You are on page 1of 10

Biomoralidade e estigma: um estudo antropológico sobre o alcoolismo feminino e a co-

dependência familiar

Eduardo Tadeu Brunello 1

Introdução
O objetivo desta comunicação é apresentar algumas reflexões a respeito do
alcoolismo entre mulheres e sua interface com os mecanismos discursivos de
estigmatização que levantam potenciais barreiras na admissão da dependência alcoólica
e na procura de ajuda.
A pesquisa, de cunho etnográfico, foi realizada em um grupo de Alcoólicos
Anônimos (A.A) de Londrina. Foram observadas as reuniões desta organização a fim de
identificar como funciona o seu programa terapêutico de combate ao alcoolismo, que
têm como pressuposto central ajudar o alcoólico que “deseja parar de beber a manter a
sobriedade”, segundo sua literatura (ALCOÓLICOS ANÔNIMOS, 1976). Para
viabilizar essa pesquisa, complementarmente, analisei um material informativo cedido
pelos A.A voltados exclusivamente às mulheres, o qual traz à tona diversos relatos e
trajetórias de vida de mulheres que sofriam ou sofrem com alcoolismo e o preconceito
moral diante à situação2.
Na visão do senso comum, os freqüentadores das reuniões dos A.A são vistos
como “desvalidos, bêbados irresponsáveis e mendigos maltrapilhos” (Motta, 2004,
p.19) e não como doentes. No caso das mulheres, este estigma se torna ainda maior,
dada a legitimidade social da relação entre o uso de álcool por homens nos espaços
públicos, que resulta, inclusive, em maiores dificuldades para mulheres assumirem a
dependência e procurar ajuda, como foi observado na pesquisa. O mencionado
pressuposto, analisado através da categoria gênero, é o alicerce da relevância deste
trabalho.
A intensificação de uma "ética do beber" em ambientes públicos, espaços por
excelência de consumo alcoólico por homens, indica a percepção de uma maior
"transgressão" deste ato em relação ao consumo do álcool por parte das mulheres.

1
Mestrando em Ciências Sociais (UEL). End. Eletrônico: dubrunello@hotmail.com
2
Os depoimentos aqui apresentados, tanto do material informativo voltado para as mulheres quanto das
mulheres do grupo, apresentam nomes fictícios.
Durante a pesquisa foi constatado que muitas mulheres para fugirem dos olhos
estigmatizados do público preferiam beber dentro do ambiente privado, de suas
residências, mostrando-se como uma estratégia que as “livram” do preconceito social
“face- a- face”, ou seja, de olhares de desconfiança e de desqualificação moral por
estarem consumindo bebidas alcoólicas rotineiramente em ambientes públicos.
Contudo, como o alcoolismo é uma “doença crônica e progressiva” segundo a literatura
de A.A (1976), essas mulheres encontram dificuldades em “mascarar” o alcoolismo por
muito tempo, sendo este, um fator agravante para o “não controle” da doença.
Para abordar e analisar o estigma, inter-relacionado com o alcoolismo e as
questões de gênero, tem-se como ponto de partida as contribuições de Foucault (1988)
sobre o “biopoder” e a domesticação dos corpos. A partir desse autor, busco perceber
como os discursos são construídos socialmente indicando uma normatividade
esteriotipada dos papéis definidos em relação ao que é cristalizado como atributos
masculinos e femininos. No contexto desta pesquisa, observa-se que os supostos
atributos masculinos (como o beber em espaços públicos) quando “incorporados” pelas
mulheres que bebem cotidianamente nestes espaços, desencadeariam um processo
conflitivo e/ou duplamente transgressor, na medida em que: 1) o alcoolismo é visto
somente como uma doença moral pelo senso comum e 2) as mulheres estariam
“supostamente” descumprindo seu “papel natural” de cuidadora do lar e provedora da
vida. Ou seja, são produzidos discursos que as dificultariam em assumir a dependência e
a procurar ajuda frente ao processo de estigmatização.
Desde a infância ocorre um vínculo imediato que conjuga, de maneira complexa,
o desejo e o poder; necessidade, enfim, de um controle e/ou um conhecimento para
arbitrar e regular essas novas relações entre a vigilância obrigatória dos pais e do corpo
tão frágil das crianças, por exemplo. Como nos aponta Lauretis (1991) a criança na
língua inglesa é expresso pelo pronome it, designando algo “não sexuado” em que se
deve passar por uma espécie de “treinamento” no intuito de se transformar em she ou he
sendo, ainda relacionadas, a uma extensa carga prática/simbólica de “modos adequados
de se comportar”.
O questionamento da sexualidade; “anomalias” e/ou “desvios”, foram um dos
procedimentos de constituição desse tipo de dispositivo. O indivíduo “anormal”,
considerado por tantas instituições, discursos e saberes, “deriva ao mesmo tempo da
exceção jurídico-natural do mostro das multidões, dos incorrigíveis, detidos pelos
aparelhos de adestramento, e do universal secreto das sexualidades infantis”. (Foucault,
1997, p.65-66), o que nos dão uma falsa noção de desvios.
Tomando como premissas as argumentações supracitadas procuro apresentar
uma breve análise, a partir das narrativas colhidas nos A.A e no material informativo, o
peso da materialidade discursiva repressora para as mulheres que bebem nos ambientes
públicos e, adicionalmente, as possíveis estratégias de algumas mulheres que optam
pelo beber privado no intuito de não gerar um sentimento de “transgressão”, mas que, e
ao mesmo tempo, desencadeia um processo “mais conflitivo” no trato da dependência
alcoólica.

