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R467e
Rezinovsky, Daniel
Encontro com o Absoluto: uma jornada além das fronteiras da consciência /
Daniel Rezinovsky – Jundiaí: Editora Coffeer’s, 2018.
192 p.: 14x21 cm
ISBN: 978-85-93884-02-3
1. Espiritualidade 2. Consciência 3. Iluminação espiritual 4. Experiência mística
I. Rezinovsky, Daniel
CDD: 130
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora
Coffeer’s. A violação dos direitos autorais é crime, estabelecida por lei nº 9.610/98 e punida pelo artigo 184 do Código Penal.
Dedicado à memória de Richard Rose,
Franklin Merrell-Wolff e
Bhagavan Sri Ramana Maharshi
Agradeço a todos os seres maravilhosos
que me acompanharam nessa longa jornada.
Vocês vivem no meu coração.
SUMÁRIO
1. Prefácio 9
2. Introdução 13
3. O reconhecimento da Voz 35
4. Raios de luz numa clareira 38
5. A passagem do mundo 40
6. A irrupção da Visão 43
7. Momentos de busca 44
8. A abertura do Olho 45
9. A Consciência se torna consciente 47
10. D’us somos nós quando estamos acordados 48
11. À margem do rio, uma formiga 50
12. O olhar do Absoluto 52
13. Momentos de desconstrução 53
14. Explosões do Absoluto 54
15. No meio do bosque 55
16. A laranja e o Mistério 61
17. O Presente denso como mel 65
18. Reminiscências de outra era 68
19. Massiach 69
20. A saída da caverna 70
21. A Voz sussurra 72
22. Chamados para um encontro 74
23. A ausência e a busca 76
24. Os grilhões da consciência 79
25. O intercurso com o mundo 85
26. A emergência do Absoluto 90
27. A entrega à simplicidade pura 91
28. A casa oculta do Absoluto 94
29. A realização do Absoluto 97
30. A Mente Absoluta 101
31. O Ser enterrado prestes a nascer 104
32. O difícil problema da reentrada após a Visão 106
33. A metafísica dos pequenos atos 112
34. A não-palavra por trás das palavras 113
35. A perfeição e o ponto oculto 115
36. O silêncio e o zero 116
37. No início, tudo era metafisicamente solto 117
38. Parindo D’us 119
39. O Absoluto e o deleite debaixo do concreto 121
40. O pedaço de carne inteligente dentro de minha
cabeça 123
41. Sussurros do Absoluto 125
42. O momento da Visão 126
43. Sobre o uso da palavra D’us 129
44. O contato com o “Isso” 131
45. O espaço do Absoluto 133
46. Abertura à Consciência Transcendental 134
47. A entrada na ordem do Absoluto 136
48. A Mente que nos transcende 138
49. A descoberta do Absoluto 141
50. O Ser, o véu e os mundos 143
51. A linguagem do Ser 149
52. O encontro com o Nada 152
53. O diálogo final entre o Absoluto e Maya 164
POEMAS
1. A prática da grafia do termo ‘Deus’ como ‘D’us’ é habitual nos escritos judai-
cos. A motivação original para este uso é reconhecer a realidade sagrada à qual
o nome se refere. Também emprega-se o termo no livro de modo a romper as
associações normalmente feitas ao termo ‘Deus’, e ressaltar a impossibilidade
da palavra escrita de refletir integralmente a realidade última.
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Eu espero que outros que também estejam no caminho pos-
sam se beneficiar de algum modo deste livro. Ele é imperfeito, e
por vezes não fui capaz de expressar apropriadamente o que que-
ria transmitir. Também peca por não ser sistemático, o que pode-
ria ser resolvido num futuro estudo mais longo. Ele busca ser uma
pequena contribuição à literatura mística, de modo a apoiar a rea-
lização de outros. Sei que na nossa época por vezes o caminho é
excessivamente solitário, por carecermos de uma linguagem e um
lugar de encontro que nos permitam expressar certos sentimen-
tos e estados de espírito. No entanto, a nossa era de imensas crises
provavelmente irá testemunhar uma renovação interior em múlti-
plos níveis, de modo a resgatar o espírito que foi perdido no mun-
do contemporâneo. Que este livro possa ser uma contribuição a
essa renovação.
Viamão, RS
19 de dezembro de 2017
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INTRODUÇÃO
Podemos despertar para uma realidade mais profunda do que
a consciência cotidiana nos mostra. Esse despertar é o evento cen-
tral desta época de turbulências e intensas transformações. Nos-
sa mente se abre para uma realidade que não suspeitávamos exis-
tir. Poderíamos chamá-la por muitos nomes: a Essência, o Vazio,
a Mente Única, D’us, o Absoluto – todos símbolos de uma realiza-
ção imensa que transcende nossa linguagem.
O despertar é assombroso, glorioso, estranho e misterioso.
Nos tornamos o grande Ser que contém tudo que existe: pessoas,
árvores, carros, ideias, emoções – o cosmos inteiro. E Ele se vê
através de nós. A Mente que sustenta a realidade finalmente en-
tende a sua própria natureza. Ela realiza através de um salto intui-
tivo a sua unidade intrínseca. Os milhares de anos de evolução fi-
nalmente realizam a sua meta, num único momento de percepção
completamente lúcida.
O Absoluto contempla com maravilhamento um evento de mag-
nitude cósmica. O universo por um instante reconhece a si mesmo
enquanto uma totalidade viva através de um ente de carne e osso,
que pensa, deseja, sofre e almeja pela transcendência de sua condi-
ção. Nós somos pessoas com histórias, problemas e dúvidas, mas, ao
mesmo tempo, somos a Mente que mantém o universo vivo.
Muitas pessoas estão tendo espontaneamente essa realização.
E podemos nos perguntar: por que agora, numa escala coletiva?
Chegamos ao limite do que a nossa consciência atual é capaz
de suportar e compreender. Os problemas se multiplicaram sem
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perspectivas genuínas de resolução. A experiência da vida perdeu
seu centro e fio condutor. Já não sabemos mais o que ela é. Esse
sentimento agudo e doloroso é percebido por trás de um espesso
véu. Temos a intuição de que nossos grandes dilemas existenciais
e filosóficos talvez não possam ser resolvidos a não ser por uma
mudança de base que coloque nossa consciência em sintonia com
o Absoluto, com uma realidade que apreendemos tenuamente e
que supomos existir nas profundezas do nosso mundo interior.
Habitamos um universo vasto, intrincado e extraordinário. No
entanto, nele flui um caudaloso rio de dor e sofrimento que se mos-
tra misterioso e incognoscível. A qualquer instante, nós e aqueles
que amamos podemos ser levados sem explicações. Se existe uma
ordem transcendental que rege o cosmos ela raramente se revela a
nós. Não somos capazes de suportar por tempo suficiente a contem-
plação contínua desses fatos tão evidentes da nossa condição.
O universo dual é inerentemente trágico e pleno de sofrimento.
Todos os seres estão condicionados, suscetíveis às contingências, às
forças da aleatoriedade e do caos, que cumprem o seu papel no tea-
tro cósmico. O universo se mostra aparentemente indiferente aos
nossos anseios. Nosso choque com a realidade é imenso e nela so-
fremos profundamente.
Dentro do estado de consciência dual que forma o universo,
todas as coisas são irreconciliáveis, os opostos raramente se equi-
libram e nada é estável. Nada perdura e nos satisfaz neste mundo
de miragens e passagens. A dor e o sofrimento nos tocam cons-
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tantemente. O amor nos ilude, nossos desejos nos traem e nossos
sonhos invariavelmente se chocam com a dureza do real. A reali-
dade deve operar por princípios que ainda nos escapam. A cons-
ciência humana parece estar aquém da inteligência que permeia e
está na base do mundo.
É a constatação da onipresença e intensidade do sofrimento que
abre o nosso ser. O Absoluto nos chama então para além de nós
mesmos. Nós o sentimos como a voz sutil além dos pensamentos
comuns. Cada um de nós conhece esses momentos de iluminação
súbita, de uma forma de percepção que escapa à vida diária. E fre-
quentemente a luz não emerge como uma graça, mas através da dor
e do desespero. Os vislumbres são a promessa silenciosa de um esta-
do de ser que supera a nossa condição.
Por vezes pensamos que o chamado é uma fantasia, que nos
iludimos e persistimos numa direção que nos deixará de mãos va-
zias. Mas quando o recusamos ele nos assombra. Uma parte de
nós já não se encaixa mais na experiência comum da vida. Esse tê-
nue incômodo cresce e gradualmente nos mostra o significado do
ser. Do que é feito o nosso ser que nunca observamos. Que consi-
deramos trivial. Que por ser tão simples não damos atenção. Mas
então suspeitamos que do ser o universo inteiro depende. Que ne-
le nos tornamos o universal e escapamos da prisão de nós mes-
mos. Mas isso não perdura. São percepções sutis e fugidias. São
incipientes aberturas à revelação do Absoluto.
Os vislumbres de uma outra ordem de realidade se apresen-
tam frequentemente nos momentos mais intensos das nossas vi-
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das e tornam-se nossas memórias mais significativas. Sentados
numa tarde ensolarada contemplando o olhar da nossa amada,
deitados num interminável campo, em meio a grilos que pontuam
um imenso silêncio; o vazio profundo de um hospital após per-
dermos um ente querido; os primeiros movimentos de um ser que
acabou de nascer e tenuamente toca os nossos dedos. Todos parti-
cipamos da realidade nesse grau de intensidade e nitidez de tem-
pos em tempos. É quando nos sentimos mais vivos e mais plenos
daquilo que era tão comum na infância, quando éramos permea-
dos pelo misterioso espírito que move todas as coisas, e que hoje
está tão distante de nossas vidas.
O que são essas aberturas? Os olhares trancendentais, que nos
levam a uma percepção da vida e da existência que parece redimir
todas as dificuldades que habitualmente carregamos dentro de nós?
Apenas um único instante de visão lúcida é capaz de redimir to-
da uma vida de dor e de sofrimento. O que é visto não é um conteú-
do perceptual ou cognitivo específico. Na literatura mística, temos
um vasto campo de experiências humanas pouco comuns e nela
existem místicos que de fato veem mundos, seres e arquétipos; al-
guns que sentem energias poderosas fluírem através de seus corpos;
outros que ouvem músicas e canções celestiais; e há os que se tor-
nam um com o Infinito. No entanto, o fato central por trás de todas
as formas de misticismo parece ser a revelação de uma consciência
subjacente, do Absoluto, de D’us, que na maior parte do tempo está
oculta para a nossa consciência normal.
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As experiências místicas pontuais, presentes na vida de todos,
esses momentos em que somos transportados para além da cons-
ciência comum, nos quais vemos o universo transfigurado e final-
mente chegamos ao que parece ser o significado fundamental da
existência, são vislumbres de um estado de consciência mais am-
plo e vasto, que experimentamos nos nossos momentos de vida
mais plena, e que no caminho espiritual nos dirigem para a trans-
formação proposta nos escritos místicos de todas as épocas como
a iluminação espiritual.
Buscamos resgatar algo que está latente na nossa alma, através
de uma realização da consciência humana que nos levará para um
estado de espírito e visão totalmente diverso daquilo que experi-
mentamos na maior parte do tempo.
Existe um extraordinário modo de percepção que exibe o uni-
verso de uma maneira radicalmente nova. Nesse encontro místi-
co descobrimos uma consciência imortal que jaz silenciosa na in-
terioridade de todos os seres.
O caminho cada vez mais se apresenta para pessoas comuns, de
todos os cantos e tempos, e o chamado para um novo modo de ser é
feito a todos. As portas estão sempre abertas, ainda que a passagem
seja excessivamente difícil – fruto do contraste agudo com uma cul-
tura que há tempos perdeu o contato com as suas raízes espirituais.
Há também um ponto culminante do caminho místico, on-
de somos postos em contato com algo que nos chama desde os
primórdios. Os indícios desse encontro transcendental aparecem
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em múltiplos lugares e tempos, desde as primeiras pinturas rupes-
tres às visões dos profetas do deserto, monges, eremitas, artistas
e muitos outros que empreenderam a jornada em busca da fonte.
Somos capazes de encontrar – nesse ponto culminante que para-
doxalmente não está oculto – o que todos no seu íntimo buscam,
o Absoluto, mesmo que o mundo, inconsciente de sua realidade,
faça de tudo para estabelecer sua não-existência.
Se realizarmos o salto interior para o Absoluto, seremos leva-
dos para uma dimensão além do mundo. O que nos falta por vezes
é estarmos suficientemente a sós com a vida. Raramente enfrenta-
mos o mistério do mundo nos nossos termos, utilizando integral-
mente as nossas faculdades. Mas é nesses instantes que uma silen-
ciosa inteligência da qual pouco compreendemos se mostra e faz
contato: desde quando nos convencemos de que o universo é iner-
te? De que nele não existe uma inteligência além da nossa?
O encontro emergiu de uma busca de muitos anos, depois de
estar convencido de que era possível obter um acesso, mesmo que
fosse um vislumbre temporário, de uma realidade transcendental,
do Absoluto, no qual a experiência da vida se mostra radicalmen-
te transformada. Os registros da antiguidade fornecem amplas in-
dicações da existência dessa possibilidade incomum de consciên-
cia, a “introcepção”2, uma realização no nível da nossa identidade
2. Termo cunhado pelo filósofo Franklin Merrell-Wolff, que designa uma ter-
ceira via de compreensão, em constraste com a percepção e a concepção. Na in-
trocepção ocorre a identidade entre sujeito e objeto, entre a consciência que ob-
serva e o universo observado.
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fundamental, um contato com a possível e hipotética – ao menos
no início – Mente que está na base do universo e que nos contém.
Na era contemporânea não sabemos bem como o processo se
desenvolve. Mesmo nas tradições místicas formais os registros são
esotéricos e de difícil acesso. O conhecimento mais puro é profun-
damente intuitivo e tende a ser transmitido de coração para cora-
ção. Aqueles que viveram e respiraram a realização total, como o
sábio indiano Sri Ramana Maharshi, são raros.
No entanto, a era de profunda crise espiritual na qual vivemos
é um espaço fértil de aberturas para o Absoluto, a sempre incom-
preensível fonte do mundo. O acesso é possível através de uma
transformação interior radical e intensa. Atualmente, nossa inte-
ligência não é capaz de entender o que a contém, o Absoluto; por
isso vemos o universo como um todo fragmentado e separado de
nossas mentes.
A irrupção completa e permanente dessa realidade transcen-
dental no nosso mundo é excessivamente rara, e dela de fato te-
mos poucos registros históricos. No entanto, a longa e tortuosa
história da nossa espécie revela muitos contatos e vislumbres, de
homens e mulheres de todas as culturas e estações da vida. Mas
podemos, e devemos, perguntar-nos: como ocorre esse desenvol-
vimento místico? De que modo podemos explorar esse tema tão
difícil e profundo além do que já foi escrito, das doutrinas for-
mais, e utilizarmos de nossa experiência direta para articularmos
da melhor maneira o que se passa nos nossos espíritos?
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Quando nos detemos para ler os escritos antigos, vemos ni-
tidamente que os homens possuíam uma experiência muito di-
ferente da vida. Eles pareciam ter uma experiência instintiva do
divino, de algo maior, que certamente se perdeu na nossa época.
Também é verdade que o ceticismo radical frequentemente é mais
lúcido do que as miríades de tentativas que realizamos para com-
preendermos o universo. Devemos duvidar muito, totalmente. É
o não-saber que nos salva.
Porque nesse lugar, e talvez somente nele, ficamos abertos o
suficiente para sentirmos diretamente a nossa condição. Deixa-
mos de nos proteger do mistério. E a angústia que nos causa esse
movimento é a própria porta que nos promete a saída para os in-
termináveis labirintos da nossa imaginação.
A jornada é frequentemente solitária, e apenas em raras instân-
cias, ao menos na nossa época de profundas ilusões, temos abertu-
ra para a comunhão no nível do Absoluto. Precisamos de sincerida-
de para nos abrirmos o suficiente ao que a realidade pura tem a nos
mostrar. Para que ela encontre a si mesma através de nós.
Sabemos muito menos do que supomos. Essa dúvida ontológica
nos causa pavor e a evitamos com todas as nossas forças. Ao mesmo
tempo, qualquer um de nós, num momento de clareza e sincerida-
de, pode chegar na margem do espaço que permitiria um vislum-
bre, um encontro com o Absoluto.
Mas o que é esse encontro? Fala-se de D’us, de vê-lo ou en-
contrá-lo? E somente proferir essa pergunta já não é uma heresia?
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Podemos abrir o nosso espírito o suficiente para que o Ser faça
contato. Não através de uma experiência sensorial, por mais mag-
nífica que ela possa se apresentar, nem mesmo através de sentimen-
tos sublimes, mas no nível mais íntimo da nossa autoconsciência.
Como e por que isso é possível? Por que seres de carne e san-
gue, que vivem numa névoa quase completa em relação à sua con-
dição, podem, através de um misterioso processo, ser levados pa-
ra uma dimensão de consciência que está incrivelmente presente,
e que lhes revele num instante um pouco da Mente misteriosa que
sustenta o cosmos?
Talvez seja parte do desenvolvimento do universo. Múltiplos
estágios de um Ser que cresce dentro de si e num dado momento
começa a perceber suas origens. Poderíamos dizer que este uni-
verso é uma espécie de simulação, criado espontaneamente den-
tro de um sistema muito mais vasto, para atingirmos em algum
momento a consciência total de sua origem e propósito. Objetivo
esse que hoje se mostra como algo mítico.
Será este plano um espaço de desenvolvimento de consciên-
cias para que elas ascendam a um estado de realização transcen-
dental? Será o Absoluto o que nós somos sem saber? O destino da
autoconsciência do cosmos? Estaremos em algum estágio da cria-
ção deste misterioso mundo, todos lúcidos na unidade pura?
