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Entendemos por ella una sociedad que repudia la retórica del deber austero,
integral, maniqueo y, paralelamente, corona los derechos individuales a la
autonomia, al deseo, a la felicidad. Sociedad desvalijada en su transfondo de
prédicas maximalistas y que solo otorga crédito a las normas indoloras de la
vida ética (LIPOVETSKY, 2000, p. 13)
Xununu Tamu
Xununu Tamu: uma saga indígena (1998)1 é uma obra de José Vilela. José Vilela
de Moraes nasceu em nove de fevereiro de 1950, natural de Guiratinga, Mato Grosso.
Fixou residência em vários estados, como Roraima, Mato Grosso, Amazonas. Desde
2005, voltou a viver em Roraima, na capital Boa Vista. Em sua página do Facebook, se
autodefine como "um jornalista apaixonado por literatura". Tem vários livros lançados,
o Guru da floresta foi obra de referência para o vestibular da Universidade Federal de
Roraima (UFRR). Os bravos de oixi foi lançado pelas Vozes, em 1994, e traduzida
também para o italiano, publicada pela Edizione del Noce, intitulado Gli heroi di Oixi,
com tradução de Bruno Marcon. Essa obra é a base geradora de Xununu Tamu. À época
o autor assinava como Vilela Montanha.
Xununu Tamu foi escrita quando o autor trabalhava como assessor de imprensa
da causa indígena na região Norte, baseado também no relatório feito pela indigenista
Maria Edna Brito, em 1990. A obra foi censurada à época, como diz o autor, "por forças
1
A maioria das informações são extraídas da própria obra Xununu Tamu: "Palavras do autor", "Prefácio"
e, ao final, "José Vilela (por ele mesmo)".
superiores", o próprio autor relatou em uma fala na UFRR ter sofrido à época um
acidente muito estranho, que pôs sua vida em risco, o que o fez optar por sair do estado
e continuar seu tratamento de saúde na sua cidade natal. A história é baseada em fatos
reais, contudo os nomes próprios tanto dos personagens quanto lugares principais foram
alterados, porém o autor dá deixas para chegarmos à referencialidade exata de quem se
trata a história dos Macuco.
Na página 102, há um ponto crucial para localizar o enredo da narrativa: "Em
nível nacional o jornal Porantim divulgou matéria de grande repercussão na edição do
bimestre de julho e agosto, intitulada: "Polícia invade maloca macuco" [itálico no
original]. O jornal Porantim pertence ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI), era a
edição de número 100, de 1987, e tinha como manchete "Polícia invade maloca
macuxi". Ali encontramos as informações necessárias para localizarmos melhor o
enredo: os indígenas são os Macuxi, a maloca é a Santa Cruz, perto do lago Caracaranã,
e o município é Normandia. Essa comunidade teria sido invadida por 60 policiais
militares e do exército, onde foram presos 19 indígenas e levados para a penitenciária de
Boa Vista, capital de Roraima. Os policiais espancaram vários indígenas, inclusive o
tuxaua e uma mulher grávida. Destruíram roupas, redes e bicicletas, para quem visita
uma comunidade, esses em geral são os únicos bens dos indígenas dessas regiões,
principalmente em 1987. O fazendeiro por traz dessas ações também é identificado, o
fazendeiro Newton Tavares, que estabeleceu ali a fazenda Guanabara. Ele invadiu as
terras indígenas, inclusive colocando cerca e guarita, um portão com capataz, para
impedir que os indígenas passassem. Isolando-os. Os indígenas eram impedidos de
pescar, caçar, criar gado, plantar gado e até de receber visitas. Quando um casal de
indígenas tentou plantar sua roça, foi agredido por jagunços. Em apoio à comunidade
Santa Cruz, 180 indígenas macuxi se deslocaram para a área e decidiram derrubar a
cerca que circundava a comunidade. Os jagunços tentaram impedir e foram feitos
reféns. Os indígenas exigiam a saída do fazendeiro da região e a presença do presidente
da FUNAI para ver a situação em que os indígenas se encontravam, contudo o
secretário de segurança púbica do ex-Território de Roraima, Mena Barreto, enviou os
policiais.
