentia confortável no ofício de cronista: “eu não sei como vou fazer essas crônicas. Eu não sei fazer
crônica. Eu não sei como vou fazer” (Clarice, apud NUNES, op. cit.: 92). Sua produção nos sete anos em que trabalhou no
Jornal do Brasil originou a coletânea de crônicas A descoberta do mundo (1984).
Igual receio de escrever fora dos quadros da ficção já havia sido experimentado anos antes, em 1952. Fora convidada
para atuar, daquela vez, como colunista na Manchete a convite de seu diretor, o jornalista Hélio Fernandes. A mediação foi feita
pelo seu amigo e escritor-cronista Fernando Sabino. A revista Manchete exigia assinatura nos textos e coluna. A carta enviada
por Sabino ao exterior, onde ela estava morando, dá bem uma mostra do quanto ela relutava antes de firmar contrato com uma
empresa jornalística, e ainda mais como colunista de futilidades. Teria Clarice pensado na coluna nestes termos? É provável que
sim, daí a insistência de Sabino em autorizá-la a escrever o que quisesse: “acho que você deve assinar o que escrever; como
exercício de humildade é muito bom. E depois, você leva a vantagem de estar enviando correspondência do estrangeiro, o que
sempre exime muito a pessoa de responsabilidade propriamente literária” (Sabino, apud NUNEs, op. Cit.: 115).
A subordinação estrutural que Clarice receia é evidente. Ela não quer ser rotulada de escritora que se rendeu ao
sistema. Idêntica preocupção também cercava escritores em idênticas circunstâncias na França da primeira metade do século
XIX. Em Melmoux-Montaubin (op. cit.), os quatro escritores estudados (Barbey d'Aurevilly, Leon Bloy, Octave Mirbeau e Jules
Vallés) se adequam profundamente às benefícios da imprensa, tendo mesmo, caso deste último, renunciado precocemente á
literatura para ser um grande jornalista, cronista, folhetinista, redator chefe... A autora conclui, afirmando que de Barbey a
Mirbeau (1830 a 1913), “a postura do escritor-jornalista se funda no paradoxo... e cultiva uma marginalidade da qual faz a pedra
de toque de sua superioridade” (op. cit.: 311).
O quadro descritivo de Bourdieu (op. cit.: 144) é bastante elucidativo da questão da divisão econômica da arte e dos
artistas. Dentro do espaço social (nacional), dois campos operam: o campo do poder e o campo de produção cultural. Para ser
mais exato, o primeiro comporta o segundo, já que a produção cultural se traduz como força crítica da qual o campo do poder
quer se apoderar. Dentro do campo de produção cultural, as duas forças constituem dois subcampos: o da produção restrita em
que imperam a vanguarda e a boemia; e o da grande produção em que imperam o vaudeville, o folhetim e... o jornalismo.
É interessante conjecturar a partir deste quadro. A vanguarda e a boemia traduzem necessariamente o verdadeiro
ofício do escritor e do artista, ocupantes de um lugar-além, um paratopos, cujos benefícios só existem se for no plano espiritual
da criação. Já o vaudeville, o folhetim, o jornalismo constituem o contraste, o lugar de onde querem fugir.
Ao concentrarmos o foco nas atividades do escritor na sua dinâmica interpretativa da arte, e de pertencimento ao seu
contexto, objetivamos tão somente salientar o paradoxo que acompanha o artista na sua pertinência ao campo da arte, cujas
regras extrapolam os domínios estéticos. Para os escritores, não basta escrever, mas também formularem os cânones da sua
legitimidade de escritores.

1034
A cidade como espaço de enunciação do jornalista e escritor

O profundo conhecimento da “alma da rua” em João do Rio decorre do fato de obra e vida estarem visceralmente
interligadas, de ser um turista na sua própria cidade, de celebrar a rua na comunhão com o anônimo. “Ora, a rua é um fator da
vida das cidades, a rua tem alma” (JOÃO DO RIO, 1997: 47); “a rua faz as celebridades e as revoltas” (id.: 49).
A cidade é, assim, este lugar de trânsitos e conflitos; trata-se de um texto em constituição à espera da leitura. A cidade
é o espaço mais singelo de relações textuais e metatextuais, ou seja, que atribui sentidos às ruas. A cidade do Rio de Janeiro é
enunciativa da crônica de João do Rio.
A cidade do Rio de Janeiro atua na história do Brasil pela intensidade com que os eventos transformadores a
marcaram. No início do século XX, aspirante a uma metrópole moderna, ela atuou como um espaço de enunciação discursiva
bem característico. Um personagem que se estabelece na Corte – portanto, no Rio de Janeiro ainda monárquico – tem seus
referentes já parcialmente definidos, por se constituir como lugar de conflitos, realizações, mas também de fracassos.
Conhecemos a trajetória de Rubião no romance Quincas Borba, de Machado de Assis, que, para merecer a herança, não só
teve de adotar um cão, como rumar para o Rio de Janeiro, proveniente da pequena Barbacena, para usufruir de sua fortuna.
Metade dos conflitos, como a capitalização dos sentimentos de paixão e cobiça no triângulo Rubião-Sofia-Palhares, talvez não
se realizasse nos mesmos termos na provinciana e pacata Barbacena. Conhecedor do Rio de Janeiro, palco de acordos
inconfessáveis, Machado sabe que não é apenas o conteúdo que torna uma obra “realista”, mas também a “maneira como
institui a situação de enunciação narrativa que a torna 'realista'” (MAINGUENEAU, 1995: 122).
Já as crônicas de João do Rio, ao serem ambientadas no Rio de Janeiro, respondem parte das indagações que
normalmente fazemos quando nos contam uma história: onde se passa? em que época? Isto responde por apenas um aspecto
das circunstâncias de sua produção. A data de publicação das crônicas e o veículo (periódico) também. Porém é o gênero
crônica que mobiliza junto com a cidade esta vasta instituição que é a literatura.

As condições de enunciação vinculadas a cada gênero correspondem a outras tantas


expectativas do público e antecipam possíveis dessas expectativas pelo autor [...]
qualquer obra, por seu próprio desdobramento, pretende instituir a situação que a torna
pertinente (MAIN GUENEAU, id., ibid.).

Por ser a capital federal, além de capital cultural do país, o Rio de Janeiro do tempo de João do Rio é um referente
cenográfico seguro de sentidos a serem acionados. Cidade em ebulição, é na rua que os tipos vão se confirmar, é lá que o
cronista localiza o flâneur, ele mesmo um deles, indivíduo em pleno acordo com as subjetividades da cidade.
A rua é fonte inesgotável de inspiração da variedade igualmente inesgotável de tipos. Mesmo saindo do realismo-
naturalismo, a literatura não havia apresentado ainda, nem precariamente, o tipo mundano, o anônimo, corrente na crônica de
João do Rio. “A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento” (JOÃO
DO RIO, 1997: 48). Onde uma metrópole encarna melhor sua natureza? Na rua. E de onde ela tira sua fisionomia mais
autêntica? Igualmente da rua. Se a literatura romântica cenografou seus dramas nos salões decorados com mobília marchetada
ou com a floresta fechada de encantadores animais selvagens domados pelo indígena recoberto de nobreza guerreira, por seu
turno, João do Rio precisou da rua como cenografia da modernidade plena de seus tipos, seus automóveis, seus barulhos, sua

1035
velocidade. “Oh! o automóvel é o criador da época vertiginosa em que tudo se faz depressa” (JOÃO DO RIO, 2006: 13),
proclama o cronista, fazendo convergir para sua crônica a participação da cidade na instituição literária.

A crônica e sua emergência no campo literário

Sobre a crônica, nossa síntese partiu do trabalho de Candido et al (1992) no qual vários estudiosos relacionam o
gênero à literatura e ao jornalismo. A metodologia nestes autores consiste em relacionar a crônica à história e aos meios de
impressão – daí advém a característica maior da crônica como gênero híbrido. Os autores também filiam a crônica a um outro
gênero, o folhetim, este também oriundo do mundo da imprensa. Nesta gênese, um tanto atribulada, surgem mais duas
acepções da crônica: de um lado, gênero que mistura ficção e histórica e, de outro, gênero com marcas bastante visíveis de
criação estética. Assim temos: “Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade
que costuma assumir, ela [a crônica] se ajusta à sensibilidade de todo o dia” (CÂNDIDO, p. 13); “vigorosas marcas do
subjetivismo, da oralidade, do dramatismo” (SILVEIRA, in CANDIDO, p. 31); “a crônica pára no meio do caminho entre a
literatura e o jornalismo, é gênero híbrido” (LOPEZ, idem, p. 167), etc.
A grande questão subjacente é o fato de que este gênero literário foi fortemente difundido no Rio de Janeiro da virada
do século XIX (NEVES, idem, p. 84). Este fenômeno cultural certamente proporcionado pela presença do escritor e do seu
trabalho produtivo na imprensa carioca fez a cidade do “Rio de Janeiro aparecer na letra dos cronistas como síntese e
microcosmo do Brasil” (id.). Este fato não surpreende, uma vez que o papel das metrópoles é o de reorganizar a vida e as
instituições face ao progresso que traz consigo as transformações inevitáveis no comportamento, no consumo, na fisionomia
urbana, enfim, nas novas formas inusitadas de circulação pela cidade. Os escritores se valem destas transformações porque
elas chegam a sua consciência como rico material de reflexão sobre a condição humana.
Assim concebo a crônica: como um discurso produzido dentro do campo da literatura, ou de um campo específico em
que as letras se fazem por agentes tais como escritores, jornalistas, cronistas e, principalmente, a imprensa e os seus demais
aparelhos.

Para concluir

A crônica usa o corpo físico do cronista como referência tanto quando este circula pela cidade, como quando se
depara com a tarefa de escrever. A presença do corpo é o resultado de uma necessidade vital de participação sincrônica com o
fato. Por sua vez, o “corpo” da cidade também vai aparecer. Esta presença, na verdade, é um clamor do cronista, participante
por natureza, do status físico da cidade. A cidade precisa estar em relação eufórica com o acaso. Tanto quanto o escritor, o
cronista precisa da cidade em paz. A perturbação da cidade não interessa ao cronista. Talvez interesse ao romancista épico. Em
todas as suas crônicas, a cidade está em paz, muito embora esta paz seja apenas aparente, pronta a explodir em ebulição. O
cronista João do Rio precisa auscultá-la na plenitude de seu cotidiano sem sobressaltos, ou seja, no silêncio. O caos
desordenado interessa também ao repórter, já que este trabalha com o extraordinário, com o fait-divers. O cronista tem na
instituição literária, que engloba o jornalismo como um dos seus aparelhos, o seu verdadeiro campo de pertinência.

1036
As circunstâncias particulares, contextuais de produção e veiculação da crônica, de que falamos, tornaram-na
pertinente a um campo – o da imprensa – e a outro – o literário – e consubstanciou um público devidamente identificado com a
leveza, a fluência e a síntese.
Um escritor-cronista-jornalista, ou uma escritora que ansiva preservar-se do jornalismo de coluna e da crônica:
múltiplos aspectos, como é necessário e possível para consubstanciar a instituição literária como contexto da obra literária, lugar
de onde uma possibilidade do literário – a crônica – estabelece vínculos e de onde retira os seus sentidos.

Referências

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CANDIDO, Antônio. [et al.] A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique (orgs.). Dictionnaire d’analyse du discours. Paris:Seuil, 2002.

JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas; organização Raúl Antelo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

__________. Vida vertiginosa; edição preparada por João Carlos Rodrigues. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LAHIRE, Bernard. La condition littéraire: la double vie des écrivains. Paris: Éditions La Découverte, 2006.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo, Martins Fontes, 1995.

__________. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006a.

__________. Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola, 2010.

MELMOUX-MONTAUBIN, Marie Françoise. L'Écrivain-journaliste au XIXe siècle: un mutant des lettres. Éditions des Cahiers
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MOURA, Sérgio Arruda de. “O lugar das letras: a literatura e suas relações constitutivas com o espaço”. Anais do X Congresso
Internacional da Abralic. Rio de Janeiro, 2006.

________. “A crônica: entre o campo literário e o campo jornalístico”. Revista Contemporânea. Revista Contemporânea (on line).
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________ & CARMO, Gérson Tavares do. “Os labirintos sígnicos da cidade”. Revista Contemporânea (on line). Ano I, nº 1, dez
2003. Disponível em http://www2.uerj.br/~fcs/contemporanea/n5/arqconex.htm.

________. “Machado de Assis: cronista e editorialista”. In Revista de Biblioteconomia e Comunicação. Volume 5, Jan/dez, 1990,
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NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector Jornalista – Páginas Femininas e outras histórias. São Paulo: Editora Senac São
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RODRIGUES, Antônio Edmilson Martins. João do Rio: a cidade e o poeta – olhar de flâneur na belle époque tropical. Rio de
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THÉRENTY, Marie-Éve. Mosaïques. Être écrivain entre presse et roman (1829-1836). Paris: Honoré Champion Éditeur, 2003.

1037
THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Rio de Janeiro, Vozes, 1998.

O Autor:

Professor Associado I da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF-RJ. Doutor em Literatura
Comparada (UFRJ, 1992), com pesquisa pós-doutoral em Análise do Discurso Literário (Université de Paris XII – Val de Marne,
2008). Atua nas áreas de Análise do Discurso e Políticas Linguísticas, no Programa de Pós-Graduação em Cognição e
Linguagem e Linguagem e na graduação do curso de Pedagogia, Licenciatura.e-mail: arruda.sergio@gmail.com

1038
Carta dos leitores e interpretação de textos

MUNIZ , Valéria Campos


(UERJ)

Ainda hoje, muitos docentes de língua portuguesa acreditam na idéia de que um texto é um discurso à espera de
ser desvendado. Isto é, haveria um sentido imanente, conferido pelo produtor do texto, que deveria ser interpretado,
recuperado ou mesmo decifrado, por um receptor, uma vez que os sentidos estariam inscritos no enunciado. A leitura
estaria circunscrita ao saber gramatical e lexical do leitor. Bastaria ler o enunciado para captar o sentido. Mas, o ato de
linguagem não esgota sua significação no texto escrito, na sua forma explícita, pois os sentidos não estão na palavra
considerada em si mesma, isto é, a leitura não se realiza apenas no entendimento das palavras, ela é o “momento crítico de
constituição do texto, é o momento privilegiado do processo de interação verbal” (ORLANDI, 2001, p.193).
O aspecto polissêmico dos signos verbais faz com que o sentido da palavra seja especificado no interior do
discurso, a cada situação, de modo específico. Conforme Charaudeau,

longe de conceber que o sentido se constituiria primeiro de forma explícita em uma atividade estrutural
e , em seguida, seria portador de um implícito suplementar no momento do seu emprego, dizemos que
é o sentido implícito que comanda o sentido explícito para constituir a significação de uma totalidade
discursiva. (2008, p.26)

Não há, portanto, uma relação de primazia entre os vários sentidos e o sentido literal, o que ocorre é a dominância de um
sentido numa determinada situação.
Desse modo, segundo Eni Orlandi (2001, p.194), o texto tem um caráter incompleto, devido à possibilidade de
sentidos possíveis, que podem advir tanto da intertextualidade, como do que poderia ter sido dito naquele momento e não o
foi (os implícitos), como também da própria situação extratextual. Essa incompletude, todavia, não significa que o texto é um
produto inacabado, na verdade, ele se constitui no ato da leitura, sendo relevantes as condições em que esta se processa.
Assim, para se compreender o ato de linguagem, deve ser levada em consideração a relação entre os sujeitos
participantes, as circunstâncias de discurso que propiciaram seu surgimento, isto é, o contexto sócio-histórico, e a
combinação que se estabelece entre o explícito e o implícito em uma dada situação. Analisar um texto é precisar as
condições de produção que constituem a linguagem (ORLANDI, 2001, p.146), a fim de captar o sentido contido na
combinação das palavras no enunciado que lhe deu origem. Uma frase destacada de seu contexto será suscetível de tantas
leituras quantos forem seus leitores. Um religioso, um político ou um historiador, provavelmente, terão diferentes
interpretações para um mesmo enunciado, pois a compreensão se processa de acordo com as “referências sócio-
linguageiras de cada indivíduo” (CHARAUDEAU, 2008, p. 50).
Podemos dizer, então, que o ato de linguagem possui “expectativa múltipla” (idem, p.23), em razão do ponto de
vista dos sujeitos envolvidos. Há situações, entretanto, bastantes simples, representativas de diálogos corriqueiros, em que
uma determinada leitura prevalece em virtude do contrato de comunicação [acordo sobre as representações linguageiras
das práticas sociais (idem, p.55)] e das circunstâncias de discurso. Em “Você tem horas?”, provavelmente não obteríamos
como resposta “Tenho”, apesar de esta ser plausível. As regras implícitas no contrato desse ato de comunicação dissipam
outras ocorrências, que não a informação das horas.

1039
A interpretação, portanto, como já dito, não está presente na simples decodificação da configuração verbal do
enunciado. Apesar de se instalar no interior do contexto linguístico, na relação entre os signos, que terão um sentido
especificado em detrimento de outros, instala-se também na relação com outros discursos presentes na memória discursiva
de cada um.
Nós somos, ao mesmo tempo, individuais e coletivos, pois somos resultado das nossas leituras. Nossa fala é
entremeada por discursos já ditos, que tomam nosso feitio, ao ser, por nós, construída. Não partimos do nada, a matéria
prima do nosso dizer tem seu arcabouço em outros discursos, que, transformada por nós, aponta para um novo discurso.
Essa rede polifônica de discursos circula na sociedade e está em constante transformação.
Há discursos que perpassam a memória coletiva, que se situam no que podemos chamar de lugar comum, isto é,
são aceitos por todos. Não há como combater, por exemplo, o fato de a educação constituir a base sólida de qualquer país
desenvolvido. Isso só vem a reforçar a importância do contexto sociocultural na compreensão de um enunciado.
Charaudeau levanta outro aspecto fundamental a ser considerado, na produção e interpretação do ato de
linguagem, a relação entre os sujeitos, que, segundo ele, são desmembrados em quatro. Dois, podemos considerar como
os seres participantes da situação discursiva (sujeitos agentes), e dois são imagens criadas por eles no processo de
comunicação (sujeitos de fala). Aos dois primeiros, o autor nomeia de EU comunicante e TU interpretante, e aos dois
últimos, de Eu enunciador e TU destinatário. Nesse caso, o ato de linguagem seria dividido em duas instâncias: o circuito
externo (EUc e TUi) e o circuito interno (EUe e TUd). Para o sucesso do ato de linguagem, que configura uma aventura,
uma vez que pode ou não ser bem sucedido, faz-se necessário que o enunciador e o interpretante partilhem determinados
saberes. Não há como afirmar o quanto desse saber é partilhado, mas é preciso que haja uma interseção que permita
compreensão mútua.
Para Charaudeau (2008,p.31), os interlocutores possuem “filtros construtores do sentido”, que os possibilitam
tecer suposições sobre qual o sentido sugerido em uma dada situação. E, muitas vezes, o próprio enunciador fornece pistas
que auxiliam nessa filtragem. Toda interpretação baseia-se, portanto, em uma suposição de intenção. Esta, segundo o
autor, englobaria também o inconsciente, uma vez que podemos dizer, mesmo sem perceber, o que não pretendíamos
verdadeiramente dizer, são os chamados “atos falhos”. Tanto o EU enunciador como o TU interpretante criam hipóteses
sobre os saberes um do outro, que são ativados numa dada circunstância.
No ato de linguagem, o EU comunicante (EUc) cria uma imagem do TU destinatário (TUd) que pode coincidir com
a do TU interpretante (TUi) ou não. Isto é, o EUc aposta numa imagem do TUd que ele acredita ser favorável ao seu
propósito, e disso dependerá o sucesso de sua empreitada comunicativa. Vale ressaltar que o Tud e o Tui não são
desempenham o mesmo papel. O primeiro é uma imagem criada, no processo enunciativo, pelo EUc, e ao qual este se
dirige. Já o último está fora do ato da enunciação produzido pelo EUc, apesar de estar sempre presente no ato de
linguagem, seja explícita ou implicitamente. Na verdade, o TUi é o responsável pela interpretação, a qual se realizará
conforme suas experiências pessoais.
De acordo com esse esquema, para Charaudeau (idem,p.47), a linguagem configura como um processo
assimétrico, devido a, nem sempre, o Tui coincidir com o Tud, como também, nem sempre, o EUc coincidir com o EUe
(imagem criada pelo TUi e pelo próprio EUc). O EUe é uma “máscara” criada pelo enunciador real, o EUc, no processo
discursivo. Essa máscara constitui-se num artifício utilizado pelo EUc a fim de atingir seus objetivos, mas, para isso, o TUi
deverá endossar a posição assumida pelo EUe, responsável pelos efeitos produzidos no discurso. A interpretação do TUi
estará baseada na imagem criada para o EUe. Charaudeau até faz uma paráfrase de uma frase da bíblia “Diga-me com
quem andas, que te direi quem és”, ao afirmar: “Diz-me qual é a tua interpretação e te direi como vês o EUc” (idem,p.50).

1040
Percebemos, desse modo, que o EUe pode ocultar em maior ou menor grau a verdadeira face do EUc e aí poderíamos
enveredar pela psicologia que aborda essa questão dos muitos EUs criados por nós.
Concebendo o fenômeno linguageiro como um processo entre quatro sujeitos, o autor reforça a tese de que o
fenômeno da comunicação não se restringe a uma mensagem enviada de um emissor a um receptor, em virtude do fato de
não haver simetria entre esses interlocutores, como também não seria pertinente dizer que a comunicação é resultado
somente da intenção do emissor. Como já abordamos, o destinatário tem participação ativa na interpretação. Esta se
estabelece no relacionamento entre o TUi e o TUd, numa espécie de confronto entre os dois, na medida em que o TUi não
interage com o texto em si, mas com outro sujeito, seja o leitor virtual (TUd), seja o próprio autor (nas suas duas dimensões-
EUc e EUe).
A interpretação está na dependência, portanto, de o TUi conseguir compreender os efeitos produzidos pelo EUc
na instância comunicativa. Este, por sua vez, deverá ter a habilidade de dominar seu próprio inconsciente de modo a não
produzir efeitos indesejáveis que venham a atrapalhar a encenação daquele ato de comunicação. O interessante é que
EUe, concebido como uma máscara criada pelo EUc, pode dar ao enunciador real, em algumas situações, a possibilidade
deste dizer que foi mal interpretado, permitindo-lhe recriar o enunciado de modo a desfazer o “suposto” mau entendido.
Segundo Eni Orlandi (2000, p.8), a questão da inteligibilidade de um texto, de sua interpretação, não está nele
mesmo, em suas próprias qualidades. Um texto, ao ser considerado legível, o será para alguém, em uma determinada
situação. Até mesmo a consideração sobre suas qualidades será estabelecida pelo leitor no momento da leitura. Assim,
falar em legibilidade não significa definir um texto em termos categóricos, absolutos, é uma questão de graus, depende da
relação entre o leitor, outros textos e o próprio texto. Os sentidos que se configuram no momento da leitura estão na
dependência da distância que medeia o leitor virtual e o real (TUd e o TUi, respectivamente).
Trabalhar a leitura como tem sido feito em sala de aula, com algumas questões de interpretação, como se
houvesse apenas uma leitura prevista, é limitar a possibilidade de questionamentos inerente ao próprio texto. Há vários
modos de se ler um texto, que serão estabelecidos de acordo com a relação entre o leitor e o texto, e com o propósito
almejado. Segundo Orlandi, a leitura vai se estabelecer de acordo com o elemento organizador da relação entre os
interlocutores. Ou seja, devemos perceber qual é “a relação do texto com o autor (o que o autor quis dizer); a relação do
texto com outros textos, a relação do texto com seu referente (o que o texto diz de X), a relação do texto com o leitor (o que
você entendeu?)” (2000, p.10). Dessa forma, os modos de leitura de um texto vão depender do contexto e dos objetivos.
Não podemos dizer, portanto, que um texto é transparente, que significa em si mesmo. No processo da leitura,
que não se configura apenas na leitura dos signos verbais, devemos levar em consideração os implícitos e o intertexto.
Nessa relação entre o dito e o não dito, o “signo linguageiro se apresenta do ponto de vista de seu sentido, sob a dupla face
de uma qualificação referencial e de uma funcionalidade” (CHARAUDEAU, 2008, p.34). Visto sob essa dupla dimensão, o
signo não seria apenas significante e significado, já que toda palavra é uma “marca” polissêmica que traz, num eixo
paradigmático, uma gama de possibilidades, em que, em função das circunstâncias do discurso, apenas uma delas se
sobressai como mais pertinente.
As marcas (idem, p.35) são portadoras de expectativas que se realizam no momento da enunciação. Desse modo,
a marca em si não seria um signo verbal; a combinatória das marcas, no interior de um contexto, é que poderia ser definida
como signo.
Analisar um texto não significa, portanto, apenas dar conta do que o autor quis dizer ou sujeitar a interpretação ao
ponto de vista daquele que interpreta o texto. A análise de um texto deve considerar todas as possibilidades significativas
que surgem, a fim de eleger a que melhor se ajusta naquela situação.

1041
Logo, ensinar a ler vai além do reconhecimento das letras, é tornar o aluno capaz de circular na rede dos
interdiscursos, perceber os implícitos e os sentidos que se constroem significativamente. O que percebemos, normalmente,
são atividades que levam o aluno a repetir, decorar, que o identificam com um modelo de TUd. De acordo com Orlandi, o
objetivo da escola deveria ser o de criar condições para que o aluno conseguisse modificar suas “condições de produção de
leitura” (2001, p.187).
Desse modo, realizamos um trabalho de interpretação pelo viés da Análise do discurso de modo a evidenciar para
o aluno as inúmeras questões que circundam a produção de um texto. Como corpus de nossa análise, selecionamos alguns
textos retirados da seção Cartas dos leitores do Jornal O Globo.
Os textos dessa seção obedecem a um contrato de comunicação pré-definido, com direitos, deveres e saberes
estabelecidos pelo gênero textual carta dos leitores, tipo jornalístico, com o modo de organização discursiva
predominantemente argumentativo. Os participantes ─ autores e leitores ─, ao terem o reconhecimento dos lugares que
ocupam, têm sua compreensão direcionada, na medida em que estão cientes das regras previstas naquele contrato. Esse
acordo, apesar de não ser explícito, inclui-se na própria validação do contrato (MAINGUENEAU, 2004, p.69).
Nossa análise, num primeiro momento, será linear, privilegiaremos o contexto lingüístico ─ as palavras (enquanto
ocorrência e objeto de escolha). Depois, discutiremos sua organização, construção no interior do texto.
Na seção dos leitores dos dias 6 e 7 de julho de 2010, selecionamos as cartas que versavam sobre a mesma
temática: “Gastos de campanhas” e “Eleições, cargos e gastos”, respectivamente.

1. Cartas do dia 6/07


Carta 1:
O candidato que tenciona gastar menos nas eleições declara que serão R$ 90 milhões. Mesmo assim é muito
dinheiro. Quem dá esses recursos o que espera de volta? Essas campanhas publicitárias nada esclarecem. Por
que o eleitor não é informado sobre a competência de cada candidato ─ e que ele julgue qual o mais bem
preparado ─ através de debates em rede nacional de TV e rádio, com a presença obrigatória de todos os
candidatos, com temas de real importância para o país? Dois debates mensais às 20h, quando a maioria está
acordada, seriam suficientes para se julgar cada candidato. Os outros tipos de propaganda seriam proibidos,
eliminando-se a influência de maior poder econômico, tempo na TV etc.

“tenciona gastar”: em vez de gastará. A escolha desse auxiliar coloca os fatos no plano das intenções dos
candidatos e, por ser uma intenção, reforça a frase seguinte.
“mesmo assim é muito dinheiro”: a expressão mesmo assim enfatiza que a menor quantia é ainda muito alta.
“quem dá esses recursos o que espera de volta?”: essa pergunta deixa claro que ninguém faz nada ao acaso.
“essas campanhas nada esclarecem”: o uso do indefinido deixa claro o posicionamento do autor a respeito das
campanhas serem infrutíferas, vazias. Essa frase funciona como tópico frasal da seguinte: “sobre a competência de cada
candidato”.
“que ele julgue qual o mais bem preparado”: o uso do adjetivo no grau superlativo demonstra a posição do autor
sobre qual deve ser o item determinante na escolha do candidato.
“com temas de real importância para o país”: de real importância em vez de importantes. Apesar dos temas
poderem ser importantes, para o autor, deveriam ser pertinentes para a população, por isso o uso do adjetivo real.
“quando a maioria está acordada”: o uso dessa adverbial deixa implícito que os debates normalmente ocorrem
tarde da noite e muitas pessoas não assistem a ele.
“seriam suficientes”: o adjetivo reforça a ideia contida no início do texto a respeito dos gastos das campanhas, pois
são desnecessárias e improdutivas as campanhas publicitárias. Isso fica claro neste segmento da frase seguinte: Os outros
tipos de propaganda seriam proibidos.

1042
“eliminando-se a influência de maior poder econômico, tempo na TV etc.”: o uso desse verbo não deixa dúvida, é
taxativo a respeito da opinião do autor, que é complementada pelo adjetivo maior, isto é, apenas alguns partidos são
privilegiados. O etc generaliza qualquer tipo de influência.
Fazendo uma análise da organização do texto, do processo de interação entre as palavras, observamos que a
segunda frase desencadeia o processo argumentativo (Mesmo assim é muito dinheiro), que se completa na quarta frase
(Essas campanhas publicitárias nada esclarecem). A argumentação, portanto, está centrada na relação entre montante
gasto e retorno dos gastos, uma vez que as campanhas são propagandas apenas, quando deveriam ser veículos de
esclarecimento. Gasta-se muito para nada. Apesar de não ser dito, o questionamento sobre o montante gasto, deixa
implícito que esse dinheiro poderia ser melhor empregado. Na segunda carta, essa questão configura o cerne da
argumentação.
Além disso, na pergunta “o que espera de volta?” está implícito o que todo cidadão já tem conhecimento. Após
tomarem posse, os candidatos favorecem, com contratos e outras negociações, os financiadores de suas campanhas. E
quem paga a conta? Os contribuintes, claro.
Fica evidente a intensificação fornecida pelo duplo travessão sobre qual deve ser o indicador na escolha do
candidato: a competência. As propagandas seriam, portanto, desnecessárias em face dos debates. Como sabemos,
propagandas são feitas para vender produto ou imagem, e, nem sempre, ao “comprarmos” ficamos satisfeitos, muitas
vezes, é a decepção que prevalece. Desse modo, a melhor forma de se escolher o candidato seria por intermédio de
debates, pois, ali, o eleitor poderia fazer uma leitura mais aproximada de quem é verdadeiramente seu candidato.

Carta 2:
Causa perplexidade e espanto o valor anunciado pelos candidatos para os gastos nas suas campanhas
eleitorais: José Serra (PSDB), R$ 180 milhões; Dilma Rousseff (PT), R$ 157 milhões. Até mesmo Marina Silva
(PV) gastará R$ 90 milhões. Na campanha para o governo paulista, Alckmin gastará R$ 58 milhões. Fica a
pergunta: de onde vem tanto dinheiro para financiar tais campanhas? Quem paga a conta? Como nada é de
graça, aqueles que financiam as campanhas querem receber de volta ─ com juros e correção monetária ─ o alto
investimento feito. Acredito que com esse dinheiro poderíamos resolver boa parte dos problemas de saúde e
educação no Brasil.

“causa perplexidade e espanto”: a redundância contida nos complementos verbais reforça a incredulidade do autor
quanto aos valores anunciados pelos candidatos.
“até mesmo”: Essa locução inclusiva transparece o espanto em relação a essa candidata.
“Na campanha para o governo paulista”: o adjetivo indica que não só nas eleições presidenciais os gastos são
altos.
“de onde vem tanto dinheiro”: o pronome indefinido intensifica o valor gastos nas campanhas. É uma pergunta
retórica, uma vez que a resposta já é conhecida: empresários de maneira geral e em alguns casos, dinheiro proveniente da
contravenção.
“quem paga a conta?”: outra pergunta retórica, está implícito que são os contribuintes.
“como nada é de graça”: novamente o uso do indefinido para enfatizar a posição do autor.
“com juros e correção”: ao destacar a locução adverbial, o autor deixa claro o ônus das campanhas para o povo.
“acredito”: esse modalizador, apesar de fraco argumentativamente, funciona na linha do discurso como introdutor
da conclusão.
“boa parte dos problemas”: o adjetivo reforça alguns problemas considerados pelo senso comum como
imprescindíveis de serem solucionados – saúde e educação.

1043
“de saúde e educação”: a anteposição do substantivo saúde no interior da locução adjetiva demonstra o grau de
importância entre os dois.
A linha argumentativa está centrada nos gastos de campanha pelos políticos e na sua contrapartida que recairá
sobre a população. As unidades lingüísticas destacadas deixam perceber esse percurso argumentativo. O ponto de vista do
autor aparece, indutivamente, na última frase do texto, em que, de forma semelhante à argumentação da carta anterior,
contrapõe gastos e retorno para a população. Entre as linhas do que é dito, revela-se no não dito que os gastos com
campanhas são improdutivos, pois o autor propõe um direcionamento melhor para o dinheiro público.

2. Cartas do dia 7/07


Carta 1:
A irresponsabilidade com o dinheiro público está cada vez mais exacerbada à medida que o governo Lula chega
ao fim. Sempre no silêncio e tendo o Congresso Nacional como cúmplice, medidas são tomadas, cargos são
criados, acordos são acertados, sempre em benefício do improdutivo, mas com a conta sendo paga pelos
brasileiros. Somente no primeiro semestre, segundo informou O Globo, 37 mil cargos comissionados foram
criados, com certeza como moeda de troca, beneficiando os caprichos corporativos dos três poderes. O custo/ano
destes favores chega a quase R$2 bilhões. São muitos cargos e verbas para poderes como o Legislativo,
improdutivo na grande maioria dos atos; o Judiciário, que a cada ano menos produz; e o Executivo, que aos
poucos está deixando as portas abertas para o retorno da instabilidade econômica.

“A irresponsabilidade com o dinheiro público”: malversação do dinheiro público.


“cada vez mais exacerbada”: os gastos são muitos e estão piores.
“o governo Lula”: ao utilizar o aposto Lula, no lugar do adjunto adnominal ‘do presidente Lula’, a identificação fica
mais reforçada.
“sempre no silêncio”: não é um caso fortuito. Pode se referir ao governo em questão, mas pode se referir a uma
prática comum a todos os governos. “No silêncio”, demonstra que os atos são feitos às escondidas, justamente por serem
irregulares.
“Congresso Nacional como cúmplice”: palavra utilizada no sentido pejorativo na identificação do Congresso, que
deveria ser um órgão norteado pela ética.
“medidas são tomadas, cargos são criados, acordos são acertados”: generaliza ações do Congresso, são todas
elas.
“sempre em benefício do improdutivo”: o uso desse advérbio sempre, pela segunda vez, reforça a proeminência
das ações negativas, que são constantes. Em benefício de, implica uma ação que favorece a alguém ou alguma coisa. Esse
sintagma, ao ser complementado pelo adjetivo substantivado improdutivo, destaca que as ações do governo não têm como
fim último o povo, mas a própria classe política.
“mas com a conta sendo paga pelos brasileiros”: o conectivo mas introduz um argumento restritivo que demonstra
a insatisfação do autor com o ônus gerado pelos políticos. Ao fazer uso de pelos brasileiros em vez de contribuinte ou
cidadão, o autor deseja destacar a nação, isto é, o quanto o povo brasileiro é prejudicado pelo mau gerenciamento do
dinheiro público.
“somente no primeiro semestre”: a quantidade de cargos criados em um semestre é enfatizada por somente.
“com certeza como moeda de troca”: o modalizador assegura o posicionamento do autor. E moeda de troca é um
sintagma, no caso, pejorativo, pois deixa claro que os cargos foram criados para garantir apoio à candidata do governo.
“beneficiando os caprichos corporativos dos três poderes”: reforça a idéia contida em “moeda de troca”. Essa
palavra é utilizada duas vezes, sendo que agora como verbo. Implicitamente, ela destaca que as ações do governo que

1044
deveriam ser voltadas para o povo, são direcionadas ao próprio governo. Seu complemento, o substantivo capricho, que
pode ser traduzido como desejo injustificável, extravagante, endossa o verbo, ou seja, tudo gira conforme o interesse dos
políticos, de suas alianças.
“o custo/ano destes favores”: a moeda de troca utilizada pela política, os favores, são acordos firmados que
beneficiam a classe política e representam um ônus para a sociedade.
“Legislativo, improdutivo na grande maioria dos atos; o Judiciário, que a cada ano, menos produz; e o Executivo,
que aos poucos está deixando as portas abertas para o retorno da instabilidade econômica.”: as palavras sublinhadas têm
cunho negativo. As medidas tomadas pelo Legislativo são improdutivas, pois não trazem benefícios para a população. O
advérbio menos revela a morosidade do poder Judiciário. Aos poucos está deixando as portas abertas deixa perceber que a
troca de favores e os gastos excessivos do Executivo podem trazer de volta a instabilidade econômica.
Pela análise da dominância de frases, percebemos que muitas palavras são carregadas de negatividade, são
pejorativas e demonstram a insatisfação do autor com os últimos fatos ocorridos no governo Lula. Apesar de não mencionar
o período das eleições, o autor deixa claro que as medidas do governo são favores direcionados para a formação de
parcerias que possam fortalecer o partido do presidente e garantir sua permanência no governo. É de senso comum que a
classe política, no fim do mandato, para permanecer no governo, toma, muitas vezes, medidas que contrariam seu próprio
discurso.
A linha argumentativa centra-se nos gastos do governo, na sua sobrecarga para a população, e o que isso pode
representar para o povo: o retorno à instabilidade econômica.

Carta 2:
Deve ser muito bom você ter dinheiro público à disposição para gastar como mais bem lhe aprouver. Mas deve
ser muito mais reconfortante você ter a certeza de que, mesmo usando-o na compra de mentes e consciências,
corrompendo e priorizando o compadrio, nenhuma punição lhe será aplicada. A convicção de que a Justiça jamais
vai pôr a mão nos corruptor, e muito menos nos corruptores, e de que o povo está aí mesmo para suportar os
impostos sem retorno algum é uma realidade que nos leva a crer que o Brasil não tem jeito mesmo.

“Deve ser muito bom”: o auxiliar deve sugere uma hipótese. Na vida real não existe dinheiro à disposição.
Somente na esfera pública tem-se a sensação de que o dinheiro público é de ninguém. Por isso, pode-se “gastar como mais
bem lhe aprouver”. A intensificação do advérbio bem amplia as opções à disposição de cada um.
“Mas deve ser muito mais reconfortante”: o conectivo mas não introduz um argumento contrário, na verdade,
amplia o argumento anterior, quando diz que se tem certeza de que nenhuma punição lhe será aplicada. O pronome
indefinido reforça a impunidade reinante no país.
“compra de mentes e consciências”: a metonímia utilizada em compra de mentes e consciências deixa muito mais
forte a noção de corrupção e da falta de ética, do que se fosse utilizada a metáfora compra de pessoas.
“corrompendo e priorizando o compadrio”: os verbos corromper e priorizar reforçam a questão da falta de ética.
Corromper significa perverter, subornar as pessoas, que podem ser eleitores ou pessoas da esfera pública. Priorizar é
colocar em primeiro lugar os amigos, companheiros, os compadres. Compadrio, aqui, é utilizado com forte carga negativa,
pois traz embutida a ideia de conchavo, intimidade.
Tudo isso é reforçado por “a convicção de que a Justiça jamais vai pôr a mão nos corruptos e muito menos nos
corruptores”: O advérbio jamais, incisivamente, coloca na esfera do impossível prender os corruptos, e a expressão muito
menos reforça ainda mais essa impossibilidade quando se trata daqueles que corrompem, que subornam.

1045
“o povo está aí mesmo para suportar os impostos”: há uma insatisfação demonstrada pelo verbo suportar com
relação à carga tributária que não se reverte em retorno para a população ─ sem retorno algum. O povo sofre e tolera os
impostos.
“o Brasil não tem jeito mesmo”: o adjetivo ressalta a acomodação forçada diante do que parece ser inevitável.
Essa carta tem forte tom irônico. A base da sua argumentação é a ironia que se apresenta no encadeamento de
fatos absurdos com o dinheiro público. No nível da construção, ao dizer, nessa ordem, que deve ser muito bom, deve ser
muito mais reconfortante, nenhuma punição, jamais pôr a mão no corruptor, o autor gradativamente deixa transparecer sua
opinião a respeito do que acontece na esfera governamental. E, ao inserir, que o povo está aí mesmo para suportar,
implicitamente repete o discurso de que brasileiro é bonzinho, é um povo pacífico, e nada mais lhe resta a não ser aguentar
os desmandos do governo. Isso é reforçado com a última oração: o Brasil não tem jeito mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todas as cartas pertencem à mesma formação discursiva, isto é, têm a mesma relação com o discurso político.
Não diferem de um viés da ideologia circundante sobre esse assunto que considera a política podre. Existe, claro, um outro
discurso, em que a política está submetida aos ideais da democracia, mas, nas cartas em questão, podemos dizer, que os
enunciadores (EUe) partilham do mesmo ponto de vista. Já, em relação ao TUi, alguns se identificarão com o TUd, outros
não, na medida em que é preciso endossar o contrato de comunicação estabelecido nessa instância comunicativa.
Esse processo assimétrico da linguagem deve ser ressaltado no ambiente de ensino, a fim de ampliar as
condições de leitura dos discentes. Perceber qual o tipo de formação discursiva, qual a relação do texto com o autor, do
texto com o leitor e do texto com outros textos, é trabalhar os diferentes modos de leitura. E, para atingir esse objetivo, a
metodologia utilizada, análise da palavra ─ classes e funções ─, para o sentido adquirido na construção do texto, possibilita
ao aluno um entendimento não só de diversos aspectos do contexto lingüístico como também do contexto social. Ler um
texto e discutir sua compreensão no plano global faz com que muito do que poderia advir das entrelinhas se perca. A
discussão das razões que motivaram determinada escolha lexical ou construção abre espaço para que todos os alunos
acompanhem o processo de elaboração do texto. Atividades em que o professor lê o texto e depois pergunta “o que vocês
têm a dizer?” retiram dos mais tímidos, dos que têm mais dificuldade a possibilidade de interagir.
A escolha de quatro cartas teve como objetivo mostrar a formação discursiva presente e fazer com que os alunos
identificassem que todas elas apostavam na mesma imagem do TUd. Como uma sala de aula não é um ambiente
homogêneo, um trabalho de interpretação que mostre como os textos podem ser analisados abre uma perspectiva que
pouco a pouco retira do aluno o medo de dizer com suas palavras.
A leitura deve configurar como o momento crítico de constituição do texto e, para tanto, a análise dos elementos
lingüísticos ─ palavras e construções ─ cria a possibilidade de uma reflexão conjunta, permitindo a todos a oportunidade de
serem produtores de sentido naquela instância interlocutiva.

1046
REFERÊNCIAS
CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

CHARAUDEAU, Patrick, MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. 2.ed. São Paulo: Contexto,
2008.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2004.

ORLANDI, Eni Pulccinelli. Discurso e leitura. 5.ed.Campinas, SP: Cortez, 2000.

───. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4.ed. Campinas, SP: Pontes, 2001.

Currículo: Valéria Campos Muniz, aluna do doutorado em Língua Portuguesa, na UERJ, orientanda do professor Helênio
Fonseca de Oliveira no projeto de pesquisa sobre pontuação em redação de vestibular. Tem experiência no magistério
como professora do ensino fundamental, médio e superior.
e-mail: valcammuniz@gmail.com

1047
CHARACTER COUNTS: práticas e representações
discursivas construindo a ética do indivíduo

NEGRÃO, Luiz Carlos Cardoso


(UNIFRAN)
MOMESSO, Maria Regina
(UNIFRAN)

Introdução

O trabalho pretende analisar as práticas discursivas da homepage (http://charactercounts.org/sixpillars.html) que


trata sobre a ética do indivíduo na sociedade, baseado em seis pilares que, segundo o site, ajudam a construir o indivíduo
ético. O Programa Character Counts apresenta uma prática discursiva de valorização do senso ético, afirmando que o
indivíduo precisa praticar o que é certo, só assim fica perto do ideal. Esse programa encontra-se atuante em inúmeras
escolas americanas e em alguns países da América Central e no Brasil, bem como em centros de detenção juvenil nos
EUA. Foi desenvolvido pelo Josephson Institute of Ethics e introduzido no Brasil em 2004 na cidade catarinense de Joinville.
Em 2008 iniciou no Rio Grande do Norte e em Minas Gerais, e neste estado teve seu nascimento na cidade de Passos.
O site analisado traz um discurso positivado na construção de um mundo melhor, a partir das ideias construídas
por Michael Josephson com a finalidade de trabalhar a ética e o caráter do indivíduo, visando a formação de um mundo
melhor. Pretende aumentar o leque de possibilidades no manejo pedagógico nas escolas, por meio de seis pilares, com o
intuito de ajudar os educadores a trabalharem com as crianças e jovens, estimulando o desenvolvimento de seus valores
éticos, por conseqüência, o fortalecimento do caráter. Para tanto, traz atividades que se apresentam como um método
eficaz para despertar a consciência de que os “seis pilares do caráter”: sinceridade, respeito, responsabilidade, senso de
justiça, zelo e cidadania são fundamentais para nortear suas vidas pessoais e para construir uma sociedade mais
harmoniosa e feliz.

1. Noções preliminares: discurso, sujeito e práticas:

A Análise de Discurso leva em consideração o homem em sua história, analisando os processos e as condições
da linguagem e da língua com os sujeitos que a falam, partindo das situações que o norteiam na produção de seu próprio
discurso.

A análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática,
embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso,
etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é
assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem
falando. Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho
simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história. (ORLANDI, 2009, p.
15)

A Análise de Discurso surge na década de 1960, na França, como uma nova abordagem lingüística nos estudos
da linguagem. Passa por três fases distintas, inicialmente, por uma ruptura epistemológica, buscando a estruturação de uma
teoria não subjetivista. Um dos precursores da Análise de Discurso francesa foi Michel Pêcheux, tendo elevado o discurso

1048
como objeto de estudo. Para Pêcheux, a Análise de Discurso prioriza não só o ato de comunicação, ou seja, a língua não
pretende somente transmitir informações, não quer apenas anunciar algo, mas leva em consideração o contexto social,
histórico e ideológico em que um determinado enunciado foi produzido. O discurso atravessa a linguagem e alcança
elementos históricos, ideológicos e sociais.

Os objetos que interessam à AD, consequentemente, correspondem, de forma bastante satisfatória, ao


que se chama, com freqüência, de formações discursivas, referindo de modo mais ou menos direto
Michel Foucault que, através deste conceito, entende “um conjunto de regras anôminas, históricas,
sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área
social, econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício da função enunciativa”.
Nesta perspectiva, não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um
determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio-
histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis. (MAINGUENEAU, 1997, p. 14)

A Análise de Discurso surge como uma disciplina de entremeio, não positiva e que se faz na contradição da
relação entre as outras disciplinas, Filosofia, Linguística, Ciências Humanas e Sociais, buscando compreender a teoria na
sua relação com a análise. Considerada como disciplina de entremeio, a Análise de Discurso vai buscar em outras ciências
mais de um campo de conhecimento, fazendo a complexidade do objeto de estudo.
Assim, é necessário analisar um discurso considerando as condições de produção, uma vez que estão
intimamente ligadas à constituição do discurso. Isso quer dizer que o sentido de um enunciado depende das condições
históricas e sociais e da situação em que o sujeito que o produz se encontra. As condições de produção do discurso estão
ligadas com as relações de saber, poder e de lugar ocupado pelo sujeito do discurso e pelos interlocutores, fazendo crer
que a força do discurso de um locutor é determinada pela sua posição social.
Em vista do pensamento de Foucault (2009a), os usos da linguagem têm potências tanto de manutenção como de
transformação do estado-de-coisas, determinando as convenções sociais que sustentam os eventos discursivos e
delineando a “ordem de discurso” estabelecida em sociedade. A produção de discursos em todas as sociedades é regulada,
selecionada, organizada e redistribuída conjugando poderes e perigos.
Foucault (2009a) manifesta sobre procedimento de exclusão e de interdição, citando que o mais evidente é este,
em que o sujeito não pode dizer tudo em qualquer circunstância e afirma:

(...) as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder,
o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por
que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 2009a, p. 10)

O sistema de exclusão é um procedimento de controle de discurso, e em toda sociedade existe, segundo o autor,
mecanismos de controle da produção discursiva, justamente pelo fato de temer seus efeitos. Já não se trata mais de
interdição, mas do princípio da exclusão.

Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não
pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja
acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo
autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a
transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe
atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de
pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode
perceber. É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou
Então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caía no nada - rejeitada tão logo
proferida; ou então nela se decifrava uma razão ingênua ou astuciosa, lima razão mais razoável do que
a das pessoas razoáveis (FOUCAULT, 2009a, p. 10-11).

1049
Assim, a produção discursiva se faz por meio de práticas que devem se ordenar de acordo com cada momento
histórico e de suas condições de existência. E essas práticas discursivas constroem um campo de saber, o sujeito e suas
representações. Pois, para Foucault os

(...)'discursos', (...) não são, como poderia se esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e
palavras. (...) analisando discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes das
palavras e das coisas e separar um conjunto de regras próprias à prática discursiva. (....) . Tarefa que
consiste em não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (de elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os
objetos de que falam (FOUCAULT, 2009b, p. 54-55).

2. Character Counts: práticas e representações discursivas construindo a ética do indivíduo.

Sendo o autor, para Foucault (2009b), uma função, e não o sujeito que escreve, tomando por base a rarefação do
sujeito, em um ritual onde o estilo do texto define o comportamento lingüístico, tem-se que a página da internet em análise
foi produzida a partir da Formação Discursiva da necessidade de se (re) criar o conceito de ética. Segundo o site, o instituto
foi fundado em 1987 por Michael Josephson e tem influência em lideranças, por exemplo, administradores de escola,
jornalistas, juízes, advogados, fornecendo apoio e cursos de treinamento visando a formação ética.
A memória discursiva produz lembranças ou esquecimentos, a reiteração ou o silenciamento de enunciados, trata
de acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma interdiscursividade, refletindo materialidades que intervêm na
sua construção. A criminalidade, o desrespeito, a fragilidade de definição de uma segurança pública eficaz para
efetivamente trazer a paz social, os conflitos interpessoais, a necessidade da mantença de convívio harmonioso entre os
povos, enfim, tudo isto traz uma inconstância no mundo, que continua sendo de contradições e desigualdades, por mais que
os governantes se esforcem, não tem havido solução e a vulnerabilidade quanto às guerras, aos conflitos e à desigualdade
estão sempre presentes.
O programa Character Counts afirma que não exclui ninguém, valoriza os seis pilares, coloca-se como apolítico,
sem interferência de qualquer tipo de religião e, ainda aponta que não traz qualquer preconceito cultural.
A prática discursiva do site estabelece a necessidade de uma construção ética em todos os níveis da sociedade. A
ética, segundo o site, deve ser colocada na política, mas também fora dela; as religiões, todas, também necessitam
trabalhar com ética. Não deve haver qualquer exclusão, o mundo melhor, com ética, com respeito, seria formado para
todos, não se poderia ter qualquer idéia preconceituosa.
Em entrevista à Revista Veja, o sociólogo austríaco Peter Singer, em matéria denominada A ética do dia-a-dia,
publicada no dia 21 de fevereiro de 2007, relata:

A ética é um exercício diário, precisa ser praticada no cotidiano. Só assim ela pode se afirmar em sua
plenitude numa sociedade. Se uma pessoa não respeita o próximo, não cumpre as leis de convivência,
não paga seu imposto, não obedece às leis de trânsito, ela não é ética. Num primeiro momento,
pequenas infrações isoladas parecem não ter importância. Mas, ao longo do tempo, a moral da
comunidade é afetada em todas as suas esferas. Chamo isso de círculo ético. Uma ação interfere na
outra, e os valores morais perdem força, vão se diluindo. Para uma sociedade ser justa, o círculo ético
é essencial.

Para Foucault (1988) a ética moral liga-se a constituição da subjetivação, diz respeito ao modo de ser do
indivíduo, às regras e condutas que o fazem ser de acordo condutas almejadas.

1050
É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao có-
digo a que se refere; mas ela implica também uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente
“consciência de si”, mas constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo circunscreve a
parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito
que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo;
e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se,
transforma-se (FOUCAULT, 1988, p. 28).

Dessa forma no site, a construção da ética inicia-se por um discurso que apresenta as justificativas para que o
indivíduo possa mudar de conduta e transformar-se em ser melhor, um ser moral aperfeiçoado.
Uma das justificativas é encontrada no discurso da criminalidade, que por vários fatores, tais como a desigualdade
social, uma distribuição de rendas onde o mais afortunado recebe mais e o pobre, sempre menos, conduz uma necessidade
de repensar os valores éticos. O Desembargador catarinense Ricardo José Roesler discursou em Joinville-SC sobre o
Programa Character Counts e atentou:

Por tantas outras incontáveis razões, a violência explodiu em nosso meio e já se faz tempo da ação
porque a reação não está resolvendo. Por isso, precisamos de um choque social, uma revolução
orçamentária para investir nas necessidades sociais, especialmente na educação. A antítese do crime é
uma ação pedagógica nas escolas e nas famílias. Ninguém mais consegue digerir a violência que é
oferecida todos os dias a todo momento em quase todos os canais de informação. É uma avalanche
descomunal, lúgubre e aterrorizante. Bombas explodem em todo mundo a cada hora do dia, atentados
contra o nosso bem maior que é a vida se multiplica, vidas são ceifadas e patrimônios dilapidados. O
mundo está cuspindo fogo e nós, seus ocupantes e predadores, estamos perdendo a resistência, por
isso é tempo de agir e não reagir. As sensibilidades machucadas podem afetar nossas relações de
forma muito mais grave em futuro curto. (ROESLER, 2007, p.1)

Diante da necessidade de trabalhar os valores, o programa apresenta seis pilares que sustentam a ética e o
caráter do indivíduo, cada um deles é representado por uma cor. Cada pilar preconiza procedimentos, traz discursos de
atuação do indivíduo para uma boa vida em sociedade. As cores escolhidas foram o azul para a sinceridade, o amarelo para
o respeito, o verde para a responsabilidade, o laranja para o senso de justiça, o vermelho para o zelo e o roxo para a
cidadania. Em relação ao discurso que contém cada pilar1, assim se apresenta:

Sinceridade: Seja honesto. Não induza ao erro, não trapaceie ou roube. Seja confiável, faça o que
você disse que faria. Tenha coragem para fazer a coisa certa. Construa uma boa reputação. Seja leal -
Fique ao lado da sua família, amigos e comunidade.

Respeito: Trate os outros com respeito. Siga a regra de ouro. Seja tolerante com as diferenças. Use as
boas maneiras e não palavras ruins. Considere o sentimento alheio. Não ameace, bata ou fira alguém.
Trabalhe em paz sem a raiva, insultos e desentendimentos.

Responsabilidade: Faça o que você deve fazer. Seja perseverante: continue tentando. Faça sempre o
melhor. Use o seu autocontrole. Seja disciplinado. Pense antes de agir - considere as conseqüências.
Responsabilize-se por suas escolhas.

Senso de Justiça: Siga as regras. Compartilhe com os outros todo conhecimento adquirido. Seja
sábio. Escute. Não tire vantagem dos erros e fraqueza dos outros. Não reclame sem fundamento.

Zelo: Seja gentil. Tenha compaixão e demonstre zelo. Expresse gratidão. Perdoe os outros. Ajude os
necessitados.

Cidadania: Faça a sua escola e sua comunidade melhor. Coopere. Fique informado; vote. Seja bom
vizinho. Cumpra as regras e as leis. Respeite as autoridades. Proteja o meio ambiente.

1 A apresentação dos pilares foi traduzida por Negrão, autor deste texto.

1051
Fonte: Primeira página do site Character Counts http://charactercounts.org/sixpillars.html.

Percebe-se na imagem do site, que abaixo de cada pilar há uma ética que o sustenta, esses pilares são
construídos discursivamente com enunciados imperativos que ordenam a mudança comportamental esperada para
sustentar o sujeito moral em sociedade.

1052
Cada pilar é reiterado positivamente por adjetivos, os quais qualificam a ação de transformar-se em sujeito ético.
O ser humano sincero é honesto, não engana, não frauda, não rouba, é confiável e tem a coragem de fazer o que é certo.
Para agir com respeito, é efetivamente necessário ser tolerante às diferenças, considerar o sentimento alheio, lidar com os
momentos negativos, não ameaçar, agredir ou machucar ninguém. Claro que a responsabilidade está diretamente ligada no
que deve ser feito, na escolha e ser responsável por esta escolha. O senso de justiça determina agir como manda a regra e
não tirar vantagem sobre os outros. Ser gentil, expressar gratidão, demonstrar que preocupa são adjetivos de uma pessoa
zelosa. A cidadania impõe o dever de ajudar a comunidade ser melhor, cooperar, manter informado para saber votar.
A construção da prática discursiva do ser ético assenta-se num primeiro momento em um substantivo próprio no
site, mas utilizado como comum na maioria dos enunciados, assim nomeia-se as condutas a serem realizadas pelos
indivíduos. Em seguida, num jogo entre qualidades e negações determina-se a prática da conduta moral: Seja Honesto.
Não conduza ao erro. A prática discursiva da necessidade e da disciplina para se chegar à ética é parafrástica, na
medida em que retoma um discurso já institucionalizado, ou seja, em todas as sociedades e em todos os momentos
históricos, em maior ou menor medida, a conduta moral sempre regeu a ordem do ser, de como comportar-se em sociedade
para que a convivência entre os pares possa ser agradável e igualitária. Pode-se classificar o momento histórico da
produção do site como um momento em que a sociedade vive conflitos, guerras, relacionamentos ruins, influenciados pela
má formação ética do indivíduo. Sabe-se que isso tudo atinge drasticamente a esfera social.
Outro argumento utilizado pelo site é que a instituição e o seu fundador não tem fins lucrativos, o objetivo seria a
formação da ética das pessoas, visando um mundo melhor. No entanto, parte do site é gratuito, mas os cursos em sua
maioria são pagos e o valor não é acessível a todas as classes sociais. Além disso, o fundador do instituto também é autor
de livros que trazem discurso sobre a ética e o caráter, entre eles, “You don’t have to be sick to get better!” e “The Best is Yet
to Come – More thoughts on being a better person and living a better life”.
O fundador do instituto apresenta-se crédulo em seu método e afirma sinceramente que pode mudar o mundo a
partir da mudança de pequenos atos:

I believe that the source of our sentimental reaction is a passion for goodness that lives deep within all
of us. Perhaps we cry at these warm stories, not simply because we feel joy in acts of love and honor,
but because we are also a bit sad about not being as good as we could be. Fortunately, every day
brings new opportunities to heed the voice of our souls and to find purpose and meaning in acts of
virtue. Thank you for joining me on this continuing journey. And, in the end, I hope you will believe even
more strongly that character counts. (JOSEPHSON, 2002, p. 4-5)

O sentido principal é o do convívio harmonioso entre as pessoas, a partir do momento em que a ética passa a ser
efetivamente demonstrada em cada sujeito. O discurso é direcionado a todos, em especial aos educadores e pessoas que
pretendem trabalhar para um mundo melhor.
O site nada traz de novidade, traz adjetivos que todos nós conhecemos, no entanto, um método que se apresenta
como eficaz na formação de indivíduos que buscam um mundo melhor. Sabe-se que é importante ser honesto, mas tem-se
que saber acima de tudo que não basta ser honesto aos olhos alheios. Segundo o site a honestidade deve existir quando o
indivíduo está só, ou seja, em sua própria consciência.
O designer do site parece ter trabalhado com o discurso das cores para a representação de cada pilar, buscando
em cada cor um efeito simbólico, ou seja, resgatando o conhecimento do sentido popular das cores no cotidiano, utilizado
para a decoração e outros.
O azul para a sinceridade, a verdade seria como o céu azul. Respeito é amarelo, como o ouro, ou seja, a regra de
ouro. A responsabilidade é representada pela cor verde, verde de jardim, o jardineiro é responsável pelo seu jardim, cada

1053
um seria responsável por seu jardim que deve ser tratado diariamente com responsabilidade. O senso de justiça é
representado pela cor laranja, visto que, pelo direito natural, a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, sendo que a
laranja possui gomos que podem ser distribuídos de forma igualitária. O zelo é representado pelo vermelho, cor do coração,
pensar com o coração para ser zeloso. A cidadania é representada pela cor roxa, roxa de poder estatal que sustenta a
cidadania.
Para gravar o nome de todos os pilares, o site sugere utilizar uma palavra para lembrar da letra inicial de cada
pilar, consistente nas consoantes da palavra terrific – maravilhoso, bárbaro.
Logo, pode-se considerar o site como uma tecnologia de si, um lugar em que se encontram as práticas de conduta
moral para se transformar e constituir o ser humano num ser melhor e mais digno.

Considerações Finais:

O discurso do programa enfatiza que, para se ter um caráter firme, é necessário o compromisso de fazer sempre a
coisa certa, da consciência do que é certo e da competência para tomar decisões éticas. Um caráter firme é capaz de
resistir à tentação de colocar a popularidade, o bem estar e o conforto acima da ética. O programa incentiva trabalhar a
coragem moral, inicialmente em pequenos desafios, com a finalidade de demonstrar que fazer a coisa certa em pequenos
assuntos dá a confiança e a experiência necessária para enfrentar desafios maiores, quando eles vierem.
A análise do site em questão permite perceber um processo parafrástico, pois se encontra nele a produção do
mesmo sentido sob várias formas, ou seja, com base no programa Character Counts, observa-se que cada pilar traz a
questão da ética e do caráter como diferença básica para a formação de um mundo melhor. O discurso foi assumido no
universo de outros discursos, no mesmo sentido, sob formas diversas.
O site preconiza o que Foucault (1988) chama de “artes da existência”, ou seja, a homepage, por meio do
programa Character Counts, define as práticas racionais e voluntárias pelas quais o indivíduo irá transformar-se e modificar-
se em ser singular, irá fazer de sua vida uma obra portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios
de estilo. Logo, por meio das práticas e do exercício permanente, o indivíduo define os critérios estéticos e também éticos
do bem viver na sociedade contemporânea: Sinceridade, Respeito, Responsabilidade, Senso de Justiça, Zelo e Cidadania.

Referências:

FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. 5ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

______. A ordem do discurso. (SAMPAIO, L. F. A. Trad.). São Paulo: Edições Loyola, 2009a. (Original publicado em 1970).

______. A arqueologia do saber (Neves, L. F. B. Trad.). 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009b. (Original
publicado em 1969).

JOSEPHSON, M. The Best is yet to come: more thoughts on being a better person and living a better life. Marina del Rey:
Josephson Institute of Ethics, 2002.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso (Indursky, F. Trad.) 3ª ed. Campinas: Pontes, 1997. (Original
publicado em 1987).

ORLANDI, E. P. Análise do discurso: princípio e procedimentos. 8ª ed. Campinas: Pontes, 2009.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento (Orlandi, E. P. Trad.). 5ª ed. Campinas: Pontes, 2008. (Original

1054
publicado em 1983).

SINGER, P. A ética do dia-a-dia. In: Revista Veja. 21 de fevereiro de 2007. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/210207/entrevista.shtml. Acessado em 12/08/2010.

Autores:

MARIA REGINA MOMESSO


Doutora em Linguística, coordenadora, docente e pesquisadora do Mestrado em Linguística da UNIFRAN. Membro do
GTEDI (Grupo texto e discurso da UNIFRAN). Orientadora na linha do discurso: sentido, comunicação e representação.
E-mail: reginamomesso@uol.com.br e/ou reginamomesso@unifran.br.

LUIZ CARLOS CARDOSO NEGRÃO


Graduado em Direito, especialista em Direito Processual, docente em Processo Penal, mestrando em Linguística pela
UNIFRAN. Discente pesquisador do grupo de pesquisa GTEDI (Grupo texto e discurso da UNIFRAN).
E-mail: luiz-negrao@uol.com.br e/ou luizcarlosnegrao@yahoo.com.br

1055
Estudo do mediativo no Correio Braziliense de 1808

NEVES, Janete dos Santos Bessa


(PUC-Rio)

1. Introdução
A tarefa de quem realiza pesquisa em teorias da enunciação “deve ir além do domínio do imediatamente
observável e tentar descrever os processos de produção (e de reconhecimento) subjacentes a uma sequência de signos
fônicos ou gráficos com determinadas características, que habitualmente se designa por ‘enunciado’” (Campos, 1997, p.
21). E é essa a perspectiva deste trabalho, ou seja, apresentar uma sistematização de construções linguísticas de mediativo
que evidenciam o distanciamento e a desresponsabilização em relação aos enunciados construídos nas diferentes seções
dos jornais de 1808, cuja publicação foi editada em fac-símile (Costa, 2001).
Na Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas de Antoine Culioli (1971, 1976, 1990), suporte teórico para
esta investigação, a linguagem é uma atividade significante de produção e reconhecimento, em que o enunciador constrói,
num polo, uma determinada significação, marcada no enunciado produzido, e o coenunciador, num outro polo, reconstrói a
significação construída pelo enunciador. Ao construir um enunciado, o enunciador assinala seu ponto de vista em relação
ao que enuncia, assumindo o conhecimento construído ou se distanciando dele, dependendo do valor modal que lhe vai
atribuir. Trataremos, particularmente, das diferentes formas de que o enunciador se utiliza para marcar esse distanciamento,
que caracteriza uma perspectivação modal designada ‘mediativo’.

2. Objeto de análise
As investigações da modalidade linguística em jornais dos séculos XVIII e XIX datam de períodos recentes na
história da Linguística. Quando o jornalismo brasileiro se iniciou, independente da Coroa Portuguesa, com a publicação do
Correio Braziliense, em Londres, à época da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, marcas identificaram esse período
que deixou um importante legado para o jornalismo contemporâneo.
Para Alberto Dines (2001), Hipólito da Costa, fundador e editor por quatorze anos (1808 a 1822) do Correio
Braziliense, foi o “precursor [do jornalismo brasileiro], mas a obra periódica que deixou tão bem organizada ainda é um
paradigma”.
Para a consecução do nosso objetivo, o quadro teórico, como já mencionado, se baseará nos preceitos da
abordagem semântico-enunciativa de Antoine Culioli, e no conceito de ‘mediativo’, adotado por Zlatka Guentchéva e outros,
para designar "a categoria gramatical que indica que o enunciador faz referência a situações das quais ele não assume a
responsabilidade, por ter tido conhecimento delas por via indireta” (Guentchéva, 1994).
Na imprensa de hoje, dentre as manifestações diversas da modalidade, há o recurso modal 'mediativo', do qual o
jornalista faz uso para revelar de que forma foi apurada a notícia a ser veiculada, ou seja, se constatada diretamente pelo
jornalista ou se conseguida de outra fonte enunciativa.
Num paralelo, verificamos que a construção da significação no discurso jornalístico contemporâneo está
fortemente dependente de algumas características inerentes ao jogo das relações, aos interesses dos responsáveis
(jornalistas, editores, donos das empresas jornalísticas), às expectativas dos leitores, sem falar nas implicações de ordem

1056
judicial que podem ocorrer, atualmente, como consequência das palavras ou expressões veiculadas (Neves & Oliveira,
2007: 49).
Vejamos, por exemplo, o comentário de João Ubaldo Ribeiro (2005: 7): "(...) tenho que usar 'suposto', 'alegado'
etc., se não pode dar processo em cima de mim (...)". Há, por isso, situações que requerem um distanciamento do sujeito
em relação tanto aos fatos quanto às fontes da informação.
Zuenir Ventura (2010: 7) aponta uma outra razão para o recurso ao distanciamento: uso obrigatório de ‘suposto’
antes do nome de um acusado que ainda não tenha sido condenado definitivamente pela justiça. Ventura critica esse
recurso, considerando-o desnecessário, pois, em muitos casos, ‘os supostos’ são já assassinos confessos. Para preservar
uma regra do adequado jornalismo, ou seja, ‘em nome da isenção’, ou do distanciamento linguístico, deve-se recorrer a
esses recursos.
Esse distanciamento exige uma manipulação dos recursos linguísticos e pode assumir diferentes formas,
geralmente abordadas no âmbito do valor mediativo do enunciado. Muitas vezes, há mesmo um exagero, como demonstra
o excerto do artigo do jornalista Manuel António Pina:
“Uma das características de algum jornalismo que hoje por aí se faz é que nada acontece, tudo
“poderia ter acontecido” ou “poderá acontecer”. Outro dia pus-me a contar os futuros e condicionais de
uma “notícia” de uns poucos de períodos publicada no “Correio da Manhã” sobre o desparecimento de
Maddie MacCann. Ao todo, contei 10 condicionais e futuros hipotéticos para um único e rigoroso
“foram”. A “notícia”, assinada por uma jornalista de “investigação”, era só uma ociosa enumeração de
suposições: as análises “podem ser” hoje enviadas para Portugal; um cão pisteiro “ter-se-á mostrado”
nervoso, o que “poderia indiciar” não sei o quê; a utilização de cães pisteiros “terão sido sugeridos” (sic)
pelos ingleses ; um amigo dos MacCann “terá levantado” suspeitas; um inglês “poderá ser extraditado”;
os MacCann “terão arrendado” uma casa; etc… Por outro lado, as raras vezes que, em tal jornalismo,
algo acontece, acontece “alegadamente”: a mulher foi alegadamente artropelada, o sinal verde estava
alegadamente aceso, o automobilista teria alegadamente 2 gramas de álcool no sangue. E tudo
segundo fontes «próximas» de qualquer coisa, pois os jornalistas, hoje, não afirmam nem confirmam,
repetem.” (Apud Duarte, versão eletrônica)

3. Quadro teórico
Na Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas de Antoine Culioli, defende-se que um enunciado é
construído a partir de uma relação predicativa, ou conteúdo proposicional, sobre a qual se faz incidir um conjunto de
operações predicativas e enunciativas articuladas em torno da operação básica de localização abstrata. Essas operações,
incidindo sobre a relação predicativa, vão determinar a organização sintática e diatética do enunciado e a sua localização
em relação ao sistema de coordenadas enunciativas (basicamente S e T, Sujeito e Tempo-espaço), de que resultam valores
referenciais de pessoa, tempo, aspecto, número, modalidade e determinação em geral (Campos, 1998).
Para Culioli, modalidade, ou valor modal de um enunciado, corresponde ao resultado da localização da relação
predicativa em relação ao parâmetro S0, sujeito da enunciação. Essa operação vai caracterizar o ponto de vista do sujeito
enunciador sobre aquilo que enuncia, assumindo o conhecimento construído ou se distanciando dele, dependendo do valor
modal que lhe vai atribuir. Em outras palavras, a modalidade linguística gramaticaliza a localização de um conteúdo
proposicional em relação a um enunciador-locutor, que é, assim, um sujeito modal (Campos, 2004).
A questão da identificação dos valores modais perpassa, evidentemente, para além do que o enunciador constrói
e assume diante do conhecimento construído. Em termos semântico-enunciativos, temos o valor mediativo quando o
enunciador, ao construir o enunciado, explicita, por mecanismos diversos, fatos apresentados que não constituem a
expressão de uma visão pessoal e sim a de outros enunciadores aos quais o enunciador recorreu para validar seu
enunciado (Neves, 2006).

1057
Isso pode ser constatado, como salientam Neves & Oliveira (2003), em processos sintáticos e/ou por marcadores
não exclusivos desse valor, como, por exemplo, advérbios de frase, do tipo aparentemente, visivelmente, certamente,
supostamente; nos verbos modais dever e poder com valor epistêmico; em fórmulas introdutórias do discurso relatado (de
acordo com X, segundo X, para X), nas aspas de citação, entre muitos outros recursos.
Campos (2001, 338) sustenta a interação entre o mediativo e a modalidade, a partir da designação daquele como
uma subcategoria desta, já que “o mediativo fornece à modalidade informação sobre a maior ou menor fiabilidade de uma
informação, contribuindo para um valor modal epistêmico dentro de uma escala que vai da asserção estrita aos vários graus
de probabilidade”. Neves (2006: 164) assevera que a “modalização epistêmica (que basicamente envolve uma atitude do
falante) necessariamente se relaciona com a fonte do conhecimento, com o qual o falante pode não estar comprometido”.

4. Valor epistêmico e mediativo


Poderíamos identificar três domínios para o valor modal epistêmico e o mediativo estaria no terceiro domínio, a
saber:
a) do certo (assunção total: asserção estrita positiva ou asserção estrita negativa);
b) do não-certo (não assunção ou assunção parcial: verbos epistêmicos dever, poder; verbos de opinião; advérbio
talvez;
c) do distanciamento enunciativo (mediativo): não assume a validação, construindo recursos linguísticos que
marquem a distância entre enunciador e enunciado, recorrendo a outra fonte enunciativa para a validação.
(Neves, 2009)
O valor mediativo se constrói a partir de uma ruptura enunciativa, ou seja, “qualquer ocorrência de um enunciado
mediativo introduz necessariamente uma situação de enunciação mediatizada SitM que está em ruptura com a situação de
enunciação [origem] Sit0” (Guentchéva, 1994). Assim, esse valor vai operar sobre uma ruptura, que quer dizer que SitM é
referencialmente independente de Sit0 e a ruptura pode ser global ou afetar apenas um dos parâmetros: os enunciadores ou
os instantes. Um enunciador mediatizado (SM), em ruptura com S0, é fundamentalmente indeterminado; um instante
mediatizado (TM), em ruptura com T0, surge como fictício (Guentchéva 1994).
O estudo do mediativo foi impulsionado, entre outros, por Jakobson (1963), que propôs chamar ‘evidential’ à
categoria verbal que, entre outros aspectos, faz entrar em linha de conta a fonte de informação alegada relativamente ao
processo do enunciado (Jakobson, 1963: 183).
Pesquisas têm sido realizadas nas línguas tupi-guarani, que identificam expressões de ‘evidencialidade’ a partir do
termo “evidencial” – expressão linguística de atitude relativa ao conhecimento –, com base em Jakobson (1963) e Chafe &
Nichols (1986). Podemos citar o estudo realizado por Cabral (2000) no qual essa autora destaca duas dessas expressões: o
‘constativo’, que indica que o locutor teve acesso ao conteúdo de uma informação por via direta, e o ‘mediativo’, que sinaliza
que o locutor teve acesso ao conteúdo de uma informação por via indireta, significando, em várias línguas, que a
informação foi obtida através de um terceiro (Neves, 2004) .
Cabral nos dá os seguintes exemplos de expressões de evidencialidade no tupi-guarani:
*rakó ~ kó (constatado pelo locutor);
*ra´é (não constatado pelo locutor);
*je (constatado por meio de outra entidade enunciativa); e
*nipo ~ *ipó ~ *pó (conhecimento obtido por recurso inferencial).

1058
Outras investigações apontam também dados que contribuem para a compreensão e embasamento do contido no
presente projeto, como o estudo de Barnes (1984) sobre os termos evidenciais em Tuyuca, língua falada na Colômbia e no
Brasil, a conferir:
díiga apé-wi “Ele jogou futebol” (Eu o vi jogar)
díiga apé-ti “Ele jogou futebol” (Eu ouvi o jogo e o ouvi, mas não vi um nem o outro)
díiga apé-yi “Ele jogou futebol” (Eu vi evidências de que ele jogou: a marca do sapato dele no campo. Mas não o
vi jogar)
díiga apé-yigi “Ele jogou futebol” (Eu obtive a informação de outra
pessoa)
díiga apé-hiyi «Ele jogou futebol» (Há razões para o enunciador assumir que ele o fez)
Desses exemplos em Tuyuca, verificamos que existe apenas uma forma em português (“Ele jogou futebol”) para
representar as diferentes entidades enunciativas explicitadas naquela língua, o que caracteriza a necessidade de criar
outros recursos, que não sejam os morfológicos, para dar conta dessa diversidade de informação que necessitamos
construir na cadeia enunciativa.
Num enunciado com o mediativo, há a construção de um conhecimento, ou seja, de uma asserção, mas a fonte
enunciativa não é o sujeito enunciador e sim alguém a quem ele recorre para se distanciar totalmente do conhecimento a
ser veiculado. Considera-se, assim, marcador mediativo "uma expressão linguística que surge no enunciado e que indica se
a informação transmitida nesse enunciado foi retomada pelo locutor a outrem ou se foi criada pelo próprio locutor, através
de uma inferência ou de uma percepção" (Dendale & Tasmowski, 1994).
Esse distanciamento exige uma manipulação dos recursos linguísticos e pode assumir diferentes formas. Neves
(2006: 165) mostra como pode dar-se essa manipulação:
“(...) entende-se, por princípio, que a falta de marca indicativa da fonte (a falta de marca evidencial)
implica que essa fonte seja o próprio falante, filtro natural das proposições por ele expressas: Quem
diz:
. A gente se habitua a tudo, que é só questão de vontade, ou melhor: de força de vontade.
é entendido como autor e mentor – ou pelo menos, compartilhador – da ideia de que “a gente se
habitua a tudo (etc.)”. Se assim não for – e o falante quiser deixar isso registrado, eximindo-se da
responsabilidade – ele indicará a fonte externa da ideia / informação. Na verdade, foi o que aconteceu
no enunciado documentado:
. Dizem que a gente se habitua a tudo, que é só questão de vontade, ou melhor: de força de vontade.
(A)”

Guentchéva (1994: 8-9) aponta três valores principais do mediativo:


1) fatos relatados: ocorrem em duas situações:
a) conhecidos ou admitidos por todo mundo, como os contos populares, as lendas e os mitos;
b) fundados nas falas de outros em que se encontram as nuances de dúvida, ironia, indignação e rejeição;
2) inferências: são fatos enunciados reconstruídos a partir de traços ou indícios observáveis;
3) fatos de surpresa: ocorrem quando o enunciador apresenta fatos como uma descoberta inesperada e em contradição
com o estado esperado, podendo, assim, recorrer ao mediativo nas línguas que conhecem essa categoria. O fato enunciado
é, então, concomitante à situação de enunciação e esse valor aparece essencialmente com verbos estativos ou com
predicativos qualificativos. É necessariamente acompanhado de uma entonação do tipo exclamativo.
Para dar conta da descrição e análise dos enunciados do corpus proposto, e consequentemente identificando as
estratégias linguísticas de distanciamento no jornalismo, recorreremos, principalmente, aos fatos relatados e às inferências.

1059
5. Metodologia
Para consecução dos objetivos previstos nesta investigação, comporão o corpus, como já mencionado,
enunciados do Correio Braziliense publicados em 1808. O conjunto desse periódico está disponível em publicação fac-
similar da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São 29 volumes acrescidos de mais dois – um com índices e outro com
textos.
O Correio Braziliense possui uma estrutura interna bem definida. Está organizado em quatro seções principais:
Política, Comércio e Artes, Literatura e Ciências e Miscelânea. Na seção Política, encontram-se as “Coleções de
Documentos Oficiais”, relativos a Portugal e a outros países da Europa, mais especialmente à Espanha. Em função de ser
transcrição de atos oficiais, essa é a única seção que será descartada da análise do periódico.
A análise contemplará excertos, que serão apresentados na grafia vigente na época, em que se encontram
diferentes ocorrências de modalização linguística e, mais particularmente, de mediatização no discurso jornalístico. O
estudo privilegiará os valores modais epistêmicos, neles incluídos os marcadores de mediativo, considerando que esses
marcadores indicam a pesquisa da informação (Chafe & Nichols, 1986) e decorrem da natureza do saber do enunciador
(Palmer, 1986) e da atitude do enunciador ao olhar o enunciado (Willett, 1988).

6. Análise dos dados


A partir dos conceitos da Semântica Enunciativa, segundo os preceitos de Antoine Culioli, e da abordagem teórica
do mediativo, conforme Guentchéva, foram sistematizados os fatos linguísticos que determinam a construção do mediativo
no Correio Braziliense de 1808. Trataremos, assim, dos seguintes recursos de mediativo:
6.1 Atribuição do discurso a outra fonte enunciativa
6.2 Apresentação de fatos inferidos
6.3 Distanciamento enunciativo

6.1 Atribuição do discurso a outra fonte enunciativa


Existem recursos linguísticos para assinalar o distanciamento enunciativo, marcando o não envolvimento com o
conhecimento construído, como por exemplo, com o uso da impessoalização, da disjunção enunciativa (mudança de
enunciador) e dos ditos populares, estes últimos conhecidos ou admitidos por todo mundo, como os contos populares, as
lendas e os mitos.
É uma forma de apresentar fatos relatados, "mostrando que o enunciador não adquiriu diretamente o
conhecimento (…) mas sim indiretamente, através de uma fonte que lhe é exterior" (Campos, 2001: 328).

6.1.1 Impessoalização: com índice de indeterminação do sujeito, o enunciador se distancia do que é dito, recorrendo a
uma fonte enunciativa não explicitada claramente, como nos exemplos:
“Como quer que isto fosse soube-se queas tropas aquartelladas em Madrid, haviam tido ordem para marchar, e os symptomas
de commoçoens cada vez éram mais conspícuos.” (Correio Braziliense, 1808: 10);

“Daqui se conjectura, que se tem em consideraçaõ negócios importantes...” (Correio Braziliense, 1808: 125);

6.1.2 Disjunção enunciativa: recorre-se à fonte enunciativa explicitada claramente para assim enunciar alguma coisa da
qual deseja se distanciar, ou não validar a relação predicativa construída, como nos enunciados:

1060
“Diz mas o folheto “Os Inglezes mesmo dizem tambem nas suas folhas publicas; todos os Povos civilizados da Europa nos
fecham os seus portos, &c.” (Correio Braziliense, 1808: 39);

“O official, que os commandava, pedio ao Governador da Praça passaportes para marchar para Valencia, que, segundo elle
dizia, era o lugar de seu destino (...).”(Correio Braziliense, 1808: 60);
“... e agora dizem todos os jornaes, que tanto o Ministro Portuguez como os Deputados do Porto tinham entaõ, na sua maõ, a
desgraçada capitulaçaõ, assignada pelo Gen, Wellesley...” (Correio Braziliense, 1808: 319-320).

6.1.3 Recurso a ditos populares: em vez de dizer, de assumir a relação predicativa, o enunciador faz uso de ditos que
dizem aquilo que ele gostaria de dizer, o que caracteriza o distanciamento. Vejamos dois desses ditos populares no corpus:
“Por isso diz o rifaõ, que quem mente he necessário ter boa memória.” (Correio Braziliense, 1808: 40);

“Há um dictado Portuguez, que se diz: “O homem maõ tira um olho de si, para tirar dous ao vizinho.” (Correio Braziliense, 1808:
43).

6.2 Apresentação de fatos inferidos


As inferências, que são fatos enunciados a partir de traços ou indícios observáveis, construídas com o futuro do
presente ou do pretérito favorecem o distanciamento enunciativo. Verifiquemos os exemplos:
“...porque a falta de explicaçoens neste caso teria funestas consequências.” (Correio Braziliense, 1808: 319);

“...mas se nos he permettido conjecturar, e discenir, entre aquella virtude, e aquelle vicio cuja linha de separação nos está agora
invizivel; direi que a prudência exige a moderaçaõ, e soffrimento momentaneo, que se observa no Gabinete de Vienna...”
(Correio Braziliense, 1808: 395).

6.3. Construção de plano fictício


Uma outra forma de conseguir distanciamento em relação às afirmações produzidas é pela utilização de formas
verbais no futuro de pretérito e do futuro do presente. Essas formas verbais mantêm-se muito produtivas no discurso
jornalístico.
Segundo Culioli (1990: 150), com o condicional (futuro do pretérito) jornalístico, constrói-se um localizador fictício, o
que permite dissociar o enunciador do locutor (ou escritor). (…) Isto permite dizer sem tomar a cargo o que se diz. O valor
de não-compromisso do enunciador em relação às informações veiculadas, obtido principalmente com o futuro do pretérito,
decorre, pois, da ruptura entre o sujeito enunciador (S0) e o sujeito mediatizado (SM). Vejamos os exemplos:
“... e se tem lido éstas listas so poderia suppor, que as Alfandegas
estávam fechadas...” (Correio Braziliense, 1808: 37);

“Terîa talvez succumbido, e estaria reduzido ao estado em que agora se acha, mas conservaria a honra.” (Correio
Braziliense, 1808: 60);

“e na verdade so esse estado de ignorância, e barbarismo, se poderîa adoptar ao Despotismo universal a que elle parece
aspirar.” (Correio Braziliense, 1808: 50).

“Alguem supporá, que estes Representantes da Naçaõ Portugueza defenderiam a character dos seus nacionaes.” (Correio
Braziliense, 1808: 319);

1061
“Entretanto que as tropas fancezas marcham de toda a parte para a Hespanha, em numero considerabilissimo, Buonaparte se
emprega em ajustar os negócios do Norte, e caso o resultado seja tal que lhe dê motivos de ficar tranquilo quanto a esta parte,
voltará depois para a Hespanha, onde, achando ja condensado o seu exercito, porá em execuçaõ as as medidas, que tem em
vista.” (Correio Braziliense, 1808: 395).

7. Conclusão
Realizamos uma breve sistematização das construções mediatizadas em enunciados publicados no Correio
Braziliense de 1808, utilizadas para permitir a atribuição direta do discurso à outra fonte enunciativa, para apresentar fatos
inferidos e para marcar o distanciamento enunciativo.
A identificação das formas de mediativo nos enunciados possibilitou-nos concluir que, desde o início da publicação
de periódicos, na imprensa brasileira, jornalistas recorrem a estratégias linguísticas que favorecem a construção de uma
distância em relação ao conhecimento construído, o que pode contribuir para isentá-los de algum comprometimento, caso a
informação veiculada não corresponda à realidade dos fatos.
Esta pesquisa revela ainda que há muito ainda que se investigar no jornalismo brasileiro do ano de 1808, uma vez
que deixou um importante legado para o jornalismo contemporâneo, revelando-se igualmente um instrumento para se
conhecerem ideias, pensamentos, história e política do Brasil do século XIX.

Referências
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CABRAL, Ana Suelly A. C. “Aspectos gramaticais compartilhados por línguas do Baixo Xingu, Tocantins e Nordeste da
Amazônia: partículas evidenciais”. In: Atas do II Congresso Nacional da Associação Brasileira de Linguística
(ABRALIN), CD-ROM. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 2000.

CAMPOS, Maria Henriqueta Costa. Tempo, aspecto e modalidade. Estudos de Linguística Portuguesa. Porto: Porto
Editora, 1997.

CAMPOS, Maria Henriqueta Costa. DEVER e PODER. Um subsistema modal do Português, Lisboa: FCG/JNICT, 1998.

CAMPOS, Maria Henriqueta Costa. "Enunciação mediatizada e operações cognitivas" in A.S. Silva (org.), Linguagem e
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COSTA, José Hipólito. [1808]. Correio Braziliense, ou, Armazém Literário. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; DF:
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CULIOLI, Antoine. Définitions de quelques termes en linguistique, Extraits de l’Encyclopédie Alpha, Paris, Grange-
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CULIOLI, Antoine. Recherche en Linguistique: Théorie des Opérations Énonciatives, 1976.

CULIOLI, Antoine. Pour une linguistique de l’énonciation. Opérations et répresentations. Tome 1. Paris, Ophrys, 1990.

DINES, Alberto. “O patrono e o modelo”. In: COSTA, Hipólito José da, Correio Braziliense, ou, Armazém literário. Edição
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1062
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a 97.

JANETE DOS SANTOS BESSA NEVES é doutora em Letras pela PUC-Rio. Integra o Grupo de Pesquisa “Linguagem,
Cultura e Trabalho” – Departamento de Letras da PUC-Rio, desde 2008, e é Doutorada Colaboradora do Centro de
Linguística da Universidade Nova de Lisboa, desde 2001, no Grupo de Pesquisa “Gramática e Texto”. Publicou vários
artigos na área de Semântica Enunciativa no Brasil e em Portugal.
Endereço eletrônico: janetebneves@gmail.com

1063
A construção enunciativa na cobertura da morte de Alberto
Silva nos jornais de Teresina: em busca do leitor
NORONHA, Elizângela
(Universidade Federal do Piauí)

1. DA SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM

Ao perceber a linguagem como um espaço de manifestação das subjetividades, Benveniste (1989) ofereceu um
novo ponto de partida para os estudos linguísticos até então influenciados pela percepção estruturalista de Ferdinand de
Saussure, que percebia a língua como um sistema fechado e autônomo, no qual os sujeitos não tinham qualquer influência.
A proposição relacionada às subjetividades se tornou explícita com o processo de enunciação proposto por Émile
Benveniste (1989), no qual o sujeito do enunciado (termo que o autor aplica para substituir emissor) utiliza a língua para
produzir sentido através dos enunciados que, no todo, formam os discursos. “A enunciação supõe a conversão individual da
língua em discurso” (Benveniste, 1989). Com isto, o autor reafirma a posição ativa do indivíduo na produção dos sentidos
propostos nos discursos, substituindo, mais uma vez, a noção do modelo anterior que previa um papel passivo para o
receptor.
Benveniste (1989) também propõe que o ato individual de apropriação da língua resulta na introdução daquele
que fala em sua fala, ou seja, a partir do momento em que alguém se utiliza da língua para enunciar materializa
discursivamente a si e ao outro no que diz. Passando a existir como sujeitos discursivos, emissor e receptor, que mais à
frente serão tratados como locutores conforme denominação de Mikhail Bakhtin (2003), abandonam o papel limitado de
emitir ou receber enunciados, e passam a constituir uma relação de coexistência necessária e dialógica entre sujeitos
discursivos.
Assim, observa-se que o comportamento antes passivo do leitor foi superado pela concepção de que o mesmo é
ente participante na construção dos sentidos propostos pelos veículos de comunicação. Mesmo sem participação física, ou
seja, mesmo sem que o leitor figure em carne e osso, ele se manifesta através da heterogeneidade dos discursos ou
mesmo da busca dos veículos de comunicação por mecanismos que provoquem a sua identificação com os sentidos
propostos.
Isso quer dizer que mesmo quando o jornalista está sozinho redigindo seus textos, na verdade, os sentidos por ele
produzidos estão acompanhados de um “tecido de vozes” ou sentidos originados em outros textos preexistentes,
contemporâneos ou do passado, do repertório sócio-cultural do sujeito; e de elementos que ele julga fazerem parte dos
interesses do leitor buscado pelo jornal.
Instigado pelas questões pertinentes ao universo da interpretação, o semiólogo Umberto Eco (1994, 2008a)
investiga os processos de autoria e leitura de textos ficcionais. Nesse percurso, as perguntas fundamentais que direcionam
seus estudos estão relacionadas em quem é o leitor de uma fábula? Como ele age em contato com o texto? Até que ponto
ele está livre ou direcionado para fazer suas interpretações?
Partindo destas questões fundamentais, “numa história sempre há um leitor, e esse leitor é um ingrediente
fundamental não só do processo de contar uma história, como também da própria história” (ECO, 1994, pág. 7). O leitor é
um elemento gerativo do próprio texto, pois, é idealizado durante o processo de produção do texto e corresponde a um

1
1064
certo “perfil” projetado por aquele que escreve, sendo composto por requisitos mínimos para a captura ampla dos sentidos
do texto.
Dessa maneira, ao escrever, o autor já insere durante a produção de “criação” um modelo de leitor capaz de
perceber as intenções discursivas do que está sendo produzido e que poderá ser atualizado durante a leitura a partir da
colocação dos enunciados do texto em funcionamento. Esse leitor, denominado leitor-modelo, é construído no processo da
produção enquanto estratégia textual, como um ser equipado para interpretar o texto dentro dos limites que o mesmo
impõe, ou melhor, sem transgredir o que o texto diz, mas, ao contrário, respeitando os conteúdos propostos para então
resignificá-los a partir da interação entre o que está dito e as relações que o sujeito faz com suas experiências até então
armazenadas em sua enciclopédia discursiva.
As contribuições de ECO (1994) acerca do leitor demonstram o “endereçamento” dos discursos a um leitor
específico, idealizado no próprio processo de produção de textos. No entanto, como suas proposições, como já foi
destacado acima, estão situadas no universo da interpretação, cabe retornar as discussões para o universo do discurso, a
partir do qual pretende-se analisar o corpus.

2. REFLEXÕES TEÓRICAS

Na investigação a respeito do leitor, é imprescindível destacar a noção de que emissores e receptores


desempenham funções ativas na dinâmica da comunicação a partir do reforço dado pelas reflexões de Mikhail Bakhtin
(2003) acerca dos conceitos de atitude responsiva ativa, polifonia e dialogismo. Ao primeiro, o teórico propôs que cada
enunciado (unidade real da comunicação verbal na perspectiva bakhtiniana) do locutor gera uma resposta, reação ou ação
do seu interlocutor, correspondendo à capacidade do co-emissor de produzir enunciados a partir dos enunciados alheios. E
esta atitude, por mais que não seja imediata ou manifestada na situação de enunciação, provoca a alternância dos sujeitos
(enunciador e co-enunciador), ou seja, dos locutores, que estão sempre reagindo a discursos ofertados.
A polifonia, por sua vez, refere-se à presença de diversas vozes num mesmo enunciado, podendo ser expressas
através de aspas, do discurso direto e outros recursos lingüísticos; ou integrar a constituição do enunciado sem que o
próprio enunciador se dê conta da presença dessas vozes - de origem histórica, cultural e social. Para Bakhtin, não apenas
a língua é social, como propôs Saussure, mas a fala também tem origem social e se manifesta através do diálogo, que tanto
se dá entre locutores como entre discursos. Estes, por sua vez, não dependem apenas da ação isolada de um sujeito, mas
do ativamento de vozes que esse sujeito é capaz de promover, conscientemente ou não, durante a enunciação.
É como se, ao falar, os locutores estivessem orquestrando as vozes em circulação na sociedade de tal maneira
que os enunciados pareçam ser o resultado de uma atividade individual de produção de sentidos, apesar de não serem.
Fruto de uma autoria dissimulada, em que os enunciados são constituídos por múltiplas vozes e não apenas por um
indivíduo - em constante diálogo “internamente (entre si), e externamente, articulando-se com discursos outros, anteriores e
posteriores, através da possibilidade de réplica, da característica responsiva ativa, aberta a qualquer palavra articulada na
relação dialógica” (MAGALHAES, 2003, pág. 43).
A noção de dialogismo está relacionada à dinâmica remissiva dos enunciados, propondo que não há discurso
original, pois, todo discurso está em relação com outros já ofertados e com os que ainda serão produzidos. Bakhtin (1992)
reafirma a condição social da linguagem ao destacar que as palavras não são de ninguém e estão disponíveis para uso de
qualquer locutor que, inclusive, poderá fazer múltiplos usos das palavras, afinal, para ele, é a situação de enunciação que
dá às palavras suas significações. Por isso, tanto quanto à forma quanto ao conteúdo, os enunciados estão em relação
dialógica com outros enunciados.

2
1065
Como elos na cadeia da comunicação verbal, os enunciados não existem isoladamente, pois, precisam estar em
relação com outros enunciados para fazerem sentido. Além disso, essa noção traz também a ideia da alteridade – princípio
que estabelece a existência do “eu” a partir da relação estabelecida com o “outro”.
Percebendo que cada fala é também atravessada por vozes sociais, Jacqueline Authier-Revuz (1990) propôs
discutir conceito bakthiniano de polifonia a partir das heterogeneidades enunciativas de uma forma mais metodológica a
partir de dois modos de manifestação destas vozes: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva. A
heterogeneidade mostrada refere-se às vozes explícitas marcadas na superfície textual; e a heterogeneidade constitutiva
designa as vozes implícitas, “aquelas que se originam na história, na cultura e que podem ser identificadas pelo estudo das
condições de produção discursiva” (ARAÚJO, 2000, pág. 125).

Heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade mostrada no discurso representam duas


ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos
não menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição. (AUTHIER-REVUZ, 1990, pág.
32)

As duas modalidades de heterogeneidade são solidárias entre si. Enquanto a forma mostrada expressa, por meio
de denegação, a onipresença da heterogeneidade constitutiva, esta última está em constante negociação com a mostrada
no intuito de permitir escapar alguns traços de sua presença e omitir outros, que permanecerão submersos em sua
constituição. Pinto (2003) e Araújo (2000) defendem que a polifonia e as heterogeneidades podem se equivaler na
perspectiva dos Discursos Sociais, já que ambas estão relacionadas à orquestração das vozes que integram os discursos,
com ou sem o consentimento dos locutores.
Em Araújo (2000), as reflexões acima estão alinhavadas à proposição de Benveniste a respeito da manifestação
dos sujeitos discursivos eu e tu através da linguagem. É possível classificar como sujeitos que constituem o discurso:
sujeito da enunciação (“é a imagem daquele que se apresenta como emissor, como responsável pelo discurso”), sujeito do
enunciado (é a imagem daquele a quem se fala, que corresponde ao receptor idealizado”) e enunciadores (“são todas as
demais vozes arregimentadas pelo emissor, para compor e legitimar sua própria imagem”), (ARAÚJO, 2000, pág. 127).
No entanto, opta-se neste trabalho pela classificação proposta por Pinto (2003) que, voltando aos conceitos
conforme proposição de Benveniste, considera sujeito do enunciado o narrador ou emissor representado nos textos pelo
pronome “eu”; sujeito da enunciação como aquele que eu represento no enunciado, oscilando entre as posições “eu” e “tu”;
e o sujeito falado como aquele a quem eu direciono meu enunciado, ou seja, o “tu”. “Adaptando-se à tendência de
nomenclatura inaugurada por Émile Benveniste, pode-se dar o nome de sujeito falado a essa imagem ou lugar que o(s)
coemissor(es) assume(m) ao se reconhecer nos enunciadores a ele(s) atribuídos pelo emissor” (PINTO, 2003, pág. 35).
Como o propósito deste trabalho é investigar a construção discursiva do leitor na cobertura da morte do ex-
governador piauiense Alberto Silva nos jornais de Teresina, na edição de 29 de setembro de 2009, o foco da abordagem
será identificar a imagem daquele a quem se fala – o sujeito falado, seguindo as “pistas materiais que podem ser
encontradas em sua superfície mesma, isto é, na mistura de linguagem verbal, imagens e padrões gráficos que o constitui,
às práticas socioculturais no interior das quais surgiu e que costumam ser chamadas de contexto”, (PINTO, 2002, pág. 12).
Para tanto, assume-se que traços dos demais sujeitos do discurso deverão ser observados e analisados, pois, acredita-se
nos Discurso Sociais que o sujeito não é uno, nem senhor de sua fala, sendo, portanto, uma construção constante nas
situações de interação social, ou seja, de interação com o outro.
Em sintonia com o primeiro postulado do método de análise proposto por Pinto (1994), o postulado da
heterogeneidade constitutiva, entende-se que o sujeito é heterogêneo, recortado por aspectos sócio-históricos e culturais; e

3
1066
impensável sem o diálogo com o outro. “O conceito de polifonia fornece elementos para romper a ilusão de unicidade do
sujeito e de sua autonomia sobre o discurso, possibilitando a avaliação e revisão das estratégias discursivas” (ARAÚJO,
2000, pág. 128). A partir da observação das múltiplas vozes que compõem os discursos, através da investigação polifônica,
é possível identificar as vozes sociais que atravessam o dizer do sujeito, que assume como seu um enunciado anterior, de
domínio social. Sem se dar conta desta “apropriação”, este enunciador nutre a sensação de autonomia sobre o que diz
quando, de fato, está inserido numa cadeia remissiva de sentidos em que cabe a ele a figura de orquestrador das vozes em
circulação na sociedade.
O segundo postulado que norteia a Teoria dos Discursos Sociais é o da semiose infinita, no qual está relacionado
o conceito de dialogismo de Bakthin. Rebatizado como intertextualidade por Julia Kristeva, em 1966, tem como finalidade
“realçar essa propriedade dos textos de se relacionarem com outros textos, anteriores, contemporâneos ou subseqüentes,
ou com acontecimentos de outra ordem”, (ARAÚJO, 2000, pág. 131). Ao se apropriar de uma estratégia para enunciar algo,
o locutor faz escolhas e exclusões durante o processo de formulação dos enunciados, dos textos e dos discursos, que
podem ser tomados posteriormente como pistas para identificar quais vozes estão presentes, implícita ou explicitamente, no
que é dito.
Estreitamente relacionado ao conceito de polifonia, o dialogismo fornece as pistas ao investigador social quanto
às escolhas feitas pelo enunciador durante a produção dos enunciados, ou seja, leva o analista a percorrer os caminhos
trilhados pelos sujeitos durante a enunciação reconstituindo as escolhas, os silenciamentos, as exclusões e as articulações
materializadas nas superfícies significantes.
Esse sistema de escolhas e exclusões, no entanto, não é realizado sem os embates sociais previstos por Bakthin
(1992). Na disputa pela legitimação dos sentidos propostos, os locutores se inserem num espaço de produção, circulação e
consumo de sentidos, no qual a lógica se assemelha às regras do mercado simbólico. Denominadas como a economia
política do significante, essas regras de negociação dos sentidos compõem o terceiro postulado dos Discursos Sociais.
Fazendo uma analogia às regras que regem outros tipos de mercado, “onde o sistema produtivo determina e deixa
marcas nos objetos produzidos, também os discursos são determinados pelo sistema de produção, circulação e consumo,
que neles deixa suas marcas” (ARAÚJO, 2000, pág. 136). Dessa maneira, é percorrendo o caminho inverso, ou seja,
partindo do produto final (o texto) que se busca reconstituir, a partir das marcas deixadas na tessitura textual, as operações
que atuaram na constituição do discurso tal qual ele se apresenta.
Por isso, para esta linha de pesquisa, a “análise de discurso procura descrever, explicar e avaliar criticamente os
processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade”, (PINTO, 2002).
Fazendo este percurso de reconstituir o sujeito falado expresso nos textos publicados nas editorias de política dos jornais
de Teresina, considera-se, na perspectiva de Pinto (2002), que os leitores estão presentes e marcados nos textos que são
entendidos como “produtos culturais empíricos produzidos por eventos comunicacionais” (pág. 11), ou seja, eles estão na
materialização da situação de enunciação nas superfícies textuais, neste caso, nas páginas de política dos impressos.

4. ANÁLISE DO CORPUS

4.1 – “Leitores-modelo”
A partir da leitura dos três jornais em estudo, é possível perceber um “perfil” idealizado pelos veículos em relação
aos seus leitores. Na edição do dia 29 de setembro de 2009, o Jornal O Dia estampou em sua primeira página fotos e textos
que chamavam a atenção do leitor para a morte do ex-governador e então deputado federal piauiense, Alberto Silva. Com a
manchete “Piauí perde um realizador de sonhos”, colocada ao lado de uma foto de Alberto Silva, o jornal inicia a abordagem

4
1067
que oferece ao leitor a respeito do tema e também oferece os primeiros traços para a constituição discursiva de si e do
leitor.
Ao optar por essa construção no texto da manchete, o veículo aposta que a união da frase à foto na qual o político
tem um microfone em uma mão e o polegar apontado para cima na outra mão é suficiente para a identificação do tema
proposto. Assim sendo, o leitor idealizado por O Dia dá o primeiro sinal de que conhece a figura do político, inclusive não se
fazendo necessária a utilização do nome Alberto Silva para que identifique do que se trata. Além disso, o jornal compartilha
com seu leitor o lamento pela perda do ex-governador, que para o Piauí e, portanto, para enunciador e co-enunciador, era
um realizador de obras importantes para o Estado.
Em todos os textos publicados por O Dia acerca da morte de Alberto Silva, o enfoque principal é a história política
do parlamentar, os cargos que ocupou, os seus mandatos e sua principais obras. Outro importante traço é a aproximação
que o veículo propõe entre si e o ex-governador e, também, entre o leitor e Alberto Silva. Ao adotar em diversos trechos
apenas o nome Alberto ou o pronome pessoal “ele” para fazer referência ao ex-governador piauiense, O Dia aproxima a
figura do político aos enunciadores.
Na edição de 29 de setembro de 2009 do Diário do Povo, verifica-se que o principal fato do jornal desta data
também é a morte do ex-governador piauiense. Com a manchete “Piauí se despede hoje de Alberto Silva”, acima de uma
fotografia que mostra o caixão rodeado de políticos, populares e profissionais da imprensa, o jornal anuncia que neste dia
todo o Estado estará fragilizado com a “partida” de Alberto Silva incluindo, portanto, o próprio jornal e o leitor idealizado pelo
mesmo.
Com essa construção, o veículo atribui grande importância a Alberto Silva e compartilha essa avaliação com todo
o Estado do Piauí, ou seja, não apenas com o leitor. Logo abaixo, a chamada “Lula manifesta seu pesar pelo falecimento”
demonstra que o piauiense também é reconhecido no meio político local e nacional como uma importante personalidade
política brasileira. Na página 3, o Diário do Povo traz reportagens sobre a morte do deputado federal e reforça o enfoque
dado aos enunciados da primeira página e do editorial. Os títulos das matérias “Chegada do corpo de Alberto Silva causa
comoção no Estado”, “Políticos lamentam a morte de Alberto e elogiam sua trajetória”, “PMDB perde uma liderança que
durou 30 anos” e “Congresso suspende sessões para homenagear deputado piauiense”, reafirmam a posição do jornal ao
classificar a morte do parlamentar como uma perda para o Estado, ou seja, para o jornal, para o leitor e para todos os
demais piauienses.; além de ser um acontecimento que modifica o cenário político local.
O jornal Meio Norte, em sua edição de 29 de setembro de 2009, apresenta uma abordagem mais didática a
respeito da morte do ex-governador Alberto Silva. Logo na primeira página, uma foto do caixão com o corpo do parlamentar
coberto pelas bandeiras do Piauí e do PMDB (partido do político) estampa metade da página. Abaixo, o nome do
parlamentar é colocado sobre uma tarja vermelha, seguida pela manchete “Morre o engenheiro dos sonhos”. Com essa
apresentação, o veículo mostra sua posição didática ao informar o leitor, pois, inicia sua cobertura utilizando o nome do
parlamentar de forma enfática e explicativa. No texto colocado acima da tarja, “Política – Deputado federal, Alberto Silva, 90
anos, morre de complicações de um câncer de próstata”, o jornal inicia o texto com dados que referenciam o político com o
objetivo de facilitar a identificação do leitor. No entanto, essa preocupação em conduzir o leitor também demonstra que o
leitor idealizado pelo Meio Norte não se mostra capaz de identificar o tema tratado na cobertura jornalística sem que o
impresso mostre, muito didaticamente, do que e de quem se trata.
A repetição de qualificadores antecedendo o nome do político nos textos do Meio Norte também reforçam a noção
de que o leitor proposto pelo jornal, de fato, não sabe muito sobre a vida, a trajetória política e as obras de Alberto Silva,
como pode ser constatado nos trechos: “O deputado federal e construtor do Piauí, Alberto Silva (...)”, “O filho do deputado

5
1068
federal e ex-governador Alberto Silva, Marcos Silva (...)”, “A morte do deputado federal Alberto Silva (...)”, além do título
“Alberto Silva foi grande incentivador do esporte”, todos publicados no início de textos da página 3.
Dessa maneira, verifica-se que O Dia cobra do seu leitor o conhecimento prévio a respeito da morte de Alberto
Silva, considerado um fato já sabido pelo leitor, assim como a identificação visual do político a partir de sua fotografia. Com
isso, percebe-se que o leitor idealizado por O Dia é bem informado, pois, independente da leitura que faz do impresso, sabe
dos fatos ocorridos no Estado ou que são de interesse dos piauienses; além de ter como hábito o consumo de informações
sobre o cenário político local, por isso, a fácil identificação de Alberto Silva a partir da foto e a ausência do seu nome em
posição de destaque.
Já o Diário do Povo, ressalta a importância que atribui ao parlamentar e divide com o seu leitor e demais
piauienses, a admiração pelo ex-governador. Além disso, faz cobranças a este leitor para que compartilhe com ele o
reconhecimento para a relevância que atribui à trajetória política do deputado federal.
E o Meio Norte apresenta uma abordagem diferenciada dos demais veículos ao propor um leitor que precisa ser
conduzido durante a leitura. Ao utilizar um estilo mais didático para apresentar o tema, o jornal propõe um leitor que carece
de informações sobre a história política do Estado e que pouco tem de conhecimento a respeito dos fatos que repercutem
no Piauí, sugerindo, inclusive, que o impresso é a única fonte de informação do seu leitor, pois, trata como algo novo a
morte do político ocorrida na madrugada do dia anterior. Além disso, para o jornal, o leitor não consegue reconhecer
sozinho o político Alberto Silva, necessitando de que sejam repetidas informações sobre quem era o parlamentar, qual a
sua importância para o Estado e, portanto, quais são os motivos que justificam a comoção de lideranças políticas locais,
nacionais e de populares, como a senhora não identificada que aparece na foto publicada na primeira página.

4.2 – Aspectos polifônicos e dialógicos


Os textos publicados nas páginas de política dos três jornais a respeito da morte do ex-governador Alberto Silva,
mostram a materialização, nos enunciados, de diversas vozes em circulação na sociedade. A manchete do Diário do Povo -
“Piauí se despede hoje de Alberto Silva” – traz as vozes daqueles que sabem quem é Alberto Silva e que concordam com a
importância atribuída pelo jornal à morte do político. Em “Lula manifesta seu pesar pelo falecimento”, esse reconhecimento
do político não apenas para o Piauí como o país, aparece de forma marcada, pois, tem a autoria declarada do presidente
Lula. Essas proposições aparecem também em outros trechos das páginas de política do Diário, em que são destacados o
fato do caixão ter sido transportado de Brasília a Teresina em um avião da Força Aérea Brasileira, às lamentações de
políticos piauienses a respeito da morte de Alberto Silva, como em “Piauí perde uma liderança que durou 30 anos” e
“políticos lamentam a morte de Alberto e elogiam sua trajetória”.
Em O Dia, as vozes de pesar pela morte do político são expressas a partir de construções enunciativas que
misturam o lamento pelo falecimento à tentativa de prestar homenagens ao político. Na manchete “Piauí perde um
realizador de sonhos”, as vozes que reconhecem a morte do ex-governador como uma perda para o Estado revelam que as
principais contribuições dadas por ele estão na realização de sonhos acalentados pelo estado, por isso, o merecimento da
comoção e da realização de homenagens no Estado.
Sem abusar do uso de citações entre aspas, os jornais O Dia e Diário do Povo, os impressos mais antigos em
circulação, apropriam-se das vozes da vivência histórica que possuem para falar a partir de uma posição privilegiada, que
acompanhou a trajetória do político, sabem quais foram suas principais contribuições, bem como sabem destacar também
quais foram seus deslizes políticos, como quando destacam quando ele atrasou os salários do funcionalismo público em
sua gestão à frente do Governo do Estado ou quando se propôs a realizar obras que não eram tão importantes (“Das
grandes obras, algumas essenciais, outras nem tanto”). Além disso, os jornais atribuem ao seu leitorado a mesma

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1069
experiência no acompanhamento dos fatos políticos piauienses, propondo um diálogo com um leitor que conhece Alberto
Silva e que compartilha com o jornal as vozes da experiência e da criticidade.
Por outro lado, o Meio Norte apresenta mais ocorrências da heterogeneidade marcada, ou seja, da presença de
vozes claramente convocadas e expressas entre aspas ou assinadas, para tratar da morte de Alberto Silva. Mostrando-se,
desta maneira, possuir a necessidade de chamar o outro para falar sobre aquilo que não tem conhecimento ou vivência, o
jornal projeta também um leitor com pequeno repertório histórico acerca do seu Estado. Nos seus textos, o leitor é chamado
para entender a importância do político e a ouvir de personalidades locais as contribuições do ex-governador para o Estado
e para a política local.
Em relação aos aspectos dialógicos, é possível identificar, por exemplo, que os jornais dialogizam com discursos
anteriores, assim como com discursos que ainda poderão ser ofertados. Ao propor que o “Piauí perde um realizador de
sonhos”, o jornal O Dia tanto dialoga com os discursos sobre o parlamentar que o percebiam como um sonhador e como
também com os discursos que o viam como um homem de importantes realizações no Estado.
Em outro texto, a morte do político ganha outros desdobramentos a partir dos reflexos que o fato pode trazer,
como sobre quem deveria assumir sua vaga na Câmara Federal, na presidência do PMDB no Estado e mesmo quais obras
deveriam receber seu nome. Esses textos demonstram que já nos textos que remetem à morte de Alberto Silva já há uma
preocupação em antecipar os desdobramentos do fato e propor discursos que se remetem a outros que ainda estariam por
ser ofertados.
No Diário do Povo, o aspecto dialógico pode ser verificado em exemplos como no texto em que o jornal destaca o
fato do Piauí ter perdido quatro deputados federais nos últimos sete anos. Nesse texto, não apenas os enunciados se
remetem a fatos anteriores, mas também estão se remetendo a discursos anteriores relacionados às sucessivas mudanças
na bancada federal piauiense provocada pela morte de parlamentares.
No Meio Norte, chama a atenção a opção do jornal por ex-governador como qualificador do político, como em “Ex-
governador Alberto Silva morre aos 90 anos”. Ao utilizar esta estratégia, o Meio Norte considera que a identificação do
político se dá de maneira mais objetiva à sua atuação como ex-governador, não como um deputado federal em exercício de
mandato, nem como uma figura política que transcende a um cargo eletivo. Em outros textos, verifica-se a ocorrência do
qualificador “engenheiro” para o político, remetendo novamente à sua atuação profissional como fator indispensável para a
identificação do mesmo por parte do leitor.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da aplicação do método de análise proposto pela Teoria dos Discursos, obteve-se como indicações de
resposta a identificação de enunciadores diferenciados na cobertura de um mesmo fato, o que resulta em construções
também diferenciadas para cada leitor proposto, pois, conforme defendido nesta perspectiva teórico-metodológica, ao
enunciar, cada enunciador se insere e projeta o seu interlocutor no que é dito, como defendido por Émile Benveniste.
Verificou-se também a partir da análise do corpus deste trabalho que as múltiplas vozes que constituem os
discursos estão além da vontade do enunciador de evocar outros locutores para dialogizar durante a construção dos textos,
como no caso das falas entre aspas reproduzidas nas reportagens, mas essas vozes também constituem os enunciadores
enquanto sujeitos atravessados pela experiência sócio-histórica e cultural que acumulam durante sua trajetória. A partir
dessas observações, parece clara a presença das heterogeneidades enunciativas, marcada e constitutiva, na produção dos
sentidos ofertados para consumo no mercado discursivo no qual estão em disputa os três jornais de Teresina - O Dia, Meio
Norte e Diário do Povo.

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1070
Para encerrar, cabe destacar que este trabalho, na verdade, é uma primeira tentativa de esboço acerca da
construção discursiva do leitor – ser imaterial mas de presença marcante no processo de produção dos sentidos, nas
editorias de política dos jornais piauienses acima citados.

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Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), pós-
graduada em Tendências e Perspectivas no Jornalismo pela UFPI e mestranda no programa de Letras na área de Estudos
de Linguagem. Atua principalmente em análise de discursos com foco na investigação a respeito do leitor. Email:
elizc@uol.com.br’

8
1071
A expressão do ethos nos editoriais da revista Caros
Amigos

OLIVEIRA, Daniele de
(UFMG)

Argumentação
De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 16) “toda argumentação visa à adesão dos espíritos e, por
isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual”, portanto o orador não pode/deve desconsiderar as
condições psíquicas e sociais de seu auditório, sob pena de sua argumentação ficar sem objeto ou ainda sem efeito. De
fato, a comunidade efetiva dos espíritos, tanto sobre sua própria formação quanto sobre a questão em debate, é
fundamental para que a argumentação se realize.
O contato entre o locutor e seu interlocutor é essencial para o desenvolvimento da argumentação, mesmo que
esse contato seja virtual, por exemplo, por meio de uma revista impressa. E se a argumentação tem por objetivo obter a
adesão de seu auditório, pode-se dizer que ela se refere inteiramente ao seu alvo. O auditório pode, então, ser considerado
o interlocutor do orador? Ou ainda o conjunto de pessoas a quem o orador se dirige? É justamente aí que reside a
dificuldade em determiná-lo, já que o discurso será composto em função da ideia de auditório construída pelo orador. De
acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca, o auditório é “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentação” (2005, p. 22), tendo em vista seus princípios éticos, morais, religiosos etc. A aparente simplicidade da
definição de auditório é, pois, contraposta a real dificuldade de sua determinação.
Sendo assim, a construção do auditório, psicológica ou sociologicamente, deve adequar-se à experiência. De fato,
o auditório deve ser presumido o mais próximo possível da realidade, sob pena de os argumentos não alcançarem seus
objetivos. É importante salientar que razões que são consideradas pró por um determinado auditório podem ser
consideradas contra por outro. Pode-se dizer, então, que o orador deve se adaptar ao auditório que pretende persuadir para
que sua argumentação seja, de fato, eficaz.
Essa adaptação depende, em grande medida, do conhecimento pelo orador da cultura na qual está inserido seu
auditório. Trata-se de ter em mente o meio social no qual vive seu auditório, uma vez que é esse meio social que
influenciará as opiniões dominantes, as convicções indiscutíveis etc. Os discursos dirigidos a um determinado auditório
refletem, dessa forma, a cultura que lhe é própria.
A heterogeneidade (de caráter, de vínculos, de funções) do auditório deve ser contornada com a utilização de
argumentos vários que alcancem a todos os componentes do grupo. Tal capacidade garantirá ao locutor o status de grande
orador. É importante ressaltar que o auditório muda no decorrer do próprio discurso, ou seja, no final do discurso já não é o
mesmo do início. O auditório é condicionado pelo próprio discurso, portanto o orador deve se adaptar a ele de forma
contínua.
Aristóteles destaca três tipos de provas discursivas, a saber, o ethos, o pathos e o logos, sendo que, para ele, o
ethos constitui a mais importante delas. Antes mesmo de refletirmos sobre a noção de ethos, deter-nos-emos sobre o
conceito de esquematização proposto por Grize (1996, 1997). A esquematização aqui é entendida como uma base para a
elaboração de todo discurso, mas principalmente, dos que se pretendem argumentativos e/ou persuasivos. De fato, há que
se esquematizar o ethos, a imagem a ser transmitida em dado discurso em determinada situação sob pena de não se obter
êxito com a argumentação.

1072
Representações e esquematizações
Para Grize (1997) qualquer discurso pressupõe antes uma ideia, uma representação sobre o que se pretende
comunicar, independentemente do assunto. Além disso, o locutor também deve ter ou fazer uma representação de seu
interlocutor e de si mesmo. Dessa forma, o locutor deve representar o tema T, seu interlocutor I e a si mesmo L, o que pode
ser representado por repr L (T), repr L (I) e repr L (L). Leia-se “representação de L (locutor) sobre T (tema)”, “representação
de L (locutor) sobre I (interlocutor)” e “representação de L (locutor) sobre L (locutor), respectivamente.
Tais representações constituem a base para a construção de uma esquematização, que pode ser entendida como
uma representação discursiva direcionada a um destinatário sobre o que seu autor concebe ou imagina de uma
determinada realidade (Grize, 1996). Trata-se, portanto, de uma atividade criativa desenvolvida concomitantemente aos
atos de falar e de escrever, ou ainda de uma atividade criadora de sentido. Pode-se dizer ainda que a esquematização
refere-se a um processo e também a um resultado.
Um processo constitui uma organização. No caso de uma atividade discursiva, organiza-se palavras que remetem
a pré-construídos culturais com o objetivo de se produzir determinado sentido. Um “canivete” é uma pequena navalha com
lâmina dobrável, mas “chover canivete” não se refere ao instrumento propriamente dito. O locutor entrega-se, portanto, a
uma seleção de aspectos que ele representará em sua esquematização, ele deve selecionar os traços pertinentes de seu
referente, tendo em vista suas próprias finalidades e também as representações das expectativas que ele atribui a seu
interlocutor (Grize, 1996).
A organização do sentido ocorre, portanto, em função da finalidade de L, o locutor. Dito de outra forma, L
seleciona as palavras que lhe permitirão produzir o efeito desejado e as organiza de modo a reunir os aspectos que
contribuirão para o resultado final. Além disso, ainda que a principal finalidade de L seja modificar uma representação de I,
faz-se necessário um mínimo de acordo prévio. De fato, se menciono a expressão “chover canivete” para um interlocutor
que desconhece seu significado, não alcançarei efetivamente meus objetivos discursivos. O que nos remete à ideia de
esquematização como resultado, como a apresentação de um micro-universo discursivo (Grize, 1997).
Para Adam (1999) a esquematização é, assim como a essência dialógica da linguagem, um processo “interno” ou
contextual. A densidade da textura contextual é tecida a cada proposição que constitui determinado texto, e cada uma
dessas proposições é apenas uma etapa que prepara e conduz a uma sequência.
Pode-se dizer então que o uso das esquematizações lança mão de noções e não de conceitos fechados. A cada
interlocutor é, pois, permitido que faça uma interpretação própria do que lhe é apresentado pelo locutor. O que, por sua vez,
abre à significação a possibilidade de sentidos múltiplos que se transformam e evoluem ao longo do tempo. Tal não
acontece com os conceitos fechados que podem, no entanto, substituir um conceito precedente, mas, de acordo com Grize
(1996), não evoluem em si mesmos. Por isso, buscar o sentido de uma esquematização é uma tarefa ilusória e inócua, é
sempre a um sentido que se deve almejar, ainda que esses sentidos sejam limitados pela significação de cada um de seus
termos, ao mesmo tempo que conduzidos pelo contexto e também pelo cotexto. É o que faz com que toda releitura de um
texto não seja nunca simples repetição.
O conceito proposto por Grize (1997) sobre as esquematizações trata de imagens, pois, para ele, esquematizar
um aspecto da realidade é um ato semiótico. O locutor e o interlocutor fazem representações, que, por sua vez, propõem
imagens por meio do discurso.
A imagem do tema, por exemplo, remete à questão de sua verossimilhança que exige, por sua vez, coesão e
coerência no discurso veiculado. A coesão é um fenômeno interno ao discurso (semântico), ou melhor, de acordo com Koch
(2006, p. 46) ela “constroi-se a partir dele [texto], numa situação interativa”. Já a coerência “se constroi por meio de

1073
processos cognitivos operantes na mente dos usuários, desencadeados pelo texto e seu contexto” (idem). Por exemplo, na
frase “Ana chorou rios de lágrimas” poder-se-ia notar uma incoerência em função do exagero da imagem, mas a coerência
é resgatada por meio do extra-linguístico, ou seja, dos pré-construídos culturais.
As imagens do locutor (L) e do interlocutor (I), por sua vez, são construídas ao longo da interação comunicativa.
Sendo assim, pode-se dizer que uma esquematização é um signo constituído por três formas principais: o tema que é
esquematizado, o locutor e o interlocutor. Ressalte-se ainda que uma esquematização não se constitui apenas de imagens,
mas também por marcas linguísticas que auxiliam na sua reconstrução.
Pensar o texto como uma esquematização nos força a ter sempre em mente que o texto é produto de uma
interação verbal, ou seja, que seu sentido é sempre co-construído pelo locutor e pelo interlocutor. Ao falar ou ao escrever, o
locutor sempre fornece pistas para seu interlocutor. Para tanto, o esquematizador, ou locutor, apóia-se em um saber comum
que o permite elaborar hipóteses sobre o que o co-esquematizador, ou interlocutor, é capaz de apreender de sua
esquematização. Está claro que não há sempre uma simetria entre a proposta do locutor e a apreensão do interlocutor. De
fato, esse último pode não ser capaz de compreender o que lhe é direcionado, tendo em vista que seus saberes
enciclopédicos, sua familiaridade com o gênero etc. não coincidem necessariamente com os do locutor.
Mas, devemos dizer com Grize (1996), que o locutor da esquematização busca sempre direcionar a interpretação
de seu interlocutor tendo em vista sua própria concepção de dada realidade. Dito de outra forma, o locutor solicita sempre a
seu interlocutor que construa um sentido, ainda que este último deva sempre seguir as pistas deixadas pelo autor do
texto/fala.
O que nos leva a identificar pelo menos três parâmetros contextuais (Adam, 1999):
- os da situação sociodiscursiva da interação considerada;
- as condições de sua produção;
- e as condições de sua recepção/interpretação.
Considerando que as trocas comunicativas, as interações verbais buscam sempre reconstruir a realidade do
sujeito falante, além disso, aceitar ou rejeitar o que lhe é oferecido de sua própria imagem, remetemo-nos aos rituais de
interação propostos por Goffman (1974) e também à sua teoria da face. De acordo com a teoria da face cada sujeito
procura valorizar, proteger sua face no momento de interação com um interlocutor.
O termo face pode ser entendido como o valor social positivo que uma pessoa reivindica efetivamente por meio da
linha de ação que os outros supõem que ela adotou no decorrer de um contato particular (GOFFMAN, 1974, p. 9). Dessa
forma, a face é minha própria imagem, construída de acordo com determinados atributos socialmente aprovados. De fato, é
possível, por exemplo, dar uma boa imagem de sua profissão por meio de uma boa imagem de si.
Uma pessoa protege a face quando sua linha de ação manifesta uma imagem dela mesmo consistente, ou seja,
embasada em julgamentos feitos pelos outros participantes da interação, e confirmada pelos elementos impessoais da
situação.
No entanto, há que se fazer uma importante distinção entre a teoria da face proposta por Goffman (1974) e as
imagens propostas por Grize (1997) e retomadas por Adam (1999). Para Goffman (1974), a face é construída ao longo da
vida. Dito de outra forma, os atos de uma pessoa no passado podem contaminar a face por ela almejada atualmente, o que
em tese não acontece com as imagens construídas no discurso. De fato, o ethos, ou imagem do locutor, como o próprio
Aristóteles destacou, é essencialmente discursivo e o que se sabe previamente do orador não deve influenciar na
constituição desse ethos discursivo.

1074
Ethos
Aristóteles, ao definir a retórica como capaz de persuadir sobre determinada questão, aponta três tipos de provas:

Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies: umas residem no caráter moral
do orador; outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso, pelo que ele
demonstra ou parece demonstrar (Arte Retórica, Livro Primeiro, cap. II, p. 33).

Dessa forma, Aristóteles agrega o ethos – caráter ou costumes do orador – e o pathos – disposição ou estado
passional do auditório – ao logos – valor demonstrativo do discurso.
A noção de ethos e das paixões é relembrada por Perelman em sua obra L’empire rhétorique (1977, p. 111):

Que se tratasse não de fatos, mas de opiniões, e sobretudo de apreciações, não somente a pessoa do
orador, mas também a função que ele exerce, o papel que ele assume, influenciam inegavelmente a
maneira do auditório acolher suas palavras [...].
Mas inversamente, os propósitos do orador dão dele mesmo uma imagem cuja importância não pode
ser subestimada: Aristóteles a considera, sob o nome de ethos oratório, como um dos três
componentes da eficiência na persuasão, os dois outros sendo o logos e o pathos, o apelo à razão por
meio de argumentos e os procedimentos retóricos visando a suscitar as paixões do auditório. (tradução
nossa)

Para Aristóteles, o ethos é particularmente importante:

Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso procede de maneira que deixa a
impressão de o orador ser digno de confiança. As pessoas de bem inspiram confiança mais
eficazmente e mais rapidamente em todos os assuntos, de um modo geral; mas nas questões em que
não há possibilidade de obter certeza e que se prestam a dúvida, essa confiança reveste particular
importância. É preciso também que este resultado seja obtido pelo discurso sem que intervenha
qualquer preconceito favorável ao caráter do orador. (Arte Retórica, Livro Primeiro, cap. II, p. 33)

A convicção surge, pois, da confiança do auditório no orador. O auditório é levado a concordar com o orador por
meio das qualidades pessoais mostradas no discurso deste último. O que nos permite afirmar que a imagem do orador é
construída com base em seus propósitos. Ressalte-se ainda que a honestidade da pessoa do orador na vida, para
Aristóteles, não garante a adesão a seu discurso, diferentemente da concepção de face, proposta por Goffman (1974),
mencionada anteriormente. Ele faz uma distinção clara, no último trecho da citação acima, entre o ethos discursivo “que
este resultado seja obtido pelo discurso” e uma imagem prévia do orador “sem que intervenha qualquer preconceito
favorável ao caráter do orador”.
Tal distinção nos permite compreender melhor as razões da dissociação entre o “ser”, costumes reais, e o
“parecer”, ethos discursivo. Importam apenas, portanto, os costumes oratórios, ou seja, o que a esquematização revela ao
auditório em relação às eventuais virtudes do orador. O que dá ao ethos discursivo uma determinada autonomia retórica.
Linguisticamente é interessante retomar a maneira como Ducrot (1987) integra o ethos em sua teoria polifônica.
De acordo com a teoria polifônica da enunciação proposta por Ducrot (1987) existem um ou mais sujeitos que seriam a
origem da enunciação e há, portanto, a necessidade de se fazer a distinção entre locutores e enunciadores. O locutor é o
responsável empírico pela enunciação (quem fala) e o enunciador é o ser que se expressa por meio da enunciação
(vozes/ideias presentes no discurso). Ducrot distingue ainda, na noção de Locutor, o “locutor enquanto tal”, L, e o “locutor
enquanto ser do mundo”, λ. Dessa forma, L é o responsável pela enunciação e λ é a pessoa que fala, a origem do
enunciado. Esses dois locutores podem ser seres de discurso, constituídos no sentido do enunciado. Para Ducrot (1987, p.
188-189):

1075
Um dos segredos da persuasão tal como analisada a partir de Aristóteles é, para o orador, dar de si
mesmo uma imagem favorável, imagem que seduzirá o ouvinte e captará sua benevolência. Esta
imagem do orador é designada como ethos. É necessário entender por isso o caráter que o orador
atribui a si mesmo pelo modo como exerce sua atividade oratória. Não se trata de afirmações auto-
elogiosas que ele pode fazer de sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afirmações que
podem ao contrário chocar o ouvinte, mas da aparência que lhe confere a fluência, a entonação,
calorosa ou severa, a escolha das palavras, os argumentos.

Ducrot relaciona, dessa forma, o ethos tanto à inventio (escolha dos argumentos) quanto à elocutio (escolha da
colocação de palavras) e à actio (colocação da voz, tom). Mas distingue, antes de qualquer coisa, ser do mundo e sujeito
falante.

Na minha terminologia, eu direi que o ethos está ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da
enunciação que ele se vê dotado [affublé] de certos caracteres que, por contraponto, torna (sic) esta
enunciação aceitável ou desagradável. O que o orador poderia dizer de si, enquanto objeto da
enunciação, diz, em contrapartida respeito a λ, o ser do mundo, e não é este que está em questão na
parte da retórica de que falo. (1987, p. 189)

De acordo com Amossy (2005), qualquer ato de tomar a palavra implica, necessariamente, “a construção de uma
imagem de si” (2005, p. 9), ou seja, a construção da imagem do locutor daquele discurso. Independentemente se se trata de
discurso oral ou escrito, formal ou informal, a imagem do locutor será construída por meio dele. Além disso, diz a autora, a
apresentação de si por meio do discurso acontece de forma deliberada, proposital, ou não. Dessa forma, o estilo, as
competências linguísticas e enciclopédicas, as crenças implícitas são elementos suficientes para a representação de si
mesmo via discurso.
Essa imagem de si construída com o objetivo de garantir o sucesso do ato oratório era designado pelos antigos
como ethos. Roland Barthes (1970, p. 212) buscou elementos da antiga retórica para definir o ethos como “os traços de
caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para causar boa impressão: é o seu jeito”
(grifos do autor). Barthes retoma, assim, as idéias aristotélicas de que o caráter moral é o principal responsável pelo poder
de persuasão de determinado discurso.
Para Auchlin (2001), o ethos pode ser entendido como “o ar, tom, estilo, daquele ou daquela que fala” (p. 201), é a
maneira como o locutor se mostra por meio de seu discurso. Para o autor, o ethos é constituído por uma parte ilocucionária
(o que pretendo que meu ouvinte compreenda, minha intenção real) e uma parte perlocucionária (o que meu ouvinte de fato
compreende a partir de minha fala). A forma de expressão do ethos pode acontecer pela seleção lexical, seleção dos
argumentos, pelo tipo de estrutura discursiva, pelo ritmo e/ou pela elocução. Tanto o material linguístico utilizado pelo
locutor quanto o ambiente no qual está inserido o discurso constituem a base do que podemos entender como expressão do
ethos e funcionam como estímulo para a percepção dos “eixos afetivos do interesse, da admiração e da confiança” no
locutor (AUCHLIN, 2001, p. 202).
Auchlin (2001, p. 202-203) apresenta duas visões do ethos:
a) a primeira visão do ethos é estática, figural, monologal, possui um valor basicamente descritivo e
tipológico: aqui o ethos é considerado como um conjunto de características do locutor (entendido
como fonte do discurso) e pode ser associado à particularidade de uma única pessoa ou ainda pode
ser associado a uma coletividade, o denominado ethos coletivo. Além disso, o ethos se configura
para alguém.
b) a segunda visão do ethos é dinâmica, dialogal e minimamente especificada: aqui o ethos é
considerado essencialmente dialogal, e seu conteúdo descritivo remete à experiência de um
discurso. Sendo assim, por meio da linguagem, temos acesso à interação verbal e à nossa própria

1076
identidade que se constitui de diversificadas identidades linguageiras assumidas em função dos
diferentes interlocutores com os quais interagimos.
Pode-se dizer então que o ethos é a figuração, uma representação, da origem de um evento comunicativo, e se
manifesta por meio de fatos linguísticos e não-linguísticos. Sua base interpretativa é, pois, ao mesmo tempo, interna e
externa ao discurso. Por isso, diz-se que o ethos encontra seu lugar na experiência sensível do discurso, que ele aciona os
sentimentos do locutor, que são tão importantes quanto o conteúdo do discurso. Em outras palavras, o ethos constitui uma
“ferramenta congnitivo-interacional” (AUCHLIN, 2001).
Para Eggs (2005), há dois campos semânticos opostos associados ao termo ethos na Retórica de Aristóteles. O
primeiro, cujo sentido é moral (epieíkeia), abrange atitudes e virtudes tais como a honestidade, a benevolência ou a
equidade. O segundo, cujo sentido é neutro (héxis), abrange termos como hábitos, modos e costumes ou caráter. “Essas
duas concepções não se excluem, mas constituem, ao contrário, as duas faces necessárias a qualquer atividade
argumentativa” (EGGS, 2005, p. 30) e é justamente isso o que ele procura demonstrar em seu artigo.
Considerando que em grego o termo logos primeiro significa fala ou discurso e apenas secundariamente refere-se
a razão ou exercício da razão, Eggs (2005) aponta que é o logos, ou discurso, do locutor que produz o ethos, em função de
suas escolhas linguísticas e estilísticas. Dessa forma, pode-se dizer que o ethos é mostrado no discurso por meio das
escolhas do locutor, ou seja, por meio de sua “maneira de se exprimir”, nas palavras de Maingueneau (2001, p. 137)
Retomando Aristóteles, Eggs (2005) explicita as três qualidades que inspiram confiança no locutor: i)
argumentação razoável (phrónesis); ii) argumentação honesta e sincera (areté); iii) argumentação solidária e amável com
seu auditório (eúnoia). Sendo assim, pode-se dizer que a phrónesis (que pertence ao logos) e a areté (a virtude do ethos),
expressam os habitus positivos em determinado discurso, e a eúnoia pertence ao pathos, uma vez que demonstra a boa
intenção do locutor para com seu auditório (EGGS, 2005). No entanto, há que se ressaltar que a moralidade do ethos é
construída por meio de escolhas competentes feitas pelo locutor, escolhas deliberadas e apropriadas. “o ethos como prova
retórica é, portanto, procedural” (EGGS, 2005, p. 37, grifos do autor).
Eggs (2005) denomina como integridade discursiva e retórica, a capacidade de o locutor se mostrar competente,
razoável, equânime, sincero e solidário e, consequentemente, ser digno de confiança aos olhos de seu auditório. No
entanto, insiste o autor, não se trata de manipulação, mas de apresentar-se como honesto e sincero.
Tendo em vista que o objetivo é convencer pelo discurso, pode-se dizer que há que se realizar simultaneamente o
ethos moral e o ethos neutro, de acordo com os pressupostos aristotélicos mencionados acima, ou ainda, há que agir e
argumentar estrategicamente, o que garantirá a sobriedade moral do debate. De fato, de acordo com Aristóteles “o
verdadeiro e o justo são, por natureza, melhores que seus contrários” e “o que é verdadeiro e naturalmente superior (...) é
mais fácil de persuadir” (2005, p. 31), o que demonstra uma tendência natural do homem para o verdadeiro, o bom, o justo.
Para Aristóteles, o homem é um “animal (→ pathos) político (→ ethos) que tem a capacidade de falar e de pensar
(→ logos)” (EGGS, 2005, p. 42); o ethos constitui a expressão dessas três dimensões do ser humano e, portanto, pode ser
considerado “praticamente a mais importante das provas”. Sendo assim, o caráter honesto demonstrado pelo locutor tornará
seu discurso mais credível aos olhos de seu auditório.

Análise
Diante do exposto, passemos agora a uma proposta de análise de um editorial da revista mensal Caros Amigos,
tendo como eixo norteador da análise os conceitos de esquematização e de ethos, comentados anteriormente. O editorial
selecionado é “Muito prazer, Leo Gilson Ribeiro”, publicado na edição da revista de fevereiro de 2007. O tema central do

1077
texto é o falecimento de um dos jornalistas da própria revista, Leo Gilson Ribeiro. O editorialista faz uma exaltação da figura
do jornalista falecido e procura denegrir a imagem do que denomina “jornalismo menas”.
Mas, vejamos em primeiro lugar como é construída a esquematização do editorial à luz dos postulados de Grize
(1996, 1997). Pode-se dizer que o editorial gira em torno das classes-objeto: jornalismo menas, Caros Amigos e o jornalista
Leo Gilson Ribeiro. Faz também uma referência ao sindicato dos jornalistas.
Classe jornalista
1 Leo Gilson Ribeiro
1.1 não tinha onde cair morto
1.1.1 seu corpo encontrou acolhida no mausoléu mantido pelo sindicato no Cemitério São
Paulo
1.2 mente brilhante
1.2.1 universo superior, o do intelectualismo de fato (lia no original Proust, Goethe, Tolstoi,
Dante)
1.2.2 tiradas de alto humor e acidez crítica
1.3 indiferente à luz dos spots ou à lente da câmara
1.4 Caros Amigos desde o número 1, há dez anos
Classe jornalismo
2 o jornalismo menas
2.1 medíocre
2.2 inhenho (tolo, fútil)
2.3 insensível
2.3.1 nem uma flor lhe mandaram em lembrança
2.4 pântano comunicóide
2.5 falsos afagos
Classe jornalismo
3 o sindicato dos jornalistas
3.1 gesto de grandeza
Classe jornalismo
4 Caros Amigos
4.1 reuniu excertos do que [Leo Gilson Ribeiro] escreveu ao longo desse tempo
A partir da esquematização dos objetos tratados no texto, observa-se que o esqueleto do editorial é construído a
partir de uma comparação entre o jornalismo praticado pela revista Caros Amigos, personificado na figura de Leo Gilson
Ribeiro (doravante LGR), um de seus jornalistas, e o jornalismo denominado “menas”. Nesse caso, o editorialista se
preocupou principalmente em afirmar e reafirmar o bom trabalho jornalístico desenvolvido por LGR que pode ser entendido
como um micro-universo representativo do jornalismo praticado pela revista como um todo. Trata-se, portanto, da
construção de um ethos coletivo, tendo em vista que reflete a imagem de determinada coletividade.
Se cruzarmos alguns dos aspectos atribuídos a cada uma das classes em destaque, tal comparação fica ainda
mais evidente:

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O jornalismo menas (2) é insensível (2.3) porque Leo Gilson Ribeiro (1) não tinha onde cair morto (1.1)
uma vez que as homenagens nesse pântano comunicóide (2.4) estão reservadas àqueles que lhe
agradam por reunirem posses – econômicas e políticas – ou às celebridades que adornam as páginas
da revista Caras e parelhas inutilidades denominadas colunas sociais.

Em contrapartida,
o sindicato dos jornalistas (3) em um gesto de grandeza (3.1) permitiu que seu corpo [de LGR]
encontrasse acolhida no mausoléu mantido pelo sindicato no Cemitério São Paulo (1.1.1).

Além disso,

Caros Amigos (4) homenageia LGR (1).

O que demonstra que, para o editorialista, o “jornalismo menas” é mediano, pobre; tolo, fútil (inhenho), além de ser
insensível. O próprio “jornalismo que está aí” confirma sua insensibilidade com uma “prova escarrada”, ou seja, uma prova
desprezível de insensibilidade. São, pois, um “pântano comunicóide”, ou seja, um lugar obscuro (onde não há
transparência); o sufixo –óide carrega em si um valor depreciativo, no caso, do fazer jornalístico condenado por Caros
Amigos.
A dialética entre o fazer jornalístico de Caros Amigos e o jornalismo menas é revelador do ethos almejado pelo
editorialista. Condenar um jornalismo medíocre e insensível pode fazer crer que o jornalismo de Caros não age da mesma
forma, ou seja, pratica um jornalismo de qualidade e sensível às necessidades e aos sentimentos de seus leitores como
também de sua equipe. Além disso, reforça o ethos construído em outros editoriais de uma revista “de esquerda”, que
questiona o status quo, neste caso, a atuação da mídia de um modo geral. Nossa análise confirma ainda a proposição
aristotélica segundo a qual os propósitos do orador, no caso, o editorialista, constituem a base da imagem do ethos
pretendido pelo editorial da revista.

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MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

1079
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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Anexo
Muito prazer, Leo Gilson Ribeiro

Perdemos Leo Gilson Ribeiro. Perdemos quer dizer nós – a Caros Amigos, e nós amigos, companheiros de vida, e
perdem os leitores. Perde também o país, perdem as letras e o jornalismo. Na verdade, o jornalismo menas, esse jornalismo
que está aí – medíocre, inhenho, é dizer pouco dele. Insensível. Leo Gilson serviu-o desde sempre, serviu-o por mais de
cinqüenta anos, principalmente na Editora Abril da Veja e no Estadão do Jornal da Tarde, e agora e na hora da morte nem
uma flor lhe mandaram em lembrança. Pudera! Não tinha onde cair morto, um gesto de grandeza do sindicato dos
jornalistas permitiu que seu corpo encontrasse acolhida no mausoléu mantido pelo sindicato no Cemitério São Paulo.
Mesquitas, Civitas e outros, que vergonha! Ao mesmo tempo, que prova escarrada de que as homenagens nesse pântano
comunicóide estão reservadas àqueles que lhe agradam por reunirem posses – econômicas e políticas – ou às celebridades
que adornam as páginas da revista Caras e parelhas inutilidades denominadas colunas sociais!
Se bem que a mente brilhante de Leo Gilson passasse ao largo de falsos afagos. Voltava-se inteiramente para um
universo superior, o do intelectualismo de fato (lia no original Proust, Goethe, Tolstoi, Dante), indiferente à luz dos spots ou
à lente das câmaras, tanto que são raríssimos os registros de sua imagem. A custo nos descobriram as fotos que aqui
reproduzimos, do tempo em que trabalhava na revista Veja, 1969, feitas por Cristiano Mascaro.
Leo Gilson participou de Caros Amigos desde o número 1, há dez anos, e a forma simples que encontramos de
homenageá-lo foi reunir excertos do que escreveu ao longo desse tempo, tarefa a que se dispôs nossa Marina Amaral, que,
ao ir compulsando na coleção da revista as Janelas Abertas que ele assinava, deliciava-se com as tiradas de alto humor e
acidez crítica que ia encontrando pelo caminho. Marina, ali de sua mesa, ria sozinha. Puro prazer. E isso era, na certa, a
melhor recompensa que Leo Gilson esperava por seu trabalho.
“Que saudade”, disse ela ao final.

Editorial Caros Amigos nº 119, fevereiro de 2007

Daniele de Oliveira é graduada em Letras pela UFMG (2002), mestre em Língua Portuguesa pela PUC-MINAS (2006) e
doutoranda em Estudos Linguísticos pela UFMG. Já atuou na Educação Básica e Superior. Atualmente ministra a disciplina
Oficina de Leitura e Produção de Texto, na FALE-UFMG, como parte das atividades que desenvolve como bolsista
CAPES/REUNI.

E-mail: danieleoliveira@yahoo.com

1080
A campanha “Muito prazer, sexo sem DST” do Ministério
da Saúde: analisando a representação masculina e
feminina à luz do design visual

OLIVEIRA, Luana Gerçossimo


(UFV)

1.Introdução

O papel da imagem na sociedade moderna tem mudado nos últimos anos, principalmente em função da televisão.
Devido à hegemonia do texto escrito, a imagem era antes vista apenas como uma ilustração do texto, algo que ora
reforçava o que o texto estava enunciando, ora delimitava o sentido textual, muitas vezes desfazendo construções
ambíguas ou polissêmicas. No entanto, a imagem, na sociedade moderna, em função dos avanços tecnológicos, adquiriu
outros status e funções comunicativas; há uma profusão de textos produzidos com alta inconicidade, como por exemplo, na
linguagem musical, tem-se os clipes, nas reportagens impressas, o uso constante de infográficos, entre outros. A imagem
tem se tornado um dos principais elementos persuasivos, por exemplo, dos anúncios publicitários, tornando o texto verbal,
muitas vezes, o complemento do não-verbal. Como se pode notar no anúncio abaixo da Unimed:

Figura 1: publicidade da Unimed

Pode-se, pois, inferir através da imagem: marcas de pneu, bebida, e, em seguida, pegadas, que se trata,
provavelmente, de uma campanha do tipo “Se beber, não dirija”. Observe que há no alto da página à direita um texto, em
letras pequenas, isso parece nos sugerir que o leitor compreenderá a informação enunciada somente observando a
imagem.
Determinadas imagens são dotadas de discurso persuasivo e simbólico e “podem desempenhar funções distintas,
dependendo do contexto em que são produzidas ou do fim a que se destinam” (FOERST, 2004, p. 73). Nota-se, em nossa
sociedade, o crescente uso de imagens, o que faz com que se torne necessário estudar, também, a linguagem não-verbal.
A partir dessas considerações, buscou-se realizar um estudo a respeito da construção da representação feminina
e masculina, na campanha “Muito prazer, sexo sem DST”: campanha de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis

1081
e uso da camisinha, realizada pelo Ministério da Saúde em 2009. Cabe ressaltar que nosso foco foi a análise da imagem,
tendo por base as categorias sóciosemióticas desenvolvidas por kress e van Leeuwen (2004) presentes na Gramática do
Design Visual.
Este artigo traz, primeiramente, um breve aparato sobre a Gramática do Design Visual, em seguida, alguns
aspectos do sistema visual de representação do ator social e, por fim, as análises e conclusões acerca deste estudo.

2. A Gramática do Design Visual (GDV)

Pensando na importância de se saber ler não só textos verbais, mas também não-verbais, e levando em
consideração que, assim como em textos escritos, os aspectos presentes nas imagens (cor, tamanho, foco, etc.) não são
escolhidos aleatoriamente, kress e van Leeuwen (2004) propõem uma gramática do design visual, que surge como uma
ferramenta para analisar textos não-verbais. Tal proposta é considerada uma expansão da Gramática Sistêmico-Funcional
(GSF) de Halliday, já que as categorias por ele utilizadas para a linguagem verbal são também aplicáveis à linguagem não-
verbal.

3. Sistema visual de representação do ator social

A semiótica, ciência que estuda os sistemas sígnicos, ou seja, de significação, não só da linguagem verbal, mas
de qualquer outro sistema que transmita significados, como cinema, música, tem sido bastante utilizada em estudos de
caráter social. A partir de um viés semiótico social, que afirma que os textos são multimodais, pois apresentam mais de um
código semiótico, pode-se analisar, por exemplo, publicidades, já que, na maioria destas, temos texto verbal e imagem.
A imagem analisada pelo viés dos estudos da semiótica social conforme propõe van Leeuwen (2008) busca
entender como os sujeitos são representados de forma a reforçar/transformar certos padrões. Algumas categorias devem
ser observadas, conforme aponta o autor. A primeira delas é a distância social entre o espectador e o ser retratado na
imagem. Deve-se observar se a pessoa retratada na foto encontra-se próxima ou distante do observador. Se estiver
próxima, a sensação é de que ela pertence ao nosso meio, é conhecida; se estiver distante, parece não pertencer ao meio.
Vale ressaltar que esta distância é simbólica, por se tratar de uma linguagem não-verbal. O significado está sendo
construído em função das questões culturais e sociais.
O segundo diz respeito à relação social, onde o ângulo em que a foto foi tirada deve ser analisado, pois, mudando
o ângulo, muda-se a posição pela qual o espectador vê a pessoa retratada. O ângulo vertical que é responsável pela
relação de poder entre o espectador e a pessoa da imagem. Neste ângulo, podemos ver a pessoa “de cima”, sugerindo que
há algo exercendo poder sobre ela; na perspectiva de baixo, o sujeito da imagem exerce poder sobre nós (espectadores);
ou no nível dos olhos, representando uma relação de igualdade/ assimetria. O ângulo horizontal representa a relação de
envolvimento entre ambos (espectador e o sujeito da imagem), a pessoa retratada se posiciona de forma a deixá-lo “lado-a-
lado” com o espectador, como se estivessem juntos participando de uma mesma atividade; ou de frente, como se estivesse
“cara-a-cara” com o espectador, o confrontando.
E, por último, a partir do que Halliday chama de metafunção interpessoal, que é a interação entre falantes, Kress e
van Leeuwen (2004), tratam de questões interativas sociais presentes em imagens, como o olhar. Segundo eles, as
imagens podem ser de demanda e de oferta. A imagem de demanda é aquela em que a pessoa presente na imagem está
olhando diretamente para o leitor, criando, assim, um vínculo entre eles (leitor e pessoa representada) e como se a pessoa

1082
representada estivesse pedindo/ demandando algo do leitor, querendo que ele “entre em algum tipo de relação imaginária:
seja de afinidade, de sedução ou mesmo de dominação” (BRITO e PIMENTA, 2009, p. 10). Já a imagem de oferta, é aquela
em que a pessoa representada não está olhando diretamente para o leitor, o que faz com que pareça que o espectador
esteja observando a pessoa presente na imagem sem que ela soubesse.
Em suma, de acordo com van Leeuwen (2008), as três categorias para análise de uma imagem são: a distância, o
ângulo e o olhar. O autor propõe o seguinte esquema para resumir o que foi explicado acima:

*Sistema de representação e espectador (tradução minha).

Além dessas categorias que dizem respeito à relação entre o espectador e a pessoa retratada na imagem,
podemos observar também outras ligadas ao modo pelo qual os sujeitos são categorizados. Um dos aspectos a serem
observados é o papel que a pessoa está exercendo na imagem, se ela é agente ou paciente de uma ação, e qual seria essa
ação que a pessoa ou está exercendo ou sofre. Outro aspecto é se há algum tipo de exclusão social, por exemplo, uma
campanha sobre uso de preservativos que só retrata a relação heterossexual, exclui, de certa forma, aqueles que não se
encaixam nesse tipo de relação, os homossexuais.
Ao retratar uma pessoa podemos fazê-la de forma específica ou generalizada. A pergunta que deve ser feita para
averiguar qual das duas formas está presente na imagem é se esta retrata, por exemplo, uma baiana específica ou as
baianas em geral. Quando tratadas de maneira específica, tem-se os indivíduos (a baiana), já quando tratados de forma
geral, costuma-se representar grupos (o grupo de baianas), como se todas fossem iguais, um grupo homogêneo, sem
diferenças individuais.
O último aspecto que pode ser abordado ao analisar uma imagem de uma pessoa é a categorização, em que as
pessoas são, geralmente, classificadas de acordo com características biológicas ou culturais. Vale ressaltar que a imagem
traz, muitas vezes, atributos tipicamente utilizados para categorizar determinados grupos e não outros. Ao vermos uma
imagem de uma pessoa de olhos puxados (característica biológica) e kimono (característica cultural) já sabemos que se
trata de uma japonesa, pois apenas a presença desses elementos já se torna necessária para se categorizar
socioculturalmente alguém. A categorização pode acarretar conotações positivas ou negativas, o que vai variar de acordo
com aspectos sócio-culturais.

1083
Leeuwen (2008) sistematiza a explanação acima da seguinte forma:

*Sistema visual dos atores sociais (tradução minha).

Além desses aspectos mencionados acima, é interessante observar, também, a escolha das cores, já que estas
se tornaram um recurso muito utilizado para construção de significados, em que cada uma simboliza algo diferente. Cabe
pontuar que as cores podem emanar diferentes significados em contextos diversos. De acordo com Kress e van Leeuwen
(2004), as cores podem apresentar várias funções comunicativas, tais como: criar representações do mundo (metafunção
ideacional); determinar relações sociais (metafunção interpessoal); e criar coerência entre os signos de certo contexto
(metafunção textual). Ainda segundo os autores, as cores possuem algumas dimensões que podem variar de acordo com
as seguintes escalas: valor; saturação; pureza; modulação; diferenciação; e cor matiz, ou seja, gradação sutil, quase
imperceptível.
Veremos, a seguir, como esta teoria se aplica à campanha “Muito prazer, sexo sem DST”, em que as cores e a
posição dos atores sociais são fundamentais para a construção de sentido da mesma.

4. Campanha: “Muito prazer, sexo sem DST”

1084
Figura 2: Cartão Postal da Campanha

A campanha “Muito prazer, sexo sem DST” lançada em 2009 pelo Ministério da Saúde, tem por objetivo fazer com
que as pessoas saibam reconhecer as diferentes doenças sexualmente transmissíveis e a tratá-las. Seu foco principal é o
público masculino (heterossexual ou homossexual), por ser este o que menos procura os serviços de saúde. A campanha
foi divulgada através de diversos gêneros e suportes, tais como: cartaz, folhetos, adesivos, jingles, cartão postal, entre
outros, podendo estes ser encontrados no site http://www.aids.gov.br.
O presente artigo teve por objetivo analisar somente os cartões postais (masculino e feminino), encontrados no
site do Ministério da Saúde, devido à forma com que estes circulavam na sociedade: através da internet. A idéia dos cartões
era que estes seriam enviados via email (ou através de algum site de relacionamento), de forma anônima, já que a maioria
das pessoas possui dificuldade em falar sobre sexo com seus parceiros.

5. Analisando os atores sociais

A campanha, através do slogan “Muito prazer, sexo sem DST”, tenta convencer as pessoas de que sexo é bom,
mas sem DST é melhor ainda, é muito mais prazeroso. Além do slogan, tem-se a logomarca que é uma pimenta,
enfatizando a idéia de relações ‘apimentadas’. Pode-se inferir que a intenção é conscientizar as pessoas a respeito do sexo
seguro, mas de uma forma diferente, já que, ao invés de dizer “use camisinha”, a campanha faz uso de outros meios para
dizer a mesma coisa a fim de ser mais eficaz. Em outras palavras, a campanha parte do pressuposto de que as pessoas
farão maior uso da camisinha se esta não for vista como um incômodo, mas sim, como parte fundamental para uma relação
mais prazerosa. Tais colocações podem ser vistas a partir do cartão postal feminino com as frases “Sexo é muito bom. Sem
DST é melhor ainda”:

1085
Figura 3: Frente do cartão postal feminino

Figura 4: Verso do cartão postal feminino

Já o cartão postal masculino reforça, através das frases “Sim! Sexo com camisinha” e “Agora eu digo não às
doenças sexualmente transmissíveis”, a idéia de que somente utilizando preservativo podemos nos prevenir das DSTs.

1086
Figura 5: Frente do cartão postal masculino

Figura 6: Verso do cartão postal masculino

A ênfase dada ao uso da camisinha como forma de prevenção não está somente no texto verbal, mas também, no
não-verbal. De acordo com Brito e Pimenta (2009):

Quando um elemento tem maior destaque que outros apresentados dentro de uma imagem ele será,
de alguma forma, diferenciado através do uso de cores, tamanhos e contrastes, independentemente de
onde ele esteja colocado na imagem (p. 27).

Tanto na frente do cartão masculino quanto do feminino, temos a camisinha destacada em cor azul, mostrando,
com isso, ser o elemento mais importante da imagem e reforçando a idéia presente no texto verbal. A diferença entre as
duas imagens é que, na feminina, a camisinha aparece fechada, o que nos leva a crer que a mulher é a responsável por
lembrar-se da camisinha, já na masculina, a camisinha aparece aberta, o que nos faz pensar o homem como o responsável

1087
apenas pelo uso da mesma. Tais representações reforçam ideologias presentes na sociedade no que diz respeito aos
papéis sociais: a mulher é sempre a principal responsável, já que o homem irá usar o preservativo apenas se ela o lembrar
disso.
Com relação ao enquadramento das imagens, ambas estão próximas e no nível dos olhos do leitor representando,
assim, uma relação de afinidade e igualdade. Além disso, tanto o homem quanto a mulher estão olhando diretamente para o
leitor, criando, dessa forma, um vínculo com o mesmo. A sensação é de que eles estão endereçando um “você” visual, o
que é denominado “olhar de demanda”, ou seja, as pessoas representadas nas imagens querem algo do leitor. A mulher
possui um olhar, um semblante mais sério, já o homem tem um olhar de sedução e parece estar se insinuando mais para o
leitor, pois seu corpo está totalmente à mostra, com as pernas entreabertas e ocupando quase todo o espaço do cartão,
além disso, ele possui uma camisinha aberta nas mãos, o que também pode ser visto como uma espécie de convite ao
sexo seguro. Enquanto a mulher não se mostra tanto e ocupa apenas o lado direito do cartão. Porém, isso não faz com que
ela também não seja sedutora, já que, apesar do seu corpo estar mais “escondido”, ela se encontra aparentemente nua,
com cabelos soltos e unhas vermelhas, sendo a cor vermelha, por si só, símbolo de sedução.
No que diz respeito às cores, podemos ver que o cartão feminino apresenta um fundo azul, que podemos
associar, segundo Kress e van Leeuwen (2004), à calmaria, e as pimentas vermelhas, trazendo, mais uma vez, a noção de
relação “quente”, de que “sexo é muito bom” como vem escrito no próprio cartão, enquanto o masculino é elaborado com
fundo amarelo/ laranja o que traz a sensação de energia, calor, vivacidade.
A meu ver, outra representação que a campanha emana, a partir das considerações acima, é o homem como o
ser ativo e a mulher como passiva.

6. Conclusões

Como pudemos ver, a linguagem verbal não é a única forma de se produzir significados, pois, através da imagem,
podemos inferir diversas idéias que só podem ser observadas a partir de elementos como: cor, ângulo, posição, olhar, entre
outros. Além disso, nota-se que os diferentes signos presentes no contexto da campanha possuem coerência, tendo em
vista que texto verbal e não-verbal encontram-se em sintonia, isto é, um completa o outro, reforçando a idéia contida na
campanha (a de que usando camisinha as pessoas se previnem de DSTs e, por conseguinte, têm uma relação sexual mais
prazerosa). Observa-se, então, que as estruturas da imagem não são escolhidas de forma aleatória e devem ser levadas
em consideração em análise de textos multimodais. É preciso saber ler não só textos verbais como também não-verbais,
pois estes trazem consigo significados e ideologias de uma sociedade. Como afirma Petermann (2005), elementos como
“cores, iluminação, ângulos, poses e cenários são sempre utilizados, nos textos publicitários, a fim de produzir aproximação
e identificação do consumidor com a marca, bem como incitar a compra de determinado produto” (p.11) ou idéia.
Devido a essa função comunicativa da imagem observa-se a importância da Gramática do Design Visual para os
estudos de linguagem, tendo em vista que é um dos poucos aparatos teóricos que temos a respeito do visual, servindo
como instrumento de análise para diferentes discursos em que a linguagem não-verbal se faz presente.

1088
7. Referências

BRITO, Regina Célia Lopes. PIMENTA, Sônia Maria de Oliveira. A gramática do design visual e a multimodalidade. 2009.

KRESS, Gunther. LEEUWEN, Theo van. Reading Images: the grammar of visual design. London: Routledge, 2004.

LEEUWEN, Theo van. The Visual Representation of Social Actors in. Discourse and Practice. Oxford Studies in
Sociolinguistics, 2008.

PETERMANN, Juliana. Textos Publicitários Multimodais: revisando a gramática do design visual. 2005. Trabalho
apresentado ao NP 15 – Semiótica da Comunicação, do V Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom.

Imagens e informações das campanhas. Disponíveis em: http://www.aids.gov.br. Acesso em: 27 maio de 2010.

Luana Gerçossimo Oliveira, mestranda do programa de pós-graduação em Letras – Estudos Discursivos – na Universidade
Federal de Viçosa (UFV). Professora bolsista do Curso de Extensão em Língua Inglesa (CELIN) no Departamento de Letras
(DLA) da UFV. Graduada em Letras - Licenciatura Português-Inglês na UFV.

