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Os Documentos Pessoais
no Espaço Público

Maria Madalena Arruda de Moura


Machado Garcia

1. Os arquivos de proveniência privada

1.1. Introdução
Embora a fOIUlação de arquivos de pessoas singulares e de famílias
remonte a épocas muito recuadas, a noção de "arquivo privado" demorou a ser
acolhida pela doutrina e pela legislação, porque os conjuntos documentais de
entes privados não eram qualificados como "arquivos". Apenas os acta publica
podiam fazer parte do "arquivo", que era considerado, por essa razão, arquivo
público. Esta concepção prevaleceu durante muitos séculos.
Na Idade Média, e ainda em parte da Idade Moderna, o jus archivi era
considerado um atributo dos soberanos, reservado a quem gozava do jus imperii.
Na Idade Moderna, a jurisprudência começou a afllUlar a existência de
arquivos privados. Passaram a ser reconhecidos como tais não só os arquivos de
pessoas juridicas mas também os de pessoas fisicas. No entanto, a doutrina
prevalecente continuou a definir como arquivo apenas aquele que fosse público.

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o interesse do Estado pelos fundos de proveniência privada é, em grande


medida, uma novidade dos tempos recentes. Na época contemporânea, quando
as administrações arquivísticas se estabilizaram, a custódia dos arquivos privados
passou a ser assegurada pelos arquivos estatais, embora alguns arquivos de
proveniência privada continuassem a ser conservados pelas entidades produtoras
ou por instituições como bibliotecas, museus, fundações e universidades.
O problema da conservação dos arquivos privados como parte do pa­
trimónio arquivístico nacional foi aquele que mereceu primordialmente a
atenção das administrações e dos profissionais de arquivo. Hoje, estando genera­
lizada a aplicação do princípio da proveniência, existe a preocupação de evitar o
desmembramento dos arquivos privados e de os conservar na sua integridade.
No entanto, no âmbito dos arquivos privados opera umdireito funda­
mentaI, o da propriedade privada, que em princípio faculta ao titular a possibili­
dade de dispor livremente dos seus bens. Por esta razao, é necessário precisar se,
de acordo com a configuração que O direito à propriedade privada recebe nos
actuais sistemas jurídico-políticos, o titular de 11m arquivo privado pode opor-se
ao seu estudo e investigação pelos interessados e dispor a seu belo prazer dos bens
e direitos que integram o seu património.
As constituições modernas já não consagram a mesma concepção de
propriedade do direito romano, segundo a qual o titular de um bem podia usar
e abusar dele com absoluta liberdade e sem sujeição a nenhum tipo de limitações
externas, mas configuram de um modo explícito e claro um modelo de pro­
priedade cujo conteúdo vem delimitado não só pela utilidade que a mesma
dispensa ao seu titular, mas também pela função social que desempenha. Utili­
dade individual e função social definem, por conseguinte, o conteúdo do direito
de propriedade sobre cada categoria ou tipo de bem.
Um ponto sobre o qual todos estarão de acordo, limitativo da absoluta
liberdade individual, é aquele segundo o qual o proprietário não tem sobre o bem
"arquivo privado" um jus utendi et abutendi, isto é, não pode destruí-lo. Efecti­
vamente, hoje toma-se necessário compatibilizar, na medida do possível, a defesa
dos direitos particulares com o interesse cultural ligado à natureza insubstituíve\
do bem e ao seu significado para a comunidade.
Contudo, o detentor não público de bens culturais não deve ser hostili­
zado, ou seja, encarado pelo legislador como o objecto necessário ou virtual de
actos de autoridade de natureza ablativa. A regra geral deve ser a de considerar
esse detentor não público um parceiro, prevendo a lei mecanismos de contratu­
alização que pelOlitam conjugar interesses e preservar um ambiente de confiança.
No momento histórico em que nos encontramos, toma-se possível dar
alguns passos em direcção a uma unidade tendencial do regime dos bens cul­
turais, independentemente da natureza dos respectivos titulares.

