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A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA

Renan Springer de Freitas

O colapso do ideal baconiano de boa ciên- dologia possa assumir tão elevada posição, mas
cia, consumado com o advento da teoria da rela- não consigo vislumbrar um caminho intermediário
tividade, o subseqüente insucesso dos empiristas entre o recuo a uma das formas de naturalismo a
do Círculo de Viena em estabelecer um ideal subs- que acabo de fazer menção e uma operação de al-
tituto e a pertinência da crítica de Pierre Duhem tíssimo risco. Receio que a metodologia tenha sido
ao ideal racionalista levaram a reflexão sobre o conduzida ao fundo de um poço do qual não há
que é boa ciência a subordinar-se a uma análise mais como sair a não ser dando um salto vertigi-
naturalística do processo de aquisição de conheci- noso. O objetivo deste artigo é discutir a viabilida-
mento ou, simplesmente, a dissolver-se em uma de deste salto.
sociopsicologia do conhecimento. Gostaria de su-
gerir que nenhuma dessas formas de capitulação é
necessária. A reflexão sobre o que é boa ciência, O ideal de boa ciência na encruzilhada
ou, para usar um termo mais familiar, a metodolo-
gia, pode reencontrar seu caminho se assumir a O ideal de boa ciência que por mais tempo
posição que, por assim dizer, lhe é de direito: a de seduziu a ciência moderna foi, sem dúvida, a con-
carro-chefe da história da ciência. É verdade que cepção indutivista de Francis Bacon. Eu o resumi-
há algo de megalomaníaco em supor que a meto- ria assim: boa ciência é a que se mostra capaz de
inferir leis naturais a partir do acúmulo de obser-
Artigo recebido em maio/2003 vações. Mais precisamente, é a que dispõe de
Aprovado em dezembro/2003 princípios que, uma vez postos em prática, permi-

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tem que essas leis se mostrem espontaneamente qualidade de uma ciência não reside na extensão
ao intelecto. O princípio fundamental é manter a em que observações e generalizações indutiva-
mente a salvo de enganos. Estes podem vir de mente estabelecidas se mostram depuradas das
toda parte: da imerecida confiança que usualmen- ilusões cognitivas a que a mente humana está ine-
te depositamos em nossos sentidos, de nossos vitavelmente exposta, mas, sim, na diversidade de
sentimentos subjetivos, do intercâmbio social e de conseqüências empíricas que podem ser deduzi-
toda sorte de sistemas, religiosos ou laicos, de das de seus enunciados e na capacidade que es-
pensamento. Se é assim, a condição primordial sas exibem de resistir a testes.
para a produção de uma boa ciência é a existên- Esse novo ideal de boa ciência, de caráter
cia de mentes suficientemente bem treinadas para racionalista, foi plenamente encampado pelos li-
não se deixar enganar por nada disso. Satisfeita vros-textos de metodologia científica. Tome-se,
esta condição, observações e inferências confiá- por exemplo, o notável livro de Stinchcombe,
veis poderão ser feitas, e a produção de uma boa Constructing social theories, de 1968. Ele apresen-
ciência estará garantida. Nada menos que Newton ta a abordagem sociológica de Durkheim sobre o
e, posteriormente, Darwin se disseram tributários suicídio como um modelo de boa ciência. Com
dessa concepção. Ambos acreditavam, algo inge- efeito, é difícil imaginar um trabalho – refiro-me,
nuamente, que suas respectivas ciências eram o evidentemente, ao clássico O suicídio – em que o
resultado de um acúmulo criterioso de observa- ato de derivar conseqüências empíricas de enun-
ções. Na verdade, o ideal baconiano de boa ciên- ciados e submetê-las a testes seja tão ubíquo. A
cia desfrutou de um status canônico por quase discussão de Durkheim sobre o suicídio no exér-
três séculos. Com o benefício do olhar retrospec- cito merece particular atenção. Sabia-se que os
tivo, é de espantar que tenha sido preciso que os militares se matavam mais do que os civis em
alicerces da física newtoniana fossem abalados qualquer país da Europa. Convencionalmente se
para que ele também se visse abalado. Seja como pensava que seria por causa das adversidades ine-
for, o início do século XX assistiu ao colapso da rentes à vida militar. Vida militar envolve privação
idéia de que os princípios baconianos garantem da liberdade, convívio forçado e permanente ex-
uma boa ciência. Isso conduziu a metodologia a posição a toda sorte de humilhações. Tudo isso é
um impasse: decidir se a ciência, para merecer verdade, admite Durkheim, mas o suicídio no
este nome, precisa ou não de garantias. Respon- exército nada tem a ver com isso. O suicídio nes-
der que sim demandaria mostrar quais seriam es- ta corporação é da mesma natureza que o suicí-
sas garantias. Responder que não demandaria ex- dio nas sociedades ditas primitivas. Em ambos os
plicar como, na ausência de garantias, a ciência casos, uma fatia considerável de autonomia é sub-
poderia ser uma forma particularmente privilegia- traída dos indivíduos em favor de uma identidade
da de conhecimento. Os filósofos que, como Car- coletiva. No limite, a própria noção de autonomia
nap e os empiristas lógicos de um modo geral, individual perde sentido. O sentido da vida pas-
responderam sim, não foram capazes de mostrar sa, então, a se localizar fora dela. Daí, o suicídio.
as garantias. Os que, como Popper, responderam Para tornar esta tese empiricamente tratável, Dur-
não, foram mais bem-sucedidos. Eles foram capa- kheim derivou nada menos que quatro conse-
zes de conceber uma ciência sem garantias: a qüências empíricas, três das quais extremamente
ciência, disseram, mesmo não dispondo de um contra-intuitivas, e testou-as uma a uma. Sua tese
método capaz de assegurar, de antemão, a valida- demandava que os voluntários se matassem
de de seus resultados, constitui uma forma privi- mais do que os não voluntários, que os militares
legiada de conhecimento porque é a única capaz mais antigos na corporação se matassem mais
de se expor a testes e de resistir a eles. Com essa do que os mais recentes, que os militares de
resposta, a metodologia pôde sair da encruzilha- alta patente se matassem mais do que os de bai-
da a que foi conduzida pela crise da Física do fim xa patente e que, em países protestantes, o ín-
do século XIX. Postulou-se, a partir daí, que a dice de agravamento do suicídio fosse menor
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que em países católicos. Essas quatro demandas A espada de Duhem