1089
Um estudo das estratégias discursivas do planejamento
estratégico do CEFET-MG na constituição do seu ethos

OLIVEIRA, Maria Luiza Campos


(CEFET-MG)
DAVID-SILVA, Giani
(CEFET-MG)

Ethos, planejamento estratégico, discurso

O trabalho proposto visa ao estudo das estratégias discursivas na constituição do ethos de uma instituição pública
de ensino a partir da análise de documentos gerados para a concepção e implementação dos planejamentos estratégicos
institucionais.
Em uma visão discursiva, o ethos organizacional é construído pela atribuição de uma identidade originada nas
representações sociais presentes no discurso e compartilhadas por uma determinada comunidade. O foco dos estudos
serão os efeitos de sentido pretendidos pelo processo argumentativo utilizado na construção do discurso dos Planejamentos
Estratégicos e Plano de Desenvolvimento Institucional do CEFET-MG, no período compreendido entre os anos de 1993 a
2005.
Para a condução desse trabalho, seguiremos o percurso da Teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau,
considerando que essa Teoria vai ao encontro das propostas de análise da relação entre ethos, estratégias discursivas e
ação e resultados institucionais. Ela nos possibilita a compreensão dos componentes da situação de comunicação, ao nos
convidar a uma reflexão acerca da sua finalidade, da sua identidade social e discursiva e das circunstâncias materiais de
locução. Essa mesma teoria nos convida a olhar as questões do contrato de comunicação e a adesão a ele, quando
apresenta os aspectos ligados à legitimidade, à credibilidade e captação. Para vincular o discurso à ação, pretendemos
analisar os resultados apresentados em relatórios de gestão, através dos indicadores de gestão, que são instrumentos que
permitem medir e revelar aspectos relacionados a um determinado conceito, fenômeno ou resultado de uma intervenção na
realidade. Para essa exposição, centraremos a análise no Planejamento Estratégico do ano de 1993 e nos relatórios de
gestão do ano de 1991 e 1995. Pretende-se, a partir da análise comparativa desses dois tipos de documentos escolhidos,
parte de um corpus de estudo maior, traçar a imagem discursiva construída pela Instituição, contrastando-a com os
indicadores de gestão, estabelecendo-se assim uma relação entre o dizer e o fazer institucional.

O Objeto de estudo – Contextualização

A desconexão entre a economia e a educação tem promovido alguns descompassos desastrosos nos países
latinos americanos. A partir da década de noventa, observa-se que os governos têm se preocupado mais com a questão.
Em busca da harmonia de compassos entre esses dois pólos, tem-se observado, nos discursos que envolvem a questão
economia versus educação, a construção de uma ponte, na qual a função de planejamento tem sido um dos pilares.
Interessante notar como a vida econômica promove um vai-e-vem de posturas em pouco tempo. Podemos citar,
por exemplo, que em 2006, o Prof. Márcio Pochmann, da Universidade Estadual de Campinas, mediando um debate acerca

1090
da relação entre democracia, trabalho e educação profissional e tecnológica, em Brasília, faz a seguinte indagação à mesa:
“-Vamos educar para o trabalho, mas que trabalho?”. Para responder à pergunta, o professor defende a idéia de que o
Estado não pode abdicar da função de planejar rumos. Há anos, essa idéia representava quase uma heresia frente aos
ideais neoliberais disseminados com desmedido entusiasmo, logo após a década de setenta no Brasil. Dentro dos princípios
neoliberais, a desregulamentação do mercado financeiro, que atribuía aos preços a possibilidade da auto-regulação e
liberação do capital, coloca o Estado distante das intervenções na economia. É o mercado que dita as normas. Com o
desenvolvimento tecnológico avassalador, esse mercado torna-se globalizado. O mundo passa a não ter mais mercados
isolados.
No Brasil, as empresas, em sua maioria, não se ocupavam com a verdadeira competitividade, posto que se
encontravam paternalmente resguardadas por um mercado protegido. Como resultado dessa postura, fruto também de uma
historicidade própria dos países do Terceiro Mundo, em decorrência do acirramento da globalização, as empresas
brasileiras precisaram competir com avalanches de produtos importados, desenvolvidos e fabricados a baixo custo. Elas
voltaram seus olhos para as questões de mercado, portanto, em decorrência do acirramento do neoliberalismo e da
necessidade de respostas a um capitalismo aparentemente vitorioso no final da década de oitenta. Palavras como
competitividade, eficácia, eficiência, efetividade, medidas, resultados, padronização e os famosos PDCA (Plan, Do, Control,
Avaliation) chegaram às nossas empresas importadas pelas mãos de J. M. Juran a um endividado Brasil. Juran, resgatando
sua experiência de cinqüenta anos, no Japão, é considerado um autor de referência nos estudos da Gestão pela Qualidade
Total no país.
Por essa época, idéias neoliberais e a adoção de práticas gerenciais modernas contagiaram as instituições
públicas de ensino. Em busca da realização de sua função social, as escolas adotam as práticas e regras do mercado,
como forma de embrenhar-se no mundo empresarial. O planejamento, palavra crucial da gerência pela qualidade, tornou-se
imperativo, por uma questão de ordem e por questão de sobrevivência. Podemos perceber sinais dessa prática gerencial no
desempenho do Poder Executivo, ao observarmos pontos que sinalizam alguma coerência na chamada máquina
administrativa do governo, iniciado nessa época. No governo brasileiro viu-se esse esforço materializado, entre outros, no
esforço da Reforma Administrativa, preconizada aprovada pela Emenda Constitucional nº 19/98 de 04 de julho de 1998.
Podemos perceber, atualmente, que a maioria das instituições públicas de ensino tem mobilizado esforços no
sentido de articular mudanças, de aprimorar seus recursos tecnológicos e humanos e de investir em capacitação. Buscando
a padronização de seus procedimentos, para evitar dissonâncias e distorções em relação à economia vigente e às leis que
regulam e permeiam todos os atos da administração pública, a prática do planejamento estratégico e seus desdobramentos
tornaram-se uma necessidade.
Neste sentido, com a edição da Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que estabelece o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior (SINAES), o Ministério da Educação iniciou um processo de revisão das atribuições e
competências da Secretaria de Educação Superior – SESU-, da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica –
SETEC-, do Conselho Nacional de Educação – CNE- e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais – INEP-,
objetivando consolidar o trabalho realizado e conferir maior eficiência e eficácia aos dispositivos contidos na Lei nº 9.394/96.
Nessa época, a qualidade total apresentava-se em todos os discursos. No contexto desta revisão, constatou-se a
necessidade de introduzir, como parte integrante do processo avaliativo das Instituições de Ensino Superior – IES-, o seu
planejamento estratégico, explicitado no que atualmente é denominado Plano de Desenvolvimento Institucional – PDI, que
deverá ser apresentado a cada cinco anos, tendo em vista o período de vigência estabelecido pela legislação.
É nesse universo que inserimos nosso estudo, que pretende apresentar, em um recorte, a possibilidade de leitura
do planejamento estratégico da Instituição de Ensino, nos últimos vinte anos, pelo viés da Análise do Discurso.

1091
O Planejamento Institucional das Instituições Públicas de Ensino pode ser considerado gênero, é a materialização
do discurso que pretende regulamentar e apontar rumos à vida de uma comunidade e é por ela legitimada. Do ponto de
vista da Instituição, podemos considerá-lo um discurso fundador, pois internamente está ancorado em outros discursos
constituintes. Os PE e PDI têm importância e abrangência institucional e, aparentemente, instituem, além do contrato
explícito que caracteriza o documento oficial, um contrato tácito.
Considerando esse contrato, é possível perceber que, em alguns desses planejamentos houve um ajuste do
comportamento organizacional, quando uma relativa sincronicidade entre locutores os interlocutores envolvidos pode ter
possibilitado à atividade discursiva algum grau de sucesso.
Para delimitar nossos estudos, O CEFET-MG foi escolhido para campo de estudos, em decorrência de sua
trajetória e sua representatividade no Estado de Minas Gerais: é uma escola que, tendo surgido como Escola de Aprendizes
e Artífices, em 1909, portanto completando cem anos, continua, reconhecidamente, sendo uma escola de excelência.
Segundo texto do PDI para os anos de 2005-2010:
”O CEFET-MG é uma Instituição Federal de Ensino Superior - IFES, caracterizada como instituição
multicampi, com atuação no Estado de Minas Gerais - MG. Fruto da transformação da então Escola
Técnica Federal de Minas Gerais em Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, pela
Lei n. 6.545 de 30/06/78 01 alterada pela Lei n. 8.711 de 28/09/93, o CEFET-MG é uma autarquia de
regime especial, vinculada ao MEC, detentora de autonomia administrativa, patrimonial, financeira,
didática e disciplinar; é uma Instituição Pública de Ensino Superior no âmbito da Educação
Tecnológica, abrangendo os níveis médio e superior de ensino e contemplando, de forma indissociada,
o ensino, a pesquisa e a extensão, na área tecnológica e no âmbito da pesquisa aplicada”. (PDI, 2005-
2010, p.18).

Voltada para a formação tecnológica de profissionais para atendimento de vários estratos do mercado de trabalho,
a Escola sempre se mostrou como formadora de cidadãos críticos, competentes, demandados pelas empresas mineiras.
Com grande vinculação às demandas sociais, a Instituição é reconhecida em Minas Gerais como formador de profissionais
competentes e engajados no setor produtivo, na pesquisa aplicada e no magistério.
Para amparar a nossa escolha, podemos verificar os números que dão representatividade social à Instituição, foco
deste estudo. Conforme dados de 2009, vê-se que foram realizadas 13.623 matrículas, nos 70 cursos ministrados. Em torno
de 544 servidores trabalham em suas 10 unidades.

Elementos de análise
Para iniciar a análise do Gênero Planejamento Estratégico, lançaremos mão dos conceitos advindos da Teoria da
Semiolinguística de Patrick Charaudeau. Para o desenvolvimento dessa análise, consideraremos o primeiro planejamento
estratégico instituído no CEFET-MG, em 1993, denominado Plano Institucional do CEFET (PI).
Prosseguindo em nossa análise dessa categoria de ato comunicativo, podemos observar as seguintes estruturas:
EU – sujeito produtor do ato de Linguagem: é aquele que, não sendo individualmente nominado, pois quem fala é
uma equipe, fala em nome da Instituição, de uma posição legítima.
TU – para quem o documento foi escrito, o sujeito interlocutor
Consideremos a partir de agora os desdobramentos do EU e do TU.

Do ponto de vista da recepção:


TUd – Sujeito destinatário - interlocutor fabricado pelo EU e, portanto, a ele ligado e destinatário ideal. É
representado pela sociedade, pelo Ministério da Educação e por todos os servidores da instituição.
TUi – Sujeito interpretante – sempre presente no ato de linguagem, é responsável pela processo de interpretação,
só depende dele mesmo, sempre desvinculado do EU. É, teoricamente, um território desconhecido do EU.

1092
No caso do PE, em decorrência das circunstâncias de discurso e das relações hierárquicas presentes, há uma
forte relação do EU com o TUi. Estabelece-se uma relação de risco, porquanto envolve a questão da autoridade legitimada.

Do ponto de vista da produção:


EUe – Sujeito enunciador - a ele é dado o estatuto de “autoridade-dando-uma–ordem”. O texto produzido no Plano
Institucional do CEFET-MG (PI) em 1993 se reveste dessa autoridade. O texto escrito é a representação linguageira parcial
do EUc e traz em seu corpo o comando, as determinações. EUe se reveste de uma máscara, para tornar o EUc receptivo
ao TUi. Sendo máscara, utiliza estratégias discursivas que encobrem a sua real intencionalidade.
EUc – sujeito comunicante - com as restrições impostas pelas circunstâncias do discurso, o EUc é, embaçado
como o TUi, um sujeito agente que se institui como locutor e articulador da fala materializada no texto escolhido para
estudo. Ele é o iniciador do processo de produção. É o EUc que organizará o ato de linguagem, fazendo escolhas
estratégicas, colocando um EUe imbuído de autoridade, saber e competência , para impressionar o TUi. É a aposta
instalada.
No PI, o EUc pode ser representado pela equipe construtora do planejamento, que, não revelando, naturalmente,
a sua real intencionalidade, constrói o estatuto, esperando ter estabelecido uma relação de transparência com o EUe, e ser
entendido por TUi.
Considerando que visadas “correspondem a uma intencionalidade psicosócio-discursiva que determina a
expectativa (enjeu) do ato de linguagem do sujeito falante e, por conseguinte da própria troca linguageira” (CHARAUDEAU,
2004, p.23), podemos constatar no documento estudado visadas de prescrição, predominantemente, pelas quais EU quer
“mandar fazer”: ele está em posição de autoridade legitima para isto; TU, se coloca em posição de “dever fazer”. Em menor
escala, a visada de instrução (EU quer “fazer saber–fazer”), com autoridade para fazê-lo e TU recebe a instrução, avalia e
tem a capacidade de fazê-lo.
Considerando os componentes da construção enunciativa, há várias modalidades enunciativas que se apresentam
nos textos do PI, de acordo com a posição do sujeito falante (equipe construtora dos PI – a voz da Instituição) em relação
ao interlocutor, os executantes do PI, com a preponderância do modo delocutivo. O locutor e o interlocutor se ausentam,
não há marcas lingüísticas de pessoa.
Há o comportamento alocutivo, quando o sujeito falante implica o interlocutor em sua fala: no PI, são
determinadas a missão institucional, a visão, objetivos e metas a serem cumpridas pelos servidores do CEFET-MG.
Entretanto, o comportamento alocutivo encontra-se implícito no texto, não há interpelação direta ao interlocutor e não
ocorrem marcações claras que mostram a ocorrência. O locutor se enuncia em posição superior em relação ao interlocutor
(representada aqui pelo aforismo “publique-se e cumpra-se” ao pé das portarias e publicações oficiais), apenas para dar voz
ao CEFET-MG e é ele, ao assinar a Resolução, que a legitima.
É visível o contrato de comunicação, no qual está estabelecido o desejo de que as ações prescritas sejam
adotadas, para que benefícios sociais sejam alcançados. O PI pode ser considerado um discurso constituinte, pois a sua
finalidade é clara: ele pretende instituir crenças, fundar valores e princípios, estabelecer filosofias a serem assimiladas pela
instituição, para promover ou conduzir ações que levam ao cumprimento de objetivos. Isso é possível, em condições nas
quais o ethos construído no discurso esteja em harmonia com o modo de expressão adotado no texto.
Para tornar mais claras as análises pretendidas em busca do ethos institucional e verificar se esse ethos
demonstrou uma imagem convincente de si, e se estabeleceu um contrato efetivo, consideraremos que esse ethos pode ser
um dos responsáveis pela manifestação de algumas das realizações institucionais. Sendo assim, poderá ser verificado
pelos indicadores de gestão.

1093
Primeiramente, pelo fato de os indicadores de gestão representarem a ferramenta principal de análise da gestão
institucional e serem dados consolidados e estáveis, dentro de uma delimitada série histórica.
Em segundo lugar, porque, além de instrumentos de medida, eles representam uma bússola para a Instituição. É
sabido, pelas disciplinas de Administração Fazendária, que os indicadores de gestão são instrumentos que “permitem medir
e revelar aspectos relacionados a um determinado conceito, fenômeno ou resultado de uma intervenção na realidade”.
Deve-se lembrar que o gênero Planejamento Estratégico, também, promove a intervenção na realidade institucional.
Esses indicadores podem ser expressos apenas como instrumento de medida de um conceito, o que lhes dá uma
dimensão descritiva ou podem ser associados às metas que se pretende atingir com uma intervenção, o que lhes dá uma
dimensão valorativa. Essas dimensões são adequadas ao nosso projeto de pesquisa, no qual pretende-se, através da
análise do discurso, verticalizar a análise do Planejamento Estratégico do CEFET-MG. Os indicadores de gestão
representam a possibilidade de comparação entre o dizer e o fazer institucionais. Nesse sentido, escolhemos para a nossa
pesquisa a análise de cinco indicadores de gestão: os relativos a Recursos Humanos, Pesquisa/Publicações, Prêmios,
Infraestrutura e Número de Cursos. Nossa escolha recai sobre visão de ethos vislumbrada por Charaudeau, conforme
citado:

“Na medida em que o ethos está relacionado à percepção das representações sociais que tendem a
essencializar essa visão... Os indivíduos do grupo partilham com os outros membros desse mesmo
grupo caracteres similares, que, quando vistos de fora, causam a impressão de que esse grupo
representa uma entidade homogênea” (CHARAUDEAU, 2008, p.117)

Esses indicadores remetem a imagens que dão visibilidade à organização junto à comunidade e alimentam a
visão que se tem dela, vinculando-os à percepção das representações sociais dos sujeitos constitutivos da organização.

Metodologia
Como nos ensina Charaudeau, para que exista argumentação, é necessário que haja uma relação triangular entre
o sujeito argumentante, uma proposta sobre o mundo e um sujeito alvo. A argumentação participa de uma dupla busca: a
busca de racionalidade e a busca de influência junto ao interlocutor, através do emprego de meios discursivos. Esses três
elementos, interagidos, são vistos no corpora estudado.
Ainda, conforme Charaudeau, a “argumentação não se limita a uma sequência de frases ou de preposições
ligadas por conectores lógicos”, mas também pode ser verificada “no que está implícito” (CHARAUDEAU 2009, p.203 e
204).
Nesse aspecto, o estudo dos modalizadores é importante, já que eles são elementos que dão a conhecer algum
grau de intencionalidade do locutor, como acontece nos documentos, corpus do estudo proposto.
A modalização está intrisicamente ligada à enunciação e denuncia de que forma o locutor se posta diante de seu
próprio discurso, diante de seu interlocutor, e diante de um cenário comunicativo estabelecido. Através do estudo da
modalização é possível verificar o grau de adesão do locutor ao texto e verificar qual o ethos ali instalado. Para esta
exposição, centraremos a análise no Planejamento Estratégico do ano de 1993 e nos relatórios de gestão do ano de 1991 e
1995. Pretende-se, a partir da análise comparativa desses dois documentos escolhidos, parte de um corpus de estudo
maior, traçar a imagem discursiva construída pela Instituição, contrastando-a com os indicadores de gestão, estabelecendo-
se assim uma relação entre o dizer e o fazer institucional.

1094
Análise
O Documento a ser aqui analisado, denominado Plano Institucional do CEFET-MG, teve sua primeira parte -
Definições Estratégicas - aprovada por Resolução do Conselho Diretor do CEFETMG, órgão máximo da Instituição, pela
CD-034/93 de 12 de novembro de 1993.
Obedecendo a um padrão relativo, já que representa um discurso instaurado a partir de um gênero, esse
documento introduz e afiança a legitimidade desse Plano Institucional e demonstra a sua característica injuntiva, através do
uso de verbos que, em gradação, culminam com a ordem final. É um discurso autorizado. O Presidente do Conselho, tendo
legitimidade institucional e representativa para fazê-lo, aprova o plano, resolve colocá-lo em vigor na data de sua publicação
e determina que Resolução seja publicada e terminantemente cumprida. A Instituição CEFET-MG transforma-se num
protagonista autorizado e legitimado pelo Conselho Diretor a mostrar a sua voz.
Para a definição do perfil institucional, a primeira parte do Plano contém as definições estratégicas organizadas
em tópicos:
Missão
Pairando sobre o título e subtítulos que iniciam a definição da Missão Institucional, vê-se a inscrição “Núcleo da Qualidade e
Produtividade/Diretor Geral”. Nessas palavras apenas separadas por barra, por questão de organização semântica, é
perceptível a aliança estabelecida entre a entidade máxima da Instituição e o Núcleo de Qualidade e Produtividade do
CEFET-MG. Por meio desse fato e do conhecimento prévio dos princípios e filosofia da Gestão pela Qualidade Total, torna-
se possível a pré-construção de um ethos. .
O verbo no infinitivo chama atenção para si, marcando a impessoalidade do locutor, o seu apagamento e
distanciamento e consequente imposição do propósito. O enunciador torna-se vazio para ser preenchido por um papel
social e institucional.
Crenças
Predominante em todo texto, aqui também a modalidade delocutiva da asserção apresenta-se no PI na forma de exposição.
Na exposição de pontos de vista, vai se tecendo a base das crenças institucionais, típica ocorrência dos atos delocutivos,
como nos exemplos: “O CEFET-MG acredita nas potencialidades do Brasil e...” e, no segundo parágrafo. “O CEFET-MG
reconhece que a passagem do Brasil para uma fase...”. Enunciador e locutor estão harmônicos ao se expressarem por
intermédio de verbos que denotam a presença da categoria modal que se refere ao eixo do saber, no comportamento
(CHARAUDEAU, 2009, p.85). “O locutor detém um saber, supõe que o locutor ignora esse saber... diz que esse saber
existe em sua verdade.” (CHARAUDEAU, p.98) Após expressar suas certezas, o locutor migra para a categoria modal, cujo
eixo se refere à conduta constitucional. A promessa é instaurada, a enunciação explicita o engajamento do CEFET-MG
consigo mesmo, nos exemplos seguintes: “O CEFET-MG reconhece sua responsabilidade...”; “O CEFET-MG se
compromete a elevar seus padrões...”.
O tempo presente é utilizado, como nos ensina Fiorin (2008, 151) “para enunciar verdades eternas ou que se
pretendem como tais”. O tempo presente usado como referência torna-se um “sempre implícito.”

1095
Princípios
Mais uma vez, nesse tópico, recorre-se um comportamento elocutivo implícito, dentro da modalidade enunciativa delocutivo.
O CEFET-MG assume uma relação de compromisso consigo mesmo determinante, revestida do caráter declaratório:
“A Instituição, na permanente busca da excelência e visando assegurar o integral cumprimento de sua
missão, declara que os princípios a seguir enunciados, constituem referencial a ser cultivado,
disseminado e operacionalizado na comunidade.” (Plano Institucional do CEFET-MG – 1993).

Denota-se, mais uma vez, alto grau de engajamento às propostas ali explicitadas. Percebe-se uma projeção interessante,
representada por uma gradação que se refere ao cultivo, disseminação e operacionalização de princípios na comunidade a
serem, em um futuro, cultivados. O tempo verbal empurra as ações para o futuro e relega à comunidade o papel de simples
executora do processo. Observa-se esse fato na escolha do vocábulo “na” (em +a), cujo conteúdo semântico remete a um
lugar virtual e não escolha do vocábulo “pela” (por+a), cujo sentido remeteria ao sujeito participante da comunidade do
CEFET-MG, a todos os servidores. A escolha por esse modo de enunciar faz com que esse enunciado promova a fundação
de uma particularidade que se contrapõe ao item que declara a administração participativa como atitude permanente.
Princípios Filosóficos – Políticas e Diretrizes Globais
Esse tópico foi construído dentro da metodologia convencional utilizada para a construção de planejamentos estratégicos.
Nele os princípios são desdobrados e aprofundados. Entretanto vê-se nele o acirramento da coerção, explicitada nos
verbos, em sua maioria, apresentados no futuro simples, denotando alto grau de segurança e certeza. De forma
peremptória, as ordens são expressas, não permitindo interferências ou ponderações. As modalidades delocutivas
apresentam-se desvinculadas do locutor e do interlocutor. O propósito existe em si, e se impõe aos interlocutores. Vejamos
a frase retirada do item um desse tópico.
“Todos os propósitos, metas e ações fixados e desenvolvidos pelo CEFET-MG evidenciarão, de forma
inequívoca, que qualquer invenção e/ou conhecimento tecnológicos somente terão sentido se tiverem
como objetivo tornar as pessoas mais humanas.” (Plano Institucional do CEFET-MG – 1993).

Observa-se que nas explicações dadas em cada item desse tópico, as expressões de uma verdade se revestem de verdade
única e absoluta. A asserção de partida, tida como verdade única e absoluta, serve como argumento para o que se ordena
a seguir:
“Educação tecnológica pressupõe desenvolvimento humano. Portanto desde os programas das
disciplinas, o currículo escolar, até as menores ações do dia-a-dia deverão refletir explicitamente esta
postura de equilíbrio e de harmonia” (Plano Institucional do CEFET-MG – 1993).

Objetivos Gerais
No Plano Institucional do CEFET-MG do ano de 1993, os objetivos gerais apresentam iniciados com verbos no infinitivo, o
que acentua a ênfase na impessoalidade do documento. Esses objetivos, não estando limitados por quantificação, indicam
movimento rumo às referências: ministrar cursos, promover aprimoramento de pessoal, manter intercâmbios. A escolha por
esse tempo verbal pretende dar uma aparência de continuidade e movimento às ações explicitadas. Para trazer maior
clareza à nossa proposta de estudos, apresentaremos quadros enunciativos elaborados para o estudo das relações
estabelecidas pela modalização no Plano Institucional de 1993. Segundo Charaudeau (Discurso Político, p.178): a
enunciação delocutiva apresenta o que é dito como se a palavra dada não fosse responsabilidade de nenhum dos
interlocutores presentes e dependesse apenas do ponto de vista de uma terceira voz. O documento torna-se porta voz de
uma verdade estabelecida sobre e para o CEFET-MG.

1096
Conclusões

O ethos construído no discurso do Plano Institucional do CEFET-MG de 1993 nos apresenta uma Instituição com
clara intenção de ser inserida no mundo mercadológico. Ao deixar clara a sua vinculação à Gestão pela Qualidade Total,
assume esse discurso. Essa constatação é feita devido à grande ocorrência de palavras e expressões em voga por esse
método de gestão.
A presença de modalidades avaliativas e intensificadoras, representadas pela presença de advérbios em seu
corpo, demonstra a mobilização de estratégias discursivas a serviço de uma boa argumentação. Embora queira demonstrar
um ethos aberto à administração participativa como atitude permanente, a restringe na medida que a operacionalização das
mudanças estão voltadas à localidade e não ao seu corpo de trabalho, professores e técnicos administrativos.
De natureza coercitiva, o Plano Institucional tem as questões do contrato de comunicação e a adesão a ele claras.
A legitimidade é garantida e as circunstâncias que determinam o esse contrato são de ordem sócio-institucional e política
(Charaudeau, 2008, p.61).
Embora o Plano esteja vinculado ao jargão da Qualidade Total, ancorada em “fatos e dados”, vê-se que nele a
Instituição mantém a sua fidelidade à visão humanista. Nesse Plano, essa visão prepondera sobre as outras: em todos os
tópicos o humanismo ou conceitos a ele relacionados foram recorrentemente citados.
Verificando os dados dos relatórios de gestão de 1991 e 1995, nos tópicos escolhidos para conduzir nosso estudo,
podemos verificar que, como preconiza o PI, houve algum grau de índice de melhoria, não tanto quanto o tom do discurso
do PI implica. Esse fato pode significar que o ethos discursivo, instaurado em 1993, instaurou também um contrato de
comunicação no qual foi iniciado “o cultivo” dos referenciais estabelecidos no tópico relativo aos Princípios.
O PI estabelece, em seu enunciado, a identidade da Instituição, o que pode revelar o ethos institucional
construído no discurso favorável, já que previamente chancelado e legitimado pelo Conselho Diretor e “Núcleo da Qualidade
e Produtividade/Diretor Geral. Estabelece uma ação a realizar, faz propostas de ações, entende que o interlocutor captou a
sua intenção e determina que o interlocutor aja e execute planos, cujas intenções pretenderam alcançar benefícios sociais.

Referências

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso-modos de organização. São Paulo, SP, Contexto, 2009.

_____, Patrick. Discurso Político. São Paulo, SP: Contexto, 2006.

_____, Patrick. Visadas discursivas, gêneros situacionais e construção textual. In: MACHADO, Ida Lúcia (Org.). Gêneros:
reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2004.p.13-42.

FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação – As categorias de pessoa, espaço e tempo – São Paulo, SP, Editora Ática,
2008.

1097
Maria Luiza Campos Oliveira
Administradora de Empresas, especialista em Gestão pela Qualidade, é Mestranda do Curso de Mestrado em Estudos de
Linguagem do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

e-mail mluiza@adm.cefetmg.br

Giani David-Silva

Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG, é professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) e compõe o núcleo docente do Mestrado em Estudos de Linguagens. Realiza pesquisas centradas nos
seguintes temas: análise do discurso, discurso e argumentação, linguagem e informação televisivas. Coordena o projeto de
pesquisa para a criação de um Centro de Apoio a Pesquisas sobre Televisão (CAPTE).

e-mail: gianids@deii.cefetmg.br

1098
Entre a recepção e a transmissão: o sujeito e a construção
de sentido em “Narradores de Javé”

OLIVEIRA, Renata de Souza Portella


(UFRJ)

“Narradores de Javé” (2004), filme que constitui o corpus desta análise, trata de algumas questões pertinentes aos
processos narrativos de acontecimentos que se deram em um dado momento histórico e são relatados pelos sujeitos em
longa cadeia de transmissão.

Este texto apresenta-se em duas partes, organizadas da seguinte maneira: na primeira, faz-se uma análise
pormenorizada do sujeito-narrador de Javé, embasada na “teoria dos quatro sujeitos”, de Charaudeau (2008) e em outros
conceitos das lingüísticas enunciativas e discursivas (Ducrot, Maingueneau, Koch, Fiorin) – discutem-se as múltiplas
instâncias/projeções desse sujeito e suas as marcas pessoais impressas na narrativa.

Num segundo momento, aborda-se a construção de sentido por parte do sujeito e alguns elementos envolvidos no
processo: a relação palavra-sentido, os implícitos, a coesão e a coerência textuais, as subjetividades dos interlocutores etc.

1. O SUJEITO-NARRADOR DE JAVÉ

O. Ducrot, já na década de 1970, iniciou a distinção entre o sujeito falante e o locutor de um enunciado. Segundo
ele,

O primeiro desempenha o papel de produtor do enunciado, do indivíduo (ou dos indivíduos) cujo
trabalho físico e mental permitiu produzir esse enunciado; o segundo corresponde à instância que
assume a responsabilidade do ato de linguagem (MAINGUENEAU, 2001, p. 86).

Dessa diferenciação resulta a noção de que o narrador traz em si também a ideia de um sujeito duplo – um
empírico, produtor dos enunciados (falante), e outro (locutor), projetado pelo primeiro e responsável pelo ato de fala.
Fernandes (2008) apresenta a mesma distinção sob os termos “sujeito falante” e “sujeito falando”. Qualquer que seja a
terminologia adotada, ela levanta a possibilidade de dissociação entre o sujeito falante e o locutor. No filme, tal noção pode
ser percebida nos narradores, que são ao mesmo tempo sujeitos falantes, habitantes da cidade que contam suas histórias,
e locutores, no momento em que se metamorfoseiam para assumir as narrativas.

Charaudeau (2008) cria os termos EUc (Eu-comunicante) e EUe (Eu-enunciador) para designar essas
duas instâncias do sujeito. Em seu livro Linguagem e discurso: modos de organização (2008), apresenta sua “Teoria dos
quatro sujeitos”, assim esquematizada:

1099
SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO
Finalidade contratual + Projeto de fala

Dizer

Locutor EUe TUd Receptor


EUc (Sujeito Enunciador Destinatário TUi (Sujeito
Comunicante- (Ser de fala) (Ser de fala) Interpretante-
ser social) ser social)
Espaço interno

Espaço externo

O autor (p. 45-52) explica que toda situação de comunicação envolve uma rede formada por quatro protagonistas:
dois externos (reais) e dois internos (imaginários). No espaço externo encontram-se os sujeitos ativos, a saber, o EUc (Eu
Comunicante), que é o produtor da fala, e o TUi (Sujeito Interpretante), destinatário empírico, concreto. Já no circuito interno
estão o EUe (Enunciador), que representa uma imagem do enunciador criada pelo produtor da fala (EUc) e subentendida na
sua intencionalidade de produtor, e o TUd (Destinatário), fabricado e idealizado pelo Eu comunicante (EUc) . Esse processo
imaginativo também ocorre por parte do receptor (TUi), pois, enquanto interpreta a mensagem, baseada no ato de fala do
EUe, ele cria uma imagem acerca deste. Como se pôde perceber, EUc e TUi estão localizados no espaço externo do ato e
são os sujeitos empíricos, sociais; EUe e TUd, por sua vez, são sujeitos imaginados, mas que atuam de igual maneira no
ato de produção e interpretação nas situações de comunicação.

O ato enunciativo que constitui as narrativas do filme demonstra a presença desses quatro sujeitos em dois
circuitos, a saber:

a) espaço externo – EUc e TUi (sujeito-interpretante), que seriam produtor e destinatário empíricos, existentes de fato e
sujeitos-agentes. No filme, eles seriam representados pelos narradores de Javé e por Antônio Biá, respectivamente, ambos
como seres sociais. Dentre outras observações, pode-se dizer que os primeiros são membros de um grupo social que retém
e divulga as informações por meio da oralidade. Biá é o único que domina a técnica de escrever e, por isso, apresenta-se
como sujeito empírico destacado dos demais. Tanto os narradores quanto Biá desempenham os papéis de EUc e TUi, a
depender do ponto de vista de produção ou interpretação dos atos enunciativos.

b) espaço interno (imaginativo) – EUe (imagem de enunciador criada pelo produtor da fala) e TUd (destinatário – sujeito
idealizado pelo EUc como destinatário ideal). Aqui, encontram-se as representações construídas por esses sujeitos de fala.
Em “Narradores de Javé”, percebe-se o fato na projeção dos narradores quando se apresentam como pessoas fidedignas,
detentoras da versão verdadeira dos acontecimentos. Basta observar, no filme, como cada narrador requer para si o papel
de guardião da memória e do passado épico de Javé. Ao fazer isso, cada um deles projeta-se no ato de comunicação,
esforçando-se para assumir essa identidade.

1100
A projeção feita por esses EUc revela o traço de intencionalidade existente em seu ato de produção. Os EUe que
constroem visa a legitimar a posição de sujeito-narrador que assumem e ainda convencer o interlocutor de que sua história
é a verdadeira.

Assim como ocorre no circuito externo, tanto os habitantes quanto Biá tornam-se TUd sob o ponto de vista de
interpretação, à medida em que são encarados como destinatários imaginados pelos sujeitos-narradores. Tal situação pode
ser ilustrada pela situação de comunicação que envolve Antônio Biá e Gaudério. É o primeiro quem projeta o TUd e esta
idealização determina o discurso da personagem: seu Gaudério é o responsável pela chegada dos engenheiros a Javé. No
bar da cidade, sua presença marcante e voz forte causam temor a todos os presentes, inclusive em Antônio Biá. Sua
chegada instaura o silêncio no local. Após algumas palavras, o homem interroga sobre a identidade de Antônio Biá, que,
visivelmente inseguro, chega diante dele. A imagem que construiu de seu interlocutor leva-o a erguer a cabeça, olhá-lo nos
olhos e projetar a voz com firmeza, a fim de convencê-lo da importância de seu trabalho:

Gaudério (encarando Biá): E quem é que é o tal de Biá que esse povo tanto fala?
(Biá, que estava saindo disfarçadamente, olha seus companheiros e volta-se para seu Gaudério,
buscando coragem para responder-lhe à altura.)
Antônio Biá (com autoridade): Sou eu mesmo, com carne e osso.
Gaudério: Sei. E ocê é o quê, faz o quê?
Antônio Biá (levantando a voz): Eu sou escrivão de prosa, seu Gaudério. E tô na labuta de escrever os
nobres e grandes feitos do Vale do Javé. História, como bem sabe o senhor, muito contada e ouvida,
mas até hoje nunca escrita e lida (NJ).

Independentemente do lado em que esteja o foco, o EUe o TUd de “Narradores de Javé” existem somente no e
pelo ato de produção-interpretação, jamais fora dele.

Ainda sobre o EUc (EU-comunicante) e o EUe (EU-enunciador), deve-se destacar a possibilidade de


distanciamento – em maior ou menor grau – entre o sujeito empírico e o sujeito de fala. É o que demonstra Biá quando usa
de ironia para com seu interlocutor, Seu Dito, que recebera a encomenda de uma dentadura maior do que a necessária:

Zaqueu: Remelexe a “perereca” dentro da boca, sô.


(o velho faz o que Zaqueu mandou. A dentadura é nitidamente maior, com os dentes ficando à mostra.)
Seu Dito: Num tá achando que tá um pouquinho grande, não?
Zaqueu: Seu Dito, tá ótimo! Parece uma espiga de milho!
Antônio Biá: Deixa eu ver, seu Dito. Deixa eu ver, deixa eu ver. Sorria.
(o velho sorri. Antônio Biá também ri.)
Antônio Biá: Não, não tá grande, não. É seus beiço é que são pequeno! E depois o senhor fica com um
ar mais alegre, risonho. Assim que nem jacaré apaixonado.
(o velho sorri satisfeito.)
Antônio Biá: Agora o senhor pode namorar até com serrote, viu? Porque o senhor tá um pão. (em tom
mais baixo) Agora, de quantos dias não se sabe (NJ).

No filme, a incompatibilidade entre o EUc e o EUe de Biá é percebida em seu tom irônico e também quando baixa
o volume de sua voz para dizer “Agora, de quantos dias não se sabe” (NJ). Fica aí evidente que a primeira fala do EUe não
condiz com o que pensa o EUc, fato que se dá em diversos outros momentos comunicativos em que o escrivão está
presente.

1.1. “Narrar é narrar-se”

“Narrar é narrar-se”, afirmou Clarice Lispector na última entrevista que deu à TV Cultura de São Paulo (1977),
enquanto discorria acerca do livro A hora da Estrela. Embora se remeta à relação entre os livros da escritora e a sua

1101
experiência pessoal, a fala adequa-se ao contexto desta análise, que mostra em imagens como ocorre a presença do
sujeito-narrador de Javé naquilo que ele mesmo narra.

Algumas considerações devem ser feitas para uma melhor compreensão da inserção dos narradores nas histórias
da fundação de Javé. Em primeiro lugar, é interessante notar a intenção dos moradores ao apresentar suas versões – todos
querem ter alguma ligação com a origem nobre de Javé: Vicentino apresenta-se como Vicentino Indalécio da Rocha,
descendente indireto de Indalécio, o fundador da cidade; Deodora defende que é parente de Mariadina, guerreira que
assumiu a chefia do bando de Indalécio e foi quem realmente cantou as divisas que determinaram a extensão da cidade; os
gêmeos brigam pela posse da terra em que estão enterrados os restos mortais de Indalécio e o que sobrou de suas armas.
Essa intencionalidade do sujeito-narrador ajuda a compreender por que e como se dá sua inserção na narrativa.

Os atos comunicativos que constituem as histórias dos moradores de Javé mostram como se dá, em nível mais
profundo, a projeção do narrador na narrativa. Os sujeitos-narradores de Javé não estiveram presentes nos eventos, mas
nenhum deles diz que conhece a história apenas de ouvir falar. Apropriam-se dela como se tivessem vivenciado os
acontecimentos, fazendo da experiência alheia a sua própria: “o narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que
sabe por ouvir dizer” (BENJAMIN, 1995, p. 221). E, ao fazer isso, as narrativas tornam-se carregadas de idiossincrasias e
marcas de estilo impressas no conteúdo e na forma – componentes que deixam transparecer as subjetividades das falas.

Da citação acima pode-se depreender a ideia de que os sujeitos-narradores deixam transparecer-se na fala a
partir de suas marcas, ou seja, elementos que inscrevem sua subjetividade na enunciação. Cada um tem um “modo” próprio
de dizer, seja pela escolha vocabular ou pela entonação da voz, seja pela postura que assume diante do que diz, de modo a
conferir singularidade a cada narrativa.

Em “Narradores de Javé”, um exemplo de que o enunciado recebe a impressão pessoal do narrador pode ser
retirado da narrativa dos dois irmãos:

Gêmeo: Mas ocê era mesmo o outro, Outro! Era assim que meu pai lhe chamava.
Outro: Nosso pai! Sou tão filho de Cosme como ocê!
Gêmeo: Não. Você é filho de Damião!
Outro: Cosme e Damião eram dois irmãos gêmeos, mas muito unidos. Mas foi Cosme quem conseguiu
juntar muitas terras...
(Gêmeo eleva a voz na narrativa e retoma o foco sobre si.)
Gêmeo: Então, Cosme conseguiu juntar muitas terras. Damião não teve a mesma sorte! Um dia
conheceram Margarida, a minha mãe.
Outro: Minha também!
Gêmeo: Sim. Apaixonaram zás-traz, os dois irmãos pela mesma mulher. Mas Margarida escolheu
Cosme. E casaram.
[...]
Gêmeo: E foi assim. Todo mundo bebeu fora da conta. E nenhum dos gêmeos se lembrava de nada,
mas Margarida tinha certeza que, no escuro, tinha sido mulher de um deles. Não sabia de qual. Aí
Cosme expulsou Damião que desapareceu no mundo e renegou esse aí, o filho da dúvida. Um ano
depois nasci eu, filho legítimo e provado de Cosme [grifo nosso] (NJ).

Embora estejamos diante de uma narrativa que pretende ser verdadeira e, portanto, imparcial, o uso do operador
argumentativo mas por Damião, nas duas vezes em que aparecem, servem para valorizar a figura de Cosme em relação ao
irmão – foi Cosme, e não Damião, quem conseguiu juntar muitas terras e ainda venceu a disputa pelo amor de Margarida.
Seria isto: quando diz “mas foi Cosme” ou “mas Margarida escolheu Cosme”, é como se estivesse à sombra dos
enunciados: “mas foi Cosme, e não Damião” e “mas Margarida escolheu Cosme, e não Damião”. Gêmeo imprime aí sua
predileção pela figura do pai em detrimento da imagem do tio. O mesmo tipo de juízo de valor ocorre no uso dos pronomes,

1102
pois, quando diz “minha mãe”, Gêmeo exclui Outro dessa filiação; quando diz “eu, filho legítimo”, também exclui o irmão da
filiação de Cosme; finalmente, a designação “esse aí” torna manifesto o desprezo que o Gêmeo alimenta pelo irmão.

2. A CONSTRUÇÃO SENTIDO NAS NARRATIVAS “JAVÉLICAS”

Uma consideração importante a se fazer é a de que o sentido não deve ser visto como algo prévio e pronto,
hermeticamente contido na forma. Não existe uma segurança confortante de sentido estabilizado – apenas a ser descoberto
–, pois este se dá a partir da enunciação, e não no enunciado: “Firma-se, então, por aí, que o sentido deve ser visto como
uma construção, em vez de processo de revelação de verdades instituídas” [grifo do autor] (BORBA, 2003, p. 26). Deve-se
também levar em conta que fala e escrita constituem modalidades distintas de uso da língua e, portanto, apresentam
características próprias no que diz respeito à elaboração do sentido. No caso da escrita, ela ocorre no diálogo do leitor com
o texto escrito. Na fala, essa interação se dá face a face entre os interlocutores e envolve certas peculiaridades, como é o
caso de “Narradores de Javé”, em que o processo de construção de sentidos baseia-se fundamentalmente na oralidade.

Koch (2008) levanta algumas características da fala que, segundo, interferem na construção dos sentidos pelo
sujeito: em primeiro lugar, na oralidade há predominância do modus pragmático, ou seja, uma relação com o momento
enunciativo maior do que a existente na escrita; ela também é marcada pela contextualidade, pela fragmentação e pelo não-
planejamento: “no texto falado, planejamento e verbalização ocorrem simultaneamente, porque ele emerge no próprio
momento da interação: ele é o seu próprio rascunho” (KOCH, 2008, p. 79).

2.1. A relação palavra-sentido

Retomando o que foi dito anteriormente, a construção do sentido ocorre, numa interação, a partir do texto. E um
texto, como se sabe, é constituído por palavras que podem evocar um universo de significados possíveis, do qual, por um
processo eliminatório, o sujeito retira o significado procurado.

Do ponto de vista da produção, a seleção lexical também ocupa papel de extrema importância na construção de
sentido pelo interlocutor. Ela revela ideologias e manifesta informações sobre as opiniões, posições e atitudes do
enunciador:

Deodora: Pois bem, era guerra contra a Coroa. Mas o fato é que a nossa gente saiu foi fugida sem ter
pra onde ir...
(Agora quem interfere é Vado, que surge apoiado na porta da casa.)
Vado: Fugida não, senhora! Eles saíram em retirada.
Deodora: E não é a mesma coisa, homem?
Vado: Não é, não. Não é, não! Fugido é quando os homem dão as costa pro inimigo e saem correndo,
acovardado. Retirada é diferente; aí os homem vão saindo de marcha-ré, devagarinho, mas com a cara
voltada de frente pro inimigo!
[...]
Deodora: Faziam muitos dias que caminhavam, cansados. Indalécio ia pelo meio do caminho do...
[grifo nosso] (NJ)

Note-se, no diálogo entre Vado e Deodora, a diferença de sentido que os termos “fugido” e “em retirada”
apresenta para um, e não para o outro. Vado prefere o uso de “em retirada” porque, segundo sua concepção, demonstra
que o exército, embora derrotado, recua com coragem e dignidade após um combate desastroso. Seu modo de ver ou
sentir os fatos impedem-no de aceitar que seu povo tenha se retraído por medo. É isso que ele quer deixar claro a todos os
seus ouvintes.

1103
Mostra-se, ainda, bastante reducionista a visão segundo a qual bastaria compreender os sentidos das palavras
para se compreender o sentido do texto. Antônio Biá demonstra a pluralidade de sentidos que as palavras podem assumir
quando associadas umas às outras, de modo que a compreensão dos termos isolados não permite decodificar as
expressões – novos sentidos podem ser criados pelas combinações e pelo uso:

a) “Cale a boca, Exu de Galinheiro!”;

b) “A senhora é um tamborete de forró. Uma piaba de silicone”;

c) “Bocó de microondas. Deixa eu dormir”;

d) “Eu sou o Divino Espírito Santo, amém? Eu sou o pokemon de Jesus?”;

e) “Isso aqui tá parecendo um réveillon de muriçoca”.

Nos três primeiros exemplos, o uso pelo falante deixa transparecer o caráter insultuoso das expressões; o quarto,
exprime um sentido de poderes sobre-humanos; e o quinto, por sua vez, faz referência a balbúrdia, tumulto. Daí depreende-
se que

no discurso os sentidos das palavras não são fixos, não são imanentes, conforme geralmente atestam
os dicionários. Os sentidos são produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocução.
Assim, uma mesma palavra pode ter diferentes sentidos em conformidade com o lugar socioideológico
daqueles que a empregam (Fernandes, 2008, p. 15).

Do ponto de vista da recepção, as possibilidades de sentido geradas pelas palavras podem dar margem a
múltiplas interpretações por parte do co-enunciador.

Assim, a construção de sentido não se encontra exclusivamente em poder do locutor – ela depende de outros
fatores que escapam ao seu controle e podem resultar na constatação de que sua fala produziu sentidos além do que
planejava. A cosmovisão e a bagagem sociocultural, por exemplo, exercem influência sobre a interpretação da experiência
e, consequentemente, sobre a construção de sentido.

Em “Narradores de Javé”, o conhecimento de mundo adquirido pelo personagem Sousa não lhe permite conceber
que uma terra seja possuída apenas por meio da oralidade, sem qualquer comprovação documental. Sua participação na
cultura escrita impede a construção de sentido às divisas cantadas, por exemplo, cuja existência só seria possível em
sociedades oralizadas, regidas pelo som, pela conversação, pelo diálogo com pessoas, e não com textos impressos. A
escrita tornou-se tão internalizada na cultura de Sousa, que seria difícil ver algum sentido em declarações como: “Dali até
encontrar as terra do João Fubuia, tudo que tiver dentro desse trecho são terras minhas. Fulano de Tal” (NJ).

No ato comunicativo, o co-enunciador ocupa papel imprescindível na construção de sentidos. O locutor pode
realizar uma gama de atividades visando à produção de sentidos – reformulações ou antecipações às reações do outro –,
mas jamais terá como controlar inteiramente a interpretação de seu dizer. É por isso que o sentido do discurso não é dado a
priori, mas sim construído na interação verbal, pela negociação entre os interlocutores.

1104
2.2. Os implícitos

Oswald Ducrot (1987) separa os implícitos em pressupostos e subentendidos, conforme explica Maingueneau:

o pressuposto [...] trata-se de uma proposição implícita, mas inscrita no enunciado, qualquer que seja a
situação de enunciação. [...] o subentendido é inferido de um contexto singular e sua existência é
sempre incerta; já o pressuposto é estável. O primeiro é tirado do enunciado, o segundo da enunciação
(1996, p. 92).

De acordo com essa distinção, pode-se entender que os pressupostos são conteúdos implícitos que se inscrevem
na estrutura do enunciado, sem que se leve em conta os contextos enunciativos. Seria um plano de fundo que sustenta
aquilo que está posto no enunciado: “os pressupostos lembram [...] elementos cuja existência é apresentada como óbvia”
[grifo do autor] (MAINGUENEAU, 1996, p. 95). Portanto, fundamentam-se num princípio de economia. O ato comunicativo
seria inviável se os interlocutores não deduzissem que certas informações são adquiridas sem que sejam ditas
explicitamente.

Menos evidentes, no entanto, são os subentendidos, indedutíveis fora de contexto: “de acordo com os contextos, a
mesma frase poderá liberar subentendidos totalmente diferentes” (MAINGUENEAU, 1996, p. 105). Eles são inferidos em um
contexto singular e sua existência é sempre incerta; são colocados de forma mais enigmática, exigindo decifração por parte
do co-enunciador. Assim como os pressupostos, eles permitem que se diga sem dizer, que se antecipe um conteúdo sem
admitir inteira responsabilidade sobre ele. Observe-se o seguinte diálogo entre Vado e o povo de Javé, quando o primeiro
narra sua conversa com os engenheiros que organizam a construção da barragem que dará fim à cidade:

Aristeu: E as casa? As terra?


Zaqueu: Nós vamo ter que sair! Nós vamo ter que sair!
Deodora: Ah, não pode! A gente não pode sair da nossa casa...
Zaqueu: Pode! Pode! (Tumulto. Zaqueu chama a atenção do povo). Aqui! Ô, gente! Seu Vado, o seu
Vado teve lá comigo. Conta pra eles, Vado!
(Seu Vado toma a palavra.)
Vado: Os engenheiro abriram os mapa na nossa frente e explicaram tudinho nos pormenor. Tudo com
os número, as foto, um tantão delas! E explicando pra gente os ganho e os progresso que a Usina vai
trazer. Vão ter que sacrificar uns tantos pra beneficiar a maioria. A maioria eu não sei quem são, mas
nós é que somos os tanto do sacrifício, né não, Zaqueu? (NJ)

A explicação de Vado aos moradores de Javé demonstra o sentido produzido com base nos implícitos das
explicações dos engenheiros. No enunciado “Vão ter que sacrificar uns tanto pra beneficiar a maioria”, o termo “maioria”,
posto na asserção, permite a identificação do pressuposto de que uma “minoria” terá de sofrer em nome do progresso e, a
partir daí, Vado subentende que seu povo será o grupo a pagar o preço pelo bem de “todos”. Embora a ideia de que Javé
será “o tanto do sacrifício” não esteja inscrita no enunciado (o posto), nem seja facilmente deduzida em qualquer momento
da enunciação (o pressuposto), o ato comunicativo permite que Vado chegue a essa conclusão. O mesmo enunciado, em
outra situação, poderia levá-lo a uma conclusão diversa.
Fiorin (2008, p. 17-18) ainda chama a atenção para outro fator importante na construção de sentido: “o saber de
cada um a respeito do mesmo objeto é diferente, porque é condicionado pelo ponto de vista em que cada um se coloca
para apreendê-lo, estudá-lo, analisá-lo”. Isso significa que o ponto de vista em que o sujeito se encontra determina sua
maneira de encarar o objeto e, portanto, sua percepção do sentido. É o que parece perceber Maria após ouvir as versões
de Deodora e Firmino: “acontece que as duas histórias têm sentido. Não se pode tirar uma sem o prejuízo da outra” (NJ).
Para ela, os dois relatos se complementam porque revelam perspectivas diferentes sobre os mesmos eventos.

1105
2.3. Coesão e coerência

Também é importante atentar para a importância da coesão e da coerência no processo de construção de sentido.
Por fatores de coesão entende-se “aqueles que dão conta da sequenciação superficial do texto, isto é, os mecanismos
formais de uma língua que permitem estabelecer, entre os elementos linguísticos do texto, relações de sentido” (KOCH,
2008, p. 46). A coerência, por seu turno, “diz respeito ao modo como os elementos subjacentes à superfície textual vêm a
constituir, na mente dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos” (KOCH, 2008, p. 52). É bem verdade que
a coerência se faz a partir do texto e toma os recursos coesivos como pistas orientadoras, mas há textos privados de
coesão que nem por isso tornam-se incoerentes; o contrário também pode se dar: textos repletos de recursos coesivos,
mas destituídos de coerência. É o caso da história que Antônio Biá cria com a intenção de “melhorar” a narrativa de
Vicentino:

Antônio Biá: Deixa eu ver... Os dias pareciam não ter fim e aquela gente guerreira, de tanta fome,
quase não mais respirava. Aí, passa por eles aquela boiada imensa, gorda, um dilúvio bovino. Ê, boi! Ê,
boi! Aquele mundo, aquele mar, aquele mar de boi capaz de fazer verter lágrima só de ver aquelas
coxas, as costela, as alcatras chiando na brasa, pingando gordura no fogo...
(Antônio Biá engole a saliva que lhe brotou na boca e continua a narrativa.)
Antônio Biá: Mas tinha muita gente armada guardando aquele bovil. Bovil é um canil de boi. Então,
Indalécio pensou numa alta estratégia de guerra: ele racioucinou-se todo e esperou anoitecer. E
quando os bois estavam mais quietos, mais calmos e os vaqueiro mais espreguiçados, aí, no meio
daquele breu, ele chamou dois homens do seu bando, os mais valentes. [...] E mandou os dois homem
rastejarem, assim, largateando, pra dentro daquele boiaréu e, e...
(Biá detém-se sem saber como prosseguir com a história. Vicentino fica impaciente.)
Vicentino: E... e... e o quê?
Antônio Biá: Calma, calma! E, e, e... Aí eles arrancaram as alpercata dos pés e calçaram nas quatro
patas do boi mais gordo. E foram trazendo o bicho calçado, bem devagarinho, sem fazer barulho
nenhum, sem dar um tiro, mas com tamanha bravura e esperteza.
[...]
Vicentino (indignado): E alguém vai acreditar em botar sapato em boi pra não fazer barulho, seu Biá?
(NJ)

Embora apresente elementos coesivos (e, aí, então etc.), a história de Antônio Biá soa incoerente aos ouvidos de
seu interlocutor, que não vê qualquer relação possível entre os elementos da narrativa. Caso se tratasse de um relato
ficcional, poderia haver aceitação por parte de Vicentino, uma vez que as regras do “contrato” que regulam esse tipo de
interação tornam possíveis conexões dessa natureza. No entanto, Vicentino deseja que sua história seja tomada como
verdadeira e por isso não vê sentido nos fatos descritos por Biá.
a coerência está diretamente ligada à possibilidade de se estabelecer um sentido para o texto, ou seja,
ela é o que faz com que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como
um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de comunicação e à
capacidade que o receptor tem para calcular o sentido desse texto. (KOCH; TRAVAGLIA, 2007, p. 21).

A coerência, portanto, depende de fatores linguísticos, discursivos, cognitivos, culturais e interacionais, o que
torna um texto coerente para um, e para outro não.

1106
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações sobre os sujeitos-narradores de Javé podem, em certa medida, aplicar-se a outros corpora, uma
vez que se referem a um lugar de sujeito-narrador, e não especificamente de um narrador em particular, de uma história
determinada. Com base na “teoria dos quatro sujeitos”, de Charaudeau (2008), demonstrou-se que a posição de narrador
traz em si a ideia de um sujeito múltiplo – um empírico, produtor dos enunciados (falante), e outro (locutor), projetado pelo
primeiro e responsável pelo ato de fala. O enunciador é ainda co-enunciador, uma vez que suas narrativas permitem a
interação com os ouvintes.

Os narradores de Javé são sujeitos que falam de si mesmos, pois, ao narrarem a história de seu povoado, narram
sua própria história de origem. É por isso que a história do Vale, nesse sentido, confunde-se com a história dos próprios
sujeitos-narradores. Esses sujeitos também se narram à medida que deixam transparecer na fala as suas marcas
enunciativas: cada um tem um “modo” próprio de dizer, seja pela escolha vocabular e entonação da voz, seja pela postura
que assume diante do que diz, de modo a conferir singularidade a cada narrativa.

Por tudo o que foi discutido, pode-se concluir que “o sentido não está nem no texto [falado ou escrito], nem fora do
texto. Ele é inter-relacional porque só pode ser o resultado das ocorrências entre os signos textuais e os atos de
compreensão” (ISER, 1978, p. 10 apud BORBA, 2003, p. 29). Daí decorre também a necessidade de se falar em um
sentido, e não no sentido construído a partir do que se lê ou ouve, como é o caso dos sujeitos-narradores de Javé. Os
sujeitos podem construir sentidos diferentes a partir de um mesmo enunciado. Mais do que isso: os sujeitos podem
incorporar, de forma diversa, os sentidos do lido e do ouvido à própria identidade e transmiti-los a outros por meio de
narrativas impregnadas de subjetividades e reconstruções feitas a seu modo.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA:

Narradores de Javé. Direção de Eliane Caffé. Bananeira Filmes. Brasil: 2004. 1DVD (102 min. aprox.), color.

REFERÊNCIAS:

ABREU, Luís Alberto de; CAFFÉ, Eliane. Narradores de Javé: roteiro, 17ª versão. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2004 (Coleção aplauso. Série cinema Brasil).

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas (magia e técnica, arte
e política). São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 197-221.

BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Teoria do efeito estético. Niterói, RJ: EdUFF, 2003, p. 19-35.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008, p. 74-79

____________; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. 2. ed., 2ª reimpr. São Paulo: Contexto,
2008.

DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas, SP: Pontes, 1987.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos, SP: Claraluz, 2008.

____________. Elementos de Análise do Discurso. 14. ed. 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2008.

1107
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção de sentidos. 9. ed. 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2008.

____________. A inter-ação pela linguagem. 10. ed. 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2007.

____________; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. 17. ed. 1ª reimpr. São Paulo: Contexto, 2007, p. 21-52.

MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 85-102.

____________. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Graduada em Letras pela Universidade Católica de Petrópolis e pós-graduanda em Literatura Infantil e Juvenil pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: rsportella@gmail.com

1108
As pérolas do Desencannes: uma leitura pela análise do
discurso

OLIVEIRA, Simone Cruz de


(UNEB/FAPESB)

1 Breve incursão pelo Desencannes

Para produzir significados, o discurso publicitário muitas vezes se utiliza de recursos como a ambigüidade e as
variadas possibilidades de sentido que um dado dizer pode assumir. Através da condensação da mensagem e do duplo ou
múltiplo sentido, o anúncio publicitário produz determinados efeitos, que vão desde o despertar do riso, por meio do humor,
até a mobilização do sujeito para aderir à determinada marca ou conceito, ou simplesmente consumir um produto.
O crescente acesso às novas tecnologias, conforme se tem demonstrado em pesquisas como a realizada por
empresas como o Ibope/NetRatings (ABRIL, 2008), permite que os usuários da internet não apenas presenciem a rápida e
constante circulação de peças publicitárias e dos sentidos por elas produzidos, como também que participem do processo
de escritura desses discursos e da produção de novos sentidos. O site Desencannes: as pérolas da propaganda que não
chegam nem ao atendimento ilustra bem essa dinâmica. Nele, são divulgadas “propagandas” que lançam mão dos mesmos
meios que o discurso publicitário: exploram o caráter polifônico e ambíguo da linguagem e muitas vezes dialogam
explicitamente com outros discursos já veiculados. Os criadores das peças se apropriam de diversas marcas famosas e
reelaboram seu discurso a fim de produzir e fazer circular novos sentidos. É curioso observar que parece não haver nesses
anúncios intenção alguma de promover as marcas que ali aparecem. Antes, o que se nota é que muitas das referidas
“peças” veiculam discursos e sentidos aos quais as marcas comerciais utilizadas provavelmente não desejariam ver suas
respectivas imagens associadas.
O site Desencannes é um projeto desenvolvido por um grupo de publicitários. A respeito da proposta do site,
pode-se ler no link “Manifesto Desencannes”:

Durante o processo de criação de uma campanha, muitas vezes acabam surgindo idéias absurdas que
nunca foram e nunca poderiam ser veiculadas. (…) No Desencannes, são essas as peças que valem.
Um espaço para exposição de idéias que na maior parte das vezes ficam restritas aos criativos da
agência. (2010)

Os organizadores do site afirmam não haver preocupação com a mobilização para consumo. De acordo com eles,
“o que importa é a idéia pela idéia”. (DESENCANNES, 2010). É importante observar, no entanto, que, em se tratando de
discurso publicitário, os indivíduos não são interpelados em sujeitos apenas para consumir produtos, mas também, senão
principalmente, para consumir idéias. E nesse aspecto, o site parece ter sido bem sucedido. Em 2007, foi lançado o livro As
impublicáveis pérolas da propaganda: agora publicadas. A mudança do suporte em que as “peças publicitárias” são
veiculadas pode ser reveladora. Afinal, como publicar o impublicável? Pretendemos demonstrar neste trabalho como
diferentes épocas e diferentes espaços propiciam o surgimento e aceitação de discursos e sentidos diversos: a circulação
de sentidos que seria improvável em dados tempos ou mesmos determinados espaços ou suportes, pode tornar-se
perfeitamente possível em outros.

Os autores do site, no intuito de evitar desvios dos objetivos ali propostos, apresentam um esclarecimento do que

1109
é uma pérola que pode vir a figurar no Desencannes:

Pérola é uma idéia que se desgarrou do briefing mas que você não tem coragem de jogar fora. É
impublicável, não vai nem pro atendimento, mas até o cliente dá risada. Mas para ser uma pérola não
pode ser idéia fraca. Essa não funciona em lugar nenhum. (2010)

Navegando pelo site, pode-se ver à esquerda da tela os seguintes botões: “Quem somos, Pérolas, O festival,
Envie sua pérola, Desenblogue, Processe-nos, FAQ yourself.” Por meio do botão “O que somos” é possível ter acesso ao
Manifesto do Desencannes. Nesse espaço, são apresentados os motivos que levaram à criação do site.

Em “Pérolas” o internauta pode escolher entre diversas categorias, tais como mídia impressa, rádio e mídia
alternativa, a quais tipos de anúncios deseja ter acesso. Clicando no botão “Festival” pode-se conhecer os concursos
organizados para eleger as melhores pérolas. Estão disponíveis links para os festivais dos anos dois mil e seis, dois mil e
sete e dois mil e nove. O visitante poderá ter acesso às pérolas eleitas pelo júri popular, do qual, qualquer indivíduo com
acesso a internet pode fazer parte.

O botão seguinte, “Envie sua pérola”, conduz a um espaço em que o visitante poderá inscrever uma peça de
criação própria que deseje ver publicada no Desencannes. Importa ressaltar que neste espaço uma das características do
hipertexto sobressai, a interatividade. O sujeito que envia seu trabalho para o site, torna-se parte do processo de construção
dos sentidos veiculados ali e seu “anúncio” passará pelo julgamento dos demais usuários do sítio eletrônico que avaliarão
seu trabalho, bem como, apontarão as “cópias” ali presentes. É comum ver “plagiadores” serem denunciados.

Através do botão “Desenblogue” o internauta é redirecionado para o blogue do endereço eletrônico principal.
Nesse espaço estão as pérolas que passam por uma seleção menos rigorosa que a do site e que, se forem bem avaliadas
pelos visitantes, poderão ser publicadas também no Desencannes. Os motivos da não aceitação das pérolas no site
principal são variados:

Idéias que já foram usadas, idéias que já estão batidas no site, produtos inventados, imagens de
campanhas verdadeiras, estilo escrachado demais, obras do demônio, não entendemos, etc, etc, etc.
Mas aqui publicamos uma segunda seleção, muito mais livre dessas peças. Entram todas as pérolas
com algo de especial (ou não).

Ao clicar no botão seguinte, “Processe-nos”, o internauta é conduzido a um espaço em que o usuário que tenha
se sentido injustiçado pela não publicação de uma “pérola impagável” enviada, pode reclamar sem ter de “afogar o
Judiciário com lides insinceras”. (DESENCANNES, 2010) O tempo de espera é bastante variável: dura até que o usuário se
dê conta de que o link em questão trata-se de apenas mais uma piada.
O último botão, o “FAQ Yourself”, é o espaço para perguntas freqüentes. Lá, é possível ler as perguntas e
respostas já enviadas e enviar novos questionamentos. Uma breve passagem por essa página permite perceber que, salvo
algumas pequenas exceções, trata-se de mais um espaço aproveitado para produzir humor:

1110
10 - Como eu faço para processá-los?
Entre no menu Processe-nos e leia com atenção as instruções. Depois clique em Processar
e aguarde. Você pode também escolher o método tradicional. Pagar um advogado e entrar
com uma ação criminal. Mas até a sentença ser proferida, nós já saímos do ar.
11 - Cliquei em Processar mas parece que nada acontece.
Desculpe-nos. Realmente estávamos com problemas na sessão processe-nos. Mas já está
resolvido. Por favor, tente novamente.
12 - Parece que ainda está com problemas.
Isto não é uma pergunta.

2 As pérolas: condições de produção e formação discursiva


Apresentado o objeto, é possível , enfim, passar à verificação das condições de produção que possibilitaram o
aparecimento dos discursos expressos nas pérolas. As condições de produção (CP), ao lado da formação ideológica e da
formação discursiva, são conceitos fundamentais para compreensão do funcionamento dos discursos na Análise de
discurso (AD). As CP dizem respeito ao sujeito e à situação discursiva. Entendidas em sentido estrito, correspondem ao
contexto imediato, consideradas em sentido amplo, contemplam o contexto social, histórico e ideológico, como aponta
Orlandi (2002, p.30).
Pode-se considerar as condições de produção desta peça em sentido estrito, e então, tem-se o site Desencannes
e a internet, que propiciaram um suporte para que um discurso como esse pudesse ser posto em circulação.
Por outra parte, é possível pensar ainda as condições de produção em seu sentido mais amplo. Nesse caso, tem-
se o século XXI, uma sociedade que se mostra receptiva a um humor mais ácido e por vezes “politicamente incorreto”, seja
por meio da contação de piadas, de programas televisivos, de charges jornalísticas, de páginas pessoais da rede mundial
de computadores etc.
É importante considerar ainda o conceito de formação discursiva definido por Pêcheux (2009, p.148) como “aquilo
que, numa formação ideológica dada, determina (…) o que pode e deve ser dito.” De acordo com o autor:
O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc. não existe “em si mesmo” (isto
é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado
pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio histórico no qual as palavras,
expressões e proposições são produzidas. Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras,
expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que a
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em
referência às formações ideológicas (no sentido mais acima) nas quais essas posições se inscrevem.
(p.148 grifo do autor)

Ao considerar as Condições de produção das peças ali veiculadas, verifica-se que elas podem existir porque
figuram em um espaço em que é permitido fazer humor por meio da apropriação de marcas comerciais e é possível a
disseminação de discursos sem compromisso com aquilo que se convencionou chamar politicamente correto.
No que diz respeito à formação discursiva, verifica-se que tais sentidos podem transitar por esse espaço, isto é,
podem e devem ser produzidos porque, como já se demonstrou anteriormente, o compromisso do site que os veicula é com
o humor e não com as marcas comerciais ali envolvidas. Assim, o sujeito discursivo que fala por meio desses dizeres é
interpelado por uma ideologia que permite e incentiva esse tipo de discurso.
Como aponta ainda Pêcheux (2009, p.147) “as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da
formação discursiva na qual são produzidas”. É isso que possibilita, conforme demonstra o autor, que palavras ou
expressões que não possuem um vínculo semântico quando tomadas isoladamente, possam ser correlacionadas a fim de
produzir novos sentidos em uma formação discursiva específica. Isso pode ser observado na pérola abaixo com o termo
Vipal, que, por conta da similaridade sonora, nesta formação discursiva, dialoga com outras expressões e deixa de

1111
caracterizar pura e simplesmente a marca que oferece materiais em borrachas, plásticos e afins e passa a assumir um
sentido diferente daquele idealizado pela empresa representada pela marca VIPAL.

É importante observar porém que mesmo nesses espaços alternativos, há um controle sobre o que pode e deve
ser dito. Não se pode desconsiderar o assujeitamento mesmo desse tipo de discurso às regras e coerções que são
características de sociedades como a atual. O que se vê é que até mesmo as transgressões têm seus limites. Isso pode
ser facilmente verificado com a peça acima, uma das que foram retiradas de circulação por força de ordem judicial.
Nesse ponto o hipertexto apresenta uma vantagem frente a outros suportes, como o livro convencional, entenda-
se, impresso. A interdição de uma das peças apresentadas no livro representaria a saída de circulação dos exemplares do
livro à venda. O site, por outro lado, pode ser editado inúmeras vezes sem maiores prejuízos. Financeiros, notadamente.
Essa vantagem foi bem aproveitada pelo idealizadores do site que utilizaram o incidente para produzir mais
humor. A peça apresentada anteriormente não é a que originalmente foi enviada como pérola para fazer parte do site. No

entanto, diante da impossibilidade de expor as pérolas originais, fez-se uma intervenção que deu origem a novos sentidos e
novas pérolas.

1112
Ainda a esse respeito pode-se considerar as palavras de Fernandes (2003, p.41)

Uma formação discursiva dada apresenta elementos vindos de outras formações discursivas que, por
vezes, contradizem-na, refutam-na. Na história e no social, observa-se uma dispersão de discursos e
acontecimentos, que, na descontinuidade própria dos elementos e acontecimentos históricos, na
contradição e negação do que se pode dizer somente em determinada época e/ou lugar, encontra-se a
unidade do discurso.

Essa interação entre formações discursivas possibilitou a emergência e circulação de sentidos claramente
indesejados pela marca comercial VIPAL. No entanto, não fosse esse diálogo conflitante, o efeito de humor não seria
alcançado. É esse caráter dinâmico e fluido do discurso um dos fatores que impedem o controle dos sentidos que um dado
sujeito deseja produzir. O discursos sempre evocam outros sentidos e isso não pode ser contido. Está além do controle dos
sujeitos que os produzem. Situação que se observa no “caso Vipal”.
A respeito do incidente, os organizadores do Desencannes comentam o episódio em um texto intitulado “Quando
alguém não sabe brincar”:
Por conta de uma notificação extrajudicial que nos foi enviada esta semana, as pérolas
http://desenblogue.com/2009/04/25/vipalvejavocetambem/ http://desenblogue.com/2009/11/22/vipal/,
http://desenblogue.com/2008/10/15/viumesmo/ e http://desenblogue.com/2009/05/21/vipal/ foram
retiradas dos nossos arquivos porque para a VIPAL tais peças causavam prejuízos incalculáveis à
imagem da citada marca. Substituímos então tais peças pelos ursinhos carinhosos. Porque eles são
carinhosos e compreensivos. (2009, grifo nosso).

Esse caso ilustra bem uma situação em que um evento que poderia ter se tornado um grande contratempo com
múltiplos prejuízos, caso as pérolas tivessem sido apresentadas em outro suporte, transformou-se em mais uma
oportunidade de o site se promover e ganhar visibilidade, além de produzir humor, é certo. A situação criou ocasião para a
exposição de novas pérolas retrabalhadas e ressignificadas, das quais apresentamos mais um exemplo apenas para efeito
ilustração.

1113
Com isso, pode-se observar que a peça original, ainda que figure como um discurso em ausência, não deixou de
produzir sentidos, uma vez que o elemento principal para a produção do humor nessa situação é a palavra Vipal, que nessa
formação discursiva tem o sentido aproximado ao de determinadas outras expressões em circulação. Assim, vemos que
mesmo com a reescritura do termo, grafado em separado nas formas “Vi” e “Pal” o sentido inicial não se perde, uma vez
que a ligação de sentidos se dá não por meio da ortografia, mas da semelhança fonética dos termos em questão dentro,
vale ressaltar, de uma formação discursiva dada.

3. Considerações finais

A apresentação do livro com as pérolas retiradas do sítio eletrônico expressa adequadamente a idéia que envolve
a junção do conceito de condições de produção e formação discursiva: “ESTA É UMA OBRA PREMONITÓRIA. Se as peças
aqui apresentadas são rotuladas de 'não veiculáveis', é uma questão de tempo” (MARX, 2007, p.12). Peças como as
apresentadas pelo Desencannes apenas têm permissão de circular nos dias de hoje como humor. Isso é o que as
condições sócio histórico ideológicas atuais permitem.
No entanto, num outro cenário histórico e social, ou seja, com outras condições de produção dadas, bem como
outra Formação ideológica e discursiva, os sentidos produzidos por sites como esse serão outros, como Marx (2007, p.12)

1114
bem observa: “Daqui a 15 anos, algum jovem publicitário irá ler e ver este livro e pensar: 'MAS O QUE TEM AQUI DE TÃO
DIFERENTE? '”.

As sociedades mudam, os valores se transformam e, juntamente com eles, as condições de produção e


formações discursivas propiciam o surgimento de novos discursos. E estes vão sendo reelaborados e passam a fazer
circular novos sentidos.

Referências

ABRIL. Brasil tem mais de 41 milhões de usuários de internet. 2008. Disponível em


<http://www.abril.com.br/noticia/no_284806.shtml >. Acesso em 20 jul. 2009.

DESENCANNES. Desencannes: As pérolas da propaganda que não chegam nem ao atendimento. Disponível em
<http://www.desencannes.com/>. Acesso em 10 jul. 2010.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2008.

MARX, Victor. As impublicáveis pérolas da propaganda: agora publicadas. São Paulo: Panda Books, 2007.

Orlandi, Eni Pucinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 8.ed. Campinas: Pontes, 2009.

Pêcheux, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4.ed. Campinas : Editora Unicamp, 2009.

Currículo Simone Cruz de Oliveira

Graduada em Letras com habilitação nas Línguas portuguesa e espanhola e respectivas literaturas pela Universidade do
Estado da Bahia (2008). É, atualmente, estudante de especialização em tradução nas línguas portuguesa e espanhola pela
Universidade Gama Filho e mestranda do Programa de estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia e
bolsista FAPESB.
E-mail: si_cruz@yahoo.com.br

1115
O humor no discurso relatado infantil

OPITZ, Ana Cristina


(UFRGS)

Introdução:
Este trabalho na linha da Análise do Discurso francesa trata do humor como resultado de um processo de ruptura
na circularidade do sentido presente no discurso produzido oralmente por sujeitos-criança (e depois transcrito): o Discurso
Relatado Infantil.
A circularidade dá-se através dos processos diferenciados de leitura que levam ao equívoco como efeito de
discurso, isto é, uma leitura com forte tendência polissêmica que constitui uma das formas significativas de realização da
recontagem de narrativas do interdiscurso. Serviu de base para este trabalho o arquivo formado por entrevistas transcritas
da Coleta Longitudinal do Banco de Dados do Projeto Desenvolvimento da Linguagem da Criança em Fase de Letramento
(DELICRI), deslocado da área de estudos sobre Aquisição da Linguagem. O presente arquivo é formado por sete sujeitos,
em idade entre cinco e nove anos (aqui cunhados sujeitos-criança) acompanhados desde a fase anterior à entrada na
escola, ou no mundo da escrita propriamente dito. Os sujeitos-criança produziram textos que deixam transparecer uma
noção de autoria mesmo em ‘tentativas parafrásticas’, ou seja, romperam com tendências tradicionais de recontagem de
histórias infantis do interdiscurso e instauraram um novo sentido para seus textos (inclusive com humor), nos quais fica
marcado quem são os autores: eles mesmos.
Fundamentos teóricos:
A AD faz uma análise não subjetiva dos efeitos de sentido atravessando a ilusão do efeito-sujeito. Este último, por
sua vez, é entendido como responsável pela produção de sentido, fortemente ideológico e efeito de uma interpretação
discursiva. Essa produção de sentido é estabelecida por diferentes posições-sujeito, o que significa que diferentes sujeitos,
ao se relacionarem com o sujeito do saber, ou forma-sujeito, de uma mesma FD, podem estabelecer diversas posições-
sujeito e produzir diversos efeitos-sujeito. Isto se dá porque o sujeito pode ocupar, ou marcar, várias posições,
correspondendo a diversas FD’s que podem ser identificadas no texto. Por trás dessas diferentes posições-sujeito, está
uma ideologia caracterizada por descontinuidades e contradições refletidas nessas diferentes posições-sujeito presentes na
sua unidade de análise, o texto. Enfim, posição-sujeito é o lugar do imaginário no discursivo, segundo COURTINE (1981),
“onde o sujeito enunciador é produzido na enunciação como interiorização da exterioridade do enunciável.” (p. 150)
Portanto, quando o “sujeito” identifica-se consigo mesmo (tornando-se uma posição-sujeito), com seus
semelhantes (outras posições-sujeito da mesma FD) e com a sua forma-sujeito, ele já se caracteriza enquanto sujeito
interpelado ideologicamente e atravessado por um inconsciente psicanalítico desde sempre. Essa forma-sujeito, então,
simula o interdiscurso no intradiscurso, ou seja, ela realiza a incorporação-dissimulação destes elementos do interdiscurso
no discurso do próprio sujeito. E, para que tal processo se realize, é preciso que o sujeito tome posição com total
(in)consciência e liberdade sobre a presença inconsciente no seu discurso do “discurso do Outro”. Com isso, o sujeito
falante torna-se responsável (autor) por seus atos.
Conforme ORLANDI (1996), “o autor é, pois, o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos,
representa, pela linguagem, esse papel, na ordem social em que está inserido.” (p.79) Ele, perante os outros sujeitos, é a

1116
quem se imputa a autoria de um texto, justamente por ser o princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de
suas significações, comenta a autora referindo-se a Foucault/1971.
Inserido em diferentes condições de produção e submetido a processos de leitura diferenciados, o sujeito-criança
do arquivo pesquisado instaura um novo sentido a cada recontagem, passando a considerar, inconscientemente, a mesma
narrativa como ‘fonte’ do sentido do discurso que produz. Por vezes, há uma ruptura da ordem do repetível no discurso
relatado infantil tanto através das próprias narrativas relatadas quanto de piadas de humor contadas no espaço reservado
(nas entrevistas) para a recontagem de narrativas infantis do interdiscurso. O lugar da ruptura é o que revela o equívoco
como efeito de sentido, constitutivo, portanto, do discurso relatado infantil, o qual tem forte tendência polissêmica.
Ao analisar-se o sujeito inconsciente em sua dispersão e partir-se da especificidade do discurso, que é relacionar-
se com a exterioridade, chega-se à questão do ‘outro’ como constitutivo do discurso, a sua heterogeneidade. O sujeito situa
o seu discurso em relação ao discurso do outro. O ‘outro’ que não envolve só seu interlocutor para quem produz o discurso
(intradiscurso), mas que envolve o ‘já-dito’, o pré-construído, discursos ou elementos historicamente construídos no exterior
de sua FD e que emergem no seu discurso inconscientemente (interdiscurso), pois, embora o sujeito veja-se como fonte de
seu discurso, ele é apenas suporte e efeito desse discurso. Com isso, se um texto é atravessado por vários discursos,
segundo ORLANDI (1996), pode-se dizer que o discurso é uma dispersão de textos; e o texto, uma dispersão do sujeito.
Por esse motivo, mesmo possuindo uma vocação totalizante, a unidade do texto também é um efeito discursivo.
A partir do momento em que se caracteriza o texto como incompleto, uma multiplicidade de sentidos é propiciada
pela própria língua, além dos sentidos que resultam de uma situação discursiva, margem de enunciados efetivamente
realizados, serem os responsáveis por isso. (Nessa multiplicidade é que se originam a paráfrase e a polissemia discursivas).
Pode-se dizer, então, que o sentido de um texto é intervalar e não se constitui em nenhum dos seus interlocutores, mas no
espaço construído entre eles, na relação com outros textos e contextos.
Segundo COURTINE & MARANDIN (1981), o efeito do interdiscurso no interior de várias formulações, enquanto
saber próprio de uma FD, dá-se a partir de saberes externos. Nessas formulações é que se pode dar conta da produção de
efeitos do real (onde o saber de uma FD apaga-se sob a pluralidade nominalizada de objetos do mundo) e marcar a
heterogeneidade constitutiva de uma FD como forma particular de contato entre FD’s.
As relações entre Formações Discursivas e Formações Ideológicas são muito complexas e não-automáticas,
porém não são “um empecilho para que se encontrem constantes, sistematicidades, no funcionamento discursivo. O modo
como as CP’s de um discurso estão inscritas nele nos permite determinar sua regularidade, ou seja, nos indica justamente
qual é sua relação com a FD.” (ORLANDI, 1986, p. 118) É o conjunto dessas regularidades que possibilita a fatos
discursivos serem observados pela curiosidade do analista.
Essas diferentes realizações, já segundo MILNER (1987), fazem valer “em toda locução uma dimensão do não-
idêntico: é o equívoco e tudo que o promove, homofonia, homossemia, homografia, tudo o que suporta o duplo sentido e o
dizer em meias-palavras”, logo “uma locução, trabalhada pelo equívoco, é ao mesmo tempo ela mesma e uma outra. Sua
unicidade se refrata seguindo séries que escapam ao desconto, visto que cada uma, apenas nomeada  significação,
sonoridade, escrita, etimologia, sintaxe, trocadilho...  se refrata por sua vez indefinidamente (...)” (p. 13) (O grifo é meu).
Portanto, todo o fato discursivo está sujeito ao equívoco e às diferentes realizações linguísticas citadas anteriormente que
levam, ao seu tempo, também ao equívoco por refração ou ressonância.
Para GADET & PÊCHEUX (1984), o equívoco, enquanto lugar que propicia mais de um sentido a uma locução,
aparece como ponto de encontro entre o impossível e o proibido. Ao mesmo tempo que a Linguística busca o real como um
todo, ela mesma constata que o equívoco faz parte de muitos de seus fenômenos, portanto, sendo impossível excluí-lo de

1117
seu ideal de completude, isto é, tendo que admitir a língua como um não-todo que possui a propriedade da transgressão e
do equívoco.
Apesar de ter sido deixada de lado pela Linguística e ter ficado por conta da retórica e da poética, ou da linguística
histórica, que observa a multiplicidade de sentidos na perspectiva do tempo, a polissemia volta a constituir o foco das
análises feitas no presente arquivo formado por sujeitos em idade pueril. Tais sujeitos instauram o novo a cada recontagem
de uma narrativa infantil do interdiscurso.
o novo, nessa perspectiva, não é exclusividade do foco nem precisa ter um lugar em um segmento da
linguagem. É intervalar. É o resultado de uma situação discursiva, margem de enunciado efetivamente
realizados. Esta margem, este intervalo, não é um vazio, é o espaço ocupado pelo social. Efeito de
sentido. Multiplicidade. (ORLANDI, 1984, p.13)

É possível ter-se um sentido dito de diversas maneiras. A polissemia permite que se crie infinitamente na
linguagem. Ao lado do processo que permite somente produtividade (paráfrase), está o que permite criatividade e tudo o
mais (polissemia). O novo até é possível de se instaurar. Dessa forma, é a polissemia que está mais ligada a uma
linguística de recortes e de texto, consequentemente, a gestos de leitura diferenciados e ao equívoco constitutivo de cada
recontagem.
Considerando a leitura como momento crítico da constituição do texto, ela é o momento privilegiado da interação
entre os interlocutores que caminham para um processo de significação do texto. Há sempre várias leituras possíveis dos
conjuntos textuais a circular numa sociedade.
Quando na etapa de recontagem de um determinado texto, o sujeito passa por um processo semelhante ao de
produção de um texto de sua autoria, pois, se este traz muitas “vozes”, o “sujeito-autor” será o seu primeiro leitor e poderá
fazer também muitas leituras, conforme a associação possível desse texto com outros textos do seu contexto cultural
(leitura polissêmica). Sobretudo, é importante relembrar que o texto não é um produto acabado, principalmente o texto
falado, é também construído no momento da recepção, ou seja, a reflexão do leitor é uma forma de argumentação que o
leva a posicionar-se, a determinar se deve ou não dar crédito àquilo que lê. Esta reflexão, para o sujeito-criança, é ainda
mais determinante, pois encoraja o sujeito-autor a continuar o processo de (re)contagem, a inserir fatos novos ou
simplesmente a relatá-los, a criar, a interromper uma narração, a resumi-la, enfim, a contá-la ao seu modo. Quem analisa
um conjunto textual para nele descobrir operações discursivas é, por certo, um receptor. Logo, através da leitura, o sujeito
tem acesso a dois modelos de discurso: um da produção do discurso e outro do consumo do discurso. A leitura feita
mediante um processo de produção irá se referir ao engendramento do discurso; e a leitura feita mediante um processo de
consumo, à recepção deste discurso. Com isso, obtém-se um processo de circulação do discurso que é socialmente
produzido, segundo nos afirma Véron (1980).
Já um discurso, quando relatado, passa, inevitavelmente, por um ‘processo’ de parcialidade chamado
subjetividade, o qual é inerente à concepção de sujeito da AD, assim como de toda atividade de linguagem. Esse ‘processo’
é o responsável pela escolha de determinados trechos de um discurso a ser relatado e pela forma como vai se dar esse
relato, através da valorização ou menosprezo de fatos de um certo discurso.
A linguagem do humor em suas diversas versões (piadas, chistes, adivinhações...) apresenta-se como opção
extra à contagem de relatos ficcionais. O mundo da ironia, do chiste, enfim, do que não é levado a sério pelo leitor/ouvinte é
fascinante e rico em significações. Faz-se humor a partir daquilo que se sabe já estabelecido previamente (as regras), e a
partir do inusitado (o impulso). Por isso, o que se tem é o pré-estabelecido suscetível ao jogo (alternância), ao equívoco; e o
inusitado, ao fator tempo para fazer efeito. Segundo PEREIRA (1994), o humor ainda conta com:

1118
1º) uma dualidade constitutiva, a contradição;
2º) um processo desmistificador, porque geralmente desvela que se esconde;
3º) a imprevisibilidade;
4º) a liberação de tensões;
5º) a ruptura com o estabelecido;
6º) a introdução do diferente. (PEREIRA, 1994, p. 58)

Com todos esses fatores, o objeto de riso é mostrado em sua exterioridade e inconsistência. Ele afinal acontece,
funciona. O que determina as diversas modalidades do humor são as condições de produção em que o sujeito está inserido
e a sua relação com a subjetividade (tanto de quem fala quanto de quem escuta). É através dos jogos de palavras que
verificamos efeitos de discurso que são manifestados, estando também presente, tanto nas piadas e nos chistes quanto nas
recontagens de histórias infantis deste arquivo, a equivocidade. Esses jogos de palavras, chistes, trocadilhos, charadas
além de “movimentarem” a linguagem, “movimentam” também as ideias que se têm sobre a linguagem e seu uso pelo
falante de língua materna. A comicidade é um estágio superior ao simples uso da língua para efeito de comunicação. Ela
reflete uma competência por parte de quem a utiliza (falante ou ouvinte), mostrando que a liberdade de manusear as
palavras da sua própria língua somente é permitida a quem a domina completamente, assim como a seus mecanismos
discursivos. Com isso, a violação das regras com efeito de humor apenas é aceita se os falantes compartilham de um
mesmo “saber”, caso contrário não haverá sentido quando da simples quebra do pré-estabelecido, isto é, o humor não terá
feito sentido se ambos (falante e ouvinte) não souberem sobre o que se está fazendo humor.
Em relação a esse “saber” compartilhado, a elaboração do chiste, segundo FREUD (1967), depende de desvios
do pensamento normal (e compartilhado) e tem no deslocamento e no contra-senso o meio técnico para fazer história e
obter prazer. Quando cai a censura quanto àquilo que já está estabilizado ou é aceitável, é então que surgem ideias
incoerentes e inusitadas, como nos sonhos e nas piadas. É mais pela sua sutileza do que por um grande efeito que o chiste
é notado, isto é, a brevidade e a relativa nulidade de sentido é que desencadeiam o cômico que há no feito chistoso. Além
disso, o chiste presta-se pelo menos a duas interpretações diferentes advindas, pois, de dois pontos de vista, um do adulto
que ouve e outro da criança que fala. Sim, o chiste tem essência infantil:
A ambição infantil tende menos a fazer significar-se à criança entre seus companheiros que à imitação
dos maiores. A relação da criança com os adultos constitui também a raiz infantil da comicidade da
degradação, a qual corresponde à benevolência que o adulto só demonstra à criança pondo-se no seu
lugar. (FREUD, 1967, p. 931)

Portanto, os chistes mais inocentes e os mais superficiais (sem conteúdo profundo) são aqueles que representam
o aspecto mais puro do humor, não são tendenciosos nem confundem o leitor no momento da sua interpretação. O arquivo
em análise é contemplado com esse tipo de chiste, visto que é produzido por sujeitos-criança.
Partindo-se da conceituação para os mecanismos básicos dos textos humorísticos, tem-se, segundo TRAVAGLIA
(1995), a bissociação, a qual ativaria dois mundos textuais (como já foi mencionado anteriormente) e, consequentemente,
mais de uma possibilidade de leitura. Esse mecanismo possibilita que se evidenciem certas condições sócio-histórico-
ideológicas de uso da língua em uma leitura, através de efeitos de ambiguidades suspeitadas ou não.
Sobre o humor e a ironia ─ o inusitado, aquilo que não é esperado, que viola um estado de mundo já cristalizado
(o senso comum) ─, eles são vistos como um “desvio do sentido primeiro da palavra” ou até mesmo como “processo de
autodestruição do sentido”, mas também como “espaço para simulações, alusões e rupturas”, dependendo da perspectiva
da qual são vistos (cf. TRAVAGLIA, 1995).
Isto quer dizer que tanto o humor quanto a ironia só fazem sentido se forem estabelecidos de um determinado

1119
lugar social, posição-sujeito, universo ideológico-cultural-linguístico. Quando for estabelecido um jogo entre os envolvidos, e
o equívoco entrar em ação como estratégia discursiva, o humor poderá materializar-se “pelo viés da falta, do excesso, do
repetido, do parecido, do absurdo, do non-sense, e por aí se estendem as possibilidades. O que há de comum em todas
elas é a ruptura do fio discursivo e o impacto efetivo na condição de fazer e desfazer sentidos.” (LEANDRO FERREIRA,
1994, p. 134) A ruptura é a peça que faz acontecer o humor, que rearranja significantes, que é responsável por
transgressões e deslocamentos. Em geral, quando se diverge dos padrões socialmente impostos, provoca-se um ruptura.
“A ironia subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor.” (MAINGUENEAU, 1997, p. 98)
No entanto, é um gesto dirigido a um destinatário específico e que suscita a ambiguidade, o equívoco. A ironia está na
relação que se estabelece entre locutor, ouvinte e texto a cada novo gesto de leitura.
Em cada relato ficcional de narrativa infantil acontece o equívoco, pois o sujeito-criança está inconscientemente
jogando com palavras, com o interdiscurso, com suas condições de produção (incluindo idade, escola, família, amigos e
entrevistador  para quem conta a sua história e cria o seu objeto de ficção). No momento em que se nega a relatar uma
história e, então, conta uma piada, um chiste, um trocadilho, esse sujeito-criança continua fazendo deslocamentos e
jogando com as palavras. É normal esse comportamento entre os sujeitos-criança, principalmente, entre aqueles que
estudam e convivem com outros sujeitos que aparentemente compartilham de um mesmo “saber” culturalizado. As
brincadeiras na escola e em casa giram em torno de trocadilhos, chistes, piadas acerca de episódios do seu próprio
cotidiano, da sua própria história, e adivinhações do tipo ‘o que é o que é...’, ‘qual é...’, ‘porquê...?’.
Esse domínio sobre a sua língua caracteriza uma maturidade linguística muito grande por parte do sujeito falante.
Ele joga com a língua em diversos níveis e acaba por caracterizá-la como lúdica; jogos com significantes polissêmicos
levando à diferença (a qual provoca o humor), conflitando com o mundo e com a própria linguagem são pistas/provas disso
que ficam marcadas no seu discurso.
Análise:
Como já foi mencionado anteriormente, o presente arquivo tenta romper de fato com o pré-estabelecido, isto é, no
espaço reservado para recontagens de histórias infantis do interdiscurso dentro das entrevistas da coleta longitudinal,
alguns sujeitos-criança negaram-se a fazer o proposto, inovando através da denegação.
A denegação em si é a negação de um saber “já-lá” e que pode ser dito pelo sujeito de uma FD determinada
(como todos os sujeitos-criança deste arquivo), mas que, ao contrário do que é esperado, não é dito, é recalcado. Conforme
INDURSKY (1997), o recalcado é autorizado pelo domínio de saber em que se inscreve o sujeito do discurso, mas não é
atualizado por seu dizer, pois o efeito de sentido que produziria é indesejável. Não é exatamente ‘indesejável’ o efeito de
sentido produzido pela ocorrência de feitos humorísticos neste arquivo; é sim estranha, diferente e inovadora. O fato de não
aparecer a recontagem de um narrativa infantil qualquer do interdiscurso na entrevista não evidencia a inexistência de
algum exemplar destas narrativas na memória discursiva do sujeito-criança, pelo contrário, o sujeito negou-se a contá-la e
privilegiou outro tipo de relato ficcional também autorizado pelo seu domínio de saberes, as piadas e os chistes.
A propósito dessas formas escolhidas pelos sujeitos para romper com o pré-estabelecido, formulamos uma
distinção básica entre piada e chiste que foi utilizada nesta análise. Por piada, entendemos o texto humorístico de estrutura
mais complexa ou, quem sabe, tradicional (com introdução, desenvolvimento e conclusão). Já, por chiste, entendemos os
jogos de palavras e de saberes entre os interlocutores que possuem forma mais simples e breve. Ao longo da análise,
caracterizações diversas são atribuídas a essas formas, todas tendo por base esta distinção fundamental.
As análises que se seguem referem-se justamente à multiplicidade de sentidos que um chiste, uma piada ou um
dito humorístico carrega consigo levando tanto o sujeito-autor quanto o sujeito-leitor à transgressão, à denegação, à

1120
exploração de saberes segregados dos discursos convencionais. O humor é produzido a partir do desvelamento desses
saberes trazidos à tona por um sujeito mais atento e pronto a transformar um fato banal do dia-a-dia em acontecimento
discursivo através de um gesto de leitura diferenciado. Portanto, o humorista, ou aquele que faz humor, não é nada mais
que um sujeito-leitor cumprindo a sua função ao realizar um gesto de interpretação.
*CAR: ### tu conhece [: conheces] uma piada pesada?
*INV: se eu conheço uma piada pesada?
*CAR: é.
*INV: ah@i não sei depende do que tu chama [: chamas] de pesada /.
*CAR: não [!] tem que dizer sim ou não tu conhece [: conheces] uma [/] uma piada
pesada?
*INV: acho que conheço sim conheço.
*CAR: um elefante em cima de uma formiguinha.
*INV: [=! riso] (es)tá+bom@i!
O efeito de sentido de um discurso que provoca comicidade, como neste chiste, é a participação significativa da
entrevistadora para o acontecimento humorístico introduzido pelo sujeito-criança. Houve uma interação ou ‘jogo de
formações imaginárias’ a partir da pergunta que desencadeia todo o efeito de sentido do chiste. Piada pesada, tendo-se por
pré-construído todo um imaginário de sujeito-adulto, introduz a imagem de um discurso com vocabulário de baixo calão e
não próprio de um sujeito-criança e para um sujeito-criança. Por essa razão, o sujeito-adulto entrevistadora hesita ao
responder a pergunta do sujeito-criança Carmela, que retifica a sua questão, mostrando saber lidar com o suposto
imaginário do sujeito-adulto. Neste fato é que reside o efeito de humor do chiste proposto pelo sujeito-criança. É
interessante verificar-se que a nomenclatura sujeito-narrador não foi utilizada na análise do chiste citado acima. Por quê?
Não está no lugar (ou momento) reservado para o relato ficcional? Sim, está. No entanto, não é um relato, somente, ficção.
Conforme o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2004), relato é ato ou efeito de relatar, expor por escrito ou
oralmente (fato, acontecimento); narração. Se fosse uma piada, como as outras que seguem, poder-se-ia dizer que é uma
narração, pois geralmente baseiam-se em uma história com final cômico. No entanto, o chiste, em especial este
apresentado pelo sujeito-criança Carmela, não é baseado em história alguma com final cômico. Ele é uma interação que,
para que acontecesse de fato, precisou da colaboração efetiva do interlocutor, inclusive em relação aos efeitos não-
discursivos (ou paralinguísticos) provocados no interlocutor (riso e entonação exclamativa). No mesmo dicionário,
encontramos interação significando ação recíproca. O que ocorre é justamente uma ação de reciprocidade, em que existe
uma dependência em relação ao que é dito entre os interlocutores, isto é, dependendo da resposta de um é que se constrói
a fala seguinte do outro. No chiste, o efeito de humor é construído pela interferência direta dos interlocutores no discurso.
Esse discurso continua sendo de ficção e contando com elementos de subjetividade, porém não é constituído pelo processo
de ‘simulação-presentificação’ de PÊCHEUX (1975/1995). Seria possível, até mesmo, chamarmos o chiste de ‘pseudo-
ficção’, pois o sujeito-criança não precisa de um sujeito com função de mediador e de organizador para o seu discurso, ele
realiza essas funções sem precisar do simulacro sujeito-narrador para isso.
*CAM: <era uma> [>] vez dois irmão-0s né@i um que chamava Calaboca
e outro Respeito o [>] +/.
*CAM: o [/] o Respeito foi no banheiro daí o Calaboca ficou ali na rua daí
o guarda veio disse +"/.
*CAM: +" como é que é o teu nome?
*CAM: +" Calaboca.
*CAM: +" como é que é o teu nome?
*CAM: +" Calaboca.
*CAM: +" como é que é o teu nome?
*CAM: +" Calaboca.
*CAM: +" cadê o respeito?

1121
*CAM: +" (es)tá no banheiro.

No desenrolar do feito humorístico, há a atribuição de sentido diversa da ordinária, isto é, este feito realmente
acontece porque houve um desvio no sentido atribuído à fala de um pelo outro. O equívoco foi o responsável pelo efeito de
comicidade. Enquanto uma personagem referiu-se a outra personagem de nome não convencional (e propositadamente
proposto pelo sujeito-narrador), houve o desvio de sentido na recepção da outra personagem no momento da resposta à
pergunta anteriormente feita por ela mesma. Os falantes compartilhavam de um mesmo ‘saber’, por isso a quebra das
regras do jogo teve o efeito desejado pelo sujeito falante. O nome ‘estranho’ foi diretamente relacionado a um imaginário
desrespeitoso, de má conduta e imediatamente repreendido por uma personagem com autoridade para tal: um guarda,
profissional que tem como uma de suas principais funções a repreensão e a punição aos maus feitos. O guarda ainda pode
ser visto como a censura presente no imaginário infantil. Ele é a presença bem atuante do discurso autoritário e irreversível
no meio do discurso lúdico, da exterioridade no discurso do sujeito-criança.
*CAR: era uma vez uns dois meninos que se chamavam Respeito e Puta
Merda um dia o Puta Merda foi [/] foi no banheiro daí [/] daí uma
mulher fez uma entrevista com um menino né@i que era o Respeito
<daí ela perguntou assim ó> [//] daí ele foi perguntar pra ela+/.
%com: fim da gravação no lado A da fita cassete, mas continua a filmagem
até a retomada feita pela entrevistadora na fita cassete.
*CAR: +^ daí de repente ãhn@i ela ouviu um barulho e levou um susto e
disse assim +"/.
*CAR: +" puta merda [=! barulho e riso] +/.
%com: barulho proveniente do término da fita cassete.
*CAR: vou te contar essa parte.
*INV: (es)pera aí.
*CAR: # daí ela +...
%com: a gravação recomeça.
*INV: ++ daí a mulher ouviu um barulho e disse assim +"/.
*INV: +" puta merda.
*INV: daí [>] +...
*CAR: ++ daí [<] a mulher ãhn@i ouviu um barulho e levou um susto +"/.
*CAR: uh@i bah@d que puta merda!
*CAR: daí o Respeito disse assim +"/.
*CAR: +" (es)tá no banheiro.
*CAR: daí a mulher disse assim +"/.
*CAR: +" o que +"/.
*CAR: +" (es)tá no banheiro.
*CAR: daí ela perguntou assim ó +"/.
*CAR: +" como é que é <o Pu> [//] o Puta Merda no banheiro?
*CAR: daí ela disse assim ó +"/.
*CAR: +" tem mais respeito.
*CAR: daí +"/.
*CAR: +" já (es)tou indo +"/.
*CAR: +" tem mais respeito [!] +"/.
*CAR: +" já (es)tou indo.
*CAR: daí ele (es)tava indo embora daí a mulher deu a entrevista com o Puta
Merda daí ela disse assim +"/.
*CAR: +" como é o teu nome +"/.
*CAR: +" Puta Merda +"/.
*CAR: +" cadê@d o respeito?
*CAR: +" foi embora.
*INV: [=! riso] jóia (es)tá ótimo.

1122
A piada contada pelo sujeito-criança Carmela é uma outra versão da piada do Calaboca e Respeito do sujeito-
criança Camila. Afora as diversas interferências com relação à gravação e à filmagem da entrevista, a história pretende ter
um significado semelhante e um final bastante parecido à piada contada duas vezes pelo sujeito-criança Camila. Eram dois
meninos (sem o elo familiar que havia nas versões anteriores) que tinham ido até um banheiro e, enquanto um deles (o
Respeito nas primeiras versões e o Puta Merda nesta) entrava, o outro aguardava do lado de fora. Aquele que espera do
lado de fora (nas primeiras versões, o Calaboca; nesta, o Respeito) é interceptado por uma senhora que lhe pergunta algo e
é surpreendida pela resposta. As versões do sujeito-criança Camila são mais claras ao narrar esse diálogo, a senhora
pergunta somente seu nome (que é Calaboca!). Nesta versão, o sujeito-narrador retoma várias vezes o seu dizer, mudando,
inclusive, a ordem dos acontecimentos. Por fim, esse sujeito chega a um fato gerador da trama toda (o barulho que assusta
e provoca a exclamação!). Nesta versão, o acontecimento que desencadeia a narrativa não é uma pergunta, e sim, um
barulho seguido de uma pergunta, que acontece depois da fala do menino que estava do lado de fora. O teor ou o
significado das falas desse menino assemelha-se ao das versões anteriores do outro sujeito-criança, isto é, informa que há
outro menino no banheiro através de um turno de fala polissêmico, a partir do qual ele produz uma imagem que diverge da
imagem formada pela senhora (daí o feito cômico!). Ao final desta versão, há um prolongamento que faz surgir outro sujeito-
personagem além do Respeito (menino do lado de fora do banheiro) e da senhora, o Puta Merda. Ele é o menino que sai do
banheiro e não encontra mais o amigo, só aquela amável (!) senhora. Então é questionado de forma parecida às outras
versões deste arquivo, ao que ele responde também de forma semelhante, só acrescentando que o Respeito, o outro
menino, já tinha ido embora.
Conclusão:
Quanto às recontagens de piadas e chistes, o foco discursivo recaiu sobre os interlocutores e seus gestos de
interpretação e leitura, isto é, de recepção e interação com o sujeito-narrador (nas piadas), com o sujeito-criança
diretamente (nos chistes e adivinhações) e com o sujeito-adulto (na posição de entrevistador e função de ouvinte). A
importância do equívoco para se estabelecer uma ruptura com o pré-estabelecido nessas entrevistas, através das
recontagens de feitos humorísticos no espaço reservado a relatos ficcionais, foi fundamental, ou melhor, constitutiva. Nesta
parte, o equívoco não só é constitutivo do efeito de sentido do discurso, mas também é a ‘alma’ do humor. Se o equívoco
não fosse bastante evidente e distante da leitura de mundo do interlocutor, não haveria efeito de sentido nem humor muito
menos. Se não houvesse efeito de sentido, não haveria discurso. Se não houvesse discurso, não haveria sujeito. Se não
houvesse sujeito, não haveria sentido. E o sentido? Ele é circular, presente e condicional. Só há discurso, sujeito e tudo o
mais se existe sentido. Ele é o condutor do fio discursivo que não possui nem início nem fim, está (simplesmente!).
O sujeito produtor de sentido, aqui, foi aquele que assumiu uma posição ao constituir-se no discurso, que assinou
a sua produção como sua, que suspendeu a lógica e o senso comum para instaurar o novo, que compartilhou um saber.
É ele, o sujeito-criança, o responsável pelo amadurecimento linguístico e discursivo do sujeito-adulto; é ele
também que inicia os processos diferenciados de leitura que, mais tarde, já enquanto sujeito-adulto, irão determinar o seu
posicionamento em uma FD e o seu discurso. É, enquanto sujeito-criança, que o sujeito desenvolve uma leitura de mundo
voltada para o outro, aquele que sempre estará presente no discurso da recepção e da produção, o outro constitutivo de
todo discurso, o outro materializado no equívoco. A instauração de novos sentidos no discurso relatado infantil, portanto, é
inevitável, confirmando a hipótese de este discurso ser fortemente polissêmico, e não, parafrástico como um discurso
relatado utopicamente seria.

1123
Referências:
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communiste adressé aux chrétiens. Langages nº62, juin 1981.

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VERÓN, E. A produção do sentido, São Paulo: Cultrix, 1980.

Ana Cristina Opitz é licenciada em Letras Português/Latim pela UFRGS (1996); Mestre em Estudos da Linguagem, área de
Teorias do Texto e do Discurso pela UFRGS (1999); professora concursada no Município de Porto Alegre (desde 2000). Foi
professora adjunta na Graduação da UCS (2003-2005) e professora horista no Pós-graduação das Faculdades CESUCA
(2007).

1124
A representação da mulher na crônica de Chico Buarque

PACHECO, Siomara Ferrite Pereira


(PG-PUC/UNIP/FMU)

Este trabalho situa-se na área de Análise Crítica do Discurso com vertente sócio-cognitiva e tem por tema a
representação da mulher brasileira em texto do tipo crônica de Chico Buarque de Hollanda.
Para van Dijk (1997), a sociedade define-se por um conjunto de grupos sociais, os quais se constituem pela
afinidade de objetivos, interesses e atitudes. São estes que guiarão as mentes dos indivíduos para a projeção de pontos de
vista em relação a fatos no mundo.
Essas representações mentais são crenças e se investem de valores tanto culturais quanto ideológicos,
constituindo as cognições que caracterizam os grupos sociais, denominando-se marcos de cognição social.
Para Silveira (2004), cultura define-se por um conjunto de conhecimentos avaliativos transmitidos no e pelo
discurso de forma a participar da memória social enquanto marco de cognições sociais de grupos sociais específicos.
Os valores culturais se instauram como normas que guiam o comportamento das pessoas, de forma a construir a
cada momento novas significações.
Já a ideologia, segundo a autora, corresponde aos valores impostos por uma classe de poder e todo valor
ideológico objetiva a discriminação de pessoas, produzindo-se o preconceito.
Quanto aos textos opinativos, do gênero crônica, estes expressam em língua os valores culturais e ideológicos,
guiando a orientação de leitura do interlocutor. No caso específico deste trabalho, expressam os valores referentes à mulher
brasileira.
Assim, deve-se investigar como a cultura guia as representações expressas em língua, entendendo que o
discurso é uma prática social e, por isso, ele se define pelos sujeitos participantes, por suas ações e seus objetivos.
Nessa perspectiva, há de se considerar as relações EU e OUTRO no espaço interacional da comunicação, a fim
de verificar como se dá a alteridade, considerando que apesar dos indivíduos fazerem parte de grupos na sociedade,
podem contribuir para que haja mudança de práticas sociais e isso ocorre por meio dos textos que materializam e veiculam
o discurso.
Defende-se, neste trabalho, uma visão sócio-interacional, em que a crônica de Chico Buarque classifica-se como
do cotidiano, na qual a opinião é construída a partir de avaliações contidas nos marcos de cognição social e também por
avaliações pessoais da mulher e seus papeis sociais intra ou inter e extra grupos sociais.
Nesse sentido, como van Dijk (2008) postula, é preciso analisar a polaridade endogrupo-exogrupo, sobre a qual :

(...) o discurso ideológico dos membros de um grupo (endogrupo), por exemplo, tipicamente enfatizam,
de várias maneiras discursivas, as características positivas de Nosso próprio grupo e seus membros, e
as (supostas) características negativas dos Outros, o grupo de fora (exogrupo). (p.14)

Tratar das representações, em língua, da mulher, propiciará um melhor conhecimento de como ela é representada
na estrutura social de diferentes grupos sociais brasileiros. Dessa forma, acredita-se que a atribuição de valores positivos e
negativos na construção da representação do gênero feminino propiciará, também, caracterizar papeis sociais identitários
específicos de cada grupo social que estão em constante conflito entre si devido às suas cognições sociais e, ainda, valores
culturais e ideológicos extragrupais que compõem a representação da mulher em nossa sociedade.

1125
Nessa perspectiva, tem-se por objetivo geral analisar as formas de representação da mulher brasileira enunciadas
nos textos musicais do autor. Objetiva-se, neste texto, especificamente: 1) examinar a construção da opinião sobre a mulher
brasileira, implícita na crônica do quotidiano brasileiro, produzida por Chico Buarque e 2) averiguar qual foi a representação
construída sobre a mulher no(s) texto(s) selecionado(s).
O material selecionado é referente à expressão em língua da avaliação do que se representa no discurso,
elaborada por Chico Buarque. Os resultados obtidos indicam que as estratégias na construção de textos opinativos revelam
a polaridade entre o ponto de vista do cronista e os marcos de cognição social do leitor, em que aquele parte destes e os
focaliza de um ponto de vista que os avaliem.
A crônica trata dos marcos de cognição social e estes são construídos a partir do ponto de vista projetado para
construir representações. O cronista avalia o que contém o(s) marco(s). Daí a importância de se compreender o conceito de
representação, que neste texto, fundamenta-se na perspectiva da Psicologia Social.
De acordo com Moscovici (2009) as nossas representações estão sempre vinculadas ao contexto social do qual
fazemos parte, portanto, como o autor afirma, em relação ao mundo social que nos cerca, nós sempre o veremos com base
em nossas representações, ou seja:

Quando contemplamos esses indivíduos e objetos, nossa predisposição genética herdada, as imagens
e hábitos que nós já aprendemos, as suas recordações que nós preservamos e nossas categorias
culturais, tudo isso se junta para fazê-las tais como a vemos.(Moscovici, 2009: 33)

Moscovici considera o pensamento um ambiente (enquanto atmosfera social e cultural) e, nessa perspectiva,
procura descrever como as representações intervêm em nossa atividade cognitiva e até que ponto elas são independentes
dela ou até que ponto a determina.
Partindo do pressuposto de que em cada ambiente existe certa quantidade de autonomia ou de condicionamento,
o autor propõe duas funções básicas para as representações: a de que elas convencionalizam os objetos, pessoas ou
acontecimentos e a de que as representações são prescritivas, isto é, elas se impõem sobre nós de modo irresistível.
Nas relações sócio-interacionais, as representações estão implicadas e estas têm origem coletiva, o que quer
dizer que elas nascem, circulam e/ou morrem na sociedade. É tarefa da Psicologia Social estudar essas representações e,
para tanto, na busca da resposta ao questionamento do que seja uma sociedade pensante, Moscovici propõe respondê-lo
por meio :
a) das circunstâncias em que os grupos se comunicam, tomam decisões e procuram tanto revelar
como esconder algo e
b) das suas ações e suas crenças, isto é, das suas ideologias, ciências e representações. (Moscovici,
2009:43)

A noção de representação, para o autor, tem origem nos estudos tanto de Piaget quanto de Vygotsky, que
estudaram o pensamento humano por meio da análise da aquisição da linguagem pela criança. Esses estudos foram
importantes, porque, para Moscovici,
O problema era compreender como os seres humanos se tornam seres racionais, como eles controlam
seu próprio comportamento e como eles se libertam da dependência do ambiente e da tradição (
Moscovici, 2009:285)

Desse modo, propõe estudar a representação enquanto fenômeno e não simplesmente como conceito. E, para
isso, há duas qualificações importantes para o conhecimento e a crença: primeiro, ver as representações como uma
maneira específica de compreender e comunicar o que o indivíduo já sabe, havendo duas faces - a icônica (ligada aos
fatos) e a simbólica (que expressa a abstração dos fatos); outro aspecto importante da representação são suas

1126
estruturas dinâmicas que operam em um conjunto de relações e de comportamentos que surgem e
desaparecem, junto com as representações.(Moscovici, 2009:47)

Com o objetivo de descrever as representações coletivas, que ele prefere denominar representações sociais,
Moscovici faz distinção entre “universo consensual” e universo reificado”. No primeiro, ele afirma que o ser humano é a
medida de todas as coisas.Já o segundo caracteriza-se de forma homogênea, pois a sociedade transforma-se em um
sistema de entidades sólidas, básicas, invariáveis, as quais são indiferentes às individualidades e não têm identidade.
Para que se possa definir as representações, o autor defende a análise do triângulo sujeito-outro-objeto, segundo
ele, único esquema capaz de explicar e sistematizar os processos de interação. Assim, consideramos a oposição entre
“nós” e “eles”, a qual expressa a distância que separa o lugar social, no qual nos sentimos incluídos, de um lugar dado,
indeterminado ou impessoal.
Segundo Moscovici,
Tais categorias de universos consensuais e reificados são próprios de nossa cultura. Em um universo
consensual, a sociedade é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres, cada um com
possibilidade de falar em nome do grupo e sob seu auspício(...)Em longo prazo, a conversação (os
discursos) cria nós de estabilidade e recorrência, uma base comum de significância entre seus
praticantes. As regras dessa arte mantêm todo um complexo de ambiguidades e convenções, sem o
qual a vida social não poderia existir (Mosvovici, 2009: 51)

Nessa relação interacional, os sujeitos se definem de acordo com as representações, que são da natureza do
universo consensual, ou seja, nós nos dizemos, por exemplo, cristãos, homens, mulheres etc. de acordo com o consenso, o
comportamento adequado para o grupo, que pressupõe tanto atitudes quanto formas linguísticas de comunicação, com o
qual nos identificamos. O consensual é o lugar seguro, o local de confirmação de nossas crenças e valores.
Para explicar isso, o autor introduz os conceitos de familiar e não-familiar, defendendo que a dinâmica das
relações é uma dinâmica de familiarização. Desse modo, a Psicologia Social faz o movimento contrário a outras ciências,
uma vez que busca a transformação em representações comuns do que se consideram representações científicas.
É nesse contexto que, de acordo com esse ponto de vista, nós buscamos familiarizar o que não é familiar.
Segundo o autor, o que motiva a elaboração de representações sociais é justamente a tentativa de se construir um elo entre
o estranho e o familiar. Na busca de explicação para uma ideia ou percepção estranhas, nós a ancoramos em
representações sociais existentes e nesse movimento ela acaba se modificando.
Para tornar familiar o que é não-familiar, Moscovici defende que há dois mecanismos básicos de processamento
cognitivo: a ancoragem e a objetivação. No primeiro, nós procuramos comparar algo que nos parece estranho a um
paradigma de uma categoria que pensamos ser apropriada, buscando reajustá-lo para que se enquadre nessa categoria. Já
o segundo mecanismo tem como consequência a concretização do que foi familiarizado, fazendo com que se torne real.
Ancorar implica, pois, classificar e categorizar um objeto, um ser, um fato. Classificar é comparar algo a um
conjunto de atitudes, de regras que estipulam o padrão de comportamento do grupo que compõe a classe. Categorizar
significa selecionar um dos paradigmas que temos arquivados na memória e relacionar o objeto a ser classificado de modo
positivo ou negativo.
De acordo com Moscovici (2009:63-65):
(...)nós classificamos e julgamos as pessoas e coisas comparando-os com um
protótipo(...) A característica se torna, como se realmente fosse, co-extensiva a todos os membros
dessa categoria. Quando é positiva, nós registramos nossa aceitação; quando é negativa, nossa
rejeição(...)

1127
Portanto, para o autor, a teoria das representações exclui a ideia de pensamento ou percepção que não tenha
ancoragem e, ainda, não admite o sistema de classificação e nomeação apenas como meios de graduar e rotular pessoas
ou objetos, mas como forma de integrá-los aos modelos que temos representados.
O processo de objetivação é mais atuante que o de ancoragem, pois une a ideia de não-familiaridade com a de
realidade. Segundo o autor
(...) objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito
em uma imagem. Comparar é já representar, encher o que está naturalmente vazio, com substância
(...) (Moscovici,2009:72)

O autor ressalta, ainda, a importância da linguagem na concretização de nossas representações, defendendo o


ponto de vista de que a língua é um instrumento utilizado por nós para criar as coisas, uma vez que as palavras não apenas
as representam mas as criam e as investem com suas próprias características.
Segundo Moscovici,
(...)Toda verdade auto-evidente, toda taxonomia, toda referência dentro do mundo, representa um
conjunto cristalizado de significâncias e tacitamente aceita nomes; seu silêncio é precisamente o que
garante sua importante função representativa: expressar primeiro a imagem e depois o conceito,
como realidade. (Moscovici, 2009: 77)

A ancoragem e objetivação estão relacionadas à memória. O processo de ancoragem implica em resgatar da


memória objetos, pessoas e fatos que são classificados de acordo com um tipo e rotulados com um nome. Já a objetivação
é um movimento contrário, de dentro para fora, pelo qual conceitos e imagens são associados e reproduzidos no mundo
exterior, para tornar as coisas conhecidas a partir do que já era conhecido.
Moscovici (2009:209) define, enfim, representação social como “certo modelo recorrente e compreensivo de
imagens, crenças e comportamentos simbólicos”
O autor acrescenta que
(...) as representações sociais se apresentam como uma “rede” de ideias, metáforas e
imagens, mais ou menos interligadas livremente e, por isso, mais móveis e fluidas que teorias
(...) as representações sociais em movimento se assemelham mais estreitamente ao
dinheiro que à linguagem (...)
Do mesmo modo que o dinheiro, sob outros aspectos, as representações são sociais, pelo fato
de serem um fato psicológico, de três maneiras: elas possuem um aspecto impessoal, no
sentido de pertencer a todos; elas são a representação e outros, pertencentes a outras
pessoas ou a outro grupo; e elas são uma representação pessoal, percebida afetivamente
como pertencente ao ego.(Moscovici, 2009: 211)

Nós definimos algo de acordo com a focalização pela qual a definimos. Por exemplo, se nos for solicitada a
descrição de uma pessoa, podemos fazê-lo por sua aparência física, ou por ser caráter, ou por suas qualidades
profissionais, o que torna impossível reduzir esse todo a uma única caracterização.
Para Moscovici,
Quando somos perguntados “com que objetos é construído nosso mundo?” deveríamos, por
nossa vez, perguntar “dentro de que representação”(...) Isso significa que representações
compartilhadas, sua linguagem, penetram tão profundamente em todos os interstícios do que
nós chamamos realidade que podemos dizer que elas o
constituem.(Moscovici, 2009: 212)

A relevância maior na obra desse autor é o fato dele afirmar, assim como o faz os que se propõem a analisar
textos do ponto de vista da Análise Crítica do Discurso, que é pelo discurso que essas representações sociais circulam, e
são elas que possibilitam, por um lado, que se construam sistemas de pensamento e compreensão de ideias, por outro,
adotar visões consensuais de ações que permitem a continuidade da comunicação da ideia.

1128
De acordo com o autor
Representar significa (...) trazer presentes as coisas ausentes e apresentar coisas de tal modo
que satisfaçam as condições de uma coerência argumentativa, de uma racionalidade e da
integridade normativa do grupo (...) pois não há outros meios, com exceção do discurso e dos
sentidos que ele contém, pelos quais as pessoas e os grupos sejam capazes de se orientar e
se adaptar a tais coisas. (Moscovici, 2009:216)

É pela comunicação, pelo discurso, que o conhecimento se torna comum, ou seja, na relação sócio-interacional,
as ideias, as representações são filtradas por meio do discurso de outros, além das experiências vividas ou das
coletividades a que se pertence.
A perspectiva da Psicologia Social, pela Teoria dos Papeis e do Interacionismo Simbólico pressupõe a concepção
de EU na construção de significado na vida social. Segundo Goffmam (1985, apud Bazili,1998 ), há um sujeito que
representa papeis de acordo com a prática social em que esteja inserido.
Para a representação, Goffmam (1985, apud Bazili, 1998) parte do pressuposto de que se trata de

toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença
contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma
influência. (p.29)

Na perspectiva do Interacionismo Simbólico, segundo Bazilli ( 1998),


o conceito de “self” é de extrema importância para a compreensão da organização da vida
social. O “self”, para Mead, surge e se desenvolve no processo da experiência dos entendidos
e suas ações: portanto, no espaço de interações sociais. (p.55)

Entende-se por self, de acordo com essa teoria, como a consciência de si ou consciência auto-reflexiva. Nesse
sentido, ainda segundo Bazilli,
o processo envolvido na consciência auto-reflexiva não pode ser entendido como um
movimento do particular ao coletivo, e sim como o particular organizado a partir do coletivo. Ao
mesmo tempo em que o indivíduo é transformado, transforma o outro e a sociedade como um
todo. (p.62)

De acordo com essa teoria, o self surge no espaço de interação, em que o EU se reconhece como tal em relação
ao OUTRO. É uma relação dialética, na qual o EU é composto de uma identidade individual e de uma outra social, ambas
presentes. O self é constituído desse EU e do MIM. O primeiro relaciona-se ao que o indivíduo pensa de si e o MIM é o que
ele quer que os outros pensem dele.
Nessa perspectiva interacional, a interação do EU com o Mim pressupõe a existência de um NÓS. Trata-se do
grupo social em que o indivíduo se inclui por identificação.
Por isso, o grupo social define-se por indivíduos que se reúnem por terem objetivos, interesses e propósitos
comuns, a partir dos quais há identificação dos membros por terem um ponto de vista comum para focalizar o(s) fato(s) no
mundo e representá-lo(s) como forma de conhecimento.
Essa forma de conhecimento torna-se crença devido à focalização e é o conjunto de crenças que identifica o
grupo. Este constitui o que van Dijk denomina marcos de cognição social, os quais resultam da interação e são expressos
discursivamente.
Segundo a Teoria dos Papeis, a sociedade é constituída de grupos que se definem pelos papeis representados,
os quais podem se diferenciar de grupo para grupo e nestes, de indivíduo para indivíduo. O EU reconhece os papeis sociais
do grupo e na interação assume o que tem como objetivo representar de si, projetando uma imagem dessa consciência
auto-reflexiva, que chamamos de self.

1129
Para exemplificar o papel de ser “dominado” com valores ideológicos atribuídos positivamente pelo homem,
apresentam-se três textos de Chico Buarque, cuja leitura intertextual propicia a construção identitária da mulher como ser
submisso e subserviente ao homem dentro de casa.
Trata-se dos textos Com açúcar e com afeto, Quotidiano e Sem açúcar, que datam, respectivamente, de 1966,
1971 e 1975.

Com açúcar e com afeto. retrato pavor


Chico Buarque (1966) E abro os meus braços pra Todo dia ela faz tudo sempre
Com açúcar, com afeto, fiz você igual
seu doce predileto .............................. Me sacode as seis horas da
Pra você parar em casa, qual Cotidiano manhã
o quê! Chico Buarque (1971) Me sorri um sorriso pontual
Com seu terno mais bonito, Todo dia ela faz tudo sempre E me beija com a boca de
você sai, não acredito igual hortelã
Quando diz que não se Me sacode as seis horas da ......................................
atrasa manhã Sem Açúcar
Você diz que é um operário, Me sorri um sorriso pontual Chico Buarque (1975)
sai em busca do salário E me beija com a boca de Todo dia ele faz diferente
Pra poder me sustentar, qual hortelã Não sei se ele volta da rua
o quê! Todo dia ela diz que é pra eu Não sei se me traz um
No caminho da oficina, há me cuidar presente
um bar em cada esquina E essas coisas que diz toda Não sei se ele fica na sua
Pra você comemorar, sei lá o mulher Talvez ele chegue sentido
quê! Diz que está me esperando Quem sabe me cobre de
Sei que alguém vai sentar pro jantar beijos
junto, você vai puxar assunto E me beija com a boca de Ou nem me desmancha o
Discutindo futebol café vestido
E ficar olhando as saias de Todo dia eu só penso em Ou nem me adivinha os
quem vive pelas praias poder parar desejos
Coloridas pelo sol Meio dia eu só penso em
Vem a noite e mais um copo, dizer não Dia ímpar tem chocolate
sei que alegre ma non troppo Depois penso na vida pra Dia par eu vivo de brisa
Você vai querer cantar levar Dia útil ele me bate
Na caixinha um novo amigo E me calo com a boca de Dia santo ele me alisa
vai bater um samba antigo feijão Longe dele eu tremo de amor
Pra você rememorar Seis da tarde, como era de Na presença dele me calo
Quando a noite enfim lhe se esperar Eu de dia sou sua flor
cansa, você vem feito Ela pega e me espera no Eu de noite sou seu cavalo
criança portão
Pra chorar o meu perdão, Diz que está muito louca prá A cerveja dele é sagrada
qual o quê! beijar A vontade dele é a mais justa
Diz pra eu não ficar sentida, E me beija com a boca de A minha paixão é piada
diz que vai mudar de vida paixão A sua risada me assusta
Pra agradar meu coração Toda noite ela diz pra eu não Sua boca é um cadeado
E ao lhe ver assim cansado, me afastar E meu corpo é uma fogueira
maltrapilho e maltratado Meia-noite ela jura eterno Enquanto ele dorme pesado
Como vou me aborrecer? amor Eu rolo sozinha na esteira
Qual o quê! Me aperta pra eu quase
Logo vou esquentar seu sufocar
prato, dou um beijo em seu E me morde com a boca de

Os valores positivos são destacados por características que se apresentam no primeiro texto, como a de
dedicação ao lar, por exemplo, pois é ela quem cuida dos afazeres domésticos, não sai de casa para ganhar o
sustento, tarefa do homem. Além disso, ela perdoa todos os deslizes do homem, aceitando sua condição de servi-lo
incondicionalmente.
De acordo com uma perspectiva histórica, na primeira metade do século XX, a família passa a ter um
domínio público, apesar do desenvolvimento do privado, em termos de papeis representados por membros dessa
família. Nesse contexto, o homem representa o “pátrio poder”, ou seja, ele era considerado o chefe da família,

1130
imagem representada para e pela sociedade, ao passo que à mulher cabia o papel de obedecer e servir a esse
poder patriarcal.
Todavia, no espaço privado, isto é, dentro do lar, o poder era verdadeiramente exercido pela mulher, daí,
inclusive, herdarmos algumas expressões até hoje utilizada na sociedade como “patroa”, “rainha do lar”, entre
outros, que designam a mulher como quem controla esse espaço.
Nesse contexto, a avaliação positiva, do ponto de vista patriarcal, sobre a mulher é a de quem cuida do
bom andamento da rotina do lar, é aquela que, apesar da representação, no espaço público, de ser submissa ao
homem, no espaço privado é quem determina as regras sociais de comportamento.
De acordo com Prost (1992)

De fato, é de se perguntar se a divisão dos papeis masculino e feminino não acaba


outorgando o poder na esfera privada às mulheres(...) pode-se concordar com as
feministas que, na medida em que o importante era a vida pública, as mulheres
ficavam relegadas á vida doméstica; inversamente, pode-se salientar a importância
central dos valores domésticos nessa sociedade em que o indivíduo valia pela família
e o único êxito era familiar, para sustentar que as mulheres, na medida em que
controlavam a esfera doméstica, exerciam na verdade um poder decisivo. (Prost,
1992: 78)

Tais valores ancoram também os outros dois textos, entretanto há uma mudança no último, que constrói
a avaliação a partir das atitudes do homem. A mulher continua avaliada positivamente pela representação que faz
de si, de acordo com o “universo consensual” de Moscovici, mas o EU torna-se mais presente nesse caso, pois,
pela caracterização do homem, deixa implícita a oposição NÓS vs. OS OUTROS.
Embora o self continue sendo o da mulher submissa ao homem, esta, no último texto, manifesta um EU
em conflito com essa representação, pois ela avalia o homem negativamente (o que não ocorre nos outros dois
textos), tornando-o um ser desprezível, animalizado, e ela mostra-se uma mulher que tem desejos, distanciando-se
dessa completa submissão presente nos outros dois textos.
Ao se buscar o contexto social da época em que os textos foram escritos, deve-se lembrar de que no
Brasil passava-se por uma fase de grande censura devido à ditadura militar que reprimia a liberdade de expressão
e, como se sabe também, esta foi “driblada” por compositores como Chico Buarque, por construírem
discursivamente uma oposição à ideologia do governo.
Nesse contexto, a mulher começa a silenciar a sua voz por meio de movimentos que foram marcos na
história, como o movimento feminista, por exemplo, o que se encontra subjetivamente enunciado no último texto em
análise.
Entretanto, na música Mulheres de Atenas a mulher é representada positivamente pela sua capacidade de
resolver problemas e atuar dignamente na sociedade, como se pode observar no texto apresentado a seguir.

1131
Mulheres de Atenas
Chico Buarque (1976)
Composição: Chico Buarque

Mirem-se no exemplo Quase sempre voltam pros braços


Daquelas mulheres de Atenas De suas pequenas, Helenas
Vivem pros seus maridos Mirem-se no exemplo
Orgulho e raça de Atenas Daquelas mulheres de Atenas
Quando amadas se perfumam Geram pros seus maridos
Se banham com leite, se arrumam Os novos filhos de Atenas
Suas melenas Elas não têm gosto ou vontade
Quando fustigadas não choram Nem defeito, nem qualidade
Se ajoelham, pedem imploram Têm medo apenas
Mais duras penas, cadenas Não tem sonhos, só tem presságios
Mirem-se no exemplo O seu homem, mares, naufrágios
Daquelas mulheres de Atenas Lindas sirenas, morenas
Sofrem pros seus maridos Mirem-se no exemplo
Poder e força de Atenas Daquelas mulheres de Atenas
Quando eles embarcam soldados Temem por seus maridos
Elas tecem longos bordados Heróis e amantes de Atenas
Mil quarentenas As jovens viúvas marcadas
E quando eles voltam, sedentos E as gestantes abandonadas, não fazem
Querem arrancar, violentos cenas
Carícias plenas, obscenas Vestem-se de negro, se encolhem
Mirem-se no exemplo Se conformam e se recolhem
Daquelas mulheres de Atenas As suas novenas
Despem-se pros maridos Serenas
Bravos guerreiros de Atenas Mirem-se no exemplo
Quando eles se entopem de vinho Daquelas mulheres de Atenas
Costumam buscar um carinho Secam por seus maridos
De outras falenas Orgulho e raça de Atenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Em síntese, esta pesquisa busca analisar os papeis sociais femininos e verificar, sob o prisma feminino e
masculino, como as representações em língua são construídas. Os resultados obtidos são parciais e indicam que as
estratégias na construção de textos opinativos revelam a polaridade entre o ponto de vista do cronista e o(s)
marco(s) de cognição social(is) do leitor.
Conclui-se que os conhecimentos sociais caracterizam o tratamento do tema mulher brasileira de acordo
com os contextos sociais representados e estes variam com o(s) marco(s) de cognição social, o(s) qual(is) é(são)
retomado(s) para criar-se a relevância e produzir-se a avaliação, o que é feito pelo autor dos textos em análise.

1132
Referências:

BAZILI, Chirley... et al. Interacionismo simbólico e teoria dos papeis: uma aproximação para a psicologia social.São
Paulo: EDUC, 1998.

HOLLANDA, Chico Buarque de. (1944). Chico Buarque, letra e música: incluindo Gol de Letras de Humberto
Werneck e Carta ao Chico de Tom Jobim.São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MOSCOVICI, Serge. 6 ed. Representações sociais: investigações em psicologia social. Editado em inglês por
Gerard Duveen; trad. do inglês por Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

PROST, Antonie e CHARTIER, Gérard Vincent. História da vida privada, 5: da Primeira Guerra a nossos dias.
Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi da. “Implícitos culturais: ideologia e cultura em expressões lingüísticas do
Português Brasileiro” IN BASTOS, Neusa Barbosa (org.).Língua Portuguesa em calidoscópio. São Paulo: EDUC,
2004.

Van Dijk, Teun A. “El discurso y La reproduccion del racismo”. Racismo y analise critico de los médios. Trad. es.
Paidós. Barcelona, 1997.
______________HOFFNAGEL, Judith;FALCONE, Karina (org.) Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.

Mestre em Língua Portuguesa e doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, docente da
Universidade Paulista (UNIP), docente das Faculdades Unidas Metropolitanas (FMU), na área de Língua
Portuguesa. Membro-colaborador do grupo Núcleo de Pesquisas Português Língua Estrangeira (NUPPLE) do
Instituto de Pesquisas “Sedes Sapientiae” (IP) da PUC/SP.

e-mail: siomara.p@uol.com.br

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A polêmica como interincompreensão no discurso da
política acadêmica da UFPA

PANTOJA, Benedito José Brabo


(Universidade Federal do Pará)

INTRODUÇÃO

Existe uma idéia geral de que a universidade, como todo estabelecimento de ensino, é lugar de estudar e de lecionar.
Percebe-se, inclusive, en passant, que a noção de “estabelecimento de ensino”, ignora de per si os papeis da pesquisa e da
extensão, que ao lado do ensino, formam o tripé funcional imprescindível dessa instituição. Tal ideia é sintoma de apreensões
equivocadas acerca do que ela (a universidade) efetivamente representa, senão vejamos: em primeiro lugar, a atmosfera
universitária é muito mais densa do que os rarefeitos ares acadêmicos de um colégio. Neste, a pesquisa ainda é elementar, não
sendo incumbência primordial no ambiente escolar, desobrigando-se o colégio, portanto, do rigor científico, característica que
identifica o ambiente acadêmico. O mesmo vale para o caso da extensão. Em segundo lugar, seu papel avança para além até
mesmo do bem formado tripé. Isto porque, como no ambiente acadêmico circulam idéias bem “tenras”, acabadas de sair do
“forno”, existe uma vocação por transformações, por novos procedimentos a serem adotados. Desse modo, um outro
componente se apresenta: a política. Ela é uma espécie de “quarto elemento” presente no universo acadêmico. Grandes
políticos, que vão desde vereadores a presidentes da república, encontraram palco propício para o seu debut exatamente na
academia.
Este trabalho, com base em uma abordagem discursiva, ocupa-se em examinar o fenômeno da polêmica como
elemento de interincompreensão nos confrontos da política acadêmica da UFPA, com o suporte teórico principal que nos provê
Maingueneau (2005), buscando-se observar como se dá essa relação de interincompreensão entre as diferentes formações
discursivas (FD), e analisar os simulacros que cada sujeito constrói do seu interlocutor e de si mesmo.
A ideia de simulacro refere-se, no âmbito da Análise do Discurso, à imagem do outro que é projetada a partir da
perspectiva do enunciador, apresentando novas nuances em sua aparência. Ou seja, é uma nova apreensão, uma nova
imagem que surge a partir do discurso. Como se tratam de FD inseridas em formações ideológicas distintas e antagônicas, o
simulacro que se constrói do Outro será sempre negativo. Deleuze (2000, p. 260) diz que “os simulacros são (...) construídos a
partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais”. Aqui, a contextualização, obviamente, situa-se na
seara filosófica do pensador francês. Mesmo assim, no caso da polêmica, é precisamente esta ideia que transparece, pois a
imagem do Outro é projetada negativamente a partir da perspectiva do enunciador, apresentando outras nuances em sua
aparência:

A cada posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro,
traduzindo-os nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, esses
enunciados do outro só são “compreendidos” no interior do fechamento semântico do intérprete; para
constituir e preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro
como tal, mas somente com o simulacro que constrói dele. (MAINGUENEAU, 2005, p. 103).

Constituem o corpus utilizado para a análise desenvolvida neste trabalho, de um lado, notas das três entidades de
classe da Universidade Federal do Pará, quais sejam: o Diretório Central dos Estudantes – DCE, o Sindicato dos Trabalhadores
da UFPA – Sintufpa (que congrega os servidores técnico-administrativos) e a Associação dos Docentes da UFPA – Adufpa; e,

1134
de outro lado, notas da Administração Superior (AS). O período em que as notas foram produzidas coincide com a segunda
quinzena do mês de junho de 2007. Essas notas referem-se à tomada1 da Reitoria da UFPA pelos estudantes, que durou seis
dias, compreendendo o período de 14 a 20 de junho daquele ano.
As notas circulam por meio de panfletos, boletins, comunicados, sob o título de notas oficiais, notas de repúdio, notas
de esclarecimento, entre outros, e são distribuídas nos portões, em assembléias, nas salas de aula, em unidades
administrativas da UFPA, postadas na Intranet, divulgadas na imprensa e referenciadas em blogs e portais da imprensa,
assumindo um papel importante no dia-a-dia da comunidade universitária, haja vista que traduzem e fomentam a discussão
política que se desenvolve nos espaços de trabalho acadêmico e administrativo, acabando por se incorporar a esses ambientes,
perpassando as relações de trabalho e a própria condução das questões que precisam ser conjuntamente definidas.

1. O CONTEXTO TEÓRICO E METODOLÓGICO DA PESQUISA

Uma boa maneira de visualizarmos o contexto teórico mais específico de nosso percurso é atentarmos para a
introdução da obra de Maingueneau, “Gênese dos Discursos” (2005, p. 15-31). Na oportunidade, ele afirma que, ao nos
aproximarmos da perspectiva da AD francesa, o que se entende por discurso coincide com a noção de uma variedade de textos
que compõem um espaço de regularidades enunciativas. Essas regularidades são possíveis pelo fato de todo discurso estar
inscrito historicamente. Ao longo da introdução, ele tece diversas considerações a respeito do que tratará nos capítulos
seguintes, traçando, de forma esquemática, sete tópicos. Classificará esses tópicos como hipóteses, “cada uma das quais será
objeto de um capítulo do livro” (Ibidem, p. 20). Dessas hipóteses, destacamos as que se referem à “polêmica como
interincompreensão e a noção de simulacro”, bem como ao “sistema de restrições semânticas globais”, pois dizem respeito
diretamente aos nossos objetivos, conforme veremos mais adiante, muito embora nos sejam úteis, ainda, as hipóteses que
tratam sobre a prática discursiva e a competência interdiscursiva.

O corpus da pesquisa é formado por quatro notas das três entidades de classe da UFPA - pelos discentes, o Diretório
Central dos Estudantes (DCE); pelos professores, a Associação dos Docentes da UFPA (Adufpa); e pelos servidores técnico-
administrativos, o Sindicato dos Trabalhadores da UFPA (Sintufpa) - assim como por três notas oficiais da Administração
Superior, todas a respeito da tomada do prédio da Reitoria.
A princípio, a causa imediata da tomada do prédio da Reitoria estaria ligada à proibição, por parte da AS, do Forró do
Vadião, cuja medida ensejou protesto por parte dos estudantes, havendo um confronto com a segurança interna da UFPA e
com a Polícia Militar, que motivou, por fim, a efetiva tomada.

1.1. OBJETIVO GERAL:


Identificar os simulacros que se constroem na política acadêmica da Universidade Federal do Pará.

1.1.1 OBJETIVOS ESPECÍFICOS


I. Investigar o contexto da política acadêmica
II.Resgatar o vocabulário constitutivo da materialidade discursiva, observando as ações, referidas por meio
de verbos e nomes, e as caracterizações, efetuadas por meio de adjetivações e nomes.

2. PRÁTICA DISCURSIVA, COMPETÊNCIA INTERDISCURSIVA E SISTEMA DE RESTRIÇÕES SEMÂNTICAS GLOBAIS

1 Ao longo das notas, as entidades de classe falam em “ocupação”, enquanto a AS classifica, preferencialmente, como “invasão”. Nós
chamaremos de “tomada”. Reconhecemos que, em “tomada”, do mesmo modo que em “ocupação” e “invasão”, há um posicionamento
enunciativo, que, no entanto, não iremos discutir; isso porque a opção por esse termo tem como propósito tão somente diferenciar
nosso escrito em relação aos das partes envolvidas, no que diz respeito à maneira de referenciar o mesmo evento.

1135
A noção de prática discursiva, tratada na quinta hipótese de Maingueneau (2005, p.23), deve ser entendida como a
possibilidade, mediante o sistema de restrições semânticas, de os textos se tornarem “comensuráveis com a rede institucional
de um grupo”. Isto quer dizer que o discurso encontra-se entrelaçado com uma comunidade discursiva; a prática discursiva
consiste em que, seja qual for a formação discursiva, ela não tem como estar desligada de uma comunidade discursiva.
Portanto, ao falarmos em prática discursiva, estamos tratando de uma condição em que

uma formação discursiva é inseparável das comunidades discursivas que a produzem e a difundem; a
prática discursiva é então pensada ao mesmo tempo como conteúdo, como modo de organização dos
homens e como rede específica de circulação dos enunciados. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU 2004, p.
396).

A ideia de formação discursiva será incorporada à Análise do Discurso Francesa, ainda em seu início, por Pêcheux,
que se ancora no quadro teórico do marxismo althusseriano para desenvolver sua teoria. Para ele, toda ação social, incluindo-
se, aqui, o discurso, pressupõe a existência de

posições políticas e ideológicas, que não são feitas de indivíduos, mas que se organizam em formações
que mantêm entre si relações de antagonismo, de aliança ou de dominação. Essas formações ideológicas
incluem uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito.
(HAROCHE, HENRY E PÊCHEUX, 1971, p. 102 apud CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 241).

É bem verdade que, nessa primeira fase da AD, Pêcheux ainda estabelecia uma relação direta, uma correspondência
biunívoca, em que uma formação discursiva se constituía em função de uma formação ideológica. Desse modo, consagrava-se
a noção de “assujeitamento”, isto é, os sujeitos envolvidos numa situação discursiva encontravam-se assujeitados à formação
social da qual faziam parte. Ocorria, assim, o que se convencionou chamar de “apagamento do sujeito”.
Por outro lado, Foucault, ao desenvolver a noção de formação discursiva, ao contrário de Pêcheux, evita tratar do
caráter ideológico da FD, optando por falar em enunciados. A esse respeito ele é bastante claro e incisivo, em tópico em que
trata sobre as FD: “Tentei descrever relações entre enunciados.” (1987, p. 35). Ainda que, ao tratar sobre a noção de discurso,
ele contemple a ideia de “dizeres” e “fazeres”, correspondente às formações discursivas (FD) e comunidades discursivas (CD),
muito caras aos estudos da AD, ele realmente passa ao largo de considerações à luz de implicações ideológicas, preferindo
falar em “saberes/poderes”, como observa Granjeiro (2007, p. 37)

Foucault concebe as formações discursivas não em termos de ideologia, termo profundamente marcado
historicamente pelo viés marxista de posições no tocante à luta de classes, mas em termos de saberes/
poderes.

Eis como ele concebe as formações discursivas, citando a escolha de uma “descrição entre enunciados”, como meio
para poder identificá-las:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de
dispersão, e, no caso em que, entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas
temáticas, se puder definir uma regularidade (...), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva (FOUCAULT, 1987, p. 43).

É inquestionável a enorme contribuição de Foucault para a AD e, em particular, para os estudos da prática discursiva,
termo este que ele próprio introduz (Cf. MAINGUENEAU, 2005, p. 143). Basta ver que o caráter, por ele concebido, de
formação discursiva, acima referenciado, compreendendo uma “regularidade entre objetos, tipos de enunciação, conceitos e
escolhas temáticas”, irá aparecer em Maingueneau, quando este trata sobre os planos discursivos do Sistema de Restrições
Semânticas Globais.

1136
O sistema de restrições semânticas proporciona aos textos estarem, em certa medida, de acordo com a “rede
institucional” de um “grupo”, como já mencionamos acima. Afinal, em que consiste esse “sistema de restrições”? Ele deve ser
entendido como um modelo daquilo que Maingueneau (2005, p. 49) chamará de competência discursiva, que é parte
constitutiva desse sistema. Assim, mediante essa competência, os sujeitos inserem-se em determinadas formações discursivas,
podendo, eventualmente, alternar para outras FD. Existe uma semântica global que exerce uma força coercitiva sobre o
discurso, cujo caráter assim se resume:

O caráter “global” dessa semântica se manifesta pelo fato de que ela restringe simultaneamente o conjunto
dos “planos” discursivos: tanto o vocabulário quanto os temas tratados, a intertextualidade ou as instâncias
de enunciação. (Ibidem, p. 22)

Os planos discursivos são os responsáveis, portanto, pelas características com as quais o texto se materializa,
apontando para um determinado perfil de como o discurso se configura, de como ocorrem as operações semânticas. Nesta
pesquisa, conforme já sinalizado no segundo objetivo específico, nos ocuparemos do vocabulário, considerado por
Maingueneau, na terceira hipótese, como um dos planos discursivos regidos pelo “sistema de restrições semânticas globais”.
Investigar como se apresenta o vocabulário concernente às ações e caracterizações nas notas é contemplar a imbricação
semântica existente entre as entidades representativas e a AS, em relação ao seu discurso, o que constitui a prática discursiva,
tratada na quinta hipótese

2. A POLÊMICA COMO INTERINCOMPREENSÃO


Soando, a princípio, um tanto contraditória aos ouvidos do leigo, ainda recém-iniciado nos “rituais” da AD, uma vez
que a presença do prefixo inter pode denotar uma relação de reciprocidade, a palavra interincompreensão acaba por semear
uma certa interrogação, uma vez que inter é secundado por outro prefixo, agora indicando negação: in. Meditando mais
profundamente sobre o termo, conclui-se que se trata de uma “incompreensão partilhada”. Essa interincompreensão decorre
da presença de posições discursivas concorrentes, que rejeitam o discurso do Outro e reivindicam o seu próprio:

Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um lado, os
semas “positivos”, reivindicados; de outro, os semas “negativos”, rejeitados. (MAINGUENEAU, 2005, p.
103).

Cria-se, deste modo, um diálogo de surdos como chama Maingueneau, para quem “a interincompreensão se
manifesta no fato de que cada discurso é delimitado por uma grade semântica que, em um mesmo movimento, funda o
desentendimento recíproco” (MAINGUENEAU, 2005, p. 103).
Para que se configure a interincompreensão, é necessário que haja uma base comum para que as próprias
diferenças sejam construídas. É o que ocorre nas formações discursivas produzidas no embate entre católicos e evangélicos.
Ainda que exista uma oposição radical entre os pontos de vista que defendem, ambos fundamentam sua discussão em bases
que lhes são comuns, como a Bíblia, por exemplo; ou entre socialistas e republicanos, cujos postulados que são polemizados
baseiam-se em pontos contemplados nos estudos da ciência política, na prática política e na visão da história, que são do
domínio do conhecimento de ambos. Entretanto, não é o que ocorre, em tese, se por acaso a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) e o Conselho Federal de Engenharia (CFE) resolverem discutir a constitucionalidade ou não de uma lei ordinária; ou se
entrarem em debate sobre o cálculo para a melhor mistura na confecção de pilares de concreto que necessitem sustentar
cinquenta toneladas de peso por unidade.

4. ANÁLISE DA PESQUISA

1137
Conforme já referenciado anteriormente, a presente análise está assentada sobre o discurso da política acadêmica
na Universidade Federal do Pará (UFPA). Em relação ao campo discursivo, portanto, e já utilizando a classificação descrita
por Maingueneau (1997, p. 116-118) a respeito das relações discursivas, o discurso aqui contemplado é o político. Dentro
desse campo, estamos investigando o espaço discursivo, dividido por quatro comunidades discursivas, a saber: a Associação
dos Docentes da UFPA (Adufpa), o Sindicato dos Trabalhadores da UFPA – Sintufpa, atualmente Sindicato dos
Trabalhadores das Instituições Federais de Ensino Superior no Estado do Pará (Sinditfes), o Diretório Central dos Estudantes
(DCE) (as três principais entidades de classe da comunidade universitária da UFPA) e a Administração Superior da UFPA,
cujos discursos, atravessados por diferentes formações discursivas, são materializados em notas. Dessas notas retiramos
excertos buscando investigar o vocabulário como plano discursivo arrolado no sistema de restrições semânticas globais.

4.1. O CONTEXTO POLÍTICO-IDEOLÓGICO NO CENÁRIO DA UFPA

Em linhas gerais, as diretorias que estavam à frente das gestões de Adufpa, Sintufpa e DCE à época da produção
das notas possuíam uma convergência muito grande em relação a um ideário político de esquerda, de certa forma radical,
inspirado, em muito, nos ideais socialistas, concretizando-se, na prática, numa afinidade a partidos socialistas, como o PSTU
(Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). É bem verdade que, das três, a
Adufpa evitava demonstrar um posicionamento partidário mais formal. À frente da AS estava o reitor Alex Fiúza de Mello, que
possuía orientação política moderada, de centro.

4.2. A organização do vocabulário na materialidade discursiva

A partir de agora, nos detemos em dois perfis semânticos, a fim de verificar os semas positivos e negativos que são
gerados: 1. As ações referidas por meio de verbos e nomes; 2. As caracterizações, por meio de adjetivações e nomes.

4.2.1 As ações por meio de verbos e nomes

Começamos com um par de palavras muito representativo no episódio da tomada da reitoria, que é exatamente
invasão versus ocupação. Tais vocábulos serão utilizados para nominar a tomada da reitoria. “Invasão” prepondera nas
notas da AS; “ocupação” reina nas notas das entidades, de tal maneira que, já no título de uma de suas notas, o DCE já
manifesta a sua preferência:

Nota pública da ocupação da Reitoria.

Agora, uma nota da AS:

A invasão da Reitoria por um determinado grupo do movimento estudantil (...) é uma ação de natureza
estritamente política, orientada por um partido político, e que tem impacto nacional.

A opção por um ou outro termo está relacionada ao jogo de semas que são construídos, senão vejamos: “ocupação” é
um termo que expressa a reivindicação de um sema positivo para as representações das três entidades, no sentido de
“conquista” de um espaço que leve a garantir um resultado positivo para os seus objetivos. Para as três entidades, em
particular, o DCE, a “ocupação” é um emblema de destacada importância para a conquista de suas reivindicações. Fica
construído, assim, o sema positivo de que o DCE organizou a ocupação da Reitoria porque é uma agremiação de luta,
defendendo a causa educacional e, em particular, a discente, atuando em perfeita sintonia com a vocação histórica do

1138
movimento estudantil como um todo, uma vez que sua decisão em ocupar o prédio mor da Instituição não é uma ação isolada;
antes representa uma convergência nacional em lutar pela causa estudantil, e as “ocupações” são elementos importantíssimos
para se alcançarem as metas contempladas pelos estudantes. Tudo isso fica bastante claro neste trecho da nota da entidade
estudantil:

O Movimento Estudantil, de norte a sul do país, está se mobilizando contra o desmonte da Universidade
Pública, expresso pela Reforma Universitária do Governo Lula. As ocupações das reitorias, sobretudo a da
USP, demonstram que é possível, juntamente com os técnico-administrativos em greve, conquistarmos
nossas reivindicações.

No outro extremo, no reduto do adversário, o mesmo evento será tratado de uma forma não tanto positiva. Pelo
contrário, será considerado como “invasão”. O próprio senso comum não deixa dúvidas de que este termo possui uma carga
pejorativa insofismável.
Uma vez que a AS considera, preponderantemente, que o prédio da Reitoria foi vítima de uma invasão, elencará
outras ações que denotam ideias semelhantes, como ataque, violência, atingir (no sentido de atacar), tumulto, destruir, entre
outros. No caso de ataque, por exemplo, esta palavra se traduz como uma ação de hostilidade, uma ação inimiga, beligerante.
Exatamente por se tratar, na manifestação da AS, de um ataque, em suas notas fica sempre patente a necessidade de
resguardar a UFPA dos elementos considerados invasores. Assim, por meio de verbos, a AS apontará para ações que,
segundo ela, precisam ser efetivadas a fim de salvaguardar a Instituição, como é o caso de reagir, contrapondo-se a ataque.

Ou a Universidade, que é pública - portanto, da sociedade! -, reage a esse ataque autoritário e fascistóide,
ou ela será refém, cada vez mais, daqueles que objetivam destruí-la.

Ou seja, torna-se bem visível que a AS procura passar em suas notas a imagem de que ela é a legítima guardiã da
integridade da UFPA, que, naquele momento, está sendo agredida. Por conta disso, há momentos em que o tom de suas notas
se eleva, assumindo um ar veemente e quase heróico, manifestado em ações como não ceder e não recuar:

Como reitor, estou recorrendo, em primeira instância, à Justiça, para garantir o funcionamento mínimo da
Instituição. Não cederei ou recuarei esta posição. A autoridade, socialmente delegada, existe para ser
exercida, e a Instituição, defendida.

Nesse trecho, percebe-se, também, que a AS busca convencer a comunidade de que ela utiliza de um papel diferente
daquele supostamente utilizado pelos adversários. Pelas notas da AS, enquanto seus oponentes servem-se de ataques
violentos, ela, embora reagindo de forma tenaz e sólida, o faz de modo ordeiro, dentro de sua competência regimental,
mediante processos legais e fóruns adequados. É por isso que será realçado o fato de o reitor representar a “a autoridade
socialmente delegada” e estar “recorrendo (...) à Justiça”. Tudo isso, buscando mostrar a finalidade última, qual seja a de que a
Instituição não seja prejudicada; para garantir que suas atividades não sejam comprometidas. São semas que se constroem no
registro positivo da AS.
Por outro lado, em relação ao ato nocivo de ataque e agressão que a AS atribui à entidade discente, esta acaba por
devolver-lhe tais aspectos violentos, ou seja, os papeis se invertem. Vejamos um trecho da nota estudantil bastante
representativo em relação a esse ponto. Grifamos algumas ações traumáticas que, segundo a entidade, foram utilizadas pela
AS.

Um estudante foi preso e outros espancados pela PM, chamada pelo prefeito do Campus, por estarem
organizando uma festa no interior da UFPA. O argumento para tamanha brutalidade foi uma resolução do
CONSAD - Conselho Superior de Administração – que impede a realização de atividades culturais na
UFPA. (...) Após a truculência com qual fomos tratados, que mais parecem cenas da Ditadura Militar,
exigimos uma retratação pública do Reitor e a exoneração do cargo do atual prefeito do Campus Marcus

1139
Vinicius. Este senhor, que ordenou o espancamento dos estudantes, já foi responsável pelo
atropelamento de uma servidora em greve, demonstrando que sua permanência é inviável.

Portanto, o sema positivo de “conquista” para ocupação, que reivindica o DCE, é colocada em contraponto à
violência, segundo a entidade, da AS, cujo sema negativo é rejeitado pelos autores da tomada da reitoria. É interessante
observar, ainda, que, do mesmo modo que a nota da AS busca expressar a sua legitimidade para garantir o bom
funcionamento da UFPA com ações como não cederei e não recuarei, a entidade discente também expressa esse aspecto
quando exige a retratação do reitor e a exoneração do prefeito. Ora, se alguém é capaz de exercer uma exigência, é porque
possui autoridade para tal; uma autoridade que é delegada por uma comunidade. Importante observar a escolha da primeira
pessoa do plural (exigimos) como forma de mostrar que, em última análise, a competência da entidade discente para exigir
advém do fato de ela falar em nome dos estudantes, sendo legítima porta-voz do alunado. Não é à toa, aliás, que a nota é
assinada, além do DCE, pela “Plenária da Ocupação da Reitoria”, pelos “CA’s – Centros Acadêmicos” e pela “Frente de Luta
contra a Reforma Universitária”, como forma de demonstrar que há uma legitimidade na representação estudantil.
Na sequência dessa nota, a representação estudantil continuará sua busca em demonstrar que possui força e
competência para definir rumos na UFPA. É bem verdade que há uma modalização quando fala em solicitar para, logo em
seguida, todavia, falar em exigência:

Solicitamos o direito democrático de escolha do prefeito da UFPA. Exigimos a abertura de negociação


da pauta apresentada e protocolada junto à Reitoria.

Se em exigir há um certo risco de alguém se mostrar prepotente e autoritário, solicitamos demonstra atitude ordeira,
contrariando, desse modo, as acusações feitas contra si de objetivar destruir a Universidade, organizando um "ataque
autoritário e fascistóide"

4.2.2 As caracterizações por meio de adjetivações e nomes

Por meio de palavras ou expressões que tenham função adjetiva ou nominativa, podemos estabelecer juízos de valor
acerca do seres quando os qualificamos ou denominamos. Falemos sobre as adjetivações, primeiramente.
Vejamos, primeiramente, uma situação de como, por meio da adjetivação, o perfil das notas recebe duas
caracterizações: uma, nas categorias do registro positivo do discurso da AS; outra, nas categorias do registro negativo do
discurso do Sintufpa, senão vejamos: “Nota de Esclarecimento Público”. Com esta expressão adjetiva no título, a AS
reivindica a imagem de que se preocupa com a comunidade universitária e que não quer que ela seja ignorante, e sim
esclarecida em relação aos fatos que estão acontecendo no seio da UFPA, particularmente em relação à tomada da reitoria.
“Esclarecer” carrega uma certa medida de nobreza ao preservar essa comunidade das mentiras produzidas pelos adversários,
como se revela neste trecho da nota que recebe o título aludido:

Os grupos que se movem nesse episódio, como em outros (...), plantam versões deturpadas à imprensa,
caluniam e não têm crédito dentro da própria comunidade universitária.

Reportando-se a uma outra nota da AS, em que o reitor, já no início, também aponta para o caráter de
esclarecimento, pois escreve “quero esclarecer”, o Sintufpa, a considera com um caráter nem tanto nobre. Ao contrário,
bastante pernicioso:

Diante dos ataques desesperados, repassados através da nota preconceituosa, a direção do Sintufpa
sente-se na obrigação de responder às provocações do reitor.

1140
Como se vê, a tal nobreza de uma “Nota de Esclarecimento Público” da AS acaba por se esvair, porquanto ela é
traduzida, pelo Sintufpa, nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema, como “Nota Preconceituosa”. Para o
Sintufpa, o conteúdo da nota de modo algum é nobre; não passa de uma série de “provocações” e “ataques desesperados”, ou
seja, percebe-se que, na visão da entidade dos servidores técnico-administrativos, o objetivo da nota da AS, na verdade, não é
informar, tornar público, e sim fazer provocações.
Detectamos, nas notas, em várias oportunidades o uso de um nome, no caso, a palavra grupo, com o objetivo de
construir uma caracterização, em que um lado recategoriza o discurso do outro, sobre o que passamos a discorrer.
Embora “grupo” tenha uma acepção muito ampla, significando, essencialmente, um conjunto de seres, em muitos
casos, seu uso pode produzir um efeito especialmente negativo. Dado que, algumas vezes, nas oportunidades em que se refere
às pessoas que participaram da tomada do edifício da Reitoria, a AS dirá que se trata de “um grupo” ou “grupos”, buscamos
identificar as possíveis traduções no registro negativo que a sua nota faz para esta palavra em trechos como este:

A invasão da Reitoria por um determinado grupo do movimento estudantil (...) é uma ação de natureza
estritamente política.

Para que investigássemos os semas negativos construídos pela AS, utilizando o vocábulo “grupo”, primeiramente,
observamos alguns sentidos para esta palavra, no dicionário Michaelis. Duas três de suas acepções são: 1) “Certo número de
pessoas reunidas”; 2) “Pequena associação”. É interessante observar que, em relação ao primeiro sentido, o nome é
acompanhado do pronome indefinido “certo”, que é sinônimo ou, no mínimo, carrega uma noção muito próxima de “algum”, que,
por sua vez, fornece a ideia de um número de pessoas que não é substancial ou representativo. De outro modo, o dicionário
registraria, por exemplo, “um grande número” ou “um considerável número”, que se aplicaria muito bem a quaisquer
associações de grande porte com um número bastante significativo de integrantes. A ideia de um número limitado de pessoas é
confirmada, inclusive, pelo segundo sentido, quando define o grupo como uma “pequena associação”. As noções de pequenez,
para referir poucas pessoas ou pouca representatividade, por meio de “grupo”, podem ser observadas na fala da AS, quando
salienta o aspecto “minoritário” das representações das entidades, senão vejamos:

São grupos minoritários, que não representam mais do que do que 1% dos interesses e vontade da
imensa maioria de professores, estudantes e técnico-administrativos das IFES – Instituições Federais de
Ensino.

Além de ser uma minoria, é ínfima, pois não supera em um por cento o universo da comunidade universitária. O
percentual pode soar até como uma hipérbole para dizer que a representação das três entidades é muitíssimo pequena, quase
nula, diante da “vontade da imensa maioria” da comunidade universitária. É bem verdade que o uso de “minoritário” e “1%”
reforça ainda mais o sentido de, respectivamente, destacar e quantificar a pequenez. Todavia, a palavra grupo já carrega, por si
só, um sentido partitivo. Mesmo que se trate de um “grande” grupo, será apenas uma parte recortada de um todo. Na nota, a AS
explora, entre outras coisas, essa ideia, de apenas uma parte de um todo, como fica bem claro no mesmo trecho, que
referenciamos anteriormente:

A invasão da Reitoria por um determinado grupo do movimento estudantil (...) é uma ação de natureza
estritamente política.

Ou seja, o todo é o movimento estudantil; os “invasores” da reitoria são apenas uma parte desse todo, um “grupo”.
Além disso, entra em cena a adjetivação “determinado”, para nos dizer não é qualquer grupo, mas um determinado grupo.