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Os Docume/ltos Pessoais no Espaço Público

Neste sentido se pronuncia o Conselho da Europa num Projecto de


Recomendação N° R (97) sobre uma Política Européia respeitante à comunicação
dos arquivos (Doc. CC - Cult (97) 23, Addendum I), ao afirmar que "convém
alinhar, sempre que seja possível, as condições de comunicação dos arquivos
privados com aquelas dos arquivos públicos".
Entre os institutos jurídicos aplicados aos arquivos privados conservados
pelo proprietário, ganham preeminência, nas diferentes legislações, o dever de
manifesto, a proibição da divisão e da exportação não autorizada e o direito de
preferência por parte do Estado, em caso de alienação. Menos freqüente é a
expropriação dos arquivos privados por utilidade pública, embora esta disposição
esteja presente na legislação de vários países.
,

E muito imponante juntar às nOlmas jurídicas os elementos técnicos e


psicológicos adequados, para aproximar os serviços arquivísticos estatais dos
proprietários de arquivos privados, e deste modo obter uma atmosfera de colabo­
ração e de confiança. Neste domínio, é exemplar a actuação dos países anglo­
saxónicos, nomeadamente do Reino Unido, onde o trabalho de persuasão e
convencimento tem mais eficácia junto dos privados do que a rígida aplicação de
normas coercIVas.

1.2. Considerações sobre os arquivos de titulares de cargos políticos


O carácter exclusivamente privado de um arquivo foi e é uma questão
problemática.
Aquele que nasce como arquivo privado pode mudar de natureza, se se
alterarem as relações entre a entidade produtora e o Estado. Podem existir casos
em que um mesmo arquivo é simultaneamente público, segundo um deteIlui­
nado ordenamento jurídico, e privado, segundo um outro ordenamento jurídico.
Um arquivo pode ser público e conferir pública fé aos documentos que o integram
nas suas relações com determinado sujeito, e privado nas relações com outros.
Esta situação era freqüente na Idade Média e na Idade Moderna: o mesmo
arquivo era público para os súbditos de um principado, isto é, para aqueles que
residiam na circunscrição territorial da autoridade que tinha constituído o
arquivo, e privado para os não súbditos.
Além disso, não são raros os casos em que os arquivos públicos têm
origem nos arquivos privados. São disso exemplo os arquivos notariais, que em
alguns ordenamentos são considerados privados, ou pelo menos de propriedade
privada do notário e dos seus herdeiros. Nascem como arquivos produzidos por
uma pessoa física dotada de pública fé, que tem poder de registar e atestar a
autenticidade das decisões tomadas.
Nos antigos arquivos privados, pessoais ou de familia, existiram desde
sempre documentos de natureza pública que derivaram de funções, de cargos ou

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de ofícios públicos, desempenhados muitas vezes em domínios longínquos e em


territórios de ounas nações. A conservação privada daqueles documentos que
hoje se designam como "actos do Estado" era no passado absolutamente nOlmal.
Muitas vezes os ofícios não tinham uma sede própria, e os assuntos eram tratados
na residência de quem era proposto para o ocupar. Por outro lado, os ofícios
muitas vezes eram "venais", isto é, eram vendidos aos privados por um detemli­
nado período, mais freqüentemente por uma vida, mas por vezes podiam mesmo
ser hereditários numa família.
Há indícios de que no passado a legislação tenha prescrito a restituição
dos "actos do Estado" conservados nos arquivos privados. Em muitos países
existiram leis que obrigavam o funcionário, o diplomata e o homem político a
entregar os documentos que acumulara pelo exercício de um cargo, quando o
abandonasse; mas estas nOlIllas permaneceram esquecidas ou escassamente
aplicadas. Nas instruções de Filipe II para o Arquivo de Simancas, datadas de
1588, o Capítulo Xl referia-se à obrigação do arquivista procurar, junto dos
herdeiros dos ministros defuntos, documentos relativos aos cargos e ofícios
desempenhados por eles.
A regra segundo a qual os agentes do Estado eram obrigados a transferir
os papéis produzidos no decurso das suas actividades foi retomada no século XIX
pela jurisprudência e raros textos legais. Na impossibilidade de impor o princípio
de um direito de devolução ao Estado dos papéis dos seus �gentes, textos pontuais
instituíram procedimentos de reinvindicações em documentação militar e
diplomática.
Assim, até ao princípio deste século, o Estado interessou-se primordial­
mente pela recuperação dos "actos públicos" que integravam os arquivos pri­
vados.
Também nos arquivos privados contemporâneos de personalidades que
desenvolveram actividades de relevância na administração pública e na vida
política e cultural se encontram documentos pertença do Estado, subtraídos da
sua sede natural, para se inc1uirem nesses papéis pessoais. Nalguns casos esses
arquivos pessoais integram, mesmo, séries em falta nos arquivos do Estado.
NOIIIlas emanadas das administrações arquivísticas procuraram recu­
perar os actos públicos conservados pelos herdeiros de políticos, de diplomatas
e de outros funcionários públicos. Todavia, não obstante os numerosos esforços
para a sua restituição, muitos actos públicos continuam nos arquivos pessoais.
No plano conceptual não existe a noção de arquivo político. A única
especificidade desses documentos é a de se ligarem à acção política, e por isso
será mais correcto falar em documentos ligados ao exercício duma função
política. No entanto é muito difícil ou quase impossível dissociar, entre os papéis
de um governante, os documentos pessoais dos públicos. Não são raros os casos