I A domesticação dos corpos e o consumo rotineiro de álcool em espaços públicos


como indicador da “transgressão”

Levando em consideração que a construção do discurso suscita estereótipos de


gênero, criando uma diversidade de barreiras morais, busco operacionalizar neste tópico
como as mulheres se encontram em uma situação de “potencialidade transgressora”,
enraizadas a partir de mecanismos discursivos de controle, quando consomem álcool
cotidianamente em ambientes públicos ou, quando contrário, tecem estratégias para
fugir do olhar estigmatizado, como o beber apartado em ambientes privados.
Apresentarei aqui alguns relatos de mulheres pertencentes ao A.A assim como
do material informativo cedido às mulheres, de maneira livre, na medida em que
constatar que determinadas narrativas são representativas dos dispositivos morais
relevantes de serem identificados e discutidos para os objetivos deste trabalho.
Estes mecanismos discursivos são materializados quando constatamos que existe
uma maior aceitação entre homens que consomem álcool rotineiramente em espaços
públicos, visto que grande parte das pessoas aceitam e até apreendem como “natural”
um homem alcoolizado, porém, no caso das mulheres, essa concordância [beber
rotineiro e espaços públicos] se manifesta de forma mais repulsiva. Na maioria das
vezes, os olhares designados a essas mulheres associam a atitude à uma “falta de
caráter”, segundo depoimentos tanto de homens quanto de mulheres no A.A. Isto é
verificável a partir da construção discursiva explicitada por algumas mulheres do grupo
ao resgatarem lembranças do período do beber rotineiro organizado entorno do repúdio
e da forma taxativa em que as pessoas se referiam: “Credo! aquela mulher bebe demais
até parece um homem”.(diário de campo)
Percebe-se, por meio desse efeito discurso, que existe um sentimento de aversão
com as mulheres sendo, estas, marcadas por um beber masculiniza. Este discurso se
torna uma barreira material na medida em que a moralidade avança na suposta
incompatibilidade entre espaços públicos (em nosso caso principalmente os bares) e as
mulheres. Neste episódio, o estigma sofrido por uma mulher alcoólica se faz presente
em comparação ao beber masculino, que também é performativo de uma suposta
identidade dita masculina.
Pode-se refletir a partir dos discursos das mulheres do A.A e da análise da
literatura voltada somente às mulheres, sobre como elas sentiam e ainda sentem o peso
do alcoolismo de uma forma dobrada em comparação aos homens. A produção do
discurso, sobre a mulher alcoólica, é construída primordialmente em relação a
materialidade de seu corpo.
A partir dessas argumentações, no tópico seguinte, procuro apresentar como o
peso desta condenação e moralização sobre os corpos, faz com que os sujeitos dessa
pesquisa procurem estratégias para fugir dos olhos do estigma social “face-a-face”.