1141
Todo este arrazoado pode ser sustentado pelo contexto latente ao longo da nota, em que se perceberá o tom
fracionário para grupo, como forma de mostrar que as pessoas participantes da tomada efetivamente não representam a
comunidade

CONCLUSÃO

Na análise do vocabulário presente na materialidade discursiva, alguns dos aspectos que se sobressaem e que são
em grande parte comuns à maioria dos semas, dizem respeito ao fato de que – e essa é uma característica da polêmica - o
Mesmo sempre se mostra de forma positiva apresentando o Outro repleto de percalços. Observamos, ao longo de todos os
excertos, uma disputa em que ambas as partes questionam a gestão do adversário, mostrando-o sem a devida competência,
seja para representar uma diretoria, no caso das entidades de classe; seja para gerir administrativamente a Universidade, em
relação à AS, na pessoa do reitor. Este é um sema latente que acompanha o tom das notas. Aliás, muitas vezes, visualizamos
textualmente esse sema, quando, por exemplo, a nota da AS refere que aqueles que ocupam a reitoria são apenas um grupo,
não representando a maioria dos estudantes, não possuindo representatividade.
A conjugação de todos os semas tem como resultado um grande sema principal rejeitado pelo Mesmo, que se
concretiza no simulacro que este constrói: o Outro não possui legitimidade para representar a UFPA, no caso do reitor, nem
para representar as categorias no caso das diretorias das entidades; ou seja, o Outro não possui representatividade suficiente,
de um lado, para ser reitor ou, de outro, ser diretor de uma entidade de classe. Em situação inversamente proporcional, o
simulacro construído a respeito do Mesmo é de que ele, sim, é quem demonstra ser competente, que possui legitimidade para
ser – conforme o caso - o representante de sua entidade de classe ou reitor. É interessante observar que o modelo de
construção dos simulacros é o mesmo nos dois extremos, isto é, os sujeitos falam de lugares diferentes, mas dizem a mesma
coisa. Isso decorre exatamente da existência de uma base comum, no caso, a política acadêmica, a partir da qual a
interincompreensão se configura.
Com isso, finalizamos este trabalho, salientando que ainda restariam outras considerações a serem contempladas,
isso porque este artigo é fruto de um recorte que fazemos de nossa dissertação de mestrado, recentemente concluído, onde
abordamos mais profundamente o tema da polêmica como interincompreensão na política acadêmica da Universidade Federal
do Pará.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
DELEUZE, G. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
GRANJEIRO, C.R.P. Foucault, Pêcheux e a formação discursiva. In: BARONAS, R. L. (Org). Análise do discurso: apontamentos
para uma história da noção-conceito de formação discursiva. São Carlos-SP: Pedro e João Editores, 2007.
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba, PR: Criar Edições, 2005.
_______________. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes,1997.
WEISZFLÖG, W. Michaelis: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

1142
A heterogeneidade discursiva: os modos de organização
do discurso e o ato de linguagem como encenação: um
estudo do caso clínico Anna O. e a Psicanálise

PARDINI, Raquel Jardim


(UFMG)

Quer se pretenda agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de apenas um


meio: a fala do paciente. Toda fala pede uma resposta, mesmo que depare apenas com o silêncio,
desde que ela tenha um ouvinte, e que é este o cerne de sua função na análise. (Lacan, 1966, p 248)

Este trabalho propõe fazer, utilizando-se da Análise do Discurso francesa — principalmente da Semiolinguística de
Charaudeau —, uma leitura discursiva dos modos de organização do discurso e os sujeitos do ato de linguagem nos
escritos sobre Anna O./ Bertha Pappenheim.
Até o final do século XIX, a questão epistemológica a respeito do corpo era dominada pela tradição filosófica
cartesiana, na qual o corpo era teoricamente separado do espírito. Na virada do século, entretanto, a relação entre o sujeito
e seu corpo passou a ser definida com outros termos — a vida humana foi, então, encarada como espiritual e corpórea e
sempre apoiada pelo corpo. No século XX, o corpo foi “inventado” teoricamente; em primeiro lugar, na Psicanálise, a partir
das observações feitas por Freud sobre os pacientes exibidos por Charcot no Hospital da Salpetriere em Paris (COURTINE,
2000, p 7).
Charcot, médico e neurologista francês (1825-1893), para tratar seus pacientes internados na Salpetriere, utilizava
o método da hipnose, criava e desfazia sintomas para diferenciar a histeria das outras doenças neurológicas e conferia-lhe
o lugar de uma moléstia específica com suas próprias leis e manifestações (QUINET, 2005, p. 100).
Derivada da palavra grega hystera (matriz, útero), a histeria é uma neurose que apresenta quadros clínicos muito
variados. Os conflitos psíquicos inconscientes exprimem-se de maneira teatral sob a forma de sintomas corporais
paroxísticos (ataques ou convulsão de aparência epiléptica) ou sob a forma de paralisias, contratura, cegueira
(ROUDINESCO, 1997). Ao procurar responder à pergunta sobre a origem da histeria, Freud criou um novo saber: a
Psicanálise. Freud, que já se dedicava aos estudos sobre a histeria junto a Breuer em Viena, adentrou em um espaço
diante do qual Charcot se detivera: o inconsciente.

O caso Anna O.

A Psicanálise tem sua “pré-história” nos casos de histeria, como no caso da Srta. Anna O., pseudônimo de Bertha
Pappenheim, dado por seu médico, o renomado Josef Breuer, de Viena, em 1880. Segundo Lacan, foi ela quem inventou a
Psicanálise ao chamar de “talking cure” o tratamento que recebia do médico (LACAN, 1961/1962, Lição 14 de março de
1962). Mas ainda não era a Psicanálise criada por Sigmund Freud. Breuer usava a hipnose e o método catártico para tratar
sua paciente, sendo que a doença de Bertha foi por ele diagnosticada como histeria. Durante a hipnose, todos os
fenômenos — sintomas histéricos — que eram expressos verbalmente eram reproduzidos, e depois desapareciam. O efeito
de ‘cura’ do sintoma, desaparecimento do mesmo, era provocado pela lembrança e pela expressão verbal detalhada do
primeiro momento em que ele apareceu, e um afeto insuportável que havia sido recalcado podia, então, ser traduzido em
palavras (FREUD, BREUER, 1893, p. 50). Bertha lembrou-se que ao cuidar do seu pai enfermo, sofreu uma grande

1143
angústia, teve a alucinação de uma cobra e seu braço ficou dormente e anestesiado. Neste momento tentou rezar, mas não
conseguiu encontrar palavras até que repetiu uma oração para crianças em inglês.
A doença de Bertha apresentava os seguintes sintomas: parafasia (distúrbio da fala), estrabismo convergente,
graves perturbações da visão, paralisias, sob a forma de contraturas nas extremidades do corpo e paresia (paralisia
incompleta) dos músculos do pescoço, sonambulismo e um grande número de sintomas crônicos. Apresentava dois estados
de consciência que se alternavam: em um deles, mostrava-se triste e angustiada, mas relativamente normal, e, no outro,
sofria de alucinações e ficava agressiva. Teve também uma profunda desorganização da fala. Seu sintoma linguístico
caracterizava-se assim:

A princípio, ficou claro que ela sentia dificuldade de encontrar as palavras, e essa dificuldade foi
aumentando de maneira gradativa. Posteriormente, ela perdeu o domínio da gramática e da sintaxe,
não mais conjugava verbos e acabou por empregar apenas os infinitivos, em sua maioria formada
incorretamente a partir do particípio passado e omitia tanto o artigo definido quanto o indefinido. Com o
passar do tempo, ficou quase totalmente desprovida de palavras. Juntava-as penosamente a partir de
quatro ou cinco idiomas, e tornou-se quase ininteligível. (BREUER, 1896, p. 60)

Quando Bertha começou a ser tratada por Breuer, seu pai encontrava-se gravemente doente e ela alternava os
cuidados do enfermo com a mãe. O estado de saúde de Bertha piorou e, durante duas semanas, ficou completamente
muda. Foi então que Breuer a atendeu valendo-se da hipnose e obrigando-a a falar sobre o que a estava atordoando, como
ela mesma havia murmurado enquanto dormia (“atormentando, atormentando...”), antes do mutismo. A inibição total da fala
desapareceu e passou a falar. Porém, falava em inglês sem ter consciência disso. Quando se encontrava em seu melhor
estado com a máxima liberdade, falava francês e italiano. Em momentos de extrema angústia, sua capacidade de falar a
abandonava.
Após a morte do pai, as histórias transformaram-se em uma cadeia de alucinações apavorantes. Sua mente ficava
aliviada depois que ela falava, dando, assim, expressão verbal às imagens assustadoras de suas histórias. Por isso Bertha
chamou de “Talking cure” esse método de tratamento de Breuer, ou, em tom de brincadeira, de “chimney-sweeping” — cura
pela fala e limpeza de chaminé (BREUER, 1895, p 65).
Breuer descreveu Anna O/Bertha assim:

Era dotada de grande inteligência e aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição
aguçada. Possuía um intelecto poderoso (...), tinha grandes dotes poético e imaginativo, que estavam
sob o controle de um agudo e crítico bom senso (...); era inteiramente não sugestionável, sendo
influenciada apenas por argumentos e nunca por meras asserções. (BREUER, 1895, p. 57)

Breuer resumiu duas características psíquicas que atuaram como causa, predisposição para a subseqüente
doença histérica: sua vida monótona, a ausência de ocupação intelectual adequada, que a deixava à mercê da atividade
constante de sua imaginação e do hábito dos devaneios. Esses fatores constituíram as bases para uma dissociação de sua
personalidade. Breuer nota que a inibição da fala, determinada pelo afeto de angústia, encontrou uma descarga fortuita nos
versos na língua inglesa; posteriormente, a parafasia e a perda da língua materna foram substituídas por um inglês
excelente (BREUER, p 76). O tratamento com Breuer foi interrompido abruptamente após 18 meses; porém, estes dados
não constam em seus escritos, que relatam uma suposta cura permanente dos seus sintomas.

1144
Bertha, por indicação de Breuer, ficou internada no Sanatório Bellevue, na fronteira da Alemanha com a Suíça.
Quando o médico e diretor do sanatório Dr. Binswanger solicitou, Bertha escreveu em inglês um relato a respeito do seu
sintoma de linguagem, a incapacidade de falar, ler e escrever sua língua materna, o alemão, e também sobre seu estado de
saúde. Uma análise desse relato e de fragmentos de uma carta escrita por ela a um primo, assim como fragmentos do
relato do caso clínico Anna O. de Breuer, nos aproximarão da origem da Psicanálise.

Uma releitura do caso Anna O. a partir do ponto de vista discursivo

A partir da pesquisa de mestrado, encontramos novos dados sobre a história de Bertha Pappenheim. Após a cura
da sua doença, ela teve o reconhecimento como assistente social e foi líder do movimento feminista das mulheres judias na
Alemanha. Bertha escreveu livros e artigos em jornais sobre a posição feminina na sociedade e traduziu livros do iídiche e
do hebraico para a língua alemã.
Para adentrarmos em outro aspecto além dos textos de Breuer (BREUER, 1895) sobre a paciente Anna O. e dos
escritos da própria Bertha Pappenheim/Anna O., apresentaremos outros elementos, como uma análise do discurso desses
textos, utilizando a Semiolinguística de Patrick Charaudeau, da Análise do Discurso francesa.
A verdadeira história de Bertha Pappenheim (Anna O.), seu contexto histórico, familiar, social e lingüístico, pode
oferecer dados para um melhor entendimento do sintoma priorizado por esta pesquisa: o de linguagem.
Bertha nasceu em Viena em fevereiro de 1859 e morreu em Iselberg, Alemanha, em maio de 1936. Ela era de
uma família da alta burguesia vienense e teve uma educação judaica dentro dos padrões ortodoxos. Seu pai, que era
comerciante de trigo de Presburg (hoje Bratislava, na Eslováquia), e o avô, que tinha uma posição de juiz dos judeus, com
sua fortuna, apoiavam a ortodoxia judaica. A mãe de Bertha era descendente de uma antiga família judaica, residente em
sua maioria na Alemanha, sendo liberais e atuantes nas artes. Seus pais mudaram-se para Viena para um bairro
caracterizado pela multiplicidade cultural, onde Bertha passou sua infância (BRENZEL, 2004). A família seguia os padrões
da ortodoxia em que filhas mulheres, segundo Bertha, não eram recebidas com entusiasmo. Ela foi educada em casa e
recebeu aulas particulares de inglês, francês e italiano de uma governanta. Quando frequentou uma escola particular
católica, já falava e escrevia iídiche e hebraico. Bertha era multilíngue, sendo sua primeira língua o alemão. O contexto
social de Bertha era multicultural e, assim, ela tinha contato com várias línguas, o que influenciou sua escolha pela língua
estrangeira em um período da sua doença.
A partir desses dados, a Análise do Discurso possibilitou lançar um novo olhar para a histeria de Bertha, já que o
discurso quase nunca é homogêneo: ele mistura diversos tipos de sequências textuais, faz variar os registros de gêneros e
línguas (CHARAUDEAU, MAINGUENEAU, 2006).
A heterogeneidade discursiva dos enunciados pode ser classificada em dois planos distintos: a mostrada,
marcada na superfície do texto, e a constitutiva, em que o discurso demanda uma ancoragem no exterior do linguístico para
as formas que parecem oscilar devido às modalidades incertas, implícitas, de seu resgate. Authier-Revuz (AUTHIER-
REVUZ, 2004) propôs, nos seus escritos sobre heterogeneidade enunciativa constitutiva, um diálogo com a Psicanálise.
Para analisarmos o caso de Bertha Pappenheim, seguiremos uma direção semelhante.
Um ato de linguagem é concebido como um ato de comunicação e de encenação composto de vários sujeitos,
que resulta de um jogo entre o sentido verbal explícito combinado a um implícito. As circunstâncias do discurso (C de D)
correspondem ao conjunto de saberes supostos que circulam entre os protagonistas da linguagem, o que Charaudeau
(1983) explica através de um esquema bastante prático (apud MACHADO, 1998, p 115):

1145
A de L= [Explícito X Implícito] C de D

O desdobramento dos quatro sujeitos do discurso no esquema de comunicação na Semiolinguística compõe-se


de dois circuitos de produção de saber:

 O circuito da fala configurada (espaço interno), no qual se encontram Eue (sujeito enunciador) e Tud (sujeito
destinatário);
 O circuito externo à fala configurada (espaço externo), no qual se encontram os seres agentes que são o Euc (sujeito
comunicante) e o TUi (sujeito interpretante). (CHARAUDEAU, 2008, p. 52)

O Sujeito enunciador (EUe) e o sujeito destinatário (Tud) são sujeitos instruídos na fala. O EUe é sempre uma
imagem de fala que oculta em maior ou menor grau o EUc. O sujeito comunicante (EUc) é um sujeito agente (como o TUi)
localizado na esfera externa do ato de linguagem e responsável por sua organização.
Utilizamos os “sujeitos” do Quadro Comunicacional (figura a seguir) e os modos de organização do discurso da
Semiolinguística de Patrick Charaudeau, para elucidarmos a origem e o destino dos sintomas de Anna durante o tratamento
com Breuer e a internação em Bellevue. Relembremos: após o agravamento dos sintomas de Bertha, com a morte do pai,
ela ficou internada no sanatório Bellevue, por recomendação de seu médico Breuer, onde escreveu, a pedido do médico-
diretor de Bellevue, Dr. Binswanger, um relato sobre sua vida e seus sintomas, principalmente o de linguagem: inibição da
língua materna, o alemão. O relato foi escrito em inglês.
O sujeito enunciador (Eue), que escreve em inglês (Anna O.) e, historicamente, falava em alemão, recusa o sujeito
comunicante (Euc), que se expressava em alemão (Bertha Pappenheim). Ela se dirige a um destinatário (Tud), Breuer
(médico, ouvinte ideal), que se encontrava com um Breuer real, sujeito interpretante (Tui), que pesquisava sobre a histeria,
falava inglês e usava a hipnose e o método catártico como tratamento da histeria. O Tud e o Tui, descritos no quadro.
O quadro comunicacional exposto abaixo colaborou para descrever a relação entre Breuer e Bertha, sua dinâmica
durante o tratamento e também a situação do relato escrito em Bellevue com os sujeitos implícitos nele envolvidos, como o
Dr. Binswanger.

1146
Quadro Comunicacional

Anna O. Ouvinte
ideal Breuer
Bertha pesquisador

FONTE: CHARAUDEAU, 2008, p. 52.

Esse instrumento da Semiolinguística ofereceu elementos que servem para interrogar o texto, neles fazendo surgir
os possíveis interpretativos.
Em seguida, refletiremos sobre os componentes da organização discursiva. Eles podem ser divididos em quatro
modos, que podem aparecer reunidos em um texto ou, então, pode um predominar sobre o outro (CHARAUDEAU, 2008, p
81).
Os modos de organização do discurso são procedimentos que utilizam determinadas categorias de língua para
ordená-las em função das finalidades discursivas do ato de comunicação. Eles são: o Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo
e o Argumentativo.
O modo Enunciativo tem uma função na organização do discurso. Ele deve “dar conta” da posição do locutor com
relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros, o que resulta em um aparelho enunciativo. Esse modo intervém na
encenação de cada um dos três outros modos de organização e é ele que comanda. O relato de Bertha Pappenheim é
autobiográfico, é uma narrativa de si, por isso utiliza o modo Narrativo e Descritivo. O Enunciativo é predominante, para
enunciar seu ponto de vista, único, sobre seu sintoma de linguagem. A língua materna de Bertha era o alemão, porém, ela
se encontra incapacitada de falar, ler e escrever na sua língua. O relato foi escrito em outra língua, e o modo descritivo do
seu discurso revela-se ao falar dos seus sintomas, especificando detalhes de quando surge, como lida com ele e quando
vai embora. Ela descreve que, quando sua forte dor neurálgica permite, lê um livro em francês ou inglês até o momento em
que recupera a língua alemã. Escreve que falar inglês, no lugar do alemão, não vem acompanhado pela mínima sensação
física; nem dores, nem opressão ou vertigens são observadas.
A inibição da língua materna, neste caso, funcionava implicitamente (inconscientemente) como uma defesa diante
da lembrança de afetos insuportáveis (doença e morte do pai) que a língua alemã trazia junto a ela. Aqui, temos um diálogo
com a Psicanálise de Freud, que explica esse fenômeno como histeria de defesa.

1147
Também observamos o Modo Argumentativo no relato. Segundo Charaudeau (CHARAUDEAU, 2008), o
Argumentativo está em contato apenas com um saber que tenta levar em conta a experiência humana, através de certas
operações do pensamento. O aspecto argumentativo de um discurso encontra-se, frequentemente, no que está implícito. O
testemunho dado por Bertha no relato escrito em inglês expressa uma maneira própria de descrever o que aconteceu com
os efeitos no seu corpo em relação à linguagem. Ela escreve que, para os médicos, seu sintoma é “uma coisa muito
estranha e rara de ser observada” e, por conseguinte, relata e dá sua opinião: “mesmo sem ter feito nenhum estudo
médico”, considera importantes as suas experiências e observações sobre o terrível estado em que se encontra (in
BRENZEL, 2004, p. 310).
Bertha construiu, inicialmente, este saber em uma língua estrangeira no tratamento com Breuer, chamado por ela
de “talking cure”. Breuer descreveu Anna O/Bertha, como já citamos, como uma pessoa dotada de grande inteligência,
sendo influenciada apenas por argumentos, e não por meras asserções.
Bertha escreveu, em Bellevue, uma carta a seu primo, Fritz Homburger, relatando seu sofrimento de estar longe
de casa, seus sintomas e as doses de morfina utilizadas para aliviar as dores à noite. Novamente, ela se valeu de uma
narrativa argumentativa para descrever seu sofrimento:

Somente de noite o distúrbio da fala (speech disturbance) ocorre regularmente, (...) e a saudade não
ajuda a tornar minhas noites confortáveis. Eu consigo enfrentar as más horas da melhor maneira
possível com argumentos racionais e com a leitura. (GUTMANNN, 2001, p. 87)

Os textos de Bertha e sobre ela — o relato e as cartas escritas por Bertha em Bellevue e o caso Anna O. de
Breuer — utilizam um pouco de cada modo de organização do discurso. O modo enunciativo predomina na tomada de
posição dela diante do saber sobre seu sintoma, porém, o Argumentativo revela sua posição de enfrentamento ao
responder sobre aquilo que sabia descrever, “mesmo sem ter feito nenhum estudo médico”, e que os médicos não sabiam
explicar.

Bertha Pappenheim foi/é uma personagem histórica reconhecida como assistente social e líder no movimento
feminista das mulheres judias alemãs e escritora de livros. Mesmo que ela não tenha tido conhecimento do seu papel
fundamental na descoberta da Psicanálise, Lacan afirma que “o inventor da Psicanálise não é Freud, mas Anna O., e por
trás dela muitos outros: nós todos” (LACAN, Lição 14 de março de 1962, Seminário IX).
Foi a partir dos estudos sobre histeria de seus pacientes e da Talking Cure, cura pela fala, de Anna O., que Freud
aprofundou seus estudos, escutou o discurso das pacientes e dele escutou uma fala vinda de outro lugar, do inconsciente,
das lembranças e dos relatos em associação livre. Era falando sobre o momento em que seu sintoma apareceu pela
primeira vez que o paciente se curava. (BREUER, 1895).
A Análise do Discurso não trata da faceta inconsciente do desconhecimento ideológico. Mesmo distantes,
segundo Chatelard, é possível postular certa complementaridade entre o sujeito da Análise do Discurso e o da Psicanálise,
a partir dos conceitos de heterogeneidade discursiva e de Outro. Authier-Revuz afirma que a heterogeneidade constitutiva,
ao acontecer na linguagem do sujeito, a fala não pode se constituir a não ser no interior desta. (apud CHATELARD, 2009, p.
57).
A Semiolinguística, criada por Patrick Charaudeau, faz parte das novas abordagens que vão constituir a Análise
do Discurso de segunda geração (termo criado por Maingueneau, 1989), que define o sujeito não como totalmente

1148
assujeitado à ideologia. Charaudeau sugere que a atuação de um sujeito-comunicante/enunciador vivendo em determinada
sociedade merecia maiores estudos (MACHADO, 1998, p. 112).

REFERÊNCIAS

BRENTZEL, Marianne. Sigmund Freuds Anna O. Das Leben der Bertha Pappenheim. Leipzig: Reclam Verlag, 2004.

BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895). In: Obras completas de Sigmund Freud; Edição
Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso; modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2006.

COURTINE, Jean-Jacques. História do corpo. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. v. 3.

CHATELARD, Daniela Scheinkman; LAUREANO, Marcella. Sobre o Sujeito não-UM: a heterogeneidade discursiva e a
presença da Lalingua. Revista de Psicanálise Stylus. Rio de Janeiro, n. 19, p. 55 – 64, 2009.

HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita; língua, sujeito e discurso. Campinas: Unicamp, 1992.

GUTTMANN, Melinda Given. The enigma of Anna O.; a biography of Bertha Pappenheim. London: Meyer Bell, 2001.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. O seminário livro IX; A identificação. Inédito, aula de 17/01/1962.

MACHADO, Ida Lúcia. Análise do Discurso e seus múltiplos sujeitos. In: MACHADO, Ida Lúcia et al (orgs.). Teorias e
práticas discursivas. Belo Horizonte: Carol Borges, Núcleo de Análise do Discurso/FALE-UFMG, 1998. p.111-122.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Editora Pontes, 1997.

QUINET, Antonio. A lição de Charcot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

Autora: PARDINI, Raquel Jardim (FALE, UFMG) email: raquelpardini07@yahoo.com.br

Pós-graduanda em Análise do Discurso, na Faculdade de Letras da UFMG, no Programa de Pós-graduação em Estudos


Linguísticos (POSLIN). Pesquisa a Heterogeneidade discursiva - a lingua materna e lingua estrangeira em Anna O. Possui
graduação em Psicologia – Universität Hamburg, Alemanha (1994) com reconhecimento pela UFMG. Pós-graduação lattus
senso (1997) em: “Atendimento terapêutico e educacional a crianças com distúrbios graves” na Pré-escola terapêutica
Lugar de Vida na Universidade de São Paulo (USP).

1149
A irreverência na ressemantização do uso efetivo da língua
na designação referencial em manchetes de jornais

PAULA, Deborah Gomes de


(PUC/SP-UNIP)

Essa comunicação situa-se na área da Análise Crítica do Discurso, e tem por tema as estratégias utilizadas pelos
jornais paulistanos na construção da adesão às notícias veiculadas pelo jornal-empresa que dá acesso ao público-leitor, a
partir das manchetes, linhas-finas e lides.
Objetiva-se examinar o léxico enunciado no texto, com enfoque cultural, buscando a partir dos marcos de
cognição sociais a modificação do discurso, por meio da ressemantização com valores culturais e ideológicos.
O material delimita-se aos jornais paulistanos: O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. O método adotado é
o teórico-analítico e tem por base teórica as categorias propostas por Van Dijk (1997): Discurso, Sociedade e Cognição.
Justifica-se a pesquisa, pois, durante o processamento da informação recebida no uso efetivo da língua,
dependendo da focalização do fato no mundo, ocorre estrategicamente, apagamento do processo histórico.
Os resultados obtidos indicam que: 1) a seleção lexical das manchetes estudadas ocorre num recorte no
continuum sêmico, ativando o marco das cognições sociais do público leitor do grupo social específico, guiado pela cultura;
2) o processo de recontextualização da notícia ocorre por meio da refuta, estabelecendo novas designações, 3) os
conhecimentos avaliativos são formados na inter-relação entre o individual e o social na ressemantização da informação
dada como nova, veiculada pelo jornal.
Conclui-se que por meio do léxico ocorre a ativação dos marcos de cognições sociais e os conhecimentos de
mundo são ressemantizados e passam a construir novos significados.

Apresentação

Este trabalho situa-se na área da Análise Crítica do Discurso, e tem por tema as estratégias utilizadas pelos
jornais paulistanos na construção da adesão às notícias veiculadas pelo jornal-empresa que dá acesso ao público-leitor, a
partir das manchetes, linhas-finas e lides.
A pesquisa justifica-se, pois, o uso criativo do vocabulário em expressões clichês e a ressemantização na
progressão semântica do texto, implica a criatividade lexical e a cristalização de usos clichês que são guiadas por valores
culturais e ideológicos.
O processo de ressemantização ocorre por meio da progressão semântica das escolhas lexicais, construídas a
partir de metáforas e metonímias.
As metonímias são construídas a partir da focalização dada pelo grupo social no referente que ora recebe valor
positivo ora, negativo, dependendo do contexto e do cotexto, pois há um percurso gradual na escala de valor projetada.
As metáforas, contém implícitos culturais que são relativos a valores positivos e negativos e são construídas por
zonas culturais de similitude entre unidades de áreas semânticas diferentes.
Segundo Silveira (2000) a manifestação da representação em língua ocorre na inter-relação entre o texto-
processo e o texto-produto, sendo o processo de natureza mental e o produto, a materialidade dessas formas de
conhecimento.

1150
Desse modo, objetiva-se examinar o léxico enunciado no texto, com enfoque cultural, buscando a partir dos
marcos de cognição sociais a modificação do discurso, por meio da polaridade dos antônimos e parassinônimos com
valores culturais e ideológicos.
As designações referenciais são construídas a partir de parassinônimos, palavra sêmica, em progressão textual e
sinônimos, palavra gramatical, com sentido dicionarizado, assim, cada designação é um recorte de um continuum sêmico
estabelecendo similitude (parassinônimo).
A língua constrói lexias que são a formalização de conceitos. Um conceito é um segmento de um conhecimento
semântico conceitual (adjetival). O indivíduo tem a capacidade de atribuir valor à linguagem, de segmentar o conteúdo, e
segmenta tanto o continuum do signo quanto o continuum sonoro.
A área segmentada constrói unidades semânticas, conceitos que são formalizados em língua, em lexias. Assim,
uma lexia é um recorte do continuum sêmico de onde se segmenta um conceito que é o conteúdo dela para formalizar o
conteúdo em categoremas e virtuemas (POTTIER, 1972). Um categorema é formado por um sema e uma classificação, por
exemplo, cachorro – animal doméstico.
Desse modo, os semas e suas classificações são considerados culturais e ideológicos. Entende-se que toda
palavra é metafórica, pois, para defini-la é necessário utilizar outras palavras por comparação e traços de similitude.
Durante o processamento da informação recebida no uso efetivo da língua, dependendo da focalização do fato no
mundo, ocorre apagamento do processo histórico (discurso modificado). Dessa forma, a representação do fato traz
características sociais e ideológicas que influenciam a formação da opinião.
Segundo Guimarães (1999), as duas categorias semânticas que fabricam as notícias são Atualidade e Inusitado.
A seleção dessas categorias é argumentativa, na medida em que o que Atualidade agrupa as informações do que está
acontecendo no mundo e que não podem ser conhecidas/observadas pelos leitores e o Inusitado que decorre de uma
ruptura com o marco das cognições sociais, de forma a criar uma quebra de expectativa para os leitores.
O texto jornalístico, a partir da intenção argumentativa, tem por objetivo conduzir a leitura do público-leitor,
fazendo com que ele se identifique com o ponto de vista do enunciador. Durante o processamento da informação recebida
no uso efetivo da língua, dependendo da focalização do fato no mundo, ocorre apagamento do processo histórico (discurso
modificado). Dessa forma, a representação do fato traz características sociais e ideológicas que influenciam a formação da
opinião.
Nesse sentido, segundo Van Dijk (1997), as opiniões devem ser compreendidas na relação entre as Categorias
Cognição, Sociedade e Discurso, pois as opiniões são construídas na dimensão cognitiva, por meio da interação social dos
participantes, suas ações e funções.
O material coletado delimita-se a textos de notícias que representam o inusitado na atualidade. O procedimento é
teórico-analítico e tem a Análise Crítica do Discurso, por base teórica que postula a inter-relação das categorias analíticas
Discurso, Cognição e Sociedade (Van Dijk, 1997). O material utilizado, neste trabalho, para análise está delimitado às
manchetes dos jornais paulistanos: Folha de São Paulo (FSP) e O Estado de São Paulo (OESP).

Sociedade, Cognição e Discurso

1151
Tem-se por pressuposto de que há uma interação entre o individual e o social, pois, este, guia o individual, mas o
individual modifica o social. Tal pressuposto é base da Análise Crítica do Discurso, em quaisquer de suas vertentes. Sendo
assim, entende-se que há uma inter-relação entre as categorias analíticas Sociedade, Cognição e Discurso, pois cada uma
dessas categorias se define pelas demais.
A Sociedade é vista como um conjunto de grupos sociais, sendo que, cada qual é um agrupamento de pessoas
que têm os mesmos objetivos, interesses e propósitos e, por essa razão, focalizam o que acontece no mundo, a partir do
mesmo ponto de vista; isso resulta em uma forma de avaliação (positiva/negativa) contida na representação mental como
forma de conhecimento, que é construída socialmente.
A Cognição refere-se às representações mentais-tipos e gêneros de discurso que atuam na interação do individual
(evento discursivo particular) e o social (cognições sociais intra, inter e extragrupo social). Todas as formas de
conhecimento seja individual ou grupal são expressas em textos, no e pelo Discurso. Assim, os conhecimentos sociais são
modificados embora contenham raízes históricas, de forma que o velho (já sabido) guia a construção do novo (informação
nova) e este modifica o velho.
Para Van Dijk (2000) a interação entre jornal-empresa e público-leitor implica a noção de contexto (global e local),
para se entender as notícias como discurso, ou seja, o discurso da notícia é uma prática discursiva sócio-interacional que
constrói as notícias, para serem publicadas no veículo jornal.
Para o autor (1997) o discurso da notícia é institucionalizado e relativo à ideologia da empresa-jornal que tem por
objetivo construir a opinião para seus leitores, de forma a dominar as suas mentes. Como todo discurso institucionalizado, o
discurso da notícia compreende a relação das categorias discursivas: Poder, Controle e Acesso.
Esta comunicação está delimitada às categorias Controle (redação final) e Acesso (veículo jornal) e trata das
estratégias utilizadas pela redação do jornal, embora se saiba que a ideologia do Poder, que é o jornal-empresa, atua sobre
o Controle da redação para que o texto enunciado tenha Acesso ao público.
As categorias Poder, Controle e Acesso objetivam construir as opiniões dos leitores. Uma opinião é uma forma de
conhecimento avaliativa, que não pode ser tratada como verdade, na medida em que não pode ser conferida no mundo.
Logo, o leitor que não é expectador do evento noticioso torna-se obrigado a aceitar a notícia que dá Acesso a ele.
A notícia como discurso jornalístico participa como um dos discursos da mídia. Segundo Van Dijk (1980), a
fabricação da notícia ocorre em várias etapas. Compreendo um contexto local e um global. O contexto global é definido por
seus participantes que são agrupados pelas categorias Poder, Controle e Acesso.
O contexto local é definido por atores, pessoas, que são responsáveis pela fabricação da notícia, as quais são
guiadas por uma determinada escala de valores ideológicos do Poder.
Por meio de textos jornalísticos extraídos dos jornais paulistanos Folha de S. Paulo (FSP) e O Estado de São
Paulo (OESP) apresentam-se exemplos de que a linguagem das negociações entre redator/leitor é realizada a partir de uma
interação que busca construir um acordo de forma a recorrer aos conhecimentos sociais comuns entre eles. As análises
realizadas seguiram um procedimento teórico-analítico e estão delimitadas às estratégias utilizadas pela redação dos
jornais selecionados. O método adotado para a análise dos textos teve como ponto de partida a seleção lexical utilizada nas
manchetes e para os segmentos selecionados e inter-relacionados.
A seleção lexical é um recurso de grande importância, pois, é através dela que se estabelecem as oposições, os
jogos de palavras, as metáforas, o paralelismo rítmico, etc. Existem palavras que, colocadas estrategicamente no texto,
trazem consigo uma carga poderosa de implícitos.
As análises apresentadas têm como principal pressuposto o marco das cognições sociais. Segundo Silveira
(2000), o marco das cognições sociais é um conjunto de conhecimentos que estabelecem parâmetros avaliativos para os

1152
seres e suas ações no mundo, a partir do que é contemporaneamente vivenciado modificando a experiência do já vivido
anteriormente.
Durante a interação comunicativa, considerar-se a orientação argumentativa para reformulação do marco de
cognição social, sendo assim, a refutação é uma estratégia importante, pois, na mudança de orientação argumentativa
estabelece meios de inclusão de argumentos por meio da aceitabilidade ou rejeição.

Discussão e Resultados Obtidos

Os resultados obtidos indicam que os conhecimentos avaliativos são formados na inter-relação entre o individual e
o social, reproduzida no e pelo discurso, e pela cognição social, guiado pela cultura do grupo social no qual está inserido,
apesar da diversidade e variabilidade dos valores e normas que regem a conduta dos indivíduos em contextos específicos.

A título de exemplificação apresentam-se as manchetes a seguir (M1), (M2) e (M3):

(M1) ‘TCU não é algoz, é parceiro’, diz Aguiar – FSP, 05/10/2009


Linha-fina: Presidente do tribunal afirma que ‘a corrupção está nos diversos setores da atividade brasileira’ e defende
‘banho de cidadania’
Lide: Para Aguiar, ‘tribunal não está mais naquele tempo de Carmelitas Descalças, com os ministros trancados, com medo
da promiscuidade’.

1153
(M2) Dilma vai à TV de ‘mãe dos pobres’ – OESP, 17/08/2010
Linha-fina: Petista dirá que representa o governo Lula e falará ao eleitorado que melhorou de vida
Lide: Dilma Roussef vai estrear hoje no horário eleitoral gratuito dizendo que representa o governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva. Além de exibir Dilma como a única candidata capaz de dar continuidade aos programas de sua gestão, o
próprio Lula vai mostrar a ex-chefe da Casa Civil como seu braço direito, uma mãe que cuida dos pobres.

(M3) Casa de Petista espeto de Tucano – OESP, 17/08/2010


Linha-fina: Cunhada do presidente Lula, moradora de São Bernardo e fundadora do PT, Otília Casa resolveu votar nos
candidatos tucanos Serra e Alckmin
Lide: Teresa Otília Casa tinha tudo para ser petista de carteirinha. Nasceu e se criou em São Bernardo do Campo, o berço
do movimento sindical nos anos 70 e 80, ajudou a fundar o partido e tem como cunhado ninguém menos do que o
presidente Lula.

1154
1. a seleção lexical das manchetes estudadas ocorre num recorte no continuum sêmico, ativando o marco das
cognições sociais do público leitor do grupo social específico, guiado pela cultura

( M 1) ‘T C U não é al goz , é par c eir o’, d iz A gu iar – F S P, 05 /10 /20 09

A partir do sistema da língua tem designações que ocorrem no uso efetivo num continuum sêmico em pólos. O
léxico recorta o contínuo na sua interioridade ou nas polaridades negativas e/ou positivas, construindo a designação
referencial no uso efetivo da língua. Por exemplo, na manchete apresentada (M1) temos as polaridades negativa/positiva na
relação entre algoz/parceiro, em que a palavra algoz está em comparação e refutação em relação à parceiro.
Segundo o Aurélio (1975: 68,1036), os verbetes apresentados em ( M1) algoz e parceiro apresentam as
respectivas definições:
Algoz : carrasco; pessoa cruel, desumana, que mata ou aflige outra.
Parceiro: igual, semelhante, parelho; aquele que está de parceria; comparte, quinhoeiro, sócio; cúmplice;
companheiro, consorte.

A relação de comparação ocorre por meio de um traço de similitude, assim temos os semas já configurados para
cada palavra em uma relação de contigüidade sintagmática que mobiliza uma seleção lexical diferenciada, estabelecendo
uma relação metafórica.

( M 2) Di lm a v ai à T V de ‘m ãe d os po br e s’ – OE S P , 1 7/08 /20 10

Segundo Possenti (2010) um traço discursivo marcante que merece atenção é o chamado uso do eufemismo, por
exemplo, na manchete (M2) “mãe dos pobres” retoma o “pai dos pobres” representando o presidente Lula e a “voz do povo”
se referindo aos que são considerados excluídos e eleitores.
Durante o Estado Novo, na Era Vargas, Getúlio Vargas era chamado de O pai dos pobres, incorporando à política,
características de personalidade. No período de 1937 à 1945, Vargas implantou um programa chamado de populista pelos
adversários.

( M 3) Ca sa de P eti st a e spe to d e T u ca no – OE S P , 1 7/ 08/2 010

O léxico recorta o continuum na sua interioridade ou nas polaridades negativas e/ou positivas, construindo a
designação referencial no uso efetivo da língua. Por exemplo, na manchete apresentada (M3) temos as polaridades
negativa/positiva na relação entre petista/tucano, em que a palavra petista está em comparação e refutação em relação a
tucano.
Destacam-se o uso das palavras petista e tucano como eufemismos, na medida em que petista anteriormente
representado como partido de oposição, o PT – Partido dos Trabalhadores, voltado para os anseios da classe trabalhadora
e atualmente incorporando um discurso político neoliberal e tucano referência ao pássaro e também à pessoa pertencente
ao partido social democrata do Brasil, o PSDB.
No exemplo das manchetes a seleção lexical ocorre por meio do saber já instituído e essas representações
cognitivas e sociais são estruturas dinâmicas que se modificam constantemente no interior dos grupos humanos, no curso
da interação comunicativa das pessoas e dos grupos sociais.

1155
2. o processo de recontextualização da notícia ocorre por meio da refuta, estabelecendo novas designações

( M 1) ‘T C U não é al goz , é par c eir o’, d iz A gu iar – F S P, 05 /10 /20 09

No uso efetivo da língua representado pelo fato noticioso no jornal temos algoz e parceiro como parassinônimos,
uma vez que uma palavra faz o papel de outra, ou seja, algoz se refere à corrupção e parceiro se refere à cidadania, na
expansão da notícia para a linha-fina, estabelecendo uma ressemantização por meio da recontextualização estabelecendo
novas designações de algoz/parceiro para corrupção/cidadania.

( M 2) Di lm a v ai à T V de ‘m ãe d os po br e s’ – OE S P , 1 7/08 /20 10

Tendo em vista os conhecimentos sociais já instituídos na sociedade no intra, inter e extragrupos sociais, os
conhecimentos ressemantizados são atualizados pela contemporaneidade dos fatos acontecidos e representados como
notícia.
Desse modo, no uso efetivo da língua representado pelo fato noticioso no jornal temos Dilma e mãe dos pobres
como parassinônimos, uma vez que uma palavra faz o papel de outra, ou seja, Dilma e mãe dos pobres se refere
continuidade do governo Lula e mãe dos pobres se refere ao braço direito de Lula, na expansão da notícia para a linha-fina,
estabelecendo uma ressemantização por meio da recontextualização estabelecendo novas designações para a candidata
Dilma Roussef.

( M 3) Ca sa de P eti st a e spe to d e T u ca no – OE S P , 1 7/ 08/2 010

No caso da manchete de (M3) ocorre um processo de recontextualização do enunciado clichê em “casa de ferreiro
o espeto é de pau”, como uma referência a ineficiência para solucionar problemas internos em oposição a eficiência
demonstrada no exterior. A manchete (M3) é construída com um acordo, pela intertextualização, com as cognições sociais,
seguido de uma transgressão.
Segundo Charaudeau & Maingueneau (2004:423) a refutação “supõe, se não uma retomada palavra por palavra
do discurso a ser refutado, ao menos uma conexão com esse discurso, sua ‘colocação em cena’”.
Desse modo, a refutação exemplificada pelas manchetes ocorre por meio da adesão inicial às definições pré-
estabelecidas e na progressão do discurso a “colocação em cena” das palavras escolhidas ocorre a refutação e/ou rejeição
do já sabido, conhecido pelo novo em uma nova relação de paridade (recontextualização).

3. os conhecimentos avaliativos são formados na inter-relação entre o individual e o social na ressemantização


da informação dada como nova, veiculada pelo jornal.

( M 1) ‘T C U não é al goz , é par c eir o’, d iz A gu iar – F S P, 05 /10 /20 09

Na progressão da manchete, linha-fina para o lide temos a incorporação de outros semas à relação algoz/parceiro,
pois progride semanticamente na dualidade entre tribunal/Carmelitas Descalças e ministros trancados/medo da
promiscuidade. A refutação ocorre por meio da rejeição da autoridade “truculenta” por uma autoridade “legitimadora” que
defende o ideal de cidadania e honestidade.

1156
A designação é retomada, estrategicamente, para atribuição de outros valores culturais e ideológicos.

( M 2) Di lm a v ai à T V de ‘m ãe d os po br e s’ – OE S P , 1 7/08 /20 10

Na sequenciação da manchete (M2) ocorre a transgressão da construção da informação ao atribuir como


predicação “mãe dos pobres” à “Dilma vai à TV” rompendo com os conhecimentos sociais já atribuídos à Dilma (atuação
política como ministra, com um passado como terrorista).
O uso da preposição de estabelece várias relações de valor à participação de Dilma como “mãe dos pobres”,
pode-se construir o complemento do advérbio, na medida em que o lugar a que se dirige – à TV, Dilma é nomeada de “mãe
dos pobres”; ou como origem, o ponto de partida estabelecendo entre Dilma e a designação um distanciamento no tempo e
no espaço; ou ainda atribuindo à Dilma uma característica como se a candidata incorporasse o objeto (ser mãe dos pobres).

( M 3) Ca sa de P eti st a e spe to d e T u ca no – OE S P , 1 7/ 08/2 010

Para Thompson (2002) uma das estratégias utilizadas pelos jornais ao construir a notícia como escândalo é
transformação do privado em público, como por exemplo, na progressão da manchete (M3) para a linha-fina e lide, Otília
Casa, uma das fundadoras do PT (público) e cunhada do presidente Lula (privado).
A transgressão de conhecimentos sociais é um procedimento cultural do brasileiro em seu cotidiano. Segundo
Silveira (2000) essa transgressão caracteriza culturalmente o brasileiro pela irreverência que provoca o riso e não a
agressão, privilegiando a cortesia como traço cultural.

As notícias são construídas tanto pelo eixo narrativo quanto pelo eixo avaliativo, a partir de uma ancoragem
temática. Os textos jornalísticos são construídos com uma estratégia interacional de forma a construir acordo com as
cognições sociais (o conhecido), a partir do qual são trazidas as informações e as avaliações do jornal (o novo).
Conclui-se que por meio da seleção lexical e suas relações semânticas por meio da enunciação do texto
jornalístico, a empresa-jornal privilegia a cultura que guia a enunciação da notícia. Na medida em que por meio do léxico
ocorre a ativação dos marcos de cognição social e os conhecimentos de mundo são ressemantizados e passam a construir
novos significados.

Referências

CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique, Dicionário de análise do discurso. Coordenação da tradução
Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.

DIJK, Teun A. Van. El discurso como interaccion social – estudos del discurso: introducción multidisciplinaria.
Volumen 2. Gedisa Editorial, 2000.

______(1997) Racism y análisis crítico de los medios. Paidós Comunicación: Barcelona, Espanha.

______(1980) La noticia como discurso – Comprensión, estructura y producción de la información. Trad. Española
de Guillermo Gal, Paidós Comunicación:Barcelona – Espanha, 1990.

FERREIRA, Aurélio B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1975.

1157
GUIMARÃES, Doroti M. A organização textual da opinião jornalística: nos bastidores da notícia. Tese de Doutorado do
Programa de Estudos Pós Graduados em Língua Portuguesa da PUC/SP, 1999.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. 2º edição. Trad. Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio
Rocha. São Paulo: Cortez, 2002.

POSSENTI, Sírio. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

POTTIER, Bernard. (et. al) Estruturas lingüísticas do Português. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.

SILVEIRA, Regina Célia Pagliuchi. “Opinião, marco de cognições sociais e a identidade cultural do brasileiro: as crônicas
nacionais”. In: Português língua estrangeira: leitura, produção e avaliação de textos. (org.) Norimar Júdice. Niterói:
Intertexto, 2000.

THOMPSON, John B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Trad. Pedro A. Guareshi. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

Mestre em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), docente da Universidade
Paulista (UNIP), membro-colaborador do grupo (NUPPLE) Núcleo de Pesquisas Português Língua Estrangeira do IP
Instituto de Pesquisas “Sedes Sapientiae” da PUC/SP. Publicações na área de Análise Crítica do Discurso e Linguistica
Textual.
Deborah Gomes de Paula - deborahpaula@ig.com.br

1158
“Eu não mudo de opinião”: estratégias para ler três
canções brasileiras da década de 60 em sala de aula

PAULO, Lucineide Lima de


(IFRJ/UFF)

Introdução
É possível observar uma evolução no ensino de língua materna nas escolas. Dos manuais à prática do professor,
nota-se uma abertura à aplicação de descobertas no campo da Análise do Discurso, da Sociolinguística etc. Essa tentativa
por parte de autores de livros didáticos e educadores evidencia uma nova maneira de conceber a educação em língua
portuguesa: voltada para a leitura e a escrita de textos, habilitando o aluno a circular na sociedade letrada, por dominar seus
gêneros e registros.
É importante saber conduzir o aluno pela leitura, indicando quais caminhos são passíveis de serem percorridos
para se tentar alcançar uma interpretação coerente, principalmente em se tratando de textos codificados (por exemplo, as
músicas de protesto que, para não serem censuradas, continham estratégias que velavam a verdadeira intenção do autor).
Acreditamos que a leitura deve ser levada ao aluno como uma forma prazerosa de relacionar-se com o mundo e
uma maneira instigante de conhecê-lo. Por isso, procuramos formular tarefas que servissem de modelo para o professor
trabalhar textos diversos em sala de aula, procedendo à leitura e à interpretação.
Ao discutir a leitura de letras de canções, não pretendemos incentivar a formação de letristas e cancionistas, mas
sim de leitores críticos capazes de ler além do que está explícito, compreendendo e interpretando. Buscamos também
permitir uma descoberta (ainda que pequena) da arte musical popular do Brasil, tornando-os aptos a “sentir” uma música
não somente pelo aspecto verbal, mas a partir de sua construção como melodia. Além disso, tal tarefa estimula o
conhecimento da cultura nacional, levando a descobrir compositores e estilos, canções e gêneros diversos, aumentando o
capital enciclopédico.

Teoria Semiolinguística
Recorremos à Teoria Semiolínguística, por a julgarmos coerente para a leitura de textos em que sujeitos
interagem entre si, já que essa interação também ocorre entre o compositor e seu público, pois o artista escreve com
intenções específicas de comunicação. Segundo essa corrente, os sujeitos usam máscaras ao estabelecer a comunicação,
por forjarem uma identidade que seja apropriada àquele ato comunicativo específico. Além disso, prevê que a situação
sociocomunicativa e a intenção dos sujeitos sejam critérios determinantes para a boa compreensão do texto.
Para ter acesso a outro universo, contudo, não é suficiente ler e identificar as palavras, reconhecendo-lhes o
significado: é imprescindível alcançar a intenção do texto, atribuindo-lhe sentido. Em outras palavras, o leitor deverá não só
compreender o texto e sua estrutura superficial, visível, mas também deverá interpretá-lo, em sua estrutura profunda, de
modo a admitir um sentido.
Esses processos – compreensão e interpretação – exigem do leitor algumas tarefas, tais como considerar o meio
social no qual o texto foi produzido, quem foi o destinatário ao qual o autor se dirigiu, entre outros. Dessa forma, na tentativa
de construir o sentido de um texto, o leitor procederá a inferências, reconhecimentos, hipóteses. Incorrerá, mesmo que
inconscientemente, em um exame das condições de produção do texto.

1159
A suposição sobre o grau de acerto, de reconhecimento entre o sentido original e o significado construído se
denomina intercompreensão. A intercompreensão não poderá ser plena, haja vista o universo referencial variar de indivíduo
a indivíduo.
Para que o destinatário realize um cálculo capaz de perceber o sentido proposto pelo falante, é preciso ter em
conta os universos de referências partilhados por eles. Por isso a significação não se restringe ao ato de linguagem em si (o
que seria um espaço interno), mas considera também o mundo em que vivem os sujeitos (espaço externo).
No espaço externo, estariam as pessoas reais, seres sociais, dotados de intenções: o sujeito comunicante e o
interpretante. Já no espaço interno, virtual, haveria sujeitos da fala – o enunciador e o destinatário –, responsáveis pelo ato
de enunciação, os quais seriam como máscaras usadas pelos sujeitos do espaço externo. A esse jogo de encenação,
Charaudeau chama Contrato de Comunicação.

Ethos
Para tratarmos de imagens feitas de si – máscaras – que se propõem a levar o outro a crer em determinado
conteúdo, revisamos a teoria a respeito de ethos. Segundo os teóricos, cada sujeito apresenta de si uma imagem que seja
conveniente ao objetivo, isto é, os falantes comportam-se de modo a deixar transparecerem alguns traços que os
caracterizariam como certo tipo de pessoa. A imagem criada foi importante para a classe artística na década de 60. Vejam-
se, por exemplo, os cantores que optaram por produzir canções comprometidas com o regime: possivelmente construíram
um ethos de interesse para os militares.
Essa representação do ethos do enunciador pode ser construída pelo outro a partir do texto recebido, ou, até
mesmo, antes de o enunciador iniciar sua fala. A essas duas possibilidades, Maingueneau (2005a, p. 71) denomina ethos
discursivo e ethos pré-discursivo, respectivamente, pois “se o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, não se
pode ignorar, entretanto, que o público constrói representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale”.
Para Charaudeau (2006, p. 115), o ethos ocorre por um cruzamento de olhares: “olhar do outro sobre aquele que
fala, olhar daquele que fala sobre a maneira como ele pensa que o outro o vê”. É por essa razão que esse outro se apoia
não apenas nos dados trazidos pelo ato de linguagem, mas também pelo que ele sabe a priori do locutor, isto é, os dados
preexistentes.
Verifica-se, dessa forma, porque o ethos não pode ser considerado absolutamente discursivo por um lado, nem
completamente extralinguístico por outro: ele tem origem na instância verbal, por meio da qual, todavia, se pode
experimentar o extraverbal, isto é, a confiança, a convicção e a persuasão.
O ethos não é uma imagem declarada, mas subentendida. Uma das estratégias para apresentar uma idéia e não
estar visivelmente comprometido com ela (segundo o aspecto linguístico) é o emprego de expressões modalizadas. Assim,
a modalização também é um recurso a ser empregado, por se mostrar adequado à desvinculação entre o dito e o autor do
texto, indicando vários níveis de engajamento.

Modalização
Assinalar um dito com um grau de certeza, ou de possibilidade (entre outros aspectos), é uma estratégia
linguística que aponta o grau de engajamento do locutor e, simultaneamente, interfere na leitura que se fará desse texto.
Assim, é por meio da modalização – essa marca que se grava no enunciado – que o falante pode indicar de que maneira
ele se relaciona com o dito e com o outro que tem acesso a esse texto. Para Palmer (1986, p. 16), que destaca o papel
subjetivo do locutor, “a modalidade é a gramaticalização das atitudes e opiniões (subjetivas) do falante” (grifo nosso).

1160
Vale lembrar que, para Neves (2006, p. 152), não se pode conceber que o falante deixe de marcar, de algum
modo, o seu enunciado: não haveria, portanto, texto não modalizado. Concorda Cervoni (1989), afirmando que a frase
menos modalizada abriga uma modalidade mínima, manifestada, por exemplo, pelo modo verbal (como na proposição “A
terra gira em torno do sol”). Charaudeau (1992, p. 573), por sua vez, reforça que, embora não haja nenhuma marca
linguística explícita, a organização do enunciado – relacionada a outros índices, verbais e não-verbais – manifesta uma
modalização. E cita um exemplo: “Eu voltarei amanhã” pode exprimir uma promessa, uma ameaça, um aviso, uma asserção
de evidência ou uma simples resignação.

Tipos de Modalidades
a) Modalidade Alética : também chamada lógica, relaciona-se ao fato de as proposições poderem ser
consideradas segundo o critério de;
b) Modalidade Epistêmica: essa modalidade está relacionada ao fato de as proposições terem a capacidade
de apontar a crença, ou conhecimento e até a opinião do falante;
c) Modalidade Deôntica: essa modalidade está relacionada às ideias de obrigação e permissão (incluindo-se
as noções de proibido e facultativo);
d) Modalidade Bulomaica: também chamada volitiva, essa modalidade está relacionada aos desejos do
falante;
e) Modalidade Disposicional: também chamada habilitativa, está relacionada à ideia de capacitação,
habilitação, aptidão.

Memória histórica
Entender a motivação dos compositores ao criarem músicas que questionassem o sistema vigente – ou, por outro
lado, daqueles que se abstivessem de fazê-lo – requer um mínimo de conhecimento acerca do contexto social em que
viveram. Por isso, faz-se necessário um breve resumo histórico que situe a produção artística nacional.
De 1964 a 1985, a ditadura militar foi o sistema de governo brasileiro. Nesse período, os direitos foram cerceados
e a liberdade restrita. Não havia eleições (os presidentes eram generais escolhidos por juntas de comandantes), as greves
foram proibidas, os opositores sofriam perseguição, podendo ser presos e até mortos.
Em 1967, o então presidente Castello Branco cedeu o governo a Costa e Silva, que permaneceu no poder até
1969. Nesse espaço de tempo, apesar da proibição, houve algumas greves. Também passeatas foram organizadas pela
UNE, que funcionava clandestinamente. Nesses protestos, havia violência e morte, o que não desanimava os estudantes e
demais participantes. A maior delas foi a chamada Passeata dos Cem Mil que, em junho de 1968, tomou a Avenida Rio
Branco, em direção à Cinelândia. Como tentativa de controlar as cada vez mais frequentes manifestações, em dezembro
daquele ano, Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, uma espécie de “lei”, cujo teor era referente, basicamente, ao
fechamento do Congresso, à suspensão dos direitos políticos e das garantias legais. Por meio desse Ato, a ditadura tornou-
se ainda mais severa: nenhuma oposição seria tolerada (passeatas, muros pichados etc.). É verdade que, mesmo antes
desse Ato, já havia sinais de endurecimento do regime militar para conter manifestações, como o Estado de Segurança
Nacional, que autorizava tanto a intensa campanha de combate às manifestações de rua – principalmente as estudantis –
quanto as detenções, em todo o país. A censura também já existia, desde 1946, porém se tornou mais sistemática e
estritamente política.
Nesse período, a música popular brasileira sofreu os efeitos da repressão, pois foi possível observar mudança de
temáticas em alguns compositores, mesmo os da Bossa Nova: houve artistas, como Zé Ketti, Carlos Lyra e Edu Lobo que

1161
passaram a se identificar com a questão social. Além disso, houve contínua proibição de gravação de determinadas
músicas, com a censura prévia, e prisão e exílio de inúmeros compositores e poetas.

Cultura e identidade
Conhecer uma sociedade e os sujeitos que nela convivem implica reconhecer traços culturais particulares daquele
grupo. Em outras palavras: compreender por que determinado grupo social age de uma forma específica, e não de outra,
está muito mais relacionado aos costumes, padrões de comportamento e de visão do mundo que à natureza humana e aos
instintos.
Se os grupos sociais se caracterizam por suas similaridades quanto aos modos de pensamento e de vida, como
identificar um indivíduo dentro de um grupo social? Ele se tornará irreconhecível em um grupo teoricamente homogêneo?
Uma resposta possível, segundo a Antropologia, é tomar o indivíduo a partir de sua identidade social. Essa identidade

se caracteriza pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social: vinculação a uma classe
sexual, a uma classe de idade, a uma classe social, a uma nação etc. A identidade permite que o
indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado socialmente. (CUCHE, 2002, p. 177)

Já houve a crença de que a identidade de um indivíduo poderia ser determinada, descrita sem falhas. Essa era
uma visão que tomava o sujeito como alguém livre para escolher, e único. Entretanto, reconhece-se atualmente que o
sujeito manifesta identidades distintas, uma vez que, nos diferentes momentos em que interage, está assumindo diversas
posições de sujeito, isto é, não se comporta como um ser imutável, mas instável – embora esteja dentro de uma
previsibilidade.
Verifica-se, porém, que a carga semântica do termo identidade remonta ao conceito do que é invariável: a palavra
já está marcada com o traço do pré-configurado, permanente – diferentemente dos sujeitos na realidade. Assim, hoje, falar
em identidade ainda equivale a crer que o indivíduo se constitui de uma essência imutável. Por isso, sugere-se o uso do
termo identidades, que assinalaria o caráter múltiplo, plural dos sujeitos, os quais teriam à disposição algumas “posições de
sujeito” com as quais se movimentariam em sociedade, ou o termo identificação, denotador de um processo contínuo de
construção do sujeito.
Cabe ao indivíduo construir uma identidade, a partir das representações e escolhas orientadas pelos contextos
sociais. Depois de formulada, essa identidade apresentará eficácia social, já que produz efeitos sociais reais. Por isso,
passará a compor o imaginário social, em menções cotidianas, ou mesmo em objetos artísticos, como as canções. Tais
sistemas de representação e os discursos, portanto, constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se
posicionar e, a partir dos quais, podem falar (para ilustrar: novelas ajudam a construir certas identidades).

Cenário Musical da década de 60: as canções do período


A canção deve ser tomada com um estatuto autônomo em sala de aula, apesar de alguns dos seus traços se
assemelharem aos do poema. Devem ser apreciadas diversas particularidades da música, como ludismo sonoro, imagens,
ritmo, inventividade, musicalidade. Além disso, não se deve prescindir de contextualizar o momento criativo da canção, pois
ela pode ser uma resposta a uma situação histórica que vale ser mencionada, a título de compreensão da realidade e da
identidade social do país.
Por exemplo: alguns jovens bossa-novistas, como Carlos Lyra e Nara Leão, buscaram integrar-se ao samba,
fosse para manifestar seu engajamento social, fosse para descobrir novas possibilidades musicais. Compare-se a inocência
da canção Lobo Bobo (Lyra e Ronaldo Bôscoli) e a contundência de Maria do Maranhão (Lyra e Nelson de Lins e Barros).

1162
Vale, também, mencionar o trabalho desenvolvido pelo Centro Popular de Cultura (CPC), constituído por jovens
universitários, cuja intenção era promover eventos que deslocassem o sentido da música popular de problemas individuais
para questões populares, esclarecendo o povo. Campos (1974) distinguiu duas linhas dessa bossa nova participante: a
primeira, com uma linguagem mais agressiva, abordava problemas como reforma agrária; a outra expunha condições
subumanas de vida em certas regiões, sob uma forma expressiva não diretamente crítica, mas somente em tom de lamento
(como em Zé Ketti e Chico Buarque).

Leitura de três canções


1. OPINIÃO – 1964 (compositor e intérprete: ZÉ KETTI)
<http://www.mpbnet.com.br/musicos/ze.keti/letras/opiniao.htm>
Podem me prender / Podem me bater / Podem, até, deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião / Daqui
do morro / Eu não saio, não / Se não tem água / Eu furo um poço / Se não tem carne / Eu compro um osso / E
ponho na sopa / E deixa andar / Fale de mim quem quiser falar / Aqui eu não pago aluguel / Se eu morrer amanhã,
seu doutor / Estou pertinho do céu

Esse samba foi divulgado em 1964, durante o show Opinião, do qual faziam parte, além de Zé Ketti, Nara Leão e
João do Valle (o disco Opinião, entretanto, foi gravado somente em 1965). Nara Leão, vale lembrar, antes considerada
musa da bossa nova, migra para a canção de protesto e procura revelar e recordar sambistas, nos quais busca uma música
engajada.
Após as informações de condições de produção desse texto, é possível verificar que o universo referencial não se
construiu inocentemente. Há uma identificação dos seres de forma a descrever um quadro de oposição: o morador do morro
vs. os outros – representados pela força bruta da prisão e pela violência física, que podem conduzir à conclusão de que se
trata de força militar (policial ou não). Ao referir-se a si próprio, o eu-lírico não descarta o pronome pessoal; mas, ao referir-
se aos outros, vale-se de verbo na terceira pessoa do plural, indeterminando o sujeito. Além disso, somente ao final há a
menção ao destinatário: “seu doutor” – o que também indica a oposição entre ele e o outro, tido como doutor, um vocativo
capaz de conotar diferença de classe social, por exemplo.
A partir das descrições das reações do morador do morro (furar poço, comprar osso), verifica-se sua atitude e
opinião. Esse discurso de resistência, vale lembrar, era cantado em espetáculo, cujo público, possivelmente, não
compartilhava tais condições de vida. A própria cantora Nara Leão, com quem o palco era dividido, provinha de uma origem
mais abastada. Vê-se, portanto, que a intenção do compositor/ intérprete era a de expor a esse destinatário (sob essa visão,
tido como ideal) outra realidade.
A imagem construída pelo eu-lírico é aquela de um sujeito corajoso e perseverante, que não se importa em ser
preso ou apanhar em nome de seu objetivo (permanecer morando no morro). Assim, torna-se um sujeito criativo para poder
contornar os problemas surgidos (falta de água ou de comida).
Para expressar seu engajamento em relação ao dito, o sujeito opta por modalizar o texto, manifestando-se em
primeira pessoa, assumindo um “eu” que emite tais opiniões. Além disso, o modo verbal indicativo, no tempo presente (a
cada “resposta” a uma hipótese trazida pelo subjuntivo) aponta para um alto grau de certeza e envolvimento. Como quer
provar que sobrevive às diferentes dificuldades, e o faz como opção para permanecer residindo no morro, o sujeito autoriza
o outro a determinadas ações (Podem me prender/ Podem me bater/ Podem, até, deixar-me sem comer). Age, assim,
segundo uma modalidade deôntica, já que esse seria o eixo das permissões, marcado pelo emprego do imperativo.

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2. CARCARÁ – 1964 (compositores: JOÃO DO VALLE e JOSÉ CÂNDIDO; intérpretes: NARA LEÃO ou MARIA
BETHÂNIA)
<http://www.fundacaojoaodovale.com.br/musicas.html>
Carcará / Pega, mata e come / Carcará / Não vai morre de fome / Carcará / Mais coragem do que home / Carcará / Pega,
mata e come / Carcará / Lá no sertão / É um bicho / Que avoa que nem avião / É um pássaro malvado / Tem o bico
volteado / Que nem gavião / Carcará / Quando vê roça queimada / Sai voando, cantando / Carcará / Vai fazer sua caçada
/ Carcará / Come inté cobra queimada / Quando chega o tempo / Da invernada / No sertão / Não tem mais roça queimada
/ Carcará / Mesmo assim num passa fome / Os borrego que nasce / Na baixada / Carcará / Pega, mata e come / Carcará /
Não vai morre de fome / Carcará / Mais coragem do que home / Carcará / Pega, mata e come / Carcará / É malvado, é
valentão / É a águia de lá / Do meu sertão / Os borrego novinho / Num pode anda / Ele puxa no bico / Inté mata / Carcará

Essa canção segue as mesmas condições de produção da anterior, pois também foi lançada durante o espetáculo
Opinião. Entretanto, Nara Leão (que a interpretara entre 1964 e 1965) precisou se afastar por motivo de doença. Ela mesma
escolhera a substituta: Maria Bethânia, contando então com 18 anos e desconhecida no Rio de Janeiro.
Durante o espetáculo, Maria Bethânia releu a canção “Carcará”, acrescentando uma introdução: “Glória a Deus
Senhor nas alturas/ E viva eu de amargura/ Nas terras do meu senhor”. Esse trecho era parte da canção “Glória in Excelsis
(Missa Agrária)”, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri.

Maria Bethânia se tornou estrela da noite para o dia no Rio de Janeiro, no início de 1965. Tudo nela era
diferente de todas as outras, muito diferente: voz, figura, gestos, sexualidade, sotaque baiano. Atitude.
(MOTTA, 2000, p. 90)

Fazendo referência ao sertão, inclusive citando estatísticas do êxodo nordestino ao final da canção, Maria
Bethânia transformou essa música em um verdadeiro hino de denúncia dos problemas da região nordeste.
Essa postura de Maria Bethânia criou um ethos diferente do ethos com que se apresentava Nara Leão. Surgiu,
então, um ethos de coragem, força e perseverança.
A respeito do aspecto mostrado da canção, observe-se a prosódia, que imita o falante do interior, com baixo grau
de escolaridade (cuja representação se manteve na escrita): “come inté”, “os borrego que nasce” etc. Também essa opção
remete a um ethos específico: modifica-se o ethos inicial para outro, cujo gesto aponta para um sujeito do interior, vigoroso,
ativo como trabalhador, e sobrevivente.
Carcará é uma ave aparentada dos falcões, mas cujos hábitos e voo a aproximam do urubu: não é um predador,
mas um chamado oportunista, que se alimenta de insetos, roedores e outras presas fáceis, como filhotes. Frequentemente,
acompanha os urubus em busca de carniça.
Toda a letra da canção é uma apresentação do carcará, suas ações e seus hábitos. O sujeito que o descreve
mostra-se dono de um saber (é a recorrência à modalidade epistêmica, ainda que não explicitamente). A semiotização do
mundo, portanto, se dá pela descrição da ave, que é do tipo “valentão”, é “pássaro malvado” que, quando vê queimada, já
deduz que haverá farta comida para ser caçada, ainda que seja “cobra queimada”. Essa ave é tão corajosa/ má que,
mesmo quando não há queima de roça, haverá um borrego, isto é, um carneiro de até um ano de idade, para pegar, matar
e comer.
Essa qualificação do ser pode ser metonimicamente transferida para o homem sertanejo, também valente, que
supera as dificuldades e, de uma forma ou de outra, consegue sobreviver. Esse deslizamento de sentido, a partir do que foi

1164
proposto literalmente, só é possível sob um esforço interpretativo que contemple possibilidades linguísticas e conhecimento
da situação comunicativa.
Relevante para compor o sentido global do texto é a insistência no emprego do presente do indicativo: marcado
pela certeza, o tempo verbal denota não algo efetivamente no presente, mas descreve uma ação costumeira, frequente, que
vale para qualquer tempo. Essa noção temporal reforça a ideia de que a ação do carcará é incisiva: “Pega, mata e come”.

Proposta de Exercícios para alunos de Ensino Médio


Vamos, a seguir, ler o samba “Opinião”, composto por Zé Ketti para o espetáculo de 1964. Antes, contudo, vamos
ler dois trechos de artigos que explicam o surgimento das favelas, para situar o conteúdo discutido na canção.

Texto 1
Considerada oficialmente a primeira favela do Rio de Janeiro, o Morro da Providência, que fica atrás da Central do
Brasil, foi batizado no final do século 19 como Morro da Favela, daí também a origem do nome (substantivo) que se
espalhou depois por outras comunidades carentes do Rio de Janeiro e do Brasil. Os primeiros moradores do Morro da
Favela eram ex-combatentes da Guerra de Canudos e se fixaram no local por volta de 1897. Cerca de 10 mil soldados
foram para o Rio com a promessa do Governo de ganhar casas na então capital federal. Como os entraves políticos e
burocráticos atrasaram a construção dos alojamentos, os ex-combatentes passaram a ocupar provisoriamente as encostas
do morro - e por lá acabaram ficando.
(<http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=40&sid=3 >)

Texto 2
Gênese da favela no Rio de Janeiro: um olhar mais atento
A população pobre, habitante em sua maioria das favelas cariocas, no decorrer do processo de urbanização da
cidade foi discriminada e excluída do planejamento urbano em detrimento de uma classe dominante, que visava à utilização
do espaço urbano como símbolo urbanístico moderno (...).
Ao espaço da cidade é atribuído um valor intrínseco que corresponde ao preço da localização e da infraestrutura
depositada nele. Todos os moradores precisam pagar por esses serviços (água, luz, esgoto, linhas telefônicas, transporte,
ruas pavimentadas etc). No entanto, na favela, devido à ausência destes serviços (com exceção da água e da luz), o
morador não paga pelo terreno e nem pela localização.(...)
Dessa forma, a favela como espaço diferenciado do espaço da cidade, por ser o locus da exclusão, desenvolveu
através dos seus símbolos (arquitetura, modo de vida, espaços construídos) seus desejos, memórias, representações,
ritualizações e estratégias de utilização desse espaço mítico, composto de elos de solidariedades, identidade e experiências
de vida. Um espaço que simboliza o imaginário de lutas e construção de uma identidade coletiva. (...)
Rogério Ferreira de Souza
In: Favela e os Espaços Monumentalizados: um lugar de memória coletiva e símbolo de resistência. Morpheus -
Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 02, número 03, 2003. Acesso em 01 fev. 2010. Disponível em
<http://www.unirio.br/morpheusonline/... >

1. Pelo seu conhecimento de mundo atual, essa música ainda apresenta, hoje, o mesmo efeito de sentido que em 1964,
ou, como a situação histórica mudou, a interpretação também mudou? Discuta sua conclusão, justificando-a.

1165
2. Modalização é a indicação da postura do sujeito no texto, por exemplo, indicando certeza ou dúvida a respeito de
alguma declaração. Nesse raciocínio, qual seria o efeito de sentido gerado pelo uso repetido do verbo poder? Ele
está implícito em algum outro trecho?
3. No texto, narra-se um posicionamento de resistência a um gesto (violentamente) insistente. Explique ambos com suas
palavras.
4. Relacionando essa atitude de resistência à situação sócio-histórica, é possível distinguir outros sentidos implícitos?
Discorra sobre isso.
5. Há duas expressões que revelam quem é o eu-lírico do texto e como ele se posiciona frente ao outro. Que efeitos de
sentido revelam os trechos abaixo?
“Eu compro um osso” e “Se eu morrer amanhã, seu doutor”
6. A canção reforça ou quebra o estigma (mantido no imaginário social) sobre as pessoas que moram no morro? Por
quê?
7. Veja as duas imagens abaixo: a primeira, um quadro de Portinari; a segunda, uma charge de Angeli. Você vê relação
entre a canção “Opinião” com algum aspecto presente nessas figuras? Explique com suas palavras.

Morro - 1957 Charge sem título e sem data


(entre 1990-2000)

Vamos ler e ouvir, agora, outra canção de Zé Ketti, agora em parceria com Hortêncio Rocha.

3. DIZ QUE FUI POR AÍ – 1964 (compositores: ZÉ KETTI e HORTÊNSIO ROCHA)


Se alguém perguntar por mim / Diz que fui por aí / Levando o violão embaixo do braço / Em qualquer esquina eu paro /
Em qualquer botequim eu entro / E se houver motivo / É mais um samba que eu faço / Se quiserem saber se volto / Diga
que sim / Mas só depois que a saudade se afastar de mim / Mas só depois que a saudade se afastar de mim / Tenho um
violão para me acompanhar / Tenho muitos amigos / Eu sou popular / Tenho a madrugada como companheira / A
saudade me dói em meu peito que rói / Eu estou na cidade eu estou na favela / Eu estou por aí sempre pensando nela

8. Qual é a imagem construída por esse sujeito (isto é, qual é o ethos presente)?

1166
9. A imagem construída aproxima-se mais da figura de um aventureiro, de um trabalhador ou de um malandro?
Justifique com elementos do texto.
10. Qual seria o sentido da expressão “por aí”? O que ela indica de fato?

Nesse mesmo espetáculo (em que se lançaram as canções “Opinião” e “Diz que fui por aí”), Maria Bethânia, já em
1965, ficou famosa por sua interpretação da canção “Carcará”. Nessa época, ela contava apenas 18 anos. Leia um trecho
a respeito:
O golpe militar de 1964 parecia interromper bruscamente a movimentação cultural efervescente na época. Mas, ao
contrário, as forças de resistência e os núcleos de criação multiplicaram-se. Um dos espetáculos de maior importância
naquele momento histórico foi o Show Opinião, idealizado, escrito e produzido por Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar,
Paulo Pontes e Armando Costa e dirigido por Augusto Boal. Estreou no Rio de Janeiro com a cantora Nara Leão, e os
compositores e cantores João do Vale e Zé Kéti. Em 65, Nara foi substituída por motivo de doença por uma jovem cantora
nordestina de voz grave, chamada Maria Bethânia, que estreou profissionalmente no dia 13 de fevereiro. Cantando Carcará,
música de João do Valle, Bethânia arrebatou público e crítica e fincou raízes em definitivo naquele que é até hoje o seu
lugar do sagrado e do mistério da criação - o palco. (http://www.mariabethania.com.br/)

1. Considerando o perfil da cantora e a descrição da ave carcará, responda: essa canção pode ser considerara de
protesto?
2. A partir da apresentação pessoal (gestos, postura no palco etc.), caracterize a intérprete e a imagem que ela
transmite de si (após exibição de vídeo com apresentação da cantora).
3. Ao descrever o carcará, o compositor pode estar chamando a atenção do ouvinte para outro elemento, trabalhando a
imagem do carcará como uma metáfora. A que elemento a ave está sendo comparada? Justifique.
4. Por que o compositor teria optado pela pronúncia símbolo do homem do interior, daquele a quem falta escolaridade?
5. A respeito do espetáculo “Opinião”:
a. A quem você considera que ele se dirigia, a que tipo de público?
b. Você acredita que as escolhas do compositor e do intérprete foram adequadas à situação social do auditório, seus
hábitos e faixa etária?
c. Qual a intenção deles para agirem desse modo, para realizarem tais escolhas?
d. Considerando, por fim, as duas outras canções que constituíam o show e foram vistas anteriormente (“Opinião” e
“Diz que fui por aí”), como se poderia caracterizar o perfil do enunciador, em sentido amplo?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Já é lugar-comum afirmar a importância da leitura: saber ler deve equivaler a construir sentidos, a significar o
mundo. Entretanto, como desenvolver uma habilidade em leitura, como auxiliar alguém (um aluno, por exemplo) a ser capaz
de navegar entre textos e sentidos?
Vimos a necessidade de um trabalho coordenado, entre disciplinas do conhecimento do professor: linguística e
análise do discurso, por exemplo. Entretanto, muito importante também é o conhecimento geral do professor: história,
cultura, música etc.
Se a leitura fornece um novo mundo, há a necessidade de um professor que esteja pré-disposto a buscar alguma
informação extralinguística para incentivar a leitura. É importante, por vezes, considerar o contexto social, histórico, cultural
para ler um texto. Essa foi a hipótese que aqui seguimos, conforme a Análise do Discurso, segundo Patrick Charaudeau:

1167
para esse autor, o sujeito é capaz de produzir, mas sob influências externas, isto é, a situação sociocomunicativa é
determinante para a produção textual. Por isso julgamos a década de 1960 significativa para a música, no Brasil: havia uma
efervescência cultural surgida sob a pressão de um regime militar que controlava a imprensa e censurava a arte, em geral.

Referências

CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. (Coleção
Debates)

CERVONI, Jean. A enunciação. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Série Fundamentos, nº 61)

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Contexto, 2006. (Tradução Fabiana Komesu e Dilson Ferreira da
Cruz).

______. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.

______. Les Conditions de compréhension du sens de discours. IN: I Encontro Franco-Brasileiro de Análise do Discurso
CIAD/CAD, 1994, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 1995. p. 9-16.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002. (Tradução de Viviane Ribeiro)

MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, Cenografia, Incorporação. IN: AMOSSY, Ruth. Imagens de si no discurso: a
construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

MOTTA, Nelson. Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.

PALMER, Frank Robert. Mood and modality. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. (Cambridge Textbooks in
Linguistics)

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização – 1964/1984. In:
LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Campus/ Elsevier, 1990.

Lucineide Lima de Paulo é doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense (ano de defesa: 2010) e,
atualmente, atua como professora em dedicação exclusiva no Instituto Federal do Rio de Janeiro, campus Duque de
Caxias. Email: prof.lucineide@gmail.com.

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“Você é?”: A construção de uma identidade gay em sites
de relacionamento

PELLIM, Tiago
(UFRJ)*

1. Introdução
Na contemporaneidade, mudanças nas práticas comunicativas cotidianas aliadas às inovações tecnológicas na
mídia têm modificado bruscamente a nossa compreensão do tempo e espaço, propiciando novas experiências sociais e de
si e, consequentemente, novas compreensões acerca das identidades (nossas e dos ‘outros’). Esse fenômeno está
diretamente ligado, segundo Moita Lopes (2006), a uma tomada de consciência da redefinição pelo qual passam as
identidades dos sujeitos na atualidade, de forma que aquele sujeito homogêneo, típico da ciência positivista, está sendo
questionado e, em alguns casos, substituído por um sujeito construído no discurso e repleto de atravessamentos
identitários. Fabrício (2004, p. 236) aponta que vivemos em um momento em que a coexistência de posturas, muitas vezes
antagônicas, sobre as identidades sociais é fato marcante. Por um lado correntes teóricas procuram questionar o clássico
dualismo cartesiano mente/ corpo e caracterizar o sujeito como construído socialmente, instável e fragmentado. No entanto,
tais teorizações convivem com discursos cientificistas que buscam a explicação do sujeito através de uma óptica biológica
que naturaliza saberes sob o rótulo de verdades absolutas.
Partindo desse panorama, neste trabalho me proponho a analisar a construção de uma identidade gay em
propagandas de sites de relacionamentos voltados para esse público. Para tanto, analisarei o modelo de disposição gráfica
bem como o grau de modalidade dos elementos dispostos nas propagandas conforme sugerido por Machin e van Leeuwen
(2007), buscando resgatar possíveis identidades de estilo de vida que comparecem nas propagandas.
Com este trabalho, estou propondo uma reflexão acerca do repertório simbólico que a mídia faz circular e que é
apropriado pelos sujeitos em suas práticas sócio-discursivas na construção de suas identidades sociais, nesse caso, de
sujeitos que se constroem como homoeróticos. Como ressalta Fabrício (2004, p, 241) se embasando em Fridman (2000),
“observar as histórias que [pela mídia] circulam e compreender sua dinâmica de produção e de incorporação ao senso
comum pode colaborar para o entendimento do processo de produção de identidades aparentemente ‘estáveis’ no mundo
social”. Busco destacar, então, quais são alguns dos traços identitários geralmente associados ao grupo de sujeitos aqui
aludidos que podem, se tomados como inerentes aos indivíduos, acabar engessando certos modos de vida.

2. Identidades, Discurso e Mídia


Para atender aos objetivos propostos para este trabalho, utilizo como base a Teoria Socioconstrucionista das
Identidades. Essa teoria, ao se posicionar contra o essencialismo característico de uma perspectiva monocultural, para
quem, segundo Semprini (1999, p. 90), “os grupos e as identidades seriam dados objetivos da realidade social”, mostra-se
mais pertinente se quisermos dar conta do caráter sócio-histórico e cultural das identidades. Sendo assim, acredito ser
importante deixar claro desde já qual a compreensão de identidades que adoto aqui. Para tanto, recorro a Fabrício e Moita
Lopes (2008) que definem tal conceito

1169
“não como um conjunto de atributos genéticos e permanentes do sujeito, mas sim como uma variedade
de características discursiva e socioculturalmente construídas que classificam o sujeito de acordo com
diferentes indicadores de sexualidade, de gênero, de raça, de classe, de idade etc.” (p. 66).

Dessa forma, compartilho com esses autores a idéia de que as identidades sociais não possuem qualquer tipo de
essência. Pelo contrário, as identidades são fruto das interações sócio-discursivas com as quais nos engajamos diariamente
ao longo de nossa experiência social. Sendo assim, os sentidos que fazemos das identidades e dos quais nos apropriamos
no processo de construção das nossas próprias identidades variam sempre a depender dos discursos com os quais temos
contato. Como propõem Fabrício e Moita Lopes (2008, p. 66), as identidades são “produto de intenso processo de
aprendizagem de significados disponibilizados na cultura”.
Importante ressaltar aqui uma característica das identidades sociais que é abordada por Tadeu da Silva (2000, p.
74). Trata-se do caráter relacional entre a identidade e a diferença, sendo que aquela remete a uma positividade, “aquilo
que se é”, enquanto que esta se refere “àquilo que o outro é”. Em outras palavras, a afirmação de uma identidade só é
possível porque há uma diferença que é negada e tomada como antagônica à identidade. Segundo o autor, essa relação é
sempre pautada por relações de poder, de forma que a definição da identidade e da diferença não é nunca neutra. Surge
daí a possibilidade de estabilização de certas identidades e/ou práticas sociais enquanto outras se tornam ilegítimas,
patologizadas, enfim, “não-normais”.
Tadeu da Silva (2000) destaca o processo de classificação como forma de hierarquizar identidades, atribuindo
valores diferentes aos diferentes grupos ou classes. Nesse caso, a classificação estruturada a partir de oposições binárias
mostra-se a mais eficiente, já que um dos elementos é sempre classificado positivamente em oposição ao outro que é tido
como errado, desviante, anormal, enfim, negativo.
Fabrício e Moita Lopes (2008, p. 65) se apóiam em Foucault (1988/ 2001) para afirmarem que é justamente esse
tipo de classificação binária que vem sendo utilizada como reguladora da sexualidade dos sujeitos. Segundo os autores,
“desde o século retrasado (...) a idéia de sexualidade vem sendo construída pelo dualismo hetero-homo, que a reduz a uma
questão de instinto (padrão ou pervertido) advindo de marcas anátomo-fisiológicas e funções biológicas específicas”. Essa
matriz discursiva binária encontra-se presente nos mais diversos discursos e espaços (institucionais e não institucionais) e
orienta nossas crenças sobre as práticas sexuais, bem como as próprias práticas de vivência do desejo sexual. No entanto,
em tempos de questionamento dessa oposição hetero-homo, surgem novas classificações binárias que também acabam
atuando com fins de regulação dos sujeitos. Tais classificações, acredito, estão presentes nos dados analisados e serão
levantadas na seção analítica desse trabalho.
Com relação à classificação da sexualidade humana segundo a oposição hetero-homo, Fabrício e Moita Lopes
(2008) apontam que a mídia em geral tem contribuindo na manutenção dessa matriz binária. De fato, os discursos que
definem o gênero e a sexualidade dos sujeitos em função de sua anátomo-fisiologia não são raros. No entanto, mais
contemporaneamente, novos discursos que apresentam visões alternativas sobre as identidades de gênero e as
sexualidades também têm ganhado mais espaço na mídia em geral. Fabrício (2004, pp. 241-2) chega a mencionar que a
mídia tem atuado em um movimento duplo de percepção da heterogeneidade, mas também de manutenção de um senso
de homogeneidade. Segundo a autora, apesar de haver um movimento atual em divulgar novas vozes e novas
possibilidades identitárias, a mídia em geral ainda “contribui para o engessamento de modos de ser”, já que constrói
atributos identitários a partir de uma visão inatista, desconsiderando a natureza social e intersubjetiva das identidades
sociais.

1170
Em se tratando dos anúncios publicitários em específico, Gauntlet (2000, p. 139), se apóia em Cronin (2000) para
mostrar que as propagandas normalmente destacam o poder de escolha dos indivíduos como poder de transformação
desses indivíduos através da compra de determinados produtos. “Estas escolhas são vistas como expressões de nossas
identidades individuais”. Machin e Van Leeuwen (2007, pp. 50-1) classificam tais possibilidades identitárias como
identidades de estilo de vida, que se caracterizam como um conjunto de características baseadas fundamentalmente em
aparências e que têm como finalidade criar novas formas de incentivo ao consumo, já que as identidades de estilo de vida
mudam de acordo com a moda, o que obriga as pessoas a estarem sempre atentas às novas tendências e as leva a
consumir novos produtos se quiserem manter certas identidades.
Frente a esse panorama, Fabrício (2004, p. 241) ressalta a importância das pesquisas que trabalham com os
discursos midiáticos em geral (de forma que incluo aqui as propagandas, foco desse estudo) enquanto produtores de
subjetividades, analisando os valores socioculturais que tais discursos (re)produzem, refutam e/ ou legitimam, já que
possuem um papel “constitutivo da sociedade e das identidades sociais”. Esta é, acredito, uma das contribuições que este
trabalho tem a oferecer.

3. Análise de Disposição Espacial e de Modalidade


Para efeito de análise das propagandas utilizo como ferramenta metodológica a análise de disposição espacial e
de modalidade conforme proposto por Machin e van Leeuwen (2007). De acordo com estes autores, a modalidade faz
referência aos recursos semióticos que indicam quão verdadeiro ou quão real deve ser considerado o conteúdo de uma
mensagem. A escolha desse ferramental analítico se justifica devido ao fato de que, por se tratar de anúncios publicitários,
a modalidade é geralmente utilizada de forma bastante estratégica no estabelecimento de uma identificação entre o
consumidor e determinado produto/ serviço e, possivelmente, a compra ou utilização do mesmo.
Em primeiro lugar, Machin e van Leeuwen (2007) ressaltam a importância da disposição espacial dos elementos
semióticos (tanto verbais como visuais) nas páginas das revistas e nos espaços dos anúncios em si. Dessa forma, um
anúncio de página inteira, como é o caso daqueles que serão analisados aqui, pode ser organizado de três diferentes
formas, sendo que tais formas não são fixas e podem ser combinadas em uma mesma propaganda. Além disso, deve-se ter
em mente que os modelos descritos pelos autores são uma tendência sobretudo na mídia ocidental, mas não são
hegemônicos. As propagandas podem ser organizadas das seguintes formas:

• Horizontalmente, onde o elemento da esquerda já é ‘dado’, conhecido pelo leitor, e o elemento da direita
é o novo e para onde a atenção deve ser dirigida;
• Verticalmente, onde o elemento apresentado na parte superior da página mostra aquilo que é ideal
(como você ficará se usar determinado produto, por exemplo) e o elemento da parte inferior mostra o
real (o produto que você precisa comprar);
• Concentricamente, onde os elementos centrais são os mais importantes da propaganda e os elementos
presentes nas margens complementam as informações fornecidas pelos elementos centrais.

Com relação à modalidade de imagens, há também uma série de estratégias (articulações de detalhe, plano de
fundo, coloração, profundidade, luminosidade e tonalidade) que podem ser empregadas para estabelecer uma espécie de
gradação sobre aquilo que vai ser apresentado sob alta ou baixa modalidade. No entanto, Machin e van Leeuwen (2007)

1171
ressaltam que a validade de tais estratégias na determinação da modalidade de certos elementos depende do tipo de
modalidade que é mais pertinente em cada contexto e para cada objetivo. Os autores listam quatro tipos de modalidade:

• Modalidade naturalística: quanto mais uma imagem se assemelha à maneira como a veríamos
presencialmente, maior a sua modalidade;
• Modalidade abstrata: quanto mais uma imagem consegue despertar no leitor a essência profunda
daquilo que ela retrata, maior a modalidade;
• Modalidade técnica: nesse caso, o grau de modalidade da imagem vai depender do seu grau de
utilidade como modelo ou guia de ações;
• Modalidade sensorial: aqui a modalidade das imagens varia de acordo com o prazer que elas
proporcionam. Este tipo de modalidade é bastante comum em gêneros que apelam aos sentidos
humanos e que buscam despertar algum tipo de prazer.

Assim como fazem os autores, acredito ser importante ressaltar que no caso da modalidade sensorial, as imagens
geralmente são menos realistas, ou seja, apresentam baixa modalidade não por efeito de uma redução, mas de um
aumento nas formas de representação visual. Em outras palavras, embora as imagens apresentem grande número de
detalhes e alta nitidez, seu valor de “real” é menor. Como apontam Machin e van Leeuwen (2007, p. 113),

“os anúncios, apesar de seus objetivos pragmáticos e persuasivos, frequentemente apresentam baixa
modalidade, mostrando fantasias e sonhos ao invés de realidades, super modelos absurdamente
bonitas e glamorosas ao invés de pessoas reais”.

4. Sobre a revista e a seleção das propagandas


As propagandas aqui discutidas foram retiradas da revista G Magazine. Trata-se de uma publicação brasileira, de
circulação nacional e mensal sendo conhecida pelo público em geral. As edições com as propagandas analisadas foram
publicadas em outubro de 2005 e em janeiro, julho e setembro de 2006 (edições 97, 100, 106 e 108, respectivamente).
Com relação à seleção das propagandas, partindo de um exame mais geral das propagandas de sites de
relacionamentos publicadas em edições aleatórias que compreendem o período de dezembro de 2004 a junho de 2007,
foram selecionados os anúncios que possuíam maior destaque na revista, totalizando seis anúncios. Dessa forma, todos os
anúncios escolhidos ocupam uma página inteira da revista e foram impressos em uma das capas (frontal ou traseira) da
publicação. Esses anúncios correspondem, ainda, aos sites de relacionamentos voltados ao público gay de maior
popularidade atualmente, nomeadamente os sites Disponível, ManHunt e Gay.com.

5. Análise dos Dados


5.1. Ideal X Real
Partindo da análise da disposição espacial dos elementos na propaganda, foi possível observar uma
predominância do modelo vertical de organização sugerido por Machin e van Leeuwen (2007). Na maioria dos anúncios, do
topo até pouco mais da metade da página são apresentadas imagens de homens seminus, todos eles com corpos bem
definidos. Em alguns casos, esses homens aparecem acompanhados de outro(s) homens de corpos igualmente bem
definidos como é possível observar nos anúncios 1 e 2. Essas imagens ilustram de maneira idealizada o que você

1172
encontrará nos sites de relacionamentos. Para tanto, o pé das páginas fica reservado às informações de como proceder
para que você encontre aqueles homens, ou seja, na parte inferior dos anúncios está o “real” que leva ao “ideal” sugerido
logo acima.

Anúncio 1 Anúncio 2

Ainda com relação à disposição espacial dos elementos nas propagandas, uma delas chamou atenção especial.
Trata-se do anúncio de número 3. Nele também é possível observar uma organização do tipo vertical, onde a parte superior
da página apresenta o ideal e a parte inferior o real, mas de uma forma re-significada. Explico: enquanto na parte superior
do anúncio temos a imagem saliente de um homem seminu e de corpo definido (ideal) que, como vimos, é um aspecto
comum do conjunto de propagandas focalizado, a parte inferior traz uma sequência de fotos de homens que são associados
a cidades brasileiras. Junto a tais imagens, nicknames (apelidos utilizados para evitar identificação em ambientes virtuais) e
a expressão ‘on line’ dão a idéia de que estes homens seriam reais e que já fariam parte dessa rede de relacionamentos,
estando ali esperando por você. Note-se, ainda, que estas imagens trabalham com noções essencializadas de identidades
regionais e de sexualidade. A imagem do homem procedente de Salvador, por exemplo, é de um negro, enquanto que
todos os outros homens associados a cidades das regiões sul e sudeste são brancos. Com relação à sexualidade,
interessante perceber que a maioria dos nicknames são altamente sexualizados, tais como “MachoAfim”, “CaraSafado”,
“Macho30ZN” e “Cas43atv”. Além disso, quase todas as fotos trazem imagens de homens nus ou seminus em posições
sexuais, o que reforça a crença em uma sexualidade e um desejo exacerbados que seriam característicos de uma
identidade gay.

1173
Anúncio 3 Anúncio 4

Em se tratando da modalidade das imagens dos anúncios, foi possível perceber a predominância da modalidade
do tipo sensorial. Todas as imagens apelam de alguma forma aos sentidos e procuram despertar algum tipo de prazer no
leitor. Para tanto, os detalhes são bastante explorados. Veja, por exemplo, os anúncios 5 e 6. Apesar de apresentarem
desenhos ao invés de fotografias, o que reforça a separação daquilo que é ideal do que é real, tais desenhos são ricos em
detalhes e apelam a vários dos sentidos humanos. No anúncio número 6, os quatro rapazes foram desenhados com os
pênis eretos e estes são ressaltados já que os rapazes foram retratados de sungas justas. Um dos garotos nessa
propaganda está passando a língua sobre o ombro de um de seus companheiros em um apelo ao paladar dos leitores.
Ainda em se tratando do anúncio 6, a riqueza de detalhes é tanta que é possível observar diferenças de tonalidade em
determinadas partes dos corpos dos rapazes, como nos mamilos, por exemplo. Até uma pinta pode ser distinguida no
abdômen do primeiro rapaz da esquerda para a direita. No caso do anúncio número 5, além do detalhamento dos corpos
super definidos dos modelos, uma tatuagem é visível em um dos rapazes, o que ilustra o alto grau de detalhes que as
imagens apresentam, mesmo nos casos em que tais imagens são desenhos e não fotografias.

1174
Anúncio 5 Anúncio 6

Outro exemplo de imagem que busca despertar os sentidos dos leitores é aquela que se encontra no anúncio 2.
Nesta imagem temos dois homens seminus se abraçando e se tocando. A fotografia com os dois modelos apresentando
uma expressão de sonho e/ ou de prazer instiga, principalmente, os sentidos do tato e olfato dos leitores.
Em todas essas imagens, apesar da riqueza de detalhes, cores, formas e, eu diria, até textura, o grau de
modalidade é baixo. Isso quer dizer que todas as imagens apresentam versões idealizadas daquilo que o leitor poderá
encontrar nos sites de relacionamento que veiculam essas propagandas. Conforme apontaram Machin e van Leeuwen
(2007), no caso da modalidade sensorial, o grau de modalidade é menor justamente devido a uma exacerbação de detalhes
que fazem com que o conteúdo de determinada mensagem seja tomado como menos verdadeiro ou menos real. Ainda
segundo esses autores, essa exacerbação do ideal é característica dos anúncios publicitários, cujo objetivo é a incitação ao
consumo de determinado produto ou serviço.

5.2. Identidades de estilo de vida


A análise das propagandas também nos permitiu verificar o comparecimento de identidades de estilo de vida. São
identidades, como apontei anteriormente, baseadas na aparência e sua finalidade maior é o incentivo ao consumo. Nos
casos dos anúncios selecionados, o incentivo para que os leitores façam parte de determinada rede de relacionamento.
Interessante observar como cada um dos sites apresenta em seus anúncios uma identidade de estilo de vida diferente, mas
todas elas pautadas por uma perspectiva essencialista. Vejamos algumas considerações a esse respeito.
Partindo da rede virtual ManHunt (anúncios 3 e 4), percebemos que o próprio nome do site já caracteriza seus
usuários como “caçadores de homens”. Tal caracterização é reforçada nas propagandas. No anúncio de número 4, por
exemplo, ao lado da imagem destacada de um homem seminu, encontram-se os dizeres “A temporada está aberta... e a
caça começa aqui.” Nesse caso, percebemos que a construção do homem (principalmente do homem gay) como caçador

1175
se fundamenta em uma perspectiva biologizante altamente sexualizada que concebe os indivíduos como sendo
determinados por hormônios ao invés de socialmente construídos.
Passando agora ao site Gay.com (anúncios 1 e 2), trata-se das propagandas mais limpas dentre todas as
analisadas. Por limpas eu quero dizer que de todos os anúncios, estes foram aqueles que apresentavam menos
informações sobre o site. Além das imagens de homens seminus, pouco texto escrito foi incorporado aos anúncios.
Entretanto, apesar da escassez de texto escrito, tais anúncios apresentam sim uma identidade de estilo de vida, o que nos
faz refletir que os significados sobre as identidades sociais são veiculadas pela mídia através de todas as linguagens e
códigos dos quais temos acesso, e não somente através de mensagens verbais. No caso dos anúncios 1 e 2, a pergunta
“Você é?” que descontextualizada poderia parecer incompleta é logo preenchida com o nome da rede virtual “Gay.com”. A
mensagem final não poderia ser mais direta, apesar da escassez de texto escrito: para ser gay e desfrutar dos prazeres
sugeridos nas imagens, é necessário fazer parte daquela rede de relacionamento e utilizar determinado serviço. Trata-se,
dessa forma, de uma oposição binária: ou você é ou você não é.
Em oposição aos anúncios do site Gay.com que eram, como disse, bastante limpos, os anúncios do site
Disponível (anúncios 5 e 6) trazem bastante informação em textos escritos. Além de apresentar algumas mensagens acerca
do conteúdo do site, tais como o número de usuários cadastrados, a possibilidade de se montar uma página pessoal e um
álbum de fotos, etc., os anúncios apresentam uma espécie de listagem com o perfil dos usuários já cadastrados. Trata-se
de categorias as quais os usuários são agrupados dentro do site. Esta lista inclui “barbies, bears, blacks, casais, maduros,
namoro e sexy”1 e pode ser conferida nos anúncios 5 e 6. Aparentemente, poderíamos dizer que os anúncios do site
Disponível apresentam, dessa forma, uma série de identidades de estilo de vida ao invés de apenas uma como foi o caso
das propagandas dos outros dois sites. Entretanto, vale a pena lembrar que as imagens em destaque nos anúncios são,
conforme já dito, de homens jovens, com corpos bem definidos e altamente sexualizados. Vemos, nesse caso, que apesar
de acenar com outras possibilidades identitárias, estes últimos dois anúncios também trabalham com essências acerca do
que seria uma “identidade gay” que não contempla homens que fogem ao padrão retratado nas imagens.

6. Considerações Finais
Após esse mapeamento das possibilidades identitárias que se encontram disponíveis nos anúncios de três
grandes sites de relacionamento voltados para o público gay, algumas considerações podem ser lançadas. Primeiramente,
foi possível observar que as propagandas apresentam baixa modalidade, ou seja, o grau de “real” ou de “verdade” das
propagandas é baixo, apesar do tratamento detalhado que as imagens recebem. Além disso, o tipo de modalidade
predominante foi a sensorial, uma vez que os anúncios apelam sempre a um ou mais sentidos humanos buscando
despertar sensações de prazer nos leitores.
Outra característica observada nos anúncios e que está, de certa forma, relacionada com a primeira é o processo
de sexualização que as imagens dos corpos apresentados sofrem. Tal processo passa justamente pelo alto detalhamento
das imagens que ressaltam características que buscam despertar sensações de prazer nos leitores, sendo que tais
características estão ligadas a ideias estereotipadas de prazer tais como aquela que equaciona a intensidade do prazer

1 Barbie é uma gíria utilizada para designar homens gays que possuem e cultuam corpos bem definidos. Bear, também uma gíria, faz

referência a homens gays peludos e acima do peso. Black faz referência aos negros enquanto que maduro aos homens geralmente
acima dos 40 anos de idade.

1176
sexual ao tamanho do órgão genital, por exemplo. Além disso, essa sexualização dos corpos encontra-se inserida em um
paradigma que concebe as identidades dos indivíduos a partir de uma perspectiva biologizante, na qual hormônios é quem
mandam e não há meio de se escapar a esse determinismo fisiológico.
A análise também nos permitiu concluir que as propagandas selecionadas atuam com uma matriz essencializada
das identidades gays. Todas as imagens retratavam homens seminus, musculosos, jovens e à procura de sexo. Ou seja, os
anúncios não contemplam homens gays de mais idade, afeminados, com corpos não definidos e cujo estilo de vida se
afaste da constante disponibilidade para a “caça sexual”. Essa imagem de homem idealizado nos leva a concluir, dessa
forma, que a matriz discursiva que regula a sexualidade dos indivíduos a partir da oposição hetero-homo e que foi discutida
no referencial teórico deste trabalho é acompanhada de outras matrizes que também se pautam por um paradigma binário.
Aqui teríamos, então, os gays, e por gays entenda-se os homens jovens, adeptos do culto ao corpo definido, caçadores, em
oposição aos “outros”. Na distinção de Tadeu da Silva (2002), a identidade e a diferença. Essa distinção aparece, por
vezes, muito bem marcada. Lembre-se, por exemplo, dos anúncios que questionavam “Você é?”. Dessa forma, percebemos
que entre as masculinidades consideradas subalternas ainda permanece uma hegemonia de uma dessas formas não
hegemônicas de ser homem sobre as outras.
Por fim, percebemos como as considerações feitas por Fabrício (2004) e explicitadas no capítulo teórico deste
trabalho acerca de um duplo movimento da mídia de promoção e engessamento de modos de ser fazem sentido para esta
análise. Neste caso, apesar de estarmos diante de uma publicação que promove uma série de discursos não hegemônicos
acerca das possibilidades de ser homem, alguns desses discursos ainda trabalham com visões essencializadas acerca da
sexualidade, promovendo e reproduzindo hierarquizações entre as masculinidades tidas como subalternas e apagando
determinadas formas de vida.

Referências
FABRÍCIO, Branca Falabella. Mulheres emocionalmente descontroladas: identidades generificadas na mídia
contemporânea. In: D.E.L.T.A., nº 20, vol. 2, 2004, pp.235-263.

FABRÍCIO, Branca Falabella e MOITA LOPES, Luiz Paulo da. “A guerra dos carneiros gays”: a (re)construção do fantasma
da eugenia sexual no discurso midiático. In: Matraga, vol. 15, nº 22, 2008, pp. 64-84.

GAUNTLET, David. Michel Foucault, discourses and lifestyles. In: Media, Gender and Identity – an introduction. Londres:
Routledge, 2008.

MACHIN, David e van LEEUWEN, Theo. Global Media Discourse: a critical introduction. Londres: Routledge, 2007.

MOITA LOPES, Luis Paulo da. Lingüística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm
orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (Org.). Por uma lingüística aplicada indisciplinar. São Paulo:
Parábola, 2006.

SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Bauru, SP: EDUSC, 1999.

TADEU DA SILVA, Tomaz. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e Diferença – a perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis: Vozes: 2000.

* Tiago Pellim é formado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e hoje cursa o Mestrado em Linguística Aplicada
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde estuda questões relacionadas à performance de gênero e sexualidade
do professor em sala de aula.
Contato: tiagoindaia@yahoo.com.br

1177
Discurso jurídico: autoridade institucional e
reconhecimento dos atores sociais

PEREIRA, Estael Aparecida


(UFMG)

O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma discussão de cunho teórico, considerando a natureza
sociocomunicativa do funcionamento do discurso jurídico e sua configuração, em termos de organização comunicativa, a
partir da noção de contrato de comunicação proposta por CHARAUDEAU (1996).
Observamos que a instância jurídica é um espaço de prática social que regula e condiciona a produção de
discursos, no sentido de que o domínio jurídico orienta a natureza dos discursos suscetíveis de serem produzidos no
espaço do judiciário, determinando, também, os roteiros e os papéis a serem representados pelos atores envolvidos na
comunicação judiciária.
Assim sendo, ressaltamos a pertinência da teoria de CHARAUDEAU nesta pesquisa quando enfatiza que todo ato
comunicativo pressupõe um contrato de comunicação. Nesse contrato, os interlocutores conhecem as regras que regem o
processo comunicativo e as respeitam, enquanto parceiros do intercâmbio pré-estabelecido. Tais regras compreendem o
espaço discursivo em que o processo de comunicação será estabelecido.

O discurso jurídico e a autoridade do dizer


Entendemos a instância do poder judiciário como um lugar em que as práticas, nele produzidas, remetem a um
“consenso” social sobre a questão da autoridade institucional. Essa autoridade instituída tem a função de ordenar e resolver
os conflitos a partir do reconhecimento de seu estatuto de verdade e equidade. Essa autoridade do dizer e do fazer jurídico
se fundam num discurso do ordenamento social, no qual observamos a organização de um espaço discursivo de
reivindicação de direitos sociais.
O discurso jurídico, por situar-se no campo do instituído, tende a estabelecer-se como o representante legítimo da
manutenção da ordem social. Neste sentido, sua estruturação discursiva se baseará em argumentos que se fundam no já
dito, por meio de formações discursivas1, possibilitando a contraposição com o não dito. Como podemos verificar nas
palavras de Bourdieu:
O trabalho jurídico exerce efeitos múltiplos: pela própria força de codificação, ao fixar uma decisão
exemplar numa forma destinada, ela própria, a servir de modelo de decisões ulteriores, e que autoriza
e favorece ao mesmo tempo a lógica do precedente, fundamento do modo de pensamento e de ação
propriamente jurídico, ele liga continuamente o presente ao passado e dá garantia de que, salvo
revolução capaz de pôr em causa os próprios fundamentos da ordem jurídica, o porvir será à imagem
do passado e de que as transformações e as adaptações inevitáveis serão pensadas e ditas na
linguagem da conformidade com o passado. O trabalho jurídico, assim inscrito na lógica da
conservação, constitui um dos fundamentos maiores da manutenção da ordem simbólica. Ele confere o
selo da universalidade, factor de excelência da eficácia simbólica, a um ponto de vista sobre o mundo
social. (Bourdieu, 1989, p.245, grifo nosso)

Dentro do discurso jurídico todos os dizeres - saberes já aceitos e institucionalizados – começam a circular
formando ou acionando discursos vários que permeiam a construção discursiva dos produtores textuais, operadores do
direito. Existe um objeto de discussão que direciona o desenvolvimento da argumentação, mas as construções discursivas

1 Segundo Michel Foucault (1987), a formação discursiva se caracteriza por uma dispersão, já que é para os enunciados não uma

condição de possibilidade, mas uma lei de coexistência.

1178
trazem à tona representações sociais que estão situadas no imaginário social. A organização social se faz presente como
que retratada discursivamente nessas construções sociais. É como se a sociedade participasse ativamente do caso a ser
resolvido, uma vez que o momento de produção discursiva leva em conta as condições de produção do discurso que ora se
constitui pela formulação dos enunciados. O mesmo acontece no momento de recepção: a interpretação é condicionada
igualmente pelas representações sociais. De acordo com Bourdieu (1989),
“O direito é a forma por excelência do discurso atuante, capaz por sua própria força, de produzir
efeitos. Não é demais dizer que ele faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que
ele é feito por este”. (p.237)

Para a formulação desses enunciados, os representantes (interlocutores autorizados, a saber, os advogados) são
partes de uma situação e, ao mesmo tempo, se apropriam da vida do outro, por falarem por ele e em nome dele.
Representam discursivamente os valores do outro.
Assim, o discurso jurídico busca uma racionalização e uma comprovação das situações por ele resolvidas,
recorrendo a fatos e situações, que ao serem trazidas para o momento da enunciação revelam uma prática discursiva
fundada em regras culturalmente estabelecidas e determinadas no tempo e no espaço. Esse contexto sócio-histórico é que
definiu, em uma dada época e para um determinado momento enunciativo, as condições de produção de enunciados que
compõem o quadro dos precedentes. Os precedentes não seriam uma prática discursiva que subsidiaria ações posteriores?
Sua função seria então validar uma “nova” prática discursiva?
Dentro do ordenamento jurídico, há uma estruturação da norma jurídica pautada nos valores sociais, no
compartilhamento das idéias que se repetem na formulação dos discursos durante a aplicação da mesma, num determinado
momento enunciativo. As fontes de sua estruturação se pautam pelo reconhecimento e pela aceitação; então, diríamos que
essas fontes seriam aquelas que traduzem os costumes, trazendo, de certa forma, as normas sociais que precedem a
norma jurídica.
O campo jurídico desempenha um papel determinante na reprodução social, contribuindo para a manutenção da
ordem simbólica. As transformações sociais nele se incorporam e condicionam a resolução dos conflitos sob sua
“orientação”. Essa relação de manutenção da ordem e mudanças nas estruturas sociais é que justifica a tendência do
campo jurídico encontrar-se freqüentemente em um desajustamento entre a ordem jurídica e a ordem social.
Em comparação com as demais formas de cultura (arte, moral, literatura, cinema, costumes, etc.), o direito
apresenta-se, freqüentemente, em atraso em relação às transformações sociais, pois ele atende às demandas da vida em
sociedade. Ele normatiza e regula algo que pré-existe. Em outros termos, é a partir de um conflito que ele estabelece o
“consenso”. Logo, o discurso jurídico se funda num consenso social de que existe a necessidade de ordenamento social e,
para que seja instituído como tal, tem que ser socialmente reconhecido e aceito pela sociedade que rege. Novamente
retomamos Bourdieu para afirmar que “o direito só pode exercer sua eficácia específica na medida em que obtém o
reconhecimento da parte que está na origem de seu funcionamento” (op.cit., p. 243). A crença que é tacitamente concedida
à ordem jurídica deve ser reproduzida sem interrupção e uma das funções do trabalho jurídico de codificação das
representações e das práticas éticas é de contribuir para fundamentar a adesão aos próprios fundamentos da ideologia
profissional do corpo dos juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do direito e dos juristas.
O poder dizer é algo que está regulamentado pelo processo de comunicação e no momento em que se instaura
determinado processo. Quem é o locutor autorizado para realizar determinada interlocução? Quem tem a autoridade para
decidir o que pode e o que não pode ser dito? Qual é esse espaço de interlocução e quem são os seus interlocutores?
Vejamos as palavras de Bourdieu (1989) a esse respeito:

1179
Na realidade, a instituição de um “espaço judicial” implica a imposição de uma fronteira entre os que
estão preparados para entrar no jogo e os que, quando nele se acham lançados, permanecem de fato
dele excluídos, por não poderem operar a conversão de todo o espaço mental – e, em particular, de
toda a postura linguística – que supõe a entrada neste espaço social. (Bourdieu, 1989, p.225, grifo
nosso)

No âmbito do discurso jurídico, encontramos uma divisão bem delimitada dos papéis e ações que têm como
função legitimar essa autorização e o reconhecimento dos atores sociais mediante um processo de representação da
situação apresentada num processo judicial. A força institucional, expressa discursivamente através de um veredicto de um
juiz que resolve conflitos, proclamando publicamente um resultado com status de verdade, difere-se de uma resolução
expressa discursivamente por um leigo, desautorizado, sem legitimidade e de forma particular, porque aquele representa a
forma por excelência da palavra autorizada, da palavra pública, oficial enunciada em nome de todos e perante todos.

Discurso jurídico: reconhecimento dos parceiros comunicacionais

Conforme a proposta de Patrick Charaudeau, o discurso é um conjunto de saberes partilhados e construídos pelos
indivíduos de um determinado grupo social. Estes discursos são testemunhos das práticas sociais e dos valores do grupo,
conforme a seguinte citação:
O discurso pode ser relacionado a um conjunto de saberes partilhados, construído, na maior parte das
vezes, de modo inconsciente, pelos indivíduos pertencentes a um dado grupo social. Os discursos
sociais (ou imaginários sociais) mostram a maneira pela qual as práticas sociais são representadas em
um dado contexto sócio-cultural e como são racionalizadas em termos de valor. (Charaudeau, 2001,
p.26)

Consideramos o discurso como uma prática social desenvolvida pelos sujeitos históricos envolvidos no processo
de comunicação a ser entendido como uma construção discursiva, a partir de um contexto social. Assim, o domínio da
interação social surge como um determinante da natureza comunicacional do discurso e dos discursos suscetíveis de serem
produzidos no espaço do judiciário. A própria estruturação discursiva das reivindicações de direitos, a forma de organização
dos processos que oficializam essas reivindicações e o estereótipo de atuação dos envolvidos no espaço de comunicação
do judiciário delimitam os papéis e os roteiros a serem representados pelos atores envolvidos na comunicação judiciária.
Para Charaudeau (1996), todo ato comunicativo pressupõe um contrato de comunicação. Nesse contrato os
interlocutores “conhecem” as “regras” que regem o processo comunicativo e as respeitam, enquanto parceiros do
intercâmbio pré-estabelecido. Tais regras compreendem o espaço discursivo em que o processo de comunicação será
estabelecido. No âmbito do discurso jurídico esse espaço será limitado, sobretudo pela autoridade do dizer, pois apenas
certos sujeitos estão autorizados a integrar com legitimidade esse espaço.
Segundo Charaudeau, para que o contrato de comunicação se efetive é necessário que os parceiros se
reconheçam mutuamente no papel de interlocutantes, reconhecimento que é a condição mínima de existência deste
contrato. Entende-se, portanto, que a estruturação de um processo jurídico se pautará, necessariamente, pela
representação dos envolvidos (mãe, filho, pai) através de representantes legais, sujeitos autorizados e dispostos em dois
pólos da enunciação. Obtém-se, assim, o estabelecimento do contrato de comunicação para a resolução de um conflito.
A partir daí, instaura-se um projeto de fala vinculado a uma intencionalidade. Segundo Charaudeau, para que um
sujeito alcance o seu reconhecimento como ser comunicante “é necessário que lhe seja reconhecido o direito à palavra”
(op. cit., p.25). No processo jurídico esse reconhecimento do direito à palavra é mediado por instrumentos que cerceiam os

1180
momentos em que cada interlocutor se tornará o falante. São os protocolos do discurso jurídico. A relação entre os
parceiros é “controlada” e institucionalmente estabelecida fundamentando-se nos argumentos apresentados em cada
“etapa” da enunciação.
Os parceiros dessa ação discursiva buscam fundamentar sua argumentação naquilo que é passível de ser
“ouvido” para não incorrer na possibilidade de ver seu papel de interlocutante desacreditado. Charaudeau (1996) enumera
três condições que fundamentam o direito à fala: o reconhecimento do saber, o reconhecimento do poder e o
reconhecimento do saber fazer. Segundo ele, “o domínio do saber é o lugar onde circulam os discursos de verdades e de
crenças. Seria o discurso do mundo” (p.26). Os parceiros da comunicação lançam mão de estratégias que lhes possibilitam
movimentar-se nas representações supostamente partilhadas, validadas por um conjunto de saberes e crenças
compartilhadas por um grupo social. O uso e as trocas das práticas discursivas é que constróem os significados
consensuais. E é por meio deles que, tanto o sujeito comunicante quanto o interpretante, fundamentarão seu discurso
estruturado através de uma retomada de valores sociais.
A construção discursiva desses sujeitos terá que ser validada pelo reconhecimento de que sua fala remete a certo
domínio do saber. Por exemplo, para se estruturar um discurso sobre as relações familiares é necessário que este se
remeta a um universo discursivo já existente e aceito pela sociedade, ainda que tal discurso pretenda questionar e subverter
a ordem já estabelecida. A existência desse universo discursivo é essencial para legitimar o sujeito falante, lhe conceder o
direito à fala e permitir seu acesso ao auditório.
Com relação ao reconhecimento do poder, teremos a legitimidade socioinstitucional. Entende-se aqui a
participação dos indivíduos na sociedade enquanto atores sociais: desempenham diferentes papéis e assumem
comportamentos diversos dentro de um mesmo meio social. No processo jurídico, entendido como ato de linguagem,
teremos os papéis exercidos pelos advogados enquanto sujeito comunicante e interpretante. Para as suas posições serão
admitidas alternâncias entre o espaço discursivo da acusação e da defesa. Ambos poderão ocupar esse espaço numa
permuta constante de posições.
Mas para se fundar realmente o direito à fala, Charaudeau afirma que o sujeito falante terá que ser ainda avaliado
enquanto um sujeito competente em sua ação de sujeito que comunica. Assim, para os advogados não bastará que
estruturem suas argumentações em um universo discursivo já existente ou que tenha seu poder socioinsitucional
reconhecido. Será necessário que eles se mostrem competentes em sua ação comunicativa, ação condicionada pela
finalidade do processo comunicacional. No discurso jurídico a persuasão e o convencimento orientará a performance do
sujeito. Porém, para que alcance sua intenção comunicativa, esse sujeito terá que oscilar entre o espaço externo e interno
da cena comunicativa, na qual faz parte da “encenação” (mise em scène). Essa oscilação será necessária para garantir a
sua credibilidade.
Para tanto, Charaudeau concebe o discurso como uma encenação na qual estão envolvidos os protagonistas. O
sujeito enunciador e o sujeito destinatário são os protagonistas do projeto de discurso e são identificados pelas crenças e
comportamentos sociais correspondentes a valores que são considerados índices das representações sociais e que
constituem as identidades históricas desses dois sujeitos.
Para exemplificar, citamos o caso de pedido de reconhecimento de paternidade, em que, de um lado, temos
mãe/filho reivindicando o direito de reconhecimento de paternidade. Para tanto, contratam o representante legal (advogado)
entendido como o ser comunicante, que se investe do direito de fala condicionado pelo reconhecimento do saber.
Consequentemente, o reconhecimento do poder dizer se instaura na instância da própria situação comunicativa; do outro
lado, o interpretante (juiz, advogado) cuja decisão se manifesta a partir da interpretação dos argumentos para relacionar a
“verdade” do caso em questão, tornando-se, assim, parceiro do discurso. A credibilidade do sujeito que é julgado

1181
competente para “fazer” e a legitimidade do sujeito comunicante devem ser reconhecidas pelos sujeitos participantes da
atividade comunicativa. O sujeito que tem o objetivo comunicativo de argumentar para persuadir utiliza procedimentos
condicionados à situação comunicativa e às imagens que ele faz do seu interlocutor e das circunstâncias de interação; o
sujeito alvo da argumentação atua igualmente dentro dos mesmos princípios.
Ao construir seu discurso, o sujeito argumentante utiliza-se de recursos e técnicas de argumentação, fundados em
estruturas compartilhadas numa situação discursiva que considerará o contexto social dessa produção discursiva. A análise
das produções discursivas das peças processuais pode tornar mais evidentes a postura conservadora e persuasiva do
enunciador, construída a partir de um contrato de fala marcado pelo interesse de manutenção da ordem social. Nesse
sentido, Lysardo-Dias (2002) retoma as palavras de Charaudeau, para quem
O sujeito-argumentante assume uma posição em relação ao seu propósito e, no intuito de convencer o
sujeito-alvo a partilhar esse mesmo propósito, ele mobiliza argumentos fundados em um consenso
social. E esse consenso social nos remete, à questão relativa ao contexto de realização do ato de
linguagem: cada sociedade tem seus valores partilhados, tem suas representações coletivas. E a
argumentação se apóia nesse universo comum. (p.322).

Desse modo, utiliza-se a argumentação para um propósito que se realiza em função de todo um contexto e de
uma finalidade de comunicação: quem fala, para quem fala, em que situação fala. No âmbito do discurso jurídico,
observamos a constituição argumentativa em que o sujeito argumentante articula seus argumentos em valores comuns a
uma sociedade. A finalidade é dar ao seu texto uma organização voltada para uma construção discursiva do convencimento
e da persuasão.
O contexto social é o espaço em que se fundam discursos que circulam no intercâmbio da linguagem. Uma
sequência linguística fora de seu contexto de produção é apenas uma possibilidade de discurso, uma vez que a linguagem
é indissociável do contexto sócio histórico em que é utilizada para estabelecer a comunicação entre sujeitos num momento
de interação.
A instância jurídica é um espaço de prática social que regula e condiciona a produção de discursos, no sentido de
que o domínio jurídico orienta a natureza dos discursos suscetíveis de serem produzidos no espaço do judiciário,
determinando, também, os roteiros e os papéis a serem representados pelos atores envolvidos na comunicação judiciária.

Considerações Finais
A institucionalização do direito dentro de uma sociedade concretiza um discurso maior que é o discurso de
ordenamento social. Porém, ao fazer circular determinados valores nesse meio, diremos que outros discursos entram em
contraposição como o instituído e o novo, o legal e o ilegal, a tradição e a modernidade, a manutenção e a revolução, a
preservação e a ruptura, tudo isso formando o discurso do social condicionado pela configuração discursiva e pela estrutura
linguística do campo jurídico. Supostamente bem delimitada, mas que através deste entrecruzamento discursivo abre-se
para a permuta com outros setores sociais como a cultura, a literatura, a arte e a moral, a prática discursiva jurídica torna-se
um verdadeiro aparadouro das formas discursivas presentes numa determinada sociedade.
No discurso jurídico encontramos, ainda, um espaço de constante mudança no que se refere à elaboração de um
ordenamento jurídico (através dos textos legais, como as leis, as jurisprudências, as peças processuais, etc.) para uma
posterior adaptação social. As normas elaboradas necessitam de um ajuste às condições do meio em que serão aplicadas.
Porém, uma vez estabelecida a legalidade de tais regulamentações, instaura-se a necessidade de a sociedade adaptar-se
aos novos padrões de convivência instituídos. Isto fica claro nas palavras de Paulo Nader (2002) que diz que a sociedade
cria o direito e, ao mesmo tempo, se submete aos seus efeitos. Isto significa que, a partir do momento em que a sociedade

1182
reconhece a necessidade de um ponto de articulação dos problemas sociais por um órgão regulador, o direito exercerá o
poder que lhe foi instituído e, consequentemente, os padrões sociais serão submetidos ao seu estatuto de ordenador social.
Com isso o juiz, ao invés de ser um simples executante ao deduzir da lei as conduções diretamente aplicáveis a
um caso em particular, dispõe, antes, de uma parte de autonomia, os juízos. Estes, sem dúvida, constituem a melhor
medida na estrutura da distribuição do capital específico da autoridade jurídica, a partir do momento em que se inspira em
valores muito próximos dos que estão nos textos submetidos à sua interpretação.

Referências

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

CARNEIRO, Agostinho Dias Carneiro. O Discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MACHADO I. L., MARI, H. e MELLO, R. Ensaios em
Análise do Discurso / Ida Lúcia Machado, Hugo Mari, Renato de Mello (orgs.). Belo Horizonte: Núcleo de Análise do
Discurso, Programa de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos, Faculdade de Letras da UFMG, 2001.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. MARI, H. et alii. Análise do discurso: fundamentos e
práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE, 2001.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3 ed. Luiz Felipe Baeta Neves (Tradução), Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1987.

LYSARDO-DIAS, Dylia. A argumentação em sala de aula: uma abordagem discursiva.In: MACHADO I. L., MARI, H. e
MELLO, R. Ensaios em Análise do Discurso / Ida Lúcia Machado, Hugo Mari, Renato de Mello (Orgs.). Belo Horizonte:
Núcleo de Análise do Discurso, Programa de Pós-graduação em Estudos Lingüísticos, Faculdade de Letras da UFMG,
2002. 328p

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

Currículo:

Estael Aparecida Pereira


Doutoranda em Estudos Linguísticos POSLIN/FALE/UFMG, tendo participado do PDDE – Programa de Doutorado no País
com Estágio no Exterior, sob a orientação do professor Patrick Charaudeau na Université Paris XIII, França. Mestre em
Letras e Especialista em Estudos Linguisticos pela UFSJ. Pesquisadora NAD/UFMG. estaelpereira@yahoo.com.br

1183
Os processos de referenciação e o mundo de nossos
discursos: a leitura de um texto pelo acompanhamento da
construção de sua cadeia referencial

PEREIRA, Soraia Farias Reolon


(FCRB/UERJ)

I – Aspectos teóricos
A presente comunicação propõe a leitura e interpretação de um texto jornalístico organizado predominantemente
pelo modo argumentativo, através do acompanhamento de sua cadeia referencial e da observação dos processos de
referenciação presentes no texto.
Azeredo, na Gramática Houaiss (2008: 238-239) ressalta que as expressões referenciais são entidades que
constituem termos das predicações, estruturados como sintagmas nominais (SNs) e que a função comunicativa
fundamental de um SN é tornar possível a construção de uma referência. Cada SN funciona no texto como um objeto-de-
discurso, e juntos vão constituir a rede referencial, que é uma das marcas da própria textualidade.
Por isso, parte-se da observação da constituição do SN: sua base (geralmente um substantivo comum), seus
determinantes e seus modificadores. Os determinantes são importantes na construção da referência, pois instruem o leitor
para identificar as entidades referenciadas pelos vários SNs que têm como base um substantivo comum. Assim, Azeredo
(2008) ressalta que os determinantes têm funções discursivo-textuais realizadas pela combinação variável de traços
semânticos e por traços morfossintáticos. Os traços semânticos seriam: dêitico, identificador, vinculativo, remissivo,
focalizador, indefinido, quantificador e interrogativo. Os morfossintáticos possíveis, ele nomeia como: variável em número,
variável em gênero, plural, singular, subordinante.
Em ligação com a progressão ou a manutenção referencial, conforme Neves (2006), vai sendo construída a
progressão ou a manutenção tópica, que sustenta a organização informativa e dirige o fluxo de informação. Farei o
acompanhamento tópico e a observação da acessibilidade aos vários tipos de informação, seguindoAzeredo(2008):
dada/conhecida, nova, recuperável, inferível, implícita, pressuposta), analisando de que modo e com que objetivo o
jornalista construiu as relações anafóricas pela cuidadosa escolha dos SNs, seus determinantes e modificadores, dando
pistas ao leitor, as quais possibilitam a identificabilidade das referências, o acesso à informação e a construção dos
sentidos. Ou seja, observarei como a construção do discurso é urdida materialmente na estruturação linguística, em diálogo
com as condições de produção do discurso (Orlandi: 2006), a intencionalidade do autor, seu projeto de dizer e fazer-se
entender buscando a parceria e a aceitabilidade do leitor.
O texto selecionado é um recorte de jornal do Acervo Dalcídio Jurandir do Arquivo Museu de Literatura Brasileira
(AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa (documento da série Publicações na Imprensa- pasta Pim DE DJ-Romancista).
Trata-se de um artigo assinado por Dalcídio, publicado no jornal Tribuna Popular, no Rio de Janeiro, sem data. Inferimos
que sua data seja [jan. 1948] pela referência, no penúltimo parágrafo, ao “grito do ‘J’accuse’”, de Émile Zola, que
completava naquele mês seu cinquentenário. Recupera-se esta informação pelo conhecimento de que a carta de Émile Zola
ao presidente da França fora publicada em Paris no jornal L’Aurorea 13 de janeiro de 1898.
No texto, transcrito abaixo, marcamos em negritotodos os sintagmas nominais, que estabelecem a referenciação.
Verificamos que, após a base desses SNs, muitas vezes há modificadores, que são integrados ao SN e que especificam a

1184
referência de sua base na função de adjunto adnominal. Esses modificadores são sintagmas adjetivos, SAdj, constituídos
por adjetivos, locuções adjetivas ou orações adjetivas.

II – O texto e as condições de produção do discurso

Só as Consciências Mortas Deixam de Gritar

Os noticiários oficiais descrevem que havia muito calor no Catete quando o


sr. José Américo leu o seu discurso. Era o calor que entorpece e nos transmite
uma sensação de preguiça moral, de quase gostosa prostração em que não
mais se pode distinguir um vício de uma virtude... Calor em nada semelhante
ao calor com que o sr. José Américo soltava gritos em defesa das vítimas da
seca e tentava colocar no seu Bagaceira uma figura de mulher flagelada, a
Soledade, encarnando a tragédia dos retirantes. Onde é que está o sr. José
Américo do sertão, da bagaceira, dos açudes rebentados, do coração transido
diante dos montões de homens, mulheres e crianças esqueléticos e famintos
expulsos pela seca? Agora o outro sr. José Américo prefere os refrigérios de
um acordo, seguindo-se antes todo um processo em que *foi aos poucos
perdendo aquelas vagas pontas de cáctus que marcavam a sua personalidade
e o faziam tornar-se um homem de certo modo digno de confiança. Em torno de
uma mesa no Catete, o outro sr. José Américo mandou para o diabo a sorte dos
seus personagens, daqueles famintos e estropiados que explorou em sua
literatura de orador, e baixou servilmente a cabeça.

Entretanto, pergunto, como o nosso Machado de Assis ao falar de sua


Capitu, já não estará dentro daquele sr. José Américo de ontem, o sr. José
Américo de hoje?

Dando pancadinhas nas costas do sr. Lira, o sr. José Américo fez de sua
oratóriaum salamaleque à ditadura. Aceitou a ditadura com todas as
conseqüências que esta possa produzir contra o nosso povo. *Aceitou e ficou
assinada a sua abdicação, como dizia o velho Machado do seu personagem
ensandecido. Aquelas frases inchadas sobre a fome, a violência do Estado
Novo, os barracos dos morros, o “eu sei onde está o dinheiro” pertencem a um
passado incômodo, foram loucuras da mocidade. O acordo tem um súbito

1185
sabor de refrigerante, faz tanto calor neste Rio, o resto é confusão e anarquia.

Em vez dos gritos de outrora, deve-se cochichar, ficar de molho, contra o


calor, na piscina da covardia e da mentira, concluir que é lamentável, mas o
deputado Gregório Bezerra mandou, de fato, incendiar um quartel na Paraíba. E
que coincidência essa, irônica e cruel para o sr. José Américo: foi a sua terra
precisamente a escolhida para se levantar a infâmia. Despindo a vestimenta de
couro do sertanejo para enfiar um fresco pijama dos comensais da Copa e da
Cozinha, o sr. José Américo engole a frase dentro de uma taça de champanhe e
*arrulha: “Agora,sim, vamos trabalhar.”
Isso para as massas esfomeadas, espancadas, cada vez mais
escravizadas, quer dizer: vamos continuar a esfomear, ainda mais, vamos estimular
a falta de vergonha e o suborno, os ministérios do arroz e dos moinhos, a dar
mais pancada, a criar novos SS e a entregar o petróleo e os minérios aos
americanos, entregar o país a Wall Street.
Este maldito calor diluiu o pouco que restava ainda de “eterna vigilância”
no ilustre e malogrado sr. José Américo. Morna e sombria, apesar dos
refrigerantes, foia solenidade em que se perpetrou o conchavo. Foi num clima
assim de sesta, de estagnação, de espreguiçamento e torpor moral que se
escarneceu do povo e ao mesmo tempo ficaram fixados pelo povoos homens que
o enganam e escarnecem. Aqui fora, pensa o sr. José Américo, grita-se demais,
trabalhadoresnos cárceres gritam com as torturas, mulheresnos morros clamam
contra os despejos, camponeses no interior gemem com as doenças e os filhos
mortos de verminose e inanição, as caras na rua mostram um ríctus de fome e
descontentamento insuportável. Pelo Brasil afora cresce uma miséria indiana,
um atraso sinistro e um abandono como nunca se viu. Ora, contra isto, para
esquecer tão feias visões, nada como um ice cream no Catete, nada como se
refugiar no ar-condicionado de uma capitulação em que se pode perder a
vergonha e se trair a verdade, mas se respira um silêncio total em que não
mais se escutam os ecos dessa coisa terrível que é a voz do povo.
Finalmente, o sr. José Américo achou que o grito é sinal de desespero.
Como sempre, o seu peso é grande porque *diz isso no mês em que celebramos
o cinqüentenário de um grito que foi um dos momentos mais altos da
dignidade humana, o grito do “J’accuse”. Há cinqüenta anos. Émile Zola, sem

1186
nenhum desespero, gritava contra uma infâmia, contra os que tentavam cobrir
com lama o incorruptível rosto da verdade. Esse grito varreu a lama e derrotou a
reação. Estamos fiéis a esse grito, sobretudo porque ainda há muita lama para
varrer deste nosso mundo. Esse grito ressoa aqui fora em todas as consciências
que não abdicaram.
E hoje só as consciências mortas deixam de gritar, sr. José Américo.

Todos os sintagmas nominais em negrito, até mesmo os pertencentes a um sintagma maior (como [o Catete], SN
que compõe um sintagma adverbial, {no Catete}), todos participam de algum modo da referenciação. Sabemos que alguns
SNs contêm as principais informações do texto, por isso serão tópicos discursivos fundamentais, outros terão menor
importância informativa, porém todos foram construídos (na sua estrutura sintática e escolha lexical), são objetos-de-
discurso categorizados e recategorizados em diálogo com os aspectos pragmáticos. Estes aspectos, segundo Beaugrande
e Dressler (1981 apud Costa Val, 2000) são os5 princípios constitutivos da textualidade ligados aos usuários – produtor e
receptor – e à atividade comunicativa: intencionalidade, aceitabilidade, informatividade, situacionalidade e intertextualidade.
Se a Linguística Textual nos dá este aporte, por outro lado a Análise do Discurso (Orlandi, 2006) observa as condições de
produção do discurso. Como no texto escolhido, a questão ideológica é muito presente, optarei por uma observação inicial
das condições de produção do texto, por propiciar um aprofundamento maior quanto ao contexto sócio-histórico-ideológico
e ao papel do enunciador enquanto sujeito no texto.
Os sujeitos envolvidos são o enunciador e o leitor. O jornal Tribuna Popular, sendo órgão de divulgação do PCB,
dirigia-se aos trabalhadores e a militantes de esquerda. O leitor com este perfil também poderia ter acesso aos ditos jornais
oficiais. O único enunciador, portanto “quem detém a fala” no seu discurso alocutivo, monitorado (Azeredo, 2008:81), é
Dalcídio Jurandir, jornalista e romancista paraense que ganhara, com Chove nos campos de Cachoeira, em 1940, o
concurso (nacional) de romances promovido pela editora Vecchi e pelo jornal literário Dom Casmurro e viera em 1941 ao
Rio de Janeiro para tentar a carreira literária. Como ativista político, em 1936 participara ativamente em Belém do
movimento da Aliança Nacional Libertadora– aliança direcionada pelo Partido Comunista contra o fascismo –, e Dalcídio foi
preso por suasidéias esquerdistas. No Rio, escreveu para jornais do Partido Comunista do Brasil: o jornal O Radical (em
1942); Diretrizes (em 1943). Em 1944, colabora nos jornaisDiário de Notícias eCorreio da Manhã e na revista Leitura. Em
1945, participa da direção do jornal Tribuna Popular, colabora n' O Jornal e na revista O Cruzeiro. Em 1946, colabora no
semanário A Classe Operária.
O contexto sócio-histórico-ideológico mostra um Brasil governado a partir do Palácio do Catete, sede do governo
federal, na então capital Rio de Janeiro. Em 1947, começa a chamada “guerra fria” e o Brasil se alinha ao lado dos Estados
Unidos, enquanto o PCB fica ao lado da União Soviética. “O governo brasileiro foi tomando medidas para cercear a atuação
dos comunistas e estes em resposta foram radicalizando as suas posições, inicialmente contra o capital estrangeiro e o
imperialismo e mais tarde contra o governo Dutra.”1 Em 10 de maio deste ano, o ministro da Justiça, Benedito Costa Neto,
determinou o encerramento das atividades do PCB. Começa então a repressão sobre os núcleos comunistas. A polícia do
Rio de Janeiro fechou cerca de seiscentas células do partido e comete um atentado contra o Tribuna Popular (o jornal foi
assaltado de madrugada, vinte e três trabalhadores foram espancados, encarcerados e submetidos a brutal julgamento).
Em janeiro de 1948, os parlamentares eleitos pelo PCB são cassados, e no dia 22 de janeiro do mesmo ano os líderes de

1www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes : Verbete Temático: Partido Comunista Brasileiro - PCB

1187
três partidos (PSD, UDN e PR) homologaram um acordo interpartidário em apoio ao governo. Discursaram no Palácio do
Catete o presidente Eurico Gaspar Dutra, Nereu Ramos (do PSD), Artur Bernardes (do PR) e José Américo de Almeida (da
UDN). Foi a gota d’água.
As circunstâncias da enunciação nos mostram as motivações de Dalcídio para escrever o artigo
predominantemente pelo modo de organização argumentativo: jornalista, romancista e ativista do PCB, não pôde deixar de
defender sua opinião sobre as atitudes do romancista e político da UDN, José Américo de Almeida, e as do governo Dutra,
justamente no mês e ano em que se comemorava o cinquentenário do “grito” corajoso do intelectual e escritor Émile Zola ao
presidente francês Félix Faure. Zola escreve uma carta em que criticava a posição do governo que condenava injustamente
o inocente e honrado militar Dreyfus, descendente de judeus alsacianos, acusado de traição à França, como se tivesse
passado informações estratégicas para a Alemanha. Zola termina sua carta com uma série de parágrafos iniciados por
“J’accuse” (Acuso!), onde acusa todas as pessoas e segmentos do governo envolvidos na farsa armada contra Dreyfus, e
conclui dizendo (Senna, 2004, grifos nossos):

Quanto às pessoas que acuso, não as conheço, jamais as vi, contra elas não tenho nem rancor nem
ódio. Para mim, são apenas entidades, espíritos de maleficência social. E o ato que cumpro aqui é
somente um meio revolucionário de acelerar a explosão da verdade e da justiça.
Só tenho uma paixão: a paixão da luz, em nome da humanidade, que tanto tem sofrido e que faz
jus à felicidade. Meu protesto inflamado é apenas o grito da minha alma. [...]
Dignai-vos receber, senhor Presidente, os protestos de meu profundo respeito.
Émile Zola

O “grito da minha alma” foi a metáfora criada por Zola para representar a força ilocutória do seu gesto: escrever a
carta e publicá-la no jornal correspondeu a gritar, protestar apaixonadamente por aquilo em que acreditava. Assim, o grito
de Zola evoca a memória discursiva de Dalcídio, que registra em seu texto que José Américo “soltava gritos” em defesa das
vítimas da seca, do sol e da aridez do sertão, as quais ele retratava em A Bagaceira, que inaugura a segunda fase da prosa
modernista: o romance regionalista. Em oposição ao José Américo da mocidade, aparece o político de “hoje” (no tempo da
enunciação do texto), compactuando com o governo num dia de verão carioca, quando havia “muito calor”, segundo os
noticiários oficiais. Por isso, o texto vai trabalhar seu fluxo de informação principalmente a partir dos tópicos “calor”, (n) “o
Catete”, “refrigérios de um acordo”, “gritos”, “o Sr. José Américo”, SNs que aparecerão várias vezes e a cada
recategorização incorporarão mais um traço significativo. Essa recategorização mostra o conflito entre o ontem e o hoje, o
escritor e o político. Por isso, o texto é todo estruturado em oposições e os determinantes e os modificadores dos SNs terão
um papel importante na indicação do sentido. Aparecerão vários sintagmas adjetivos (SAdj) incorporados ao SN, justamente
para restringir e caracterizar (em oposição) como era o José Américo do passado e o “do hoje” do seu texto: como era o
ambiente, o grito e o próprio José Américo. Dalcídio utiliza também o modo descritivo na organização textual, em prol da
argumentatividade do texto.

III –Acompanhamento da cadeia coesiva referencial e do fluxo informacional do texto (através de seus SNs/ tópicos
discursivos)
Em ligação com a progressão ou a manutenção referencial, formada pela cadeia ou rede referencial, vai sendo
construída a progressão ou a manutenção tópica, que sustenta a organização informativa e dirige o fluxo de informação.
Farei o acompanhamento tópico e a observação da acessibilidade aos vários tipos de informação, conforme Azeredo
(2008).

1188
TÍTULO:
O título “Só as consciências mortas deixam de gritar” não é uma frase nominal, como normalmente se vê em
um título. Constitui-se como uma frase declarativa afirmativa, apresenta uma opinião, um juízo de valor, construído pelas
seguintes estruturas:
• o marcador de foco “só”, que se caracteriza por estar na fronteira de um sintagma, antes do SN [as
consciências mortas], para focalizar e delimitar a referência, mostrando uma apreciação do
enunciador (exclusivamente as consciências mortas) e permitindo o entendimento de uma informação
pressuposta (há consciências que não estão mortas);
• o SN, que tem como base o substantivo “consciências”; como determinante, o artigo definido “as” realiza
uma determinação remissiva e identificadora, pois a informação é recuperável ao leitor a partir do
conhecimento de mundo do que seja “consciências”; o modificador “mortas”, SAdj, parece apresentar
uma adjetivação insólita: se está morta como seria consciência? Quando o núcleo do SN é um
substantivo abstrato, normalmente derivado de adjetivo qualificador (“consciente”), ele tem valor
avaliativo (como destaca Azeredo, 2008: 241). Assim, mostra a apreciação do enunciador: não são
consciências “vivas”, parecem ser. “Consciências mortas”, assim, é diferente de “inconsciência”, pois a
última é a falta ou inexistência de consciência, a primeira pressupõe que aparenta vida (mas não tem)
ou que um dia já foi uma consciência viva, atuante e hoje parece morta ou “adormecida”, disparando
possíveis associações e construções de sentido para o leitor;
• a predicação “deixam de gritar” predica ou fala sobre a referenciação: exclusivamente as consciências
que estão mortas deixam de gritar. “Deixar de” permite uma informação pressuposta: um dia as
consciências gritaram (ou: consciências vivas gritam). Estabelece-se, assim, uma relação significativa
entre “consciência” e “grito”. Como diz Marcuschi (2007: 135), as “representações mentais não são
fixas, pois elas emergem na interação, são negociadas e móveis. [...] um item lexical pode dar origem a
uma série de associações e ser a entrada para a ativação de um amplo domínio cognitivo.”

Ao longo do texto, vários tópicos discursivos serão construídos sobre “grito”; sua presença ou sua ausência (como
o “silêncio total” no Catete ou o engolir a frase por José Américo) poderão ser relacionados a “consciência viva” ou
“consciência morta”, o ontem, o hoje, até se chegar ao penúltimo parágrafo onde a alusão à carta de Zola, o “J’accuse”,
permitirá uma informação inferida, caso o leitor tenha esse episódio da história (já citado aqui) como parte de seu
conhecimento de mundo. Se assim for, poderá retomar a leitura do texto e ressignificá-lo (desde o título) a partir da
intertextualidade com “J’accuse” e com a declaração de Anatole France de que o texto de Zola “representou um momento
da consciência humana.” (Senna, 2004:24, grifo nosso).
Podemos afirmar, então, que Dalcídio vai construindo sua estratégia textual passo a passo através das
categorizações e recategorizações dos SNs, também por suas predicações, e ao fim oferece uma “porta” ao leitor (o
intertexto com Zola), como se perguntasse à moda de Drummond: “Trouxeste a chave?”. Quem enxergar o intertexto, “abre
a porta” e pode construir o sentido.
A cadeia referencial se estende por 110 SNs. Como o espaço deste artigo é curto, apresentarei a progressão do
tópico discursivo mais presente no texto: “o sr. José Américo”. Ele é categorizado no SN4 e é recategorizado através de 19

1189
sintagmas nominais (assinalados em verde). A numeração aos sintagmas obedece à ordem em que eles aparecem no
artigo de Dalcídio, a partir do primeiro parágrafo. Vamos à descrição dos vinte SNs selecionados.

SN4) [o sr. José Américo]: Segundo Azeredo (2008), os “nomes próprios têm o poder de ativar na memória enciclopédica
do leitor um referente único e inconfundível.” Aqui a referência é a José Américo de Almeida, conhecido pelo olhar do senso
comum como famoso romancista e político paraibano. Por isso, o artigo definido: “sabe-se” quem ele é. “Sr.” é uma
abreviação do pronome de tratamento “senhor”, usada desta forma normalmente em correspondências oficiais. Denota
formalidade e um afastamento entre o enunciador e “José Américo”. Lembra, também, o tratamento de Zola ao presidente
francês em sua carta. É a primeira vez que aparece no texto este tópico discursivo.

SN5) [o seu discurso]: o pronome “seu” estabelece uma determinação dêitica (terceira pessoa do discurso), remissiva
(relação anafórica, remete ao SN 4) e vinculativa: é o discurso dele, que o sr. José Américo leu. O uso do verbo “leu”
também mostra um tom neutro do enunciador neste momento da enunciação.

SN7) [Calor {em nada} (semelhante) [ao calor] (com que [o sr. José Américo] soltava [[gritos] em defesa d[as
vítimas da seca]]) (e tentava colocar n[o seu Bagaceira] uma figura de mulher flagelada, a Soledade, encarnando a
tragédia d[os retirantes]).]: começa de maneira genérica (“calor”, sem artigo) e depois especifica, comparando a um outro
calor, delimitando a referência pela negação do atributo: não é semelhante, em nada, a um calor antigo, opondo o “agora”
da enunciação ao passado. O calor do romancista era bem diferente do calor do ambiente do político, no Catete. Dentro do
segundo sintagma adjetivo (a oração adjetiva transposta), temos uma estrutura de SN reiterada: “o sr. José Américo”, que
aparece pela segunda vez no texto, da mesma forma. A predicação neste caso é que revela: ele “soltava gritos em defesa
das vítimas da seca” e “tentava colocar no seu Bagaceira uma figura de mulher flagelada, a Soledade, encarnando a
tragédia dos retirantes”. As ações realizadas no passado são positivas, porém a escolha lexical dos verbos — “soltava
(gritos)” e “tentava (colocar)” — mostra um posicionamento já depreciativo ou desconfiado por parte do enunciador.

SN8) [o sr. José Américo (do sertão), (da bagaceira), (dos açudes rebentados), (do coração (transido) (diante d[os
montões de homens, mulheres e crianças (esqueléticos) (e famintos) (expulsos pela seca)])]: neste grande SN
encontramos a coocorrência de sintagmas preposicionados que funcionam como SAdjs delimitando o nome próprio “José
Américo”, os quais novamente recategorizam o objeto-de-discurso “José Américo” (estabelecendo a anáfora com os SNs 4
e 7). Os sintagmas adjetivos são locuções adjetivas que realçam não só a origem, procedência ou temática do escritor (do
sertão, da bagaceira, dos açudes rebentados), como também a sua emoção (do coração transido diante dos montões de
homens etcetc expulsos pela seca). Dalcídio perguntava onde é que estava aquele José Américo do passado, já que,
segundo Jurandir, existe um outro, diferente.

SN 9) [o outro sr. José Américo]: neste SN temos dois determinantes: “o” e “outro”. O artigo definido ajuda na
identificação: remete a SNs anteriores em que José Américo é o tópico discursivo. “Outro” é um determinante remissivo por
oposição: não é o sr. José Américo que acabamos de ler nos dois últimos tópicos recategorizados: o do sertão, da
bagaceira... ou o que soltava gritos em defesa das vítimas da seca...É um diferente: “outro” remete à primeira categorização
desse tópico: “o sr. José Américo” que leu o seu discurso no Catete e àquele sobre o qual se predica: “prefere os refrigérios
de um acordo”.

1190
SN11)[todo um processo (em que *foi aos poucos perdendo [aquelas vagas pontas de cáctus (que marcavam a sua
personalidade) (e o faziam tornar-se [um homem de certo modo digno de confiança]))].]: Dalcídio ressalta que, de
escritor que soltava gritos até político que preferia os refrigérios de um acordo, seguiu-se todo um processo, especificado
por 3 SAdjs derivados, em que José Américo vai perdendo seus traços de personalidade que o identificavam com o sertão,
com as vítimas da seca, traços referenciados no SN [aquelas (vagas) pontas (de cáctus) ...], o qual por anáfora
associativa nos remete aos SAdjs dentro do SN 8: “do sertão, da bagaceira” etc. Há uma anáfora elíptica, registrada aqui
pelo apóstrofo antes de “foi”. Quem foi aos poucos perdendo...? “O sr. José Américo” , aquele antigo, do SN 8: “o sr. José
Américo do sertão, da bagaceira...”. Os pronomes em “sua personalidade” e “o faziam” estão em relação anafórica com o
referente da elipse. O SN [um homem de certo modo digno de confiança] tem muito mais um valor atributivo do que
referencial.

SN13)[o outro sr. José Américo]: reiteração do SN 9.

SN18)[o sr. José Américo (de hoje)]: o sintagma preposicional funcionando como SAdj, “de hoje”, indica que a referência
é ao José Américo político (aquele dos SNs de número 4, 9 e 13).

SN20)[o sr. José Américo] : o artigo remete à informação recuperável no texto, informação já dada: é o outro José
Américo, aquele dos SNsde número 4, 9, 13 e 18, com os quais este SN 20 tem relação anafórica.

SN21)[sua oratória]: o determinante vinculativo indica a relação anafórica com o SN 20: é a oratória do sr. José Américo,
que o próprio transforma em “um salamaleque à ditadura”.

SN26)[a sua abdicação]: o SN estabelece o intertexto com o romance Quincas Borba: “estava assinada a abdicação”. No
romance, este trecho corresponde ao momento da morte de Rubião e “perda da coroa”. Depois de se coroar com a
inexistente coroa imperial, o personagem agoniza e morre. Dalcídio constrói, a partir do intertexto, a sua tese sobre o
romancista José Américo: depois de José Américo aceitar a ditadura através do acordo, a “sua abdicação” ficou assinada:
foi a morte do José Américo “de ontem” e a desgraça do povo. “Sua” indica a relação anafórica com o SN 20.

SN44) para [o sr. José Américo]: o artigo remete a informação já dada, recuperável no texto: é coincidência para o outro
José Américo, aquele dos SNs 4, 9, 13, 18 e 20, com os quais este SN 44 tem relação anafórica.

SN45) [a sua terra]: terra de José Américo, retomada do SN 44.

SN50)[o sr. José Américo]: este SN continua a progressão do José Américo político, em relação anafórica com os SNs de
número 4, 9, 13 18, 20 e 44.

1191
SN 66)[o pouco (que restava ainda de [“eterna vigilância”] n[o ilustre e malogrado sr. José Américo])]: este SN é
complemento verbal de “diluiu”. Vale ressaltar os determinantes de “sr. José Américo”: ilustre e malogrado, atributos que
compõem um homem paradoxal: com prestígio social e político, porém sem consciência e valor moral. Há relação anafórica
com os SNs 4, 9, 13,18, 20, 44 e 50, que retratam e recategorizam o José Américo político.

SN 73)[o sr. José Américo]: Há relação anafórica com os SNs 4, 9, 13, 18, 20, 44, 50 e 66, que retratam e recategorizam o
José Américo político. No texto, este SN [o sr. José Américo] faz parte de uma oração justaposta, em que o enunciador
expressaria o que (na concepção de Dalcídio) José Américo estaria pensando sobre o mundo fora do Palácio, do qual
Dalcídio faz parte: “Aqui fora, pensa [o sr. José Américo], grita-se demais”. E assim, o enunciador passa a um
desdobramento da predicação, “grita-se demais”, passando a referenciar nos SNs seguintes quem grita e na predicação o
porquê de gritar.

SN 91)[o sr. José Américo]: Há relação anafórica com os SNs 4, 5, 9, 11, 13 18, 20, 44, 50 e 73, que retratam e
recategorizam o José Américo político.

SN 94) [o seu peso]: em “o seu peso é grande”, podemos compreender “o peso da declaração ou julgamento de José
Américo” (SN 91). Aqui é curioso observar que Dalcídio “pulou” uma etapa da progressão pela anáfora. Poderia ele ter feito:
“o sr. José Américo achou que o grito é sinal de desespero”, depois a nominalização “sua declaração” ou “seu julgamento”
(dele, de José Américo) e, por fim, “o seu peso”, que seria o peso da declaração de José Américo. Como isso não foi feito, o
leitor teria que inferir o ato verbal pelo uso dos verbos: “José Américo achou”, “*diz isso”.

SN 110)[sr. José Américo]: Aqui se completa a recategorização sobre o tópico discursivo “José Américo”, que aparecera
pela primeira vez no SN 4. O José Américo “de ontem” é retratado nos SNs 7, 8 e 17. O “de hoje” progride ao longo dos
SNs 4, 5, 9, 11, 13, 18, 20, 44, 50, 66, 73, 91 e por último o 110, que retratam e recategorizam o José Américo político.

IV- Considerações finais


Pela explanação acima, acredito que identificar e analisar os processos de referenciação de um texto, observando
os seus aspectos linguísticos e seu funcionamento discursivo (através do acompanhamento das categorizações e
recategorizações da cadeia coesiva referencial, em paralelo com as condições de produção do texto e os modos de
organização textual) seja uma forma de detectar que intenções comunicativas direcionam o enunciador para escolhas
gramaticais sintático-semânticas dentre as opções do sistema da língua portuguesa e, assim, construir em interação com
este enunciador os sentidos possíveis e a coerência deste texto.
Considerando que a textualidade se compõe dos aspectos pragmáticos, semântico-conceitual e formal, penso que
um texto se processe da seguinte forma: o aspecto formal ou microtextual é trabalhado de acordo com os aspectos
pragmáticos (tanto para a produção quanto para a interpretação) e esses dois em sintonia é que compõem o aspecto
semântico-conceitual, a coerência textual.
No artigo jornalístico assinado, escolhemos acompanhar na cadeia referencial e fazer a descrição da progressão
dos SNs do tópico discursivo “sr. José Américo”. Se houvesse mais espaço para tal, mostraríamos que os tópicos

1192
discursivos expressos em SNs com os maiores números de recategorizações são os mais importantes informacionalmente
e são justamente aqueles que ajudam primeiramente a construir a argumentação, como:
• “sr. José Américo” – 1 categorização +19 recategorizações;
• “gritos” – 1 categorização + 9 recategorizações + 4 . O tópico “gritos” estava diretamente ligado a outro:
consciência “morta” ou viva, pela presença ou ausência de gritos. O tópico “consciência” apareceu 4
vezes;
• “refrigérios de um acordo” – 1 categorização + 7 recategorizações + 3 recategorizações do tópico
“Catete”, diretamente ligado a “refrigérios” e a “acordo”.
Logo depois, em número, estão os tópicos “calor” e “sertão”, usados na descrição em prol da argumentação:
• “calor” – 1 categorização + 5 recategorizações;
• “sertão” – 1 categorização + 2 recategorizações.

As diversas recategorizações durante a progressão do texto, vão (re)construindo os objetos-de-discurso, as quais


constituem um modo de avançarinformacionalmente e de o enunciador revelar o seu mundo conhecido, o mundo de seu
discurso. Por fim, considero que esse tipo de investigação se justifique, pois reconhecer que nosso conhecimento do mundo
se dá pela construção discursiva e aprofundar o estudo desses processos de construção da referenciaçãocontribuem para a
conscientização do papel da linguagem na vida humana e das flutuações e instabilidades do que é ser humano.

V - Referências:
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2008.

COSTA VAL, Maria da Graça. Repensando a textualidade. In: AZEREDO, José Carlos de. Língua portuguesa em debate.
Petrópolis: Vozes, 2000.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

NEVES, Maria Helena de Moura. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso. In: ORLANDI, Eni; LAGAZZI-RODRIGUES, Suzy. Introdução às ciências da linguagem:
discurso e textualidade. Campinas: Pontes, 2006.

SENNA, Homero. Uma voz contra a injustiça: Rui Barbosa e o caso Dreyfus. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa,
2004. 2. ed. rev. ampl. (Orelha: Rejane de Almeida Magalhães. Tradução da carta de Zola: Marta de Senna.)

Soraia F. Reolon Pereira – Pesquisadorada Fundação Casa de Rui Barbosa. Doutoranda em Língua Portuguesa pela
UERJ. Dedica-se aos temas: gramática, sintaxe, referenciação, linguística textual, edição de textos literários (romance
Belém do Grão-Pará) e não literários (Obras Completas de Rui Barbosa), acervos literários (org.
deDalcídioJurandir,romancista da Amazônia, com Ruy Pereira e Benedito Nunes). E-mail: soraiareolon@gmail.com.

1193
As práticas discursivas de incentivo ao consumo: relações
interdiscursivas na composição de periódicos
empresariais

PESSOA, Fátima Cristina da Costa


(UFPA)

Refletir sobre as práticas discursivas de incentivo ao consumo implica, nos limites deste trabalho, investigar duas
práticas que convergem na composição dos textos por meio dos quais empresas e clientes interagem: a prática de informar
e a prática de fazer consumir. Em um cenário de acirrada concorrência entre empresas na oferta de produtos e serviços, a
disputa pelo mercado consumidor não se resume apenas à apresentação do produto e/ou serviço e à oferta dos menores
preços. Capta-se o consumidor pela divulgação da qualidade dos produtos e serviços que são oferecidos e pela divulgação
dos benefícios que eles podem trazer àqueles que os consomem, mesmo que não se ofereça o preço mais baixo que o
concorrente. Para tanto, é preciso, então, deixar o consumidor informado sobre o setor de atuação da empresa e,
principalmente, sobre o diferencial que a empresa oferece ao consumidor.

Os periódicos empresariais são um dos instrumentos por meio dos quais se faz chegar ao consumidor as
informações que a empresa precisa e quer veicular, com vistas a atrair e fidelizar o cliente. Por meio da reunião de
informações que são postas em primeiro plano na organização dos periódicos, as empresas dão indicações da forma como
trabalham, da seriedade com que buscam satisfazer as necessidades dos seus clientes, do seu compromisso social e
também dão indicações sobre o que é útil, saudável, prático, essencial para o dia-a-dia do consumidor.

Para compreender as relações interdiscursivas que geram as necessidades de consumo, os periódicos


empresariais serão tomados como gêneros, em uma perspectiva discursiva, na qual entende-se que há coerções genéricas
atuantes na composição dos textos, as quais dizem respeito às instâncias de enunciação, que não devem ser tomadas por
nenhuma exterioridade discursiva, mas como elementos constitutivos/legitimadores do exercício enunciativo. Esse
posicionamento evita o risco de refletir sobre os lugares sociais sem levar em conta os textos que tais lugares tornam
possíveis ou refletir sobre os textos sem levar em conta os lugares sociais aos quais eles pertencem, o que “poderia
significar que o discurso não está sendo abordado a partir do ponto de vista da análise do discurso” (MAINGUENEAU,
2006, p.146). Para atingir os objetivos propostos no trabalho, será necessário também compreender a produção, a
distribuição e o consumo dos periódicos empresariais na perspectiva que estabelece Maingueneau (2005a), para quem
conceber o discurso enquanto prática discursiva implica reconhecer a relação entre o discurso e o espaço institucional em
que ele se estabelece, revelando uma imbricação radical entre um dito, um dizer e uma instituição. Considerando-se os
periódicos empresariais como gêneros discursivos e buscando-se compreender a prática discursiva da qual eles fazem
parte, investe-se no reconhecimento dos espaços discursivos1 que a análise pode delimitar para investigar quais relações
interdiscursivas tecem as práticas de incentivo ao consumo, conduzindo o consumidor a aderir a mundo ético nos quais são
imperiosas determinadas necessidades de consumo.

1 A expressão espaço discursivo remete à tríade universo, campo e espaço discursivos, proposta por Maingueneau (2005a) para tornar

mais específico o conceito de interdiscurso.

1194
Para avançar nas reflexões sobre a discursividade na composição de periódicos empresariais, optou-se por iniciar
pelas considerações que podem ser feitas a respeito das coerções genéricas impostas à composição dos textos, tomando
como ilustração o periódico da empresa de colchões Ortobom. O periódico oferecido ao consumidor intitula-se “Manual do
sono” e está disponível nas lojas da empresa ou nas lojas que revendem o produto. O reconhecimento de um gênero na
apresentação do material gráfico já situa os interlocutores em uma cena genérica2 específica, com base na qual a interação
irá desenrolar-se. Trata-se de um manual, cuja função é orientar o leitor sobre a melhor maneira de garantir um bom sono.
Para tanto, são reunidas, no periódico, informações que dizem respeito tanto ao processo do sono e ao funcionamento do
organismo humano no momento do sono quanto a conselhos para um melhor descanso e à escolha do melhor colchão. Ao
modo de um manual, o periódico reúne informações úteis para o leitor, que o orientam a alcançar a melhor qualidade de seu
sono. No entanto, mais do que reunir informações, o periódico as dispõe de forma a atrair a atenção desse leitor. Na capa
do periódico há chamadas em destaque para as seções em que o periódico se divide, tais como “Qual o melhor colchão?”,
“O que é e para que serve o sono?”, “Faça o teste e avalie seu sono”. Compõe, também, a capa a figura de uma mulher,
deitada em um colchão, vestida de branco, com os olhos fechados e um largo sorriso.

Já na apresentação desse material é possível reconhecer o caráter híbrido que atravessa todo o periódico, o qual
se pretende pontuar ao longo deste trabalho. Embora intitule-se um manual, o material gráfico sob análise não corresponde
a um estilo mais formal e mais enxuto que os textos pertencentes a esse gênero costumam apresentar. Em geral, os
manuais resumem-se a reunir a informação necessária para a orientação adequada do leitor/consumidor quanto ao bom
funcionamento do produto que adquire. Não é comum que esse tipo de material verbal constitua-se de elementos verbais ou
não verbais que atraiam a atenção do leitor e que despertem nele a curiosidade pelas informações ali contidas. Na cena
enunciativa que se constitui em torno da leitura mais prototípica de um manual, o leitor vai à busca de uma informação
específica da qual necessita para realizar uma ação que provavelmente não conseguiria realizar sem orientação. Em
relação ao periódico sob análise, a apresentação do material gráfico dispõe-se de modo a estimular o leitor à leitura. A
conjunção de elementos verbais, como os comentários abaixo dos títulos das seções que compõem o periódico, e de
elementos não verbais, como a foto de uma mulher deitada e sorrindo, constituem uma cena na qual o leitor é convidado a
envolver-se na leitura do periódico. Há, inclusive, um convite para que o leitor avalie, com base nas informações que o
periódico dispõe, a qualidade de seu próprio sono:

Faça o Teste
E avalie seu sono
Uma ajuda valiosa para

você descobrir se dorme


3
bem ou não

2 A expressão cena genérica remete ao conceito de cena de enunciação encontrado em Maingueneau (2005b), que diz respeito às
condições de existência do discurso ao mesmo tempo em que pelo discurso é validada no momento da enunciação. O conceito subdividi-
se em cena englobante, cena genérica e cenografia.

3 A disposição do texto procura imitar o formato original do periódico.

1195
Diferentemente de um manual comum, cuja leitura é de iniciativa do leitor, o manual do sono instaura uma cena
enunciativa que convida o leitor a ler, a se informar e, com base nessas informações, agir.

