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As raízes do conflito

Umberto Eco

Todas as guerras religiosas que causaram derramamento de sangue durante séculos surgem
de sentimentos passionais e contraposições superficiais tais como nós e eles, bom e mau,
branco e preto. Se a cultura ocidental se mostra rica é porque, mesmo antes do Iluminismo,
ela tentou "dissolver" simplificações perniciosas através de questionamento e mentalidade
crítica.

Obviamente, nem sempre foi feito assim. Hitler, que queimou livros, condenou arte
"degenerada" e matou aqueles pertencentes a raças "inferiores"; e o facismo que me
ensinou na escola a recitar "Que Deus amaldiçoe os ingleses" pois eles eram "o povo que
tem cinco refeições por dia" e eram portanto gananciosos e inferiores aos parcimoniosos
italianos, são também parte da história da cultura ocidental. Às vezes é difícil entender a
diferença entre identificar-se com as próprias raízes, entender pessoas de outras raízes e
julgar o que é bom ou ruim. Deveria eu preferir viver em Limoges ao invés de, vamos
dizer, Moscou? Moscou é certamente uma bonita cidade. Mas em Limoges eu entenderia a
língua. Todos se identificam com a cultura em que cresceram e os casos de transplantação
de raízes, quando eles ocorrem, são minoria: Lourenço da Arábia se vestia como um árabe,
mas terminou voltando para casa na Inglaterra.

O ocidente, muitas vezes por razões de expansão econômica, tem se mostrado curioso sobre
outras civilizações. Os gregos se referiam àqueles que não falavam sua língua como
bárbaros, ou tartamudos,como se eles não falassem língua nenhuma. No entanto uns poucos
gregos mais amadurecidos, como os Estóicos, notaram que, embora os bárbaros usassem
palavras diferentes, eles se referiam aos mesmos pensamentos.
A partir da segunda metade do século XIX, a antropologia cultural se desenvolveu como
uma tentativa de amenizar a culpa do ocidente em relação aos outros, e particularmente
aqueles outros que haviam sido definidos como selvagens; sociedades sem uma história,
povos primitivos. A incumbência da antropologia cultural era demonstrar que crenças
diferentes das ocidentais existiam, e deveriam ser levadas a sério, não desdenhadas e
reprimidas. Para dizer - como o primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi o fez,
controvertidamente,este mês - se determinada cultura é superior a uma outra, devemos
estabelecer parâmetros.

Uma cultura pode ser descrita objetivamente - essas pessoas se comportam assim;
acreditam em espíritos ou em um único ser divino que impregna a totalidade da natureza;
congregam-se em clãs familiares de acordo com essas regras; consideram bonito perfurar
seus narizes com anéis (isto poderia ser uma descrição da cultura jovem ocidental);
consideram carne de porco impura; circuncidam-se; criam cachorros para comer nos dias
santos ou, como os ingleses e americanos ainda dizem dos franceses, comem
sapo.Obviamente o antropólogo sabe que objetividade é sempre limitada por muitos
fatores. O critério de julgamento depende de nossas próprias raízes, preferências, hábitos,
paixões, nosso sistema de valores. Por exemplo: nós consideramos que o prolongamento da
média de vida de 40 para 80 anos vale a pena? Eu pessoalmente acredito que sim, mas
muitos místicos poderiam me dizer que, entre um glutão que vive 80 anos e São Luiz
Gonzaga, que somente viveu 23, foi este último quem teve a vida mais plena.Nós
acreditamos que desenvolvimento tecnológico, a expansão do comércio e transporte mais
rápido vale a pena? Muitos pensam que sim e julgam superior nossa civilização
tecnológica. No entanto, neste mesmo mundo ocidental, existem aqueles que primeiramente
desejam viver em harmonia com um meio ambiente inalterado, e estão dispostos a
abandonar viagens aéreas, carros e refrigeradores, tecer cestos à mão e andar a pé de uma
vila à outra, desde que o buraco na camada de ozônio não esteja lá. Portanto, para se definir
uma cultura como sendo melhor que a outra, não é suficiente descrevê-la (como os
antropólogos o fazem), mas é recomendável recorrer a um sistema de valores em relação ao
qual nós sintamos que não podemos abandonar. Somente aí é que podemos dizer que nossa
cultura é melhor, para nós. Quão absoluto é o parâmetro para o desenvolvimento
tecnológico? O Paquistão tem a bomba atômica, a Itália não. Então a Itália é uma
civilização inferior? Melhor viver em Islamabad do que em Arcore? Não deveríamos
respeitar o mundo islâmico lembrando que ele nos deu homens como Avicenna (que na
verdade nasceu em Buchara, não muito distante do Afeganistão) e Averroes, assim como
nos deu Al-Kindi, Avenpace, Avicebron, Ibn Tufayl, ou aquele grande historiador do seculo
XIV, Ibn Khaldoun, que o ocidente considera como o pai das ciências sociais. Os árabes da
Espanha cultivavam geografia, astronomia, matemática ou medicina enquanto o mundo
cristão estava muito atrás nestas matérias.