foram satisfeitas.
Igualmente notável foi a forma como Dur- Esse ideal racionalista de boa ciência repre-
kheim procedeu para corroborar sua tese funda- senta, sem dúvida, um avanço desmedido em re-
mental de que a explicação para taxas de suicí- lação à visão baconiana. Não obstante, já nasceu
dio deve ser buscada no exame da natureza dos com uma espada sobre a cabeça. Ele demanda
laços sociais e não em qualquer fator de caráter que o falseamento de uma conseqüência empíri-
psicológico. Durkheim propôs que a explicação ca seja transferido para o enunciado do qual ela
para, digamos, a taxa comparativamente baixa de foi deduzida. Tal transferência, entretanto, nem
suicídios entre os católicos deve ser buscada na sempre é possível porque, sempre que derivamos
natureza dos laços sociais que se estabelecem en- uma conseqüência empírica C, de um enunciado
tre eles e, não, como se tenderia, então, a supor, E, este último se articula a muitos outros, diga-
no fato de o catolicismo ser implacável com o mos, E1, E2 e E3 e, se a primeira é falseada, não
suicida a ponto de negar-lhe um enterro cristão. podemos saber com certeza se o responsável por
Uma implicação desta tese é a de que, embora isto é E ou qualquer um dos outros enunciados
seja verdade que os católicos temam pelo desti- aos quais ele se articulou. Considere-se, por
no de suas almas caso venham a se matar, as bai- exemplo, o enunciado E: “A Terra é redonda”.
xas taxas de suicídio entre eles nada têm a ver
Derivemos dele a conseqüência empírica C:
com isto. Para tornar tal afirmação empiricamen-
“quando um navio se dirige para a linha do hori-
te tratável, Durkheim voltou-se para os judeus. O
zonte, o mastro será a última parte a desapare-
judaísmo é relativamente tolerante no que con-
cer”. O simples fato de testar esta conseqüência
cerne ao suicídio. Um judeu não teme arder no
empírica estabelece uma conexão entre E e todo
inferno caso se mate. Ademais, há uma clara e sa-
um conjunto de outros enunciados. Para efeito de
bida conexão entre o suicídio e três fatores: grau
exposição, vou me limitar a imaginar três. E1:
de instrução elevado, procedência urbana e dedi-
“aquele objeto, a uns 200 metros de nós, é um na-
cação ao comércio. Essa conjunção de fatores
vio se dirigindo à linha do horizonte”. E2: “os se-
(refiro-me aos quatro) faz do judeu um sério can-
res humanos são capazes de perceber um navio
didato ao suicídio. Se, entretanto, o que conta é
desaparecendo, aos poucos, no horizonte”. E3:
a natureza dos laços sociais, e os laços entre os
judeus são estreitos, então é de se esperar, con- “nossas percepções são plenamente confiáveis”.
tra os quatro fatores acima, que os judeus se Suponhamos, agora, que tenhamos observado o
matem muito pouco. Durkheim procura então navio desaparecer na linha do horizonte e que o
mostrar que este é o caso. De um único golpe, mastro não tenha sido a última parte a desapare-
a saber, a comparação das taxas de suicídio en- cer. Que enunciado terá sido falseado nesse caso?
tre judeus e católicos, ele procurou mostrar a Idealmente estamos testando E: “A Terra é redon-
superioridade de sua tese sobre nada menos da”. Mas a observação de que o mastro não foi a
que quatro teses alternativas. Dada a ousadia última parte a desaparecer contraria igualmente a
de Durkheim em pretender corroborar um E1, E2 e E3 ou, mesmo, um En que sequer nos te-
enunciado e, ao mesmo tempo, refutar quatro nha ocorrido. Ela não é, portanto, um meio ine-
alternativos por meio do simples expediente de quívoco de refutar E. Assim, se derivamos uma
derivar do primeiro uma conseqüência empíri- conseqüência empírica C de um enunciado E, e C
ca cuja negação é demandada por todos os ou- revela-se falso, idealmente supomos que E é fal-
tros, não é de estranhar que O suicídio seja so. Mas muitas vezes não podemos saber se a
apresentado como um modelo de boa ciência falsidade de C transfere-se para E ou para algum
pelos melhores livros-textos de metodologia outro (ou alguns outros) enunciado(s) a que E
das ciências sociais. veio a se articular no momento em que C foi sub-
metido a teste. Essa impossibilidade pode manter
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E permanentemente a salvo de refutação, o que que sirva de “cinto de proteção” para seu núcleo
seria um golpe mortal para o ideal racionalista de básico de pressupostos, e as hipóteses auxiliares
boa ciência. são a fonte dessa heurística.
Pierre Duhem chamou pioneiramente a Para ilustrar tudo isso vou me valer da fa-
atenção para esse problema antes mesmo que mosa tese de Marx de que a revolução comu-
esse ideal viesse a se estabelecer. Popper, bom nista deveria ocorrer na Inglaterra, país cujas
leitor de Duhem que era, mostrou-se ciente de “condições materiais” eram, então, as mais ma-
tudo isso, mas não pensou que estivesse diante duras para uma ação revolucionária. A revolu-
de um problema tão grave (Popper, 1999, pp. 43- ção comunista, como sabemos, ocorreu na Rús-
44). É verdade, ele diz, que muitas vezes não é sia, país cujas “condições materiais” não eram
possível saber que enunciado de um sistema teó- nada propícias. Isto parece afetar a tese, que
rico está sendo falseado quando uma conseqüên- faz parte do “núcleo duro” de pressupostos me-
cia empírica deste sistema é falseada. Nesses ca- tateóricos do marxismo, de que o “ser social de-
sos, ele prossegue, o cientista deve seguir seus termina a consciência”. Uma hipótese auxiliar
instintos e contar com a sorte (Idem, pp. 80-81). veio, entretanto, em socorro deste pressuposto.
Se não há como afastar a espada, nada mais res- A chamada tese do “elo mais fraco da corrente”,
ta a fazer a não ser torcer para que ela não caia! de Lênin. De acordo com ela, a Inglaterra e a
Mas houve quem não achasse prudente contar Rússia não podem ser tomadas como unidades
estanques. Ambas constituem elos de uma mes-
com a sorte. Refiro-me a Lakatos.
ma corrente e, portanto, o que ocorre em um
Lakatos quis manter o novo ideal canônico
país tem repercussão sobre o outro. Uma vez
de boa ciência a salvo das objeções de Duhem
que esta tese encerra a regra “não se deve tomar
propondo o que denominou “metodologia dos
fronteiras nacionais como unidades auto-conti-
programas de pesquisa”. Um “programa de pes-
das de análise sociopolítica”, a qual passou a fa-
quisas” é uma série de teorias ancoradas em um
zer parte da heurística marxista, ela torna o
conjunto articulado de pressupostos teóricos e
enunciado “A revolução comunista deve ocorrer
metateóricos, cuja validade pode ser, até segunda
na Inglaterra” imune ao fato de a revolução ter
ordem, presumida (Lakatos, 1970). Para que exis-
ocorrido na Rússia porque o vincula ao enuncia-
ta uma série de teorias é necessário que haja uma
do “Inglaterra e Rússia são elos de uma mesma
primeira, da qual se possa derivar uma ou mais
corrente”. Mas, vale isso? Sim, responde Lakatos,
conseqüências empíricas. Suponhamos que uma desde que a teoria do elo mais fraco da corren-
dessas conseqüências seja contrariada pela expe- te se mostre capaz de antecipar fatos novos. Ela
riência. Como, nesse caso, identificar a parte da antecipa, por exemplo, a revolução chinesa e/ou
teoria que foi afetada? Não precisamos identificar, a cubana? Se sim, estamos diante de uma boa
responde Lakatos. Podemos, nesse caso, recorrer ciência. Se não, não estamos. Há, entretanto, um
a uma hipótese auxiliar para manter a teoria a sal- problema, para o qual Feyerabend (1977) cha-
vo do contra-exemplo. Há, entretanto, algo a exi- mou devidamente a atenção. Lakatos quer rela-
gir dessa hipótese auxiliar: que se mostre capaz de xar os critérios popperianos de boa ciência su-
antecipar fatos novos. Na medida em que o faz, gerindo que se dê uma chance às teorias cujas
converte-se na segunda teoria da série que com- conseqüências empíricas foram falseadas. Mas
põe o programa de pesquisas. Esse processo pode por que não duas, ou três? Afinal, teorias não
continuar indefinidamente. Mesmo as hipóteses são como namorados mal-comportados que só
auxiliares que não são bem-sucedidas o suficiente merecem uma única chance. Lakatos, certamen-
para se elevarem à condição de teoria de um pro- te, teria de admitir isto, o que, no limite, condu-
grama de pesquisa cumprem um papel fundamen- ziria a uma completa imunização da teoria con-
tal. Nenhum programa de pesquisa pode prospe- tra o falseamento. Seria a espada de Duhem de
rar se não for capaz de desenvolver uma heurística volta ao cenário.
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O ideal de boa ciência se rende primitivo como o espetáculo de um pássaro agitan-