Outra característica do periódico que o distingue do que comumente relacionamos a um manual é a inserção,
entre as seções em que o periódico se divide, de diferentes peças publicitárias dos produtos que a empresa fabrica. Na
contracapa há uma propaganda dos colchões Ortobom, em que a imagem mostra uma jovem espreguiçando-se sobre uma
cama coberta com lençóis brancos, em uma atitude de quem acaba de acordar. Abaixo da imagem, o texto que segue:

ESCOLHA O COLCHÃO

PENSANDO NO FUTURO:

O DIA SEGUINTE.

Ainda não é possível prever o futuro. Mas se você não dormir num colchão de qualidade, é
bem provável que o seu dia seguinte vá ser um dia daqueles. Ortobom proporciona noites
mais tranqüilas e um sono reparador. Acorde enquanto é tempo. Compre um Ortobom.

O reconhecimento dessa forma de heterogeneidade na composição do material gráfico aponta para o


reconhecimento de um estatuto diferenciado para o enunciador e o enunciatário na cena enunciativa que se constitui. A
empresa que oferece o periódico ao consumidor não só se apresenta com a função de orientar o leitor a dormir com mais
qualidade, apresenta-se também com a função de convencer o leitor, considerado um consumidor em potencial, a adquirir o
produto da empresa. A relação empresa/cliente apresenta-se, desse modo, envolvida por uma cena genérica que busca
colocar em primeiro plano não a relação comercial entre os sujeitos, embora seja esse o fim último da interação. Essa
relação comercial é camuflada em uma relação de atendimento ao consumidor, oferecendo a ele não somente produtos,
mas principalmente informações valiosas que permitirão a ele viver melhor, ser mais feliz.

Maingueneau (2006) afirma que a análise discursiva dos gêneros “pode levantar questões estimulantes sobre a
relação entre as propriedades lingüísticas de textos e as propriedades de comunidades discursivas” (p. 175). Para o autor,

Uma das características essenciais da análise do discurso é articular modos de dizer com instituições.
As mais diversas comunidades fechadas são similares no modo como lidam com os discursos: para
elas, o discurso é, ao mesmo tempo, uma atividade “transitiva”, que tem como objetivo intervir em uma
realidade social, e uma atividade “intransitiva”, que permite aos membros do grupo construir suas
identidades. (MAINGUENEAU, 2006, p. 175-176)

Na interação empresa/cliente, a função da empresa é mais que produzir e vender produtos ou oferecer serviços.
Cabe à empresa transformar a vida do cliente na direção de uma vida ideal, que inclui a aquisição dos produtos que essa
empresa comercializa.

Considerando-se que a identidade de um discurso se define pelas relações interdiscursivas, compreender as


práticas discursivas de incentivo ao consumo da qual fazem parte empresas e clientes implica reconhecer o modo como são
constituídos os espaços discursivos, de onde emergem as significações. Conforme Maingueneau (2005a), a definição e
configuração de tais espaços é resultante de “hipóteses fundadas sobre um conhecimento dos textos e um saber histórico,

1196
que serão em seguida confirmados ou infirmados quando a pesquisa progredir” (p. 37). Sendo assim, as considerações
sobre esses espaços não podem ser tomadas senão como uma interpretação do analista em um determinado estágio de
sua pesquisa, estando sempre sujeita a um refinamento sempre que se amplia a percepção do objeto a ser pesquisado.

Reconhecendo que o periódico da empresa Ortobom se apresenta como o Manual do sono, cuja função é orientar
o consumidor sobre a melhor maneira de garantir um bom descanso, as informações reunidas devem ter a credibilidade
necessária para convencer o leitor/consumidor de sua pertinência. Para tanto, as primeiras seções apresentam informações
sobre o processo do sono, apoiadas em dados de pesquisas científicas, além de esclarecer sobre os distúrbios do sono,
caracterizados como doenças que prejudicam a qualidade de vida dos indivíduos:

Os médicos sabem que o processo do sono é regido por um relógio biológico ajustado num ciclo de 24 horas. Os ponteiros desse
mecanismo são moldados geneticamente e sua sincronia depende de fatores externos, como iluminação, ruídos, odores, hábitos, tipos de
colchões, vida social etc.

Os especialistas acreditam que a principal peça dessa engrenagem é a melatonina – hormônio produzido no cérebro pela glândula pineal.
Ele começa a ser secretado assim que o Sol se põe, como um aviso para o organismo se preparar para “dormir”.

Nesses segmentos, o texto se constitui por meio das marcas da heterogeneidade mostrada, ao creditar-se a fonte
da informação sobre o processo do sono a sujeitos que se situam no campo da ciência. As pesquisas científicas são
consideradas, portanto, discursos que podem legitimar o posicionamento da empresa sobre a necessidade de dar maior
atenção aos produtos que o consumidor deve adquirir. As informações desse campo discursivo na constituição dos
periódicos geram o efeito de seriedade e tornam indispensáveis a adoção das práticas recomendadas pela empresa para a
transformação da vida dos leitores/consumidores. Essa transformação é incentivada com base em argumentos racionais:

Dormir bem é essencial não apenas para ficar acordado no dia seguinte, mas para manter-se saudável, melhorar a qualidade de vida e
até aumentar a longevidade.

No entanto, embora a empresa busque apoio nos sentidos constituídos no campo da ciência para garantir a
credibilidade de sua prática discursiva, a forma imprecisa como remete a essas figuras de autoridade aponta também para
um efeito de simplificação da informação que, por sua vez, gera um efeito de simulação da prática de intertextualidade que
a cena enunciativa pretende legitimar. Maingueneau (2005a) define por intertextualidade os tipos de relações intertextuais
que a competência discursiva define como legítimas. Apoiadas nos discursos do campo científico para convencer
consumidores da qualidade e da importância de seus produtos e/ou serviços, as empresas se apropriam, na constituição
dos periódicos empresariais, de modos de enunciação próprios dos gêneros do campo de que se aproximam, adaptando-
os, no entanto, às coerções genéricas de seu próprio campo. No periódico sob análise, os sujeitos do campo da ciência são
referendados como médicos, especialistas, cientistas, como palavras-chave que remetem a atividades dessa natureza. As
pesquisas também são referendadas de modo bastante impreciso, como nos segmentos abaixo:

Em estudo realizado pela Universidade de Chicago – EUA, onze pessoas com idades entre 18 e 27 anos foram impedidas de dormir mais
de quatro horas durante seis dias.

Em pesquisas de laboratório, ratos usados como cobaias não agüentaram mais de dez dias sem dormir.

1197
São modos bem distintos das práticas de referenciação dos gêneros do campo científico, que exigem precisão
nos dados informativos das fontes de onde provêm as informações.

Uma vez caracterizados o processo do sono e os distúrbios que o incomodam, o Manual do sono oferece
“Conselhos para um melhor descanso”. Nessa seção do periódico, é possível mais uma vez reconhecer mais um traço da
conjunção entre a necessidade de manter o leitor bem informado e a disposição em convencê-lo a consumir. Ao lado de
conselhos como:

Os amantes do café, chá, chocolate e refrigerantes devem saber que os efeitos dos estimulantes destes produtos, consumidos em
excesso, fazem-se presentes entre duas a quatro horas depois da ingestão. Ao ingerir substâncias que contenham estimulantes, ao final
da tarde ou durante a noite, contribui-se para a diminuição da profundidade do sono e para o aumento dos possíveis “Despertares
Súbitos”.

Há conselhos como:

Um ambiente agradável é fundamental. Deixe o quarto bem escuro, evite lugares barulhentos e, se possível, regule a temperatura. É
fundamental um bom colchão, assim como bons travesseiros e roupas de cama, eles fazem grande diferença.

Dicas dessa natureza revelam que a qualidade de um bom sono não depende apenas da adoção de hábitos
saudáveis ao longo do dia, que garantam o bom funcionamento do organismo mesmo na hora do descanso. Dependem
também da aquisição de bons produtos, produtos que a empresa tem a oferecer.

Por fim, na seção do periódico em que são apresentados os tipos de colchões e travesseiros disponíveis no
mercado, com indicações sobre espessura, densidade, tipo de material de que são feitos, informações úteis para escolher o
colchão que melhor se adapte ao corpo do leitor/consumidor, alguns segmentos de texto demonstram o quanto a
informação deve se transformar em saberes que guiam as escolhas de um consumidor responsável, que antes de
considerar as relações de custo dos produtos e/ou serviços, deve considerar os benefícios que os produtos e/ou serviços
podem gerar a ele e aos demais:

Compre um produto que lhe dê o maior benefício. Compre um produto, não um preço. Compre o melhor produto que possa pagar. É um
investimento do qual não se arrependerá.

Não economize. Não deixe que 10% ou 20% a mais no preço façam com que leve um produto que pode se transformar numa dor de
cabeça.

A relação comercial de início camuflada por uma relação de atendimento ao consumidor, torna-se ao final do
periódico mais evidente e também mais pertinente, pois para a empresa não se trata apenas de vender o produto que
fabrica, mas de garantir ao consumidor melhor qualidade de vida. Na cena enunciativa que se quer validar, o que importa
não é o quanto a empresa ganhará com a transação financeira. O que mais importa é o quanto o cliente ganhará em
benefícios. Na instituição empresarial formada por aqueles que lucram, aqueles que trabalham e aqueles que consomem,
certas formas de interação precisam desviar a atenção do lucro para a parceria no trabalho e/ou para a realização do
consumidor. Convencido de que precisa mudar de hábitos de consumo, o sujeito pode aderir ao mundo ético que a empresa
apresenta a ele, pode lamentar-se por não conseguir aderir a esse mundo. Não convencido dessa necessidade
discursivamente constituída, o sujeito pode rebelar-se contra o mundo que se quer vender. Reconhecer as condições de

1198
produção desses discursos implica reconhecer as práticas mais ou menos evidentes em que os sujeitos estão envolvidos
cotidianamente e os lugares que nela ocupam.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do discurso. Campinas, SP: Pontes – Editora da Unicamp, 1997.

_____. Análise de textos da comunicação. São Paulo: Cortez, 2004.

_____. Gênese dos discursos. Curitiba: CRIAR Edições, 2005a.

_____. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso. São Paulo: Contexto, 2005b.

_____. Cenas da enunciação. Curitiba: CRIAR Edições, 2006.

Profa. Dra. Fátima Cristina da Costa Pessoa é professora Adjunta da Universidade Federal do Pará. Doutora em Análise do
Discurso pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordena o projeto de pesquisa As práticas discursivas de informar e
fazer consumir, no qual estão envolvidos alunos de iniciação científica e do Mestrado em Letras da Universidade Federal do
Pará.

Email: fpessoa37@gmail.com

1199
O não reconhecimento do outro em interlocuções entre
médicos e pacientes: simulacro e ethos na prática médica

PICCARDI, Tatiana
(IEL-Unicamp/Fapesp/PUC-Grupo Atelier)

A “consulta médica” como prática discursiva complexa

Em meus estudos recentes, que buscam compreender as relações que existem entre linguagem e saúde por meio da
observação participante em diferentes práticas na área da saúde e assistência social, tenho observado que as práticas
discursivas envolvendo médicos e pacientes, alvo da análise do presente trabalho, são bastante tensas em função da fragilidade
e do medo da doença que perpassam a interlocução. A tensão é reforçada pelo apego a uma posição rígida por parte do
médico, que se vê como o detentor do saber, e pela posição de subordinação, às vezes de vitimização, por parte do paciente,
em prejuízo da interlocução produtiva, ou seja, daquela capaz de perpassar a relação de modo a que o processo de tratamento
se construa com a máxima tranquilidade.
Parece-me que tais posições rígidas são próprias à prática clínica conhecida como “consulta médica”, ou “consulta
clínica”, em que os papéis sociais do “médico” e do “paciente” são definidos de modo hierarquizado e impessoal, e a
compreensão do que é dito e vivido acaba por ser fruto dessa cristalização, havendo pouco espaço para que as subjetividades e
as emoções apareçam e sejam trabalhadas de modo a contribuir para o processo de tratamento.
Tenho observado também que em interlocuções produtivas (em que as partes estabelecem entre si uma ligação de
mútua cooperação) tal cristalização dos papéis tende a se relativizar, abrindo-se espaço para o estabelecimento de uma relação
mais satisfatória para os interlocutores. Parto da hipótese de que, nesses casos, existe uma ampliação do escopo de
possibilidades através das quais o Outro é visto e compreendido, que vão além das possibilidades oferecidas por um papel
social estanque, e que podem revelar uma mudança em andamento nessas práticas. Da mesma forma, tenho observado que tal
ampliação do escopo através do qual se interpreta o Outro pode se constituir como parte da competência discursiva dos sujeitos
envolvidos na prática em questão que, como qualquer tipo de competência, pode ser aprendida, tanto pelo paciente, como, e
fundamentalmente, pelo profissional de saúde.
Admite-se, neste estudo, que fazem parte das práticas discursivas a emergência e a consolidação de diferentes
identidades e que os limites fluidos entre elas (que definem sua própria existência) são construídos em discurso de modo, em
geral, conflitante. O Outro, para ser reconhecido enquanto Outro e, portanto, possuidor de uma identidade “x”, precisa, num
aparente paradoxo, ser excluído (ou não reconhecido) no processo de construção das identidades em discurso. Uma identidade
só se afirma em contraposição a um Outro que não é reconhecido como igual. É pela diferença, portanto, e não pela
semelhança, que as identidades se constituem. Assim, o médico, para se constituir como tal, não pode reconhecer no Outro um
saber e um modo de agir que só pertenceriam a si. Desse modo, detém o poder (ou conhecimento instituído) de deliberar sobre
saúde e doença e sobre o corpo e as vivências corporais do sujeito em atendimento. O paciente, por sua vez, constrói sua
identidade de “paciente” abdicando dos saberes sobre seu corpo e delegando ao médico a autoridade sobre si.

1200
O processo de mútua exclusão que delimita identidades e papéis sociais é constitutivo dos discursos. Ocorre que o
âmbito e as consequências dessa exclusão recíproca (ou não reconhecimento do Outro) numa prática como a “consulta médica”
podem ser o afastamento dos sujeitos e o afrouxamento do que poderia ser uma relação emocionalmente satisfatória para as
partes, em prejuízo do processo de tratamento. A boa notícia é que tais consequências podem ser administradas/controladas
por meio de uma competência discursiva renovada, que delimitará novas características para a prática em questão.
É possível entender o modo como tais papéis sociais são construídos (e também relativizados) pelas partes por meio
das noções de ethos e simulacro, relacionando-as à construção das identidades dos sujeitos em discurso, conforme veremos
adiante.
Dizer que as identidades tendem a ser afirmadas/constituídas a partir do não reconhecimento do Outro equivale, em
parte, a dizer que este Outro é construído como simulacro de si (Maingueneau, 1984, 2006), sendo, portanto, inatingível em sua
“essência”. Se, por um lado, concordamos com o fato de que a interlocução pressupõe a construção de simulacros (não há uma
“essência” do Outro a ser atingida, pois as identidades e os discursos que as constroem e perpetuam – ou não – jamais são
estanques), por outro, propomos que o interesse concreto dos sujeitos no sucesso da interlocução afeta a construção desses
simulacros, ampliando o escopo de possibilidades através das quais o Outro é visto e compreendido.
Da mesma forma, o ethos (Maingueneau 2002, 2001, 2005) construído pelos interlocutores pode relativizar o não
reconhecimento do Outro, se construído com base na identificação. Se as identidades em discurso existem por meio de
mecanismos de exclusão, os processos de identificação que os sujeitos articulam pela linguagem funcionam por estratégias
discursivas de inclusão. Propomos que o sucesso da interlocução e da prática social nela envolvida pressupõe a construção de
imagens de si no discurso que favoreçam o reconhecimento do Outro por meio de estratégias inclusivas.
O escopo teórico utilizado neste trabalho é fruto do diálogo entre a análise do discurso francesa e a pragmática, nos
pontos em que, para ambas, língua significa atividade de um sujeito falante inserido em um contexto sócio-histórico. Dentro da
tradição da AD francesa, ressaltamos aspectos da teorias de Dominique Maingueneau (2006, 2005, 2002, 2001,1984), centrais
neste artigo.

Consultas médicas com anúncio de prognóstico fatal

Relações médico-paciente em que estão envolvidas doenças graves são em geral construídas discursivamente com
bastante dificuldade, já que nessas situações a fragilidade de ambas as partes, na especificidade da prática médica, atinge seu
ápice. Ao contrário do que seria adequado, é justamente nessas relações críticas que as falas acabam por não cooperar, ou
cooperar pouco, para uma boa relação médico-paciente e para a própria boa continuidade do tratamento.
Como parte de estudo recente realizado junto a pais enlutados (Piccardi, 2008), que perderam um filho em função de
doença grave, foram coletados relatos de diálogos estabelecidos com o médico em uma situação específica, a mais crítica de
todas, o anúncio, por parte do médico, da gravidade da doença e do tempo de vida que restava ao filho. Em todas as situações
(cerca de vinte relatos), a fala do médico retirou da mãe e/ou pai o único esteio que lhes restava para conduzir a relação com o
filho nos meses que se seguiriam: a esperança. Os efeitos de tais falas foram desastrosos. O anúncio explícito do tempo de vida
previsto do paciente, prática regular na medicina atual, pode ser visto como ato de fala de cuja performance depende toda a
continuidade da relação que se estabelecerá entre o paciente, seus familiares e o médico, daí sua importância peculiar.

1201
O impacto dos efeitos desses anúncios sobre o interlocutor, especialmente dos efeitos de alguns poucos enunciados
retirados desses relatos (e que foram os mais enfatizados pelas mães), os torna bons exemplos para a análise da
performatividade da linguagem e incita o pesquisador a buscar uma postura não apenas descritivista de tais efeitos, mas a
buscar, tomando a linguagem como lugar de construção de novos saberes e práticas, recursos para controlar e administrar os
efeitos danosos de atos de fala infelizes (Austin, 1975). Este artigo está redigido sobre a convicção de que os sujeitos em
discurso nas práticas médicas podem se utilizar de estratégias discursivas includentes em relação ao Outro, investindo numa
imagem de si renovada e na ampliação do escopo dos simulacros construídos, entendendo sua fala como atos que geram
consequências concretas na vida dos interlocutores.

As noções de ethos e simulacro na prática médica

As noções de ethos e simulacro nos ajudam a entender o porquê da rigidez das posições assumidas na prática
interlocutiva-discursiva em tela e apontam alguns caminhos para sua flexibilização.
A noção de ethos vem sendo trabalhada em estudos recentes por diferentes disciplinas. Maingueneau (2002), a
respeito da dificuldade de se estabelecer uma definição rígida, nos diz que:

Não é de forma alguma possível estabilizar definitivamente uma noção desse tipo, que é mais adequado apreender como
o núcleo gerador de uma multiplicidade de desenvolvimentos possíveis. Há uma grande distância, por exemplo, entre os
esforços de M. Dascal para integrar o ethos a uma “retórica cognitiva” fundada em uma pragmática filosófica (Dascal,
1999) e as perspectivas dos “estudos culturais”, em que o ethos é associado às questões de diferença sexual e de
etnicidade (Baumlin J. et T, 1994). Os corpora exercem um papel essencial nessa diversificação: aplicada a um texto
filosófico do século XIX, o ethos não põe os mesmos problemas que põe quando aplicado a uma interação
conversacional… (p. 8)

Mais adiante acrescenta que:

No entanto, limitando-se à Retórica de Aristóteles, pode-se concordar em relação a algumas ideias, sem prejulgar a
forma pela qual elas poderão eventualmente ser exploradas:
- o ethos é uma noção discursiva; ele se constitui por meio do discurso, não é uma
“imagem” do locutor exterior à fala;
- o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro;
- é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser
apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, ela própria integrada a uma conjuntura sócio-histórica
determinada. (p. 9)

Desta forma, o autor estabelece alguns parâmetros mínimos a partir dos quais a noção de ethos deve ser
compreendida, e é neste conjunto de parâmetros que nos baseamos para entender ethos na especificidade da prática “consulta
médica”.
Concordo plenamente com Maingueneau quando diz, mais adiante no mesmo artigo, que “[...] a noção de ethos
permite refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a um certo posicionamento”. Esta afirmação nos permite
compreender melhor a relação entre ethos e papel social assumido/construído em discurso, na medida em que o ethos não se
constrói de modo autônomo pelo sujeito, desvinculado do contexto sócio-discursivo. O ethos está atrelado diretamente a esse
papel social e a um “lugar de fala autorizado”, que leva o sujeito a investir-se de tal e tal forma no discurso, e não de outra. Este
investimento de si no discurso é um aspecto que marca o posicionamento.

1202
No caso específico do médico em atendimento a um paciente, observa-se que sua aparência de sujeito objetivo, dono
de um saber especializado e em posição assimétrica na interlocução, que utiliza de sua fala autorizada para deliberar sobre o
corpo alheio, traduz um ethos posicionado em discurso da perspectiva socialmente endossada do médico em exercício de sua
atividade, posicionamento que se alinha ao que se denomina em saúde “paradigma biomédico”. O paciente, por sua vez, alinha-
se à posição assimétrica inversa, e o ethos correspondente é construído no instante mesmo em que os sujeitos iniciam a
interlocução.
Os estereótipos imediatamente ativados por meio da leitura que os sujeitos fazem um do outro e de si mesmos na
dada situação remetem ao que Maingueneau (2002) denomina de “mundo ético”, espécie de arcabouço cultural que subsume
um certo número de situações estereotípicas associadas a comportamentos. Médico e paciente, durante a interlocução, além de
tomarem uma posição no discurso coerente com o ethos construído, assumem comportamentos alinhados ao mundo ético
correspondente à prática em pauta.
A noção de simulacro proposta por Maingueneau (1984), por sua vez, conforme bem sintetizam Souza-e-Silva e Rocha
(2009), “[...] propõe que a interação semântica entre os discursos é um processo de tradução: cada discurso traduz os outros em
seus próprios termos”. Segundo os autores, a competência discursiva engloba, portanto, ao abarcar a noção de simulacro: “(i) a
capacidade para reconhecer a incompatibilidade semântica de enunciados da(s) formação(ões) do espaço discursivo que
constitui(em) seu Outro; e (ii) a capacidade de interpretar, de traduzir esses enunciados nas categorias de seu próprio sistema
de coerções”. O enunciador, quando confrontado com seu Outro, produz simulacros desse outro, “[...] isto porque uma posição
enunciativa não pode sair de seu fechamento semântico, ela só pode emprestar ao Outro suas próprias palavras” (p. 7-8).
A definição de simulacro implica que a compreensão do Outro é sempre e necessariamente limitada e parcial,
deslocada para os termos daquele que enuncia sobre este Outro, dando margem ao que Maingueneau chama de
interincompreensão. No caso específico da prática em pauta, o fenômeno interdiscursivo da construção de simulacros – que no
caso se dá de modo bastante arraigado a estereótipos sociais muito consolidados, pouco abertos ao novo e pouco afeitos a
estratégias discursivas includentes – estaria na base das interlocuções mal sucedidas, no sentido de falharem ao prover
sustentabilidade para o processo de tratamento. A falha provém do fato de, ao se enxergarem como simulacros um do outro,
baseados em papéis e estereótipos sociais arraigados, médico e paciente abdicam do esforço de ampliarem a percepção do
Outro, coagidos pela força da formação discursiva a qual se alinham, a saber: o paradigma biomédico, que determina a
assimetria na relação médico-paciente; estabelece um saber privilegiado (do médico); e posiciona o paciente como mera
contrapartida necessária à atuação do médico.

A fragilidade humana e o uso da linguagem em situações críticas

A fragilidade humana compõe as relações e se faz fortemente presente na relação médico-paciente, em especial em
situações de doença grave. O medo e a insegurança que, de um modo ou outro, afetam os dois integrantes da interlocução
fazem os sujeitos se apegarem aos papéis conhecidos, ativando ethos e simulacro coerentes com práticas tradicionais, ou seja,
pretensamente objetivas e unicamente apoiadas no saber médico instituído. Permitir que a emoção e as subjetividades aflorem
na interlocução é o desafio atual para os profissionais de saúde. Se conhecer o prognóstico pode ser entendido como direito do
paciente, cabe interferir para que a performance do anúncio possa, de fato, contribuir para o prosseguimento do caso e para a
melhor relação médico-paciente, de que depende, em boa parte, o andamento do tratamento.

1203
Entendemos que a linguagem é o lugar por excelência de construção de uma força transformadora e curativa. Esta
perspectiva, aliada às reflexões sobre o que seja saúde, pode constituir a base para uma prática médica ciente de sua atuação,
que contribua efetivamente para a qualidade do processo de tratamento, desde que um novo olhar se lance sobre a linguagem
construída nessa mesma prática.
Parte-se do princípio de que saúde não é um estado que se opõe à doença. A fragilidade, em suas diferentes
manifestações na corporalidade humana, é parte integrante de nossa condição. Ocorre que esta percepção é turvada pelo
conceito de “normalidade”, como quer que seja entendido, que é o parâmetro que norteia a formulação dos conceitos de “saúde”
e “doença” e “divide” os humanos em “sãos” e “doentes”. Trata-se de um modo de entender tais noções fortemente construído
em discursos que há muito circulam na área da saúde. Os simulacros que se constroem durante a interlocução médico-paciente
estão calcados nesses estereótipos sociais e não contribuem para o estabelecimento de uma relação produtiva entre as partes.
O médico é a parte “sã”, o paciente, a parte “doente”. A fragilidade humana, que os une por contingências de uma corporalidade
comum, e que poderia atuar em prol de uma maior positividade na produção discursiva, é muitas vezes ignorada.
Paralelamente, tem-se por pressuposto social arraigado na prática médica o fato de que médico e paciente teriam os
mesmos recursos linguistico-discursivos para enunciar, em situações críticas, com objetividade e clareza. Primeiramente,
convém dizer que a noção de uma linguagem objetiva, informativa, isenta das “impurezas” da subjetividade, da emoção e de
fatores contextuais, é um mito que só tem nublado o entendimento de diferentes práticas em que a linguagem pode ser tudo,
menos neutra e objetiva, como é o caso das situações aqui apresentadas. Em segundo lugar, mesmo que houvesse a
possibilidade de uma tal linguagem, ela não estaria à disposição de seus falantes de forma equânime, como, aliás, não está
mesmo sendo entendida como fundamentalmente subjetiva e contextualizada. Desta forma, os recursos linguísticos para a
expressão de enunciados técnicos (ou semitécnicos) por parte do médico não estão disponíveis ao paciente, assim como os
recursos linguísticos para a expressão (ou não) da dor e do medo diante de um diagnóstico desfavorável não estão à disposição
do médico. Embora se trate de recursos que não lhe são dados de antemão, são recursos que podem ser aprendidos.
A distribuição não equânime da linguagem nas relações médico-paciente em situações críticas e os estereótipos
sociais que circulam sobre as figuras do médico e do doente reforçam a construção de ethos e simulacro que aprofundam o
distanciamento entre interlocutores e afetam negativamente as possibilidades de compreensão. O médico é entendido como
aquele que detém o saber especializado e enxerga o paciente como leigo incapaz de entender a complexidade da situação, ao
mesmo tempo em que o vê hipoteticamente preparado para assimilar o prognóstico. A experiência nos mostra que o paciente
pode entender, sim, a complexidade do seu quadro, mas, por outro lado, pode não ter condições de assimilar o prognóstico. Por
sua vez, o paciente é entendido como aquele que reconhece o médico como o detentor do saber especializado e ao mesmo
tempo profissional capaz de assimilar a dor do outro. O paciente, justamente por ser leigo na prática médica, não sabe que essa
mesma prática não prevê, na formação do médico, a habilidade de transitar pelas emoções humanas, suas e do paciente.
Assim, o paciente não depreende que o médico não possa fazer o trânsito entre o objetivo e o subjetivo da maneira como
esperava e frustra-se, em geral silencia-se e sente-se desamparado diante da própria dor. O resultado é o não reconhecimento
mútuo como participantes de um mesmo processo, com variadas consequências, práticas ou não, que podem ir do mero
distanciamento entre as partes à troca de médico (possibilidade mais difícil no sistema público de saúde), ou, no limite, à
desistência do tratamento por parte do paciente.
Os enunciados citados a seguir, extraídos dos relatos mencionados, mostram uma construção linguístico-discursiva
baseada em estratégias de exclusão e não identificação com o Outro (o paciente), apontando para simulacros rígidos e um

1204
ethos médico arraigado a práticas convencionais, relacionadas ao paradigma biomédico, dominante na medicina – que reforça a
assimetria na relação médico-paciente e valoriza o saber instituído do médico. Ethos e simulacro construídos em tal contexto
estão fortemente atrelados a estereótipos sociais das figuras do médico e do paciente que neutralizam as possibilidades de
sucesso da interlocução, o que se daria por meio de um modo de inserção do sujeito no discurso que reconhecesse o Outro em
sua diferença e, sobretudo, em sua fragilidade naquele momento.
Os enunciados citados a seguir, extraídos dos relatos mencionados, mostram uma construção linguístico-discursiva
baseada em estratégias de exclusão e não identificação com o Outro (o paciente), apontando para simulacros rígidos e um
ethos médico arraigado a práticas convencionais, relacionadas ao paradigma biomédico. Ethos e simulacro construídos em tal
contexto estão fortemente atrelados a estereótipos sociais das figuras do médico e do paciente que neutralizam as
possibilidades de sucesso da interlocução, o que se daria por meio de um modo de inserção do sujeito no discurso que
reconhecesse o Outro em sua diferença e, sobretudo, em sua fragilidade naquele momento. Vejamos:

Médico 1: “Vamos empurrar com a barriga.”


Médico 2: “Curta sua filha, enquanto ela está viva.”
Médico 3: “Não adianta você correr, o caso não vai mudar.”
Médico 4: “Vai durar [a vida do filho] uns dois anos.”
Médico 5: “Seu filho tem no máximo três anos de vida.”

Cada um dos enunciados foi proferido a mães diferentes, em consulta em que o médico comunicava à mãe a
gravidade da doença do filho e a impossibilidade da cura. É evidente que o sentido de cada um deles só se constrói na situação
de enunciação como um todo. No entanto, por terem sido repetidos e frisados pelas mães, assumem um valor de ato que não
pode ser ignorado.
Os enunciados 1 a 3 partem de um posicionamento claramente arraigado a um lugar de poder cego ao outro e sua dor,
ao mesmo tempo que camuflam, por meio de uma linguagem marcada pela desconsideração ao outro, o sofrimento do médico,
que não consegue lidar com a própria dor.
Os enunciados 4 e 5 buscam a objetividade própria ao que podemos chamar de formação discursiva biomédica, e
igualmente promovem efeitos de exclusão do outro e sua dor.
Em todos eles trata-se de um ethos marcado por uma prática médica pouco produtiva. Cada enunciador, assim
incorporado, traduz o outro em termos da formação em pauta: um sujeito passivo, pronto a aceitar o prognóstico como
inquestionável, capaz de lidar sozinho com sua dor.
O único exemplo citado, que considero exemplo de uma enunciação produtiva, foi:
Médico 6: “O prognóstico não é bom, mas vamos lutar”.
Neste enunciado, a estratégia de reconhecimento e inclusão do outro na prática discursiva está marcada no segmento
“mas vamos lutar”, em que o enunciador incorpora o que chamo livremente de ethos inclusivo e promove identificação.

1205
Considerações finais

Falta na prescrição às falas do médico que anuncia o tempo de vida de seu paciente o elemento compaixão, capaz de
quebrar a hierarquia existente socialmente entre o que detém o poder (o médico) e o que não detém (o doente); o que está
“saudável” e o que está “doente”. Se ter pena do outro, em vez de compaixão, é a mais elementar demonstração de poder,
embora poucas vezes tal atitude seja levada em conta como tal, “não ter pena” e enunciar a morte prognosticada, sem levar em
conta a performatividade do ato, sob o argumento de que as partes são iguais, é também uma atitude de poder, que passa por
cima, tal qual um rolo compressor, da fragilidade humana.
O anúncio cru pode ser entendido como forma de o enunciador se proteger da própria fragilidade, daí o apego à
construção de ethos e simulacro convencionais. É evidente que nenhum médico se sente bem ao precisar, orientado por uma
prática médica atual bastante questionável, anunciar a morte de seu paciente. Anunciá-la rápida e cruamente pode ser, assim,
uma forma de autoproteção, uma forma de aliviar a dor e o desconforto do próprio médico, obrigado a deparar-se com dramas
humanos todos os dias. Mas a prática tem demonstrado que essa forma de autoproteção apenas contribui para a infelicidade
dos atos de fala envolvidos, uma vez que o distanciar-se discursivamante da dor e da fragilidade não as eliminam. Enunciar com
compaixão, criando estratégias discursivas de identificação com o Outro, pode ser o caminho para a renovação de uma prática
social importantíssima – a interlocução médico-paciente em consulta clínica – pelas consequências imprevisíveis que gera.

Referências

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Tatiana Piccardi é doutora em Letras pela USP. É pesquisadora colaboradora, em nível de pós-doutorado, no IEL-UNICAMP,
professora convidada da COGEAE-PUC-SP, membro dos grupos de pesquisa Atelier - Linguagem e Trabalho (LAEL-PUC-SP) e
Linguagem e Identidade (IEL-UNICAMP). É presidente da AHPAS–Associação Helena Piccardi de Andrade Silva, organização
de apoio a crianças e adolescentes com câncer. Email: tpiccardi@gmail.com .

1207
A subjetividade na divulgação do conhecimento científico:
um estudo de estratégias enunciativo-discursivas

REIS, Ana Carolina Gonçalves


(UFMG)
OLIVEIRA, Jairo Venício Carvalhais
(UFMG)

1. INTRODUÇÃO

Pesquisas e descobertas na área da ciência há muito tempo despertam a atenção do homem. Em linhas gerais, a
ciência tem como um de seus objetivos conhecer e dominar a natureza para servir à sociedade, o que implica a
necessidade de comunicação de descobertas científicas e tecnológicas feitas por pesquisadores e estudiosos em todo o
planeta. Nessa perspectiva, a visão tradicional de que o conhecimento científico é produzido unicamente para especialistas
vem sendo desafiada pela emergência do fenômeno da “divulgação científica”1. Atualmente, as informações ligadas aos
avanços da ciência e da tecnologia estão diariamente nas mídias como forma de aproximar a ciência do grande público. Na
transmissão dessas informações, assume papel importante o “divulgador”, o qual pode ser tanto um jornalista como um
cientista especializado em divulgar ciência. Esse sujeito comunicante (CHARAUDEAU, 2009), assim como o público leigo,
surge como um dos protagonistas desta encenação discursiva. Trata-se de alguém cuja tarefa exige muita habilidade para
transitar entre a complexidade da linguagem científica, e, ao mesmo tempo, facilitar o seu entendimento para um público,
um sujeito interpretante não especializado.
Na concepção de Leibruder (2003), a divulgação científica é uma prática eminentemente heterogênea, na medida
em que incorpora no seu fio discursivo tanto elementos provenientes daquele que lhe serve de fonte – o discurso científico –
quanto daquele que pretende atingir – o discurso jornalístico. Assim, partimos do pressuposto de que o discurso de
divulgação científica se caracteriza, por um lado, pela pretensa objetividade do discurso da ciência e, por outro, pela
suposta imparcialidade da mídia no que se refere a um discurso de informação. Dessa forma, com base em uma concepção
de ciência enquanto prática social e ideológica e do papel da mídia na democratização do conhecimento científico, este
artigo defende a hipótese de que a objetividade e a imparcialidade representam, na divulgação do conhecimento científico,
apenas aspectos bastante superficiais, conforme já apontado por Guimarães (2001), sendo ilusória a crença da não
interferência da subjetividade na materialidade linguística desse discurso.
Haja vista o exposto, o presente artigo busca descrever e analisar o gerenciamento de vozes e o emprego de
modalizações em uma reportagem de divulgação científica intitulada “Nova arma contra um velho inimigo”, veiculada na
revista Ciência Hoje, versão on-line, informativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A
fundamentação teórica de nossas discussões está respaldada em Charaudeau (2001, 2009) sobre contrato de comunicação
e sujeitos da linguagem; nas abordagens de Bakhtin (1995 [1929]), Authier-Revuz (1990, 1998) e Maingueneau (2001,
2008) sobre o discurso do outro e nos estudos de Coracini (1991), Koch (2002) e Guimarães (2001) sobre modalização e
subjetividade.

1 Neste trabalho, a expressão “divulgação científica” diz respeito à utilização de recursos, técnicas e processos, por parte da mídia em

geral (seja ela impressa, radiofônica, televisa ou digital), para a veiculação de informações científicas e tecnológicas ao público não
especializado em ciência.

1208
2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Os sujeitos da linguagem na perspectiva de Charaudeau

De acordo com Charaudeau (2009), o ato de linguagem não é o simples resultado de uma mensagem enviada por
um Emissor para um Receptor, mas sim o encontro entre os processos de produção e interpretação de um discurso,
envolvendo quatro sujeitos, parceiros da troca comunicativa. O quadro abaixo representa esse Ato de Linguagem e os
sujeitos nele envolvidos:

Fonte: Charaudeau (2009, p.52)

O Ato de Linguagem é “encenado” por sujeitos que estão regulados por uma Situação de Comunicação, estando
estes “suscetíveis de chegar a um acordo sobre representações linguageiras das práticas sociais” em que se inserem
(CHARAUDEAU, 2009, p. 56). O assim chamado Contrato de Comunicação refere-se às restrições das práticas
sociolinguageiras, fornecendo um estatuto sociodiscursivo aos protagonistas da linguagem.
Relativamente ao nosso objeto de estudo, trata-se de uma reportagem de divulgação científica intitulada “Nova
arma contra um velho inimigo” (de 23 de novembro de 2009), veiculada no portal Ciência Hoje On-line, escrita pelo jornalista
Luan Galani, para um público não-especializado em ciência. Partindo de Charaudeau (2009), os protagonistas dessa mise-
en-scène discursiva serão assim representados: relativamente à instância de produção, o jornalista que assina a matéria
divulgada no portal Ciência Hoje On-line será por nós denominado de EUc (ser empírico, psicossocial) e de EUe, enquanto
ser de fala, colocado em cena pelo EUc, situado no espaço do dizer. Na instância de recepção, o internauta que acessa o
portal será o TUi (sujeito interpretante ou ator social); e a imagem do internauta leitor “ideal” da publicação, criada pelo EUc,
será o TUd (sujeito destinatário), ser de palavra.
A significação discursiva decorre, conforme preconiza o teórico, da articulação entre o circuito interno (linguístico-
discursivo) e externo (situacional).

1209
2.2. Gerenciamento de vozes e discurso do outro

O conceito de gerenciamento de vozes está intimamente ligado à instância de produção discursiva que,
estrategicamente, coloca em cena e administra as diversas vozes que se fazem presentes em um determinado ato de
linguagem. Sendo uma atividade comunicativa, todo ato de linguagem é sempre incorporado de outros dizeres, instituindo
um “dialogismo” permanente entre o outro e o sujeito que fala, revelando, assim, a heterogeneidade que se manifesta em
todo discurso (CHARAUDEAU, 2007).
Em se tratando do discurso de outrem, ao analisar as tendências possíveis da inter-relação entre discurso citado e
discurso narrativo, Bakhtin (1995 [1929], p. 148) defende que ambos “unem-se por relações dinâmicas, complexas e
tensas.”. Além disso, é impossível a compreensão de qualquer discurso se não levarmos em consideração essas relações.
Desse modo, o teórico afirma que os discursos:

Só têm uma existência real, só se formam e vivem através dessa inter-relação, e não de maneira
isolada. O discurso citado e o contexto de transmissão são somente os termos de uma inter-relação
dinâmica. Essa dinâmica, por sua vez, reflete a dinâmica da inter-relação social dos indivíduos na
comunicação ideológica verbal. (BAKHTIN, 1995 [1929], p.149).

Para o autor, essa tendência de inter-relação entre o discurso narrativo e o discurso citado visa à conservação da
integridade e autenticidade do discurso citado. Há um esforço em delimitar o discurso citado com fronteiras nítidas e
estáveis, protegendo-o de simplificações ou de infiltrações através de entoações do autor. Essa orientação é denominada
por Bakhtin de “estilo linear” de citação de discurso de outrem (BAKHTIN, 1995 [1929]).
Outra orientação defendida por este autor apresenta processos de natureza exatamente oposta. O contexto
narrativo esforça-se por desfazer a estrutura do discurso citado e por absorvê-lo, apagando suas fronteiras. Esse estilo de
transmissão do discurso do outro, que Bakhtin denomina de “estilo pictório”, tem, portanto, a tendência de omitir as marcas
do outro. No interior dessa orientação, há ainda duas variantes: i) o narrador pode deliberadamente apagar as fronteiras do
discurso citado, a fim de colori-lo com suas entoações, seu humor, enfim, sua criatividade; ii) o domínio do discurso é
deslocado para o discurso citado, tornando-o mais forte e mais ativo do que o próprio discurso narrativo que o engloba
(BAKHTIN, 1995 [1929]).
Considerando as reflexões acerca dos modos de materialização do discurso de outrem defendidos por Bakhtin
(1995 [1929]), evidenciamos, aqui, o conceito de “heterogeneidade” da lingüista francesa Authier-Revuz (1990). Para propor
as formas de heterogeneidade do sujeito e do seu discurso, a autora se apóia, de um lado, na concepção bakhtiniana de
dialogismo e, de outro, na abordagem de sujeito e de sua relação com a linguagem aos moldes da psicanálise, numa
releitura lacaniana de Freud. Nesse contexto, Authier-Revuz (1990) fundamenta suas reflexões sobre o que designa de
“heterogeneidade constitutiva” e “heterogeneidade mostrada”. Embora não esteja nitidamente delimitada nem seja passível
de descrição linguística, a heterogeneidade constitutiva consiste, segundo a autora, “[...] na inevitável presença do outro no
discurso” (p. 36)”. A heterogeneidade mostrada, ao contrário, pode ser materialmente identificada.
A heterogeneidade mostrada se manifesta através das formas de modalização autonímica, nas quais estaria
inserido o discurso relatado, tanto na forma indireta, quando o sujeito usa suas próprias palavras, i.e., parafraseia o outro,
atuando, assim, como um tradutor, quanto na forma direta, quando o sujeito se torna um porta-voz das palavras do outro.
No entanto, no que diz respeito às principais formas de discurso relatado (direto e indireto), Maingueneau (2001)
ressalta que o primeiro é uma espécie de teatralização de uma enunciação anterior. Essa forma de retratar a voz do outro

1210
não se contenta em eximir o enunciador de qualquer responsabilidade, mas ainda simula restituir as falas citadas e se
caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante e a do discurso citado.
Como a situação de enunciação é reconstruída pelo sujeito que a relata, é essa descrição necessariamente subjetiva que
condiciona a interpretação do discurso citado. Assim, para Maingueneau (2008, p. 141), “O DD não pode, então, ser
objetivo: por mais que seja fiel, o discurso direto é sempre apenas um fragmento de texto submetido ao enunciador do
discurso citante”.
No que se refere ao discurso indireto, o autor enfatiza que essa forma de discurso relatado não mantém estável,
em sua globalidade, o conteúdo do discurso citado, pois é a interpretação de um discurso anterior, e não a sua reprodução.
Por reconstruir, não uma sequência de palavras, mas o conteúdo proposicional do texto-fonte, o discurso indireto resulta na
imbricação das palavras do sujeito que cita com as do sujeito citado (MAINGUENEAU, 2008). Em outras palavras, é
coerente afirmar que a interpretação efetuada no discurso indireto também revela alto grau de subjetividade, haja vista que
esse sujeito, ao “traduzir” as palavras do outro, dispõe de múltiplos meios para lhes dar um enfoque pessoal.
Acreditamos que as considerações expostas sobre o discurso do outro são suficientes para mostrar que todo ato
de linguagem é, necessariamente, atravessado por diferentes vozes, sendo ilusória a crença da unicidade enunciativa de
um sujeito em uma determinada situação comunicativa. Abordaremos, na seção seguinte, o emprego de modalizações e
sua relação com a subjetividade no discurso.

2.3. Modalização e Subjetividade

Para tratar da modalização, sobretudo, da modalização no discurso de divulgação científica, partiremos de


Guimarães (2001). Na concepção desta autora, há duas classes gerais de modalidade: a modalidade da frase, necessária à
constituição da frase enquanto unidade do discurso assertivo, interrogativo, exclamativo e imperativo; e a modalidade
lógica, que expressa um julgamento do sujeito enunciador em relação à sua fala. A subjetividade é, para a teórica, o fator
que caracteriza o processo da modalização. Visto que os sujeitos inscrevem os conteúdos produzidos em perspectivas
particulares, a função da modalização é determinar o modo como aquilo que se diz é dito.
Postula Guimarães (2001, p. 66), ainda, que o discurso de divulgação científico tem um caráter argumentativo,
uma vez que seu objetivo é convencer o interlocutor da validade, da veracidade daquilo que se diz, e não apenas “enunciar
postulados indiscutíveis”. Dessa forma, embora se acredite que tal discurso tenha como característica a objetividade, ele é
marcado por uma subjetividade na medida em que é dirigido a um TUi cujas disposições o EUc visa modificar. Entendendo
a subjetividade como “a capacidade do enunciador de se propor como sujeito” (GUIMARÃES, 2001, p. 68), os
modalizadores aparecem como marcas dessa subjetividade, configurando-se como indicadores de atitude do sujeito
enunciador no que diz respeito ao seu projeto de fala (ora comprometendo-se, ora afastando-se daquilo que enuncia).
No caso deste estudo, podemos inferir que tal função argumentativa pode ficar ainda mais evidente, uma vez que
o discurso cuja análise procederemos mais adiante tem como enunciador o jornalista de uma revista eletrônica que realiza
uma divulgação científica para leigos, para não-cientistas e, portanto, acreditamos que seu objetivo seja não apenas
informar, mas também captar a atenção dos internautas e construir uma credibilidade em relação ao conteúdo transmitido.
Nesse sentido, pretendendo verificar como a subjetividade ali se instaura, recorreremos a algumas categorias de
modalização, a fim de averiguar o maior ou menor grau de engajamento do sujeito enunciador em seu dito.
Para Koch (2004), os modalizadores são classificados em: aléticos, epistêmicos, deônticos, axiológicos, atitudinais
e atenuadores.

1211
Os modalizadores aléticos dizem respeito à necessidade ou possibilidade da existência das coisas no mundo.
Coracini (1991) enfatiza as asserções como exemplo dessas modalidades.
Já os epistêmicos marcam o comprometimento, o grau de certeza do sujeito enunciador em relação ao enunciado
que apresenta. Assim, “evidentemente”, “certamente”, “obviamente”, “talvez”, certos advérbios e locuções adverbiais
revelam o nível de confiança, de envolvimento do enunciador em relação ao seu dizer.
Segundo Koch (2004, p.137), “os modalizadores de caráter deôntico indicam o grau de
imperatividade/facultatividade atribuído ao conteúdo proposicional”. Dessa forma, “é indispensável”, “é preciso”, etc.,
também são formas de se modalizar o enunciado.
Os axiológicos, por sua vez, assinalam uma avaliação dos fatos a que o enunciador se refere. Logo,
“curiosamente”, “mais uma vez”, “inexplicavelmente”, etc., prestam-se à produção de um comentário do EUe sobre o
conteúdo apresentado. Cabe destacar neste ponto outros marcadores da subjetividade: adjetivos, substantivos e advérbios
que contêm valor axiológico (ou seja, carregam em si uma carga semântica que pode ser tanto positiva como negativa,
estando ligados a valores sociais e morais), ou que adquirem esse valor em um determinado contexto. Como exemplos de
axiológicos podemos citar “bonito”, “excelente”, “pavoroso”, etc2.
Os modalizadores atitudinais, também chamados de afetivos, apontam uma atitude psicológica com a qual o EUe
se apresenta diante dos eventos anunciados. Como exemplos desses modalizadores citamos “lamentavelmente”,
“infelizmente”, “é com prazer”, etc.
Finalmente, os atenuadores visam preservar a face do sujeito enunciador (“talvez fosse melhor”, “ao que me
parece”, “parece sensato”, dentre outros). Aqui incluímos os recursos de polidez (verbos empregados no futuro do pretérito,
por exemplo).
Outras modalidades também mencionadas por Koch (2006) e Guimarães (2001) são os verbos auxiliares modais
(“poder”, “dever”); as orações modalizadoras (“suponho que”, “exige-se que”); os modos verbais (indicativo, imperativo); e os
processos de tematização, focalização e ênfase, que se relacionam ao “deslocamento de focos com finalidades valorativas”.
(GUIMARÃES, 2001, p. 73)
Convém destacar, conforme Coracini (1991, p. 120) que “as 'marcas' modais em si não determinam a priori o
ponto de vista do sujeito-enunciador nem as interpretações possíveis”. Em outras palavras, é preciso referir os
modalizadores à Situação de Comunicação em que se inserem os sujeitos e o Ato de Linguagem para compreender como a
subjetividade se instaura no discurso de divulgação científica.

3. ANÁLISE

Conforme abordado no Referencial Teórico, utilizaremos o esquema proposto por Charaudeau (2009) para
determinar os sujeitos envolvidos no Ato de Linguagem. O jornalista da reportagem veiculada na Ciência Hoje On-Line será,
assim, definido como EUc (testemunha do mundo real), que se coloca como sujeito de fala, do dizer, ou seja, como EUe. Já
o internauta que acessa o portal, responsável pelo processo de interpretação, será nosso TUi. A imagem deste, fabricada
pelo locutor como “leitor ideal” da publicação, será o TUd. O TUi (ou Receptor) é o ser que age fora do ato de enunciação e,
devido à sua posição, “foge do domínio” do EUc.
O enunciador, ao intitular a reportagem de “Nova arma contra um velho inimigo”, vale-se de um modo de dizer
pouco característico de um discurso relacionado à ciência. Contudo, cabe ressaltar que o portal Ciência Hoje On-Line é um

2Nota tomada na disciplina Teorias sobre o Discurso, ministrada pela professora Ida Lúcia Machado no primeiro semestre de 2010 no
PosLin da FALE/UFMG.

1212
site de divulgação científica direcionado a leigos, a não-cientistas; assim, o EUe provavelmente emprega uma modalização
em seu dizer como uma estratégia de captação do internauta, numa função argumentativa. Pode-se observar a
subjetividade sendo instaurada pelo uso dos marcadores axiológicos “nova” / “velho”, “arma” / “inimigo”, que carregam em si
uma carga semântica, de acordo com os valores sociais brasileiros, positiva/negativa. Em outros termos, se há uma nova
arma, postula-se que seja mais eficiente que a(s) “anterior(es)” na tentativa de combate ao “inimigo” (pois, como ele é
“antigo”, supõe-se que ainda não foi encontrada pela Ciência uma forma de destruí-lo). Além disso, o EUe vale-se de uma
atenuação ao utilizar “nova”. Caso empregasse “A arma contra um velho inimigo”, poderíamos inferir ter sido descoberta a
cura para tal tipo de câncer. Assim sendo, de alguma forma, ele, também, preserva sua face.
O conteúdo da matéria é iniciado com uma tematização: “Descoberto marcador que facilitará diagnóstico do
câncer de mama”. Verificamos nesse ponto um deslocamento, com uma finalidade valorativa. Podemos depreender que o
objetivo do EUe tenha sido dar um foco na (nova) descoberta científica. Dito de outra forma, mais que tratar de um
marcador ou do diagnóstico do câncer de mama, o sujeito enunciador dá uma primazia ao progresso científico; ou seja, não
o objeto, mas a descoberta em si é que visa “atrair” a atenção do TUi. Desse modo, podemos entender a subjetividade aí
sendo instaurada na medida em que o jornalista inscreve seu enunciado em uma perspectiva particular, até mesmo pela
escolha de um modo de dizer (e não de outro).
Ao longo da matéria, evidenciamos o emprego de outros marcadores axiológicos. Os substantivos “fatalidade”,
“aliado”, “dificuldade” e “confusão”, por exemplo, assim como os adjetivos “importante”, “mal definida” e “traiçoeiro” apontam
um posicionamento do sujeito enunciador no que diz respeito ao seu projeto de fala. Podemos perceber que todos esses
termos elencados são apreciativos, isto é, trazem em si um juízo de valor; assim, reiteramos nosso posicionamento de que
a objetividade e a imparcialidade na divulgação do conhecimento científico são ilusórias, conforme, inclusive, preconiza
Guimarães (2001), uma vez que há a interferência da subjetividade do jornalista na materialidade linguística desse discurso.
É possível deduzir, ainda, que o enunciador se vale desses itens lexicais para tornar o discurso científico mais próximo,
mais fácil de ser compreendido pelo TUi, visto ser este um não-especialista em ciência.
Destacamos também o emprego dos auxiliares modais na publicação. Tais verbos podem indicar uma atitude de
atenuação do enunciador em relação a algumas de suas asserções. Nesse caso, ao modalizar, o EUe busca “abrandar” seu
comprometimento, visto que não há uma “certeza” de que em 100% das vezes poderia avalizar suas afirmações, mesmo
porque sua função aqui é a de “divulgador” de algo descoberto por outro, por um pesquisador. Logo, essa estratégia,
inclusive, pode lhe salvaguardar uma credibilidade. Dessa forma, enfatizamos: “O lobular [...] pode se apresentar como uma
lesão mal definida”, “a metástase pode ocorrer no trato gastrointestinal”, “algumas substâncias [...] podem alterar o
funcionamento”, “o consumo [...] pode provocar” [grifo nosso].
No que diz respeito ao gerenciamento de vozes na reportagem de divulgação científica em análise, é preciso
esclarecer que o EUc, na encenação discursiva, delega ao EUe a responsabilidade e o gerenciamento das diferentes vozes
colocadas em ação no plano textual, as quais podem, inclusive, ser combinadas de diferentes formas, conforme a finalidade
discursiva visada pelo EUe. Nesse contexto, pensar em termos de “heterogeneidades discursivas” nos parece pertinente na
medida em que buscamos descrever um campo discursivo que, a todo momento, faz remissões, explícitas ou não, a um
outro discurso. No caso da DC, há trechos em que a “inevitável” presença do outro é marcada de forma bastante explícita.
No entanto, há que se considerar a existência de estruturas em que a marcação da fonte enunciativa não se faz presente.
Vejamos, então, alguns modos utilizados pelo EUe para distribuir e gerenciar as fontes enunciativas na reportagem de DC
selecionada para análise:

1213
Discurso Direto (DD): Esta forma de discurso relatado se caracteriza por dissociar claramente as duas
enunciações, o discurso citado e o discurso citante. Por simular a restituição das falas citadas, confere um “suposto” efeito
de fidelidade ao que foi dito. Os fragmentos a seguir, em negrito, exemplificam essa constatação.

01) Segundo a bioquímica da UFPR Giseli Klassen, coordenadora do trabalho, esse gene produz uma proteína
de mesmo nome, que é responsável, juntamente com outras substâncias, por manter as células unidas. “Da
mesma forma que a âncora impede o navio de navegar, essa proteína ‘segura’ as células no lugar de
origem”, explica.

02) Segundo Klassen, descobriu-se também que, no caso do câncer de mama lobular, a metástase pode ocorrer
no trato gastrointestinal, quando o mais frequente é que afete ossos, pulmões e fígado. "Muitas vezes essa
metástase pode até ser confundida com o diagnóstico de um novo câncer, já que é pouco conhecido o
desenvolvimento de metástases do câncer de mama nos intestinos", destaca.

03) Agora os pesquisadores da UFPR buscam meios de simplificar as técnicas e baratear os custos para
identificar a ausência da proteína produzida pelo adam33. “O objetivo é facilitar o processo para que ele
possa ser feito em laboratórios de análises clínicas – auxiliando o médico a formular um diagnóstico
seguro – e não apenas em laboratórios de pesquisa”, explica Klassen.

Nesses exemplos, o efeito que se pretende por parte do EUe, ao relatar um enunciado de origem na forma de DD,
é mostrar que “quem o diz é um cientista”, o que, em princípio, conferiria maior “confiabilidade” àquilo que é relatado na
reportagem por parte do EUe. Deve-se ressaltar que esse modo direto de relatar o discurso do outro não é uma estratégia
exclusiva da DC, haja vista que o discurso de informação midiático também o faz. No entanto, é possível apontar que, na
divulgação científica, enunciados relatados em forma de discurso direto (DD) assumem um papel de destaque, sendo
usados com freqüência pelo EUe, a fim de ocultar a subjetividade, mantendo, assim, o estereótipo de objetividade do
discurso da ciência.

Discurso indireto (DI): trata-se de uma forma de discurso relatado que reproduz não as palavras tais como
proferidas pelo enunciador do discurso citado, mas o conteúdo deste dizer. Isto é, tem-se uma única situação de
enunciação que tenta dar conta do conteúdo semântico da voz do outro. Vejamos os exemplos:

04) Os pesquisadores constataram que, nos casos de câncer de mama do tipo lobular, o gene adam33 fica
inativo. Segundo a bioquímica da UFPR Giseli Klassen, coordenadora do trabalho, esse gene produz uma
proteína de mesmo nome, que é responsável, juntamente com outras substâncias, por manter as células unidas.

05) Ela alerta, contudo, para o fato de que ainda é muito cedo para o marcador fazer parte do conjunto de
ferramentas postas à disposição dos médicos. “Embora o estudo seja um passo importante, demora-se em
média dez anos para um resultado de pesquisa ser empregado na prática. Ainda há muito para se fazer”,
ressalta.

Os fragmentos acima, apresentados sob a forma de discurso indireto, são introduzidos por verbos que atuam
como dicendi, atribuindo ao enunciador do discurso citado a responsabilidade pelo dizer que é produzido. No exemplo 04, a
constatação de que o gene Adam 33 fica inativo, nos casos de câncer de mama, embora seja proferida pelo EUe, é de
responsabilidade enunciativa dos pesquisadores do Departamento de Patologia Básica da Universidade Federal do Paraná.
Em 05, o EUe retoma, anaforicamente, por meio do pronome “ela”, a pesquisadora Giseli Klassem, coordenadora do
estudo, a quem é atribuída a responsabilidade enunciativa do dizer que é reproduzido. Nesses exemplos, fica também
evidente a “encenação discursiva” colocada em ação pelo EUe, numa tentativa de afastamento do dito. Acontece que, por

1214
meio dos próprios verbos selecionados para introduzir o discurso indireto “constataram” e “alerta” é possível perceber um
direcionamento em relação ao discurso citado, revelando, dessa maneira, a subjetividade do EUe.

Modalização em discurso segundo (MDS): este tipo de estrutura de discurso relatado é um “modo mais simples
e mais discreto” (Maingueneau, 2008, p. 139) de o EUe indicar que não é a fonte enunciativa de um enunciado. Desta
forma, o EUe remete-se a outro enunciador - o do discurso citado - e lhe atribui a responsabilidade pelo o que é dito. Essa
forma foi evidenciada na reportagem a partir dos seguintes trechos:

06) Segundo a bioquímica da UFPR Giseli Klassen, coordenadora do trabalho, esse gene produz uma
proteína de mesmo nome, que é responsável, juntamente com outras substâncias, por manter as células unidas.

07) A próxima etapa da pesquisa envolverá também o estudo de mecanismos moleculares epigenéticos (que
abrangem modificações químicas no próprio DNA ou nas proteínas a ele associadas). Segundo Klassen,
algumas substâncias, se ingeridas ou inaladas, podem alterar o funcionamento do organismo e resultar no
desenvolvimento de doenças, como câncer, artrite e depressão, por exemplo.

08) “A causa da inativação do adam33 pode estar aí”, sugere a pesquisadora. Segundo ela, o consumo de
alguns produtos industrializados modernos pode provocar uma espécie de ‘confusão’ na fisiologia do organismo.
Como é o caso, por exemplo, de refrigerantes.

Conforme os exemplos acima, observa-se que essa forma especial de discurso relatado revela que o EUe se
apóia em um outro discurso, por meio do modalizador “Segundo x”. De acordo com Mainguenau (2008), o termo
“modalização em discurso segundo” é emprestado de Authier-Revuz. Para esta autora (1998), a MDS é uma afirmação
modalizada que remete a um outro discurso, ou seja, caracteriza-se ela mesma como “segunda” e sempre dependente
desse outro discurso.

Ausência de Fonte Enunciativa (AFE): Por fim, examinaremos dois trechos sem indicação alguma da fonte
enunciativa. O exemplo 09 discorre sobre a dificuldade enfrentada pela comunidade médica para distinguir precocemente
entre dois tipos de câncer: o ductal e o lobular. O fragmento destacado em 10, por sua vez, menciona a proibição de um tipo
de adoçante em produtos industrializados. Vejamos que não há, na superfície textual, uma marcação da fonte à qual possa
ser atribuída a responsabilidade enunciativa dos fragmentos abaixo:

09) A comunidade médica tem dificuldade para distinguir precocemente entre os dois tipos de câncer de mama:
o ductal (75% dos casos) e o lobular (25%). O lobular, que é pouco estudado, pode se apresentar como uma
lesão mal definida, o que dificulta sua detecção e diagnóstico, inclusive pela mamografia.

10) O tipo de adoçante utilizado nessas bebidas é muitas vezes o ciclamato de sódio, proibido nos Estados
Unidos desde 1969 pelo Food and Drug Administration, órgão que controla o uso de drogas e alimentos naquele
país. Essa proibição decorreu do fato de alguns estudos terem mostrado uma associação entre o ciclamato e o
aparecimento de tumores na bexiga. Apesar desses estudos, muitos países ainda permitem a sua utilização,
entre eles o Brasil.

Esses exemplos chamam a atenção pela ausência de remissão a uma fonte enunciativa. Trata-se, talvez, de
discurso direto livre, isto é, “um discurso relatado que tem as propriedades linguísticas do discurso direto, mas “sem
nenhuma sinalização”, conforme ressalta Maingueneau (2008, p. 148). Assim sendo, é possível dizer que a estrutura

1215
enunciativa da reportagem, como um todo, indica que esses fragmentos tenham, ainda que “implicitamente”, uma fonte
enunciativa, que estaria associada ao discurso que a DC se ocupa de relatar, ou seja, o discurso científico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme pudemos averiguar, o discurso de divulgação científica, apesar de supostamente se caracterizar por
uma objetividade (do discurso da ciência) e por uma imparcialidade (do discurso midiático), apresenta marcas em sua
materialidade linguística que nos permitem visualizar a instauração da subjetividade por parte do EUe. Por meio da
descrição e da análise do gerenciamento de vozes e do emprego de modalizações, foi possível observar também que esse
tipo de discurso extrapola seu caráter meramente informativo, uma vez que seu objetivo é atrair o internauta para ler a
reportagem e convencê-lo da validade, isto é, da veracidade daquilo que se diz. Conforme Guimarães (2001), esse discurso
é marcado por uma subjetividade na medida em que é dirigido a um TUi cujas disposições o EUc visa a modificar.
As outras vozes trazidas no texto objetivam, entre outras possibilidades, legitimar e conferir credibilidade ao que é
divulgado pelo EUe, revelando assim a ancoragem que lhe confere a autoridade do discurso da ciência. Vale destacar que a
elevada incidência do discurso relatado na reportagem analisada, por meio dos diferentes modos utilizados pelo EUe para
distribuir e gerenciar as fontes enunciativas, poderia levar à percepção do apagamento do sujeito no discurso em questão.
O fato de o jornalista (EUe) “deixar falar” outras vozes, como se poderia pensar, não o priva de voz, transformando-o em um
simples articulador do texto ou apagando o seu papel de sujeito do discurso. A esse respeito, vale destacar o que afirma
Possenti (1996, p. 42), pois, “se se aceita a ideia de que o discurso é basicamente interdiscurso, então deve-se aceitar que
falar é em grande parte deixar falar”. Vale lembrar, no entanto, que, apesar de a presença do outro (marcada ou não
marcada), ser inevitável na construção de qualquer discurso, ainda assim esse fato não anula o papel do sujeito jornalista
responsável pela divulgação. Como a língua dispõe de múltiplos recursos expressivos e de variadas formas de dizer, as
escolhas realizadas pelo EUe já sinalizam, de alguma forma, sua presença no plano textual.
Dessa maneira, o gerenciamento de vozes e o emprego de modalizações, na reportagem analisada, nos permitiu
verificar que a objetividade e a imparcialidade representam, no discurso de divulgação científica, apenas aspectos bastante
superficiais, sendo ilusória a crença na não interferência da subjetividade na materialidade discursiva.

REFERÊNCIAS

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). In.: Caderno de Estudos Lingüísticos, n.º 19. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1990. p. 25-42.

____________________. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Tradução de Cláudia R. Castellanos Pfeiffer et
al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1998.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 1995.
(Original de 1929).

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2009. 256p.

___________________. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007. 285p.

CORACINI, Maria José. Um Fazer Persuasivo: O Discurso Subjetivo da Ciência. São Paulo: Pontes/Educ, 1991, 216p.

1216
GUIMARÃES, Elisa. Expressão modalizadora no discurso de divulgação científica. In: Educação e Linguagem, ano 4, nº 5,
2001, p.65-77.

KOCH, Ingedore Villaça. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2004, p.29-65.

____________________. Introdução à Lingüística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 190p.

LEIBRUDER, A. P. O discurso de divulgação científica. In: CHIAPPINI, L. (Org.). Gêneros do discurso na escola: mito,
conto, cordel, discurso político, divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2003.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3 ed. Trad. Freda Indursky. São Paulo: Pontes,
1997.

_________________________. Análise de Textos de Comunicação. 5 ed. Trad. Cecília P. de Souza e Silva e Décio Rocha.
São Paulo: Cortez, 2008.

POSSENTI, Sírio. O sujeito fora do arquivo. In: MAGALHÃES, Izabel. (Org.). As múltiplas faces da linguagem. Brasília:
Editora da UnB, 1996. p. 37-47.

Ana Carolina Gonçalves Reis


É professora Auxiliar II da Universidade Federal de Viçosa. Possui graduação em Secretariado Executivo Trilíngue pela
Universidade Federal de Viçosa (2004). Atualmente cursa Mestrado em Estudos Linguísticos (linha de pesquisa Análise do
Discurso) na Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: carolinareis@ufv.br

Jairo Venício Carvalhais Oliveira


É bolsista do CNPq e mestrando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde desenvolve
pesquisa na área de Linguística do Texto e do Discurso. Tem experiência na área de Letras, com ênfase nos seguintes
temas: Gêneros Discursivos, Produção e Revisão de Textos, Discurso de Divulgação Científica. E-mail:
jairo.carvalhais@gmail.com

1217
A relação de causalidade expressa pela conjunção quando

RELVAS, Vanessa Pernas Ferreira


(UFRJ/CAPES)

1. Introdução
Entende-se causa como “aquilo que determina um acontecimento; razão, motivo”. Dessa forma, toda causa leva
a um acontecimento, ou seja, a uma consequência.
A relação causa/consequência é expressa na língua portuguesa por relações adverbiais, que podem ser
realizadas através de adjuntos ou de orações. Tal relação é chamada de relação de causalidade.
Na gramática tradicional, a relação de causalidade é expressa no âmbito oracional pelas orações subordinadas
adverbiais causais. Na maioria dos autores tradicionais, pode-se encontrar uma definição básica deste tipo e oração:
aquela que exprime causa, motivo, razão de algo expresso na oração principal. No entanto, autores como Koch (1992,
apud Oliveira e Monnerat, 2005) afirmam que um enunciado de causa pode ser parafraseado por outras construções, que,
também, evidenciam a relação de causa e consequência, mas através de outras marcas linguísticas.
Ressalta-se, ainda, que Neves (2000) afirma que orações subordinadas adverbiais temporais podem apresentar
“relações do tipo lógico-semântico associadas à relação temporal que se estabelece entre orações”. Dentre essas relações
ter-se-ia: a relação temporal com sentido causal, com sentido condicional e com sentido concessivo. Para a autora, essas
relações são licenciadas por conectores neutros, como o quando.
Assim, pretende-se, no presente trabalho, investigar as possíveis orações subordinadas adverbiais iniciadas por
quando que possam apresentar o valor causal. Para tal, parte-se da hipótese de que a conjunção está passando por um
processo de “esvaziamento semântico” (cf. Góis, 1955) que possibilita a aquisição de novos valores semânticos.
Para comprovação da hipótese, utilizou-se, como corpus, a Revista Época, uma revista semanal de assuntos
variados, conforme será apresentado mais profundamente adiante.

2. A relação de causalidade
2.1 Nas Gramáticas Tradicionais

Em relação ao conceito das orações adverbiais causais, pode-se encontrar uma definição básica na maioria dos
autores, ou seja, de que as orações subordinadas adverbiais causais exprimem causa, motivo, razão de algo expresso na
oração principal.
Bechara (2001), Cunha e Cintra (2001) e Kury (1968) não fazem observações em critérios semânticos. Os autores
limitam-se a apresentar listagens de conjunções e definições genéricas.
Luft (1983), por sua vez, afirma que as subordinadas adverbiais se subclassificam com base na significação, o que
parece indicar uma análise semântica. No entanto, no decorrer da definição fica claro que, para o autor, as orações
classificadas como causais são as que indicam a “causa” do efeito expresso na oração principal. Tal informação é
redundante, e o autor se limita a fornecê-la juntamente com uma pequena lista de conjunções e poucos exemplos.
Rocha Lima (2001) considera que a oração causal é aquela que “indica o fato determinante da realização, ou não
realização, do que se declara na principal” e apresenta uma lista das conjunções utilizadas nas rações desenvolvidas, bem

1218
como exemplos para este caso e para o caso das reduzidas. Apresenta, ainda, em nota, os critérios para diferenciar
adverbiais causais e coordenadas explicativas.
É notório que nenhum dos autores da gramática tradicional faz alguma menção a relação causa/consequência,
muito menos informa que tal relação é semântica e pode ser manifestada não somente na oração subordinada adverbial
causal.

2.2 Nos autores não-tradicionais


Azeredo (2008) considera que, do ponto de vista lógico, dois fatos se articulariam através de uma relação de
causalidade se a realização de um deles dependesse ou decorresse da realização do outro. Assim, causalidade seria “uma
macrorrelação que se especifica em quatro valores: causa, condição, consequência e finalidade”. A associação de causa
entre dois dados do conhecimento seria, portanto, um ato de percepção que poderia ser codificado de formas variadas na
linguagem.
Azeredo demonstra, assim, que a relação de causa não é inerente apenas a uma oração adverbial causal, mas a
qualquer oração que expresse a relação de causa e efeito.
Neves (2000), conforme já foi afirmado anteriormente, elenca, dentre as temporais, aquelas orações iniciadas por
quando que podem expressar relações lógico-semânticas de causa, condição e concessão. Dentre as que expressam o
sentido causal, a autora considera que são especialmente as construções que abrigam o traço télico (aspecto perfectivo) e
que possuem as seguintes características:
 Apresentam pretérito perfeito na oração principal e na subordinada;
 Cronologicamente, o estado de coisas da oração subordinada antecede o da principal e pode ser entendido como
uma causa dele, dentro de uma relação de causa-efeito.
Dentre as orações estritamente causais, Neves (2000) explicita que as conjunções causais introduzem diferentes
relações semânticas na oração: causa – consequência e causa – efeito. Este último poderia indicar causa real, causa
eficiente ou causa efetiva, sendo que esta implicaria subseqüência temporal do efeito em relação à causa.
Observa-se, assim, que a relação de tempo e causa é mais estreita do que parece, principalmente se se considerar o
fato de que, conforme Azeredo (2008) afirmou, a relação de causa está presente em qualquer oração que expresse causa e
efeito, independentemente de ser uma subordinada adverbial causal.
Oliveira e Monnerat (2005) afirmam que a expressão da causa e da conseqüência pode ser uma questão de foco no
que se deseja priorizar. Os autores defendem, ainda, que as relações de temporalidade e causalidade devem ser
trabalhadas em sala de aula. A primeira estaria relacionada ao antes e ao depois e a última também, pois, segundo eles, a
conseqüência decorre da causa.
De acordo com Oliveira (2001), um conector é considerado causal quando liga orações ou conjuntos de orações que
exprimem fatos (e não opiniões, ordens, perguntas etc.), sendo que o segundo desses fatos é a causa do primeiro. Vale
ressaltar, ainda, que, para o autor, a causalidade implica cronologia, pois o fato – causa tem de ocorrer antes do fato –
consequência. Isso pressupõe que os fatos sucedem no tempo. Sendo assim, é possível concluir que tempo e causa
parecem andar próximos.

3. Apresentação do corpus e metodologia


Para a confirmação da hipótese de que a conjunção quando está passando por um processo de “esvaziamento
semântico” e, por isso, pode estar encabeçando orações subordinadas adverbiais causais, usou-se como corpus a Revista
Época, da Editora Globo.

1219
Foram coletados dados de quando em todas as seções da revista, desde a edição 55, do dia 12 de outubro de
2009 até a edição 600, do dia 16 de novembro de 2009, totalizando 6 revistas. A estrutura da revista é composta por uma
média de 110 páginas, com seções fixas, como: caixa postal, primeiro plano, Brasil, negócios e carreira, sociedade, mundo,
saúde e bem-estar, vida útil e mente aberta; e dentro dessas seções, assuntos que estiveram em voga durante a semana.
Há, ainda, algumas seções de entrevistas e alguns editoriais.
Dentre os dados de quando encontrados, oram selecionados apenas aqueles que apresentassem algum matiz
causal, mesmo que esse matiz fosse fraco. Foram encontrados, no total, 62 casos de orações subordinadas adverbiais
iniciadas por quando que pareciam apresentar um valor causal.
Tais dados foram analisados conforme Neves (2000) e foram separados em casos que apresentam causa –
consequência e os que apresentam causa – efeito. Acredita-se que o segundo caso seria mais produtivo, uma vez que, de
acordo com Neves (2000), de maneira estritamente entendida, a relação causal implica subsequência temporal do efeito em
relação a causa.
A autora ressalta, ainda, que uma relação causal entre conteúdos, ou seja, a causa que seja efetiva, não envolve
necessariamente tempo.
Dessa forma, buscou-se observar quais as construções com quando envolveriam não somente a relação de
tempo como também a relação de causa, especialmente uma relação de causa – efeito que envolvesse causa real.

4. Análise dos resultados:


Conforme já afirmado, foram analisadas todas as seções de 6 edições da Revista Época, nas quais foram
encontrados 62 casos de orações subordinadas adverbiais iniciadas pela conjunção subordinativa quando, que parecem
exprimir causa. Os casos estavam distribuídos nas seções, conforme o gráfico a seguir:

Gráfico1: Orações iniciadas por quando, distribuídas nas seções da Revista Época

É possível observar na análise do gráfico 1 que a maior parte dos casos (23%) encontra-se na seção denominada
sociedade. Tal fato pode ser explicado, pois a referida seção é a que apresenta m resumo das notícias da semana, assim,
há predominância da narração. Confirma-se, assim, a teoria de Kleiman (apud Oliveira e Monnerat, 2005) que afirma que as
narrativas apresentam predominância da temporalidade e da causalidade, pois muitas ações são contingentes de ações
prévias.

1220
A segunda seção que apresenta o maior número de casos – Mente aberta (15%) – também apresenta
predominância narrativa, pois é uma seção reservada à programação cultural da semana. As outras seções que
apresentam grande número de orações iniciadas por quando são Brasil, Ciência e Tecnologia e Primeiro plano, que
também apresentam uma predominância de narração.
Em contrapartida, as seções que apresentam menos orações são os editoriais (Nossa Opinião e Da redação),
além das cartas dos leitores (Caixa Postal) e dos Anúncios. Tal situação provavelmente deve-se ao fato de tais seções
apresentarem poucas características do gênero narrativo, confirmando a teoria exposta por Oliveira e Monnerat (2005).
As orações também foram observadas em relação à posição que ocupam na sentença, ou seja, se estariam
antepostas, pospostas ou intercaladas à oração principal. O gráfico a seguir ilustra tais resultados:

Gráfico 2: Posição da oração iniciada por quando

É possível observar, no gráfico 2, que a posição privilegiada para a oração subordinada iniciada por quando é a
anteposta, com 43 ocorrências(69%), seguida da posição posposta, com 17 ocorrências (27%) e as intercaladas com
apenas 2 ocorrências (4%). Tal fato confirma a análise de Ferreira (2008) que, na análise de dados dos corpora VARPORT,
D&G – RJ e O Globo encontrou a posição anteposta como privilegiada em todos os casos de oração subordinada iniciada
por quando com valor de causa.
Seguindo, ainda, a perspectiva de Neves (2000), o tempo verbal da oração principal e da subordinada também foi
levado em consideração. O gráfico 3, a seguir, apresenta os resultados dessa análise:

1221
Gráfico 3: Tempos dos verbos das orações principal e subordinada

Conforme a análise do gráfico 3, pode-se concluir – diferentemente do que apresentou Neves (2000) – que a
maioria dos casos (50%) está no presente. É importante ressaltar, porém que há, também, um grande número de orações
(45%) no pretérito perfeito. Vale ressaltar que a maioria dos casos de pretérito perfeito era em narrações, conforme já
apresentara Oliveira e Monnerat (2005).
Sendo assim, foram observados e analisados os 62 casos de orações subordinadas adverbiais iniciadas por
quando que sugerem um valor semântico causal. Serão apresentados, assim, alguns exemplos do corpus:

(1) O apoio ao MST caiu quando foram divulgadas as imagens feitas pela polícia, de um sem-terra usando um
trator para destruir mil pés de laranja na Fazenda Santo Henrique, do grupo Cutrale, um dos maiores
produtores de laranja do mundo, em Borebi, São Paulo.
(“Nem eles têm mais paciência” – Ver. Época – nº 595 – 12/10/2010)

Analisando o exemplo, levando-se em conta a causa real e a consequência (efeito), ter-se-ia:

Causa Real Consequência / Efeito


Foram divulgadas imagens, feitas O apoio ao MST caiu.
pela polícia, de um sem-terra usando
um trator para destruir 7 mil pés de
laranja na Fazenda Santo Henrique...

Como se pode observar no exemplo (1), a causa da queda do apoio ao MST foi a divulgação de imagens de um
sem-terra destruindo uma plantação de laranjas, assim, a conjunção poderia ser modificada por uma conjunção tipicamente
causal, sem prejuízo de sentido:

1222
(1’) O apoio ao MST caiu porque foram divulgadas imagens, feitas pela polícia, de um sem-terra usando um trator
para destruir 7 mil pés de laranja na Fazenda Santo Henrique...

O mesmo ocorre com o exemplo (2) a seguir: a causa da fuga das pessoas é o fato de o banco falir.

(2) Quando um banco quebra, todos saem correndo.


(Entrevista – Wolfgang Sperling – Rev. Época – nº595 – 12/10/2010)

Causa Real Consequência / Efeito


Um banco quebra. Todos saem correndo.

Modificando a conjunção quando para a conjunção porque, tipicamente causal:


(2’) Porque um banco quebra, todos saem correndo.

Nesse caso, a relação de causa é menos perceptível do que no caso (1). Aqui, a leitura condicional também é
permitida:

(2”) Se um banco quebra, todos saem correndo.

O exemplo (3), a seguir, foi retirado da fala da política Marina Silva, que afirmou que a causa de ela ter resolvido
cuidar de sua saúde e seguir para um convento foi o fato de ter adoecido:

(3) Quando fiquei doente, resolvi cuidar da minha saúde e ser freira.
(“Estudo traz uma releitura da vida – Rev. Época – nº 596 – 19/10/2010)

Fazendo a modificação por uma conjunção causal prototípica, ter-se-ia:

(3’) Porque fiquei doente, resolvi cuidar da minha saúde e ser freira.
(3”) Resolvi cuidar da minha saúde e ser freira, porque fiquei doente.

No exemplo (3), os verbos estão no pretérito perfeito do indicativo, conforme indicou Neves (2000), no entanto, a
maioria dos casos encontrados estava no presente do indicativo, conforme indicou o gráfico 3. O exemplo (4), a seguir,
representa um desses casos:

(4) As pessoas reclamam quando ele toma banho na pia do banheiro.


(“ O alemão do aeroporto” – Rev. Época – nº 598 – 2/11/2010)

1223
Causa Real Consequência/ Efeito

Ele toma banho na pia do banheiro. As pessoas reclamam.

A causa da reclamação das pessoas é o fato de o homem (um alemão com problemas
mentas abandonado no aeroporto de Guarulhos) tomar banho na pia do banheiro do aeroporto. Assim sendo, como nos
casos anteriores, a conjunção quando pode ser substituída por uma conjunção prototipicamente causal, sem que haja
prejuízo de sentido:

(4’) As pessoas reclamam porque ele toma banho na pia do banheiro.

Os casos apresentados ilustram a maioria das ocorrências encontradas no corpus da Revista Época. Como se
pode observar, embora a gramática tradicional considere a conjunção quando como aquela que encabeça estruturas
temporais, foi possível observar uma série de casos em que a leitura de causa – consequência é muito mais pertinente.
Tal fato corrobora a teoria de Decat (2001). Segundo a autora, o valor semântico da conjunção, ou a relação
adverbial estabelecida por esta, não é dada pelo conectivo, mas sim pela relação que se estabelece entre as orações.
Dessa forma, se a relação estabelecida é de causa – consequência, o conector pode ser considerado como causal.

5.Considerações finais
Pelas análises feitas no presente estudo, verificou-se que, embora as gramáticas tradicionais considerem a
conjunção subordinativa quando apenas como uma conjunção temporal, esta pode encabeçar uma oração subordinada
adverbial que apresente valor semântico de causa.
Tal fato confirma a teoria de Oliveira e Monnerat (2005) que afirmam que a expressão da causa e da
consequência pode ser uma questão de foco no que se deseja priorizar.
Foi possível verificar, ainda, que fatores sintáticos como tempo e modo verbal, ou posição da oração, tem valor
dentro da análise da conjunção subordinativa quando, mas não influenciam diretamente no seu valor semântico,
comprovando a teoria de Góis (1955) e Decat (2001) de que p quando está passando por um processo de esvaziamento
semântico e, ainda, que o valor semântico da conjunção, ou a relação adverbial estabelecida por esta, não é dada elo
conectivo usado na oração, mas pela relação que se estabelece entre a oração principal e a oração subordinada.

Por fim, confirma-se, também a teoria de Neves (2000) que afirma que as orações subordinadas adverbiais
temporais podem apresentar “relações do tipo lógico-semântico associadas à relação temporal eu se estabelece entre
orações”, estando dentre essas relações a relação causal.
Espera-se, portanto, que o presente trabalho tenha alcançado o objetivo proposto, confirmando a hipótese de que
a conjunção subordinativa quando está passando por um processo de esvaziamento semântico que possibilita a aquisição
de novos valores semânticos, dentre esses valores o causal, estabelecido em relações que abarquem causa real e
consequência /efeito.

1224
6. Referências
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_____________. Iniciação à sintaxe do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova gramática do Português contemporâneo. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

DECAT, M. B. do N. “ A articulação hipotática adverbial no português em uso”. In: DECAT, M. B. do N. et al. (Orgs.)
Aspectos da gramática do português: uma abordagem funcionalista. Campinas/SP: Mercado das Letras, 2001.

FERREIRA, V. P. A conjunção subordinativa ‘quando’ na perspectiva funcional-discursiva. Rio de Janeiro: Faculdade de


Letras/UFRJ, 2008. mimeo. Dissertação de mestrado em Língua Portuguesa.

GÓIS, C. Método de análise (léxica e lógica) ou sintaxe das relações. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955.

KOCH, I. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2008.

_________. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2004.

_________. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2003.

KURY, A. G. Pequena gramática para explicação da nova nomenclatura gramatical. 11 ed. Rio de Janeiro: Agir, 1968.

LUFT, C.P. Moderna gramática brasileira. 5 ed. São Paulo: Globo, 1983.

NEVES, M. H.M Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.

OLIVERA, H. F. de. Língua portuguesa: visão discursiva. Descrição do português à luz da linguística do texto. Curso de
Pós-Graduação – ensino à distância. UFRJ: Faculdade de Letras, 001.

__________ e MONNERAT, R. S. M. O emprego de algumas conjunções no texto. In: PAULIUKONIS, M .A. L. e GAVAZZI,
S.(Orgs.) Da língua ao discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Lucena, 2005.

PAULIUKONIS, M.A.L. Operacionalização dos ensinamentos da linguística do texto: uma proposta para o ensino de
conectores. In: Revista Letra. Faculdade de Letras/UFRJ. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras, UFRJ, 2005.

ROCHA LIMA, C.H. Gramática normativa da língua portuguesa. 33 ed. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2001.

Vanessa Pernas Ferreira Relvas é graduada em Letras pela UFRJ. Fez Mestrado em Língua Portuguesa na mesma
instituição e, atualmente, faz Doutorado também na UFRJ. É integrante do projeto “Uso(s) de conectivos e articulação
hipotática de cláusulas” e estuda a gramaticalização do conectivo quando.

1225
João Cabral e Machado de Assis: o papel do substantivo
na estética do discurso literário

RIBEIRO, Anderson da Silva


(UNISUAM)
PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves
(UERJ)
CAMARA, Tania Maria Nunes de Lima
(UERJ / UNISUAM)

A língua portuguesa é múltipla e manifesta-se em discursos de diferentes linguagens, considerando a intenção do


enunciador e a situação interlocutiva na qual se inserem. A serviço da produção estética, em especial no texto literário,
sensibiliza quem lê, entre outros fatores, pelas escolhas por vezes inusitadas, que produzem efeitos surpreendentes. O
objetivo do trabalho é, portanto, comprovar o elo indissociável entre a língua e a literatura: o discurso literário, ao lado de
outros traços, como resultado de um trabalho com a linguagem. Na consecução desse propósito, dois escritores brasileiros
são tomados como foco: João Cabral de Melo Neto e Machado de Assis.
Na teia discursiva que ambos constroem, cada qual com seu estilo, o substantivo funciona como peça-chave na
produção de sentido. Em Cabral, a construção de uma linguagem concreta, dilacerante dá ao substantivo comum a
capacidade de ratificar e traduzir a substância e a essencialidade de uma escrita caracterizada pela apreensão “precisa” da
realidade. Em Machado, o substantivo próprio com o qual o personagem é nomeado, entre outros cuidados estéticos e
estilísticos, mostra extrema relevância, em função de conotar, metafórica ou ironicamente, marcas físicas e psicológicas,
revelando-se fator determinante dos respectivos comportamentos e relações na trama narrativa.
Em sala de aula, o professor-mediador estabelece as condições para que o aluno perceba tal uso expressivo dos
substantivos, no intuito de confirmar as hipóteses estabelecidas. As estratégias estimulam o estudo do texto, visando à
reflexão, à análise e ao apuro da estética. Até o momento, os resultados obtidos com as turmas têm-se mostrado positivos,
respondendo adequadamente aos propósitos estabelecidos. Os autores em questão constituem-se legítimos representantes
da produção do discurso artístico, uma vez que, pela manipulação eficiente dos nomes, transmutados do estágio
referencial-informativo para o artístico-poético, imortalizam o código verbal em um discurso que instiga e envolve o leitor.
No desenvolvimento do artigo, optou-se por apresentar Machado de Assis primeiramente, considerando não só o
reconhecimento conferido ao escritor pela crítica literária, mas também devido à arte da palavra, confeccionada a partir de
seu projeto estético. Na sequência, trata-se da experiência literária de João Cabral com a palavra seca e nordestina, comum
e concreta. Em síntese, cada artista, a seu modo, se apropria do mesmo recurso, o substantivo, dando a ele contornos
próprios e evidenciando, com isso, a força e o estilo peculiar a cada um na produção da arte brasileira.

1- SUBSTANTIVO: do sintagma ao discurso, do funcional ao estético

No pensamento grego, o logos significou “não apenas a palavra, a frase, o discurso, mas também a razão e a
inteligência, a ideia e o mundo profundo de um ser, o próprio sentimento divino” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2000, p.
660). Na encarnação como nome próprio, a palavra se revela sagrada para os egípcios. Recebiam dois nomes: um
verdadeiro e outro onomástico. Este, de curta extensão, era público; aquele, o verdadeiro, secreto e ciosamente ocultado.

1226
Para os egípcios da Antiguidade, o nome pessoal ultrapassava o signo de identificação, tornando-se uma dimensão do
indivíduo em que o nome era o objeto vivo. Além do que, o conhecimento do nome próprio interferiu nos ritos de conciliação
e de feitiço, por exemplo. Em outras sociedades antigas, um tabu linguístico envolvia o nome de reis, de chefes ou de
pessoas sagradas. Nas religiões teístas e budistas, o simbolismo e o emprego do nome divino era frequente. O uso mais
comum é o da invocação, “graças à qual [o homem] se identifica misteriosamente com a própria divindade” (Idem, 2000, p.
640), além de acreditar que o nome pudesse trazer a presença do espírito. Em outro contexto, há, dentro da tradição cristã,
a figura de Adão, encarregado de dar nome aos animais: “era conceder-lhe poder sobre eles, poder que continua ser uma
das características da condição edênica” (Ibidem, 2000, p. 641).
Do ponto de vista gramatical, o nome, através da figura do substantivo, cumpre o papel, determinado já por
Aristóteles no estudo das classes gramaticais, de nomear a realidade, tanto do ponto de vista funcional-referencial, quanto
artístico-estético. Com base na tradição gramatical, foi possível chegar a algumas conclusões sobre o emprego tradicional
do substantivo, dentro das quais se destacam a negligência quanto ao tratamento da referida classe na perspectiva do texto
e da construção do sentido.
A partir de tais considerações, pode-se apontar a referenciação como uma atividade discursiva em que o
enunciador, por ocasião da interação verbal, trabalha sobre o material linguístico oferecido, e realiza escolhas inteiramente
significativas, muitas vezes dentre um rol de opções, com o intuito de representar o estado de coisas, visando à realização
de sua proposta de sentido. No dizer de Koch (2005, p. 35), “as formas de referenciação, bem como os processos de
remissão textual que se realizam por meio delas, constituem escolhas do sujeito em função de um querer-dizer” (grifo
nosso). A autora ainda diz que as descrições nominais, em geral, devem ativar no interlocutor o conhecimento partilhado ou
pressuposto sobre o objeto, permitindo-lhe extrair do texto informações pertinentes acerca das opiniões, crenças e atitudes
de seu autor/produtor.
Nessa direção é que a posse de um nome próprio se confirma como privilégio de todo ser humano, já que tal
ponto se identifica com o processo descritivo, dentro do qual está a passagem pelos estágios da designação, definição e
individualização (MARQUESI, 2004, p.108-9). Cada criança, no momento em que nasce, recebe de seus pais um nome. O
antropônimo é, pois, a marca linguística pela qual o grupo social toma conhecimento do indivíduo, e esse procedimento é
geralmente assinalado por cerimônias de aquisição ou de mudança de nome, como batismo, o casamento e outros rituais
de iniciação.
Conceituado como elemento de individuação, o nome próprio designa um único objeto identificado num ato de
fala. Tal função designativa aponta-o como elemento estritamente denotativo, característica esta que lhe é peculiar. No
dizer de John Stuart Mill (apud ULLMANN, 1964, p. 154), somente os nomes comuns, além da denotação, podem conotar
certos atributos e certas formas externas, o que os coloca em franca oposição aos nomes próprios, já que estes, segundo o
referido autor, não possuem significação.
A Grécia, berço da cultura ocidental, é pródiga em exemplos que confirmam o componente significativo do
antropônimo. Entre os heróis das tragédias gregas, um deles, ao nascer, teve os pés amarrados, provindo desse fato o seu
nome: Édipo, “pés inchados”. Relacionado ainda à história do pensamento ocidental, é extremamente relevante, na
formação dos nomes bíblicos, o valor do antropônimo como traço cultural. Considere-se, por exemplo, o nome Pedro, dado
por Jesus a Simão Barjona. Não se trata, efetivamente, de uma simples mudança de nome; é mais do que isso: um novo
batismo. No encontro de Simão com Jesus, este lhe disse: “Tu es Simon, filius Jona; tu vocaberis Cephans, quod
interpretatur Petrus... tu es Petrus et super hanc petram aedificabo Ecclesiam meam...” (NASCENTES, 1952, p. 237). Em
sentido figurado, pedra remete a “duro”, “rijo”; assim sendo, o nome Pedro não ocorre por acaso.

1227
O campo da literatura é outro em que o nome próprio e o comum encontram terreno fértil para estudo. Motivado
por uma sensibilidade linguística apurada, o artista nomeia não só a realidade em que se encontra de maneira única e
expressiva, mas também identifica os personagens, peças fundamentais da narrativa, através, muitas vezes, de um batismo
intencional que faz toda a diferença em termos de produção do sentido. Assim, desde que as evidências existam, o modo
como surgem – de maneira consciente ou inconsciente – acaba por se tornar irrelevante.

2- O antropônimo em Memorial de Aires, de Machado de Assis

O nome próprio dos personagens é o primeiro estágio de uma individualização, uma forma de fazer adquirir vida
própria, de destacar-se e de diferenciar-se dos demais. Em Machado de Assis, ele é, na sua condição de signo linguístico,
importante elemento estruturador da narrativa. Ora confirmando a postura do personagem, ora ironizando-a, constitui-se
mais uma via pela qual o autor relaciona forma e conteúdo.
O romance escolhido foi Memorial de Aires, a cujo título original acrescentamos, pela natureza do estudo aqui
realizado, o subtítulo “A postura diplomática no batismo dos personagens”, observação que decorre da diferença na atitude
de Machado em relação aos romances anteriores.
Um ano depois de voltar definitivamente da Europa, o Conselheiro Aires começou a registrar, dia a dia, nomes e
fatos que fariam parte de sua rotina de vida, a partir daquela data: 9 de janeiro de 1888.
AIRES, nome de homem e também sobrenome, possivelmente provém da raiz germânica ar, que significa
"águia"; em composição, vale como "príncipe ou senhor". Traços correspondentes ao significado do seu nome encontram-
se no personagem em questão. O Conselheiro Aires é pessoa de grande talento e perspicácia; um espírito superior,
fazendo, assim, presentes ideias evocadas a partir do nome "águia", ao lado das maneiras polidas e aristocráticas do
"príncipe".
Na escola não briguei com ninguém, ouvia o mestre, ouvia os companheiros, e se alguma vez estes
eram extremados e discutiam,eu fazia da minha alma um compasso, que abria as portas aos
dois extremos. Eles acabavam esmurrando-se e amando-me. (p.1151)

Na passagem destacada, é possível perceber a postura diplomática do personagem já nos tempos de escola,
tendo-a assumido, quando adulto, como carreira.
Embora more sozinho, o Conselheiro Aires dedica muito do seu tempo à companhia de sua irmã, a mana Rita.
Hipocorístico do italiano Margherita, o nome RITA provém do latim recta, no sentido de "justa", estendendo seu significado
para "solene", "sagrada", "reta", "perfeita". A personagem Rita confirma, através de suas atitudes, o significado do nome que
recebeu.
Rita... não pôde reter algumas velhas lágrimas de saudade pelo marido que lá está no jazigo, com meu
pai e minha mãe. Ela ainda agora o ama, como no dia em que o perdeu, lá se vão tantos anos.
(p.1097)

O estado de viuvez plenamente assumido por Rita tenta estender ao personagem Fidélia, a viúva Noronha, a
quem não poderia deixar de atribuir a capacidade de eterna fidelidade ao marido, pelo fato de esta ter vivido em grande
felicidade.
- Aquela não casa.
(...) Não casa; basta saber as circunstâncias do casamento, a vida
que tiveram e a dor que ela sentiu quando enviuvou.
- Não quer dizer nada, pode casar; para casar basta estar viúva.
- Mas eu não casei.
- Você é outra coisa, você é única.
Rita sorriu, deitando-me uns olhos de censura...(p.1099)

1228
O fato de ser julgada "única", adjetivo que guarda em si a ideia de excepcionalidade, superioridade, reafirma o
significado de retidão e de solenidade contido no seu nome.
Em termos de relações sociais, o Conselheiro Aires manifesta afeto e consideração pelo casal Aguiar e Dona
Carmo.
AGUIAR é sobrenome de origem geográfica, derivado de águia, e significa "sítio habitado por águias ou outra ave
de rapina". A trajetória de vida do personagem em questão confirma o significado do seu nome. Tendo sempre morrido de
amores por filhos e sem os conseguir, dedicando-se inteiramente aos postiços Fidélia e Tristão, passou Aguiar momentos
de profunda tristeza: a ida definitiva destes para a Europa. Desse modo, Fidélia e Tristão representam, metaforicamente, a
rapinagem pelo fato de haverem roubado a alegria do casal Aguiar, ainda que involuntariamente.
O nome CARMO, abreviação de Maria do Carmo, é deduzido de Carmelo. Este, por sua vez, provém do hebraico
Karmel, que significa "campo ou jardim bem cultivado", "pomar". É ainda possível interpretar o nome Carmelo como "vinha
de Deus" (karm - El). Simbolicamente, a vinha é um signo eminentemente positivo; é árvore sagrada, divina, a segurança da
vida, a imortalidade. O vinho, por seu turno, é a bebida dos deuses, símbolo do conhecimento. Assim sendo, o nome do
personagem em questão está diretamente ligado à superioridade e à paz divinas, chegando a revelar-se bem mais no
sentimento que na expressão.
A dona da casa, afável, meiga, deliciosa com todos, parecia realmente feliz naquela data; não menos o
marido... D. Carmo possui o dom de falar e viver por todas as feições, e um poder de atrair as
pessoas, como terei visto em poucas mulheres, ou raras...De quando em quando, ela e o marido
trocavam as suas impressões com os olhos, e pode ser que também com a fala... (p.1104)

D. Carmo era a grande força de sua casa. Os traços de positividade, de segurança, presentes em seu nome,
aparecem confirmados na postura do personagem, conforme confirma a seguinte passagem: “... a alma dele era de pedras
soltas; a fortaleza da noiva foi o cimento e a cal que as uniram naqueles dias de crise ... quem lhe dava remédio ao mal
físico ou moral era ela.” (p.1107).
Nos registros do Conselheiro Aires, um personagem foi, involuntariamente, capaz de dar-lhe a consciência de que
não estava definitivamente velho: Fidélia, a jovem viúva; aquela que Rita pensava que não voltaria a casar jamais.
O nome FIDÉLIA é o componente feminino de Fidélio, formado da raiz latina fidelis, "fiel", acrescida do sufixo
nominal — IO, indicador de estado ou modo de ser. O significado do referido antropônimo feminino é, então, descrito como
"aquela que é fiel". A forma Fidélio, por sua vez, deve, provavelmente, sua divulgação à popularidade da célebre ópera do
mesmo nome, que Beethoven apresentou em Viena, em 1805, e que termina por um hino ao amor conjugal. A relação
existente entre o nome do personagem e a ópera abre a possibilidade de conjecturas em relação ao destino de Fidélia: o
término da ópera seria uma referência à eterna fidelidade da viúva Noronha ao marido morto ou à celebração do encontro
de um novo amor? A visão dual pela qual o personagem em questão pode ser visto dá margem a que este ora confirme, ora
contrarie o significado de seu nome.
À semelhança dos personagens shakesperianos Romeu e Julieta, Fidélia fora impedida pelo pai, o Barão de
Santa-Pia, de continuar o romance com Eduardo Noronha, cuja família também não aprovava o romance. Neste ponto,
Fidélia manteve-se fiel ao seu amor, ainda que contra a vontade do pai, correspondendo o procedimento ao significado do
nome.
A felicidade do casal Noronha foi grande, mas curta. Assim, Fidélia manteve-se fiel ao marido morto, atitude
comprovada tanto em relação às suas constantes idas ao cemitério quanto aos seus trajes habituais. Mais uma vez, o
comportamento do personagem metaforiza o nome.

1229
Fidélia não deixou inteiramente o luto; trazia às orelhas dois corais, e o medalhão com o retrato do
marido, ao peito, era de ouro. O mais do vestido e adorno escuro... Tem a pele macia e clara, com uns
tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez... (p.1103)

Como revela o próprio Conselheiro Aires, Fidélia poderia muito bem casar sem esquecer o primeiro marido, nem
desmentir a afirmação que lhe teve. Abre-se, assim, nesse ponto, a ideia de que a lealdade e a constância nos sentimentos
não remetem necessariamente à clausura do coração.
Para seguir com ela no novo caminho do amor, Fidélia escolheu Tristão, afilhado e filho postiço do casal Aguiar.
O antropônimo TRISTÃO provém do céltico Drystan, derivado de drust, que significa "estrondo", "ruído", "tumulto".
Foi divulgado pelos romances de cavalaria do Ciclo Bretão, através de uma lenda medieval consubstanciada num poema do
referido ciclo. "Filho, diz a mãe do herói, muito faz que desejo ver-te, e ora vejo a mais bela criatura que nunca mulher
concebeu. Triste, porém, te dou a luz; triste é a primeira festa que te faço e, por tua causa, quase morro de tristeza. Como
ao mundo vieste na tristura, haverás nome Tristão" (NASCENTES, p. 303). Dessa passagem do poema, tirou-se o étimo
triste.
O fato de não haver sido criado pela mãe de sangue, o que poderia relacionar o comportamento do personagem
ao significado do seu nome, não se apresenta, efetivamente, como motivo para tal. A trajetória de vida do personagem
mostra que Tristão fez suas escolhas e seguiu seu caminho, segundo o que as oportunidades lhe apresentavam. Embora
partisse do lar postiço, manifestando tristeza e reiterando todo o afeto filial que nutria pelo casal Aguiar, as gratas condições
que o aguardavam na Europa levavam-no a não querer renunciar a nenhuma delas, pois, segundo o próprio personagem,
"a vida é assim cheia de liames e de imprevistos" (p. 1198).
Desse modo, o procedimento de Tristão constitui uma ironia em relação à origem e ao significado do seu nome. O
traço "triste", presente no referido significado, desloca-se para o casal Aguiar, que passa a formar um par de genuínos
"Tristões", na forma aumentativa que o adjetivo adquire, em virtude do afastamento, ainda que geográfico, das maiores
dádivas que Deus lhes dera — Fidélia e Tristão —, solidão a que estão fadados aqueles que amam e que se dão em
excesso.
A condição de antigo diplomata proporciona ao Conselheiro Aires perspicácia e agudeza em relação ao que
observa. Desse modo, a confirmação do significado do nome por intermédio da postura do personagem é o indicador da
relação metafórica que se estabelece, ressaltando a existência de traços positivos. Tal observação é importante, uma vez
que constitui uma forma de garantir a credibilidade em relação a pessoas e a fatos constantes do memorial. A ironia,
marca machadiana por excelência, não poderia faltar e deixa seu traço por intermédio de Tristâo e, em certa medida, por
Fidélia, ainda que com um peso extremamente reduzido, considerando a frequência de confirmação de características
positivas presentes nos demais personagens analisados.
Em Machado de Assis, portanto, o nome próprio significa, não devendo ser considerao simples identificador do
personagem. Na qualidade de signo linguístico, mostra-se capaz de ratificar o rigor e a precisão vocabular, frequentemente
apontados como característicos da alquimia da linguagem machadiana.

3- Caleidoscópio: Estudos para uma bailadora andaluza, de João Cabral de Melo Neto

Sob o signo de “a palo seco”, texto de representatividade na literatura cabralina, “Estudos para uma bailadora
andaluza”, da obra Quaderna, será analisado sob o prisma do feminino e de um certo erotismo em que o poeta trata a
mulher. O viés adotado será o de verificar o comportamento linguístico-expressivo do substantivo comum na constituição de
sintagmas preposicionados, precisamente, na condição de núcleo referencial de sintagmas nominais que aos primeiros se

1230
ligam, conforme ensina Azeredo (2008, p.149). Da seleção de ocorrências, para manter a coerência de análise proposta,
não foram previstos os casos em que a preposição de se combina com o adjetivo para expressar causa.
Para Escorel (2001, p. 92), há uma grande voluptuosidade contida e dominada na primeira imagem da bailadora
(e não bailarina, segundo Costa Lima, 1999, p. 299), que levará uma vibração sensual ímpar a todos os demais segmentos,
visto que “a mulher que dança, identificada com a imagem do fogo, parece encarnar, na sua atitude de desafio, a força do
inconsciente, a própria libido domada pela consciência estética do poeta.” (Idem). Logo no início, o tom solene da mesóclise
(“Dir-se-ia”), espécie de “fórmula hipotética”, na interpretação de Secchin (1985, p.135), anuncia o referente ausente, cuja
falta é suprida pela ligação anafórica em relação ao título. Além disso, uma série de sintagmas preposicionados surge para
investir na figura singular da personagem cabralina. Em alguns versos, a preposição “de” fica elíptica e rompe com o
paralelismo, atribuindo ao texto a dose de aspereza peculiar ao estilo em foco. A seguir, o quadro com as ocorrências:

Sintagmas preposicionados referentes à “bailadora andaluza”


1- “com a imagem do fogo/ inteira se identifica”;

2- “Todos os gestos do fogo”;

3- “gestos das folhas do fogo,”

4- “de seu cabelo, [de] sua língua”;

5- “gestos do corpo do fogo,”

6- “gestos do corpo do fogo,”

7- “de sua carne em agonia,”

8- “[de sua] carne de fogo, só nervos,”

9- “[de sua] carne toda em carne viva.”

Em todos os casos de ocorrência da preposição de, mesmo quando há elipse, introduz-se um sintagma nominal
como argumento do nome valencial (predicador), exercendo o papel semântico de suporte de estado dos núcleos “imagem”
e “gestos” (Cf. NEVES, 2000, p. 653 e 656) em que o segundo, mais comum ao conjunto citado, fica implícito em (4), (7), (8)
e (9).
A bailadora, permanentemente oculta no poema, se torna, no segundo segmento, “égua”, animal cheio dos seus
instintos que guarda semelhança com a “cavaleira” andaluza. Trata-se, segundo Escorel (2001, p. 92), de uma oposição de
contrários em que o “eu consciente” (o ser que comanda) joga dialeticamente ao “eu inconsciente” (o ser comandado),
fazendo da bailadora um símbolo do ser humano que vive em constante contradição. Pode-se ver a aproximação entre os
dois núcleos semióticos e substantivos:

1231
a) na arte do sintagma preposicionado “ao dorso da dança”, que desempenha a função de adjunto adverbial:
Subida ao dorso da dança
(vai carregada ou a carrega?)
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua.

(OC: 1994,p.220)

b) na “energia retesa”, limitada igualmente pelo adjunto adverbial oracional “de quando/ algum cavalo se encrespa”:
Ela tem na sua dança
toda a energia retesa
e todo nervo de quando
algum cavalo se encrespa.
(Idem)

c) na função de dominadora, da bailadora, e de dominada, da égua, em que ambos os núcleos nominais se igualam
(“há uma tal conformidade”). Os pontos responsáveis pela unidade são renomeados e introduzidos pela
preposição entre (a- “entre o que é animal e é ela” [referência indireta ao substantivo, no caso do segundo
elemento]/ b- “entre a parte que domina/ e a parte que se rebela” [neste exemplo, a repetição do substantivo
grifado é delimitada pela oração adjetiva]):
Então, como declarar
se ela é égua ou cavaleira:
há uma tal conformidade
entre o que é animal e é ela

entre a parte que domina


e a parte que se rebela,
entre o que nela cavalga
e o que é cavalgado nela
(Ibidem)

d) na conclusão de tudo “entre ela e a montaria”:


e que é impossível traçar
nenhuma linha fronteira
entre ela e a montaria:
ela é a égua e a cavaleira.
(OC:1994, p. 221)

No girar do caleidoscópio, a bailadora se reveste de “telegrafista” após se identificar com o “fogo” e a “égua” (“Há
nessa atenção curvada/ muito de telegrafista”). Acontece, contudo, que tal identidade gera a dúvida já que

[...]

aquelas respostas que


suas pernas pronunciam

é que a mensagem de quem


lá do outro lado da linha
ela responde tão séria
nos passa despercebida.

(OC:1994, p. 221)

Da sutileza da “telegrafia”, o olhar de Cabral passa a “amante da terra”, a que também se assemelha a bailadora
andaluza, na perspectiva do quarto segmento do poema. Para Escorel (2001, p. 94), a dura batida dos pés no solo
demonstra a prática primitiva de trabalhar a terra com os calcanhares num ato de fecundidade, em que o pé e a ação de

1232
pisar podem revelar uma significação procriadora ou indicar a vontade de retornar ao seio materno. Os segmentos
preposicionados empregados (“com dura e muscular energia do camponês”/ “Do camponês que tem sotaque andaluz
caipira/ e o tornozelo robusto”) traduzem o espírito do poeta na caracterização/ denominação substantiva árida e concreta,
que auxiliam na construção do objeto do discurso.
Ela não pisa na terra

[...]

Ela a trata com a dura


e muscular energia
do camponês que cavando
sabe que a terra amacia.

Do camponês de quem tem


sotaque andaluz caipira
e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa.

(OC: 1994, p. 222)

A multiplicidade da andaluza pega-se, no segmento cinco, com a figura da estátua, aparentemente tão distante
das comparações anteriores com o fogo, a égua, a telegrafista, a terra. Segundo o eu lírico, a dança se inicia e finaliza da
mesma maneira caso fosse livros iguais “coberta e contra-coberta/ com a mesma posição que talhada em pedra”. A
bailarina é rija, dura, áspera, ereta, substantiva, de tal sorte que, dada a beleza que lhe pertence, divide-se em duas:
a) No princípio, era “estátua” (“A primeira das estátuas”):
A primeira das estátuas
que ela é, quando começa,
parece desafiar
alguma presença interna

(Idem)

b) No fim de tudo, era a estátua (“com a figura desafiante/ de suas estátuas acesas”):
parece mais desafio
a quem está na assistência,
como para indagar quem
a mesma façanha tenta.

O livro de sua dança


capas iguais o encerram:
com a figura desafiante
de suas estátuas acesas.

(OC: 1994, p. 224)

A rigidez cabralina permite o acesso necessário para se construir a comparação/denominação mais insólita com a
espiga. Parece-me que o olhar do poeta viajante contagia a figura andaluza com a marca da sua cultura pernambucana dos
canaviais. Se ,no fogo, há luminosidade; na égua, instinto; na telegrafista, linguagem; na terra, fecundação; na estátua,
rigidez; na espiga, veste apresentada também de forma dialética: “verde, envolvida de palha” e “madura, quase despida.”.
Do ponto de vista linguístico, “folhagem” (“[...] a vai despojando da folhagem que vestia”), “vegetação” (“Não só da
vegetação”) e “chita” (“saias folhudas e crespas/ do que no Brasil é chita” [= de chita no Brasil]) compõem o núcleo
referencial substantivo de estruturas preposicionadas no intuito de construir, do ponto de vista semiótico de geração do
sentido, o desenvolvimento da bailadora e a sua aproximação com “espiga”.

1233
Parece que sua dança
ao ser dançada, à medida
que avança, a vai despojando
da folhagem que a vestia.
Não só da vegetação
de que ela dança vestida
(saias folhudas e crespas
do que no Brasil é chita)

(Idem)

3- Considerações finais

Como professores de língua portuguesa, a preocupação na elaboração deste trabalho foi apresentar alternativas
para o ensino de gramática, sobretudo no que tange ao estudo do substantivo, um dos tópicos abordados nos livros
didáticos e nas aulas de português, dada a sua relevância estrutural e semiótico-discursiva. Pelos pontos abordados,
pretende-se, com isso, oferecer à comunidade acadêmica, principalmente aos professores de linguagem, dados qualitativos
e indagações para a redefinição do substantivo não só como uma classe de palavra restrita aos cuidados da morfologia,
mas também como instrumento para a alquimia e a “engenharia” do texto na condição de núcleo informativo-referencial que,
neste espaço, esteve a serviço de João Cabral de Melo Neto e Machado de Assis, no diálogo permanente entre os estudos
linguísticos e literários.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. v.II. Petrópolis: Vozes, 1987.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores,
números (Dictionnaire dês symboles). Trad. de Vera da Costa e Silva et al. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

COSTA LIMA, Luiz. A traição conseqüente ou a poesia de Cabral. In: ___. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2 ed
rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, pp. 197-331.

COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1992, 3v.

ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio: uma interpretação de João Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de
Letras, 2001. (Austregésilo de Athayde, I)

KOCH, Ingedore G. Villaça. Referenciação e orientação discursiva. In: ___; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna
Christina. Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005, pp. 33-52.

MACHADO, José Pedro. Dicionário onomástico da língua portuguesa. Lisboa: Confluência, 1984, 3v.

MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Organização de Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
(Biblioteca luso-brasileira, Série brasileira).

NASCENTES, Antenor. Dicionário etimológico da língua portuguesa, II: nomes próprios. Rio de Janeiro: [s.ed.] ,1952.

NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.

ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. 5ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1964.

1234
CURRÍCULO:
Anderson da Silva Ribeiro. Professor de Língua Portuguesa da UNISUAM e da Secretaria Estadual de Educação do Rio de
Janeiro. E-mail: anderson_sribeiro@hotmail.com

Maria Teresa Gonçalves Pereira. Professora Titular de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-
mail: mtgpereira@yahoo.com.br

Tania Maria Nunes de Lima Camara. Professora Adjunta de Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Professora Assistente de Língua Portuguesa da UNISUAM. E-mail: taniamnlc@gmail.com

1235
A crítica como ato de fala : força ilocucional ou efeito?

RIBEIRO, Lígia de Souza


(PUC Minas)
NASCIMENTO, Rosilene Maria
(PUC Minas)

Introdução

A partir da análise pragmática dos atos de fala e da teoria semiolinguística, pretendemos apreender a construção
de atos de fala assertivos, na relação intenção vs. efeito perlocucional. Para tal, analisamos os comentários de 26
internautas que manifestaram sua opinião no blog do Fernando Rodrigues (http://uolpolitica.blog.uol.com.br/arch2009-10-
25_2009-10-31.html), no dia seguinte ao da veiculação da propaganda do Partido Democratas (DEM)1, que foi ao ar, em
rede nacional, no dia 30/10/2009. Nesta análise, interessou-nos, propriamente, os impactos, isto é, os efeitos do discurso da
propaganda política sobre os internautas: a propaganda os convence ou não? Cabe ressaltar que o próprio Fernando
Rodrigues, ao comentar a propaganda, sugeriu que a lógica do comercial seria, pelo menos, curiosa ou polêmica, pois a
propaganda, ao afirmar que Lula tendo perto de 80% de aprovação pessoal, tentando vender a ideia de que sua
popularidade lhe permite não governar, poderia provocar àqueles que o aprovam e estão felizes com o governo e, assim,
conseguir um efeito reverso: irritar, em vez de tentar conquistá-los.
A análise dos atos de fala dos comentários aponta, primeiramente, para a possibilidade de verificar se a intenção
do Democratas atinge ou não os efeitos pretendidos. Posteriormente, a análise se atém à construção do ato de fala crítica;
onde, busca-se compreender como esse ato se constitui discursivamente; como uma força ilocucional ou como um efeito
perlocucional?

Uma palavra sobre o referencial teórico

Da leitura que Mari (1997) faz de Vanderveken, um ato de fala pode ser definido em função das condições
estabelecidas em determinada interação verbal, que regulam a ação dos agentes, e que dizem respeito à convenção da
situação de comunicação, ao conteúdo informacional e à intenção que esses agentes têm de transformarem ou não um ato
em realidade. Assim, o ato, compreendido e executado, dependerá do contrato estabelecido entre os agentes, de seus
engajamentos na situação e do desempenho realizado para a transformação do dizer linguístico em ato, isto é, em ação
factual.
Para entendermos melhor a caracterização da situação de comunicação e dos interlocutores envolvidos nessa
interação, é necessário trazer à luz o quadro da Teoria Semiolinguística proposta por Charaudeau, que nos auxilia a pensar

1A propaganda intitulada ‘O vale tudo do governo Lula’, apresenta uma crítica ao governo Lula. Utilizamos esta propaganda em outro
trabalho, em que através de uma análise detalhada verificamos a construção argumentativa do texto político em relação ao uso de atos
de fala assertivo/crítica explícita, implicando, indiretamente, atos de fala comissivo/promessa.

1236
a enunciação, do ponto de vista psicossocial. Vejamos o quadro2, proposto por Mendes (2001), acerca desta proposta e que
contribui para o esclarecimento desta questão.

Ato de linguagem: comentários sobre a propaganda do DEM

EUc TUi
Internautas EUe ____________ TUd Internautas
Debatedor político Sujeito a ser convencido DEM
Perlocução-i Ilocução-i ilocução-i,j Perlocução-i,j

Circuito interno

Circuito externo

Utilizando-nos da teoria semiolinguística, que nos oferece maior operacionalidade para o entendimento de
categorias enunciativas, como sugere Mendes (2001), sob a luz da dimensão perlocucional, podemos constatar, então, que
o EUc (internauta), ao intencionar criticar a propaganda e o DEM, constrói uma imagem de debatedor político (ilocução-i),
através de atos de fala assertivos (constatação de um estado de coisas do mundo), que atestam seus conhecimentos e
habilidades para tal. Por conseguinte, constrói uma imagem de destinatário, que pode ser a de um internauta eleitor a ser
convencido e que reconheça a força destes atos (ilocucionários). Se o sujeito interpretante (demais internautas-DEM ou
não) se assimilar à imagem de destinatário (eleitor), assumindo a crítica (ilocução-i) como sendo bem sucedida, ele terá sido
convencido (perlocução-i) e, desse modo, a imagem de enunciador terá sido reconhecida/refletida; caso contrário - o que
não podemos verificar nesta pesquisa - se o interpretante não se assimilar à imagem do destinatário, ele não terá sido
convencido (perlocução-j...(n)) e, assim, a imagem de enunciador terá sido recusada.

Análise dos comentários: a natureza dos atos de fala assertivos3


A situação de comunicação, comentários em um blog sobre temas políticos, apresenta um quadro de restrições
que limita os tipos de atos de fala passíveis de serem realizados e orienta a força ilocucionária a ser atribuída a tais atos,
conforme Mendes (2001). Neste caso específico, por se tratar de comentários sobre um evento político, em que as pessoas
irão opinar, há o predomínio de atos assertivos, que reportam certos estados de coisa como verdadeiros, como base para
sua argumentação.
O quadro enunciativo apresentado centra-se no fato de que 70% dos comentários sobre a propaganda política do
Democratas demonstram ‘não aceitação’ do efeito pretendido pela propaganda, que seria o de criticar o governo Lula,
apresentando esse rechaçamento através da construção discursiva de atos assertivos. Cabe-nos explicitar como se
constituem estes atos:
1. Dos 26 comentários analisados, 05 confirmam e também criticam Lula- efeito pretendido pela propaganda/DEM;
e, 21 não acatam a crítica proposta pelo DEM.
2. Dos 21 que não acatam o efeito pretendido pela propaganda:

2 Quadro enunciativo, segundo a teoria semiolinguística.

3 Comentários em anexo, ao final do texto.

1237
a) Todos intencionam provocar o efeito perlocucional de crítica à propaganda ou ao DEM. E, de alguma maneira,
favorecer o Lula - o alvo da crítica do DEM.
b) Destes; 04 fazem menção explícita à propaganda, ao concordarem com a possível aprovação de 80% do governo
Lula.
c) 05 deles, através de assertivos/crítica, fazem uma crítica explícita ao DEM.
d) 16 fazem a crítica através de atos assertivos/ modos: constatação, afirmação, sugestão, conjectura, etc., não
configurando uma crítica explícita, mas uma crítica que se constrói discursivamente, através de modos variados, visando ao
efeito perlocucional pretendido.

Atos Assertivos
Os atos assertivos compõem a base dos comentários analisados. Tivemos um grande problema ao tentar mapear
essa força, pois ao buscarmos compreender como os atos assertivos se constroem discursivamente, em sua maioria como
crítica (mas também se apresentando através dos modos: conjecturas, constatações, etc.), duvidamos se essas críticas se
construíam como: i. força (a ação social que realizam os atos); ii. efeito; ou até mesmo se iii. indiretamente, teríamos uma
força comissiva4; que definida pela posição do locutor em relação a ele mesmo, poderia expressar um desejo futuro de
propor, de ansiar, no caso, uma alternativa política para o país.
Sobre essa possibilidade de indireção, acreditamos ser necessária uma maior atenção. Mari (1997), ao analisar textos
políticos, considera um ato assertivo como uma forma primária de intervenção na realidade; e, no seu modo de realização
mais neutro, o estado de coisa seria representado por uma descrição. Se, na descrição de um estado de coisas, ressaltam-
se seus aspectos positivos, caminha-se de uma asserção descritiva para uma asserção de elogio. Inversamente, se ao
descrever um estado de coisas, ressaltam-se seus aspectos negativos, caminha-se para a construção de um ato de fala
indireto. No entanto, podemos inferir que, no caso pesquisado, os internautas – Euc, ao instaurarem o
enunciador/debatedor - não possuem em sua condição preparatória, estatuto para prometer ou comprometer-se (não há um
pacto de confiança entre internautas), o que tendo essa condição fracassada, embora atinjam as condições de sinceridade,
pois nos parece claro que os internautas acreditam e têm embasamento naquilo que defendem, o ato em si, em função da
impossibilidade do locutor, fere sua condição natural de satisfação.
Acabamos, então, por somar as 3 questões que nos angustiavam à concepção de Mari (1997), que associa as
condições de realização de um ato em termos de sua força ilocucional à dimensão convencional. E, à dimensão intencional,
os efeitos perlocucionais. Em que “... a dimensão intencional é tratada como um suplemento para o conceito de força”, Mari
(2001), não sendo correto regularizá-la na estrutura de uma força, já que se caracteriza pelas sequelas que um ato pode
produzir.
Quanto ao aspecto força ilocucional, entendemos assim: os atos analisados (proferidos pelos internautas)
possuem a força assertiva, como forma primária de intervenção na realidade; em variados modos de realização crítica,
constatação, descrição, conjectura, etc. Já, todos estes atos, considerando sua dimensão intencional, possuem como
tentativa o efeito perlocucional de uma crítica - e, não podemos considerar essa crítica como força, já que é uma sequela de
um ato. No entanto, há que se considerar alguns aspectos da construção desta força nos casos analisados.
Embora não reconheçamos a crítica como força nos atos analisados, e, sim, como efeito (a força aqui entendida
como o estado de coisas reportado no discurso), precisamos reconhecer como se constrói a crítica como um efeito. Assim,

4Como sugere Souza-Paz (2002), o ato assertivo é também compromissivo, pois é um esforço de partilhar uma crença com o alocutário
que entra na partilha com seu crédito na crença do locutor.

1238
analisamos cada ato de fala, dos 26 comentários postados, com o objetivo de esclarecer, como, do ponto de vista, da
dimensão intencional, o efeito de se criticar é construído.
Do ponto de vista argumentativo, observamos que, ao enunciar seus atos assertivos, os 21 internautas:
1. Através do modo constatação, declaram que, sinceramente, sabem do que estão falando, atestando sobre o
conhecimento da trajetória político-histórica do Democratas e sobre o quadro político brasileiro.
2. Criticam a posição do DEM diretamente, por achar que este não tem legitimidade para fazer uma crítica ao
governo.
3. Questionam, disfarçados de asserções, o discurso proferido na propaganda: citam outros governos para falar do
IR, Poupança e também invocam fatos sobre o MST.
Diante das especificações acima, podemos entender que ato assertivo, concordando com Souza-Paz (2002:169), “(…) é,
talvez, o mais problemático, porque o menos marcado linguisticamente e, pragmaticamente, o menos evidente, mas
também o mais fecundo discursivamente”; pois, direciona discursivamente sua constatação sobre o mundo, de maneira a
atingir o efeito de crítica, conforme os exemplos demonstram:
1. Focando-se nas condições de sinceridade do seu ato.
“ DEM.AGOGOS, vivem desde os tempos da UDN mamando nas tetas do poder, apoiaram
2 décadas de ditadura, ficaram 8 anos junto com o FHC, e não fizeram nada pelo povo,
nunca. Coitados, vão precisar de muito mais que demagogia pra atacar um governo legítimo
e atuante como o do presidente LULA”.

2. Demonstram interesse e conhecimento social e ético sobre as condições preparatórias do interlocutor (seu papel
social), claramente criticando o seu perfil.
“ E os demos parecem fazer isso muito bem, comprovando com isso que, além de
incompetente e amadora, a oposiçãozinha nacional beira a mediocridade”.

3. Remetem-se ao conteúdo proposicional do discurso do outro, a fim de descaracterizá-lo.


“ Interessante: quando a Vale demitiu funcionários na tal crise mundial, alguns blogueiros
disseram que representava apenas 2,31 % da mão de obra da empresa no Brasil. Agora,
fazem o maior escarcéu com os supostos 7 mil pés de laranjas derrubados pelo MST. Ora, a
plantação tinha 1 milhão de pés, segundo os órgãos que cobriram o caso, o que representa
0,07 % do total plantado...”.

Conclusão
Assim, ao analisarmos os comentários, concluímos que a propaganda do DEM não atingiu seu objetivo principal
que era o de construir uma crítica ao governo Lula. Verificamos isso, ao observar a construção dos atos de fala postados
por blogueiros no site do Fernando Rodrigues.
Trata-se de atos de fala, cujo conteúdo acional - a sua força, faz referência a estados de coisa do mundo. Mas,
possuem um riquíssimo potencial discursivo, a atestar a construção de uma crítica, muito sólida, como efeito de sentido.
Quanto à análise pragmática, à luz da teoria dos atos da fala, podemos concluir que os atos assertivos podem ter
um efeito de crítica contundente, quando ao construírem sua orientação argumentativa refutarem, através de seus atos,
simplesmente, constatativos, afirmativos, descritivos, etc., as condições de sinceridade, preparatórias e proposicionais dos
atos do interlocutor a que se pretende tal crítica. Na verdade, através de assertivos - um ato linguisticamente, tão menos

1239
marcado - podemos argumentativamente, desqualificar, copiosamente, um outro ato; construindo um efeito de crítica e
descrédito.

Referência
CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos de linguagem. In: MARI, Hugo;MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato
de. Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001. P. 23-38.

SOUZA-PAZ, Florêncio. Ato assertivo, verdade e crença na teoria dos atos de fala. In: MACHADO, Ida Lucia.et alii.
Ensaios em Análise do Discurso. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2002. P.169-186.

MACHADO, Ida Lucia. Uma teoria de análise do discurso: a Semiolinguística. In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lucia;
MELLO, Renato de. Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001.p. 39-
62.

MARI, Hugo. A promessa como ato de fala: suas implicações no discurso. Geraes Revista da Comunicação Social. n. 48,
p. 34-41, jul., 1997.

MARI, Hugo. Atos de fala: notas sobre origem, fundamentos e estrutura. In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lucia;
MELLO, Renato de. Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001.p.93-
132.

MENDES, Paulo Henrique A. Sobre o contrato de comunicação: do discurso ao debate político eleitoral. In: MARI,
Hugo; MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato de. Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte:
NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001. P.313-346.

SEARLE, John R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SEARLE, J. O estatuto lógico do discurso ficcional. In: Expressão e significado. Estudos da teoria dos atos de fala. São
Paulo: Martins Fontes, 1995, p.95-119.

CURRÍCULO DAS AUTORAS

Lígia de Souza Ribeiro: Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela PUCMinas e bolsista da CAPES. Graduada em
Letras pela mesma instituição (2004). E-mail: ribeiros.ligia@gmail.com

Rosilene Maria Nascimento: Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da PUC/MG. Graduada
em Letras pela mesma instituição. Atualmente, é professora das redes públicas municipais de ensino da cidades de Belo
Horizonte/MG e da cidade de Contagem/ MG. E-mail: rosinasc@bol.com.br

1240
ANEXO 1 - COMENTÁRIOS ANALISADOS

Maluco] [SJC] Ridículo esse filminho... e ridiculo também se dar alguma divulgação adicional a tal
coisa, demonstra o despreparo da oposição para lidar com um fenômeno da politica mundial, como é
o Lula e um preconceito sem fim de nossa ex-classe dirigente, contribuidora de golpes e ditaduras
sanguinárias, e corrupção escondida (pois era proibido noticiar, lembra-se?)... tá com saudades do
DEM no governo (ARENA) ? De BONS presidentes como foram Castelo Branco, Costa e Silva (AI5),
Médici (milagre econômico com emprestimos vultosos para serem gastos em obras faraônicas, além
de umas coisinhas sem importância, como tortura...), Geisel (e atentados de direita, como
RioCentro...)e Figueiredo (e seus conselhos uteis para alguem que ganhava salario mínimo, de atirar
no ouvido...). Você tem saudade desse tempo?05/11/2009 18:45

[Petra] [Rio de Janeiro] Como eu não vou atrás de propaganda, pesquisas, para mim de nada serve.
lula foi o pior presidente que este país já teve, nem na época da ditadura foi assim.Um mentiroso,
demagogo, arrogante, cínico, debochado que pensa que é o tal.Não trabalha, não governa, fica só de
piadinha, pois sabe que o povo é burrinho, e estes adoram. Emprego, saúde, educação não existe
neste governo. A maioria do povo vive de bolsa-esmola e a cada dia cresce mais.Onde vamos parar?
Será Serra 2010!!!!!!!!!!!!05/11/2009 15:11

[juarez] [campinas, sp, brasil] esses caras são espertos!estão felizes como estão e não querem
mudar nada!...e para não mudarem nada, fazem essas propagandas utilizando figuras politicas zero a
esquerda com mensagens idiotas!04/11/2009 18:11

[Sergio] [São Paulo] O filminho do DEM tem certa lógica. Mas na verdade, a popularidade do
governo tem um grande responsável que é a oposição debil e desorientada, distanciada da
população e da realidade. Então em vez de por a "culpa na popualridade" a frase deveria ser:
Também com uma oposiçãozinha do jeito que esta.."01/11/2009 13:01

[Observador] [São Paulo, SP, Brasil] Jogar pedras em um governo que conta com 80% de aprovação
popular em final de mandato é cavar a própria cova. E os demos parecem fazer isso muito bem,
comprovando com isso que, além de incompetente e amadora, a oposiçãozinha nacional beira a
mediocridade. E o Sapo Barbudo continua tão feliz que nem se preocupa em responder a esses
"ataques bumerangues"...01/11/2009 11:34

[Luciano Pires] [São Paulo-SP] Essa gentalha do DEM/PFL não aprende mesmo não é mesmo? O
povo brasileiro mudou, cresceu e amadureceu politicamente falando. O que importa agora é mão na
massa, e não mais discursinhos do tipo "EU FINJO QUE FAÇO E VOCÊ FINGE QUE ACREDITA". O
povo dá à Lula 80% de aprovação, pq sente em suas vidas os efeitos de um governo que olha para
seu povo, com pluralidade e não como era feito antes, onde somente uma pequena parte enriquecia
cada vez mais e a grande maioria ficava cada vez mais pobre. Não adianta tentarem ENGANAR o
povo brasileiro, com metáforas chulas e de conteúdo distorcido e sobretudo, quererem voltar ao
poder, com propagandas sorrateiras.01/11/2009 11:30

[pedro couto] [londrina pr] Graças a Administração do SR. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, o
lula está colhendo os frutos da semente plantada. 01/11/2009 10:51

[ricardo faria] [www.ricardofariah.blogspot.com] [barra velha - sc] Roberto Ribeiro inteligentissimo.


Parabéns 01/11/2009 09:36

[ricardo faria] [www.ricardofariah.blogspot.com] [barra velha - sc] DEM não significa democratas e
sim DEMAGOGOS. 01/11/2009 09:33

[ricardo faria] [www.ricardofariah.blogspot.com] [barra velha - sc] DEM..AGOGOS, vivem desde os


tempos da UDN mamando nas tetas do poder, apoiaram 2 décadas de ditadura, ficaram 8 anos junto
com o FHC, e não fizeram nada pelo povo, nunca. Coitados, vão precisar de muito mais que
demagogia pra atacar um governo legítimo e atuante como o do presidente LULA. 01/11/2009 09:32

[Antonio] [RJ] O partido DEM e seus correligionários deveriam passar um tempo na Itália ouvindo o
Berlusconi e seus depudados ostentarem diariamente sua popularidade, como arma para qualquer

1241
argumento da oposição. E o Berluca só tem pouco mais de 50% de apoio popular. Comparado ao
Berluca ou Chaves o Lula é um grande estadista. 01/11/2009 07:49

[Jair Santos] [São Paulo] Só algumas perguntas.... O QUE ESTE PARTIDO Q SE DIZ OPOSIÇÃO
FEZ PELO BRASIL QD ERA ARENA, PDS E PFL ? QUAL MORAL OS PARTIDOS DA ELITE E DA
FOLHA DE SP/REDE GLOBO TEM DE JULGAR E MENTIR, INVENTANDO UMA SITUAÇÃO, SE
NUNCA TRABALHOU A FAVOR PARA Q ESTA SITUAÇÃO JA TIVESSE SIDO RESOLVIDO,
MESMO ESTANDO DURANTE ANOS NO PODER ? SERA Q O Q INCOMODA ELES É UM
GOVERNO Q NAO JULGA UM MOVIMENTO POR SUA ATITUDES ERRADAS E SIM PROCURA
OUVILOS ? Não sou Petista e nao tenho ganho algum em defender o governo do presidente, a nao
ser q, como morador da periferia de SP e membro da classe C, postulando calgar a classe média
(graças as medidas do governo Lula)noto q vcs da elite, e os pseudo intelectuais brasileiros se
incomodam muito em serem governados por alguem do povo, q mau sabe falar, mas governou muito
melhor, mas muito melhor mesmo, q os governos engomadinhos da elite q ostentam diversos
diplomas em bacharelado e falam varios idiomas. Vcs não acham que estão sendo ridiculos
?01/11/2009 06:01

[Alex] [br] Do comercial,não sei.Sei que Lula não tem 80% pois nem Hitler passou dos 70%.Esse é o
teto de aprovação,mesmo num totalitarismo com situação econômica e social favoráveis.Convivo com
pessoas de todas as classes.Mesmo entre os beneficiários de bolsa há grande insatisfação com o
país.É possível que Dilma vença?Difícil,mas não impossível,com a aparelhagem despudorada que
ocorre em todos os setores.Mas dificilmente continuaremos a ser reconhecidos como estado
democrático.Pode demorar,mas o lulismo está no início do fim.31/10/2009 15:15

[Beatriz Freitas] [Recife-Pe-Brasil] Homem e Serra que comia toco dos laboratorios,Bom mesmo [e
Jarbas cercado de protitutas,bebendo feito um gamba e envergonhamdo os pernambucanos.Se essa
[e a oposi;áo [e Dilma na cabe;a.31/10/2009 15:14

[nelson] [vitoria,es] demos e tucanos,Lula 80 por cento de aprovação,Dilma 2010,fiquem com o farol
de alexandria o mascate das estatais e os cinco cavaleiros do apocalipse,arthur,gavião
agripino,jereissati,heraclito.31/10/2009 15:06

[rinaldo vitor da costa] [dourados ms] Quem é o marqueteiro desses caras? Infiltrado não é, porque
essa conversa dá muita bandeira. O cara não aprendeu nada com o marqueteiro do clinton, é a
economia, estúpido. Se não tiver nada ness área pra mostrar ou denunciar pode tirar o cavalinho da
chuva. Vão mostrar o quê? Apagão? Brasil quebrado de pires na mão por 3 vezes? FHC flanando às
margens do Sena? Desolê, adieu demos 31/10/2009 13:59

[HelioZ] [http://popolitica.blogspot.com] [Brasília - DF] E tem gente que fala que FHC cravou nos
aposentados... Criou um amortecedor, mas manteve a aposentadoria por tempo de contribuição.
Ninguém foi mais malévolo e amaldiçoado pelos servidores públicos nessa questão de
aposentadorias do que Lula, pois foram eles os que mais perderam na Reforma da Previdência de
dezembro/2003 de Lula (que resultou na saída de Heloísa Helena), na Emenda Constitucional 41.
Perderam a integralidade, perderam a opção de aposentar por Tempo de Serviço. Depois de
Dezembro/2003, quem entrar no serviço público com 18 anos, só vai aposentar, no mínimo com após
trabalhar loooongos 47 anos. E ainda vai receber proporcionalmente. E a Emenda Constitucional de
2003 ainda previa o Fundo de Previdência Complementar dos servidores, o que até hoje não tiraram
do papel, pois viram que o Fundo vai custar caro pro Governo (o FUNPRESP). E ainda dizem que
Lula foi bonzinho com os servidores públicos. Foi é o pior dos padastros! HelioZ
http://popolitica.blogspot.com31/10/2009 12:50

[HelioZ] [http://popolitica.blogspot.com] [Brasília - DF] O comercial do DEM é muito bem sacado. Se


vai funcionar, é outra história... tem o tal "efeito teflon" por lá! A cena deve ser mesmo muito próxima
de uma reunião de avaliação do "alto comissariado político" do Palácio do Planalto. Mas no caso da
restituição, o comissariado e o Mantega levaram um puxão de orelhas. Claro, não quiseram se
queimar com 1 milhão de servidores públicos e deram os aumentos de julho/2009; então iriam querer
se queimar com 3 milhões de indivíduos (e suas famílias) da classe média com restituições a
receber? Com isso tudo, a disciplina fiscal foi pro espaço, o rombo nas contas do Governo continuou
aumentando, e se fez notar muito bem nesse déficit primário inédito de R$ 8 bilhões, recém
anunciado! HelioZ http://popolitica.blogspot.com popolitica@gmail.com 31/10/2009 12:34

1242
[Roberto Ribeiro] [Rio das Pedras - SP - Brasil] De cada 10 petistas, 11 sonham com José Serra
como adversário de Dilma Roussef, em 2010. Por tabela Dilma ainda teria os votos de Aécio e
Alckmin que não moverão uma palha em favor do desafeto de ambos. Vá em frente Dilma, esse
negócio de que você está mal nas pesquisas é puro papo furado. Se Jacques Wagner fosse dar
ouvidos para pesquisas não teria sido eleito governador da Bahia. FHC/Serra/PIG não fabricaria
pesquisas para colocar Dilma em primeiro lugar.31/10/2009 09:00

[Ary] [Brasília-DF] Eles poderiam relembrar aquela história da dona marisa ter orientado a contrução
de canteiros em forma de estrela. Esse partido é DEM+ de estúpido.31/10/2009 08:39

[GERALDO RIO] [UOL BLOG] [RIO DE JANEIRO] ESTA CHEGANDO O GRANDE DIA 07/11/2009.
NO DIA 7/11/2009 O ESTADÃO IRA BATER O RECORDE DE 100 DIAS SOB CENSURA. SEM
DUVIDA UM GRANDE FEITO. PARABENS.31/10/2009 06:52

[GERALDO RIO] [UOL BLOG ] [RIO DE JANEIRO] O POVO JAMAIS ESQUECERA QUE O GRÃO
TUCANALHA FHC FOI O presidente QUE CHAMOU OS APOSENTADOS DE VAGABUNDOS E
NÃO SATISFEITO DESVINCULOU O SALARIO MINIMO DAS APOSENTADORIAS PARA QUEM
GANHA ACIMA DE DOIS SALARIOS. FALAR EM psdb É REVIVER UMA ETAPA NEGRA NA
HISTORIA DO BRASIL. O PAIS ESTAVA DESACREDITADO, FALIDO,VENDIDO.31/10/2009 06:45

[ricardo santa maria marins] [Blog do Fernando Rodrigues] [SP - SP - BRASIL] Nada mais ridículo!!!
Fico na dúvida se existe oposição verdadeira no BRASIL. A única oposição VERDADEIRA é contra o
POVO BRASILEIRO e contra o BRASIL. Essa é verdadeira. O resto é só encenação. Quanto aos
órgãos de comunicação isso é para lá de ridículo. Entretanto, após sucessivas "MANCADAS", estão
aprendendo novamente. Isso é muito bom. Como sugestão de leitura para a GRANDE pequena
mídia, aconselho leitura e releitura dos Blog's, locais como este, de comentários, e maior
interatividade com a INTERNET. Única maneira de não desaparecerem ou continuarem no século
XX. O século XXI funcionará de maneira completamente diferente. Jornais, televisões e rádios e seus
programas, outrora, impositores de idéias, ficarão cada vez mais fragilizados e inúteis. A interação, a
opção do contraditório quase imediato, a análise ética dos eventos nas diferentes áreas serão no
futuro o caminho para o encontro. Desprezar ou tentar desqualificar o virtual é pura BOBAGEM.
Liberdade e ética são a Chave!30/10/2009 16:19

[Petra] [Rio de Janeiro] Nem precisa de propaganda, pois dilma e lula já perderam.Se o povo quer
mesmo melhorar de vida votem no Serra, o menos pior, agora se querem continuar na merda
ganhando boslsa-esmola, sem perspectiva de vida para si e seus filhos, votem na empacada.Não é a
propaganda que me influencia, são as atitudes das pessoas no decorrer de seu mandato.Para mim,
lula não ganha nem para síndico de prédio, pois já está acabado.30/10/2009 14:15

[Roberto Ribeiro] [Rio das Pedras - SP - Brasil] Cai a compra dos jornais, cai a audiência do
Fantástico e da Globo como um todo, Oposição cai em descrédito, e toda essa gente não sabe
porque. Lula no discurso na Expo Catadores matou a mais óbvia charada dos últimos tempos. Os
Brasileiros acordaram para a vida. Mídia e Povo não tem nada a ver. A mídia serve aos caprichos dos
seus donos. A Democracia serve ao Povo.30/10/2009 11:48

[Roberto Ribeiro] [Rio das Pedras - SP - Brasil] Se for essa a abordagem da Oposição na campanha
de 2010, Dilma já pode encomendar o vestido da posse. Se um dia eu for presidente da república
quero, desde já, pedir a Deus uma Oposição igualzinha a essa que está aí. Ah! Quero uma mídia
igual a essa também!30/10/2009 11:39

[PRISCILA] [jundiai/sp] 0 Comentário priscila 29 de Outubro de 2009 Your comment is awaiting


moderation. Olá a todos,meu nome é Priscila do Nascimento,tenho 39 anos mãe de 3 filhos,resido
atualmente em Jundiaí -SP,mas cresci em Itupeva ,e desde meus 7 anos que acompanho a vida
pública de alguns Políticos,e em especial a do ex Governador Orestes Quércia.Bem minha mãe se
filiou ao PMDB em Itupeva e se elegeu vereadora,depois foi trabalhar com a doutora Alda Marco
Antonio na secretária do Menor na gestão do ex Governador.Passei a acompanhar mais ainda seu
trabalho e assim também admira la.Minha admiração era tanta por ambos que toda vez que ouvia els
fazerem seus discursos eu me emocionava,era como ídolos de lisura e caráter,cheguei até a mandar

1243
algumas carta ao ex governador pela doutora Alda,pois minha mãe tinha muito contato frequente com
ela ,já que ambas eram sócias de um empreendimento aqui em Itupeva.30/10/2009 11:35

[Luiz Antonio Maia] [Caratinga/MG] Interessante: quando a Vale demitiu funcionários na tal ceise
mundial, alguns blogueiros disseram que representava apenas 2,31 % da mão de obra da empresa
no Brasil. Agora, fazem o maior escarcéu com os supostos 7 mil pés de laranjas derrubados pelo
MST. Ora, a plantação tinha 1 milhão de pés, segundo os órgãos que cobriram o caso, o que
representa 0,07 % do total plantado...30/10/2009 10:47

[GERALDO RIO] [UOL BLOG] [RIO DE JANEIRO] AOS ESTICOS TUCANALHAS E


DEM;AGUARDEM;EM BREVE IREI RESSUSCITAR OS GRANDES ESCANDALOS DO
DESGOVERNO DO FHC. POR EX-O ESCANDALO SIVAN-O CAIXA-DOIS DE CAMPANHA-A
DESVALORIZAÇÃO DO REAL ONDE BANCOS GANHARAM MUITO,NA OPORTUNIDADE O fhc
BRADOU;"ou eu ou o CAOS"O CARA ACERTOU, FOI O CAOS.-A EMANDA DA REELEIÇÃO(ESSA
É DE LASCAR) ETC,ETC,.ETC., UM BOM FERIADO- ATÉ LÁ.30/10/2009 09:42

1244
A polêmica como interincompreensão: construção e
negação de simulacros no campo da surdez

RIBEIRO, Maria Clara Maciel de Araújo


(UFMG)

Continuamos a ser diferentes em nossas formas. Continuamos a nos identificar como surdos.
Continuamos a dizer que somos normais com nossa língua de sinais, com o nosso jeito de ser surdos.
[...] então um grupo cultural à parte. Um grupo que realmente investe na decisão de ser diferente. De
transformar o anormal em normal no cotidiano da vida (PERLIN, 2007)1.

1 – Considerações iniciais

Neste estudo, voltaremos o nosso olhar para os discursos sobre a surdez produzidos pelos surdos. Ao longo do
tempo, os discursos sobre a surdez vêm se renovando e modificando constantemente. Atualmente, há, pelo menos, duas
importantes e diferentes formas de se conceber (discursivamente) as pessoas surdas na contemporaneidade: a primeira
concepção se origina do domínio clínico-terapêutico e compreende os surdos a partir da disfunção do não-ouvir, uma vez
que se baseia, sobretudo, em argumentos, princípios e posturas que intencionam fazer o surdo “superar”, contornar a
surdez, como forma de alavancar o seu desenvolvimento lingüístico e social. Assume-se, aqui, um discurso que pode ser
considerado de fundamentação ouvintista2, visto que a surdez é considerada uma patologia que precisa ser tratada.
A segunda concepção, que advém do domínio lingüístico-antropológico, postula que os surdos podem viver e
se desenvolver na e pela surdez, sem combatê-la. Ancora-se em princípios lingüísticos, culturais e identitários que
especificam os povos surdos, ostentando um discurso que pode ser considerado de fundamentação surda, pois
compreende a surdez a partir de seu reconhecimento lingüístico e cultural.
Como se vê, trata-se de formações discursivas (FDs) que se opõem e que, como veremos, estabelecem entre
si uma relação de polêmica. A partir dos estudos de Maingueneau (2005) foi-nos possível compreender que tais discursos
instituem um espaço discursivo específico, apreensível no campo discursivo da surdez.
Maingueneau (2005, p. 3) postula que em meio a um conjunto de discursos de todos os tipos que interagem em
dada conjuntura (universo discursivo), é possível construir, via recorte, domínios suscetíveis de serem estudados pelo
analista: os campos discursivos, onde posicionamentos diversos encontram-se em concorrência e delimitam-se em
determinada região do universo discursivo. Pode tratar-se, por exemplo, do campo devoto (MAINGUENEAU, 2005), do
campo da língua (LARA, 2008) ou do campo da surdez (RIBEIRO, 2008), entre outros.
O autor esclarece que o recorte em campos não define zonas insulares, mas estabelece uma abstração
necessária, evidenciando, em seu interior, as múltiplas redes de troca que o constitui. Nessa perspectiva, torna-se
necessário ao analista isolar, ainda, em um dado campo discursivo, subconjuntos de FDs: os espaços discursivos,
constituídos por pelo menos duas FDs ou dois posicionamentos discursivos distintos que mantêm relações constitutivas
privilegiadas – relações essas que o analista julga pertinentes para o seu propósito.

1Pesquisadora surda.
2Ouvintismo é um termo proposto por Skliar (1998), que costuma ser entendido como um conjunto de representações estereotipadas dos
ouvintes sobre os surdos a partir do qual o próprio surdo “ está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte” (SKLIAR, 1998,
p. 15).

1245
Assim, no campo discursivo da surdez, vislumbramos um espaço constituído por dois subconjuntos de FDs que
se opõem: uma FD clínico-terapêutica (de fundamentação ouvintista) e uma FD linguístico-antropológica (de fundamentação
surda), como postulado anteriormente. Compreendemos a primeira FD como resultante do discurso da “deficiência”, da
“falta”, do “desvio”, enquanto na segunda, percebemos o discurso da “diferença”, da “identidade”, da “língua e da cultura
específicas”. Veremos, então, as manifestações discursivas que dialogam no campo da surdez serem reordenadas a partir
do espaço discursivo da surdez como deficiência ou como diferença.
Partiremos desse espaço para abordar o fenômeno da interincompreensão discursiva. O nosso objetivo neste
estudo é observar a interação que se estabelece entre discursos polêmicos no campo discursivo da surdez, focalizando
como são estabelecidos os movimentos de construção e negação de simulacros, pois, para Maingueneau (2005, p. 103),
“para construir e preservar a sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o outro como tal, mas
somente com o simulacro que constrói dele”.
O subcorpus que será aqui apresentado compõe a dissertação de mestrado3 da autora e é composto por textos
escritos por surdos universitários sobre a condição da surdez.

2 – A polêmica como interincompreensão: algumas análises

De acordo com Maingueneau (2005), quando se recorta um espaço discursivo de dado campo é preciso pensar
na hierarquia da constituição desse espaço, isto é, hipotéticamente é possível prever qual(is) discurso(s) do campo (ou do
espaço) pode(m) ser citado(s) ou recusado(s) pelo discurso dito primeiro e/ou pelo segundo. Isso nos indica que a delimitação
em espaços não exclui outras referências discursivas, mas ao contrário, as evidencia. Isso quer dizer que, quando se pensa
“no nível das possibilidades semânticas”, admite-se um espaço de troca, não de identidade fechada. Nas palavras do autor:

Na medida em que, cronologicamente, é o discurso precisamente chamando “segundo” que se constitui


através do discurso primeiro, parece lógico pensar, então, que esse discurso primeiro é o Outro do
discurso segundo, [mas] o discurso primeiro não permite a constituição de discursos segundos sem ser
por eles ameaçado em seus próprios fundamentos (MAINGUENEAU, 2005, p. 41).

Veremos, portanto, que as formações discursivas de um espaço evocam-se e constituem-se reciprocamente, seja
pela refutação, seja pelo endosso.
Lara (2008, p. 113-114), referindo-se aos estudos desenvolvidos pelo autor, ressalta que não cabe “estudar as
diferentes formações discursivas que atravessam um dado discurso de forma independente e isolada, mas, sim, apreendê-las
nas relações que estabelecem umas com as outras”, ou seja, para a autora, “a identidade discursiva se constrói na interação
com o outro”. (grifo nosso).
No espaço que delimitamos para este estudo lançamos a hipótese de que o discurso primeiro é o discurso de
fundamentação ouvintista (doravante DFO), uma vez que este é “cientificamente” e historicamente determinado4. Ao discurso
chamado segundo, o discurso de fundamentação surda (doravante DFS), portanto, reserva-se o lugar da reação e da
resistência contra o discurso primeiro.
Os fragmentos abaixo podem ser considerados como representativos dessa organização hierárquica.
Observemos:

3 RIBEIRO, M. C. M. A. A escrita de si: discursos sobre o ser surdo e a surdez. Dissertação de Mestrado (Estudos Linguísticos). Belo
Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
4 Cientificamente porque durante muito tempo “as verdades” sobre a surdez estavam alocadas exclusivamente nos livros de medicina,

que diagnosticavam a ausência de um sentido e evidenciavam as consequências dessa falta, de acordo com a visão da época.
Historicamente porque desde a antiguidade a ideia de surdez está atrelada a representações e estereotipias negativas.

1246
01. É muito importante para o surdo, os surdos são igualdade ouvintes.

02 A vida pessoal minha é verdade viver difícil mas é normal como outros.

03. Na vida surda é normal como outra pessoa ouvinte, capaz fazer qualquer coisa.

04. Eu sou surda é normal como ouvinte mas nossa diferença mas só tem um problema ouvindo,
surdo e ouvinte são iguais.

05. Pra mim surdo é como comum como nós humano, acho entre ouvinte e surdo são quase
iguais. Como menos ouvir. Somos humano.

06. Sou surda normal não tem diferença como ouvinte somos iguais, porque só que não podia ouvir
mas tenho os olhos (visual). [...] Essas as pessoas não entende porque ser surdo e acha que ele
(surdo) são problema e defeito como as pessoas “deficiente”, esse eu não concordo precisamos
respeitar que o surdo somos iguais só é diferença da audição, não o corpo defeito e capaz estuda
5
e trabalhar normal como ouvinte.

Nos fragmentos acima a figura “normal” parece estar sendo utilizada em sua faceta de comparação, pois visa
evidenciar o caráter “comum”, de mesmo “peso e medida”, de “igualdade” dos sujeitos surdos perante os ouvintes. Os
locutores buscam reafirmar essa valoração igualitária. Observemos que a conjunção comparativa como ou o adjetivo igual
sempre acompanham tal figura, no intuito de reforçar esse efeito de sentido de equivalência (vide grifos nossos).
Examinando, mais de perto, a ocorrência do lexema “normal” nos trechos de (01) a (06), acreditamos que os
sujeitos produtores possivelmente anteciparam a representação que ouvintes, em geral, fazem dos surdos – representação
que costuma ser estereotipada e que se baseia no DFO, uma vez que esse discurso é o mais difundido socialmente.
E se nos trechos acima os sujeitos se antecipam como normais, é justo perguntar se alguém os acusou do
contrário. A partir desse questionamento, chegamos a nossa segunda e complementar hipótese interpretativa: acreditamos
que os excertos acima configuram uma espécie de contrra-discurso. Se nos lembrarmos que o espaço discursivo deve ser
considerado como uma rede de interação semântica e que o DFO se baseia, sobretudo, em preceitos médicos sobre a
surdez que tomam o não-ouvir como uma disfunção, veremos que os fragmentos acima contra-argumentam o discurso de
fundamentação ouvintista6, uma vez que, como afirma Maingueneau (2005, p. 41), “na medida em que, cronologicamente, é
o discurso precisamente chamando ‘segundo’ que se constitui através do discurso ‘primeiro’”, parece lógico supor, então,
que esse discurso primeiro (discurso de fundamentação ouvintista) é o outro do discurso segundo (discurso de
fundamentação surda) .
Vemos, assim, no DFS, a construção e a negação de simulacros do discurso concorrente, isto é, do DFO, uma
vez que a compreensão da surdez como uma patologia ou uma disfunção, no DFO, é entendida como tributo ofensivo de
anormalidade, no DFS. Presenciamos aqui a construção e negação da categoria surdez, segundo o DFO, aos olhos do
DFS, de forma a se construir um “eu” a partir da negação de um “não-eu”.

5 Os trechos foram transcritos ipsis litteis.


6 Seguem alguns exemplos de manifestações discursivas (médicas) do DFO. Todos os grifos são nossos:
I - “Protetizar os deficientes auditivos [...] para que os portadores dessa patologia sejam efetivamente beneficiados com a última tábua de
salvação que a equipe tem a oferecer” (CARVALHO, 2003).
II - “...o sentido da audição, sem o qual não é possível qualquer contato verdadeiramente humano. Simpático ou antipático, [o surdo] é
uma pessoa que sofre por tão humilhante patologia” (CARVALHO, 2002).
III - “O surdo-mudo congênito tem a face pálida, a physionomia morta, o olhar fixo, a caixa toráxica deprimente...” (LEITE, 1881, p. 04).

1247
Mas ainda assim seria justo pensar: ao afirmar a igualdade, não se estaria negando a diferença que,
teoricamente, é um dos lemas do DFS? Mas a diferença que é negada pelos locutores é a diferença como anormalidade,
haja vista a epígrafe de Perlin (2007) que abre este trabalho. “A normalidade surda e a normalidade ouvinte são
equivalentes, não há diferenças que nos coloquem na linha da insuficiência”. É isso que os fragmentos de (01) a (06)
buscam dizer. E se confrontarmos essa posição enunciativa com os desdobramentos históricos vividos pela comunidade
surda, entenderemos a importância de se mostrar normal, no sentido humano da equivalência. Refutam-se, portanto, a
partir da tradução feita pelo DFS, os traços que o DFO atribui aos surdos, nesse caso, o traço da deficiência, que é
traduzido como anormalidade.
Os sujeitos negam, assim, as postulações do seu outro no espaço discursivo. Antecipam-se como “iguais” para
negar o caráter “anormal” que, pelo menos hipoteticamente, costuma ser evocado por esse outro. O outro, aqui, claro, é o
discurso de fundamentação ouvintista, que aloca o ser surdo em lugares desprivilegiados. Nega-se, portanto, o simulacro
que o discurso concorrente (DFO) possivelmente constrói dos surdos.
Na relação que se estabelece entre discurso tradutor e discurso traduzido, Maingueneau (2005) propõe que se
distinga discurso-agente de discurso-paciente, reservando ao primeiro termo a posição de tradutor e, ao segundo, a de
traduzido. Vale lembrar que é sempre a partir do discurso chamado primeiro (na presente estudo, DFO) que se exerce a
atividade tradutória, uma vez que foi a partir dele que o discurso segundo (DFS) se constituiu.
É preciso não perder de vista, no entanto, que as afirmações que o DFS (discurso-agente) combate não são as
afirmações empíricas produzidas pelo DFO (discurso-paciente). Combate-se uma tradução, um simulacro (entendido de
maneira simplificada como uma espécie de projeção ou representação) do discurso contrário, “pois para construir e
preservar a sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o outro como tal, mas somente com o
simulacro que constrói dele, nos lembra Maingueneau (2005, p. 103).
Produzir enunciados competentes na sua FD e não compreender o outro parecem ser, portanto, facetas do
mesmo fenômeno, ou seja, para se produzirem enunciados condizentes com as regras da sua FD é preciso entender o
outro a partir da sua própria competência discursiva. Segundo Lara (2008), a tradução e a construção de simulacros são
mecanismos necessários, ligados à própria constituição das FDs. Não se trata, assim, de um arranjo isolado, mas de um
dispositivo que faz parte da gênese dos discursos. Sobre esse processo de tradução do outro, esclarece a autora, inspirada
em Maingueneau:
O que ocorre, então, é que cada discurso interpreta os enunciados de seu Outro – ou do simulacro
que dele constrói – através da sua própria “grelha semântica”. Tenderá, pois, a “traduzir” esses
enunciados nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema, mostrando-se, dessa forma, a
“tradução” como um mecanismo necessário e regular, ligado à própria constituição das FDs (LARA,
2008, p. 115).

Em curso ministrado no XVIII Instituto de Lingüística da ABRALIN, realizado pela Faculdade de Letras/UFMG,
em março de 2007, o professor Sírio Possenti assim apresentou o processo de tradução do outro e da construção de
simulacros entre discursos que dividem o mesmo espaço discursivo: se o discurso S1 fala A e o discurso S2 fala B, por
exemplo, S1 tenderá a ler B como um não-A explícito, isto é, como a negação de seu próprio princípio, donde se pode
concluir que cada FD concebe o outro a partir de si mesmo, postulando que “se o outro não está por mim, está contra mim”
e deverá, pois, ser combatido. Ilustrando com a nossa própria pesquisa, podemos supor que quando o DFO classifica o
surdo como “portador de necessidade especial”, por exemplo, adeptos do DFS traduzirão essa informação como uma
acusação de “anormalidade”, de “aberração”, um quesito de “não-humanidade” que precisa ser combatido.

1248
Nos trechos a seguir, de (07) a (09), essa relação pode ser percebida pelo caráter conflituoso dos enunciados,
que parecem querer negar algum tipo de afirmação (anterior) ou conhecimento partilhado. Dessa vez, a negação se tornará
explícita através do uso do operador de negação (um índice de polifonia, como explica Ducrot, 1987). Vejamos:

(07) Ser surdo é a pessoa não ouve porém sente feliz. Ser surdo não é subhumano como exemplo os
animais. A vida dos surdezes essa faz parte classe superior por que existe a inteligência e a
sabedoria [...].
O que acontece minha prosperidade sou estudante no ensino superior até sou orador isso não é a
pessoa falta QI ou inferioridade.

(08) Para mim o significado de ser surdo é aquele que não se preocupa com o preconceito,
ficar imitando aos ouvintes, ir sempre para a clínica, etc. Ser surdo é orgulhosamente
respeitado e um cidadão como todos.

(09) Minha opinião, significado de ser Surdo a diferença Surdo. Surdo é não tem direito
7
língua , ausência de sons, clínica, obrigação método oral, incapacidade para articular a
palavra. Surdo é significado viver mundo organizado, mas transformado, de um diferente,
não é deficiência, sim, diferença.

Defendemos, nas ocorrências acima, como vínhamos procedendo, que o discurso agente (DFS) determina, ao
mesmo tempo em que combate, o simulacro de seu outro (DFO) segundo a sua própria “grelha semântica”, para usar aqui
um termo empregado por Lara (2008). A autora ainda esclarece que a compreensão do discurso do outro é feita a partir das
“categorias do registro negativo de seu próprio sistema”, como ilustrou o exemplo apresentado por Possenti (2007).
Esse processo de tradução do outro caracteriza com propriedade o fenômeno da interincompreensão, proposto
por Maingueneau e retomado por Lara (2008). Tal fenômeno pode ser compreendido como “a própria condição de
possibilidade das diversas posições enunciativas”, como nos diz Maingueneau (2005, p. 103), uma vez que enunciar em
conformidade com as regras de sua própria FD e de não ‘compreender’ o discurso de outrem são “duas facetas do mesmo
fenômeno”, estão interligadas e são interdependentes. Como temos percebido, a polêmica discursiva que apresentamos
aqui (DFS versus DFO) se baseia nesse princípio.
Nesse processo de “tradução”, notemos que o ser surdo, nos trechos acima – de (09) a (11) – pode ser definido
por seu avesso, ou seja, por aquilo que ele não é, ou melhor, pela negação daquilo que o ser surdo parece ser (pelo menos
por meio do simulacro produzido pelo DFS) no DFO: subhumano, imitando os ouvintes, ir sempre para a clínica, falta QI ou
inferioridade, obrigação método oral, etc.
Mas ao expor o seu “não-ser”, negando traços do DFO, os locutores acabam por definir o seu “ser”,
apresentando traços que compõem o seu próprio discurso: humano, original, que não se “trata”, inteligente e igual, usuário
de sinais, etc.
Ora, semanticamente, quando digo o que não sou, atesto o que sou. Tal estratégia discursiva mostra que os
conteúdos implícitos à negação não constituem, em princípio, o verdadeiro objeto do dizer, e é essa característica que dota
os enunciados de eficácia argumentativa. O “ser surdo” não está aqui exposto de maneira direta, mas pode ser recuperado
a partir de uma manobra semântica relativamente simples. Compreendemos, assim, que a surdez, nos discursos acima, é
definida, sobretudo, pela conduta do sujeito diante dela, isto é, o ser surdo aqui é definido como um cidadão como todos,
que estabelece a sua vida a partir da sua diferença, que não procura viver como se fosse ouvinte e tampouco se importa

7 Esse enunciado pode induzir a erros interpretativos, se não for compreendido a partir das características formais da escrita surda. O
texto na íntegra, assim como a compreensão de sua semântica global e algum conhecimento sobre a Libras, permitem-nos entender que
o locutor procurou realizar uma dupla negação no enunciado que abre o texto, no caso, “ser surdo [não] é não ter direito...” .