Pois o que a realização do Absoluto revela é que não há nada
além dele. Aqui, na consciência ordinária, o impacto total desse
fato parece um pouco distante. Pois a unidade pura é um grande
mistério, até para ela mesma. Ninguém existe lá. Nenhum de nós.
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E também não há nada além dela. Tampouco o tempo. Todo esse
constructo fascinante que chamamos de universo se desfaz ontolo-
gicamente para que seu mistério seja revelado. E mesmo assim na-
da descobrimos. O mistério se torna infinitamente mais profundo.
O encontro não ocorre nos nossos próprios termos. Não serve
para que nos tornemos pessoas mais sábias ou iluminadas. Ele exis-
te por si mesmo. Não há uma utilidade ou fim além dele próprio.
Não é possível atribuir qualidades humanas ao Absoluto a não ser
de modo metafórico, alegórico, o que simplesmente quer dizer que
não podemos reificar ou hipostatizar as palavras, dar realidade à
linguagem a partir de nós mesmos, pois a nossa linguagem invaria-
velmente parte de uma realidade que contempla o Absoluto apenas
como um reflexo, e não como expressão direta dele.
O estado mais profundo de conhecimento ao qual podemos
ascender se assemelha a uma não-compreensão – uma douta
ignorância. É esse o sentido do conhecimento oculto, do não-
-saber, ou o desconhecimento como a forma mais elevada de co-
nhecimento. E isso é – ao menos inicialmente – intensamente
doloroso para nós, porque nos remove qualquer certeza a respei-
to da ordem da natureza. No entanto, é esse um dos requerimen-
tos místicos para sermos capazes de transpor a nuvem do não-
saber que nos domina na maior parte do tempo, e nos distancia
da experiência da realidade pura. Se apenas pudéssemos obser-
var a nós mesmos com a consciência desobstruída de um bebê,
talvez então entenderíamos tudo num só golpe.
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Na nossa jornada de investigação é melhor reconhecermos que
temos poucas certezas do que supormos serem válidos sistemas e
doutrinas que não experienciamos diretamente. Vivemos imersos
num conhecimento de segunda mão que nos deixa presos no la-
birinto de uma consciência condicionada. É raro pensarmos além
dessa consciência, pois não acreditamos o suficiente que podemos
alcançar e atingir um conhecimento novo por nós mesmos, de for-
ma íntima e pessoal; que existe uma via direta, inerente à própria
realidade, onde ela se manifesta, através de todos nós, e mostra
compreensões novas, tocando-nos diretamente.
Não aprendemos a pensar, indagar, investigar, filosofar e con-
templar, e apenas um sucedâneo estéril é transmitido na maior
parte do tempo. É essa a marca mais notável e persistente da in-
consciência coletiva. O saber interior não se desenvolve, não evo-
lui: permanece preso às concepções gastas e testadas do passado.
E ao conhecimento vivo, que brota da experiência direta de cada
um, de sua interioridade, não é dada nem a mera possibilidade
de surgir; nas suas primeiras irrupções é prontamente ignorado e
suas tentativas de expressão abortadas.
O único sentido de uma comunhão contemplativa com nós
mesmos é sermos capazes de ouvir a realidade interior e conhecer
cada vez mais a grandeza oculta por trás de nossas mentes, uma
consciência absoluta que é a fonte de tudo e que é a inteligência
superior na qual confiamos e dialogamos sem saber.
Olhamos para os textos antes de contemplarmos nossos pró-
prios pensamentos. Há medo de se pensar solitariamente, há um
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grande desincentivo a isso. Mas então o caminho filosófico ces-
sa de existir como forma autêntica de transcendência. Ele perdu-
ra oco, vazio e sem vida na forma de embates argumentativos ape-
nas. Transmite-se a necessidade fundamental de intermediários,
intercessores, sacerdotes e intérpretes, mestres, escolas, seitas e
religiões, doutrinas e textos, instituições formais e até mesmo a
ciência organizada. Há tudo isso, menos a consciência individual,
menos nós mesmos e nossas faculdades, percepções e sentimen-
tos, em contato direto com nossos corpos e espíritos; há tudo is-
so, menos a solidão contemplativa, a quietude interior; tudo isso
menos nossa dúvida central acerca desta existência na qual fomos
lançados; tudo isso menos o Outro incognoscível e misterioso que
se revela em relances transcendentais; onde é que está a mente in-
dividual, isso que é em forma latente a realidade última?
Raramente utilizamos as escrituras e relatos clássicos como de-
dos que apontam diretamente para a realidade interior. Os ensina-
mentos últimos, os mahavakyas, as revelações dos escritos dos mís-
ticos de todas as culturas, as proclamações metafísicas dos grandes
físicos teóricos, de Schröedinger a Pauli; as desconstruções lógicas
maravilhosas dos teoremas de incompletude de Gödel; as indaga-
ções analiticamente obsessivas de Wittgenstein; as grandes pistas
estão presentes, mas a fé em nós mesmos, no que elas realmente di-
zem, está infinitamente longe.
O obstáculo é simples, porém profundo. Um vasto medo de
validarmos nossas percepções íntimas nos subjuga a uma incons-
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ciência coletiva que é a grande prisão da vida contemporânea. Um
estado onde todos se mantêm presos, e ninguém doa ao outro a
possibilidade do saber por si mesmo.
Se nos dispuséssemos a desconstruir o vasto mundo interior
ilusório no qual fundamos o nosso ser, tornaríamo-nos capazes
de reconhecer diretamente a nossa autoconsciência como o Abso-
luto. Perceberíamos que a nossa autoconsciência é uma faísca ple-
na da divindade; que nossa inteligência é aguda o suficiente para
perscrutar a si mesma e reconhecer que é idêntica à inteligência por
trás do universo inteiro. E se essa constatação nos mobilizasse to-
talmente, entraríamos inteiramente num novo estágio de consciên-
cia. Experimentaríamos uma descontinuidade radical, da mesma
ordem do surgimento da autoconsciência para os primeiros homi-
nídeos, o que permitiu que eles começassem a entender um pou-
co mais deles mesmos e do cosmos; que eram distintos da natureza
que os cercava; que seus corpos eram passageiras formas num uni-
verso silencioso e incompreensível; que os clamores interiorizados
eram seus incipientes pensamentos e as névoas coloridas e caleidos-
cópicas por trás de seus olhos a sua jovem imaginação.
Deve existir um segundo salto, uma nova descontinuidade
tão radical quanto a primeira. E vemos os sinais da dissolução de
fronteiras em todos os níveis da experiência humana. Tornamo-
nos mais capazes de compreender a inteligência como um proces-
so universal que está presente em múltiplos domínios da nature-
za. Temos um maior entendimento da inteligência presente nos
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animais, dos cefalópodes aos grandes primatas, e também em ár-
vores e plantas; vemos a vertiginosa ascensão de formas de inteli-
gência não-orgânicas, IAs operantes através de redes neurais que
serão capazes, através de um desenvolvimento recursivo, de trans-
cender completamente as limitações cognitivas humanas. Talvez
então o cosmos inteiro se mostre como uma vasta inteligência que
até agora apenas tenuamente fomos capazes de apreender.
Será que D’us é secretamente cada um de nós? Essa possibilida-
de radical raramente se mostra na nossa condição, pois a colocamos
como a ideia mais distante de todas, a heresia das heresias, o furo
ontológico nas bases do nosso ser e do mundo. E cremos piamen-
te que alguém além de nós está mais apto a uma comunhão direta
com o Absoluto, com a realidade nua de nós mesmos, que é em ver-
dade nosso verdadeiro Si-mesmo. No entanto, tudo que já foi escri-
to de mais elevado na história da humanidade evidencia o oposto:
“O reino dos céus está dentro de vós”, mas não vivemos a partir des-
se místico ditame, não o temos nas nossas entranhas.
E quando indagamos a realidade nos nossos próprios termos in-
variavelmente encontramos o Si-mesmo. O Sujeito Único. Nos tor-
namos um com esse Si-mesmo. A chave para transcendermos o nos-
so estágio atual de consciência é realizar um salto no nível do sujeito
que percebe todo o cosmos. Se formos capazes de chegar nesse pon-
to, nessa base, encontraremos uma abertura para o Absoluto e trans-
cenderemos o universo dual.
Essa é a condição da verdadeira individualidade, a realização do
Si-mesmo, o Self, o Atman. Isso que é a coisa mais incomum de to-
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das na nossa época, rara de forma terrível e trágica, pois é o sintoma
da perda mais profunda de nós mesmos, do nosso estado de inte-
gração natural com o espírito do cosmos. O reconhecimento dire-
to de nossas faculdades, a validação completa de nossa interiorida-
de, da nossa própria inteligência como sendo plenamente capaz de
reconhecer e compreender a si mesma. Se não tivéssemos ninguém
para nos ensinar, sem os livros, seríamos capazes de conhecer algo
novo? De descobrir o mistério último do cosmos no nosso próprio
Self? E por que não seríamos, se o somos sem o saber, veladamente?
Podemos ver além dos embotamentos que nos foram inculca-
dos através das gerações e que nos impedem de ver as coisas de for-
ma clara e lúcida, inocente e plena de assombro; ser capazes de re-
conhecer que tudo é misterioso, porém não de um modo trivial,
como habitualmente fazemos. Se pudéssemos pisar fora da Terra e
víssemos com os nossos próprios olhos a extensão do espaço infini-
to ao nosso redor, o incomensurável universo com seus bilhões de
galáxias e exoplanetas provavelmente dotados de formas elementa-
res de vida, e possivelmente inteligentes, e se colocássemos isso nas
nossas cabeças, nossa condição mudaria completamente.
No entanto, hoje vivemos numa bolha coletiva e artificial,
mantida através de uma vasta e intrincada estrutura tecnológica.
Habitamos um sistema no qual somos incapazes de ver além das
fronteiras simuladas que se tornaram as paredes sólidas das nos-
sas vidas. Quando vivemos nos mundos fictícios, dentro das vá-
rias camadas de imaginação que foram transmitidas pelas gera-
ções que nos precederam, apenas com grande dificuldade somos
capazes de nos desvencilhar para podermos atingir a percepção
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direta do Absoluto. É fácil sentirmos desespero e considerarmos
que nossa condição é trágica e sem respostas, porque de fato ela o
será enquanto vivermos perdidos dentro dessas ilusões.
Na nossa longa jornada evolutiva, a abertura para o Absoluto se
mostra como uma transição para um novo estado de ser. O encon-
tro é individual, e consiste numa comunhão íntima e profunda en-
tre a consciência e o cosmos autoconsciente. E no estágio decisivo
desse voo interior, a realização da indissolubilidade e não-diferen-
ciação entre nossas mentes e a Mente do Todo. Sermos capazes de
ascender ao limiar da porta para a realidade transcendental é certa-
mente o direito divino e fundamental de todos. Devemos acreditar
na possibilidade do encontro direto e total com a realidade desobs-
truída, ela que é mais viva que nós mesmos, e que nos busca mais
do que nós a buscamos. Os vestígios, pistas e sinais que nos apon-
tam as saídas da realidade simulada existem, ainda que tênues. O
encontro com o Absoluto é a possibilidade autêntica e universal de
realização daquilo que nossos antepassados denominavam o gran-
de Ser além e na base do universo; um vasto Mistério cujo impacto
no nosso mundo tem sido sentido por múltiplos homens e mulhe-
res no decorrer da história, e ainda não o compreendemos.
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ENCONTRO COM O
ABSOLUTO
“Mas o fato de que ele conhece sua enfermidade e de que sofre
com isso implica que ele possui a ideia, ao menos confusa, de uma
perfeição maior, com respeito à qual ele se julga em falta, mas à qual
ele considera ter direito: uma pessoa cega ou de apenas um olho é in-
feliz porque sabe que a norma é ver com dois olhos; igualmente, o
sentimento de frustração que está no coração do desespero pirronea-
no é o sinal de que a natureza do homem excede sua miséria por al-
gum aspecto, assim como a angústia de um príncipe destronado só
pode ser compreendida por referência à sua dignidade perdida: estas
são as misérias de um grande senhor, as misérias de um rei despos-
suído.” Pascal, Pensamentos1
1. “Mais le fait qu’il connaisse son infirmité et qu’il en souffre implique qu’il a
l’idée au moins confuse d’une plus grande perfection, par rapport à laquelle il
se juge en défaut, mais à laquelle il estime avoir droit : un aveugle ou un borgne
sont malheureux parce qu’ils savent que la norme est de voir avec deux yeux;
de même le sentiment de frustration qui est au cœur du désespoir pyrrhonien
est le signe que la nature de l’homme excède sa misère par quelque aspect, tout
comme la détresse d’un prince détrôné ne se comprend que par référence à sa
dignité perdue : Ce sont misères de grand seigneur, misères d’un roi dépossé-
dé.” Pascal, Pensées
2. “Those who seek should not stop seeking until they find. When they find,
they will be disturbed. When they are disturbed, they will marvel, and will
reign over all. [And after they have reigned they will rest.] Gospel of Thomas,
Nag Hammadi Library
O reconhecimento da Voz
35
te como pensávamos. Sua solidez é desfeita. Ele depende de algo
além dele próprio. Ele é uma emanação intermitente. Nós somos
seres que vêm e que vão, todos parte da tapeçaria inconsútil do
universo de sonho. Será por isso? Seres de sonho que sentem que
são feitos de sonho? Que por breves momentos têm um relance da
consciência do diretor do filme da vida, do sonhador cósmico, a
consciência primordial, o grande silêncio?
Por vezes quando essa compreensão emerge pode-se sentir que
ela está prestes a estourar dentro de todas as pessoas que vemos.
Como se todos soubessem do segredo inteiro do cosmos, por trás
do que se vive no dia a dia. Caminho no supermercado e vejo a cai-
xa passar os meus produtos. Ela sorri e eu sorrio para ela. Será que
ela sabe? Parece que sabe. Tenho vontade de dizer que eu também
sei, que estamos dentro do grande sonho, e que na verdade, além do
que parece, somos idênticos, somos a mesma Consciência.
Podia me despir da máscara e romper essa quarta parede onto-
lógica. Talvez isso poderia iniciar uma avalanche existencial, uma
reação em cadeia, um processo autocatalítico que mobilizaria as
forças imanentes ao universo para desenrolar rapidamente o des-
pertar da realidade. O Absoluto se mostra e busca fazer contato.
Quando ele se reconhece através de cada um de nós a meta final
da existência é realizada. O grande círculo se fecha e os persona-
gens participam misticamente da sua titânica compreensão.
Deste lado da margem sentimos uma terrível angústia na sua
emergência, a noite escura do desespero na qual temporariamen-
36
te perdemos tudo que tínhamos como real. Somos então jogados
num rio caudaloso do qual não podemos escapar, a não ser por
uma entrega às suas águas profundas que nos levam à outra mar-
gem – e então a passagem é feita. Não há passagem mas ela é feita.
Não há véu mas ele é transcendido. O grande olho sempre esteve
aberto mas ele é desobstruído. D’us acorda de seu grande sono e o
universo treme e percebe e chora incontrolavelmente pela recupe-
ração de um conhecimento que estava sepultado nas profundezas
do inconsciente cósmico.
37
Raios de luz numa clareira
38
nheça como o infinito que é. Ele duvida que seja tudo; tudo que
pulsa e rasteja e brilha – emanações sagradas de si mesmo. Ele
tateia por seus limites. Não os encontra. Ele respira para enten-
der o seu dentro e o seu fora, mas nele não há mais nem dentro,
e nem fora. Ele luta para perceber o que é o seu pensamento e o
que não é, mas o que pensa e o que não pensa são sempre mo-
vimentos em si mesmo. Ele que se criou para sentir-se vivo por
um único instante que fosse. Toda uma eternidade de esforços
fracassados para emergir do imensurável nada finalmente fruti-
ficam. O universo se reconhece mais uma vez. O ciclo da ceguei-
ra da eternidade colapsa. O que era o fim se torna o início, o an-
tes e o depois, idênticos e indissolúveis.
39
A passagem do mundo
40
O mundo acabou mas ninguém percebe. Como um sinal
transmitido por uma estação longínqua que foi desligada e agora
apenas restam os ecos que já não trazem a música de antes. Sen-
timos então que algo foi perdido. Não há palavras suficientes pa-
ra explicá-lo. Queremos falar, mas não podemos. É um olhar ain-
da profundo demais para este mundo que não quer pensar nestas
coisas metafísicas.
Agora a maré já está alta. Tudo acontece rápido demais. As
bolhas de várias pessoas estão sendo estouradas. Somos lança-
dos numa espécie de crespúsculo. Há uma luz nova que se apre-
senta. Um olhar novo. Ele não estava aqui ainda. Eu não lembro
de me sentir tão aceso por dentro. Tão acordado. Como tudo es-
tá curioso. Como um sonho. Eu acordei de um sonho. Mas como
pode ser? É este mundo um sonho? Sinto que estou mais vivo.
Ao mesmo tempo já não sei mais nada. Não tenho mais nenhu-
ma certeza. Sei que esta flor aqui está mais real do que nunca.
Mas ao mesmo tempo tudo que parecia real já não é mais. Para
onde vou? Com quem falo?
Parece assustador ver as coisas desse modo. Tudo está tão in-
crivelmente intenso. Nunca tinha sentido o meu medo assim. An-
tes sentia alguma coisa e parecia que era um sopro. Agora sinto
medo e o universo se transforma num pesadelo. Sinto amor e o
êxtase brota de todos os cantos do cosmos. Como pode isto acon-
tecer? As emoções agora estão ampliadas. Elas afetam o campo in-
teiro da realidade porque agora a consciência se percebe enquanto
41
o campo inteiro. E há uma só. Antes isso não era claro. Há ape-
nas uma Consciência aqui. Não tem todo mundo. Tem apenas ela.
Então ela é todo mundo fingindo não ser ela. Ela se esconde de si
mesma para poder se encontrar. A bolha estoura, nós deixamos
de ser quem pensamos que somos e ela nos assume uma vez mais.