ao naturalismo do as asas pode acabar por conduzir a uma respos-
ta tão formidável quanto o enunciado “há transfor-
Antes que Lakatos pudesse, bem ou mal, se mação de energia nesse local”. Como um salto
haver com a advertência de Duhem, houve quem como este pode ser dado? Só pode haver uma ex-
se valesse dela para colocar em cheque a própria plicação, raciocina Quine: entre o estímulo senso-
pertinência de uma reflexão apriorística sobre o rial e a resposta formidável deve haver uma miría-
que é uma boa ciência. Refiro-me, agora, a Qui- de de outros enunciados, alguns mais próximos do
ne. De acordo com ele, se alguma reflexão meto- estímulo, outros da resposta, os quais são forma-
dológica (isto é, sobre o que é uma boa ciência) dos à medida que uma resposta ao estímulo origi-
é, de todo, possível, esta não pode ter um caráter nal serve de estímulo para uma resposta de nível
apriorístico. Ela deve estar subordinada a uma in- um pouco mais complexo, e assim sucessivamen-
vestigação sobre como o conhecimento é efetiva- te, até que um enunciado como “há transformação
mente adquirido – sobre como, a partir de tão de energia nesse local” possa ser produzido. Nes-
pouco: as estimulações sensoriais, que é tudo o sa perspectiva, a ciência tem um caráter necessaria-
que nos é imediatamente dado, podemos produ- mente holístico. Ela consiste de redes inteiras de
zir algo tão magnífico quanto, por exemplo, as enunciados que só fazem sentido em bloco. A
teorias científicas. Inaugurou-se, assim, o que veio principal lição metodológica que Quine tira daí é a
a ser conhecido como a abordagem naturalista do de que, ao contrário de tudo o que os livros-textos
conhecimento. A reflexão metodológica passou, a de metodologia científica apregoam, não é (logica-
partir daí, a ser vista como um dos possíveis sub- mente) possível refutar um enunciado via submis-
produtos de uma análise sobre o modo como se são de suas conseqüências empíricas a testes. Du-
dá a aquisição de conhecimento. hem pôs uma espada sobre o ideal racionalista de
Para analisar esse processo, Quine tomou o boa ciência. Popper e Lakatos tentaram, de alguma
aprendizado de uma língua como modelo. Gros- forma, afastá-la. Quine soltou-lhe as amarras.
so modo, ele diz, este aprendizado se dá por Com este ideal fora do caminho, o que nos
duas vias. A primeira, mais primitiva, é a da os- resta? O pragmatismo, responde Quine. A cada ho-
tensão. Esta se verifica quando um adulto apon- mem, ele diz, é dada uma herança científica e uma
ta um objeto para uma criança (ou um nativo carga contínua de estimulação sensorial. Cabe-lhe
aponta um objeto para um estrangeiro) e diz o ajustar uma coisa à outra, e as considerações que
nome desse objeto. Após algumas indicações, a o guiam nessa empreitada são, quando racionais,
criança (ou o estrangeiro) saberá associar palavras de ordem estritamente pragmática (Quine, 1953, p.
como “pássaro”, “camisa”, “meia” etc., aos objetos 46). Mas, se é assim, então não se pode vetar, a
correspondentes. A segunda é, entretanto, a que priori, o ato de submeter enunciados a testes via
mais interessa no que concerne a seu argumento. dedução de suas conseqüências empíricas. Tudo
Trata-se, agora, do processo de aprender a associar o que se pode fazer a respeito é advertir que re-
palavras e sentenças não a objetos, mas umas às corremos a tal expediente por uma mera questão
outras, em níveis crescentes de autonomia em re- de conveniência, isto é, apenas como um meio
lação à experiência sensível. Assim, aquilo que, no eficiente de “prever a experiência futura à luz da
plano primitivo da ostensão pode ser, na melhor experiência passada” (Idem, p. 44). Não devemos
das hipóteses, descritível como, digamos, “pássa- nos esquecer, Quine diria, que há maneiras alter-
ro”, num plano mais complexo pode se traduzir nativas de conectar o passado ao futuro e que,
em “eis um pássaro batendo as asas”, “o pobre ani- desde que uma determinada maneira se mostre
mal está assustado” e, num plano ainda mais com- eficiente na sua esfera específica de atuação, ela
plexo, “há transformação de energia nesse local”. vale tanto quanto qualquer outra.
Compreender a ciência, sugere Quine, não é Em seu célebre Humano, demasiado huma-
diferente de compreender como um estímulo tão no, seção 111, Nietzsche nos fala de um tempo
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em que não havia qualquer noção de causalidade vencer os teólogos aristotélicos da validade do sis-
natural. Quando se remava, não era o remo que tema copernicano. Diferentemente de Quine, Feye-
movia o barco; remar era apenas uma cerimônia rabend está explícita e profundamente empenhado
mágica, pela qual se forçava um demônio a mo- em saber o que torna uma teoria intrinsecamente
ver o barco. Se as fontes secavam de repente, digna de interesse. Seu controvertido livro Contra o
pensava-se primeiro em demônios subterrâneos e método quer mostrar que Popper, e os racionalistas
suas maldades. Quine tem razão: há mesmo ma- de um modo geral, não foram capazes de oferecer
neiras alternativas de conectar o passado ao futu- uma boa resposta, e não que essa indagação não
ro. A postulação da existência de demônios é seja fundamental. Se assim não o fosse, ele não te-
uma delas. A postulação de causalidade natural é ria por que dizer, como o fez, que “não há uma
outra. Não há, Quine diz, descontinuidade entre única teoria digna de interesse que esteja em har-
elas. A única diferença está no grau em que cada monia com todos os fatos conhecidos que se si-
uma favorece nossa maneira de lidar com a expe- tuam em seu domínio” (Feyerabend, 1977, p. 41).
riência sensorial imediata (Idem, p. 45). Ao postu- Talvez a essência do naturalismo de Quine, se as-
lar tal continuidade, Quine acabou por conduzir, sim posso me expressar, esteja em dizer exata-
ainda que involuntariamente, a advertência de mente o oposto: toda e qualquer teoria é digna de
Duhem a uma espécie de vale-tudo. Se não há interesse desde que esteja em perfeita harmonia
descontinuidade entre demônios e causalidade com todos os fatos conhecidos que se situam em
natural; se ambos seriam, como o próprio Quine seu domínio. Ou, melhor dizendo: uma teoria só é
sugere em seu clássico artigo “Dois dogmas do uma teoria na medida em que consegue se man-
empirismo”, “mitos” de uma mesma espécie, dos ter em harmonia com todos os fatos conhecidos
quais nos servimos para lidar com nossas expe- do seu domínio.
riências sensoriais, e se tudo o que temos a de- Nos marcos do naturalismo holista de Quine,
mandar desses “mitos” é que se mostrem eficien- entretanto, manter-se em harmonia com todos os
tes nas circunstâncias particulares em que são fatos conhecidos não é uma meta difícil de ser al-
mobilizados, então qualquer um deles, desde que cançada. As considerações anteriores sobre o modo
bem ajustado a um bloco monolítico de enuncia- pelo qual algo como o espetáculo de um pardal
dos, e que se mostre útil a um conjunto previa- agitando as asas pode conduzir a um enunciado
mente delimitado de propósitos, deve valer. como “há transformação de energia nesse local”
Cabe, entretanto, alertar que este vale-tudo torna isto claro. Vimos que este último só pode es-
não se confunde com o amplamente conhecido tar conectado a um enunciado como “eis um par-
vale-tudo de Feyerabend. Apesar de se auto-pro- dal agitando as asas” se ambos estiverem conecta-
clamar “contra o método”, Feyerabend sempre se dos a todo um conjunto de outros enunciados de
houve com a questão metodológica sem imaginar graus variados de afastamento em relação ao estí-
que ela tivesse de ser subordinada a alguma aná- mulo original. Os dois enunciados em considera-
lise de caráter naturalista. Apesar de sua retórica ir- ção, e todos os outros, articulam-se assim em um
racionalista, a preocupação em saber o que é uma único bloco. O significado de cada um dos enun-
boa ciência e como ela é possível é central em seu ciados resulta, nessa perspectiva, de sua articula-
pensamento. Neste, a resposta para essas pergun- ção com todos os outros, e este vasto conjunto de
tas não aparece como um subproduto da resposta enunciados interconectados exibe um caráter de
para a pergunta: como se adquire conhecimento? “campo de forças”, que só mantém contato com a
Assim, se Feyerabend não considerasse a ciência experiência sensorial em sua periferia (Quine,
de Galileu um modelo de boa ciência, ele não te- 1953, p. 42). Assim, no exemplo dado anterior-
ria por que se empenhar em mostrar quão impor- mente, o enunciado “A Terra é redonda” ocupa
tante foram para o avanço da ciência moderna os uma posição mais central no “campo”. Ele está
esforços, muitas vezes de caráter maquiavélico, bastante afastado da experiência sensorial imedia-
deste notável físico e astrônomo italiano para con- ta. O enunciado que descreve o que observamos
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quando um navio desaparece na linha do horizon- zão para tanto entusiasmo. Ele argumentaria que
te ocupa a posição mais periférica. Entre um e ou- os enunciados que Durkheim presumivelmente re-
tro, é possível conceber a existência de muitos ou- futou podem ser facilmente reabilitados desde que
tros enunciados, não explicitados, uns mais outros enunciados venham em seu socorro. Re-
próximos do centro (os anteriormente menciona- lembremos, por exemplo, a tese de Durkheim de
dos E2 e E3), outros da periferia (o enunciado E1), que a taxa comparativamente elevada de suicídio
conectados entre si e aos dois enunciados em con- entre os voluntários requer uma explicação socio-
sideração. Se acontecer de a experiência sensorial lógica e exclui a possibilidade de qualquer expli-
contrariar um enunciado situado na periferia des- cação psicológica para o suicídio no exército. Pode-
se “campo de forças”, este último não se verá em se, contra isto, argumentar que os voluntários se
dificuldade. Nesse caso, os outros enunciados se matam mais porque, antes de entrar para o exér-
redistribuem dentro do campo, isto é, deslocam-se cito, alimentam expectativas sobre a vida militar e
para posições mais centrais ou mais periféricas, de estas se frustram amplamente. A psicologia estaria,
forma a manter o sistema, como um todo, à salvo assim, reabilitada. Se esse tipo de exercício for ge-
da experiência sensorial que contrariou o enuncia- neralizado, algo que pode facilmente ser feito, não
do periférico. Nessa perspectiva, ao contrário do restaria pedra sobre pedra do argumento socioló-
que dizem os livros-textos de metodologia, teorias gico a respeito de mortes voluntárias. Isso signifi-
não se sustentam porque se mostram capazes de caria que O suicídio é um irremediável fracasso?
resistir a testes cruciais – mesmo porque, agora, Bom pragmatista que é, Quine responderia que
teorias sequer podem se prestar a testes cruciais –, não. Responderia que para entender a real contri-
mas porque encerram redes de enunciados capa- buição de Durkheim é necessário entender o que
zes de se proteger mutuamente sempre que algu- ele efetivamente fez. E, de um ponto de vista prag-
ma conseqüência empírica de algum desses enun- matista, o que Durkheim efetivamente fez, ao su-
ciados é contrariada pela experiência. Daí a por haver contribuído para o avanço do conheci-
impossibilidade, a priori, de uma teoria científica mento científico via falseamento de teorias
em desarmonia com qualquer fato conhecido de psicológicas incapazes de perceber que a explica-
seu domínio. ção para o comportamento humano reside na na-
Estamos, então, diante de uma crítica radical tureza dos laços sociais, foi mascarar o fato de que
ao ideal racionalista de boa ciência. Conforme vi- “natureza dos laços sociais” é, tanto quanto o apa-
mos, este último veria a sociologia que Durkheim rato conceitual psicológico a que esta concepção se
oferece em O suicídio como um inequívoco exem- contrapõe, um dos possíveis “mitos” a que pode-
plo de boa ciência. Durkheim procurou mostrar, mos recorrer para estabelecer uma conexão entre
via submissão de teorias em competição a testes nossas experiências passadas e futuras. Se a socio-
cruciais, isto é, via derivação de uma conseqüên- logia de Durkheim pode, de todo, ser considerada
cia empírica de uma das teorias, cuja negação é uma boa ciência, é somente por razões dessa natu-
implicada pelas demais, que: 1) o suicídio no reza, ou seja, é somente por ter produzido um ou
exército é da mesma natureza que o suicídio em mais “mitos” potencialmente úteis, e não pelas ra-
sociedades ditas primitivas, 2) o índice comparati- zões mencionadas nos livros-textos de metodologia
vamente baixo de suicídio entre os católicos é da científica.
mesma natureza que o índice comparativamente
baixo de suicídio entre os judeus e, 3) em ambos
os casos, pode-se perfeitamente prescindir da psi- O ideal de boa ciência chega
cologia porque a explicação só pode ser encontra- ao fundo do poço
da em um exame da natureza dos laços sociais. Se
isso não é um exemplo de boa ciência, diria o Apesar de implicar tal crítica contundente
ideal racionalista, o que mais poderia ser? O natu- aos livros-textos de metodologia, essa versão do
ralismo holista de Quine, entretanto, não veria ra- naturalismo deixa ainda alguma margem para a
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preocupação com a questão metodológica. Quine Como se aprende matemática? Bloor vai buscar a
questionou a pertinência de uma reflexão metodo- resposta em Stuart Mill: aprende-se matemática to-
lógica de caráter apriorístico, e não de qualquer mando-se operações físicas com objetos como um
reflexão metodológica concebível. Houve, entre- modelo para raciocínios abstratos. Crianças brin-
tanto, quem desse esse passo adicional, conduzin- cam com pedrinhas. Elas as ordenam, agrupam, se-
do a abordagem naturalista a um verdadeiro ma- param etc. Processos de raciocínio matemático são
nifesto antimetodológico. Subordinar a reflexão apenas pálidas sombras de operações físicas dessa
metodológica a uma análise naturalística do pro- natureza. É em razão de nossa experiência anterior
cesso de aquisição de conhecimento pareceu, a al- em ordenar, agrupar e separar objetos físicos que
guns, pouco. Melhor mesmo, diriam, seria acabar somos capazes, por exemplo, de entender uma
logo com esta saga do ideal de boa ciência, dissol- equação como x (x + 2) + 1 = (x + 1)2. Bloor, en-
vendo-o em uma sociopsicologia do conhecimento. tão, ancora-se em Stuart Mill para mostrar como
Refiro-me, agora, àqueles que, por falta de melhor uma experiência tão primitiva quanto brincar com
nome, chamarei de behavioristas wittgensteinianos. pedrinhas pode conduzir a algo tão formidável
Embora seja clara a influência que receberam de quanto tal equação.
Wittgenstein e de Kuhn, eles são, de fato, herdeiros Há, entretanto, lembra Bloor, uma séria lacu-
diretos do empirismo de Hume. Eu reconstruiria na no raciocínio de Mill, para a qual Frege cha-
idealmente a posição antimetodológica desses so- mou devidamente a atenção: o caráter objetivo do
ciólogos pós-kuhnianos nos seguintes termos: to- conhecimento matemático ficou sem explicação.
das as tentativas de mostrar o que é uma boa ciên- Os números, diz Frege, não estão no mundo ma-
cia fracassaram. Não há, na verdade, por que terial da mesma forma que uma árvore está. De
insistir nisso. No que concerne à prática científica, uma árvore podemos dizer que é frondosa, verde
todos sabem o que é uma “boa” (agora entre as- etc. De um número não é possível dizer nada dis-
pas) ciência. Devemos, portanto, deixar a questão so. Os números tampouco estão na mente, no
metodológica de lado e concentrarmo-nos na ati- mesmo sentido em que, por exemplo, um senti-
vidade científica tal como realmente se dá. Em vez mento está. Não há o “meu” dois ou o “seu”
de indagarmos o que é uma boa ciência, devemos “dois”. Os números, então, fazem parte de um
indagar como definições de “boa ciência” são es- mundo que não é nem o dos objetos materiais
tabelecidas, aprendidas e incorporadas à prática nem o das disposições subjetivas. Fazem, antes,
científica efetiva. parte daquilo que Frege denominou o mundo da
Para além de uma boa crônica da ciência, a objetividade. Bloor concorda com tudo isso e se
quê pode, entretanto, esta linha de investigação pergunta: o que é esta objetividade de que fala Fre-
conduzir? David Bloor, o mais importante desses ge? A resposta, ele vai buscar no que faltou a Mill:
sociólogos, parece ter se dado conta de que essa uma sociologia. O único erro de Mill, segundo
radicalização do naturalismo não tem interesse al- Bloor, foi não ter percebido que nem toda manei-
gum a menos que possibilite, de alguma forma, atin- ra de operar com objetos físicos serve de matéria-
gir o que ele mesmo chamou de “o próprio coração prima para nossos raciocínios matemáticos. Há
do conhecimento” (Bloor, 1976). Ele pretendeu, en- maneiras “caracteristicamente matemáticas” de
tão, via uma peculiar combinação da psicologia em- operar. “Tocar o coração do conhecimento mate-
pirista de Stuart Mill com uma estranhíssima concep- mático” seria, então, uma questão de entender o
ção sociológica de objetividade à qual chegou, que faz de uma situação na qual certas operações
espantosamente, a partir de Frege, “tocar o próprio são realizadas uma situação “caracteristicamente
coração” do conhecimento matemático. Natural- matemática”. Posto o problema desta forma, a res-
mente, os ecos do naturalismo de Quine se fizeram posta ficou fácil: o que torna uma situação “carac-
presentes: só é possível fazê-lo, argumenta Bloor, teristicamente matemática” é um conjunto deter-
investigando o modo como efetivamente este co- minado de convenções que organizam, a priori,
nhecimento é adquirido. Como, afinal, isto se dá? nossas experiências com objetos. Estas autorizam
A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA 99