II Beber privado em intersecção com o estigma

Constatou-se nos depoimentos sobre o consumo de bebida em ambientes


privados que, estes [depoimentos], eram organizados principalmente em relação ao
estigma. Os relatos de um modo geral são permeados pela “vergonha”, “sofrimento” e
“culpabilidade”, o que acarretava em um anseio de esconder o problema, visto que os
discursos sobre mulheres alcoólicas na nossa sociedade podem se direcionar no sentido
da “quebra” dos “princípios” sociais de gênero: a “boa mulher”, “a boa mãe”, “a boa
esposa”, “a dona do lar”. Geralmente os alcoólicos são os últimos a admitirem que
precisam ser ajudados e, no caso das mulheres, pode ocorre uma dificuldade maior
neste processo.
Os depoimentos das mulheres também apresentaram o beber privado como uma
forma de mascarar o problema de seus maridos e familiares em geral, sofrendo
geralmente sozinhas, pela “vergonha” que pode passa uma mulher alcoólica aos olhos
de outrem. Porém, relatam também a dificuldade de esconder o problema por muito
tempo uma vez que, o alcoolismo, ao ser uma doença crônica e progressiva, permanece
em estágio de crescimento.
O consumo alcoólico principalmente no espaço de suas casas e de forma
solitária é uma opção de fugir do olhar da sociedade, como uma maneira de não se
expor. A questão do alcoolismo em si fica ofuscada em detrimento da visibilidade social
e da “transgressão” privado/ público, o que faz com que se manifeste a opção por “beber
no lar”. Contudo, o beber escondido, o sofrimento e a “negação da situação” são
passiveis de aumentarem progressivamente:

“Eu não bebia em bares. A maior parte das minhas bebedeiras aconteceu em
minha casa. O trabalho do meu marido obrigava-o a viajar com freqüência, e
a cada vez que ele viajava, eu esperava uma meia hora para ir até o armazém,
comprar o meu estoque de bebidas, voltar para casa e beber sem parar, até me
apagar” (Cláudia, A.A para mulheres, 1991, p.36)

As expectativas sociais de gênero versus o hábito de beber nos bares indicaram,


de forma evidente, a partir de alguns relatos coletados na pesquisa, uma concepção de
transgressão por parte das próprias mulheres alcoólicas, legitimando e reproduzindo o
discurso de que “uma mulher que bebe deste jeito não é uma mulher”, classificando,
portanto, como um duplo desvio moral. O beber privado não acarretaria na quebra do
papel social de “mulher da casa”, condenado pelo olhar repugnante das pessoas,
entretanto, desencadeia uma gama de dispositivos de controle dos corpos e um processo
de reificação dos estereótipos de gênero, inclusive, pelas próprias mulheres.

“Eu era a típica dona-de-casa, e imaginava que ninguém soubesse da minha


embriaguez de todos os dias. O álcool esteve interferindo na minha vida,
causando muitos problemas, por muitos anos. Cheguei em momentos que
pela falta de álcool e por não poder sair para comprar senão meu marido
descobriria que estava bebendo, a beber perfumes que contivessem álcool,
além de álcool de cozinha. Porém, não consegui esconder por muito tempo.
Meu marido uma vez chegou em casa e eu estava completamente
embriagada”. (Helena)

Tanto na observação participante, quanto em alguns relatos do material


informativo, foi constatada uma grande dificuldade por parte das mulheres em procurar
ajuda, decorrente da dupla condenação moral que sofre uma mulher alcoólica. A própria
mulher tende a esconder o problema e freqüentemente se “enganar”, com medo do olhar
repressivo da sociedade. A partir da literatura, observa-se que:

A palavra “alcoólico’’ pode perturbá-la. Para muitas pessoas, significa


apenas uma pessoa fraca ou um marginal. E quando é aplicada as mulheres
este engano, continua particularmente forte. A maior parte da sociedade tende
a ver com tolerância e até achar engraçado um homem bêbado, porém se
afasta enojada de uma mulher que se encontre nas mesmas condições. E o
que é ainda mais trágico: a mulher alcoólica, ela mesma, frequentemente
compartilha desse preconceito. Para ela, o peso da culpa que todo bebedor
alcoólico carrega na consciência é muitas vezes dobrado. (A.A. para
mulheres, 1991, p. 7)
Procurei nesse tópico, (através de breves considerações), apresentar alguns
discursos das mulheres do grupo pesquisado e do material informativo cedido pelo A.A
com o intuito de apontar como a estratégia do “beber feminino”, dentro do ambiente
privado, procura minimizar/escamotear o estigma. Observa-se nesses depoimentos
supracitados uma maior culpabilização pelo consumo cotidiano da bebida alcoólica,
assim como, tentativas de querer esconder o problema. O próximo tópico, entretanto, irá
expor como mulheres sofrem também em seus ambientes domésticos através de seus
maridos alcoólicos sem, necessariamente, estar sofrendo diretamente com os efeitos
abusivos do álcool. Essa problemática surgiu durante minha pesquisa de campo e
compõe as “figuras do feminino” em relação ao alcoolismo/estigma.

III Alcoolismo e co-dependência

O objetivo aqui é apontar algumas constatações iniciais que se referem


especificamente as mulheres esposas co-dependentes alcoólicas em relação a sua “não
transgressão” dos estereótipos de gênero, complementando o “universo feminino”
proposto para esse trabalho.
Partindo das contribuições de Nunes (2009), faz-se necessário elucidar que o
termo co-dependência apareceu no contexto da psicoterapia, no final da década de 70,
para assinalar os indivíduos cuja vida era afetada por dependentes de álcool e drogas
ilícita. No entanto, utiliza-se aqui o termo co-dependência no seu sentido restrito, isto é,
para se referir especificamente as esposas/companheiras dos homens alcoólicos
observadas na pesquisa de campo.
A partir de algumas narrativas, assim como alguns depoimentos de co-
dependentes presente nas reuniões, foi possível, de certa forma, apreender alguns
elementos atribuídos à co-dependência, uma vez que, muitas das experiências narradas
em A.A, dificilmente se restringem a um plano individual dos efeitos materiais,
psicológicos e sociais, observando-se um “efeito dominó” dentro da família.
No grupo pesquisado, muitos alcoólicos narravam em suas partilhas sentimentos
de arrependimento do período do beber rotineiro. Esses discursos abordavam o álcool
não somente na constatação de danos e transtornos para o dependente alcoólico
(“tremedeiras”, “ressaca física”, “ressaca moral”, “alucinações”, entre outras) como
também foi possível identificar nos depoimentos certo tipo de “sentimento de
arrependimento” dos alcoólicos em recuperação, principalmente pelo sofrimento
provocado aos familiares. O depoimento a seguir é emblemático nesse sentido e aponta
para um discurso que foi corriqueiro durante a pesquisa: “Hoje em dia eu não faço
minha família sofrer, essa foi minha maior glória” (Marcos).
Dentre os depoimentos dos A.A, outra situação também se apresenta como
alegórica para indicarmos a co- dependência. Perto do período natalino, subitamente
uma mulher acompanhante, não alcoólica, levantou e pediu a oportunidade de fazer um
depoimento:

“Eu quero dizer aqui pra todo mundo que eu tenho muito orgulho do meu
marido. Só eu sei o quanto nós sofremos com o alcoolismo, mas agora os
momentos difíceis passaram. Eu quero agradecer a todos pois aqui em A.A
encontramos pessoas maravilhosas que entendem quanto é difícil a situação.
Estou muito feliz por ele estar sóbrio há 4 meses e esse será meu maior
presente de Natal. Desejo a vocês mais um dia sem álcool e para quem não
bebe muita serenidade”. (Lúcia).

