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Religião Midiatizada na Cultura Global e de Consumo

Um dos desafios da investigação a respeito das sociedades contemporâneas é


a compreensão da interface entre o comunicacional e o religioso articulados a outros
sistemas culturais híbridos que moldam a convivência entre seres humanos,
instituições, comunidades e fluxos globais de consumo e tecnologia.
No atual contexto de interações entre os vários sistemas culturais, as fronteiras
entre o comunicacional e o religioso encontram-se, cada vez mais, borradas e
indistintas. Novos contornos socioculturais propõem fenômenos
sociocomunicacionais que instigam o campo científico da comunicação a se reinventar
heuristicamente, o que implica o deslocamento epistemológico em direção ao
paradigma da complexidade.
Consideramos que não é possível pensar a imbricação entre o comunicacional
e o religioso sem levar em consideração o ambiente sociocultural no qual esse
fenômeno ocorre.
Nesse sentido, convém escutar o que postula Thompson (2014) que adverte
de que não podemos pensar a mídia fora da moldura histórica que a produziu:
“não se pode obscurecer que o desenvolvimento dos meios de comunicação é
uma reelaboração do caráter simbólico da vida”, nesse sentido, o autor prossegue
afirmando que: “a comunicação mediada é sempre um fenômeno social
contextualizando e sempre implantado em contextos sociais que se estruturam de
diversas maneiras e que, produzem impacto na comunicação que ocorre” (p. 37).
O que Thompson postula é que não basta fixar o olhar no conteúdo simbólico
das mensagens da mídia, ignorando a complexa mobilização das condições sociais
que subjazem à circulação dessas mensagens, também é insuficiente descrever como
funciona o dispositivo.
Nesse sentido, a premissa que norteia esta reflexão pressupõe o fenômeno da
midiatização da religião não é isolado da matriz histórica determinante. A proposta
deste trabalho é apresentar de forma sucinta as características da sociedade
contemporânea. O plano é apresentar os valores sociais, as angústias, os problemas
e os desafios sociais e destacar como esse cenário se reflete sobre a religião
contemporânea.
Globalização Cultura e Consumo

Um bom caminho para compreender a cultura religiosa contemporânea,


lastreada pela cultura do consumo é a leitura da obra de Gilles Lipovetsky 1 A
Felicidade Paradoxal: Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. O filósofo provoca-
nos a reflexão acerca dos infindáveis paradoxos de felicidade que permeiam a
sociedade que, segundo ele, é matizada pelo hiperconsumo.
O livro divide-se em duas partes: 1) A sociedade do hiperconsumo e 2)
Prazeres privados, felicidade ferida. Na primeira parte, o livro oferece, a partir de três
balizas específicas, a evolução do capitalismo de consumo e seus desdobramentos
na vida moral, afetiva e social dos indivíduos. A fase I, com início por volta de 1880 e
término marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial, é caracterizada pelo autor
como a fase da distribuição. A partir do desenvolvimento dos mercados nacionais e a
facilidade para escoação da produção das indústrias que evoluíam a cada dia.
A fase II, com início por volta dos anos 1950 que se estendeu até meados de
1980, é marcada principalmente pela lógica da quantidade, da produção em larga
escala, o consumo de massa, com o que se chamou de “a sociedade da abundância”.
A facilidade de acesso a bens e serviços, a praticidade dos eletrodomésticos e
principalmente o “nascimento” do sentimento de competitividade entre as empresas,
culminaram com a invenção do marketing que por sua vez, focou a atenção das
corporações para as constantes necessidades e satisfação do cliente.
A fase III se caracteriza principalmente pela relação emocional do indivíduo
com a mercadoria. Passado a euforia do consumo de massa característico das
décadas anteriores, o consumo da terceira fase é norteado acima de tudo pela
satisfação do “eu”, a busca pelo bem-estar.
Enquanto a fase II trouxe para o presente o momento de satisfação da compra,
o status a partir de automóveis, eletrodomésticos, roupas, na fase III, a ostentação
deixa de ser o principal motivo que induz ao consumo, dando início à era do bem-

