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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos


problemas de fundamentação teórica aos perigos para a
cultura

The two faces of Husserl's critical to the naturalism: from


the problems of theoretical foundation to the dangers to
culture

Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho


Universidade Federal Fluminense – UFF 1

RESUMO
O presente artigo aborda a crítica de Husserl à doutrina do naturalismo. Mais precisamente, o
artigo concentra-se em dois pontos principais: o primeiro aborda o contrassenso teórico inerente
ao projeto de fundamentação das ciências na doutrina naturalista, reduzindo o mundo a uma
realidade de fatos naturais; ao passo que o segundo trata dos perigos que esta doutrina
representa para a cultura e, em especial, para a formação da mentalidade do homem europeu. Ao
final, o artigo evidencia a inseparabilidade de tais aspectos da crítica ao naturalismo no itinerário
husserliano.

PALAVRAS CHAVE
Edmund Husserl; Naturalismo; Fundamentos; Cultura; Crise; Humanidade.

ABSTRACT
The present paper approaches the Husserl's critical to the doctrine naturalist. More precisely,
the article focuses on two main points: the first deals with the theoretical misunderstanding
inherent to the project of foundation of the science in the naturalistic doctrine, reducing the

1 Email: cdctourinho@yahoo.com.br.
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As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação


teórica aos perigos para a cultura
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world to a reality of natural facts. While the second deals with the dangers that this doctrine
poses for culture and in particular for the formation of the mentality of the European man. In
the end, the article evidences the inseparability of such aspects of the criticism to naturalism
in the Husserlian itinerary.

KEYWORDS
Edmund Husserl; Naturalism; Foundations; Culture; Crisis; Humanity.

INTRODUÇÃO na Psicologia, ao passo que o


Um olhar panorâmico sobre o segundo denuncia os perigos da
caminho traçado por Edmund doutrina naturalista para a cultura.
Husserl na primeira metade do Enquanto o primeiro aspecto
século XX – das Investigações Lógicas encontra-se consolidado no itinerário
(1900/1901) à Crise das Ciências husserliano desde a virada do século
Européias (1936) – permite-nos notar o XIX para o século XX, ainda no
quão inseparáveis são as críticas do período dos cursos proferidos em
autor ao naturalismo, em particular, Halle, o segundo ganha contornos
ao projeto de fundamentação da mais nítidos a partir da década de 20,
Lógica na Psicologia (inclinação do especialmente, a partir da série de
último quarto do século XIX que se artigos publicados para a revista
convencionou chamar de japonesa Kaizo. Vejamos, então, mais
“psicologismo”), e as denúncias que pormenorizadamente, cada um dos
se consolidam na década de 30 sobre referidos aspectos da crítica de
os impactos produzidos pela Husserl à doutrina do naturalismo,
doutrina naturalista na formação de de modo que possamos, em seguida,
mentalidade do homem europeu, examinar a inseparabilidade de tais
com graves consequências para a aspectos no itinerário husserliano, ao
cultura europeia. São, portanto, dois longo da primeira metade do século
momentos distintos do itinerário XX.
husserliano, a partir dos quais somos
remetidos para dois aspectos
indissociáveis da crítica de Husserl 1. A CRÍTICA DE HUSSERL AO
ao naturalismo: o primeiro procura NATURALISMO NAS ORIGENS
evidenciar o contrassenso teorético
inerente à intenção de
DA FENOMENOLOGIA
Ao examinar o percurso de
fundamentação da Lógica (e, em
Husserl nas origens da
última instância, da própria Filosofia)
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fenomenologia, em especial, de 1896 a experiência”(vage Verallgemeinerungen