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Os Documentos Pessoais no Espaço Público

em que a designada "correspondência particular" veicula os assuntos de Estado


de maior melindre, como acontece, por exemplo, no Arquivo de Oliveira Salazar,
antigo presidente do Conselho de Portugal.
Apesar da política restringir cada vez mais a esfera puramente privada
dos nossos dirigentes, as legislações européias e norte-americanas exprimem
diversas preocupações comuns relativamente aos arquivos dos titulares de cargos
políticos.
Em primeiro lugar, diversos países reconheceram a necessidade de
elaborar uma doutrina coerente sobre a natureza jurídica pública ou privada
- -

desses arquivos. Um segundo ponto, sobre o qual convergem as legislações de


vários países, consiste na preocupação de definir as categorias de documentos
que integram os arquivos dos políticos. Também a necessidade de regulamentar
as fonnas de custódia e de aquisição por incorporação, depósito ou doação e os
- -

regimes de comunicação da documentação, têm sido objecto de diversos textos


legais.
Não há dúvida que a natureza jurídica dos arquivos dos titulares de
cargos políticos é uma questão muito complexa, que transcende a arquivística e
entra no domínio da política, da legislação, da jurisprudência e da administração.
O problema fundamental dos arquivos dos titulares de cargos políticos continua
a ser o de conciliar princípios, direitos e interesses antagónicos: por um lado, os
direitos individuais à propriedade privada e à privacidade, por outro lado, os
direitos colectivos, como o interesse e o acesso públicos.
Uma coisa é certa. A noção de documento público aparece cada vez mais
associada à de mandato, e quem detém uma parcela de autoridade pública produz
documentos públicos. Por esta razão, é impossível excluir da categoria de arquivo
público os arquivos dos mais altos responsáveis políticos - o presidente da
República e os membros do governo - embora a maior parte das legislações não
imponha aos titulares desses arquivos a obrigatoriedade de os incorporar numa
instituiçao pública.
Efectivamente, não é habitual assistirmos à entrega da documentação de
um governante a um arquivo público quando aquele cessa funções. As causas
deste procedimento podem resultar não só do carácter confidencial dos docu­
mentos, mas também da dupla qualidade dos governantes, simultaneamente
autoridades políticas e autoridades administrativas, e do facto de, em matéria de
arquivos, predominarem as considerações políticas sobre as exigências da ad­
ministração. Por outro lado, a existência de textos legais coercivos leva à auto­
censura, isto é, ao desejo do responsável político querer proteger as suas fontes
de informação.
Mesmo sem disporem de mecanismos legais muito precisos e directos,
um cada vez maior número de países procura alterar a tradição dos dirigentes
,

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disporem livremente dos seus arquivos e de facultarem apenas um acesso selec­