certos padrões de ordenação, agrupamento e sepa- mais pode ser a objetividade senão essa tenacida-
ração de pedrinhas e desautorizam outros e, ao de com que as convenções sociais se impõem a
fazê-lo, conferem ao conhecimento matemático nós? Pobre Frege! Em que naturalista medíocre
um caráter institucional. Eis, então, o que é a ma- Bloor o transformou! Não lhe ocorreu que não foi
temática: uma maneira institucionalizada de se por acaso que Frege mencionou a linha do equa-
comportar. Uma maneira socialmente sancionada dor e não o meridiano de Greenwich. Este último
de operar com objetos e de fazer inferências a par- é, de fato, uma convenção, no sentido de Bloor.
tir daí. E eis o que lhe confere objetividade: seu ca- O meridiano passa por Londres, mas não precisa-
ráter institucional. Bloor não precisou da espada ria passar. Nada, a não ser nossas próprias conve-
de Duhem para aniquilar com a metodologia. Bas- niências, nos obriga a mantê-lo ali. O equador, ao
tou-lhe combinar uma versão particular do empi- contrário, é uma linha imaginária que corta uma
rismo de Hume (expresso na aritmética de Mill) postulada figura geométrica pela metade. Para
com uma versão sociológica, bem ao estilo de Dur- mudá-lo de lugar, teríamos que esticar ou achatar,
kheim, do apriorismo kantiano. ainda mais, um dos pólos do planeta. E, mesmo
que isto fosse possível, uma nova linha imaginá-
ria, que poderíamos continuar ou não chamando
A mola no fundo do poço de equador, permaneceria cortando uma figura
geométrica pela metade. O conceito de metade, a
Entretanto, nem tudo está perdido. Dizem propósito, é mais um habitante do mundo da ob-
que existe uma mola no fundo do poço. Para tor- jetividade de Frege. Comparar a linha do equador
nar a sua sociologia do conhecimento apta a atin- com uma fronteira territorial é, então, um nítido
gir “o próprio coração do conhecimento”, Bloor despropósito. Como a atribuição de um caráter de
se viu forçado a jogar qualquer ideal concebível convenção social ao conhecimento objetivo de
de boa ciência no fundo do poço. Mas, como que Frege depende de despropósitos dessa natureza,
por um ato da Providência, ele jogou a mola tam- podemos considerar sem efeito o uso que Bloor
bém: a concepção de objetividade de Frege. É faz de Frege. Está, assim, restaurada a mola que
verdade que, ao revestir essa concepção de um Bloor distendeu. Vejamos, agora, como o ideal de
caráter de convenção social, ele a desfigurou. Ele boa ciência pode se apoiar nela para sair do poço
distendeu a mola antes de jogá-la no poço. Mas, a que foi gradativamente conduzido.
para isto há remédio. A mola pode ser reparada Frege não postulou este terceiro mundo do
e, mais do que isso, tornada ainda mais potente. conhecimento objetivo para falar do equador ou
Para reparar a mola é necessário mostrar de números, mas, sim, de nada menos que a pró-
como ela foi danificada. Vejamos, então, como pria lógica. Desde Aristóteles esta era concebida
Bloor o fez, isto é, como ele desfigurou o pensa- como o conjunto de regras que governam o pensa-
mento de Frege. Este último, conforme vimos, mento. Frege rompe com isso radicalmente. A lógi-
fala-nos de um mundo que não é físico nem men- ca é objetiva: não se refere às leis do pensamento,
tal, real mas não atual, cujos habitantes são, por ou, mesmo, nada tem a ver com pensamento. Rela-
exemplo, a linha do equador, o eixo da terra, o ções lógicas independem do pensamento humano.
centro de massa do sistema solar e os números. Nós, humanos, podemos conhecê-las, aprendê-las,
Bloor seguiu Frege até aí. Em seguida, entretanto, deixar de notá-las, compreendê-las bem ou mal,
converteu-o em um sociólogo durkheimiano do tanto quanto podemos conhecer, aprender, não no-
conhecimento avant la lettre. Bloor deteve-se no tar ou compreender bem ou mal todo um conjunto
exemplo da linha do equador. Esta linha imaginá- de outras coisas que existem independentemente
ria, argumentou, é, tanto quanto uma fronteira de nós. Nesse sentido, proposições lógicas são ver-
territorial, uma convenção social. Não, evidente- dades objetivas. Podemos apreendê-las ou deixar
mente, uma convenção qualquer, mas uma que se de apreendê-las, mas sua existência nada tem a ver
impõe de forma irresistível. Daí, concluiu: o que com qualquer característica do pensamento huma-
100 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