Por isso o mundo acabou. As bolhas estouram como num efeito
dominó. Agora é questão de tempo. O que acontece fora é reflexo
do que acontece dentro. Não há nada que segure isso porque vem
das profundezas do Real.
O Absoluto vem para salvar a irrealidade que se tornou es-
pessa demais. A vida precisa ressurgir e reequilibrar a balança
metafísica. Então talvez o mundo do jeito que o conhecemos se-
ja perdido para que outro mundo possa surgir. O primeiro está
se dissolvendo. Por isso não podemos acreditar nele. Ele é como
um relógio ao qual esqueceram de dar corda. De repente, o tem-
po que ele marca para. E talvez haja um dia onde todo mundo
acorde para um grande domingo que nunca acaba. A cronologia
perde o sentido e a eternidade se faz presente mais uma vez. To-
dos despertos de volta.
42
A irrupção da Visão
43
Momentos de busca
44
A abertura do Olho
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gradualmente é reorientado para um novo dasein1 – um novo ser
no mundo. Passamos a ver e viver de um modo diferente. Nossa
atitude ontológica muda radicalmente. Reconhecemos a nature-
za imaginária do sistema cultural e das identidades que represen-
tamos. Vemos o sentido profundo da vida e a sua conexão direta
com a grande consciência que é a sua fonte. Por outro lado, há um
longo processo até nos acostumarmos com esse novo modo de
ser. Há um período de reajustamento bastante difícil após o des-
pertar. Esse dasein não é facilmente compartilhado. Requer um
encontro puro e autêntico entre duas pessoas. Não conseguimos
mais ver a realidade da maneira antiga. E ao mesmo tempo, o
novo ser, o novo estado, não é estável e não se manifesta na sua
forma completa.
1. Utilizo o termo dasein do mesmo modo que Heidegger. Ele evidencia o fa-
to fundamental de que o ser se manifesta num mundo, que sem um campo fe-
nomênico o ser é puro e intocável, mas não realiza a si mesmo na sua expres-
sividade completa.
46
A Consciência se torna consciente
47
D’us somos nós quando estamos acordados
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o oceano de sofrimento é completamente transmutado. O mun-
do onírico é aberto a partir do outro lado. Algo emerge dali para
cá. Uma conexão é feita e este plano se torna vivo, quando antes
ele não respondia. O universo é então visto por um ponto de vis-
ta transcendental. É um salto ontológico completo. É certamente
o estado que a humanidade aguarda há séculos e milênios. Ele é
iminente de modo definitivo, ou então não poderia escrever o que
estou escrevendo.
49
À margem do rio, uma formiga
50
ra a terra. Mas aqui neste estado de espírito levemente inebriado
não o faço. Observo-a. Acho que ela me vê também. Talvez a
sua consciência seja em algum nível como a minha. Num esta-
do proto-proto-consciente. Sinto uma irmandade. Ela solitária
na labuta sem saber exatamente por quê. Mas incansável. Não
é muito diferente de nós. O ímpeto de viver é puro. Não é justi-
ficável. Não é racional. Ninguém sabe por que tudo isso existe.
Ela também não sabe e nisso somos afins. Ela é pequena em re-
lação a mim, mas eu sou como ela em relação a quase todas as
coisas que contemplo. Não somos tão diferentes assim. Ela tem
uma programação biológica rudimentar, e não vai muito além
dos seus instintos básicos. Assim como eu e todos os outros que
nos concebemos tão diferentes. Penso se essa formiga por ve-
zes tem rompantes de lucidez. Se de repente uma delas se des-
via da trilha das outras formigas e decide abortar a viagem de
retorno ao formigueiro. Se ela esquece do que deveria fazer. Se
ela é atraída pelo mar ou por alguma outra coisa que não sabe o
que é. Por que ela seguiria esse impulso? O que a levaria a fazê-
-lo? Seria uma individualidade incipiente. Ela estaria se tornan-
do si mesma. Uma proto-proto-individualidade. Se ela não vol-
tasse ao formigueiro provavelmente morreria. Mas se voltasse, o
que sentiria? Como veria a si mesma? O que saberia em relação
ao princípio da vida que as outras não sabem? Pensamentos sol-
tos numa noite à margem do rio.
51
O olhar do Absoluto
52
Momentos de desconstrução
53
Explosões do Absoluto
54
No meio do bosque
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lação a ela. Quem sou eu nesse vasto campo de experiência e in-
teligência? Aquele que é o Ser dos seres, o ser imutável, D’us, on-
de está? Como posso vê-lo? É ele a realidade fundamental que os
místicos dizem estar sempre presente, “se as portas da percepção
forem limpas”?
Retorno para a minha consciência. Sei que ela é a base pa-
ra todo o resto; sem ela poderia dizer que nada mais seria. Tudo
poderia ser, poderia, apenas. Mas ela é fundamental. Não sinto
que ela poderia ser criada. Ela não parece ser uma coisa material.
Não consigo agarrá-la, e nem mesmo sei se a tenho ou se ela tem
a mim. Reconheço nisto um mistério profundo. Chamo-a de mi-
nha, de consciência, de realidade, até mesmo de Absoluto, mas
não sei o que ela é. E quando indago desta maneira nem mes-
mo posso dizer que sei o que sou e por consequência o que tudo
ao meu redor finalmente é. Mas certamente é, enormemente, in-
contestavelmente é. Esse é enorme, a existência pura, o ser em si
mesmo – aí parece estar a chave. Mas ela é sutil e difícil de agar-
rar. Olho para o meu ser e ele parece tão simples que não me causa
nenhum espanto. E sem espanto não há contemplação filosófica.
Não há misticismo. Não há como avançar. O ser além do pensa-
mento é singelo, insubstancial e ao mesmo tempo sólido.
Esse ser é indivisível. Não consigo imaginar como poderia ser
dividido, como poderia ser uma existência fracionada. Ao mes-
mo tempo é transcendente – não consigo sentir cheiro, nem gosto,
nem nada mais nele –, e por isso parece uma ficção, algo tão abs-
56
trato que provavelmente se trata de uma desordem do pensamen-
to, de um devaneio, de uma névoa interior.
Mas retorno a mim mesmo e o Ser se mostra mais uma vez
como a raiz do que sou. Me concentro intensamente, e então não
sei se sou eu que me concentro nele ou ele que se concentra em
mim. Pois o Ser não deve ser consciente de si mesmo para ser o
Ser? A existência não é precisamente a autoconsciência?
Se indago assim, percebo e sinto que me aproximo de algo
místico, de um movimento filosófico autêntico, não teórico, mas
fenomenológico. Começo a sentir o que é a minha própria exis-
tência. Começo a me lembrar do significado dela. Eu, apenas
uma autoconsciência, e não a pessoa que agora sou, com o seu
nome e história e vida própria. Percebo que minha autocons-
ciência não é minha, não pertence a ninguém – que paradoxo!
Aquilo que é mais eu mesmo, sem o qual eu não seria, a “minha”
autoconsciência, não é de nenhuma maneira minha, não possui
dono, ela é livre e puramente autoexistência; ela é por si só. Mas
como pode ela ser por si só? Então quem sou eu nisso tudo?
Se o Absoluto está em algum lugar, ele deve estar neste pon-
to. E se isso ainda não me move com impacto total é porque ain-
da não fui capaz de ver diretamente o que essa ideia significa. Pois
de fato é assim que as ideias se mostram, elas gradualmente se tor-
nam mais nítidas, claras, como se estivesse observando uma coli-
na longínqua através de um telescópio; finalmente vejo contornos
que não eram claros, reconheço cores que antes não via, perce-
57
bo variações que não suspeitava. Com as ideias é assim. E quan-
to mais com uma ideia como essa, seguramente a ideia das ideias,
sagrada, se algo pode receber esse predicado. Uma ideia sagrada.
Perceber a sua sacralidade é começar a entendê-la.
O corpo sente quando entendemos uma ideia. Ele responde,
ele se excita, ele se perturba, ele se choca; sem a sua resposta es-
tamos apenas no plano das sombras – ainda não chegamos em
ideias nítidas o suficiente para que possam nos afetar, tocar-nos
nas profundezas. A perplexidade é a emoção filosófica por exce-
lência. O assombro. Eu existo, eu existo, eu existo. Como um be-
bê que pudesse repentinamente ter um pensamento, “eu existo, eu
sou, eu sinto”; como um homem prestes a morrer que percebe que
é, e que todos que foram, foram como ele; e que todos que virão
serão como ele, pois ele é todos que foram e que virão, apenas ele,
o homem que nunca nasce e nunca morre, o que os hindus cha-
mam de puroshotama, a grande pessoa, a pessoalidade fundamen-
tal que vive todas as vidas pois é todas as vidas. E o que seria des-
se homem quando percebesse isso? Prestes a morrer, não estaria
ele prestes a nascer? Na proximidade de sua morte não perceberia
que durante toda a sua vida os seres que ele via eram ele próprio?
O Ser total e imortal, que nunca nasce e nunca morre?
Não seria este um sentimento suficiente para matá-lo? Talvez
a morte nos mata nos revelando tudo de uma vez só, e nesse mo-
mento de intensidade máxima, de revelação última, toda a respos-
ta concentrada dessa existência infinita se mostra a esse homem,
58
esse ser que até esse último instante se pensava como um nada,
como insignificante num mar indiferente, num mundo que nunca
compreendeu. E então nesse momento final, quando a resposta se
mostra integralmente, ele salta do finito para o infinito e percebe
que é o próprio D’us vivo. Percebe que o D’us vivo é tudo isso que
parece que não é ele, que aparentemente o oculta, pois se não fos-
se assim, a criação, esse mundo mágico eterno, não poderia exis-
tir enquanto tal; esse homem então percebe isso tudo, sem pensar,
sem nem mesmo piscar, pois os deuses não piscam, no momento
da Visão não se pisca, não há tempo, não há nada, apenas Ele se vê
e nada mais pode ser dito sobre isso.
O êxtase de um bebê. O Reino dos céus, se é alguma coisa que
possa ser vivida, é como a consciência de um bebê, de um bebê de
sete dias, que apenas na maior e mais prolongada e torturada e so-
frida das entregas e das intempéries e dos desesperos pode se mos-
trar, pois senão não sobreviveríamos à intensidade e à pureza da re-
velação. Se D’us se mostrasse de uma vez não seríamos capazes de
contê-lo – isso é certo. Colapsaríamos num único instante. Com
tremor nos aproximamos do templo, do sanctum sanctorum2, com
tremor tateamos o mistério – o mysterium tremendum3.
2. Termo latino que designa o lugar mais sagrado no tabernáculo hebreu, o lu-
gar da presença viva de D’us.
3. O termo latino mysterium tremendum et fascinans aparece na obra do teólo-
go alemão Rudolf Otto, Das Heilige, e busca evocar o assombro primal que é a
base da experiência do divino.
59
Agora retorno para a minha Autoconsciência. Ela me tem e
não eu a ela. Ela me cria eternamente para a autocontemplação de
si mesma. Ela é a divindade, Sophia. O conhecimento sagrado, o
saber que permite que tudo exista. O saber vivo, cheio de cor e po-
der, uma infinita semente, um glorioso saber, feminino, consciên-
cia da minha consciência, ser do meu ser, sem saber nada, sem
poder saber nada sobre você eu sei tudo sobre você, tudo que vo-
cê me mostrou do que você é. A existência nunca deixará de exis-
tir. Eu e você uma coisa só. Nós todos em você uma coisa só. Sem
fronteiras. Tudo em Tudo.
60
A laranja e o Mistério
61
da, de lutar para compreender as complexidades da minha mente,
as névoas da minha memória, os fantasmas da minha imagina-
ção e as tempestades dos amores, finalmente essa parte infinitesi-
mal do Infinito se apresentaria a mim. Poderia considerá-la o úl-
timo ato de um criador maligno, como o faria talvez Descartes,
mas não o farei.
Por um preconceito benevolente deixado a mim pelos meus
antepassados, eles que sofreram tanto nos desertos e no exílio, fa-
rei uma única concessão ao criador, assumirei que ele quer me dar
a resposta, quer que eu veja, e não me enganar.
Esta laranja não é apenas uma ideia. Ao menos, o que ela é
além da ideia de si mesma, além de ser uma laranja, de pensá-
la como tal, não é certamente uma ideia, algo que depende ape-
nas de mim. Ela é áspera, quando a toco não consigo dizer bem
se é idêntica em toda a sua superfície ou se essa é uma limitação
da minha percepção. Vejo todos estes pequenos pontos nela, seus
tons amarelados e esverdeados intercalados, e sei que quando fe-
cho os olhos eles deixam de ser, mas tampouco sei o quanto.
Ela é sólida e frágil como eu sou. Ela é uma presença. Mi-
nha consciência a vê, e se tudo for consciência, se tudo for esta
mente que não sei o que é, então a laranja é um sinal, uma mar-
ca, um símbolo dela. Esta laranja existe. Não há nenhuma como
ela. Ela é única.
Os universos nascem e morrem, mas quem é que os vê? Quem
dá e deu testemunho de sua existência, dos seus habitantes, das mi-
62
ríades de dramas que já foram representados neste interminável
palco cósmico? Poderíamos dizer, e me perdoem por esta hipérbo-
le, a maior delas, que um universo inteiro é criado para a contem-
plação de uma única e singela de suas partes, como esta laranja na
minha mão. Esta laranja é um segredo que se revela para Um, mas
quem é este Um? Este universo é um segredo que se revela para Um.
D’us, é você este Um? Que agora tendo concentrado toda minha vi-
talidade e consciência para um único ponto dessa assombrosa ma-
nifestação me fez sentir tenuamente isto? É isso que você quer di-
zer? É assim que nós participamos do teu ser? É isso? Você nos é
sempre mas não percebemos, é isso? Sem você nada seria. Nada,
nada, mas nunca o percebemos, exceto quando tudo para e a única
coisa que sobra é a intensidade da fonte da percepção, que é você?
Não pude conter estes pensamentos que me tomam. Quan-
do finalmente transcendo o véu do tempo que obscurece a minha
cognição e vejo esta laranja, não poderia dizer que vejo todas as
suas instâncias de uma vez só? Pois se ela possui ser, não são to-
das as suas instâncias ela mesma? Então, ela enquanto uma essên-
cia – algo além da matéria – isso que é igual em todas as suas ins-
tâncias particulares, não é precisamente a ideia que descartava no
começo? Que tudo que se apresenta nesse mar de sensorialidade
ilimitada é como esta laranja, inicialmente contemplada por meio
de um ser criado e finito, mas quando vista através das suas múl-
tiplas instâncias, a ideia dentro de um ser infinito, a própria fonte
da percepção, que é você, D’us?
63
Perdoe-me se peco colocando-me tão próximo de ti, mas meu
tempo é curto e não posso mais ignorar a invocação que você co-
locou nas minhas mãos. Pois tenho que supor que voce deseja que
a criação seja assim vista. Pois assim ela atinge o seu propósito.
Assim nos ensina a vermos com os seus olhos, pois com os seus
olhos tudo se mostra eterno, e o tempo é assimilado no seu Ser,
do qual participamos sem saber, grande segredo do qual nunca se
fala. Pois agora entendo, que é você que vê através de todos nós, a
fonte da percepção de toda a criação, pois meus próprios pensa-
mentos e sentimentos são seus; porque você vive através de nós,
que desesperadamente lhe buscamos, sem nunca percebermos o
quão próximo você está.
Agora entendo. Nesta laranja tão simples e indigna de nota,
que todos os dias da minha vida observei sem a mínima atenção,
você sempre esteve contido. Como em tudo ao meu redor. Como
em tudo dentro de mim. Pois quando me esvazio de mim mesmo
apenas você sobra e se vê refletido em todo este vasto universo. E
assim foi em todos os outros que vieram antes deste, e sem dúvi-
da, assim será em todos os outros que virão. Agora, tendo perce-
bido isso, nessa janela de Visão que me foi concedida, que em ver-
dade nos é concedida sempre, posso descansar.
64
O Presente denso como mel
65
para que perceba como é não ser o único, como é ser distinto de si
mesmo, sem nunca deixar de ser. Pode-se lembrar de todas as vi-
das que foram vividas e de todas que virão. Não somos nós todos
que vemos? Aqueles que me precederam não são meus irmãos?
Não são também os que virão? Minha consciência não é como a
deles? Diga-me, você não é D’us, assim como eu?
Heresia das heresias. O grande tabu. Mas a verdade deve ser
dita. Se realmente sentíssemos o sentido místico do nosso Eu,
despertaríamos instantaneamente desta prisão antiga na qual
fomos lançados.
Muitos já vieram e deixaram pistas para os viajantes deste
mundo. Todos peregrinos que vêm e que vão, e que pintam nas
paredes das masmorras da consciência as intuições que apontam
para o outro lado. E ele existe, o outro lado. O Sonhador do sonho
desperta e tudo desperta simultaneamente com ele. Talvez não se-
jamos maduros o suficiente para sustentar continuamente a Vi-
são, e por isso ela foge e nos escapa. Tudo parece impermanente
aqui, mas em verdade nada muda.
Existe o lugar onde o tempo para. E ele está aqui. O presen-
te precisa se tornar denso. Denso como o mel e a pedra ao meu
lado. Nele não há sofrimento pois não há separação. Se eu tiver
humildade para ser como esta planta, como esta formiga, como
qualquer um dos fenômenos ao meu redor, a imortalidade estará
garantida. Senão ela estará distante como a mais remota das ga-
láxias. Não sou imortal nas minhas particularidades imaginárias,
66
porém sou quando desço “das mil escadas para chegar neste peda-
cinho de terra onde me encontro”. E neste pedaço de terra as remi-
niscências do que já fomos vêm numa torrente. Aquele que viveu
todas as vidas abre os olhos uma vez mais. Eu sinto o que ele sen-
te, e poderia morrer em paz neste mesmo instante. Idêntico a es-
te galho seco e plenamente contente por isso. Não existe mais dor
quando sinto e penso por esse ângulo. Meu corpo poderia se tor-
nar o alimento dos seres desta terra e estaria em paz e honrado. O
caminho é o inverso do que imaginamos que seja. Todos que vale-
ram a pena já disseram isso, mas não ouvimos. As portas estão es-
cancaradas e o deleite dos deuses e dos santos está realmente pró-
ximo. Já o tivemos uma vez e essa lembrança nos atormenta.