tivo aos mesmos. Embora em certos países como os EUA e o Canadá estes
problemas tenham sido objecto de um autêntico debate nos media, a opinião
pública tem uma sensibilidade diferente a estas questões, que decorre das dife­
rentes tradições políticas e culturais de cada país. Assim, a reinvindicação dos
arquivos é mais afirmativa nos regimes presidencialistas, onde aparece como
contrapartida das prerrogativas do presidente. Nos regimes parlamentaristas há
uma maior aceitação da pertença privada dos arquivos. Em qualquer dos casos,
é uma prova de maturidade política que os governantes, ao submeterem-se à
vontade dos eleitores, não procurem eximir-se ao juízo da História.
Uma palavra sobre a situação portuguesa. Em Portugal, os mais antigos
arquivos de figuras políticas dos séculos XVIII e XIX integram os acervos do
Instiruto dos Arquivos Nacionaisrrorre do Tombo e da Biblioteca Nacional,
tendo sido adquiridos por compra, doação ou depósito.
Não existe em Portugal legislação que tome obrigatório o ingresso dos
arquivos de políticos do século XX em instiruições públicas, e os respectivos
regimes de acesso são estipulados pelos proprietários e nalguns casos pelas
instituições que os recebem. Alguns desses arquivos têm sido adquiridos pelo
IAN!rr; pelo Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra
ou por uma instituição privada, a Fundação Mário Soares.
Os arquivos dos antigos presidentes do Conselho do regime da ditadura
(1926-1974), António de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano, foram incorporados
no IANfrr; no seguimento de uma decisão legislativa pontual. O decreto-lei que
decidiu esse ingresso fixou igualmente que a abertura desses arquivos à consulta
pública deveria acontecer depois de decorrido um prazo de 25 anos sobre a morte
dos seus titulares, respectivamente, 1995 e 2005. Tratou-se fundamentalmente
de uma medida de carácter político, que permitiu contudo que o arquivo de
Salazar - porvenrura o mais importante arquivo para a história de Porrugal no
século XX fosse preservado na íntegra.
-

Outro arquivo de uma figura relevante da oposiçao à ditadura, o general


Humberto Delgado, ingressou igualmente no IAN/I"l; por doação, sendo, no
entanto, o regime de acesso idêntico ao dos arquivos de Salazar e de Marcelo
Caetano.
Actividade digna de registo tem sido aquela desenvolvida pelo Centro
de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, pelo contributo que
tem dado para a preservação de arquivos pessoais de políticos que estiveram no
cerne das transformações da sociedade portuguesa neste final de século. O Centro
de Documentação 25 de Abril foi criado em 1984, com o objectivo de reunir
materiais únicos que possibilitassem uma investigação sobre a vida política e
social do período que medeia entre o 25 de abril de 1974, a aprovação da

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Os Documentos Pessoais no Espaço Público

Constituição da República e a posse do primeiro governo constitucional, em


1976.
O facto do Centro de Documentação 25 de Abril estar inserido numa
instituição universitária, a Universidade de Coimbra, terá porventura con­
tribuído para o estabelecimento de uma base de confiança favorável às doações
de arquivos privados, que atingem nesta data o número de 170. Trata-se funda­
mentalmente de arquivos pessoais de militares e civis que participaram nos
acontecimentos preparatórios do 25 de abril, ou que exerceram cargos políticos
,

entre 1974 e 1976. E de realçar a particularidade de quase todos os doadores


confiarem ao Centro a responsabilidade de fixar os prazos de comunicabilidade
dos documentos.
Em 1991 o Centro de Documentação 25 de Abril deu início a um Projecto
de História Oral, destinado a recolher, em suporte vídeo e com base num roteiro
cientificamente preparado, depoimentos dos principais intervenientes na cena
político-militar daquele período e a disponibilizar essa infolluação, sempre que
os autores o permitam, a investigadores devidamente credenciados.

2. Os documentos pessoais existentes em arquivos de proveniência pública

2.1. O acesso aos dados pessoais nos arquivos das modernas administrações
São inúmeros os tipos de documentos pessoais que é possível encontrar
nos fundos de proveniência pública. M. Duchein na sua obra clássica intitulada
Obstáculos ao acesso, uso e transferência da informação dos arquivos enumera-os, sem
no entanto pretender ser exaustivo.
Trata-se fundamentalmente de documentos relativos ao estado civil e à
filiação, à saúde, aos rendimentos e impostos, aos processos penais e criminais,
à actividade profissional, às opiniões políticas, filosóficas e religiosas, à infor­
mação obtida sob promessa de segredo e ainda de documentos policiais e
estatísticos. Todo este elenco diz respeito a documentos nominativos que contêm
dados pessoais, isto é, informações sobre uma pessoa singular, identificada ou
identificável (a "pessoa interessada"), que incluem apreciações e juízos de valor ou
que são abrangidos pela reserva da intimidade da vida privada.
De um modo geral podemos dizer que o acesso a este tipo de documentos
contidos nos arquivos correntes da administração pública tem sido tratado de
modo diferente de um país para outro, e isto pode ser ilustrado por dois tipos de
atitudes e soluções legislativas.
Alguns países conferem ao cidadão o direito de olhar para os arquivos
correntes, ainda em poder das administrações, impondo como única restrição a
protecção de interesses vitais públicos e privados. As legislações nacionais desses
países têm raízes nos conceitos do século XVIII relativos aos direitos humanos