1911, notamos uma preocupação der Erfahrung) que, como tais, não
renovada do autor em afirmar a tese perdem o seu cariz episódico ou
segundo a qual toda tentativa de contingente, não nos livrando, por
fundamentação da Matemática, da conseguinte, do assédio da dúvida e
Lógica, ou mesmo, da própria do que insiste em não se mostrar
Filosofia, em um pensamento que evidentemente como tal. Tais
tenha como base a doutrina do proposições inferidas da experiência
naturalismo (para a qual pensar o nos levariam, inevitavelmente,
mundo consiste em pensa-lo segundo Husserl, uma vez que as
unicamente como uma realidade de mesmas careceriam de validade
fatos naturais), se torna uma tentativa apodítica, a um relativismo cético. Se
que nos conduz, inevitavelmente, a afirmarmos, em conformidade com o
um “contrassenso teórico” e, por pensamento natural, a tese segundo a
conseguinte, a um ceticismo que se qual “todas” as proposições inferidas
autocontradiz. Afinal de contas, como pelo pensamento são generalizações
nos mostra Husserl desde 1900, em da experiência e, por isso, na medida
Prolegômenos à lógica pura, volume em que carecem de validade absoluta,
propedêutico das Investigações Lógicas, são proposições passíveis de
ao ignorar a distinção entre o ato questionamento, estaremos supondo,
psicológico de pensar e o conteúdo ao menos, que a própria tese afirmada
ideal do pensamento, reduzindo, é uma “exceção” à regra. Do
indevidamente, tal conteúdo a uma contrário, ela própria seria também o
realidade de fatos naturais (aspirando resultado de uma inferência da
algo como uma “física do pensar”), experiência, consistindo, portanto, em
além de incorrer em problemas de uma generalização empírica que,
fundamentos, o modo de como tal, é contingente. Eis o que
consideração natural confina o permanece desconhecido pelas
homem – enquanto ente psicofísico – ciências positivas da natureza: o
a uma relação meramente empírica contrassenso (Widersinn) a que nos
com o mundo. Neste caso, por mais conduz o ceticismo inerente ao
êxito que o pensamento obtenha, fica pensamento natural adotado por tais
confinado a inferir, a partir da ciências. Portanto, desde 1900, em
observação dos fatos, proposições que Prolegômenos, passando pelas lições
não são senão, como nos diz Husserl, do período de Göttingen,
“generalizações vagas da especificamente, as lições de 1906 e
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1907, até o artigo publicado em 1911, contrassenso teórico inerente às


intitulado “Filosofia como ciência de iniciativas psicologistas de se tomar o
rigor”, Husserl não mede esforços em conteúdo ideal do pensamento em
denunciar o contrassenso teorético termos de uma realidade psicofísica, a
resultante da aceitação do modo de partir deste período, cada vez mais,
consideração natural perante o nota-se uma preocupação por parte
mundo. do autor em denunciar os riscos que a
Tomado pelo anseio incansável realização de tal iniciativa naturalista
de reeditar, no século XX, o projeto de teria para a formação da mentalidade
fundamentação da filosofia como do homem europeu. O primeiro sinal
uma “ciência rigorosa” (strenge desta nova preocupação já pode ser
Wissenschaft) – intenção primária que notado em “A filosofia como ciência
acompanha e move o itinerário de rigor” (1911), artigo publicado
husserliano por quase quatro décadas para o primeiro número da Revista
– Husserl não hesita em chamar à Logos, no qual Husserl nos chama à
atenção do leitor para os riscos de se atenção para os perigos do
levar adiante o propósito de naturalismo para a cultura.
fundamentar a filosofia em um Deparamo-nos com os reflexos de
naturalismo, esvaindo-a em uma uma crítica anunciada dez anos antes
realidade de fatos naturais. Mais do em Prolegômenos. Em sua versão
que nunca, tal preocupação visa, extrema, conforme Husserl já
primeiramente, denunciar o apontava desde 1896, ainda no
contrassenso teórico a que tal período de Halle, o naturalismo
propósito nos conduz, almejando, considera todos os princípios lógicos,
assim, afastar o projeto de as chamadas “leis do pensamento”
fundamentação da filosofia de um (Gesetze des Denkens), em termos de
caminho que incorresse na leis naturais do pensamento
naturalização do pensamento. Eis (incorrendo, com isso, no
uma preocupação que se renova em contrassenso de confundir o juízo
Husserl, ao longo da primeira década como ato psicológico de pensar com o
do século XX, período no qual vigora juízo como unidade ideal da lógica).
um ideal positivista de ciência, cujas Tal como Husserl já havia também
bases repousam justamente na denunciado, no período de Göttingen,
doutrina do naturalismo. Mas, se nas lições de 1906 e 1907, o
durante o referido período, é devido a contrassenso cético resultante do
problemas de fundamentos que modo de consideração naturalista,
Husserl é levado a denunciar o segundo o qual pensar o mundo

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consiste em pensá-lo unicamente a sua posição incorre, já a partir do