Para nos localizarmos minimamente nas informações, essas são as correlações
principais entre o livro Xununu Tamu e a matéria do Jornal, além de outras inferências
possíveis como datas, que possibilitou, por exemplo, saber quem era o governador e
presidente da época:
Nomes reais Referência no Livro Xununu
tamu
Índios Macuxi Índios Macucos
Comunidade Santa Cruz Xununu tamu
Fazenda Guanabara Fazenda Brasil
Território de Roraima Território do Lavrado
Fazendeiro Newton Tavares Nero Hitler
Cidade de Boa vista Cidade de Cruviana
Jornal Folha de Boa Vista Folha de Cruviana
Ponte dos Macuxi Ponte dos Macucos
Cidade de Normandia Cidade de Cascadura
José Sarney Presidente Bigode
Romero Jucá Gigante Gogó
Tuxaua Agostino Paulino Tuxaua Cristino
Dom Aldo Mogiano Dom Francisco de Itália
Conselho dos Bravos Conselho Indigenista de Roraima
No capítulo 28, "Dias Difíceis", Vilela traz uma notícia de como o Jornal Folha
de Boa Vista (Folha de Cruviana), em seu editorial, anuncia o conflito na Comunidade
Santa Cruz:
Nitidamente o Jornal Folha de Boa Vista possui um lado nessa história, lado esse
que Vilela deixa claro na obra ao colocá-lo em contraponto à notícia do Porantim. A
imprensa de Roraima e a política local têm demonstrado apoio a esse tipo de
posicionamento da Folha de Boa Vista. Basta ler os trabalhos de Maria Goretti Leite de
Lima: O índio na mídia impressa em Roraima (2009); ou de Maria do Socorro Pereira
Leal: Raposa Serra do Sol no discurso político roraimense (2012).
Xununu tamu possui uma estrutura que remete ao evangelho bíblico e obra inicia
com o capítulo intitulado "Gênesis" ou nas palavras do próprio narrador Jeca Lobo: "Eu
sei de histórias que dá para escrever uma bíblia, seu doutor! A bíblia do nosso
sofrimento!" (VILELA, 1998, p. 17)
O capítulo quatro da primeira parte do livro intitulado "Deus não dorme"
estabelece um diálogo interessante com outra obra de uma autora local roraimense,
Nenê Macaggi. A autora iniciou sua vida no serviço público como delegada do Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) recomendada por carta pelo então presidente Getúlio Vargas,
na década de 40, e ao chegar em Roraima chegou a atuar no garimpo e adquirir terras,
não raro sendo acusada de garimpeira e fazendeira. Essa perspectiva fica bastante clara
quando analisamos o discurso que alinhava as obras que Macaggi produziu em Roraima
ao discurso progressista getulista, eivados de preconceito contra os indígenas. Em uma
delas o dito popular é recorrentemente colocado na boca dos personagens, na obra Dadá
Gemada, Doçura Amargura- o romance do fazendeiro roraimense (1980) como
apontado por Silva (2016). Não menos curioso é o fato de a obra trazer desde o título a
ótica de que grupo a narrativa irá se desenrolar e na qual o embranquecimento e a
assimilação completa da cultura considerada "branca" são consideradas os caminhos
pelos quais o indígena deve trilhar para alcançar a "civilização" e o "progresso". Outras
obras da autora ventilam a mesma perspectiva e ironicamente, ela é considerada no
estado a "primeira-dama das letras roraimenses" e o prédio em que se situa a biblioteca
municipal da capital de Roraima, antigo Palácio da Cultura, tornou-se em 2006, Palácio
da Cultura Nenê Macaggi.