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estudos hist6ricos • 1998 - 21

universais, na noção de democracia real, na liberdade de expressão e de infor­


maçao, que pressupõe o conhecimento dos assuntos públicos e, por conseguinte,
o acesso aos documentos governamentais. Neste sentido, um tal acesso constirui
um processo de controlo público do governo e uma forma de alimentar e de
estimular o debate público.
Outros países mantêm uma atitude mais restritiva e o acesso público é
limitado aos arquivos de uma determinada idade, depois dos mesmos terem sido
entregues a uma instiruição de arquivo. Os direitos de acesso não fazem parte de
um sistema para controlar o governo e fornecer factos para o debate público sobre
questões políticas contemporâneas. Os arquivos correntes destes países estão, por
definição e por lei, excluídos do exercício de tais direitos.
Os dois sistemas, que coexistem em Estados próximos, não deixam de
estar influenciados pelas mudanças e tendências ideológicas contemporâneas.
No que respeita ao acesso aos arquivos correntes, a evolução é sem dúvida no
sentido de lima maior aberrura governamental e nada permite pensar que esta
tendência nao irá expandir-se. Todos sabemos que as democracias hoje reivindi­
cam transparência na vida pública e direito à informação. Tal aberrura é muitas
vezes olhada como um critério para o grau de liberdade política e de democracia
implementada num país. Efectivamente, quanto menos restrições existirem
sobre o livre acesso, mais discussão política e participação são possíveis. Neste
sentido, não só os arquivos foram pressionados a abrir· os seus acervos mas
também as autoridades públicas "activas" foram pressionadas a desisitir da
tradição do secretismo oficial.
De igual modo a moderna tecnologia da informação ClT) deu origem a
um novo tipo de direitos universais. As potencialidades tecnológicas de hoje para
processar dados pessoais armazenados em supone digital tornaram necessárias
medidas de protecção, para acautelar contra a vantagem em informação que o
Estado passou a ter sobre o indivíduo.

E interessante notar que, a nível do direito comunitário europeu, a


primeira iniciativa tomada relativamente à protecção de dados pessoais tenha
incidido única e exclusivamente sobre os dados pessoais automatizados. Neste
sentido, se pode afirmar que a Convenção do Conselho da Europa de 1980
instituiu um regime de protecção parcial dos dados pessoais.
. As modernas tendências no que respeita à abenura e acesso aos arquivos
correntes na Europa não deixam de estar eivadas de elementos de contradição.
Paralelamente ao espírito de governo abeno que se expandiu pelo continente
europeu nas últimas décadas, assiste-se a um movimento em sentido contrário,
que procura proteger a privacidade e os dados sobre o indivíduo, visto como uma
entidade livre, que dispõe da informação que lhe diz respeito e que exige
protecção legal na prossecução dessa exigência.

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Os Documentos Pessoais no Espaço Público