no (Magee, 1998, pp. 194-195). Popper (1972) en- O salto para fora do poço:
campou essa concepção e levou-a adiante. Se a ló- a saga continua...
gica é objetiva, teorias também o são: encerram,
além de uma heurística objetiva, conforme já vi- Se é assim, e se estamos no mundo fregiano
mos, um conjunto de pressupostos (teóricos e me- da objetividade, então tudo o que temos de des-
tafísicos) objetivos, problemas objetivos e implica- cobrir é se existe objetivamente alguma área de
ções objetivas. Esses pressupostos, problemas e investigação que não possa existir como tal se
implicações objetivas constituem, por sua vez, si- não se houver permanentemente com indagações
tuações objetivas que encerram novos problemas como aquelas levantadas acima. Em outras pala-
objetivos, os quais, se descobertos e tentativamen- vras, se existe alguma área de investigação que
te solucionados, conduzem a novas teorias objeti- para se manter como tal precisa permanentemen-
vas que encerram novos problemas, novas implica- te se perguntar se uma teoria representa ou não
ções objetivas etc. alguma descontinuidade com um dado estado ob-
Quero sugerir que a chave para o resgate jetivo de conhecimento, se a importância de uma
de um ideal de boa ciência está nessa noção fre- teoria reside em seu arcabouço conceitual ou em
giana-popperiana de implicações objetivas. Afir- seu sucesso experimental etc. Receio que esta
mar que uma teoria tem implicações objetivas é área de investigação exista e seja conhecida pelo
afirmar que ela é compatível ou incompatível nome de história da ciência.
com outras, que pode abranger teorias mais res- A fim de desenvolver este ponto, peço licen-
tritas ou ser um caso limite de uma teoria mais ça para fazer uma longa citação. Como é a primei-
abrangente, que objetivamente constitui, ou não ra e será a única deste artigo, espero que o leitor
constitui, uma ruptura importante com um esta- releve. Trata-se de um texto do célebre historia-
do objetivo de conhecimento existente, que, por dor da ciência Bernard Cohen, publicado original-
sua vez, encerra um arcabouço conceitual obje- mente em 1956. Interessa-me mostrar quão vulne-
tivo, quer de natureza teórica, quer de natureza rável fica a historia da ciência à espada de Duhem
metateórica, dentro do qual todo um conjunto e, por extensão, à capitulação ao naturalismo na
de teorias formuladas posteriormente vem obje- ausência de um bom ideal de boa ciência. Passe-
tivamente a se mover, entre muitas outras coisas. mos, então, a palavra a Cohen:
Essas considerações abrem um campo formidá-
vel de investigações: averiguar se, e em que sen- Um dos mais importantes assuntos de pesquisa
tido, uma determinada teoria representa uma na História da Ciência, nós o encontramos na re-
ruptura com um estado objetivo de conhecimen- lação entre a “Revolução Científica” do século
to existente, se sua contribuição objetiva para XVII e a imaginação humana. Um dos maiores
momentos na evolução da ciência, um momen-
um estado objetivo de conhecimento reside em
to, realmente, com que nada se compara na evo-
seu sucesso experimental ou no fato de encer-
lução de todo o pensamento científico, ocorreu
rar, objetivamente, uma heurística compatível em 1609, quando Galileu apontou seu telescópio
com certas teorias e incompatível com outras para os céus. Até então, travavam-se discussões
e/ou um arcabouço conceitual dentro do qual sobre a natureza e movimento das estrelas e ou-
outras teorias, formuladas posteriormente, obje- tros corpos celestes, além de especulações sobre
tivamente se movem etc. O crucial de meu argu- a natureza dos sistemas cósmicos, caráter e carac-
mento é o de que não é possível se haver com terísticas desses corpos. Quando Copérnico afir-
indagações dessa natureza sem que um ideal de mou que a Terra era apenas outro planeta, suas
palavras pouco significavam porque as observa-
boa ciência, imune à espada de Duhem, esteja
ções a olho nu não revelavam qualquer seme-
objetivamente subentendido. Posto de outra for- lhança entre a Terra e as estrelas. Dizer que algu-
ma, a própria existência desse campo objetivo mas estrelas, chamadas de planetas, moviam-se
de investigação pressupõe a existência objetiva nos céus em relação umas às outras, algumas ve-
de tal ideal. zes para frente e outras para trás, pouco justifica-
A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA 101