Já em Xununu Tamu, o referido dito nomeia o início dos conflitos estabelecidos
com a chegada do fazendeiro Nero Hitler às terras em que a comunidade indígena dos
Macucos situava-se, em especial à implantação das primeiras reses e das ameaças feitas
aos indígenas, que com ajuda do Padre Chieta, começavam a erguer a primeira escola
primária do local. A escola embora erguida não o foi sem muitos impedimentos e à
custa de denúncias e afastamentos do delegado e sub-delegado encarregados de
investigar as ameaças de Nero Hitler e só depois de quatro anos do início de sua
construção. A partir de então, começa a via sacra dos Macucos. De ameaças, passando
por violência sexual, a homicídios, Nero Hitler e seus capangas vão tecendo um rosário
de violências contra a comunidade que atinge sua máxima representação com a vala
aberta ao redor da comunidade que acaba isolando a comunidade do acesso à capital.
Em uma desses episódios de violência narrados por José Vilela em Xununu
tamu, há o assassinato do adolescente macuxi Ovelário Tames, à época com 18 anos,
ocorrido no ano de 1988. Ovelário foi abordado por policiais civis ao descer de um
caminhão no município de Normandia, sob pretexto de estar em atitude suspeita, e ao
resistir à prisão ilegal foi espancado brutalmente e encaminhado para a delegacia onde
amanheceu morto. Apenas em 2005, o então presidente da República Luiz Inácio Lula
da Silva assinou o decreto que determinou que o governo cumprisse as recomendações
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em reconhecer a responsabilidade do
Estado na morte do adolescente. Como parte desse reconhecimento houve também a
inauguração, em 2006, do monumento Ovelário Tames, localizado na praça do Centro
Cívico da capital roraimense, pouco conhecido pela maioria da população e muitas
vezes alvo de vandalismo e depredação.
Muitas das violências contra os indígenas narradas em Xununu tamu ainda
persistem no cenário atual. Contudo duas das faces mais perversas são as reveladas
pelos números trazidos pelos Relatórios de Violência contra os povos indígenas no
Brasil (2014, 2015, 206) elaborados pelo CIMI e presentes na tabela abaixo2: o do
suicídio e a da mortalidade na infância.
Ano Suicídio Mortalidade na infância
2014 8 70
2015 80 106
2016 18 140
2
Tabela de autoria própria elaborada com base nos Relatórios de Violência contra os povos indígenas no
Brasil (2014, 2015, 206).
3
Projeto de construção de casas populares da Prefeitura de Pacaraima.
comunidade. Aí ele diz assim: “não é, não é bem assim, tuxaua, não é bem
assim, não, não pode. Isso tira vocês do índio pro branco. Isso daqui é usado,
isso daqui foi feito pro branco, não é pro índio. O índio, ele tem costume de
morar debaixo de uma palha, de um barraquinho de palha, é muito bonito.
Mas assim, isso daqui é dos brancos.”’
Lilian Brandt, no artigo As dez mentiras mais contadas sobre os indígenas (2014)
também elenca o fator da utilização dos produtos e tecnologias “brancos” gerar
questionamentos sobre a identidade indígena, sob a alegação que estariam perdendo
suas culturas, ou nas palavras da autora “‘índio que usa celular não é mais índio’, e suas
variáveis televisão, computador, calça jeans, tênis, rede de pesca, barco a motor,
caminhonete, trator e etc.” (S/N):
Nossa sociedade não aceita que este sujeito tão diferente de nós possa utilizar
as mesmas tecnologias e bens de consumo que utilizamos. Assim, ao mesmo
tempo que vemos os indígenas como inferiores por não terem desenvolvido
as tecnologias que nos saltam aos olhos, não aceitamos que ele desfrute das
facilidades da vida contemporânea. Como se tudo o que temos hoje fosse
resultado apenas do trabalho de homens brancos e para usufruto exclusivo de
homens brancos. Como se o progresso tecnológico e econômico não tivesse
sido impulsionado também pela tomada de territórios e riquezas que
pertenciam a esses índios. (S/N)