Neste sentido o Parlamento Europeu e o Conselho da União Européia


fixaram obrigações para o tratamento de dados pessoais, através da Directiva
95/46/EC, de 24 de outubro de 1995, que deve ser transposta para o direito interno
dos vários Estados-membros no espaço de três anos. A referida directiva será
aplicável a todos os dados pessoais em fOllna estruturada, em poder das adminis­
trações públicas ou privadas, automatizados ou manuais.
Esta directiva, que pretende instituir um regime de protecção global dos
dados pessoais, uma vez implementada nas legislações nacionais, fortalecerá a
protecção da privacidade para além do estabelecido na Convenção de 1980. Quer
a Convenção sobre a protecção de dados pessoais automatizados, de 1980, quer a
directiva sobre o tratamento de dados pessoais, de 1995, foram elaboradas sem a
colaboração de arquivistas. Em ambos os textos é evidente que as questões da
privacidade foram consideradas mais importantes do que a preservação para o
acesso, a investigação e a cultura.
Quando a directiva de 1995 admite que os dados pessoais possam ser
apagados, depois de cumprido o fun para o que foram criados, temos de concluir
que a protecção da privacidade poderá ser alcançada à custa de fontes contem­
porâneas, que de outro modo seriam deixadas para a posteridade. Além do mais,
apagar dados em ficheiros electrónicos não difere de apagar documentos em
papel. Por outro lado a directiva estabeleceu como direito individual da pessoa
visada a possibilidade de rectificar dados pessoais inexactos, insuficientes ou
execeSS1VOS.

O exercício do direito de correcção de dados pessoais pode estar em


conflito com a tradição que vigora nos serviços de arquivo, de preservar os
documentos, não obstante a informação neles contida possa estar errada.
Os responsáveis pelos arquivos nacionais europeus estão neste momento
a alertar os respectivas governos para os riscos da aplicação desta directiva sem
as necessárias precauções. Pode mesmo afirmar-se que os responsáveis arquivísti­
cos já começaram a desenvolver uma estratégia mais intervencionista junto das
instâncias de poder nacionais e supranacionais a fim de garantir que as futuras
legislações não sejam contraditórias com os interesses arquivísticos do longo
prazo.
As leis sobre a protecção de dados deverão considerar muito seriamente
a questão da avaliação dos dados pessoais e, ao mesmo tempo, assegurar a efectiva
conservação permanente dos dados pessoais relevantes. Os arquivos históricos,
como "memórias" da Nação e da sociedade que são, não podem correr o risco
de, no futuro, receberem apenas dados não pessoais. Para esse efeito, devem
observar, desde o momento da transferência dos dados pessoais, os mesmos
interesses legítimos dos indivíduos, tal como as administrações produtoras o
faziam antes.

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estudos históricos. 1998 - 21

Uma vez que a instituição produtora tem 11m controlo quase total sobre
a criação, processamento e uso dos seus arquivos, as questões legais e éticas
relacionadas com a informação confidencial poderão ser em grande medida
resolvidas se as instituições produtoras e os serviços de arquivo desenvolverem
estratégias conjuntas para identificar os documentos sensíveis e defmirem pro­
cedimentos nOlmalizados para a sua utilizaçao administrativa e pela investigação.
Todas estas tarefas se tornam extremamente complexas com o grande
volume de processos e a crescente tensão entre pedidos de acesso à informação e
privacidade pessoal. Embora os conceitos de confidencialidade e acesso restrito
não sejam novos, são necessários novos critérios para proteger a privacidade dos
dados pessoais. Mais do que nunca, é preciso equilibrar o acesso aos documentos
com a protecção dos direitos e dos legítimos interesses individuais.
Por outro lado, não obstante ser profundamente sentida, a necessidade
de infonnação é hisroricamente muiro nova e, tal como os indivíduos lhe estão
a responder com um sentido da privacidade renovado, também as instituições
estão a mostrar uma maior preocupação com a segurança.

2.2. Os documentos pessoais dos fundos arquivísticos dos instituições repressivas


Diversos regímes autoritários recentemente desaparecidos dominaram
os países ibero-americanos, os países da Europa Central e do Leste e alguns países
africanos. Estes regimes têm, no caso dos países ibero-americanos, antecedentes
que remontam aos antigos tribunais da Inquisição.
Num estudo sobre os arquivos da segurança do Estado dos regimes
repressivos desaparecidos, realizado por iniciativa do Conselho Internacional de
Arquivos e da Unesco, foram estabelecidas as seguintes categorias de instituições
repressivas: serviços de informação, corpos paramilitares, tribunais especiais,
campos de concentração, prisões especiais, centros psiquiátricos para "reedu­
cação" e outros.
A variedade de instituições repressivas é muito ampla, já que não é fácil
delimitar o âmbito do termo "repressão". Este conceito é extensivo não só às
idéias políticas, mas também à religiao, ao pensamento filosófico, à conduta
sexual e às demais liberdades reconhecidas pela Declaração Universal dos Direi­
tos do Homem.
Os documentos pessoais que integram os arquivos das instituições
repressivas foram obtidos em circunstâncias claramente violadoras dos direiros
humanos, com recurso à denúncia, ao depoimento falso, ao documento forjado,
à infolmação obtida sob coacção psicológica e física, ao confisco.
A gestão do acesso a estes fundos é uma nova responsabilidade para as
autoridades democráticas e para os serviços de arquivo que os detêm. Trata-se de
garantir, em primeiro lugar, o seu uso para fms administrativos, isro é, para o

