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É bem conhecida a relação entre as “Variações Goldberg” (essa obra que Bach
escreveu em 1741 para “refrigério dos espíritos”) e a carreira do pianista Glenn Gould. A
belíssima ária de abertura e as trinta variações que se lhe seguem foram, respectivamente,
a primeira e a última gravações de Gould, realizadas com um intervalo de vinte e seis
anos (entre 1955 e 1981). A execução da primeira versão da obra tem a duração de trinta
e oito minutos, enquanto a derradeira interpretação dura cinquenta e um. Gosto de pensar
que estas variações sofrem, ao longo desses vinte e seis anos de maturação, uma expansão
temporal de cerca de treze minutos, como se, na compreensão do pianista, a obra se fosse
dilatando à razão de trinta segundos por ano. Gosto igualmente de pensar no movimento
de interpretação que esta aritmética representa: as dezenas de páginas concebidas para
induzir o sono do angustiado Conde Hermann Karl von Keyserling, entretanto quase
caídas no esquecimento, foram eleitas por um jovem Gould com 17 anos como gesto de
emancipação artística, tendo sido a primeira obra estudada sem o auxílio do seu mestre.
Cinco anos mais tarde, o pianista iniciaria a sua relativamente curta mas fulgurante
carreira com ela, alcançado notoriedade imediata. O resto é uma história de prodígio e
controvérsia que não interessa esquadrinhar aqui. Importa só referir que o movimento
destas variações no espírito de Glenn Gould atinge o seu clímax num retorno crepuscular,
de forma aparatosamente espiritualizada e com impacto avassalador sobre o seu
metrónomo juvenil.
Mas voltemos, por mais uns instantes e num arroubo de curiosidade, a Gould e
às suas variações Goldberg. Quando nos referimos a obra, a que nos referimos nós? Ao
pensamento de Bach imortalizado na sua escrita? Qual seria este pensamento? Na notação
petrificada da sua partitura, e para além das relações de tempo e de altura definidas sobre
os pentagramas, podemos ler preceitos mais imprecisos sobre o andamento de cada
variação, numa preciosa paleta de desígnios expressivos - aqui um alegro com freschezza
e deciso, ali um andante com eleganza e com moto, mais adiante um moderato ma
vivacemente. Podemos ainda acrescentar uma vasta linhagem de subsídios históricos e
musicológicos que, desde o “renascimento” novecentista do compositor, vem
simultaneamente lançando esclarecimento e confusão sobre a verdadeira matéria desta
música. Todavia, a observação de tais subsídios foi coisa que Gould praticou de forma
bastante particular, gerando uma polémica em torno das suas leituras que ficou tão famosa
como os seus prodigiosos recursos artísticos. As distancias que que diferenciam as suas
duas interpretações (aceitando nós a sua pertinência artística e a sua consistência
musicológica) denunciam duas faces significantes para o entendimento da obra. Por um
lado, a inteleção pessoal do pianista que decifra a partitura e, por outro, a nossa recepção
auditiva dessa interpretação, na espessura da sua matéria sónica. Mas a obra em si, onde
se esconde? Para Gould, estará talvez na sua particular concepção dos desejos do
compositor - tal como eles são discerníveis na partitura e na cultura musical do pianista –
concepção temperada por uma inteligência e uma intuição que variam no tempo. Já para
os nossos ouvidos, a obra é o resultado desse labor na sua concretude vibrátil e nas suas
imanências sensíveis. A obra é o que ouvimos. Porém, o ouvir e o dizer misturam-se na
identificação e na matéria da obra.
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O devir da colaboração
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O conceito de duração deverá entender-se nas suas remissões bergsonianas: “A duração totalmente pura
é a forma que a sucessão dos nossos estados de consciência adquire quando o nosso eu se deixa viver,
quando não estabelece uma separação entre o estado presente e os anteriores. Não há necessidade, para isso,
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de se absorver completamente na sensação ou na ideia que passa, porque então, ao invés, deixaria de durar.
Também não tem que esquecer os estados anteriores: basta que, lembrando-se desses estados, não os
justaponha ao estado atual como um ponto, mas os organize com ele, como acontece quando nos lembramos
das notas de uma melodia, fundidas num todo” (Bergson, 1988, pp. 72-73).
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Tradução nossa para choreomusical.