Nós devemos recordar que os árabes da Espanha foram nitidamente tolerantes em relação
aos cristãos e judeus, enquanto nós criamos os getos, e que Saladin, quando reconquistou
Jerusalém, foi muito mais misericordioso com os cristãos do que os cristãos tinham sido
com os sarracenos quando eles se apossaram de Jerusalém. Tudo muito verdade, mas no
mundo islâmico existem hoje regimes fundamentalistas e teocráticos que os cristãos não
toleram, e Bin Laden não foi misericordioso com Nova York. O talibã destruiu o grande
Buda de pedra com seu canhão: por outro lado, os franceses conduziram o massacre do dia
de São Bartolomeu, mas isto não deu a ninguém o direito de dizer hoje que eles são
bárbaros. A historia é uma espada de dois gumes. Os turcos eram esfaqueadores (e isto é
mau) mas os bizantinos ortodoxos arrancavam os olhos de parentes perigosos e os católicos
queimaram Giordano Bruno; piratas sarracenos fizeram muitas coisas ruins, mas os
bucaneiros de sua majestade britânica atearam fogo às colônias espanholas no Caribe; Bin
Laden e Saddam Hussein são inimigos ferozes da civilização ocidental, mas na civilização
ocidental existem homens como Hitler e Stalin.Não, a questão dos parâmetros não é
aplicada à historia, e sim aos nossos tempos. Um dos aspectos da cultura ocidental (livre e
pluralista, e estes são valores considerados básicos e essenciais) dignos de louvor é que ela
tem há muito sustentado que a mesma pessoa pode empregar parâmetros diferentes, os
quais podem ser mutuamente contraditórios, em assuntos diferentes. Por exemplo, o
prolongamento da vida é considerado bom, e poluição atmosférica ruim, mas nós podemos
muito bem ver que às vezes em grandes laboratórios onde se estuda como prolongar a vida,
talvez existam sistemas energéticos que produzem poluição.

A cultura ocidental desenvolveu a capacidade de desnudar livremente suas próprias


contradições. Talvez elas permaneçam sem resolução, mas elas são bem conhecidas e
admitidas: como podemos conseguir uma globalização positiva e ao mesmo tempo evitar os
riscos e injustiças que a sucedem; como podemos prolongar a vida de milhes de africanos
morrendo de aids (e ao mesmo tempo prolongar nossas próprias vidas) sem aceitar a
economia planetária que causa a morte de pessoas por fome e aids e nos faz comer comida
contaminada?Mas é exatamente esta crítica dos parâmetros, perseguida e encorajada pelo
ocidente, que nos faz entender o quão delicada é a questão. É justo e apropriado proteger
segredos bancários? Muitos pensam que sim. Mas se este sigilo permite aos terroristas
manter suas contas na "City" de Londres, esta defesa da chamada privacidade seria então
uma coisa positiva ou uma coisa duvidosa? Nós estamos sempre colocando nossos
parâmetros em questão. O mundo ocidental faz isto em tal extensão que permite aos seus
próprios cidadãos recusarem desenvolvimento tecnológico e se tornarem budistas, ou ir
viver em comunidades onde não se usam pneus, nem mesmo em carroças puxadas a
cavalo.O ocidente decidiu canalizar dinheiro e esforço para o estudo de outros costumes e
práticas, mas ninguém tem realmente dado às outras pessoas a chance de estudar costumes
e práticas ocidentais, com exceção de escolas mantidas por brancos expatriados, ou
permitindo aos ricos de outras culturas estudarem em Oxford ou Paris. O que ocorre então é
que eles retornam ao seu país para organizar movimentos fundamentalistas, porque eles se
sentem solidários com aqueles seus compatriotas que não tem oportunidade de ter este tipo
de educação.