va a opinião de que eram semelhantes à Terra. A O exacerbado otimismo epistemológico que


maioria das pessoas considerava as estrelas este texto exibe é tudo o que o naturalismo socio-
como uma espécie de corpos perfeitos, imutá- lógico peculiar a Bloor e aos sociólogos pós-kuh-
veis, puros, em contraste com a Terra, onde ha-
nianos de um modo geral precisa para se regozi-
via decomposição, nascimento, vida, morte e
transformações de todo os tipos. As característi-
jar. Para Cohen, acreditar que a Terra é apenas
cas físicas da Terra, por conseguinte, podiam ex- mais um planeta ou que a lua possui montanhas
plicar sua posição única como centro do univer- e vales é uma mera questão de substituir o olho
so, o lar conveniente para o homem que era, em nu por um telescópio. Para ele, crer é uma ques-
si mesmo, impuro, pecador e corrompido. Ao as- tão de saber ver. Contra esse exacerbado otimis-
sestar para o céu o telescópio, Galileu viu pela mo, deve ser suficiente lembrar que, de um modo
primeira vez como era realmente o firmamento. geral, só acreditamos no que vemos quando o que
Descobriu que a Lua possuía montanhas e vales
vemos não contradiz nossas expectativas sobre o
e que parecia uma Terra em miniatura, embora
fosse uma Terra morta. A Terra, descobriu ele,
modo como o mundo é. Como as descobertas de
refletia a luz do Sol e iluminava a Lua, o que Galileu a que Cohen faz menção contradiziam as
comprovava que a Terra brilhava como os de- tenazes expectativas dos teólogos e astrônomos
mais planetas e teria o mesmo aspecto para um aristotélicos, é uma ingenuidade supor que a ba-
observador que se encontrasse em Marte ou Vê- lança penderia tão facilmente para o lado dessas
nus. Este último mostrava fases como a Lua, o descobertas. Ao incorrer neste deslize, Cohen tor-
que presumivelmente acontecia também à Terra nou-se extremamente vulnerável à espada de Du-
e aos demais planetas. Verificou ele ainda que
hem; ele tornou-se uma presa fácil de objeções do
Júpiter possuía quatro luas, dessa maneira elimi-
nando mais um dos aspectos de singularidade da tipo: o quê, no século XVII, poderia garantir que
Terra, até então considerada o único corpo celes- as “montanhas e vales na lua”, ou as “luas de Jú-
te que possuía satélite. piter”, não eram apenas uma ilusão de óptica a
As descobertas de Galileu sugeriram que as opi- que o uso de tão estranho instrumento, o telescó-
niões de Copérnico sobre o universo podiam ser pio, poderia ter conduzido? Por que, nessa época,
consideradas como algo mais do que simples dar crédito a um instrumento óptico cujo funcio-
abstração matemática, mais do que um expedien-
namento mal se conhecia se ele contrariava uma
te para computar posições futuras dos planetas e
sabedoria já consagrada por uma tradição mile-
da Lua. Não era mais absurdo julgar a Terra um
planeta, uma vez que a Terra e os planetas pos- nar? Toda uma historiografia da ciência, cuja obra
suíam tantas características comuns, como revela- paradigmática parece ser o livro Leviathan and
va o telescópio. Evidentemente, quando Galileu the Air-Pump (Shapin e Schaffer, 1985), desenvol-
publicou um relato de algumas dessas descober- veu-se nos últimos anos em torno de questões
tas no Mensageiro Sideral, de 1610, o efeito foi dessa natureza, isto é, em torno da tese trivial-
explosivo. Daí em diante, cientistas e teólogos mente correta de que crer não é uma mera ques-
eram forçados a considerar as conseqüências da
tão de ver; de que a verdade não traz uma mar-
residência do homem sobre uma Terra que fora
ca na testa. Esta historiografia da ciência é
posta em movimento e que estava relegada a
uma posição sem maior importância no sistema sobretudo um legado natural da capitulação do
solar e não mais era o centro do universo. Ao ideal de boa ciência, e deve ser muito grata aos
mesmo tempo, poetas, teatrólogos e filósofos en- historiadores da ciência que se permitiram exibir
contravam campo para a imaginação nas possibi- o mesmo imoderado otimismo epistemológico
lidades de um vasto e até então desconhecido que Cohen exibiu.
universo, finalmente revelado ao homem. As es- Esse imoderado otimismo pode, entretanto, ser
trelas, os planetas, a Via Láctea, o próprio sol, e
evitado desde que o carro-chefe da história da ciên-
as nebulosas, presumivelmente, circulavam no
espaço desde o dia em que Deus havia criado o
cia não traia, como no caso de Cohen, um ideal
mundo, mas o homem jamais os conheceu até o dia de boa ciência tão nitidamente vulnerável à espada
em que Galileu apontou seu telescópio para os de Duhem. Foi somente por subscrever irrefletida-
céus (Cohen, 1963, pp. 166-167). mente um ideal desta natureza que Cohen pôde
102 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