Analisando a fala supracitada, pode-se perceber que a alegria maior de Lúcia foi
obtida diante da situação de abstinência de seu marido, uma vez que, o sofrimento dela,
estava diretamente atrelado ao sofrimento dele. Logo, o controle do alcoolismo por
parte de seu marido, foi sua conquista também e isso, de certa forma, proporcionou um
reajuste na condição de “desarmonia familiar” provocada pelo alcoolismo.
É possível assim constatar que, o alcoolismo, designa uma série de categorias
dentro do aspecto da doença moral atribuída ao sofrimento familiar, o que acarreta na
provável “desestruturação familiar”. Para tanto, Campos (2008) afirmou o seguinte:

Os A.As. mobilizam um conjunto de expressões e de categorias morais, que


denotam uma forma própria de entender o alcoolismo e seus efeitos. Assim, a
“doença alcoólica” é apreendida pelas seguintes categorias morais:
“orgulho”, “onipotência”, “egocentrismo”, “ressentimento” que, por sua vez,
provocam: efeitos morais, tais como: “sarjeta moral”, “desequilíbrio moral”,
“perda de força moral”, “desmoralização”; efeitos sociais, como por
exemplo: “sarjeta social”, “perda dos amigos”; efeitos profissionais,
definidos como: “sarjeta profissional” e “perda do trabalho” e também efeitos
familiares: “brigas do casal”, “conflitos com os filhos”, “perda da família” e
“doença da família” (ibidem, p.6).

Portanto, para o alcoólico que está inserido dentro de uma configuração familiar,
é improvável que as pessoas do seu convívio permaneçam ilesas às implicações que o
alcoolismo lhes causam. Este processo, que ocorre paralelamente entre o alcoólico e seu
co-dependente, culmina no “estilhaçamento das relações sociais familiares” no qual, o
“bebedor”, traz para o convívio familiar, um conjunto de fatores ligados ao beber que
são incompatíveis com as atividades cotidianas de sua rede, por exemplo. O sofrimento
instalado na forma de “crise familiar” é densamente sentido pelo alcoólico em seu
processo progressivo da doença e transbordado para seu ambiente doméstico. Referente
a tal suposição, Nunes (2009) assegura que:
O espaço doméstico passa a ter em comum as dores (físicas e emocionais), a
angústia, o medo, a raiva, o ressentimento e os dissabores. Do odor (mau
cheiro) do álcool ao nervosismo dos que se encontram em casa, no lar e não
sabem em que condições chegará o familiar alcoólatra; às promessas não
cumpridas, os sonhos desfeitos, as noites insones, a ausência total, tudo é
sofrimento, é decepção, é a verdadeira “dor da alma” (NUNES, 2009, p.4)

Observa-se que o dependente do álcool está diretamente ligado à doença, porém


seus familiares co-dependentes indiretamente acabam sendo vítimas do mesmo
processo, uma vez que compartilham do “drama” do alcoólico. O relacionamento entre
alcoólico e não alcoólico possui uma estrutura particular, que se transforma em um
dilema e/ou uma explicita desordem.
Conforme os pressupostos nativos dos A.A, o doente só consegue se tratar após
admitir a dependência alcoólica partindo da vontade própria em querer se recuperar.
Todavia, esse processo se manifesta extremamente dificultoso, uma vez que alcoólicos
do A.A, mesmo em cotidiana recuperação, ainda são vistos com desconfiança pelos seus
familiares, em decorrência das lembranças de sofrimento do passado. Nota-se como
exemplo este depoimento:
“Minha mulher batalhou muito comigo e me deu força para que eu saísse
dessa. Mas meu pai esses tempos tava no hospital e o meu nervosismo era
visível. Eu já sentia aquela desconfiança por parte dela como se ela pensasse:
“Ai! agora ele vai beber”. Realmente, antigamente, essa doença do meu pai
seria um pretexto para eu beber. Mas, hoje não! Eu até dou razão para a
desconfiança da minha mulher, pois eu já armei muita confusão. Mas, o que
interessa pra mim é que hoje eu to sóbrio, que eu luto dia após dia contra o
alcoolismo e, desconfiança nenhuma será motivo para eu perder meus
objetivos. Isso que importa”. (Renan).