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Os Documentos Pessoais 110 Espaço Público

exercício dos direitos individuais, como a amnistia, a indemnização às vítimas


directas ou indirectas da repressão ou às suas famílias e o apurarnento das
responsabilidades. O valor primário desta documentação é o mais importante, e
é para esse efeito que se permite que os documentos pessoais sejam consultados
pelos próprios e se asseguram os seus direitos à privacidade e à imagem. Mas é
também fundamental que os investigadores estudem estes documentos e que a
consciência colectiva reflita sobre a sua influência na vida das pessoas e conheça
as dimensões reais do seu passado recente, com todas as garantias legais, para que
não haja interferência nas acções judiciais e a intimidade das vítimas da repressão
seja salvaguardada.
Nos regimes autoritários, que não admitiam a pluralidade de idéias e de
comportamentos, são em grande medida os arquivos das instituições repressivas,
e sobretudo os dos seus serviços policiais de infoIlllação, que refletem a confron­
tação social que neles existia. Os aparelhos repressivos desses regimes apoiavam­
se em geral num grande acervo documental, constituido predominantemente por
processos e ficheiros com infoIlllação sobre pessoas singulares e colectivas.
Em Ponugal, os arquivos das principais instituições repressivas, as
polícias políticas, abrangem fundamentalmente o período de acção governativa
de António de Oliveira Salazar e de Marcelo Caetano, entre 28 de maio de 1926
e 25 de abril de 1974. Trata-se não só da documentação produzida pela PIDE­
Polícia Internacional e de Defesa do Estado, e pela sua sucessora, a DGS -
Direcção Geral de Segurança, mas também da documentação dos arquivos a que
a PIDE sucedeu. Estão neste caso a PSE - Polícia de Segurança do Estado, a P I
- Polícia de Informações, a PIP - Polícia Internacional Ponuguesa e a PVDE­
Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Após a ruptura revolucionária de 25 de
abril de 1974, estes fundos, que passaram para a tutela do Serviço de Coordenação
da Extinção da ex-PIDElDGS e Lp, permaneceram na antiga prisão de Caxias,
até ao início da década de 90, tendo sido então transferidos para o IAN!n; onde
se encontram actualmente.
A avalanche de pedidos por parte dos novos utilizadores que desejam
consultar estes arquivos sobrecarrega muitíssimo os serviços do IANflT Con­
sidera-se, no entanto, que a sua colocação defmitiva nos Arquivos Nacionais foi
a opção mais correcta. Efectivamente, esses conjuntos documentais sao bens de
interesse cultural nacional.
A fim de proteger os direitos individuais e colectivos em causa, os
serviços de arquivo, encarregados da custódia dos arquivos da repressão, são
obrigados a seguir um autêntico código deontológico, que constitui uma impor­
tante ajuda na reflexão sobre o seu tratamento e acesso. Assim,
- considerando que as pessoas singulares são o objectivo fundamental
dos processos dos serviços de informação dedicados à repressão, a salvaguarda

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estudos históricos • 1998 - 21