1249
com o preconceito. A imagem que se constrói a partir desses fragmentos é a imagem de sujeitos independentes e libertos
de amarras sociais que possam ditar comportamentos.
Enquanto (07) e (09) parecem querer combater o simulacro do discurso sobre o ser surdo corrente no DFO (e,
de maneira geral, na sociedade), investindo contra uma representação social que costuma se alicerçar em saberes
médicos, como em não é subhumano (07) ou não é deficiência (09), o trecho (08), ao contrário, busca “golpear” um discurso
sobre o surdo corrente no próprio grupo. Nesse trecho, o locutor combate uma forma de ser surdo que estaria em
consonância com o DFO, que seria aquele que se preocupa com o preconceito, ficar imitando aos ouvintes, ir sempre para
a clínica, etc. Aqui, o surdo projeta um outro para si, não apenas para o seu discurso.
Notemos, portanto, que os trechos acima se ancoram na negação de proposições que parecem ser, de alguma
forma, previamente conhecidas, senão pelos interlocutores, pelo menos pelo locutor.
Ducrot (1987, p. 203), como afirmamos acima, apresenta a negação a partir da polifonia, que, por sua vez,
compõe a noção de heterogeneidade discursiva, nesse caso, a de heterogeneidade mostrada (marcada).
De acordo com esse autor, é preciso distinguir, em um enunciado negativo, duas proposições, ou dois pontos de
vistas opostos (atribuídos, portanto, a enunciadores8 distintos): o primeiro, positivo, e um outro, que o nega. Daí o caráter
polifônico do fenômeno.
Numa primeira formulação, Ducrot (op. cit.) divide a negação em descritiva, que representa um estado de
coisas, “sem que o autor apresente sua fala como se opondo a um discurso contrário”, e polêmica, “destinada a opor-se a
uma opinião inversa”, para ficarmos apenas na parte da teoria que nos interessa neste momento. Nas ocorrências de (07) a
(09) notamos, portanto, que a negação pode ser considerada polêmica, uma vez que o enunciador refuta enunciados
(virtuais) contrários, como sabemos, advindos do DFO.
Em (08), apesar de o operador negativo incidir diretamente apenas sobre o primeiro termo da enumeração (é
aquele que não se preocupa com o preconceito, ficar imitando os ouvintes, ir sempre para a clínica, etc), pode-se perceber
que o efeito de sentido negativo se estende também sobre os demais termos da enumeração. Tais termos, isoladamente,
poderiam ser considerados enunciados afirmativos; inseridos no discurso, no entanto, eles se tornam discursivamente
negativos “[não é] ficar imitando os ouvintes”, “[não é] ir sempre para a clínica”.
O mesmo fenômeno pode ser percebido em (09): após apresentar o que a surdez no DFS não é – [não é]
ausência de sons, [não é] ir para a clínica, [não é] obrigação método oral – apresenta-se o que ela é: surdo é significado
viver mundo organizado, mas transformado, de um diferente, não é deficiência, sim, diferença. A figura da “diferença”
aparece aqui como oposta a “deficiência”, sendo considerada como um argumento positivo para a compreensão da surdez.

3 – Considerações Finais

Neste estudo, vimos que a identidade de um discurso pode ser definida a partir da negação – e da construção e
desconstrução de simulacros – do seu outro (discursivo).
Pudemos averiguar que entre as FDs em questão parece haver uma fronteira porosa que possibilita trocas, pois é
sobretudo a partir da negação do DFO que o DFS se constitui.
Vimos, no DFS, a ocorrência de uma ideologia surda, que se fundamenta tanto em princípios libertários do direito
de escolha quanto em questões filosóficas que questionam o conceito de norma. Com isso, combate-se o DFO e a ideologia
hegemônica na sociedade, que produzem dicotominas maniqueístas.

8Lembramos que, para Ducrot (1987, p. 192-193), o locutor é o responsável pelo enunciado, enquanto os enunciadores são perspectivas,
pontos de vista com os quais o locutor se identifica ou não.

1250
Por fim, podemos afirmar que o discurso de fundamentação surda (DFS) constituiu-se por meio da antecipação –
e da negação – daquilo que poderia ser o seu simulacro, aos olhos do outro, ou seja, do discurso de fundamentação
ouvintista (DFO). O DFS, assim, define-se justamente a partir do que ele não é, ou melhor, a partir da negação daquilo que
ele parece ser aos olhos do discurso concorrente, de forma a construir um “eu” a partir da negação de um “não-eu”. Trata-
se de um discurso que constrói e nega simulacros de si mesmo como forma de preservar a sua identidade discursiva no
espaço em questão.

4 – REFERÊNCIAS

CARVALHO, I. Protetização auditiva. In: Jornal do Conselho Federal de Medicina (dez/2002 – jan/2003). Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/ jornal/jornais2002/dezembro/pag_13.htm. Acesso em: 04 set. 2008.

DUCROT, O. O Dizer e o Dito. Campinas, SP: Editora Pontes, 1987.

LARA, G. M. P. Aplicando alguns conceitos de Gênese dos Discursos. In: POSSENTI, S.; BARONAS, R. L. (orgs.).
Contribuições de Dominique Maingueneau para a Análise do Discurso do Brasil. São Carlos: Pedro & João Editores, 2008.
p. 110-132.

LEITE, T. Compêndio para ensino dos surdos-mudos. 3. ed. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1881.
MAINGUENEAU, D. Gênese dos Discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Criar Edições, 2005.

PERLIN, G. T. T. Prefácio. In: QUADROS, R. M; PERLIN, G. T. T. (orgs.). Estudos Surdos II. Petrópolis: Arara Azul, 2007.
Disponível em: http://www.editora-arara-azul.com.br/estudos2.pdf. Acesso em: jun. 2008.

POSSENTI, S. Elementos de Análise do Discurso (mini-curso). XVIII Instituto de Lingüística da ABRALIN. Belo Horizonte:
UFMG, 2007.

RIBEIRO, M. C. M. A. A escrita de si: discursos sobre o ser surdo e a surdez. Dissertação de Mestrado (Estudos
Linguísticos). Belo Horizonte: UFMG, 2008.

Currículo do autor:

Maria Clara Maciel é mestre em Estudos Linguísticos pela UFMG, doutoranda no mesmo programa e instituição e
professora da Universidade Estadual de Montes Claros. Bolsista Capes.

1251
Programas de teatro como protocolos de leitura

ROCHA, Roberto Ferreira da


darocha56@letras.ufrj.br
(UFRJ)

Para mim sempre foram parte integrante do espetáculo. É como um presente que os produtores oferecem, quando
distribuído gratuitamente, ou que dou a mim mesmo se desembolso um pouco mais ao assistir a uma peça. A sua falta gera
sempre forte frustração. No folheá-lo, antes que as luzes se apaguem e o pano suba ou se abra (coisa rara hoje em dia),
está propriamente o início da função. Procuro ali alguma informação sobre a peça, o nome dos atores e dos personagens
que representam, o do diretor, do tradutor (muitas vezes esquecido), cenógrafos, figurinistas, iluminadores, produtores e,
com o que conheço deles, formo em minha mente uma imagem do que está por vir. Nele, os produtores sugerem o que os
espectadores devem esperar do espetáculo, e, mesmo, como reagir a ele, não só através de textos críticos, citações, fases
tomadas do diálogo da peça, e outros textos verbais, mas também com as ilustrações e fotos que formam a identidade
visual do livrinho ou folder que tenho nas mãos. Lembro-me que, ao ler no programa de uma rara montagem da tragédia
Antonio e Cleópatra, de William Shakespeare, que a peça era em muitos momentos francamente cômica, pensei que boa
coisa não vinha por aí; ressaltar a comicidade que realmente existe nela me pareceu uma forma fácil de agradar o público
que, acredita-se, no Brasil, vai ao teatro para rir (nosso primeiro dramaturgo de gênio foi o comediógrafo Martins Pena; meu
avô, como muitos de sua geração, ia semanalmente ao teatro Carlos Gomes, na praça Tiradentes, para deliciar-se com os
cacos de Oscarito e Dercy Gonçalves).
O teatro, como todas as artes do espetáculo, só existe no presente. Terminada a apresentação ou a temporada,
tudo se desfaz, desaparece no ar. Restam apenas os traços que o ato teatral gerou em sua existência (a expressão
“temporada relâmpago” traduz muito bem esta característica do teatro de ser um clarão forte, porém curto). Do que se viu,
daquilo que entusiasmou, espantou, ou entediou restam artigos de jornais, resenhas, fotos de cena, croquis de cenário,
talvez uma ou outra peça de figurino, diários e memórias de atores e diretores, entrevistas, reportagens... Mas a coisa viva
morre. Um novo espetáculo irá renovar o texto dramático ao pô-lo em cena, transformando-o numa nova peça.
É essa vontade de ter um souvenir, de guardar zelosamente a memória do que não mais existirá depois que se
deixar o teatro, que me faz levar com cuidado o programa para casa; onde o ponho numa gaveta especial; não sem antes
grampear nele o canhoto do ingresso (hábito que adquiri quando comprei em um sebo do centro da cidade alguns
programas antigos nos quais o dono anterior fizera a mesma coisa, permitindo assim determinar, com facilidade e exatidão,
quando o espetáculo foi visto). Quando decidi pesquisar espetáculos passados, os programas se mostraram ferramentas
indispensáveis. Porém muito pouco foi escrito sobre eles. Decidi assim me debruçar um pouco sobre este tipo de texto que
sempre fez parte de todos os espetáculos teatrais a que assisti.
No verbete “Programa” (“Programme”), do seu Dicionário do Teatro (Dicionnaire du Théâtre), Patrice Pavis informa
que “desde o século XVI, distribuía-se volantes (...) para anunciar a representação”. A necessidade de anunciar as
apresentações foi e é parte integrante da instituição teatral, pois o teatro só pode se realizar através do encontro em
determinado tempo e espaço dos atores com o público. Os programas são produto das metamorfoses sofridas por estes
primeiros materiais impressos a fazer parte do sistema de produção teatral. Seu aparecimento data, na Europa, pelo menos,
do final do século XIX (Pavis 1996, p. 272). Sua primeira função foi a de anunciar o espetáculo. Depois, ele passa a ser um
objeto de colecionador. A publicação de peças publicitárias nos programas tornou-se fonte de renda extra para os teatros

1252
que abrigavam as grandes companhias do teatro burguês, capitaneadas pelos atores-empresários (Hartnoll e Found 1996,
385). Já no século XX, os programas de teatro começam a ser mais elaborados, contendo trechos de textos críticos e
literários que servem de guia para a leitura da mise en scène (Pavid, idem).
Nessa comunicação vou tratar apenas de programas de encenações teatrais de textos dramáticos. Existem,
porém, vários outros tipos de programas de espetáculos: para concertos e óperas, que informam principalmente sobre as
obras musicais e seus executantes, como também, no caso das últimas, sobre os encenadores e sua concepção geral do
espetáculo. Há também catálogos de exposições, que contêm muitos elementos comuns aos programas de espetáculos,
além de outros mais específicos como ensaios críticos que definem para o espectador as características das obras
expostas, a cronologia da vida do artista, os dados de sua carreira e os prêmios que ganhou. Sendo um discurso complexo
e heterogêneo, já que abarca várias espécies de textos (biográficos, críticos, publicitários, etc.), meu recorte enfocará
aqueles textos dos programas teatrais nos quais se expõe a voz do autor ou autores do espetáculo.
Hoje a questão da definição do autor do texto teatral tornou-se sumamente complexa. Vários críticos dramáticos e
teatrais (Dort 1977; Pavis, 1992; Roubine 1982) datam o começo da modernidade teatral pelo aparecimento da figura do
encenador e pelo conceito, a ele ligado, o de mise en scène, traduzido freqüentemente para o português por encenação.
No século dezenove quando o teatro torna-se a grande indústria do entretenimento, o centro de atração era
ocupado pela figura carismática do ator empresário. Nesse momento, a autoria do espetáculo era dividida pela a estrela e o
dramaturgo. Tal tensão se acirrava quando da encenação de textos consagrados que já faziam parte do cânone literário
reconhecido. Tudo muda quando a autoria do espetáculo teatral passa, nas décadas finais do século dezenove, para o
encenador. Nesse momento o que se procura enfatizar é a leitura crítica e criativa do texto dramático proposta pelo diretor.
Todos os elementos da linguagem teatral são manipulados de forma a expressar o mais precisamente possível, em uma
mise en scène única e irrepetível, a concepção que o diretor tem do texto. A radicalização desse processo culmina com o
chamado teatro pós-dramático, no qual o texto dramático é re-escrito e apropriado, tendo em vista sua adaptação ao
conceito criado pelo diretor. O texto torna-se, na pós-modernidade, pretexto para a criação livre e autônoma do encenador.
Passarei agora a examinar alguns textos encontrados em programas de espetáculos teatrais vistos por mim
recentemente. Como disse antes, meu objetivo será examinar os textos em que os autores expõem suas intenções e a
forma como o espectador deve dar sentido ao que vê em cena. Ao indicar ao espectador uma posição subjetiva a partir da
qual ele constrói sua leitura do espetáculo esses textos se definem como protocolos de leitura que os autores propõem aos
espectadores.
A fim de construir minha leitura desses programas seguirei, adaptando-o ao meu propósito, um texto de
Dominique Maingueneau em que ele tematiza as instâncias que delineiam a subjetividade enunciativa. Trata-se da parte
inicial do capitulo intitulado “Subjetivação, espaço canônico e espaço associado”, do livro Discurso Literário, de 2005, cuja
tradução brasileira foi publicada no ano seguinte. Na página 136, Maingueneau afirma que

não se pode justapor sujeito biográfico e sujeito enunciador como duas entidades sem comunicação,
ligadas por alguma harmonia preestabelecida. Cumpre distinguir não duas, mas três instâncias, que
propomos denominar a pessoa, o escritor e o inscriptor (136).

A primeira destas instâncias – a pessoa – segundo o autor, “refere-se ao indivíduo dotado de um estado civil, de uma vida
privada” (136). A segunda, o escritor, é “o ator que define uma trajetória na instituição literária” (idem). Finalmente, o
inscriptor é “tanto enunciador de um texto específico como (...) o ministro da instituição literária, que confere sentido aos
contratos implicados pelas cenas genéricas e que delas se faz o garante” (ibidem). Estas instâncias estão paradoxalmente

1253
imbricadas e separadas. Como explica o autor, elas se estruturam de tal forma que uma não pode existir sem a outra. Mas,
como acrescenta Maingueneau, “não se pode isolar ou reduzir nenhuma dessas instâncias às outras”. São as três
igualmente importantes para a conceituação da subjetividade enunciativa, pois,

como viver se não se vive da maneira que convém para ser um dado escritor que vai ser o inscriptor de
uma dada obra? Como desenvolver estratégias no espaço literário se não se vive de modo a ser o
inscriptor de uma obra? Como ser o inscriptor de uma obra se não se enuncia através de um certo
posicionamento no campo literário e um certo modo de presença/ausência na sociedade? (137).

A partir dos textos apresentados nos programas de teatro selecionados para análise nesta comunicação, procurarei agora
estabelecer, ainda que tentativamente, algumas das estratégias argumentativas utilizadas pelos autores para persuadir os
espectadores a assumirem determinada posição de sujeitos leitores a fim de incorporarem os protocolos por eles
concebidos. Tal se fará através da análise dos enunciados que expressam as posturas ideológico-estéticas dos autores,
que por sua vez determinam sua posição no campo literário, bem como suas escolhas formais.
Os programas selecionados são de dois espetáculos que ocupam posições fortes dentro do campo teatral
brasileiro. De um lado, está uma produção cujos autores militam em prol de uma dramaturgia de cunho nacionalista; de
outro, uma encenação que se alinha a uma concepção autônoma do teatro, e cuja principal postura estética está na
pesquisa dos limites da linguagem cênica. No primeiro caso, trata-se de uma comédia dramática que aborda os conflitos de
uma família da baixa classe média urbana – Açaí e Dedos, de Carla Faour. O segundo é a montagem de um dos textos
mais representativos do teatro contemporâneo, Calígula, de Albert Camus. A encenação de Gabriel Villela é marcada pela
experimentação, e pela procura de um estilo cênico extremamente pessoal, no entanto alinhado ao sistema de produção
estrelar. O ator que encarna o Calígula de Albert Camus – Thiago Lacerda – é uma figura carismática, que, graças a seus
trabalhos na televisão, adquiriu grande popularidade. Desde que o papel do imperador romano foi criado pela primeira vez
em 1945 por Gerard Philipe, na França, ele tem catapultado e/ou consolidado as carreiras de conhecidos atores.
Embora convencido da importância de estudar o espaço cênico e a estruturação das companhias para
entendimento do evento cênico em si e de sua posição dentro do campo teatral brasileiro atual, devido aos limites impostos
a uma comunicação, farei aqui apenas umas poucas referências ao aspecto institucional dos dois espetáculos. O primeiro,
Açaí e Dedos, foi apresentado em um teatro instalado dentro de um centro cultural pertencente a uma companhia privada
de telefonia. Quanto ao segundo, Calígula, apresentado no teatro Sesc-Ginástico, sala de espetáculos também pertencente
a uma instituição privada ligada ao comércio e interessada na difusão cultural, penso ser importante ter em mente o fato de
que o espetáculo atraiu grande público pela importância canônica do autor, pelo carisma do ator-protagonista, e pela
posição de vanguarda do diretor. Nos dois locais de apresentação, o preço dos ingressos era bastante acessível.
Os dois programas apresentam a forma de folders. Os dois lados da folha, em ambos os casos, são preenchidos
por fotos, textos e os logotipos dos realizadores, patrocinadores, apoiadores e promotores dos espetáculos. Não há nos
dois programas qualquer peça publicitária. A frente do folder, no primeiro caso, de Açaí e Dedos, apresenta uma foto do
elenco da peça (do qual faz parte a autora). No segundo, uma imagem de Tiago Lacerda como Calígula, a qual recebeu um
tratamento gráfico especial. No primeiro caso, sobressai o grupo; no segundo, o herói protagonista e o ator que o encarna
são privilegiados..
O interior do primeiro programa contém uma série de textos. Na parte superior da página, encontram-se o texto da
companhia patrocinadora e do diretor. Na parte inferior, o texto da diretora do Centro Cultural que apresentou o espetáculo,
o elenco e os agradecimentos. No centro, em destaque, um texto da autora, Carla Faour. É ele que me interessa aqui.
Reproduzo-o na íntegra:

1254
É extremamente importante o apoio à dramaturgia nacional. Precisamos produzir textos que falem da
nossa realidade. Precisamos produzir a nossa modernidade. Nosso jeito de contar histórias. Como é bom
ir ao teatro e assistir enredos que se passam no Rio, São Paulo, Paraíba, Curitiba, Amapá. Reconhecer
os nomes dos personagens: Laura, Otávio, Regina, Maria, Pedro. Saber o gosto de uma fruta que é
citada no texto. O sabor de um prato. A temperatura de um dia quente. Reconhecer nos personagens a
cara da gente. É a nossa língua em cena. Vamos produzir textos que tenham nosso cheiro, gosto e cor.
Vamos produzir dramaturgia brasileira.

O texto se estrutura como um manifesto, uma proclamação. É uma sucessão de palavras de ordem que conclamam o leitor
à tomada de posição frente a um projeto nacionalista de teatro. Um teatro de cunho realista que “reproduz” uma realidade
com a qual o espectador se identifica porque a reconhece sem problemas como sua. É curioso que a autora fale que
“precisamos produzir a nossa modernidade”, referindo-se, implicitamente, ao primeiro estilo propriamente moderno do
teatro, o naturalista, que se caracterizava pelo apagamento das fronteiras entre o palco e a realidade pela reprodução fiel
desta última. O uso da primeira pessoa do plural enfatiza ainda o caráter comunitário deste projeto, no qual estão
envolvidos tanto artistas quanto público. O prazer advindo desta estética está no reconhecimento e na afirmação de uma
identidade nacional, facilmente reconhecível e assimilável. Embora o texto não nomeie há um “eles” que se opõe ao “nós”
aqui enfatizado. Carla Faour recusa, ou opõe-se, esse outro projeto teatral que desestabiliza a grande narrativa nacional, ao
procurar uma estética não-regional, e alinha-se ao caráter cosmopolita dos projetos experimentais e de vanguarda.
Em Calígula, a questão é bastante diferente. Quando o leitor começa a abrir o folder, logo se depara com um texto
que se inicia com o seguinte enunciado: “É possível dizer que Calígula, de Albert Camus, para Gabriel Villela é a sua
terceira peça de uma trilogia sobre o niilismo”. A ambigüidade salta aos olhos. Seu índice é a indeterminação do termo
anafórico, “sua”. O pronome possessivo pode referir-se aqui ao autor, Camus, ou ao diretor Villela. Assim, pergunta-se o
leitor, a “trilogia do niilismo” é de Camus ou de Villela? Mais importante, me parece, é que o imbróglio aponta para a
questão da autoria da obra teatral que não se cessa de obcecar o teatro contemporâneo. A peça que se dá a ver é Calígula,
de Albert Camus, dirigida por Gabriel Villela, ou Calígula, de Albert Camus, na versão de Gabriel Villela? Camus (ele próprio
homem de teatro) dirá em um texto, também presente no programa, que “Calígula é, portanto, portanto, uma peça de ator e
diretor, mais que de autor”.
Para terminar, gostaria de citar um trecho de Patrice Pavis (1996) sobre os programas teatrais contemporâneos.
Ele se refere, naturalmente, à situação européia, especial dos teatros nacionais e grupos que perseguem uma orientação
experimental com relação à linguagem teatral. Outro aspecto da realidade teatral a que Pavis se refere, é a de que se trata
de companhias subvencionadas pelo estado, ou pela iniciativa privada, o que lhes dá uma margem de autonomia maior com
relação às pressões do mercado de entretenimento que o teatro comercial não possui. Mesmo assim, suas observações
podem ser úteis para se falar dos programas teatrais feitos no Brasil:

Os programas dos teatros nacionais, ou de grupos experimentais (...) contêm reflexões do diretor ou do
dramaturgista, apresentam longos trechos de textos críticos ou literários que devem esclarecer as opções
da mise en scène. Todo um discurso sobre a encenação é, dessa forma, fornecido à margem do
espetáculo, com o texto da peça, as notas de encenação e uma verdadeira paráfrase do trabalho cênico.
Apesar do interesse desse aparato crítico, é grande o perigo de programar demais a visão e de dizer
verbalmente o que o espectador deveria sentir a partir somente da encenação, pois falsifica o jogo e
compromete o prazer. (P. 272)

Esse texto chama a atenção para os perigos que o programa teatral, enquanto um protocolo de leitura pode representar
para os espectadores de uma peça teatral. O excesso de dirigismo pode comprometer o prazer da descoberta,
influenciando sobremaneira a construção de sentido. Quer dizer, o programa se interporia na relação direta do espectador e
o espetáculo que ele está prestes a assistir. No entanto, pode-se perguntar se uma leitura pode ser feita sem que o

1255
espectador possua em si um aparato conceitual que lhe permita construir essa mesma leitura. O programa teria a função de
explicitar as relações intertextuais e interdiscursivas que fazem parte de qualquer criação artística, oferecendo ao
espectador ferramentas para melhor fruir o espetáculo. Em segundo lugar, há sempre a possibilidade de confronto entre
aquilo que é dito no programa e o que é realmente visto no palco.
Para o pesquisador do espetáculo, no entanto, esse “dirigismo”, constituiu-se em verdadeira riqueza. Nos
paradoxos, nas ambigüidades que se deixam ler nas entrelinhas dos enunciados, nas escolhas dos textos citados no
programa, na explicitação das filiações ideológicas e estéticas é possível determinar as características do autor (seja ele
individual ou coletivo) do espetáculo, de acordo com as instâncias da subjetividade enunciativa descritas por Maingueneau
e citadas no início desse ensaio. Ou seja, o programa de teatro pode ser uma importante ferramenta para que o
pesquisador defina a subjetividade enunciadora do texto teatral. O programa revelará a pessoa, pela explicitação suas
escolhas ético-políticas enquanto membro de uma comunidade; o autor pela posição que ele diz ocupar dentro do campo
teatral; o inscriptor pela escolha dos procedimentos cênicos que configuram o estilo e o genéro do texto que ele inscreve em
cena.
Este breve ensaio sobre programas de teatro teve a intenção de descrever esse tipo de material impresso,
ressaltando suas principais características. Porém o mais importante é enfatizar seu principal objetivo, que é, a meu ver, o
de guiar a leitura de um evento cênico, através da explicitação dos efeitos de sentido que os produtores pretendem provocar
no público.

Referências

Açaí e Dedos. Programa. Oi Futuro, Rio de Janeiro, 2010.

Calígula. Programa. Teatro Sesc-Ginástico, Rio de Janeiro, 2010.

DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Tradução de Fernando Peixoto. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977.

HARTNOLL, Phillys & Peter Found. The Concise Oxford Companion to the Theatre. Oxford, Oxford University Press, 1996.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. São Paulo, Contexto, 2006.

PAVIS, Patrice. Theatre at the Crossroads of Culture. Translated by Loren Kruger. New York and London: Routledge, 1992.

PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre. Paris: Dunod, 1996.

ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral: 1880-1980. Tradução e apresentação de Yan Michalski. Rio,
Zahar editores, 1982.

Roberto Ferreira da ROCHA é professor adjunto de literaturas de língua inglesa do Departamento de Letras Anglo-
Germânicas e membro efetivo do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Linguística Aplicada, da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É mestre pela UFRJ, 1992, e doutor pela UFSC, 2003. E-mail:
<darocha56@letras.ufrj.br>.

1256
Práticas de professores aposentados

RODRIGUES, Isabel Cristina França dos Santos


(PPGED-UFPA)

0. Introdução

A Formação de professores tem abordado temáticas que discutem ora a formação inicial, ora a formação
continuada. Entretanto, ainda são poucos os trabalhos que versam a respeito da situação do pós-serviço. Isso se deve ao
fato de que a aposentadoria acaba servindo como um marco que encerra, do ponto de vista da profissão docente, a carreira
profissional.

A conquista da aposentadoria é encarada como uma realização profissional, uma etapa para compensar o tempo
em que se esteve distante da família, do lazer, de cuidados com a saúde, de recuperar sonhos de formação profissionais
deixados para trás, por exemplo. Essa postura encontra reflexos nos mais diferentes níveis da profissão.

Entretanto, em muitos casos, percebe-se que em função das necessidades financeiras impostas pelas
responsabilidades com a família, há aposentados das mais diferentes profissões que acabam por voltar ao mercado de
trabalho. Em poucos casos, essas pessoas passam retomam suas atividades sem remuneração.

A partir dos contatos que tivemos com aposentados na área rural, especialmente, professores percebeu-se que a
ideia a respeito da aposentadoria se aproxima bastante daquela cultivada na área urbana. Ela os autoriza de alguma forma,
a mudar de comunidade e ter melhores condições para acompanhar o crescimento dos netos considerando que são
recorrentes os relatos de que seus filhos deixaram as comunidades, ainda na adolescência em busca da continuidade dos
estudos e inserção no mercado de trabalho.

Por outro lado, nos contextos selecionados para esta pesquisa, há casos de professores que se aposentam, e
mesmo antes do processo estar em definitivo já procuram se envolver, mais ainda, em atividades que rememoram suas
práticas pedagógicas. Tais atividades são desenvolvidas, em especial, durante as aulas de catequese. Desse modo, eles
acabam por auxiliar o trabalho dos professores que ainda estão na ativa no que se refere ao processo de ensino-
aprendizagem dos alunos, sobretudo nos aspectos da leitura e da escrita.

Foi essa atitude que me despertou o interesse de investigar esse grpo de professores aposentados residentes em
02 vilas -Moiraba e Carmo do Tocantins-, distritos de Cametá, na Amazônia Paraense que me inquietou. É na interação
com esses aposentados que os professores em início de carreira, ou os mais experientes encontram apoio para realizar
suas atividades, principalmente as que se referem ao ensino da Língua materna. Saber como e por que tal grupo opta por
continuar nas vilas desenvolvendo práticas que rememoram, de alguma forma, suas atividades no contexto escolar é um
dos olhares que norteiam este trabalho.

Nesse encaminhamento, o trabalho mostra os resultados iniciais do projeto que procura discutir o papel que esses
aposentados exercem nas comunidades, assim como analisar de que maneira suas práticas são referendadas ao longo do
tempo pelos professores em exercício e por outras pessoas das comunidades. Tais direcionamentos sinalizam
possibilidades para se entender melhor o fato de que, mesmo diante de um modelo de formação agendado, há outro (ainda

1257
a ser investigado melhor) no qual as práticas sociais desses aposentados ocupam lugar de relevância. Para tanto, traremos
para discussão aportes teóricos que envolvem temáticas como a Formação do professor, questões de letramento,
Dialogismo, Globalização, Currículo, Aposentadoria, Velhice e Saberes docentes desenvolvidas nos estudos de autores
como Alves (2008); Apple (2006); Bakhtin (1997); Burbles (2001); Frigotto (2006); Hage (2005); Rojo (2009); Tardif (2010);
Veras (2004).

1. Pressupostos teóricos

Formação de professores

Atualmente, com o processo de mundialização da economia e com a nova divisão internacional do trabalho,
ganham ênfase estruturas de poder internacionais. Nesse cenário, a escola ainda considerada como um dos poucos
instrumentos de divulgação da cultura formal, cada vez mais cobrada socialmente. Além disso, segundo Frigotto (2006,
p.99),

“[...] os diferentes mecanismos seletivos desencadeados no interior do processo escolar e ao longo de


toda trajetória escolar, reflexo da seletividade social de um lado, e da desqualificação do trabalho do
professor de outro, tornando o professor um decodificador de pacotes de saber produzidos em série,
cumprem um papel importante”.

Ao trazermos essa discussão para contextos mais situados como as vilas onde desenvolvemos a pesquisa,
verifica-se que há uma preocupação em se dar conta da agenda por parte dos professores da ativa. Entretanto, no que se
refere ao processo de formação, eles também se baseiam nas orientações fornecidas pelos professores aposentados que
são chamados às escolas, especialmente, durante as jornadas pedagógicas.

As orientações feitas pelos aposentados pautam-se nas suas experiências que se circunscrevem em práticas que
poderíamos considerar como híbridas porque mesmo sendo aparentemente ‘tradicionais’ procuram valorizar os saberes
constituídos nas vilas relacionados à agricultura, à religião, às maneiras de se engajar nas lideranças comunitárias para
reivindicar direitos, dentre outros. Isso indicia que nesses contextos, há um movimento que acaba por ‘escapar’ dos moldes
de formação previamente agendados.

Globalização e Saberes docentes

Segundo os trabalhos de Burbules, Torres, Morrow e Apple (2004) a globalização acaba por atingir o sistema
educacional porque a favor de se propagar que o papel da educação é favorecer o “desenvolvimento”, a escola, via
currículo se submete de algum modo às indicações dos organismos financeiros internacionais; os processos avaliativos de
toda ordem demonstram bem isso. Assim, essa instituição acaba por se tornar um espaço
privilegiado para se manter o status quo, em especial, no que se refere ao aspecto cultural. Por conta disso, “[...] Esse
determinismo econômico carrega a cultura como um resultado causal, e não como um contexto ou campo social mais amplo
de circuitos culturais de significação, identidades e relações de poder” (LUKE & LUKE, p.188).

1258
Nesse direcionamento, Apple (2006) afirma que “O que era antes uma ideologia sob a forma de interesse de
classe se tornou agora a definição da situação na maior parte dos currículos escolares” (p.125). Assim, a ideia é tornar
‘natural’ um posicionamento de aceitação da situação posta de forma a achar que esse é o melhor caminho, aceitar com
naturalidade, transformar em senso comum.

Oliveira (2003), ao tratar do carater emancipatório do educador e seu espaço de atuação pautando-se nos estudos
desenvolvidos por Adorno (1970) considera que

A escola participa ativamente na produção das subjetividades, é esfera pública e locus de poder e
resistência, de oposição, que pode desvelar as contradições dessa sociedade capitalista administrada.
Como espaço de encontro para diálogo, ação e apropriação dos bens culturais, traz ao professor duas
funções simultâneas: transmitir a vivência da continuidade, o que faz recorrendo ao acervo de sua
experiência vivenciada na família e no grupo de pares, e realizar a ruptura ao fornecer ao aluno novos
elementos de crítica capazes de ajudá-lo a ultrapassar a experiência, os estereótipos, as barreiras do
etnocentrismo, as inúmeras pressões da ideologia dominante (OLIVEIRA, 2003, p. 307).

Cabe ao professor uma função que vai além de sua formação inicial, uma vez que ele precisa mobilizar diferentes
tipos de saberes para atender às ‘demandas’ da sociedade em algum sentido, reiterando as indicações das instituições e
sujeitos que norteiam a sociedade do modo como está configurada atualmente. Por outro lado, de fato é nesse contexto que
se torna preponderante construir de maneira segura e propositiva alternativas para se lidar com as imposições.

Ao discutir o saber docente, Tardif (2010, p. 61) mostra que

os saberes que servem de base para o ensino, tais como são vistos pelos professores, não se limitam
a conteúdos bem circunscritos que dependem de um conhecimento especializado. Eles abrangem uma
grande diversidade de objetos, de questões, de problemas que estão todos relacionados com seu
trabalho. Além disso, não correspondem, ou pelo menos muito pouco, aos conhecimentos teóricos
obtidos na universidade e produzidos pela pesquisa na área da educação: para professores de
profissão, a experiência de trabalho parece ser a fonte privilegiada de seu saber-ensinar”.

Percebe-se que esses saberes não estão apenas circunscritos a determinados espaços e tempo legitimados
apenas pelas instituições legais. Eles nascem das necessidades apresentadas pela comunidade também. O professor,
portanto, é exposto a diferentes culturas e possibilidades para efetuar suas práticas pedagógicas. Assim, ele convoca não
só os saberes acumulados nos anos de sua formação inicial e formação continuada; mas traz à tona saberes constituídos
nas diferentes esferas comunicativas, como a família, a igreja, o centro comunitário, por exemplo.

Aposentadoria e envelhecimento

Pesquisas mostram que o aumento do envelhecimento populacional ocorre em função do aumento da expectativa
de vida (ALVES, 2007), o que demonstra na atualidade uma tendência ao aumento das doenças provenientes dessa fase
preocupando as pessoas.

O aumento do número de idosos em nosso país já tinha sido anunciado nas pesquisas do IBGE (2000). Esses
idosos apresentam baixos níveis de instrução e baixo poder aquisitivo. Ganha legitimidade maior a necessidade de se
cuidar desse fenômeno a partir da criação da Política Nacional do Idoso (BRASIL, nº 8842/94), que tinha como objetivo
recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dos indivíduos idosos, direcionando medidas coletivas e

1259
individuais de saúde para esse fim, em consonância com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. É alvo
dessa política todo cidadão e cidadã com 60 anos ou mais de idade (BRASIL, 2.528/2006, p.3).

Essa política foi reiterada com a realização da Assembléia Mundial para o Envelhecimento de 2002, em Madri,
fundamentando-se nos seguintes aspectos (BRASIL, nº 2. 528/2006, p. 3): “(a) participação ativa dos idosos na sociedade,
no desenvolvimento e na luta contra a pobreza; (b) fomento à saúde e bem-estar na velhice: promoção do envelhecimento
saudável e (c) criação de um entorno propício e favorável ao envelhecimento”.

Entretanto, verifica-se que, na prática, pouco se tem avançado em relação à efetivação de programas que cuidem
do processo de envelhecimento dessas pessoas, seja do ponto de vista da saúde, do trabalho e da educação. A valorização
dos saberes por eles acumulados, seja nos aspectos profissionais ou naqueles detidos na cultura praticamente inexiste.

Há uma tendência em se considerar o idoso como alguém inválido para sociedade capitalista, pois não atende
mais às necessidades do mercado (VERAS, 2004), em que a produção exige plenas condições físicas do trabalhador.
Assim, envelhecer significa despesa para o estado que cada vez mais procura se eximir de ônus.

Para Alves (2008) cria-se uma identidade para a velhice na qual o envelhecimento é marcado socialmente pela
aposentadoria. Nesse caso, “A aposentadoria decreta funcionalmente a velhice”, ainda que o indivíduo não seja velho do
ponto de vista biológico, é uma forma de produzir a rotatividade de mão- de- obra no trabalho.

Diante desse contexto, manter a história de um povo considerando para isso os saberes dos idosos é algo que
fica em segundo ou que não é cogitado. Isso se justifica se observarmos as maneiras como se organizam e gerenciam as
políticas educacionais (legitimando as orientações das agências de financiamento internacionais) pouco têm contribuído
para esse objetivo. Pelo contrário, estabelece prioridades às novas gerações que poderão atender da forma melhor às
demandas do mercado.

Letramento (s)

Rojo (2009) ao se basear nos estudos de Hamilton (1998) propõe os Multiletramentos ou letramentos múltiplos
em oposição aos os letramentos dominantes. Assim, considera como letramentos múltiplos os que não possuem regulação
do estado e se originam das culturas locais, ou nas palavras de Hamilton “vernaculares” (ou autogerados) representados
pelas organizações.

Nessa proposta, o trabalho com a linguagem centraliza-se na valorização dos “letramentos das culturas locais de
seus agentes (professores, alunos, comunidade escolar) e colocando-os em contato com os letramentos valorizados,
universais e institucionais” (p. 107, 2009). Ou seja, os letramentos possuem relações de interdependência, posto que os
sujeitos precisam se empoderar das práticas de linguagem valorizadas pela sociedade, mas também valorizar aquelas
consideradas “como práticas de resistência” (ROJO, 2009).

É nesse aspecto que a autora aponta a relação de sua proposta com os conceitos bakhtinianos como esfera de
atividade ou circulação de discursos, polifonia e compreensão ativa (BAKHTIN, 1997), visto que os sujeitos trazem para
escola diferentes experiências com a linguagem. Nas interações efetuadas nesse contexto, os sujeitos se revelam,
refutam e compartilham saberes.

1260
O presente trabalho pauta-se nessas perspectivas considerando que mesmo sendo repassando práticas que se
poderiam classificar como tradicionais, os aposentados são referendados a partir delas. Isso indicia que nas ações dos
professores atuais ressoam as vozes dos aposentados.

Contextualizando a escola ribeirinha e a formação de professores na região Tocantina

Percebe-se que no contexto tocantino há uma concentração de escolas multisseriadas (HAGE, 2005; PINHEIRO,
2009). Essas escolas ainda são bastante silenciadas no cenário educacional, inclusive ficando à margem dos censos
escolares oficiais até bem pouco tempo.

Segundo Pinheiro (2009) os educadores procuram dar conta da agenda de trabalho, pois “A multisseriação segue
a mesma lógica da seriação no que tange a organização dos conteúdos” como os demais, mas seu público apresenta-se
quase na heterogeneidade. Além disso, os docentes assumem funções que não são apenas as de lecionar, mas a de
preparar a merenda, por exemplo. O cenário tem mudado pouco em função dos concursos.

A respeito do currículo nessas escolas, a autora pontua que ele se concentra nas necessidades emanadas pelos
sujeitos e acumulados ao longo de suas convivências em espaços que não apenas o da escola. Tais conhecimentos não
são legitimados pela academia, no entanto, são justamente eles que possuem uma relevância nessas comunidades, tendo
em vista que refletem os anseios desses sujeitos no sentido de colaborarem com avanços possíveis no cotidiano dos
mesmos.

2. Opções Metodológicas

Histórias de vida

Para este trabalho, optamos pela metodologia da História Oral trabalhando os aspectos da memória uma vez que
através das entrevistas busca-se um passado individual que acaba por representar de algum modo resquícios de uma
coletividade. Nesse sentido, NUNES (2003) enfatiza que os modos como percebermos o mundo e a relação que temos com
nós mesmos diante das ‘necessidades’ econômicas e sociais estabelecidas fazem com que as questões referentes à
memória fiquem a critério de como as informações circulam, pois

“[...]. No mundo globalizado, a interação dos homens com a tecnologia acentua a tensão entre a
tradição oral, os registros materiais e a comunicação informática. Leva-nos a repensar o estatuto do
espaço (virtual), do tempo (múltiplo) e os processos de construção das subjetividades, do
conhecimento, e das instituições (NUNES, 2003, p.132).

No que se refere à Formação de Professores, a metodologia da História Oral, segundo Bueno et al.(2006) até a
década de 80 era considerada como importante para se trabalhar aspectos relacionados à memória presente nos processos
de formação. Em termos de Brasil, as pesquisas foram ampliadas no sentido de buscar trabalhos envolvendo questões
concernentes à formação de professores usando o método autobiográfico.

Segundo FICHER & WEIDUSCHADT (2009, p.70), a História de vida data como metodologia de trabalho na
primeira metade do século XX. A ideia era trazer à tona depoimentos que ajudassem no esclarecimento de fenômenos
ocorridos na sociedade de modo a valorizar os sujeitos, ou seja, “dar voz aos excluídos”.

1261
A história de vida como metodologia para discutir construção da imagem do professor aposentado na
comunidade possibilita a percepção de como esses docentes já se engajavam em atividades que iam além daquela
exercida na escola. Isso contribuiu para que eles, mesmo aposentados, continuassem exercendo suas funções.

Por conta disso, utilizaremos as histórias de vida dos aposentados e os depoimentos de diferentes atores (grupo
de professores na ativa, padres, diretores das escolas, coordenadores pedagógicos, lideranças comunitárias e religiosas). A
intenção é acrescentar dados a respeito da história de vida desse grupo de docentes, buscando, nas vilas, a valorização
das ações deles no sentido de reconstruir a história de vida dos docentes selecionados para esta pesquisa de maneira mais
ampla.

Os Sujeitos

Os atores da pesquisa serão com maior ênfase um grupo de docentes aposentados. Entretanto, precisaremos
ouvir professores em exercício, as lideranças comunitárias e religiosas, diretores das escolas e representantes da
comunidade. O universo total de professores aposentados é de 13. Os professores em pleno exercício nas séries iniciais
são 12. Há 02 líderes religiosos e 02 líderes comunitários totalizando 29 sujeitos envolvidos.

Os Contextos

As vilas Moiraba e Carmo do Tocantins

A Vila Moiraba, mais conhecida como São Benedito em homenagem ao santo padroeiro da comunidade localiza-
se às margens do rio Tocantins, próximo a Cametá. A vila possui uma forte ligação com o aspecto religioso, assim como a
vila Carmo do Tocantins. As atividades econômicas mais recorrentes são a agricultura e a pesca.

A vila Carmo do Tocantins é uma localidade que fica a aproximadamente 15 minutos de São Benedito (vila
Moiraba). Possui uma população três vezes maior que a da vila Moiraba. Há uma forte ligação com as questões religiosas
em função da padroeira da comunidade- N. Sª do Carmo que assim como na vila Moiraba, acabou dando nome ao lugarejo.
As atividades econômicas vão além da pesca e da agricultura, posto que existe um intenso e diversificado comércio.

Meu contato com as vilas mencionadas aconteceu a partir de 1996, época em que me casei com um morador da
vila Moiraba que assim como muitos foi para Belém em busca de continuidade dos estudos e melhores condições de vida.

A opção em trabalhar com os professores das duas vilas justifica-se pelo fato de que muitas das suas ações hoje
nas comunidades relacionam-se com a as histórias sociais das vilas que engendram bastante as vidas desses profissionais.
Há professores que trabalharam nas duas vilas, ora simultaneamente, ora em tempos diferentes.

Passos percorridos durante o levantamento inicial

1262
A metodologia do projeto aqui apresentado norteou-se a partir de um levantamento prévio junto as alguns
moradores das vilas Moiraba e Carmo do Tocantins, distritos de Cametá, realizado no período de 14 a 19 de julho de 2009.

Para fins deste trabalho, selecionamos 06 falas de professores e outras pessoas das comunidades da vila Moiraba
e 06 da vila do Carmo, respectivamente, no que concerne a algumas práticas que os docentes realizam com os alunos e
professores da ativa:

a) Vila Moiraba
1. “eu participava de outras atividades, mais da catequese e continuo até hoje. Eu gosto de dar aula”.
2. “Quando me chamam, eu falo como trabalhava e o que faço com os meninos na catequese também. Acho que
falta mais trabalho pra eles porque eles tão lendo com dificuldade”.
3. “sempre fiz parte da catequese e trabalho com esses meninos ainda por causa da igreja. Corrijo os trabalhos
deles e vejo que eles têm muitas dificuldades pra escrever. Ai, eu passo ditado, cópia e eles melhoram um
pouco”.
4. “minha família era toda envolvida na política. Eu sempre procurava ouvir a comunidade e quando eles vinham
aqui, eu pedia por nós todos”.
5. “Elas são importantes porque nos ajudam com a escrita e leitura nos trabalhos da igreja. Por isso, sempre
chamamos pra eles falarem na escola”.
6. “Eu procuro aprender com eles sempre. Eles têm paciência de ensinar até a gente que é professor”.

Percebe-se em [01] que aposentada mostra que participava de atividades (centro comunitário e movimento de
mulheres, por exemplo). Entretanto, não abriu mão da atividade da catequese, visto que é através dessa atividade que a
docente ainda ‘ministra’ suas aulas. Em [02] e [05], os professores mostram que os convites feitos pelas escolas se pautam
na validação dos depoimentos dos aposentados, que asseguram essa relação com a escola através do trabalho na
catequese. Além disso, as falas deixam claro que esse aposentado conhece as necessidades dos alunos no que concerne
ao ensino de Língua materna. Nesse direcionamento, [03] apresenta alguns objetos utilizados para dar conta das
necessidades dos alunos: o ditado e a cópia.

Em [04], aparecem os envolvimentos na liderança da comunidade, nas situações que as decisões políticas
poderiam afetar a todos. Fato importante de se assinalar é que as mulheres exercem uma liderança forte nesse aspecto
político nas vilas.

A fala [06] marca como professores da ativa veem os aposentados. Isso nos indicia a possibilidade de influência
das orientações nas práticas dos professores atuais. Além disso, os alunos procuram o grupo de aposentados para ampliar
suas pesquisas no que concerne à história das vilas, para tirarem dúvidas, etc. reforçando as ‘orientações’.

b) Vila do Carmo do Tocantins


1. “os professores que começam sempre vêm pra pedir meus cadernos, saber como fazer com os meninos, o
comportamento, sabe? Na minha época, a gente tinha ajuda deles em tudo: recursos pra escola, merenda e pra fazer
as lições. Hoje, eles nem pisam quase na escola”.

1263
2. “o médico disse que eu deveria parar com essas atividades, mas eu não aceitei largar o trabalho que faço com os
meninos na catequese”

3.”Eu pergunto coisas da escola e vou orientando. Às vezes, parece que to dando aula, principalmente, de português.
Corrijo...”.

4.“Ela me ensinou a ler e todo mundo lá de casa. Hoje, ela ainda ensina”.

5. “Agora, tem uma pessoa que vem conversar com os professores e ajudar também. A gente faz o que pode na
igreja.”

6. “Eles agradecem porque a gente reforça as coisas nas aulas da catequese e os meninos obedecem. Acho que é
isso que eles gostam.”

Ao analisarmos as falas dos professores da vila do Carmo, percebe-se em [01] que os professores tinham o
cuidado de guardar os cadernos para emprestá-los aos professores em início de carreira. Esta é a fase, inclusive a que
mais se fez referência nas entrevistas, o que denota o papel do grupo de aposentados na profissão dos iniciantes.

Outro aspecto a ser considerado como elemento de análise é que mesmo diante das limitações físicas, como se
relatou em [02], há uma vontade de se ‘negociar’ a permanência da atividade como um compromisso com a docência:
preocupação de corrigir, relacionar as práticas escolares com as atividades da catequese. Ou seja, através da catequese se
traz as necessidades manifestadas ou não supridas pela escola ‘formal’, como é reforçado em [03].

Em [04], mostra-se que as práticas dos aposentados também são validadas pela experiência de eles terem
ensinado diferentes gerações de uma mesma família e que ainda são vistos como profissionais considerando que ensinam
as crianças na catequese ou auxiliam os professores.

Nas falas [05] e [06], os aposentados demonstram conhecer a dinâmica escolar no que se refere ao como
acontece a assistência institucional na formação dos professores atuais. Além disso, procuram justificar os motivos que
levam os moradores a considerarem suas práticas importantes.

Considerações Finais

Durante o levantamento prévio que fizemos juntos atores da pesquisa verificou-se que a maioria dos professores
sempre morou nas vilas e atuaram em turmas multisseriadas. Por conta disso, o número de professores era bastante
reduzido na época. O grupo pesqquisado possui em comum algumas características: engajava-se nas diferentes ações
desenvolvidas nas vilas, em especial, os que atuavam na vila Moiraba.

A autoridade nas falas dos moradores entrevistados mostra que nem sempre os professores recebem e
reproduzem fielmente os modelos de formação a eles apresentados. Há algo constituído nas práticas sociais das vilas
Moiraba e Carmo do Tocantins que validam as experiências pedagógicas desse grupo de aposentados. As ações dos
professores podem estar relacionadas com o histórico de engajamento dessas pessoas nas atividades em diferentes
espaços da comunidade, de habilidades demonstradas na história de vida do grupo que legitimam seus discursos

1264
Observou-se que ao se falar do processo ensino-aprendizagem, os aposentados se referem bastante às
atividades concernentes aos aspectos da Língua materna, em especial, da leitura e da escrita. Os espaços não serão
apenas a escola, mas quem sabe até mais a igreja considerando que é via catequese que eles trazem à tona suas
lembranças da docência.

Por esses motivos torna-se relevante acompanhar as ações desses aposentados nos diferentes segmentos das
comunidades, em especial, nas escolas e nas igrejas relacionando-as com as suas histórias de vida desse grupo de
docentes. Essa inserção nos contextos de pesquisa, a partir do segundo semestre deste ano será importante para que
desvele os saberes que os professores aposentados mobilizam em suas práticas e em que medida elas se encontram
imbricadas nas ações dos professores atuais.

Referências
ALVES, Vivian Cristina Pacola. Stress e qualidade de vida em grupos de idosos: análise e comparação. Dissertação
em Pós-Graduação em Psicologia. Centro de ciências da vida da PUC-Campinas. 2008.

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CURRÍCULO E EMAIL DA AUTORA:


Doutoranda em Educação na linha de Currículo e Formação de Professores (UFPA), Mestre em Linguística (UFPA-2006) e
Especialista em Língua Portuguesa: uma abordagem textual (UFPA-2004). Possui experiência na Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Médio, Graduação e Coordenação de Pós-Graduação em Letras "Lato Sensu". janibel8@yahoo.com.br

1265
Educação de surdos e questões de política linguística

RODRIGUES, Isabel Cristina


(UERJ / UFF)

Introdução
A política de inclusão escolar implementada nas duas últimas décadas pelo governo federal tem suscitado
polêmica em função da dificuldade relatada, por grande parte dos professores, em oferecer atendimento de qualidade às
pessoas com as mais diferentes necessidades educacionais. Essa dificuldade se materializa tanto na falta de formação
adequada dos profissionais quanto na falta de recursos, os mais variados, nas escolas.
Destacamos nesse contexto a situação das pessoas surdas, inseridas em um universo sociolinguístico bastante
complexo. Pretendemos nos ater a um recorte particular – o de surdos falantes1 de língua de sinais, adquirida em pequenos
grupos, como associações de surdos, igrejas, com a colaboração, em geral, precária de suas famílias de ouvintes. Para
estes indivíduos, a política de inclusão garante o acesso à educação bilíngue. É preciso destacar que a língua brasileira de
sinais – LIBRAS é reconhecida como meio legal de expressão desde 2002, pela lei 10.436, regulamentada em 2005 pelo
decreto 5.626. No entanto, cabe indagar o quanto e de que formas uma lei pode interferir nas relações de uso e de
reconhecimento de uma língua.
Neste artigo, gostaríamos de apresentar algumas considerações gerais acerca do tema política e planificação
linguística, retomando os registros de sua origem, relacionando-o ao contexto da surdez. Esse contexto, muitas vezes,
ainda é remetido à discussão da deficiência física, negligenciando-se uma abordagem de caráter sociolinguístico2, apesar
de reconhecermos que esta discussão também já é amplamente realizada em boa parte dos espaços que visam à
educação de surdos. Situamo-nos na segunda vertente de reflexão sobre a surdez, que tem como foco as chamadas
minorias linguísticas. É nesse sentido que damos ênfase especial neste trabalho à análise exposta em Calvet (1996),
Romaine (1995) e Cavalcanti (1999), procurando trazer elementos que possam contribuir com as atuais reflexões sobre a
educação bilíngue para surdos no Brasil.

Planificação linguística e sociolinguística


A noção do que hoje se denomina política linguística surgiu, segundo Calvet (1996), paralelamente à noção de
“planificação linguística”, termo empregado pela primeira vez por Einar Haugen (1959, apud Calvet, 1996), ao analisar os
problemas linguísticos da Noruega após séculos de dominação dinamarquesa. A proposta deste autor era de que o Estado
interviesse no sentido de propor padronizações de ordem linguística e, assim, construir uma dada identidade nacional.
De início, o termo abrangia tanto as decisões do poder – a política – quanto a passagem à ação – a planificação
propriamente. Parece que o interesse pela disciplina associou-se basicamente a dois fatores: o momento histórico de
descolonização de vários países africanos e asiáticos e a emergência das reflexões sobre as relações entre língua e

1 Com base em Fernandes (2002: 38), usamos o termo falante “como jargão técnico para conceituar produção linguística, quer na
modalidade de língua oral-auditiva quer na de língua espaço-visual”.
2 Nos Estados Unidos, por exemplo, faz-se uma distinção entre “surdez auditiva”, seja de que nível for, e “Surdez como entidade

linguística e cultural”, em que a língua de sinais tem papel preponderante. A primeira é escrita com “s” minúsculo, e a segunda, com “s”
maiúsculo.

1266
nacionalismo. A planificação seria uma resposta aos problemas linguísticos desses países, que depois se estendeu às
questões das minorias linguísticas e dos imigrantes em todo o mundo.
O texto fundador de Haugen reflete concepções da época: uma visão instrumental de língua, sendo o termo
“planificação” tomado em seu senso econômico e estatal. Não eram consideradas a fundo questões complexas como as
relações entre língua e sociedade, o plurilinguismo e mecanismos de democratização do controle das decisões
planificadoras. Questões de identidade, cultura, economia, desenvolvimento e seu vínculo com uma dada situação
linguística pareciam, segundo esse autor, ser de interesse apenas dos países em desenvolvimento. Sabemos hoje, no
entanto, que nenhum país escapa de discuti-las.
O surgimento de outra disciplina, a sociolinguística, quase concomitantemente, de certo modo reconfigurou a
concepção inicial de planificação linguística em seu caráter mais mecanicista de propor melhorias ao funcionamento das
línguas, dando lugar a reflexões importantes. De fato, a sociolinguística proporcionou meios científicos para que a avaliação
das situações nas quais se desejava intervir e o como fazê-lo pudessem se efetivar.
Pensar, por exemplo, por outro prisma, o “funcionamento” das línguas já representou uma mudança de paradigma:

Uma língua não é por si só racional ou eficaz, ela responde e não responde a necessidades sociais, ela
segue e não segue a progressão da demanda social. O problema, portanto, é saber em que medida a
organização linguística de uma sociedade (as línguas em presença, seus domínios de uso, etc.)
responde às necessidades de comunicação dessa sociedade, mas essa abordagem dificilmente era
imaginada no início dos anos 60, na ausência de uma formalização da sociolinguística nascente
(Calvet, 1996, p. 15).3

Com o novo aporte teórico da sociolinguística, as questões de plurilinguismo passam a despertar maior interesse:
chegava-se à conclusão de que se tratava de uma situação majoritária no mundo.4
A distinção entre planificação de corpus – intervenções sobre a forma da língua – e planificação de status –
intervenções sobre as funções da língua, seu prestígio social e suas relações com outras línguas –, proposta por Heinz
Kloss (1967 apud Calvet, 1996), também colaborou para um deslocamento em relação à concepção instrumental de
Haugen.
Calvet também cita Chaudenson (1991) e, com base em seus estudos, propõe que as línguas sejam situadas em
relação aos países, considerando cada língua de três pontos de vista: seu grau de uso (porcentagem de locutores), seu
grau de reconhecimento (oficialidade) e seu grau de funcionalidade (possibilidades que a língua tem de cumprir as funções
às quais se pretende destiná-las). Avaliando-se os dois primeiros, poder-se-ia chegar ao terceiro e propor estratégias mais
coerentes de planificação. Para este autor, pode-se agir tanto sobre o grau de uso quanto sobre o de reconhecimento.
De forma prática, Calvet considera que, se desejamos que uma língua atenda a determinadas funções, devemos
levar em conta o que é preciso fazer no sentido de “equipá-la” para isso. Passar uma língua de uma situação S1 a uma
situação S2 seria exatamente o domínio da planificação linguística:

Como intervir sobre a forma das línguas? Como modificar as relações entre as línguas? Quais são os
processos que permitem passar de uma política linguística, etapa das escolhas gerais, ao momento de
sua implementação, a saber, a planificação linguística?
(...) O termo “equipamento” aplicado às línguas pode parecer estranho, sobretudo considerando as
restrições que fizemos, no capítulo I, em relação a uma concepção instrumental de língua. Entretanto, é
completamente apropriado, em especial se recordamos o sentido primeiro do verbo equipar: “suprir um
navio do que é necessário à sua navegação” (Calvet, 1996, p. 44-45).

3 As citações de Calvet e Romaine foram traduzidas pela autora para este artigo.
4 Segundo Calvet (loc. cit.), há entre 4.000 e 5.000 línguas, o que representa uma média de 30 línguas por país.

1267
Calvet enumera como equipamentos básicos de uma língua seu sistema de escrita, seu léxico e sua norma
padrão. Há um traço, no entanto, da concepção inicial de Haugen sobre o qual Calvet chama atenção – o papel do Estado:

De fato, qualquer grupo pode elaborar uma política linguística: uma diáspora (surdos, ciganos, falantes
de ídiche) pode se reunir em congresso para decidir uma política, e um grupo minoritário no interior de
um Estado (os Bretões na França, por exemplo, ou os índios quíchuas no Equador) pode fazer o
mesmo. Mas somente o Estado tem o poder e os meios de passar ao estado da planificação, de pôr
em prática suas escolhas políticas. Isto porque (...) é preciso admitir que, na maior parte dos casos, as
políticas linguísticas são feitas pelo Estado ou por uma entidade que disponha de uma certa autonomia
política no seio do Estado (...) (Calvet, 1996, p. 11).

As línguas passam por transformações em resposta a demandas sociais que se apresentam, como buscas
identitárias, por exemplo. São mudanças que se difundem naturalmente na prática dos locutores. A intervenção seria uma
forma de provocar transformações passíveis de se manifestarem, mas por meio da lei. Em que pese a ponderação sobre se
línguas podem ser objeto de lei, o fato é que o Estado pode intervir sobre os comportamentos linguísticos, propor uma
planificação sobre eles por meio de legislações.
Apesar de a disciplina “planificação linguística” ter se institucionalizado mais recentemente na história, segundo
Hamel (1993, apud Calvet, 1996, p. 58), as práticas de intervenção são “a expressão de políticas linguísticas que existem
desde que os seres humanos se organizaram em sociedade e estenderam suas relações de contato, de troca e de
dominação em direção a outras sociedades culturalmente e linguisticamente diferentes”. Tais práticas, infelizmente, nem
sempre, ou quase nunca, tiveram como objetivo a garantia do direito à língua:

Em um primeiro olhar, a expressão “direito à língua” remete à proteção das minorias linguísticas, e o
fato mesmo de falar de proteção mostra a que ponto elas estão ameaçadas. Mas existe também,
através do mundo, um grande número de países nos quais os cidadãos só falam a língua do Estado.
(...)
Essas situações conferem à expressão “direito à língua” um outro sentido. O fato de não falar a língua
do Estado priva os cidadãos de numerosas possibilidades sociais; pode-se considerar que todo
cidadão tem direito à língua do Estado, isto quer dizer que ele tem direito à educação, à alfabetização,
etc. Mas o princípio de defesa das minorias linguísticas faz com que, paralelamente, todo cidadão deva
ter direito à sua língua (Calvet, 1996, p. 62).

Educação e contextos de bilinguismo


Essa questão, não só das minorias, mas também das imigrações, das várias comunidades diglotas, traz à tona a
discussão sobre educação bilíngue como uma ação de planificação linguística. Segundo Romaine (1995), durante um bom
tempo, a literatura científica apontou o bilinguismo como uma influência negativa sobre o desenvolvimento cognitivo, social
e acadêmico das crianças, o que nunca se comprovou. Mesmo assim, essa concepção foi usada como suporte para uma
política de instrução monolíngue, em especial, em grupos de minoria. No entanto, práticas bilíngues não são fatos recentes
na história da humanidade e, de uma forma ou de outra, existem há pelo menos 5.000 anos.
A autora ressalta que tanto as pesquisas quanto as políticas em educação bilíngue são motivadas por agendas
políticas particulares, chamando atenção para o fato de que o termo educação bilíngue pode ter diferentes significados em
diferentes contextos:

Se levarmos em conta a abordagem do senso comum e definirmos bilinguismo como um programa em


que duas línguas são usadas igualmente como meio de instrução, muitos dos chamados programas de
educação bilíngue não poderiam ser assim considerados. Além disso, a “mesma” política educacional
pode levar a diferentes resultados, dependendo das diferenças das variáveis de entrada (Romaine,
1995, p. 241).

1268
Não é nosso objetivo aqui fazer uma discussão detalhada sobre tipos de programas bilíngues e seus contextos,
exemplos que a autora que estamos citando oferece largamente. Pretendemos sim destacar aspectos que demonstram que
a discussão sobre bilinguismo na educação de surdos não traz elementos tão inusitados como se poderia pensar. Ao
contrário, há regularidades que impressionam, como é o caso da proibição ao uso das línguas nativas por minorias:

A política tradicional, seja implicitamente assumida ou explicitamente declarada, que a maioria da


nações perseguiu em função dos vários grupos minoritários, que falam uma língua diferente, tem sido a
erradicação da língua/cultura nativa e sua assimilação pela maioria. Não faz muito tempo que crianças
de minorias, em países como Austrália, Estados Unidos, Inglaterra e na Escandinávia estavam sujeitas
a violência física nas escolas por falarem as línguas que falavam em suas casa. Frequentemente, a
educação dessas crianças incluía retirá-las de seus pais e de seu grupo cultural (Romaine, 1995, p.
242).

O Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES, criado em 1857, vivenciou realidade semelhante. A língua de
sinais sofria restrições de uso e, durante cerca de vinte anos, no início da segunda metade do século XX, foi proibida.
Crianças surdas não podiam ter contato com surdos mais velhos para que não entrassem em contato com a língua de
sinais. Claramente, no contexto da surdez, a polêmica não se referia a questões políticas, de fortalecimento de
nacionalidades.
Voltando à discussão sobre educação bilíngue, Romaine tenta desfazer alguns mitos que têm justificado
programas equivocados. Por exemplo, salienta o caso de práticas educacionais deficitárias por se basearem
irrefletidamente seja na concepção de que é sempre melhor ensinar à criança por meio de sua língua nativa, seja na de que
a língua nativa precisa estar “estabilizada” antes que a instrução por meio de outra possa começar. A classe
socioeconômica do aprendiz, porém, sim tem sido apontada como uma variável crucial no desempenho escolar.
Em relação a essa última observação da autora, no que concerne em especial às minorias, a escola tem falhado
tanto por não se apropriar da língua que o aluno traz de casa quanto por não conseguir socializar a própria língua escolar.
Aliás, o fato de a escola não conseguir propiciar ao aprendiz o desenvolvimento em sua primeira língua tem sido um dos
fatores que legitimam a opressão sobre esta, utilizando inclusive o argumento de que ela prejudicaria a aprendizagem da
segunda língua.
O bilinguismo está sempre associado a contextos particulares, o que nem sempre é levado em conta pelas
políticas. O ideal seria que se pudessem compreender quais os objetivos que as diferentes sociedades têm quando tentam
fazer crianças bilíngues ou monolíngues:

É impossível especificar que competência um monolíngue “completo” deveria ter e, da mesma forma, é
impossível especificar que habilidades um bilíngue “completo” deveria ter. A noção de bilinguismo
balanceado é um ideal. Isso significa que não existe algo como um bilinguismo completo, então todos
os bilíngues são semilíngues num certo sentido. Isso torna o uso do termo limitado se ele se refere a
não mais do que ao fato de que a linguagem dos bilíngues não atende a diferentes domínios. Uma
competência individual em algumas línguas já reflete essa distribuição desigual (Romaine, 1995, p.
287).

Considerando o foco deste artigo, podemos ponderar, mais uma vez, sobre uma questão até certo ponto evidente:
se línguas orais foram interditadas por questões políticas e culturais, por serem consideradas, entre outros, primitivas, o que
dizer das línguas de sinais que começaram a ser reconhecidas como línguas apenas na década de 1960 do século
passado, tendo sido sempre associadas à marca da deficiência física? Sua interdição não parece estar fora de uma mesma
lógica que procura excluir o que se presume menor, atrasado, anormal, desprestigiado ou, tão-somente, diferente. Parece

1269
possível então, em que pesem as peculiaridades existentes e óbvias, situar o debate sobre a educação bilíngue para surdos
e sobre possíveis políticas linguísticas para esses indivíduos dentro da discussão geral dessas duas áreas.

Contextos de minoria no Brasil


Retomamos um artigo de Cavalcanti de 1999, que apresenta um panorama acerca dos estudos sobre interação
em contextos bi/multilíngues no Brasil, no campo da Linguística Aplicada, que, na época, ainda iriam completar uma
década. A autora deteve-se em particular na situação das chamadas minorias, reconhecendo certo estranhamento em
relação a seu campo de pesquisa:

Isso talvez aconteça, porque, em primeiro lugar, existe um mito de monolinguismo no país (...). Esse
mito é eficaz para apagar as minorias, isto é, as nações indígenas, as comunidades imigrantes e, por
extensão, as maiorias tratadas como minorias, ou seja, as comunidades falantes de variedades
desprestigiadas do português. Em segundo lugar, uma das razões para essa estranheza pode ser
decorrente de o bilinguismo estar estereotipicamente relacionado às línguas de prestígio no que se
convencionou denominar bilinguismo de elite. Em terceiro lugar, esses contextos bilíngues de minorias
são (tornados) invisíveis, portanto naturalizados, tanto por quem deles faz parte como pela sociedade
envolvente, uma vez que as línguas faladas são de tradição oral, portanto estigmatizadas (Cavalcanti,
1999, p. 387-388).

Cavalcanti descreve cinco contextos de minorias no cenário sociolinguístico brasileiro, marcados por forte
complexidade: indígenas, de imigração, de fronteira, bidialetais/rurbanos e de surdos. A autora chama atenção para o fato
de a delimitação deste último não obedecer a um critério geográfico tradicional. Trata-se de comunidades geralmente
criadas em escolas/instituições por todo o país:

De acordo com o Correio Braziliense (1997), dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que
“a deficiência auditiva afeta 10% da população mundial”. Conforme a mesma fonte, “no Brasil, estima-se
que existam 15 milhões de pessoas com algum tipo de perda auditiva. Desses, 350.000 são totalmente
surdos”. A população de surdos é, portanto, quantitativamente grande. No entanto, como acontece nos
outros contextos focalizados, também aí há um apagamento, uma minimização de sua importância, que
promove sua invisibilidade. Essas comunidades, que muitas vezes estão espalhadas, há muito reivindicam
acesso à língua de sinais (LIBRAS). Já sofreram e ainda sofrem discriminações. Os estudos nessa área
estão mais voltados para a descrição da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e para sua importância (...).
Há projetos educacionais tentando levar os resultados dessas pesquisas para a prática (...) (Cavalcanti,
1999, p. 393).

Assim, há apenas uma década, observava-se um “apagamento” dessa comunidade linguística, mas também a
presença de “projetos educacionais tentando levar os resultados de pesquisas para a prática”. Hoje, há uma política
bastante divulgada, em franco processo de disseminação, apesar das controvérsias que apenas apontamos na introdução.
O Brasil, que não possuía um histórico nem de reconhecimento nem de encorajamento de ensino bilíngue nos contextos de
minoria de forma geral5, passa a implementar uma política de inclusão que traz, a reboque, uma série de ações associadas
a uma certa política linguística.

Considerações finais
Ao retomarmos questões sobre a relação entre política e planificação linguística, tivemos por objetivo levantar
pontos de convergência entre esse debate e o processo de implantação de uma política de educação bilíngue para surdos

5
Veja-se o caso das comunidades indígenas, que sempre dependeram largamente do trabalho de indigenistas,
assim como a educação de surdos e de outros “portadores de necessidades especiais” sempre dependeu das
associações de pais e amigos e de sociedades beneficentes.

1270
no Brasil. Essa prática educativa, que tem sido debatida no âmbito da Política Nacional de Educação Especial, da
Secretaria da Educação Especial/MEC, envolve complexos aspectos sociolinguísticos, que não poderão ser contemplados
somente por redação de leis, apesar de sabermos que os dispositivos legais representam avanço fundamental. Parece-nos,
no entanto, que essa discussão, localizada hoje, fundamentalmente, no interior do sistema escolar, marcado pela falta de
infraestrutura mesmo na educação tradicional de seus alunos ouvintes, pode limitar seu alcance. Conforme citamos na
seção 2, compreender a circulação social de uma língua é um fator importante para que se possam propor estratégias
coerentes de planificação. É preciso garantir o direito e promover a efetiva realização desse direito. Referimo-nos, em
especial, ao direito de ser respeitado como integrante de uma comunidade de minoria linguística e ao de adquirir uma
língua, de fato, de forma a evitar as graves implicações psicossociais que a aquisição tardia ou a não aquisição de uma
língua pode provocar. A inclusão escolar constitui direito universal, e, no caso das pessoas surdas falantes de LIBRAS, está
associada ao direito de integrar uma comunidade de minoria linguística.

Referências
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SKLIAR, C. (Org.) Atualidade da educação bilíngue para surdos. Vol. 1 e 2. Porto Alegre: Mediação, 1999.

Biodata
Isabel Cristina Rodrigues é professora assistente de Língua Portuguesa do Instituto de Aplicação da UERJ, mestre em
Linguística pela UERJ e doutoranda em Estudos da Linguagem pela UFF. Organizou em 2009, com Del Carmen Daher e
Maria Cristina Giorgi, o livro Trajetórias em enunciação e discurso: práticas de formação docente (Ed. Claraluz).
Telefone: (21) 2564 3641
Celular: (21) 9351 7746
E-mail: isabelcristinarodrigues@oi.com.br

1271
O uso expressivo de campos semânticos na mídia
impressa
RODRIGUES, Tânia
(UFRRJ)

Este artigo visa a evidenciar a potencialidade expressiva em textos midiáticos. Selecionamos para atingir tal
propósito trechos de notícias transcritas do Jornal do Brasil (4), do jornal O Globo (1) e de O Dia (6). Assim, nosso olhar
direcionou-se para um encontro entre o texto literário e o texto jornalístico.
Utilizamos, como suporte teórico, o contrato de comunicação postulado por Patrick Charaudeau (1996) e
considerações estilísticas de Pierre Guiraud (1970).
Costuma-se apontar recursos expressivos em textos literários. No entanto, verificamos, na mídia impressa, o
valor estético no uso da linguagem e o seu consequente poder de sedução. E isso se faz necessário em um século
envolvido pela hiperinformação. Dentro deste contexto, o jornalista habilidoso (e perspicaz) necessita dispor de toda a sua
habilidade para chamar a atenção do seu público alvo.
Não basta, portanto, no discurso midiático apenas informar. Há que se envolver, seduzir, construindo um texto em
que a seleção e a combinação de palavras ganhem uma dimensão que supere a função, meramente, referencial. É sobre
essa questão que nos debruçaremos, neste breve artigo.
Corroboramos, ainda, com o que nos ensina Charaudeau (1996: 82) a respeito do ato de linguagem como
resultado de duas atividades – a de produção e a de interpretação.
Devemos destacar, neste ponto, que há, segundo o analista do discurso, diferentes formas do fazer linguístico
como, por exemplo: o fazer saber (informar), o fazer fazer (persuadir) e o fazer prazer (seduzir).
Interessa-nos, particularmente, para análise dos textos selecionados o processo criativo que se aproxima, em
grande medida, do discurso literário.
Costuma-se apontar recursos expressivos em textos literários. No entanto, verificamos na mídia impressa o poder
da sedução através da palavra.
Como já afirmava Guiraud (1970:93): “O vocabulário é a fonte principal da expressividade”. Mas toda palavra
possui diferentes nuances semântico-discursivas e há necessidade de se analisar o ato de linguagem como o resultado de
duas atividades: a de produção e a de interpretação.
Segundo Charaudeau (1996:82), “Ambas se processam em uma mise em scène discursiva de que participam
quatro protagonistas: o Eu comunicante, o Eu enunciador, o Tu interpretante e o Tu destinatário.”
No nosso caso, o Eu comunicante trata-se do jornalista e o Tu interpretante dos leitores reais que, a partir de um
conhecimento que, pressupostamente, deve ser partilhado, decodifica a intencionalidade e, no nosso caso, o valor
expressivo do texto em foco.
O teórico ainda preconiza, no contrato de comunicação, dois universos linguísticos: o circuito externo, que é o
lugar das condições de produção e de interpretação da linguagem e o circuito interno, lugar do ‘Dizer’, “... onde são postos
em cena os Sujeitos enunciador e destinatário, responsáveis pela instância do ‘Fazer’, como seres de fala”. (idem: 83).
Interessa-nos, particularmente, nesta breve análise, o “Fazer Prazer”.

1272
Sobre o a relação entre aquele que comunica e aquele que decodifica, gostaríamos de citar Barthes (2004: 23)
quando o autor afirma: “Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele
ninguém passivo (o leitor);...”
Barthes (idem: 20) ainda tece uma breve consideração sobre o ‘texto de prazer’: “... aquele que contenta, enche,
dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura.”
Ora, explorar a riqueza do vocabulário da Língua Portuguesa já constitui, sem dúvida, uma excelente fonte
comunicacional. Apropriar-se das diferentes nuances que cada vocábulo possa adquirir, em um dado texto, revela-nos mais
um avanço daquele que se dispõe a explorar os sentidos das palavras. Utilizá-las, sobretudo, com um sentido novo,
remetendo-o a outros com os quais guardam afinidades semânticas evidencia um domínio expressivo na tessitura do texto.
Apresentaremos, a seguir, a concepção de “campo semântico” em sentido lato, qual seja uma associação de
idéias que se identificam por meio de palavras. Poderíamos citar um exemplo trivial: médico, hospital, enfermeiros, leitos,
pacientes, medicações, prescrições etc.
Observe-se que há uma diferença entre campo semântico e campo lexical. Enquanto o primeiro relaciona-se a um
processo mental que poderíamos chamar, em uma linguagem mais coloquial, de ‘palavra que puxa outra palavra’, o
segundo, relaciona-se morfologicamente, ou seja, as palavras pertencem a uma mesma família, a um mesmo radical.
Assim, teríamos: pedra, pedrada, pedreiro, pedraria, apedrejar etc.
Vejamos, agora, alguns exemplos, utilizados de forma totalmente diferente do apresentado acima, onde não
constatamos qualquer indício de expressividade e poderíamos até concluir que só elencamos um grupo de palavras que
fazem parte do universo hospitalar, ou seja, uma palavra atraiu a outra por uma simples associação referencial.
Veja-se:
Exemplo 1
Au, au, au...
Não é só a Lei do Pitbull que agita o mundo cão.
O Shopping Cassino Atlântico, em Copacabana, proibiu, ontem, seis empresários de
continuarem levando seus cachorros para as lojas.
Quem desobedecer, a partir da próxima semana, levará uma mordida, na multa, de
R$ 1 mil por dia.”
(Boechat – JB – 16/07/2005)
Podemos verificar, neste breve texto jornalístico, um alto grau de expressividade, iniciado com o título “Au, au,
au...” - constatando-se, ainda, a habilidade do redator da matéria, ao apropriar-se do uso das reticências após uma
onomatopeia que reproduz o latido incessante, selecionando, ainda, uma raça de cão, considerada das mais ferozes
“Pitbull”. Assim, o jornalista passa de um processo homonímico cão=cachorros e culmina com a utilização de outro termo.
Este, metafórico, através do substantivo “mordida”, que nos surpreende por se referir a uma ‘multa’.
É interessante, ainda, destacarmos que, no processo homonímico, há uma debreagem entre as palavras “cão” e
“cachorro”.
Não há como negar que o redator soube conquistar o leitor, através do riso, para noticiar um fato que poderia
restringir-se a uma linguagem, predominantemente, denotativa. Perderia, no entanto, em expressividade.

1273
Observe-se, ainda, que a expressão ‘mundo cão’ faz parte de um conhecimento partilhado entre o eu comunicante
e o tu interpretante. Assim, teríamos: mundo cão= mundo desumano, animal.
Exemplo 2
“DISPUTA NO NINHO TUCANO PARA 2004
Os tucanos já começaram a colocar os bicos para fora do ninho, tentando
abocanhar um alimento apetitoso: a candidatura à prefeitura do Rio. (...) Apesar de
tantos tucanos querendo vôo (sic) próprio, ainda há corrente no partido favorável à
aliança com César Maia (PFL), que tentará a reeleição. (...) Pelos seus 385 mil
eleitores, a deputada Denise Frossard sai na disputa com um bico de vantagem. (...)
No entanto, articuladores tucanos têm projetos para a tucana que não chegam a
sobrevoar o Palácio da Cidade, sede da prefeitura, mas sim o Guanabara, no
Governo do estado,em 2006. Foi Denise Frossard que deu abrigo no ninho tucano
a Eduardo Paes, em maio. (...) Até outubro, os tucanos colocam a ordem no ninho e
escolhem os nomes para renovar os diretórios nacional, estaduais e municipais.”
(O Dia – 5/07/2003 – Caderno Economia)
Analisando os trechos selecionados de uma matéria, relativamente extensa, verificamos que algumas
associações, por se tornarem muito comuns, já não se revelam como expressivas. Seriam elas: tucano(s) para os políticos
filiados ao PSDB. No entanto, encontramos outros termos (e até sintagmas nominais) que nos surpreendem pela
originalidade no uso, a saber: “bico de vantagem” (ao invés de pontos ou percentuais), o verbo “sobrevoar” que,
obviamente, relaciona-se a pássaros e o que consideramos mais expressivo: o fato de uma filiada do partido em foco dar
abrigo a outro político, como uma tucana-mãe acolhe um filhote.
Obviamente, devemos ressaltar que o conjunto de termos relacionados pelo sentido concorre para que o
redator/jornalista atinja um alto grau expressivo, explorando as palavras em suas diferentes nuances.
Exemplo 3
“SAÚDE MILITAR DEBILITADA” (O Dia – 10/11/2003 – 1º Caderno)
“Cuidado: há planos de saúde doentes” (O Globo – 17/12/2000 – 2ª edição)
Acima, confrontemos duas manchetes de dois jornais direcionados a públicos diferenciados. O Dia atingindo,
predominantemente as classes menos privilegiadas da sociedade e O Globo, jornal direcionado às classes A e B.
Na primeira manchete, a palavra “saúde”, embora encontre em “debilitada” o seu respaldo semântico, contrasta-se
com o seu adjetivo, causando uma surpresa, uma vez que há uma quebra de expectativa em relação ao sintagma nominal
(doravante SN).
Na segunda manchete, o processo apresenta-se semelhante, uma vez que há quebra de expectativa em relação
ao SN (planos de saúde) e certa dose de ironia, ao iniciar a manchete com a palavra “cuidado”. Na verdade, ter um plano de
saúde nunca deveria ser motivo para tomarmos qualquer tipo de precaução ou “cuidado”. Novamente, neste segundo
exemplo, devemos ressaltar o valor expressivo da pontuação que demarca e aponta o que será recebido como uma
advertência.

1274
Exemplo 4
“Paz açucarada pelo balanço das ondas” (matéria assinada por Alexandre Carauta)
“Saquarema viveu anos sob a colcha da estética surfista. Lugar informal e
deliciosamente rústico – como deve ser uma cidade praiana. Refúgio para o caos
urbano, curtido no azeite do barulho e da insegurança. Foi-se a década de 70 e a
Região dos Lagos domesticou-se, ganhando ingredientes de cidade grande (Búzios
que o diga), para o bem e para o mal. Saquarema resiste o quanto pode, ainda que
o rótulo de templo do surfe tenha se dissipado. O lado negro desta resistência: a
cidade reúne menos opções de lazer e gastronomia do que Búzios e Cabo Frio, por
exemplo. (...) Curtir o mar é preciso. (...) De Itaúna, tem-se uma vista maravilhosa da
Igreja de Nossa Senhora de Nazaré. Na altura de uma língua de pedra
conhecida como laje, quebram ondas cheias e ariscas. Um prato cheio para o
regozijo sobre a tábua de resina. Quem não pega onda pode, dependendo do humor
do mar, deliciar-se com as águas limpas, além de apreciar o visual generoso da
praia mais charmosa de Saquarema.
Ao fim da tarde, é a hora do show. Bambas rasgam as ondas num balé nervoso. Há
tardes em que o banquete de manobras lembra, guardadas as proporções, aquele
cantinho abençoado do North Shore, Havaí, entre Sunset e Pipeline. Saquarema é
o nosso North Shore, com alguns anos-luz a menos de exuberância e badalação.
Mas a informalidade e o cheiro de diversão aquática são os mesmos. (...) Na Vila, o
agito corre minguado. Nada de boates e restaurantes moderninhos. A volta
olímpica no quarteirão ao lado da pracinha é tudo que se tem. Uma moqueca de
peixe ali, um sorvete de frutas acolá, uma olhada na feirinha e lá se foi a noite. (...)
(Jornal do Brasil – 25/05/2002 – Seção “LOGO ALI turismo com um tanque”)
Este texto, ricamente expressivo, apresenta-nos um cruzamento de três campos semânticos. O primeiro, que
destacamos em itálico, revela o mundo do surfe, o segundo, o mundo gastronômico e o terceiro, o religioso.
Teríamos, assim, no primeiro grupo, as palavras: surfista(s), templo do surfe, ondas cheias e ariscas, tábua de
resina, pega onda, bambas rasgam as ondas num balé nervoso, diversão aquática, volta olímpica.
Enquanto, no segundo grupo, negritados por nós, encontramos: deliciosamente, azeite, ingredientes, gastronomia,
prato cheio, deliciar-se, restaurantes, moqueca de peixe, sorvete de frutas.
Já, no terceiro grupo (destacado por fonte maior), o redator revela o aspecto religioso através do substantivo
‘templo’, do locativo “Igreja Nossa Senhora de Nazaré” e do adjetivo “abençoado”, este referindo-se a toda a praia de
Saquarema.
Embora este artigo não se proponha a apontar todos os recursos expressivos utilizados pelo jornalista, não
podemos deixar de registrar o conhecimento enciclopédico do escriba, ao parafrasear os versos: “Navegar é preciso, viver
não é preciso”. Nas palavras do jornalista: “Curtir o mar é preciso” (sublinhado no texto).

1275
Exemplo 5
“DIAGNÓSTICO DO DOUTOR PALOCCI
País vive tensão pré-Copom
Atual ministro da Fazenda, o médico sanitarista Antônio Palocci recorreu aos
conhecimentos enfeixados no diploma profissional para identificar uma síndrome
com alta incidência no país. Os sintomas costumam manifestar-se todo mês, na
semana anterior à reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central que
fixa a taxa básica de juros. Trata-se da tensão pré-Copom, ou TPC, com sintomas
semelhantes aos da tensão pré-menstrual (ou TPM) que afeta multidões de
mulheres. O sinal mais evidente é a irritação, muito aguda entre empresários,
parlamentares e economistas, que pressionam pela queda da taxa. Outros
sintomas: ansiedade e mudanças repentinas de humor no mercado financeiro. E há
a dor de cabeça inoculada na cúpula do governo por inevitáveis declarações do
vice-presidente José Alencar sobre o tema.”
(Jornal do Brasil – 17/07/2003- página A8)
Observe-se que o título já nos conduz à trilha do produtor do texto que, de forma bem humorada, parte da
profissão do ministro para falar da tensão no mercado financeiro que o jornalista associa a um estado feminino (TPM) cujos
sintomas são elencados pelo jornalista.
A expressividade da matéria é notória e tece, do começo ao fim, a analogia entre a já conhecida TPM e a sigla
neologísmica TPC.
Dentre as palavras negritadas, algumas merecem considerações: a especialidade do médico (sanitarista), ou seja,
aquele que tenta evitar contaminações.
O processo homonímico é outro fator linguístico que merece destaque: ‘sinal’ e ‘sintomas’. Observe-se que, para a
consequência ‘mais evidente’, o jornalista utiliza a palavra ‘sinal’ (‘...irritação, muito aguda entre os empresários...’) e para
os demais (ansiedade, mudanças repentinas de humor, dor de cabeça inoculada), o autor opta por voltar ao processo
analógico que, de certa forma, ameniza o impacto da mensagem.
Sobre a sedução através do humor não vamos, neste exemplo, tecer considerações, uma vez que já o fizemos
anteriormente no exemplo 1.

Exemplo 6
“Quero notícias do mundo real”
(...) Mas, nas primeiras páginas dos jornais, estão os acordes da orquestra, na
versão econômica do baile da Ilha Fiscal, que fazem dançar alegremente o
mercado. (...)
(O Dia – 31/07/2001)

1276
Neste exemplo, o jornalista apropria-se de um reporte de fala do deputado Miro Teixeira e aborda o tema
“desigualdade social”, reportando-se ao último baile da família real, realizado na Ilha Fiscal. O campo semântico explorado
é, portanto, relacionado a um episódio histórico que marcou a vida do nosso país.
Merece destaque, dentre as palavras em negrito, o advérbio ‘alegremente’ que, ironicamente, marca a oposição
entre triste e alegre. Enquanto a desigualdade ainda se mostre uma realidade, depois de tantos anos de imperialismo
(tristeza), para o mercado financeiro é motivo de dançar ‘alegremente’.
Embora, nosso foco de análise, neste breve artigo, seja a exploração de campos semânticos no discurso
jornalístico, não podemos deixar de registrar o duplo sentido do título (‘notícias do mundo real’) que, tanto pode se referir à
real de realidade como ser entendido como um hiperônimo (real= moeda=desigualdade social=Brasil).
Exemplo 7
“Ping – pong (sic)
O deputado Babá e o músico grego Yanni não são a mesma pessoa.” (ao lado da
notícia há duas fotos, lado a lado (à esquerda, o tecladista, e à direita, o deputado)
“Diferentemente do tecladista (à esquerda), o parlamentar cearense precisa de
óculos para ler suas barulhentas partituras. No momento, Babá toca trombone na
banda do PT disposta a acabar com o baile da reforma.”
Partindo do pressuposto que ‘parecer não é ser’, o jornalista apropria-se de um
campo semântico relacionado ao tecladista/instrumentista grego e, a partir de um
processo comparativo/contrastivo, noticia o posicionamento de um parlamentar que
‘toca trombone’, ou seja, faz alarde para ‘acabar com o baile da reforma”.
(Jornal do Brasil – 22/06/2003)
Por tudo o que já foi analisado (processo homonímico, exploração de campo semântico como recurso expressivo),
acreditamos que apenas um dado a mais mereça a nossa consideração: ‘barulhentas partituras’. A anteposição do adjetivo
(riqueza sintática de nossa língua) adquire força semântica que se compactua com o instrumento ‘trombone’, e, por sua vez,
contrasta-se com a suavidade do som de um tecladista.

Exemplo 8
Show
Para alegrar a corte
O rei Roberto Carlos faz show amanhã e domingo no Maracanãzinho. Pág. 8
(O Dia – 5/12/2003)
Na realidade, temos acima apenas uma chamada para a notícia que conterá maiores detalhes sobre o evento. O
cantor brasileiro Roberto Carlos, mais conhecido como ‘o rei’ alegrará a ‘corte’, ou seja, uma multidão de fãs (diríamos
‘súditos’ para corroborar com a análise expressiva do texto em foco).

1277
Exemplo 9
“Fumacê é aplaudido por moradores
Em época de dengue, carro-fumacê é rei. Principalmente quando aparece do nada,
embora solicitado há dois meses por legião de 25 mil plebeus. A ‘nobre’ aparição
surpreendeu a comunidade do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho 10 minutos antes do
previsto para a chegada de Charles e foi ovacionada como se fosse o próprio
príncipe. Êêêê, gritaram os súditos, cujo reino é ameaçado pelo Aedes aegypti. O
presidente da Associação de Moradores, Sebastião Teodoro filho, perdeu a fleuma.
(...)
Para a comitiva do príncipe, o procedimento reforçou as precauções indicadas a
Charles pelo Consulado Britânico contra a doença que assola os trópicos: usar
repelente. A Reduc contratou um fumacê particular para pulverizar a refinaria.”
(O Dia – 5/03/2002)
Neste texto, gostaríamos de mencionar a relevância da representação social, ou seja, o príncipe Charles visitaria a
comunidade e, portanto, algumas precauções deveriam ser tomadas. O ‘gancho’ para noticiar a presença do carro-fumacê
direciona-se para o mundo dos ‘nobres’ em oposição aos ‘plebeus’.
Exemplo 10
“Professor precisa de aula
Censo escolar divulgado pelo Ministério da Educação mostra que no Rio existem
360 mestres sem o Ensino Fundamental completo.
O quadro é negro. O censo escolar divulgado ontem pelo Ministério da Educação
(MEC), em Brasília, revela histórico pontuado por notas vermelhas. Desta vez,
para os professores. Realizado ano passado, o estudo aponta graves falhas na
formação profissional dos docentes do País. (...)
O estudo segue mostrando que milhares de professores não fizeram o dever de
casa. (...) As anotações nas cadernetas dos professores não param por aí.”
(O Dia – 15/03/2004)
Foram feitos vários recortes, no texto acima, uma vez que o jornalista apresenta forte argumentação através de
números defasados pelo tempo (a matéria foi publicada há 6 anos). Por outro lado, interessa-nos o valor estético conferido
através da exploração de campos semânticos.
O jornalista inicia o texto com uma frase que já virou lugar-comum e, portanto, perde em expressividade. No
entanto, a sequência ‘histórico pontuado por notas vermelhas’ apresenta-se bastante expressiva, uma vez que todo
aluno/professor, ao concluir uma formação, recebe seu histórico escolar, mas este reprovava, à época em que a matéria foi
redigida, a formação do docente.
Embora o texto não nos possa revelar a idade do jornalista, supomos tratar-se de pessoa que estudou há tempos
atrás, quando era muito comum ‘anotações nas cadernetas’.

1278
Apresentaremos, a seguir, uma síntese da visão de mundo de cada jornalista a partir da seleção/combinação dos
campos semânticos:
Ex. 1 – mundo humano= mundo animal

Ex. 2 – idem

Ex. 3 – mundo humano= mundo doente

Ex. 4 – mundo humano = mundo de PAZ

Ex. 5 – mundo humano = mundo doente

Ex. 6 – mundo humano = mundo capitalista

Ex. 7 = mundo humano = mundo de contradições

Ex. 8 = mundo humano = mundo da realeza

Ex. 9 = idem

Ex. 10 = mundo humano = mundo da realidade

Pelo que pudemos observar, a utilização de campos semânticos constitui-se em um excelente recurso expressivo
que seduz o leitor à leitura do texto, produzindo prazer e revelando alto grau de criatividade, necessário a todos que, sob o
jugo do tempo, não se interessam pelo noticiário da mídia impressa.
Portanto, entendemos que a nossa relação com os textos não é única, nem tampouco passiva. O escritor constrói
o texto a partir de uma intencionalidade e o leitor segue o percurso inverso, reconstruindo o sentido a partir das pistas que o
texto vai lhe oferecendo.
Encerramos este despretensioso artigo com um questionamento. O que seria mais importante em um texto: ‘fazer
saber’, ou ‘fazer prazer’? Acreditamos ser mais prazeroso e produtivo unir os dois objetivos e levar o leitor ao conhecimento,
deslumbrando-se com ele.

Referências

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2004.

CARNEIRO, Agostinho Dias. O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

CHARAUDEAU, Patrick. O discurso da mídia. Oficina do autor, 1996.

GUIRAUD, Pierre. A estilística. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.

MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

Currículo do autor:

Tânia Maria Bezerra Rodrigues – taniarodrigues@ig.com.br

Professora adjunta de Língua Portuguesa da Universidade Rural do Rio de Janeiro. É membro do CIAD e direciona seu foco
de investigação para a expressividade em textos midiáticos e sua produtividade no ensino do idioma materno. Atuou como
professora da Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio) durante a maior parte de sua carreira.

1279
Abordagem discursiva da comparação

RODRIGUES, Violeta Virginia


(UFRJ)

Comparando as propostas de classificação das orações de Koch (1992, p. 84-89) e de Fávero (1992, p. 52-82),
conforme quadro a seguir, percebe-se que ambas utilizam o critério semântico para analisar as orações e nele inserem a
terminologia tradicional. Logo, essas autoras não resolvem as diferenças estruturais envolvidas pela classificação das
adverbiais e das comparativas, em particular.

Koch (1992, p. 84-98) Fávero (1992, p. 52-82)


1. Conectoresinterfrásticos 1. Junção(elementoslinguísticos:
(conjunções,pronomesrelativos,preposiçõeselocuçõesprepositivas,alémdeadvérbios,locuções conectoresfrásicosepausas)
adverbiais) 1.1 Conjunção(aditiva)
1.1Conectoresdetipológico 1.2 Disjunção(alternativa)
 Condicionalidade(condicional) 1.3 Contrajunção(concessivae
 Causalidade adversativa)
(causal,conclusivaeconsecutiva) 1.4 Condicionalidade(condicional)
 Mediação(finalidade)  não-factualouhipotética
 Disjunçãológica(alternativa)  contrafactualouirreal
 Conformidade(conformativa) 1.5 Causalidade(casual,
 Temporalidade(temporaleproporcional) conclusivaeconsecutiva:
 Complementação(oraçõessubordinadassubstantivas) condicionalfactual/real)
 Delimitação/restrição(oraçõessubordinadasadjetivas) 1.6 Complementaçãoobjetiva
1..2 Encadeadoresdetipodiscursivo (oraçõessubordinadas
• Operadoresargumentativos substantivas)
 Conjunção(aditiva) 1.7 Restriçãooudelimitação
 Disjunçãoargumentativa(alternativa) (oraçõessubordinadas
 Contrajunção(concessivaseadversativas) adjetivas)
 Justificativaouexplicação(explicativa)
 Conclusão(conclusiva)
 Comparação(comparativa)
• Operadoresdeconjunção/sequencialização
 Sequencializaçãotemporal
 Sequencializaçãotextual
2. Pausas
3. Enunciadosreduzidos:infinitivo,gerúndioeparticípio

Fávero (1992), ao apresentar os processos de sequencialização dos enunciados, não inclui as comparativas entre
eles.
Koch (1992), analisando os conectores interfrásticos, apresenta uma proposta para o ensino desses elementos,
visando ao desenvolvimento da competência textual em língua materna. Assim, trabalha com dois elementos de conexão
interfrástica  os conectores lógicos e os encadeadores discursivos. Os conectores de tipo lógico relacionam-se a frases
ligadas1 e indicam o tipo de relação lógica entre o conteúdo de duas proposições  trata-se de um único enunciado, resultante
de um único ato de fala. Já os encadeadores do tipo discursivo são responsáveis pelo encadeamento sucessivo de
enunciados, dando-lhes uma orientação discursiva e estruturando-os em texto. Relacionam-se à coordenação semântica,
podendo ser de duas espécies  operadores argumentativos e operadores de sequencialização.
Entre os operadores argumentativos, responsáveis pela orientação discursiva global dos enunciados que encadeiam,
encontram-se os operadores de comparação, ou seja, as conjunções comparativas da abordagem tradicional. Segundo a
autora, operadores de comparação como tanto, tal...como, mais...(do) que, menos...(do) que estabelecem entre dois termos
uma relação de comparação.

1 Frases ligadas (Cf. Ducrot, 1977) são as verdadeiras subordinadas; nelas a intenção principal do locutor é apontar para a existência de uma
relação entre as duas orações.

1280
Partindo do pressuposto de que o papel fundamental da comparação linguística é determinar um objeto por referência
a um outro, Vogt (1977, p. 60), ao estudar a comparação e alguns operadores argumentativos como mesmo, ainda e também,
defende a idéia de que a relação de comparação possui um caráter essencialmente argumentativo.

Dizer que a comparação se apresenta semanticamente como uma estrutura argumentativa significa,
para nós, dizer que ela estabelece no mesmo ato da enunciação uma escala em que os enunciados
se dispõem numa relação de grau (mais fortes, menos fortes, etc.), desfrutando de uma ambigüidade
estrutural (relativamente à organização tema/comentário) que se presta menos à informação do que
à argumentação, propriamente dita, em favor de um julgamento.

Ainda, segundo ele (Cf. Vogt, 1977, p. 54-5),

a estrutura argumentativa analisa-se sempre em termos de tema e comentário, apresentando-se este


como argumento em relação àquele. Tema e comentário são permutáveis do ponto de vista sintático
(isto é, a comparação desfruta de uma ambigüidade estrutural relativamente à organização
tema/comentário), mas não o são do ponto de vista argumentativo; se B é um argumento favorável a
A, então A é um argumento desfavorável a B, em estruturas do tipo:

A é (está) mais X que B


A é (está) menos X que B.

em que A representa o comparado ou TEMA; B, o comparante ou ARGUMENTO; que, a marca da comparação; e mais,
menos, marca de superioridade e inferioridade.
Quanto ao comparativo de igualdade (A é (está) tão X quanto B), Vogt (1977) afirma que este apresenta ambiguidade
estrutural e o caracteriza como um

equilíbrio passageiro entre dois pesos de uma balança, que, por isso mesmo, se sustenta por uma
imposição entre os termos comparados: a igualdade e a diferença nele coexistem, ou seja, a
“igualdade”, na comparação, já é um sintoma de diferença. (Cf. Vogt, 1977, p. 198; 229)

Para Vogt (1977, p. 183), as estruturas comparativas representam para os adjetivos o que as estruturas relativas
representam para os nomes, isto é, são especificadores do adjetivo, tal como as relativas o são dos nomes.
Pensando-se na articulação com os adjetivos (ADJs), torna-se necessário lembrar que a estrutura do sintagma
adjetival envolve não só o ADJ, que é o núcleo, mas também os especificadores, todos os elementos que quantificam o núcleo,
tradicionalmente denominados graus do adjetivo, e, ainda, os complementos, sintagmas preposicionais (SPrep) e frases (Fs)
que aparecem à direita do ADJ.
Grau, em um sentido mais amplo, é uma categoria linguística que afeta adjetivos, nomes, advérbios e verbos, e que
só contextualmente pode ser definido. O grau comparativo é constituído pela conjugação dos advérbios (ADVs2) mais, menos,
tão e do complemento do ADJ que/do que SN ou como SN e tem três modalidades:

1. comparativo de superioridade : O Luís é mais inteligente que o João3;


2. comparativo de inferioridade: O Luís é menos inteligente que o Mário;
3. comparativo de igualdade: O Luís é tão inteligente como o António.

2 O escopo do ADV abrange o ADJ e o seu complemento.


3 Os exemplos de 1 a 3 são de Mateus et alii (1983, p. 484-485).

1281
Entretanto, segundo Mateus et alii (1983), do ponto de vista semântico, tais modalidades podem ser reduzidas a duas
- um grau que consiste na relação superior/inferior e outro, que consiste na relação de igualdade (interseção da relação
superioridade/inferioridade).
Em síntese, para as autoras, as construções de graduação podem envolver (Cf. Mateus et alii , 1983, p. 482-491):

• os adjetivos graduáveis (o grau positivo), como em O teu filho é inteligente;


• o grau elevado (o superlativo absoluto), como em O teu filho é muito inteligente;
• o grau comparativo - as orações comparativas, como em O Luís é mais inteligente do que o Mário é trabalhador;
• o superlativo relativo, como em O Luís é o mais inteligente dos filhos do António;
• as construções comparativas com nomes (Ns), como em Eu comprei mais livros do que a Teresa; com ADVs, como em A
Helena escreve à máquina melhor do que a Ana; e com verbos (Vs), como em A Maria emagreceu mais do que a Helena;
• as construções aparentadas com as que incluem comparativas, como Ele é teimoso assim como desajeitado, Ele procedeu
como esperávamos e Ele fala conforme escreve.

Destaquem-se dos itens supracitados o grau comparativo - as orações comparativas, as construções comparativas
com Ns, ADVs e Vs, e as construções aparentadas com as que incluem comparativas.
Nas construções comparativas com Ns, são comparadas quantidades dos mesmos ou de diferentes objetos entre
duas constantes (no grau comparativo) ou entre uma constante e uma variável universalmente quantificada (no grau
superlativo). Veja-se um exemplo: Eu comprei mais livros do que a Teresa (comprou) cadernos (Cf. Mateus et alii, 1983, p. 488).
Nas construções com ADVs, são comparadas qualidades dos mesmos ou de diferentes processos ou ações.
Observe-se o exemplo: A Helena escreve à máquina melhor do que a Ana (escreve) à mão (Cf. Mateus et alii, 1983, p. 489).
Nas construções com Vs, inserem-se aqueles que podem ser comparados ou superlativizados. Entre os Vs
graduáveis incluem-se os que significam mudança de estado, como emagrecer, envelhecer, empalidecer etc. Veja-se um
exemplo: A Maria emagreceu mais do que a Helena engordou (Cf. Mateus et alii, 1983, p. 490).
Nas construções aparentadas com as que incluem comparativas, figuram aquelas em que certos conectores
aparentemente comparativos têm, na realidade, outro valor associado ao valor comparativo. Entre esses, citam-se (Cf.
exemplos de Mateus et alii, 1983, p. 491):

1. como, bem como, assim como, tal como, com valor comparativo e conjuntivo;
2. como, com valor comparativo e relativo4;
3. conforme, com valor comparativo e não-comparativo.

Assim, pretende-se com este trabalho descrever alguns usos de construções comparativas em situações reais de
interação, a fim de comprovar a hipótese de Vogt (1977) de terem tais estruturas essencialmente um caráter argumentativo.
O corpus utilizado para análise é o de Rodrigues (2001), em que foram observados diferentes tipos de dados com
base em um corpus de Língua Oral gravada no decorrer das décadas de 70 e 90, e em outro, de Língua Escrita dos séculos
XVIII, XIX e XX. Nesse corpus foram encontrados os seguintes operadores: do que, no que, que, como, igual, quanto, que nem,
assim como, tal e qual como, tanto quanto, tal qual, feito.

4 Usa-se, nesse caso, o termo relativo para se fazer referência ao introdutor das orações relativas (orações adjetivas na GT).

1282
A seguir, listam-se exemplos dos introdutores encontrados por Rodrigues (2001):

(1) D. Clóris – Cada uma de nós estima tanto qualquer dessas plantas, que mais fácil será perder a vida, [DO QUE elas percam
o crédito de verdadeiras.]

No exemplo (1), tem-se a preposição DE seguida da conjunção QUE. Em contrapartida, há que se mencionar aqui a
existência do caso do exemplo (2) em que se repete novamente a estrutura PREP + QUE, só que agora o introdutor da
segunda parte da construção comparativa é no que:

(2) (...) Ela, isso é até um pouco de defeito, ela pensa muito mais nos outros [NO QUE nela, né,] mas eu acho que ela é uma
pessoa feliz e tal, que não tem nada...

A estrutura antes mostrada poderia vir sem a presença da preposição, como indicam os parênteses na representação
(PREP.) + QUE, que dá conta da configuração do introdutor do exemplo (3) a seguir.

(3) (...) Ele não tem, não tem, quer dizer, o que está acontecendo é que, eh, São Paulo, Minas Gerais, pra dizer só dois estados
que são vizinhos, eles expandem muito mais rapidamente [QUE o Rio de Janeiro.]

O que, segundo Barreto (1992), inicia sentenças com verbos no indicativo, nas quais se admite a elipse do sintagma
verbal (SV), quando este for idêntico ao da sentença anterior. Nesse contexto, o SV elíptico é expandir. O papel de (do) que, em
todos esses casos, é introduzir o segundo termo da comparação, seja este oracional ou não.
Já o como faz a equiparação entre duas circunstâncias ou dois comportamentos que se formulam em o fato A se
parece, se assemelha em muitas de suas qualidades ou características com o fato B. Por isso, nesses contextos, esta palavra
pode ser substituída pela expressão equivalente igual que. Portanto, o exemplo (4) poderia ser reescrito como E eu declaro que
te hei de seguir [IGUAL a sombra segue o corpo...]

(4) (Fala de Henriqueta) E eu declaro que te hei de seguir [COMO a sombra segue o corpo...]

Em (4), como liga-se ao verbo da oração anterior - seguir, é, portanto, um adjunto oracional.
Exemplificam-se a seguir todos os introdutores diferentes de que e como encontrados nos corpus: igual, quanto, tanto,
que nem, assim como, tal e qual como, tanto quanto, tão como, tal qual, feito:

(5) (...) é esse alertamento à mulher... ajudar ela que acorde pra esse... pra esse estado de coisas... que ela pode... ela é um
ser humano [IGUAL ao homem...]

(6) (...) Os prédios, não são tão aglomerados, sabe, um colado com o outro, tem uma coisa mais de espaço você tem uma visão
mais, mais ampla, mais, mais longínqua das coisas você tem uma visão mais, do espaço físico você não fica não, tão contido
né [QUANTO aqui.]

(7) (...) aí eu gostava de comprar sorvete... sorvete da Kibon custava centavos né... [QUE NEM os de hoje.]

(8) (...) Foi um dia até muito quente, [ASSIM COMO o dia de hoje,] quero dizer, estávamos no inverno mas estava um dia
quente, um dia bonito (...)

(9) (...) chamava-se o alguidar e havia outros que eram com as tabuinhas postas, [TAL E QUAL COMO as cartolas.]

(10) (Fala de Cristina) Não enche a sua. A minha poderia encher se nós saíssemos dessa dieta (PAUSA) nada alimenta
[TANTO QUANTO o amor, Armando.]

1283
Segundo Ayora (1991), quando os elementos tanto como vêm juntos na expressão e se relacionam com dois verbos,
um que os precede e outro que os segue, o que se compara em tal caso é a intensidade da ação realizada por dois agentes.
Adaptando a proposta do autor para o espanhol, percebe-se em (11) algo bem parecido com isso no português.

(11) (Fala de Miguel) Esse regaço do puro amor não era mais que o resultado efêmero da lua de mel. Quer tua sogra batesse-te
às portas, quer não, a mimosa diva de Irajá devia apresentar-se mais tarde [TAL QUAL era.]

Embora os operadores argumentativos encontrados em Rodrigues (2001) sejam bastante diversificados, a premissa
de que a comparação é determinada por uma relação de cotejo de um elemento em relação a outro se mantém, como se
observa em (12).

(12) Semicúpio – Sim, estou frança, porque estou [FEITO galo.]

Em (12), compara-se estar frança com estar galo. No exemplo (13), tem-se a seguinte configuração: (PREP.) +
(QUE).

(13) (...) De repente é melhor até ficar enquadrado DO QUE ser só mais um pentelho, [ficar perturbando aí.]

No exemplo (13), omite-se do que já expresso, enumerando-se três constituintes oracionais coordenados ficar
enquadrado, ser só mais um pentelho e ficar perturbando aí. Em (14), elide-se o introdutor (como) e o SV (conheço).

(14) (Fala de Ventura) Conheço o Pão de Açúcar COMO conheço o Corcovado, [o Morro da Viúva.]

Nesses exemplos, os introdutores são inferíveis pelo contexto linguístico. Em (13), é do que e em (14), como. Em (14),
faz-se, ainda, elipse do verbo conhecer.
Como se nota, a identificação dos introdutores da primeira e da segunda partes da estrutura comparativa interfere
diretamente na forma dessa construção, ou seja, determinará se ela será correlata ou não-correlata. Desse modo, quando a
estrutura comparativa tem sua segunda parte iniciada por como, não estando este introdutor ligado a outro elemento, a
construção está na forma não-correlata; quando a construção comparativa tem a sua segunda parte iniciada por (do) que e este
está relacionado com um elemento da primeira parte, a construção é correlata.
Na classificação das construções comparativas na ótica da Gramática Tradicional (GT), estas são subdivididas em
comparativas de superioridade, inferioridade e igualdade. No entanto, ao se analisarem os dados do corpus, identificaram-se
mais duas possibilidades de classificação, que foram acrescentadas – a comparativa de similitude ou metafórica (Cf. Ayora,
1991) e a comparativa de neutralidade.
As comparações de desigualdade fornecem informações mais imprecisas, além de admitirem subquantificação por
meio de indefinidos, multiplicativos etc., o que não se verifica com as de igualdade. Quando se diz, por exemplo, Un niño
más/menos alto que su padre. (Um garoto mais/menos alto que seu pai.), não se especifica nitidamente em que medida o
garoto é mais ou menos alto que seu pai.
As comparativas de igualdade podem manifestar-se como 1) comparativa própria, 2) relativa, 3) com igual que ou,
ainda, 4) com artigo + mesmo + que.
A partir do que se expôs, ilustra-se, a seguir, cada tipo de conteúdo semântico de comparativa analisado no corpus:

1284
Comparativa de superioridade
Nesse caso, encontram-se estruturas do tipo A é (está) mais X que B.

(15) (Fala de Alberto) (...) É esta a minha casa, mas estes móveis não conheço... Mais ricos e suntuosos são [DO QUE aqueles
que deixei.]

Comparativa de inferioridade
A estrutura que dá conta dessa possibilidade é A é (está) menos X que B.

(16) (Fala de Irene) Pensando melhor, um fogão de seis bocas dá MENOS trabalho [QUE uma criança...]
Comparativa de igualdade
Aqui a estrutura tanto pode ser COMO + V quanto A é (está) tão X quanto B.

(17) X: todos a, a pé, a cantar, com os adufes à frente, aquela coisa toda e a senhora do almortão tem um alpendre [COMO
muitas capelas têm], como devem conhecer, (...)

(18) Nova York, em determinados pontos, é tão violento [QUANTO o Rio ou, de repente, até mais,] e neguinho aí nem comenta
isso né.

García (1994, p. 234) afirma que, nesse tipo de comparação, podem-se inverter livremente os termos que a compõem.
Encontrou-se no corpus de Língua Escrita o único caso em que a segunda parte da construção comparativa antecede a
primeira, ou seja, em que se comprova esta afirmativa do autor. Eis o exemplo:

(19) (Fala de Violeta) (...) [COMO seu pai,] também fala erradamente com forte acentuação inglesar...

Reescrevendo o exemplo (19), evidencia-se a ordem inversa: [COMO seu pai (fala erradamente com forte acentuação
inglesar),] também (você) fala erradamente com forte acentuação inglesar...
Nota-se, pelos exemplos dados, que as comparativas de igualdade não aparecem com o verbo no modo subjuntivo.

Comparativa de similitude ou metafórica


Nesse tipo de construção, tem-se a estrutura V + COMO + SN, como em:

(20) (Fala de Jeremias) (...) Os diabos destes ingleses bebem [COMO uma esponja!] Ah, porque deixastes a mesa na melhor
ocasião, quando se ia abrir a champanha?

Esse conteúdo semântico da comparação foi estabelecido com base em Ayora (1991, p. 16). O autor adota essa
denominação para os casos em que se apresenta a intensificação da qualidade que serve para estabelecer a semelhança. Por
isso, para ele, a comparação com sentido metafórico faz parte da comparação de igualdade, embora possam ser distinguidas
pela estrutura formal. Assim, Ayora (1991, p. 33) destaca que a estrutura formal da comparação de igualdade é COMO + V e a
da comparação de similitude é V + COMO, afirmando que nestas as realidades comparadas se assimilam totalmente, porque a
realidade ou objeto A é apresentado como idêntica à realidade ou objeto B. Além disso, ressalta que, nessas construções, o
verbo presente é sempre o copulativo ser; a forma como pode ser suprimida ou substituída pelas expressões igual que ou o
mesmo que. Com a utilização do termo similitude, o autor pretende realçar a ideia de que este tipo de estrutura serve para
formular um juízo qualitativo.

1285
Por não se comportarem de maneira diferente de qualquer outra construção comparativa, ou seja, já que a estrutura
linguística é a mesma, casos como esses foram analisados no presente estudo.
Com base nos exemplos antes mostrados, percebe-se que (do) que e como servem para distinguir dois tipos de
comparação em Língua Portuguesa – desigualdade e igualdade.

Comparativa de neutralidade
Nesse caso, não se identifica nenhuma das modalidades antes apresentadas. O conteúdo semântico de neutralidade
foi estabelecido exclusivamente por meio da análise empírica dos dados e por meio dele o falante parece disfarçar o juízo sobre
o seu discurso. Como se percebe em (21), a oração comparativa destacada entre colchetes não deixa clara a opinião do
emissor com relação ao fato expresso.

(21) (...) tem que começa(r) (...), para(r) já, hoje em dia já é bastante diferente [DO QUE era há uns anos atrás.]

Embora ele diga que é bastante diferente, não explicita a natureza da diferença – se melhor ou pior do que a do
momento mencionado.
Portanto, no que se refere ao conteúdo semântico veiculado por essas construções – superioridade, inferioridade e
igualdade - a maioria dos trabalhos limita-se a tal caracterização, mas alguns, ao invés disso, preferem estabelecer uma
oposição binária, ou seja, igualdade versus desigualdade, tendo em vista que a designação desigualdade abrange tanto
inferioridade quanto superioridade. Todavia, a partir da análise qualitativa dos dados, constatou-se a existência de outros dois
conteúdos semânticos envolvidos na comparação – a metáfora e a neutralidade. Com base em Napoli (1983) e Ayora (1991),
analisaram-se construções chamadas de metafóricas ou de similitude, estruturas pelas quais o falante formula um juízo
qualitativo sobre o seu discurso (Cf. exemplo (22). Ao contrário dessas, as construções que veiculam neutralidade servem
justamente para camuflar o juízo do falante sobre o seu discurso (Cf. exemplo (23).

(22) (...) hei de fugir de ti [COMO o diabo foge da cruz.]

(23) (...) minha família é... mais ou menos [COMO eu.]

Assim, com base na análise empreendida, pode-se concordar com a premissa de que a relação de comparação
possui um caráter argumentativo (cf. Vogt, 1977, p. 60). Tal fato parece se relacionar com os gêneros textuais analisados e com
o grau de formalismo empregado nos textos.
A análise se baseou em diferentes tipos de dados, sendo os dados de língua escrita provenientes de peças teatrais,
em geral comédias de costumes, nas quais se procura adequar a variedade linguística à identidade da personagem e à
situação de comunicação, estilização que tenta aproximar esse tipo de texto ao falado.

1286
Referências

AYORA, A. Moreno. Sintaxis y semántica de “como”. Málaga, Editorial Librería Ágora, 1991. Cuadernos de Lingüística 12.

BARRETO, Therezinha Maria Mello. Conjunções: aspectos de sua constituição e funcionamento na história do português.
Salvador, Universidade Federal da Bahia/Pós-Graduação em Letras, 1992. Dissertação de Mestrado. 2 Vol.

------. Gramaticalização das conjunções na história do português. Salvador, UFBa, 1999. Tese de Doutorado. 2 Vol.

DUCROT, Oswald. Dizer e não dizer - Princípios de semântica lingüística. São Paulo, Cultrix, 1977.

FÁVERO, Leonor Lopes. O processo de coordenação e subordinação: uma proposta de revisão. In: CLEMENTE, Ivo & KIRST,
Marta (org.). Lingüística aplicada ao ensino de português. 2. ed., Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992. p. 51-61.

GARCÍA, Ángel López. Gramática del español. Madrid, Arco/Libros S. L., 1994. 1. La oración compuesta.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. São Paulo, Cortez, 1984.


------. Dificuldades na leitura/produção de textos: os conectores interfrásticos. In: CLEMENTE, Ivo & MARTA, Kirst (org.).
Lingüística aplicada ao ensino de português. 2. ed., Porto Alegre, Mercado Aberto, 1992. p. 83-98.
------. A articulação entre orações no texto. In: Cadernos de estudos lingüísticos, Campinas, (28) 9-18, Jan./Jun. 1995.

MATEUS, Maria Helena Mira et alii. Gramática da língua portuguesa - elementos para a descrição da estrutura,
funcionamento e uso do português actual. Coimbra, Livraria Almedina, 1983.

NAPOLI, Donna Jo. Comparative ellipsis: a phrase structure analysis. Linguistic inquiry. Cambridge, The MIT Press, 14 (4), 675-
694, Fall, 1983.

ORDÓÑEZ, S. G. Las odiosas comparaciones. Lingüística 13, Logroño, 1992.

------. Estructuras comparativas. Madrid, Arco Libros S. L., 1997a. Cuadernos de Lengua Española.

------. Estructuras pseudocomparativas. Madrid, Arco Libros S. L., 1997b.

RODRIGUES, Violeta Virginia. Construções comparativas: estruturas oracionais? Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ,
2001. 164 p., mimeo. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa.

VOGT, Carlos. O intervalo semântico: contribuição para uma teoria semântica argumentativa. São Paulo, Ática, 1977.
------. Linguagem, pragmática, ideologia. São Paulo, Hucitec, 1980.

Violeta Virginia Rodrigues é professora de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ, mestre e doutora pela mesma
instituição. Atualmente, desenvolve projeto de pesquisa sobre Uso(s) de conjunções e combinação hipotática de cláusulas,
atividade que tem resultado na publicação de diversos capítulos de livros e artigos científicos.

E-mail: violetarodrigues@uol.com.br

1287
A encenação dialógica como estratégia de adesão ao
discurso

ROSA, Gerlice
(UFMG)

Introdução

Este artigo tem por finalidade discutir a encenação construída pela jornalista Senhorinha Diniz nos editoriais do
periódico O Sexo Feminino, veiculado no Brasil do século XIX. O presente trabalho está relacionado com as discussões da
pesquisa de mestrado cujo foco é analisar a construção ethótica da jornalista e proprietária, Senhorinha Diniz.
O jornal em questão foi produzido inicialmente na cidade de Campanha, no sul de Minas (1873-1874) e, a partir de
1875 passou a ser impresso e veiculado na capital do país na época, a cidade do Rio de Janeiro. O Sexo Feminino teve
duração longa se o compararmos com os demais jornais surgidos no Brasil em meados do século XIX, que eram muito
efêmeros, alguns veiculavam apenas sua primeira edição.
Consideramos pertinente trazer para a discussão a noção de esquematização do orador, desenvolvida
especialmente a partir dos estudos de Jean-Michel Adam (2005). Os trabalhos desenvolvidos por Adam permitem a
ilustração e representação da imagem do orador, constituindo seu ethos. O conceito torna-se apropriado por “articular o
campo linguístico da análise dos discursos ao da retórica e ao da teoria da argumentação” (ADAM, 2005, p.95).
Analisaremos o editorial de 27 de fevereiro de 1876 de O Sexo Feminino que constitui parte do corpus da nossa
pesquisa de mestrado. Buscamos, neste estudo, observar a encenação construída por Francisca Senhorinha da Motta
Diniz, redatora do periódico O Sexo Feminino (1873-1889), veiculado em Minas Gerais, e cuja proposta editorial volta-se
especificamente para o público feminino, fato percebido diante do direcionamento inscrito nas páginas do jornal. O
questionamento norteador desta reflexão é a maneira como é construída a relação da autora com seu destinatário, levando
em conta as visadas do seu discurso.

Esquematização

A esquematização é uma representação do discurso que facilita a compreensão e a análise do corpus. Segundo
Adam (2005, p.96), definir o objeto de discurso como uma esquematização discursiva é reunir a enunciação como um
processo e o enunciado como um resultado.
A proposta de esquematizar a fala do orador assume importância fundamental para a compreensão do discurso
analisado. Construir uma representação do discurso de outrem implica a visualização de estratégias, da constituição e da
encenação discursiva e, especialmente, o entendimento de como o enunciador percebe seu destinatário. Afinal, é através
das marcas e dos índices lingüísticos e discursivos que o enunciador expõe no seu discurso, que percebemos qual a
imagem que ele faz de seu interpretante.
Nessa relação entre o orador, seu auditório e as representações e reinterpretações feitas por eles, há a
construção de um processo que dá significado ao discurso:

1288
Toda esquematização discursiva é um processo (...) porque cada uma das proposições que
constituem o texto é somente uma fase em um movimento argumentativo dinâmico complexo
que prepara e conduz ao seguinte (ADAM, 2005, p.101).

Assim, surge no texto um movimento discursivo que intenciona direcionar o sujeito interpretante a um caminho,
pensado ou estruturado na própria enunciação pelo orador.
Apesar de sabermos que se trata de uma “definição parcial e seletiva de uma realidade” (ADAM, 2005, p.102),
pensamos ser válido o estudo da esquematização em virtude da compreensão que ele proporciona da imagem conduzida
no discurso e da elaboração que ele traz para a cena discursiva.

Encenação dialógica

A esquematização é uma dimensão fundamentalmente dialógica que pressupõe o relacionamento do locutor com
seu destinatário e toda a encenação construída visa a atingi-lo. “É próprio da essência de uma esquematização ser
reconstruída por seu destinatário, portanto, ser reinterpretada” (GRIZE apud ADAM, 2005, p.105).
Neste trabalho analítico de reconstrução do esquema, fundamentaremos em três pontos: os parâmetros da
situação sociodiscursiva da interação em questão, os parâmetros das condições de produção e os das condições de
recepção, conforme Adam (2006, p. 106). Portanto, descrevemos em seguida esses três pontos:

a)Situação sociodiscursiva

O editorial analisado está inserido na realidade sócio-histórica do século XIX, permeada pela busca do progresso
e da modernidade e, ao mesmo tempo, marcada pela escravidão, que só é abolida oficialmente com o decreto de 13 de
maio de 1888. O espaço público reservado às mulheres era bastante restrito, como também eram escassas as
oportunidades de estudo para elas.

b)Condições de produção

O discurso jornalístico do século XIX era marcado pela produção artesanal e, em muitas vezes, individual. A
confluência entre jornalismo e literatura era visível no século XIX, uma vez que o espaço dos escritores era também o jornal,
lugar das críticas, escrita de artigos e publicação dos folhetins. Conforme Buitoni (2009, p.32)

O formato panfleto dominava o ambiente jornalístico, fruto do clima de transformações da


época. Era comum surgirem novos jornais todas as semanas, que não passavam de dois ou
três números. O jornalismo era a voz das correntes políticas que se defrontavam em
polêmicas impressas, muitas vezes fundadas em boatos e difamações.

A imprensa oitocentista foi marcada pela intensa comunicação entre os periódicos e seus redatores. Através
deles, as pessoas manifestavam publicamente suas opiniões, encontravam aliados, conheciam as propostas de outros
jornalistas e, assim, contribuíam para a formação da opinião pública brasileira Morel e Barros (2006a, p.25)

1289
c)Condições de recepção

O Sexo Feminino era vendido por assinaturas, as quais se dividiam em semestrais e anuais. O contato para
assinaturas era feito diretamente pelo endereço da jornalista, identificado no cabeçalho do jornal. Há também nos periódicos
registros do envio dos mesmos para os Estados Unidos e para Portugal.
Havia, no século XIX, intensa comunicação entre os periódicos, que priorizavam a relação seja ela amistosa ou de
conflito através do novo meio de comunicação. As leituras coletivas também eram comuns, uma vez que a população
letrada era reduzida. Assim, o compartilhamento do universo letrado era feito através da fala e da motivação coletiva.
O discurso assume hoje, no âmbito da pesquisa, seu caráter de resgate histórico e de registro linguístico
discursivo que fundamenta e motiva a presente pesquisa.

Plano do texto

Abordaremos aqui a representação discursiva do editorial de 27 de fevereiro de 1876. No texto, verificamos 3


momentos que marcam a exposição e a argumentação do orador.

a)Contextualização

A jornalista propõe uma contextualização da realidade social vivida pelas mulheres oitocentistas. Ela estabelece a
dicotomia trevas x luz, inscrevendo as injustiças e atrocidades dos homens contra as mulheres no período de trevas: “Não
estamos mais nos tempos em que o saber se achava encarcerado nos claustros (...)”.
A inserção da jornalista se dá no contexto das Luzes, momento este que configura o surgimento do jornal, a
chegada do progresso e a instauração da liberdade, seja ela política ou religiosa: “É a epocha da luz! Forão-se as trevas...
Todos os povos são livres, ou pugnão pela sua liberdade”.
Ao retomar as injustiças vividas pelas mulheres, a jornalista ataca os homens, desqualificando-os e
responsabilizando-os pela opressão e pelas dificuldades na instrução e inserção feminina na sociedade letrada: “os homens
gemerão debaixo do pezo mortificador do despotismo dos outros homens”. Em outro momento, ela propõe “quebrar as
cadêas com que por tantos séculos os homens hão arroxeando-lhe (das mulheres) os pulsos!” (grifo nosso).

b)Inserção do jornal Amor ao progresso

O jornal Amor ao Progresso, da cidade de Baependy (Minas Gerais), é inserido no editorial de O Sexo Feminino
como um elemento impulsionador da discussão sobre a necessidade do investimento na educação feminina. O editor e
proprietário do jornal, Eugenio Octavio de Carvalho critica a luta de Senhorinha pela educação das mulheres e considera a
causa “ingrata” e sem propóstio. A jornalista trava um embate de ideias no jornal, argumentando as proposições levantadas
pelo editor e revidando-as com a apresentação de novos argumentos.
Compreendemos, portanto, que a referência ao periódico e ao seu conteúdo é um pretexto para que a jornalista
coloque em cena a discussão que provavelmente constituía o retrato temático da sociedade. Assim, o jornal reafirma sua
função de agregar pensamentos e opiniões em um espaço de discussão e explanação de ideias.

1290
c)Justificação

O editorial é finalizado com uma justificativa da jornalista para a causa feminina e a retomada da convocação feita
às mulheres para colaborar com a racional emancipação proposta no jornal O Sexo Feminino. Observamos a auto-
justificação no trecho: “O que queremos é justo, recto, liberal. É pois elemento do progressista!...”.
Trata-se de um desfecho que intenciona garantir a resposta do público destinatário ao pedido de acolhimento à
defesa de racional emancipação feminina. Após apresentado o contexto vivido pela mulher do século XIX, a saber: as
injustiças praticadas pelos homens e a dificuldade de inserção feminina no ambiente escolar, e depois de ter sido refutado o
pensamento “masculino” apresentado no periódico Amor ao progresso, cabe a justificação como desfecho. Ela aponta para
a adesão do sujeito interpretante, impulsionando-o a concordar com a proposta de emancipação e ajudar a jornalista na
causa que defende.
Apresentamos a seguir o esquema evidenciando esses três momentos do discurso:

Contextualização Inserção do Defesa da


da história e da jornal Amor causa de O
causa feminina ao progresso Sexo
Feminino
e
Esquema do plano do texto do editorial de 27 de fevereiro de 1876.

Podemos detalhar essa esquematização inicial de 3 etapas em diferentes fases que compõem o todo do discurso
do editorial. É possível perceber que o simulacro do diálogo é construído discursivamente. Para atingir o objetivo principal
de conseguir a adesão de homens e mulheres à proposta de racional emancipação feminina verificamos o uso de
estratégias que intentam conquistar o público e garantir a adesão deles ao discurso. Segue o esquema detalhado com o
movimento discursivo proposto no editorial:

Dicotomia Inserção da Inconveniente Chamamento Exemplos


causa de da falta de + de
Trevas emancipação estudo das outros
X feminina mulheres Justificativa países
Luz

Quebra (queda)

Inserção Ataque as Defesa da


jornal ideias proposta
Amor ao defendidas de O Sexo Justificação
progresso no jornal Feminino

Esquema detalhado do plano do texto do editorial de 27 de fevereiro de 1876

1291
A contextualização proposta pela jornalista no editorial abrange a dicotomia (Trevas x Luz), a inserção da temática
de educação feminina, momento este em que são apresentados os inconvenientes da falta de instrução da mulher: “as
mulheres só cuidam no luxo e na vaidade de agradar pelos dotes exteriores”. Senhorinha contextualiza a sua causa
também ao apresentar os exemplos vividos por outros países que dão maior atenção ao ensino para as mulheres. Há um
espaço para que Senhorinha convoque as mulheres a participarem da proposta de emancipação do jornal, que também
configura o plano do texto.
A jornalista aborda no editorial os inconvenientes da falta de estudo das mulheres e a necessidade da instrução
delas. Esse é o ponto cerne da argumentação da jornalista que inscreve a causa feminina como uma causa necessária à
humanidade. Dessa maneira, são elencados os motivos para se investir na emancipação das brasileiras: exemplos de
países desenvolvidos no exterior que davam prioridade à educação feminina, o momento vivido era o do progresso e da luz
advinda do Iluminismo, a conquista da liberdade impedia a continuação do tratamento preconceituoso dado à mulher. Por
isso ela afirma existir “... erroneos preconceitos que suffocam e amortecem o passo que tentamos dar para o progresso da
humanidade em geral”.
Há uma quebra no editorial, iniciada com a citação do jornal Amor ao progresso, do editor Eugenio Octavio de
Carvalho. O jornal insere-se na temática abordada, apesar de proporcionar uma quebra no texto. Ele funciona como um
elemento oportuno para a justificação da necessidade de instrução feminina. Na oportunidade, a jornalista critica as ideias
do periódico Amor ao progresso e defende as de O Sexo Feminino, em alguns momentos atacando o pensamento que
considera inútil a preocupação com a educação feminina. Esta foi a oportunidade construída por Senhorinha para defender
a causa de emancipação e justificar sua atitude perante seu público.

Adesão ao discurso

As estratégias usadas por Senhorinha Diniz para garantir a adesão ao discurso de emancipação feminina
perpassam a situação sócio-discursiva apresentada por ela mesma nos editoriais e a própria emoção dos leitores,
especialmente as mulheres, tidas como o público destinatário deste discurso.
Apontamos a visada patêmica como um elemento norteador do discurso, uma vez que a jornalista pretende
sensibilizar seu público para conseguir o real apoio à sua luta. Assim, essa instância de produção construirá seu discurso
com o intuito de “emocionar seu público, mobilizar sua afetividade, a fim de desencadear o interesse e a paixão pela
informação que lhe é transmitida” (CHARAUDEAU, 2007, p.92).
O mundo percebido pela jornalista é delineado no discurso, através de elementos da realidade vivida nos anos
oitocentos. Portanto, o compartilhamento das ideias de progresso e de liberdade é também usado como uma estratégia de
Senhorinha para que seu auditório se convença da validade da instrução feminina. Assim como o progresso e a liberdade
são apresentados no discurso como realidade do século XIX, a emancipação feminina assume o mesmo caráter, traçados
por Senhorinha.
A conquista do público feminino se dá também através da encenação da jornalista como porta-voz. Senhorinha
Diniz expõe a defesa da causa feminina discorrendo-a no discurso como se pluralizasse a voz das mulheres oitocentistas,
tornando o pensamento delas conhecido, divulgado. Sendo assim, diante dos ataques feitos aos homens, as mulheres que
também têm vontade de manifestar sua insatisfação diante das injustiças sofridas, vêem-se realizadas na fala de

1292
Senhorinha Diniz e a percebem como porta-voz. Ela assume o papel daquela que fala em nome das mulheres de sua
época, portanto, o ataque aos homens é reconhecido pelas mulheres oitocentistas e legitimado por elas.
Outro pensamento sustentado no discurso é a aspiração ao modo de vida do exterior. Defende-se a ideia de que
para que a sociedade brasileira se iguale a este modo de vida tido como ideal e, melhor do que o vivido no Brasil, é preciso
investir na educação feminina.

Imagem esquematizada do sujeito no discurso: o ethos

A construção da imagem do orador aparece mesclada aos diversos elementos linguisticos e textuais surgidos no
texto do editorial e apresentados nos esquemas anteriores. Segundo afirma Maingueneau (2008, p.17), “a noção de ethos
mantém um laço crucial com a reflexividade enunciativa e permite articular corpo e discurso para além de uma oposição
empírica entre oral e escrito”. Assim, essa imagem discursiva adquire configuração
Segundo afirma Adam (2005, p.107), “boa parte da atividade simbólica dos sujeitos tem por função reconstruir de
modo constante a realidade do eu, oferecê-la aos outros para ratificação, para aceitar ou rejeitar as ofertas que os outros
fazem da imagem que têm deles mesmos”. Nessa reconstrução de sentido e da própria realidade projetada no texto,
apresentamos o esquema seguinte, compondo a imagem projetada no discurso da jornalista.

Imagem de Senhorinha

Francisca Senhorinha Proposta


Representação extralingüística (ethos discursivo)
Mulher, mãe, proprietária do jornal Esperançosa
Condutora
Atualizada

Imaginário B
Senhorinha* Sujeito no mundo
Reconstruída

A partir da representação que o orador faz do seu auditório, ele constrói uma proposta discursiva, na qual está
inserido o seu ethos. Sendo assim, no editorial de 27 de fevereiro de 1876, observamos a construção de uma mulher
atualizada, moderna, que quer conduzir seu auditório para a adesão ao discurso: "temos procurado mostrar (...)", "hemos
feito vêr ás nossas conterraneas".
A imagem do orador abarca também a mulher forte, justa e esperançosa: “o enthusiasmo que alimenta nossas
esperanças”.
Importa verificar o funcionamento dessa esquematização no sentido de reconhecer o simulacro dialógico proposto
para o discurso monologal. Na construção da imagem de uma mulher atualizada e que deseja, a partir da visada de

1293
incitação, conquistar seu auditório, notamos que é estabelecido um diálogo não só em resposta ao editor do periódico Amor
ao progresso, com Eugenio de Carvalho, como também com as mulheres, no momento em que Senhorinha pede a ajuda
delas. O diálogo com os homens aparece como uma resposta à indignação deles diante da proposta de emancipação.

Considerações finais

A partir da análise do editorial de O Sexo Feminino, observamos a validade da construção dialógica para a
estratégia de adesão ao discurso. Foi possível notar ainda a importância do auditório na elaboração das imagens
discursivas, uma vez que a proposta do orador está diretamente ligada a suas intenções, às expectativas sobre o auditório e
à intencionalidade do seu discurso.
A esquematização discursiva evidencia a co-construção do discurso e permite a visualização dos sujeitos e a
relação estabelecida entre eles na formação das imagens.

Referências

ADAM, M. 2005. De Petáin a De Gaulle: In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso.

BUITONI, D. Mulher de papel – a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: SUMMUS, 2009. 2
ed.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2007.

DINIZ, S. O Sexo Feminino. Rio de Janeiro. 1875-1876. Microfilme 70 mm

MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, R. et all. Ethos discursivo. 2008

Curriculo

Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (2008). Mestranda no
programa de pós graduação em Estudos Linguisticos (POSLIN) na Universidade Federal de Minas Gerais (2009), sob
orientação do professor Doutor Renato de Mello. Interesse na área de representação e discurso, com ênfase em discurso
feminino no século XIX.

Contato: licerosa@yahoo.com.br

1294
ANEXO

A racional emancipação da mulher - 27 de fevereiro de 1876

Não estamos mais nos tempos em que o saber se achava encarcerado nos claustros; o feudalismo, a
cavalaria errante, as crusadas; os tempos dos prejuizos das castas e dos desvanescimentos
chimericos, passaram, deixando apenas os traços de suas temporarias conquistas. As fogeiras da
inquisição não achão e nem acharão mais conbustivel para accendel-as. A nova geração so procura
e procurará fazer desapparecer esses tristes vestigios; hoje, o horisonte da humanidade se mostra
mais risonho, as nuvens, precursoras das tempestades, negrejão raramente.

É a epocha da luz! Forão-se as trevas... Todos os povos são livres, ou pugnão pela sua liberdade, os
poucos que, como excepção ainda gemen na escravidão, e sem um porvir seguro; combatem todos
pela sua liberdade religiosa e politica; todos os pensamentos se manifestão francamente e
esforção-se por obter sua autonomia fazendo resaltar por toda a parte o contraste que ha entre o
presente e o passado!

Todos os povos saccodem esses restos de grilhões que antes se oppunham ao seu aperfeiçoamento
e, erguendo-se ao seu verdadeiro nivel, attingem de dia em dia seu fito principal; - a civilisação da
humanidade... Pois bem, si o seculo presente, é o das luzes e da batalha da civilisação, a – Racional
Emancipação da mulher, não podia e nem póde deixar de entrar na arena do combate. Entre os
milhares de problemas que agitam hoje todos os espiritos, consideramos, em nosso fraco entender
que, é o da Emancipação do nosso sexo o de maior importancia; é sem duvida um problema
immensamente difficil de ser resolvido! ao menos de prompto!.. Sabemos que esta questão é de
grande momento e de alcance serio para ambos os sexos, mas uma vez resolvida, estará comprida a
phrase de Flamarion: “A verdadeira liberdade consiste na soberania da intelligencia”. Sabemos
tambem, nos, as mulheres, que nunca poderemos alcançar nem possuir este postulado sem lançar
mãos dos meios necessarios e efficazes, e, fiquem certo, que sem obtel-o conjunctamente
comnosco, as mulheres, os homens gemerão debaixo do pezo mortificador do despotismo dos
outros homens.

Sem que se effectue uma tranformação completa no regimem actual de educação das nossas
meninas, nada conseguiremos para o nosso desideratum. Temos procurado mostrar os
inconvenientes que resultam da falta de estabelecimentos fundados pela iniciativa das mães de
familia, e auxiliadas pelo governo de nosso paiz, para este fim. Hemos feito vêr ás nossas
conterraneas que nada no mundo é facil obter-se, sem sacrificio, e que tudo exige concurso do
trabalho assiduo, para que possa ser alcançado.

1295
Em fim, todos os que adoptam nossas idéas (e são esses pensadores) concordaram que esta
questão estudada seriamente merece ser considerada como de grande emenencia social.

Quando chamamos em nosso auxílio as Senhoras para nos coadjuvarem na acquisção de


estabelecimentos de instrucção superior para as meninas, por sabermos que debalde luctaremos
pela nossa emancipação, si não procurarmos primeiro instruimo-nos.

Não consegue-se os fins sem applicar os meios. Com honrosas excepções, em geral e
desgraçadamente, as mulheres só cuidam no luxo e na validade de agradar pelos dotes exteriores,
levando essa vaidade até ao ponto de venderem a sua liberdade na escolha do casamento, o que
muitas fazem, só pelo mesquinho enteresse de ter um marido que lhes dê um bonito vestido! Não
indagam nelle: nem o procedimento, nem o genio, nem até os vicios physicos e moraes.

O mal vem de cima. Não existe em nosso paiz, aliás com foros de civilisado, um só
estabelecimento onde nós, (as mulheres) possamos receber conhecimentos variados e profundos.

Como hemos dito, na Allemanha, na Suissa, e até mesmo na Russia, ha hoje muitas accademias
fundadas e destinadas unicamente ás mulheres. N’ellas ensina-se a medicina ou outro qualquer
ramo da sciencia, ou arte; e em todas as aulas contam se muitas moças, verdadeiramente
amantes da sciencia, comprenetradas de sua grandeza e sublimidade: visto que não só pelo
conhecimento pleno d’ella reconhecem que podem chegar ao do nosso Creador e suas
magestosas obras, como com ella acquirirem meios de viver independente e honestamente, de
seu trabalho. Nos supra mencionados paizes, além das escolas do sexo feminino, organisadas com
todo o zelo e proficiencia, existem tambem institutos superiores, onde as mulheres podem
escolher a profissão que mais lhes agrade. Em fim, repitamos, e com profundo respeito ao nosso
infortunio!

No Brazil, nossa patria, não se apresenta um só estabelecimento proprio para dar-nos outros
conhecimentos, a excepção dos primarios rudimentos, que nada valem, relativamente
consideram sob o ponto de vista mais elevado; e atendendo-se ao futuro scientifico, necessario
ao nosso sexo.

Quando trata-se de uma questão transcendente como esta, devemos todas unirmo-nos a banir de
nossas idéas todos os erroneos preconceitos que suffocam e amortecem o passo que tentamos
dar para o progresso da humanidade em geral.

Estando escrevendo estas linhas, veio-nos ás mãos um novo jornal editado na cidade de
Baependy, de que é proprietario e editor e Sr. Eugenio Octavio de Carvalho. O jornal tem como
titulo Amor ao progresso, mas o artigo editorial, que vem no n. 4, está opposto ao seu

1296
titulo.
OO artigo
que á que nos
queremos referimos
é justo, recto,tem por epigraphe:
liberal. A educação
É pois elemento da mulher. Dizemos que
do progressista!...

está Emancipar
em opposição
a ao titulo, épor
mulher entender-nos
quebrar que ascom
as cadêas idéasque
de progresso estão
por tantos de commum
seculos os homens hão
arroxeado-lhe os pulsos! É fazer delle e della uma só alma em dous corpos! É obliterar os
accôrdo com a racional emancipação da mulher, acquirida pela tríplice educação da mesma.
tempos de obscurantismo e crueldades. Os argumentos do honrado articulista peccão pela
Porém o programma
base, tem falta desustentado
logica; sãocomo confessa viciosos,
notoriamente o mesmosãoautor do supramencionado
conforme os classifica o artigo,
Genuense,
pelasargumentos ad dos
habeis pennas hominem, istoparlamentares,
distinctos é, são falsos; Stuart
e nadaMill,
mais naéInglaterra,
preciso acrescentar, logo
Julio Frave na que isto
França,
fica dito.
e muitos outros em diversos paizes civilisados, que hão consagrado muitos momentos de seu
trabalho á defeza da causa que advogamos e que o autor do artigo chama ingrata, é prova de que
No mais em tempo continuaremos.
a idéa não é uma utopia, um sonho irrealisavel. Ao contrario, como dissemos no começo deste
asserto, não estamos nos tempos em que a sciencia e o saber eram um monopolio e achavam-se
inclausurados constituindo assim um patrimonio exclusivo de certos privilegiados; e isto só do
sexo forte.

Hoje, não se dá o mesmo e tudo quanto o autor diz, nos pontos principaes de seu artigo, não
destróe os nossos argumentos, nem de modo algum nos fará arrefecer o enthusiasmo que
alimentam nossas esperanças. Si George Sand, Stael, Izabel de Hespanha e muitas outras que cita
em seu artigo, tambem, não foram anjos, como rainhas, nada prova que essas mulheres, mesmo
dado o caso não tivessem eminentes aptidões para occupar todos os cargos que sôem ser de
preferencia exercidos pelos homens. Si, como diz o articulista, consultamos a historia, vemos que
taes e taes procederam deste modo ou daquelle!...Pois bem, respondendo ao autor dizemos: Os
tyrannos de todos os tempos como: - Nero, e tantos outros, eram mulheres? Argumenta-se com a
autoridade do grande Napoleão! É um criminoso punindo outro. Napoleão era homem estrenuo e
além de autocrata até a tyrannia! Si no reinado de alguma mulher houvessem dado-se as mesmas
encarniçadas guerras e feito correr tanto sangue, o autor teria adduzido para sua argumentação o
nome d’ellas. Quanto em si à resposta do Grande Entrelogico, á Baroneza de Stael, era a que elle
por sua educação guerreira, podia dar a uma mulher a quem elle temia não pela espada, mas pela
penna.

Sendo ella (como era) estéril Napoleão precisava de machinas de destruição, de homens emfim,
para pelejar, destruir e conquistar, e ella não os havia dado a patria, nem podia dar. Si Napoleão
fosse educado com mais sãos principios, responderia que a mulher superior a todas as outras
seria aquella que melhor educasse seus filhos.

Hoje passamos por alto os mais topicos do artigo do senhor redactor do Amor ao Progresso, mas
prometemos voltar oportunamente.

1297
Contribuições da análise do discurso para indexação do
programa Rede Mídia em um banco de dados audiovisuais

SABINO, Juliana Lopes Melo Ferreira


(CEFET-MG)
DAVID-SILVA, Giani
(CEFET-MG)
PÁDUA, Flávio Luis Cardeal
(CEFET-MG)

1. Considerações iniciais
O presente estudo visa propor um modelo para indexação e recuperação do programa Rede Mídia, do canal Rede
Minas de Televisão, a partir de elementos advindos da Análise do Discurso. Essa pesquisa insere-se em um projeto maior
que propõe a criação de um arquivo de vídeos e de um Centro de apoio a pesquisas sobre a televisão brasileira (CAPTE)
no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Para tanto, foi realizada uma parceria com a
Rede Minas de Televisão, o que permitirá a realização do protótipo de um sistema de busca e recuperação de informação
audiovisual. O projeto em questão estabelece um diálogo entre duas áreas de conhecimento: a Análise do Discurso e a
Ciência da Computação, o que permitirá uma análise reflexiva sobre as diferentes abordagens possíveis.
O canal Rede Minas de Televisão tem como objetivo contribuir para a formação dos valores sociais dos cidadãos,
priorizando a cultura, educação, lazer e saúde. Devido à qualidade de seus programas, a emissora, nos anos de 2006 e
2007 recebeu o título de “Veículo do Ano” no prêmio Aberje Nacional. A emissora propõe à seguinte tipologização de seus
programas: jornalismo, cultura, esporte e ação, educação, música, cinema, documentário, entrevistas e debates, infantil,
jovem e variedades. O programa que ora propomos analisar, Rede Mídia, insere-se na divisão entrevistas e debates. Esse
programa tem como objetivo ser um fórum de debates, é exibido semanalmente, com duração média de 30 minutos.
Conforme divulgado no sítio do canal (http://redeminas.tv/rede-midia/sobre), o programa centra-se no debate da
comunicação de modo geral, com suas nuances e formatos. O Rede Mídia é destinado a um público vasto, jornalistas,
estudantes e telespectadores que se interessam pelos “bastidores da mídia em geral”. A seguir vamos expor um panorama
da programação televisiva, com suas peculiaridades e sua organização por meio das grades.

2. Programação televisiva
Em um artigo intitulado “TV: a transparência perdida”, (1985: 141-158),
Eco (1985) distingue duas fases da televisão, a Paleotelevisão e a Neotelevisão, que tem como diferença principal, as
modificações, ao longo dos tempos, de sua relação com a organização programática através dos gêneros. A fase da
Paleotelevisão se caracterizaria por estar organizada em gêneros, distinguindo claramente entre a informação e o
espetáculo, por sua vez, a Neotelevisão estaria marcada pela mistura dos gêneros. Somado a essa última fase, Mehl
(1992:13), destaca outro fator que fez com que a televisão se transformasse e buscasse reformas constantes em seus
programas, o que ainda constatamos hoje, a difusão em tempo integral, quando “os canais passaram a se olhar pelo prisma
da concorrência”. A partir do conceito de Neotelevisão proposto acima, podemos perceber uma estreita relação com uma
das tendências postuladas por Charaudeau (2006), a tendência à mescla dos gêneros, constituindo uma TV do híbrido, que

1298
atravessa os gêneros televisivos atuais. Nesse sentido, Aronchi (2004) expõe algumas mudanças ocorridas nas emissoras,
que marcaram a programação, e dentre elas, o autor aponta: “a Bandeirantes deixou de lado seu slogan ‘o canal do esporte’
para investir em outros gêneros” (ARONCHI, 2004, P.18).
Salles (apud Aronchi) salienta as mudanças que a televisão proporcionou nos hábitos das pessoas. A televisão
exerce influência na vida cotidiana: por vezes, organizam-se certas rotinas em função de programas selecionados: como
almoçar durante o horário programado para o jornal para se informar, ou até mesmo dormir após um filme ou telenovela a
fim de se distrair.
Conforme Aronchi (2004), as emissoras organizam o horário dos programas conforme as preferências do
telespectador em relação aos “gêneros transmitidos em determinados períodos do dia”. Aronchi define a programação como
um conjunto de programas transmitidos por uma emissora de televisão e considera o horário de cada programa como o seu
elemento mais importante. As redes de TV criaram no telespectador o hábito de acompanhar os programas cotidianamente,
o que Ortiz (1991) utiliza-se do conceito de horizontalidade da programação para explicar o gênero telenovela. A
programação horizontal consiste em uma estratégia de captação utilizada pelas redes de televisão, convencionando um
horário fixo para cada programa, diariamente, criando no telespectador o hábito de assisti-lo no mesmo horário.. A essa
rigidez da programação é dada o nome de grade horária semanal, resultante de pesquisas de índices de audiência e
estratégia das redes como postula Aronchi. Em outros termos, a grade horária semanal é definida por Aronchi como “a
distribuição dos programas em horários planejados e previamente divulgados pela emissora, desde o início da programação
até o encerramento das transmissões” (ARONCHI, 2004, p.58). Killp (2003) nomeia metaforicamente essa grade de
programação de cardápio, que é oferecido aos telespectadores. A seguir, serão expostas algumas reflexões sobre o
processo de indexação, sua finalidade e seus desafios, bem como tentaremos avaliar as possibilidades de contribuição da
Análise do Discurso.

3. Processo de Indexação e contribuições da AD


Localizar uma imagem específica em um banco de dados virtual torna-se, cada vez mais, uma tarefa complicada
devido ao excesso de registros irrelevantes que aparecem em um sistema de busca. Essa grande quantidade de registros
irrelevantes poderia ser explicada pela seleção inadequada de termos no processo de indexação dos vídeos.
Em uma das etapas da indexação, a tradução, faz-se a atribuição de descritores (Metadados) a um documento, de
forma a representá-lo significativamente. Conforme Bimbo (1999) Jain e Harumpapur (1994) os Metadados são comumente
classificados em dois tipos básicos: metadados Independentes do Conteúdo (MIC) e Metadados Dependentes do Conteúdo
(MDC). Os primeiros são dados que não se referem diretamente ao conteúdo do vídeo, mas que, de alguma forma, o
descreve, como o formato do vídeo, autoria, data de produção e aspectos legais de distribuição, por outro lado, os MDC são
dados que se referem diretamente ao conteúdo do vídeo, como cores, texturas, formas, relações espaciais, e outras
características evidenciadas no vídeo. Ambos os tipos de metadados são de grande importância para a tarefa de
recuperação de informação, sendo por vezes utilizados de maneira concomitante. Segundo Barreto (2007), ainda há os
“metadados descritivos de conteúdo”, que se referem ao conteúdo semântico do vídeo, à relação da imagem com fatores de
ordem social, emocional, por exemplo.
Podemos evidenciar, conforme Lancaster (2004), duas dimensões que integram a indexação: a exaustividade e a
especificidade. A primeira consiste na abrangência do maior número possível de termos para representar o documento,
objetivando uma maior chance de ser recuperado. A segunda é, para o autor, o princípio mais importante na indexação,
devendo a informação ser indexada a partir daquilo que ela que a torna exclusiva. Dessa forma, selecionar termos,
conceitos que representem o que se está arquivando, implica desconsiderar uma série de outras informações. Ao abordar o

1299
aspecto redutor de toda representação, Dodebei (2002:33) afirma que a representação documentária é concebida como
uma metarrepresentação, ou seja, o final de uma cadeia necessária de reduções. Esse reducionismo inevitável no processo
de representação coloca-nos frente a duas questões importantes: o da representatividade efetiva das partes selecionadas
em relação ao documento e o do processo de leitura que faz o indexador (Cintra,1983).
Entre as dificuldades encontradas no processo de indexação destacam-se as inerentes à própria linguagem
verbal no processo de descrição dos documentos. Surge, na linguagem documentária, a necessidade de se controlar certas
características da língua que, em contexto de uso social, não se apresentariam como problema, tais como: a polissemia, a
sinonímia, antonímia, homografia, entre outros. Ademais, na conversão da linguagem natural para a linguagem
documentária (descritores), que têm por função expressar o conteúdo do documento, intervêm vários fenômenos
lingüísticos, como os problemas relativos à semântica.
Lancaster (2004) postula a dificuldade de se chegar a um acordo sobre a indexação de imagens “é difícil haver
concordância quanto ao que uma imagem realmente mostra”, de modo que lida não somente com aspectos concretos, bem
como lida com abstrações. (LANCASTER, 2004, p. 217-218). Tendo em vista a importância da cultura audiovisual para a
sociedade e a dificuldade de Indexação de imagens, o presente artigo pretende fundamentar-se em técnicas de análise do
discurso midiático, objetivando auxiliar no processo de indexação. A Análise do Discurso poderá atuar em duas etapas que
integram a indexação, conforme Lancaster (2004): a análise conceitual e a tradução. A primeira consiste em definir o
assunto do documento, a segunda consiste em selecionar os termos que representarão os assuntos de determinado
documento. Em relação a essa etapa, Lancaster (2004, p.15) salienta que a “tradução envolve uma decisão sobre quais os
rótulos disponíveis que melhor representam x, y e z”. Para o autor, a etapa da tradução é, indubitavelmente, uma das
principais em todo o processo de indexação. A seguir exporemos aspectos discursivamente relevantes para o processo de
análise do programa Rede Mídia.

4. Gêneros informativos
Desde a sua primeira versão na década de 30, o sistema televisivo foi mitificado de diversas formas. Conforme
David-Silva (2005), “a televisão foi considerada, por muitos, uma janela, pela qual poderíamos ver lugares desconhecidos
que, como em um passe de mágica, entrariam em nossas casas e em nossas vidas”. As possibilidades da mídia televisiva
foram elevadas com os avanços tecnológicos, assim, passou a exercer a função de “ abrir-se para o mundo”, revelando a
maneira de viver das pessoas que estão do outro lado da tela da TV. Salles (apud Aronchi, 2004) e VIZEU (2008) também
compactuam com David-Silva a respeito da metáfora da janela, em que o sistema televisivo, com enfoque nos programas
informativos, funciona como uma janela para a realidade, mostrando que o mundo que está à sua volta “(...) está lá e tudo
não se transformou num caos, e a vida segue a sua normalidade” (VIZEU, 2008, p.21).
Bakhtin (2003) reflete acerca dos textos que se circulam nos campos das práticas sociais e os define como
gêneros discursivos “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os quais, por meio de regularidades que os circunscreve,
permitem a comunicação. Essas regularidades não devem ser percebidas como estáticas, elas estão sujeitas a mudanças
que proporcionam a criação de novos gêneros.
Jost (1999: 28-30) propõe a análise dos gêneros televisivos de acordo com os seguintes modos de enunciação: o
autentificante, o ficcional e o lúdico. No primeiro modo, encontram-se os gêneros que abordam o mundo a partir do
argumento do real, estabelecendo um contrato de veracidade e de credibilidade com seus telespectadores. Aronchi (2004),
por sua vez, classifica os gêneros televisivos em cinco categorias: entretenimento, informação, educação, publicidade e
outros. Dentre as categorias por ele propostas, o gênero a ser analisado debate-entrevista insere-se na categoria de
informação. O formato do gênero debate tem como característica a presença de um único apresentador, o que para Aronchi

1300
“caracteriza a maioria dos programas de debate”. Ao postular sobre o gênero entrevista, Aronchi salienta que há uma
multiplicidade de pessoas de diferentes áreas do conhecimento sendo entrevistadas por um apresentador, geralmente,
jornalistas. Para o autor, o cenário constituído para a entrevista “permitem ao convidado e ao apresentador ficar sentados
durante todo o tempo”. (ARONCHI, 2004, p. 148).

Conforme Aronchi (2004) os gêneros informativos são classificados em: telejornalismo, documentário, debate e
entrevista. O autor ressalta que alguns formatos do gênero telejornal ganharam espaço, adquirindo o status de gênero,
como os debates e entrevistas: “Dentro do próprio gênero telejornalismo, há formatos que se firmam como gêneros por sua
importância (...)” (ARONCHI DE SOUZA, 2004, p. 153). Hoffnagel (2003) postula que a entrevista jornalística é um gênero
da sociedade moderna veiculado pelas mídias e tem como função social informar o cidadão. Pode-se observar que a
linguagem utilizada pelas duas partes – entrevistador e entrevistado – é adaptada a fim de contribuir para a compreensão
da informação. Conforme Vasconcelos (2007) “Qualquer entrevista deve ser cuidadosamente preparada através de uma
elaboração de um guião, ou seja, um texto que servirá de base à condução da entrevista”, permitindo durante a entrevista o
apresentador orientar as suas perguntas, mesmo em meio a alguns improvisos.

5. Modo de organização enunciativo (Charaudeau)


Ao tecer algumas considerações acerca do modo enunciativo, Charaudeau (2008) ressalta a diferença existente
entre o Modo de Organização Enunciativo e a Situação de Comunicação. A linguagem para Charaudeau é considerada
como prática social, em que se relacionam fatores internos e externos. Assim, na Situação de Comunicação integram-se os
parceiros do ato de linguagem, externos à linguagem, e quadro enunciativo encontram-se os protagonistas, internos à
linguagem.
Charaudeau elenca três funções do modo enunciativo, que estabelecem posições do sujeito falante em relação a
si mesmo, a seu interlocutor: o Alocutivo, o Elocutivo e o Delocutivo. O Alocutivo estabelece uma relação de influência entre
o locutor e interlocutor. O Elocutivo revela o ponto de vista do locutor, e o Delocutivo testemunha a fala de um terceiro.
O comportamento Alocutivo é identificado quando o sujeito falante se posiciona em relação ao interlocutor e
simultaneamente solicita uma reação deste. Charaudeau também destaca dois tipos de papéis atribuídos pelo sujeito
falante a si e, consequentemente, a seu interlocutor: posição de superioridade do sujeito falante em relação ao interlocutor e
posição de inferioridade do sujeito falante em relação ao interlocutor. No primeiro, o sujeito falante atribui-se papéis que
levam o interlocutor à ação, exercendo uma relação de força. Já no segundo há uma posição de inferioridade do sujeito
falante em relação ao interlocutor, estabelecendo entre os dois uma relação de petição.
O comportamento Elocutivo refere-se à relação que o locutor estabelece consigo mesmo. O interlocutor não está
implicado na tomada da exposição do ponto de vista do sujeito falante. Charaudeau destaca cinco pontos de vista
enunciados pelo sujeito falante: ponto de vista do modo de saber; ponto de vista de avaliação; ponto de vista de motivação;
ponto de vista de engajamento; e ponto de vista de decisão.
No modo enunciativo, Charaudeau ainda prevê um comportamento Delocutivo, que há um apagamento da
subjetividade do locutor, não implicando o interlocutor. O efeito é uma enunciação objetiva que se apropria de textos
provenientes de uma terceira pessoa, isto é, “ponto de vista externo” (CHARAUDEAU, 2008, p.83). Tendo em vista as
reflexões acima sobre o modo enunciativo e as considerações de Jost (1999) sobre o modo autentificante, será realizada a
seguir uma análise discursiva do programa Rede Mídia,

1301
6. Análise do corpus: programa Rede Mídia
Antes de iniciarmos a análise do programa Rede Mídia a partir do modo enunciativo, teceremos algumas reflexões
que consideramos relevantes para a constituição do gênero entrevista e identificação do programa.
Para análise, desenvolvemos uma descrição estrutural do programa de TV, o Rede Mídia, que não consta nesse
artigo, no entanto, apontaremos apenas alguns dados que consideramos imprescindíveis para a identificação de um
programa. Apesar de ser classificado como gênero “debate” pela emissora, o programa apresenta-se como um gênero
híbrido, por podermos evidenciar também traços constitutivos do gênero entrevista. No exemplar do programa analisado, o
apresentador, o jornalista Rogério Tavares, recebe a também jornalista Leda Nagle, no intuito de que Leda fale a respeito
de entrevistas instigantes realizadas por ela a respeito de Minas Gerais, reunidas no livro que está lançando. A finalidade do
programa Rede Mídia é a informação, possibilitando ao telespectador e ao entrevistador conhecerem além do que
conheciam. Nestes termos, o manual de produção de programas da BBC (British Broadcasting Corporation) explica função
de informar:

Programas com o propósito de informar são necessários em qualquer produção, exceto naquela
dirigida inteiramente para o entretenimento (balés, humorísticos, videoclipes etc.). Informar significa
possibilitar que a pessoa, no final da exibição, saiba um pouco mais do que sabia no começo do
programa a respeito de determinado assunto. (WATTS, apud ARONCHI, 2004, p.38-39).