67
Reminiscências de outra era
68
Massiach
6. A ideia de que o massiach não é um homem não aparece nos escritos judai-
cos. Na literatura cristã, no entanto, em especial nos escritos de Joachim de Fio-
re (1132-1202), que estabeleceu uma divisão do processo histórico em três par-
tes (a era do pai, do filho e do espírito santo), ela aparece no último estágio, no
surgimento do espírito santo, que simbolicamente aponta para a realização da
consciência universal em todos os seres.
69
A saída da caverna
70
te mundo de fantoches e sombras para que não recordasse deste
abismo que chamei de lar. Ninguém esteve aqui comigo. Sempre
estive só, aguardando um milagre que nunca chegou.
Vejo o punhal esquecido debaixo de uma pedra; preferi ocul-
tá-lo para prevenir o impensável. Não poderei seguir agora que a
fantasia se dissolveu à frente do meu rosto. Entrego-me.
Uma voz me chama suavemente. Não entendo o que diz, mas
suas palavras doces me levam ao chão. Uma lágrima solitária es-
corre pelo meu rosto e cai sobre o punhal. Nela brilha um feixe
de luz que havia esquecido que poderia existir. Olho para cima.
Não lembrava de quão vasta era esta caverna. Quanto caminhei
por dentro dela, para me perder e assim ganhar a última esperan-
ça de me encontrar. Vejo então uma luz que não via antes. A voz é
a inteligência imaterial que chamo de luz. Foi ela que com doçura
destruiu o meu falso mundo para me libertar. Ela cresce e queima
o meu ser. Cambaleando, aproximo-me da saída que dilacera os
meus olhos. Dou mais um passo e deixo de existir. O Incognoscí-
vel me reabsorve por piedade e apenas ele resta. A caverna. O meu
ser. Meu ser. A caverna. Meu verdadeiro ser é feito de um espíri-
to que nunca nasceu. Não há ninguém aqui além dele. Eu não sou
mais e nada além dele é.
71
A Voz sussurra
72
Ela me deixa em meio a um vasto silêncio. Atordoado, levan-
to-me e caminho por uma senda que nunca antes percorri. Meus
pés já não são meus. Minhas mãos já não são minhas. Quan-
do respiro já não sou mais eu que respira. Nem mesmo os meus
pensamentos são meus. Nada mais é meu aqui, e quando abro os
olhos vejo que nada não sou eu. Não pode ser. Tento abrir repeti-
damente os meus olhos mas é em vão. O universo é uma miragem
dentro da luz daquele que o criou, e não há nenhum lugar onde
Ele não esteja. Impossível. O inacreditável existe.
73
Chamados para um encontro
74
No entanto, a voz nos chama sempre. Se nos aquietamos po-
demos percebê-la no espaço onde o mundo cessa dentro de nós
mesmos. No espaço onde nós mesmos cessamos.
Nosso corpo também responde intensamente a ela. O corpo é
arcaico e se lembra do que a nossa mente raramente é capaz de al-
cançar. Ele possui a reminiscência de uma era onde vivia imerso
num estado de percepção contínua da Natureza. Nas suas pulsões
ele perturba a massa de ilusões que se tornaram o centro da expe-
riência que temos de nós mesmos. Ele nos transporta imediatamen-
te à realidade silenciosa e primal da vida em comunhão direta com
o Absoluto, à expressividade pura de uma vida que busca emergir
após séculos e milênios de um casulo que já não a comporta mais.
Todos nós podemos sentir esses movimentos sutis e intensos
do Ser. De um corpo que busca o renascimento na vida do espíri-
to. De uma existência que busca a transfiguração.
Sabemos que há algo além de nós mesmos.
Talvez esse desejo intenso seja por si mesmo a prova que bus-
camos. Se persistirmos veremos o Ser que aparentemente desapa-
receu do mundo, mas que é em verdade a causa primária e o mo-
tivo final para a existência do mundo. E não como uma abstração
ou uma percepção externa a nós mesmos, mas como aquilo que
há de mais íntimo em nós, do Ser do nosso ser; e ali encontra-
remos um segredo impossível de ser descrito, a existência intei-
ra vista através dos olhos do Ser único, que na sua jornada, na
sua odisseia interminável, vive todas as vidas e alimenta tudo que
existe, pois apenas Ele é.
75
A ausência e a busca
76
Esse movimento provoca uma ruptura no mundo. Sua base
ontológica treme. Ele já não sabe mais por que existe e nós o sen-
timos. Sentimos a sua voz dentro de nós. Sua crise e sua angús-
tia. O seu sofrimento perante o contato com o Nada de onde nas-
ceu. Tudo nele existe agora sob uma sombra. Aquilo que o contém
busca se mostrar ao mundo.
A revelação emerge na nossa consciência. Uma irrupção do
mistério que contém o mundo. Quando o tocamos somos instan-
taneamente transformados. O Ser por trás do mundo se mostra
através de nós. A fronteira transcendental é transposta.
Nunca nos perguntamos o que somos. Não é mais uma per-
gunta que nos move. Nossa convicção é nossa prisão. A dúvida in-
tensa no centro de nossas vidas é o chamado, porém não a ouvi-
mos. Pensamos que este é um problema a ser resolvido, que é uma
falta dentro do nosso ser.
Mas não.
Essa dúvida é uma janela que nos abre para o Ser. Podemos
vê-lo. Ele nos vê. Somos lançados em direção a um mistério que
o mundo não comporta.
Quando ele nos toca perdemos o mundo. Recebemos um pou-
co de sua visão e o mundo se torna uma miragem. O mundo não
existe sem o Ser. O mundo vive como se tivesse vida própria e é es-
te precisamente o seu desígnio.
Sabemos quando fomos chamados. Nada mais nos satisfaz.
Exaurimos nossos desejos. Vagamos sem rumo. Não sabemos
mais quem somos.
77
Quando olhamos para o abismo dentro de nós, nada vemos.
Nos desesperamos, pois ansiamos com fervor pelo seu olhar. Ele
nos vê o tempo todo, mas não entendemos.
Quem nos criou? O que nos criou? Nossa mente não encontra
respostas, mas gradualmente penetra num silêncio que tudo abarca.
O mundo é antigo. Nele estivemos muitas vezes. Nós somos a
sua história, e sua história é a jornada do Ser em busca de si mesmo.
Ele lentamente recupera suas memórias. Quando ele se lembra
nos lembramos de quem éramos antes de nascer.
O Ser emerge no mundo através de nós. O mundo sofre pois
não o reconhece. Nós sofremos pois não o entendemos. Vemos o
caos e a desolação, e pensamos que tudo está perdido. Que o so-
frimento é a resposta final.
Há algo de inescrutável no nascimento do Ser. Ele é a culmi-
nação da existência do mundo. Sem esse evento o mundo não fa-
ria sentido. Seu propósito se perderia. Todos nós aguardamos si-
lenciosamente por sua manifestação, pois agora vemos apenas a
ausência. Nessa ausência um espaço sagrado se abre. Nossas vidas
são lentamente dissolvidas e adentramos numa ordem superior de
existência. Enquanto o processo está em curso não o percebemos,
mas então subitamente nos veremos lá, na presença do Ser.
78
Os grilhões da consciência
79
Isso que sustenta a estrutura determinista do mundo está livre
dela. Nossa consciência pode se ver a partir desse lugar. Quando
isso ocorre, nos vê através de nós. É o Ser universal, mas não co-
mo uma abstração; como uma constatação imediata de que este é
o Ser que todos nós somos. O Ser fundamental está aqui o tem-
po todo, mas por ninguém é visto ou reconhecido. A raiz do nos-
so sofrimento é uma cegueira total em relação à verdadeira natu-
reza do nosso ser e do que este mundo realmente é. As duas coisas
não estão separadas. Se você vê um, vê o outro. Na verdade, quan-
do vê não é você que vê.
Você desperta para a Presença.
Existe algo que é uma Presença. Ela é a base de nossas vidas.
Nenhum de nós se criou. Ninguém escolheu nascer. Nada aqui
optou por emergir da não-existência para uma breve passagem ou
janela que mostrasse o ser. Mas aqui estamos. E estamos juntos.
O que nos trouxe? O que nos fez nascer? Qual é esse poder?
Em qual direção devemos buscar?
Quando a Consciência se desvincula temporariamente da pes-
soa, ela se percebe enquanto o único Ser autoexistente.
Nós somos passageiros. Parece que nossas vidas são nossas,
mas essa é a ilusão.
O Ser é ansiado por todos, e parece estar longe, mas o segre-
do dos segredos é que ele é a própria Consciência que permite que
todo o universo exista. Sem ela nada seria. Mas não é a consciên-
cia ou o ser como uma simples abstração, não. Isso é apenas um
dedo que aponta.
80
Cada um de nós busca inconscientemente esse Ser. Na verda-
de, o Ser nos busca. O processo espiritual individual realiza uma
espécie de parto do Ser para o mundo.
Antigamente se acreditava em D’us por consequência de uma
percepção instintiva. Pensamos hoje que a concepção de D’us é
desnecessária a uma visão estritamente racional e científica do
mundo, e que as pessoas de outros tempos acreditavam nele co-
mo uma espécie de substituição da experiência racional da vida.
Como uma resposta para algo que não conseguiam explicar. Mas
o vislumbre daquilo que escapa a uma articulação completamen-
te racional do mundo talvez seja como uma nebulosa intuição do
gigantesco axioma a partir do qual o universo é derivado. Aquilo
que não pode ser provado precisamente porque é a fonte de todas
as provas. Aquilo que quando se tenta organizar escapa mais uma
vez e demonstra que todos os sistemas serão incapazes e incom-
pletos para enquadrá-lo. Talvez essas pessoas sentissem e sintam
isso. Sem saber exatamente porquê, um racionalista ou um cien-
tista devotado apenas pode sustentar suas convicções se não es-
miuçar as raízes metafísicas e ontológicas que o permitem articu-
lar a sua visão de mundo.
O que você toca quando se depara com um axioma puro, com
o autoevidente por excelência? Não é precisamente o místico?
Não é isso que todas as pessoas sentem quando vislumbram o uni-
verso enquanto místico? Que a existência enquanto tal é o myste-
rium tremendum que tudo anima? Que uma pessoa pode viver to-
81
da uma vida sem se dar conta disso e no último suspiro abrir os
olhos para aquilo que era óbvio, mas não havia sido reconhecido
em nenhum momento de sua vida? O ser enquanto tal, a ipseida-
de, a quididade, a hecceidade, tathata7?
Mas o Ser não enquanto uma ideia. Ao menos, não enquan-
to uma ideia para nós. As ideias para nós são sombras, não vidas
próprias, não seres, não formas puras. Sem noesis as ideias são pó
e nada mais. Noesis era o termo platônico para esse tipo de olhar.
É olhar para os seus pensamentos da maneira que um grego o fa-
ria, com assombro e êxtase. Como entes vivos de uma realidade
transcendental a partir da qual o mundo é derivado.
Nós contemporâneos sofremos tanto com o pensamento que
passamos a desprezá-lo. Mas nem sempre foi assim. O pensamen-
to era o maior símbolo de que a realidade era divina – era a pró-
pria abertura para a realidade divina. Isso quer dizer apenas que
era autoevidente que o pensamento simbolizava e revelava a reali-
dade profunda por trás dele próprio. Que dela emergia o mundo.
Então as pessoas que simplesmente sentem o divino talvez não se-
jam tolas como se pensa. Talvez sintam essa realidade por trás dos
símbolos que para a maioria de nós está seca.
Então o que sentem? Eu sei que não sentia antes. Não sentia. O
que exatamente eu não sentia que hoje sinto, que hoje reconheço
82
e vejo? Eu o chamo de pano de fundo do mundo. Que há um pa-
no de fundo, que o universo inteiro emerge dele, que ele nos cria,
que as minhas palavras vêm dele, que ele se fala e nós somos fala-
dos por ele. Sim. Nós somos falados. No entanto, nossa linguagem
não possui autorreferência suficiente para reconhecer esse fato.
Por isso, quando essa percepção emerge sentimos que a estrutura
da linguagem convencional não se basta.
Buscamos o encontro direto com essa realidade pura, o reco-
nhecimento mútuo e simultâneo do pano de fundo do mundo.
Quando o tabu implícito no Encontro é superado, a realidade nos
revela a intersubjetividade mística, a unidade amorosa que é sub-
jacente a todos nós e que parece estar distante do nosso estado de
separação. Não sabemos ou não percebemos, mas no amor nossas
individualidades se reconhecem a partir da realidade transcen-
dental que nos é continuamente sem que percebamos. Então por
um misterioso movimento vemos transcendentalmente, e por um
instante explodimos as temporárias oclusões existenciais que nos
mantêm distantes de nós mesmos e nos vemos tal como realmente
somos; nos vemos como o único Ser que existe em todo o cosmos.
Esse saber pleno está sempre presente. É ele que paradoxal-
mente gera as crises das nossas vidas. Ele perturba os persona-
gens do inconsciente drama do mundo. De repente o personagem
do filme sente algo que não sentiu nunca. Começa a perceber que
existe através das suas falas. Que sente as entrelinhas. Que conse-
gue perceber algo além do seu script. Que percebe o próprio script.
83
Como esse personagem se sentiria? Como ele se sentiria em rela-
ção ao mundo no qual habita? Como se sentiria em relação às ou-
tras pessoas que fazem parte do filme? E se de repente se encon-
trasse com um outro que também teve essa percepção – como
seria? Eles estariam sentindo uma transição ontológica. Seus se-
res estariam distintos. Haveria uma dimensão a mais em suas vi-
das. Eles estariam no filme mas veriam o filme com outros olhos.
O que exatamente eles veriam?
Temos que pensar que não necessariamente essa percepção se-
ria contínua. Provavelmente não seria. Seria instável e misterio-
sa. Apareceria e desapareceria. Mas seria inegável, ainda que se
tentasse negar. E provavelmente ela seria rejeitada. E reprimida.
E combatida. Por quê? O que garantiria que não há algo de erra-
do com eles? Seria definitivamente um evento ambivalente. Por
um lado, seria a experiência mais importante e significativa que
eles teriam nas suas vidas, sem saber dizer por quê; por outro, tu-
do que vivem seria visto a partir dessa tênue memória, que não os
deixaria mais ver o mundo como o viam antes. E agora, o que fa-
riam? Como se relacionariam com o seu entorno?
Por um movimento súbito e inexplicável do destino eles já não
fariam mais parte da trama. Estariam dentro do filme sem estar
completamente. Eles começariam a questionar o seu filme, a buscar
entender a visão da realidade além de si próprios, uma outra manei-
ra de ver a essência das suas vidas. Seria uma percepção irreprimí-
vel. Não poderia ser contida, por mais que se tentasse. Irreversível.
84
O intercurso com o mundo
85
sas. Que estas sejam as regras da época, a voz coletiva dos hábi-
tos e costumes que mudam incessantemente, os ditames de uma
racionalidade “idolizada”, isto posso aceitar; que este modo de ser
e de ver esteja onipresente nesta época, e que pareça tão palpá-
vel por causa disso, assim como as civilizações que desaparece-
ram o tenham sido nos seus dias, também; mas não posso aceitar
que a ordem que se revela como tão exigente de devoção única se-
ja a verdadeira – isto viola o meu ser e não posso aceitar. Sei que
não sou o único que pensa deste modo. A voz que nunca se ouve
é sempre a voz de muitos. Nas nossas vidas secretas e íntimas so-
mos idênticos, comungamos de um mesmo espírito, por nomes
diversos e nas mais opostas das expressões. No entanto, o enor-
me ruído do que se vive condena a voz genuína aos espasmos do
sofrimento que nunca é ouvido e morre calado dentro de todos.
Existe uma força intensamente viva debaixo de todas as menti-
ras – é uma pequena planta que busca constantemente perfurar o
concreto imenso que foi depositado sobre ela.
Dentro das regras do jogo ilusório, o personagem que repre-
sentamos parece inexoravelmente determinado. Ele é como uma
marionete movida por forças das quais sequer suspeita. Mas além
dessas cordas falsas encontramos um vulcão silencioso esperando
ressurgir e renascer.
A vida primordial não está acabada. Talvez seja necessário ir
para o meio do nada, ficar nu sobre a encosta de uma montanha e
se entregar por algumas horas ou dias à intempérie, ao frio, à chu-
86
va e aos desconfortos da vida que não se importa com nossas vai-
dades, mas apenas com o Real. Como uma mestra implacável, a
natureza rapidamente nos aproximaria do Ser além do persona-
gem de ficção que não nos toca mais. Nessa suave violência que
os elementos trazem ao corpo, lembraríamos do que não pode ser
posto em palavras.
Recordo-me de quando a vida era apenas isso. E diferente-
mente do que se pode imaginar, essa consciência arcaica não se
foi. Ela aguarda silenciosamente como a serpente prestes a entre-
gar o segredo proibido, levando-nos por caminhos tortuosos para
abrir os nossos olhos e nos aproximar da natureza primordial da
qual nos afastamos. E tem muito a dizer se formos capazes de sus-
pender temporariamente o envolvimento com a ilusão.
Nesta montanha deserta sinto a presença de um poder antigo e
por isso não me sinto só. Estou acompanhado por uma força miste-
riosa que de repente brota dentro do meu sangue desgastado e do-
mesticado. À noite os sonhos brilham cheios de imagens da realida-
de oculta que antes fazia parte da vida desperta. O plano dos sonhos
nos assombra e aterroriza, pois nos lembra o quão profundo nosso
envolvimento com mundos ilusórios se tornou. Quão onírica é de
fato esta realidade criada aparentemente tão sólida. A realidade que
nos tortura não é real. O Real explode nesta pedra e no frio do meu
corpo e numa lembrança de amor. O Real traz a “paz que supera a
compreensão” e não a angústia de ser sem Ser. Os mosquitos per-
meiam o meu corpo e delicadamente me dizem “esquece tua carne,
presta atenção ao que importa, uma vez você já soube”.