dos direitos individuais das vítimas deve merecer preferência sobre a investi­
gação histórica;
- todo o cidadão tem direito ao livre acesso aos arquivos para se informar
sobre a existência ou não de algum processo ou de outra infollllação sobre a sua
pessoa, garantindo-se contudo a privacidade de terceiros;
- a consulta pública dos processos pessoais das vítimas da repressão está
vedada, excepto para os casos em que houver autorização expressa dos titulares
dos interesses legítimos;
- os serviços de arquivo interpretarão as leis relativas ao acesso nas
situações em que estas não forem suficientemente claras. Em tais circunstãncias,
deverá pedir-se a assessoria de especialistas em direito administrativo e procurar
alcançar o equiltbrio entre os direitos e interesses em conflito.
Uma das soluções para viabilizar o acesso a estes arquivos é a remoção
dos identificadores das vítimas ou de terceiros, nas reproduções dos documentos.
Pela complexidade de que se reveste, o expurgo dos dados pessoais não comu­
nicáveis constitui sempre uma tarefa muitíssimo morosa.
Deste modo, e com base em diferentes textos legais, foram definidos e
estão em vigor, no Instituto dos Arquivos Nacionaisrrorre do Tombo, um
conjunto de critérios e nOImas de acesso aos arquivos das polícias políticas
portuguesas. Com estes critérios se procura salvaguardar a privacidade da vítima
ou do visado e garantir ao investigador o acesso àquilo que é exclusivamente do
foro político.
Não obstante a enorme responsabilidade que recai neste momento sobre
o IANfTT decorrente da comunicação dos arquivos das polícias políticas, pode
afumar-se que, pelo rigor com que os referidos critérios são aplicados, tem sido
possível responder, sem problemas, quer aos visados por aquelas polícias, quer
aos investigadores.
Recentemente, a imprensa portuguesa foi eco de uma polémica entre
dois historiadores, os professores António Barreto e Fernando Rosas. Alegava o
primeiro que as circuntâncias em que as polícias políticas haviam apreendido os
seus documentos pessoais eram claramente violadoras do direito de propriedade,
e, nessa medida, exigia a restituição desses documentos.
Esta questão, que interessou bastante a opinião pública, não teve con­
seqüências práticas, lima vez que prevaleceu o ponto de vista de Fernando Rosas,
que defendia que a restituição dos documentos pessoais estava em contradição
com o princípio da integridade do fundo arquivístico, considerado património
da Nação.
Efectivamente, é fundamental aplicar os princípios da arquivística a este
tipo de fundos, onde muitas vezes não está claramente visível a lógica que garantia
a eficácia dos trabalhos que a instituição repressiva assumia; mas é essa lógica

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Os Documentos Pessoais no Espaço Público

policial que determina uma estruturação particular desses fundos documentais.


Por isso, os princípios da proveniência e da ordem original dos documentos
criados, reunidos e manipulados pelos serviços de informação devem ser manti­
dos. E pela mesma ordem de razões deve aceitar-se o princípio da integridade
dos fundos.
Uma outra obrigação dos serviços de arquivo diz respeito à necessidade
de divulgar o conhecimento sobre os arquivos das instituições repressivas. No
trabalho de divulgação deve implicar-se não só a Administração Pública, mas
também as instituições afectadas, as instituições defensoras dos direitos humanos
e os meios de comunicação social, principalmente a radio e a televisão.
Nesse sentido, o Instituto dos Arquivos Nacionaisfforre do Tombo
realizou, em maio último, uma grande exposição sobre os arquivos das polícias
políticas portuguesas. Nessa ocasião estiveram patentes ao público, naturalmente
mediante autorização prévia dos titulares, diversas cartas e notas pessoais do
actual presidente da República Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio, bem como cor­
respondência particular e gravações de escutas telefónicas do ex-presidente da
República Portuguesa Dr. Mário Soares para sua mulher Dl" Maria Barroso
Soares.
O Instituto dos Arquivos Nacionaisrrorre do Tombo está neste momento
a desenvolver imensos esforços no sentido de melhorar o tempo de resposta aos
pedidos de acesso a estes fundos. Além do conjunto de complexidades já assi­
naladas que condicionam a sua comunicabilidade e do facto da informação sobre
uma pessoa poder estar dispersa por múltiplos processos, ou por múltiplas
unidades de instalação, o que também dificulta os trabalhos é a enorme dimensão
destes conjuntos documentais.
Ao finalizar esta minha exposição, a propósito dos documentos pessoais
no espaço público, gostaria apenas de sublinhar que cada uma das questões que
vos referi está, como puderam constatar, eivada de elementos contraditórios e
que a necessidade de lhes dar resposta não diminui em nada as minhas dúvidas
e perplexidades.

Palavras-chave: Ponugal. Instituto dos Arquivos


acesso, arquivos pessoais, arquivos de Nacionais/forre do Tombo.

instituições repressivas, documenros


pessoais, legislação arquivística, (Recebido para publicação em
princípios arquivísticos, privacidade, novembro de 1997)

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