Pode-se perceber, pela citação acima, o “desejável” grau de engajamento (ou intervenção) da instância midiática
(jornalistas). Ao abordar o grau de engajamento do jornalista, Charaudeau (2006) postula que, no gênero entrevista-debate,
“a instância midiática monta todas as peças do acontecimento por meio da exibição espetacular da palavra”, embora se
comprometa a realizar um jogo de transparência.
A análise do formato do programa Rede Mídia pode permitir melhor compreensão das estratégias que regulam o
gênero. O tempo destinado ao entrevistador do programa em análise resume-se às mediações realizadas, a apresentação
da jornalista e anúncio das entrevistas de curta duração inseridas no programa, assim, a maior parte do programa é
destinada à entrevistada que é o foco. Essa estrutura organizada é o que confere ao programa certa estabilidade.
Tentaremos a seguir mostrar o papel das modalizações e os comportamentos enunciativos na linguagem jornalística e,
consequentemente, as relações de poder expressas pelos discursos nesse domínio.
Verificamos no gênero programa de entrevista, o Rede Mídia, duas funções do modo enunciativo proposto por
Charaudeau (2008), o comportamento Alocutivo e o Elocutivo. No modo Alocutivo, encontra-se a categoria modal de
Interrogação, a qual se configura “uma relação de pedido na qual o locutor se coloca em posição de inferioridade com
relação ao interlocutor” diferindo-se das categorias modais – Interpelação, Injunção, Autorização, Aviso, Julgamento,
Sugestão e Proposta - que estabelecem uma relação de força, tendo o locutor à posição de superioridade em vista de seu
interlocutor.
No modo Elocutivo, situam-se as seguintes categorias modais: Saber/Ignorância; Opinião; Apreciação; Querer;
Declaração; e Proclamação. O papel do locutor na categoria modal “Saber” se configura como uma pressuposição de uma
informação por parte do entrevistador, confirmada pela entrevistada:
1-O que nós vamos rever agora, o que é uma raridade hoje, a entrevista que Leda Nagle fez com
Carlos Drummond de Andrade, que era arredio a entrevistas (...) Vamos conferir! [Rogério Tavares]. 2-
Como você falou, ele era realmente arredio mesmo a entrevistas [Leda Nagle]. (3’28’’ e
4’39’’respectivamente).

Assim, o entrevistador revela sua posição de saber. Como postula Charaudeau: “em todo enunciado na forma
afirmativa está subentendido que o locutor sabe” (CHARAUDEAU, 2008, p. 92).

1302
Pode-se constatar também a categoria modal de Declaração, pela qual, para Charaudeau, o locutor representa o
papel de detentor de um saber e “supõe que o interlocutor ignora esse saber ou duvida da verdade desse saber”. Esse
saber possui suas variáveis conforme a relação estabelecida entre o locutor e interlocutores em função do domínio desse
saber. Charaudeau elenca quatro variáveis de Declaração: a Confissão; a Revelação; a Afirmação; e a Confirmação.
Constatamos uma mescla das duas últimas variáveis no discurso de Leda Nagle transcrito acima, por comungarem da
verdade, que é pressuposta, funcionando a enunciação como uma reafirmação. Nagle comenta sobre o fato de Drummond
ser arredio, o que pode ser para alguns ou muitos interlocutores duvidosos ou não. Assim, Charaudeau postula que na
variante “Afirmação” o locutor apresenta-se em posição de autoridade (a jornalista que entrevistou Drummond) e que se
limita “a declarar verdadeiro um saber que ele supõe constituir uma dúvida para o interlocutor” (CHARAUDEAU, 2008, p.
98). O efeito da variante “Confirmação” assemelha-se a da “Afirmação” por ambas comungarem da certeza, no entanto
aquela apenas vem somar junto a outras declarações que “consideravam o saber em questão como verdadeiro”. Nesse
sentido, compreendemos que essas duas variantes estão imbricadas e os discursos declarados por Leda Nagle podem ser
apenas um acréscimo de um saber para o repertório do interlocutor ou o esclarecimento de algo que, até então, julga-se
incerto para o mesmo.
Leda Nagle explicita sua opinião em seu universo de crenças sobre a TV brasileira, configurando-se como
categoria modal de Opinião, e mais especificamente, a de convicção, que se constitui como uma das duas atitudes de
crença dessa categoria. Leda Nagle assume uma certeza quando expressa sua opinião sobre as mudanças ocorridas na
televisão e as por que ela ainda deveria passar, “ela ficou mais humana,(...) a televisão avançou nesse sentido de ter
emoção, de trabalhar com profissionais, de não ter medo de errar e a tecnologia ajudou muito com os avanços, (...) mas ela
precisa mudar mais” (6’58’’a 8’34’’).
Em relação aos comentários de Leda Nagle acerca das entrevistas realizadas por ela com Carlos Drummond de
Andrade, Milton Nascimento e Lima Duarte, as quais foram inseridas durante a entrevista no Rede Mídia, há uma
demonstração de afeto, percebida pela expressão facial da entrevistada e confirmada pela pergunta do apresentador ao lhe
indagar sobre como lidar com a emoção no ato da entrevista. A categoria modal evidenciada é a da “Apreciação” pela qual.
conforme Charaudeau (2008). O locutor revela seus próprios sentimentos:
“Trata-se então de uma avaliação de ordem afetiva, na qual o locutor se apropria do Propósito (ponto
de vista interno) qualificando-o segundo um julgamento que não se baseia na razão, mas no afeto”
(CHARAUDEAU, 2008, p. 93).

Essa avaliação se faz varia entre dois pólos: o julgamento favorável e o desfavorável. No caso em análise, a
avaliação se configura como favorável. Leda Nagle estabelece o diálogo com o entrevistador e direciona seu discurso ao
telespectador, utilizando-se de estratégias patêmicas que recorrem sobremaneira a sentimentos e emoções, concernentes à
subjetividade do ser humano, bem como as suas crenças e aspirações.
A categoria modal de Querer, segundo Charaudeau, “estabelece, com seu enunciado, uma ação a fazer cuja
realização não depende do locutor”, revelando uma “situação de carência que gostaria de ver preenchida”, no entanto, o
locutor não se encontra em posição de preencher essa carência. Pode-se perceber no enunciado a seguir, proferido por
Leda Nagle, a presença dessa modalização: “A televisão avançou (...), mas ela precisa mudar mais. A TV tem que trazer o
anônimo, sentir o problema do povo em geral”.
Há variações da categoria modal de Querer: o “Desejo”, o “Anseio” e a “Exigência”. O primeiro, conforme
Charaudeau, “expressa um “Querer” íntimo do locutor, sem especificar o agente ou a causa que poderia realizar esse
desejo”. É nessa variação que se encontra a enunciação proferida acima por Leda Nagle, com uma possibilidade de
realização. Diferentemente, “o “Anseio” exprime um “Querer” cuja realização é tida como quase impossível” o que não

1303
percebemos na enunciação supracitada. E a Exigência “exprime um “Querer” muito intenso, pelo qual o locutor chama o
outro (o interlocutor ou um terceiro) à submissão para que sua carência seja preenchida”. Isso pode percebido na
enunciação supracitada da entrevistada, apesar de não estar na posição de autoridade para mudar a TV, como o diretor de
uma emissora, por exemplo, Leda Nagle exprime esse querer intenso, reivindicando a um terceiro por meio de sua fala as
mudanças por que a televisão deveria passar.
A categoria modal de “Proclamação” é evidenciada logo no início do programa e no desfecho, com os
agradecimentos e despedidas. A proclamação se efetiva a partir do dizer “fazer ao dizer” e, assim o programa tem início e
término com a declaração do próprio entrevistador.
A partir das contribuições da AD, podemos perceber que o diagrama abaixo ilustra uma proposição para
indexação e recuperação de informações do programa em análise, utilizando-se de dois tipos de metadados, o MDC e o
MIC. Em especial, aos metadados do tipo MDC obtidos a partir de técnicas de análise do discurso midiático, tendo como
fundamentação teórica a Análise do discurso.

Figura 1: Visão geral do modelo proposto para Indexação e recuperação do programa Rede
Mídia do canal Rede Minas de Televisão.

7. Considerações finais

Este estudo buscou integrar a análise discursiva, por meio do estudo dos mecanismos de organização da
estrutura enunciativa do programa Rede Mídia, à proposição de metadados dependentes do conteúdo em um processo de
indexação do programa em um banco de dados. Considerando que, na maior parte dos arquivos de vídeos existentes, o
processamento da informação e inserção em um banco de dados é feita de forma manual, há um trabalho de identificação
de descritores que representem a informação audiovisual. Assim, para se ter uma leitura proficiente das imagens em
movimento, especificamente, da televisiva, recorreremos a Análise do Discurso, com vistas à compreensão de
particularidades da linguagem da informação a fim de contribuir para o reconhecimento da especificidade dessas imagens,

1304
a partir de uma análise de elementos que vão além daqueles referentes ao conteúdo veiculado pelo programa. Dessa
forma, a seleção de metadados dependentes do conteúdo (MDC), que serão chaves para indexação do programa na base
de dados criada pelo CAPTE/CEFET-MG, será diferente da que é realizada usualmente nos Centros de Documentação
(Cedocs) dos canais de televisão, os quais se centram na descrição do conteúdo da informação. A nossa proposta é a de
que os metadados refiram-se ao conteúdo do vídeo, mas também a tudo o que é intrínseco a sua composição. Ademais, é
fundamental que se definam padrões de descrição a serem seguidos, de forma que estes possam ser utilizados por
diferentes pessoas, em diferentes momentos, garantindo a qualidade e a confiabilidade nos dados arquivados.

Referências:
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PORCELLO, Flávio. Mídia e poder: os dois lados de uma mesma moeda. In VIZEU, Alfredo (org). A sociedade do
telejornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

1305
Juliana Lopes Melo Ferreira Sabino

Mestranda em Estudos de Linguagens pelo CEFET-MG, onde desenvolve pesquisa sobre os gêneros televisivos. Graduada
em Letras pela PUC-MINAS. Atua como integrante dos projetos de pesquisa: Desenvolvimento de um sistema de indexação
da programação televisiva em um banco de dados audiovisuais e o CAPTE (Centro de apoio a pesquisas sobre televisão -
CEFET/MG).

e-mail: julianalopes20@hotmail.com

Giani David-Silva

Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG, é professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET-MG) e compõe o núcleo docente do Mestrado em Estudos de Linguagens. Realiza pesquisas Análise do Discurso,
atuando principalmente com os seguintes temas: análise do discurso, discurso midiático, linguagem e informação
televisivas. Coordena o projeto de pesquisa para a criação de um Centro de Apoio a Pesquisas sobre Televisão (CAPTE).

e-mail: gianids@deii.cefetmg.br

Flávio Luis Cardeal Pádua

Doutor em Ciência da Computação pela UFMG, é professor adjunto do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais (CEFET-MG), onde atua como membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Modelagem Matemática e
Computacional e coordena o Laboratório de Pesquisas Interdisciplinares em Informação Multimídia (PIIM-Lab). Seus
interesses de pesquisa concentram-se no desenvolvimento e aplicação de técnicas de Processamento e Análise de
Imagens.

e-mail: cardeal@decom.cefetmg.br

1306
Multiletramentos digitais e discurso docente: o dizer e o
fazer dos professores dentro dos contextos das
tecnologias de informação e comunicação

SAITO, Fabiano Santos


(UFJF/FAPEMIG)
SOUZA, Patrícia Nora de
(UFJF)

1- Introdução

Artefatos culturais da Era Digital, como o computador, a Internet e tantos outros dispositivos digitais, se
popularizaram na sociedade contemporânea, que Castells (1999) caracteriza como “Sociedade Informacional”, e a qual
Lévy (1999) diz pertencer a uma “cibercultura”. Os novos meios de comunicação e informação determinam novos padrões
de ação e comportamento social, bem como os sujeitos sociais determinam como e para quê devem servir as Tecnologias
da Informação e Comunicação (doravante TIC’s). O cenário educacional, um pouco resistente à apropriação destas novas
mídias (porque o novo desestabiliza estruturas já postas), acaba aceitando ou rejeitando os discursos tecnológicos de
modos e em graus diferentes, o que se revela através do discurso dos sujeitos sociais que integram a instituição “escola”.
Neste contexto, é nosso objetivo investigar as práticas discursivas e ações pedagógicas dos professores que
utilizam e se relacionam com as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), focalizando os discursos que emergem
destes sujeitos sociais – os discursos imediatos ou “manifestos”, nas palavras de Foucault (2007 [1969]) –, bem como os
discursos hegemônicos que atravessam o que é dito por esses sujeitos, numa relação interdiscursiva.

2- Pressupostos teóricos

2.1- O Lugar do Discurso na Era Digital em contextos escolares

Para compreendermos as relações complexas entre o dizer e o fazer dos professores em contextos de ensino que
usam tecnologias digitais e como o próprio professor se identifica na Sociedade da Informação, utilizaremos a Teoria do
Posicionamento (DAVIES e HARRÉ, 1990; HARRÉ e VAN LANGENHOVE, 1999), segundo a qual um sujeito social
posiciona a si mesmo (self) e aos outros através do discurso.
Os conceitos de posição e posicionamento surgiram nos domínios militares e de marketing, como lugares
estratégicos em que se posicionam o soldado/o produto em relação a seu inimigo/produto competidor. Na análise do
discurso, “o conceito de posicionamento pode ser visto como uma alternativa dinâmica para o conceito mais estático de
papel” (HARRÉ e VAN LANGENHOVE, 1999, p. 14).
O conceito de posicionamento serve para explicar relações sociais complexas, como as de identidade e pertença,
e se encaixa num quadro teórico mais amplo que privilegia:

1307
1) os três diferentes níveis de fenômenos societais: pessoas (coisas causalmente interagentes e complexas);
instituições (agrupamentos de pessoas) e sociedades (agregados de pessoas em grupos em uma ordem mais
alta);
2) um quadro referencial baseado em pessoas/conversas para localizar os fenômenos sociais, uma vez que o quadro
tempo/espaço é insuficiente para tal, ainda que os fatos sociais se desenrolem através do tempo/espaço;
3) um domínio social formado de três processos básicos: conversas e outras trocas simbólicas semelhantes; práticas
institucionais; e usos da retórica societal.

Considerando que os fenômenos sociais se constroem e ocorrem através do discurso, entendê-lo-emos lato sensu
como o “conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos) em sua dispersão de
acontecimentos e na instância própria de cada um” (FOUCAULT, 2007 [1969], p. 29-30). O discurso também pode ser
entendido como “um processo público multifacetado através do qual significados são progressiva e dinamicamente
conquistados” (DAVIES e HARRÉ, 1990, p. 3). Como o objetivo deste trabalho é investigar as práticas discursivas em
contexto escolar, stricto sensu “o discurso é para ser entendido como um uso institucionalizado de sistemas sígnicos de
linguagem e similares” (idem, ibidem).
Dentro do discurso, o sujeito social pode assumir uma posição, que é um lugar social/psicológico de onde

uma pessoa inevitavelmente vê o mundo de um ponto de vantagem daquela posição e em termos de


imagens particulares, metáforas, narrativas [story lines] e conceitos que são feitos relevantes dentro da
prática discursiva particular na qual são posicionados (DAVIES e HARRÉ, 1990, p. 3)1

Retomando o quadro referencial pessoas/conversas, o posicionamento é definido como “construção discursiva de


histórias pessoais que fazem as ações de uma pessoa inteligíveis e relativamente determinadas como atos sociais e dentro
dos quais os membros de uma conversa tem locações específicas” (HARRÉ e VAN LANGENHOVE, 1999, p. 14). Nesta
pesquisa, utilizaremos “conversa” num sentido amplo de interações simbólicas, dado que o escopo é investigar as relações
professor – discurso – tecnologias digitais – sociedade. Nesta perspectiva, consideraremos os elementos que integram e
mutuamente determinam essas interações simbólicas, quais sejam: 1) posição – ou posicionamento; 2) narrativa – storyline,
ou uma história pessoal que revela posicionamentos; e 3) ato/ação social – resultante da interação com o outro e que se
reflete no discurso (idem, ibidem).
Entendendo o professor dentro de um contexto institucional que pode propiciar vários modos de posicionamento
(reflexivo, crítico, etc.), analisaremos sua posição em relação às Tecnologias; suas narrativas de formação para trabalhar
com computador; e suas ações sociais (práticas pedagógicas/práticas de letramento) quanto ao ensino através das
tecnologias digitais.
De certa forma, a Teoria do Posicionamento, por assumir o posicionamento como uma categoria de identidade
provisória e dinâmica dentro das práticas discursivas, aproxima-se das ideias foucaultianas de subjetivação, uma vez que o
homem se constitui e se relaciona com o mundo através do poder do discurso (cf. FOUCAULT, 2007[1969]). O
posicionamento do self também se aproxima do conceito de ethos, se considarmos que é uma identidade/imagem que
construímos para os outros (cf. CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004).
Neste trabalho, entendemos discurso imediato, ou “manifesto”, como a cadeia de enunciados que partem de uma
pessoa, ou sujeito social, que por estar na base da estrutura societal possui menos poder e acaba absorvendo discursos e

1 As traduções neste artigo são de nossa responsabilidade.

1308
poderes de estruturas mais altas (instituições e sociedades). O discurso manifesto, ou materializado, se relaciona através
da interdiscursividade com uma rede de outros discursos através de regularidades e diferenças, esta rede de discursos
pode ser entendida como a “formação discursiva” foucaultiana. Para nós, o discurso hegemônico – que tem o poder de se
tornar discurso do consenso, domínio da memória ou “representação popular” – é o que parte das estruturas societais mais
altas (instituições e sociedades) e que, através de relações de poder assimétricas, atravessa e/ou contamina o discurso do
sujeito social (cf. FOUCAULT, 2007 [1969], 1979; MAINGUENEAU, 2005 [1984]; VAN LANGENHOVE e HARRÉ, 1999).
Considerando o contexto escolar e a demanda social de uso das TIC’s em sala de aula, muitos mitos, crenças, ou
seja, muitos discursos hegemônicos acabam sendo revelados pelo discurso dos professores que se relacionam de algum
modo com os artefatos da Cultura Digital, desta maneira, algumas reflexões sobre Letramentos Digitais (LD), em uma
perspectiva tanto técnica quanto crítica, são necessárias para compreensão das formações discursivas contemporâneas.

2.2- Reflexões sobre Letramentos Digitais – conceitos essenciais

Primeiramente, é necessário compreender letramento como uma prática sócio-discursiva, inicialmente relacionada
com a cultura da leitura e da escrita – nesse sentido, letramento diferencia-se de alfabetização, que seria apenas o domínio
do código escrito. Para explicar as práticas sociais da fala e da conversa, surge então o termo “oralidade”, e como as
práticas orais antecedem e estão presentes nas práticas letradas, o letramento pode ser considerado como oralidade
secundária (cf. STREET, 1984; TFOUNI, 1995; KLEIMAN, 1995; ROJO, 1998; SOARES, 2004; entre outros). O cenário já é
um pouco complexo se pensarmos que a linguagem medeia as relações entre os sujeitos e o mundo (VYGOTSKY, 1989).
Com a popularização dos novos meios de comunicação e informação digitais – como o computador, a Internet e outros
artefatos da era digital –, temos máquinas e aparelhos que medeiam as relações humanas que já são mediadas através da
linguagem. As novas TIC’s trazem as vantagens da incorporação de linguagens não-verbais, da comunicação e acesso à
informação em tempo real e da possibilidade de referenciação quase infinita dos links possíveis nas estruturas hipertextuais.
E as TIC’s também fazem surgir o conceito de Letramento Digital, que é basicamente as práticas sociais de leitura e escrita
mediadas por essas tecnologias, contudo, como o novo meio permite várias linguagens além da verbal escrita, pode-se
compreender Letramento Digital como uma rede de múltiplos letramentos mediados pelas TIC’s, agenciados por sujeitos e
instituições posicionados em contextos sócio-históricos específicos (cf. CASTELLS, 1999; SOARES, 2002; BUZATO, 2007,
2009).
Selber (2004) também assume que vários letramentos ocorrem em função do uso das tecnologias digitais e
formula o modelo de Multiletramentos Digitais. Ele identifica três tipos de letramento que se inter-relacionam: 1) Letramento
Digital Funcional – conhecimentos técnicos e sociais básicos para uso das TIC’s; 2) Letramento Digital Crítico – habilidades
sócio-culturais para despertar a consciência e levar a questionamentos sobre o uso das TIC’s; 3) Letramento Digital
Retórico – habilidades de design e programação que permitem a produção de material hipermidiático e tecnologias digitais
com objetivos de promover a interface/interação homem-computador (H-C) e homem-computador-homem (H-C-H).
Nesse modelo de multiletramentos digitais, Selber (2004) sugere algumas categorias de análise e habilidades que
podem ser desenvolvidas dentro de cada categoria. Mas, por limites de espaço, iremos destacar apenas algumas. Dentro
do LD funcional, o que nos interessa são: 1) “convenções sociais” – conjunto de práticas que determinam o uso das TIC’s;
2) “discursos especializados” – ou seja, os discursos que se relacionam com o campo discursivo relacionado ao uso das
TIC’s. Do LD crítico, destacaremos: 1) “forças institucionais” – forças de instituições que tem o poder de regular o uso da
TIC’s em sociedade; 2) “representações populares” – conjunto de representações que as TIC’s têm no imaginário popular.
No LD retórico, utilizaremos apenas 1) “persuasão” – capacidade de compreender que a persuasão permeia o ambiente

1309
digital, envolvendo sempre estruturas e forças maiores (cf. SELBER, 2004; SAITO e SOUZA, 2010; SAITO e SOUZA, no
prelo2)

3- Metodologia

O presente trabalho é uma pesquisa exploratória, de abordagem qualitativa-interpretativista, parte de um mestrado


em Linguística, em curso. O contexto de pesquisa é uma escola pública, localizada em região periférica do município de
Juiz de Fora-MG, em que foi investigado como ocorriam os usos das TIC’s em aulas presenciais, através dos discursos e
das ações dos professores relacionados com a sala de informática. As participantes da pesquisa foram:

Nome fictício Posicionamento institucional


Joana Professora de informática educacional
Rosa Professora regente de turma
Carla Professora de Língua Portuguesa
Leda Professora de Língua Inglesa

Para melhor compreensão do contexto, é necessário dizer que, por causa de impasses tecnológicos, Joana
trabalhava apenas com metade da turma na sala de informática e mesmo assim trabalhando com os alunos divididos em
duplas, já que de um total de 10 computadores, 2 não funcionavam por problemas técnicos, isto em metade da carga
horária definida para a turma. A outra metade ficava com Rosa aguardando o momento de ir para a sala de informática, em
um sistema de revezamento.
Quanto às professoras Carla e Leda, elas não participaram de atividades na sala de informática. Contudo, na
análise dos dados, poderemos perceber como seus discursos imediatos revelam os discursos hegemônicos sobre as TIC’s
no ensino.
O principal instrumento de pesquisa utilizado foi a entrevista semi-estruturada, que permite aos sujeitos
investigados se posicionarem através da materialidade discursiva. As entrevistas foram gravadas em áudio digital, sendo
posteriormente transcritas através de notação simplificada, conforme as “Normas de transcrição” (vide Anexo 1). Para
efeitos de análise, serão utilizados apenas excertos das transcrições das entrevistas. Observação e notas de campo
também foram estratégias investigativas utilizadas na pesquisa. Além disso, para compreender o que representa a categoria
discursos hegemônicos, analisamos um vídeo do site Youtube, disponível no link <http://www.youtube.com/watch?v=G-flu-
307cc> e um banner digital disponível no topo da página do seguinte endereço
<http://www.correios.com.br/servicos/rastreamento/rastreamento.cfm>.

2 Trabalho a ser publicado nos Anais do VI SENALE.

1310
4- Análise e discussão dos dados

Nesta seção, iremos analisar os dados que foram gerados com as participantes da pesquisa no contexto referido
na seção anterior, com foco no que foi dito nas entrevistas, tentando compreender o que está por trás ou além deste dizer.
Mas antes, tentaremos exemplificar o que são discursos hegemônicos.
Sendo assim, retomamos aqui a noção de discurso hegemônico, que, em nosso entender, é o discurso que parte
de entidades sociais que têm mais poder de dizer. Este discurso, em geral, é um discurso velado, percebido nos sub-ditos e
nos não-ditos, mas que tem força de participar como já-dito no discurso imediato dos sujeitos sociais, que por terem menos
poder (em relação a instituições e sociedades) e através da interdiscursividade, acabam aceitando o discurso hegemônico,
sem questioná-lo e até sem perceber que o incorporaram em suas práticas discursivas (cf. FOUCAULT, 2007 [1969], 1979).
O discurso sobre tecnologias digitais na educação pode ser considerado como discurso hegemônico, porque parte de
instituições que têm poder na sociedade (empresas, universidades, governos, etc.). Como exemplo deste tipo de discurso,
proponho para análise o vídeo “Inclusão Digital”, muito divulgado na mídia televisiva3 e que informa as ações do Governo
Federal e do Ministério da Educação e Cultura (MEC), no que concerne ao projeto de inclusão digital das escolas. O que
segue é uma transcrição do áudio deste vídeo:

O Governo Federal está promovendo a inclusão digital nas escolas públicas do país. Foram distribuídos
vinte e quatro mil laboratórios de informática com conexão de banda larga. As escolas urbanas do ensino
médio já estão equipadas. Até dois mil e dez, mais de cinquenta e cinco mil escolas terão seus
laboratórios. Além disso, o Ministério da Educação oferece conteúdos digitais e capacita os professores
para tornar a sala de aula mais interativa e dinâmica. Conheças as ações de inclusão digital no portal do
MEC. PDE, Ministério da Educação, Brasil, um país de todos.
(INCLUSÃO DIGITAL, 2010)

No plano das imagens, o vídeo inicia com um computador sendo ligado, um quadro de efeito que simula
conexão/entrada no mundo digital, e nos quadros subsequentes mostra crianças caracterizadas em um posicionamento de
alunos, em atitude de alegria e contentamento ao poderem utilizar computadores em uma sala de aula informatizada, que
ao final é identificada, através de legenda, como sendo “Laboratório de Informática. Centro de Ensino Fundamental 10 –
Guará/Brasília”. O vídeo trabalha então com a representação popular “alunos gostam de computadores”, o que em parte é
verdade devido ao poder de persuasão que as TIC’s exercem sobre os jovens. No plano discursivo, a voz que faz a
narração do vídeo, que possivelmente representa o ethos do Governo Federal, posiciona esta instituição como provedora
de tecnologia digital para escolas e promotora de inclusão digital, em nenhum momento é dito ou sugerido que essas ações
do governo só são possíveis através de verbas públicas, originadas com a arrecadação de impostos pagos por pessoas
comuns, etc. A hierarquia institucional e de poder estão marcadas no que é dito sequencialmente (Governo Federal >
escolas > professores > alunos), nessa cadeia o único sujeito social que não é verbalizado é “alunos”, já que eles estão
presentes semioticamente em imagens. A voz discursiva do vídeo constrói um posicionamento otimista do Governo e tenta
convencer o interlocutor disso através de uma story line que enfatiza a quantidade de computadores distribuídos e escolas
atendidas, relatando apenas no final sobre o oferecimento de conteúdos e qualificação docente para “tornar a sala de aula
mais interativa e dinâmica”, este discurso faz pressupor que as aulas sem computador não são muito dinâmicas nem
interativas. A ideologia subjacente é a de que para participar da Sociedade Informacional, os sujeitos têm que entrar no

3
O vídeo também está disponível no site do Youtube, no link: <http://www.youtube.com/watch?v=G-
flu-307cc>

1311
novo modelo de organização societal via inclusão digital; é válido destacar que o termo “inclusão digital”, um conceito do
discurso especializado relacionado às TIC’s, pressupõe um excluído digital, o que gera uma dicotomia que pode ser
danosa em termos de segregação social, melhor seria o Governo falar de um projeto de letramento digital, em que os
sujeitos sociais encontram-se em diferentes estágios de apropriação dos discursos e práticas sociais mediados pelas TIC’s.
Outro exemplo de discurso hegemônico que trazemos é um banner digital, presente no topo da página
<http://www.correios.com.br/servicos/rastreamento/rastreamento.cfm>, que é um anúncio oferecendo condições para que
professores adquiram um computador portátil e cujos enunciados aparecem em uma animação em flash, nesta sequência:

1- A tecnologia favorece a pesquisa e a educação e é importante demais para ficar de fora da sala de
aula!
2- Professor, conheça as facilidades que os Correios oferecem para você adquirir o seu computador
portátil!
3- Tecnologia e Informação nas mãos dos mestres
(CORREIOS, 2010)

Do discurso desta campanha, infere-se que se o professor adquirir o computador portátil, então esta tecnologia vai
favorecer a educação, sendo assim, a representação popular aqui é “o computador melhora a educação”, o que atribui à
máquina o poder mágico de transformar o cenário educacional. Este mito, crença ou ideologia torna-se perigoso no sentido
de apagar o agenciamento humano, que é fundamental para que as tecnologias funcionem. As ideologias mais perversas
desta campanha, que estão no plano do não-dito, mas que se deduzem, são: 1) a de que o professor não tem condições de
comprar um computador portátil e por isso precisa das “facilidades dos Correios” para comprar um; 2) a de que “professor
sem tecnologia e informação (= computador portátil) não consegue promover pesquisa e educação”. Uma outra inferência
indicada pelo discurso é a de que o professor ao adquirir o computador portátil vai levar este tipo de tecnologia para dentro
da sala de aula, o que pode não se realizar se o professor não se apropriar de práticas de letramento digital e não estiver
capacitado para utilizar o computador com fins educacionais claramente definidos.
Estes discursos hegemônicos circulam em sociedade e podem ser aceitos ou rejeitados pelos sujeitos sociais.
Quando são aceitos, mesmo que inconscientemente, acabam influenciando as práticas discursivas (relações
interdiscursivas) e as ações em sociedade. Agora, tentaremos investigar como esses discursos influenciam o
posicionamento e as ações docentes em um contexto de uso e relacionamento com as TIC’s.
Iniciaremos a análise do discurso das professoras investigadas, retomando o primeiro enunciado do banner digital
analisado acima, que diz assim “a tecnologia favorece a pesquisa e a educação e é importante demais para ficar de fora da
sala de aula”, que marcadamente demonstra o valor que é dado à tecnologia (não é dito, mas infere-se que seja a
tecnologia digital) na sociedade atual, que valoriza a informação como bem simbólico e capital sócio-cultural (CASTELLS,
1999). Então, há um discurso hegemônico sobre a importância da tecnologia (digital) em contextos de ensino, e isto se
reflete no discurso imediato da professora de língua inglesa:

Pesq: eh(.) você acha que é importante(.) eh(.) esses conhecimentos de informática(.) pro aluno?
Leda: muito
Pesq: por quê?
Leda: porque hoje em dia(.) informática é assim(.) um fator primordial(.) né! ela tá assim(.) na frente de
tudo(.) se você não souber informática(.) você tá(.) como se diz aos alunos “out” (.) tá fora

O discurso hegemônico ecoa no discurso imediato de Leda, professora de Língua Inglesa, quando ela diz
“porque hoje em dia(.) informática é assim(.) um fator primordial(.) né! ela tá assim(.) na frente de tudo”. Através desses
enunciados, percebe-se que há um discurso de poder sobre informática que circula em sociedade e que direciona Leda a

1312
dizer que “informática é primordial”, ela aceita este discurso e incorpora ao seu, e de certo modo, configura um
posicionamento pró-informática. Na sequência, ela diz “se você não souber informática(.) você tá(.) como se diz aos
alunos “out” (.) tá fora”, e aqui, transparecem os discursos hegemônicos sobre inclusão digital, que gera categorias dentro
e fora do mundo digital, ou segundo a metáfora do contêiner, de Lakoff (1980), categorias como “on-line” e “off-line”, “na
rede” e “fora da rede”, “entrar na Internet” e “sair da Internet”. Desse modo, infere-se que não ter conhecimentos de
informática, na sociedade atual, representa ficar de fora das práticas sócio-discursivas contemporâneas, o que pode gerar
alienação, marginalização e segregação social, como apontamos acima ao analisar o significado de “inclusão digital”. Mas,
apesar de a professora se apropriar do discurso hegemônico relativo à importância das TIC’s, ela não utiliza os recursos
informacionais em suas aulas:

Pesq: mas nessa escola(.) né! nessa instituição(.) você já trabalhou com algum conteúdo de informática?
Leda: não(.) ainda não
Pesq: ainda não(.) eh(.) e a que se deve essa(.) não-utilização do computador?
Leda: primeiramente(.) falta de/de interação mesmo(.) houve u/a princípio uma conversa(.) de se
disponibilizar um tempo(.) entre mim e o professor de informática
Pesq: hum
Leda: na medida do possível(.) mas faltou aquele(.) fechamento mesmo
Pesq: [aquele
Leda: [o que que eu ia trazer pra
Pesq: sei(.) aquele sentar junto
Leda: é
Pesq: pra planejar uma atividade
Leda: isso

A professora não utilizou os recursos da sala de informática devido ao tempo, porque registramos em nota de
campo que a carga horária de Língua Inglesa é muito curta e entra em conflito com a carga horária definida para o
atendimento de determinadas turmas na sala de informática, o que aponta para um discurso hegemônico interno à escola
ou forças institucionais que regulam quem pode usar a sala de informática e quando. Além disso, a professora fica na
dependência da expertise do professor de informática para ajudá-la na aplicação das atividades que planeja, o que pode
indicar o desconhecimento, por parte dela, de práticas de letramento digital voltadas para fins educacionais.
A professora de Língua Portuguesa também não utilizou a sala de informática para aplicar atividades, nem
procurou o professor de informática para esses fins. Ela relata a mesma dificuldade de carga horária conflitante, a
problemática de ter de cumprir com os conteúdos curriculares da disciplina. Mas em seu discurso, ela revela um
posicionamento de resistência frente ao uso das TIC’s em sala de aula:

Pesq: sei(.) então você até hoje não procurou


Carla: não
Pesq: a professora de informática?
Carla: nunca procurei
Pesq: pra aplicar alguma atividade usando o computador?
Carla: não(.) mesmo porque(.) eu tenho dificuldade com o computador(.) eu não gosto ()
Pesq: tá! então você tem dificuldade com o computador?
Carla: tenho
Pesq: eh
Carla: certa aversão(.) não é nem dificuldade(.) é aversão
Pesq: mas por quê? não fez parte da sua formação?
Carla: é! não fez parte da minha formação(.) e assim(.) eu sempre fiz/vi o/o computador(.) como(.) assim
uma ferramenta de trabalho(.) mas no sentido assim(.) da minha própria formação(.) d’eu ir buscar as
coisas(.) trazer algo novo pra eles(.) mas não como ferramenta de trabalho em sala de aula [...]
Pesq: uma ferramenta de pesquisa
Carla: é! eu vejo como ferramenta de pesquisa(.) para mim
Pesq: pra uso pessoal?

1313
Carla: pra uso pessoal(.) entendeu? para eu melhorar um pouquinho a minha aula(.) trazer material pra
eles
Pesq: hum
Carla: mas tudo impresso(.) essas coisas [...]

Ao dizer que os conhecimentos de informática não fizeram parte de sua formação, além do fato de não gostar de
computador – revelando em sua story line uma certa tecnofobia, ou aversão à tecnologia – e que não o considera como
“ferramenta de trabalho em sala de aula”, ela vai, de certa maneira, contra o discurso hegemônico de inclusão digital que
permeia a sociedade. Contudo, embora ela não trabalhe ou não queira trabalhar diretamente com os computadores em sala
de aula, a professora Carla se utiliza dos recursos computacionais de forma indireta, como “uma ferramenta de trabalho(.)
mas no sentido assim(.) da minha própria formação(.) d’eu ir buscar as coisas(.) trazer algo novo pra eles”. Assim, para ela,
o computador é fonte de materiais para serem trabalhados em sala de aula, o que pode indicar certo domínio das
habilidades básicas de uso do computador, ou um letramento digital funcional.
Em relação a este tipo de letramento e uso das TIC’s, verificamos que a professora regente de turma, Rosa,
encontra-se em situação semelhante:

Pesq: e assim(.) na sua experiência pessoal(.) eh(.) você trabalha(.) né! você acessa a internet? usa
internet?
Rosa: uso () uso sim(.) mas uso(.) uso mais pra buscar mesmo(.) eh(.) pesquisar(.) assim não tenho
muito domínio(.) não tenho(.) né! apesar de ter feito curso e tal(.) mas aprendi a mexer(.) mexendo
mesmo
Pesq: hum
Rosa: mas assim(.) eu gostaria de fazer um curso(.) bacana(.) onde eu pudesse ter(.) mais assim(.) né!
ter mais sabedoria(.) pra lidar com/com(.) as coisas que a/que o computador oferece
Pesq: hum
Rosa: né! que a internet oferece(.) mas eu trabalho sim(.) ah trabalho um pouco(.) buscando eh(.)
materiais(.) pesquisando coisas que eu preciso pra sala de aula(.) então assim
Pesq: hum
Rosa: mas eu/eu diria que é/é/é/é um acesso pequeno ainda
Pesq: hum
Rosa: né! num tenho muito domínio ainda(.) num tenho muito/muita experiência com a máquina ainda
não

Reiteradas vezes a professora diz que “não tem muito domínio” ou “muita experiência com a máquina”, o que
pode indicar um letramento digital funcional e seu posicionamento humilde em relação ao conhecimento referente ao
uso das TIC’s. Igualmente à professora Carla, ela “busca materiais” na Internet para complementar suas práticas de sala de
aula, o que parece já ser uma convenção social de uso das TIC’s dentro da escola (o computador é fonte de materiais).
Interessante é constatar que ela se apropriou desses conhecimentos via experiências pessoais com o computador, pois diz
“aprendi a mexer(.) mexendo mesmo”, no entanto, ela reconhece a necessidade de formação docente para trabalhar com
as TIC’s, ou seja, letramento digital, ao dizer “mas assim(.) eu gostaria de fazer um curso(.) bacana(.) onde eu pudesse
ter(.) mais assim(.) né! ter mais sabedoria(.) pra lidar com/com(.) as coisas que a/que o computador oferece”. Dentro do
discurso, essa necessidade de “mais sabedoria pra lidar com as coisas que o computador oferece” indica um
posicionamento crítico e reflexivo da professora sobre suas próprias práticas no uso das TIC’s.
Assim como a primeira professora, o discurso imediato de Rosa revela o discurso hegemônico sobre a
importância da informática na educação:

Pesq: eh(.) e como que você vê o papel da sala de informática(.) no contexto educacional(.) no contexto
aqui da escola?
Rosa: acho de suma importância(.) devido exatamente a essa/essa(.) a introdução da/da internet(.) né!
da/na/na modernidade(.) eh/eh(.) quantidade de informações que são dadas pros alunos(.) então eu acho

1314
que é muito importante(.) pra que eles também(.) se/se né! interajam(.) estejam de acordo com a(.)
caminhe junto com a realidade(.) com o que tá acontecendo no mundo(.) eu acho que é fundamental

Quando ela se posiciona dizendo que o papel da sala de informática na escola é “de suma importância”, ela
concorda com os discursos hegemônicos sobre informática na educação. Ela revela a representação popular de que “a
internet oferece uma grande quantidade de informações”, como este é um discurso de consenso, pouco se discute sobre a
qualidade dessas informações disponíveis em rede. Segundo o discurso da professora, os alunos podem interagir com o
mundo e com a realidade através da Internet, ficando implícita a ideia de práticas sócio-discursivas ou letramento digital.
Ainda na visão desta professora, ela identifica que estas práticas são realizadas de forma lúdica na sala de informática:

Rosa: e ela na sala de informática trabalha mais de uma forma(.) lúdica(.) né! de uma forma mais(.)
descontraída(.) né! é uma coisa lú/ de uma/ assim(.) de uma forma que as crianças gostam muito(.) né!

O discurso aqui revela o fato de as crianças gostarem das aulas na sala de informática, e isto foi atestado em
diversos momentos de observação e em notas de campo. Talvez seja explicado pelo poder de persuasão que as TIC’s
exercem sobre as crianças, tal qual é sugerido nas imagens de alegria e contentamento do vídeo acima analisado. As
páginas visitadas durante as aulas eram, em geral, muito coloridas, com desenhos e figuras, jogos educativos bem
elaborados na questão de design gráfico, o que ajuda a convencer os alunos a interagirem com o computador. Além disso,
as aulas na sala de informática quebram a rotina da sala de aula convencional.
Agora, iremos analisar o discurso da professora de informática educacional, que trabalha numa relação direta com
as TIC’s e os alunos na sala de informática. Em relação ao modelo de letramento trabalhado nas aulas, subentende-se, com
base em Selber (2004), um modelo de letramento digital funcional, através do discurso que ela emite em relação à
formação docente para trabalhar com as TIC’s:

Pesq: e assim(.) sobre a formação(.) eh humana pra trabalhar com a tecnologia(.) já que a tecnologia não
é tudo(.) ela precisa de pessoas formadas(.) né com(.) com conhecimentos de informática(.) etc(.) pra
poderem ser/eh ser trabalhadas(.) eh(.) como que você vê(.) eh(.) essa formação(.) do humano/formação
do professor?
Joana: ah eu acho que primeiro
Pesq: hum
Joana: vai ter que ter assim(.) um/um despertar(.) de interesse do professor(.) pra poder aprender
Pesq: [hum
Joana: [querer aprender(.) e querer passar(.) a tecnologia(.) a/a parte de/até a parte de informática
mesmo(.) e ele precisa ter um conhecimento prévio? claro que precisa(.) mas não é aquela coisa(.) assim
que num/que ele não possa fazer(.) eu acho que(.) qualquer um(.) com um conhecimentozinho básico
Pesq: hum
Joana: pode transmitir coisas muito legais pros alunos(.) incentivar a leitura(.) incentivar o/a matemática(.)
usando a tecnologia(.) sem ter grandes conhecimentos de informática(.) sem ser o/o especialista em
informática(.) eu acho que na/nessa área da educação não precisa
Pesq: hum
Joana: a pessoa ser o especialista(.) o/o/o tudo da informática(.) ele tem que ter o básico(.) saber o
básico(.) mexer(.) ligar(.) desligar(.) trabalhar o/o/os sites(.) que el/que são realmente interessantes(.)
selecionar os sites né!

Ao dizer que o profissional de educação não precisa “ser o especialista em informática” e que “qualquer um(.) com
um conhecimentozinho básico [...] pode transmitir coisas muito legais pros alunos”, a professora revela, através do discurso,
o modelo de letramento digital com o qual trabalha (LD funcional) e seu próprio posicionamento humilde frente ao
conhecimento sobre as TIC’s, ou seja, ela pode não ser a especialista em informática, mas consegue atingir os fins
educacionais que se propõe. Este discurso imediato também pode indicar uma crítica aos modelos de educação tecnicista,
que privilegia um conhecimento técnico muito especializado.

1315
Em outro momento, ela se posiciona de forma crítica em relação às TIC’s:

Pesq: eh então você acha que a(.) a tecnologia(.) ela pode ajudar(.) eh/o ensino tradicional?
Joana: sim(.) pode sim(.) ah/ela/[ela
Pesq: [ela pode estimular [o ensino
Joana: [é um estímulo a
mais(.) não quer dizer que vai substituir o tradicional não!
Pesq: hum
Joana: porque na minha opinião(.) tecnologia é tudo(.) o giz colorido é uma tecnologia
Pesq: [hum
Joana: [o giz... eh/eh/eh... de/mudou a cor do giz(.) já é uma forma de tecnologia
Pesq: hum
Joana: num tô me referindo só o computador não(.) porque eu/a gente tá falando [de computador mas
Pesq: [hum
Joana: a escola pode ter televisão(.) pode ter vários tipos de tecnologia(.) e não usar(.) ficar lá guardado
lá no armário
Pesq: hum
Joana: o ano inteiro(.) ou uma vez ou outra um professor vai lá(.) e usa da tecnologia da TV(.) por
exemplo(.) e pronto acabou(.) e também não é pra você trabalhar ela(.) o tempo inteiro tá
Pesq: [sei
Joana: [ela num vai substituir o tradicional(.) é pra trabalhar/caminhar junto(.) os dois caminharem
juntos(.) é um/um complemento(.) um(.) junto com o outro
Pesq: então ambos vão propor/eh proporcionar o ensino-aprendizagem?
Joana: sim(.) os dois juntos(.) nunca um sozinho(.) porque só a tecnologia por si só
Pesq: hum
Joana: não vai/não vai trazer benefício nenhum(.) ela precisa de ser pensada(.) no que que você vai
pedir(.) e o que que você vai trabalhar

Nesse discurso, a professora não acredita na representação popular de que “computadores vão substituir
professores”, e desconstrói o discurso hegemônico de que a “tecnologia digital tem o poder imanente de gerar grandes
mudanças na educação”, quando considera que o ambiente escolar possui muitas tecnologias, desde o giz até os
computadores, mas que, por muitas vezes, ficam subutilizadas. E quando diz que a tecnologia tem que ser pensada, ela
está revelando, pelo discurso, a necessidade de questionamento e reflexão sobre o uso das TIC’s na educação, o que
remete a um letramento digital crítico.

5- Considerações finais

Pela análise dos dados selecionados e como considerações provisórias, apontamos que circulam em sociedade
discursos hegemônicos sobre o uso das TIC’s em contextos educacionais, estes discursos tem o poder de penetrar os
discursos imediatos dos professores, através de relações de interdiscurso, e fazer transparecer mitos, crenças, ideologias,
ou representações populares sobre TIC’s que acabam se tornando o discurso do consenso e podem influenciar nas práticas
docentes. Muito embora, os dados também indiquem que há estratégias discursivas de resistência aos discursos
hegemônicos, bem como estratégias de questionamento e desconstrução das representações populares que estes
discursos geram em sociedade. Com isto, este artigo, espera contribuir para os estudos de análise do discurso docente e
para a compreensão das ideologias e poderes que subjazem os usos das TIC’s em ambientes escolares.

1316
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Fabiano Santos Saito é graduado em Letras:Português-Inglês pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Prof.ª Nair
Fortes Abu-Merhy” (2008), atualmente é aluno do mestrado em Linguística, pelo Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal de Juiz de Fora, e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais.
e-mail: fabiano_santos_saito@yahoo.com.br

Patrícia Nora de Souza é graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora(1990), Mestre em Letras pela
mesma instituição (1996) e Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Atua como
professora na Faculdade de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Juiz de
Fora.
e-mail: patnora.souza@gmail.com
Anexo 1: Convenções de Transcrição

As entrevistas gravadas em áudio digital foram transcritas por método bastante simplificado, sem levar em
consideração aspectos como prosódia, detalhes sutis de entoação ou variantes sociolinguísticas. Na transcrição, utilizamos
os seguintes símbolos:

Símbolo Representa
... Pausa longa; hesitação
(.) Pausa breve
/ Reformulação
[ Sobreposição de falas; falas simultâneas
? Pergunta
! Entoação forte; exclamação
“” Narração, discurso reportado
[...] Supressão de trecho da entrevista
() Trecho difícil de transcrever, não foi possível a transcrição

1318
O modo descritivo em reportagens: operações discursivas
e patemização
SANT’ANNA, Simone
(UFRJ)

O presente artigo tem por objeto de estudo a enunciação do modo de organização descritivo. O objetivo principal
desta pesquisa foi analisar os espaços de patemização em reportagens. Esses espaços são responsáveis pela construção
de diferentes efeitos de sentido que conferem ao texto a presença de emoções. A motivação inicial surgiu da hipótese de
que os espaços de patemização possam funcionar como um dos procedimentos para descrever. Isto significa dizer que os
espaços de patemização podem caracterizar determinado texto a ponto de possibilitar a distinção entre um texto e outro. É
importante salientar que descrição, nesse caso, não deve ser entendida apenas como blocos descritivos que caracterizam
uma tipologia textual ou um modo de organização, mas deve ser entendida como todo elemento capaz de qualificar,
caracterizar ou especificar outros elementos em um determinado texto. Desse modo, pode-se entender que o processo de
descrição pode utilizar desde um simples vocábulo até um texto por inteiro. O trabalho apresenta uma análise qualitativa e
comparativa segundo o arcabouço teórico da Semiolinguística de Patrick Charaudeau.

Fundamentação teórica:

A Semiolinguística
A Semiolinguistica é uma teoria que nasce do entrelaçamento entre teorias linguísticas e semióticas. Vale
ressaltar que não se trata de uma simples junção entre teorias, mas de uma integração que se faz necessária para a
reflexão sobre a linguagem. Somente ampliando a visão sobre o objeto de estudo se pode alcançar um olhar coerente que
consiga analisá-lo como um todo. O campo semiolinguístico também sofre influência do dialogismo Bakhtiniano que deve
ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais no qual atuam forças centrípetas e centrífugas. Desse
modo, as relações dialógicas podem ser consideradas como espaços de tensão entre enunciados.
Para a semiolinguistica o ato de comunicação é representado como um dispositivo cujo centro é ocupado pelo
sujeito falante, em relação com um outro parceiro. Comunicar, portanto, é proceder a uma encenação. Os componentes
desse dispositivo são: a situação de comunicação, os modos de organização do discurso, a língua e o texto.
Os efeitos resultantes da encenação discursiva podem ser considerados como os de uma dramatização, ou seja,
suscitando emoções. Para Charaudeau (2006), a emoção não deve ser considerada como objeto de sensação efetiva,
visível por sua fisiologia, nem por traços categoriais dos indivíduos, mas como signo que, na comunicação, encontra-se
codificado, para ser reconhecido e comunicado como tal pelos parceiros de uma interação.
Todo ato de linguagem depende de um Contrato de comunicação que sobredetermina, em parte, os protagonistas
da linguagem em sua dupla existência de sujeitos agentes e de sujeitos de fala (fenômeno de legitimação). Esse contrato
englobante e sobredeterminante orienta o julgamento dos outros contratos e estratégias discursivas encenados por estes
sujeitos. “A noção de contrato pressupõe que os indivíduos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam
suscetíveis de chegar a um acordo sobre as representações linguageiras dessas práticas sociais.” (CHARAUDEAU, 2009,
p.56).

1319
O Contrato de comunicação pode ser definido como o ritual sociolinguageiro do qual depende o Implícito
codificado (o implícito que resulta dos estatutos do EUc e do TUi e da relação imaginada que os inter-define), ou seja, o
contrato é constituído pelo conjunto das restrições que codificam as praticas sociolinguageiras, lembrando que tais
restrições resultam das condições de produção e interpretação (Circunstâncis de Discurso) do ato de linguagem.
O ato de linguagem resulta de um jogo entre o implícito e o explicito e, por isso: (i) vai nascer de circunstâncias de
discurso específicas; (ii) vai se realizar no ponto de encontro dos processos de produção e de interpretação; (iii) será
encenado por duas entidades, desdobradas em sujeito de fala e sujeito agente.
A patemização
Com base nas reportagens e nos efeitos patêmicos encontrados, foram analisados os seguintes espaços de
patemização: (i) tematização, (ii) problematização e (iii) visualização.
A tematização é a interação entre informação e emoção e se faz presente nos títulos e subtítulos que além da
função de chamar a atenção do leitor para o texto, antecipa o assunto que será apresentado, isto é, mostra desde o início
qual é o sentimento que norteia a informação principal do texto.
A problematização, por sua vez, refere-se à contextualização da reportagem. É o conjunto da obra, ou seja, é a
relação entre todas as partes do texto: títulos, subtítulos, corpo do texto, imagens gráficas, fotos, a ordem dos parágrafos,
disposição das partes do texto na página, sequência dos acontecimentos, etc.
A visualização faz um recorte na reportagem analisando apenas os elementos não-verbais: como, por exemplo,
imagens, tabelas, fotos e gráficos. Analisando o formato que apresentam e seus possíveis efeitos de sentido. A visualização
mostra como esses efeitos de sentido criados pelas imagens podem evidenciar certos efeitos emocionais.

Enfoque metodológico:

O enfoque metodológico apresenta a constituição do corpus e a metodologia. O corpus foi constituído da seguinte
maneira: primeiro, buscou-se examinar vários exemplares dos jornais O Globo e Folha de São Paulo com o intuito de
selecionar notícias em ambos os jornais que abordassem o mesmo tema. A principio, foram selecionadas cinco reportagens
do jornal impresso Folha de São Paulo e cinco reportagens do jornal impresso O Globo, totalizando dez reportagens. As
matérias selecionadas tratavam dos seguintes assuntos: O desemprego nos EUA; os financiamentos do BNDES; o
posicionamento do presidente Obama sobre a pesquisa com célula-tronco; o roubo de armas no centro de tiro em São
Paulo; e Hillary usando botão para reiniciar relação com a Rússia. Todas publicadas no dia 07/03/09.
O gênero textual que compõe o corpus dessa pesquisa é a reportagem. Esse gênero foi escolhido pela constante
dúvida sobre a questão da parcialidade ou imparcialidade que um jornal deve apresentar. De um lado, a reportagem deve
adotar um ponto de vista distanciado e global. Por outro lado, espera-se que o repórter esteja o mais próximo possível da
realidade noticiada por ele. Entretanto, na prática, é impossível separar informação e emoção. O que se consegue, na
verdade, são estratégias linguísticas para jogar com a subjetividade e a objetividade.
Segundo o jornalista Ricardo Kotscho (2007, p.8) pode-se fazer uma reportagem de mil maneiras diferentes,
dependendo da cabeça e do coração de quem escreve. Kotscho afirma que sentimentos de tristeza e alegria se alternam
nos trabalhos de cobertura e não há como o repórter ficar insensível, nem deve. Informação e emoção são, portanto, as
duas ferramentas básicas do repórter. E ele terá que saber dosá-las na medida certa em cada matéria. Segundo o autor,
não pode ser de outro jeito, pois o repórter que não for capaz de emocionar, de chorar e se alegrar junto com os
personagens de quem fala, jamais conseguirá transmitir ao leitor a realidade que encontrou.

1320
Como enfoque metodológico, observou-se a mesma matéria, publicada no mesmo dia em jornais distintos, para
verificar as semelhanças e diferenças na abordagem do assunto feita pelos jornais referente a essas determinadas notícias.
Foi realizada uma análise qualitativa e comparativa com base na teoria semiolinguística de Charaudeau (2009). Foram
analisados apenas três espaços de patemização: a tematização, a problematização e a visualização. Esses espaços
selecionados para análise conseguiram comprovar a hipótese sendo desnecessário, portanto, acrescentar outros espaços
patêmicos ao andamento da pesquisa.

Análise de reportagem:

Como exemplo de análise, optou-se inicialmente pela matéria sobre o desemprego nos EUA.
O primeiro espaço de patemização analisado foi o que se refere à tematização. O referido espaço trata da
interação entre informação e emoção que pode ser observada a partir dos títulos e subtítulos das reportagens.
O título apresentado “Desemprego nos EUA é o maior em 25 anos” foi o mesmo no jornal O Globo e no jornal
Folha de São Paulo. Nesse título pode-se observar o sentimento de preocupação expresso pelo uso do superlativo. A
distinção entre as reportagens publicadas nos dois começa a partir do subtítulo.
No O Globo, o espanto por parte do presidente pode ser um intensificador da preocupação expressa no título,
“Fechamento de 651 mil vagas em fevereiro leva índice a 8,1%. Presidente Obama considera dados espantosos.” Essa
intensificação torna-se maior e mais evidente pelo fato de que quem está espantado é justamente aquele que poderia ou
deveria trazer a solução para o referido problema.
Na Folha de São Paulo, o subtítulo “Mercado de trabalho perdeu mais 651 mil postos no mês passado, e taxa de
desemprego teve salto de 7,6% para 8,1%” parece apresentar os dados de forma mais isenta emocionalmente. Nesse
primeiro espaço de patemização, já se pode observar alguma diferença entre o jornal O Globo e a Folha de São Paulo.
Neste, há uma preocupação maior em comprovar a informação com dados estatísticos. Naquele, por sua vez, há uma
preocupação com o posicionamento do presidente diante da situação de crise.
O segundo espaço de patemização analisado foi a problematização que pode ser definida como a
contextualização da informação noticiada. A problematização pode ser concretizada através das partes da reportagem
identificadas pelos títulos e subtítulos; além do corpo do texto propriamente dito.
No O Globo, o primeiro título apresenta a tematização. A primeira parte do subtítulo principal apresenta a função
de justificar o título. A segunda parte do subtítulo apresenta um dado novo que é o espanto do presidente e tem por função
intensificar a informação apresentada anteriormente. Os subtítulos do corpo da reportagem mostram como os efeitos de
emoção são construídos. A reportagem aparece dividida em três partes. A primeira é iniciada a partir da apresentação dos
informantes e sem um subtítulo específico além dos títulos e subtítulo iniciais.
A segunda parte começa com o subtítulo “Revisado, dado de dezembro é o pior desde 1949”. Nessa parte é
apresentada uma comparação entre a atual crise com a crise de 1949. A terceira parte apresenta o subtítulo “Analista vê
‘dramática hemorragia dos empregos’”. Essa parte reforça o efeito de desespero porque a hemorragia se não for controlada
pode levar a morte. Assim, a crise se não for combatida a tempo, destruirá a economia do país. Desse modo, o contexto
apresenta um sentimento de caos construído por expressões como: dados espantosos, presidente espantado, a situação
tende a piorar. A emoção pode ser percebida a princípio como uma preocupação que vai aumentando no decorrer da
notícia até atingir o desespero.
Na Folha de São Paulo, semelhantemente, o primeiro título apresenta a tematização. E a primeira parte do
subtítulo principal apresenta a função de justificar o título. Assim, “Mercado de trabalho perdeu mais 651 mil postos no mês

1321
passado,...” funciona como a prova do fato de o desemprego ser o maior em 25 anos. E, “...e taxa de desemprego teve salto
de 7,6% para 8,1%.”, ´pode ser considerado como um forte indício de que a crise continuará, já que os dados estatísticos
comprovam o aumento da taxa de desemprego. Todavia, a problematização é construída com base em diferentes
procedimentos que são responsáveis pela distinção entre os dois jornais analisados.
Entre esses procedimentos, vale destacar a presença constante de dados estatísticos, principalmente sobre as
taxas de desemprego. Além disso, também são apresentadas categorias que não foram incluídas na taxa de desemprego
oficial, como os trabalhadores em meio período e os que já estavam sem emprego, por exemplo. A reportagem apresenta
ainda um comentário sobre a retroação da economia. Mostra o perfil dos desempregados e o aumento do desemprego. Até
o momento só dados negativos que tendem a evidenciar o aumento da crise. Por outro lado, afirma que outros setores
cresceram como a área da saúde. E, por fim, salienta que os EUA já enfrentaram situações piores ao longo dos anos.
Crises que foram superadas. Os fatos começam a evidenciar as possibilidades de melhora. A figura do governo aparece
recebendo a notícia com confiança.
Na verdade, o contexto mostra a crise através do contraste de opiniões. Aparecem as vozes do governo, através
da figura do presidente falando sobre Columbus; de analistas que percebem a crise como algo sem solução que comparam
com a metáfora da hemorragia; além da opinião de um economista; e a expectativa do Conselho Econômico. Todas essas
vozes apresentam sua individualidade. Nesse espaço de interação, cada uma apresenta um ponto de vista diferente que
aparece com o mesmo valor, ou seja, uma não é superior ou inferior a outra. Todas estão em constante diálogo e, assim,
contribuindo para construção do sentido do texto.
Diferentemente do que ocorre no jornal O Globo, o último parágrafo da reportagem da Folha de São Paulo traz um
sentimento de que a crise atual poderá ser superada. O texto apresenta uma comparação com outras crises que causaram
prejuízos maiores do que esta e, no entanto, foram superadas. A emoção pode ser percebida por uma preocupação inicial
que no decorrer da reportagem vai aumentando, e por fim vai dando lugar à esperança. Destacam-se duas diferenças
principais entre os jornais analisados. Uma é o curso da emoção e a outra como cada jornal cede lugar as vozes. A emoção
no jornal O Globo começa como uma preocupação que cresce até atingir o desespero. Na Folha de São Paulo, começa
como uma preocupação que cresce, mas que é transformada em esperança.
A maneira pela qual cada jornal cede lugar as diferentes vozes que compõem a noticia merece destaque. O jornal
O Globo tende a utilizar elementos de indeterminação que fazem com que às vezes não se saiba quem realmente está
falando. Com isso, o jornal consegue uma fusão de vozes que acabam parecendo uma única voz. A do jornal, a do
informante, a da sociedade. Desse modo, parece que todos compartilham da mesma opinião sobre o fato noticiado. A Folha
de São Paulo, por outro lado, tende a mostrar de quem são as vozes que compõem a notícia. Na maioria das vezes, cada
informante é identificado com nome, sobrenome e a instituição que representam. Assim, fica claro para o leitor quem está
dizendo o que. Essa escolha confere mais credibilidade ao jornal por causa da autoridade das vozes que expressam suas
opiniões. Contudo, as marcas da subjetividade do jornal também aparecem, porém de forma sutil, quase imperceptível.
Quanto à visualização, em ambos os jornais aparecem imagens ilustrando as reportagens. No jornal O Globo,
pode-se observar a figura de uma fila de trabalhadores em busca de uma vaga na feira de emprego da Universidade de
Miami-Dade. A imagem mostra os trabalhadores debaixo do sol, alguns sentados no chão, já cansados pela espera, em
uma fila interminável. Em geral, os trabalhadores apresentam boa aparência. Os primeiros da fila estão de terno e gravata.
Além da pasta com papéis e do livro na mão, representando uma certa preparação para o mercado de trabalho.
A Folha de São Paulo mostra essa mesma fila, mas de um ângulo diferente, mais ampliado o que resulta no
enquadramento de uma grande árvore seca que pode representar a crise. Por entre os galhos da árvore, pode ser visto um
raio de sol que simboliza a esperança. Além dessa imagem, a Folha também mostra gráficos estatísticos que funcionam

1322
como prova daquilo que esta sendo noticiado. Com essa escolha ilustrativa, o jornal consegue maior credibilidade. Pois
cada dado representa a prova do que está sendo noticiado.

Resultados:

Por intermédio da análise feita, verifica-se que o jornal O Globo tende a apresentar a maioria de suas notícias de
forma subjetiva. A voz que predomina na reportagem é a voz do próprio jornal que nessa análise especifica expressa um
sentimento que parte da preocupação e atinge o desespero diante de uma situação caótica e sem solução. A voz do jornal
aparece de forma mascarada, como se fosse a voz da sociedade, uma voz geral. Essa estratégia cria um efeito de sentido
que faz com que a voz do jornal pareça uma verdade compartilhada por todos. Somente um leitor mais atento conseguirá
perceber a intencionalidade expressa pela voz do jornal.
Por outro lado, a Folha tende a ser mais objetiva, apresenta diferentes vozes, devidamente identificadas por
nome, sobrenome e cargos que ocupam ou representam o que gera autoridade e credibilidade para essas vozes. A voz do
jornal aparece de forma sutil e expressa sentimentos que partem da preocupação e terminam na esperança. Outra distinção
deve-se ao fato de que a Folha oferece maior detalhamento dos fatos expostos em suas notícias em comparação com o
jornal O Globo.
Essa escolha linguística por parte dos jornais acarreta uma diferença sutil no sentido expresso pela notícia que
pode refletir uma certa intencionalidade comunicativa. Essa escolha pode ser motivada por diversos fatores, e o que mais se
destaca é a relevância da informação para o público alvo que faz com que os jornais ora prezem a quantidade, ora prezem
a qualidade da informação. Desse modo, pode-se perceber que a mesma notícia pode ser apresentada de formas
diferentes e resultar em efeitos emocionais distintos, de acordo com as opções linguísticas e discursivas que cada jornal
apresenta.

Considerações finais:

A pesquisa realizada observou os espaços de patemização em reportagens que podem apresentar como uma de
suas funções a descrição. Partiu-se da hipótese de que os espaços de patemização como a tematização, a problematização
e a visualização, em reportagens, podem criar efeitos emocionais que são capazes de diferenciar o tipo de caracterização
que cada jornal atribui a sua notícia. Para a realização dessa pesquisa constituiu-se um corpus de dez reportagens: cinco
do jornal O Globo e cinco da Folha de São Paulo. A pesquisa utilizou uma abordagem semiolinguistica comparando a
mesma notícia publicada nos dois jornais. Como exemplo de análise foi selecionada a reportagem sobre o desemprego nos
EUA. Os resultados deste estudo indicam que há diferenças entre o modo como os jornais expressam as emoções de suas
notícias. Existem, portanto, diferentes formas de expressar o mesmo tema. Essas escolhas são responsáveis pela
caracterização de cada jornal. Destaca-se a importância desse tipo de análise para os estudos do texto. E propõe-se a
continuidade da pesquisa. Por fim, espera-se que a pesquisa possa oferecer contribuições para o ensino de Língua
Portuguesa, principalmente, nas áreas referentes aos processos de interpretação e produção textual.

1323
Referências:

ARMENGAUD, Françoise. A pragmática. Tradução Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

BENVENISTE, Émile. Aparelho formal da enunciação. In: ___. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.

CARNEIRO, Agostinho Dias. (Org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996, p. 5-70. (Série
Investigações Linguísticas).

CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolinguística do texto e do discurso. In: PAULIUKONIS, M. A.; GAVASSI, S. C.
(Orgs.). Da Língua ao Discurso: reflexões para o ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005, p. 11-27.

_____. Linguagem e discurso. São Paulo: Contexto, 2009.

_____. Discurso das mídias. Tradução Ângela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2006.

_____ & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Coord. da tradução Fabiana Komesu. 2.ed. São
Paulo: Contexto, 2008.

ILARI, Rodolfo & GERALDI, Wanderlei. Semântica. São Paulo: Ática, 1995. (Série Princípios)

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Os atos de linguagem no discurso. Tradução de Fernando Afonso de Almeida e Irene
Ernest Dias. Niterói: EdUFF, 2005.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A inter-ação pela linguagem. 8a ed. São Paulo: Contexto, 2003.

KOTSCHO, Ricardo. A prática da reportagem. São Paulo: Ática, 2007.

MACHADO, Ida Lúcia; MENEZES, William; MENDES, Emília. (orgs). As emoções no discurso, v.1. Rio de Janeiro: Lucerna,
2007.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. 2a .ed. Tradução Freda Indursky. São Paulo:
Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993.

______. Análise de textos de comunicação. São Paulo, Cortez, 2000.

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino; GAVAZZI, Sigrid. Texto e Discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2003.

Currículo da autora

Simone Sant’ Anna é doutoranda do curso de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ sob a orientação da
Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Lino Pauliukonis. Apresentou trabalhos nas áreas de semiolinguística, semântica e semiótica.
Atualmente trabalha na prefeitura de Angra dos Reis e no Estado como docente de Língua Portuguesa. E-mail:
simonesnt@yahoo.com.br

1324
A construção do envelhecer pelas revistas Veja e IstoÉ :
enunciação e produção de sentidos
SANTANA, Maria Lima de 1
(UFPI)

INTRODUÇÃO

Percebemos que no meio midiático são muitos os tipos de publicações que tratam do mesmo tema, porém cada
periódico utiliza uma estratégia diferente, procurando envolver um público específico. Neste sentido, o objetivo primeiro a
qual nos propomos aqui é investigar como estão sendo construídos discursos midiáticos acerca do envelhecer e como
esses discursos contribuem para a formação das identidades dos leitores.
Nesse sentido, salientamos que entre os elementos básicos e recorrentes na elaboração discursiva da identidade
da pessoa idosa, destacamos a ênfase dada à saúde, bem-estar e no discernimento, em contraposição a doente, inválido e
caduquice.
Embora, culturalmente nossa sociedade apresente uma preocupação com essa etapa da vida, percebemos que
ela tem despertado uma atenção mais específica nos últimos anos. Os meios de comunicação vêm divulgando com
freqüência formas milagrosas que contribuem para a melhoria da qualidade de vida. Mas é importante enfatizar que esta
atenção e/ou preocupação é resultado do aumento da expectativa de vida do brasileiro e, em conseqüência, um aparente
crescimento desse grupo etário na população socioeconômica.
Neste trabalho, pretende-se fazer, também, uma análise reflexiva acerca das estratégias enunciativas das revistas
VEJA e ISTOÉ tomando-se como corpus as edições publicadas no período compreendido entre janeiro de 2009 a agosto de
2009, investigando a problemática da identidade. Para isso, procuramos identificar como as revistas, constroem
enunciativamente discursos sobre os sentidos de envelhecimentos, analisando como estes se constituem discursivamente.
A leitura das revistas Veja e IstoÉ proporciona a interação entre os leitores e o “mundo dos acontecimentos”, haja
vista serem veículos de comunicação que, em divulgação semanal, levam ao público leitor os mais variados tipos de
informação, como política, economia, cultura, comportamento, dentre outros. A leitura dessas revistas é um hábito de
grande parte da população adulta, tendo, pois, relevância na construção da imagem social. Assim, acreditando serem essas
revistas um espaço discursivo, lugar de construção, contradição e reconhecimento de identidade, esta reflexão pretende
verificar como o envelhecer é abordado nas referidas revistas, para tanto foi feita uma análise de todas as reportagens que
tratam direta ou indiretamente do tema em questão.
Salienta – se, portanto, que em meio aos objetivos desse trabalho evidencia - se as estratégias discursivas
utilizadas pelas revistas, a fim de verificar, ainda, em que momentos estas revistas se aproximam ou se distanciam. E para
analisar o dispositivo de enunciação das revistas em estudo nos apoiaremos no conceito de contrato de leitura de Eliseo
Veron.
Para a efetivação desse trabalho, será exposto de início, uma explanação sobre a velhice no Brasil, depois se fará
algumas considerações sobre a análise de discursos, perpassando por conceitos importantes utilizados pela teoria dos
discursos sociais, pois a proposta de análise aqui idealizada se ancora nos textos das revistas considerando as estratégias

1 Aluna do programa de Mestrado em Letras da UFPI

marolalima@hotmail.com

1325
enunciativas de aproximações e distanciamentos tendo como base os estudos de Pinto (1999), Araújo (2000), Foucault
(2004),Verón(2005), dentre outros. Em continuidade, será feita a análise das reportagens das duas revistas que fazem
referência ao tema do envelhecimento.
A partir das propostas de análises feitas, foi possível constatar que as estratégias utilizadas nas operações de
enunciação e na construção dos discursos das revistas analisadas contribuem, consideravelmente, para formação de
identidades dos leitores, pois verificamos que os sujeitos enunciadores das reportagens analisadas procuram construir
imagens positivas do envelhecer, colocando sempre a questão do envelhecimento como um processo necessário e
saudável. O ser considerado velho é apresentado como alguém capaz de viver bem e feliz no seio da sociedade,
desenvolvendo atividades de forma bem ativa. A abordagem dada ao tema deixa inferir, também, que a revista IstoÉ, no
período observado, deu maior ênfase à temática.

1 A construção dos sentidos de velhices e envelhecimentos: um ato discursivo

Durante toda a história da humanidade percebemos uma preocupação do ser humano com a finitude: A busca por
tratamentos que viabilizem o rejuvenescimento é fato milenar. Esta questão não passa despercebida por filósofos, religiosos
e os mais diversos setores da intelectualidade, mas os estudos sobre o envelhecer ainda é incipiente. A apesar da
discussão sobre o tema ter adquirido grande espaço nos meios de comunicação, nos últimos anos, despertando no meio
midiático um interesse maior e um novo olhar voltado para os sentidos de envelhecimentos, percebemos, ainda, o pouco
empenho que estudos científicos têm dispensado a este assunto. É válido salientar, também, que este novo olhar para o
tema cresceu, especialmente, na década de 90. Aqui, se percebe a velhice como um sinal de positividade, diferentemente
da década de 70 em que a velhice era sinônimo de morte, isolamento e fim.
Entendemos que a imagem do envelhecer sempre esteve associada à morte, podemos ratificar este fato com as
palavras de Barros (2007, p.7), “a associação óbvia que se faz entre a velhice e a morte nada tem de novo, nem é própria
da atualidade, embora saibamos que se realiza diretamente em épocas e culturas distintas”. O envelhecer sempre foi
motivo de desgastes tanto físico quanto emocional, haja vista quando jovem acreditarmos que o envelhecer é um fenõmeno
muito distante de nossa realidade, fato longínquo, assim sendo quando a velhice chega é como uma assolação difícil de se
aceitar, pois a própria família, que são as pessoas mais próximas tende a se afastar, ou quando não, começa a tratar o
idoso como inválido, incapaz e totalmente dependente.
Assim, muitos estudiosos têm direcionado seu olhar para questionamentos e discussões que se entrelaçam
sentidos de velhices e novas formas de viver. Com esse propósito, autores como Sônia de Amorin Mascaro apresentam
conceito de velhice. Segundo Mascaro, a velhice é “uma fase natural da vida e não há como fugir deste ciclo: nascimento,
crescimento, amadurecimento, envelhecimento e morte”. Percebemos que a autora está revelando um ponto de vista
totalmente vinculado à perspectiva biológica, visto que se atentarmos para a velhice numa perspectiva voltada para a
antropologia encontramos uma distinção bem nítida daquilo que se considera universal - o ciclo de vida. Para esta
perspectiva, a velhice é uma categoria socialmente produzida (DBERT, 2007), onde as representações sobre velhices e
envelhecimentos têm sentidos e significados conforme contextos históricos, sociais e culturais diferentes.
Percebemos que há uma distinção entre o “ser velho” dentro do campo biológico que sistematiza as fases da vida
de forma universal como nascer, crescer e morrer e o “ser velho” no campo antropológico, que entende estes períodos da
vida como etapas do processo biológico que acontece diferentemente em cada indivíduo, dependendo da cultura em que

1326
estão inseridos. A antropologia busca descrever os aspectos culturais de cada sociedade e vai além, pois tenta
compreender a humanidade em sua totalidade, evitando analisar apenas as particularidades.
Segundo o pensamento de Debert( 2007, p.51), “a pesquisa antropológica demonstra que a idade não é um dado
da natureza, nem um princípio naturalmente constitutivo de grupos sociais, nem ainda um fator explicativo dos
comportamentos humanos”. Acrescenta, ainda, que “a pesquisa antropológica é rica em exemplos que servem para
demonstrar que fases da vida como a infância, a adolescência e a velhice não se constituem em propriedades substanciais
que os indivíduos adquirem com o avanço da idade cronológica”. As palavras de Debert confirmam a ideia de que as fases
da vida devem ser percebidas mais como uma questão relacionada a um processo biológico, que variam de sociedade para
sociedade.
Conforme pudemos verificar, o envelhecer é um fato bastante particular para cada indivíduo, pois nem sempre o
ser humano encara a idade cronológica como envelhecimento. Assim, o “ser velho” é muito relativo, visto que o sentir-se
velho é consideravelmente uma questão pessoal, além de uma questão cultural. Por isso, Sônia Mascaro afirma que

determinar a idade em que uma pessoa pode ser considerada idosa é uma tarefa difícil, pois num
determinado momento histórico, numa dada sociedade e em diferentes situações sociais, uma pessoa
pode ser considerada idosa aos 70, aos 60, ou até mesmo aos 40 anos.(2004, p. 35)

Hoje, essa determinação da idade varia muito devido ao estilo de vida da cada um. A cada ano que passa
percebemos uma maior preocupação por parte da sociedade em busca de encontrar a fórmula do rejuvenescimento. A
mídia está sempre preocupada em divulgar a velhice como sinal de equilíbrio, experiência e maturidade. Assim, é notável
até mesmo uma mudança na maneira de tratar a pessoa idosa. Denominar alguém com idade superior a sessenta anos de
velho tornou-se, na atualidade, uma expressão grosseira, e com isso muitas outras denominações foram surgindo a cada
ano para nomear a velhice, como terceira idade, maturidade e, até mesmo melhor idade.
Segundo Mascaro (2007), a expressão velho, que nos remete a imaginar alguém em estado depreciativo,
acabado, debilitado ou alquebrado, foi trocada por idoso, expressão que carrega um valor semântico mais positivo quanto
ao ser velho. Essa nova forma de nomear a categoria em questão significa apenas a passagem do tempo e alguém com
idade avançada, sem valor depreciativo. Percebemos que nesse jogo de mudanças, a mídia tem papel relevante na
apresentação dos sujeitos enquanto cidadãos. Com isso, na contemporaneidade se presentifica normas de bem viver,
divulgadas pelos suportes midiáticos, onde o dia a dia da população é regido por regras que vislumbram chegar ao
rejuvenescimento.
As revoluções tecnológicas ocorridas no século XXI têm contribuído admiravelmente para uma melhor qualidade
de vida e, com isso, a expectativa de vida do brasileiro tem aumentado também significativamente no decorrer dos tempos.
Nesse sentido, no tópico seguinte, discorreremos acerca das noções teóricas fundamentais para o embasamento e
desenvolvimento de nossas análises.

2 Enunciação x enunciado: o ponto de encontro da construção de sentidos pelos discursos no contrato de leitura

Para fins de situar o leitor acerca da perspectiva aqui adotada sobre enunciação e enunciado, faz se mister
explicitar como percebemos a análise de discursos e alguns conceitos-chaves para a discussão a que nos propomos, a
saber, enunciação, enunciado, discurso e sujeito.

1327
A priori, é importante dizer que a análise de discursos está voltada a identificar como discursivamente são
apresentados aspectos ideológicos no texto, nos atendo à verificação do como é dito e por que é dito um fato qualquer.
Para Pinto (2002, p.27), “ela está interessada em explicar os modos de dizer”.
É então, de grande importância para o analista de discursos a compreensão de que toda análise de discursos,
nesta perspectiva, depende do contexto. Assim sendo, é importante atentar, também para o sentido de enunciação e
enunciado. Sabemos que enunciado e enunciação constituem e são constituídos pelas forças sociais, dessa forma,
podemos destacar que segundo Pinto (2002, p. 32), “aquele é o produto cultural produzido, o texto materializado
considerado, enquanto a enunciação é o ato de produção de um texto. Portanto, o analista de discurso busca um modo de
perceber a dinâmica dos processos sociais materializados nos textos. Assim, esses textos são a materialidade do
enunciado.
Nessa mesma perspectiva, Verón define enunciado como tudo aquilo que é dito e enunciação como sendo tudo
aquilo que se refere ao dizer e suas modalidades. Entendemos, pois, que a enunciação deve ser compreendida como o ato
mesmo de produzir enunciados. Desse modo, faz-se necessário percebermos a distinção de sentido entre esses dois
termos, pois essa distinção contribui relevantemente para a análise dos discursos midiáticos, aqui pensada. Haja vista, um
mesmo conteúdo poder ser enquadrado por modalidades de enunciação muito diferentes (VERÓN, 2005).
No olhar de Bakhtin, enunciação é o resultado da interação de sujeitos organizados historicamente, para o autor a
enunciação é de natureza social, ele acredita na existência da enunciação dentro de um contexto, assim, “o que importa
não é o aspecto reiterável da forma linguística, mas, sim, seu caráter de novidade, o evento, aquilo que permite a circulação
de posições avaliativas de sujeitos do discurso e a permanente renovação de sentidos” (BAKHTIN, apud FLORES AT AL,
2009, p.99). Desta forma, a enunciação sempre provém de um espaço em que indivíduos se enfrentam dialogicamente, isso
nos remete a entender que todo enunciado é produto da comunicação entre vários enunciados.
Desse modo, o discurso como objeto da análise de discursos, segundo Bakhtin, é um fenômeno
“constitutivamente ideológico, dialógico e histórico.” (BAKHTIN, apud FLORES AT AL, 2009, p.84). Portanto, é uma
instância social que surge a partir de outros discursos, propondo sempre uma reação. Bakhtin postula que interlocutores
têm posições bem definidas no campo social, tendo o sujeito um relevante papel na discursividade. O discurso é a interação
do sujeito com o social.
No entender de Verón, o discurso é uma instância genuinamente descritiva, enquanto unidades textuais palpáveis
realizadas no cerne do social. Isto implica que todo discurso é carregado de ideologia, e essa ideologia faz parte da
constituição do texto, estando, pois, marcada por estratégias enunciativas. Assim, o texto é o lugar onde as forças sociais
se materializam.
À luz da Teoria dos discursos sociais, Pinto (2002) também insere o social ao discurso, uma vez que defende a
ideia de que discurso são produtos produzidos para circular na sociedade. Desta sorte, os discursos vão sendo construídos
dentro de um contexto histórico, são, portanto, práticas sociais de produção de textos, onde o sujeito autor/ouvinte sofre as
coerções ideológicas do meio, não sendo, pois, dono exclusivo de seu dizer, considerando, dessa forma, o dispositivo de
enunciação que nas palavras de Pinto, é “a explicitação dos diferentes posicionamentos ideológicos ou posições
enunciativas ou ainda lugares de fala – ou seja, as diferentes maneiras de construir a representação de uma determinada
prática social. (PINTO, 2002, p.33)
Com isso, percebemos que esse teórico corrobora a afirmação de Bakhtin Verón quanto à presença do ideológico
em toda situação discursiva, como bem enfatizou Pinto (2002, p. 28) “definir os discursos como práticas sociais implica que
a linguagem verbal e as outras semióticas com que se constroem os textos são partes integrantes do contexto sócio-
histórico e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externa às pressões sociais”.

1328
Nesta ótica, é visível a importância do emissor do enunciado, pois esse coloca em ação várias posições
discursivas que lhe são peculiares, conforme seus interesses persuasivos os quais são voltados para um leitor idealizado.
Essa compreensão nos remete a atentar para o sentido de sujeito, outro referencial importante para a Análise de Discursos.
Para tanto, lembramos a afirmação de Costa (2009) que encerra a ideia de que a noção de sujeito é de suma importância
para a análise de discursos porque possibilita estabelecer a posição do autor/falante/enunciador no que se refere ao
processo de atividade discursiva.
Assim, o uso que o sujeito faz da linguagem, tem uma relação direta da visão que esse sujeito tem de si, do seu
interlocutor e do mundo em que está inserido. Pensando por essa vertente, o enunciador, ao produzir um discurso, deixa
inumeráveis marcas nos textos produzidos, seja ele escrito numa linguagem verbal ou elaborado por meio de outras
semióticas. A exemplo, o texto midiático, no caso do nosso objeto de estudo, as revistas Veja e IstoÉ, constroem seus
discursos utilizando estratégias enunciativas diferentes.
Sabemos que todo e qualquer texto, enquanto parecer comunicativo, tem formas particulares de apresentar-se ao
público, de criar e manter um elo comunicativo com seus interlocutores, criando um vínculo entre leitores e produtores.
Verón (2005) chamou essa relação de contrato de leitura, o qual seria um dispositivo de enunciação escolhido para manter
o contato entre publicação e público. É o que afirma as palavras do autor “todo suporte de imprensa contém seu dispositivo
de enunciação: este último pode ser coerente ou incoerente, estável ou instável, adaptado a seus leitores ou mais ou menos
inadaptado”.
É evidente a necessidade de um suporte comunicativo, qualquer, gerar um vínculo com o seu público leitor,
utilizando estratégias discursivas variadas a fim de criar e manter uma relação entre remetente e destinatário. Isso é a forma
como o emissor dirige-se a seu público como sujeitos de discursos.
Com isso, segundo Lopes (2008, p. 107) “os estudos do contrato de leitura no plano da enunciação mostram,
frequentemente, que dois suportes extremamente próximos do ponto de vista de conteúdo são na verdade muito diferentes
um do outro”. Assim sendo, é válido ressaltar que a imagem de quem fala, bem como a imagem daquele a quem o discurso
é direcionado e a relação entre o enunciador e o destinatário, proposta no e pelo discurso, como bem frisou Verón, são
dispositivos significantes propostos pelas modalidades de dizer. Por certo, os modos de dizer de cada enunciador é fator
importante para a elucidação do vínculo entre produtores e usuários.
O contrato de leitura é, então, a relação entre um meio de comunicação e seus leitores que firma-se sobre um
pacto de leitura, que será bem sucedido dependendo das expectativas, motivações e interesses do público e,
principalmente pelo funcionamento da enunciação, ou seja, pelas forma de dizer do suporte de comunicação. Essas formas
de dizer irão aproximar ou distanciar o público leitor.
A seguir, apresentaremos uma análise discursiva de reportagens dos periódicos semanais Veja e IstoÉ, que
encerram nosso propósito de compreender como os enunciadores das referidas revistas constroem os sentidos de
envelhecer, através dos discursos produzidos.

3 Revistas Istoé e Veja e o Discurso sobre envelhecimentos na atualidade

Começaremos nossas análises partindo da observação daquilo que Verón considerou o enquadradamento do
discurso, ou seja, o título, verificando como são feitas as chamadas para o tema do envelhecer. Ressaltamos que o
enunciador constrói sua imagem utilizando estratégias diferentes para cada discurso, a respeito disso, Pinto (1999), afirma
que a imagem que define o sujeito enunciador inclui a imagem que o enunciador faz de si e do mundo.

1329
Nas análises aqui realizadas, encontramos estratégias utilizadas pelas revistas que nos levam a perceber que a
relação entre suporte e leitor é estabelecida a partir da construção de um leitor ideal. Pois na edificação do contrato de
leitura, o receptor já estar inserido no enunciado, isso porque quando o emissor cria o seu discurso, já tem, a priori, pensado
em um destinatário e, assim, elabora seus dizeres com base em estratégias enunciativas que permitem a esse enunciador
manusear o discurso. Lembramos que optamos por analisar todas as reportagens que fizessem qualquer menção ao tema
do envelhecimento nas referidas revistas no período de janeiro a agosto de 2009. Nesse período, apenas cinco exemplares
da IstoÉ e três da Veja fizeram referência ao tema.
A revista IstoÉ procura criar uma aproximação com o seu público leitor a partir das marcas linguísticas e
iconográficas. Os enunciadores variam muito quanto às formas de apresentação do tema, ora se aproximam do leitor, ora
se distanciam.
No caso da primeira reportagem analisada a qual vem com o título: MAIS ESTUDOS CONDENAM A
REPOSIÇÃO HORMONAL – pesquisas com mulheres acima de 65 anos sugerem que a terapia aumenta o risco de perda
de memória e demência (IstoÉ, 21 janeiro/2009), o enunciador apresenta um discurso direcionado para mulheres, não
interpela diretamente a leitora, nem especifica o público a que se destina através do enunciado escrito, que faz referência a
um aspecto das mulheres com idade acima de 65 anos, a negatividade da reposição hormonal, não mencionando a questão
específica do envelhecer. Mas a interpelação é feita às leitoras por meio da imagem de Susan Resnick, pesquisadora do
Instituto Nacional do Envelhecimento, que defende a reposição hormonal. Susan é apresentada na 3ª zona de visualização
da reportagem com uma imagem que transmite a ideia de uma mulher forte e séria, com um olhar firme e inquiridor como se
estivesse chamando o interlocutor para analisar o problema.
De frente para o interlocutor, a pesquisadora evidencia segurança e tranqüilidade no olhar, ao mesmo tempo,
demonstra ser uma mulher, forte, saudável, ativa, atuante no que se refere aos problemas sociais, sem esquecer de se
cuidar. Susan, de cabelos curtos e bem cortados, evidencia, também, ser uma mulher vaidosa que assume o envelhecer
com naturalidade.
O enunciador, por meio da reportagem se manifesta através do efeito de sentido da imparcialidade do uso da
terceira pessoa, cujo objetivo é relatar a situação, sem fazer nenhuma interferência ou mostrar formas de resolver o
problema. No entanto, a imagem da personagem destacada na reportagem e o discurso apresentados revelam o
envelhecimento como um processo que traz algumas dificuldades, como o aparecimento de doenças cardiovasculares,
neurodegenerativa, mas os estudos apresentam resultados satisfatórios para as mulheres que estão chegando a essa
etapa de vida para que as mesmas envelheçam de forma tranqüila.. O enunciador procura manter um vínculo com uma
leitora de idade igual ou superior a 65 anos e com necessidade de reposição hormonal (“Nessa fase, a mulher pode
apresentar outros problemas relacionados ao envelhecimento, como dificuldades circulatórias, que poderiam ser agravados
pelo tratamento hormonal”).
Outro aspecto que se percebe através das marcas enunciativas do enunciado “MAIS ESTUDOS CONDENAM A
REPOSIÇÃO HORMONAL” é que há a presença de dois enunciadores, um que condena a reposição hormonal e outro que
a defende. É como se o enunciador que condena tivesse usando a expressão “mais estudos”, para convencer ao outro
enunciador, percebemos neste caso a polifonia discursiva, representada por diversas vozes.
O enunciador na segunda reportagem em estudo, apresenta o idoso num aspecto de vida saudável, distanciando-
se da construção identitária de que a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos é uma pessoa triste, invalida ou sem
atitude (Ver o ninho vazio, depois que os filhos saem de casa, já foi motivo de melancolia profunda para toda uma geração,
sobretudo de mães. Hoje, pesquisas mostram que o casal reage diferente e sente até um certo alívio...”). Na sessão
“Comportamento”, a relação matrimonial de pessoas com idade superior aos 60 anos, logo no título, “ UFA, OS FILHOS

1330
FORAM EMBORA- pesquisas mostram que a satisfação conjugal aumenta depois que a prole sai de casa e a a intimidade
da vida a dois é retomada”(IstoÉ, 18/02/2009), interpela diretamente o leitor, apresentando, por meio de uma expressão de
alívio,(UFA) uma relação de intimidade com este interlocutor.
O enunciador deixa nítida a nova forma de viver das pessoas que estão na velhice. As marcas linguísticas
utilizadas comprovam que hoje essas pessoas vivem melhor, sabendo aproveitar cada etapa da vida. “Antigamente, as
mulheres dedicavam a vida ao cuidado com a cria e, quando ela partia, ficavam sem rumo. Com a constante participação da
mulher no mercado de trabalho e a ampliação da longevidade dos casais...” As imagens dos personagens mostram
felicidade no momento que se encontram na velhice e sozinhos. Isso é um sinal positivo que a revista constroi sobre essa
etapa de vida, mostrando pessoas vivendo uma relação amorosa depois dos filhos criados. O uso da expressão “Enfim, sós,
mencionada por um dos enunciadores, evidencia uma a chegada de uma fase de prazeres e bem-viver.
Já na reportagem de número 03, que traz o título “O PERFIL DA LONGEVIDADE-estudo americano identifica
traços de personalidade que podem ampliar a quantidade de anos de vida”, encontramos um enunciador preocupado em
apresentar a velhice de forma bastante positiva. Ao observarmos a imagem do casal percebemos o vigor que eles parecem
ter, uma alegria contagiante está exposta em seu semblante. Os personagens da reportagem estão olhando para os leitores
em uma atitude de descontração e exibição de bem-estar e saúde. (IstoÉ, 27/05/2009)
Quanto às marcas linguísticas evidenciadas, identificamos nas expressões um enunciador pedagógico que
procura enumerar os segredos do envelhecimento saudável, para tanto, destaca no título, um enunciado que propõe a
existência de uma forma milagrosa de não envelhecer. É como se o leitor conhecendo o perfil da longevidade e seguindo
todos os passos indicados pelo enunciador pudesse chegar a 100 anos com saúde e vida saudável. A primeira chamada do
primeiro parágrafo traz: “conhecer os segredos do envelhecimento saudável e aplica-los para levar a próxima geração a
ultrapassar os cem anos de vida.” Em toda a reportagem, os enunciadores apresentam como deve agir o idoso que deseja
ter vida longa e saudável, afirma, inclusive, que em pesquisa feita nos Estados Unidos os idosos que conseguiram chegar
aos cem anos de vida tinha um perfil muito idêntico, em termo de rotina diária e até personalidade. Por fim, os enunciadores
mostram diretamente para o leitor as características dos longevos.
Na reportagem quatro, o enunciador não foca seu olhar especificamente para a terceira idade como um produto,
mas esclarece sobre estratégias para se chegar a ela com tranquilidade e equilíbrio. O enunciador da revista usa o implícito
para atingir essa etapa de forma satisfatória, faz-se necessário manter-se atento a todas as fases anteriores, mostrando
maneiras para o enunciatário enfrentar as crises relacionadas a cada etapa.
O uso do imperativo “reinvente-se” apresenta uma postura de um enunciador pedagógico, uma vez que induz o
enunciatário a tomar uma atitude que acredita ser fundamental como pré-requisito para manter um equilíbrio e, ao mesmo
tempo acredita no seu enunciatário como ser capaz de criar estratégias para lidar com as crises de idade e, chegar à
terceira idade com saúde e disposição.
A ideia da corrida ao envelhecer, enfrentando obstáculos diversos, é reforçada pelas imagens utilizadas no corpo
da reportagem, onde observamos que a cada fase mencionada, é representada por meio de barras onde cada uma ilustra
uma fase (15 anos, 25 anos, 40 anos e, por fim 60 anos), bem como o figurino esportista do senhor que aparece
ultrapassando a barreira dessa última fase, podendo ser considerado como um vencedor.
A quinta reportagem apresentada pela revista IstoÉ “ O PROFETA DA IMORTLIDADE – um dos mais conhecidos
estudiosos do envelhecimento, o cientista inglês diz que o ser humano poderá viver mil anos”(IstoÉ, 15/07/2009)
encontramos um enunciador que apresenta um discurso de autoridade, visto que dialoga com seus enunciatários a partir de
uma entrevista onde quem fala é alguém que tem estudos específicos sobre o envelhecer. A revista traz uma linha de
pensamento bem próxima do que foi discutido na reportagem analisada anteriormente ( nº 03), onde mais uma se

1331
presentifica um enunciador tenta seduzir o leitor levando-o a acreditar que existe uma fórmula especial para alcançar uma
elevada expectativa de vida com saúde e equilíbrio físico e mental.
Segundo Grey (2009), a velhice é uma condição que pode ser evitada por meio de intervenções médicas, bem
como procurando evitar os sinais de velhice logo nos primeiros sintomas. Um enunciador dialoga diretamente com o leitor,
apresentando as razões das principais causas do envelhecimento. No momento em que apresenta essas causas, indica
através do enunciado que existe um “remédio” para o não envelhecimento. Aliada aos enunciados escritos, é apresentado,
ainda, um casal com idade acima de 60 anos bem ativo e saudável, que parece está confirmando a tese do estudioso, de
que se pode envelhecer de forma saudável. (separo enunciado de enunciação)
A revista Veja não fez referência ao tema da velhice exatamente nos meses que a revista IstoÉ e, também
apresenta estratégias enunciativas diferentes. Não há reportagens específicas sobre o envelhecer. Mas faz referência a
pessoas com idade acima de 60 anos que passaram por todas as outras fases da vida de forma tranqüila, saudável e
envelheceram como heróis, com exceção da reportagem de número 03.
A reportagem 06 com título “É bom ser exemplo”( Veja, 04/03/2009), mostra uma entrevista com o Pelé. No
primeiro parágrafo, um enunciador anuncia que vai falar da etapa de vida em que Pelé se encontra ao destacar o enunciado
“Pelé pendurou as chuteiras em 1997. Em outubro do ano passado, foi a vez de Edson Arantes do Nascimento, que passou
a receber cerca de 3000 por mês do INSS”. Ao ser interpelado com a pergunta: O senhor está com 68 anos. Sente o peso
da idade?, Pelé responde que não tem medo de envelhecer, essa resposta evidencia que Pelé não se considera velho,
mesmo estando com 68 anos. Enfatiza a importância de fazer atividade física para continuar saudável e com saúde.
Indiretamente, este enunciador está concordando com o enunciador da reportagem o4 da revista IstoÉ.
As palavras de Sônia Amorin Mascaro (2004) que diz que a velhice não é vista da mesma forma por todos
ratificam a tese de que envelhecer é uma questão pessoal, por isso o “ser velho” é muito relativo. Veja que Pelé aos 65 não
se considera velho e se prepara para não envelhecer.
Na mesma perspectiva, a reportagem a ser analisada no exemplar da Veja de 13/05/2009, com a chamada
“AGORA ELE QUER IR AO ESPAÇO”, o enunciador, também, não faz referência ao tema envelhecer. Traz na reportagem
do espaço Perfil, o tricampeão de F1, Niki Lauda, visto como alguém que chegou aos 60 anos com vitalidade e saúde, sem
querer assumir a posição de aposentado, apesar de está formalmente aposentado, exerce funções desafiadoras de quando
era jovem e pensa em praticar atividades ainda mais desafiadoras a exemplo, pilotar o ônibus espacial SpaceShipTwo. O
enunciador utiliza o dêitico “Agora” como estratégia que leva o leitor entender que em um momento anterior Niki
desenvolveu atividades admiráveis.
O enunciador busca um vínculo com o leitor por meio de referências a partir dos discursos de autoridade, citando
nomes brasileiros que tiveram êxito como esportistas, a saber, Ayrton Senna, Rubens Barrichello e Nelson Piquet. Esta
referência é uma forma de aproximação entre enunciador e enunciatário, visto que como Niki Lauda não é brasileiro e a
revista em análise é de circulação nacional, os nomes citados devem chamar a atenção do leitor brasileiro.
A imagem de Niki é de um homem saudável e seguro. A firmeza de seu olhar corrobora o que foi apresentado no
texto escrito. Niki está de perfil, olhando diretamente para o leitor. Com um porte de jovem forte e decidido, mostra marcas
de um corpo saudável. Por ser um sexagenário que aparenta esbanjar saúde e vigor físico, esse enunciador através do
implícito revela que a prática de atividade física contribui para chegar a velhice com disposição.
Já na reportagem de 08 da revista Veja, encontramos uma posição diferente da veiculada nas revistas anteriores,
haja vista haver uma quebra de expectativa.
Culturalmente, se pensava no Japão como o lugar em que envelhecer era acumular saberes e experiências,
assumindo por isso a importância de um consultor, alguém sempre solicitado para dar conselhos e dizer o que fazer diante

1332
de qualquer situação, com isso os brasileiros eram levados a acreditar que a terceira idade neste país era respeitada e
admirada. Porém um artigo da revista Veja veiculado no dia 12/08/2009 compromete essa romântica ideia. Conforme esse
artigo intitulado “Um troféu que encolheu”, o enunciador apresenta uma crise sofrida pelos idosos japoneses. Logo no
subtítulo o Japão é apresentado como um país que muda seus valores, procurando economizar na festa anual que
homenageia os centenários.

4 Considerações finais

Verificamos neste trabalho que o veiculo de comunicação aqui evidenciado para a realização do estudo proposto,
revistas IstoÉ e Veja, apesar de ter como foco principal reportagens de cunho geral e informativo, preocupam-se também
com assuntos como comportamento, saúde dentre outros. No caso, do tema referente à velhices e envelhecimentos é
tratado nas revistas não só como informação geral, mas como discursos que levam o leitor a refletir sobre sua imagem
frente à imagem do outro
Nas nossas análises, pudemos perceber que atualmente, os discursos das referidas revistas estão voltados para o
envelhecimento do ser humano de forma geral, não discriminando o assunto para alcançar mais diretamente homens ou
mulheres. A preocupação das revistas é mostrar à população humana que envelhecer não é sinônimo de doença ou mal-
estar como culturalmente foi disseminado por anos e anos.
A partir das propostas de análises feitas, foi possível constatar que as estratégias utilizadas nas operações de
enunciação e na construção dos discursos das revistas analisadas contribuem, consideravelmente, para formação de
identidades dos leitores, pois verificamos que os sujeitos enunciadores das reportagens analisadas procuram construir
imagens positivas do envelhecer, colocando sempre a questão do envelhecimento como um processo necessário e
saudável. O ser considerado velho é apresentado como alguém capaz de viver bem e feliz no seio da sociedade,
desenvolvendo atividades de forma bem ativa. A abordagem dada ao tema deixa inferir, também, que a revista IstoÉ, no
período observado, deu maior ênfase à temática.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Inês Lacerda. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem- São Paulo: Parábola Editorial ,
2004
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem.11ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. Campinas-SP: Pontes, 2006.
______. Problemas de lingüística geral.II. Campinas-SP: Pontes, 2005.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008.
FOUCAULT, Michel. FOUCAULT-conceitos essenciais
PINTO, Milton José. As marcas lingüísticas da enunciação: esboço de uma gramática enunciativa do português. Rio
de Janeiro: Numen Editora, 1994.
________________. Comunicação e Discurso: introdução à analise de discursos. São Paulo: Hacker, 1999.
FLORES, Valdir do Nascimento [org. ET AL] . Dicionário de lingüística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009.

1333
LOPES, Paulo Fernando de Carvalho. O discurso midiático e a diet’ética contemporânea. In LIMA, Maria Auxiliadora
Ferreira at al (Org.). OLHOS ESPRAIDOS: linguagem e literatura ao sol. Teresina, 2008.
ISTOÉ . São Paulo: Ed Três, nº 2045, 21 jan. 2009.
ISTOÉ . São Paulo: Ed Três, nº 2049, 18 fev. 2009.
ISTOÉ . São Paulo: Ed Três, nº 2063, 27 mai. 2009.
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ISTOÉ . São Paulo: Ed Três, nº 2070, 15 jul. 2009.

REVEL, Judith. FOUCAULT-conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz,2005


VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 42, nº 09, 04 mar. 2009. Edição 2102
VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 42, nº 19, 13 mai. 2009. Edição 2153
VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 42, nº 30, 29 jul. 2009. Edição 2153
VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 42, nº 32, 12 agos.2009. Edição 2125
VERÓN, Eliseo. Os fragmentos de um tecido. São Leopoldo: UNISINOS, 2004.

1334
Estratégias de produção de sentido na publicidade da Bom
Bril

SANTIAGO, Maria Magda de Lima


(Centro Universitário UNA)

A Análise Semiótica Francesa é tomada como uma teoria da significação e volta-se para a explicitação das
condições da apreensão e da produção de sentido. Examina o conteúdo dos discursos e interessa-se pelo parecer de
sentido que o texto manifesta. Foi desenvolvida por A. J. Greimas, “cujo conjunto da obra é testemunho de uma atenta
leitura de Saussure” (HÉNAULT, 2006, p. 47), na década de 70 que, inspirado pela Fenomenologia, deu continuidade aos
trabalhos de Hjelmslev.
Numa leitura de Lara e Matte (2008, p. 11), a semiótica toma o texto como objeto de significação “e se preocupa
em estudar os mecanismos que o engendram, que o constituem como um todo significativo. Em outras palavras: procura
descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz”.
A Análise Semiótica de Greimas divide o discurso em três níveis, que compõem o Percurso Gerativo de Sentido: o
Nível Fundamental, o Nível Narrativo e o Nível Discursivo. Aqui aplicamos alguns dos conceitos e categorias do Nível
Discursivo à análise do discurso e também da imagem, buscando extrair o sentido considerando o conjunto dos elementos
do anúncio: texto, fotografia e design. Nesse nível o analista trabalha com a sintaxe (categorias de pessoa, espaço e tempo)
e a semântica (temas, figuras e planos de leitura) do discurso.
Abordamos os conceitos de Interdiscurso e Intradiscurso (Fiorin), Leitor Implícito (Compagnon) e analisamos as
questões de originalidade e redundância no processo de significação, observando como os textos escritos e imagéticos se
relacionam a partir dos explícitos e implícitos, metáforas e metonímias. A análise é complementada pela observação dos
elementos plásticos e gráficos como luz, cor e linhas, numa referência do campo bibliográfico da análise de imagem
publicitária.

Sintaxe – Categorias de Pessoa, Espaço e Tempo


As categorias de pessoa, espaço e tempo criam efeitos de proximidade e de distanciamento em relação ao leitor.
Assim, produzem proximidade: eu, você, nós, meu, seu, nosso - aqui, nesta, isto - hoje, agora. Por outro lado: ele, vós,
deles - lá, aquela, aquilo - ontem, amanhã, produzem distanciamento. Fiorin (2005b, p. 18) afirma que

A sintaxe discursiva é o campo da manipulação consciente. Neste, o falante lança mão de estratégias
argumentativas e de outros procedimentos da sintaxe discursiva para criar efeitos de sentido de
verdade ou de realidade com vistas a convencer seu interlocutor.

Semântica – Figuras, Temas e Isotopias


A semântica do Nível Discursivo trata dos temas, figuras e isotopias (ou planos de leitura), lugar por excelência
das determinações ideológicas, onde podem ser revelados os valores presentes em um momento histórico que afetam a
subjetividade coletiva. É o campo das determinações inconscientes, relacionadas a uma dada formação social (FIORIN,
2005b, p. 19).

1335
O conjunto dos temas (ou traços semânticos abstratos), e o conjunto das figuras (ou traços semânticos concretos,
ligados ao mundo “real”), “materializam” as formações ideológicas, desvendadas através do parecer de sentido. Tomemos
como temas, por exemplo: amor / violência; e, para figurativizar esses temas: beijo, mãos dadas, abraço / soco, arma,
sangue. Fiorin (2005a, p. 91) explica que:

Dependendo do grau de concretude dos elementos semânticos que revestem os esquemas narrativos,
há dois tipos de texto: os figurativos e os temáticos. Os primeiros criam um efeito de realidade, pois
constroem um simulacro da realidade, representando, dessa forma, o mundo; os segundos procuram
explicar a realidade, classificam e ordenam a realidade significante, estabelecendo relações e
dependências.

A isotopia é a permanência de um efeito de sentido no discurso. Para Fiorin (2005a, p. 112-113) “é a recorrência
de um dado traço semântico ao longo de um texto”, que permite identificar um plano de leitura e “determina um modo de ler
o texto”. Uma isotopia pode ser substituída por outra para criar um novo efeito de sentido. Isso ocorre por meio dos
conectores de isotopia (lexemas que podem ser lidos em dois ou mais planos isotópicos) ou desencadeadores de isotopia
(quando o elemento não pode ser integrado a uma leitura já conhecida).
O lexema é a palavra que funciona em um discurso e provida, por consequência, de um sentido preciso, de uma
referência atual (MORTUREUX, 1997. In: CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006, p. 301).

Explícito e Implícito
O sentido extraído por meio da análise dos temas, figuras e isotopias do discurso pode ser explícito ou implícito.
Se estiver implícito pode ser, entre as distinções mais importantes, um implícito subentendido ou um implícito pressuposto
(DUCROT, 1972. In: Charaudeau; Maingueneau, 2006).
No contexto do anúncio publicitário o implícito é um elemento de originalidade e a relação de equilíbrio entre a
originalidade e a redundância atrai o leitor. No entanto, enquanto pouca originalidade leva ao desinteresse, muita
originalidade leva a não compreensão, o que Wittgenstein (1992. In: Charaudeau; Maingueneau, 2006, p. 271) define como
um jogo em que “estar escondido é um prazer, mas não ser encontrado é uma catástrofe”, em referência ao não
entendimento da mensagem pelo leitor.
Como afirma Orecchioni (1996. In: Charaudeau; Maingueneau, 2006, p. 271), “o cálculo dos subentendidos é um
procedimento complexo, que faz intervir diversas competências”. A nosso ver, compreender uma peça publicitária com certo
grau de originalidade promove no leitor a sensação de ser instituído ao desvendar o sentido proposto, o que leva à
memorização do anúncio.

Metáfora e Metonímia
A metáfora se apresenta como uma substituição de palavra (ou imagem), por analogia, como uma comparação. É
a transferência de uma palavra (ou imagem) para outro plano de leitura, que não é o mesmo em que ela se encontra. É
fundamentada numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado. Na metonímia, a palavra (ou
a imagem) remete ao conjunto. É a parte que indica o todo.

Mensagem Plástica
A autora Martine Joly (2004) descreve o significado dos elementos plásticos da imagem. Faz referência à posição
das linhas: horizontal (estabilidade), vertical (seriedade, rigidez), diagonal (movimento); à iluminação: difusa ou sem

1336
sombras (tranqüilidade, suavidade), direcionada (temor, instabilidade, destaque de um elemento). Essas noções tomam
como base o senso comum e devem ser estudadas em cada contexto.
Nos aspecto icônico, refere-se ao processo de significação em que cada significante produz significados em
primeiro nível e em segundo nível, ou seja, que denota e conota significados diferentes.
Começamos examinando esses conceitos e categorias em alguns anúncios antes de passarmos à análise dos
dois anúncios da Bom Bril:

Anúncio 1 Anúncio 2
Anúncio 1 - Explícito: o desenho na árvore e a sua altura. Implícito Pressuposto: alguém fez o desenho há muito
tempo. Implícito Subentendido: o produto está estabilizado no mercado. O discurso (“Since 1889”) reforça o sentido
implícito, numa redundância necessária, que garante a correta construção de sentido pelo leitor.
Pode-se extrair o tema da “tradição”, valor que o anúncio busca agregar ao produto, por meio das figuras da
árvore, do desenho e do homem somados à mensagem do discurso. Identifica-se também o tema do amor, dentro de uma
isotopia afetiva (a figura do coração) que integra, com a isotopia da natureza (a árvore e a grama), a isotopia maior da
qualidade, que é associada ao produto.
Anúncio 2 - As figuras do banco, do homem deitado e do quadro representam, implicitamente e metaforicamente,
o divã, o paciente e o terapeuta. Assim, passa-se de uma isotopia cultural (a exposição sobre Freud) para uma isotopia da
psicanálise. A iluminação de cor quente no ambiente, nas figuras e na tipografia, remete à intimidade. A cor branca na
tipografia destaca o assunto principal.

Anúncio 3 Anúncio 4

1337
Anúncio 3 - A figura do bilhete pode ser lida numa isotopia cultural, mas a sua posição alude, implicitamente e
metaforicamente, ao divã do analista, desencadeando a isotopia da psicanálise, como no anúncio anterior.
Anúncio 4 - A figura do pão pode ser lida numa isotopia da alimentação. Mas, tanto a posição do pão quanto o
discurso temático-figurativo (“Bread is life”) desencadeiam uma segunda isotopia, a da concepção humana. O pão passa a
ser a metáfora do órgão sexual masculino, juntamente com as figuras dos dois alimentos na base.
As cores quentes aludem ao calor do forno, mas também à relação sexual. A linha diagonal criada pelo pão indica
movimento. O fundo com o semicírculo iluminado cria o efeito de sentido do nascer do dia, que remete ao nascer de uma
nova vida, ou ainda a um suposto movimento de passar ao estado de ereção – numa ascensão indicada pela posição
diagonal.

Anúncio 5
Anúncio 5 – Texto do anúncio: “Water Bra. O sutiã com enchimento de água e óleo que aumenta o seu seio”. Está
explícito que o espaço entre a mulher e o sujeito à frente dela na fila é maior. É um implícito subentendido que os seios da
mulher estão grandes e que ela está usando o produto. A imagem da metade do corpo da mulher (a parte) remete ao corpo
inteiro (o todo), indicando uma Metonímia. Nesse caso, o leitor tem a liberdade de construir mentalmente o restante da
imagem.

Intradiscurso e Interdiscurso
Segundo Fiorin (2005b, p. 32-34), a Formação Ideológica, entendida como a visão de mundo de uma dada classe
social, é “concretizada” na Formação Discursiva, na e pela linguagem. Para o autor (2005b, p. 32) “a cada formação
ideológica corresponde uma formação discursiva, que é um conjunto de temas e de figuras que materializa uma dada visão
de mundo”.
As noções de intradiscurso e interdiscurso propostas por Fiorin remetem, respectivamente, às relações entre os
constituintes do mesmo discurso e o conjunto dos outros discursos, numa relação de reciprocidade.
São duas dimensões, integradas e complementares: por um lado, a do intradiscurso, que se organiza em uma
trajetória de sentidos desenvolvida ao longo do texto (e no caso deste trabalho, também da imagem); por outro lado, a do
interdiscurso, que aponta para outros discursos presentes no coletivo.

1338
Anúncio 6 Anúncio 7
Anúncio 6 - A imagem da garrafa boiando com uma mensagem remete ao interdiscurso da literatura e do cinema.
Anúncio 7 - Texto do anúncio: “Anjos, ajudem as crianças com câncer”. A metáfora das asas de anjo (realçadas
pela iluminação concentrada e confirmada pelo lexema ‘anjos’ no discurso) remete ao interdiscurso bíblico. A imagem em
preto e branco cria o efeito de sentido de confiança e tradição. A fonte na cor branca indica, neste caso, pureza.
Leitor Implícito
O leitor implícito de Compagnon é aquele que compreende as tramas do texto e consegue desvendar o sentido
proposto pelo autor, numa relação em que “o texto instrui e o leitor constrói” (2001, p. 150). Para Compagnon o ato de
leitura consiste em preencher os espaços vazios da narrativa (aqui aplicados também à imagem fotográfica), construindo
uma coerência a partir do que o texto apresenta e do que ele não apresenta. Assim, a liberdade concedida ao leitor está
restrita aos pontos de indeterminação do texto, às lacunas que se localizam entre os lugares plenos que o autor determinou.

Quando lemos, nossa expectativa é função do que nós já lemos – não somente no texto que lemos,
mas em outros textos –, e os acontecimentos imprevistos que encontramos no decorrer de nossa
leitura obrigam-nos a reformular nossas expectativas e a reinterpretar o que já lemos, tudo que já
lemos até aqui neste texto e em outros (COMPAGNON, 2001, p. 148).

Anúncio 8 Anúncio 9
Anúncio 8 – Texto do anúncio: “Mostra do cinema japonês na cinemateca do MAM”. O leitor que consegue
estabelecer a relação entre o intradiscurso e o interdiscurso da cultura japonesa sente-se instituído. O texto está disposto
sobre a figura de um ingresso de cinema, reforçando o sentido de leitura, assim como as figuras e o tipo de iluminação.
Anúncio 9 - Texto do anúncio: “Venha ver o mundo pelos olhos de Picasso”. A relação do intradiscurso com o
interdiscurso das artes plásticas, especificamente da fase cubista do artista, utiliza a originalidade para chamar a atenção do
leitor e provoca a sensação de que ele é instituído ao compreender o sentido proposto. A figura dos óculos faz par com a
expressão “pelos olhos de Picasso”.

1339
Análise de duas peças Publicitárias da Bom Bril

Anúncio 1 Anúncio2
Anúncio 1 - Texto do anúncio: “Mon Bijou deixa sua roupa uma perfeita obra-prima”. O Intradiscurso relaciona-se
ao Interdiscurso das artes plásticas, do Museu do Louvre, da obra de Leonardo da Vinci. Isso é demonstrado pela figura da
personagem: postura, cabelo, cor da pele, posição das mãos, vestuário, expressão facial. Também pela figura da paisagem
no fundo, todos elementos concretos que remetem à pintura.
O anúncio tem como tema a Monalisa, numa isotopia cultural que se transforma numa isotopia da limpeza. A
expressão “perfeita obra-prima” é, nesse caso, conectora de uma nova isotopia. Além disso, a fonte escolhida, na cor
branca, confirma o plano de leitura da limpeza.
O personagem é uma metáfora da Monalisa, mas a figura dos óculos atua como um implícito subentendido, indício
da presença do então “garoto-propaganda” da Bom Bril e da ficção. Esse elemento é recorrente em outros anúncios da
marca.
O leitor passa a ser instituído ao conseguir identificar que se trata da conhecida obra de Da Vinci. A expressão
“perfeita obra prima” confirma o que a imagem mostra, garantindo a compreensão da mensagem.
A expressão ‘sua roupa’ é um recurso que cria, por meio da sintaxe na categoria de pessoa, o efeito de sentido de
proximidade ou intimidade com o leitor no lexema ‘sua’.
Anúncio 2 – Texto do anúncio: “Se você também quer a casa branca use Good Bril”. O Intradiscurso, contexto do
anúncio, relaciona-se ao Interdiscurso da política dos Estados Unidos. Isso é demonstrado pela figura da personagem:
postura, cabelo, sobrancelha, cor da pele, gesto da mão direita, vestuário, expressão facial, aliança, broche, cor dos olhos,
cores da gravata - elementos concretos, ou figurativos, que remetem ao presidente Barack Obama.
O anúncio tematiza o presidente, numa isotopia política, que se transforma em outro plano de leitura, o da
limpeza. A expressão “casa-branca” é conectora de uma nova isotopia. A fonte escolhida, na cor branca, confirma o plano
de leitura da limpeza.
O personagem é uma metáfora do presidente Obama mas, novamente neste anúncio, a figura dos óculos atua
como um implícito subentendido, indício da presença do garoto-propaganda.

1340
O leitor se sente instituído ao conseguir identificar que é o presidente americano. A expressão “casa branca”
confirma o que a imagem mostra, garantindo a compreensão da mensagem. O sentido também é reforçado pela figura do
broche.
As listras da gravata, nas cores da bandeira dos Estados Unidos, estão direcionadas ao produto, numa estratégia
implícita para conduzir o olhar, estabelecendo um sentido de leitura descendente.
A expressão ‘se você também quer’ é um recurso que cria, por meio da sintaxe na categoria de pessoa, o efeito
de sentido de proximidade ou intimidade com o leitor no lexema ‘você’.
A expressão Good Bril é um toque de originalidade coerente com a imagem e com o discurso, que confirma o
sentido de leitura da política, já que o inglês é a língua em uso nos Estados Unidos.

Referências:

CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São


Paulo: Ed. Contexto, 2006.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Ed. Contexto, 2005a.

FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ed. Ática, 2005b.

HÉNAULT, Anne. História concisa da semiótica. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Campinas, SP: Ed. Papirus, 2004.

LARA, G.M.P; MATTE, A.C.F. Ensaios de semiótica: Aprendendo com o texto.


Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2009.

Currículo
Graduada em Jornalismo, especialista em Comunicação: Mídias, linguagens e tecnologias e mestre em Linguística, Análise
do Discurso, coordena o curso de pós-graduação lato sensu “Fotografia: Técnica, Linguagem e Mídia”, do Centro
Universitário UNA, onde leciona nos cursos de Cinema, Publicidade e Design. Dedica-se à análise de anúncios publicitários
para mídia impressa.
E-mail: magdasant@ig.com.br

1341
Mecanismos do humor nas charges de Chico

SANTOS, Adriano Oliveira


(UFF)

01 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Caricaturar é, para alguns, deformar certos traços da fisionomia humana e, para outros, simplesmente, pôr em
evidência (partindo, claro, do exagero) o que a natureza oferece ao próprio homem como motivo para a burla, o riso e,
seguramente, o humor. A esse resepeito não poderia haver afirmação mais acertada como a de Bergson (2007: 02): Não há
comicidade fora daquilo que é propriamente humano, ou seja, quem ri é o homem e se a este é dado tal capacidade, é no
outro que ele vai encontrar razão para dar forma ao seu humor e sustentar, com isso, seu riso. É nesse sentido que
caminham os gêneros de base dos quadrinhos, como a charge.
Para esta investigação, propomos, com o foco no humor, observar os elementos que permitem a construção do
humor em charges do cartunista brasileiro Chico, partindo de alguns materiais de sua produção diária para o jornal O Globo.
Desse modo, coletamos seis charges produzidas por ele durante este ano de 2010, os quais formam o corpus da pesquisa
em questão.
Durante a primeira análise do material, notamos alguns aspectos relativos ao humor na produção dessas charges,
como, por exemplo, os diferentes valores ilocutórios dos enunciados, a frequência de expressões ambíguas ou de termos
polissêmicos ou homonímicos, sem contar, claro, com as relações intertextuais, evidenciadas, sobretudo, na paródia que se
faz , comumente, de pessoas da sociedade política e, algumas vezes, de integrantes de clubes ou entidades esportivas.
Nesta pesquisa, buscamos observar se essas características supracitadas se repetem em todos os textos
escolhidos para a análise, bem como responder à questão que instiga esta investigação: se a comicidade presente nesses
textos se assenta na tríplice divisão estabelecida por Bergson (2007), a saber: na comicidade de situação, na de palavra e
na de caráter.

02 – ELEMENTOS GERAIS DA CHARGE

A origem da charge remonta ao século XIX, período em que surge, paralelamente, as HQs, com as histórias de
Busch e de Topffer (Mendonça, 2007: 195). Sem cogitarmos se sua gênese está nas HQs ou não, as charges desde o
princípio trouxeram como elemento diferenciador das tiras cômicas, das HQs e dos cartuns seu compromisso com a crítica
social, sobretudo, no âmbito da política nacional, aspecto facultativo aos demais gêneros. Embora se diferencie com
respeito ao conteúdo abordado, a charge compartilha um certo traço comum com esses outros gêneros mencionados: é de
natureza icônico-verbal, quer dizer, em sua constituição, observa-se o cruzamento entre as linguagens verbal e não-verbal.
No que tange à linguagem verbal, a charge traz, em comum com as HQs, uma legenda antes da fala das
personagens, situada na parte superior do quadro, construída sob a forma de um único enunciado e que representa, de
acordo com Vergueiro (apud Ramos, 2009: 49), a voz do narrador onisciente. Para Eguti (apud op. cit.: idem), trata-se da
narração de alguém externo à ação, portanto, um narrador, para ambos os autores, em terceira pessoa.

1342
Quanto ao aspecto verbal, as charges, de modo semelhante aos outros gêneros, pode apresentar ou não a fala
das personagens. O que a diferencia, nesse ponto, das HQs, é o fato de expor a fala de uma das personagens, ou seja, não
se visualizam diálogos, como é de praxe acontecer nas HQs e tiras cômicas. No caso das charges produzidas pelo
cartunista Chico, esse fato é praticamente uma regra, tanto como a ausência de balões contendo a fala da personagem.
Com base no conteúdo, uma dúvida bastante comum entre os leitores aparece quando se busca diferenciar a
charge do cartum, pois ambos se utilizam da ilustração – para a charge, a caricatura é essencial – e carregam no bojo de
sua abordagem algum tema de relevância social, como uma crítica política, social, religiosa, esportiva etc. Para
esclarecimento, a charge é um texto de humor que aborda algum fato ou tema ligado ao noticiário (Ramos, op. cit.: 21) e
envelhe, como a notícia (Mendonça, op. cit.: 197), ao passo que o cartum não está vinculado a um fato do noticiário
(Ramos, op. cit.: 23) e é mais atemporal (Mendonça, op. cit.: 197). Com isso, é mais facilmente notada, se comparada ao
cartum, a relação intertextual estabelecida pela charge com a notícia, por recriar um fato (na maioria das vezes, ocorrido no
dia de sua criação ou, algumas vezes, no dia anterior a sua existência) de forma ficcional, como acontece nas paródias.

03 – QUESTÕES TEÓRICAS RELATIVAS AO HUMOR/CÔMICO

3.1 – Os desvios
Durante o processo interativo, é comum que um dos participantes, integrante do grupo da troca comunicativa,
realize atos que desencadeiem surpresa ou estranhamento nos outros interagentes da troca. A esse estranhamento ou
“surpresa” associa-se um valor positivo ou negativo.
Essa surpresa ou estranhamento é consequência de algum “desvio” no processo comunicativo-interacional. Por
desvio, o autor compreende uma série de procedimentos, como: a ambiguidade, a contradição, a polifonia, a
intertextualidade. Define o “desvio” como “um conjunto de procedimentos que resultam em um jogo construído no âmbito do
enunciado ou da enunciação” (Almeida, 2001:01-04). É desse jogo que nascem ambiguidades, contradições, alusões,
citações e confusão de vozes.
Um elemento do discurso humorístico que interfere no “desvio” é a “economia”, “capacidade que um enunciado
tem de remeter a outros enunciados, sejam estes virtuais ou efetivamente proferidos” (Almeida, 2001). A paródia, muito
comum aparecer nas charges, é um exemplo de “economia” no discurso.

3.2 – Os Atos de Linguagem

De acordo com Austin, há uma série de enunciados produzidos pelas línguas naturais que não se encaixam nas
condições de verdade-falsidade, como as perguntas e as ordens, apesar de se assimilarem aos enunciados constativos
(Exemplos: cozinho a refeição, ele garante o serviço), os quais tem por natureza referir-se a aspectos do estado do mundo
exterior, de modo a simbolizá-los verbalmente. Esses enunciados funcionam como uma espécie de relato, e que cabe
questionamento, isto é, se o acontecimento descrito ocorre o ocorreu de fato.
Os questionamentos do autor começam pelos verbos “performativos”, cujo enunciado realiza a ação apresentada
pelo verbo, sendo este em primeira pessoa do presente do indicativo. Com isso, ao dizer prometo ir à sua casa, não é
realizado o ato de “ir à casa de alguém”, mas, sim, o de prometer. Conforme Kerbrat-Orecchioni (2005: 20), (...) um
enunciado performativo é um enunciado que, desde que sejam respeitadas certas condições de êxito, realiza o ato que ele
denomina”.

1343
Diferenciados os conceitos de perfomativo e constativo, Austin (apud Kerbrat-Orecchioni, 2005: 26) propõe a
distinção entre três tipos de atos: locutório (o ato de dizer alguma coisa, é o resultado da combinação de sons articulados
para a produção de fonemas da língua, é o ato de pronunciá-los), ilocutório (o ato efetuado ao se dizer alguma coisa, o
valor que se reveste um enunciado) e perlocutório (ato efetuado pelo fato de dizer alguma coisa, é o que tende a produzir
efeitos menos diretos sobre o interlocutor: questionamento, medo, convencimento etc., efeitos que podem realizar-se ou
não).
Em um enunciado como A porta está aberta?, na combinação entre sons e palavras e sua associação a um
conteúdo semântico determinado, gera-se o ato locutório; o ato ilocutório passa pelo objetivo de obter do destinatário uma
determinada informação; e o ato perlocutório se essa enunciação se presta a fins mais ou menos distantes, como por
exemplo, alguém que, segredando a outro uma informação importante, manifesta sua preocupação em estar em um lugar
não seguro, isto é, sujeito à escuta não autorizada do conteúdo que é (será/foi) dito.
Como se vê, Austin admite que todo enunciado traz em si um certo valor de ato (valor ilocutório de pergunta, de
promessa, de desculpa etc.) capaz de promover certos efeitos, conforme o contexto. Tais atos podem assumir uma forma
direta ou indireta. Serão diretos aqueles por meio do qual o locutor os expressa diretamente, ou seja, ao enunciar um
pedido, constrói uma frase que denote o pedido, ao perguntar, constrói um enunciado interrogativo etc. No entanto, o locutor
pode expressar-se de forma indireta, utilizando-se de estratégias linguísticas variadas, como, por exemplo, fazer uma
pedido por meio de um pergunta (Você tem fosfóros? pode sugerir, a título de exemplo, um pedido do locutor ao seu
interlocutor, pois, de outra forma, isto é, dito diretamente, corresponderia, Me empreste/dê alguns fósforos), capazes de
levar o interlocutor a tomar uma certa conduta e não apenas de informá-lo somente, o que dependerá da negociação entre
os envolvidos da troca comunicativa e do contexto. Isso demonstra que num ato de linguagem não há uma correspondência
entre o par significante (forma interrogativa, no exemplo dado) e significado (valor de solicitação).
Segundo Kerbrat-Orecchioni (op. cit.: 47), um locutor se expressa indiretamente Quando dizer é fazer várias
coisas ao mesmo tempo (informar sobre um fato e suscitar uma conduta)...Quando dizer é fazer uma coisa sob aparência
de outra. Desse modo admiti-se a existência de atos de linguagem que se concretizam de forma (in)direta.

3.3 – A comicidade em Bergson

Ao analisar o fenômeno da comicidade, o Bergson (2007) salienta um aspecto fundante para a existência do
cômico: a mecanicidade das atitudes humanas observada pela rigidez no comportamento, pois As atitudes, os gestos e os
movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica. A
essa falta de elasticidade em nossas ações, de acordo com o autor (Op. cit.: 15), está a provável causa daquilo que é
cômico.
No entanto, não podemos pensar nessa rigidez fora do rol do que seja essencialmente humano, pois, para ele:
não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano (op. cit.: 02). Assim sendo, rimos de certos objetos ou animais
pelo fato de trazerem alguma característica humana ou por alguma atitude que reporte à ação humana. Logo, para Bergson,
a natureza humana é ingrediente fundamental na constituição do cômico.
No começo de sua obra, ele cita três possíveis modos de revelação da comicidade: nas formas, nas atitudes e nos
movimentos em geral.
Nas formas – essa é uma parte que mais nos interessa, por relacionar-se com a charge – aparece a caricatura
como exemplo. Embora a fisionomia humana apresente traços harmoniosos, de acordo com Bergson (op. cit.: 19), seu
equilíbrio não é completamente perfeito. Para o caricaturista, haverá sempre algum ponto em desarmonia, pronto para ser

1344
ampliado aos olhos humanos. Daí o nariz alongado, o cabelo comprido, a barriga saliente, o rosto achatado ou alongado
etc. Quanto à comicidade das atitudes e dos movimentos, o autor (op. cit.: 22) ressalta que as atitudes, os gestos e os
movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica.
Talvez, esse seja o motivo principal que nos faz rir de algumas cenas da nossa vida social cotidiana – em princípio, nada
cômicas – como certas cerimônias religiosas (casamentos, bodas, batizados, missas, cultos) e festas (apresentação teatral,
de dança, formatura etc.) explorados em programas de tevê – como as Videocassetadas, por exemplo.
Além desses meios de manifestação da comicidade, Bergson ainda apresenta três formas de evidência do
cômico: o de palavra, ou seja, originada na linguagem; o que se revela na situação em que a ação acontece; e a que está
infundida na própria identidade humana, ou seja, em seu caráter.
Para explicar o que vem a ser a comicidade de palavras, ele compara tal ideia ao palhaço de mola, aquele que se
esconde em uma caixinha e que se revela quando a abrimos, movimentando-se, repetidamente, para dentro e fora da caixa,
por conta da mola. Segundo ele, numa repetição cômica de palavras há geralmente dois termos presentes: um sentimento
comprimido que se estira como uma mola e uma ideia que se diverte a comprimir de novo o sentimento (Op. cit.: 54). Desse
modo, admite-se a interferência da linguagem na construção do humor. Um vocábulo ou expressão algumas vezes
carregados de sentido pode estirar-se para o seu sentido abstrato e voltar para o seu sentido concreto. Veremos, na análise
do corpus desta investigação, alguns exemplos desse tipo.
Ao tratar da comicidade de situação, o autor mostra três pontos fundantes na construção do cômico: a repetição, a
inversão e a interferência das séries. O primeiro é exemplicado com o caso de dois conhecidos que, coincidentemente,
encontram-se por várias vezes na rua, sem ao menos combinar. A própria repetição da cena é causa para o riso. Na
inversão, pode-se imaginar a troca de papéis entre os interagentes de uma cena: um ladrão que tenta assaltar uma
velhinha, mas acaba sendo por ela assaltado. Para a interferência das séries, o autor declara que uma situação é sempre
cômica quando pertence ao mesmo tempo a duas séries de acontecimentos absolutamente independentes e pode ser
interpretada ao mesmo tempo em dois sentidos diferentes (Bergson, 2007: 71). Aduz ao exemplo de dois personagens, em
séries distintas, ou seja, um que se encontrava no castelo, enquanto outro, em viagem dentro de um trem e que, ao final,
encontram-se na prisão.
Enfim, ao tratar da comicidade de caráter, o autor novamente volta à questão do enrijecimento humano, tocando-o
desde um ponto de vista mais social. O indivíduo, para Bergson, torna-se cômico à medida que segue seu próprio caminho
sem o contato com o outro, fecha-se em seu mundo e torna-se, de algum modo, insociável. Por isso, o avarento é motivo de
riso, exatamente, pelo seu enrijecimento social, ou seja, por andar em descompasso com os valores construídos por uma
comunidade humana. O enrijecimento também atinge os virtuosos, lembra o autor (op. cit.: 103): E, afinal, é preciso
confessar – embora custe um pouco dizer – que não rimos apenas dos defeitos de nossos semelhantes, mas também, às
vezes, de suas qualidades. Ao final do texto complementa: um vício flexível seria menos fácil de ridicularizar que uma
virtude inflexível.
Seja qual for o modo de manifestação do cômico, o que estará sempre em jogo – e isso parece ser a tese central
de Bergson – é a mecanicidade de nossas ações, a rigidez de nossos atos, a falta de elasticidade para moldar-se aos
ambientes, aos hábitos e à cultura dominantes, o que gera o isolamento social, fruto de ações mecânicas.

1345
04 – ANÁLISE DO CORPUS

01 – O Globo, 29 de abril de 2010.

A situação apresentada pela charge se resume numa única cena: dois jogadores de futebol parados, mediados
por uma bola de futebol. O evento, nessa circustância, pode ser identificado como sendo uma partida futebolística – o
confronto entre dois clubes brasileiros, Flamengo e Corinthians – caracterizada, sobretudo, com o auxílio do recurso visual
(o desenho da grama, da bola, das personagens devidamente uniformizadas com camisas dos seus respectivos clubes,
calções, meias e sapatos). No quadro participativo apresentam-se, de forma caricaturada, os jogadores famosos e
polêmicos: Ronaldo (do Corinthians) e Adriano (do Flamengo), além do próprio locutor da mensagem, que não se identifica,
mas entra em cena ao tentar estabelecer um diálogo com o leitor, por meio de um questionamento, visivelmente marcado
pelo uso do travessão (– Quem é a bola?)
O enunciado “Quem é a bola?” lido em conjunto com a imagem, remeteria, numa leitura rápida, a dois remetentes
possíveis: a um objeto – a bola de futebol, que aparece no centro da imagem – e aos jogadores, por conta de sua
obesidade, uma vez que “bola”, em seu sentido metafórico, qualifica o indivíduo obeso. Essa duplicidade de referentes, ou
seja, a ambiguidade para o vocábulo “bola”, é uma das responsáveis pela presença do cômico nessa cena, pois, segundo
Almeida (1999), a ambiguidade é um dos desvios que colaboram na formação da comicidade ou humor.
Sem esse desvio, o enunciado, construído sob a aparência de uma pergunta, perderia seu valor ilocutório de
“crítica”. Além disso, perderia, igualmente, o status de um chiste tendencioso – isto é, aquele que, de algum modo, tende à
agressividade, já que torna alguém alvo de crítica ou sátira um tipo de chiste que por sua própria natureza, está inclinado à
crítica ou à sátira.
Referimo-nos antes que numa leitura dita “rápida”, quer dizer, com pouca atenção à análise linguística, a
ambiguidade seria, ao que parece, o desvio primeiro a ser notado, pois, do contrário, o provável leitor desse texto verificaria
que ao empregar o pronome interrogativo “quem”, o locutor do texto opta por referir-se exclusivamente aos jogadores, pois,
de acordo com a língua portuguesa, “quem” – pronome interrogativo invariável – só faz remissões a seres humanos ou
personificados.
Desse modo, não deixaria de existir o aspecto cômico, ao contrário, reforçaria seu status de chiste tendencioso, já
que que a crítica seria mais direta e forte. Além disso, tornar-se-ia mais observável o caráter espirituoso do produtor do
texto, capaz de jogar com palavras e imagens de modo a provocar o riso.
É interessante, também, discutir os reflexos da escolha lexical sobre a imagem do próprio locutor e das
personagens. Ao empregar o “quem”, o produtor dirige sua crítica de forma mais direta às personagens, o que demonstra
pouco interesse em preservar-lhes a face e, também, a própria. Do contrário, um locutor mais preocupado com a questão

1346
da polidez, poderia formular seu questionamento de forma menos direta (Onde está a bola? Qual é a bola? [O pronome
“qual” remete tanto a objetos como seres humanos ou personificados]) transferindo a responsabilidade ao leitor em
reconhecer o sentido mais adequado para “bola”: como objeto (desse modo, desfazendo o valor ilocutório de crítica) ou
como uma entidade humana (mantendo o valor ilocutório de crítica), o que resultaria num chiste menos tendencioso e,
portanto, numa comicidade com menos danos à polidez. Por fim, identificamos no texto (01) uma comicidade tipicamente de
palavra, já que o fator linguístico foi determinante para o desvio. A situação, nesse texto, coopera fortemente para a
exitência do humor, pois do contrário, o aspecto liguístico se esvaziaria, sem sentido, razão que nos leva a admitir que se
instala sobre esse texto a comicidade de situação.

02 – O Globo, 25 de maio 03 – O Globo, 26 de 04– O Globo, 28 de maio


de 2010. maio de 2010. de 2010.

As charges (2), (3) e (4) trazem em comum o mesmo quadro participativo: a personagem Hamlet Neves,
caricatura do até então governador de Minas Gerais, Aécio Neves, e a caveira, que representa, imageticamente, o político e
candidato à presidência da República, José Serra. Compartilham, igualmente, do mesmo evento: uma representação
teatral, identificada com algumas pistas, como a referência à personagem Hamlet e as observações (Em cartaz... Ainda em
cartaz, [Final?]) de um narrador em 1ª pessoa, que aparece no canto esquerdo superior dos três quadros.
É interessante que nas peças (2), (3) e (4), o humor se assenta, em termos de desvios, de forma predominante na
intertextualidade explícita que propriamente na ambiguidade, visto em (1). Para compreendermos como isso ocorre, é
necessário reportarmos para o cenário político do período da produção da charge. Em abril e maio deste ano (2010), O
Globo, bem como outros jornais publicaram a notícia da indecisão de Aécio Neves em concorrer às eleições de 2010 como
cadidato ao Senado ou como vice-presidente na chapa de José Serra, seu partidário e a quem apoia na sucessão a Lula.
Citando a célebre frase de Hamlet – Ser ou não ser, eis a questão – o chargista põe em diálogo a indecisão por que passou
a personagem de Shakespeare após a morte de seu pai, o rei Hamlet, com a indecisão vivida pelo atual político mineiro em
ceder às pressões do partido para o cargo de vice-presidente. É interessante notar que as charges (02), (03) e (04) são um
contínuo, típico de uma obra teatral: com abertura, meio e fim. Essa continuidade de assunto entre reportagens ou gêneros
do domínio jornalístico é denominada, por alguns estudiosos, de “suíte” (Lage, 2006).
Em (02), observa-se o texto como uma forma de “convite”, pois a frase de Hamlet aparece na íntegra, além da
expressão do narrador, “Em cartaz”, que reforça essa ideia.

1347
Em (03), diferentemente de (02), a personagem retoma a frase, porém acrescentando detalhes que fazem alusão
ao candidato tucano por um de seus aspectos físicos – “... o cara do Careca...” – desconstruindo, assim, a fala de Hamlet,
melhor, “parodiando-a”, desvio evidente na construção do humor. Outro aspecto desencadeador do riso está no vocábulo da
expressão pejorativa “cara”, o que não é de se esperar na interação entre os políticos, uma vez que são considerados
“sérios”. Da mesma forma, acontece na expressão vulgar – e metonímica – “Careca” (grafado com letra maiúscula) em
referência a Serra. A pejoratividade, poderíamos acrescentar, em contextos como esse, é fator desviante e, portanto,
mecanismo de humor. O mesmo se dá na própria nomeação da personagem: Hamlet Neves, isto é, põe, por meio da
paródia, mais uma vez em diálogo o atual cenário político brasileiro – ano eleitoral para a mudança de presidente – com a
situação política da obra shakespereana – a presença de Cláudio como sucessor de seu irmão Hamlet. Esse é um dos
motivos que nos leva a enquadrar tal texto como um exemplo de comicidade de palavra.
Em (04), nota-se um provável desfecho para a série Hamlet Neves – Final? – com a indagação feita pelo
narrador. Embora o evento seja o mesmo das peças anteriores (a encenação teatral), a cena já não é a mesma. Isso
porque a personagem, de acordo com a imagem, antes de joelho, está de pé, numa postura similar a de um jogador de
futebol no momento de um chute: com uma das pernas estirada ao ar e com a caveira solta no ar acima do pé estirado.
Torna-se mais humorística, quando recorremos ao texto verbal para a compreensão da mensagem. Na fala da personagem
Agora é a Copa, uai!, há três aspectos que se entrecruzam: política brasileira, enredo de uma obra literária e esporte. Essa
é mais uma prova da comicidade de palavra e de situação presentes na charge. Esse, ao que parece, tenha sido o modo de
caricaturar o estado de despreocupação do governador mineiro em assumir a candidutra à vice-presidência. Assim, a
charge (03), torna-se humorística não só por ver Serra como uma “caveira-bola”, além de Aécio Neves, acumulando papéis
(de Hamlet e de jogador de futebol), mas pela expressão regional “uai” dita por uma personagem inglesa. Esses aspectos
enquadram as charges analisadas na comicidade de situação como na de palavra.
Por fim, talvez, alguns identifiquem, além da comicidade de palavra e de situação, presentes nas três charges, a
comicidade de caráter, por pressupor que a idecisão do político em assumir a candidatura transpareça um aspecto de sua
personalidade. No entanto, como consideramos que o momento vivido pelo candidato é bastante pontual, e não recorrente,
isso não poderia, de forma alguma, qualificá-lo como um indivíduo “indeciso”, razão pela qual não classificamos esse texto
como um exemplo de comicidade de caráter.

05 – O Globo, 22 de abril de 2010.

1348
Igual às charges (02), (03) e (04), a (05) traz em seu quadro participativo personagens da política brasileira, nesse caso, o
atual Presidente da República – Luiz Inácio Lula da Silva – e, novamente, o candidato a sucessor da presidência – José
Serra. No entanto, diferentemente das charges anteriores, as personagens de (05) pertencem a partidos políticos
divergentes quanto à posição – Serra (PSDB), de direita, e Lula (PT), de esquerda. O evento, de acordo com a imagem,
aponta para uma brincadeira de tiro-ao-alvo entre os dois políticos, no entanto, em lugar do dardo, aparece arco e flecha,
uma vez que o título da charge é “Entreouvido no dia do índio”, em alusão ao dia 19 de abril.
Os desvios encontrados nesse texto que favorecem a constituição do humor, podem ser visualizados no modo
como o autor da charges apresenta as personagens e na ambiguidade que se instala na fala de uma delas, nesse caso, um
exemplo típico de comicidade de palavra.
No primeiro caso, tratam-se de dois políticos caricaturados de uma forma jocosa. Parte da testa e da cabeça calva
do tucano serve como alvo para o presidente petista, que aparece trajado de branco com um cocá indígena sobre a cabeça.
Na cena, ainda é possível notar a expressão de angústia de José Serra, ao apertar o nó da gravata, e observada, também,
pelos dois ricos negros, os quais representam o suor, fato que, nesse caso, caracteriza, normalmente, a aflição de alguém
que está por ser atingido por uma flecha.
No enunciado, de acordo com o conhecimento que temos sobre a posição política das personagens, é evidente o
recurso à ambiguidade que subjaz no texto escrito. [...] chegar mais pra [...], o verbo chegar, pela sua própria semântica,
relaciona-se a movimento, a algo dinâmico, tanto no sentido concreto, quanto no abstrato, o que a enquadra na comicidade
de palavra. Com o vocábulo direita, produz-se dois sentidos distindos: no sentido concreto, um pedido para que o seu
parceiro de jogo desloque-se de um espaço concreto específico, nesse caso, movimentando-se da esquerda ou do centro
para a direita, e no sentido abstrato, um convite para mudança de posição política, já que “direita” diz respeito à posição
assumida pelos partidos. Ao que indica, o emprego do termo “direita”, de valor polissêmico, parece ser o responsável pelo
desvio na construção de sentido no enunciado. Isso pode ser facilmente reconhecido na permuta desse vocábulo por outro,
como frente, trás, lado (Alguém vai ter que chegar mais pra (o) frente/trás/lado), em que, na troca de um pelo outro, perde-
se o efeito produzido pela escolha do vocábulo “direita”. O chegar mais pra direita adquire, do ponto de vista pragmático, o
valor ilocutório de crítica sobre o “esquerdismo” de Lula, do que propriamente de convite. Com isso, será necessário
reconhecer que em (05) se constrói um chiste tendencioso, tal como vimos em (01), cuja crítica está assentada no humor.
Assim sendo, em (05) constatamos a riqueza da ambiguidade para a produção de sentidos sob o princípio da “economia”.

06 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo das análises realizadas com o material proposto e com a quantidade delimitada, notamos alguns
aspectos recorrentes nesse gênero do discurso, os quais podem compor o seu perfil, pelo mesmo quando se trate de
produções do mesmo autor (Chico) e do mesmo suporte – o jornal O Globo – e das mesmas temáticas. São eles:
– uma grande recorrência da comicidade de situação e de palavras (charges 01, 02, 03, 04, 05 ), e uma ausência da
comicidade de caráter. Tudo isso, sem contar, obviamente, com a comicidade das formas, pois essa é a característica
essencial para existência da charge;
– recurso à ambiguidade e à intertextulidade (sobretudo, explícita), como se veem na referência feita a pessoas públicas
(no quadro participativo: aos jogadores de futebol e aos políticos brasileiros), e aos fatos noticiados ou textos literários (o
evento: partida de futebol, encenação teatral, dia do índio etc.). A ambiguidade é decorrente, parte das vezes, da
homonímia entre vocábulos, quando não, da polissemia da palavra.

1349
Notamos, portanto, que com base nesses elementos supracitados, há um quadro de mecanimos capazes de
promover o humor nas produções do chargista Chico. Com efeito, os resultados obtido apontam para uma série de
características, do ponto de vista linguístico-interacional, comum entre os textos elaborados por esse autor.
Não foi a nossa proposta, mas poderia se converter um excelente exercício de investigação do humor, confrontar
as análises feitas com outras de charges de autoria distinta, partindo dos mesmos critérios estipulados na metodologia do
trabalho. Isso poderia, imaginamos, não só cooperar com as teorias relativas ao humor/cômico, como também, enriquecer
os estudos acerca do gênero analisado.

REFERÊNCIAS

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Fortaleza: Boletim da Associação Brasileira de Lingüística – nº Especial, mar., 2001.

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BERGSON, H. O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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LAGE, N. Estrutura da notícia. 6. ed. São Paulo: Ática, 2006. [Série Princípios].

MENDONÇA, M. R. S. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In: DIONÍSIO, A. P. et. al. (orgs.) Gêneros
Textuais e ensino. 5. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

OTTONI, M. A. R. A constituição de identidades no discurso humorístico. Uberlândia: Letras & Letras, jul./dez. 2006, pp.
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RAMOS, P. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

1350
SANTOS, A. O. Intertextualidade: a paródia nas aulas de língua portuguesa. 2008. 40 f. Monografia (Especialização em
Língua Portuguesa). Niterói: Instituto de Letras - Universidade Federal Fluminense, 2008a.

______; A paródia publicitária à luz da Semiolingüística. 2008b. Rio de Janeiro: CiFEFIL, 2009.

O autor é mestre em Letras (2009), na subárea de Língua Portuguesa, pela UFF e doutorando em Estudos de
Liguagem, também pela UFF. É professor do Ensino Fundamental e Médio (SMERJ/SEEDUC-RJ) e das Faculdades
Integradas Campo-Grandenses. Atua com os seguintes temas: Análise do Discurso; Linguística Textual;
adrianolisan@hotmail.com

1351
Cartazes de procurados: enunciados de ontem e
polêmicas de hoje

SANTOS, Elmo
(UFBA)

Introdução

Os estudos do discurso sinalizam para um continuum verificável a partir dos campos próprio da linguagem e de
outros envolvidos na rede inter, multi e transdisciplinar necessária à investigação sobre a produção do discurso, hoje. Uma
das possibilidades é apresentada por novos objetos, ou objetos híbridos que impõem leituras mais globais de seus múltiplos
aspectos.
O objetivo deste artigo é verificar quais as conseqüências de algumas opções enunciativas verificadas em
cartazes institucionais sobre desaparecidos políticos no Brasil e as estratégias constitutivas dos textos veiculados
recentemente na mídia. Tratam-se de campanhas dos movimentos e segmentos sociais e governamentais abrigados sob a
bandeira dos direitos humanos e que reivindicam os desaparecidos políticos presos pela ditadura (1964-1985): uma
campanha em diversos meios como a TV, o rádio, o jornal impresso, adesivos, o cartaz, o cinema, a mídia digital. Pode-se
afirmar que, independentemente de uma avaliação sobre as ações dos desaparecidos, a sociedade civil é favorável à
abertura dos arquivos e à devolução dos desaparecidos a quem de direito.
É de um exemplar dessa campanha, um cartaz, que nos ocupamos, no momento, para uma reflexão sobre o
discurso da campanha “Memórias reveladas”, criada pelo Arquivo Nacional, órgão vinculado à Casa Civil da Presidência da
República. Falar de ditadura no Brasil continua a ser um envolvimento numa polêmica atual e é a essa obviedade que
damos atenção, na busca de um dialogismo polêmico sempre inconcluso e que aponta para as suas limitações. Em primeiro
lugar nos ocupamos do suporte, o seu simbolismo e durabilidade, os gêneros que suporta; em segundo lugar nos ocupamos
dos enunciados, a relação intrínseca entre os textos; o debate entre discursos.
Para que tal cartaz produza sentidos optamos por relacioná-lo a um outro, do gênero “cartaz de procurado”. E é
desses dois textos que destacamos possibilidades analíticas dos estudos dialógicos do discurso com a finalidade de discutir
aspectos do texto/co-texto/contexto, dos jogos enunciativos e das subjetividades, sob a ótica dos conceitos de enunciado
concreto e polêmica. Para tal finalidade, recorremos às teorizações do Círculo de Bakhtin-Volochinov-Medvedev, e de
Maingueneau, que contribuem para os estudos das dialogicidades, enunciações polêmicas e de outros estudiosos da
linguagem e das ciências humanas e sociais, integradas para interrogar o objeto discurso, suas redes de atuação e suas
formas de linguagem.
Ao questionar por que esse cartaz de desaparecidos e não outro, a contribuição pretendida tende a se efetivar
não apenas por destacar aspectos da análise discursiva, tentar desvelar sentidos do passado ou estabelecer relações de
memória intertextual e interdiscursiva, mas, sobretudo, por disponibilizar sentidos para os diálogos interdisciplinares e os
importantes debates da vida social.

O cartaz e seus gêneros

1352
Pensamos, com Maingueneau, que o discurso é apreendido como uma atividade ligada a um gênero a um
domínio, a um suporte. As conseqüências dessa afirmação remete a um questionamento que envolve o próprio suporte, sua
materialidade e sua inserção no discurso: porque esse suporte para o gênero e não outro. O cartaz de procurado parece ser
um exemplo em que gênero e suporte se sincretizam, um gênero que necessita desse suporte para caracterizar-se.
Maingueneau (2001) diz que é necessário reservar um lugar para o modo de manifestação material dos discursos,
ao seu suporte, ao midium, que não é um simples meio, um instrumento para transportar uma mensagem, pois interfere no
discurso. A idéia é de que o suporte não é um simples meio e que o gênero não fica indiferente a ele. Assim, o gênero exige
um suporte espacial para circular socialmente e pode ser entendido como um locus fisico ou virtual como formato específico
que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto. O midium é uma superfície física em
formato específico que suporta, fixa e mostra um texto (MARCUSCHI, 2008, p. 174).
O cartaz, enquanto texto impresso, ao dispor caracteres e imagens numa página idêntica às outras, abstrai o texto
da comunicação direta, de pessoa a pessoa. O texto explora cada vez mais o fato de ocupar um certo espaço material. A
espacialidade do impresso permite a associação de elementos icônicos variados (MAINGUENAU, 2001:81). Dada a
diversidade que esse suporte assume de acordo com os gêneros que veicula e quanto à função desses gêneros.
Uma contribuição que se torna muito produtiva é a da semiótica (SANTAELLA, 2002), para pensar o suporte e o
texto em várias semióticas. O cartaz é verificado por seu potencial comunicativo e sua funcionalidade e os seus textos e
gêneros devem ser por sua qualidade: cores, linhas, volume, dimensão, textura, luminosidade, composição, forma, ou seja,
devem ser observadas a sua estrutura, sua estética, as linguagens na percepção do todo no papel. A partir disso, são
verificadas as suas singularidades, o verbal e o não verbal, e sua convencionalidade, o discurso.
Uma das referências para o estudo específico do suporte é Moles (1978), para quem o cartaz é uma imagem em
geral colorida, contendo normalmente um único tema e acompanhado de um texto condutor de poucas palavras, portador
de um único argumento, colado e exposto à visão do transeunte. São várias as funções do cartaz porque o seu objetivo é a
informação/comunicação, publicidade, cultura, ambiência, a estética e a criatividade. Assim, segundo Moles, temos
representadas funções didáticas, persuasivas, educadoras (uma foto, por exemplo, pode gerar desejo ou repulsa),
performáticas (a relação com o ambiente), ligadas ao prazer e à criatividade. O cartaz tem importância histórica e funcional,
por sua versatilidade, de muitos formatos, presentes em muitos lugares, atingindo o público-alvo. Enfim, afirma-se que o
cartaz é um veículo alienador, surge com a função de vender um produto. Para isso mobiliza o verbal e o não verbal e
muitos gêneros. Obviamente que essa definição e funcionamento vistos pelo autor são de um padrão nem sempre
verificável nos textos.
Os estudos da textualidade são fundamentais para um melhor aproveitamento do texto, quando se admite um
continuum texto-discurso que não separa, não sincretiza, mas admite um entre-lugar. Assim, busca-se a textualidade em
qualquer linguagem e em qualquer suporte. E dentre os estudos textuais destacam-se domínios e gêneros, como quer
Adam (2008), que faz tentativas no sentido de encontrar a dinâmica na qual seqüências e períodos se articulam no sentido
textual e os modos de práticas sócio-discursivas. É assim que os gêneros estão sempre submetidos a uma esfera de
comunicação e estão presentes em vários níveis, atuantes na consciência de interlocutores. As reflexões de Adam sobre
texto e genericidade são respaldadas pelas teorizações dos estudiosos russos.
Por tal concepção, existem formas mais ou menos estáveis do gênero do enunciado e o querer-dizer do locutor se
realizada acima de tudo na escolha de um gênero do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 301), determinada em função da
especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do
conjunto constituído dos parceiros etc. Depois disso o intuito discursivo do locutor adapta-se ao gênero escolhido, compõe-

1353
se e desenvolve na forma do gênero determinado.
Com Bakhtin compreendemos que a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos, que emanam dos integrantes de uma duma ou doutra esfera da atividade humana; que cada enunciado
reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, quer por seu conteúdo e estilo verbal -
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - sua construção composicional, todos marcados por uma esfera de
comunicação. E que os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados elaborados por cada esfera de
utilização da língua (BAKHTIN, 2003, p. 289).
Os cartazes de procurados são um gênero que existiu de fato, patrocinados pelo estado, com imagens diversas,
mas conservando um texto referente à captura, ao crime cometido, já implícito no gênero, e à recompensa. O cartaz de
procurado nasce com a criminalidade, celebrizado pelos filmes de faroeste norte-americanos, produzidos a partir dos anos
40 e presentes no imaginário coletivo: atualmente fenômenos de intergenericidade. É uma forma que se reedita em novos
contextos e práticas discursivas novas.
O “cartaz de procurado”, conforme o conhecemos, tem sua própria forma e características comunicacionais. Tem
também uma história do gênero faroeste, dedicado a contar histórias do Velho Oeste, contextualizadas na Guerra Civil
americana e a expansão territorial. Nos filmes do gênero, um dos personagens é o xerife que afixa na parede da cadeia, um
cartaz que apresenta as seguintes regularidades: uma folha de papel envelhecido, uma linha com a palavra “procurado”,
centralizada na parte superior da página; uma foto ou desenho do procurado, ao centro; e uma linha na parte inferior do
cartaz, com as cifras da recompensa. Nesse contexto, o “wanted” é fugitivo, fora da lei, que deve ser preso pela polícia. O
cartaz tem a função de informar, divulgar, estimular a busca, o reconhecimento, a prisão, a delação ou até mesmo a morte.

Os enunciados polêmicos

A punição é o maior objetivo do cartaz de procurado, como conseqüência de um crime cometido. Esse cartaz do
filme de faroeste estabelece um diálogo com o gênero, com as circunstâncias e com discursos e ações que comprometiam
o projeto de democratização e expansão do império. Esse aspecto dialógico do cartaz de procurado fica mais visível quando
procuramos uma análise do enunciado concreto, representado por um cartaz produzido no período da ditadura militar
(1968) e que dialoga, também, com um outro mais recente, que com ele polemiza.
Para Bakhtin, a fala só existe, na realidade, na forma concreta dos enunciados de um indivíduo: do sujeito de um
discurso-fala. O discurso se molda sempre à forma do enunciado que pertence a um sujeito e não pode existir fora dessa
forma. O enunciado é uma unidade da comunicação verbal. Pensa-se, aqui, em todas as contribuições advindas do
círculo para a fundação de uma matriz que tem como categoria o diálogo e como unidade o enunciado concreto, tal como
foi publicado por Voloshinov (1981). Tal enunciado localiza-se nas fronteiras do lingüístico com a ação verbal no espaço
social, o que nos leva a prever contextos e interlocutores já que liga-se estreitamente a uma pragmática e a comunicação.
As opções sobre materialidades textuais e temáticas que motivam uma reflexão podem ter inspirações que se
aliam ao tipo de estudo realizado e a origem do interesse apresentado pode ser de um campo do saber, como a história
social. No campo específico da linguagem, buscamos teorizações e procedimentos dos estudos dialógicos do discurso, para
restabelecer nexos entre conceitos como diálogo, enunciado concreto e polêmica, mais especificamente do dialogismo
polêmico em textos verbais e não verbais, produzidos em contextos polemológicos ou de conflitos sociais. Sabemos que, na
atualidade da história do Brasil, o fato histórico – golpe e ditadura – merece, ainda, estudos mais sistemáticos e categóricos
somente passíveis de serem realizados com a abertura dos arquivos das forçar armadas. É, pois, com a contribuição das

1354
ciências humanas que os estudos do discurso poderão contribuir melhor para pensar a linguagem e a sociedade brasileira.
Surge-nos, assim, a idéia de verificar um cartaz de procurado, produzido durante a ditadura militar, envolvido em
uma polêmica muito atual relacionada a uma tradição de história silenciada, de historiografia abafada ou ignorada, de
redescobertas na atualidade da sociedade brasileira, motivada a construir memórias. Interessa-nos, na constituição de
alguns arquivos, a busca de procedimentos para os estudos da interação verbal, com o concurso dos estudos dialógicos do
discurso, mais especificamente, as investigações do dialogismo polêmico em textos verbais e não verbais produzidos em
contextos polemológicos ou de conflitos sociais. No agora dessa investigação, procuramos restabelecer nexos entre
conceitos amplos como diálogo, enunciado concreto e polêmica. Compreender a produção discursiva dos movimentos
sociais, ontem e hoje, tem se constituído em uma perspectiva programática de investigação e, como dissemos, o objetivo de
nosso ensaio é tentar surpreender em alguns enunciados em seu duplo aspecto: concreto e polêmico.
O enunciado, na perspectiva dialógica, é constituído numa concepção de linguagem a partir do materialismo
dialético, a construção do signo ideológico, e a manifestação do enunciado concreto, na formulação de voloshinov (1981).
O enunciado é concreto porque a situação a ele se integra como parte constitutiva essencial, de seu sentido e compreende
duas partes: a percebida e a presumida. Para compreender um enunciado concreto temos que considerar o horizonte
espacial comum dos interlocutores, a compreensão de determinada situação e sua avaliação, de seu sentido Para essa
discussão, atraímos o enunciado lingüístico como um dos níveis do enunciado concreto, o aspecto extralingüístico que
envolve a instalação de enunciadores/interlocutores e sujeitos, ao mesmo tempo em que são questionadas formas de
citação e aspectos dialógicos de tais enunciados.
Assim como as discussões sobre os gêneros, a contribuição original para a análise da polêmica é a de Bakhtin-
volochinov (1986) e Bakhtin (1981), fonte dos muitos estudos sobre a bivocalidade e a relação entre discursos. O interesse
aqui é verificar uma certa intensidade polêmica, sua gradualidade, seus níveis e como são presentes os fenômenos que os
caracterizam, suas regularidades, e que os constitui como polêmicos. Para Bakhtin, o contexto funciona como uma arena na
qual as palavras têm que se cruzar dialogicamente e é nessa heterogeneidade, entre divergentes e convergentes, nos
mecanismos dessa constitutividade que se colocam os estudos da polêmica. A polêmica surge numa subdivisão da
bivocalidade, enunciado no qual o locutor inclui no seu plano o discurso do outro no sentido de suas próprias intenções. As
palavras bivocais são aquelas em que duas vozes se superpõem, sendo a segunda que se instala na palavra do outro
agride seu primeiro agressor. É importante destacar, aqui, a expressividade que manifesta a relação do locutor com os
enunciados do outro, do enunciado com o autor e com os destinatários.
A partir dessa formulação de uma polêmica compreendida em vários níveis, a partir do nível de aproximação entre
discursos é que podemos verificar se o que é que o discurso citador faz com o discurso citado.
Pelos estudos dialógicos dos discursos: trata-se, aqui de analisar os enunciados, selecionados por sua
importância no co-texto e contexto, em algumas seqüências discursivas que se deixam analisar como um enunciado
concreto (BRAIT, 2005), nas quais são verificadas as traduções que o locutor opera sobre enunciados/discursos outros. A
polêmica se dá no todo, mas pode estar num lugar específico de um enunciado. De acordo com Maingueneau (1984), o
discurso é polêmico se ele atrai e traduz negativamente um outro discurso, no positivo de seu próprio sistema, pensado em
sua dimensão discursiva, ou seja, de uma semântica global: Em Semantique de la polemique o autor vai dizer: O discurso
polêmico está fundado sobre uma dupla bipartição: ele rejeita o que releva seu registro negativo para melhor colocar a
validade de seu registro positivo: seu adversário semântico não é reconhecido em sua alteridade, mas traduzido no registro
negativo do discurso-agente (Maingueneau, 1983: 26).
Sabe-se que Bakhtin não privilegiava a polêmica, por ser uma forma muito comum de troca verbal, entretanto
trata-se de um gênero discursivo que traz em si as suas marcas e seu funcionamento. Para este autor a polêmica pode ser

1355
velada, aberta e interna. Isso quer dizer, que é possível destacar o aspecto lingüístico, textual e discursivo, valendo-nos,
inclusive, das proposições da semãntica lingüística, na instalação de locutores, enunciadores e posicionamento em relação
ao objeto. também, que podemos nos valer das proposições da semántica lingüística, na instalação de locutores,
enunciadores e posicionamento em relação ao objeto.