Analisando esse depoimento, percebe-se que mesmo com a mulher do alcoólico


lhe apoiando para fugir das adversidades do alcoolismo ainda, de certa forma,
permanece o processo estigmatizador. Isso corrobora com os estudos de Goffman
(1982), no qual, é exposto que o estigma, quando adquirido, é uma marca indeletável,
como um ex-presidiário que após cumprir sua pena ainda é considerado um potencial
criminoso. Isto converge com a questão do alcoolismo no sentido de que, mesmo
adquirindo a sobriedade, a desconfiança do potencial “bêbado” sempre estará presente,
visto a falta de estabilidade das relações sociais quando do período do beber rotineiro.
Afirma-se, portanto, que as mulheres dos alcoólicos também podem sofrem com
o estigma, expresso em frases como “a mulher do bêbado” ou visões superficiais como
se ela, por ser considerada responsável pelo cuidado do ambiente doméstico, não tivesse
“ajuizado seu marido”. Dessa forma, ele seria apenas um “vagabundo bêbado” e ela não
mais que uma mulher sem o controle de seu lar. Ponderam-se essas afirmações pelas
considerações de Goffman:

É uma relação que leva a sociedade mais ampla a considerar o estigmatizado


e o indivíduo que se relaciona com ele como uma só pessoa. Assim, a mulher
fiel do paciente mental, a filha do ex - presidiário, o pai do aleijado, o amigo
do cego, a família do carrasco (pode-se acrescentar aqui a mulher do
alcoólico), todos estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do
estigmatizado com o qual se relacionam. Uma resposta a esse destino é
abraçá-lo e viver dentro do mundo do familiar ou amigo do estigmatizado.
Dever-se-ia acrescentar que as pessoas que adquirem desse modo um certo
grau de estigma podem, por sua vez, relacionar-se com outras que adquirem
algo da enfermidade de maneira indireta. Os problemas enfrentados por uma
pessoa estigmatizada espalham-se em ondas de intensidade decrescente
(GOFFMAN, 1982, p.40).

Dentro da conjuntura mencionada, verificada também no decorrer dessa


pesquisa, percebeu-se, sobretudo, que o papel das mulheres acompanhantes no A.A é
muito próximo ao de seus maridos, no sentido de serem atingidas diretamente pelas
conseqüências da dependência deles, sem, no entanto, serem usuárias abusivas de
álcool.
Portanto, seguindo as contribuições de Campos (2008), o qual sugere que o
alcoolismo é uma “doença da família”, indica-se um modo peculiar de se pensar o
alcoolismo, visto que é uma doença complexa, principalmente quanto à admissão dessa
dependência e à procura de ajuda. Este processo deve partir do próprio indivíduo
alcoólico, mesmo que os efeitos e conseqüências trazidas pelo alcoolismo acabam por
dizer respeito a toda a família e, particularmente, para a mulher do alcoólico.
As problematizações apresentadas aqui remetem mais a reflexões parciais do
que em resultados pontuais. Como se pode perceber é difícil dar conta de um universo
simbólico tão particular e denso quanto da temática selecionada. Conforme o
desenvolvimento do trabalho, pude identificar aspectos importantes deste tipo de grupo
de ajuda mútua e alguns elementos do alcoolismo feminino e co-dependente, não
esgotando sua riqueza simbólica, problemática e significativa.

Referências:
ALCOOLICOS ANÔNIMOS. Alcoólicos Anônimos. CLAAB. Centro de distribuição
de Literatura de Alcoólicos Anônimos no Brasil, 1976.
__________. A.A para mulheres. JUNAAB. Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos
Anônimos do Brasil. 1991.
CAMPOS, Edimilson. Lógica Terapêutica e Lógica Cultural: Biomoralidade e
Subjetividade em uma associação de ex-bebedores. Artigo publicado no 32º Encontro
Anual da Anpocs, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, Graal, 1988.
______. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). Tradução Andréa
Daher; consultoria, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 1997.
GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.
Rio de Janeiro, Zahar, 1982.
LAURETIS, Tereza de. A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses. O
feminismo como crítica da cultura. Buarque de Holanda. H. (Org.) Rio de Janeiro;
Rocco, 1994.
MOTTA, Leonardo de Araújo. A Dádiva da Sobriedade: a ajuda mútua nos grupos de
alcoólicos anônimos. São Paulo, Paulus, 2004.
NUNES, Rui Ferreira. Co-dependência: Amor ou Maldição? 2009. Disponível em:
<www.ruiferreiranunes.com/tag/co-dependencia>. Acesso 2/12/2009.

You might also like