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Para Deleuze & Guattari (1997), devir é o que reúne os implicados numa relação binária. Eu e o que eu
componho (o meu devir compositor), eu e a dança (o meu devir coreógrafo), eu e o coreógrafo (o meu devir
colaborador), a colaboração e a obra (o devir obra da colaboração) o intérprete e o compositor (o devir
compositor do intérprete). O devir institui uma zona de indescernibilidade entre um termo e outro (entre o
um e o outro), uma zona de vizinhança que se distingue da substituição de um termo por outro, ou pela
transformação de um em outro. É na ponte que dilui a fronteira entre os termos que o devir se movimenta:
“Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco ele é uma semelhança, uma imitação e,
em última instancia, uma identificação” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 18).
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massas escuras e dos seus buracos negros, num entendimento de co-pertença a um gesto
de composição partilhado na duração da experiência de colaboração.
Simultaneísmo e dialogia
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Para Deleuze e Guattari, “as sensações, como perceptos, não são percepções que remeteriam a um objeto
(referência): se se assemelham a algo, é uma semelhança produzida por seus próprios meios (1996, p. 216)”
- as ondas sonoras que se assemelham ao ir e vir do arco do violoncelo, o esforço físico que se assemelha
à levitação do bailarino. São estas forças que enlaçam seus devires na intensidade dos afetos. Sendo os
afetos devires, não se confundem com a obra mas pertencem-lhe por direito, são potência virtual
indiscernível no seu plano de composição. A composição da obra é, portanto, o devir das ideias
coreográficas e das ideias musicais, infinitamente implicadas em afetos e perceptos ao longo de uma
duração.
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O esforço de composição
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Tradução nossa.
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O intérprete compositor
O esforço é penoso, mas é também precioso, mais precioso que a obra que
resulta dele, porque, graças a ele, tiramos de nós mais do que tínhamos,
elevamo-nos acima de nós mesmos. Ora, esse esforço não seria possível sem a
matéria: pela resistência que ela opõe e pela docilidade a que podemos
conduzi-la, ela é, ao mesmo tempo, obstáculo, instrumento e estímulo; ela
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O plano de colaboração é, pois, enriquecido por uma intensidade que resulta não
só do acolhimento de novos fatores de conexão inventiva (a matéria composta que assim
se vem juntar às representações em circulação e ao avesso das suas formas visíveis), como
pela ampliação e consolidação progressivas de uma triangulação criadora, cuja qualidade
lhe é diretamente tributária.
Ipseidade e experiência
conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las” (Larrosa, 2002, p. 28). Este será o
domínio da ciência, cuja dimensão empírica se propõe testar conjecturas e recolher de
volta a sua confirmação ou a sua negação, com o seu lastro de representações que irão
reconfigurar o conhecimento. Mas ao contrário da experimentação científica, que
persegue a objetividade na sua tarefa de apropriação e o domínio do mundo, a experiência
da colaboração está ancorada, mais do que na subjetividade, na forma como a produção
de subjetividade se sujeita à produção de diferença. Quando pensamos na experiência,
pensamos no que ela propõe como transformação individual, transformação que decorre
da exposição à diferença do mundo no labor do tempo que a concede. O eixo da
experiência reorienta, assim, a conceitualização da colaboração para a diferença
ontológica entre o que é e o que se faz representar. Estar perante o que é, é estar antes da
produção de subjetividade.
Presença e tempo
Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano,
com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega
até nós, nos avassala e transforma. "Fazer" não diz aqui de maneira alguma
que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem
aqui o sentido de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro,
harmonizando-nos e sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se
envia, que se articula (Heidegger, 2003, p. 121).
ao mistério nos abrem a perspectiva de uma nova raiz6” (Heidegger, 1994, p. 317). Para
que a serenidade permita aos nossos personagens sofrer a transformação no caminho da
experiência, ela tem que se colocar fora da distinção entre atividade e passividade,
acolhendo-as simultaneamente, dizendo sim e não ao mundo. A única determinação na
experiência é o investimento da própria serenidade.
Diferença e repetição
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Tradução nossa.
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Transformação
Referências
Bergson, H. (1988). Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70.
Costa, R. (2018). A improvisação livre não é lugar de práticas interpretativas. Debates, Unirio, n. 20, 177-
187.
Hodgins, P. (1992). Relationships Between Score and Choreography in Twentieth- Century Dance: Music,
Movement, and Metaphor. London: Edwin Mellen Press.
Jordan, S. (Summer de 2011). Choreomusical Conversations: Facing a Double Challenge. Dance Research
Journal, Vol. 43, No. 1, pp. 43-64.
Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação,
nº19, 20-28.
Lopes, J. J. (Março de 1990). As escritas da abertura na música contemporânea. Fonte: BOCC biblioteca
online de ciências da comunicação: http://www.bocc.ubi.pt/pag/lopes-jose-julio-escritas.pdf