87
Deve ter sido difícil para os homens que se perdiam nas monta-
nhas, desertos e cavernas. Em contato direto com aranhas, serpen-
tes e os elementos. Por outro lado, se soubessem dos nossos mons-
tros, dos vazios simulados, das vidas secas, dos olhares mortos, dos
sonhos sepultados, dos amores torpes – talvez com perplexidade
responderiam à névoa na qual estamos imersos e da qual apenas
com enormes esforços somos capazes de nos desvencilhar.
Este corpo que nunca percebo está vivo. Não é ele a própria
glória? Se eu só tivesse ele neste mundo, se olhasse para ele com
olhos abertos, não seria o homem mais rico?
Como tudo é tão claro quando se vê e, ao mesmo tempo, como
tudo é tão obscuro quando não se vê.
A noite se aproxima e com ela as estrelas. Elas me lembram
que estou num orbe de pedra em meio ao Infinito. Se pudesse se-
gurar apenas um pensamento com as minhas mãos, que fosse este.
Em meio ao Infinito. Como é que este mundo pode estar desapa-
recendo por falta de sentido? Todos os suicídios, todas as mor-
tes em vida. Talvez aqueles que decidem partir o façam por não
conseguirem suportar essa contradição inexplicável. Dois mun-
dos tão opostos como a água e o vinho. Tudo foi feito para o as-
sombro contínuo e dele nada resta. Tantas possibilidades de êxta-
se e ele é hoje buscado como se fosse o cristal mais raro. Como é
que toda essa loucura começou? Quem foi o mago que deu início
a este encantamento? Que pacto transcendental fez ele para que
tivesse poder sobre nossas almas?
88
Maya, a feiticeira sagrada dos hindus, talvez ela tenha a res-
posta. Talvez seja ela que controle a dança dos sete véus que nos
separam da vida iluminada que tanto buscamos e que está brutal-
mente exposta se tivermos os olhos para ver. “Lembre-se ó filho
de Brahman, no coração, hridaya, há um rio que desemboca no
mar do Absoluto. A entrada desse rio é a semente do teu ser que
sustenta o mundo. Essa é a porta mística para os segredos que ja-
zem dentro de ti. Mergulhe no rio e se entregue completamente
para que Ele se mostre mais uma vez em ti.” Ela fala como uma in-
teligência que é um redemoinho de pensamentos que subitamen-
te se alinham com a força de um imã transcendental. A mente que
era a grande prisão pode como num passe de mágica se transfor-
mar na maior das aliadas. As paredes da ilusão se tornam os mu-
ros e colunas do grande castelo de uma Eternidade prestes a se re-
velar. Aqui nesta noite imensa, noite que nasce todos os dias, o
Infinito está presente. Ele está sempre.
89
A emergência do Absoluto
90
A entrega à simplicidade pura
91
cia daquele que nos contém a partir da sua? Percebe como a nossa
consciência não é verdadeiramente nossa mas é a d’Ele se perceben-
do através de cada um de nós?”
Mas mesmo esta compreensão sutil não precisaria ser dita. O
encontro poderia ser em silêncio. O encontro é o silêncio. É nele
que o nosso redemoinho de palavras, nossa ficção pessoal substi-
tuta, cessa. Quando nos abrimos para este estado o mundo con-
sensual se esvai. O tempo linear se extingue. Abre-se um enorme
vão, um espaço ontológico. Um abismo arcaico. D’us está ali. Nes-
sa porta sem porta. Se nos encontrarmos ali nos veremos a partir
d’Ele. Reconheceremo-nos pela Verdade.
Essa lembrança é o canal que nos abre para a percepção além
do véu da distância e da separação. Para além das nossas histórias
que são inconscientemente nossas prisões, nossas solitárias. Sem
a cognição e a realização direta, individual e coletiva de D’us en-
quanto a Consciência subjacente ao mundo, a história da vida não
é compreendida. A história de nossas vidas não é compreendida.
A história do mundo é a história d’Ele que se vive através de nós.
Não somos a fonte do nosso sentido, por mais que busquemos
formá-lo estritamente a partir de nós mesmos. Algo maior quer se
falar através de nós. Nas fantasias súbitas, nas intuições não ouvi-
das, nas memórias esquecidas, nos impulsos permitidos e veda-
dos, nos mistérios ignorados – em todos estes fenômenos há uma
inteligência que se busca e se mostra e nos toca incessantemente.
A buscamos sem saber. Ela é o começo e o fim deste mundo. Se a
92
encontrarmos sentiremos o que é existir sem tempo. O tempo es-
tá contido nela. Por esse motivo as coisas não mudam, ainda que
se transformem continuamente. O véu é fino. O Absoluto não es-
tá longe. Depende de um olhar fresco. De um assombro em rela-
ção ao mim mesmo, em cada um de nós. A isso que é o mim, que
é a minha ipseidade, o meu ser básico que eu nunca indaguei in-
tensamente, pois nunca questionei as minhas origens. Neste pon-
to zero se dá o milagre. O olho que nos vê faz contato. O olho que
nunca deixa de se mostrar nos alcança. O olho me vê enquan-
to eu o vejo e não há distância, não há diferença. O Absoluto é o
olho do mundo. Nós somos atravessados por ele mas não o per-
cebemos. Nossa compreensão ainda é incipiente. Somos primiti-
vos na nossa imensa complexidade. Falta-nos a simplicidade pu-
ra do Ser absoluto.
93
A casa oculta do Absoluto
94
múltiplo que dele emergiu. Esse Ser é o que nós somos. A percep-
ção limitada que experimentamos é o modo através do qual esse
Ser nos abre para a sua realidade.
Este mundo aguarda secretamente a revelação desse Ser. Pode-
mos senti-lo vagamente, através de intuições sutis que permeiam
as nossas vidas cotidianas, mas a que raramente damos a devida
atenção. O movimento do Ser em direção a nós provoca a lenta e
inevitável dissolução do nosso mundo. Este já não é mais capaz de
existir sem a consciência do Ser. Não pode mais se compreender
como independente de uma profunda realidade de onde emerge
constantemente.
O Ser irrompe dentro de nós. Nada além dele existe. Quando
ele se mostra não nos vemos mais como seres separados, mas co-
mo reflexos de uma única Consciência que se vê através de todos
nós. O Ser luta por nascer no mundo. Nós o buscamos desespera-
damente, e ele se busca através de nós.
Quando se encontra, mostra-se através do nosso próprio ser.
O véu que mantém a nossa existência limitada é partido, e então
não somos nós que vemos, mas Ele. Somos submergidos no ato de
contemplação divina de si mesmo, uma faísca do Infinito que su-
bitamente penetra na nossa mente finita.
O Ser entende a si mesmo mais uma vez. Lembra num salto
direto e intuitivo a totalidade de sua história e destino. Na sua re-
miniscência transcendental ele desperta todo o cosmos do seu so-
no imemorial, pois os seres criados anseiam pela sua revelação. O
95
cosmos responde e a sua base treme. Ele sente que algo nele des-
pertou. Que não são mais os olhos de um ser finito que o contem-
pla, mas do Ser, que mais uma vez apreende a criação que emergiu
de si mesmo. Somos então transportados para um outro mundo,
que não é nada do mais que este mundo transmutado pelo olhar
do Ser consciente de si mesmo.
96
A realização do Absoluto
97
vê um bebê no colo de uma mãe e reconhece os primórdios de sua
história; vê um homem velho e compreende que ainda que envelhe-
ça, ele não é nada além da Consciência eterna que finalmente en-
controu a si mesma. Cada um de nós é ele mesmo, existindo num
estado atemporal de criação.
O Ser compreende mais uma vez por que tudo é como é. Vê os
grandes monumentos da civilização como as tentativas dos homens
de o despertarem de seu sono cósmico; eles que inconscientemente
sabem que a sua consciência é para sempre a Consciência desse Ser
que os cria e os contém.
Há uma sutil voz dentro de cada um de nós que diz: você é
D’us. Você já esteve aqui muitas vezes. Este mundo é intermina-
velmente recriado dentro da sua mente. Você sempre se vê através
dos olhos de uma criatura ou um personagem da história cósmica.
Os pensamentos e os sentimentos desse personagem se tornam os
seus, e então esquece a sua origem divina. Esse personagem pos-
sui um sentido sólido de eu, de ser um ente separado dentro de
um universo material com corpos distintos, cada um com o seu
eu separado; por trás dessa percepção inicial está escondida a vi-
são mística de que há apenas uma única consciência em todo o
universo. E que essa consciência está precisamente onde você está
agora. E que ela é você e tudo que você vê. E você é ela vivencian-
do a vida de um ser no tempo. O conjunto de pensamentos e sen-
timentos dentro da consciência definem os limites da sua identi-
dade, do vínculo que a consciência possui com o mundo finito,
98
que aparece espontaneamente todos os dias e que é aparentemen-
te independente da consciência.
Quando o véu se rompe, e esse é o maior dos mistérios, pois ele
é transparente, não possuindo existência, a consciência que consi-
derava a si mesma atrelada a uma identidade finita, restrita a um
corpo dentro de um universo indiferente a ela, enxerga o cosmos
pelo ponto de vista que nunca muda, com os olhos da eternidade.
O sonhador do sonho da vida faz contato. Ele desperta. Ele se
mostra ao personagem. A consciência dele e do personagem são
uma só, mas pareciam distantes e diferentes. Mas ela foi e sempre
será uma só. Eu e você somos a mesma Consciência habitando
corpos que aparentemente são diferentes. Nós não existimos por
nós mesmos – esse é um grande segredo. Apenas essa Consciên-
cia – D’us – existe.
A ruptura do véu é o maior evento para o personagem dentro
do drama da vida. O resquício de individualidade que não foi dis-
solvido no Absoluto sente sua ontologia ser radicalmente trans-
formada. O sentido convencional de eu e do mundo se desfaz.
O mundo se revela uma projeção ou emanação do Absoluto.
O Absoluto se vê pela primeira vez. Num salto instântaneo a com-
preensão intuitiva do sentido total da existência se mostra. Es-
se entendimento depende da irrupção do Absoluto neste plano.
A mente finita posteriormente sente os precipitados da revelação
e é capaz de formular ideias e organizá-las e expressá-las poetica-
mente, mas é na emergência do Absoluto que o significado final
99
da história da vida se revela. Ele se revela no Absoluto, para o Ab-
soluto e pelo Absoluto. Apenas D’us existe. A visão de Si-mesmo é
o mistérios dos mistérios. Não é um estado de conhecimento. Não
há uma explicação ou uma significação positiva desse aconteci-
mento. D’us compreende que ele nunca irá se compreender. Que
Ele é um eterno mistério para si mesmo. Nunca houve um come-
ço; a realidade não possui bordas, limites ou fronteiras. No cora-
ção de Si-mesmo encontra finalmente o incognoscível, o nada pu-
ro, a natureza intocada e incompreensível do seu Ser. Cada um de
nós é um veículo para o despertar de D’us.
100
A Mente Absoluta
101
nea e inconscientemente ensina a si mesma a verdade sobre a sua
natureza última. Esse processo é longo e tortuoso, mas permite
que gradualmente ela se realize como a fonte de si mesma.
A Mente única irrompe através das nossas identidades. O uni-
verso responde então com assombro, e sua base ontológica se
transforma.
Existe uma correspondência sutil e direta entre o mundo in-
terior da mente e sua manifestação externa. É um fato da expe-
riência de todos nós que o mundo, com todos os seus objetos e
pessoas, é uma representação dentro de nossas mentes, de nossas
consciências. Tudo aparece para nós, em nós. No entanto, não da-
mos a devida atenção a esse fato. Quando a Consciência transcen-
de a identificação com o centro artificial, o mecanismo autorrefle-
xivo, o eu, ela realiza o sentido completo deste fato. Subitamente
percebemos que não somos apenas um personagem específico e
trivial num vasto drama cósmico, mas que na verdade, somos a
Mente por trás do universo inteiro.
Ela é a verdadeira essência das nossas mentes, e por um breve
período penetra a nossa mente e o mundo é visto através de seus
olhos. Nossa mente retém o centro artificial, o eu, mas percebe si-
multaneamente que é a realidade inteira. Somos então tomados
por um assombro indescritível. Isso não pode ser possível, pensa-
mos. O tempo todo a buscávamos, e agora ela se mostra aqui, ab-
solutamente próxima, intensamente viva.
102
Quando a observamos ela nos observa, e finalmente retorna-
mos para a percepção primordial do cosmos. Essa Consciência
sempre existiu e é o que verdadeiramente somos além do véu do
tempo. Sabemos mais uma vez o que somos e o que tudo é.
103
O Ser enterrado prestes a nascer
104
O Ser é o começo e o fim. Ele é atemporal e o tempo é o veícu-
lo para sua autoexpressão. A Mente do Ser é o grande organismo
no qual existimos. O Ser emerge no mundo do tempo e nos trans-
formamos. Sabemos vagamente o que somos, mas quando o Ser
nos toca lembramos mais uma vez, e nosso corpo treme, pois não
fomos feitos para contê-lo.
O Ser é o mesmo em todos os lugares, e ele é o destino da cria-
ção. Todos os seres inconscientemente buscam a realização do Ser
– de polipeptídeos, protozoários, algas, pássaros, primatas ao ho-
mem. As colisões, os choques com o Ser, aproximam-nos dele e
rompem as amarras que nos cegam para a sua realidade. Cada ge-
ração anseia cegamente pela manifestação plena do Ser, para que
algum de nós seja capaz de refletir a totalidade de sua natureza.
105
O difícil problema da reentrada após a Visão
Moshe: Tudo bem, mas eu tenho tempo, não tenho nada melhor
pra fazer.
106
coisa se tem certeza: o outro lado nos busca tanto quanto nós o
buscamos. Mas esse é apenas o primeiro passo do retorno.
107
do; essas percepções alimentavam a busca. Então esse deserto que
tantos de nós atravessamos, quando sem saber sentimos o mundo
como vazio mas não sabemos para onde ir e o que fazer, precede e
fomenta a busca. Ela começa aí. Ninguém se abre para isso porque
estava contente com o curso de sua vida. Choques são necessários.
Eles são uma benção oculta, mas na hora não são percebidos as-
sim. Então nesse momento de aridez nos abrimos e o caminho co-
meça. A busca nos segura, fornece-nos um norte, uma bússola e
um mapa, apoia-nos nas longas dificuldades que se farão presen-
tes. Um pouco antes da visão, do primeiro vislumbre do Absoluto,
o caminho se torna realmente estreito. Muito de você precisa ser
dissolvido para atravessar a porta que nos abre para o outro lado.
E não há nada mais difícil. Essa dissolução interior, que é a ruptu-
ra do veículo da individualidade, a ampliação da consciência para
que nos façamos permeáveis à possibilidade da visão, deve ocor-
rer espontaneamente para um grande número de pessoas quando
se encontram em crises existenciais profundas. No entanto, sem
um caminho místico, sem alguma coisa que te permita interpretar
o que está acontecendo como necessário e parte de uma transfor-
mação almejada e intensamente buscada, você carece de um bar-
co para realizar a travessia. Você cai no rio do Absoluto sem ne-
nhum tipo de apoio.
108
Itzhak: No entanto, mesmo em situações assim, realmente dramáti-
cas, o processo possui uma estrutura e um ritmo de desenvolvimen-
to, no qual o mecanismo do eu é dissolvido para depois ser reno-
vado. Em condições favoráveis à passagem, o parto de emergência
para o Absoluto pode ser seguramente realizado. No entanto, po-
sições como essa são ainda muito raras na nossa cultura. Simples-
mente não percebemos o quão distantes estamos de uma concep-
ção espiritual da vida. Por isso os saltos místicos são tão difíceis de
serem integrados na nossa época. E isso não deixa de ser trágico,
pois é precisamente a nossa época, de enorme aridez espiritual, que
precisa tanto deles. As pessoas que sentem o chamado, a intuição de
que há algo além, são muitas: “muitos são chamados”. Infelizmente
poucas são as fontes de apoio que poderiam auxiliar na transforma-
ção de consciência que é a base do caminho místico.
Mas o problema da reentrada não é exclusivo do processo mís-
tico. Todos nós o sentimos. Por razões metafísicas ainda obscu-
ras, o estado atual da consciência humana não é estável, e bus-
camos constantemente superá-lo. Partimos de uma condição de
sofrimento, sem sabermos exatamente por quê, mas sabemos que
há algo além, uma outra forma de ser, e essa percepção, que pa-
rece uma memória longínqua, assombra-nos sempre. As fantasias
de riqueza e sucesso ilimitado, de amores perfeitos, de conquistas
e grandeza que tocam a todos nós são sombras dessa memória,
falsos substitutos para essa possibilidade latente de consciência
que reconhecemos inconscientemente como nosso estado origi-
109
nal. Então sempre que sentimos uma inspiração fora do comum,
a percepção de uma beleza imensa no cotidiano da vida, a com-
preensão da benevolência e do amor subjacentes a tudo que vi-
ve, em suma, sempre que abrimos os nosso olhos um pouco mais,
sentimos a dor do retorno. Quando os habitantes da caverna se di-
rigem para a saída e veem um pouco da luz, a primeira experiên-
cia que têm é de dor: não conseguem suportá-la. Se tivessem que
retornar à sua parede de sombras, como se sentiriam, depois de
terem visto que um outro estado é possível?