A polêmica procurado -desparecido

O campo semântico de procurado abrange muitos termos como buscado e caçado. Embora possamos verificar
relações entre o procurado e o desaparecido, são as de antagonismo que se estabelecem reveladoras do diálogo entre os
textos. O desaparecido é o ocultado, escondido, sumido, apagado.
A divulgação de cartazes de procurados no Brasil foi muito utilizada no período da ditadura militar. Foram
divulgados maciçamente em todo o território nacional uma série desses cartazes, com fotos em branco e preto sobre um
fundo amarelo, na tentativa de descobrir e prender militantes de movimentos sociais, de partidos políticos e organizações de
esquerda. A história dessas prisões e suas conseqüências é conhecida da sociedade brasileira.

Interessa, em primeiro momento, verificar o cartaz como um todo e os signos de uma realidade representada. Assim, temos
que destacar a sua iconicidade: os tipos, a espacialidade, cores, volume e os outros ícones que o constituem. Trata-se, o
cartaz em si, de um único enunciado, embora destaquemos os enunciados verbais. Materialidade icônica,
independentemente de sua composição ou signos mobilizados. É, mais comumente, híbrido, com a linguagem verbal e não
verbal que se integram e se interpenetram na composição do todo textual, como podemos verificar no exemplo:

Utilizados como estratégia de caça política, os cartazes foram produzidos e distribuídos em escala nacional,

1356
afixados em bancos, correios, aeroportos, estações rodoviárias, hospitais e escolas. O seu objetivo era incentivar a
denúncia daqueles cujos retratos publicavam. No caso específico deste cartaz apresentado (assim como em tantos outros)
A sua composição é de um texto verbal e não verbal: uma imagem com nove linhas de palavras constitutivas de enunciados
com algumas intenções; ao centro, oito fotos (retratos) de procurados seguidas, abaixo, de nomes e codinomes. Como
recursos gráficos utilizam-se tipos e cores que destacam a mensagem e o seu impacto. Podemos observar, também, que as
fotos utilizadas contribuem para a construção da imagem pretendida de terror.
Esses cartazes que foram utilizados na caça aos “terroristas” mantêm uma relação explícita com o cartaz de
procurado do oeste americano. A estratégia é retomar o gênero, conservando os seus elementos originais: o retrato, as
legendas, a polícia, ciminoso, a recompensa (segurança). Entretanto, a opção aqui é de um cartaz que não é de um filme,
mas que passa por uma mudança e se adapta a uma necessidade que o determina enquanto gênero discursivo, embora
conserve as características originais que definem o gênero textual. São conservados, no suporte papel, a legenda, o retrato,
e a recompensa. Podem estar subentendidos, também, assim como nos cartazes originais, o “vivo ou morto”.
Como anunciamos, interessa-nos, aqui, fazer uma análise textual e discursiva com o objetivo de interrogar textos
e discursos e verificar a conseqüências da atualidade de um diálogo entre cartaz de procurado e de desaparecido. Vejamos
o segundo exemplo:

Em primeiro lugar, é necessário verificar a estabilidade significante. Aqui também temos uma legenda,
linhas com enunciados verbais e fotos. Acrescentem-se os logos. Mudam, também, o sistema de cores, na sobreposição
azul-cinza, preto e branco dos tipos e a quantidade das fotos (vinte e quatro). Essas mudanças significantes entre ambos já
apontam para algumas oposições, mas interessa-nos, inicialmente, justificar uma. No nível simbólico, essas fotos
também são as últimas, as do arquivo da polícia da época. Essas fotos, hoje, têm uma outra significação: a de reclamar, de
criar simpatia, justiça, verdade. É interessante, também, que esses mesmos cartazes sirvam de prova para as ações

1357
judicias dos movimentos sociais que reclamam os corpos dos procurados que são desaparecidos. Ao reclamar o paradeiro,
são reeditados os mesmos retratos daqueles que eram procurados. Como os mesmos podem dizer tão diferente? Essa
diferença é garantida pelo novo contexto, co-texto e o enunciado verbal:

INFELIZMENTE DESAPARECIDOS ATÉ HOJE. AINDA EXISTEM MAIS DE 140 DESAPARECIDOS POLÍTICOS NO PAÍS.
AJUDE A ENCONTRÁ-LOS. SE VOCÊ TEM INFORMAÇÕES OU DOCUMENTOS SOBRE O PERÍODO DE 1964 A 1985,
ACESSE WWW.MEMORIASREVELADAS.GOV.BR OU LIGUE 08007012441. O SIGILO DE SUA IDENTIDADE É
GARANTIDO. PARA QUE NÃO SE ESQUEÇA. PARA QUE NUNCA MAIS ACONTEÇA.

Mas é no aspecto verbal que temos mesmo a oposição entre ambos: a tradução mesma do cartaz de procurado
por cartaz de desaparecido. Os procurados, terroristas, assassinos, ladrões, foragidos caçados pelo aparelho policial da
época, são qualificativos traduzidos no cartaz 2 como, simplesmente, desaparecidos políticos, um qualificativo previsto
juridicamente. Ao traduzir “procurados” por “desaprecidos” institui-se uma polêmica aberta entre os dois exemplares. O
objeto do discurso segundo passa a ser o próprio objeto do discurso do outro, que deve ser negado, desqualificado, mas
não abolido.
Um outro aspecto destacável é respeitante às relações entre locutores e enunciados. No cartaz 1 temos um
locutor não explicitado, embora sugerido pelo aparelho policial, ou seja, o próprio Estado. Esse locutor pode ter muitos
enunciadores implícitos e não apenas os militares brasileiros. No caso do cartaz 2, os locutores são explícitos, também o
Estado, mas já aqui destacados e publicados (Arquivo Nacional e Casa Civil, além do próprio governo). Um Estado de
ontem e um Estado de hoje estão, sim, em relação polêmica e até mesmo interna.
Ainda sobre aspectos dos enunciados, podemos destacar que no primeiro existe uma injunção, uma lei que deve
ser cumprida (segurança nacional) enquanto no cartaz 2 a modalidade é de um pedido, reforçado pelo advérbio atitudinal
“infelizmente”, que exprime o sentimento, a atitude do locutor perante o fato contido no enunciado. Um fato localizado no
tempo e no espaço, cunho “ainda” marca um tempo excessivo, aprecia a duração como excessiva.
Um outro elemento que deve ser destacado diz respeito à recompensa, que está nos dois cartazes,
diferentemente. No primeiro, formulado no enunciado “Ajude-nos a proteger a sua vida e a de seus familiares” e no segundo
“Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça”. A estratégia de retomada da história e da construção de uma
memória parece ser a polêmica mais intensa na atualidade. Isso porque implícita-se, aqui, um mecanismo de transformação
dos procuradores de ontem nos procurados de hoje. Os procurados de ontem são desaparecidos que precisam ser
encontrados e, para isso, apenas os procuradores de ontem podem revelar o paradeiro. A recompensa de hoje é a proteção
contra os procuradores de ontem de hoje e de sempre. Nessa discussão sobre procuradores e procurados, sobressai-se o
enunciado “O sigilo de sua identidade é garantido”. Isso pressupõe, dentre outras possibilidades, que eles persistem.

Conclusões

1358
O debate sobre a história recente do país coloca questões ligadas à anistia, aos crimes cometidos no período, à
tortura e a oposições como procurado e desaparecido; arquivado e desarquivamento, terrorista e desaparecido político,
militares e sociedade civil e tantas outras. O nosso trabalho é dedicado, sim, à memória e não a construir heróis ou
criminosos. Visa discutir a linguagem e contribuir para as discussões sobre uma memória discursiva e para a vida social
atual.

Afirmar que enunciados de ontem e hoje dialogam entre si é um dado porque ambos se referem a um mesmo
corpo, os mesmos individuos reais. Mas percebe-se que não exatamente aos mesmos sujeitos e é nessa construção que
reside a polêmica atual entre “procurado” e “desaparecido” que atrai toda uma rede de formulações, que se deslocam para
atingir os seus fins: o encontro, a descoberta. De um lado, caçador e caça; do outro, o protetor e o seu desparecido.

Do ponto de vista eminentemente discursivo, vemos esboçada uma rede que interliga as tensões entre o fazer
desaparecer (não é para aparecer e não será) e o fazer reaparecer que, inevitavelmente, traz consigo esse não-parecer,
sendo esse o alimento da memória. É assim que quando hoje se fala sobre a anistia, sobre a fundação de um novo regime
de verdade, o próprio Estado estremece. Porque existe um conflito com outro regime de verdade, e por que esse outro
regime está em conflito com a lei, com os estatutos internacionais, com os diretos humanos em geral. Não se pode negar
que a queima dos arquivos militares é queima de provas de crimes, daí a triagem, desaparecimento e interdição dos
arquivos da ditadura.
Existe, sim, as relações intertextuais, mas os discursos são antagônicos. Ambos se valem da instituição
de um gênero para se organizarem em discursos, sendo o segundo cartaz uma releitura do primeiro em um outro registro,
de desaparecidos. As fotos são comuns, mas existem, atualmente, como uma alma que reclama um corpo, como uma foto
que busca o seu modelo. Outras aparentes semelhanças no nível linguístico e textual vão apontar, também, para discursos
opostos. Os cartazes de desaparecidos, em nossa sociedade, não atribui ao referente/sujeito a ação criminosa, ao
contrário, o desaparecido é a vítima.
Nos cartazes analizados e suas relações, verificamos, pois, as tensões sobre o encontrar (fazer desaparecer/fazer
reaparecer) que acabam por instituir um novo regime de verdade; que o diálogo se dá no nível textual, mas sobretudo no
nível interdiscursivo (antagônico); que os gêneros textuais se transformam a partir de novas relações discursivas ou de
novos discursos e a instauração de uma memória interdiscursiva, ou seja, um diálogo sempre inconcluso com textos
passados e atuais, como a lei dos desaparecidos e, principalmente, com enunciados futuros.

Referências

ADAM, J-M. A lingüística textual. Introdução à análise textual dos discursos. Trad. Maria das Graças Soares Rodrigues e
outros. São Paulo: Cortez, 2008.
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M. (Voloshinov). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
Hucitec, 1986.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paula Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
BRAIT, B.; MELO, R. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. BRAIT, B. Bakhtin. Conceitos-chave. São Paulo: Contexto,
2005.

1359
MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Trad. Sirio Possenti. Curitiba: Criar Edições, 2004.
MAINGUENEAU, D. Semantique de la polemique. Ed. l'Age d'Homme, Lousanne, 1983.
MARCUSCHI, L.A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editoria, 2008.
MOLES, Abraham. O Cartaz. São Paulo: Perspectiva, 1987.
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Tomson Learning, 2002.
VOLOSHINOV, V.N. Le discours das la vie et le discours dans la poésie. TODOROV, T. Mikhail Bakhtine. Le principe
dialogique. Paris: Ed. du Seuil, 1981.

Doutor em Língüística na USP e Pós-doutor em Paris 12. Professor Adjunto do Departamento de Letras Clássicas da UFBA,
onde atua na graduação e pós-graduação. Membro do Grupo de Estudos do Discurso, Cultura e Sociedade, desenvolve
pesquisas em Estudos Dialógicos do Discurso, principalmente sobre o enunciado concreto-polêmico-cultural. Tem artigos
publicados em livros e anais de congressos nacionais e internacionais.

1360
Uso de linguagem sincrética em exames nacionais de
avaliação brasileira (ENEM e ENADE): por uma semiologia
histórica do discurso

SANTOS, Jocenilson Ribeiro dos


(FAPESP/PPGL-UFSCAR)

1 Introdução

Este estudo faz parte de um projeto de mestrado no qual procuramos conhecer as formas de avaliação de leituras
e interpretação de texto sincrético com vista para a relação entre língua e imagens na produção de sentido apresentada em
sistemas nacionais de avaliação de aprendizagem (ENEM e ENADE, nosso corpus). Analisamos os pressupostos teóricos
que estão envolvidos no processo de construção de questões avaliativas que envolvem linguagens verbais, não-verbais e
sincréticas, a frequência de ocorrência de questões que apresentam imagens e, mediante conceitos propostos no interior
dos estudos da Análise do Discurso de linha francesa, percebemos a pertinência de proposição de análise a partir dos
quadros teóricos em função de uma semiologia histórica do discurso, noção cunhada por Courtine (1999, 2005) no campo
da história cultural para estudarmos os textos multimodais como materialização de novas práticas discursivas. O objetivo
aqui é apresentar um breve levantamento das constatações obtidas nas primeiras análises. A pesquisa foi dividida em 3
momentos: 1) o primeiro corresponde ao estudo do referencial teórico-metodológico; 2) o segundo refere-se ao
levantamento das questões referentes a política, administração, histórico, projeto pedagógico, objetivos etc. dos dois
exames e, por fim, 3) análise do texto multimodal presente nas edições compreendidas entre 2004 e 2009 com base nos
pressupostos teóricos da semiologia e da análise do discurso (AD).

2 Referencial teórico-metodológico

2.1 Contribuições da noção de arquivo e enunciado em M. Foucault


Ao buscar descrever as práticas discursivas de uma sociedade em uma dada época, Foucault (2008) se propõe a
fazê-lo a partir de um princípio teórico-metodológico para compreender como determinados enunciados emergiram e não
outros. Para isso, ele toma como procedimento de análise a própria análise do discurso que descreve e procura
compreender esses enunciados materializados num interior de formações discursivas e que mantêm relações com
enunciados já ditos. Sobre esse ponto, o filósofo nos apresenta, no quarto volume do livro Ditos & Escritos:

Eu me dei como objeto uma análise do discurso [...]. O que me interessa no problema do discurso é o
fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento. Isto é o que eu chamo de
acontecimento. Para mim, trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de
estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de
acontecimentos discursivos – mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema
econômico, ou ao campo político, ou às instituições. [...]. O fato de eu considerar o discurso como uma
série de acontecimentos nos situa automaticamente na dimensão da história [...]. Se faço isso é com o
objetivo de saber o que somos hoje. (FOUCAULT, 2003, p. 255, grifos nossos).

No excerto acima, o filósofo reconhece o discurso como uma série de acontecimentos inscritos na história com
vistas a compreender, na atualidade, as relações de subjetividade, os sujeitos e os saberes construídos discursivamente.
Não se trata de estabelecer a verdade de uma época, nem julgar certo ou errado um dado enunciado no interior de um
discurso, mas de descrever as séries de enunciados, compreender as relações com outros, o que as produz, o que as faz
perdurar como verdade de determinados grupos ou sociedade. É nas relações entre os enunciados que se nota a

1361
regularidade no interior de sua dispersão; isso só é possível porque tais enunciados só significam quando inscritos em
formações discursivas.
Em A arqueologia do saber, Foucault (2008) postula que a análise enunciativa deve ser feita levando em conta o
efeito de raridade, exterioridade e acúmulo. Nesse sentido, ele compreende por lei da raridade o fato de que nem tudo pode
ser dito, “estudam-se os enunciados no limite que os separa do que não está dito, na instância que os faz surgirem à
exclusão de todos os outros” (p.135), portanto, devem ser estudados em seu lugar próprio, “não como se estivesse no lugar
de outros caídos abaixo da linha de emergência possível” (p.135). Quanto à sistemática da exterioridade, a análise
enunciativa deve ser feita através do empreendimento da história, porque é através dela que retomam enunciados que
foram ditos e permanecem “conservados ao longo do tempo e dispersos no espaço, em direção ao segredo interior que os
procedeu, neles se depositou e aí se encontra (em todos os sentidos do termo) atraído.” (p.137) Nessa perspectiva, a
história não é tomada como continuidade de série de acontecimentos factuais homogêneos nem os sujeitos vistos como
indivíduos “em sua subjetividade transcendental”, soberana, “mas reconhece(r), nas diferentes formas de subjetividade que
fala, efeitos próprios do campo enunciativo” (p.138), cuja história é discursivizada, heterogênea, descontínua. A lei do
acúmulo corresponde, por fim, ao terceiro traço da análise enunciativa: é o resultado de enunciados produzidos e
acumulados na dispersão de discursos.
Se o enunciado é a unidade molecular do discurso e não deve ser confundido como unidade mínima de uma
sentença linguística, uma frase, proposição ou atos de fala, o arquivo, por seu turno, também não deve ser compreendido
como um lugar em que se podem encontrar todos os documentos disponíveis para análise. A noção de arquivo para
Foucault (2008 [1969]) tem outra dimensão conceitual. Antes de procedermos com a discussão acerca dessa noção - que
veio colaborar com os estudos do discurso - é importante fazer um breve recuo na história da epistemologia da Análise do
discurso para melhor situarmos a escolha de tal conceito e procedimento de análise.
À medida que os estudos do discurso foram tomando novos domínios, o que exigia outras reflexões, a concepção
que se tinha de corpus de análise foi mudando. Nesse sentido, retomando o conceito foucaultiano, o arquivo possibilitou
que se fizesse uma análise de discurso não com essa ânsia pela totalidade, por agrupamentos em série de textos fechados
num arquivo, já que sua preocupação não se dá pela quantidade nem somente pelas sequências discursivas, mas pela
análise de enunciados sempre em relação a outros.
Em nossa pesquisa, mobilizamos essa noção de arquivo, por considerarmos que nosso material de análise não
será explorado apenas em função de um armazenamento de questões de provas do ENEN e ENADE tomadas como
documentos. Tal noção auxiliará a considerar que os enunciados em análise respondem (i) a um sistema de enunciabilidade
- o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares e (ii) a um sistema de funcionamento
– que rege as regras que permitem aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, modificarem-se regularmente.
Mobilizamos também o conceito de enunciado em nossas pesquisas pensando não em sua materialidade que
poderia ser compreendida sob a égide de um modelo estrutural visto como sistema tal como Saussure (2006) concebe a
língua, mas como produto e constituição das práticas simbólicas e discursivas para constituição de saberes na história. Em
A arqueologia do saber, uma das grandes preocupações de Foucault (2008), ao procurar definir as unidades que compõem
o discurso e propor uma descrição dos acontecimentos discursivos, é saber “como apareceu um determinado enunciado, e
não outro em seu lugar?” Tendo em vista essa questão, o filósofo vai discutir a noção de enunciado como sendo “sempre
um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”. Para ele, o enunciado
trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um
gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma
existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos
livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas

1362
está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a
situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e
segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem
(FOUCAULT, 2008, p.31-32, grifo nosso).

Notamos que Foucault (2008) não atribui somente à língua o que concebe por enunciado, mas também não lhe
tira o caráter eminentemente material que a língua confere a essa unidade de discurso. Nesse sentido, o enunciado
depende de três características essenciais, a saber: a) estar sujeito à produção de uma palavra escrita ou falada; b)
depender de um regime de memória que se manifeste em qualquer forma de registro (o que não se restringe à linguagem
verbal apenas); e c) estar ligado a outros enunciados que o precederam, além da irrupção de sentido que se instaura no
momento da enunciação. Mas o próprio filósofo parece-nos ter assumido a falta de objetividade desse conceito, uma vez
que não se pode fechá-lo num sentido apenas e muito menos reduzi-lo a uma estrutura linguística material, já que, ao se
tratar de discurso, está-se sujeito a uma vontade de verdade concebida historicamente. É, talvez, sobre esse aspecto que o
autor revela: “Ora, tive o cuidado de não dar uma definição preliminar de enunciado” (op. cit., p. 90).
Gregolin (2004, p. 25) nos chama a atenção para o fato de que, conforme Foucault nos apresenta, podemos ter
como enunciado um quadro classificatório de espécies botânicas, uma árvore genealógica, uma fórmula algébrica, um
gráfico, pois “todos têm leis de uso e regras de construção que são diferentes daquelas das frases”. Notamos, portanto, tal
como concebe Foucault (2008), que o enunciado não pode ser tomado como uma estrutura, mas como uma função que só
faz sentido mediante uso, regras de controle, condições de produção e um campo de funcionamento, além do sujeito que
assume o papel de enunciador. A definição de enunciado foucaultiano, de acordo com Courtine (2009, p. 86, grifos do
autor), obedece, portanto, a quatro propriedades que delimitam sua “função de existência”, a “função enunciativa”: está
ligado a um referencial, mantém com o sujeito uma certa relação, tem um domínio associado e apresenta uma existência
material.

2.2 A concepção semiológica de Barthes


Os estudos de diferentes sistemas de signos na França sob a égide de uma Semiologia, como sabemos,
ganharam destaque, sobretudo, com as publicações de Roland Barthes na revista Communications. Embora alguns
linguistas impulsionados pelas ideias do CLG, desenvolveram suas pesquisas sobre uma dada atuação semiológica,
Barthes dedicou-se aos estudos da moda, do mito, da cultura, da fotografia, da literatura, da propaganda, da comunicação
de massa, enfim, como sistema de signos, cujo modelo partia da Linguística como propunha Saussure, e inicialmente
centrado no paradigma estrutural. É fato que Barthes se ateve ao modelo teórico-metodológico que lhe serviu de análise
para sistemas de signos distintos, homogeneizando os princípios (e isso perdurou dos anos 1950 até a década de 1970),
mas algumas de suas análises vão partir de pressupostos que exijam de nós uma mirada para a questão da subjetividade e
da historicidade como constitutivos das formas de significação dos textos na sociedade.
Com a publicação de Mythologies, em 1957 e mais tarde com o Système de la mode publicado em 1967, Barthes
“desenvolve a análise referentes aos sistemas não linguísticos que priorizam a ‘farta significação’ como os mitos, a
literatura, a propaganda e a moda, que não apresentam por principio a intenção de comunicar” como era vista a linguagem
verbal. (BOCCA, 1994, p. 133-134). Mas é no livro Elements de sémiologies, publicado em 1964, que Roland Barthes
agrupava seus estudos sobre as rubricas dicotômicas da linguística estrutural, isto é, língua/fala, significado/ significante,
sintagma/sistema, denotação/conotação. Ele então estava estabelecendo os conceitos e métodos para uma teoria geral da
pesquisa semiológica com base na Linguística, o que não significa que as ideias do CLG não tenha sido alvo de
discordância nem motivo para que ele propusesse novos modelos de se pensar acerca da linguagem.

1363
Barthes vai conceber a semiologia como sendo pertencente à linguística, ao contrário do que pensou Saussure.
Nos Elementos, ele defende que “a Semiologia é que uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte que se
encarregaria das grandes unidades significantes do discurso.” (BARTHES, 1971, p. 13). Mas todo sistema simbólico só se
define como semiológico a partir do momento em que se torna interpretável pela linguagem verbal, nunca o contrário. Basta
lembrarmos da relação de interpretância como princípio de sistemas semiológicos proposto por Benveniste (2006) e
definido no tópico anterior, para percebermos que tal concepção é correlata a esta visão de Barthes presente em
Mythologies.
É claro que esta visão é oriunda do fato de que, em suas análises, ele passou a perceber uma dependência de
outros sistemas à linguagem verbal; a língua traduz outros signos, complementa seus sentidos, dizem por, mas estes outros
são incapazes de dizer por si só nem pela língua, acreditava o semiólogo francês. No entanto, só mais tarde, é que Barthes
vai defender o divórcio destas duas ciências, reconhecendo suas autonomias sobre seus objetos (BOCCA, 1994). Não se
levaria tempo para se conhecer uma outra concepção de semiologia, menos presa ao modelo estrutural, menos dependente
dos paradigmas da linguística saussuriana. Segundo Bocca (1994), a partir dos anos 1970 com a publicação de S/Z,
Barthes abre mão do rigor científico de até então e começa a pensar nas possibilidades de interpretação, estabelecendo
uma metodologia de análises de objetos semiológicos por meio de questionamentos. Eis a fase pós-estrutural do semiólogo.
É válido lembrar que embora Bocca (1994) tenha estudado as fases de desenvolvimento da teoria semiológica de
Barthes - dentro de um projeto maior denominado Desígnios da semiologia, contemplando reflexões de diferentes autores -,
pouco atentou para a revista Communications onde ele publicou vários textos sobre o tema, entre os quais os artigos Le
message photographique (1961) e Rhétorique de l’image (1964). Voltaremos, portanto, nossa atenção para estes artigos
com o objetivo de compreender como Barthes estudava o texto imagético e sincrético e que método de análise ele
estabeleceu a fim de entender a constituição da significação.
No primeiro artigo, o autor estuda a fotografia jornalística, que para ele pode significar diferentemente em
diferentes jornais e suportes. Seu método de análise é estrutural e deve ser feita levando em conta, além da imanência do
sentido, a relação com o texto verbal usado como legenda ou com outra função. Nesse sentido, ele diz que a totalidade do
sentido de uma fotografia está apoiada sobe duas estruturas distintas: uma é a própria fotografia marcada por linhas, cores,
superfície, matizes, textura, etc; e outra é a substância linguística constituída por palavras. Barthes (1990a) diz que o senso
comum acostuma a pensar que, por não haver um código que a constitua, a fotografia é definida pelo caráter analógico
perfeito que se aproxima do real, do mesmo modo, podem ser pensados o teatro, os desenhos, a pintura, o cinema;
contudo, ele chama a atenção para o fato de que há sempre um sentido segundo, o estilo da reprodução, para o qual
“significante é um certo ‘tratamento’ da imagem sob a ação de seu criado e cujo significado – estético ou ideológico –
remete a uma certa ‘cultura’ da sociedade que recebe a imagem.”(BARTHES, 1990a, p. 13). Assim, a fotografia comporta
duas mensagens, uma denotada (analogon) e uma conotada, i. e., como uma sociedade lê e/ou oferece a leitura desse
texto.
Percebemos, por via dessa reflexão, que o autor nos leva a pensar no papel do autor e do sujeito envolvidos no
processo de constituição do(s) sentido(s); ambos assumem papeis essenciais, caso contrário, voltaríamos à velha
discussão do apagamento do sujeito quando se pensa a linguagem pela linguagem. Uma das contribuições de Barthes
(1990a) para esta dissertação está justamente nessa discussão que ainda nós é atual, ou seja, como devemos interpretar
os textos imagéticos, na escola, muitas vezes, lidos numa perspectiva analógica (portanto, representação fiel do real),
quando tal leitura não depende somente da estrutura, mas da cultura, da história e dos sujeitos a partir dos quais a
fotografia, o desenho, a pintura etc. foram produzidos... Nesse sentido, ele estabelece como procedimento de leitura um
caminho em que se leve em conta três planos de conotação: o perceptivo, o cognitivo e o ideológico – através dos quais os

1364
valores, os conhecimentos de mundo, a cultura do leitor, as razões de produção e funcionamento da imagem, tudo isso faça
parte da constituição do sentido.
A fotografia jornalística bem como outros textos de sistemas semelhantes é tomada pelos leitores com uma
vontade de objetividade, uma ilusão de que, contemplando-a, se vê o real; não desconfia o “leitor ingênuo” que esse
processo obedece à ordem de seu próprio olhar, não um olhar solto, individual, mas um olhar que obedece a outros olhares
pedagogizados pelas práticas de leituras de imagens, que de um lado, segue os hábitos de uma sociedade, por outro, a
orienta a construir hábitos novos numa relação dialógica e descontínua. O processo de descrição da imagem também gera
outros sentidos, acrescenta o que Barthes (1990a, p. 14) chama de relais, uma segunda mensagem extraída de um código
linguístico e que constitui “qualquer que seja o cuidado que se tenha para ser exato, uma conotação em relação ao análogo
fotográfico: descrever, portanto, não é somente ser inexato ou incompleto; é mudar de estrutura, é significar uma coisa
diferente daquilo que é mostrado.”
Outra questão para a qual Barthes (1990a) nos chama a atenção corresponde à função do texto verbal diante do
imagético. Segundo ele, há uma dupla relação. Uma em que o texto verbal procura acrescentar um sentido à imagem e
outra em que tenta ancorar um dado sentido quando a imagem parece dizer muita coisa. Mais tarde, 1964, no artigo
Rhétorique de l’image, Barthes (1990b) ao estudar o texto publicitário1 vai estabelecer três mensagens (não mais somente
as duas de que tratávamos há pouco): i) mensagem linguística; ii) mensagem icônica codificada (cultural); iii) mensagem
icônica não codificada (perceptiva). A mensagem linguística assumiria, portanto, duas funções separadas ou conjuntas, isso
vai depender da materialidade e do suporte.

3 O corpus de análise e algumas constatações

O ENEM e o ENADE estão sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), uma Autarquia Federal criada para integrar o Ministério da Educação (MEC) com sede em Brasília-
DF. Conforme a Lei n. 9.448, de 14 de março de 1997, artigo 1º são finalidades do INEP:
• I - organizar e manter o sistema de informações e estatísticas educacionais;
• II - planejar, orientar e coordenar o desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliação educacional, visando o
estabelecimento de indicadores de desempenho das atividades de ensino no País;
• III - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliação educacional;
• IV - desenvolver e implementar, na área educacional, sistemas de informação e documentação que abranjam estatísticas,
avaliações educacionais, práticas pedagógicas e de gestão das políticas educacionais;
• V - subsidiar a formulação de políticas na área de educação, mediante a elaboração de diagnósticos e recomendações
decorrentes da avaliação da educação básica e superior;
• VI - coordenar o processo de avaliação dos cursos de graduação, em conformidade com a legislação vigente;
• VII - definir e propor parâmetros, critérios e mecanismos para a realização de exames de acesso ao ensino superior;
• VIII - promover a disseminação de informações sobre avaliação da educação básica e superior;
• IX - articular-se, em sua área de atuação, com instituições nacionais, estrangeiras e internacionais, mediante ações de
cooperação institucional, técnica e financeira bilateral e multilateral. (BRASIL, Lei 9.448/97, grifo nosso)2

Não é nosso objetivo apresentar o histórico, as características e as particularidades de cada um desses


programas, tendo em vista que nossa preocupação se volta para algumas provas do ENEM e do ENADE, conforme
evidenciamos ao longo desta dissertação, e não para o caráter político, logístico e curricular a que estes exames estão
condicionados. No entanto, julgamos pertinente situá-los nesse espaço institucional do MEC a fim de que, mais adiante,

1 Por se tratar de um estudo bastante conhecido na área de estudo de semiologia, linguagem e comunicação, não entraremos em detalhe
quando à pesquisa e ao procedimento de análise adotado pelo autor; por ora, centraremo-nos nas questões que possibilitam o
entendimento de nossas análises via abordagem barthesiana.
2 A legislação na íntegra está disponível no site Jus Brasil Legislação. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/107558/lei-

9448-97>. Acesso em: 13. jan. 2010.

1365
possamos argumentar acerca dos aspectos disciplinares, estruturais e teóricos das provas – no que tange à área de
linguagens e códigos – pertinentes a um projeto avaliativo e compreender melhor nossas preocupações.
Responsável por avaliar o desempenho dos estudantes de graduação, o ENADE corresponde a um dos três
componentes que integra os processos de avaliação da educação superior no Brasil. Os outros dois avaliam os cursos e as
Instituições de Ensino Superior (IES) através de equipes e instrumentos organizados para esses fins. O SINAES,
responsável pelo ENADE, foi estabelecido pela Lei 1086/04 de 14 de abril de 2004 e tem o propósito de apresentar uma
avaliação geral da educação superior no país e, ao mesmo tempo, levando em conta as particularidades que justificam a
diversidade e a identidade dos cursos em suas respectivas instituições de ensino. O exame é obrigatório para os alunos
selecionados e condição indispensável para a emissão do histórico escolar, segundo o regimento do SINAES. A primeira
aplicação ocorreu em 2004 e a periodicidade máxima com que cada área do conhecimento é avaliada ocorre a cada três
anos.
O ENADE, que passou a “substituir” o Exame Nacional de Cursos (ENC) - o antigo Provão - é um “exame em
larga escala aplicado aos estudantes que preenchem os critérios estabelecidos pela legislação vigente.” (BRITO, 2008, p.
842). Compõem o exame uma prova e três questionários: a) questionário de Avaliação Discente de Educação Superior
(ADES), b) questionário de coordenadores de curso e c) e questionários de percepção do aluno sobre a prova. O exame é
aplicado por procedimento de amostragem em que se avaliam alguns ingressantes e concluintes dos cursos de graduação,
acompanhando assim seu progresso durante o período de formação.
A prova é dividida em duas partes: Formação Geral - subdividida por questões de múltipla escolha e questões
discursivas; e Componente Específico – com a mesma estruturação da primeira. Contudo, neste último componente,
avaliam-se tantos os alunos ingressantes quanto os concluintes a partir do perfil curricular de seu curso. Sendo assim, essa
parte da prova traz questões específicas de cada área de formação dos estudantes. Por outro lado, a parte constituída pela
formação geral é comum a todos os avaliados independentemente do curso em que ele está matriculado.
Já o ENEM, conforme o Documento Básico - que define, descreve, caracteriza e legitima o ENEM -, inicialmente
elaborado em 1998 e reeditado em 2002, o exame é aplicado anualmente aos alunos concluintes e aos egressos desse
nível de ensino e tem por objetivo fundamental “avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para
aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania.” (BRASIL, 2002, p.5). São
finalidades específicas do exame: a) oferecer uma referência para que cada cidadão possa proceder a sua auto-avaliação
com vista às suas escolhas futuras, tanto em relação ao mercado de trabalho quanto em relação à continuidade de estudos;
b) estruturar uma avaliação da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de
seleção nos diferentes setores do mundo do trabalho; c) estruturar uma avaliação da educação básica que sirva como
modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes pós-médios e ao ensino
superior.
Esses objetivos são definidos a partir dos parâmetros internacionais de avaliação de educação básica,
estabelecidos conforme a dinâmica da sociedade que exige sujeitos atuantes autonomamente, inseridos num mercado de
trabalho cada vez mais competitivo, como destaca o documento. Percebe-se, portanto, que são estruturados com vistas
para um planejamento político-educacional do país.
Outro aspecto que define o ENEM é o conceito de competência e habilidade sobre os quais se avaliam os
conhecimentos dos estudantes, tendo por pressupostos os conteúdos adquiridos “na fase de desenvolvimento cognitivo e
social correspondente ao término da escolaridade básica” (BRASIL, 2002, p.11), cujas referências norteadoras para tais
conceitos são as diretrizes e a própria LDB, como dissemos.

1366
4 Olhares distintos no trajeto de leitura da imagem

Voltando ao conceito de arquivo proposto por Foucault (2008), compreendemos a manifestação de uma dada
materialidade repetindo-se de forma regular numa dispersão de textos em suas multiplicidades. Numa dispersão de
questões que traziam imagens, levantamos algumas regularidades. Das provas estudadas, selecionamos 41 situações-
problema em que havia pelo menos uma imagem. Ao todo, foram destacadas 26 pinturas, 15 quadrinhos e 11 fotos, além
de 21 materialidades imagéticas que variavam entre ideogramas orientais, metaesquemas, figuras geométricas, símbolos,
desenhos indígenas, pinturas rupestres, partitura e outros signos. Percebemos também que, a partir da edição de 2007,
houve uma multiplicidade de linguagens. Se em 2005, por exemplo, apareceu cerca de 10 pinturas, nas edições seguintes
elas não deixaram de aparecer, mas dividiram espaços nas provas com linguagens antes inexistentes.
Houve 12 edições do ENEM (com 13 provas, devido à fraude ocorrida em 2009, fato que exigiu a elaboração de
uma segunda prova na 12ª edição) e 06 do ENADE. Para definirmos um modo de recorte desse material de análise,
consideramos critérios relativos à materialidade da questão, ao momento de sua elaboração e ao trajeto analítico motivado
pela situação-problema apresentada. É importante destacar também que estudamos todas as provas dos dois exames, mas
adotamos para as análises seguindo esses critérios somente as edições posteriores a 2004. Vejamos.
O primeiro critério diz respeito à materialidade que nos serve de corpus de estudo, isto é, interessam-nos apenas
as questões em que se faz uso de materialidade imagética e sincrética (linguagem mista) como dissemos na introdução
deste trabalho. Nesse sentido, textos de diferentes linguagens foram identificados nas provas, mesmo que nem todos
pudessem compor nosso arquivo. Logo, estudamos as questões que apresentavam charges, quadrinhos, fotografias, foto-
montagem, desenhos, partitura, ideograma, figuras geométricas, metaesquema, símbolos, poema concreto, pinturas
rupestres e indígenas (além de pinturas também modernas3).
O segundo corresponde ao recorte temporal. Nesse sentido, tomamos o ano de 2004 por duas razões: 1)
aspecto político-educacional: coincidência da criação do SINAES e, consequentemente, implantação do ENADE - que
viria a “substituir” o antigo Provão - com a instituição do PROUNI - que ampliaria o objetivo do ENEM; 2) aspecto material:
a partir da edição de 2004, notamos uma maior ocorrência de textos imagéticos, sincréticos e multimodais, embora desde a
criação do exame já se anunciava no próprio Documento Básico e na Matriz de Referência a importância do ensino de
linguagens fundamentado, sobretudo, na teoria do gênero do discurso. Em dados numéricos, enquanto em 1998 e 1999 não
houve nenhuma questão desse tipo, nos anos posteriores a 2004, notamos um número quase constante de 8 ocorrências,
com exceção de 2005 com 10 questões (número máximo) e 2006 com apenas 1 (número mínimo).
O terceiro critério é analítico e corresponde ao trajeto analítico da situação-problema. Denominamos assim por
constatarmos algumas diferenças e regularidades nas questões em que o texto imagético aparecia, atendendo a um nível
de leitura cujo percurso variava do mais simples ao mais complexo; do uso da imagem como suporte ilustrativo ao uso
como objeto próprio de análise. Para definirmos esse critério, elaboramos alguns questionamentos: A questão faz referência
à materialidade (linguística, imagética e ou sincrética)? Como a questão lida com a materialidade imagética? Quais são os
possíveis trajetos de interpretação e leitura construídos?
A partir das respostas a esses questionamentos, pudemos selecionar as 41 questões analisadas e classificá-las
em quatro trajetos analíticos possíveis: A) ilustração; B) relação intersemiológica; C) composição técnico-expressiva; e D)
materialidade constitutiva, a qual classificamos como sendo ou de natureza semiológica ou discursiva. É importante
ressaltar que essas classificações foram feitas apenas para título de amostragem, o que não significa que uma questão ou

3 A definição pintura moderna não é usada aqui como característica, filosofia e/ou movimento artístico do modernismo, mas apenas para

fazer distinção entre a pintura rupestre e pinturas de ameríndios, povos maias, africanos ou outros que viveram há milhares de anos.

1367
outra evidencie os aspectos constitutivos ou semiológicos do texto para atender a seu objetivo de formas tão separadas.
Contudo, levamos em conta os modos de abordagem da materialidade e seu nível de leitura como destacamos acima.
De acordo com os três critérios - materialidade, momento e trajeto analítico - adotados para a definição do corpus
desta pesquisa, chegamos a algumas conclusões parciais. Percebemos que, na dispersão de textos imagéticos utilizados
com maior frequência a partir da edição de 2004, as imagens atendem a alguns objetivos tendo em vista a própria
regularidade no processo interpretativo, a saber:
a) ilustrar, exemplificar ou mostrar uma situação-problema, cujas competências e habilidades avaliadas centram-
se em uma dada teoria relacionada a disciplinas curriculares como física, biologia, geografia, história, língua portuguesa,
etc. – a imagem, portanto, não é objeto de análise;
b) apresentar-se como objeto de análise tanto nos aspectos técnico-expressivo, semiológico e, não raro,
discursivo.
Outro dado importante é que houve uma frequência ascendente de questões com imagens nos últimos seis anos,
variando de 5 para 10, com exceção da edição de 2006, que apresentou apenas 1, cuja razão que levou a tal diferença nos
é desconhecida. A partir da edição de 2007, o texto imagético é utilizado na prova muito mais como relação entre uma
linguagem e outra do que, simplesmente, como ilustração. As duas provas de 2009 mostraram, em maior número de
questões, uma leitura da imagem preocupada com a materialidade do sentido constitutiva e relacionada, o que não significa
que algumas delas não fossem usadas para ilustrar uma situação em que um conceito, um procedimento, da Linguística, da
Biologia ou da Física estava em discussão.
Em todas as 60 questões estudadas (41enem+19enade), não houve distinção de análise quanto ao aspecto
língua-imagem que caracterizava o sincretismo da linguagem capaz de produzir efeitos de sentido diferentes de uma
situação, por exemplo, em que a língua ou a imagem separada uma da outra signifique, o que não significa dizer que esses
elementos na junção ou em relação um com o outro não tenha sido essencial para sua interpretação. Por outro lado,
notamos que, para a análise do texto imagético, sincrético, não há uma única teoria, mas uma diversidade de “olhares” com
os quais ora é preciso relacioná-lo a materialidades semiológicas distintas, ora é preciso um saber histórico-artístico para
analisá-lo; outras vezes, observá-lo a partir de uma teoria do signo ou do gênero do discurso, por exemplo.

5 Considerações finais

Com o levantamento, embora ainda em desenvolvimento, já podemos afirmar que não existe uma abordagem
acerca do sentido, interpretação e leitura da imagem como se tem para a língua. Seria desnecessário então tomar tal
materialidade como objeto de estudo? É claro que não, afinal existem importantes estudos nas áreas de semiótica em suas
diferentes filiações de comunicação visual, de semiologia francesa (destacamos os estudos de Barthes), todos estes já têm
certa tradição, mas suas preocupações - muitas vezes manifestadas por viés aplicado – pouco atingiram a escola. Ou se
tiveram esse objetivo, sua atuação foi tímida já que muitos estudantes, professores e a própria conjuntura escolar têm
tomado este tipo de texto de forma imanente em que seus sentidos são recebidos como sendo de natureza analógica.
Nossas preocupações, no momento, é compreender como a escola, os livros didáticos, a universidade, os sistemas de
avaliação têm recebido a imagem e o texto multimodal como produto e materialização das práticas de discurso. Para tanto,
apoiamos nossos estudos a partir das discussões traçadas pelos pensadores Michel Pêcheux (1969; 1984; 2004) e Michel
Foucault (1969; 2001; 2008), Roland Barthes (1990ab; 1971) e Jean-Jacques Courtine (2006; 2009) - no que tange aos
conceitos de discurso, enunciado, história, memória discursiva, formação discursiva e acontecimento discursivo, a fim de
estudar os discursos manifestados nesse tipo de texto. Com estes conceitos, pretendemos contribuir com um referencial

1368
teórico-metodológico, no interior dos estudos discursivos, capaz de possibilitar uma melhor compreensão dos efeitos de
sentido presentes em diferentes materialidades recorrentes na sociedade nos últimos anos. Estes conceitos são essenciais
para o desenvolvimento teórico-metodológico no interior dos estudos discursivos, uma vez que a AD concebe a língua como
um lugar privilegiado para a realização dos processos discursivos e ideológicos, como defende Orlandi (1995; 2005).
Entretanto, é preciso levar em conta também outras materialidades dispersas ou com maior circularidade em que os
discursos se estabelecem como aqueles recorrentes no campo da mídia, da publicidade, dos discursos políticos, científicos,
pedagógicos etc.

Referências

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BARTHES, R. Elementos de semiologia. Trad. Izidoro Blinkstein. São Paulo: Cultrix, 1971.

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BOCCA, F. V. Desígnios da semiologia: uma reflexão sobre a autonomia das formas na pesquisa dos fatos humanos.
1994. 263 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Ciências Humanas) – Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Campinas, SP, 1994.

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COURTINE, J.-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. Supervisão de Trad.
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(Org.). Michel Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 23-44.

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SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. 27. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

Jocenilson Ribeiro dos Santos é Licenciado em Letras pela UEFS-BA, aluno do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da UFSCar-SP. É também integrante do Grupo de Pesquisa Labor – Laboratório de Estudos do Discurso, onde
desenvolve pesquisa sobre o uso de linguagem sincrética e de novas materialidades do discurso no ensino, sob orientação
da Profª. Dra. Vanice Sargentini. (jonuefs@gmail.com)

1369
As operações do discurso relatado no Le Monde
Diplomatique

SANTOS, Priscila Azevedo Cesar dos


(UFRJ)

1) Introdução

O presente artigo propõe traçar um quadro sobre o discurso relatado, fortemente presente na imprensa de língua
francesa. Para isso, utilizo como corpus reportagens do jornal Le monde Diplomatique em versão online.
Ao todo são vinte reportagens do gênero reportagem, organizados predominantemente de modo argumentativo
(CHARAUDEAU, 2008), onde o recurso da citação é usado com maior recorrência visando seus efeitos, como autenticidade
e persuasão (CHARAUDEAU, 1992, ANGELIN, 1996).
Toda a teoria desenvolvida por Charaudeau (2006) sobre o discurso das mídias é de extrema relevância para o
atual artigo, visto que o corpus é composto por reportagens de um jornal. Portanto, é preciso delimitar as características e
especificidades que estão presentes nesse discurso em questão.
Este trabalho tem como objetivo verificar a recorrência das operações de seleção, os modos de identificação e de
citação utilizados (CHARAUDEAU, 2006) nas reportagens do corpus.
Acredito que as citações mais utilizadas serão as com objetivo de efeito de saber (cf. pág. 7), com modo de
identificação de determinação (cf. pág. 8) e com modo de citação direta (cf. pág. 9), já que o objetivo do Le monde
Diplomatique é atingir um leitor crítico, sempre com temas polêmicos e atuais, lembrando que como já verificado, a
imprensa escrita francesa tem a tendência de usar com maior frequência o discurso direito (LAROCHE-BOUVY, 1988).

1) O discurso relatado

As mídias se definem contra o poder e a manipulação, fazendo questão de deixar claro que seu único papel é a
informação e denúncia. Porém, é de conhecimento comum que muitas vezes essa imparcialidade não é efetiva.
A grande questão é que o mundo midiático manipula a si próprio ao tentar manipular os outros, pois o ato requer
um agente/manipulador que tenha um projeto, uma tática e um paciente/manipulado. Porém, como o manipulador não
declara sua intenção, somente através do manipulado que se pode concluir que existe uma manipulação. No caso das
mídias, o manipulado está diretamente ligado ao alvo da informação.
Além disso, a mídia não pode ser somente veículo de informação, como afirma, pois há uma dupla lógica que a
rege: a lógica econômica, que tem como finalidade fabricar um produto definido pelo mercado, e a lógica simbólica, que
participa da construção da opinião pública.
O ato de linguagem é uma aposta em que os participantes elaboram hipóteses um sobre o outro. Assim, em
qualquer artigo de jornal existem efeitos possíveis, porém somente uma parte deles, nem sempre a mesma, será
correspondente às intenções conscientes dos atores do organismo de informação, e uma outra parte corresponderá ao
sentido construído pelo receptor.

1370
Charaudeau (2006) afirma que a informação é pura enunciação, que constrói um saber que depende dos
conhecimentos presentes nele e da situação de enunciação em que está inserido. A informação também depende de sua
natureza, que constitui o valor de verdade presente em um relato.
É importante que não se confunda valor de verdade e efeito de verdade. O primeiro se baseia na evidência e é
realizado por meio de instrumentação científica exterior ao homem. O segundo se baseia na convicção, não existindo fora
de um dispositivo enunciativo.
Na análise do ate de informação é preciso saber distinguir o efeito visado e o efeito produzido. Esses efeitos são
importantes no momento de definir o objetivo da informação e o destinatário dela. Sem esquecer que definir o perfil do leitor
é apenas uma hipótese, pois apesar do jornal delimitar seu alvo por meio de inúmeros quesitos, o público sempre é
heterogêneo e instável.
O ato de informar é composto por três ações: descrever, ou seja, identificar e qualificar fatos, contar, que significa
reportar acontecimentos, e explicar, que é fornecer as causas dos fatos.
Um aspecto que mostra que é difícil ter uma imparcialidade total é o uso de estratégias pelos jornalistas, quando,
por exemplo, cria uma relação de cumplicidade com o leitor ao inscrever na enunciação crenças diversas.
Além disso, o jornalista faz uso de tipos diferentes de informador: o de notoriedade, que confere autoridade com
possíveis intenções manipuladoras; o de testemunha, que tem como objetivo dizer o que viu e ouviu, representando a
verdade; o plural, quando a informação é obtida de várias fontes que pode significar a confirmação da verdade ou o
confronto de opiniões; e o do organismo especializado, que consegue informações de centros institucionais, o que confere
muita credibilidade ao fato.
Por isso, somente o receptor pode julgar o valor de uma informação, o jornalista, emissor da informação, só é
capaz de fazer uma aposta sobre sua validade, mas não sobre seu valor.
O ato de comunicação midiático coloca em relação duas instâncias: a instância de produção e a instância de
recepção. A primeira desenvolve um duplo papel que é fornecer a informação e provocar o desejo de consumi-la. A
segunda instância tem como característica justamente mostrar interesse em consumir essa informação.
Diferentemente de um ato de comunicação simples que envolve somente dois atores, a produção de comunicação
da mídia envolve múltiplos atores por trás de uma enunciação que é aparentemente homogênea.
É preciso levar em conta que em um jornal existes pessoas da direção, que são responsáveis pela a economia da
“empresa”; da programação, responsáveis pelo sucesso na escolha das informações; da redação, que tratam da notícia;
entre muitos outros.
Por esse motivo, existe uma dificuldade grande em saber quem é o responsável pela informação e pela notícia em
si, mesmo quando a matéria é assinada, já que o jornalista não é o único participante da enunciação.
O jornalista possui alguns papéis fundamentais nessa trama, como o de pesquisador-fornecedor e o de descritor-
comentador da informação. Visando a credibilidade, muitas vezes ele se coloca como mero fornecedor dessa informação,
ou até mesmo como mediador entre os acontecimentos e a encenação pública.
Por isso, é preciso ter muito cuidado, pois retirar a informação de seu contexto inicial pode transformá-la em
desinformação, o que acabaria com a credibilidade do profissional.
Ao relatar um acontecimento é impossível desligar desse ato o comentário do redator. Os dois estão
intrinsecamente ligados, pois buscam as motivações dos fatos, dos seres e das coisas sempre comentando o que está
sendo contato, ou contando o que está sendo comentado.

1371
O comentário é importante, pois não se pode informar sem garantir a veracidade das informações. Por isso, o
“fazer saber” está ligado ao “explicar”, o comentário jornalístico junto com a descrição de um acontecimento produz um
“acontecimento comentado”, revelando o que não se vê claramente no relato e problematizando os acontecimentos.
Apesar da mídia afirmar que não toma posição e que é neutra, sabe-se que essa neutralidade total é impossível.
O uso do comentário pelo redator expressa um ponto de vista, mesmo que seja uma apreciação subjetiva. Ele é um meio
termo entre um julgamento pró e um julgamento contra, em uma tentativa de não tomar um partido em definitivo e deixar
que o leitor faça sua própria escolha.
Outro ponto importante ao se trabalhar com a mídia impressa é a questão dos gêneros jornalísticos. Qualquer
gênero de informação possui três desafios: o da visibilidade, que procura atrair atenção imediata para o relato; o de
inteligibilidade, que opera na hierarquização da informação e nas encenações verbal, visual e auditiva para que o relato seja
acessível; e o de espetacularização, que procura atrair interesse e emoção dos leitores.
A reportagem, gênero do corpus escolhido, deve adotar um ponto de vista distanciado e global, mas ao mesmo
tempo um questionamento sobre o relato. Por isso, o jornalista não está em uma posição fácil, já que, como dito
anteriormente, não transparecer seu ponto de vista é impossível, pois toda construção de sentido nasce de um ponto de
vista particular.
Charaudeau (1992, p.825) afirma que o modo de organização argumentativo faz uso da citação para obter um
“efeito de autenticidade”, ela seria como uma fonte da verdade e uma testemunha e funcionaria como um “dispositivo
argumentativo”.
Ainda sobre essa questão, Laroche-Bouvy (1988, p.120) também afirma que as citações são mais usadas na
argumentação pela questão de autenticidade e testemunho. A autora também acredita que a citação permite uma
pontuação mais rica no texto com o uso de exclamações e interrogações, colocando uma personagem diretamente em
cena.
Além disso, Maingueneau (1997, p. 91) acredita que ao colocar as aspas, o jornalista está se protegendo
antecipadamente de uma possível crítica do leitor, já que as aspas constituem um sinal que será decifrado por um
destinatário.
A máquina midiática é muito complexa, com todas as tensões, contradições e estratégias usadas e defendidas por
ela. Como minha pesquisa trata de um ponto específico, o discurso relatado, discorro mais detalhadamente sobre esse
ponto na próxima seção.

1.1) As operações do discurso relatado

A palavra do outro está presente em qualquer enunciação sob diferentes formas, mais ou menos explícita e com
significações diversas. No discurso da mídia impressa, o discurso relatado tem um papel muito importante, dando
credibilidade e veracidade à informação, o que representa uma grande estratégia argumentativa.
O discurso relatado presente em uma matéria jornalística é um ato de enunciação onde um locutor relata o que foi
dito por um outro locutor, dirigindo-se a um interlocutor que é diferente do interlocutor de origem. O locutor e o interlocutor
originais encontram-se em um espaço-tempo diferente do que é relatado, que é representado pelo locutor-relator final.
A fala do outro está dentro de uma nova fala, o que caracteriza a heterogeneidade do discurso, ou seja, existem
índices que mostram que pelo menos parte do que é dito pertence a outro locutor, diferente daquele que fala.

1372
É preciso ficar atendo a linha tênue entre discurso relatado e interdiscursividade. O primeiro é o uso da fala do
outro de diversas formas em um texto, já o segundo é a inserção de fragmentos de discursos uns nos outros, normalmente
de maneira não explicitada.
O discurso relatado é uma dupla operação de reconstrução e desconstrução. A reconstrução acontece, pois o
locutor toma um dito e o reintegra a um novo ato de enunciação. Já a desconstrução ocorre porque o discurso relatado em
si já mostra que se trata de uma fala tirada de outro ato de enunciação, marcando bem a fronteira existe entre as duas
enunciações, essa operação é importante para provar a autenticidade do discurso original.
Além disso, o discurso com a fala do outro é, estrategicamente, um “discurso de prova” em relação aos dois
discursos envolvidos, o original e o que o cita. Diferentes tipos de provas são produzidas: a de autenticidade do dito de
origem (é indiscutível o que foi dito), a de responsabilidade daquele que disse (o único responsável é aquele que disse), e a
de verdade do que foi dito (sustenta e fundamenta os propósitos do locutor-relator).
O uso do discurso relatado representa um certo posicionamento do locutor-relator: posicionamento de autoridade,
pois relatar é mostrar que se sabe algo; posicionamento de poder, pois citar é revelar o que foi dito e que antes era
desconhecido; e posicionamento de engajamento, já que relatar revela a adesão ou não do locutor-relator aos propósitos do
dito de origem.
A descrição do discurso relatado é dividida em três operações: a seleção, a identificação e a maneira de relatar. A
seleção pode ser total, produzindo um efeito de objetivação e apagamento do locutor-relator; ou parcial, produzindo um
efeito de subjetivação, pois apenas uma parte do dito é relatada.
A identificação, que diz respeito aos elementos da enunciação original (locutor, interlocutor, etc.), também pode
ser total ou parcial, e pode até mesmo não existir, garantindo autenticidade do que foi relatado.
A maneira de relatar pode acontecer de quatro maneiras: citando, o dito reproduzido mais ou menos integralmente
e com marcas de autonomia; integrando, reproduz o dito parcialmente, normalmente em terceira pessoa; narrativizando,
quando o dito é integrado totalmente, podendo até a desaparecer, no novo relato; e evocando, quando o dito original
aparece como uma evocação, normalmente é uma palavra ou uma expressão.
Todas essas estratégias e maneiras de usar o discurso relatado na mídia são importantes, pois “o exercício do
poder nas sociedades ocidentais necessita cada vez mais do álibi democrático, o qual se institui graças a um jogo de troca
de palavras que se mascaram, se modificam, se transformam” (CHARAUDEAU, 2006, p. 168).
Além disso, Charaudeau (2006) destaca alguns problemas ligados às operações de seleção, aos modos de
identificação, de reprodução e de citação e aos tipos de posicionamento do discurso relatado na mídia impressa.
As operações de seleção ocorrem em função da identidade do declarante e do valor do que foi dito. Esse valor é
importante na mídia, pois a declaração relatada tem um efeito valorativo, que pode ser classificado em quatro tipos: o efeito
de decisão, de saber, de opinião e de testemunho.
O efeito de decisão ocorre quando a declaração é feita por alguém que tem o poder de decidir, normalmente por
fontes oficiais. É o retrato de uma ação. O efeito de saber é usado quando a declaração é feita por uma autoridade do
saber, locutores especialistas. Normalmente vem em apoio a uma explicação sobre o acontecimento.
O efeito de opinião é usado quando a citação vem de um locutor que expressa julgamento ou apreciação dos
fatos. Esse locutor pode ser alguém conhecido ou anônimo. É uma avaliação do que ocorreu, onde muitas vezes as
declarações podem parecer confissões ou denúncias. O efeito de testemunho ocorre quando a declaração tem o objetivo
de descrever o que o locutor viu, ouviu ou viveu a respeito da informação.
As operações de seleção auxiliam o organismo de informação a produzir diversas imagens que podem ser:
institucional, com efeito de decisão; democrática, com efeito de opinião; ou populista, com efeito de testemunho.

1373
O aspecto modo de indentificação é desenvolvido em três categorias: a denominação, a determinação e a
modalização.
A denominação é responsável por designar o locutor de origem por meio de um nome que mostre seu ponto de
vista, ou sua função, ou uma forma coletiva. Isso acaba provocando um problema, pois não se sabe a quem dar o crédito da
informação, visto que o mesmo é designado de forma vaga, anônima ou coletiva. Para a instância midiática, essa categoria
serve como meio de proteção da fonte, ou então o jornalista não conhece a sua identidade, o que pode causar dúvidas
quanto ao seu dever de informar.
A determinação está ligada à denominação, pois define esta última por meio de um nome, uma marca ou um
possessivo. Isso acaba marcando o tipo de relação que a mídia tem com atores do espaço público, pois o uso de certas
marcas, pronomes ou possessivos revela o modo que a organização midiática olha para as pessoas que citam.
A modalização reflete as crenças do locutor-relator em relação à veracidade dos propósitos do locutor de origem.
Os verbos escolhidos pelo primeiro para descrever o modo da declaração carrega muitas marcas de distanciamento,
interpretação e posicionamento. Nesse caso o verbo utilizado tem maior enfoque do que a determinação ou denominação
do locutor de origem.
Esses modos de identificação usados pela mídia podem provocar diversos tipos de imagem. Ao utilizar a
denominação e a determinação, as imagens mais comuns são as de familiaridade e respeito, enquanto a modalização
mostra a prudência ou não-prudência em relação à informação.
O modo de reprodução está relacionado com a operação de seleção, que pode ser pode ser total (declarações in
extenso) ou parcial, e com a apresentação formal da declaração relatada, ou seja, localização no jornal, destaque
tipográgico, relação com uma fotografia, etc. O modo de reprodução é capaz de produzir vários efeitos de dramatização, até
mesmo alguns que deformam a declaração original, por isso é de grande importância para que o jornal exerça sua
credibilidade.
Existem três tipos de modos de citação: a citação direta, que é mais objetiva; a citação integrada, que desidentifica
o locutor de origem já que a palavra é assimilida pelo locutor-relator de forma que pareça que o discurso é dele e não do
primeiro; e a citação narrativizada, onde o locutor da citação se transforma em agente da informação descrita.
O último problema do dito relatado enumerado por Charaudeau (2006) é o tipo de posicionamento. Esse ponto é
importante, pois sempre que uma citação é usada o locutor-relator transforma o dito de origem, conscientemente ou não.
Além do fato de que tirar o dito do seu contexto também o modifica. Essas transformações podem representar um certo
posicionamento do jornalista. Existem alguns tipos de intervenção que podem revelar esse ponto de vista do locutor-relator,
o maior problema está no fato de que não se tem acesso ao dito original, o que impede que os leitores possam verificar as
modificações.

3) Análise dos dados

Para o presente artigo foram selecionadas vinte reportagens do Le Monde Diplomatique, versão online,
organizados predominantemente de modo argumentativo (CHARAUDEAU, 2008), onde o recuso da citação é usado com
bastante frequência, para persuadir.
A idéia era analisar os textos sob três aspectos das operações do discurso relatado levantadas por
CHARAUDEAU (2008): operações de seleção, os modos de identificação, e os modos de citação. Isso porque acredito que
esses três aspectos marcam bem as características das citações utilizadas pelo jornal.

1374
Para isso, optei por fazer uma análise quantitativa, pois o objetivo era verificar as ocorrências desses três
aspectos supracitados utilizados pelos locutores-relatores.
No total, da vinte reportagens, foram encontradas 203 citações. Em relação às operações de seleção foram
encontradas: 17 citações com efeito de decisão (8%), 110 com efeito de saber (54%), 32 com efeito de opinião (16%) e 44
com efeito de testemunho (22%).
O efeito de decisão, como já explicitado anteriormente, está presente em falas de pessoas que possuem o poder
de decidir, muitas vezes constituindo a própria ação, como em (1) quando os dirigentes de um partido afirmam que estão
prontos para colaborar etc., o que já caracteriza a ação que eles farão:

(1) (...) les deux dirigeants du parti (MM. Pushpa Kamal Dahal (...) ont, de leur côté, tout fait pour rassurer, déclarant
qu’ ils étaient prêts à collaborer avec les autres forces pour l’etablissement de la démocracie (...). (Le Monde
Diplomatique, maio 2008).

O efeito de saber é o mais usado, ele é utilizado quando a declaração vem de uma pessoa que possui o saber
sobre um domínio, como em (2) onde a citação usada é de um sociólogo:

(2) Comme le note le sociologue Chen Yingfang, << si, dans une société, les couches moyennes urbaines, qui
disposent d’une capacité d’action légale et d’une rationalité politique, n´ont pas les moyanes de défendre efficacement
leurs intérêts (...). (Le Monde Diplomatique, julho 2008).

O efeito de opinião é o menos usado. Acontece quando a citação é um julgamento ou uma apreciação, como em
(3) onde a o discurso relatado é a opinião de uma leitora de um jornal:

(3) (...) par ce courrier d’un lecteur du Daily Telegraph (17 janvier 2008) : << Comment peut-on se sentir rassuré par la
présence de caméras ? Tout ce qu’elle veut dire, c’est que quelqu’un pourra vous regarder en train de vous faire
agresser, tabasser, violer ou assassiner >>. (Le Monde Diplomatique, setembro 2008).

A última operação de seleção é o efeito de testemunho, com 44 ocorrências. O exemplo (4) mostra a fala de um
pessoa que vivenciou o que estava sendo retratado na reportagem:

(4) << Ils nous faisaient faire des exercices théoriques plutôt que de passer au concret, comme nos études de
marché>>, résume M. Rocher. (Le Monde Diplomatique, fevereiro 2008).

O segundo aspecto analisado foi os modos de identificação da citação. Foram encontradas: 54 utilizando a
denominação (27%), 107 a determinação (53%) e 42 a modalização (20%).
O recurso da denominação designa o locutor de origem de forma mais vaga, por um cargo, ou um coletivo, como
em (5) que é um exemplo de citação denominando o citante por sua profissão:

1375
(5) << Si je veux monter en grade, il faut que je passe par cette formalité >>, explique un enseignant. (Le Monde
Diplomatique, agosto 2008).

A determinação, recurso mais usado, designa o locutor da citação de forma mais específica, por meio de um
nome, possessivos ou uma marca. O exemplo (6) deixa claro o nome do falante:

(6) M. Vincent Rocher en est revenue: << Neuf fois sur diz, ces organismes ne sont pas compétents, martèle-t-il, ils
tirent leur méthodologie dÍnternet et de livres vendus partout>>. (Le Monde Diplomatique, fevereiro 2008).

A modalização coloca em evidência os verbos escolhidos pelo locutor-relator para introduzir a citação, em (7) o
verbo usado é “defender” que não tem um sentido tão neutro como “dizer”:

(7) M. Manssour se défend : << Avant, les plantes destinées au fourrage étaient cultivées sur place, mais nous avons
déplacé les champs à 200 kilomètres pour ne pas épuiser la nappe phréatique. Nous avons aussi une politique de
recyclage de l’eau >>. (Le Monde Diplomatique, março 2009).

O terceiro, e último, aspecto foram os modos de citação. Na análise foram encontradas: 180 citações diretas
(89%), zero citações integradas e 23 narrativizadas (11%).
A direta é mais objetiva, seria equivalente ao discurso direto, como aparece em (8):

(8) << L’état d’urgence n’existe pas dans la Constituition philippine, analyse M. Reyes. Derrière l’effet d’annonce, ces
déclarations constituent une carte blanche donnée à l’armée pour poursuivre et amplifier sa sale guerre... >>. (Le
Monde Diplomatique, junho 2008).

A citação integrada, não foi encontrada em nenhuma das reportagens. Ela desidentifica o locutor original,
assimilando a fala ao locutor-relator, seria equivalente ao discurso indireto livre.
A citação narrativizada, segunda mais usada, é caracterizada quando o locutor-relator descreve a citação, fazendo
do locutor original um agente, equivalente ao discurso indireto, como no exemplo (9):

(9) En septembre 2003, M. Igor Ivanov, alors ministre des affaires étrangères, affirmait que la guerre d´Irak avait fait
augmenter le nombre d’attentats terroristes sur le territoire de la Russie comme ailleurs dans le monde. (Le Monde
Diplomatique, dezembro 2008).

1376
4) Conclusão

Após a análise pode-se afirmar que a hipótese foi confirmada. Realmente o discurso relatado usado pelo Le
Monde Diplomatique utiliza com mais frequência a operação de seleção com o efeito de saber, o modo de identificação com
o recurso da determinação e o modo de citação direta.
Acredito que isso acontece, pois o jornal em questão se faz valer muitas vezes das palavras de políticos e
especialistas, por ter um perfil de instigador de reflexão. Além disso, o fato de determinar o locutor original tem uma carga
de credibilidade muito maior, do que se o locutor não foi revelado.
Já o caso do modo de citação, só colaborou para confirmar o estudo de Laroche-Bouvy (1988) que afirma que a
imprensa escrita de língua francesa tende a fazer maior uso do discurso direto.

Refêrencia:

ANGELIM, R.C.C.. Polofinia e argumentação no discurso jornalístico opinativo. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. (Doutourado
em Letras Vernáculas)

CHARAUDEAU, P.. Grammaire du sens et de l'expression. Paris: Hachette, 1992.

_______. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

______. Linguagem e discurso : modos de organização. PAULIUKONIS, M.A.L, MACHADO, I.L. (orgs.). São Paulo :
Contexto, 2008.

COMPAGNON, A.. O trabalho da citação. Belo Horizonte : UFMG, 2007.

LAROCHE-BOUVY, D.. Émergence de l’interaction verbale dans la presse écrite: la citation. IN: CHARAUDEAU (org.). La
Presse, produit, production, reception. Paris: Didier érudition, 1988.

MAINGUENEAU, D.. Novas tendências em análise do discruso. Campinas: Pontes, 1997.

Priscila Azevedo Cesar dos Santos, formada em Português-Francês pela UFRJ, mestranda da mesma instituição no
programa de Letras Neolatinas. Experiência com tradução desde a iniciação científica onde trabalhou com os
procedimentos tradutórios. Atualmente, trabalha com o discurso midiático, dando enfoque ao discurso reportado, e sua
tradução.
priscilaccs@gmail.com

1377
A construção discursiva da identidade docente em uma
escola de Viçosa - MG

SERRA NETO, Itamar Zuqueto


(UFPA/UFV)

1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

O presente texto objetiva expor uma reflexão preliminar que propõe a realização de uma pesquisa que buscará
entender, ou tentar entender, alguns aspectos que podem auxiliar na compreensão de uma das pontas da complexa teia
discursiva responsável pelo processo de construção da identidade docente, realizada por uma turma do Projeto de
Aceleração da aprendizagem, dos anos finais do Ensino Fundamental.
Acredito que a compreensão destes aspectos poderá criar, conforme Moita Lopes (2006), inteligibilidades sobre as
crenças discentes a respeito do aprendizado da escrita que podem estar influenciando as práticas de aprendizagem dos
alunos desta turma. Tomo como ponto de partida da apresentação desta proposta a defesa da importância da Análise do
Discurso (doravante AD), feita por Coracini (2003), como ferramenta de interpretação e problematização da realidade que
circunda o trabalho pedagógico. Concordo com a autora quando afirma que a AD se constitui em ferramenta importante no
processo de compreensão dos aspectos que impedem as teorias científicas sobre o ensino e aprendizagem de línguas de
“operarem os milagres esperados”.
Embora seja ainda jovem no Brasil e fora dele, a pesquisa sobre crenças1 e sua influência no processo de ensino
e aprendizagem de línguas tem se mostrado muito fértil e perspicaz para as pesquisas que investigam o ensino de línguas e
a formação de professores, conforme informa Barcelos (2006). Um aspecto, dentre outros apresentados no seu artigo, e
ainda pouco pesquisado, segundo a estudiosa argumenta, e, para o qual as atenções deste trabalho se voltam nas
pesquisas sobre crenças no nosso país são: a relação existente entre “contexto, crenças e ações.”
É exatamente com o foco neste aspecto que intento apresentar uma proposta de realização de reflexão sobre o
processo discursivo de constituição discente da identidade docente, como um elemento importante e integrante das crenças
dos alunos em relação às ações de aprendizagem empreendidas por eles, no que refere à produção de textos, realizada em
seqüências didáticas pensadas nos moldes propostos em Bronckart (1999); Machado (2002); Schneuwly e Dols (2004).
Neste estudo quero apresentar uma proposta para realização do estudo do discurso dos responsáveis pelos
alunos, com foco na busca de compreensão de um aspecto que pode estar influenciando sua constituição: a sua filiação
com discursos negativos sobre a escola pública que circulam na mídia, buscando entender o modo como o discurso dos
responsáveis influencia as crenças dos alunos quanto à escola, escolarização e aprendizagem da escrita, bem como
também o modo como eles constroem, apoiados nelas, a identidade docente durante, a realização das atividades escolares.
Existem trabalhos que focam o discurso do professor e suas práticas em correlação com o contexto em que o
letramento escolar ocorre, com o propósito de entender como as ações das secretarias de educação, dos professores,

1 O conceito de crenças que adoto neste trabalho é o de Barcelos (2006). Este conceito será apresentado no tópico: “Metodologia,
contexto e participantes da proposta de pesquisa”.

1378
técnicos, e demais funcionários da escola influenciam as crenças e ações dos alunos sobre aprender a escrever e
compreender textos. O trabalho de Signorini (2007) sobre letramento e formação de professores contribuiu muito para a
minha compreensão destes aspectos.

1.1. Metodologia, contexto e participantes da proposta de pesquisa

O aspecto referente à construção da identidade docente que este trabalho irá propor que seja discutido nas
pesquisas que serão realizadas com os responsáveis pelos alunos e com eles próprios referir-se-á à contribuição que a AD
pode oferecer ao estudo dos processos envolvidos na construção intersubjetiva do ponto de vista discente sobre o ensino e
aprendizagem da língua materna no que se refere ao modo como este ponto de vista os auxilia na construção de suas
crenças. O aspecto que me interessa na compreensão da construção do ponto de vista discente refere-se à influência que o
discurso de seus responsáveis tem neste processo.
No que diz respeito ao discurso dos responsáveis interessa a este estudo propor, com base nos pressupostos da
AD, um estudo que busque compreender como o discurso dos responsáveis vem sendo influenciado pelo discurso negativo
sobre a escola pública que, veiculado pela mídia, circula no meio social, e como ele influencia as crenças as e as ações dos
alunos em suas práticas escolares.
A asserção defendida neste trabalho é a de que o ponto de vista discente sobre a escola, o professor e o ensino
da escrita, tem sido influenciado pela formação discursiva materializada nestes discursos negativos sobre a escola que
podem estar ecoando no discurso dos responsáveis, influenciando as práticas discentes de aprender a escrever.
Antes de apresentar o contexto e a metodologia que irão orientar a realização da proposta, se faz necessário
apresentar a definição do conceito de crenças ao qual este trabalho se refere. O conceito adotado é o apresentado por de
Barcelos (2006):

“Entendo crenças, de maneira semelhante à Dewey (1933), como uma forma de pensamento, como
construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em
nossas experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e (re)significação. Como
tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais.” (p. 18)

Este trabalho toma como ponto de partida para a proposta de estudo dos discursos dos responsáveis, da sua
constituição e de sua influência nas crenças dos alunos da turma de concluintes do ensino fundamental do Projeto de
Aceleração da Aprendizagem, o pressuposto encontrado em Bakhtin (1997) de que sempre pensamos e nos expressamos
circunscritos numa visão do meio social no qual estamos situados.
Esta visão do meio social conforme, argumenta Bakhtin (1997), é uma construção intersubjetiva. O conceito de
crenças de Barcelos aproxima-se do conceito de dialogismo do autor, no que se refere à constituição social da subjetividade
e da visão individual do mundo. A pesquisa que proponho que seja realizada nasceu de uma reflexão parcial que fiz
baseada na observação das aulas ministradas por uma estagiária de um projeto de extensão do curso de Letras da UFV,
em um curso de leitura e produção de textos para uma turma de aceleração da aprendizagem, sobre os problemas ligados
ao processo de aprendizagem da produção textual destes alunos. Os problemas estão ligados ao desinteresse pelas
atividades escolares por parte dos estudantes.
Em relação ao desinteresse discente pela escola, creio, concordando com as afirmações feitas por Charaudeau
em um curso ministrado por ele na UFMG em maio de 2010, que o ponto de vista dos alunos sobre o contexto social no

1379
qual as práticas escolares ocorrem não lhes informa a necessidade de um maior comprometimento com as atividades de
ensino e aprendizagem propostas pelos professores. O autor se expressou sobre a questão afirmando que um dos maiores
problemas da escola moderna está relacionado com o que ele chamou de “visada da informação”. Para ele a escola não
consegue informar aos alunos, por meio desta visada, uma necessidade de saberem o que ela tem para lhes ensinar.
Este problema pode estar relacionado ao que Rajagopalan (2003) chamou de dificuldade que os estudiosos da
linguagem possuem de dialogar com os leigos, sobre suas concepções de língua e de seu ensino. O autor argumenta que
se faz importante ouvir o que os sujeitos têm a dizer sobre a linguagem. É exatamente neste aspecto, tomar como ponto de
partida o ponto de vista dos sujeitos, construído por eles, nos moldes propostos por Bakhtin (1997), sobre sua realidade,
que é assumido como paradigma pela LA pós-moderna o interpretativismo na realização das pesquisas recentes sobre
ensino e aprendizagem de línguas.
Acredito que a AD pode contribuir para compreender o ponto de vista discente sobre as atividades de
aprendizagem da escrita e da compreensão de textos. Compreender as crenças dos alunos desta turma pode auxiliar no
processo de (re)significação delas, no sentido de propor alternativas mais eficazes para o processo de ensino.
Neste sentido, defendo a necessidade de estudar o discurso dos responsáveis pelos alunos sobre a escola
pública. Mas ainda se poderia perguntar: qual a razão que me levou a propor estudar o discurso dos responsáveis, seu
processo de constituição e sua influência na construção do ponto de vista discente sobre a escola, o ensino e
principalmente sobre o professor e como ele interfere nas crenças e ações dos alunos?

1.2. Defesa da proposta

Existem muitos trabalhos sobre cognição e crenças de professores. Embora seja importante realizarem-se ainda
mais estudos sobre as crenças de professores, Barcelos (2006) nos mostra a necessidade de realizarmos também maiores
estudos sobre as crenças de estudantes. Este trabalho propõe, como já foi informado, um projeto de pesquisa, baseado em
uma reflexão preliminar sobre as atividades de ensino realizadas em uma turma de aceleração, o estudo de uma ponta da
teia discursiva que contribui para a construção discente da identidade docente como um caminho possível para entender o
interesse/desinteresse dos alunos pelas atividades escolares.
Ele consiste em estudar as crenças dos alunos sobre aprender a escrever, por meio do estudo do discurso dos
responsáveis, considerando o modo como ele se filia a uma formação discursiva que se materializa por meio de um
discurso negativo sobre a escola, como um aspecto importante na construção pelos discentes desta turma do seu ponto de
vista sobre sua aprendizagem da escrita.
Este estudo pode nos ajudar a entender o porquê de os alunos, mesmo gostando das aulas orientadas por um
paradigma interacionista, ainda continuarem a perguntar, mesmo de modo não verbal, “quando é que vai começar a aula de
português?” (em uma referência as antigas aulas de gramática normativa). Os professores têm mudado suas práticas em
busca de um ensino de língua materna que privilegia as atividades de compreensão e produção de gêneros orais e escritos
no ensino básico, mas o contexto escolar, isto inclui a influência da família dos alunos em suas crenças, tem se mostrado
ainda pouco favorável ao exercício não alienado do magistério (Signorini, 2007).
O estudo das crenças de professores e alunos tem se mostrado relevante na criação de inteligibilidades sobre o
contexto de ensino-aprendizagem de línguas, bem como sobre os sujeitos que atuam nele. Essas inteligibilidades criadas
com este tipo de estudo oferecem aos participantes possibilidades de reflexão sobre as crenças que se tornam importantes

1380
para a re-significação das mesmas. Este projeto tem foco nas crenças dos alunos, especificamente, no modo como o
discurso dos responsáveis as influencia.
Como o estudo deste aspecto pode auxiliar na compreensão das crenças, e como este aspecto influencia o modo
como ele pode interferir no interesse ou desinteresse discente pelas atividades de ensino e aprendizagem da escrita? São
muitas as possibilidades de busca de uma resposta. Penso que pode ser produtivo para as pesquisas neste campo,
considerarem o ponto de vista dos responsáveis sobre a escola e sobre o ensino. A escola reflete a sociedade. O discurso
da comunidade, assim como o da mídia, o dos professores, coordenadores, secretários de educação e o dos políticos,
sobre a escola e a escolarização contribui para construir a ela e os sujeitos que são atendidos nela.
A respeito deste ponto, gostaria de lembrar as reflexões de Neves (2002), feitas sobre uma conversa entre ela e
um taxista a respeito da escola pública, professores, salários e qualidade de ensino da escolarização pública. Ao relatar no
seu livro esta conversa a autora discutiu as crenças negativas do motorista com relação à escola pública e aos professores.
Pode-se inferir do relato feito pela estudiosa que as crenças negativas do motorista se apóiam em um discurso
negativo que circula no meio social com o auxílio da mídia. Considerando o espaço que a ciência da linguagem tem
ocupado nos veículos de comunicação (Bagno, 2002a), não é difícil entender a dimensão do trabalho do professor de língua
no que concerne a realizar a “inevitável travessia” do ensino da tradição gramatical para a “educação lingüística” (Bagno,
2002b).

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho consistiu em propor e defender a importância da utilização da AD como ferramenta de
acesso e compreensão das crenças dos responsáveis pelos alunos de uma turma de concluintes do ensino fundamental
sobre a escola e a escolarização pública para o planejamento das atividades pedagógicas propostas a ela. Por meio do
estudo do discurso destes, propôs-se a realização de uma análise que busque compreender o modo como ele se filia a
formação discursiva manifesta nos discursos negativos que circulam na mídia sobre a escola pública, bem como a sua
influência no discurso, construção da identidade docente e práticas escolares dos alunos desta turma.
A conclusão parcial, construída nas observações das aulas, sobre a problemática do desinteresse discente,
informa que as representações dos alunos sobre a identidade docente, o processo de ensino de língua materna, e sobre si
mesmos, mediada pelos discursos a que estão expostos fora do espaço escolar, tem contribuído para alimentar crenças
que não lhes informa um querer saber que esteja em consonância com o que a bolsista pode e deseja lhes ensinar.
A asserção defendida neste trabalho é a de que o ponto de vista discente sobre a escola, o professor e o ensino
da escrita, tem sido influenciado de modo indireto pela formação discursiva materializada nos discursos negativos sobre a
escola, que, segundo proponho aqui, pode estar influenciando o discurso dos responsáveis e o dos alunos sobre ela. Será
que a asserção está correta? A pesquisa que será realizada provavelmente responderá a esta questão.

1381
REFERÊNCIAS

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BAGNO, M.; STUBBS, Michael; GAGNÉ, Gilles. Língua materna: letramento variação e ensino. São Paulo: Parábola
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aprendizagem de línguas. In: A.M.F. Barcelos e M. H. Vieira-Abrahão (orgs.). Crenças e ensino de línguas: foco no
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Cavalcanti (orgs.). Lingüística Aplicada: Suas faces e interfaces. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007

1382
A cenografia enunciativa da pantomima Pierrot Sceptique

SERRA, Claudio
(UFRJ)

A relação entre Joris-Karl Huysmans (1848-1907) e o teatro de sua época constrói-se preferencialmente de
rupturas e dissonâncias que de harmonia e parcerias; o escritor não costumava frequentar as salas de espetáculo
parisienses, nem escrever para montagens teatrais. Essa posição conflituosa1 de Huysmans e a circulação no espaço
teatral são explicitadas em sua afirmação introdutória da crítica de arte Le salon officiel de 1884:

Minha raiva pela elite de Paris e minha repulsa pelo “público de estréia” são tais que tenho vontade de
conversar com meu porteiro, de escutar a narração de seus dissabores vulgares e suas alegrias
insossas, bem mais do que ouvir os lugares-comuns dessa multidão que se considera elegante, que
palra sobre uma obra de arte e dilui, em um medíocre molho mal açucarado pelas reflexões
geralmente absurdas das senhoras, as opiniões dos jornais que ela aprova. (HUYSMANS, 1884)2

Enquanto Émile Zola, com quem Huysmans havia estabelecido uma relação de mútua cooperação estética desde
os anos 1870, convergia seus interesses de legitimação no campo de produção literária em direção à dramaturgia,
Huysmans recusava-se mesmo a inserir em seus romances a temática da cena burguesa.

Seus diálogos com Zola tiveram início em 1876, quando Huysmans, conduzido por Henri Céard, começa a
frequentar o apartamento em que Zola reunia jovens escritores para discutir os ideais naturalistas, à rua Saint-Georges,
número 21, atual rue des Apennins, no 17º distrito de Paris (Cf. nota de Pierre Lambert in: HUYSMANS,1953, 12). À época,
Zola publicava, em jornais, romances em forma de folhetim que seriam lançados em volume, posteriormente; havia
construído uma aceitação pouco satisfatória perante os críticos, editores e leitores pertencentes ao centro do poder
econômico no espaço social parisiense.
O jovem grupo formado por Joris-Karl Huysmans, Paul Alexis, Henri Céard, Léon Hennique e Guy de Maupassant,
encontra no editor Charpentier um aliado na ampliação do território de publicações naturalistas. A urgência de ocupação do
campo3 é patente nas correspondências de Huysmans trocadas com seus companheiros de métier. A Théodore Hannon
(escritor, pintor e crítico de arte belga, fundador da revista L’Artiste, de Bruxelas), por exemplo, ele escreve: “[...] os grandes
jornais e as revistas que se consideram sérias nos fecham suas portas com uma admirável cumplicidade, repreendendo-nos
de escrever um francês ininteligível [...]” (HUYSMANS, 1985, 38).

1 De acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu, a análise das obras culturais tem por objeto a correspondência entre a estrutura da obra e

as estruturas do campo literário, cujos agentes estão em constante luta a fim de conservar tal estrutura, ou de subvertê-la. Nessa
dinâmica de luta encontra-se a estratégia de um agente, intitulada tomada de posição, que se estabelece de acordo com a posição que o
agente ocupa naquele estado do campo. O conceito de posição está, portanto, relacionado com a distribuição do capital simbólico, que
pode legitimar um agente mediante os outros, e do espaço de posições estéticas possíveis. (Cf. BOURDIEU, 1994, 70).
2 Originalmente publicado na Revue indépendante (1884). Todas as traduções no presente artigo são de minha autoria.
3 Utilizo essa expressão de acordo com o conjunto de termos que se interligam dentro do conceito de campo, de Pierre Bourdieu. A

ocupação do campo de produção literária por um grupo de jovens escritores, tal qual os companheiros de Huysmans nesse contexto, diz
respeito às oposições e lutas que se estabelecem entre os diferentes agentes que habitam o campo. Ou seja, o grupo ao qual me refiro
tem a intenção de reverter o estado desse campo, onde eles se encontram periféricos, através da conquista de capitais simbólicos que os
legitime nesse sistema de lutas (Cf. BOURDIEU, 1998, 381).

1383
Para Zola, não se tratava apenas de reverter o quadro de críticas a seus romances, mas de conquistar a fatia do
campo de produção literária que mais multiplicava os capitais econômico e simbólico, qual seja, o teatro.4 Na primeira
versão de seu manifesto O Naturalismo no teatro, Zola é categórico:

Não se pode esquecer o poder maravilhoso do teatro, seu efeito imediato sobre os espectadores. Não
existe melhor instrumento de propaganda. Portanto, se o romance é lido perto da lareira, várias vezes,
com uma paciência que tolera os mais longos detalhes, o dramaturgo deverá convencer-se,
sobretudo, que não tem nada a tratar com esse leitor isolado, mas com uma multidão que precisa de
clareza e concisão. (ZOLA in NOËL & STOULLIG, 1878, XLVIII)

Ainda que não compartilhe com o mestre de Médan essa tomada de posição em vista do teatro e apesar de toda a
sua repulsa pela sociedade do espetáculo, Huysmans dedicou algumas linhas às manifestações cênicas populares, tais
como o teatro de variedades e de feira. No que pode ser considerado como a primeira fase de sua escrita - desde sua
primeira publicação, a coletânea de poemas em prosa Le Drageoir aux épices (1874), passando pelos romances Marthe,
histoire d’une fille (1876) e Les Soeurs Vatard (1879) e os poemas em prosa pertencentes aos Croquis Parisiens (1881) -,
Huysmans reserva alguns trechos descritivos à arquitetura, à circulação de público e à prática cênica nos estabelecimentos
nos arredores do jardim do Luxemburgo e de Montparnasse, bem como nas famosas Folies-Bergère.

Entretanto, no final desse primeiro momento em que Huysmans assume posições num determinado estado do
campo, no qual experimenta uma aproximação com o grupo de escritores próximos de Zola e toma partido da estética
naturalista, Huysmans escreve, junto com Léon Hennique, um texto dramatúrgico intitulado Pierrot Sceptique (1881). O
sobressalto que se possa ter com a escrita dessa peça por um autor que expressava publicamente seu desprezo pela arte
teatral desfaz-se ao reconhecermos tal literatura dramática como uma pantomima. Ora, esse gênero cênico é caracterizado
pelo gesto em detrimento da fala, trata-se de um teatro que muito pouco tem de literatura, concentrando-se nas técnicas
corporais do mímico e na prática com o público.

A pantomima de Huysmans ocorre em um único ato dividido em treze cenas. A trama pode ser resumida da
seguinte maneira: A mulher de Pierrô está morta e um alfaiate prepara um terno para o viúvo. Pierrô, ao invés de pagar-lhe
pelo serviço, prende o alfaiate no armário. Apesar de ser calvo, Pierrô vai o cabeleireiro e, após ter sua cabeça “engraxada”
com uma pomada negra (devido a seu luto), agride também o cabeleireiro. No cortejo fúnebre, o viúvo ri às gargalhadas e
expulsa os convidados, para ir beber no cabaré, de onde sai bêbado e com o nariz vermelho de palhaço. Na vitrine do
cabeleireiro encontra uma mocinha com quem, já em sua casa, negocia sexo em troca de comida. Após várias agressões,
Pierrô coloca fogo em sua cama, já que a mocinha não cede a seus caprichos masculinos, e foge com uma mulher de
papelão que avista no armarinho em frente.

Apesar de ser o único exemplo de literatura dramática atribuído a Huysmans, não foi a primeira vez que o tema do
personagem Pierrô constou nos escritos huysmansianos. O poema em prosa Les Folies-Bergère en 1879, que integra os
Croquis Parisiens, foi escrito após uma visita a esse estabelecimento teatral. Huysmans foi acompanhado de Léon
Hennique, a quem dedicou um dos sub-capítulos do poema. Na ocasião desse passeio pelo teatro de variedades, os dois

4 Nesse campo de lutas, que funciona como um mercado de bens simbólicos, a distribuição de capitais é o ponto de partida para o
reconhecimento das posições dos agentes no campo. Os capitais seriam, basicamente, de quatro tipos: capital econômico (representado,
logicamente, pelo dinheiro), capital cultural (a herança cultural, ou a cultura adquirida na formação acadêmica), capital social (as redes e
políticas sociais que geram alianças), capital simbólico (o prestígio, o respeito) (Cf. BOURDIEU, 1990, 154).

1384
jovens escritores assistiram aos números dos célebres mímicos ingleses Hanlon-Lees, descritos no poema sobre as Folies-
Bergère.

Muitas são as semelhanças entre a descrição do número de pantomima no poema em prosa e a peça Pierrot
Sceptique: em ambos os espetáculos Pierrô está vestido de luto, nas Folies-Bergère, a cena começa no cemitério e, na
peça, com o caixão da senhora Pierrô. A agressividade do corpo que luta também está presente nos dois casos; no poema,
dois Pierrôs disputam um duelo até a morte, enquanto na pantomima de Huysmans e Hennique o protagonista agride
fisicamente todos aqueles que se aproximam dele. Tais semelhanças pressupõem uma utilização do espetáculo inglês visto
na sala das Folies sobre a escrita huysmansiana, para a constituição da peça.

O enunciador de Les Folies-Bergère en 1879 assume uma postura de entusiasmo diante do número de
pantomima, diferenciando-o do terreno teatral quotidiano que, segundo seu olhar, é vulgar:

A impressão produzida pela entrada desses homens é glacial e grandiosa. A comicidade vinda da
oposição desses corpos negros e desses rostos de gesso desaparece; a sórdida quimera do teatro
não existe mais. A vida somente se põe de pé diante de nós, sufocante e espetacular. (HUYSMANS,
1994, 31)

Pode-se afirmar que Huysmans tenha escrito Pierrot Sceptique após o entusiasmo de uma apresentação no
ambiente festivo de uma sala de espetáculos que se dedicava às variedades. No entanto, seria insuficiente considerar que
apenas a satisfação diante de uma peça levasse um escritor que cultivava tamanho desprezo pela sociedade dos
espetáculos a produzir um texto sem falas.

Em primeiro lugar, um texto escrito para não ser ouvido confronta-se com um terreno teatral em que o centro do
poder econômico e simbólico encontra-se, respectivamente, no teatro burguês e na tradição dos clássicos franceses, ambos
baseados na literatura dramática. Em segundo lugar, Huysmans é reconhecido por pesquisadores de literatura francesa
como um escritor extremamente preocupado com o léxico francês, que levanta sua arquitetura textual combinando
expressões populares e o francês precioso, tal qual era o costume entre os escritores ditos naturalistas.

Huysmans está, indubitavelmente, relacionado ao conjunto de escritos que formam a literatura naturalista da
Terceira República. De acordo com Pierre Jourde: “Quando escreve Pierrot sceptique ele ainda é naturalista [...] O mímico
concentra a atenção no corpo das coisas e dos seres, em sua materialidade. É nesse sentido, igualmente, que a pantomima
é naturalista” (JOURDE in VIRCONDELET, 1995, 54). De fato, conforme o desenvolvimento das rubricas ao longo da peça
de Huysmans e Hennique, os objetos multiplicam-se, bem como as descrições dos corpos.

Por um lado, os objetos mostrados em cena (como moedas, uma fatura de mil francos, uma seringa, tesoura,
pente, garrafa, etc.) são preenchidos de função como se fossem corpos em cena. Por outro, os corpos dos personagens
são descritos como objetos. Por exemplo, a seringa da defunta senhora Pierrô transforma-se em metralhadora na mão do
protagonista, que atira o líquido interior nos convidados do enterro. Por sua vez, o cabeleireiro engraxa a cabeça de Pierrô
como se fossem botas. Há, ainda, o personagem da Sidônia, um autômato que ganha vida e passa a agir como ser
humano. Existe uma dissolução dos limites entre o corpo humano e o objeto em cena em que um assume a função do
outro.

1385
Na versão definitiva de O Naturalismo no teatro (1881), do mesmo ano de Pierrot Sceptique, Émile Zola dedica um
de seus sub-capítulos à pantomima dos Hanlon-Lees, fazendo-lhes muitos elogios como: “[...] esses mímicos maravilhosos
[...]”e “[...] eles têm a finesse e a força [...]” (ZOLA, 1881, 327 e 333). Zola, ao discorrer a respeito dos números da trupe de
mímicos, legitima a peça de Huysmans e Hennique dentro da cena genérica naturalista. As descrições feitas por Zola das
cenas dos Hanlon-Lees aproximam-se muito da ação descrita em Pierrot Sceptique, reservando-lhe, assim, um lugar entre
os escritos naturalistas.

Georges Charpentier, conhecido como o editor dos naturalistas, publica, entre 1875 e 1912, os Anais do
Teatro e da Música - crítica anual das peças de todas as casas de espetáculos parisienses. Na edição de 1878 (mesma
edição na qual Zola publica, como um prefácio, sua primeira versão de O Naturalismo no teatro), os autores Edouard Noël e
Edmond Stoulig escrevem a propósito de uma pantomima que estava em cartaz na sala das Folies-Marigny:

Essa alegre farsa [...] manteve Paul Legrand, que retomou o duplo papel de Pierrô e de Pierrette, nos
quais, apesar de sua idade, ele é inimitável. Não há, em nossa opinião, comparação a estabelecer
entre o talento tão fino, tão espirituoso e tão variado dos Debureau e dos Paul Legrand e a loucura
epilética dos Hanlon-Lees das Folies-Bergère e outras pantomimas inglesas do Alhmabra de Londres.
Tanto esses nos parecem monótonos e irritantes em suas contínuas saraivadas de tapas e de chutes,
quanto aqueles eram alegres, divertidos e verdadeiramente cômicos. A pantomima francesa é repleta
de sal e graça; aquela dos ginastas ingleses é fria e, apesar de sua turbulência, frequentemente triste e
insignificante. (NOËL & STOULLIG, 1878, 528-529).

Os autores dos Anais do Teatro e da Música, ao descreverem o número da pantomima francesa que havia sido
inserido no vaudeville intitulado En classe, mesdemoiselles!, confrontam-no, sob um olhar severamente crítico, com a
pantomima dos Hanlon-Lees, em voga, à época, em Paris. Por se tratar de listagem oficial do teatro francês, os Anais do
Teatro e da Música possuem um índice em que a hierarquia de prestígio perante a crítica e o público está explícita. No alto
da lista, encontram-se a Opéra-Palais Garnier e a Comédie-Française, seguidas dos teatros nacionais, ou seja, aqueles que
recebem subvenções do governo. Trata-se, portanto, de uma crítica teatral cuja posição naquele estado do campo se
encontra centralizada, em contraponto aos espetáculos populares, aos quais Huysmans dedica algumas linhas em seus
romances e poemas em prosa.

O lugar que o grupo comandado por Zola ocupa em vista do terreno teatral, nessa configuração, parece
construído não apenas de oposições ao teatro burguês, mas de negociações. Ora, a posição que os Anais do teatro e da
Música assumem está inteiramente consonante com o palco tradicional e burguês. No entanto, essa publicação compartilha
o mesmo editor dos naturalistas, que buscam um teatro de oposição àquele produzido por e para a burguesia parisiense.
Na verdade, a pantomima está inserida no manifesto de Zola mais como parte de um histórico do teatro francês do que
como objeto da luta por mudanças do campo. Esse almejado lugar, no texto zoliano, é ocupado pelo teatro naturalista, de
caráter tão textual quanto o teatro tradicional francês.

A cenografia enunciativa5 de Pierrot Sceptique parece estabelecer um posicionamento6 que prefere impor-se
através de uma cena genérica (caracterizada pela pantomima) muito reconhecida no ambiente de espetáculos populares,

5 Dominique Maingueneau considera, para fins de organização metodológica, que a cena de enunciação é subdividida em cena
englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante trata do tipo de discurso – no caso de Huysmans, o literário –; a cena
genérica trata do gênero escolhido – aqui, o gênero dramático da pantomima. A cenografia é o veículo, ou a maneira pela qual o leitor
recebe o ato da enunciação; ela chega ao leitor antes mesmo das cenas englobante e genérica. Na cenografia encontram-se a topografia,
a cronografia e os estatutos de enunciador e co-enunciador. Ela faz parte da obra literária e, também, a valida, torna-se seu resultado. Ela

1386
mas inexistente no terreno teatral detentor do poder. Além disso, a escolha de um protagonista que, através da ação do
roteiro, denuncia uma impossibilidade de comunicação no espaço social, remete o leitor a uma equivalência entre o
isolamento em que se coloca Huysmans perante as forças que agem no terreno de produção de literatura dramática e o
caráter paratópico7 dos personagens de Pierrot Sceptique.

Os personagens que compõem a trama são todos tipos dos meios populares, como o coveiro, o engraxate, uma
velha bêbada, etc. Em contraponto com eles, há personagens burgueses que participam menos da trama. O protagonista é
essencialmente um marginal: Pierrô abandona o cadáver da esposa para beber, luta com todos os demais personagens,
tenta estuprar a boneca que vira pessoa e é misógino. É a negação, o negativo, o não. Em tudo Pierrô está relacionado ao
avesso: seu luto no figurino e na pintura do crânio, suas atitudes mefistofélicas que são enfatizadas pela rubrica “Um
silêncio – a orquestra toca a Área das jóias de Fausto” (HUYSMANS, 1972, 114) remetem à sedução de Mefisto sobre
Margarida, a amada de Fausto, para corrompê-la com jóias. O caráter não-humano ou material, que é próprio dos mímicos,
traz algo de autômato para todos que estão em cena, como se fossem marionetes, matéria, cadáveres.

Pierrô, na última cena, ao fugir com uma mulher de papelão, assume uma postura de afastamento definitivo de
qualquer relação social e, através do caráter paratópico de um protagonista que abandona a convivência social, o autor
parece querer expressar sua própria paratopia no campo de produção de literatura dramática, ou seja, reafirma o que para
ele é a literatura dramática e o que não é.

A topografia da pantomima de Huysmans e Hennique se constrói em vários estágios. Em primeiro lugar, um


cenário em meia-lua onde vários ambientes se justapõem: um armarinho, um cabeleireiro, uma igreja, um cabaré e a casa
de Pierrô: um palco que descreve plasticamente os bairros pobres dos arredores parisienses do século XIX. Em segundo, a
sala das Folies-Bergère, para a qual, provavelmente, os escritores pensaram a peça. Trata-se de um ambiente dedicado ao
teatro de variedades, um espetáculo barulhento e festivo. Em terceiro, a localização dessa sala de espetáculos na
topografia parisiense supõe um público específico. O estabelecimento encontra-se no 9º distrito de Paris e, apesar da
frequência de público contar com burgueses (homens, naturalmente), não possuía a circulação mais “nobre” da vida teatral
parisiense, já que a prostituição estava, ali, profundamente arraigada.

Quanto à cronografia, tratando-se de uma trama absurda, de atmosfera onírica e fantástica, não há uma
correspondência direta com contexto social em que foi escrita, pode-se dizer que é atemporal. O que existe é o tempo
cênico e este não estabelece uma medida intimista que supõe passagens de tempo que não se vêem, ou seja, a trama
desenvolve-se no momento presente, ao mesmo tempo em que a platéia assiste à peça: não há rubricas avisando “passou-
se um dia” ou “algumas horas mais tarde”.

traz à cena de enunciação não somente a escrita (em oposição à oralidade), mas também a filiação a outras enunciações. Ela, por fim,
constrói-se nos processos de escrita e de leitura. (Cf. MAINGUENEAU, 2006, 251)
6 O posicionamento enunciativo, proposto por D. Maingueneau, se diferencia dos conceitos posição e tomada de posição, de P. Bourdieu;

ramifica-se em algumas particularidades, como a vocação enunciativa, os ritos genéticos, o investimento genérico. Para posicionar-se
dentro do campo, um escritor leva em consideração “a autoridade que tem condições de adquirir, dadas suas conquistas e a trajetória que
concebe a partir delas num dado estado do campo”; assim como sua conduta social, que percorre domínios “de elaboração (leituras,
discussões...), de redação, de pré-difusão, de publicação”; e, também, em que gênero um escritor investe e com que outros textos ele
está dialogando. (MAINGUENEAU, 2006, 152 e 155).
7 A paratopia, grosso modo, exprime o não pertencimento a um lugar estável. Na literatura, pode ser observada através da negociação de

seu próprio lugar e seu não-lugar. No caso de uma obra, ou seja, uma criação, Dominique Maingueneau fala de uma “paratopia criadora”
em que a “enunciação se constitui através da própria impossibilidade de atribuir a si um verdadeiro lugar, que alimenta sua criação do
caráter radicalmente problemático de seu próprio pertencimento ao campo literário e à sociedade”. (Cf. MAINGUENEAU, 2006, 108).

1387
No que concerne às rubricas, o enunciador que ali se expressa apropria-se de um caráter irônico em relação às
regras socialmente aceitáveis. Por exemplo, ao descrever o cenário da floricultura é dito: “A loja do florista exibe todos os
ridículos emblemas das dores humanas: guirlandas de sempre-vivas, coroas de pérolas com mãos de gesso enlaçadas no
centro [...]”(HUYSMANS, 1972, 99). Mais adiante, quando o personagem título recusa os cumprimentos de pêsames, o
enunciador profere a seguinte observação: “Ele não precisa das simpatias dolorosas de ninguém. Se sua mulher cometeu a
besteira de morrer, ele não é em nada responsável por isso” (HUYSMANS, 1972, 106). Na cena final, ao atear fogo em sua
própria casa e queimar a Sidônia, a eloquência da rubrica aumenta, manifestando a satisfação do enunciador diante da
destruição do espaço social ali construído:

Nesse momento, a sirene começa a soar, aumenta, troa. Bombeiros; uma multidão chega de toda
parte. Enquanto os bombeiros bombearão, enquanto os burgueses farão uma cadeia humana, as
mulheres gritarão de aflição, enquanto os rumores crescerão misturados ao barulho forte da sirene,
Pierrô, o cético Pierrô, na praça, atira-se no armarinho e vitoriosamente sai segurando em seus braços
a mulher de papelão, Teresa! E, beijando-a perdidamente, foge com ela para longe da catástrofe.
(HUYSMANS, 1972, 127)

É possível reconhecer na cenografia enunciativa edificada na pantomima Pierrot Sceptique uma apresentação do
tema, do espaço e dos personagens que denota um posicionamento indo de encontro às forças dominantes que agem no
campo literário, tal qual ele se mostra em 1881. Afinal, o teatro de bulevar, a opereta e o drama burguês sustentam a
economia teatral e Huysmans não compartilha desse capital econômico encontrado em salas tradicionais como a Comédie-
Française, o Odéon e a Opéra-Comique.

Por outro lado, apesar de, ainda nesse momento, o autor de Pierrot Sceptique colaborar com os princípios do
grupo naturalista, bem como usufruir da conquista territorial que tal grupo estabelece no campo, Huysmans vai, pouco a
pouco se distanciando das intenções naturalistas no que diz respeito ao teatro. A partir dos anos 1880, aumentam os
esforços por parte dos naturalistas a fim de estabelecer um outro teatro que se contrapõe ao burguês. Trata-se do
nascimento do teatro naturalista que apresentará um novo momento na história dos espetáculos, com o advento da figura
do encenador. A partir desse período, Joris-Karl Huysmans não estará mais engajado na luta de Zola, que almeja o capital
simbólico, ou seja, o prestígio da legitimação como autor teatral.

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http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb32860109n/date.r=salon+1884+Huysmans.langPT

____. Lettres Inédites à Émile Zola. Genève/Lille : Droz, Giard, 1953.

____. Pierrot Sceptique. In :____. Oeuvres Complètes de J.-K. Huysmans. Vol. IV. Genève: Slatkine, 1972, p. 98-133.

____. Lettres à Théodore Hannon. Saint-Cyr-sur-Loire: Christian Pérot, 1985.

1388
____. Les Folies-Bergère en 1879. In : ____. Croquis Parisiens. Paris : Bibliothèque des Arts, 1994.

JOURDE, Pierre. Huysmans et le mime anglais. In : VIRCONDELET, Alain (dir.) Huysmans, entre grâce et péché. Paris :
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NOËL, Edouard & STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique (T4). Paris : Carpentier, 1878.

ZOLA, Émile. Le Naturalisme au théâtre. In : NOËL, Edouard e STOULLIG, Edmond. Annales du théâtre et de la musique
(T4). Paris : Carpentier, 1878. http://gallica2.bnf.fr/ark:/12148/cb32694497t/date (consultado em 12/05/2010).

______. Le Naturalisme au théâtre, les théories et les exemples. Paris : Charpentier, 1881.
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k56259279 (consultado em 06/09/2010).

1389
Uma investigação enunciativa acerca de aspectos
racializantes em telenovelas brasileiras

SILVA, Adriana dos Reis


(Puc-Minas/UEMG)

1. INTRODUÇÃO

O foco deste estudo recai sob os aspectos racializantes presentes nas telenovelas O Profeta e Duas Caras,
veiculadas pela Rede Globo de Televisão. Contemplando a telenovela como um lugar social de construção de linguagem,
esta pesquisa se orienta através de uma possibilidade discursiva, apoiando-se na categoria analítica de jogo enunciativo,
conforme Bakhtin (1997), Benveniste (1989) e Charaudeau (2001).
Para realizar este estudo, efetuaram-se recortes em determinados episódios dessas novelas, enfocando os
personagens negros inscritos nas narrativas. Assim, a partir da escolha das cenas das referidas tramas, juntamente com a
transcrição dos registros discursivos, construiu-se uma pesquisa apresentando a noção de jogo enunciativo, cuja relação
interlocutiva entre os representantes ficcionais da etnia africana e os sujeitos brancos se estabelece sob os múltiplos
sujeitos que atravessam este discurso, assim como, através da intervenção das vozes externas dos sujeitos enunciativos
(autor/telespectador), que nesse processo interacional consegue mostrar a diversidade das narrativas em questão,
possibilitando logo, o conflito interétnico garantido pela ficcionalidade discursiva dessas telenovelas.
Assim, por essa perspectiva enunciativa, acreditamos ser possível obter informações relevantes acerca da
questão do racismo inscrito nas tramas das novelas O Profeta e Duas Caras.

2. APRESENTAÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

A novela O Profeta, baseada no original de Ivani Ribeiro de 1977, foi produzida pela Rede Globo de Televisão no
período de outubro de 2006 a maio de 2007, em 178 capítulos. A trama se inicia na década 1940. O enredo gira em torno
de um grande amor – o de Marcos e Sônia. Todavia, encontraremos também muita intriga, mistério, afinal, trata-se de um
protagonista com um dom especial: o de prever o futuro.
Para esse estudo, enfatizamos uma cena em que se destaca o segmento negro dessa telenovela, composto por
Dedé (personagem negra e empregada da casa de Piragibe) e sua filha Natália (uma mulata).
A novela Duas Caras, também veiculada pela Rede Globo de Televisão, exibiu 210 capítulos entre o período de
outubro de 2007 a maio de 2008, e foi escrita por Aguinaldo Silva, com o auxílio de outros colaboradores. Trata-se de uma
trama em torno da relação de amor e ódio entre os personagens Adalberto Rangel e Maria Paula.
Utilizamos o mesmo procedimento de “O Profeta” nessa trama: focamos uma determinada cena cujo destaque é
dado para o personagem negro conhecido como Evilásio Caó, um negro morador da Favela, que namora uma jovem
branca, rica, pertencente da elite carioca.

1390
É interessante salientar que para cada uma das cenas selecionadas neste trabalho atribuímos uma designação
temática de acordo com o contexto narrativo no qual esta se inscreve. Assim, as cenas a serem analisadas são
denominadas como: A triste descoberta, da telenovela O Profeta e Em busca do passado, da telenovela Duas Caras.

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: O JOGO ENUNCIATIVO

De maneira geral, para compor a concepção de jogo enunciativo, vamos considerar a possibilidade dialogal
existente entre os postulados de Bakhtin (1997), Benveniste (1989) e Charaudeau (2001).
Bakhtin (1997) considera que um dado contexto e o meio social extenso engendram, pelo que é próprio de sua
essência, a estrutura da enunciação. Para o autor, as relações sociais são determinantes para a realização concreta da
enunciação. E esta, enquanto tal, é resultado do processo da interação social, “quer se trate de um ato de fala determinado
pela situação imediata ou pelo contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma determinada
comunidade lingüística”. (BAKHTIN, 1997, p. 121).
Segundo Benveniste (1989), o aparelho formal da enunciação consiste em mecanismos que possibilitam ao falante
apropriar-se da língua para transformá-la em discurso, sendo a enunciação, pois, este “colocar em funcionamento a língua
por um ato individual de utilização”. (BENVENISTE, 1989, p. 82) O locutor, ao designar-se como EU, instaura um TU, isto é,
um alocutário, estabelecendo, assim, a intersubjetividade. Essa relação é denominada pelo autor por índice de pessoa (eu-
tu), tendo ainda os índices de ostensão (este, aqui, agora, etc.), que assinalam as ocorrências discursivas no espaço e no
tempo, em relação ao ponto de referência constituído pelo sujeito da enunciação.
Já a comunicação, segundo a teoria semiolinguística, definiu-se a partir da relação contratual entre sujeitos do
discurso. Relação que é estabelecida, assim como restringida, em função dos componentes: comunicacional - quadro físico
da situação interacional; psicossocial - estatuto sócio-institucionais dos interlocutores e o intencional - expectativas
recíprocas estabelecidas entre os interlocutores em função das estratégias planejadas1.
O parceiro denominado por EUc, conserva em seu poder a iniciativa do processo interpretativo que se constitui
pelos componentes citados acima. Esse sujeito visa um nível intencional – lugar da realização das hipóteses do
conhecimento acerca do outro, o TUi (CHARAUDEAU 2001, p. 31).
A iniciativa do processo de interpretação, segundo o autor, é dada pelo parceiro TUi – sujeito interpretante, que
constrói o ato interpretativo de maneira “muda” ou que se exprime através de uma interação seja qual for, em função dos
componentes referidos; além das conjecturas de “saber que ele é levado a elaborar sobre o sujeito comunicante EUc – e
através da percepção do ritual linguageiro”.
A partir dessa exposição teórica, nos parece que:

[...] a teoria Semiolingüística assume uma perspectiva antropofágica, [...] alimentando-se de


categorias oriundas de diferentes campos de conhecimento – daí o seu caráter interdisciplinar -, as
quais são transformadas e migradas para um modelo estritamente linguageiro. (MENDES, 2001, p.
317)

1 Em aula ministrada à disciplina de Análise do Discurso do programa de Pós-Graduação em Letras da PUC - Minas (27/02/07), o

professor Paulo Mendes afirma que a formulação dos componentes da relação contratual foi “revista e relativamente reformulada ao longo
do desenvolvimento do modelo proposto pelo autor”. (Informação verbal)

1391
Nesse sentido, pela práxis aplicativa que a Semiolinguística nos oferece através de seus dispositivos, é que
conduziremos nossas análises.

4. ANÁLISES E DISCUSSÕES

Ao situar os parceiros da troca comunicacional presentes numa trama telenovelística nos moldes do quadro
enunciativo proposto por Charaudeau (2001), encontraremos:

Circuito externo - Fazer


Mundo psicossócio-cultural

Circuito interno - Dizer

EUc EUe TUd ↔ TUi


↓ ↓ ↓ ↓
Autor Pers. Pers.
Telespectador
Mundo das palavras

Roteirista/
Câmara/
Ator/etc.
Relação contratual

Quadro 1: Contrato comunicacional adaptado

Observa-se, a partir da noção Semiolinguística, que o sujeito comunicante – EUc – de uma novela e de outra é
representado pelo autor, um ser histórico, que cria sua prática comunicativa, isto é, a trama telenovelística. Esse EUc
projeta um parceiro – TUi, o sujeito social, ou seja, o telespectador que irá estabelecer, com o primeiro, a interlocução.
Assim, o EUc constrói sua trama – a história a ser exibida cotidianamente em todo o Brasil, sob certas estratégias,
tais como o componente comunicacional, lugar que determina as maneiras da comunicação (falar, escrever, atuar, etc.) – e
projeta-a em função de um TUi. O componente psicossocial – os sujeitos comunicantes, nesse caso os autores, possuem o
estatuto de escritores, eles escrevem de acordo com certos parâmetros estabelecidos pelo gênero telenovela, e também
segundo a aceitação da trama pelo público, isto é, pela sociedade brasileira. E o intencional – o EUc, nessa instância,
intenciona estabelecer uma interpretação com o TUi, e para isso, utiliza-se de saberes partilhados de uma dada
comunidade, que aqui se apresenta pelos conhecimentos socioculturais dos brasileiros.
Todavia, percebe-se uma assimetria na relação do EUc com seu parceiro, o TUi. Nesse sentido, Charaudeau
(2001) aponta que não há como captar o processo de interpretação entre os parceiros comunicantes, senão “através do
texto da interação (e tal captação, por mais interessante que seja, só pode ser parcial), seja de forma psico-experimental,
isto é, testando-se os sujeitos interpretantes [...]” (CHARAUDEAU, 2001, p. 32).
Este nível do “fazer” projeta uma inter-relação com o circuito do “dizer”, ou seja, o EUc idealiza o sujeito
enunciador EUe. Esta passagem de um para o outro pode ser determinada, como mostrado acima, pela equipe de

1392
produção da telenovela, como o roteirista, os câmeras, os atores, etc. São eles, enfim, que farão a ponte entre o sujeito
comunicante e o destinatário instaurado no circuito interno da comunicação.
Neste nível do “dizer” projetam-se o EUe e o TUd, os quais denominamos seres ficcionais, pois é nesse circuito
que se encontram os personagens negros, detentores de nossa atenção.
Mas existe, ainda, a possibilidade enunciativa “personagem-telespectador”, a qual se pode observar pela seta
(↔) mostrada no quadro enunciativo. Neste circuito do “dizer” percebe-se a projeção do TUi, ou seja, uma relação
interpretativa entre personagens e o telespectador.
Segundo Mari, no discurso ficcional deve-se observar a simetria entre os sujeitos da relação contratual, mesmo
que seja para apontar que esta pode ser atropelada em algumas instâncias. Sob essa ótica, existe primeiramente uma
expectativa em relação às personagens projetadas pelo nível do “dizer”, ocorrendo, então, uma passagem gradual de
personagem para ator, de ator para diretor/roteirista/autor, e assim consecutivamente. Ainda, iremos nos deparar com os
códigos de ações e cores que demonstram a relação contratual com o telespectador, tomadas de cena, a questão da
câmera (relação com tempo), etc. Sendo assim, toda essa complexidade leva a crer que o procedimento mais adequado a
se adotar é o desdobramento dos quadros, trazendo à tona os vários contratos existentes.
Como se pode notar, o gênero novela assume um EUc que projeta os personagens EUe e TUd, sujeitos de uma
enunciação existente no nível discursivo, isto é, um projeto de fala do autor, diretor, roteirista, equipe de produção, ator, etc.,
que produz, discursiva e textualmente, um universo ficcional onde os personagens dialogam. Logo, cada sujeito de ficção
inscrito numa determinada trama intercambia os papéis entre EUe e TUd, existindo ainda um TUi, que é o telespectador
empírico das novelas O Profeta e Duas Caras, ou a instância interpretante. Este sujeito interpretante se difere entre uma
novela e outra. Em O Profeta, o TUi possível de assistir à trama se projeta pelos jovens, crianças, donas de casa, etc, que
se configura como o público alvo da novela das dezoito horas. O público de Duas Caras, isto é, o TUi, geralmente é
representado por uma classe brasileira mais “politizada”, que supostamente estaria aberta aos debates que a trama das
vinte horas – que se passa às 21hs – revela em seu contexto narrativo. A identificação destes sujeitos interpretantes,
portanto, não é direta porque ele é o conjunto de todos aqueles que já assistiram às referidas tramas.
As relações comunicativas estabelecidas pelos sujeitos enunciadores e destinatários, isto é, as encenações
simbólicas do ato de linguagem, que ressaltam os personagens exercendo interações, como se estivessem em uma
situação real, serão analisadas de maneira concatenada, uma novela após outra.
Assim, por meio das noções enunciativas apresentadas, passamos a primeira análise, trata-se de uma cena da
novela O Profeta: A triste descoberta, exibida em 20/12/2006. A narrativa mostra a festa de casamento de Clóvis e Sônia.
O evento acontece na casa do noivo que, em um acesso de raiva, se exalta e expulsa da recepção os amigos pobres da
noiva. O foco dessa cena é a conversa que acontece entre as crianças Natália e Analu, pois é quando Dedé descobre que
sua filha sente vergonha dela. No início desse diálogo, Dedé se aproxima de Teresa e diz:

1393
Cena 4: (1) Dedé: Teresa, você viu a Natália?
A triste (2) Teresa: De certo está no quarto da Analu... Vamos até lá?
descoberta - (3) Dedé: Vamos!
O Profeta ((No momento em que Dedé e Tereza iam à procura de Natália, a noiva (Sônia) se
20/12/2006 aproxima e diz para as duas:))
(4) Sônia: Onde vocês vão?
(5) Dedé: Procurar a Natália pra ir embora... O dono da casa não quer a gente
aqui... Você viu o que ele fez... Mandou a Rúbia e todo pessoal dela ir embora...
(6) Sônia: Quê?! Não! Deve te havido algum mal entendido... O Clóvis é um
homem bom... Gentil... Honesto...
(7) Teresa: Não, Sônia! Se fosse, não teria mandado a Dedé ficar na cozinha no dia
do seu casamento... Esse homem tem uma pedra no lugar do coração... Ah! Eu só
sinto por você, querida... Eu sinto muito. Eu já volto.
((Teresa dá um beijo em seu namorado e sai com Dedé para procurar Natália.
Sônia fica perplexa com a fala de Teresa. Neste instante, Natália está no quarto de
Analu contando histórias para ela. Dedé e Teresa se aproximam do quarto, a porta
esta aberta e elas escutam a conversa das meninas.))
(8) Natália: Mamãe faz questão de me levar pra França, Analu. Um lugar que faz
bastante neve, sabe? Bem que eu prefiro a praia, mas ela não gosta do sol... Acho
que é por causa da pele dela que é branquinha... Branquinha...
(9) Dedé: Teresa... Você viu! A Natália tem vergonha de mim!

Quadro 2: Cena 4 – Novela: O Profeta

Na relação enunciativa desse enredo, presenciamos Sônia, Teresa, Dedé, Natália e Analu. Lembrando que, Sônia
tem um grande afeto por Dedé, cozinheira da casa de seu pai – Piragibe. Já Tereza é grande amiga de Sônia e Dedé,
morando ainda, num quarto de aluguel na casa de Piragibe.
O conflito narrativo trazido neste contexto pode ser caracterizado por dois momentos. Primeiramente, através do
diálogo entre as personagens Dedé, Teresa e Sônia. Num segundo instante, sob a interação de Dedé e Teresa, escutando
atrás da porta a conversa de Analu e Natália. Desdobrando, assim, o quadro enunciativo, num primeiro momento da
narrativa, teremos, no circuito interno:

Eue: Dedé/Teresa/Sonia

EÃO Edo: Registros discursivos/Estruturação lingüística do significado

Tud: Teresa/Sônia/Dedé

Quadro 3: Processo enunciativo – circuito interno – Dizer: Cena 4.


20/12/2006 – O Profeta.

As vozes enunciativas neste contexto promovem um contínuo diálogo: Dedé se assume como EUe e seu
destinatário nesse instante será Teresa. Sônia, por sua vez, se projeta como locutor, tendo como alocutárias Dedé e Teresa
– (TUd). Num outro instante, Teresa se posiciona como EUe, e Sônia e Dedé como sujeito destinatário. Nesse circuito
interno, as estratégias discursivas se efetivam através dos enunciados proferidos por esses personagens. O EUc, ao
idealizar esta instância narrativa, parece se apoiar nos saberes comuns circulantes no cotidiano social brasileiro: pobre não

1394
deve se misturar com rico; negro e serviçal têm que ficar na cozinha. Esses fatos se são trazidos respectivas assertivas:
Dedé em (5)2; Teresa em (7)3:
No segundo momento, teremos:

Eue: Natália/Dedé

EÃO Edo: Registros discursivos/Estruturação lingüística do significado

Tud: Analu/Teresa/Sônia/Dedé

Quadro 4: Processo enunciativo – circuito interno – Dizer: Cena 4. 20/12/2006 – O


Profeta.

Nesse âmbito da narrativa, Natália se posiciona como EUe e tem como Tud Analu, Dedé e Teresa, pois essas
duas personagens ouvem a conversa de Natália e Analu de maneira fortuita. As meninas não percebem a presença de
Dedé e Teresa. A partir da fala de Natália, Dedé conclui que a filha tem vergonha dela, o que faz de Dedé um EUe e Teresa
o TUd, afinal é para ela que Dedé projeta sua fala.
Parece-nos que o EUc, ao projetar o (EUe) Natália em relação ao seu (TUd) Analu, tenta alcançar o telespectador
(TUi) sob o viés de uma concepção de branqueamento racial. Isto pode vir a se legitimar através da fala (8) de Natália4: A
preferência da personagem Natália por praia sugere uma forma de justificação quanto ao seu tom de pele, já que em seu
mundo fantasioso ela tem uma mãe branca.
O TUd projetado por Analu acredita que o proferimento (8) de Natália é verdadeiro. Mas, o telespectador (que
assiste à trama frequentemente) sabe que isso não é verdade – Natália está mentindo acerca de sua mãe. Além disso, a
assertiva (9) de Dedé indica que a filha está enganando a amiga Analu. Aqui, a relação EUc ↔ TUi desses sujeitos de
ficção, nos leva a perceber a existência de uma representação discriminatória em relação aos sujeitos de “cor” e de
condição sócio-financeira baixa.
Deste modo, nota-se que o racismo verificado nessa narrativa não se vincula apenas às considerações
biológicas5, ele é exercido também em função da ‘cor’, numa transição gradual, quanto mais distante da cor negra, menor a
discriminação, e isso prevalece para uma situação contrária a esta.
O próximo nível do dizer a ser investigado decorre do episódio exibido em 19/11/2007, denominada Em busca do
passado, da novela Duas Caras. Neste episódio, Evilásio vai até ao prédio onde reside a família Barreto para buscar Júlia.
Ele está de moto. A moça se surpreende quanto a esse fato. Eles se beijam, abraçam e saem logo em seguida.
Paralelamente a esse acontecimento, o porteiro do prédio onde Júlia mora, vê o encontro do casal e usa o
interfone para comunicar o acontecido para o pai da jovem. Em seguida, Barreto liga a TV e assiste a tudo o que está
acontecendo no saguão do edifício entre Júlia e Evilásio. Gioconda entra no ambiente, onde Barreto se encontra. Ele se
dirige à esposa e comenta:

2 “[...] o dono da casa não quer a gente aqui [...] mandou a Rúbia e todo o pessoal dela ir embora...” (Madame Rúbia é uma trambiqueira

que se passa por vidente, além disso, ela tem uma condição socioeconômica precária
3 “Se fosse, não teria mandado a Dedé ficar na cozinha no dia do seu casamento...”, lembrando que Dedé é negra e doméstica.
4 “Mamãe faz questão de me levar pra França, Analu. Um lugar que faz bastante neve... Sabe? Bem que eu prefiro a praia, mas ela não

gosta do sol... Acho que é por causa da pele dela que é branquinha... branquinha...”. (Grifo nosso)
5 Distinções genéticas e biológicas, isto é, advindas da natureza.

1395
Cena 5: (1) Barreto: Gioconda, agora você também viu, não podemos rezar e esperar...
Em busca do Temos que fazer alguma coisa. Esse romance não pode continuar!
passado - (2) Gioconda: Separar Júlia do rapaz da favela meu bem, mas o que você sugere?
Duas Caras Não podemos ser violentos nem pouco civilizados.
19/11/2007 (3) Barreto: Ainda não sei minha querida, mas vou pensar. Pra começo... Você
sabe o nome completo do afro-descendente?
(4) Gioconda: Não, não faço a menor idéia...
(5) Lenir: Mas, eu sei.
(6) Gioconda: Que isso!
(7) Barreto: Ah! Milagre! Até que enfim a sua intromissão matutina vai ter serventia.
(8) Gioconda: Lenir querida, não esperávamos você hoje aqui.
(9) Lenir: Bom dia Gioconda! Vamos tomar café? Está ótimo!
(10) Barreto: Como é mesmo o nome do cidadão?
(11) Lenir: Olha, você não merece Barreto. Mas é Caó, Evilásio Caó.
(12) Barreto: Que sobrenome estranho... Com K?
(13) Lenir: Não! Com C mesmo! Acho que é africano... CA-Ó, CA-Ó. ((Ela
pronuncia esse Caó como se estivesse expelindo o ar dos pulmões, como uma
tosse breve, e continua a dizer)) Acho que é africano!
(14) Barreto: Vamos ver os antecedentes do afro, ver se ele tem alguma pendência
com a justiça, já será um bom começo.
(15) Gioconda: Pelo amor de Deus Barreto! Não quero ter remorso! Não seja duro
com o rapaz, tenta ser delicado...
(16) Lenir: Ah! Gioconda cai na real! Ninguém levanta os podres da vida de alguém
com delicadeza...
(17) Barreto: Em homenagem a você minha querida eu vou usar luvas de pelica
branca...
((Nisto o telefone de Barreto começa a tocar e eles mudam de assunto.))

Quadro 5: Cena 5 – Novela: Duas Caras

Neste contexto verificamos a participação de Barreto, Gioconda, Lenir, Júlia, Evilásio e o porteiro do prédio.
Barreto é um homem rico, advogado, que mora na zona sul do Rio de Janeiro com sua família. Gioconda é a esposa de
Barreto, uma mulher elegante, e ainda, socialite ativa. Evilásio Caó é o futuro marido de Júlia, filha do casal Barreto. É um
rapaz pobre, negro, morador da favela da Portelinha.
Integrando esse espaço ficcional está também Lenir, amiga de Gioconda, considerada por Barretinho e Júlia como
uma tia, porém Barreto a trata grosseiramente, por não agüentar a sua inconveniência6.
A interação inicial desse contexto acontece a partir do encontro de Júlia e Evilásio. A moça sai do prédio onde
mora, e, ao ver Evilásio sentado em uma moto, abre um sorriso e diz: “Que isso... de moto!!!”. Na seqüência, ela o beija e
sai na garupa da moto. Concomitantemente a esta ação de Júlia, vem à reação do porteiro. Ele liga para Barreto e o avisa
do fato que está ocorrendo no saguão do prédio. Barreto, então, assiste a tudo, isto é, à cena protagonizada por sua filha e
o jovem afro descendente.
Logo, o ato comunicacional passa a ser focalizado no apartamento dos Barreto, fazendo com que entrem em cena
também as personagens Gioconda e Lenir, contracenando com as maquinações de Barreto para prejudicar Evilásio.
Sob o ponto de vista enunciativo o EUc projeta o circuito interno através do dizer realizado pelos sujeitos - EUe e
TUd. Nesta perspectiva, essa narrativa televisiva traz os seguintes desdobramentos enunciativos:

6 Essa personagem frequenta periodicamente a residência dos Barreto, mas sem ser convidada.

1396
Eue: Porteiro/Barreto/Júlia/Evilásio

EÃO Edo: Registros discursivos/Estruturação lingüística do significado

Tud: Porteiro/Barreto/Júlia/Evilásio

Quadro 6: Processo enunciativo – circuito interno – Dizer: Cena 5. 19/11/2007 –


Duas Caras

Neste sentido, o EUe inicialmente se projeta em Júlia e Evilásio, que se tornarão um TUd um para o outro. A partir
disso entra em cena outro EUe - o porteiro do prédio (ele interfona para avisar Barreto que sua filha está saindo de moto
com Evilsásio); o TUd, então, se projeta em Barreto. Este, por sua vez, torna-se o EUe ao voltar o seu proferimento para o
porteiro, fazendo deste agora, um TUd.
Nos deparamos, ainda, com outro momento interacional, observe:

Eue: Barreto/Gioconda/Lenir

EÃO Edo: Registros discursivos/Estruturação lingüística do significado

Tud: Gioconda/Barreto/Lenir

Quadro 7: Processo enunciativo – circuito interno – Dizer: Cena 5. 19/11/2007 –


Duas Caras

Os seres de fala deste circuito do dizer, produzidos pelo EUc, são neste instante: ora Barreto como EUe, ora Lenir
e Gioconda, e eles serão um para o outro também, o TUd. A projeção que o EUc faz, através dos sujeitos enunciadores
Barreto e Gioconda, a partir de seus enunciados (1), (2), (14), nos indicam o caráter preconceituoso para com o afro-
descendente Evilásio.
Para a personagem Barreto, a condição de negro é fator que desabona o indivíduo7.
O sujeito comunicante, nesse momento revela uma relação preconceituosa para com a etnia africana, partilhando
com o TUi conhecimentos comuns que são determinados por uma dada identidade psicológica e social.

5. À GUISA DAS CONCLUSÕES

As análises apresentadas convergem quanto à apreensão do processo de racialização. Contudo, as questões


apresentadas acerca deste assunto se apresentam em contextos distintos.
Em O Profeta, o preconceito racial surge de uma maneira sutil, pois a personagem Natália não expõe seu
comportamento preconceituoso de modo explícito; ela mente, como se nota por sua fala em (8).

7 (14): “Vamos ver os antecedentes do afro, ver se ele tem alguma pendência com a justiça, [...]”.

1397
A novela Duas Caras, por sua vez, revela a questão através da postura do personagem Barreto. Este sujeito
ficcional acredita que ser negro implica ter má reputação e isso pode ser confirmado de acordo com o enunciado (14) desse
episódio, no qual Barreto quer levantar a ficha criminal de Evilásio.
Estas novelas, portanto, reproduzem a discriminação que os indivíduos negros podem vir a sofrer numa dada
sociedade, mas claro que cada telenovela à sua maneira, em razão de histórias diferenciadas. O sujeito comunicante, tanto
em uma novela quanto em outra, faz escolhas que revelam uma finalidade: a de abarcar o problema racial.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de Lingüística Geral II. Tradução de Eduardo
Guimarães et alli. Campinas: Editora Pontes, 1989. p. 81-90.

CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos de linguagem. In: MARI, Hugo; MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato de.
Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001. p. 23-38.

MENDES, Paulo Henrique A. Sobre o contrato de comunicação: do discurso ao debate político eleitoral. In: MARI, Hugo;
MACHADO, Ida Lucia; MELLO, Renato de. Análise do Discurso: fundamentos e práticas. Belo Horizonte:
NAD/FALE/UFMG, Segrac, 2001. p. 313-346.

Adriana dos Reis Silva é graduada em Letras pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH (2004), mestre em
Linguística e Lingua Portuguesa pela PUC - Minas (2009) e, atualmente, cursa doutorado em Linguística e Língua
Portuguesa, também pela PUC Minas. É professora do curso de Pedagogia da UEMG/FaE/BH. E, em suas atividades de
pesquisa e ensino, busca a integração entre conhecimentos raciais, linguístico-discursivos e pedagógicos.
Email para contato: adrianasier@yahoo.com.br

1398
DISCURSOS CONSTITUINTES E DIREITO: a construção de
sentido do direito da sociedade a partir de decisões
jurídicas1
SILVA, Artur Stamford da
(UFPE/CCJ/FDR)

Introdução

Antes que o leitor crie expectativas relativas ao contido no título, lembramos que “mais importante do que os listar,
é compreender o modo de ‘constituição’ que caracterizam os discursos constituintes” (MAINGUENEAU, 2008: 38). Com isso
esclarecemos o quanto não pretendemos discutir, nem nos ocupamos em defender, se o discurso jurídico é ou não discurso
constituinte, mas sim compreender como o direito vivencia e convive com discursos religiosos, políticos, econômicos,
científicos, filosóficos, artístico. Assim, porque nossas pesquisas estão em fase inicial, por mais que os dados indiquem que
o discurso jurídico se produz, reproduz, influencia e é influenciado pelos diversos gêneros discursivos.
Quando se faz referência ao direito, o “lugar-comum da coletividade” - para citar uma expressão usada por
Maingueneau (2008: 39) - tende a focar a legislação, afinal estamos na era do Estado de Direito. Isso é o que observamos
cada vez que alguém conta uma história e pede um conselho jurídico. A questão não é a pergunta, mas a expectativa de
uma resposta imediata, um conselho jurídico preciso e acabado, uma antecipação de qual decisão será tomada.
Observamos também que há, nessa expectativa, a espera de as respostas virem justificadas através de referência
legislativa. Esse lugar-comum é próprio da cientificidade pautada pela lógica linear, pela causalidade, como historicamente
aprendemos que deve ser uma explicação científica.
Acontece que o menor contato com a prática judiciária é suficiente para sinalizar o quanto a legislação, ao mesmo
tempo, é e não é razão (causa) suficiente para a tomada de decisão jurídica, e nem leva a conhecer o direito da sociedade.
Questionamos, portanto, como é possível a legislação funcionar, ao mesmo tempo, como promotora de ordem e de
mudança social; como referência e não referência de decisões jurídicas.
Na história do pensamento jurídico, já tivemos por resposta o pluralismo jurídico, quando sociólogos do direito
apontam a convivência entre direito estatal e direito social. Eugen Ehrlich falou em direito vivo (1986: passim), Herman
Kantorowicz, em direito livre, e Max Weber, em direito informal (1996: 467). Guardadas as diferenças das propostas de cada
autor, a visão sociológica do direito deixou como legado o reconhecimento de o direito dever acompanhar as mudanças
sociais.
Em relação à decisão jurídica, como a legislação, temporalmente, não acompanha essas mudanças, cabe ao
judiciário equacionar a temporalidade e promover a melhor relação possível entre as exigências sociais e a legislação.
Tomar a sociedade como causa motivadora de decisões judiciais não deixou de, em nome da sociedade, dar lugar ao
arbítrio do julgador, inclusive baseado no argumento que - em caso de divergência entre a legislação e a norma social -, o
julgador deve aplicar a norma social, não a legislação. O exemplo mais usado para criticar essa perspectiva é o
linchamento. Se uma comunidade deseja linchar alguém (um estuprador, p. ex.), pode um juiz julgar autorizando o
linchamento? A reação dogmática foi defender que em caso de conflito, deve o julgador preferir a letra da lei (legislação),

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

Processo no. 300600/2008-9.

1399
afinal, o direito não tem lacuna porque o que não está proibido está permitido (completude do ordenamento jurídico), com
em Kelsen e Bobbio.
Outra resposta se pautou na linguagem. Por causa da vagueza e da ambiguidade, o julgador tem mais de uma
leitura possível e todas igualmente corretas. Assim, a convivência dentre decisões distintas para casos semelhantes se
deve ao processo de adaptação da linguagem ao caso. A legislação, texto que é, não limita a leitura do aplicador (leitor),
assim, há uma infinidade de decisões distintas e igualmente corretas, portanto justas. Os niilistas, aqueles que atribuem à
liberdade do poder do magistrado a diversidade de decisões, defendem que a decisão é arbitrária porque fruto do poder
interpretativo do julgador. Também aqui localizamos autores que negam a arbitrariedade afirmando a discricionariedade,
como Hans Kelsen e Herbert Hart. No caso de Kelsen, a indeterminação não-intencional do direito (1982: 350) dá lugar à
possibilidade de haver mais de uma decisão correta para um mesmo caso, pois a linguagem é vaga e ambígua; já Hart
pauta sua explicação na textura aberta (open texture of law) (1961: 143), ou seja, a pluralidade de decisões igualmente
corretas se deve à vagueza e à ambiguidade da linguagem.
Nossa questão é que essas respostas causais não são suficientes para se explicar como é possível a legislação
ser e não ser, ao mesmo tempo, fonte de justificação de decisões jurídicas. Para os niilistas, a legislação não passa de um
legitimador da decisão; assim, o juiz primeiro julga e depois vai buscar uma legislação para justificar, legitimar, a decisão
antes já tomada. No caso da discricionariedade, a teoria se torna mais um conselho que uma explicação da decisão jurídica.
As respostas sociológica e linguística foram fundamentais para se reconhecer a necessidade de uma explicação
complexa da decisão jurídica. O que não deixou de ser buscado pela teoria da argumentação. Todavia, essa não será
explorada neste texto. Todavia, foi a partir do sociologismo, do normativismo, do realismo jurídico e da teoria da
argumentação que localizamos as perspectivas teóricas de Luhmann, sociólogo do direito, e Maingueneau, analista de
discurso como alternativas a uma teoria complexa da decisão jurídica. Isso se deve, suponho, a esses dois autores não
trabalharem sob a ótica da explicação causal, antes, eles oferecem saídas à paralisia a que a teoria se encontra diante dos
paradoxos que a causalidade conduz. Assim é porque eles não limitam suas reflexões a dicotomias como:
dedução\indução; abstrato\concreto; teoria\prática; universal\local; ordem\mudança; estruturalismo\pragmatismo etc. É que
dicotomias geram paradoxos que levam à redução dos embates científicos à escolha de qual corrente se filiar, à escolha de
qual lado do paradoxo é o correto, o justo, o melhor, o mais ... Luhmann nem Maingueneau estão ocupados em oferecer
modelos de comportamento social ou de leitura, em indicar como a sociedade, portanto a comunicação, a linguagem
deveriam ser, não oferecem conselhos de auto-ajuda.
Esses autores partem da concepção que dicotomias não impedem os avanços científicos, principalmente porque
não há deuses acadêmicos, tampouco reduzem a atividade científica à devoção de teorias ou autores. Arisco afirmar que
ambos estão ligados à epistemologia da circularidade, ao construtivismo, à visão sistêmica de Kurt Gödel, que em 1981
apresentou o teorema da incompletude demonstrando que um sistema para ser completo tem que ser incompleto
(CROCCO, 2003: 21-42; FRESÁN, 2008: passim; GÖDEL, 2006[1968], passim).
Completo e ao mesmo tempo incompleto, assim como a matemática e a física, a teoria social e da linguagem
reconhecem a insuficiência da causalidade para explicar o social, a linguagem, a comunicação. Luhmann e Maingueneau
estão voltados à circularidade - tal como desenvolvida durante os encontros da Macy conference2 (BRIER, 2007: 30-32) e
da Escola de Palo Alto, quando foi cunhada a cibernética comunicacional, a qual traz a epistemologia circular, calcada por
ideias como retroalimentação, recursividade, re-entry, como no construtivismo, na complexidade, na pragmática da
comunicação (WATZLAWICK, BEAVIN e JACKSON, 2008: passim), na autopoiesis (MATURANA, 2001: 27-42) etc..

2 Sobre o assunto, visitar: http://www.asc-cybernetics.org/foundations/history/MacySummary.htm.

1400
Desde então, explicar algo não é mais uma questão de busca por conhecer sua essência nem sua manifestação
mental ou linguística. A ontologização causal da coisa em si, da consciência e da linguagem não são abandonadas, mas,
sua insuficiência proporcionou a inclusão de complexidade nas explicações científicas, justamente por esse aporte
epistemológico possibilitar amplificações observacionais.
Com essa amplificação, por exemplo, torna-se possível explicar a presença e, portanto, a interferência de
discursos não jurídicos nos discursos jurídicos; possibilita respostas ao como é possível a legislação ser e não ser, ao
mesmo tempo, base da tomada de decisão jurídica, como ocorre na prática forense, sem por isso, essa decisão perder a
legitimidade.
Para tratar dessa temática, observamos textos de decisões jurídicas obtidas nos sites do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Nossas observações são pautadas, como já anunciado, pela perspectiva da
teoria dos sistemas de sentido do sociólogo do direito Niklas Luhmann e da teoria do discurso constituinte do linguista
Dominique Maingueneau.

1. Os Pontos de contato das pautas teóricas escolhidas

Nossa aproximação com a linguística se deve à relação entre leitura errada (POSSENTI, 1990) e decisão jurídica
errada. O debate da produção de sentido, formação discursiva, cenografia, papel do autor, texto e leitor na leitura são temas
centrais para uma explicação da decisão jurídica, o que nos levou a escolher como marcos teórico as visões explicativas de
Luhmann e Maingueneau. Vejamos alguns pontos de contato entre essas visões.
Um primeiro ponto é que, enquanto Luhmann escreve “sociedade mundial” (2007: 55, 108 e ss.), o segundo se
refere a “universo discursivo” (2007: 35), o “discurso global” (2008: 44).
Outro ponto é a presença da memória, fundamental em Luhmann por gerar a complexidade sistêmica, por isso a
memory function - resultado de seleções passadas, sem o que, como o sistema se volta para si incalculável, não seria
possível a vida em sociedade, ou seja, a comunicação. Não que a memória dite o futuro, que é sempre incalculável, assim
como o sentido é contingente; todavia essa história gravada possibilita a comunicação por possibilitar a continuidade do
processo comunicativo. Ideia semelhante localizamos quando Maingueneau faz referência à memória discursiva (a
archeion) como função de produção simbólica de uma sociedade (2008: 37).
Há ainda a superação da paralisia diante de dicotomias, como o debate interno/externo, ordem/mudança etc..
Enquanto Luhmann parte da diferenciação sistema/entorno como forma de dois lados3, sendo a diferença realizada pelo
observador ao realizar a observação, não por ser natural, física ou porque o sistema tem uma estrutura rígida que o separa
do ambiente (entorno); Maingueneau afirma que os discursos constituintes articulam o intradiscurso ao extradiscurso, pois
discursos constituintes representam o mundo, “suas enunciações são parte integrante do mundo que representam (2008:
40).

3 Forma de dois lados é proposto por George Spencer Brown para demonstrar que a observação distingue e indica, ao mesmo tempo,

assim, forma é o que “separa duas partes e exige operações (e também tempo), seja para repetir a indicação de uma das partes, seja
para condensar sua identidade, seja para cruzar o limite e proceder desde a outra parte para realizar a operação seguinte” (LUHMANN,
1996b, p. 137; 2005, p. 79-80, 132, 184, 233, 607). Assim, a operação de distinção e indicação produz o paradoxo de que não se pode
fazer uma indicação sem fazer uma distinção (Luhmann, 1998b, p. 70). Com isso, o observador não observa algo (a coisa em si, a mente
ou a linguagem), mas sim ele mesmo enquanto observador; é o que temos com a concepção de observação de segunda ordem, do
construtivismo de Heinz von Foerster, pois “não se pode ver que não se vê o que não se pode ver”. Ainda do ponto de vista
epistemológico, da teoria matemática Luhmann usa a teoria da incompletude de Kurt Gödel (Luhmann, 1998, p. 9; 1990, p. 61) e a
concepção de salto entre sistemas, como em Douglas R. Hofstadter (Luhmann, 2005, p. 248); sem esquecer as referências que o autor
faz do desconstrutivismo na gramatologia de Jacques Derrida, explorando o termo différance (LUHMANN, 2005, p. 52, 90, 248, 309,
659, 621).

1401
Esses pontos de contato justificam nossa pretensão em articular esses aportes teóricos para uma explicação da
decisão jurídica.

2. A teoria dos sistemas de sentido e o discurso constituinte

O lugar de Niklas Luhmann em nossas pesquisas se deve à sua visão de sociedade como sistema de sentido.
Para o autor, a “comunicação é a célula da sociedade” (LUHMANN, 2007: 58) e, como a “sociedade é um sistema que
estabelece sentido” (LUHMANN, 2007: 32) e “sentido é uma operação de comunicação” (LUHMANN, 2007: 28), a vida em
sociedade é possível porque nos comunicamos. Justamente porque algumas comunicações atingem um nível elevado de
complexidade, elas se formam sistemas sociais funcionalmente diferenciados, os quais têm operam no meio chamado
“sentido”. Como só nos comunicamos por comunicação, porquanto sentido só se produz por meio de sentido, Luhmann fala
em autopoiesis da comunicação, ou seja, na capacidade de a comunicação se referir a si mesma para se produzir e se
reproduzir. “A comunicação só pode funcionar autorreferencialmente” (LUHMANN, 2007: 47). Não é, portanto, o autor nem o
leitor, tampouco o texto quem produz comunicação. Acontece que “o conceito de sistema remete ao conceito de entorno e,
justamente por isso, sistema não se isola nem lógica nem analiticamente” de seu entorno (maio ambiente e demais
sistemas sociais) (LUHMANN, 2007: 47). Justamente por construir sistemas - sistemas de sentido –, a sociedade opera no
médium sentido e isso possibilita a distinção autorreferência e heterorreferência, porque a cada informação dada-a-
conhecer, o sistema atualiza sua autorreferência (LUHMANN, 2007: 33).
Adicionado a essa visão epistemológica as ideias de Maingueneau - quando escreve: “cabe à análise de discurso
justificar a produção de enunciados e explicar como eles puderam mobilizar forças e investir em organizações sociais”
(1997: 44) – temos que a comunicação é improvável; todavia, nós seres humanos desenvolvemos meios para torná-la
possível, por mais que ainda improvável.
Pelo que entendemos, das leituras desses dois autores, no processo linguístico não há garantias de como o outro
vai entender o que lhe é informado, o temos garantido é que o outro não tem acesso ao que pensamos, o que se passa em
nossa mente quando informamos algo. O que se tem acesso é ao que foi dado a conhecer, à informação, não ao mentado.
É o que entendemos ao ler que o que torna a comunicação possível são os meios de comunicação
simbolicamente generalizados, uma vez que esses meios “fazem com que a comunicação se sintonize às condições que
elevam as expectativas de aceitação, mesmo ante comunicações desagradáveis (LUHMANN, 2007: 156). Assim, “sentido é
uma forma de operação histórica e só a sua utilização enlaça o surgimento contingente e a indeterminação de aplicações
futuras. Toda indeterminação tem que fazer uso do médium sentido e toda inscrição nele tem como único fundamento sua
própria faticidade recursivamente assegurada” (LUHMANN, 2007: 30) e, portanto, “os sistemas da sociedade encontraram
no médium do sentido a forma de fazer justiça às operações do sistema por ele estar aberto a novas determinações. Daí
que estes sistemas só reconhecem como operações próprias aquelas comunicações que selecionam formas de sentido”
(LUHMANN, 2007: 46). Essa visão de autonomia, de retroalimentação, de autoreferência encontramos na ideia de discurso
constituinte de Maingueneau, para quem discursos constituintes têm a pretensão de “não reconhecer outra autoridade além
da sua própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles. Isso não significa que as diversas outras zonas de
produção verbal não exerçam ação sobre eles; bem ao contrário, existe uma interação constante entre discursos
constituintes e não constituintes, assim com entre discursos constituintes” (MAINGUENEAU, 2008: 37).
Sugerimos que sistema em Luhmann é semelhante a discurso em Maingueneau; portanto, sistema de sentido é
semelhante ao que Maingueneau chama de discurso constituinte. Essa afirmação tem lugar por lermos que sistema são
entidades capazes de produzir sua própria estrutura, sem por isso excluir o entorno, ou seja, os demais sistemas da

1402
sociedade e o ambiente (biologicamente considerado), e que discurso é “organização de restrições que regulam uma
atividade” (1997: 44).
A noção de sistema autopoiético, aquele sistema capaz de se autoreproduzir a partir de si mesmo sob a influência
de fatores ambientais e de outros sistemas sociais, remete-nos à ideia de que “as formações discursivas não possuem duas
dimensões – por um lado, sua relação com elas mesmas, por outro, sua relação com o exterior – mas é preciso pensar,
desde o início, a identidade como uma maneira de organizar a relação com o que se imagina, indevidamente, exterior”
(MAINGUENEAU, 1997: 75).
Em relação ao direito, como todo sistema garante consistência suficiente às suas operações (LUHMANN, 2005:
134), a identidade do sistema jurídico está nas suas estruturas, as quais se reproduzem por operações (decisões) do
sistema mesmo (LUHMANN, 2005: 123), gerando com isso o fechamento operacional e a abertura cognitiva do sistema.
Assim, o fechamento operacional do sistema jurídico na sociedade se realiza unicamente no nível de observação de
segunda ordem e só através de um esquema que pode ser manejado exclusivamente neste nível (LUHMANN, 2005: 127) é
que dá se a autonomia do sistema jurídico, ou seja, a formação de sua unidade operativa (LUHMANN, 2005: 118), aquela
unidade de fechamento autopoiético (LUHMANN, 2005: 127) que promove a unidade do direito como totalidade de
operações e estruturas (LUHMANN, 2005: 130). Essa terminologia, usada por Luhmann, remete-nos à análise de discurso
como atividade necessariamente integrada por instituições discursivas [cenografia, campo discursivo, deixis discursivas
como condições genéricas do universo de sentido (locutor, topografia e cronografia), deixis coordenadas (espaço
temporizado), contratos discursivos, gêneros discursivos, comunidades de enunciação, enunciação, enunciado, ethos
discursivo] e heterogeneidade, como nas teorias enunciativas, [mostrada (manifestações explícitas, intertexto) e constitutiva
(não marcada, interdiscurso)] (MAINGUENEAU, 1997: passim).
Como escreve Maingueneau, a separação forma/conteúdo perde lugar (1997: 39), principalmente se se toma por
enunciação o “dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos sujeitos que aí se reconhecem” (1997: 50). A não
separação de forma/conteúdo é o que ousamos chamar de gödelização da discursividade tal como promovida por este
autor. Ao localizar que discursos como limitadores da coletividade “devem gerar textualmente os paradoxos que seu
estatuto implica” (2008: 39), o autor, como alternativa a esses paradoxos, propõe os discursos constituintes, os quais - por
suas dimensões normativa (“processo pelo qual o discurso se instaura, construindo sua própria emergência no
interdiscurso”) e política (“modos de organização, de coesão discursiva”) – pretendem delimitar “o espaço que engloba a
infinidade de ‘lugares-comuns’ que circulam na coletividade” (2008: 39). Insistimos nessa interpretação ao lermos o
seguinte: “o interdiscurso consiste num processo de reconfiguração incessante no qual a formação discursiva é levada (...) a
incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela ...” (Maingueneau, 1997: 113). Identificamos, nesta passagem, a
presença da concepção epistêmica da circularidade, bem como a inseparabilidade da forma ao conteúdo, portanto a
aplicação da concepção de forma de dois lados de Spencer Brown. Assim é porque, como modo de organização, o sistema
de sentido (portanto o discurso constituinte) tem sua unidade de referência (responde por um código binário de referência),
o que implica num processamento próprio, autônomo (todavia não isolado) do entorno (ambiente, contexto), segundo suas
normas internas. Assim, a abertura cognitiva depende do fechamento normativo (o conteúdo depende da forma ao mesmo
tempo em que a forma depende do conteúdo). Ocorre que essa relação se dá num processamento interno do sistema,
gerando expectativas normativas e cognitivas (LUHMANN, 2005: 136; 141). Com isso, o sistema de sentido (o discurso
constituinte) contém situações limites, casos normais (LUHMANN, 2005: 138), o que não impede de serem recepcionadas
novas comunicações, novas informações, mudanças de sentido. No caso do sistema jurídico, ele “é a comunicação
coordenada pelo código lícito/ilícito” (LUHMANN, 2005: 138).

1403
Cabe, no entanto, não confundir comunicação com emissão de informação. Perceber que alguém disse algo não
implica comunicação; esta última torna a informação uma seleção por provocar uma distinção no mundo entre aquilo que é
dito e aquilo que é excluído diante do dito. Comunicação, então, é uma operação específica que produz e identifica
sistemas sociais. Significa que através da comunicação os sistemas estão abertos ao ambiente, pois o ambiente vem
construído de informação (LUHMANN, 1983, passim; LUHMANN, 1985, p. 3-5; LUHMANN, 1998, p. 108-110; 140-170;
LUHMANN, 2000, p. 4-6; 136-146; LUHMANN, 2001, passin; LUHMANN, 2005, p. 20 e ss.).
A comunicação se dá na forma de decisão por ser uma operação específica dos sistemas sociais, bem como é
produto de três seleções:
• a emissão ou ato de comunicar;
• a informação;
• e a compreensão da diferença entre emissão e informação.
Há comunicação se Alter compreende que Ego emitiu uma informação, caso Alter não perceba que Ego emitiu
uma informação, não há comunicação, pois a compreensão realiza a distinção que funda a comunicação entre emissão e
informação (1983, p. 294-298).
O esquema de Luhmann é:

Comunicação Diferenciação

Descontinuidade Complexidade

Semântica temporal

Para Luhmann, comunicar envolve, simultaneamente, decidir e diferenciar, pois Ego escolhe o quê e como emitir a
informação, ao mesmo tempo em que envolve a compreensão de Alter. Dizer que a comunicação é um processo sistêmico
significa defender que a vida em sociedade produz uma seleção entre possibilidades para fazer existir sentido ao que se
quer comunicar. Significa, ainda, considerar que há uma relação entre a estrutura social e a tradição semântica. Luhmann
parte do pressuposto que "todas as vivências e as ações humanas se desenvolvem conforme o sentido e são em si
mesmas acessíveis só em conformidade com o sentido" (1983, p. 15). Mais uma vez temos a aplicação da metodologia
circular, pois cada sistema social (a arte da sociedade; a ciência da sociedade; o direito da sociedade; a economia da
sociedade; a política da sociedade, a religião da sociedade, a sociedade da sociedade) é uma diferenciação que o distingue
e estabelece identidade, sem por isso separá-lo dos outros sistemas sociais.
Com o até aqui escrito, esperamos ter demonstrado o quanto os aportes teóricos de Luhmann e Maingueneau
possibilitam explicações ao como é possível a legislação ser e não ser, ao mesmo tempo, causa suficiente para a decisão
jurídica, portanto, explicações da relação entre o sistema do direito da sociedade e os demais sistemas sociais (religioso,
político, econômico, artístico, científico), o se assemelha a explicar como o discurso jurídico convive e se relaciona
(produzindo-se e reproduzindo-se), apenas reconhecendo a si mesmo como única autoridade discursiva, por mais que sofra
influências dos outros discursos constituintes (político, filosófico, literário – artístico). É o que observamos das pesquisas já
realizadas.

3. Análises-observações sobre decisões jurídicas

1404
As pesquisas até hoje realizadas pelos integrantes do Moinho Jurídico4 envolveram os seguintes temas:
Concubinato; HIV e Justa Causa; Estupro Presumido; Prova Ilícita; Propriedade – MST; DNA – Paternidade;
Homoafetividade, Igualdade; Concessão de Medicamentos.
Os resultados até então obtidos nos permitem afirmar que o sistema jurídico, em um primeiro momento, rejeita a
intervenção das irritações informativas, ou seja, as comunicações que exigem mudança no sentido atual que o sistema
jurídico tem concebido para o caso. Não muito tardio, e muitas vezes recorrendo a expressões como “o direito não pode
ignorar as mudanças sociais”, surgem decisões favoráveis, que passam a admitir como jurídico o que se pretende ser
juridicizado. Observamos, também, que após essa aceitação, há uma retroatividade, uma volta à rejeição. Seguida de
aceitação.
No caso da produção de sentido jurídico de concubinato, por exemplo, se era ilegal, juridicamente negado, hoje
contamos com a lei do concubinato - o que significa a plena inclusão no sistema jurídico do concubinato. Ou seja, a
produção de sentido jurídico de concubinato hoje está juridicamente institucionalizada, portanto discursivamente
referenciada (como organização e enunciação).
Nossas pesquisa têm acompanhado a produção discursiva em vários debates jurídicos atuais. Vejamos com mais
detalhe o caso da produção de sentido da união homoafetiva como entidade familiar. Limitaremos nossas análises-
observações à decisão judicial tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI/3300 (Supremo Tribunal Federal, 2006)
e no Recurso Especial no 820.475 – RJ, que tramitou no Superior Tribunal de Justiça. Com isso, exploramos decisões dos
dois tribunais superiores brasileiros.
Na ADI 3300-STF, lemos:
[T1] Não obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente ação direta, mas
considerando a extrema importância jurídico-social da matéria [...] cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras,
que o magistério da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios
fundamentais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade,
da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se revestem tanto o
reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união
homoafetiva como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes
consequências no plano do Direito e na esfera das relações sociais.

Tratando-se do STF (Supremo Tribunal Federal), a decisão não tem autor individual, mas coletivo. São onze
ministros. Outro ponto relevante é que as decisões do STF são marcadas por servirem de referência às decisões futuras,
inclusive das instâncias inferiores do escalão do judiciário brasileiro (juízes e desembargadores), bem como de argumentos
a serem utilizados por advogados, promotores e procuradores em casos jurídicos futuros. Com isso, observamos a
referência à distinção direito e sociedade, o que não impediu a juridicização da temática, ou seja, o trato jurídico do tema.
Situações como essa indicam que o discurso jurídico é espécie de discurso constituinte, tão quanto direito é um
sistema de sentido genericamente diferenciado. O sistema jurídico (a comunicação do direito da sociedade) só reconhece a
si mesmo como comunicação constitutiva de direito. Não se trata apenas de legitimar seu discurso, mas de produzir sentido,
produzir seu próprio discurso, de constituir-se como discurso, com sistema de sentido.

4 Trata-se do Mostruário de Observação social do Direito, laboratório de pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco. Aproveito

para agradecer a todos os que já colaboraram, e ainda colaboram, realizando pesquisas conosco: André Carvalho, que está pesquisando
sobre Propriedade e MST; Suênya Almeida, que desenvolveu pesquisa durante o mestrado sobre a Flexibilização da Coisa Julgada, uso
da Prova de DNA para alteração da decisão de paternidade; Henrique Carvalho que pesquisou sobre Homoafetividade e hoje desenvolve
mestrado sobre a Admissibilidade Jurídica de pesquisa com células tronco; Marcelle Penha, que está desenvolvendo pesquisa sobre a
Prova Ilícita; Rodolfo Lopes que trabalhou sobre Concessão de Medicamentos e está pesquisando sobre a proteção da Propriedade
Intelectual sobre medicamentos no âmbito internacional, especificamente nos acordos bilaterais na OMC (Organização Mundial de
Comércio); e Maísa Pereira que está abordando a questão do acoplamento estrutural entre os sistemas jurídico, político e econômico na
Concessão de Medicamentos.

1405
Agora analisando excertos da decisão do STJ no RE 820.475 – RJ, localizamos heterogeneidades discursivas
marcadas ao lermos citações de legislação e referências a decisões anteriores, mas não como mera redução, e sim como
autoprodução de sentido. Esse processo de remissão à decisão anterior como recurso atributivo de autorização para a
decisão atual reflete também o caráter discursivo constituinte do discurso jurídico como promotor da discursivização do
direito. Explico. Um pleito que reivindica o reconhecimento de uma união homoafetiva como entidade familiar, inicialmente
foi negada como entidade familiar, mas admitiu-se posteriormente haver direito de sucessão; em seguida, a união foi
reconhecida como atributiva de direitos de herança e, posteriormente, reconheceu-se o direito a benefícios do INSS.
Acontece que ainda se mantinha a ilegalidade da união homoafetiva como entidade familiar, principalmente sob o
argumento da inadmissibilidade de uma entidade homoafetiva vir a implicar direito à adoção. Observamos que esse
argumento não tem qualquer referência ao jurídico; antes a relação é com o discurso religioso, com os discursos
“moralistas”.
Na decisão do STJ, a sentença de primeiro grau extinguiu o feito sem resolução de mérito, citando com base
justificadora da decisão que o art. 267, VI, do Código de Processo Civil, o qual trata arquivamento da petição inicial por falta
de fundamentação legal, "... o pedido autoral é impossível de ser juridicamente atendido, posto lhe faltar previsão legal" (fls.
115). Essa decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
No STJ, o relator escreve
[T2] o pedido é juridicamente possível quando o ordenamento não o proíbe expressamente. Deve-se entender o termo ‘pedido’ não em
seu sentido estrito de mérito, pretensão, mas conjugado com a causa de pedir". Em seguida: “Note-se que há um mau hábito, de alguns
juízes, de indeferir requerimentos feitos pelas partes dizendo que o fazem ‘por falta de amparo legal’. A se interpretar tal expressão como
querendo significar que o indeferimento se deu por não haver previsão legal daquilo que se requereu, a decisão obviamente estará a
contrariar o disposto no art. 126 do CPC, pois, em tal caso, o juiz deixará de decidir por haver lacuna na lei. A lacuna da lei não pode
jamais ser usada como escusa para que o juiz deixe de decidir, cabendo-lhe supri-la através dos meios de integração da lei.

Note-se que o debate se pauta pelo significado do termo “pedido”. Após debates, e dois pedidos de vistas, o TSJ
legaliza a união homoafetiva como entidade familiar: “há a possibilidade jurídica do pedido - o feito deve retornar à primeira
instância para o seu regular trâmite”. Quanto ao problema da autoria, lembramos que o STJ é formado por 33 ministros, são
decisões coletivas, que contém a força institucional do Poder Judiciário. Essa decisão foi possível, inclusive, devido à
memória institucional, como se pode concluir a partir das referências às decisões anteriores, bem como referências à
doutrina jurídica (”ciência do direito”) e aos discursos de diversas espécies, inclusive moralistas (influências de concepções
religiosas) e econômicas (herança).
É o que observamos nas passagens:
[T3]8. As noções de casamento e amor vêm mudando ao longo da história ocidental, assumindo contornos e formas de manifestação e
institucionalização plurívocos e multifacetados, que formação permanente colocam homens e mulheres em face de distintas
possibilidades de materialização das trocas afetivas e sexuais.
9. Com o alargamento da compreensão do conceito de família dentro das regras já existentes ou mediante modificação do
ordenamento jurídico, as uniões homossexuais passam a abarcar legalmente a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo.
10. O Poder Judiciário não pode se fechar às transformações sociais, que, pela sua própria dinâmica, muitas vezes se antecipam às
modificações legislativas”.

Nessas passagens, observamos que há, sim, uma judicialização de discursos constituintes de outras espécies que
não jurídicos.
Essa judicialização, achamos, é indicativo da autonomia constitutiva do discurso jurídico, seja sob a ótica dos
sistema de sentido da sociedade, como na teoria da sociedade de Niklas Luhmann, seja na visão de discurso constituinte
de Dominique Maingueneau.