sustentar que a marca da revolução científica foi o mo ativo que viabilize esta coexistência. Uma vez
conjunto de observações contra-intuitivas obtidas que a fagocitose (a ingestão de corpos sólidos por
através do telescópio de Galileu. células mesodérmicas amebóides tais como os leu-
Mas, afirmar que Cohen errou porque o ideal cócitos) se caracteriza por ser justamente este me-
de boa ciência que dá sustentação a seu argumen- canismo, ela se torna o elemento-chave da imuni-
to não é bom é admitir que esse ideal deve ser dade. Desta situação objetiva emergiu tanto o
substituído por um melhor e que um bom ideal de conceito que ancora objetivamente toda a imuno-
boa ciência é imprescindível para a condução de logia moderna, a saber, o de um hospedeiro ativa-
qualquer investigação na história da ciência. Há, fe- mente responsivo, como o problema em torno do
lizmente, historiadores da ciência que se deram ple- qual esta objetivamente se move, a saber: como
namente conta desse fato e jamais ousaram fazer um organismo distingue o que lhe é próprio do
qualquer investigação histórica sem que uma refle- que lhe é estranho.
xão metodológica não ocupasse a posição central. Impõe-se, neste ponto, um contraste com
Alexandre Koyré é o caso exemplar. Sua história da Kuhn. As considerações acima sobre o caráter de
ciência é informada por um ideal de boa ciência boa ciência da teoria da fagocitose podem pare-
que eu, trazendo-o para o mundo da objetividade cer uma rendição à tese kuhniana de que boa
de Frege, sintetizaria na seguinte fórmula: boa ciên- ciência é aquela que dispõe de um paradigma
cia é a que tem algum impacto objetivo tanto so- amplamente aceito no interior do qual uma “ciên-
bre um estado objetivo de conhecimento anterior cia normal” pode se desenvolver. Devo, entretan-
como sobre um estado objetivo de conhecimento to, dizer que não é este o argumento que quero
posterior. Os impactos objetivos mais evidentes fazer ao dizer que a teoria da fagocitose fornece
sobre um estado de conhecimento anterior são o um arcabouço conceitual imprescindível para as
de permitir a continuidade deste estado de conhe- teorias modernas de imunidade. Em primeiro lu-
cimento ou o de romper com ele. Mas há outros. gar, porque a concepção kuhniana inscreve-se no
Veja-se o caso da genética mendeliana, cujo im- behaviorismo wittgensteiniano a que anteriormen-
pacto objetivo retrospectivo está em ter viabiliza- te fiz menção. Para Kuhn, boa ciência é, ao fim e
do a continuidade da teoria da evolução por sele- ao cabo, qualquer uma que se mostre capaz de
ção natural ao fundir-se com ela na chamada proporcionar segurança e conforto para seus pra-
síntese evolutiva. Quanto aos impactos prospecti- ticantes. A teoria da fagocitose, pelo que sei, ja-
vos, estes ocorrem na medida em que teorias en- mais proporcionou segurança ou conforto aos
cerram situações objetivas para a emergência de imunologistas. Ao contrário, muitos viam nela um
novos problemas e/ou de novos arcabouços con- traço de misticismo. De acordo com os padrões
ceituais que constituam referenciais objetivos den- kuhnianos, ela não mereceria muita atenção. Em
tro dos quais outras teorias possam objetivamente contraposição, meu argumento é o de que uma
se mover. No que concerne a este ponto, o melhor teoria não precisa desfrutar de um caráter para-
exemplo que tenho em mente é o da teoria da fa- digmático, no sentido kuhniano, para ter um pa-
gocitose, de 1883, de Metchnikoff (Cf. Tauber, pel fundamental na história de uma ciência. A
1991). A situação objetiva que esta teoria encerra teoria da fagocitose ilustra esse fato exemplar-
é composta pela premissa metafísica de um orga- mente bem. Além de seu acentuado teor metafísi-
nismo intrinsecamente desarmônico, mas em per- co, ela era de difícil operacionalização, e tudo
manente luta pela harmonia, e pela tese metateó- isso a impediu de ser vista como um modelo de
rica, que repousa sobre esta premissa, de que ciência a ser seguido. Nem por isso, entretanto,
nosso sistema imunológico não deve sua existên- ela deixou de ter um impacto fundamental, que
cia à luta contra um agente infeccioso, mas à coe- não se mede pela contagem de citações. Seu im-
xistência, em qualquer estágio do desenvolvimen- pacto é objetivo no sentido fregiano-popperiano:
to ontogênico, de estruturas de diferentes origens há um “antes” e um “depois” dela, mesmo que os
filogenéticas, requerendo, portanto, um mecanis- imunologistas jamais tenham se dado conta disso.
A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA 103

Uma vez exposta a concepção de boa ciên- do inglês. Não foi preciso esperar por Quine ou
cia de Koyré, posso mostrar como ela constitui o Wittgenstein para que soubéssemos que uma sen-
carro-chefe de sua investigação histórica. No mes- tença como “this is a table” não esgota as possibi-
mo ano em que Cohen publicou o texto que re- lidades de traduzir a sentença “isto é uma mesa”.
produzi anteriormente, Koyré publicou um artigo Entretanto, o naturalismo holista de Quine, ele
intitulado: “As origens da ciência moderna: uma próprio uma variante da tese wittgensteiniana de
nova interpretação” (Koyré, 1991). Ao contrário que o significado das palavras reside em seu uso
de Cohen, contudo, que irrefletidamente assumiu efetivo, convida-nos a admitir uma possibilidade
um ideal de boa ciência vulnerável à espada de mais radical: a de traduzir uma sentença como
Duhem para discorrer sobre as origens da ciência “isto é uma mesa” para o inglês sem que seja ne-
moderna, Koyré subordinou sua interpretação so- cessário fazer uso de termos como “this”, “is”, “a”
bre este mesmo processo a uma prévia reflexão e “table”. Mais do que isto, convida-nos a conce-
metodológica. Ele se perguntou o que faz da ciên- ber traduções de “this is a table” que sejam incom-
cia de Galileu uma boa ciência. A resposta, ele foi patíveis com “isto é uma mesa”. Não tenho qual-
buscar nos impactos objetivos, retrospectivos e quer dificuldade em concordar com essas idéias.
prospectivos, desta ciência. O impacto retrospec- Afinal, não é difícil conceber situações do uso co-
tivo mais importante foi a destruição do Universo tidiano das palavras em que “sim” significa “não”,
fechado e hierarquizado da física escolástica via ou vice-versa. Todavia, nada disso implica descon-
substituição do espaço concreto de Aristóteles tinuidade. Esta só se verificaria se fosse possível
pelo espaço abstrato da geometria euclidiana. O conceber uma tradução para “this is a table” que
prospectivo está em ter preparado o terreno para tornasse uma tradução como “isto é uma mesa”
o desenvolvimento do conceito de inércia ao rom- objetivamente inconcebível. Assim, a descontinui-
per com a concepção aristotélica de que o repou- dade no aprendizado de uma língua é também im-
so é o estado natural e o movimento uma altera- possível. Receio que a realização mais espetacular
ção forçada deste estado. Galileu não permitiu da capitulação naturalista tenha sido a de estender,
que o repouso desfrutasse do privilégio ontológi- de antemão, essa impossibilidade para o conheci-
co que a física escolástica lhe concedera. Sem essa mento. Em outras palavras, é ter tornado o conhe-
dupla subversão, argumenta Koyré, um telescópio cimento necessariamente contínuo e cumulativo.
nada pode. É ela, e não o telescópio a que tão en- Isso excluiria a possibilidade de rupturas como a
tusiasticamente alude Cohen, que está na base da que Cohen descreve. De acordo com esse raciocí-
transição do sistema ptolomaico para o coperni- nio, a verdadeira razão para refrear o entusiasmo
cano. Um bom ideal de boa ciência permitiu, en- de Cohen não está no imoderado otimismo epis-
tão, a Koyré nos mostrar a verdadeira natureza da temológico que este traz embutido, mas no fato de
revolução científica: tratou-se, sobretudo, de uma encerrar uma visão descontínua do conhecimento.
revolução conceitual. Koyré subverte tudo isso ao subordinar todo
Diante do exposto, o contraste com a capitu- um campo de investigação à reflexão metodológi-
lação naturalista é inevitável. Esta, conforme vi- ca. Deste campo faz parte averiguar aquilo que o
mos, consiste em subordinar a questão metodoló- naturalismo proíbe de antemão: se há, e em que
gica a uma análise do processo de aquisição do sentido, descontinuidades no conhecimento. Se
conhecimento. Para proceder a tal análise, o apren- Koyré discorda de Cohen, não é porque este últi-
dizado de uma língua materna, ou de uma língua mo permitiu que entre Aristóteles e Galileu hou-
estrangeira, é tomado como modelo. Um efeito vesse uma descontinuidade, mas, sim, em razão
imediato dessa maneira de proceder é excluir, de de faltar a Cohen um ideal de boa ciência bom o
antemão, a possibilidade da existência de descon- suficiente para viabilizar a compreensão da natu-
tinuidades no conhecimento. Afinal, o aprendiza- reza dessa descontinuidade. Há, entretanto, um
do de uma língua é um processo cumulativo, con- importante ponto em comum entre Quine e Koy-
tínuo. Tomemos, como exemplo, o aprendizado ré: ambos rejeitam, enfaticamente, a emissão de
104 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