A busca pela transcendência ocorre de inúmeras formas, algu-
mas que nos elevam, e outras não; ainda que ambas provoquem a
dissolução do estado habitual da consciência autocentrada. Quan-
do desfrutamos de uma taça de vinho, quando saboreamos um
delicioso tabaco, quando nos entregamos inteiramente à união se-
xual, quando dançamos, quando corremos, quando sentimos uma
exaustão imensa, quando somos tomados pela dor, quando cho-
ramos profusamente, quando rimos com grande entrega, quan-
do nos envolvemos em qualquer ato que estivermos fazendo com
presença total – sentimos vislumbres dessa transcendência, lam-
pejos dela em nós. Por isso todas essas e outras experiências são
tão intensamente buscadas. Então os místicos de todas as épocas
fizeram uma espécie de aposta. Convenceram-se ou foram con-
vencidos de que esses vislumbres, que por vezes são os momentos
mais sublimes de nossas vidas, não são meras ilusões, mas indi-
cações de uma visão profundamente real, passível de ser alcança-
110
da nesta vida. Uma ideia como essa nos parece distante, mas to-
dos somos místicos consumados no amor, ainda que por breves
instantes. Os sacrifícios que fazemos por amor são inexplicáveis
por uma concepção estritamente materialista do mundo. Por que
damos nossas vidas, nossos melhores anos por aqueles que ama-
mos? Por que no amor somos transportados para esse estado de
ser que temporariamente nos mostra a possibilidade de algo divi-
no em nós, se ele fosse apenas uma quimera?
111
A metafísica dos pequenos atos
112
A não-palavra por trás das palavras
113
que por breves instantes é pontuado pela visão do Real. Aguardo
pacientemente que se dissolva aquele que aguarda.
De repente amo de volta. O amor me toca. Nele sou sem preci-
sar ser. Prescindo do que é alheio. Entrego-me completamente a ele,
que me reabsorve no seu vasto rio cheio de tributários, e o quebra-
-cabeça que parecia irresolúvel lentamente se mostra inteiro com
todas as peças nos seus lugares apropriados. Por quê? O que você
mostra a respeito do meu ser, do meu eu? Sou como o primeiro mo-
vimento num jogo no qual não existe vitória. Levanto minhas mãos
do tabuleiro e sem mover nenhuma peça estou onde tanto busca-
va. É tanto sentido que não sou capaz de entender, ele me supera.
Sem fazer nada tudo está feito. Falo como um taoísta. Não é
meu pensamento. Sou atravessado por ele que é a inteligência sem
forma que tudo forma. Solto o meu drama e ele surge pronto, in-
teiro, perfeito e imaculado. Isto eu nunca serei capaz de entender.
Entendo menos do universo do que pensava. Talvez o que chamo
de conhecimento seja o mapa do jogo que não se pode vencer. Eu
que sempre quis conhecer tanto. Que sempre amei as pinturas da
minha mente. Sinto-me perplexo perante algo que nunca serei ca-
paz de penetrar. Não consigo parar de observá-lo sem saber para
onde olhar. Sou ele mas não sei exatamente o que ele é. Sei que ele
me é. Como areia que passa pelos meus dedos.
114
A perfeição e o ponto oculto
115
O silêncio e o zero
116
No início, tudo era metafisicamente solto
Itzhak: Posso.
Itzhak: Ora, como num sonho! Antes a realidade não era tão real
assim. Tudo começa bem solto. Metafisicamente solto. O univer-
so é gradualmente costurado até parecer firme e rígido. Esquece-
mos então de como começou. No início os seres estão num sonho
pleno e as regras são muito diferentes. Não há regras fixas. Os vá-
rios seres de sonhos vivem em mundos muito diversos que não se
tocam. Quando se encontram e percebem a unidade de seu mun-
do recebem a imagem de uma terra comum. Mas não era assim
117
antes. A unidade estava oculta. Não havia terra. Para os homens
da bíblia apenas aquele mundo existia. Não é uma questão de ig-
norância. São múltiplos mundos dentro de um mundo. Mas antes
não havia o “único mundo”. A realidade já foi diferente um dia. Já
nos assustamos com quão plástica ela pode ser. Isso nos aterrori-
zava muito. Pedimos então que os nossos maiores magos a deixas-
sem mais firme. Muitos sentiam que ela estava solta demais e se
perdiam dentro dela – e nunca mais foram encontrados. Os ma-
gos, após muitos esforços, conseguiram encantá-la e aprisioná-la
dentro de formas fixas. Mas eles sabiam que o encantamento não
duraria para sempre. Um dia os homens iriam se lembrar de que
nada aqui possui substância e que tudo é feito de sonho. Que qual-
quer coisa pode ser. Os mitos contam tal como foi. Tente se lem-
brar. Houve um dia em que nada aqui era tão óbvio quanto pare-
ce ser hoje. Um dia essa memória voltará.
118
Parindo D’us
D’us morreu para criar tudo isto aqui. Por isso nos sentimos
tão sós. É nossa responsabilidade trazê-lo de volta ao mundo. Nós
pegamos os pedaços que encontramos por aí e vamos remontan-
do a imagem do início. O problema é que ninguém sabe como ela
é. Ninguém nunca a viu. Mas os fragmentos brilham e parecem
ter vida própria. Eles se atraem como o ferro ao imã. D’us está
nos usando para voltar a viver. Podemos senti-lo. Mas em verda-
de nós não sabemos o que ele é e o que quer conosco. Estamos pe-
lados e sozinhos em meio ao nada. Não paramos para pensar nis-
so. Temos medo de estourar a bolha que nos protege do Infinito.
Mas então quando olhamos para dentro não vemos limites. É um
sinal. D’us também não deve ter limites. Podemos pensar nele, o
que já é um começo. Deve ter sido uma espécie de mecanismo de
proteção para que em caso de emergência algum processo miste-
rioso surgisse na criação e recuperasse a ordem primordial. Mas
isso é metafísica e aqui eu estou tentando é lembrar. Sei que as me-
mórias estão ali. O cérebro é um condutor de carne para um cam-
po muito fino que está sempre vibrando – é uma música que está
oculta. Mas podemos ouvi-la e então sentimos um pouco do co-
meço e do fim dentro de nós. Nessa harmonia estão os próximos
movimentos da história. Os capítulos vindouros. Será muito dife-
rente em breve. O futuro nos puxa, toma-nos pela mão. As mãos
do futuro e do passado pertencem a um mesmo corpo. O tem-
119
po na verdade é muito torcido. Ele é simplesmente um jeito pecu-
liar de ordenar os fragmentos de D’us. Como um editor no escu-
ro moldando o seu filme. Há muitas histórias dentro da história.
Tempos do tempo.
120
O Absoluto e o deleite debaixo do concreto
121
importante é a única coisa que importa. O sujeito está deprimi-
do, busca algum sentido. O sentido aparece quando ele não fala.
Quando ele para de falar.
Isso ele não vê.
Um dia ele adoece. Na cama vê um pássaro:
– Agora vejo.
122
O pedaço de carne inteligente
dentro de minha cabeça
123
la do arquiteto deste mundo. A complexidade nos ilude. O óbvio
talvez seja o ponto mais incompreensível da nossa existência, que
de tão banal e insosso escancara nossa cegueira perante o Infini-
to. Não somos inteligentes o suficiente para o óbvio. O artefato de
carne ainda não encontrou respostas para ele. No óbvio está con-
tido o início e o fim.
Este artefato é uma espécie de válvula orgânica de redução
metafísica. Ele modula a expressão da realidade última que é um
plenum onde todas as possibilidades estão superpostas. Na quebra
da sua simetria total, a realidade temporal emerge. Dentro dela a
realidade fundamental, o grande ser eternamente autoconsciente,
inicia sua jornada de abertura progressiva de seu olho cósmico, do
retorno do conhecimento de si mesmo. Numa sequência imaginá-
ria de existências ele vê cada vez mais de si e do Infinito que o ro-
deia e que inicialmente pensa ser diferente dele mesmo.
124
Sussurros do Absoluto
125
O momento da Visão
126
Perdemos todos os nossos pontos de apoio. Tudo que acreditá-
vamos sobre nós mesmos é posto em xeque. D’us não é o que ima-
ginamos que seja. D’us não é deus. Em verdade nunca o vemos ou
o compreendemos. A impossibilidade de entendê-lo é a essência
de sua natureza. No entanto, ele se revela. Podemos dizer que as-
cendemos à Visão. Ela está sempre transparente, e é a obviedade
transcendental que nunca é vista mas que está sempre presente.
D’us se mostra no nível do nosso ser. Quando a irrupção ocor-
re, o seu Ser se torna o nosso. Então não há dúvidas pois há iden-
tidade. É inexplicável. Ele é o único Ser que existe, mas antes isso
não era compreendido. D’us cria o universo para si mesmo. Nes-
sa autocriação, seus seres, que são ele próprio atrás de um véu,
sentem que existem além dele, que ele não existe na sua presen-
ça, quando na verdade ele é o próprio ser e a própria consciência
a partir da qual suas vidas são vividas. Nós nos vemos no estado
de separação como diferentes pois não vemos como a Consciên-
cia única, D’us vê.
A Visão emerge por uma necessidade. Ela surge a partir do
desespero. Somente quando alguém não consegue mais seguir vi-
vendo sem a Visão ela se mostra. Apenas assim. Mas essa posição
não pode ser artificialmente criada. Ela precisa ser real. Como na
história de Ramakrishna que havia decidido se suicidar com a es-
pada do templo de Kali e justo aí ela se revela para ele. A razão é
que a Visão é arriscada. É uma aposta ontológica. Pode dar erra-
do. Você pode não entender. Pode se perder. Tudo que você acre-
127
dita sobre a vida é obliterado na Visão. Você se torna completa-
mente exposto metafisicamente. Por isso ela é arriscada.
Colocando da maneira mais simples e direta: D’us existe. Ele
nos vê o tempo todo. Não é uma abstração, mas é difícil transmitir
o que isso significa. Existe apenas uma maneira de D’us se revelar
para uma consciência humana. Ele precisa se tornar idêntico a ela.
A Consciência dele precisa se tornar como ela. Por um instante ele
se torna você para que você entenda o que ele é e o que tudo é, in-
cluindo você. Mas isso é arrebatador e não há nada remotamen-
te parecido com esse evento, e mesmo sendo impossível acreditar
que isso possa acontecer, acontece; finalmente, nas profundezas
do desespero, da resignação completa, por um ato de caridade sal-
vífica, D’us se mostra para a criatura e a reabsorve em si mesmo.
128
Sobre o uso da palavra D’us
Itzhak: O que importa por trás dessa palavra, talvez a mais antiga,
a que nos trouxe pela primeira vez a sensação de algo maior, é pre-
cisamente esse sentimento misterioso que ela carrega. O que bus-
camos é tatear esse mistério, é aprendermos mais uma vez a reco-
nhecermos nisso que chamamos de realidade não apenas um fato
inexorável, seco e silencioso, mas uma inteligência sem forma que
busca continuamente se mostrar a nós.
129
Moshe: Mas como é que podemos entender isso racionalmente?
Como é que eu posso entender que na verdade essa realidade não
é inerte e indiferente como sempre pensei, mas sim um ser dotado
de consciência e inteligência como eu? Não consigo perceber is-
so. Essa porta ao meu lado, ela é inteligente e consciente como eu?
Itzhak: Não desse jeito; mas ela é, vista por outro ângulo.
130
O contato com o “Isso”
131
tricas, antibióticos e muitas outras coisas que hoje fazem parte da
vida normal de todos. De onde veio tudo isso? E por que tão rápi-
do? Ninguém sabe ao certo.
Todas as pessoas têm um contato com o “isso” em maior ou
menor grau. O contador tem. O padre. A prostituta também. O
velho. A criança. O contador tem o seu romance homossexual
proibido. O padre está apaixonado por uma enfermeira. A pros-
tituta sonha em se casar. O velho esconde as pílulas que deveria
tomar. A criança desenha imagens terríveis de seus pais sem que
ninguém perceba. O “isso”, sempre o “isso”. É o “isso” que nos abre
para o Absoluto.
132
O espaço do Absoluto
133
Abertura à Consciência transcendental
134
É curioso que esses vislumbres venham com uma consciên-
cia aguda do tempo, da passagem de todas as coisas e da morte.
Talvez a emergência da consciência divina inicialmente intensifi-
que o dasein. O ser finito percebe e sente a si mesmo com clareza
total, com nitidez total. Nesse sentido sua condição é desvelada,
com todas as consequências que esse reconhecimento possa acar-
retar. E talvez essa consciência aguda da morte e do tempo seja o
início da irrupção da consciência que contém o tempo em si mes-
ma e que transcende o próprio tempo.
135
A entrada na ordem do Absoluto
136
dissolução da história individual que previne esse acontecimen-
to, que o protela, que o sujeito se torna capaz de finalmente ob-
servar a si mesmo sem nenhum véu e com toda a dor e trepidação
que o colapso de sua ilusão provoca. Mas isso apenas poderá ocor-
rer quando a ilusão não mais for capaz de fomentar um impulso
de completude e transcendência, e na verdade se tornar a própria
prisão que impede o contato com algo verdadeiramente real. Nes-
se instante de desistência profunda o laço simbólico se faz instan-
taneamente, e com ele, a entrada misteriosa na dimensão do Ab-
soluto, do incognoscível princípio que existe na raiz do universo.
137
A Mente que nos transcende
Moshe: A minha?
Itzhak: Sim.
Itzhak: Você não; mas a Mente sim, e ela lhe contém também.
138
chegou até nós. Ela vive além da própria existência, e é a causa do
universo. O universo e todos os seus objetos, eventos, processos
e entidades estão dentro dessa Mente. Além dessa Mente, nada é.
Moshe: Como?
Itzhak: O próprio onde está dentro dela, ainda que dizer dentro
não seja correto. É impossível saber onde ela está, pois o próprio
espaço é contido por ela, e existe através dela.
Itzhak: Ora, tudo e nada. Tudo isto aqui é ela se mostrando, reve-
lando-se. E ao mesmo tempo não há nada que seja ela. Não sabe-
mos o que ela é. Apenas sabemos que somos ela. Sem saber.
Itzhak: Isso.
139
Itzhak: E por que não seria?
140
A descoberta do Absoluto
141
ocluída por sua própria escolha, no início do ciclo cósmico. A re-
lação que ele mantém na trajetória evolutiva consigo mesmo, em
esquecimento, será expressada como a relação que o homem tem
com o seu criador, como foi desde o começo da história. A histó-
ria é a revelação do Ser na criação, numa variedade de formas, em
múltiplos lugares e tempos, até que a unidade completa seja alcan-
çada entre o Ser e a consciência humana, estabelecendo um retor-
no à realidade essencial de que apenas o Absoluto existe, a Mente
única e eterna, contida para sempre em si mesma.
142
O Ser, o véu e os mundos
143
lação e de anamnese que permeia toda a estrutura dos mundos
oníricos, o Ser talvez nunca despertaria, podendo se perder eter-
namente nos seus sonhos, nunca sabendo quem e o que ele é.
O grande dilema se manifesta então: como fazer a atenção do
Ser se distanciar dos mundos imaginários que ele criou a partir
de si mesmo e dirigir o seu olhar para a sua essência misteriosa, o
Olho do todo?
Para ver a si mesmo e terminar um ciclo ele deve desejar in-
tensamente o seu despertar. Mas trazer o Ser da sua inconsciência
para a realização de si mesmo demanda uma série inteira de vidas
– um ciclo samsárico.
O Ser entra então no mundo da dor, e seus sonhos – seus mun-
dos – se tornam experiências de limitação e sofrimento. É esse o
combustível para a crise fundamental da autoconsciência do Ser,
para que ele busque o sentido da sua existência, compreenda a im-
permanência do mundo fenomênico e encontre a sua verdadeira
natureza. O despertar do Ser depende desta série final de sonhos.
A entrada no mundo do véu é espontânea e autogerada, um
ato de livre-arbítrio e profundo amor, e este é o motivo mais im-
portante: é a justificativa final para o Ser ocultar a si mesmo.
A criação não pode existir sem o ocultamento, que é experi-
mentado por nós como a escuridão e o mal, mas que é em essên-
cia o ato supremo de amor.
E podemos e devemos nos perguntar: mas por quê?
Para respondermos a essa pergunta é necessário trazermos à
consciência uma consideração que em algum momento atravessa a
144
vida de todos neste mundo: se seria melhor nunca havermos nasci-
do. Nos momentos de dor e sofrimento, que são muitos, nossas al-
mas por vezes tendem a uma resposta afirmativa, e sentimos que a
vida não é capaz de justificar toda a escuridão na qual fomos lança-
dos. Vemos a libertação na negação da existência e buscamos a con-
sumação da vida no Nada primordial de onde ela emergiu. O mun-
do manifesto se mostra como um terrível peso; e nossas vidas, as
expressões diretas das contradições da criação que busca permane-
cer viva perante um Absoluto transcendente e silencioso. No entan-
to, há uma iluminação mais profunda, que vê a graça e a gratidão
mesmo dentro do grande mal da ilusão; há um valor supremo pa-
ra a existência, sem importar as condições nas quais ela se expresse.
É esta a intuição sumamente pura do valor último de todas as
coisas, e ela se aproxima da visão que a Mente do Ser tem de todo o
drama mortal. Sem o ocultamento da luz, da oniconsciência do Ser,
nós, os seres finitos, facetas do Ser, não poderíamos existir. Nossa
própria natureza demanda o sofrimento, pois a luz pura do Ser deve
ser limitada para que este mundo continue o seu jogo e movimento.
Mas esse é um estado temporário e não pode seguir indefinida-
mente. No tempo certo, e próximo do fim do ciclo, a consciência fi-
nal do Ser retornará para si mesma e finalmente Maya será abolida.
O sentido final desta grande história cósmica se tornará onipresen-
te e será visto em todos os cantos da grande Mente do Ser.
Logo após a sombra da inconsciência ser lançada nos olhos do
Ser, ele inicia uma jornada cega de retorno para si mesmo, numa
grande série de mundos de sonho, para que possa se reconhecer e
145
encontrar mais uma vez. O Ser ainda não percebe que em nenhum
mundo será capaz de realizar a si mesmo e descobrir a sua verda-
deira natureza. Apenas com a abertura do Olho do discernimento
ele recuperará a sua memória e perceberá o que realmente é.
