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Maristela Rabaiolli
Mestranda em Letras
UniRitter
maristelarabaiolli@uol.com.br
Resumo: As questões autorais vêm sendo alvo de estudos há bastante tempo. Ainda na Antiguidade,
Platão, na obra Fedro, já mostrava preocupação a respeito do papel do autor e da importância crescente
da escrita em detrimento da oralidade. Embora o filósofo não tenha utilizado o termo autoria, é possível
iniciar a discussão a partir de sua época, pois os primeiros questionamentos dos quais se têm notícia
sobre o futuro da escrita e do autor partem desse período da história. Mais tarde, estudiosos da
linguagem como Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Michel Foucault, e brasileiros como Eni Orlandi, Maria
José Coracini, Sírio Possenti e outros mostraram, e continuam a mostrar, sua inquietação em relação a
essa temática tão complexa. Apesar das diferenças que os constituem, cada estudioso concebe a
autoria sob uma determinada perspectiva, revelando, assim, que não há consenso sobre a definição do
termo. Essa falta de consenso, no entanto, não é de todo ruim, pois, além de sermos sujeitos
incompletos, devemos nos lembrar que a autoria é uma construção social e historicamente construída.
Diante desse contexto, este artigo objetiva discutir algumas questões referentes à autoria e traçar um
panorama sobre os conceitos do termo desde a Antiguidade até os dias atuais.
1 Introdução
Apesar de Platão não ter usado o termo autoria em seus escritos, pode-se iniciar a
discussão a partir de sua época, pois, desde a Antiguidade, questões que envolvem escrita
e autor são alvo de preocupação de muitos estudiosos. Neste contexto, o presente trabalho
aborda as concepções de autoria partindo desse período da história, para, em seguida,
evidenciar o que pensam os teóricos contemporâneos a respeito desse tema tão complexo.
2 Autoria na Antiguidade
Na obra Fedro, Platão, mesmo não utilizando o termo autoria, revela suas
inquietações a respeito da importância do autor e da escrita. Num diálogo entre Sócrates e
seu discípulo Fedro, o filósofo nos mostra sua preocupação acerca do tema. No colóquio,
Sócrates assim se pronuncia:
Com esse enunciado, Platão mostra a importância que se dava ao autor na época,
pois, segundo ele, um discurso escrito quando precisa ser esclarecido necessita do “pai”
para explicá-lo. Logo, a figura do autor torna-se indispensável, já que, para o filósofo, o texto
não se basta a si mesmo. Na verdade, o autor de Fedro preocupava-se com o advento da
escrita e com a crescente importância dada a ela, em detrimento da oralidade. Esta não é,
contudo, a mesma opinião de autores como Foucault, por exemplo, que afirma que o texto
não precisa de ninguém que o interprete, isto é, nem autor nem leitor são necessários, pois
quem fala em um texto não são eles, e sim a linguagem.
Da Antiguidade até o início da Idade Média não havia a preocupação em saber quem
era o autor de uma tragédia, de uma epopeia ou de uma comédia, pois o anonimato não era
empecilho para fazer com que a obra circulasse e fosse valorizada. Naquele período da
história, as obras eram consideradas mais “abertas”, pois os contadores podiam modificá-
las à medida que iam contando suas histórias. A garantia de autenticidade de uma obra era
a sua antiguidade, não o nome do autor.
A partir da Renascença, contudo, a exaltação ao indivíduo passou a ter grande
relevância devido a fatores sociais, políticos e econômicos. Nas artes, esse sujeito social
passou a ser chamado de autor. Nesse período, segundo Foucault (2004) Sêneca já
aconselhava as pessoas a lerem autores com autoridade reconhecida.
Era a mulher, com os seus medos súbitos, os seus caprichos sem razão, as suas
perturbações instintivas, as suas audácias sem causa, as suas bravatas e a sua
deliciosa delicadeza de sentimentos. (BARTHES, 1984, p. 49)
Quem fala assim? Será o herói da novela, interessado em ignorar o castrado que se
esconde sob a mulher? Será o indivíduo Balzac, provido pela sua experiência
pessoal de uma filosofia da mulher? Será o autor Balzac, professando ideias
“literárias” sobre a feminilidade? Será a sabedoria universal? A psicologia romântica?
(BARTHES, 1984, p. 49)
E depois responde:
Será para sempre impossível sabê-lo, pela boa razão de que a escrita é destruição
de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse compósito, esse
oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda
a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (BARTHES, 1984,
p. 49)
Com relação à autoria, nota-se que Barthes, obviamente, não “mata” o sujeito
empírico que escreve – nem poderia fazê-lo – apenas explica que o texto é um tecido de
citações, e a autoria vai além da mão que o criou. Isso porque, conforme afirma Bakhtin
(2011) no ensaio O autor e a personagem, “o artista nada tem a dizer sobre o processo de
sua criação, todo situado no produto criado, restando a ele apenas nos indicar a sua obra; e
é de fato, só aí que iremos procurá-lo”. (BAKHTIN 2011, p. 5).