1406
Fica a esperança de que os leitores desse artigo estabeleçam um diálogo com as ideias aqui defendidas, de
modo a que novas pesquisas apareçam na linha da conjugação de autores de campos distintos do saber tais como a
Sociologia, o Direito e a Análise do Discurso, de que são exemplos Niklas Luhmann e Dominique Maingueneau.

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Artur Stamford da Silva

artur@stamford.pro.br

Mestre e doutor em Direito pela UFPE. Professor adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da UFPE. É bolsista de
Produtividade do CNPq. Coordenador do Moinho Jurídico (Mostruário de Observação Social do Direito). Na Faculdade de
Direito do Recife, ministra as disciplinas: Hermenéutica Jurídica; Metodologia da Pesquisa; Propriedade Intelectual. No
Programa de Pós-Graduação em Direito, ministra: Pesquisa e Direito; Teoria Social do Direito; Sociologia da Decisão
Jurídica.

1408
Onde está a graça? Uma análise pragmática do humor na
publicidade impressa

SILVA, Conceição Almeida da


(UFF)

Introdução

Este estudo tem por base o nosso projeto de pesquisa atual que começamos a elaborar junto ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Linguagem strictu sensu (mestrado), dentro da linha de pesquisa Teoria do Texto, do
Discurso e da Interação, na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde pretendemos fazer uma análise pragmática do
humor em anúncios publicitários publicados em revistas de circulação nacional. Tendo em vista que os estudos pragmáticos
se direcionam para a descrição cada vez mais completa do processo de uso-criação das línguas na vida diária, bem como
seus sucessos e insucessos, suas conseqüências, seus prazeres, acreditamos ser este um caminho possível para analisar
nosso objeto.
Neste artigo, temos por objetivo analisar um dos conceitos que serão abordados em nossa pesquisa – o de cena
enunciativa, proposto por Maingueneau (2001). Analisaremos a relação entre o humor e a cena instituída para a
enunciação, observando em que medida esta contribui com os efeitos de sentido produzidos por aquele. Ainda que seja
uma das ferramentas de que dispõe a publicidade para chamar/prender a atenção do leitor da revista, o humor poderá não
ser interpretado por todos da mesma forma, tampouco aceito igualmente, visto que depende de uma série de fatores que
envolvem a situação comunicativa. Neste sentido, a cena enunciativa funcionaria como o cenário que possibilitaria ao
emissor situar o humor num ambiente fictício de modo a vinculá-lo de alguma forma ao seu destinatário sem afetá-lo
negativamente, possibilitando um abrandamento do tom persuasivo e garantindo o envolvimento do leitor.

A pragmática linguística

Como já antecipamos, a pragmática toma a língua em seu processo de uso-criação. Segundo Reyes (1994, p. 15),
a pragmática estuda não só a nossa maneira intencional de produzir significados quando tomamos a linguagem em uso,
como também os princípios que regulam os comportamentos linguísticos dedicados à comunicação. Dentre tais princípios,
podemos destacar o de que há na interação certa intencionalidade que se dirige a um fim que leva os falantes a agirem
cooperativamente na produção de sentidos. Assim, os interlocutores acabam participando numa atividade que consiste em
produzir sentidos através da linguagem, mas sem se deterem exclusivamente nela, pois mesmo quando um enunciado se
apresenta linguísticamente incoerente, tais interlocutores buscarão dar-lhe algum sentido ancorando-o na situação
comunicativa.
A sintaxe estuda as regras de formação das orações, a semântica estuda a natureza e o significado de palavras e
orações, suas relações sistemáticas (sinonímia, implicação, contradição, etc.) e analisa a ambiguidade em palavras e
orações. Já a pragmática estuda os princípios de produção de significados que não estão inscritos exclusivamente na
estrutura da língua. Imaginemos, por exemplo, que marido e mulher estão numa festa. A certa altura ela diz ao marido:
“Você sabe que hora é?” O marido, automaticamente, interpreta que sua mulher quer ir embora e responde algo como
“iremos quando você quiser”. Neste caso, nada propriamente linguístico na pergunta da mulher remete para a interpretação

1409
feita pelo marido. Baseado no contexto ele foi levado a interpretar mais do que o que realmente foi dito. A mulher poderia
até estar perguntando realmente a hora, e então corrigi-lo dizendo que queria apenas saber a hora mesmo, mas isso não
torna a interpretação do marido incoerente. Por isso, as análises sintática e semântica da linguagem possibilitam
compreender alguns dos mecanismos de produção dos sentidos humorísticos, mas não explicam tudo, visto que, ao se
dizer algo se comunica, em geral, mais do que somente aquilo que está realmente expresso pelo conteúdo linguístico da
frase ou do texto enunciado.
Neste sentido, a pragmática linguística (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005), visando analisar a língua em uso, em
contexto comunicativo, complementa os espaços que não podem ser preenchidos pelas análises linguísticas tradicionais.
Ela passa a considerar as gramáticas das línguas em relação com os atos que se realiza ao falar, passa a observar os
processos linguísticos relacionados não só ao uso da língua, como também a relação entre a linguagem e os falantes.

O humor na publicidade

O humor tem sido alvo de estudos desde Platão, e ainda hoje guarda interesse não só para a filosofia, como
também para a antropologia e para a sociologia. Também na área da semiótica, da teoria literária e até mesmo da
linguística percebe-se que o número de referências bibliográficas não é pequeno, o que significa que o tema tem sido de
interesse cada vez mais frequente. Em se tratando de um fenômeno eminentemente humano, natural e compartilhado
socialmente, a compreensão dos mecanismos que possibilitam ao humor cumprir com seus propósitos em situação
comunicativa revela-se tão complexa quanto a compreensão de qualquer fenômeno lingüístico que se proponha estudar.
No que tange à sua relação com o discurso publicitário, alvo dos estudos que se propõe levar a cabo neste artigo,
tem-se uma complexidade duplicada, visto que se trata de dois fenômenos linguísticos com suas características próprias: a
linguagem humorística e a linguagem publicitária. A publicidade possui uma intencionalidade pragmática, ou seja, é um
enunciado que pressupõe um contexto interativo e que possui um potencial perlocutório que o move numa determinada
direção discursiva, almejando determinadas finalidades, em geral de cunho persuasivo. Da mesma forma, a produção do
humor também está atrelada a uma dada situação comunicativa, a um contexto sócio-cultural e a determinados domínios
linguísticos em muitos casos.
Podemos dizer que o humor resulta de certo desvio de padrões socialmente estabelecidos, entendendo por desvio
“um conjunto de procedimentos que resultam em um jogo construído no âmbito do enunciado ou da enunciação” (ALMEIDA,
2001, p. 195). Neste sentido, Bergson (1987, p. 16) afirma que “rimos já do desvio que se nos apresenta como simples fato.
Mas risível será o desvio que vimos surgir e aumentar diante de nós, cuja história conhecemos e cuja história pudermos
reconstruir”. O autor acrescenta ainda que será cômico, e consequentemente produzirá humor, um desvio que possibilite
calar a sensibilidade e que nos desperte a inteligência pura.

Observemos agora, como sintoma não menos digno de nota, a insensibilidade que naturalmente
acompanha o riso. O cômico parece só produzir o seu abalo sob condição de cair na superfície de um
espírito tranqüilo e bem articulado. A indiferença é o seu ambiente natural. (p. 12)

Se por um lado, como sustenta Bergson (1987), o cômico resulta de certa insociabilidade, e se o riso é uma forma
de correção desta insociabilidade, por outro, associado aos propósitos publicitários, o cômico adquire uma nova
configuração. Apresenta-se antes como um elemento de identificação social. É por que faz parte de um contexto específico
que o humor expresso por um anúncio publicitário, por exemplo, será percebido. E o riso será aflorado como uma forma de
cumplicidade entre os interlocutores que se reconhecerão como pertencentes a um mesmo contexto comunicativo. É, pois,

1410
por sua sociabilidade, por que se identifica como membro de uma sociedade, porque compartilha determinados
conhecimentos, que o leitor rirá de um efeito cômico expresso em uma publicidade.
No entanto, os efeitos de um texto humorístico não chegarão da mesma forma a todos os leitores, visto que estes
produzem sentidos a partir de seu próprio contexto social, econômico e cultural. Sendo assim, um jogo de palavras, se mal
interpretado, pode ser considerado um erro, uma infração às normas da língua, ou mesmo, nem serem percebidos como tal.
Isso demonstra que a interpretação do humor se dá em um processo de interação entre interlocutores que participam
cooperativamente tendo por base não só o contexto, mas também, os elementos linguísticos para a produção dos sentidos.
Podemos dizer então que a produção de humor se relaciona tanto a uma dimensão sociocultural como a uma dimensão
psicológica – por um lado, remete às experiências compartilhadas socialmente e à cultura, por outro, o humor depende de
cada indivíduo, da percepção individual que ele terá em função de sua relação com este contexto sociocultural.
Para produzir uma modificação sobre seus destinatários sem ameaçar suas faces e sem arriscar o sucesso da
interação, a publicidade bem humorada procura partir do lugar comum, do socialmente aceito e convencionalizado. Bergson
(1987, p. 13) nos chama a atenção para o fato de que “o riso é sempre o riso de um grupo”, ou como dito por ele em outras
palavras, “O riso deve corresponder a certas exigências da vida comum. O riso deve ter uma significação social.” (idem,
p.14). Tem-se, pois, que o humor se produz e se interpreta no âmbito do social, e não fora dele.
O humor na propaganda funciona porque dá ao leitor que está na outra ponta da interação, a possibilidade de
interagir com o enunciador por meio da mensagem, de esforçar-se para interpretar os sentidos cômicos e,
consequentemente, identificar-se social e culturalmente. Neste sentido, o humor também apresenta um potencial ilocutório,
possui uma força que será determinada em contexto e um potencial perlocutório, cujos efeitos serão obtidos de forma
indireta, como deter a atenção, provocar o riso, causar estranhamento e tornar a situação mais relaxada e amena.

A cena enunciativa

Enunciar não é uma mera forma de representar o mundo, mas, principalmente, uma forma de ação sobre o outro.
Por seu caráter preponderantemente persuasivo, a publicidade caracteriza-se como um ato de linguagem complexo que
pretende modificar uma situação e agir sobre outros. Todo enunciado, mesmo quando produzido sem a presença de um
destinatário, como é o caso da publicidade, é marcado por uma “interatividade constitutiva” (MAINGUENEAU, 2001, P. 54),
ou seja, é produzido por um locutor em função de um suposto interlocutor.
De acordo com Maingueneau (2001, p.99), o “poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o
leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente especificados”. Esta corporalidade
de que fala Maingueneau materializa-se através da imagem social (ou ethos) que o enunciador constrói de si mesmo
através de seu discurso e através da cena de enunciação instituída, dando ao discurso certo tom enunciativo. Desse modo,
o ethos é a imagem que revela a personalidade do enunciador e torna-se parte constitutiva de uma cena de enunciação
expressa por atos tanto implícitos como explícitos e presumida como adequada ao discurso e ao contexto.

A publicidade visa, com efeito, persuadir, associando o produto que vende a um corpo em movimento,
a um estilo de vida, uma forma de habitar o mundo; como a literatura, a publicidade procura ‘encarnar’,
por meio de sua própria enunciação, aquilo que ela evoca, isto é, procura torná-lo sensível.
(MAINGUENEAU, 2001, P. 100).

Uma das preocupações do texto publicitário será, então, criar um ambiente propício para que seus propósitos se
concretizem. Um ambiente em que a enunciação funcione como uma representação das expectativas sociais e no qual a

1411
imagem do produto corresponda às imagens socialmente estabelecidas. Com base nisto, se inventa, se escolhe e se coloca
em cena uma voz e uma imagem enunciativas que tenham poder suficiente de convencer o destinatário das virtudes e
propriedades do produto num tom que embora seja persuasivo, se mostra natural. Esta cena deverá ser capaz de envolver
o leitor, de fazê-lo identificar-se com valores sociais com os quais compactua. Precisa, pois, ser autorizada, legitimada pelos
procedimentos enunciativos usados nos diversos discursos e gêneros da interação social. Temos, assim, instaurada o que
Maingueneau (2001) chama de cena da enunciação. Esta cena mobiliza três planos que se complementam na constituição
do discurso: uma cena englobante, uma cena genérica e uma cenografia.
A cena englobante corresponde ao tipo de discurso e vai determinar o estatuto pragmático da situação
comunicativa, ou seja, o comportamento comunicativo dos atores vai depender dos padrões preestabelecidos por um tipo
de discurso que pode ser religioso, filosófico, jurídico, político, publicitário etc. É esta cena define, por exemplo, onde
devemos nos situar para interpretar um discurso, o que devemos esperar dele e o que ele espera de nós, quais são os
papéis sociais em jogo, etc. No caso do tipo de discurso publicitário, é a cena englobante que nos permite antever um
anunciante que por meio de um publicitário se dirige a consumidores efetivos ou eventuais com finalidades específicas,
como promover o produto e apresentar os motivos pelos quais tal produto deve ser adquirido. Ao situar o discurso como
sendo do tipo publicitário, o interlocutor cria não só expectativas como também se prepara para interpretá-lo dentro de
determinados modelos preestabelecidos socialmente. Se em lugar de um tipo de discurso publicitário, nos deparamos com
um tipo de discurso religioso mudam, por exemplo, as expectativas, as finalidades e os papéis sociais.
A cena genérica, por sua vez, refere-se ao contrato comunicativo estabelecido pelos diversos gêneros de discurso
que definirão os papéis sociais, as finalidades, os modos de organização, o suporte material, a inscrição no tempo e no
espaço etc. Conforme Maingueneau (2001, p.86), “cada gênero de discurso define seus próprios papéis: num panfleto de
campanha eleitoral, trata-se de um ‘candidato’ dirigindo-se a ‘eleitores’; numa aula, trata-se de um professor dirigindo-se a
alunos etc.” A cena genérica direciona o enunciado, pois permite antecipar um conjunto de informações que serão
importantes para o alcance dos sentidos. Assim, quando temos um anúncio de carro publicado numa revista, saberemos
tratar-se de um discurso de tipo publicitário, que por meio daquele gênero específico – o anúncio de revista – converte o
leitor em consumidor potencial do produto, fazendo-o assumir, então, este novo papel social. Este leitor será levado a
perceber que existe um enunciador que por meio deste gênero buscará mecanismos de persuasão com a finalidade de
levá-lo à aquisição do produto anunciado. O conjunto destas duas cenas, a englobante e a genérica, compõem o quadro
cênico do texto, espaço estabilizado a partir do qual o enunciado adquire sentido e deverá ser interpretado.
No entanto, embora precise ter em mente este quadro cênico, não é com ele que o leitor se depara ao ler um
texto, mas sim com uma cenografia, uma forma de enunciar que não é definida especificamente pelo quadro cênico, mas
principalmente pelo próprio texto. Desta forma, o sermão, por exemplo, pode ser enunciado utilizando diferentes cenografias
(professoral, profética, amistosa, etc.) ainda que o quadro cênico se mantenha inalterado. Através da cenografia, a
enunciação coloca em funcionamento seu próprio dispositivo de fala, e ao mesmo tempo é a própria cenografia que legitima
a enunciação.

A cenografia implica, desse modo, um processo de enlaçamento paradoxal. Logo de início, a fala
supõe uma certa situação de enunciação que na realidade, vai sendo validada progressivamente por
intermédio da própria enunciação. Desse modo, a cenografia é ao mesmo tempo a fonte do discurso e
aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo
que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como
convém, segundo o caso, a política, a filosofia, a ciência, ou para promover certa mercadoria...
(MAINGUENEAU, 2001, P. 87-88)

1412
Os gêneros do tipo de discurso publicitário mobilizam diversas cenografias, ao contrário de alguns gêneros que
reduzem sua cenografia ao cumprimento de sua cena genérica, como é o caso da maioria dos gêneros do âmbito
administrativo, da lista telefônica e da receita médica; ou de outros que embora possam dispor de cenografias variadas,
acabam cumprindo determinadas rotinas genéricas, como o guia turístico.

A análise do corpus

Como corpus para análise neste estudo, tomamos três anúncios publicitários publicados na revista Veja: um de
1978 e dois de 2006. Primeiramente, vejamos o seguinte enunciado, retirado de um dos anúncios que serão analisados:
“Como é bom viver no interior. Lá tem espaço, beleza, conforto e muito silêncio.”
Analisando-o assim destacadamente, podemos identificar certo tom exclamativo (“Como é bom viver no interior”)
que nos revela uma voz que, de maneira indireta, procura atuar obre a opinião do leitor de que a vida longe da cidade é
muito boa. Logo a seguir, esta mesma voz argumenta enfatizando as vantagens da vida no interior (“Lá tem espaço, beleza,
conforto e muito silêncio). A cenografia mobilizada neste caso põe em cena uma voz que enuncia seu gosto pela vida no
interior e que, de certa forma, revela a personalidade do enunciador, ou seja, um ethos que prima pela vida simples, perto
da natureza, longe do barulho da cidade etc. Poderia, sob esta perspectiva, tratar-se de um anúncio relacionado à venda de
produtos que tenham relação com a vida no campo. Agora, observemos este mesmo enunciado, dentro do espaço
reservado a ele no anúncio seguinte:

“Como é bom viver no interior.


Lá tem espaço, beleza, conforto e muito silêncio.
Não tem lugar melhor nesse mundo do que o interior de um Chevrolet. Você tem várias combinações
e opções para fazer o interior à sua moda.
Mas, sempre, com bancos em vinil e cotelê, bonitos de se ver e de se sentar. Eles vão se reclinando
totalmente, até se deitar. Os carpetes são macios. Os comandos estão bem à mão, você sente a
precisão do volante, a facilidade de leitura do completo painel de instrumentos.
A paisagem interna é bem espaçosa, para todo mundo ficar à vontade. E é toda de uma cor só:
marrom, preta ou vinho.
E os horizontes que você tem de dentro de um Chevrolet? São amplos, vão até onde sua vista
alcança. Mas, do que fica lá fora, você escuta muito pouco, graças ao isolamento termoacústico.
Para completar, todo Chevrolet roda macio, gostoso.
Não é um carro bem assim que você anda querendo? Um carro espaçoso, seguro, que dê muita paz e
sossego? Então vá conversar com qualquer um dos 400 Concessionários Chevrolet. Eles fazem um
excelente negócio para pôr você dentro de um Chevrolet.
Porque, na verdade, Chevrolet foi feito para você.
Interiores Chevrolet.
Tome uma atitude Chevrolet.”

1413
Anuncio 1 – Revista Veja, edição 526, outubro de 1978, p. 11, 12 e 13.

Ao ver as imagens e a frase em destaque “Interiores Chevrolet 78”, já percebemos que a cenografia inicialmente
identificada remete-nos também para o interior do carro. O tom espirituoso deste anúncio encontra-se na ambiguidade da
palavra “interior” reforçada pelo dêitico “lá” que remete tanto para a cenografia do interior como sendo um lugar longe da
cidade, como para a cenografia do interior de um carro. Tal procedimento causa estranhamento no leitor e obriga-o a deter-
se para observar o anuncio mais calmamente. Ao longo do texto, descobrimos que esta ambiguidade na verdade se dá
devido à cenografia eleita para tal enunciado: é ela que põe em cena estas duas possibilidades e isto está inscrito no
enunciado através das escolhas lexicais feitas – “interior de um Chevrolet”, “fazer o interior à sua moda”, “paisagem interna”,
“e os horizontes que você tem dentro de um Chevrolet?” etc.
Mas isso provavelmente acontece porque, naquela época, final da década de 70, supostamente fazia parte do
imaginário coletivo a idéia de que a vida no interior era uma vida mais confortável, mais tranqüila, bonita etc. A isto,
Maingueneau (2001, p. 92) define como cena validada, ou seja, “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos
que se rejeitam ou de modelos que se valorizam”. Neste caso, toma-se um modelo valorizado – o campo como um espaço
que oferece qualidade de vida. Foi ao encontro desta aspiração que o anuncio se propôs a ir para alcançar seus objetivos.
Esta mesma marca de veículos, a Chevrolet, em 2006, mobiliza uma cenografia que também remete para a vida
no interior, mas cria um ethos que valoriza outras aspirações humanas: o desejo de aventura, o ideal esportivo, o desejo de
vitória etc. Este anúncio apresenta como cenografia o Mundial de Rally dos Sertões de 2006 que aconteceu no Brasil, o que
causa um efeito de verdade que por si só valida a cena. O interior já não é referenciado por sua tranquilidade, beleza e
espaço, mas por oferecer as condições ideais para quem busca aventurar-se. No entanto, esta não é a única cenografia
mobilizada para este anúncio, visto que nele percebemos o recurso da polifonia, através do qual o enunciador introduz sua
adesão à sabedoria popular por meio da paródia ao dito: “sujar a égua” em lugar de “lavar a égua” como é normalmente
reproduzido. Poderíamos dizer que neste caso temos uma cenografia difusa (MAUINGUENEAU, 2001), ou seja, não remete
a uma cenografia especificada de forma precisa pelo texto, mas a várias cenografias possíveis.

1414
Transcrição:
“SUJAMOS A ÉGUA.

CHEVROLET. MAIS UMA VEZ VENCEDORA NO


RALLY INTERNACIONAL DOS SERTÕES.

PARABÉNS AOS IRMÃOS MARLON E JOSEANE


KOERICH, CAMPEÕES DA CATEGORIA SUPER
PRODUCTION 2006.

Potência, torque, resistência, e conforto. Tudo o


que um carro precisa para vencer você só encontra
na pickup que é líder de vendas há 11 anos. Você só
encontra na S10.

CHEVROLET – CONTE COMIGO.”

Anúncio 2 – Revista Veja, edição 1969, 16 de agosto de 2006, p. 95.

O cômico deste anúncio encontra-se justamente na paródia do dito popular que em geral é empregado para
referir-se a alguma vitória ou conquista, referindo-se, neste caso, à vitória sim, mas no sertão, lugar empoeirado, o que
justifica o jogo entre lavar e sujar. Para interpretar o enunciado “sujamos a égua” em lugar de “lavamos a égua” como seria
o ditado, o leitor precisa recorrer ao seu conhecimento de mundo, precisa conhecer o ditado tradicional e sua significação
social, além de fazer associações com a cenografia apresentada pelo anúncio em questão. O ethos deste anúncio se
apresenta como alguém que tem familiaridade com seu interlocutor, visto tratá-lo por você e incluir-se no enunciado
juntamente com o leitor ao empregar a primeira pessoa do plural (sujamos). Neste caso, ao apresentar-se desta maneira
convida o leitor a cooperar amigavelmente com a produção dos efeitos de humor produzidos com o emprego da paródia,
fazendo-o ser cúmplice da vitória conquistada ao mesmo tempo em que demonstra que o carro em questão, tendo vencido
uma competição como esta, pode servir perfeitamente aos desafios da vida cotidiana de seus compradores.
Neste outro anúncio da Goodyear, de 2006, o anunciante usa a mesma cenografia do Rally dos Sertões para
legitimar seu enunciado.
É por meio desta cenografia que o anunciante diz ao destinatário que os carros da competição patrocinados pela
Goodyear, e, que por tanto usavam os pneus Goodyear, foram campeões do rally. Desta forma, convence seus
consumidores da eficiência dos pneus mostrando-lhes uma cena concreta e, por isso mesmo, validada. O humor deste
anúncio também se baseia na relação com a cenografia, e está inscrito no seguinte enunciado: “Nem todo Goodyear
chegou em primeiro no Rally dos Sertões. Os pneus traseiros, por exemplo, chegaram depois dos dianteiros.” Observando a
imagem, vemos três carros, todos três patrocinados pela Goodyear e todos classificados como campeões dentro de sua
categoria, do que podemos pressupor que o que se enuncia é que todos os carros patrocinados pela Goodyear foram
campeões.

1415
Anúncio 3: Revista Veja, edição 1969, 16 de agosto, 2006, p. 73.

Por meio deste enunciado, revela-se um ethos espirituoso e de certa forma irônico, pois ao dizer que “nem todo
Goodyear chegou em primeiro...” está na verdade lançando mão de uma modéstia que será derrubada pelo jogo de
palavras seguinte (Os pneus traseiros, por exemplo, chegaram depois do dianteiro). Esta relação entre o que se diz neste
enunciado e o que se mostra na imagem provoca um efeito risível que envolve o leitor, além de tornar o discurso mais leve
e relaxado. Ao se transmitir a informação desta forma bem humorada, permite-se que o ato de linguagem se cumpra e seja,
por isso, um ato bem sucedido.

Conclusão

Como vemos, o discurso publicitário elege uma cenografia e ao mesmo tempo busca justificá-la, legitimando-a
como a melhor forma de dizer o que se pretende dizer. No anúncio 1, por exemplo, ao trazer à memória as vantagens da
vida no interior se estabelece uma comparação com o interior do carro, fazendo assim, com que a cenografia enuncie
exatamente o que ela engendra. Da mesma forma, no anuncio 2, ao dizer “sujamos a égua”, parodiando o dito popular, está
na verdade dizendo que o dever foi cumprido, que as expectativas postas no carro de fato foram concretizadas numa
situação limite de competição no rally dos sertões. E ainda no anuncio 3, é a própria cenografia que diz tudo – todos os

1416
carros com pneus Goodyear foram campeões do rally, logo, a supremacia dos pneus fica evidenciada. A piada apenas
corrobora para que este sentido se fixe ainda mais. Assim, a cenografia ao mesmo tempo em que cria o discurso, é o
próprio discurso, ou seja legitima e é legitimada por ele.
A escolha da cenografia de um anúncio publicitário implica um conjunto de fatores: o produto anunciado, os
interlocutores (anunciante/publicitário, leitor/consumidor), os saberes partilhados que serão mobilizados, as cenas validadas
possíveis, as escolhas lexicais que criam ou ajudam na criação da própria cenografia etc. É neste quadro geral que os
efeitos de humor são construídos. Observemos que se isolássemos os enunciados linguísticos nos quais estão construídos
os sentidos humorísticos das cenografias em que se encontram, tais sentidos seriam esvaziados e não produziriam os
mesmos efeitos.
O humor nos anúncios publicitários impressos pode ser definido como um procedimento enunciativo que
conjugando elementos linguísticos e não linguísticos procura provocar um desequilíbrio no leitor baseando-se na ruptura de
algum conhecimento estabelecido socialmente, desviando-se de uma visão de mundo estereotipada, brincando com a
língua etc. Desta forma se produz uma relação de estranhamento ao mesmo tempo inesperada e prazerosa, que choca as
expectativas do leitor acostumado ao tom persuasivo dos anúncios, mas o envolve e prende. O humor não precisa, pois,
provocar necessariamente o riso, mas fazer o leitor envolver-se e compartilhar com o destinatário os efeitos cômicos
produzidos pelo anuncio.

Referências

ALMEIDA, Fernando Afonso de. Desvios e efeitos na produção de enunciados. In: Boletim da ABRALIN – número especial.
(II Congresso Internacional da ABRALIM, Fortaleza, março de 2001 – Anais Vol. II), Maria Elias Soares (Org.).

BERGSON, Henri. O riso – ensaio sobre a significação do cômico. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Os atos de linguagem no discurso: teoria e funcionamento. Tradução de Fernando


Afonso de Almeida e Irene Ernest Dias. Niterói: EdUFF, 2005.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

REYES, Graciela. La Pragmatica Lingüística: el estúdio del uso del lenguaje. 2ª edición. Barcelona: Montesinos, 1994.
CONSULTADO EM: books.google.com.br, ACESSADO EM: 18 de agosto de 2010.

SANDMANN, Antonio José. A Linguagem da Propaganda. 8ª edição. São Paulo: Contexto, 2005.

Veja – revista. São Paulo, Abril, ed. 526, 04 de outubro/1978, p. 11, 12 e 13.

Veja – revista. São Paulo, Abril, ed. 1969, ano 39, nº 32, 16 de agosto/2006, p. 73 e 95.

A autora é graduada em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2007), onde também está concluindo o
curso de especialização em Língua Portuguesa (2010) e iniciando o mestrado em Estudos da Linguagem. Além disso, é
professora de português da rede estadual de ensino do estado do Rio de Janeiro. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9065602510502960.

E-mail: ceicaoalmeida@hotmail.com

1417
Discurso literário/filosófico em Marguerite Yourcenar e
Sören Kierkegaard
SILVA, Nilson Adauto Guimarães
(Universidade Federal de Viçosa)

INTERTEXTOS

Sören Kierkegaard é um filósofo dinamarquês do século XIX cuja reflexão profunda e original, só tardiamente
reconhecida, repercutiu fortemente na filosofia e na literatura do século XX. Marguerite Yourcenar é uma brilhante
romancista francesa do século XX, consagrada como primeira mulher a fazer parte da Academia Francesa de Letras;
também poeta, tradutora, ensaísta e crítica, ela é vista como autora de narrativas autobiográficas e de romances
considerados históricos e humanistas.
Os textos de ambos os autores, particularmente Alexis ou o tratado do vão combate (1929), de Yourcenar, e Diário
de um sedutor (1843), de Kierkegaard, podem ser comparados sob diversos aspectos, pois o discurso filosófico de um e o
discurso literário de outra apresentam afinidades e dissonâncias. Alexis, enquanto romance, traz igualmente uma reflexão
altamente elaborada; o Diário, enquanto obra filosófica, pode ser considerado também um romance, repleto de referências a
outras obras literárias. Cremos estar diante de um romance filosófico e de uma filosofia como ficção literária; de fato, as
fronteiras impostas aos gêneros e discursos é um fato relativamente recente, de cunho acadêmico e classificatório, e não
um elemento intrínseco às produções.
A literatura, como produção, parece cada vez mais romper as barreiras exteriores para trabalhar no seio do
ficcional a criação de mundos e a abordagem de temas que igualmente dizem respeito às ciências em geral e às
humanidades em particular. Em Alexis há um diálogo do discurso literário com problemas e procedimentos que atravessam
uma longa tradição comum à literatura, à história, à psicologia, à filosofia e aos estudos sociais; o texto remete ao discurso
de outros autores, aos quais são feitas inúmeras referências.
Em Memórias de Adriano (1951) e n’A Obra em negro (1968), os romances mais conhecidos de Yourcenar,
observamos o humanismo subjacente ao discurso do velho e experiente imperador romano, bem como àquele do erudito
médico e filósofo Zenão, contextualizado no período da Renascença. Tal humanismo, configurado num discurso que realça
a centralidade da pessoa humana e sua dignidade, remonta a uma linha de pensamento oriundo do período clássico da
Grécia e de Roma. Na Obra em negro, o diálogo com a história, a medicina e o pensamento renascentista é evidente.
Alexis ou o tratado do vão combate (1929), primeiro romance de Yourcenar, é um texto bastante curto mas
extremamente denso a que foi acrescentado, em 1963, um prefácio escrito pela autora no qual ela esclarece sua
composição e oferece pistas valiosas para seu estudo. De estilo preciso e sóbrio, o romance é uma carta, na qual Alexis,
músico de 24 anos, faz confissões a sua esposa Mônica e lhe descreve o “vão combate” que ele vinha travando há anos
contra seus desejos e anseios e que o leva a romper com ela. Escrevendo a Mônica, Alexis desenvolve um monólogo
introspectivo, volta no tempo e relembra eventos de sua existência; sua carta é ao mesmo tempo uma autobiografia e uma
confissão.
Para além da questão da homossexualidade defende-se a recusa da massificação, pois a pressão social no
sentido de adequar os comportamentos individuais a padrões pré-estabelecidos socialmente existe para todos. O texto
tematiza a construção da identidade em sentido amplo, como pessoa livre e autônoma, daí decorrendo, por consequência, a
coragem para assumir suas escolhas, opiniões e preferências.

1418
O desenrolar do romance corresponde ao processo de emancipação e de liberação de Alexis. Este, inicialmente,
reprime e condena a si próprio, por já haver internalizado a desaprovação da sociedade, sentindo-se inteiramente submisso
à censura alheia; ao final da narrativa, entretanto, assume seus sentimentos e opiniões, desafiando o peso da opinião
pública.
Em suas reflexões e atitudes Alexis ressalta sua solidão, sua angústia e a singularidade de sua personalidade. É
por este aspecto que o romance pode ser lido como uma obra de cunho profundamente existencial e se aproxima da
concepção existencialista da pessoa como ser que responde por seu próprio destino. A dialética do individual e do coletivo,
do pessoal e do social, do particular e do geral, sob a qual se representa a evolução do personagem Alexis e seu itinerário
para a liberdade, desenvolve-se na obra num processo de intertextualidade, assim são relacionados a outros textos e a
outros autores os grandes temas da obra: a construção da identidade, a problemática do gênero – sexual e literário, o amor,
a religião, a angústia, a dimensão do tempo biográfico e histórico, a referência aos clássicos, a linguagem despojada, o
tema da confissão, a crítica social, a defesa do humano.
Em Alexis, há um diálogo não só com outros textos, mas também com o ambiente histórico, através da discussão
no ficcional de questões próprias de um contexto social. No romance de Yourcenar, o tema da formação da identidade do
personagem está associado a uma forte crítica social; a dimensão sociológica e a dimensão psicológica se associam como
em muitas abordagens filosóficas.
No prefácio ao romance, a autora relembra que Alexis foi lançado em 1929, num momento da literatura e dos
costumes em que um assunto marcado pela interdição encontrava, pela primeira vez, depois de séculos, sua plena
expressão escrita. Hoje, depois de tantos anos, mesmo após avanços no processo de liberação sexual, o livro permanece
atual: o problema íntimo de Alexis continua angustiante e secreto, marcado pela discriminação e pelo preconceito.
Yourcenar se revela preocupada em definir seu posicionamento com relação aos problemas da época, ela luta
contra a sociedade pós-industrial, denuncia os lugares-comuns e considera que o dever essencial do romancista consiste
em incitar a repensar. Seus personagens maiores são apresentados como porta-vozes deste projeto de contestação, que se
realiza frequentemente pela via de um recurso à História, vista como escola de liberdade ou empreendimento de dissolução.
Alexis remete ao Diário de um sedutor pelo tema da relação interrompida e também pela defesa da singularidade
do indivíduo que, fonte de autonomia, exerce sua liberdade escolhendo seu próprio ser. O pano de fundo existencial
presente no romance se coaduna perfeitamente com as reflexões de Kierkegaard em Temor e tremor, O Desespero
humano e O Conceito de Angústia. Inúmeras das premissas do existencialismo se encontram em Kierkegaard: as noções
de angústia, desespero, autonomia do indivíduo e construção da própria personalidade, das quais Sartre se utilizou para
desenvolver o Existencialismo, já estão presentes no pensamento do filósofo e são suficientes para nos auxiliar na
compreensão da experiência narrada por Alexis. Assim, se O diário de um sedutor pode ser lido como um discurso estético
comparável ao romance, outros textos de Kierkegaad, como O Desespero humano, Temor e tremor e O conceito de
angústia podem ser vistos como discurso teórico capaz de fornecer subsídios para a análise do romance Alexis.
Diário de um sedutor se abre com uma epígrafe: Sua passion predominante è la giovin principiante
(KIERKEGAARD, 2006, p.13), retirada do folheto da ópera (Ária nº4) Don Giovanni, de 1787, composição de Mozart, com
libreto de Lorenzo da Ponte. Esta epígrafe remete o leitor, de imediato, ao universo da música, da arte, da ficção e, através
da figura de Don Juan, personagem paradigmático por encarnar um típico comportamento sexual, faz igualmente referência
a um mito literário e a uma temática erótica. O Diário seria assim uma reescritura da ópera. Johannes é o nome do
personagem que assume o papel de Don Juan e é também um pseudônimo de Kierkegaard: Johannes de Silentio. Há uma
correspondência dos antropônimos: Johannes – Giovanni – Juan.

1419
Na abertura do Diário, um primeiro narrador explica como teria encontrado, casualmente, os manuscritos que ele
transcreve, pertencentes a duas pessoas conhecidas suas; trata-se do diário e de cartas de Johannes, e de algumas cartas
de Cordélia. Falando de Johannes, este narrador afirma que “a sua vida foi uma experiência constante para realizar a tarefa
de viver poeticamente” e que ele, “hábil para descobrir o que de atraente existe na vida, soube sempre traduzir o que vivera
com uma veia quase poética”, mas que tal diário, entretanto, apenas se revestia para ele de um valor pessoal e não era
destinado a ser impresso, o que nos inibe “pensar que temos diante de nós uma obra literária” (KIERKEGAARD, 2006,
p.15).
O narrador observa ainda que Johannes nada teria a temer de uma eventual publicação, visto que os nomes
próprios não são reais. Ou seja, Johannes é já um pseudônimo do Don Juan sedutor que escreve seu diário, e Cordélia, a
jovem seduzida por ele e cuja história é contada, chamar-se-ia, na realidade, Wahl. Conforme observa Marcio Gimenes, O
Diário pode ser relacionado a outros diários amorosos da literatura universal, tal como As relações perigosas de Choderlos
de Laclos e peças de Shakespeare, não sendo fortuito que a jovem seduzida se chame Cordélia, nome de uma
personagem do autor inglês. (cf. PAULA, 2009, 97)
Assim, ao mesmo tempo em que se diz que não temos diante de nós uma “obra literária” (por revestir-se de um
valor pessoal e por não estar destinada a ser impressa), admite-se que o diário é poético, porque quem o escrevera era
dotado de “uma natureza poética que não distinguia entre a poesia e a realidade” (KIERKEGAARD, 2006, p.15). O narrador
reproduz um bilhete de Cordélia (no qual ela fala de suas impressões a respeito daquele que a seduzira) e afirma ter
recebido dela também um punhado de cartas. Destas, três que ela escreveu a Johannes aparecem em primeiro lugar, as
que este escreveu a ela são inseridas no diário dele; e assim se configura a estrutura do livro.
Temos aqui uma moldura tipicamente literária. Além de criar um efeito de verossimilhança e evitar um
comprometimento moral, como se o narrador não assumisse os propósitos do personagem, esta moldura e o uso dos
pseudônimos (que acentuam o afastamento em relação ao autor) revelam um procedimento literário. Além do relato
individual, do estilo deste relato, e do jogo com nomes e pseudônimos, o truque de se afirmar que apenas se transcrevem
escritos ou falas de um terceiro corresponde, no interior do Diário de um sedutor, uma estratégia presente em muitos textos
de ficção, como Manon Lescaut (1731) de Prevost, Zadig (1747) de Voltaire e Cartas Persas (1721) de Montesquieu.
De fato, é propriamente como literatura ou filosofia literária que O Diário pode ser lido. Segundo Marcio Gimenes,
no Diário encontramos filosofia e o método do sedutor e não apenas a história de um Johannes e sua Cordélia, entretanto
“A obra Diário de um sedutor coloca [...] uma séria questão: ela é uma peça filosófica ou literária?” (PAULA, 2009, p.97)
Don Juan é um mito retomado por outros escritores e por outros filósofos. Camus, no Mito de Sísifo, no capítulo “O
donjuanismo”, apresenta o personagem como símbolo do Absurdo: “Se bastasse amar, as coisas seriam simples. Quanto
mais se ama, mais o absurdo se consolida. Não é de modo algum por falta de amor que Don Juan vai de mulher em mulher.
É ridículo representá-lo como um iluminado em busca do amor total.” (CAMUS, 1989, p.89)
No Diário há referências a outros textos filosóficos e literários. Remete-se às Mil e uma noites, e à narrativa como
sedução e como garantia da sobrevivência: “Graças ao jogo fácil da conversação, manteve-se sempre reprimido,
exatamente como quando Xeerazade protela a sentença de morte, continuando a contar as suas histórias.” (KIEKEGAARD,
2006, p.126)
De forma semelhante ao que se passa com Yourcenar, também Kierkegaard evoca em seus textos filosóficos
inúmeros autores de filosofia e de ficção, e alude igualmente ao contexto em que produziu suas obras. Sua reflexão é
inseparável da religião oficial de seu país e da filosofia racionalista de Hegel, então predominante. Neste sentido, ambos os
autores produziram intertextualidade no sentido amplo da palavra, no diálogo com outros discursos, mas também com o
texto compreendido como ambiente social, cultural e histórico.

1420
Na Fenomenologia do espírito (1807), Hegel elabora uma sistematização extrema. Ele busca elevar a filosofia
definitivamente à categoria de ciência, obedecendo à necessidade interna do conhecimento. O sistema de todos os
conceitos, equivalente à verdade que a ciência tem por objetivo, para por um termo à inquietação da especulação, atingiria
o alvo da busca filosófica. Neste sistema, em que a realidade cabe inteira nos conceitos que o pensamento produz, a
especulação filosófica alcançaria finalmente o estágio de ciência integral, de saber completo e universalmente válido.
Como posições divergentes desta hegeliana, podemos lembrar as de Nietzsche, Schopenhauer e Kierkegaard,
filósofos que atacam as pretensões das ciências exatas, questionam o racionalismo dos idealistas e põem em questão o
positivismo com sua crença no “fato” e no sentido “progressivo” da história. N’O Conceito de Angústia, Kierkegaard afirma:

Que os matemáticos e astrônomos se socorram, se puderem, com as grandezas infinitesimalmente minúsculas:


na vida tal coisa não serve nem para alguém obter um diploma, muito menos para explicar o espírito!
(KIERKEGAARD, 2010, p.3)

Com efeito, ao lado da filosofia tradicionalmente consagrada no Ocidente – racionalista, teórica, pretensiosamente
totalizadora, expressa em forma de sistemas fechados – há uma linha de pensamento de cunho existencial e ciente dos
limites da racionalidade humana e da lógica matemática. Os autores desta linhagem não creem que a racionalidade teórica
seja capaz de dar conta da totalidade da existência humana e não veem como forma adequada e coerente de comunicar
suas posições um sistema fechado, construído de forma totalmente lógica; por isso suas reflexões se desenvolvem num
discurso menos uniforme e numa proximidade com os textos literários, através de ensaios, diálogos e discursos
fragmentários, como máximas e aforismos.
No prólogo a Temor e tremor, Kierkegaard (sob o pseudônimo de Johannes de Silentio) afirma: “O presente autor
de nenhum modo é um filósofo.” (KIERKEGAARD, 1974, p.252) Com isso, na verdade, ele está dizendo que não se insere
na linhagem da filosofia oficial de sua época. Camus faz uma declaração próxima desta, e cremos que pelas mesmas
razões, ele afirma: “Não sou um filósofo e nunca pretendi ser” (CAMUS, 1965, p.743 – tradução nossa). Também Nietzsche
se apresentava como filólogo, na busca de ocupar um espaço no campo da filosofia. São autores que recusam o sistema e
se recusam a entrar nas formas reconhecidas e tradicionais da filosofia.
Trata-se de autores que não apenas se dedicam a um determinado problema filosófico, mas questionam a própria
filosofia, autores que foram “marginais” em seu tempo, ofuscados por outros mais sistemáticos; eles questionam as
pretensões de uma razão absoluta e valorizaram como característica importante do filósofo sua capacidade de pensar com
liberdade e quebrar pré-conceitos e apriorismos estabelecidos.
Kierkegaard, cujo pensamento deixou ecos em Jaspers, Heidegger, Sartre, Ricoeur, Benjamin, Kafka, Chestov,
Derrida, Jankélévitch, Arendt, Deleuze, Thomas Mann, Lacan, Bataille, Adorno, entre outros, é herdeiro não do Platão
idealista nem do Aristóteles sistematizador, mas do irônico Sócrates, do qual ele retoma dois lemas centrais: “conhece-te a
ti mesmo” e “só sei que nada sei”. Numa espécie de dedicatória que abre O conceito de angústia, Kierkegaard afirma que
“O tempo das distinções passou, o Sistema o superou”, e cita Johann G. Hamann que via a grandeza de Sócrates no fato
de este distinguir entre aquilo que compreendia e aquilo que não compreendia. Ainda, destacando o mérito de
Schleiermacher, Kierkegaard volta a criticar Hegel e sua sistematização:

A gente o abandonou há bastante tempo, quando se preferiu Hegel, e contudo Schleiermacher era, no belo
sentido da palavra, um pensador, que só falava daquilo que sabia, enquanto que Hegel, apesar de todas as
suas excelentes qualidades e a sua colossal erudição, em tudo o que produziu está mais e mais a lembrar que
era, na acepção alemã do termo, um professor de filosofia de um alto nível, na medida em que precisava
explicar tudo à tout prix. (KIERKEGAARD, 2010, p.22)

1421
AMOR E SEDUÇÃO

Aos vinte e quatro anos, Kierkegaard enamorou-se de Regina Olsen, que tinha então quatorze; após dois anos de
namoro tornaram-se noivos e fixaram a data do casamento. Porém, à medida que a data se aproximava e à medida que
Regina se mostrava mais entusiasmada, Kierkegaard começou a mostrar-se receoso. Aumentaram suas dúvidas até se
converterem em pânico e, repentinamente, rompeu o compromisso, fugindo em seguida para Berlim. Em seu diário ele
escreveu: “Se me pedissem que explicasse minha conduta teria sido obrigado a iniciar minha noiva em pensamentos
terríveis, nas relações com meu pai, em minha melancolia insondável, na noite eterna que vivo no mais íntimo do meu ser.”
(in: KIERKEGAARD, 2006, p.150)
Supõe-se que Kierkegaard, tendo ouvido falar em inumeráveis sermões sobre os males da carne, havia criado
determinados tabus sexuais. A própria ideia das obrigações conjugais provavelmente lhe causasse repugnância, visto que o
matrimônio trazia implícita a suposição da felicidade e, para o espírito que exaltava o sofrimento, a felicidade terrena era um
pecado. (cf. KIERKEGAARD, 2006, p.150)
O rompimento do noivado com Regina Olsen foi um fato marcante na vida de Kierkegaard, porém tal ruptura não é
um evento apenas biográfico, é igualmente um tema central no Diário, que corresponde à história de uma sedução tanto
quanto à de uma separação. Na trama, Johannes seduz Cordélia e a leva a romper o compromisso com Eduardo, de quem
ela já se tornara noiva. Uma vez seduzida e estando já noiva agora de Johannes, ela finalmente rompe o noivado com ele
também, mas sua decisão foi resultado de um longo processo de manipulação; pois era este o verdadeiro objetivo de
Johannes, seduzi-la e abandoná-la. Para tal sedutor, o processo que culmina na ruptura do relacionamento é tão importante
quanto o processo de sedução. O tema da separação é evocado igualmente em Temor e tremor:

Aristóteles conta na Política uma anedota referente aos distúrbios ocorridos em Delfos causados por uma
história de casamento. O noivo, a quem os áugures prediziam uma desgraça após o casamento, alterou
subitamente a sua resolução no instante decisivo em que vinha buscar a noiva; recusou-se a celebrar as bodas.
Basta-me isto. Em Delfos, este acontecimento não passou sem lágrimas; se um poeta nele se inspirasse,
indubitavelmente poderia contar com a simpatia. Não é terrível que o amor, tão frequentes vezes banido da
vida, se veja ainda privado de socorro do céu? (KIERKEGAARD, 1974, p.305-6)

Em suas páginas iniciais, o primeiro narrador que apresenta o Diário constata seu aspecto erótico: “Lançando um
breve olhar pelas folhas soltas, constatei que continham estudos de circunstâncias eróticas.” (KIERKEGAARD, 2006, p.13)
Através das referências ao Fedro e ao Banquete, de Platão, são feitas outras alusões ao erotismo:

Durante os últimos dias, continuarei a preparar-me lendo a bem conhecida passagem do Fedro que trata do
amor. Eletrizou todo o meu ser e é um soberbo prelúdio. Quão grande era realmente o saber de Platão sobre o
erotismo! (KIERKEGAARD, 2006, p.122)

Sabes que outrora existiu sobre a terra uma raça, humana é certo, mas de que cada elemento se bastava a si
próprio, e não conhecia a união íntima do amor. Contudo o seu poder foi grande, tão grande que pretenderam
tomar de assalto o céu. Júpiter temia essa raça e fez de cada um dos seus elementos um par, homem e mulher.
Quando por vezes acontece reunir-se de novo no amor o que era outrora unido, tal união é mais forte que
Júpiter; eles possuem então não só tanta força como o conjunto dos dois elementos, mas mais ainda, pois a
união do amor é uma superior unidade. (KIERKEGAARD, 2006, p.145)

A amizade, o amor, o desejo, o casamento e o sexo não são temas alheios ao campo da investigação filosófica,
são temas de relevância ao mesmo tempo individual e social. Tanto o pensamento quanto o erotismo podem ser
socialmente subversivos, motores de repressão e de condenação. No prefácio a Alexis, Yourcenar destaca o peso dos
tabus e detecta uma relação direta entre as interdições dos comportamentos e as interdições da linguagem; para ela os
problemas da liberdade sexual são em grande parte um problema de liberdade de expressão.

1422
Platão discute no Fedro o amor e o desejo humanos como atração irresistível, e no Banquete o amor como
primeira força da criação humana e como busca da unidade perdida. Santo Agostinho afirma que ninguém vive sem amar
(Nemo est qui non amet) e resume no amor sua ética, afirmando que para os que amam nenhuma lei é necessária (Ama et
fac quod vis). Montaigne, fundador do gênero ensaio em francês elogia o amor filia, ao dizer da importância da amizade na
vida humana. Rousseau é um dos primeiros a ousar falar abertamente sobre a questão sexual, na Nova Heloísa, nas
Confissões e nos Devaneios do caminhante solitário. Charles Fourier discute o amor no Novo mundo amoroso; em que
rejeita tanto o moralismo burguês quanto a simples libertinagem, e critica o casamento. Nesta linhagem se inserem muitos
outros autores, entre eles Sartre, Foucault e Nietzsche, além do próprio Kierkegaard. Num contexto de crítica ao ideal
ascético e religioso, Nietzsche escreve:

Existe incontestavelmente, desde que há filósofos na terra, e em toda parte onde houve filósofos [...] peculiar
irritação e rancor específicos dos filósofos contra a sensualidade. [...]
Qual grande filósofo foi casado? Heráclito, Platão, Descartes, Spinoza, Leibnitz, Kant, Schopenhauer não o
foram; mais ainda, não podemos sequer imaginá-los casados. Um filósofo casado é coisa de comédia, eis a
minha tese; e aquela exceção, Sócrates – o malicioso Sócrates parece ter-se casado ironice [por ironia],
justamente para demonstrar essa tese. (NIETZSCHE, 1998, p.96-97)

No Diário, através do drama da sedução, o amor aparece principalmente como uma força em suspense,
encarnada na figura legendária de Don Juan como eterna insatisfactio. Para Johannes, a sedução se faz sob o aspecto do
estético mais do que sob aquele do erótico propriamente dito, ou seja, Johannes não é um sedutor vulgar: busca o erótico
etéreo, mas não a sexualidade enquanto ato físico. Conforme afirma o sedutor a respeito de Cordélia:

Com a ajuda das suas qualidades espirituais, sabia tentar uma jovem, sabia atraí-la para si, sem se inquietar
em possuí-la, no sentido exato do termo... (KIERKEGAARD, 2006, p.17)

De modo algum me interessa possuí-la no sentido grosseiro, o que importa é desfrutá-la no sentido artístico.
(KIERKEGAARD, 2006, p.80)

Não me interessaria surpreendê-la no banho, de modo algum, seria antes com as minhas perguntas que a
espreitaria. (KIERKEGAARD, 2006, p.139)

No Diário, a sedução aparece como um fim si mesma, afastada do amor, da sexualidade, da ética e da
religiosidade; para Johannes o noivado e o casamento não passam de compromissos ridículos:

Ah, bem sei, há muitas que não estão noivas e, no entanto, têm um namoro, muitas que estão noivas e no
entanto não conhecem o amor... (KIERKEGAARD, 2006, p.26)

Eis-me, agora, noivo, Cordélia também, e isso é, mais ou menos, tudo que ela sabe sobre esse tema. [...]
Dentre todas as coisas ridículas, é o noivado que tem o primeiro lugar. (KIERKEGAARD, 2006, p.83)

Esta manhã recebi uma carta em que Cordélia troça os noivados em geral, com mais espírito do que a teria
julgado capaz. (KIERKEGAARD, 2006, p.99)

Este sedutor atípico mantém-se na tensão; envolve, manipula, seduz, conquista e abandona sua presa, mas não
mantém com ela nenhum ato sexual. Ele discute a aparência pouco feminina de sua Cordélia e chega a emitir propósitos
bastante ambíguos e misóginos:

O mal está em que não é de modo algum difícil seduzir uma jovem, mas sim encontrar uma que valha a pena
ser seduzida. (KIERKEGAARD, 2006, p.44)

Ela é altiva, já desde muito que o sei. [...] Noutros momentos, e com grande espanto das Jansen, pode quase
se animar como um garoto. [...] o que, de maneira mais ou menos precisa ou confusa atrai geralmente uma
jovem, não atrai a ela. É possível até que ignore qual o verdadeiro papel de uma rapariga. É possível que, em
certos momentos, ela possa não desejar ser uma rapariga, mas um homem. (KIERKEGAARD, 2006, p.52)

1423
Na verdade, todas as jovens que aceitam confiar-se a mim podem estar certas de um tratamento perfeitamente
estético; apenas no fim, bem entendido, serão enganadas; mas essa é também uma cláusula da minha estética
porque, ou bem que a jovem engana o homem, ou bem que o homem engana a jovem. (KIERKEGAARD, 2006,
p.88)

É o que explica também que Deus, ao criar Eva, tenha lançado sobre Adão um sono profundo; pois a mulher é
o sonho do homem. (KIERKEGAARD, 2006, p.134)

Um homem nunca poderá ser tão cruel como uma mulher. (KIERKEGAARD, 2006, p.135)

Não quero fazer-lhe as minhas despedidas; nada me repugna mais que lágrimas e súplicas de mulher que tudo
desfiguram e, contudo, a nada conduzem. Amei-a, mas de agora em diante não pode já me interessar. Se eu
fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-la-ia em homem. (KIERKEGAARD, 2006,
p.147)

Em Alexis, muito diferentemente do que ocorre no Diário, a sexualidade como tal está presente e é vista como
indissociável da identidade do indivíduo. Ao contrário de Johannes, Alexis não deseja representar um papel e busca ser
transparente com sua esposa, mesmo no momento em que vai se afastar dela: “Não entendo por que o prazer possa ser
desprezível simplesmente por se tratar de uma sensação. Ninguém despreza a dor por ser igualmente uma sensação.”
(YOURCENAR, 1981, p.31)

RELIGIOSIDADE

Kierkegaard cresceu num ambiente de religiosidade cristã extremamente rigorosa e severa, que parece ter
deixado traços tanto em sua personalidade quanto em sua obra. O pensador, além de filósofo, é um teólogo, um homem de
fé, mas profundamente crítico da religião institucionalizada. Crítico implacável da sociedade em que viveu, da filosofia
acadêmica e sistematizada, da tentativa de racionalização dos dogmas cristãos, Kierkegaard considera que a Igreja aboliu o
cristianismo e que a vida pseudocristã de seu tempo revela o engano evidente que representa a política a cujo serviço se
pôs o cristianismo.
Só tardiamente O Diário foi publicado isoladamente, originalmente ele fazia parte de uma obra mais ampla,
segundo alguns a mais importante de Kierkegaard, intitulada Enten-Eller (traduzida em português como A alternativa/Ou isto
ou aquilo/Ou...ou...) e assinada por Victor Eremitus. O pseudônimo revela um constante distanciamento em face do autor
real, e mostra igualmente o jogo literário.
No Diário não se discute diretamente a religiosidade, mas parece vermos já os reflexos dela. Johannes prescinde
tanto da religião quanto da ética, apenas o primeiro narrador, numa espécie de introdução que precede as cartas e o diário,
assume a defesa de uma moral próxima da religião. Este narrador classifica a dimensão erótica como componente do
estádio estético, o primeiro estádio que antecede ao ético e ao religioso.
Abandonada, a vítima de Johannes sente sua vida não quebrada nem desviada, mas antes curvada dentro de si
própria. Tal sedutor só pode ser recriminado, e da mesma forma que afugentou os outros do bom caminho, ele próprio
acabará por se perder. Tal sedutor há de se tornar vítima de seu próprio veneno e há de se ver “perseguido pelo desespero
como o animal selvagem pelos cães”. Tal homem, contudo, não pode ser chamado de criminoso, sendo, muitas vezes,
iludido pelas suas próprias intrigas:

É revoltante que um homem indique mal a estrada a um viajante que desconhece o caminho a seguir, e o
abandone em seguida, sozinho no engano. Mas não será mais revoltante ainda levar alguém a perder-se em si
próprio? O viajante tem, apesar de tudo, o consolo da paisagem, cuja aparência se vai invariavelmente
modificando aos seus olhos, e o fato de que em cada uma dessas modificações pode ter a esperança de
encontrar uma saída; mas aquele que se perde em si próprio não tem um tão amplo terreno por onde guiar os
seus passos; brevemente se dá conta de estar fechado num círculo de onde lhe é impossível fugir. Penso que

1424
assim se virão a passar as coisas no caso dele, mas em uma bem mais extraordinária medida.
(KIERKEGAARD, 2006, p.18)

Em Alexis, uma possível alusão ao religioso estaria no título da obra. No prefácio ao romance, Yourcenar afirma
que «Alexis», o nome do personagem que dá título ao livro, teria sido tomado de empréstimo a uma écloga de Virgílio — em
que se lê: Formosum pastor Corydon ardebat Alexim... — da qual, e por idênticas razões, André Gide tomou o Corydon,
título de seu controvertido ensaio sobre a homossexualidade.
O subtítulo do romance – «Tratado do vão combate» – é outra referência direta a Gide, pois remete ao Tratado do
vão desejo, uma das primeiras obras do autor. Entretanto, Yourcenar afirma que buscou em Gide mais o aspecto formal, a
«linguagem despojada, quase abstrata e ao mesmo tempo circunspecta e precisa», do que o temático.
Cremos poder ver no título “Alexis”, além da homenagem a Gide, a referência a um elemento histórico e religioso.
Sabendo do interesse da escritora pela história e em particular pela Idade Média, poderíamos associar o nome do
personagem a uma figura medieval: Santo Aleixo de Roma – sendo que «Aleixo» é o correspondente em língua portuguesa
do «Alexis» francês.
Trata-se de um santo, morto em 412 e festejado em 17 de fevereiro, muito popular na Europa, sendo que em
Portugal há várias localidades cuja denominação lhe presta homenagem. Segundo a lenda, estando noivo de uma mulher
virtuosa, Aleixo a convence a renunciar ao casamento. Ele se embarca então para Edessa, onde se faz mendicante;
dezessete anos mais tarde volta a Roma e é abrigado por seu pai que não o havia reconhecido; vive então debaixo de uma
escada durante dez anos e, ao morrer, seus pais são avisados por uma voz celeste.
Alexis seria, assim, uma espécie de Aleixo ao contrário, exemplo não de castidade nem de ascetismo, mas de
liberação sexual. Para o personagem, diferentemente do que ocorre com o santo, o período de renúncia corresponde
àquele em que esteve casado; fugindo ao casamento, ele não busca a ascese, busca se entregar à beleza e realizar seus
desdejos. Para Yourcenar, como para Gide, a referência à mitologia é uma maneira de colocar o fundamento da mensagem
de renovação dos valores sobre bases anteriores ao Cristianismo. Ambos os autores criticam as religiões como aparelho
ideológico repressor da individualidade e produtor de massificação, de padronização e de moral hipócrita. Um aspecto
comum à literatura de Gide e à de Yourcenar é a força de crítica social, a ousadia em tratar na literatura, abertamente, de
temas até então proibidos.
Alexis é uma obra ousada e corajosa para a época: aos princípios religiosos e ao moralismo das convenções
sociais sobrepõe-se o ideal de liberdade, de autenticidade e de autonomia do indivíduo. É como se o personagem
defendesse que, se toda religião inclui necessariamente uma moral, a Moral prescinde de qualquer religião.
Alexis se diz não crente e vê a piedade como uma fraqueza. A religião não lhe traz auxílio algum para enfrentar
seu conflito íntimo, ao contrário, ela é vista em paralelo com a família, cuja função perante seu caso consiste apenas em
condenar, vigiar e punir, acentuando assim seu sentimento de solidão e de angústia:

Sentia-me tão fraco que me tornei piedoso. A espiritualidade fácil, provocada pela grande fraqueza, permitia-me
desprezar tudo aquilo de que te falava ainda há pouco e em que me acontecia pensar ainda. (YOURCENAR,
1981, p.47)

Naturalmente, não me poderia julgar senão de acordo com os padrões morais adotados no meu meio, isto é,
não abominar o erro era mais grave do que o fato de havê-lo cometido. Condenava-me, pois, severamente.
Perturbava-me acima de tudo o fato de ter podido viver assim, ou melhor, de ter sido feliz durante muitas
semanas antes de ser fulminado pela ideia do pecado. [...] Era demasiado escrupuloso. Por isso, esforçava-me
para me sentir o mais infeliz possível. (YOURCENAR, 1981, p.53)

crês numa alma imortal. Perdoa-me por estar menos seguro do que tu, ou por ser menos orgulhoso. A alma
quase sempre me parece não ser nada mais que a simples respiração do corpo. Acreditava em Deus. E, de

1425
Deus, fazia uma concepção muito humana, isto é, muito desumana, pois me julgava abominável diante dele.
(YOURCENAR, 1981, p.55)

Não tinha ninguém a quem pedir conselho. A primeira cosequência das inclinações proibidas é de nos
emparedar em nós mesmos [...] Se tivesse ousado confessar-me aos meus parentes, o que eles dificilmente me
perdoariam seria a própria confissão. (YOURCENAR, 1981, p.58)

Kiekegaard, discutindo o conceito de angústia, afirma que junto com a pecaminosidade foi posta a sexualidade,
mas que a sensualidade não é pecaminosidade, porém um enigma sem explicação, que angustia; por isso a ingenuidade
está acompanhada de um nada inexplicável, que é o da angústia. Para o filósofo/teólogo, o sexual, enquanto tal, não é o
pecaminoso, é o pecado que o torna tal coisa; entretanto, “a liberdade, em sua possibilidade, relacionando-se com o
sensual, torna-se uma angústia maior”. (KIERKEGAARD, 2010, p.80) Talvez por isso, “todos os poetas descrevem o amor,
por mais puro e inocente que seja, de tal maneira que o fazem acompanhar da angústia”. (KIERKEGAARD, 2010, p.77)
Este é certamente o caso de Yourcenar em Alexis.

ANGÚSTIA

O primeiro narrador, que apresenta o diário de Johannes, ressalta a situação do homem que vive sob o domínio
do estético e evoca o desespero e a angústia; este último termo aparece três vezes na parte introdutória do Diário:

Neste momento que, no meu interesse pessoal, determino-me a passar a limpo a cópia exata de uma outra que,
com o coração em alvoroço, consegui em tempo adquirir, rabiscando-a apressadamente, já não é possível para
mim tornar-me liberto da sensação de ser oprimido por uma angústia difícil de dominar. (KIERKEGAARD, 2006,
p.13)

E era com uma angústia que não posso explicar, mas misteriosa, feliz e inefável, que eu escutava essa música
por mim mesma provocada e, ao mesmo tempo, não provocava, mas era sempre harmoniosa. E ele continuava
a envolver-me nas malhas do encantamento. (KIERKEGAARD, 2006, p.20)

Tudo isto é terrível para ela, mas ainda mais o virá a ser no que a ele se refere; assim concluo tendo como base
o fato de eu próprio mal dominar a angústia que se apodera de mim cada vez que penso nestas coisas.
(KIERKEGAARD, 2006, p.20)

Entretanto, Johannes não se interessa pela religião e a angústia não é discutida em nenhum momento no Diário,
ela só é desenvolvida, assumindo uma dimensão filosófica, em outra obra intitulada O Conceito de angústia; o desespero e
a singularidade do indivíduo são tratados em Temor e tremor e no Desespero humano.
As concepções Kierkegaardianas de angústia e desespero surgem em contexto religioso, diferentemente do que
se passa em Alexis e no existencialismo ateu, que as expandiu e as aplicou num sentido laico. Mas o próprio Kierkegaard
reconhece que “cada homem é tentado por si próprio” e que a angústia está ligada mais com a liberdade do que com a
religiosidade; a possibilidade da liberdade não consiste em poder escolher o bem ou o mal, isto seria um disparate que não
procede nem das Escrituras nem do pensamento: “A possibilidade consiste em ser-capaz-de.” (KIERKEGAARD, 2010, p.53)
Assim, mesmo se Yourcenar revela em sua produção uma temática que prescinde da religião cristã ou mesmo se opõe a
ela e à moral convencional dela derivada, as concepções do filósofo acerca da angústia e do desespero são fundamentais
para se compreender o romance da autora.
A angústia de Alexis está ligada ao sentimento de culpa, provocado pela internalização da ideia religiosa de
pecado, da qual o personagem só consegue se desvencilhar aos poucos: “Teria sido diferente se o prazer livremente
procurado não me parecesse tão culpado.” (YOURCENAR, 1981, p.31) Além disso, Alexis desperta para uma nova maneira
de ser, não apenas imprevista como também condenável do ponto de vista de todos os que o cercam: “Era-me impossível
acreditar, sem nenhuma prova material, que eu próprio pudesse estar incluído na minha repulsa.” (YOURCENAR, 1981,

1426
p.44) A depressão em que mergulha é ressaltada em vários momentos e por vezes assume a dimensão ameaçadora do
suicídio:

Uma vez que alguma coisa de tão grave se passara comigo, parecia-me, ingenuamente, que eu deveria estar
mudado. O espelho, porém, não me enviou senão o reflexo do meu rosto de sempre, um rosto inquieto,
angustiado e pensativo. [...] Aconteceu-me estar só diante de um espelho que desdobrava minha angústia.
(YOURCENAR, 1981, p.54-55)

À mesa de jantar ou no salão, às vezes costumava sofrer crises súbitas de angústia, uma espécie de agonia,
chegando mesmo a pensar que morreria. [...] Debatemo-nos na solidão como se estivéssemos dentro de um
bloco de cristal. (YOURCENAR, 1981, p.59)

A morte passou a tentar-me. (YOURCENAR, 1981, p.45)

Repetia-me que a vida seria eternamente aquela parede cinzenta, aquelas vozes distantes e aquele mal-estar
perturbador proveniente de não sei que angústia oculta. Por fim, acabava por decidir que nada valia a pena e
que seria mais sensato não continuar a viver. (YOURCENAR, 1981, p.46)

N’O conceito de angústia, Kierkegaard esclarece que ela se distingue totalmente do medo e de outros conceitos
semelhantes que se referem a algo determinado, pois ela está ligada ao indefinido e ao possível, ou seja, à liberdade: “A
angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade”. (KIERKEGAARD, 2010, p.45) Por isso
mesmo a proibição, da mesma forma que o nada, angustiam, por despertarem a possibilidade da liberdade. Alexis antevê a
possibilidade e descobre a liberdade, dando-se conta de que precisa escolher: ou abandona a moral hipócrita à qual se vê
submisso, ou abandona a própria identidade:

Tornava-se necessário que escolhesse entre minhas inclinações – que julgava criminosas – e uma renúncia
completa e talvez anti-humana. (YOURCENAR, 1981, p.64)

Acreditaste que bastava seres perfeita para seres feliz. De minha parte, acreditei que era suficiente não me
sentir culpado para ser feliz. (Um duplo e terrível equívoco.) (YOURCENAR, 1981, p.100)

Afinal, o meu único erro (ou melhor, a minha única desgraça) era ser, não o pior de todos, mas diferente de
todos. (YOURCENAR, 1981, p.111)

Finalmente, ao término de sua narrativa, Alexis se revela liberto de tudo o que lhe impedia de viver seus
sentimentos, suas tendências, sua sexualidade, reconciliando-se consigo mesmo e com sua consciência e optando pela
plena aceitação de si:

Cada um abriga em silêncio os seus segredos, sem jamais confessá-los e até mesmo sem confessá-los a si
mesmos. E dizer que tudo se explicaria se todos não mentissem tanto! Assim, torturei-me talvez por muito
pouco! (YOURCENAR, 1981, p.111)

Mas não tenho bastante fé para limitar-me aos salmos e, se me arrependo, é do meu próprio arrependimento.
(YOURCENAR, 1981, p.120)

Não soubeste e não viste de mim senão as apreensões e os temores, os remorsos e os escrúpulos da
consciência (não da minha), mas da consciência dos outros que tomei por diretriz. [...] Querida Mônica, quão
absurdo é viver! Construí tantas teorias morais que não poderia deixar de construir outras e muitas outras
contraditórias. É que sou demasiado sensato para acreditar que a felicidade floresce apenas à margem de um
erro e que o vício, não mais que a virtude, só pode dar alegria àqueles que o têm. Prefiro o erro (se é erro) à
negação de si mesmo que é o limite da demência. A vida me fez aquilo que sou, isto é, prisioneiro (se assim se
quer) de instintos que não escolhi, mas aos quais me resigno e me entrego. À falta da felicidade, essa
aceitação, assim espero, me proporcionará a paz. (YOURCENAR, 1981, p.123)

Não tendo podido viver segundo os preceitos da moral estabelecida, procuro, pelo menos, estar de acordo com
a minha própria. (YOURCENAR, 1981, p.124)

“Peço-te humildemente, o mais humildemente possível, perdão, não por te deixar, mas por ter ficado por tanto
tempo.” (YOURCENAR, 1981, p.124)

1427
A experiência narrada por Alexis corresponde a um momento de crise e, portanto, como o termo traz em sua
etimologia, a um momento de escolha, que se inicia pela descoberta da própria individualidade e singularidade:

A vida é algo mais que a poesia e é algo mais que a fisiologia, e até mesmo mais que a moral em que por tanto
tempo acreditei. Ela é tudo isso e muito mais ainda: ela é a vida. É nosso único bem e nossa única maldição.
Nós vivemos, Mônica. Cada um tem sua própria vida, sua vida particular, única [...] Nossa vida que não
pertence senão a nós mesmos, que não se repetirá duas vezes e que, entretanto, não estamos seguros de
compreender perfeitamente. [...] O mundo, para cada um de nós, não existe senão na medida em que confina
com a nossa vida. (YOURCENAR, 1981, p.32)

A reflexão acerca da singularidade do indivíduo e da liberdade como capacidade de realizar suas possibilidades é
desenvolvida por Kierkegaard particularmente n’O Desespero humano, onde, após defender que o eu é liberdade, e que
esta se constitui pela dialética do possível e do necessário, o filósofo afirma que ousar ser nós próprios é ousar ser um
indivíduo, não um qualquer, mas este que somos. (cf. KIERKEGAARD, 1974, p.331) Em seguida, discute a importância do
eu, do singular, muitas vezes em conflito com a opinião dos outros. De fato, a sociedade não se preocupa com a “perda do
eu”, ao contrário, aquele que se anula com vistas a satisfazer a opinião geral adquire a capacidade para ser bem visto em
toda parte e para se elevar na sociedade; entretanto em vez de um eu se torna um número, mais um ser humano, mais uma
repetição dum eterno zero:

O eu não é destas coisas a que o mundo dê muita importância, é com efeito aquela que menos curiosidade
desperta e que é mais arriscado mostrar que se tem. O maior dos perigos, a perda desse eu, pode passar tão
desapercebido dos homens como se nada tivesse acontecido. [...] nada percebem dessa indigência, dessa
estreiteza, que é a perda do eu, perdido não porque se evapore no infinito, mas porque se fecha no finito.
(KIERKEGAARD, 1974, p.352)

Segundo Kierkegaard, tanto a possibilidade quanto a necessidade são igualmente essenciais para que o eu se
transforme; o eu tem necessidade dos dois, de infinito e de finito, para não se desesperar. Possível e necessidade, finito e
infinito, são as condições da liberdade, e o eu só pode transformar-se, só pode vir a ser, sendo livre:

A nossa estrutura original está com efeito sempre disposta como um eu que deve tornar-se ele próprio; e, como
tal, é certo que um eu tem sempre ângulos, mas daí apenas se conclui que é preciso dar-lhes resistência, e não
limá-los; e de modo algum significa que, por receio de outrem, o eu deva renunciar a ser ele próprio ou não
ousar sê-lo em toda a sua originalidade (mesmo com os seus ângulos), essa originalidade na qual somos
plenamente nós para nós próprios. Mas ao lado do desespero que às cegas se embrenha no infinito até à perda
do eu, existe um de outra espécie, que se deixa como que frustrar do seu eu por “outrem”. A contemplar as
multidões à sua volta, a encher-se com ocupações humanas, a tentar compreender os rumos do mundo, este
desesperado esquece-se a si próprio, esquece o seu nome divino, não ousa crer em si próprio e acha
demasiado ousado sê-lo e muito mais simples e seguro assemelhar-se aos outros, ser uma imitação servil, um
número, confundido no rebanho. (KIERKEGAARD, 1974, p.352)

Perante um desmaio, grita-se: Água! Água de Colônia! Gotas de Hofmann! Mas perante alguém que desespera,
grita-se: possível, possível! Só o possível o pode salvar! Uma possibilidade: e o nosso desesperado recomeça a
respirar, revive, porque sem possível, por assim dizer, não se respira. (KIERKEGAARD, 1974, p.356)

O processo de transformação ou de assumir a própria identidade vivenciado por Alexis corresponde à concepção
de Kierkegaard, segundo a qual o indivíduo que existe não é um Ser e sim um Devenir: “via-me transformado naquilo que
era realmente, porque todos nós seríamos transformados se tivéssemos a coragem de assumir a nossa verdadeira
personalidade.” (YOURCENAR, 1981, p.46) Enquanto etapa deste processo de auto-definição a angústia só pode ser um
elemento positivo, ela não uma imperfeição humana, mas ao contrário uma marca de humanidade, conforme Kierkegaard,
quanto mais origininal é um homem, tanto mais profunda será sua angústia: “Que haja homens que não sentem nenhuma
angústia, dá para entender, assim como Adão não teria sentido angústia se tivesse sido apenas um animal.”
(KIERKEGAARD, 2010, p.57)

1428
DISCURSOS

Alexis e o Diário assumem a forma de carta ou diário, propícia à expressão mais íntima de uma individualidade.
Esta forma autobiográfica e epistolar, bem como o tema construído em torno do rompimento de uma relação afetiva,
remetem-nos a outros textos. É o caso de Kafka e sua Carta ao pai (1919), em que ele critica o autoritarismo do pai e fala
de suas várias tentativas de casamento, frustradas por causa da interferência dele:

Porém não mostrei quase nenhuma previsão no que diz respeito ao significado e à possibilidade de um
casamento para mim; esse, até agora, maior terror da minha vida tomou conta de mim de um modo quase
totalmente inesperado. [...] Mas na realidade as tentativas de casamento se tornaram as tentativas mais
grandiosas e mais esperançosas de escapar de ti, e proporcionalmente grandioso foi, com certeza, também o
fracasso. (KAFKA, 2009, p.76)

Também no caso de André Gide, seu mariage blanc com Madeleine Rondeaux se insinua em vários de seus
textos, e sua obra parece uma confidência permanente, devido ao aspecto pessoal e autobiográfico de seus escritos.
Atormentado pelo seu conflito íntimo, intensificado por uma educação religiosa, mas com um espírito de independência, ele
termina por dizer que o único bem é a vida, abolindo todos os constrangimentos durante muito tempo suportados. (cf.
LAGARDE & MICHARD, 1973, p.259) Continuamente aplicado ao exame de si, Gide levou ao limite do dizível a confissão
lúcida, inserindo-se na tradição de Santo Agostinho, Montaigne, Rousseau e Stendhal. A carta de Alexis é também uma
confidência íntima e se insere nesta tradição do gênero “confissão”.
Está presente em Alexis a problematização do gênero literário: é sob a rubrica «romance» que o livro é vendido e
classificado, mas descobrimos logo que se trata de um romance epistolar, ao assumir a forma de uma carta. No prefácio à
obra, Yourcenar faz referência a Laclos, principal representante do gênero na França: “Esta será uma longa carta, querida
Mônica. Não me agrada escrever. Muitas vezes foi dito que as palavras traem o pensamento. Mas a mim me parece que as
palavras escritas o traem muito mais.” (YOURCENAR, 1981, p.17)
De alguma forma, o romance discute a questão da linguagem, da escrita, do silêncio, da música, dos gêneros
discursivos:

Minha infância foi solitária e silenciosa, tornando-me tímido e, consequentemente, taciturno. [...] É terrível que o
silêncio possa ser uma falta, a mais grave das minhas faltas. Mas eu a cometi. (YOURCENAR, 1981, p.27)

E todo o silêncio não é feito senão de palavras que não foram ditas. Talvez por isso me tornei músico. [...] Mas
era essencial que não fossem usadas palavras porque a exatidão torna as palavras cruéis. Em compensação, a
música é discreta e sabe lamentar-se sem dizer por quê. (YOURCENAR, 1981, p.27)

existem muitas coisas que exprimimos melhor pelo silêncio. (YOURCENAR, 1981, p.78)

Também no Diário, Johannes faz a análise profunda do discurso de Cordélia, buscando nas entrelinhas algo além
das palavras de amor ou ressentimento que ela lhe dirige, o silêncio, a música, a linguagem humana e a escrita são
igualmente considerados:

Muitas das suas palavras indicam agora que ela já não pode suportar o nosso noivado. (KIERKEGAARD, 2006,
p.129)

Sei, pelas irmãs Jansen, que ela não toca piano por ser contra os princípios da tia. Sempre o lamentei, uma vez
que pela música se encontra sempre um confortável meio de comunicação com uma jovem. (KIERKEGAARD,
2006, p.20)

Creio saber contar uma história de modo a não se perder o fio da meada e sem que o desfecho chegue
demasiado cedo. E o meu prazer é manter in suspenso os que me escutam, verificar mediante pequenas

1429
reações episódicas o final que preferem para a minha narrativa, e enganá-los durante o seu curso. A minha arte
reside em utilizar ambiguidades para que me compreendam num sentido e se apercebam subitamente de que
as minhas palavras podem ser entendidas também de outra maneira. (KIERKEGAARD, 2006, p.78)

Poderia dirigir-me à tia e pedir, por escrito, a mão de Cordélia. Certamente que é esse o processo frequente nos
assuntos do coração, como se fosse mais natural para o coração exprimir-se por escrito que de viva voz.
(KIERKEGAARD, 2006, p.79)

Interesso-me sempre vivamente pela forma como um jovem se exprime por escrito. (KIERKEGAARD, 2006,
p.81)

As cartas, afinal, são e serão sempre um meio inapreciável para causar determinada impressão numa jovem; as
palavras escritas têm, muitas vezes, uma influência muito maior que a palavra viva. Uma carta é uma
comunicação cheia de mistério. (KIERKEGAARD, 2006, p.119)

No Diário e em Alexis discutem-se tanto a existência e as relações entre indivíduos quanto o falar sobre elas.
Yourcenar parece partilhar da mesma opinião de Kierkegaard acerca do conhecimento, ambos fazem, diferentemente de
Hegel, a distinção entre a essência e a existência e reconhecem que a maneira de se falar do ser humano não pode ser a
mesma como se fala da natureza física e dos fenômenos científicos. Assim se exprime Alexis sobre a questão:

A vida, Mônica, é muito mais complexa do que todas as definições possíveis. (YOURCENAR, 1981, p.31)

Como um termo científico poderia explicar uma vida? Ele não explica nem mesmo um fato: designa-o. Designa-
o de maneira sempre igual, apesar de não haver dois fatos idênticos sem vidas diferentes, nem talvez numa
mesma vida. Em suma, os fatos são todos muito simples. É fácil entendê-los e é possível que já os tivesses
entendido. Entretanto, quando souberes de tudo, restará ainda a minha explicação de mim mesmo.
(YOURCENAR, 1981, p.33)

É nesta articulação entre conhecimento do indivíduo humano e expressão deste conhecimento, e sob o prisma da
crítica ao discurso sistemático da filosofia academicamente oficial criticada por Kierkegaard que pensamos poder entender o
gosto do filósofo pela escrita fragmentária e pelas máximas, recorrentes no Diário de um sedutor:

O prazer deve ser bebido em vagarosos tragos. (p.27)

Quanto mais uma pessoa se esconde, tanto mais se torna inconveniente ser surpreendida. (p.39)

A sorte não nos sorri muitas vezes, devemos pois aproveitá-la o mais possível quando se apresenta. (p.44)

Quanto maior é o abandono que se traz ao amor, mais o interesse aumenta. (p.51)

A recordação não é exclusivamente um meio de conservar, mas também um meio de aumentar, pois o que está
embebido em recordação tem um duplo efeito. (p.53)

É muito difícil fazer uso do embaraço, mas pode-se ganhar muito com ele. (p.56)

Os homens mais ponderados e os mais tímidos atrevem-se por vezes aos atos mais loucos. (p.59)

O amor apenas se encontra na liberdade. (p.69)

Desde que se saiba surpreender, a partida está sempre ganha. (p.74)

A paciência é uma preciosa virtude, e o último a rir é quem ri melhor. (p.75)

Os devaneios só como aparecimentos momentâneos se adaptam a uma conversa. (p.93)

Em Alexis, o conflito entre a expressão da individualidade e a padronização da sociedade se exprime na


linguagem através do contraponto entre o pessoal e o universal, entre a rememoração da própria existência e a afirmação
de um aprendizado de alcance geral. O discurso de Alexis busca obter tal alcance através do emprego de máximas, que
formam um contrapeso ao discurso moral recusado.

1430
O drama íntimo do personagem se revela frequentemente através de uma reflexão manifesta em máximas, numa
espécie de primeira filosofia moral em que a aceitação de si é restauração da inocência ou pelo menos decomposição do
julgamento moral. O uso da máxima aparece como o correspondente primitivo do mito, um primeiro recurso a um sistema
judicativo.
Pelo tom reflexivo do discurso de Alexis e pelo uso da máxima, o pequeno romance-carta-confissão de Yourcenar
se revela uma reflexão profunda pode ser visto ainda como um ensaio. Como discurso fragmentário, a máxima caracteriza
uma linha de pensamento comum a Kierkegard, Nietzsche, Schopenhauer, Camus etc, que se mostra refratário à pretensão
totalizante da filosofia e contrário à forma dogmática e sistemática de exposição. No romance, as máximas expandem a
reflexão de Alexis e lhe acrescentam uma dimensão de universalidade para além de seu drama pessoal; embora elas
percam muito de seu significado quando são isoladas do contexto linguístico, destacamos algumas a título de
exemplificação:

Se desejamos alguma coisa, é mais fácil pensar nela com horror do que deixar de pensar. (.44)

Nas velhas famílias são os vivos que parecem a sombra dos mortos. (p.24)

Os fantasmas são invisíveis porque nós os trazemos em nós. (p.26)

Não se deve ter medo das palavras desde o momento em que se tenha consentido com os atos. (p.31)

Nada aproxima tanto os seres humanos como o fato de sentirem medo juntos. (p.35)

Nada nos impele tanto para as extravagâncias do instinto como a regularidade de uma vida excessivamente
sensata. (p.59)

O sofrimento nos torna egoístas, pois nos absorve inteiramente. (p.60)

Assim, à medida que vão desaparecendo aqueles a quem amamos, diminuem nossas razões para
conquistarmos uma felicidade que não poderemos fruir juntos. (p.63)

Há algo de censurável em nos mostrarmos muito carinhosos ao partir, como se desejássemos obrigar os que
ficam a lamentar nossa ausência. (p.63)

Não sofremos pelos nossos vícios; sofremos por não aceitá-los. (p.77)

Sentir orgulho por abster-se de uma falta é uma maneira de confessar-se culpado. (p.77)

Podemos comandar algumas vezes nossos atos. Comandamos um pouco menos nossos pensamentos, e não
comandamos absolutamente nossos sonhos. (p.78)

Jamais estamos inteiramente sós, pois desgraçadamente estamos sempre em nossa própria companhia. (p.79)

A beleza de um presente diminui quando aquele que o oferece não lhe dá importância. (p.88)

Todo homem, mesmo sem saber, procura na mulher, acima de tudo, as lembranças do tempo em que sua mãe
o acalentava. (p.103)

A vida alheia nos parece sempre mais fácil porque não é vivida por nós. (p.107)

É melhor talvez não notarmos as lágrimas alheias se não podemos consolá-las. (p.107)

Tudo, até mesmo uma tara, tem as suas vantagens para um espírito razoavelmente lúcido porque proporciona
uma visão menos convencional do mundo. (p.110)

A natureza é injusta para com aqueles que obedecem às suas leis, visto que todo nascimento põe em risco
duas vidas. (p.114)

Na carta que escreve à esposa, Alexis lhe diz que se esforça por ser sincero e transparente, buscando “uma
confissão que, antes de tudo, deveria ser simples e direta” (YOURCENAR, 1981, p.30), mas isto não quer dizer que a

1431
missão que se atribui seja fácil. Ao contrário, a confissão que faz a Mônica é difícil, primeiro pelas limitações inerentes ao
conhecimento de si e à comunicação deste conhecimento: “Se é árduo viver, o é muito mais explicarmos a nossa própria
vida” (YOURCENAR, 1981, p.17) e ainda pela natureza do que ele tem a revelar, a motivação íntima que o leva a romper a
relação com Mônica depois de estarem casados e depois de ter tido um filho com ela. Por isso, por franca que seja a
confissão do personagem, ela se faz muitas vezes de forma velada, indireta e expressa por meio de perífrases:

Não nos apaixonamos por aquelas a quem respeitamos, nem mesmo por aquelas a quem amamos. E, acima de
tudo, não nos apaixonamos pelos nossos iguais. E não era certamente das mulheres que me sentia diferente.
(YOURCENAR, 1981, p.37)

Experimentava um prazer perverso em me sentir diferente dos outros. É difícil não nos acreditarmos superiores
quando sofremos muito mais e quando a visão de pessoas felizes nos transmite apenas uma sensação de
náusea da felicidade. (YOURCENAR, 1981, p.67)

Johannes, por sua vez, deixa claro no diário escrito “para si mesmo” que não tem escrúpulos ao utilizar um
discurso que visa ao engano e à manipulação do outro; a linguagem para ele é apenas uma de suas armas na busca de
alcançar o objetivo:

Pesca-se sempre melhor em águas nebulosas. [...] Quando uma moça é presa da emoção, podemos arriscar
com conveniência muitas coisas que, de outro modo, resultariam vãs. (KIERKEGAARD, 2006, p.32)

O que sobretudo devo introduzir no meu espírito é que se trata apenas de uma simulação. Não foram poucos os
estudos de maneiras de andar que fiz, para encontrar a melhor maneira de me apresentar. [...] adotar o passo
cordial ou o de uma humildade cômica estaria em desacordo com a máscara até agora apresentada por mim.
(KIERKEGAARD, 2006, p.80)

Não temo contradizer-me, desde que ela não dê por tal e eu atinja o meu fim. (KIERKEGAARD, 2006, p.89)

Tanto no Diário quanto em Alexis encontramos igualmente a discussão sobre a linguagem. Sem entrarmos aqui
na questão acerca da possibilidade de o indivíduo se conhecer completamente e de ser capaz de transmitir a outrem este
conhecimento, podemos destacar os objetivos totalmente diversos que Johannes e Alexis atribuem a seus discursos:
enquanto o primeiro, com vistas à sedução, busca representar o papel de apaixonado que não corresponde a seus
verdadeiros sentimentos, o segundo tenta se mostrar de maneira o mais transparente possível. A desenvoltura de Johannes
ao falar aponta para a máscara que ele usa; a fala difícil de Alexis é sintomática de sua busca de sinceridade e de seu
esforço por não mentir mais, nem para si nem para Cordélia: “Temos mentido tanto, e tanto sofrido por mentir, que não há
grande risco em tentar a cura através da sinceridade.” (YOURCENAR, 1981, p.19)

1432
REFERÊNCIAS

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1434
Negociação da imagem, estratégias discursivas e novas
tendências nas práticas interativas em aulas de inglês
como língua estrangeira

SILVA, Pimentel Poliana


(UFAL)

Introdução

O estudo da relação comunicativa entre os seres humanos torna-se cada vez mais intrigante, principalmente no
que concerne aos elementos que permitem a realização dessa interação. Acredita-se que a linguagem é o elemento mais
relevante no processo comunicativo, pois, por meio dela, nascem as relações sociais que provocam, ao mesmo tempo,
reações entre as pessoas em situações interacionais. Acreditando que todo esse processo se desenvolve em um ambiente
social, podemos afirmar que o estudo da linguagem, dentro de uma perspectiva sociointeracionista, está intrinsecamente
ligado à vida social, e como objeto de investigação, pode ser visto como possibilidade de acesso, sem bordas e sem
fronteiras, às ações discursivas realizadas pelos indivíduos diante de diferentes aspectos culturais (SIGNORINI, 2006).
A Sociolingüística Interacional permite a análise lingüística junto aos fenômenos interacionais que emergem em
cenários de interação face a face. Nessa linha, dois teóricos assumem uma forte influência: o sociólogo Erving Goffman
(1981), que volta o seu olhar para os fenômenos de interação face a face em contextos sociais, e o antropólogo John
Gumperz (1982), que sustenta a idéia que no encontro social as convenções contextualizadas são realizadas em discursos
situados (RIBEIRO E GARCEZ, 2002). Além deles, há os lingüistas Penelope Brown e Stephen Levinson, que tentam dar
continuidade ao estudo da interação desenvolvendo a concepção de polidez, acreditando que a sua utilização pode
estabelecer uma relação estreita entre a noção de face e os desejos e necessidades dos envolvidos em um evento
discursivo.
Este texto desenvolve-se tendo como base as seguintes perguntas que nortearam uma pesquisa-ação por nós
desenvolvida, são elas: Como ocorre a negociação da imagem entre professor e aprendizes durante as aulas de língua
inglesa? Quais as estratégias discursivas encontradas durante as práticas interativas? De que forma as novas tendências
de ensino podem ajudar no comprometimento dos alunos durante os eventos de fala?
Esse olhar para o estudo da língua em uso revela a importância de se investigar o fenômeno da negociação da
imagem entre os participantes e suas relações no contexto institucional. Os resultados de estudos nessa área nos ajudam a
refletir sobre o uso das estratégias discursivas na tarefa de negociação da imagem como forma de aproximar ou distanciar
os indivíduos no ambiente interacional como a sala de aula (GALEMBECK, 2008; FÁVERO, 2008; TAVARES, 2007).

Fundamentação teórica

A negociação da imagem em contextos interacionais

Todo contato social pode ser ameaçador, dependendo de como o indivíduo constrói a própria imagem diante dos
outros, pois, sendo a comunicação humana de natureza interacionista, sempre se está tentando negociar e preservar uma

1435
imagem social construída em um contexto situacional de fala. Em sua obra, A representação do Eu na vida cotidiana, o
sociólogo Erving Goffman (2008) descreve situações concretas do cotidiano dentro do que ele chama de uma perspectiva
teatral, mostrando como o ser humano se apresenta em diversos contextos sociais na presença de outras pessoas.
Aspectos comuns no diálogo do dia a dia, dentro dessa perspectiva, passam a ser passíveis de estudos científicos,
ajudando, assim, a entender como os indivíduos constroem seus significados sociais à luz do discurso do outro.
O discurso não acontece de maneira aleatória, existem rituais que são seguidos e que ajudam (ou não) a
harmonizar a interação. A concepção de análise do discurso expressa por Brown e Yule (1983) está ligada a análise da
língua em uso. Como tal, não pode ser restrita às formas independente de descrição lingüística, do objetivo ou função a que
são designadas a servir nos assuntos humanos.
Desse modo, Goffman (2008) primeiramente descreve o evento comunicativo1 envolvendo um indivíduo
desconhecido diante de um grupo de pessoas. Sendo a sala de aula um espaço onde se estabelecem as relações entre
professor e alunos, podemos afirmar que o discurso que se realiza nele pode ser identificado através de estratégias
discursivas, a fim de conduzir, da melhor forma, a interação entre os envolvidos.
No contexto de sala de aula de língua estrangeira (LE), o aprendiz normalmente não é aquele que detém o
controle dos turnos. Por mais que o professor apregoe um ambiente interativo, “este ainda regula o acesso ao discurso
devido a sua posição e à função social que ocupa” (DIJK, 2008, p. 21), ou seja, o poder dado ao professor é caracterizado
como uma posição social que o foi dado e não meramente como poder pessoal. Portanto, é através dessa perspectiva que
se pode pensar que a constituição dos grupos sociais só se dará a partir do contato e da relação entre os indivíduos em
ações estruturalmente organizadas e sequenciadas.
Acredita-se que não podemos analisar as relações discursivas entre os indivíduos sem levar em consideração o
uso da linguagem em suas práticas sociais. Assim sendo, a Sociolingüística Interacional busca interpretar o uso da língua
em situação real, interpretar elementos discursivos que emergem e que ajudam a entender o lugar social em que o individuo
está falando em contextos específicos e está também interessada em explicar por que falamos de modo diferente em
diversos contextos sociais e “identificar a função social da lingua(gem) e as diversas formas de expressar os significados
sociais”. (HOLMES, 1992, p. 1). Para os estudos sociointeracionistas, isso implica um forte avanço no que concerne ao
novo olhar que se inclina sobre a análise do discurso em eventos imediatos da fala no ensino de língua estrangeira, que
serão discutidos nos próximos tópicos deste artigo.

As novas tendências no ensino de LE

Em vários estudos contemporâneos, percebemos que o processo de ensino e aprendizagem de uma língua
estrangeira tem se mostrado algo complexo, pois não se permite mais entender esse evento como uma simples atividade
de transmissão de informações gramaticais. Entende-se que o aluno deverá desenvolver o desempenho de uma nova
língua, junto a novos aspectos sociais, como um novo modo de agir e de pensar, como postula Brown (1994). Novo modo
de agir e de pensar porque a sociedade contemporânea exige novas posturas e, no que concerne ao professor, à busca de
novas práticas de ensino que incluam os aprendizes em um ambiente interativo.
Não podemos também interpretar a abordagem gramatical como forma errônea de se ensinar a língua, como bem
afirma Almeida Filho (2007). Não se trata de se construir uma “imagem maniqueísta entre o bem e o mal” (ALMEIDA FILHO,
2007, p. 39), o real propósito é diferenciar alguns princípios pedagógicos que valorizam o ensino de uma LE em seu

1Em alguns momentos neste artigo usaremos os termos eventos discursivos ou eventos de fala por acreditarmos que possuem o mesmo
sentido.

1436
contexto real. É importante salientar que a abordagem interacionista propõe o desenvolvimento de uma
competência/desempenho linguístico e a construção de uma relação social que se propaga quando professor e aprendizes
se encontram diante um dos outros em eventos discursivos.
Cada vez mais fica evidente a necessidade de explorar a função social do ensino de línguas para que o aluno
possa reconhecer no outro o seu lugar no mundo. É através do conhecimento que ele é capaz de produzir sentidos, ao
mesmo tempo interferindo na sociedade em que se encontra. O ensino de língua inglesa, ou de qualquer outra língua
estrangeira, possibilita a compreensão da sua importância no mundo globalizado com que nos deparamos hoje, além do
reconhecimento das diversidades e de novas identidades.
De acordo com Tavares (2006), o indivíduo pode elaborar seus conceitos de realidade, protegendo-se de um
possível caos. Se conhecer a si mesmo depende da relação que se estabelece com o outro dentro de um contexto
interacional, podemos revelar, no âmbito do ensino de língua estrangeira, o incentivo a abordagens socioculturais da língua
estudada (KRAMSCH, 1993; ASSIS-PETERSON e SILVA, 2009). De acordo com Assis-Peterson e Silva (2009, p. 98), a
“concepção de linguagem associada à realidade social leva a uma (re)significação da aprendizagem e ensino de língua
estrangeira”. Assim, passa-se a enxergar o aprendiz como aquele cheio de ansiedades, desejos, dificuldades, com
características e costumes próprios.
As práticas interacionais imbricadas ao ensino e aprendizagem de LE demonstram que há, sim, contribuições
significativas no desenvolvimento dos indivíduos nesse processo. Quando as aulas de língua inglesa ultrapassam o ensino
dos aspectos estruturais, os indivíduos tendem estar mais envolvidos nas atividades, conseguem entender diversos
comportamentos em diferentes contextos, e evita-se que os alunos se sintam “envergonhados” nas suas produções
(RAJAGOPALAN, 2003). Quando desenvolvida uma prática de uma língua estrangeira, entende-se que com ela o aprendiz
atuará diante de sua percepção de mundo, ultrapassando, dessa forma, a concepção de língua como instrumento
comunicativo.
Apesar das contribuições exercidas pelos aspectos interacionais no ensino da língua inglesa, ao mesmo tempo,
torna-se preocupante a forma como estão sendo trabalhados com os aprendizes. Podemos mencionar a ênfase dada, tanto
por parte do professor como dos livros didáticos, aos costumes e valores de países como os Estados Unidos e Inglaterra,
devido à posição hegemônica que estes ocupam no cenário mundial. O que se deve enfatizar é que a língua inglesa está na
condição de língua internacional. Deparamo-nos, atualmente, com uma língua miscigenada, influenciada por outros
Englishes, que estão cada vez mais suscetíveis às mudanças sociais e renegociadas entre os povos que estão em contatos
uns com os outros (RAJAGOPALAN, 2003, 2009).
Diante de tudo que foi exposto, acreditamos que ensinar uma língua estrangeira é permitir a inclusão dos aspectos
gramaticais, culturais e interativos dessa língua. Não sendo assim, poderemos afirmar que o ensino de línguas está
baseado em uma “concepção descritiva”, sem significados e contextos, nos quais a língua não faz sentido, e sem valor
social. Assim sendo, como defende Lima (2009), o desenvolvimento de competência/desempenho comunicativo do aprendiz
deverá estar associado às práticas interativas, o que o torna mais próximo da realidade da língua estudada, acabando aos
poucos com o “destronamento” da imagem do falante nativo, como aquele que está acima do certo e do errado. Nessa
visão, não há ganhadores ou perdedores, há, no mínimo, um indivíduo capaz de ver a sua realidade e a do outro em
diferentes contextos sociais.
A sala de aula, vista como um cenário social é um ambiente favorável para análise da interação entre seus
participantes, dentro de uma perspectiva sociointeracionista. Um dos propósitos dos estudos discursivos anglo-saxônicos,
como os das correntes de estudos Análise da Conversação e Sociolingüística Interacional, por exemplo, tem sido o de
analisar e interpretar a interação entre professor e aprendizes dentro do processo de ensino e aprendizagem de uma língua

1437
estrangeira. À medida que a humanidade caminha rumo a um futuro mais dinâmico, onde as fronteiras entre os povos se
cruzam somente num alcance da mão e as informações ultrapassam a distância e o tempo, o cenário atual do ensino de LE
reclama por práticas interativas, nas quais a valorização do conhecimento torna-se um veículo importante para a divulgação
de outros novos conhecimentos.
A noção de valorização do conhecimento implica dizer que, enquanto professor de línguas, o papel crucial é
exercitar a voz social e pessoal do aprendiz. De acordo com Kramsch (1993), aprender uma língua estrangeira significa pôr
em exercício essas duas vozes, que, por sua vez, se unem no processo de socialização do discurso da comunidade e de
desenvolvimento de letramento, como um meio de questionar e expressar seus pensamentos e comportamentos. As
diferentes percepções entre o “eu” e o “outro” levam o indivíduo a busca por novas experiências, expressões,
comportamentos. Além disso, a entender a si mesmo em um contexto diferente do outro.

Metodologia de pesquisa

Tendo como base as referências metodológicas da pesquisa-ação, o presente estudo foi realizado em uma turma
conjunta de Língua Inglesa do 5º período (sistema semestral) e 3º ano (sistema anual) do curso de Letras da Universidade
Federal de Alagoas. Em todo processo, quatro professoras/pesquisadoras estiveram envolvidas nas atividades, uma
graduanda, duas mestrandas e uma doutora, todas vinculadas ao mesmo grupo de pesquisa e desenvolvendo projetos
distintos, porém, tendo o mesmo foco: a sala de aula de língua inglesa. Analisando o mesmo objeto investigativo, a
lingua(gem) em uso, as professoras observaram e atuaram, bem como refletiram sobre os aspectos teóricos e práticos
durante o período de coleta e análise do corpus coletado.
As aulas ocorriam uma vez na semana com duração de 2 horas e foram realizadas no primeiro semestre do ano
de 2009. O livro adotado pelo curso corresponde ao Top Notch. Também, algumas atividades foram criadas e escolhidas
em conjunto pelas professoras, sempre buscando trabalhar os aspectos comunicativos da língua inglesa nas atividades
gramaticais ou nas leituras de textos, mas sempre se baseando nas reflexões e análises obtidas do retorno dos alunos nas
aulas anteriores.
Como se tratava de uma pesquisa que envolvia a gravação em áudio, pedimos a autorização dos alunos através
de um termo de compromisso e também que cada um escolhesse um nome fictício como forma de manter o anonimato.
Sendo assim, durante a análise dos dados, nos referiremos aos seguintes alunos como: Teófilo (T), Branca Rosa (B),
Fernando (F), Renata (R), Isabel (I), Joaquim (J), Luiza dos Anjos (L) e Sofia (S). A turma observada era composta de 10
alunos, dos quais cinco encontravam-se no sistema acadêmico antigo (anual) e cinco no sistema atual (semestral), porém
dois alunos não compareceram às aulas durante o período de pesquisa.

Resultados

O uso das estratégias discursivas em aulas de língua Inglesa

Na pesquisa, tanto as professoras quanto os alunos tentaram, de certa forma, negociar suas imagens, fazendo
uso de estratégias discursivas e tendo em mente o lugar institucional em que se encontravam – a sala de aula. Toda
negociação está calcada em pistas de contextualização (GUMPERZ, 1982), utilizadas pelos participantes com o propósito
de conduzir, manipular ou modificar o evento discursivo. Nesse estudo identificamos as estudo as estratégias discursivas de
convívio, as estratégias discursivas de interação e de defesa. Desse modo, vejamos as análises nos tópicos a seguir.

1438
Estratégia de Interação

A estratégia de interação é usada como forma de envolver os alunos durante os eventos discursivos. Seguindo
essa perspectiva, o ensino de uma língua estrangeira calcado em atividades interacionais pode promover um maior
envolvimento entre os alunos durante as aulas de LE. Segundo Byram & Morgan (1994, apud TAVARES, 2006), esse tipo
de abordagem influencia positivamente o fator afetivo dos aprendizes, dando suporte para a aquisição da língua alvo. Assim
sendo, durante as aulas analisadas neste trabalho, observamos algumas expressões usadas pelas
professoras/pesquisadoras como forma de envolver os alunos. Algumas delas são: “Is it interesting?”, “What else?”, “What
do you think?”, “Do you know about...?” dentre outros.
Na situação analisada, a professora discute com os alunos sobre o modo de vida dos Tuaregs2, visto que o texto
abordava o comportamento cultural desse povo. Para dar início a uma discussão, a professora elaborou algumas questões
norteadoras que auxiliavam na leitura, de modo a se explorar melhor o texto. Vejamos este momento no excerto a seguir:

Exemplo 3:
Linhas [319 – 333]

130. P: […]have you heard about the Tuareg people before? It’s related to the first one. […] Have you heard anything about
Tuaregs before reading the text?
S: (+++) No.
P: Did you know about this people?
J: Zeca Camargo showed something about the Tuaregs
P: Who?
J: Zeca Camargo.
P: Does he?
J: Humrum, in Fantástico. ((fala incompreensível))
P: Do we have anything similar in our rituals, costumes of food and drink that relate to emotions, to life?
F: (++) Flowers
P: Sorry?
F: Flowers, some flowers are used to some kinds of (…) I don’t remember (…)
P: Here? In Brazil?
F: Yes.
P: Just flowers. Red roses we give when we are in love, usually. […] we give when some 152. people die, usually, is
related.

Como forma de ampliar a discussão sobre a vida dos Tuaregs, a professora inicia o evento com a seguinte
pergunta (130) Have you heard anything about Tuaregs before reading the text? Joaquim responde, remetendo a uma
reportagem vista em um programa brasileiro de TV sobre os mesmos. Percebe-se nesse momento que a pesquisadora
intensifica o interesse pelo que o aluno está relatando como uma forma de preservar sua imagem positiva (137) Who? (139)
Does he? (estratégia de polidez positiva nº 3). Levando esse momento em consideração, a professora estende a discussão,
tentando fazer uma ligação entre a cultura trabalhada com a cultura da língua materna (141) Do we have anything similar in
our rituals, costumes of food and drink that relate to emotions, to life?. A ação da professora é vista, na perspectiva de
Kramsch (1993), como um processo de criação de novos espaços culturais. Na visão dessa autora, o ensino e
aprendizagem de uma LE torna-se uma ação dupla, na qual o aprendiz exercita uma voz pessoal e social, além de ver

2
Chamados também de Kaltamãshaq, são de nômades pastorais que vivem em uma área centralizada no norte do
Mali, além de toda a extensão do Saara ao Níger, Argélia, e até mesmo na Líbia .

1439
nesse caminho a possibilidade de o aprendiz construir “seus sentidos pessoais nas fronteiras entre os sentidos do falante
nativo e sua própria vida diária”. (KRAMSCH, 1993 p. 238).
Nota-se, nesse excerto não somente a interação entre professora e alunos como entre alunos e alunos (147) e
(148). Os alunos sentem-se à vontade para trazer à tona o modo como alguns costumes são utilizados dentro da cultura da
língua materna em comparação com a língua estrangeira estudada, tornando um ambiente menos ameaçador, pois não há
indicação de quem deverá responder, mas a generalização das perguntas (BROWN & LEVINSON, 1987), como feitas pela
professora.

Estratégia de Defesa
A estratégia de defesa foi encontrada em alguns momentos nas aulas analisadas. A referida estratégia foi usada
na maior parte pelos alunos como forma de resguardar suas imagens, deixando clara pelo uso da língua materna durante
as discussões que aconteceram nos eventos de fala.
Quando o aluno recorre ao uso da sua própria língua em uma aula de LE, podemos afirmar que vários fatores
estão envolvidos na sua realização. Entende-se que “sentimentos como ansiedade, inibição, insegurança, medo de arriscar,
introversão, receio e críticas, baixo grau de autoestima, falta de interesse/motivação, tédio, irrelevância do tópico, podem
contribuir para o perfil de um aluno silencioso em sala”. (ASSIS-PETERSON e SILVA, 2009, p. 102). Todos esses
elementos levam o aprendiz a arriscar menos, e no que diz respeito ao ensino de LE, a visão de falar e pronunciar
corretamente ainda está ligada aos métodos de pergunta e resposta que não davam margem ao desenvolvimento da
competência comunicativa do aluno dentro da realidade social e cultural em que este estava inserido. Em uma visão
sociointeracionista, os alunos são chamados a participar e a compartilhar conhecimentos durante as aulas, porém cometer
erros ainda significa “arranhar a face ou imagem pública de uma pessoa na interação com o outro [...], pois a relação entre
uma primeira língua e uma segunda é sempre uma relação de poder e de exposição do self perante o outro”. (ASSIS-
PETERSON e SILVA, 2009, p. 98).
Em alguns trechos analisados, percebemos o uso das estratégias de defesa usadas por alguns alunos como
forma de evitar qualquer tipo de ameaça. O trecho é referente à aula do dia 2 de abril de 2009. Nessa aula, a professora dá
continuidade ao texto “greetings in the desert” e pede que duas alunas o leiam.
Exemplo 4:
Linhas [333 -345]

333. P: Let’s continue reading the text. The next period… Isabel?
I: ((a aluna lê))
P: Another one. Fernando.
F: ((o aluno lê))
P: Questions? Branca?((a professora pede que Branca leia o outro trecho))
B: eu não consigo.
P: yeah, you can.
B: ((a aluna lê))
341. P: Good. Any questions?

No caso acima, percebemos que Branca recorre a uma estratégia de defesa (338) ao falar eu não consigo na
tentativa de preservar a própria imagem negativa, como bem postula B&L (1987), porém a professora insiste que a aluna
faça a leitura (339) yeah, you can., e a recompensa através da seguinte expressão (341) good. Manter-se longe das
discussões é uma maneira encontrada pela referida aluna de se resguardar. Baseado no pensamento de Goffman (1967),
B&L remetem-se ao estudo da negociação da imagem e de território ligado ao fenômeno da polidez, nascendo daí a
concepção de face negativa e face positiva. Primeiramente, a face negativa é entendida como a vontade do indivíduo de

1440
possuir a liberdade de praticar ações e de dominar o território do “eu”, não sofrendo retaliação dos outros participantes; já a
segunda concepção, a face positiva, consiste do desejo da própria imagem ser desejada e aceita pelos interlocutores.
(FÁVERO, 2008, p. 308).
Manter-se longe das discussões é uma maneira encontrada pela referida aluna de se resguardar. De acordo com
Assis-Peterson e Silva (2009), a arte de interagir não é uma atividade trivial, são esforços exigidos que muitas vezes podem
“custar caro” a alunos que não possuem familiaridade com a língua estrangeira e sua cultura. Dessa forma, exemplos como
os da Branca Rosa podem ser considerados pelos membros da sala de aula como alunos que ficam, muita vezes, à
margem das atividades propostas durante os eventos de fala. Cabe ao professor delinear formas pedagógicas de tornar
esse mesmo aprendiz um “participante pleno”. (ASSIS-PETERSON e SILVA, 2009, p.99). Nota-se, no caso descrito, que a
utilização da estratégia discursiva de defesa usada pela aluna não é aceita pela professora. Na realidade, o propósito é
estabelecer uma relação interpessoal com os aprendizes, envolvendo-os no processo de aprendizagem, no qual cada um
deverá assumir o papel que lhe cabe.
Goffman (2002) revela que o falante, por vezes, quando envolvido em um evento discursivo, pode recorrer a
desculpas para justificar a sua “quebra de fluência”. (GOFFMAN, p. 138). Segundo o autor, expressões como “hoje não
estou conseguindo falar” ou “estou sem voz” (sem estar), “não consigo” são formas de aproximar os outros envolvidos e
fazer com que eles cooperem com as dificuldades encontradas pelo falante. No caso descrito, a aluna utiliza esse recurso
para se manter longe das ameaças e espera ser entendida pela professora, o que não acontece, pois a professora a faz
participar da aula.

Considerações Finais
Ficou evidente em alguns dos trechos analisados, a autonomia dos alunos em iniciarem os turnos. Esse tipo de
ação pode estar relacionado à escolha das atividades que suscitam aspectos de relevância social, cultural e até mesmo ao
lado pessoal dos alunos. Outro fator a ser considerado está ligado às estratégias usadas ao longo das aulas pelas
professoras, buscando dar a voz aos alunos, por entender que são eles que devem, nos momentos de discussões, deterem
o maior tempo da fala.
Diante das discussões teóricas e das análises apresentadas, podemos retomar as perguntas de pesquisa
postuladas na introdução desse trabalho: Como ocorre a negociação da imagem entre professor e aprendizes durante as
aulas de língua inglesa? Quais as estratégias discursivas encontradas durante as práticas interativas? De que forma as
novas tendências de ensino podem ajudar no comprometimento dos alunos durante os as práticas interativas?
Respondendo as duas primeiras perguntas, a negociação ocorreu através do uso das estratégias de convívio,
pedagógico, (TAVARES, 2007), além das estratégias de interação e de defesa identificadas durante a análise dos dados.
Utilizando as referidas estratégias, tanto os alunos como as professoras/pesquisadoras, através de atividades abordadas,
puderam negociar suas imagens, quando em contato uns com os outros nos eventos comunicativos.
Remetendo à última pergunta, as atividades interacionais promoveram um comprometimento dos alunos nas
propostas trazidas pelas professoras/pesquisadoras durante esse período de coleta de dados. Esses fatores estão ligados
aos estudos contemporâneos (ASSIS-PETERSON e SILVA, 2009; KRAMSCH, 1993, 1998; LIMA, 2009; ALMEIDA FILHO,
2007; TAVARES, 2006, 2007) que remetem ao ensino de língua estrangeira a atividades que abordam os vários aspectos
sociais do inglês como língua internacional (RAJAGOPALAN, 2003, 2006, 2009).

1441
As novas tendências de ensino buscam ressaltar uma abordagem educacional crítica como elemento principal a
ser utilizado e não aquele que permanece às margens na sala de aula. Entendemos, porém, que o caminho a ser percorrido
em torno de uma abordagem interacional é lento, principalmente se considerarmos as conseqüências dos métodos
tradicionais que ainda assombram o ensino de LE e que influenciam, ainda, o comportamento do aluno silencioso quando
envolvido em atividades que dependem a da sua participação.

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Currículo do autor

A autora possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Alagoas, possui mestrado pela mesma universidade. É
integrante do grupo de pesquisa Observatório da Linguagem em Uso. E atua principalmente nos seguintes temas: discurso
e sala de aula de língua inglesa.

1443
ANEXO

Normas para Transcrição

SINAL OCORRÊNCIA
P PROFESSOR
A ALUNO NÃO IDENTIFICADO,
INCLUSIVE O SEXO
Ax ALUNA NÃO IDENTIFICADA
Ay ALUNO NÃO IDENTIFICADO
As VÁRIOS ALUNOS AO MESMO
TEMPO
Pq PESQUISADORA
(+) PARA CADA SEGUNDO DA PAUSA
(0.30) INDICAÇÃO DO TEMPO APÓS 05
SEGUNDOS
(...) INDICAÇÃO DE TRANSCRIÇÃO
PARCIAL OU ELIMINAÇÃO
[ SOBREPOSIÇÃO DE VOZES
[] SOBREPOSIÇÕES LOCALIZADAS
(xxx) INCOMPREENSÃO DE PALAVRAS
OU SEGMENTOS
(( )) COMENTÁRIO DA TRANSCRITORA
MAIÚSCULA ENTONAÇÃO ENFÁTICA
(HIPÓTESE) HIPÓTESE DO QUE SE OUVIU
/ INTERRUPÇÃO
: PROLONGAMENTO DE VOGAIS E
CONSOANTES
- SI-LA-BA-ÇÃO
“ ” CITAÇÕES LITERAIS OU LEITURA
DE TEXTOS
? SINAL DE ENTONAÇÃO
CORRESPONDENTE A PEGUNTA
@@@ RISOS
<@ @> TRECHO FALADO COM RISOS
= CONTINUAÇÃO DO ENUNCIADO

* Esta norma foi desenvolvida baseada nos trabalhos dos seguintes autores:
Marcuschi (1991), Ochs (1979), Edwards e Lampert (1993)

1444
Bakthin e a estética da poesia: uma análise discursiva do
poema “Por que cantamos” de Mário Benedetti

SILVA, Rita de Cássia Melém da


(PPGED/UFPA)

“Na rua, lado a lado, somos muito mais que dois”


(Mario Benedetti)

Introdução:

A finalidade primeira do presente artigo é fazer uma incursão através da Análise do Discurso a partir dos
pressupostos de MIKHAIL BAKHTIN sobre o tema: Prosa & Poesia, buscando nesta perspectiva, traçar a concepção que
este autor traz em suas análises acerca desta temática. Mikhail M. Bakhtin (1895-1975) apesar de não se configurar num
lingüista no sentido estrito da palavra, é um dos mais influentes teóricos da linguagem do século XX. “Diferentemente de
outros, no entanto, ele não mudou paradigmas apenas da Lingüística ou somente da Teoria da Literatura, mas alterou
radicalmente a forma de ver o fenômeno da linguagem em sua completude e em sua concretude” (FIORIN, 2003, p.22).
Mais do que um especialista, Bakhtin é antes de tudo, um filósofo da linguagem. Jobim e Souza (2004, p.21), referindo-se
aos estudos sobre as análises Bakhtinianas, afirma: “no campo das ciências humanas e sociais não podemos mais
negligenciar as mudanças na vida social desencadeadas pelo diálogo que as imagens travam conosco.”
De acordo com Barros e Fiorin (2003), para Bakhtin os elementos históricos, sociais e lingüísticos atuam de forma
decisiva no cerne da personalidade do indivíduo e se manifestam de forma dialógica em seus discursos, ou seja, para este
teórico russo, no eixo de todo encontro, existe a linguagem. É na linguagem que exprimimos nossos sentimentos em
nossas interações sociais, construímos significados, discursos e representações, ou seja, a linguagem é condição
essencial de constituição do sujeito. O sujeito se dá na e pela linguagem. O sujeito se constitui como tal à medida que
interage com os outros, suas produções discursivas resultam deste mesmo processo no qual o sujeito internaliza a
linguagem e constitui-se como ser social.
Para Bakhtin (1992), as línguas não são sistemas estruturados e acabados, mas sistematizações em aberto que
incorporam as indeterminações necessárias para que ela mesma possa funcionar.
O autor destaca que,
Na realidade não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas
boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre
carregada de um conteúdo ou um sentido ideológico ou vivencial. (BAKHTIN, 1992, p. 95).

As idéias de Bakhtin (1992), sobre o homem e a vida são caracterizadas pelo princípio dialógico, pois como ele
mesmo afirma recorrentemente em suas obras, a vida é dialógica por natureza, pois a palavra é o material da linguagem
interior e da consciência, além de ser elemento privilegiado da comunicação na vida cotidiana, que acompanha toda criação
ideológica, estando presente em todos os atos de compreensão e de interpretação.
Nesta categoria, “o pluralismo do pensamento bakhtiniano, traduzido nos conceitos de dialogismo ou de polifonia,
é lugar de conflito e tensão, e os lugares sociais de onde se produzem discursos e sentidos não são necessariamente
simétricos”. (AMORIM, 2007, p.12).

1445
É este um dos principais contributos de Bakhtin (1997): uma concepção dialógica da linguagem e, por
conseguinte, das próprias relações humanas, onde a linguagem não é vista apenas como um meio de comunicação, mas a
maneira do sujeito interagir com o mundo, por isso ocupa lugar privilegiado na construção do discurso humano, é também o
lugar da construção de conhecimento, onde se transitam significações, desveladas na ideologia impressa neste discurso,
materializada pela palavra, e onde a palavra de um é sempre perpassada pela palavra do outro, forjando a formação da
consciência do “eu” e do “outro” numa relação e interação eminentemente dialógica. Afinal, todo discurso é atravessados
por outros discursos, surgidos num contexto histórico-social e por isso, impregnados de conteúdos ideológicos que se
convergem ou se confrontam dialogicamente.
Para compreendermos melhor esses e outros elementos que compõem o pensamento de Bakhtin, teceremos
algumas reflexões acerca de sua concepção sobre a poesia.

1. A Poesia em Bakhtin

A concepção Bakhtiniana, acerca da poesia vem intrigando ao longo do tempo muitos estudiosos desta teoria,
pois em função de haver poucos elementos em sua obra abordando diretamente esta temática, muitos pesquisadores
acabam por reduzir a sua compreensão acerca da poesia, afirmando que esta consistia num gênero pouco privilegiado pelo
referido teórico, considerada por ele inclusive, um gênero menor frente à prosa, em especial o romance, por exemplo.
Quase sempre as conclusões dos diversos estudiosos, tais como Fiorin, Tezza, entre outros, resultam em última
análise, na seguinte afirmação: A poesia é centralizada e monológica e por isso esteticamente negativa, enquanto o
romance é descentralizado e dialógico e assim, considerado esteticamente positivo.
De fato ao se referir a Prosa e a Poesia, Bakhtin (1997) afirmava que existia uma diferença crucial entre elas, pois
o Romance (a prosa) para ele construía-se na diversidade de vozes, de discursos e nas diversas maneiras de dizer de cada
personagem, enquanto que a poesia não interagia com o discurso do outro, onde a voz do autor dialogava com ele mesmo,
apresentando uma expressividade acentuada, mas nos remetendo sempre a um denominador comum. De todas as formas
literárias aquela que mais favorece o dialogismo é o romance, exatamente porque este mantém com a linguagem uma
relação peculiar, qualitativamente diferente da que com ela mantêm os gêneros canônicos – épico, lírico e dramático.
No entanto, Bakhtin por nenhum momento desqualificou a poesia, como muitos pensavam, apenas nos faz refletir
sobre a diversidade de vozes que existe em cada texto, em cada expressão estética, e a prosa para este autor, é a mais
rica em diversidade de vozes e elementos textuais, da natureza da linguagem e de sua manifestação na composição do
discurso. Tanto a prosa quanto a poesia são dialógicas, porém na prosa aparece uma diversidade de discurso, enquanto
que a poesia, não trabalha em sua composição, com o plurilinguismo, como o faz o romance, e isto não se constitui em uma
falta, mas faz parte de uma das expressões históricas do discurso literário. Ou de outra forma: segundo Fiorin (2006) pode-
se dizer que de acordo com os pressupostos Bakhtinianos, como fato de linguagem a poesia é tão dialógica quanto o
romance, mas que, como fato estético ela tende ao monologismo. No entanto, a própria concepção de monologismo na
poesia precisa ser relativizada. Pela própria natureza de seu processo criação estética, a poesia lírica parece estar centrada
no eu do poeta, pois quando “o poeta fala, só o poeta fala” e o autor parece colocar todo o peso de sua autoridade sobre
cada uma de suas palavras. Esse prisma em torno da autoridade poética é configurado por Cristovão Tezza:

1446
Todos os recursos técnicos do discurso poético reforçam essa centralização absoluta
do discurso, descolam a palavra da sua vida cotidiana, promovem um corte radical
entre a palavra do poeta e a palavra dos outros, isolam a linguagem num casulo
único. O metro, a rima, a música, o ritmo, a quebra visual da leitura padronizada, o
uso do espaço em branco, a fragmentação, a negação da linguagem prosaica em
cada um de seus estratos, o cruzamento de códigos, a singularização máxima dos
sentidos e dos significados, da sintaxe e do léxico, todo esse arsenal é usado a
serviço da absoluta centralização da linguagem.
(TEZZA, 2004, p.3)

Entretanto, há um contraponto possível e essencial a essa concepção quase cânone da autoridade monológica
manifesta na voz do poeta, uma vez que esse eu lírico é confrontado com outros “eus”, inerentes à própria condição
humana do poeta, e em interação com o outro e ao discurso deste, configurados num mundo polifônico, onde uma voz pode
está atrelada a um coro de vozes, isto é, em termos Bakhtinianos, um verdadeiro dialogismo, como sugere o próprio
Bakhtin, de acordo com Boris Schnaiderman:

A autoridade do autor é autoridade do coro. A obsessão lírica é essencialmente uma obsessão coral.
(...) Eu me ouço no outro, com outros e para outros. (...) O coro possível – eis uma posição firme e de
autoridade. (...) Eu me encontro na voz (...) alheia. (...) Esta voz alheia, ouvida de fora, que organiza
minha vida interior na lírica, é o coro possível, a voz concordante com o coro, e que sente fora de si o
apoio coral possível (...) numa atmosfera do silêncio e do vazio absolutos, ela não poderia soar assim;
Uma voz só pode cantar (...)num ambiente de possível apoio coral. (SCHNAIDERMAN, 1998, p.75-76)

É neste contexto de enunciados dialógicos que o poema se constitui. Uma prova latente disto é a possibilidade
interativa entre o poeta e o leitor/ouvinte/interlocutor de seus poemas que muitas vezes se indaga ou afirma acerca do “que
o autor quis dizer”, na verdade o poeta já disse, porém nesse emaranhado de significações em que está envolvida a trama
das relações humanas, as noções de sentido e significado podem ganhar um caráter de idiossincrasia, mas forjada num
contexto sócio-histórico.

Vejamos estas e outras possibilidades de análises discursivas, sob o olhar Bakhtiniano, contidas num poema do
escritor uruguaio Mário Benedetti.

2. A estética da Poesia de Mário Benedetti em “Por que Cantamos”

Mário Benedetti, poeta, escritor e ensaísta uruguaio, morreu recentemente em 17 de maio deixando uma vasta
obra de mais de 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, assim como roteiros para cinema, como La Tregua.
Romance levado às telas de cinema pelo diretor Sergio Rénan. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro
de 1974, perdendo a estatueta para Amarcord, do italiano Fellini.
Benedetti participou ativamente da vida política do Uruguai; foi militante de esquerda, atividade que se entrelaçava
à sua literatura. Em 1971 ele fez parte do grupo que fundou o “Movimiento de Independientes 26 de Marzo”, que
posteriormente integraria a Frente Ampla, alternativa aos partidos Branco e Colorado no país. Com o Golpe de Estado no
Uruguai, em 1973, em função de suas posições políticas, inicia-se seu período de exílio. Perseguido e ameaçado de morte,
Benedetti viveria uma década em países como Argentina, Peru, Cuba e Espanha. O poeta nutria grande simpatia pelas
conquistas da revolução cubana, assumindo esse ideário na estética de sua poesia, tornando-se assim um ícone para os
jovens revolucionários da América Latina na atualidade. Não é difícil encontrar seus poemas em agendas, cartazes e
panfletos de partidos de esquerda, movimentos estudantis, entre outros.
.

1447
Particularmente o poema “Por que Cantamos” tornou-se uma espécie de hino em louvor à luta e resistência
contra-hegemônica, traduzido em vários idiomas e declamado em alto e bom som em reuniões de grupos de esquerda e em
eventos como o Fórum Social Mundial e outros, onde se acredita que “um o outro mundo é possível”. O que torna um
poema tão universal, tornando-se capaz de fazer com que pessoas de lugares, realidades e culturas diferentes com ele se
identifique? Que elementos compõem este poema cujos enunciados dialogam com tantos outros?

Vejamos o poema:

Por que cantamos

Se cada hora vem com sua morte


se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço


a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte


se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando


e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo


e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o sol nos reconhece


e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco


e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

(Antologia Poética – Mário Benedetti – “só quando transgrido alguma ordem o futuro se torna respirável”. Editora Record,
1988)

1448
Recorrendo às categorias Bakhtinianas para analisarmos o discurso deste poema, detectamos logo de início um
dialogismo latente, onde a voz do autor, o seu eu lírico interage dialogicamente com outros discursos, sendo interpenetrado
por ele. A própria estrutura do poema se fecha num diálogo direcionado a um interlocutor, a quem a toda hora o poema se
remete: “você perguntará por que cantamos...”
Vale lembrar que o dialogismo consiste numa das principais categorias do pensamento de Bakhtin, definido pela
presença de várias instâncias enunciadoras que dialogam entre si sem, contudo restringir-se ao dialogismo entre
interlocutores, podendo ocorrer também dialogismo entre discursos. É assim, o modo de funcionamento real da linguagem
e, portanto, é seu princípio constitutivo; é uma forma particular de composição do discurso.
A própria construção coletiva da história remete ao processo dialógico, tanto pelos monólogos absorvidos pelo
diálogo, quanto pela alternância de locutores. O encontro destas diversidades, na medida em que instaura uma relação
tensa entre sentidos, que tanto se reconhecem quanto se repelem ou dispersam, acaba por desencadear o enriquecimento
narrativo numa profusão de distintos matizes.
Podemos como Mikhail Bakhtin, refletir, quando argumenta,

Que dentro de uma dada situação lingüística, o falante/ouvinte, produz uma estrutura comunicativa que
se configurará em formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado, pois são formas marcadas a
partir de contextos sociais e históricos e tais formas estão sujeitas as alterações em sua estrutura,
dependendo do contexto de produção dos falantes/ouvintes que a produzem, os quais atribuem
sentidos a determinado discurso.
(BAKHTIN, 2000. p.279)

O dialogismo defende que “todo o sentido é relativo na medida em que ocorre apenas como resultado da relação
entre dois corpos ocupando um espaço simultâneo, mas diferente, sendo que corpos aqui podem ser entendidos como
recobrindo um leque que vai da imediatez dos nossos corpos físicos até aos corpos políticos e aos corpos de idéias em
geral (ideologias) (HOLQUIST, 1990, p.20).

É neste contexto de enunciados dialógicos que este poema se constitui e se manifesta não apenas com a voz do
poeta, mas o forja como um porta-voz que grita através da sua poesia, as dores e os sonhos de muitas outras vozes,
algumas inclusive que foram caladas, que emudeceram para sempre, através da linguagem da violência de um sistema
opressor:

Cantamos pela infância e porque tudo


e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

Essa profusão de vozes, essas várias vozes presentes no discurso que por vezes se coadunam, se interpõem,
outras se chocam, se confrontam dialogicamente, configuram o que Bakhtin chama de polifonia. Essas vozes que dialogam
é que compõem as instâncias discursivas de um texto polifônico, revelando múltiplas consciências, múltiplos discursos que
se cruzam, que se atravessam e se absorvem nas relações sociais, na relação entre o eu e o outro. Isto é, segundo Alves
(2006), o enunciado é tecido polifonicamente por fios dialógicos de vozes que polemizam entre si, se completam ou
respondem umas às outras. O poema em si, todo escrito na forma plural, já pressupõe muitas vozes:
.

1449
Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

Benedetti faz através de metáforas como “os ares já não são bons ares”, uma espécie de análise de conjuntura, de denuncia
da realidade opressora, da violência rotineira, ou seja, toma fragmentos do cotidiano como sua matéria-prima:

Se cada hora vem com sua morte


se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

Pela sua própria história de vida, de militância política, seus textos vêm visivelmente impregnados de conteúdo ideológico,
mais precisamente de um discurso contra-hegemônico que se pauta em denunciar as situações opressoras e reafirmara força luta e de
resistência, daqueles que mesmo diante de toda sorte de adversidades, continuam acreditando e cantando o seu canto pela liberdade:

Se nossos bravos ficam sem abraço


a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

Reflete filosoficamente acerca da constituição do sujeito, na relação do eu com o outro e do outro para comigo, em meio a esse
contexto histórico-geográfico-político que configura a América Latina na luta contra o imperialismo americano, pela afirmação de uma
política independente e soberana. Em meio a esses embates forja-se a formação da consciência dos sujeitos, a partir da identificação, do
reconhecimento do seu “igual” e da formação de natural de grupos de oposição, de manutenção ou até de pseudo-neutralidades, que
possam responder as perguntas mais intimas do seu eu, pois “cada pergunta tem uma resposta.”

Cantamos porque o sol nos reconhece


e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

Por fim, Benedetti revela toda a sua utopia, sua esperança alinhavada aos sonhos de outros, em transformar este em outro
mundo possível e viável, e convoca todas e todos à luta, a tornarem-se militantes da vida, para resistir e não permitir que a canção se
torne cinzas:

Cantamos porque chove sobre o sulco


e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
. deixar que a canção se torne cinzas.

1450
Apesar deste poema ter sido escrito por Mário Benedetti, considerando pressuposto Bakhtiniano de que nenhuma
palavra é nossa, pois traz em si, a perspectiva do outro, a trama de significações aqui tecida faz um intertexto direto ou
indireto com o discurso de muitos outros, que ao travarem contato com este poema, nele se reconhecem.

Considerações finais.

Neste estudo consideramos que, segundo Bakhtin, todo o gênero é dialógico porque o dialogismo é constitutivo da
linguagem e nesta perspectiva podemos aferir que ao realizarmos este estudo, pudemos perceber, que para este autor
mesmo entre produções aparentemente monológicas, observamos sempre uma relação dialógica.
O princípio dialógico explica as grandes opções da teoria Bakhtiniana – o social, o diálogo, a ideologia, a
diversidade, a heterogeneidade, o inesperado, o não oficial, as forças centrífugas, a pluralidade da linguagem, do romance,
do homem.
A reflexão de Bakhtin não é apenas sobre a linguagem e a literatura, mas sobre o homem como ser de diálogo
que se posiciona com relação ao mundo, a outrem, a ele mesmo e ao próprio discurso.
A presente análise da estética da poesia em Mário Benedetti nos possibilitou o exercício do olhar sob as lentes
Bakhtinianas, ampliando nossa percepção para as diversas possibilidades e formas de manifestação textual que nos
permitam realizar uma análise discursiva, tendo como referência as principais categorias do pensamento de Bakhtin.
Tal análise poderia ser feita sem ele, porém suas idéias em defesa de uma filosofia para a linguagem vieram de
fato redimensionar os estudos da mesma, tornando-se imprescindíveis na análise de um discurso. Parodiando Carlos
Alberto Torres referindo-se a Paulo Freire para a Educação, remetemo-nos a Bakhtin para afirmar que, em termos de
linguagem, podemos estar com ou contra Bakhtin, mas não sem ele...

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15/01/2004 e disponível em:
http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1900,1.shl (acesso em 06/08/09).

RITA DE CÁSSIA MELÉM DA SILVA


Pedagoga licenciada e especialista em Currículo e Avaliação pela UEPA; Mestre em Educação pela UFRN e doutoranda
em Educação pelo PPGED/UFPA. Professora da SEMEC e do IFPA. É escritora e participa do Movimento Literário
Paraense. Lançou livro de poemas “Portapalavras” em 2008. Realiza pesquisas em Escola pública, currículo e qualidade da
educação.

1452
Construções metafóricas conceptuais atualizadas nas
histórias maravilhosas das minhas biblinhas (re)contadas
para as crianças a partir de 04 anos

SILVA, Sônia Maria Cândido da


(UFPB/CCAE/DE)

1 INTRODUÇÃO

Nossa proposta apresenta um recorte de uma pesquisa-ação, desenvolvida para o curso de Pedagogia e para os
alunos da Pós, no PPGCR-UFPB/BERESHIT e para os alunos PIBIC/UFPB/CCAE. Para dar suporte ao objeto de estudo,
escolhemos as histórias maravilhosas, recontadas para as crianças: Minhas Biblinhas, em versões diversas. Nessas
“historinhas”, há uma riqueza de processos metafóricos de base cognitiva, evidenciados nas estruturas discursivas, o que
nos leva a uma pesquisa metodológica qualitativa, com abordagem cognitiva sócio-discursiva, etnográfica, à luz dos
estudos de Lakoff e Johnson (2002).
Acredita-se que esta investigação subsidiará a prática de letramento na escola, no âmbito da cultura e das
culturas escolares. O interesse é de âmbito educacional, visto que tais metáforas se encontram em contexto
metadiscursivos, e metacomunicativos, fortalecendo e construindo o processo inter-cultural. Espera-se que tal preocupação
possa trazer contribuições também por (re(des))velar aspectos diferentes de orientações culturais, tanto em relação ao ato
de informar como o de ensinar e aprender.
O foco nas metáforas cognitivas, aqui, evidenciadas, são (re)pensadas como produção de significados, que se
apresentam, ora transparentes, ora opacos ao entendimento das crianças. Isto, por serem tais metáforas carregadas da
cultura vivenciada pelos indivíduos na comunidade a que pertencem. Cremos que o que se diz é somente entendido por
falantes usuários de uma dada língua, cultura e experiência para que esses mesmos falantes descortinem as construções
metafóricas, consigam compreender as informações metaforizadas culturalmente.
A esse respeito, colocamos o fato de questões culturais, incorporadas nos discursos recontados, não serem
transmitidas objetivamente, mas carregadas de subjetividades, o que não dá acesso direto às crianças, certas informações.
E, com isso, surge, no contexto social, o suporte dessas “biblinhas” para que as crianças tenham acesso ao Livro Sagrado,
assim como às condutas, às vivências sociais, pelo “viés” do Livro culturalmente lido, repassado às gerações diversas, e,
hoje, como currículo nas escolas.
Com base nesse recontar ou redizer, é que se surge a preocupação em forma de pesquisa-ação PIBIC/UFPB, e
com alunos de mestrado, no Programa PPGCR, na Linha: BERESHIT, em estudar as estruturas discursivo-metafóricas,
atualizadas nas histórias (re)contadas às crianças a partir de 04 anos, histórias que estão alocadas na Bíblia Sagrada. Tais
reflexões são oriundas das manifestações da metáfora cognitiva, nas histórias, incorporando, empacotando e repassando
conceitos e concepções, através de Modelos Cognitivos Idealizados (MCIs). Diante disso, acreditamos que o estudo da
metáfora possa ser um caminho para elucidar o entendimento do mundo, das questões sociais, no âmbito da conduta, do
pensamento da comunidade a que esse sujeito leitor pertence. Nesse entendimento, algumas questões, de caráter
investigativo, subsidiam refletir o objeto de estudo, dentro da problemática da visão cognitivo-discursiva: como as
construções metafóricas se processam no discurso das histórias maravilhosas das “biblinhas”?

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Para tal, essa pesquisa tem o propósito de dar uma formação de leitura e de letramento na perspectiva do ensino
aprendizagem na Educação Infantil, e de servir como ponto de partida para inúmeras outras pesquisas-ação com alunos em
formação das Licenciaturas, em Matemática, Letras, Pedagogia e Computação, sobre o tema: Estudos Metafóricos em
textos que estão ou devem estar em sala de aula como subsídio para o ensino aprendizagem.

2 AS CONSTRUÇÕES METAFÓRICAS ATUALIZADAS NAS HISTÓRIAS COM ENFOQUE NO PERCURSO


SOCIOCULTURAL

O que as metáforas cognitivas, eliciadas no discurso das histórias infantis, tem e/ou pode mapear nessas histórias
“infantis de viés religioso”? Como geram informações e conhecimentos? O estudo das metáforas pode ser um caminho para
se entender como a visão de valores e de crenças culturais são (re)passadas às crianças, para entender essa visão da
criança, como também a de seu próprio mundo dentro e fora da escola.
Para tal complexidade dessas metáforas cognitivas do cotidiano, no contexto discursivo-religioso, processadas
nas histórias infantis, optamos pela concepção teórica com as metáforas cognitivas em uso no cotidiano. Destacamos a
concepção de pesquisa de Lakoff e Johnson (2002), entre outros pensadores, que apontem a visão cognitiva traduzindo,
em um sistema conceptual, a metáfora, por modelos culturalmente idealizados, para colocar socialmente o modo como a
sociedade pensa a experiência da comunidade.
A proposta se interessa por questões temáticas, alijadas na produção do discurso, por questões aparentes no
discurso, ou metaforizadas, (não)desdobradas nesse mesmo discurso, assim como a discussão dos fenômenos
metafóricos, do âmbito cognitivo e social, apostos nas “minhas biblinhas infantis”. Diante dessas experiências
conceptualizadas, no texto, destacaremos também a dimensão discursiva desse objeto de discussão, propondo um enlace
entre o estudo dessas metáforas e o discurso, a partir do entendimento de Bakhtin e continuadores.
A título de entendimento, argumentamos que um dizer no cotidiano é uma situação real da língua. Isto nos faz ver
que esta língua, no meio social, é uma esfera comunicativa de base metafórica, inserida num contexto e num evento de
comunicação, que tem a incumbência acrescida de carregar os conteúdos metafóricos. Nesse contexto, a metáfora de base
cognitiva pode ser concebida como um processo estratégico de metalingua(gem) e/ou de metacomunicação, em cujo modo
de operar essa língua(gem) faz experimentar uma ação em termos de uma(s) outra(s) ações, e pensamentos impactados
pela cultura, pela ideologia subjacentes.
Esse processo meta “metafórico” de ser dá acesso ao dito, a ponto de se permitir o outro perceber a essência da
informação, ali carregada de conteúdos, também metaforizados no tempo e no espaço, quando vão sendo arrastados no
tempo e no meio sociocultural. A exemplo, uma estrutura discursiva, como: Deus fez você especial, refere-se a um título de
um livro de literatura infantil, da Editora: Big Idea Vida de Criança, sem autoria aparente. Nessa proposta de leitura, para as
crianças a partir de 04 anos, o discurso faz uma mídia, que se apresenta como um “pregão”, veiculado na Revista
Avon/Moda & Casa, numa sessão aposta nas últimas páginas, com titulo: Revistas Infantis, onde se oferecem CDs com
histórias infantis, e livrinhos super coloridos, “persuadindo a venda“, como em: Deus fez você especial. Tal estrutura,
discursivizada nessa revista diz que o livrinho mostra o amor incondicional de Deus e aborda o tema atual da inclusão social
e a valorização das diferenças, dizendo na introdução: [...] Deus fez você diferente, único e especial [...].
Nessa perspectiva, a construção de significados acontece nas mentes ali envolvidas: as crianças, estando na
condição de leitor. Com essa forma de dizer, percebe-se o estímulo metafórico, com base no conhecimento de mundo,
prévio sendo confrontado com as informações apostas no texto. Com base em Lakoff e Johnson, uma metáfora cognitiva de
base conceitual pode conduzir a uma significação. Para tal, vejamos: Deus fez você diferente e único e especial,

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estruturado metaforicamente para uma criança, licencia uma metáfora cognitiva: [AMOR É ORGANISMO]  DEUS É
AMOR  DEUS É UM ORGANISMO  DEUS É UMA MÁQUINA, onde há um desdobramento, ou novos mapeamentos
entre domínios fonte alvo, permitindo outras metáforas, ou metáforas novas. Como organismo e/ou máquina, DEUS pode e
(re)produz seres únicos, especiais, iguais, e diferentes. Tal metáfora permite ao leitor repassar, para o meio, conceitos e
concepções de coisas, pensamentos do mundo, a partir de experiências vívidas no cotidiano, tendo como suporte a
constituição da sempre-formação de/das culturas.
A esse respeito, Lakoff e Turner (1989) nos mostram que a linguagem, em situação de uso, é sempre parte das
metáforas conceptuais. Estas, por sua vez, no dizer social, nutrirão outros dizeres que também estão metaforizados
expressando e conduzindo crenças e valores culturais. Esse entendimento leva em conta que o significado, por meio da
construção metafórica, atualiza o discurso na língua, conduz e é conduzido por outras metáforas para construir outros
significados, gerando conhecimentos novos.
Nesse viés dialógico, uma prática de leitura dessas metáforas, nos usos cotidianos, possibilita compreender, com
Bakhtin, e Freire, que se trata de uma prática social, um lugar de partilha, ao sociabilizar os significados de/para o mundo.
Isto, considerando que o objetivo de focar tais metáforas nessa prática esteja dentro de uma estratégia de desautomtizar o
processo de leitura tradicional, isto é, focar numa estratégia que importancie construir o mundo pela palavra que está nessa
metáfora, que se importe com a base social e cultural, e que seja partilhada, no âmbito do entendimento da comunidade
e/ou do domínio social dessas crianças a partir de 04 anos. A percepção dessa ideia exige que se ative certo grau de
abstração ali conceptualizada, que se perceba o grau da transferência que se (re)(des)organiza, seleciona-se, e acentua-se
no fenômeno da construção dos Modelos Cognitivos Idealizados, como pensa Felts (2007), são modelos resultos da
interação, da experiência humana, que acumulam propósitos, valores, crenças etc., para chegarem aos significados
propostos pelos conceitos de base social e cultural.
Tudo isso, porque, conforme Lakoff e Johnson, diante dos usos das metáforas, é preciso atentar para os conceitos
metaforizados, já-lá estruturados que estão vindos para um já-aqui e que, normalmente, formam conceitos não-conscientes
de natureza cultural. Com isso, vem a importância de se fazer experienciar a ideia que está no mundo sempre e fazer saber
identificá-la: como e por quê, pois, está nesse mundo social e, especialmente, no Livro Sagrado.
Diante do propósito do estudo, concebemos essa metáfora como um fenômeno cognitivo social, uma atividade
humana de base cognitiva, que estrutura o modo de pensar. Por sua vez, influencia no modo de agir, de conduzir valores
nos discursos sociais, a partir de sistemas de conhecimentos repassados, naturalmente no meio em que vive. Com Lakoff e
Johnson, compreendemos que, em sociedade, dialogamos por metáforas, em especial, com as que estão à disposição em
nossa cultura, isto faz melhor interagir, ser entendido e entender o pensamento do mundo. Nesse sentido, as metáforas são
cognitivamente (meta)partilhadas entre os leitores e ouvintes, no caso aqui, as crianças. Estas são frequentemente
determinadas pelos princípios culturais de diferentes opiniões, comunidades, o que poderá gerar interpretações de uma
mesma imagem desse leitor.
No tocante à função desse processo metafórico, as metáforas estrategizam o ato do entendimento do mundo, ao
carregar o pensamento do já-lá para um já-aqui e agora, e fazem o sujeito leitor experienciar as vivências desse
tempo/espaço, alijadas e eliciadas nas estruturas discursivas a serem apreciadas. Ainda com Lakoff e Jonson, sustentamos
a ideia de essas metáforas conceituais, à disposição na comunidade cultural, serem uma forma de experienciar o mundo
social, naturalmente de modo (in)consciente, a partir do processo cognitivo pertenço das pessoas. Nesse sentido, as
metáforas cognitivas conceptualizadas socialmente são recursos interessantes para compreender a aplicação e a inserção
dessas “minhas biblinhas” no meio escolar e social.

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Quanto às ideologias subjacentes e às construções metafóricas, é mister compreender que tais construções
discursivas são processadas por recursos também metafóricos. Com isto, trazemos à discussão o pensamento de Pinker
(2007) ao pensar tais estratégias discursivas permitindo inferências sobre novos contextos, o que subsidia a aplicação
desse entendimento nos textos infantis, de cunho religioso sendo colocado no ensino, para serem entendidas na leitura,
com esse pequeno leitor. Para isso, essas inferências partem de recursos metafóricos, como: cultura, ideologia, intenção
comunicativa e experiência. Tais estratégias requerem considerar o fator impacto cultural local, o que não deixa de ser um
somatório de culturas, de padrões conceituais influentes para interagir, colocando e carregando valores de/para outras
comunidades, as quais esse sujeito leitor pertence.
Diante disso, inspiramo-nos em Otte (2001), para compreender como essas crianças podem perceber as
informações que estão ‘por trás’ da metáfora discursivizada? Através da metáfora, tal percepção e conceptualização
poderão ser bem compreendidas e experienciadas se consideramos o fator cultural, isto, porque, no momento em que
discutimos as questões do texto, para esse público, conhecemos o pensamento, os valores socioculturais em que estão
inseridos, o que poderá ou fortalecer, ou enfraquecer e até mesmo direcionar um ponto de vista para esses pequenos
leitores.

2.1 UM DIZER METAFORIZADO: UMA PRÁTICA DISCURSIVA SOCIALMENTE E NA ESCOLA


Na escola, pressupõe-se haver uma proposta de ensino que tenha como eixo a construção do conhecimento. Para
isto, tal proposta considera a relação dialógica, aos moldes de Paulo Freire, como a interação do sujeito na escola com os
bens socioculturais, adquiridos no domínio intra e extra familiar, no tocante ao desenvolvimento do ensino aprendizagem.
De posse desses bens, aliás, a partir deles, é que se contemplam as práticas de linguagem do cotidiano, (in)diretamente
(co)relacionada às condutas sociais, às crenças e aos valores sociais; assim como à educação e às formas de interação
social. Nosso foco são as crianças que estão nesse espaço escolar, onde se oferecem práticas educativas, além dos
cuidados do âmbito pedagógico, articulados às experiências socioculturais, em especial, as que dizem respeito às condutas
sociais, à identidade e à ética social.
Procuramos ainda compreender o sentimento dessa criança e a percepção do processo de desenvolvimento em
função das condutas sociais, em função do entendimento do “conto maravilhoso” para elas colocado em sala. Nessa
perspectiva, o conhecimento, ali, instituído, e instaurado, através das metáforas, são conhecimentos acumulados
historicamente pela cultura ocidental, relativos ao mundo social e físico das diferentes e/ou iguais ideologias.
Nesse sentido, a sala de aula, com suas atividades de cunho discursivo, passa a ser um espaço “cosmopista” de
construção sobre um mundo já possivelmente idealizado na Bíblia Sagrada, pela prática pedagógica de ensino de leitura,
articulada a ideologias e a indagações da criança sobre a realidade em que vive, normalmente não-homogênea. Trata-se de
pequenos sujeitos que precisam de atividades que despertem criticidade, autonomia, solidariedade para operar a realidade
social. Com isso, vem a questão: será que, com tais contos, asseguraremos uma atividade construtiva, educativa escolar,
para essas crianças, de modo que possa lhes assegurar autonomia, criatividade e criticidade no exercício de sua totalidade
sócio histórico-cultural?
Para um processo de desenvolvimento infantil, em que a criança ocupa(rá) um lugar e um papel social, e uma
percepção para conceptuar valores sociais do mundo, e de vivências, é que estas experiências são e serão arrastadas no
tempo espaço. Diante desse processo dinâmico, é que escolhemos trabalhar com as metáforas conceptuais que se
fundamentam nas experiências físicas e não-físicas, presentes no texto, vejamos algumas classificações: 1. A Estrutural –
os conceitos são estruturados metaforicamente em termos de outro, dão base para formação de outras metáforas e
permitem apresentar um conceito de semelhança mais detalhado pelo delineamento da estrutura: [ X SER Y], as chamadas

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literais, conforme Lakoff e Johnson. Já 2. A Orientacional – os conceitos são orientacionais, conceptuados de acordo com a
orientação espacial, do ambiente físico, isto é, tem base na experiência física e cultural, do tipo: [BOM É PARA CIMA]. E 3.
A Ontológica - diz respeito à personificação e/ou entidades. Na sua estrutura, são conceptuadas as experiências com
objetos físicos, como o corpo humano, por exemplo. Servem de propósitos argumentativos e representativos, refletem
diferentes fins, como o de referir-se, quantificar, identificar, traçar objetivos e ainda motivar ações, como exemplo: [DEUS É
UM ORGANISMO], [DEUS É UMA MAQUINA].
Para tais conceitos, apreciemos uma análise das metáforas eliciadas na história contada por Bonzi e Vago (2006)
e, nesta, procuramos buscar desdobramentos de base cultural do Ocidente, estruturas conceptuais de base na experiência
sociocultural do discente em foco, pontuando o indivíduo e/em seu domínio social. Para tal, buscamos ainda categorizar;
Trabalho, Ética, Crença e Valores Sociais, como segue abaixo.

3 UMA ANÁLISE DAS CONSTRUÇÕES METAFÓRICAS ELICIADAS NAS ENUNCIAÇÕES DE CUNHO RELIGIOSO
NAS HISTÓRIAS INFANTIS

Ao partir da hipótese de que um dizer metafórico estrutura o modo de como compreendemos o mundo, as coisas
a serem ditas, é que discutimos as historinhas maravilhosas, de cunho religioso, sendo re(per)passadas socialmente como
estratégia de leitura para as crianças: Adão e Eva: no paraíso terrestre, do livro do Gênesis – capítulos 2,e 3:

Depois que Deus fez céu e a terra, decidiu que era tempo de criar o homem. Pegou um pouco de terra
e modelou seu corpo; depois soprou nele o sopro da vida e o homem se tornou uma criatura com vida.
O seu nome era Adão.
Depois Deus plantou um jardim, na região do Éden, com árvores de toda espécie E disse a Adão: -
Cultiva o jardim e come frutos das árvores; porém não coma frutos da árvore do bem e do mal que
cresce no meio do jardim.
O jardim era belíssimo. Adão, porém, sentia-se sozinho. Deus concedeu a ele os animais que tinha
criado e Adão deu a todos um nome. Mas ainda se sentia sozinho. Então Deus, enquanto Adão dormia,
tirou dele uma costela e com ela formou a mulher: Eva.
Adão e Eva viviam felizes juntos. Andavam nus, mas não tinham frio; não brigavam entre si e não
adoeciam nunca. Todas as tardes, Deus passeava pelo jardim e ficava um pouco na companhia deles.
Um dia a serpente perguntou à mulher: - Por que Deus proibiu vocês de comer os frutos da árvore que
cresce no meio do jardim?
- Se nós comermos, iremos morrer – respondeu Eva.
- Não. Ao contrário, vocês se tornarão como Deus – insistia a serpente.
Eva tomou um fruto da árvore do bem e do mal. Era gostoso. Ofereceu dele a Adão e ele também
comeu o fruto. Naquela tarde, quando ouviram os passos de Deus no jardim, Adão e Eva assustaram-
se porque haviam desobedecido a Ele e escondiam-se. – Onde estão? Por que vocês se escondem?
Por acaso comeram os frutos da árvore que esta no meio do jardim? – Perguntou Deus.
- A culpa é da serpente! Ela é que me enganou. – Disse Eva.
Então Deus expulsou Adão e Eva do jardim. Disse: - Precisarão trabalhar arduamente para conseguir o
alimento, passarão por sofrimentos, adoecerão e depois morrerão. E os seus descendentes se
desentenderão e moverão guerras uns contra os outros. E você – disse Ele à serpente – irá se arrastar
pela terra. Deus fez para o homem e para a mulher vestes de pele e os expulsou. E colocou anjos para
vigiar o jardim. (BONZI; VAGO, 2006, p.5-7)

Com base na historinha, constatamos que a linguagem nessa medida certa, não se volta para essas crianças, isto
é, para Educação Infantil. Não há uma parafraseamento, o que nos faz ver que a história, contada para compreender certos
conceitos, só podem ser melhor compreendida quando metaforizados, no caso: o conceito de DEUS, de TRABALHO. Tal
linguagem para colocar tais conceitos não privilegia a estratégia do lúdico, a de aprender com amor, conforme Freire. Nesse
texto, o fenômeno da ação de trabalho aparece para esse sujeito três conceptualizações: a de CASTIGO, para os que

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vivem na Terra; a de OBRIGAÇÃO, para os celestiais: Anjos. E, ainda, a de TRABALHO, pela ação divina, pelo poder de
ser Deus.

Conforme algumas das estruturas discursivo-metafóricas, levantaremos os conceitos básicos da ordem do


discurso, do contexto da cultura ocidental de base cristã, veiculados para essas crianças. Ao lado das tais estruturas,
indicaremos os [CONCEITO], em seguida, levantaremos as metáforas mentais para, em seguida, serem analisadas: a)
Deus fez céu e a terra [...] [TRABALHO]; b) [...] era tempo de criar o homem [...] [TRABALHO]; c) Deus plantou um jardim
[...] [TRABALHO]; d)[...] Deus proibiu vocês de comer os frutos da árvore que cresce no meio do jardim? [TRABALHO]; e
[...]uma costela e com ela formou a mulher: Eva.[TRABALHO]; e)[...] Deus passeava pelo jardim e ficava um pouco na
companhia deles.[...] [ TRABALHO]; f) [...]Precisarão trabalhar arduamente para conseguir o alimento[...] [TRABALHO];
g) [...] E colocou anjos para vigiar o jardim. [TRABALHO].

Dos conceitos veiculados, destacamos: DEUS, TRABALHO. A partir destes, licenciamos a metáfora estrutural: 1.
[DEUS É TRABALHO], aqui, a metáfora mental aponta um conceito de TRABALHO pelas ideias, alocadas no texto de que
Deus: fez a terra, criou o homem, nomeou o homem e a mulher; plantou o jardim do Éden; administrou o jardim; construiu a
mulher a partir do homem; e expulsou o homem e a mulher do paraíso terrestre. E a metáfora 2. [TRABALHO É CASTIGO]
aponta para o conceito de CASTIGO, no domínio fonte, visto que as criaturas de Deus: Adão e Eva, para sobreviverem na
terra deveriam trabalhar arduamente: [...] Então Deus expulsou Adão e Eva do jardim. Disse: - Precisarão trabalhar
arduamente para conseguir o alimento [...].

As metáforas 1 e 2 podem licenciar a conceptualização de trabalho por outro viés: o do castigo. Com esse
entendimento, podemos crer que, na história, há duas formas de trabalho: a) [TRABALHAR É UMA AÇÃO NATURAL DE
SOBREVIVÊNCIA]; e outra: b) [TRABALHAR É UMA ATIVIDADE] de castigo pela desobediência às ordens de Deus.

No tocante às metáforas de base orientacional, que envolvem uma direção, destacamos as metáforas de
recipiente, cujo entendimento parte das expressões: de dentro, de fora, ao lado, por trás, para cima, para baixo etc. Estas
estruturas podem fazer entender que: Deus está dentro do jardim; Deus passeava pelo jardim  [TRABALHO É DOMÍNIO]
dos fatos/acontecimentos; [DEUS É SABEDORIA], tem domínio dos acontecimentos; [DEUS É EXPERIENCIA], e
experiencia os fatos acontecidos. Quanto ao objeto proibido estar no meio do jardim: [...] os frutos da árvore que está no
meio do jardim; às criaturas de Deus: Adão e Eva: no paraíso terrestre, vimos que foram criadas para estar dentro do
paraíso, mas, que, por desobediência, ficaram fora do paraíso.

E as de base ontológica, que concretizam o abstrato, em nome de uma entidade – como um objeto palpável ou
não, personificado, um objeto corporificado, no caso aqui é referenciado o TEMPO. Este sequencia as ações de trabalho
(da Gênesis) de Deus TEMPO É UMA ENTIDADE DIVINA, por ter inteligência, ponderação e ação com racionalidade;
por sequenciar os fatos/acontecimentos à luz de Deus na Terra. Como reflexão dos conceitos-chaves abstratos,
metaforicamente apontados, é mister mencionar o de [TEMPO]. Conforme Sardinha (2007), trata-se de um conceito
abstrato que fica melhor entendido quando se é mencionado metaforicamente. No texto, o [TEMPO É UMA ENTIDADE EM
MOVIMENTO], age delimitando a sequência das ações, o [TEMPO É ÓRGAO DIVINO E CRIADOR], (o tempo cria o
homem por determinação de Deus, quando aparece na estrutura: Deus [...] decidiu que era tempo de criar o homem [...].
Podemos levantar a metáfora: [TEMPO É UM BEM DIVINO], isto, porque Deus o tem com infinita quantidade, pertence-lhe,
valoriza-o e fez uso dele com prudência. Como se sabe, nas histórias contadas, naturalmente, o uso do tempo é um fator
essencial para delinear e delimitar os fatos, acontecimentos, e informar.

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É relevante mencionar que, nesse texto, consta uma visão educadora de base “tradicional” a exemplo da
concepção de conceitos como: DESOBEDIÊNCIA, e de CASTIGO. Esta é consequência daquela. Nesse caso, o
levantamento das metáforas mentais pode servir de recurso para dar acesso aos conceitos, uma vez que tais metáforas não
são discutidas e nem aprendidas, mas adquiridas (in)conscientemente, diante do contato com a família, com a comunidade
a que pertencem.

Com esse entendimento, é possível que as crianças possam se posicionar e se relacionar melhor com as
realidades que estão no seu meio, no domínio sociocultural, sem contar que lidam e contatam com conceitos profundos e
duradouros da sociedade. Isto, porque, as questões apontadas, abordam as “coisas da vida”, que, de certo modo, refletirão
no comportamento dessa criança, no tocante à ética, à conduta moral de um tempo de então para um tempo de já-aqui.
Visto assim, acreditamos que, se a história for colocada em sala de aula, os professores poderão refletir com as crianças
comportamento de desobediência, no sentido de orientar a ética de se viver em sociedade, o que suscitará ensino e
aprendizagem, à luz de uma cidadania.

Vale destacar com Bonzi e Vago, uma proposta explicativa (ide,p.8 – 9), com em: (1) “Quando Adão viu Eva pela
primeira vez, exclamou: - Você é como eu, porque você é carne de minha carne”. (2) A vida do homem é como um vaso
que cada um pode encher com coisas bonitas e boas, ou então com ações más. (Grifos Nossos). Refletindo tais notas, sob
a estratégia da interpretação, buscando os conceitos, ali evidenciados metaforicamente, vemos que, nas estruturas como
em: (1) “Você é como eu”, temos o conceito de IGUALDADE entre os terrestres: OS HOMENS SÃO IGUAIS. (2) “Quando
Deus moldou o homem [...] com argila. A vida do homem é como vaso”, cuja metáfora do recipiente fica evidente, e, ainda,
acrescenta: “cada um pode encher com [...]”, o que suscita a metáfora cognitiva: [O HOMEM É UM RECIPIENTE VAZIO].
E, novamente, vem a ideia de igualdade, trabalho de produção em série das vasilhas vazias.
Em [DEUS É UMA MAQUINA], podemos ver que o [PARAISO TERRESTRE É UM LOCAL DE TRABALHO], cujo
artesão e criador das coisas tem um perfil de rigidez, perfeição em manter a igualdade da aparência dos objetos: [...] Você é
como eu, porque você é carne de minha carne.[...], tanto do todo, quanto das partes desse objeto. E, Então Deus, enquanto
Adão dormia, tirou dele uma costela e com ela formou a mulher: Eva.

O homem como vasilha vazia é um mero objeto de Deus. Nesta, o domínio-fonte do significado do conceito-chave
está no vaso de oleiro: “A vida do homem é como um vaso que cada um pode encher com coisas bonitas e boas, ou então
com ações más.” Tal estrutura faz-nos lembrar Freire, quando mostra a Educação Bancária, a mecanicidade dos
acontecimentos, uma educação que não transforma, mas reproduz a mesmice pela ideia da pseudo-igualdade social.

Nesse entendimento, autorizado pela estrutura metafórica [ A VIDA DO HOMEM É UM VASO QUE QUALQUER
UM PODE ENCHER] pode licenciar a leitura na sala de aula de que o [professor é um depositante] e [o aluno é o objeto-
depósito]. Com esse entendimento, volta-se aos conceitos-chave, alijados no texto: DEUS e TRABALHO, e o texto passa
ser um lugar-agente de conduzir esses conceitos para os pequenos leitores.

Como podemos notar, através das estruturas discursivas, no texto, em foco, pudemos buscar conceitos abstratos
para tratar de ações diretamente ligadas à vida, sob o viés da religiosidade, isto é, “em nome de Deus”. Com isso, a
linguagem metaforizada cognitivamente poderá favorecer a descoberta da experienciação dos fatos da realidade dessas
crianças, conforme a orientação, da ação da leitura, pelo viés religioso, abrangendo: a linguagem metaforizada e simbólica;
a dimensão de juízos de valores, no sentido de fortalecer, desenvolvendo, a segurança desses juízos de valores sociais; e,
ao mesmo tempo, cultivam-se nesse sujeito-leitor as motivações de cidadania.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo tentou conduzir os participantes da pesquisa à consciência da linguagem, de uso do cotidiano, à


descoberta dos recursos que utilizam para dizer algo, traduzindo também suas percepções do mundo. Com esse
entendimento, consideramos a importância de mostrar

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