juízos baseados em cânones metodológicos esta- sa natureza. Quanto a O suicídio, tenho sérias dú-
belecidos a priori. Quine, conforme vimos, não vidas. Posso, evidentemente, estar enganado sobre
partilharia do entusiasmo que um livro-texto de esse assunto. Mas não é isso o que importa. A li-
metodologia científica alimentaria por discussões ção que quero tirar daí é outra. Vimos que não
como a de Durkheim sobre o suicídio no exérci- pode haver história da ciência sem um ideal de
to ou sobre as taxas comparativamente baixas de boa ciência – o que pode haver, e infelizmente
suicídios entre católicos e judeus. Ele veria esse tem havido, é história da ciência que, ao desde-
tipo de discussão como uma presa fácil para a es- nhar a reflexão metodológica, deixa-se guiar, irre-
pada de Duhem. Koyré, certamente, partilharia fletidamente, por um ideal empirista ou pragmatis-
desse desencanto. Mas não teria, a meu ver com ta de boa ciência. Mas, se não há como escapar de
razão, por que creditá-lo à vulnerabilidade dos ar- uma reflexão metodológica para reconstruir a his-
gumentos de Durkheim às advertências de Duhem. tória de alguma ciência, por que não utilizar essa
O problema está em outro lugar. Receio que a so- reflexão para emitir juízos sobre a qualidade de
ciologia contida em O suicídio seja um claro exem- outras? Por que não usar um juízo sobre, digamos,
plo de má ciência que passa por boa ciência quan- a teoria da fagocitose, como um modelo para emi-
do submetida aos cânones metodológicos de boa tir juízo sobre a sociologia contida em O suicídio?
ciência. Não que eu me oponha a procedimentos Trata-se, certamente, de uma operação de alto ris-
como, por exemplo, corroborar um enunciado e, co. Mas receio que não tenhamos escolha. Ou cor-
ao mesmo tempo, refutar vários enunciados alter- remos o risco de nos equivocar em nossos juízos,
nativos por meio de um simples expediente como um risco que pode ser atenuado se contarmos
derivar do primeiro uma conseqüência empírica com a inestimável ajuda do mundo da objetivida-
cuja negação é demandada por todos os outros. de de Frege, ou nos condenamos a subscrever, de
Porém, se tal procedimento é tão louvável, e tão forma acrítica, juízos já estabelecidos. É verdade
ubíquo em O suicídio, então por que considerar a que a segunda alternativa tem prevalecido, mas
sociologia contida nesse livro uma má ciência? A não precisamos daí concluir que ela tenha de con-
resposta está em três perguntas: Que problema ob- tinuar a prevalecer, isto é, que a saga do ideal de
jetivo emergiu a partir desta sociologia? O que ela boa ciência já tenha conhecido o seu fim.
objetivamente destruiu? O que ela objetivamente
pôs no lugar? Para dar uma idéia do que estou per-
guntando, vou mostrar quais seriam as respostas se BIBLIOGRAFIA
a pergunta se referisse à teoria da fagocitose de
Metchnikoff. O que ela objetivamente destruiu? A BLOOR, David. (1976), Knowledge and social
concepção passiva do processo de imunidade pe- imagery. Chicago, The University of
culiar a toda a imunologia do século XIX, incluin- Chicago Press.
do-se a de Pasteur. O que ela objetivamente pôs
no lugar? Uma concepção ativa do processo de COHEN, I. Bernard. (1963), “A imaginação da na-
imunidade, sobre a qual se moveu objetivamente tureza”, in L. White Jr. (org.), As frontei-
toda a imunologia do século XX. Que problema ras do conhecimento: um estudo do ho-
objetivo emergiu a partir dela? O de como o orga- mem, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura.
nismo distingue o que lhe é próprio do que lhe é FEYERABEND, Paul. (1977), Contra o método.
estranho. É possível dar respostas remotamente Belo Horizonte, Livraria Francisco Alves
análogas a estas se perguntarmos pelo impacto Editora.
objetivo, quer retrospectivo quer prospectivo, da
KOYRÉ, Alexandre. (1991), Estudos de história do
sociologia de O suicídio? Acredito que A divisão
pensamento científico. 2 ed. Rio de Ja-
do trabalho social e, para não dizer que não falei
neiro, Forense.
de Max Weber, A ética protestante e o espírito do
capitalismo resistiriam com folga a um teste des-
A SAGA DO IDEAL DE BOA CIÊNCIA 105

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 55

A SAGA DO IDEAL DE THE SAGA OF THE LA SAGA DE L’IDÉAL DE


BOA CIÊNCIA GOOD SCIENCE IDEAL LA BONNE SCIENCE

Renan Springer de Freitas Renan Springer de Freitas Renan Springer de Freitas

Palavras-chave Key words Mots-clés


Metodologia; História da ciência; Methodology; History of science; Méthodologie; Histoire de la science;
Naturalismo; Sociologia do Naturalism; Sociology of knowled- Naturalisme; Sociologie du savoir;
conhecimento; Epistemologia. ge; Epistemology. Epistémologie.

O colapso do ideal baconiano de The collapse of the Baconian ideal Le collapsus de l’idéal de Bacon à
boa ciência, o subseqüente insuces- of good science, the subsequent fai- propos de la bonne science et l’in-
so dos empiristas do Círculo de Vie- lure of the empiricists of the Vienna succès qui s’en suivit en ce qui con-
na em estabelecer um ideal substitu- Circle in establishing a substitute cerne les empiristes du Cercle de
to e a pertinência da crítica de Pierre ideal, and the pertinence of Pierre Vienne d’établir un idéal de substi-
Duhem ao ideal racionalista levaram Duhem’s criticism to the rationalist tution, ainsi que la pertinence de la
a reflexão sobre o que é boa ciência ideal have led the reflection on what critique de Pierre Duhem à l’idéal
a subordinar-se a uma análise natu- is good science to either submit itself rationaliste, ont mené à une réfle-
ralística do processo de aquisição de to a naturalistic analysis of the pro- xion à propos de ce qu’est la bonne
conhecimento ou, simplesmente, a cess of knowledge acquisition or, science et de sa subordination à une
dissolver-se em uma sociopsicologia simply, dissolve itself into some kind analyse naturaliste du processus
do conhecimento. Sugere-se que ne- of socio-psychology of knowledge. d’acquisition du savoir ou, tout sim-
nhuma dessas formas de capitulação The article suggests that none of the- plement, à sa dissolution en une so-
seja necessária. A reflexão sobre o se forms of capitulation is necessary. cio-psychologie du savoir. Nous
que é boa ciência, ou, para usar um A reflection on what good science is, suggérons qu’aucune de ces formes
termo mais familiar, a metodologia, or, to use a more familiar term, me- de capitulation n’est nécessaire. La
pode reencontrar seu caminho se thodology, can find its way again by réflexion sur ce qu’est la bonne
assumir a posição que, por assim di- taking the position it has always science ou, pour employer un terme
zer, lhe é de direito: a de carro-che- been entitled to, namely that of the plus familier, la méthodologie, peut
fe da história da ciência. Argumenta- very guide of the history of science. retrouver son chemin et assumer
se que a metodologia foi conduzida The article both claims that metho- une position qui, pour ainsi dire, lui
ao fundo de um poço do qual não dology has been led to the deepest revient de droit : celle de chef de
há mais como sair a não ser dando part of a well from which it will not file de l’histoire de la science. Nous
um salto vertiginoso, e discute-se a be able to leave unless it takes a ver- soutenons que la méthodologie a
viabilidade deste salto. tiginous leap, and discusses the via- été lançée au fond d’un puits dont il
bility of this leap. n’est plus possible d’en sortir, à
moins d’un saut vertigineux. Et nous
questionnons la viabilité de ce saut.

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