Uma organização internacional chamada Transcultura tem feito campanha por uma
"antropologia alternativa" já há alguns anos. Eles contrataram pesquisadores africanos, que
nunca tinham estado no ocidente antes, para descrever a França provinciana e a sociedade
em Bolonha. Ambos os lados se olharam um ao outro com um olhar genuíno, e algumas
discussões interessantes aconteceram. Atualmente, três chineses - um filósofo, um
antropólogo e um artista - estão completando a viagem de Marco Polo ao contrário,
culminando em uma conferência em Bruxelas em novembro. Imagine fundamentalistas
islâmicos sendo convidados a pesquisar fundamentalismo cristão (não os católicos desta
vez, mas protestantes americanos mais fanáticos que aiatolás, que tentam eliminar toda
referência a Darvin das escolas). Na minha opinião o estudo antropológico do
fundamentalismo dos ouros conduz a um melhor entendimento do nosso próprio
fundamentalismo. Deixe que eles venham e estudem nosso conceito de guerra santa (eu
poderia recomendar a eles muitos textos interessantes, inclusive alguns bem recentes). Eles
poderiam então adquirir uma visão mais crítica em relação à idéia de guerra santa em seu
próprio país.

Nós somos uma civilização pluralista porque permitimos a construção de mesquitas em


nossos países, e nós não vamos parar simplesmente porque missionários cristãos são
atirados na prisão em Kabul. Se fizéssemos isto, nós também nos tornaríamos Talibã. O
parâmetro de tolerância à diversidade é certamente um dos mais fortes e menos abertos á
discussão. Nos consideramos nossa cultura madura porque ela tolera diversidade, e aqueles
que compartilham da nossa cultura, e ponto final.
Esperamos que, já que nós permitimos mesquitas em nossos países, um dia venham a
existir igrejas cristãs nos países deles, ou pelo menos os Budas não sejam explodidos por lá.
Isto é, se nós acreditamos que nossos parâmetros estão corretos.
Mas existe muita confusão. Coisas engraçadas estão acontecendo hoje em dia. Parece que
defender valores ocidentais se tornou uma prerrogativa da direita, enquanto a esquerda,
como sempre, é pró-islamita. Agora, afora a postura pró-terceiro mundo, pró-árabe de
alguns círculos ativistas católicos e de direita, e assim por diante, esta atitude ignora um
fenômeno histórico que está aí para todos verem.A defesa de valores científicos, do
desenvolvimento tecnológico e da cultura moderna ocidental em geral tem sido sempre uma
característica de círculos políticos seculares e progressistas. Na verdade, todos os regimes
comunistas se apoiaram em uma ideologia de progresso tecnológico e científico. O
Manifesto Comunista de 1848 inicia com uma apologia à expansão da burguesia. Marx não
diz que é necessário mudar de direção e adotar meios de produção asiáticos. Ele diz
simplesmente que o proletariado deve aprender a dominar estes valores e sucessos.Pelo
contrário, tem sido sempre o pensamento reacionário (no melhor sentido da palavra), pelo
menos a partir da rejeição à revolução francesa, que tem se oposto à ideologia secular de
progresso e proposto o retorno a valores tradicionais. Somente uns poucos grupos
neonazistas tem uma noção mítica do ocidente e estariam prontos para cortar as gargantas
de todos os muçulmanos em Stonehenge. Os pensadores tradicionalistas mais sérios sempre
viram o Islamismo como uma fonte de espiritualidade alternativa, junto com os rituais e
mitos de povos primitivos e o ensino do budismo. Eles sempre fizeram questão de nos
lembrar que nós não somos superiores, mas empobrecidos pela nossa ideologia de
progresso, e que devemos procurar a verdade entre os místicos Sufistas ou os daroeses
rodopiantes. Daí a estranha dicotomia que se está abrindo na direita. Mas talvez seja
somente um sinal de que, em tempos de grande perplexidade (tal como agora), ninguém
sabe mais direito onde se posicionar. Mas é em tempos de perplexidade que a arma da
análise e a da crítica nos aparecem, para serem aplicadas às nossas próprias supertições e às
dos outros.

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