1Entre as principais obras de Lipovetsky encontram-se: “Do Luxo Sagrado ao Luxo Democrático”; “A
Era do Vazio”, “Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo”; “A Felicidade Paradoxal: Ensaio
sobre a sociedade do hiperconsumo”; “O Império do Efêmero: a Moda e Seu Destino nas Sociedades
Modernas”; “A Inquietude do Futuro: o tempo hiper-moderno”; “O Luxo Eterno: da Idade do Sagrado ao
Tempo das Marcas”; “Metamorfoses da Cultura Liberal”; “A Sociedade da Decepção”; “A Sociedade
Pós-Moralista”; “Os Tempos Hipermodernos”; “A Terceira Mulher”; “A cultura-mundo: resposta a uma
sociedade desorientada”.
estar, no qual o acesso ao conforto, satisfação dos prazeres passa a ser a principal
motivação para a felicidade.
O consumo emocional, diferente do marketing tradicional, passa a mostrar para
o consumidor a importância da experiência e das memórias afetivas ligadas à marca.
A partir de experiências sonoras, odores de lojas e ambientes diferenciados,
estimulam os sentidos, envolvendo o consumidor que compra não mais pela qualidade
do produto, mas pelo seu conceito e visão de vida. É o imperativo da imagem a partir
do imaginário da marca.
Na sociedade do hiperconsumo, não se reprimem mais os “abusos” do
consumo. Pelo contrário, neste momento, os indivíduos não compram mais tão
motivados pela pressão social, mas motivados pela vontade, para a satisfação do
próprio prazer. Vivemos num momento de hedonismo, onde o indivíduo necessita para
a visibilidade social se apresentar como pleno, satisfeito e feliz.
“Sofro, logo compro”, representa a ideia central do que Lipovetsky analisa como
sendo as compras o ópio da sociedade que, quanto mais isolada e frustrada com a
solidão, tédio do trabalho, fragmentação da mobilidade social, segue buscando o
consolo na felicidade imediata proporcionada pelas mercadorias. A carência suprida
pela compra, pelas vivências extraordinárias proporcionadas pela indústria de
experiências e dos shoppings centers, apresentados como espaços de abstração e
divertimento para todos a qualquer hora. O consumo como forma de fazer
transparecer a condição de felicidade propiciada pelas novas experiências.
Na segunda parte do livro, Prazeres privados, felicidade ferida, são
apresentadas reflexões sobre como questões referentes aos desejos e frustrações
provocados a partir do impacto dos valores da publicidade e do individualismo são
processados pelos indivíduos. Nesta fase, a sociedade caracterizada como livre
defronta-se com mais paradoxos: é livre pelo direito conquistado pelas escolhas e
diversidade de opções, e ao mesmo tempo está presa pelas condições impostas pelo
mercado, pelas amarras da publicidade, valores culturais e pelas frustrações que não
consegue superar.
O autor aponta então o uso das “pílulas da felicidade” como sendo a
medicalização a saída encontrada para resolver as síndromes, pânicos e depressões
decorrentes não apenas do não saber lidar com situações de fracasso, mas também
como uma forma de fuga de enfrentamento de problemas reais e aceitação social.
O autor observa que a sociedade do hiperconsumo, assim como as fases
anteriores, também tem um “prazo de validade” corrente. E que sua exaustão se dará,
principalmente, a partir, da inversão dos valores atuais. Onde não mais será exaltado
o “super-homem”, perfeito e sem fraquezas; e o hedonismo já não constituirá o
princípio estruturante da vida. Comprar, adquirir e renovar não mais serão atos ligados
diretamente ao alcance da felicidade.
Com uma importante contribuição para a compreensão do sentido da felicidade
e do bem-estar nas sociedades modernas, o autor traz em seu trabalho reflexões
sobre o futuro da era do pós-hiperconsumo, a produção de sentidos na
contemporaneidade, sobre a sociedade da hipervalorização do “eu”. Faz-se
necessário o entendimento que, embora a felicidade ainda seja o principal motivador
das conquistas individuais, nem sempre poderá estar aguardando como um “fabuloso
destino”. Homens e mulheres precisam aprender a sustentar e trabalhar com suas
frustrações sem a necessidade imediata do ópio da mercadoria efêmera.