Para resolver a questão sobre quem escreve numa obra, Barthes encontra uma
saída. Ele afirma que o autor é uma personagem moderna, isto é, um escritor, e em um
texto quem fala não é o autor, e sim a linguagem.
Ainda sobre a questão da autoria, Foucault mostra sua preocupação a respeito dela.
Sobre isso ele afirma:
a escrita está atualmente ligada ao sacrifício, ao próprio sacrifício da vida;
apagamento voluntário que não é para ser representado nos livros, pois ele é
consumado na própria existência do escritor. A obra que tinha o dever de trazer a
imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. Vejam
Flaubert, Proust, Kafka. Mas há outra coisa: essa relação da escrita com a morte
também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito
que escreve; através de todas as chicanas que ele estabelece entre ele e o que ele
escreve, o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade
particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade de sua ausência; é
preciso que ele faça o papel do morto no jogo da escrita. (FOUCAULT, 2011, p.88)
Nota-se, a partir desse recorte, que Foucault também compartilha da ideia de que
não importa quem fala, mas o quê se fala. Ele defende a tese segundo a qual o autor
empírico vai “morrendo” à medida que escreve, pois uma vez escrito, o texto passa a falar
por si mesmo, independentemente da intenção do autor ou do leitor. Para Foucault a
função-autor é compreendida como uma posição enunciativa, isto é, uma posição-sujeito.
Um texto, na leitura de Cavalheiro (2008), a partir da obra do filósofo, pode ter vários eus
simultâneos: um é o eu que fala em um prefácio; o outro é o eu que argumenta no corpo de
um livro; e o terceiro é o eu que avalia a recepção da obra publicada ou a esclarece
(CAVALHEIRO, 2008, p. 74).
Para Orlandi (2012), assim como para Foucault, autoria é uma posição discursiva.
Ela chama a atenção para a reflexão que o filósofo faz no texto A ordem do discurso, de
1975, na qual ele define o autor como “o princípio de agrupamento do discurso, unidade e
origem de suas significações.” (ORLANDI, 2012 p.68). Isso significa dizer que o autor é o
“responsável pelo texto que produz”. Assim, ser autor, na concepção foucaultiana, é tomar
certa posição discursiva, isto é, certa posição em relação às palavras que enuncia.
Entretanto, como sabemos, pensamento e linguagem são interligados, logo, o sujeito
também é efeito de seus enunciados. Ao falar, ele se constrói através da linguagem, pelas
vozes que o constituem, e faz o mesmo durante a escrita.
O termo autoria é assim definido por Orlandi (2012):
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Finalmente, toda essa questão tem a ver com a maneira como se concebe a autoria.
É a noção de autor que está em questão nas formas de interpretação. O que
caracteriza a autoria é a produção de um gesto de interpretação, ou seja, na função-
autor o sujeito é responsável pelo sentido do que diz, em outras palavras, ele é
responsável por uma formulação que faz sentido. O modo como ele faz isso é que
caracteriza a sua autoria. Como, naquilo que lhe faz sentido, ele faz sentido. Como
ele interpreta o que interpreta. (ORLANDI, 2012, p. 97).
Nota-se, pelo recorte acima que, para Orlandi, autoria e interpretação estão
estritamente relacionadas, pois esta diz respeito à forma como o autor produz sentido a
partir daquilo que para ele faz sentido, ou seja, a autoria é afetada pela interpretação e vice-
versa.
Na obra Políticas de Autoria, de Abreu (2013), parece razoável aceitar a ideia de que
a autora compartilha das ideias de Orlandi, mas faz a sua própria definição do termo. É
bastante interessante sua afirmação de que a autoria é
Essa definição mostra que, para Abreu, a autoria é, além de um processo de arriscar-
se, um processo de interpretação que implica uma tomada de posição. É, também, um
processo marcado pela história e pelas condições de produção.
De igual orientação, na obra Escritura de si e alteridade no espaço papel-tela,
Coracini (2010), retomando Derrida e Foucault, afirma que escrever é, para eles
cortar a folha (papel que é também vegetal...), levantar a pele das palavras, fazer
incisões, cortes, enxertos, in-serções de si no corpo estranho do outro – palavra,
texto, que é sempre do outro e sempre meu ou de quem escreve, de quem assina –
transformando, deformando, degradando, com legitimidade – afinal, o autor se sente
“dono” da língua – o corpo ou o corpus (defunto, morto). (CORACINI, 2010, p. 31).
4 Considerações Finais
Referências
ABREU, Ana Sílvia Couto de. Políticas de autoria. São Carlos: EdufSCar, 2013.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
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