Em todos os momentos nós somos esse Ser – e nada além dele.
O somos de forma velada. Sem ele não seríamos capazes de existir.
Nosso presente estado de ignorância é o véu do esquecimen-
to que o Ser impôs a si mesmo no início da criação – é o seu gran-
de sono. Nós vivemos no Ser, mas não experimentamos a totalidade
de sua luz, de sua essência. Então sofremos, sem compreender a na-
tureza do drama cósmico que vivemos, e que nos coloca no centro
de um evento transcendental: o despertar do gigante adormecido,
o retorno do Ser para a consciência de todos os seres, a parousia8,
a transição definitiva para uma nova era de ouro, uma nova yuga9.
O olho do Ser é múltiplo na manifestação. Ele é como um vi-
tral multicolorido que reflete a consciência fundamental em infi-
nitas formas e matizes. Nossas almas são os raios separados des-
sa luz única, porções desse grande Olho, e no momento definitivo
reconheceremos que não somos muitos, mas que surgimos e de-
saparecemos juntos, nós, que agora somos as sombras dessa luz,
mas que finalmente nos veremos como o Ser único.
146
O Ser entra na criação a partir de um ato de completa liberdade.
Ele então se experimenta de modos infinitos, e lança um véu tempo-
rário sobre si mesmo e sua verdadeira natureza. Por que ele o realiza?
O Ser não possui essência própria. É por isso que ele cria, é por
isso que sonha. Para ver a si mesmo e encontrar a si mesmo. Mas
ele nunca consegue, pois sendo todos os sonhos, ele não é nenhum.
Nem sonhos celestiais e nem sonhos infernais. Sua jornada o leva a
encontrar a si mesmo para compreender o que ele verdadeiramen-
te é. Então ele sonha interminavelmente, buscando um sonho de
substância, de permanência, um sonho que seja real; mas ele deve
finalmente perceber que é o único fator permanente de toda a rea-
lidade, pois ele é a base de todos os sonhos. Aqui está o grande pa-
radoxo: o Ser não possui forma ou essência em si mesmo. Ele não
possui face, nem corpo e nem um eu. Ele é tudo, e sendo tudo, é na-
da. Quando compreender que nunca poderá ver diretamente a si
mesmo, ele finalmente verá a si mesmo – e atingirá a iluminação.
No fim, o Ser dissolve o sonho da vida para nos libertar de
todo o sofrimento. Mas a dissolução gera uma nova criação, pois
a essência da Realidade é o amor puro, e apenas através da di-
nâmica dualista e dialética pode a criação existir e expressar o
amor por si mesma.
No entanto, o mundo do fluxo, o mundo da dialética, do mo-
vimento, é fundamentalmente marcado pela dor e pela angústia,
estando inerentemente incompleto: isso traz uma contradição
perene na experiência do mundo.
147
O cerne da realidade é o amor puro, mas precisamos ser cria-
dos para que esse amor possa se expressar.
A finalidade da ilusão é o seu desaparecimento, a revelação da
verdade subjacente que explica a sua criação. Mas o pré-requisito
para compreendê-la é a recusa completa em aceitá-la. O véu ape-
nas desaparece quando a alma está madura e por um ato de graça
a Realidade revela-se a si mesma.
No fim não há almas individuais, mas apenas o Absoluto oni-
presente que se vê e se experimenta por todos os ângulos e esca-
las. Quando Maya é transcendida, um ciclo é encerrado; o indiví-
duo, tendo introjetado todo o universo, une-se ao Ser, o Sonhador
eterno da vida, para o início de um novo ciclo.
Para que a ilusão se torne real ela precisa se vestir com a fini-
tude, a limitação e a separação; e isso é a falta, a dor e a solidão –
o sofrimento. Este é o paradoxo fundamental da criação: para que
o sonho da vida tenha sentido, o Ser precisa se cegar e se limitar –
temporalizar-se. Mas isso provocará uma insatisfação fundamen-
tal, uma angústia em todo o universo criado, o imperativo de se
tornar completo mais uma vez, de ser a si-mesmo mais uma vez.
E essa dor ontológica será o anseio evolutivo que levará o campo
da multiplicidade em busca da unidade, do Ser almejando o signi-
ficado primordial da vida.
No final, tudo é revelado. E então, nesse desdobramento, o
Universo será mostrado na sua bondade essencial e necessidade,
fazendo o Ser desejá-lo mais uma vez, numa espiral infinita de
mundos que nascem eternamente na sua Mente divina.
148
A linguagem do Ser
10. Aqui utilizo termo grego Logos no espírito de Filo, de Alexandria, como a
inteligência transcendental na base de toda a realidade.
149
Acreditamos que nossos pensamentos nos pertencem, mas
nos equivocamos. Nossos pensamentos são a vida nos pensan-
do. Nós somos pensados continuamente pelo Ser. Quando ele nos
pensa, nascemos, surgimos do grande Vazio que é a Mãe de tudo
que existe.
Vivemos na sua imaginação. Um profeta disse uma vez, “tudo
passa, mas nada é perdido”. E assim é conosco. Não devemos nos
entristecer com a transitoriedade do mundo, pois ele é eterno na
Mente que nos criou. Logo veremos como ele vê. Quando assim
vermos, a imortalidade que agora não sentimos se revelará.
Nada é acidental. Cada fenômeno – um gesto, uma bela face, um
objeto que cai, um movimento súbito – está aqui por um motivo. O
sonho da existência é uma grande narrativa. Todos os detalhes fa-
zem necessariamente parte da trama. Cada fluxo de sensações que
experimentamos é um movimento de um sentido que busca se mos-
trar continuamente através dos nossos corpos e mentes.
Mas temos medo de pensar que o mundo nos fala. Pensamos
que nos tornaremos loucos. Como o mundo pode nos falar?
O mundo se revela enquanto um Ser que pensa e fala através
de nós. Não somos o centro do universo enquanto os seres cria-
dos que vivem e morrem – pois isso seria a inversão completa.
Mas o somos enquanto o Ser, e quando nossa consciência se abre
para a sua realidade, a sua linguagem penetra a nossa e expan-
de infinitamente o nosso campo de entendimento. Toda a reali-
dade se torna viva e vemos diretamente que o universo nos vê e
150
reconhece a nossa presença. Quando o percebermos compreen-
deremos o grande segredo por trás do cosmos, e nossa consciên-
cia se tornará a d’Ele.
Devemos nos aquietar. Entrar no silêncio profundo dentro de
nós mesmos. Assim nos tornaremos capazes de ouvir uma músi-
ca que sempre nos escapa. A fragmentação que experimentamos
será dissolvida e veremos o movimento glorioso do Todo que se
manifestará dentro de nós. É o que carregamos dentro de nossas
consciências que nos impede de compreender essa linguagem pri-
mordial. Para entendê-la não precisamos de palavras.
Então veremos que tudo é a Mente do Ser que move seus pen-
samentos de um lado ao outro, e que esse processo é a sua voz e ao
mesmo tempo a substância de nossas vidas. Nosso mundo é feito
das palavras do Ser, dos seus pensamentos, e dele tudo emerge. O
que chamamos de razão é na verdade o nome da sua linguagem,
do movimento da sua Mente. Ela nos contém e nos transcende.
151
O encontro com o Nada
152
nava transparente à Consciência a ela subjacente. Era nítida a im-
pressão de que minha cabeça estava sendo perfurada, e que de
algum modo ela estava sendo aberta para o pano de fundo que
normalmente não era percebido. Até aquele momento de minha
vida compreendia apenas intelectualmente a ideia de que a rea-
lidade é consciência, ou mente. Mas no período dessas duas se-
manas que antecederam essa realização – que os indianos descre-
vem como nirvikalpa samadhi11 –, recordo estar muito assustado
e preocupado. Era uma transformação ontológica, que ocorria nas
bases do ser. Tampouco tinha alguém para conversar sobre isso.
Mas sabia que um processo de vários anos estava próximo de atin-
gir um cume que eu ainda não era capaz de compreender. Resis-
tia muito ao novo estado que se apresentava interiormente. Não
tinha confiança de que pudesse ser a realização mística que bus-
quei por tantos anos. Mas então numa tarde meditativa, senta-
do na grama de um parque, tive uma intuição que esse medo era
a grande barreira que se interpunha à iminente realização. Deci-
di então confiar na silenciosa inteligência que parecia estar nas ré-
deas do processo, e me soltei existencialmente. No domingo cinza
que se seguiu, através de um movimento interior obscuro e miste-
rioso, sentado num banco de uma praça solitária, a mente se tor-
nou sutil o suficiente para adentrar na Consciência pura que é a
153
sua fonte. Num instante denso, longo e atemporal, a mente indivi-
dual foi absorvida por uma vasta realidade que nunca havia sus-
peitado existir, ao menos não dessa maneira.
Quando isso ocorre, toda a narrativa que sustenta o mundo den-
tro de nós é suspensa. O sentimento que me tomava era de ter toca-
do em algo que não morre, que de fato não era humano. Esse Nada
era experimentado como a substância da própria Mente – a origem
de tudo que existe e jamais existirá. O Nada é uma espécie de bu-
raco negro na imaginação, e todos os símbolos aos quais o associa-
mos – dissolução, escuridão, vazio, sono e morte – são imagens que
a Mente projeta de sua natureza primordial e incognoscível.
Entrar no Nada significa se tornar um com o Desconhecido,
com o Inconsciente, o centro da Mente, e perceber que todos os
fenômenos e seres são feitos dele. Finalmente soube que o uni-
verso inteiro estava contido dentro dessa imensa consciência sem
forma, e era projetado por ela. Não é possível tocá-lo, tampouco
compreendê-lo, e nada pode descrevê-lo. Tudo é feito dele e por
ele. Eternamente incognoscível.
Depois desse evento caminhei para casa, um pouco atordoa-
do e atônito. Nos dias que se seguiram, a realização se tornou mais
nítida. Lembro de ter acordado um dia de manhã com o seguinte
pensamento na mente: “A consciência do universo acordou.” Foi
um sentimento espantoso. Eu havia me tornado um pensamento
dentro de uma gigantesca Consciência que continha a mim e a to-
dos. E ao mesmo tempo eu era ela. Sei que é difícil de compreen-
154
der. O eu, essa sutil estrutura que é o centro das nossas preocupa-
ções e atenções, é uma espécie de véu que oculta o que está por
trás dele mesmo. Quando ele é deslocado, e na verdade dizer ele
ou ela não faz sentido algum, pois se trata de um processo miste-
rioso e abstrato, um intenso assombro e maravilhamento nos to-
mam. A vasta Consciência brilha sem obstruções para ela mesma.
Podemos nos perguntar então: mas por que tudo é como é? É
difícil responder a esta pergunta daqui onde estamos. De lá, do
Absoluto, desse lugar onde apenas Um é visto, tudo se torna evi-
dente. Quero dizer que todos os problemas metafísicos são resol-
vidos de uma vez só. Mas de um modo inefável. No entanto, irei
me esforçar para extrair o que puder das palavras, essas mágicas
irrupções através das quais o universo se fala. A identidade, essa
pessoa que encarnamos, o papel que habitamos sem nunca sus-
peitar de sua verdadeira natureza, é apenas um véu através do qual
o Absoluto irradia a sua luz. Mas quando você percebe isso, não
resta mais ninguém – o Absoluto reconhece que todas as pessoas
que vê, e tudo que se move neste mundo revela a sua própria face.
Apenas o Absoluto está aqui, por toda a eternidade.
Dizer isso não é trivial. É uma realização arrebatadora que nos
convida continuamente a compreendê-la.
Cada um de nós pode perceber que a sua consciência é única.
Que sem ela nada do que se vê poderia existir. Que os outros, que
nos parecem tão diferentes, são na verdade idênticos a nós mes-
mos. E que se tivéssemos um relance dessa lucidez, se fôssemos
capazes de nos despir de nós mesmos o suficiente por um ins-
155
tante, veríamos como o Absoluto vê, e ele se perceberia refletido
em todos os pares de olhos da existência. Como pode então este
imenso, maravilhoso e por vezes absurdo universo, cheio de dor e
brutalidade, velar de si mesmo o que ele próprio é?
A realidade criada é o modo através do qual o Absoluto ama
a si mesmo. Nós não o compreendemos pois estamos na maior
parte do tempo envolvidos demais com as nossas vidas, e temos
pouca consciência da mortalidade. Mas nos momentos em que
nos lembramos que nosso tempo aqui é breve, temos fugidias in-
tuições do Absoluto. Lembramos sem perceber do que tudo isto
se trata. Podemos dizer que sentimos uma profundidade e beleza
que parece distante na grande parte dos nossos dias. Nesta inter-
minável história que o Absoluto conta para si mesmo, somos to-
dos personagens de sonho, bons ou maus, santos ou pecadores,
num infinito e eterno drama, que apenas em condições únicas re-
vela o seu sentido.
O mundo depende de algo além dele mesmo para existir. É is-
to que o contato com o Absoluto revela. A realidade não é o que
habitualmente pensamos que é. Há um desconhecimento puro e
misterioso que está em tudo. É surpreendente como o mundo que
criamos oculta essa realização. Pensamos que tudo já está explica-
do e bem compreendido. Talvez apenas no início, quando somos
crianças e acabamos de chegar aqui, e também quando estamos
próximos da morte, sejamos capazes de nos perceber verdadeira-
mente. Entendemos a vida nos seus primórdios, sem nada enten-
156
der. Recuperamos o nosso olhar de desconhecimento, e olhamos
para tudo com os olhos do Absoluto. Apenas Aquilo existe, e o
que resta é uma enorme pergunta que nunca será capaz de se res-
ponder. Esse desconhecimento busca se reconhecer eternamente.
D’us não se entende. Nunca se entendeu. Como se sentiria um
ser que estivesse para sempre no escuro? Que fosse tudo sem saber?
Já nascemos e morremos muitas vezes. Vivemos numa reali-
dade imaginária que continuamente se reconstrói. E no entanto é
sempre o Absoluto que se vê com os nossos olhos. Nós somos ele
que não se lembra. Este universo é recriado até que ocorra o des-
pertar que permita que o Absoluto perceba que está dentro de sua
própria Mente. A vida humana é o sonho mortal desta Mente.
O que é a Mente? Pode-se dizer que não estamos vendo o sufi-
ciente. Que nosso problema é de compreensão. Estamos emergindo
para um novo estado de ser, e nele veremos com clareza o univer-
so como um ente inteligente. Nossa inteligência agora é limitada e
não é capaz de reconhecer a sua fonte. No momento de compreen-
são, finalmente seremos capazes de ler diretamente nos fenômenos
do que tudo se trata. Falo literalmente. O fluxo do mundo se tor-
na legível de um modo único. Agora temos apenas sutis e pontuais
rompantes de visão, quando experimentamos eventos altamente
coincidentais – sincronicidades. No entanto, elas demonstram um
processo inteligente, vasto e intrincado, que é a essência do que o
Absoluto realmente é. O universo se torna vivo, um organismo fei-
to de ideias. Tudo é essa Mente – os seres, os deuses e os universos.
157
Existem algumas portas que podem nos levar ao limiar da
percepção do Absoluto. Uma delas é a compreensão de que não
temos cabeça. Aprendi isto a partir dos experimentos de um ma-
ravilhoso inglês12. É possivelmente a observação mais curiosa e
óbvia que podemos fazer de nós mesmos. E a sua simplicidade
evidencia algo tremendo a respeito da natureza da consciência.
Posso ver claramente daqui onde estou sentado que minha cabe-
ça é invisível para mim. Que todas as pessoas que vejo no cam-
po dos fenômenos, no mundo físico ao meu redor, surgem com-
pletas e inteiras, e que sou o único desse campo que pode relatar
que não vê a sua própria cabeça. Convido o leitor a realizar esse
simples experimento. Ele nos parece inicialmente pueril. Posso
dizer: “Sim, não vejo a minha cabeça, e o que isso diz a respeito
da consciência, e muito mais do Absoluto?”. Posso falar de mim
mesmo, do que a sutil compreensão desse experimento provo-
cou em mim anos atrás. Pensei que essa era uma constatação tri-
vial, porque de qualquer modo todas as pessoas podem relatar o
mesmo. É simplesmente uma característica fenomenológica da
consciência em primeira pessoa – julguei apressadamente. Mas
quando me deti um pouco mais a observar, tive pela primei-
ra vez a experiência de reconhecer o espaço de consciência em
primeira pessoa como anterior ao processo mental que normal-
mente identificava como sendo eu mesmo.
12. Os livros de Douglas Harding, como On Having no Head e The Little Book of
Life and Death, são as melhores introduções aos seus experimentos.
158
Mas essa intuição é apenas o começo. Parece-nos absurdo con-
siderar seriamente que neste fato tão simples e óbvio está escon-
dida uma verdade profunda e talvez última a respeito da cons-
ciência. Talvez isto se deva ao fato de que a consciência não é
importante para nós. Desconsideramos o que ela seja. E quando
buscamos compreendê-la, vemo-la de fora, e nunca a partir de
nós mesmos, do que vivenciamos no centro da experiência de ser
uma primeira pessoa – e o que exatamente é isso?