Bauman e a Vida Líquida.

O diagnóstico de Lipovetsky acerca do hiperconsumo e do paradoxo da


felicidade soma-se ao de Zygmunt Bauman que define a condição moderna como
líquida. Segundo ele, trata-se de uma metáfora, pois como todos os líquidos, ela
jamais se imobiliza, nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo, ou quase tudo,
no mundo social está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que
despertam nossa atenção (uma atenção aliás, em constante mudança de foco, que
hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos traíam ontem, que amanhã
se distanciará das coisas e dos acontecimentos que nos instigam hoje). As coisas que
sonhamos e tememos, aquelas que desejamos e odiamos, as que nos enchem de
esperanças e as que nos enchem de aflição.
É nesse sentido que pós-modernidade é, para Bauman, modernidade sem
ilusões. Diferentemente do que ocorre na sociedade moderna, chamada por Bauman
de ‘modernidade sólida’, que tinha uma perspectiva de longa duração, na
modernidade líquida tudo é desmontado sem a menor perspectiva de permanência.

Uma das razões pelas quais passei a falar em “modernidade líquida”


e não em “pós-modernidade” (meus trabalhos mais recentes evitam
esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão
semântica que não distingue sociologia pós-moderna de sociologia da
pós-modernidade, “pós-modernismo” de “pós-modernidade”. No meu
vocabulário, “pós-modernidade” significa uma sociedade (ou, se se
prefere, um tipo de condição humana), enquanto “pós-modernismo”
refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não
necessariamente, da condição pós- moderna. Procurei sempre
enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser
um pássaro, ser um sociólogo da pós-modernidade não significa ser
um pós-modernista, o que definitivamente não sou.2

Tudo é temporário, fluido, descartável, incapaz de manter-se fixo. A


obsolescência é programada. As instituições, estilos de vida, crenças e convicções
mudam antes que tenham tempo de solidificar. A vida é programada para permanecer
em fluxo, volátil, desregulada, flexível. Viver na pós-modernidade é como patinar num
lago congelado. É preciso sempre acelerar, caso contrário, ocorre a queda. Ao mesmo
tempo, está presente a todo o momento a sensação de que o chão vai rachar sob
nossos pés:

Viver na pós-modernidade é como patinar num lago congelado. É


preciso sempre acelerar, caso contrário, ocorre a queda. Ao mesmo
tempo, está presente a todo o momento a sensação de que o chão vai
rachar sob nossos pés. Líquido-moderna” é uma sociedade em que as
condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais
curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e
rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se
alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a
sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer
em seu curso por muito tempo. Numa sociedade líquido-moderna, as
realizações individuais não podem solidificar-se em posses
permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam
em passivos, e as capacidades em incapacidades. As condições de
ação e as estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam
obsoletas antes de os atores terem uma chance de aprendê-las
efetivamente. (BAUMAN, 2007, p. 7).

A lógica da ‘modernidade líquida’ nos faz envelhecer mais rapidamente do que


o tempo de nossa construção. A ‘vida líquida’ nos torna obsoletos, pois carregamos
na fronte a marca da descartabilidade, o sinal de um “destino precário” de que nossa
destruição depende do calor da demanda e do moto perpétuo da produção e da
circulação. Velocidade e mobilidade modificam as relações pessoais. A cultura

2 PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Entrevista com Zigmunt Bauman. Tempo soc. [online]. 2004,
vol.16, n.1, pp. 301-325. ISSN 0103-2070. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702004000100015.
também está sob o signo da transitoriedade. Copiando o fast food, surge o instant
sex: adolescentes e jovens “transam” em encontros casuais, com uma multiplicidade
de parceiros. A instabilidade penetra nas relações de trabalho. A obsolescência da
mão-de-obra debilita o vínculo laborativo. Heróis nascem, têm vida efêmera e são
sepultados para sempre. Como sentenciou Marshall Berman:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura,


poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das
coisas em redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que
temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. (BERMAN, 1991, p.
37)

Abrindo um diálogo com Lipovetsky outro aspecto a enquadrar num retrato da


cultura contemporânea é que não basta penas consumir. Como ressalta Bauman
(2008), é preciso também ser “consumível”, transformando a própria aparência em
commodity capaz de ser oferecida tanto para relacionamentos quanto para o mercado
de bens simbólicos religiosos. Um dos sinais dessa transformação da aparência em
commodity está no boom dos sites de relacionamento, em que o produto que se coloca
no mercado é o próprio indivíduo.

Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem


primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua
subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira
perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria
vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que
essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num
esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma
mercadoria vendável. (BAUMAN, 2008, p. 20)

Para ingressar de maneira competitiva no mercado, é preciso sair da


invisibilidade, destacando-se da massa. Não é de estranhar que o sonho alimentado
por muitos é o de conquistar fama a todo custo, como se isso fosse o verdadeiro
sentido da vida e a única chance de conquistar a felicidade. Ser famoso significa
simplesmente aparecer em milhares de revistas, milhões de telas, ser notado e
comentado. Isso é crucial para ser finalmente desejado, cobiçado, como pretendem
todas as mercadorias: “numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria
desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fada”
(BAUMAN, 2008, p. 22). Num tempo altamente estetizado, ser invisível é equivalente
à morte.
Resumindo, esse mundo, nosso mundo líquido moderno, para Bauman,
sempre nos surpreende; o que hoje parece correto e apropriado amanhã pode muito
bem tornar-se fútil, fantasioso ou lamentavelmente equivocado. Devemos estar
sempre prontos para mudar: todos precisam ser, “flexíveis”.
O capítulo 11 do livro 44 cartas do mundo líquido moderno, “Os Gastos dos
adolescentes” Bauman inicia com a discussão de que o padrão de gastos dos jovens
começa a se manifestar muito mais cedo se comparados a alguns anos atrás. Isso
porque as os objetos de consumo estão mais acessíveis e acompanhados de
propagandas mais sedutoras e atraentes.
Bauman demonstra como o efeito dessa onda de consumo entre os jovens
proporciona cada vez mais o desapego e o desaparecimento de laços afetivos com
os objetos adquiridos, importando apenas para os adolescentes o momento da
compra, ou seja, o estilo adquirido e não a “amizade duradoura”
A ideia principal do texto se resume em uma frase do autor: “Render-se ao fluxo
da maré tem um custo monetário; nadar contra ela também tem seu preço, nem
sempre monetário, mas provavelmente mais doloroso e difícil de pagar”. (BAUMAN,
2011, p. 58).
Bauman nos convida a refletir os valores da sociedade moderna, na qual tudo
que não tem utilidade se joga fora, em que os valores estão se perdendo. A
experiência de que tudo é substituível e descartado rápido está migrando para os
relacionamentos das pessoas, afetando o universo religioso inclusive.
Embora Bauman se refira a uma realidade europeia, pode-se afirmar que a
cultura do hiperconsumo globalizou-se expandindo não apenas por todos os territórios
do planeta, bem como por todos os grupos sociais inclusive aqueles mais pobres que
vivem na chamada periferia do capitalismo.
É caso do Brasil. E economia brasileira vive a uma década um fenômeno
denominado pela propaganda governamental e seus agentes midiáticos de “o
espetáculo do crescimento”. Em agosto de 2008 a revista Época analisou o perfil das
famílias desta nova classe média. Reproduzo o início da reportagem:

Classe média, eu?” A ideia surpreende Josineide Mendes Tavares,


uma manicure de 34 anos, moradora da Rocinha, a favela mais
conhecida do Rio de Janeiro. Sua freguesia, formada por mulheres da
zona sul, que Josineide atende em domicílio, proporciona uma renda
de R$ 1.500 a R$ 2 mil por mês. Ela e os dois filhos pequenos vivem
numa casinha de 35 metros quadrados. Lá dentro, ela tem uma
televisão de tela plana de 29 polegadas, nova, equipada com serviço
de TV por assinatura e DVD. Fãs de Cartoon Network e Discovery
Kids, as crianças assistem à televisão sentados nas cadeiras de uma
pequena mesa de jantar, porque na sala apertada não cabe um sofá.
O fogão de quatro bocas é antigo, mas o freezer e a geladeira
Josineide acaba de comprar. Na laje, um extenso varal com roupas da
moda e uma lavadora de última geração. “Compro tudo em parcelas a
perder de vista”, diz ela. Ainda faltam um computador e um videogame.
Ah!, sim. Josineide quer mais um celular. Ela já tem dois, mas diz
precisar do terceiro para estar sempre à disposição da clientela.
Josineide e os filhos formam uma família típica da nova classe média
brasileira, segundo uma pesquisa divulgada na semana passada pela
Fundação Getúlio Vargas (FGV), do Rio. De acordo com esse estudo,
nos últimos seis anos cerca de 20 milhões de brasileiros deslocaram-
se da base para o miolo da pirâmide social. Até há pouco tempo
classificados como pobres ou muito pobres, eles melhoraram de vida
e, como Josineide, começam a usufruir vários confortos típicos de
classe média. Sua ascensão social revela uma excelente novidade:
pela primeira vez na História, a classe média passa a ser maioria no
Brasil.

Em recente entrevista o sociólogo e professor da Universidade Federal de Juiz


de Fora, Jessé Souza que estuda classes sociais há 20 anos, respondeu se havia
uma nova classe média brasileira: “Este conceito está inserido na cegueira de pensar
que as classes sociais se reproduzem apenas no capital econômico, quando a parte
mais importante não tem a ver com isso, mas com o capital cultural, com tudo aquilo
que a gente incorpora desde a mais tenra idade. ” 3
Porém, acreditamos que o consumo como valor é uma ideologia unificadora,
isto é, compartilhada tanto pelas elites dominantes como pelos dominados, afinal
como disse Marx: “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. Cabe
perguntar que efeito o hiperconsumo líquido exerce sobre os jovens brasileiros
pobres, em particular àqueles que vivem nas periferias das grandes cidades? Embora
saibamos que se trata de uma questão ampla e que por sua natureza transborda o
escopo deste trabalho, podemos ensaiar uma hipótese.
Os adolescentes brasileiros, de todas as classes, tornaram-se de maquininhas
de consumo. Um estudo realizado com garotas e rapazes de nove países mostra que
no Brasil sete em cada dez jovens afirmam gostar de fazer compras. Desse grupo de

3 O Globo. Para a classe média, o que prevalece é o capital cultural. Entrevista Jessé Souza Professor
da Universidade Federal de Juiz de Fora. Disponível em: http://oglobo.globo.com/economia/para-
classe-media-que-prevalece-o-capital-cultural-7914177. Acesso em 10.07.2016.
brasileiros, quatro foram ainda mais longe – disseram ter grande interesse pelo
assunto. O resultado da pesquisa, que tomou como base um trabalho da Organização
das Nações Unidas (ONU) chamado Is the Future Yours? 4 (O Futuro É Seu?), foi
significativo: os brasileiros ficaram em primeiríssimo lugar no ranking desse quesito,
deixando para trás franceses, japoneses, argentinos, australianos, italianos, indianos,
americanos e mexicanos. Ou seja, vai gostar de consumir assim lá no shopping center.
Outra pesquisa, feita pelo Instituto Ipsos-Marplan, constatou que 37% dos
jovens fazem compras em shoppings, contra 33% dos adultos. Nem sempre os mais
novos adquirem produtos mais caros, mas, proporcionalmente, têm maior afinidade
com as vitrines. A lista de vantagens dos adolescentes sobre outros públicos é de tirar
o fôlego: eles vão mais vezes ao cinema, viajam com maior frequência, compram mais
tênis, gostam mais de roupas de grife – mais caras que as similares sem marca
famosa –, consomem mais produtos diet, têm mais computadores, assistem a mais
DVDs e vídeos e, só para terminar, são mais vorazes na hora de abocanhar balas,
chicletes e lanches. Não é à toa que a falência antes do fim do mês é maior entre os
jovens: invariavelmente atinge quase a metade deles, que estoura a mesada ou o
salário.

