La izquierda bajo la piel
Um prélogo para Suely Rolnik
Paul B. Preciado
Estes ensaios de Suely Rolnik nos chegam em meio a névoa
toxica que nossos modos coletivos de vida produzem sobre
o planeta. Vivemos um momento contrarrevolucionario.
Estamos imersos em uma reforma heteropatriarcal, colonial
e neonacionalista que visa desfazer as conquistas de longos
processos de emancipagao operaria, sexual e anticolonial dos
Ultimos séculos. Como ja anunciava Félix Guattari em 1978,
respirar se tornou tao dificil como conspirar. Se detrés do
brilho da prata de Potosi se ocultava 0 trabalho exterminador
da mina colonial no século XVI, detras do brilho das telas se
‘ocultam hoje as formas mais extremas de dominagao neoco-
lonial, tecnoldgica e subjetiva:A obscura erado pixel poderia
ser inclusive a ultima,se nao consegtiirmos inventar novas
formas de equilibrio entre 0s mundosdo carbono,edo silicio,
novas modalidades de didlogo’entre as entidades.subjetivas,
maquinicas, organicas, imateriais € mineraisdo planeta.
Estes textos s40.como um oraculo.que nos falade nosso
proprio‘firturo mutilado, Vem nos recordar, que o que esta-
mos vivendo nao é uni processo, natiiral,11as uma fase a mais
de uma guerra que nao cessou: amesma guerra que levou a
capitalizacio da’ Areas-de.preservacao de terras indigenas,
ao confinamentove aovéxterminio de todos os corpos cujos
modos de conhecimento ou afecco desafiavam a ordem
disciplinar, 4 destruigao dos saberes populares em benefi-
cio da capitalizacao cientifica, a caga as bruxas, a captura de
Corpos humanos para serem convertidos em maquinas vivas
da plantacao colonial; a mesma guerra na qual lutaram osrevolucionarios do Haiti, as cidadas da Franga, os proletarios
da Comuna, aquela guerra que fez surgir a praia sob os para-
lelepfpedos das ruas de Paris em 1968, a guerra dos soroposi-
tivos, das profissionais do sexo e das trans no final do século
XX, a guerra do exilio e da migracao...
Suely Rolnik reuniu aqui trés textos elaborados durante os
Ultimos anos que poderiam funcionar como um guia de resis-
téncia micropolitica em tempos de contrarrevolugao. Tive
a sorte de escutar e ler muitas versdes destes textos, como
quem assiste 4 germinacao de um ser vivo. O pensamento
de Suely, como sua prépria pratica analitica, tem a qualidade
de estar sempre em movimento. O que os leitores tém agora
em suas mios é uma foto da tarefa critica de Suely tirada
em um momento preciso. Trata-se de um trabalho aberto,
de um arquivo em versio beta, em constante modificagao.
O livro, extremamente rico cuja leituralevard a multiplas
intervenc6es criticas eclinicas, poderia ser lido tanto como
um diagnéstico micropolitico;da atual mutagdo, neoconser-
vadora e nacionalista do regime financeiro neoliberal quanto
como uma hipotese.acerca da derrotada esquerda, no con-
texto nao sé latiio-americano, mas também global. Mas esse
réquiem por uma) esquerda macropoliticaé acompanhado em
Suely pelo desenho de uma nova esquerda radical: Esferas da
Insurreigtio 6 umavtartografiadas praticas micropoliticas de
desestabilizacio das formas dominantes de subjetivagao, um
diagrama da esquerda por vir.
A andlise da condicao neoliberal que Suely Rolnik leva a
cabo em dois dos trés textos reunidos nesta antologia aparece
como 0 complemento micropolitico necessario as andlises
Macropoliticas que vém sendo feitas, a partir de distintas
Perspectivas, por Giorgio Agamben, Naomi Klein, Antonio
Negri, Michel Feher ou Franco Bifo Berardi. Partindo da
2 ESFERAS DA INSURREIGAOanélise do “golpe neoliberal” no Brasil, Rolnik chama a aten-
¢ao para a apari¢io ‘de uma nova e insuspeitada alianga entre
o neoliberalismo financeiro e as forgas reativas conservadoras.
Enquanto, durante os anos 80, se pensava que a extensio do
neoliberalismo traria a globalizagao da democracia, a disso-
lug&io dos estados-nagao e a generalizagao do multicultura-
lismo como modelo de integrag¢ao social, a atual deriva do
neoliberalismo, analisada por Rolnik, deixa antever um hori-
zonte muito mais histriénico. A inesperada alianga das forgas
neoliberais ¢ conservadoras tem a ver com 0 fato de ambas
compartilharem uma mesma moral e um mesmo modelo de
identificacaio subjetiva: o inconsciente colonial- -capitalistico.
Dai que os alvos da nova “perseguigéo neoliberal as bruxas”
sejam os coletivos feministas, homossexuais, transexuais,
indigenas ou negros, que encarnamno imaginario conserva-
dor a possibilidade de uma auténtica transformagao micro-
politica. Se desenha aqui 2 paisagem que Guattari e Deleuze
haviam conjecturadd como uma-tertivele insdlita encarnagao
do “fascismo.democratico”. Essa é a condigéo'na qual nos
encontranios e na qual tenis que imaginar coletivamente
novas formas de‘resistir.
Suely Rolnik descreve os processos de opFessio Colonial e
capitalistica como processos.dé captura da forca vital, uma
captura que redug-a subjetividade a.sua experiéncia como
sujeito, neutralizando a complexidade dos efeitos das forgas
do mundo no torpoem beneficio da criagao de um individuo
com uma identidades Esse processo de subjetivacao funciona
por repeticio e pelo cerceamento das possibilidades de cria-
cdo, impedindo a emergéncia de “mundos virtuais”. O sujeito
colonial moderno é um zumbi que utiliza a maior parte de
sua energia pulsional para produzir sua identidade norma-
tiva: angustia, violéncia, dissociagio, opacidade, repeti¢io...
LAIZQUIERDA BAJO LA PIEL 13