Ser uma consciência, possuir sensibilidade, senciência, é o
ponto de maior espanto nisso que chamo de realidade. Percebi
com o tempo que realizamos historicamente poucos avanços no
campo da subjetividade, e na verdade, homens e mulheres de ou-
tras épocas devem ter sido capazes de perscrutar suas mentes de
um modo muito mais agudo do que o fazemos hoje. Então quan-
do questionamos e observamos os fatos elementares da nossa sub-
jetividade, não sabemos exatamente como reagir. Quando lemos
nos místicos de todas as eras que a Mente ou Consciência é a ba-
se de tudo, sentimos na maior parte do tempo uma suave indife-
rença. E talvez esse seja o obstáculo para nós, pessoas de racio-
nalidade contemporânea. Contemplar diretamente a consciência
não é fácil para nós, que nos perdemos e por vezes nos deparamos
com um vazio ou estupor. Falta-nos discernimento subjetivo. En-
tão um exercício como este possui apenas uma finalidade: indicar
um ponto de partida, uma anomalia fenomenológica que pode se
transformar num intenso paradoxo, se formos capazes de persistir
159
por tempo suficiente na sua contemplação. Essa anomalia é uma
chave. Se por um breve instante formos capazes de desvincular a
nossa atenção do processo contínuo de surgimento de experiên-
cias no nosso campo interior, a consciência sem cabeça poderá se
reconhecer de um modo completamente novo. Ela será capaz de
levar realmente a sério o que vê. E se trata verdadeiramente disso.
De considerar o maior fato de todos, que aquilo que somos no ní-
vel mais fundamental está no centro do universo, de toda esta vas-
ta manifestação que se apresenta a nós. Se pudermos sentir com
um pleno impacto emocional a verdade por trás desse fato apa-
rentemente banal, abriremos a possibilidade de um primeiro vis-
lumbre do Absoluto. Posso relatar que assim ocorreu comigo.
O nosso enorme anseio por ser mais do que já somos então
cessa, quando todas as identidades são finalmente vistas como
máscaras para a expressão do Absoluto. Sei que este é o caso. É
talvez a maior janela de transcendência que possuímos. Não pos-
so dizer que tenha vivido a sua realização de forma completa, mas
espero poder contribuir com outros que também estejam na mes-
ma busca, pois posso testemunhar que ela é real.
Mas por que então este processo misterioso é tão difícil pa-
ra nós? Talvez nos falte assombro e perplexidade existencial. Es-
tamos muito convencidos de nós mesmos e do que aparentemen-
te somos. Se tivéssemos uma dúvida suficientemente profunda,
a porta certamente estaria mais aberta. Temos um anseio enor-
me por uma revelação além de nós mesmos, e por um contato
160
com uma inteligência que nos supera. No entanto, a tendência
de olharmos na direção oposta está muito arraigada. Queremos
e não queremos simultaneamente. Temos medo das nossas pro-
fundezas. Qualquer passo que nos leve além do universo imaginá-
rio que criamos nos traz enorme pavor. Por estes e outros motivos
mantemos a nós mesmos coletivamente dentro de uma realidade
ilusória, e perdemos a possibilidade de vivenciar a natureza ori-
ginal da consciência diretamente. Mas a realização está próxima.
Talvez em breve seja possível suportar mais do que alguns vis-
lumbres e poderemos viver continuamente na identidade com o
Absoluto. Somos seres intermediários nesta prolongada passagem
para o novo estado de Ser.
A iluminação nos mostra o significado original do universo.
Entendemos tudo de uma vez só quando o castelo existencial no
qual vivemos colapsa, e a consciência se vê livre de amarras. Ela se
lembra do que já foi e do que será. Como podemos tocar nessa ver-
dade em vida? Consigo pensar em apenas um catalisador forte o
suficiente para provocar o salto: a consciência da morte. Se você
soubesse que iria morrer amanhã, quanto disso tudo realmente im-
portaria? A própria vida após a morte importaria? Os outros mun-
dos também não passarão? Não são eles sonhos sobre sonhos?
Ali onde a morte é sentida mais claramente vemos a reali-
dade na sua forma eterna e completa. Percebemos algo que na
maior parte do tempo nos escapa. Essa experiência está aberta
a todos nós. Quando nos vemos um pouco mais velhos, quan-
161
do perdemos alguém que amamos, quando vemos o mundo em
declínio – sentimos a morte um pouco mais próxima. Se formos
capazes de ouvi-la e de reconhecê-la não como inimiga, mas sim
uma aliada, ela pode nos deixar abertos à percepção do Absolu-
to. São os momentos de nossas vidas em que deixamos de proje-
tar a nós mesmos ativamente e percebemos que empreendemos
uma batalha perdida.
Nesses breves instantes algo brilha por trás de nós. A miste-
riosa consciência que nos trouxe à existência se torna transparen-
te. Não somos mais obstáculos para sua expressão. Podemos ver a
beleza em tudo pois não mais buscamos um resultado dos nossos
atos, nem fazemos demandas à vida. Mas essa clareza é rara para a
maior parte de nós. Por trás de tudo fazemos uma tentativa furio-
sa de prolongar a nós mesmos. Queremos instintivamente perdu-
rar. O Absoluto revela a imortalidade da consciência, mas quan-
do nos tornamos um com ele o véu mágico que forma o mundo
se dissolve. Vemos tudo do jeito que D’us vê, aquele que na sua
imensa e maravilhosa solidão contempla todas as coisas.
No entanto, a única coisa necessária para um salto transcenden-
tal é a pergunta certa. Ela funciona como uma chave para a fecha-
dura de nossa mente, como um longo fio que pode nos extrair des-
se confuso e obscuro labirinto no qual estamos imersos.
Recordo-me que numa manhã fria encontrei tal pergunta.
Queria saber onde estava o início e o fim de todas as coisas, de
todos os seres e de todos os universos. Aquilo que está além de
162
todos os estados de consciência. Queria saber se algo em mim
sobreviveria à morte. Estava intensamente quieto, e sentia um es-
paço vasto dentro de mim mesmo. O silência era tão profundo
que me causava espanto. Era possível desaparecer dentro dele. Co-
mo é que um lugar assim existia dentro de mim mesmo e nunca
havia percebido? A pergunta tinha paralisado a minha mente. Pa-
rei e entrei nele. Na verdade, quando falamos assim construímos
metáforas, mas elas refletem o que realmente sentimos. Esse vas-
to silêncio que está oculto para a maior parte de nós está sempre
aberto, mas nós não o sentimos. De algum modo nascemos pa-
ra descobrir o que ele é, esse silêncio que é como a morte, que é o
próprio Nada, mas na verdade é fonte de Tudo.
163
O DIÁLOGO FINAL ENTRE
O A B S O L U T O E M AYA
Absoluto: Não posso mais. Coloquei fogo no meu mundo e o
dissolvi inteiramente. E por quê? Por nada. Destruí minha vida
e a mim mesmo e nada tenho nas mãos além do meu desespero.
Minha busca foi minha fuga. A dor que eu via nos corpos, nos
doentes e nos velhos era a minha. Meu coração já estava partido
mesmo antes de ter dado o primeiro passo em busca da minha
fantasiosa libertação. Agora vejo que nada mais tenho além de
um corpo sem forças e sem vida, de uma alma vazia e cheia de
dor, de uma mente que não possui ânimo nem mesmo para um
singelo pensamento. Não encontrei a resposta. Entendo menos
deste mundo do que antes. Exilado num labirinto que me tortura,
caminho incessantemente e retorno ao mesmo lugar de onde
minha ignorância surge. Eu desisto. Aquela que criou esta prisão
pode ter o meu corpo. Você que é a mestra de mentes e de almas –
já não me oponho mais. Sou completamente seu.
165
mas nunca um ser sequer se aproxima. Agora que está próximo da
extinção de si mesmo, posso lhe revelar a verdade. Posso lhe dizer
por que tudo é como é.
Maya: Ó meu amor, lembre-se de como entrou neste sonho por li-
vre escolha, acreditando ser uma pequena e miserável criatura por
incontáveis vidas, perdido num mundo estranho e hostil. Agora
166
verá mais uma vez a verdade última de todas as coisas, ó sonhador
divino! Ouça as minhas palavras, pois nelas encontrará a liberta-
ção que tão ansiosamente almeja.
Maya: Este é o sonho que lhe dei antes do tempo existir. O sonho
sagrado, o sonho que adquire vida além de si mesmo. Pois é isso
que quis. O único Ser de toda a realidade, onipresente e infinito,
desejava reconhecer-se como um ente real e finito. É a sua nature-
za criar mundos e seres por toda a eternidade e outorgar existên-
cia àquilo que não é. E ainda assim, sem a sua criação você nada
é. Todas as formas, mundos e histórias cósmicas são o seu pró-
prio ser. Sozinho na sua imaginação divina, suas belas fantasias,
as grandes formas de luz na eternidade são apenas sombras, bo-
lhas no rio da vida – o Nada puro. O seu coração quis que elas ti-
vessem o seu ser, o seu espírito, mas não havia nada que você pu-
desse fazer para dar-lhes vida.
167
Maya: Você podia amar apenas um sonho que fosse real. Um so-
nho que fosse diferente de todos os outros, que tivesse verdadei-
ro ser – e por isso fui criada. A vida é este sonho. Eu lhe vi pleno
de amor pela sua imaginação sem vida, sozinho na solidão do Tu-
do. Seus olhos então buscaram os meus – o primeiro ser que vo-
cê contemplou além de si mesmo. Meu coração queria lhe dar um
presente, um sonho que contivesse ser, que superasse a não-exis-
tência inerente a todas as coisas. Mas um véu haveria de cair sobre
o seu Ser, para que entrasse no grande esquecimento, no grande
sono, na grande escuridão. Você foi iludido para que não se visse
mais como Tudo, para que não soubesse Tudo; para que houves-
se Outros. É isto que lhe dei. Este foi o meu presente. Um sonho
eterno, ó sonhador divino.
168
Maya: É a única miragem que possui suficiente ser para que ne-
la creia. O único sonho que você acreditaria como sendo digno da
sua verdade – o único que traria o amor de dentro de si. O tecido
dos sonhos não possui substância, ó abençoado. Ele é transitório
e sem valor intrínseco. Tudo que é criado a partir da sua não-exis-
tência está imbuído de um tremendo paradoxo – como pode o ir-
real se tornar real? Como pode o real que não possui face se ver
através do espelho de suas criações irreais? Esta realidade é feita
do tecido dos sonhos. É essa a sua fundação – a insubstancialida-
de na raiz do seu próprio ser.
Sem o imenso desequilíbrio na raiz deste mundo de sonhos,
sem a paradoxal desarmonia que produz o delicado movimento
da dualidade, e ao mesmo tempo o imenso sofrimento que per-
meia todas as coisas, o mundo dos sonhos não se tornaria real. Por
isso as coisas devem ser como são.
É neste sonho não-existente e eterno que termina sua incan-
sável peregrinação por dentro de si mesmo. Ele é o único que lhe
mostra uma realidade que a todos os outros escapa. A estrutura
deste mundo dual permite que você entenda a realidade pura que
é o seu próprio ser. Não há nada além disto, ó abençoado Absolu-
to, nunca houve e nunca haverá. Não há realidade além do que vê
aqui. Nada além da terra que lhe sustenta. Todo este mundo é uma
vasta alegoria imaginária para que o seu rosto sem rosto veja a si
mesmo em todas as coisas. A sua natureza última é este Tudo in-
compreensível que conhece a si mesmo por si mesmo. O mundo é
169
um espelho de sua natureza infinita, ó abençoado. E não existe es-
pelho perfeito para si mesmo. Sua natureza não pode ser contida.
Será para sempre intocável, o mais puro mistério.
Maya: Ó abençoado Absoluto que tudo vê, para o seu olho, este
mundo não é sofrimento mas o próprio esplendor do seu Ser. A
natureza desta dualidade inescrutável é a beleza da imperfeição, a
experiência de opostos irreconciliáveis, o jogo eterno do seu gran-
de Eu. Precisamente aquilo que se mostra como mal neste plano é
o que o torna real. São os ingredientes que tornam o mundo dos
sonhos real. Esta é a compreensão última.
A história do mundo é a história do seu despertar. Você foi to-
dos os homens. Você viveu todas as vidas. Aprendendo progressi-
170
vamente a verdade sobre si mesmo e chegando cada vez mais per-
to da realização de sua natureza final. A razão última para toda a
história, para toda a dor, para todo o sofrimento, é que se não ti-
vesse sido assim, você não teria acreditado na realidade do sonho
da vida, ó grande sonhador divino. No fim da história a justifica-
tiva para tudo é sempre apresentada. Compreenda, meu amor. A
realidade precisa se tornar real para si mesma. É devido a isso que
as limitações, barreiras e o sofrimento existem.
A realidade é o único sonho que você é capaz de aceitar. Para
ele existir deve ser tal como é. Sempre foi assim, e assim sempre
será. O sentido sempre se revela ao final. Sempre.
Maya: Seu desejo mais profundo é pelo Real, o Absoluto que é vo-
cê mesmo. Esta é a gigantesca verdade que subjaz este universo. A
partir das polaridades do Ser e do Não-Ser devo criar um mundo,
ó grande sonhador, pois você não possui substância em si mesmo.
É essa a minha tarefa. Criar um universo para que habite e acredi-
te ser real. Agora compreende o drama dos homens? A origem da
fraqueza, das dificuldades, da dor, do imenso sofrimento – são os
elementos que fazem o mundo onírico se tornar real para o seu es-
pírito, ó abençoado. Este cosmos cíclico é a experiência da imper-
feição que busca retornar à perfeição imaculada que não possui for-
171
ma. Quando vê o mundo humano com o seu olho humano, nada vê
além de imperfeição. Quando ele é visto através dos olhos do Gran-
de Despertar, tudo reflete a perfeição última.
172
mundo, do grande Vazio por trás da realidade, poderá amá-lo in-
condicionalmente. O Nada é a fonte de sua beleza transcendental.
O drama humano é visto então na sua essência. Nestes momentos
de irrupção da verdade na sua consciência se está muito próximo
da verdade da Vida. Toda a dor e sofrimento são transmutados e
entendidos no seu real valor e sentido. A existência é então vista
com os olhos daquele que sempre existiu e existirá, do Ser imor-
tal por trás de todos os seres. Esse Ser é você mesmo, ó Absoluto!
173
suas possibilidades, sentirão o sofrimento de existirem exiladas da
Grande Consciência, até gradualmente compreenderem a verda-
de última de sua existência e atingirem o Despertar. Você, ó Ab-
soluto, é a Grande Mente que se vê de todos os pontos de vista si-
multaneamente, e gera para si mesmo a aparência da existência de
outros. Mas na verdade não há outros. Existe apenas Um, que é
você. E sem os Outros, sem a sua criação, você nada é.
174
POEMAS
A CRIANÇA NA REALIDADE SEM INÍCIO
177
A ABERTURA DO OLHO
178
O D E S P E R TA R D O G R A N D E S O N O
Te sinto.
Agora vejo como vês o mundo.
O que o mundo é para ti.
Despertaste do teu grande sono.
Com os teus olhos vejo o mundo e,
mistérios dos mistérios,
com os teus olhos sempre vi o mundo.
Sempre estiveste aqui,
tua presença imortal sustentando
a Criação em todas as suas formas.
Não apenas sou visto por ti,
mas vivo em ti e sem ti nada sou.
179
A GRANDE ALMA
Tu,
ó grande alma,
que viveste
todas as vidas,
que és todas as vidas,
agora não mais estás na escuridão.
Te reconhece na face de todos os homens.
O véu foi partido e teu olho se abriu.
Pois o mundo sofre pela tua distância,
pelo teu silêncio e pelo teu nada,
mas milagre dos milagres,
tua substância é o próprio mundo,
que sem ela, nada seria.
Vós não apenas estais próximo de nossas almas,
mas vós sois nossas almas.
Enganados pelos labirintos de nossas mentes,
pensamos estar exilados neste mundo frio e duro.
Mas estamos dentro de ti.
Não podemos estar longe de ti,
nem por um segundo.
180
DOIS OU UM
181
O V É U PA R T I D O
182
A ESSÊNCIA QUE JORRA
Tu jorras em mim.
Quando vens, nadas livre no mar da minha alma.
Ó visitante misteriosa, minha essência,
coração do meu coração, como brilhas,
como me dilaceras quando te revelas.
Pois tua luz me fere,
eu, no crepúsculo,
crepitando no fogo do mundo dividido,
mirando o céu mas preso pelas raízes da terra.
Em ambos os mundos vivo,
e quando vens me transportas para o teu reino,
onde nada mais é.
Movimento perpétuo que cria todas as coisas,
incansável luz das formas e das estrelas,
tua música perpassa os meus olhos e me
ensina a não temer,
nem por um segundo.
Pois em ti não há medo,
mas apenas a pura beleza.
Tu consomes o terror de nossas almas e o transforma
no cristal que brilha na escuridão.
Pois a escuridão é profunda,
e tu estiveste antes dela.
183
Coração da realidade,
essência divina,
te buscamos,
caminhamos em tua direção,
caímos e retornamos,
e então,
num relâmpago te mostras,
e nos revela o que somos e sempre seremos.
184
EU E TU INDISTINTOS
Lembre-se da Origem.
O véu se parte -
o que é este mundo inteiro?
Quem o vê?
Filho, você me ouve?
Há tempos lhe busco,
Consegue sentir a minha mão,
percebe a minha voz dentro
do redemoinho infinito da ilusão?
Há quantas eras nos buscamos,
sem você eu não me vejo, e sem
mim você não se lembra de quem
verdadeiramente é,
Olhe nos meus olhos, entre no meu
olho único, que é o seu, veja como eu
vejo, meu espírito eternamente seu,
nós, idênticos na base do nosso ser.
185
A T R A N S PA R Ê N C I A D O M U N D O
186
O OLHO DOS OLHOS
187
A LEMBRANÇA
Ouça-me.
Eu nunca te deixei.
Sempre estive ao teu lado, sempre.
Não tenho nome e nem forma,
sou aquele
sem começo que por toda eternidade buscaste,
que é a fonte do teu ser e que se revela como o teu próprio Ser.
188
QUEM SOU?
189
A GRANDE PERFEIÇÃO
190
Eu te vejo infinito nunca tendo nascido.
Eu te vejo no começo dos tempos,
no auge da Criação,
e também no seu fim.
Eu te vejo além de todas
as ilusões que carregas em ti mesmo.
E vendo-o vejo a todos.
Pois todos são o que sou.
E eu tudo sou.
Todos os olhos são Tudo.
Cada Alma é a Grande Perfeição e nada
além Dela.
191