Religião do Consumo

O erro do Lula foi ter facilitado o acesso do povo a bens pessoais, e


não a bens sociais – o contrário do que fez a Europa no começo do
século 20, que primeiro deu acesso a educação, moradia, transporte
e saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais. Aqui,
não. Você vai a uma favela e as pessoas têm TV a cores, fogão,
geladeira, microondas (graças à desoneração da linha branca),
celular, computador e até um carrinho no pé do morro, mas estão
morando na favela, não têm saneamento, educação de qualidade. É
um governo que fez a inclusão econômica na base do consumismo e
não fez inclusão política. (Frei Betto)5

A maioria das igrejas cristãs (católicas e evangélicas) nos últimos anos, tem
buscado se adaptar às mudanças da sociedade, decorrentes do deslocamento do

4 UNEP/UNESCO. Is The Future Yours? Research Project on Youth and Sustainable Consumption
http://www.unep.fr/shared/publications/pdf/2884-IsFutureYours.pdf. Acesso em 10/07/2016.
5 Revista Cult. A vocação literária de Frei Betto. http://revistacult.uol.com.br/home/2015/05/a-vocacao-

literaria-de-frei-betto. Acesso em 10.07.2016.


formato religioso tradicional para o mediático. O processo de secularização não
resultou no fim da experiência religiosa, mas modificou essa experiência, dando a ela
um enfoque mais mediatizado.
Os desafios da secularização, como a inversão dos valores considerados
tradicionais, no qual antes existia uma busca pelo desconhecido, pelas coisas do alto,
por algo que conecte as pessoas a Deus, do experimentar o religare 6, nos tempos
modernos encontra-se o inverso, o afastamento por este modelo.
Miklos (2012) questiona este processo de mudança sofrido na experiência
religiosa:
Desapareceu a religião? O religare foi destruído? De forma alguma.
Eles permanecem e, frequentemente, exibem uma vitalidade que se
julgava extinta. Porém, no mundo desencantado, os fenômenos
religiosos se alteram. Nas sociedades pré-modernas, o religare era
parte integrante de cada um, da mesma maneira como o sexo, a cor
da pele, os membros, a linguagem. Na modernidade desencantada,
fruto do capitalismo e impulsionada pelo pensamento iluminista, o
mundo religioso foi sendo fragmentado, afastando o homem da
natureza e da realidade cósmica, em que tudo passou a ser explicado,
medido, cotejado, relegando ao homem o desamparo, em sua eterna
busca pela realização mítica (MIKLOS, 2012, p. 26).

Para atrair “fiéis-clientes”, muitos grupos religiosos passam a usar a lógica da


economia de mercado. Nesse cenário, algumas tradições religiosas transformam- se
em empresas prestadoras de serviços religiosos, agências de mercado, e sofrem até
a pressão por resultados que provocam a racionalização das estruturas que visam
minimizar gastos, tempo e dinheiro.
A inserção dessas igrejas, na lógica do mercado, implicou a mudança no estilo
pelo qual essas igrejas interpretam as concepções de fé e a própria missão da Igreja.
A religião como produto de consumo vendido com a utilização do marketing coincide
com o surgimento da Teologia da Prosperidade. Nascida nas primeiras décadas do
século XX nos Estados Unidos da América, sua doutrina afirma, a partir da
interpretação de alguns textos bíblicos, que os que são verdadeiramente fiéis aos
Deuses, devem desfrutar de uma excelente situação na área financeira e na saúde.

6A palavra religare é formada pelo prefixo re (outra vez, de novo) e o verbo ligare (ligar, unir, vincular).
O religare, nesse sentido, é a forma primeira de vínculo, concebida não só como vínculo entre homens
e seus deuses, mas especialmente entre os próprios homens. Embora a religião ambicione ligar, unir
os homens, ela foi e é, muitas vezes, motivo de separação e guerras entre eles. A religião une os iguais
e é pretexto para separar os diferentes (MIKLOS, 2012, p. 18).
Nesse cenário, emerge a "religião a la carte" em que a questão religiosa passa
a ser opcional, de acordo com a preferência do indivíduo, uma vez que assistimos ao
desaparecimento das verdades de fé e ao crescimento da emergência da
subjetividade para normatizar a experiência religiosa, que passa a ser privatizada
oferecendo ao fiel-consumidor no mercado religioso bens como: cura de doenças,
realização no amor, sucesso dos negócios, cotidiano sem angústias, superação de
problemas e o sentido da vida. Trata-se da Religião do consumo conforme a reflexão
de Frei Betto:

Essa apropriação religiosa do mercado é evidente nos shopping-


centers, tão bem criticados por José Saramago em A Caverna. Quase
todos possuem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas. São os
templos do deus mercado. Neles não se entra com qualquer traje, e
sim com roupa de missa de domingo. Percorrem-se os seus claustros
marmorizados ao som do gregoriano pós-moderno, aquela
musiquinha de esperar dentista. Ali dentro tudo evoca o paraíso: não
há mendigos nem pivetes, pobreza ou miséria. Com olhar devoto, o
consumidor contempla as capelas que ostentam, em ricos nichos, os
veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas.
Quem pode pagar à vista, sente-se no céu; quem recorre ao cheque
especial ou ao crediário, no purgatório; quem não dispõe de recurso,
no inferno. Na saída, entretanto, todos se irmanam na mesa
"eucarística" do McDonald’s.7

Esses fenômenos têm defendido a perda do valor sagrado dos objetos


religiosos nesse deslocamento dos espaços de produção e consumo estritamente
religiosos para um espaço público mais amplo de comercialização e consumo profano.
Essa leitura se baseia na ideia de que os objetos produzidos em instâncias
religiosas teriam uma determinada “aura” tradicional, que teria se perdido com a
adoção de regras e padrões mercadológicos.
Essa manipulação mercantilista em torno da fé possui grande aceitação e
aprovação dos fiéis, que acreditam na promessa de que sua compra é muito
importante para resgatar vidas.
É notório o poder de persuasão da mídia e das igrejas para influenciar pessoas,
desprezando desta forma até mesmo a ética religiosa. Observa-se, no entanto, que
isso não fica tão claro aos fiéis, que acompanham as programações religiosas.

7BETTO. Frei. Disponível em http://www.cienciaefe.org.br/jornal/arquivo/betto/relig.htm. Acesso em


10/07/2016.
Coordenando o sentimento que um fiel possui, as instituições religiosas criam
vínculo capaz de exploração devido à fraqueza do outro. O fiel que se sente parte da
instituição religiosa facilmente será de alguma forma explorado ou persuadido em
decorrência da sua fé e quanto mais envolvido estiver neste processo, menos
perceberá a persuasão. Para Bauman (2008), “a “síndrome consumista” envolve
velocidade, excesso e desperdício”, um consumidor envolvido pelo modelo não
visualiza esses excessos e se deixa ser conduzido pelo processo cada dia mais.
A globalização criou uma nova religião: a religião do consumo midiatizada. É
pelo processo de evangelização mediatizada envolvido pelo espetáculo e pelos
diversos formatos de apresentação dos produtos católicos produzidos para trazer
conforto e fidelização de membros religiosos, que se constrói a tendência de mercado
das religiões.
Resta-nos perguntar: É possível a experiência da transcendência e do religare
a partir de uma experiência religiosa na qual a experiência simbólica da religião é
cooptada pela cultura de massas em prol da indústria cultural?
Na ordem global midiática a experiência religiosa converte-se em consumo e
não resulta em transcendência, mas apenas em consumo de fetiches. Não apenas o
religare é devorado pelo poder divino da mídia, mas também aqueles que estão
envolvidos nela e por ela. A sociedade de consumo sacrifica silenciosamente o
religare, a transcendência e o humano que há em todos os que buscam o encontro
com o sentido maior.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em


mercadoria. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.

_____. 44 cartas para um mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2012.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da


modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1991.

BETTO. Frei. Religião do Consumo. Disponível em


<http://www.cienciaefe.org.br/jornal/arquivo/betto/relig.htm>. Acesso em 10/07/2016.

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Petrópolis, Vozes, 2014.

UNEP/UNESCO. Is The Future Yours? Research Project on Youth and


Sustainable Consumption. Disponível em
<http://www.unep.fr/shared/publications/pdf/2884-IsFutureYours.pdf>.
Acesso em 10/07/2016.

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