como uma realidade de fatos naturais, artigo de 1911, o autor começa a
manter-se-ia “obscuro” para o chamar à atenção do leitor para os
próprio cientista natural (de viés perigos desta dita “ingenuidade”,
positivista), uma vez que ele mesmo afirmando-nos que: “...os
não se aperceberia do caráter contrassensos teóricos são
infundado de sua posição. No inevitavelmente seguidos por
Apêndice A, VIII, do § 33 das lições contrassensos (discordâncias
de 1906/1907, publicadas sob o título evidentes) no procedimento atual,
de Introdução à Lógica e Teoria do teórico, axiológico, ético” (HUSSERL,
Conhecimento, Husserl chamará este 1911, p. 295). A propósito desta nova
ceticismo não declarado de preocupação, Husserl afirma-nos
“inconsciente” (unbewussten ainda, ao final da introdução do
Skeptizismus), chegando mesmo a famoso artigo de 1911, que o
compará-lo ao “verme” da dúvida ou naturalismo dominante na Europa:
obscuridade (der Wurm des Zweifels “...significa praticamente um perigo
oder der Unklarheit), inapercebido em crescente para a nossa cultura”
todo conhecimento dito “positivo”, (HUSSERL, 1911, p. 293). Se em tal
dado como “definitivo” (bestimmten). artigo, tais observações não têm
Tal ceticismo inconsciente vai, aos maiores desdobramentos, elas já
poucos, corroendo e destruindo a indicam, por si só, uma nova
tomada de posição ingênua assumida preocupação do autor: além dos
pelas ciências da natureza que, problemas de fundamentos nos quais
conforme avançam, ignoram, por o naturalismo incorre, caberá também
completo, os problemas relacionados alertar para os impactos que tal modo
à possibilidade do conhecimento, de consideração do mundo teria para
assumindo, com isso, um realismo a formação da mentalidade do
que não se interroga pelo sentido da homem europeu, com graves
objetividade do mundo que tais consequências para a cultura.
ciências consideram, acriticamente, Passemos, então, a um exame desse
como dada. segundo aspecto da crítica de Husserl
Se até então, para Husserl, esta ao naturalismo.
tal “cegueira naturalista” estaria
relacionada ao que impede o adepto
do pensamento natural de notar os
problemas de fundamentos nos quais
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numa linha progressiva, começava a


2. OS PERIGOS DO dar sinais de declínio a partir da
Primeira Guerra, revelando, de
NATURALISMO PARA A acordo Husserl, a sua “ausência de
CULTURA sentido”. Nos termos do autor: “Se
Apesar das indicações do artigo ela já tinha se tornado vacilante antes
de 1911, pode-se dizer que é a partir da guerra, desmoronou-se agora
da década de 20 que a nova completamente” (HUSSERL, [1923]
preocupação começa a ganhar 1989, p. 4). Daí a formulação
contornos mais nítidos. Evidencia-se, husserliana da questão, em tom de
a partir desta década, a preocupação manifesto, numa referência indireta à
de Husserl em dar o seu parecer a obra O declínio do Ocidente de Oswald
respeito da crise da Europa, Spengler: “Deveremos considerar a
propondo-nos, ao mesmo tempo, ‘decadência do Ocidente’ como um
uma reforma racional da cultura que factum que se abate sobre nós?”
pudesse, em meio à crise, conduzir a (HUSSERL, [1923] 1989, p. 4). A
humanidade europeia em direção a humanidade europeia estaria, com a
uma humanitas autêntica, guerra, condenada a se desorientar
inviabilizada, segundo o próprio por um pessimismo fatídico e por um
autor, por “preconceitos naturalistas” “realismo”, outrora apenas ingênuo e
(naturalistische Vorurteile). Husserl agora sem ideais? Husserl pergunta-
afirma-nos, logo no primeiro dos nos, então: a racionalidade e a
seus artigos publicados pela revista excelência (de nos colocarmos acima
japonesa Kaizo (palavra cujo de nossas metas circunstanciais,
significado é justamente o de religando-nos à humanidade) não
“renovação”), intitulado “Renovação. seria um caminho possível para
Seu problema e seu método”, de remediar essa crise? Certamente, se
1923, que a Europa está em crise e, esta crise não fosse marcada por uma
em seu doloroso presente, uma perda da crença em tal racionalidade
“renovação” se faz necessária em e excelência. Eis, segundo Husserl,
meio ao cenário devastador da “...o estatuto de todos aqueles que
guerra. Essa mesma humanidade que são excelentes, a qual os eleva acima
se orgulhava do ideário positivista de das suas preocupações e infortúnios
ciência desde o último quarto do individuais” (HUSSERL, [1923] 1989,
século XIX e, por conseguinte, de ter p. 3). Se por um lado, a ideia de uma
alcançado um estágio positivo, reforma da cultura implica, ao
supostamente “mais avançado” menos, tal como Husserl a pensa, na

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retomada desta crença, por outro principais círculos acadêmicos


lado, o principal obstáculo a ser europeus, desde o último quarto do
superado se encontra na figura dos século XIX, não hesitaram em
homens que, absorvidos pela visão considerar a realidade espiritual nos
pessimista, não hesitam em moldes das ciências naturais,
considerar tal retomada – tanto no considerando a consciência como
plano individual quanto em nível uma espécie de “anexo externo” dos
social e cultural – como um “objetivo corpos, considerando, enfim,
quimérico” (chimärisch Ziel). Contra a “homens e animais como simples
visão pessimista segundo a qual a acontecimentos no espaço, ‘na’
humanidade seria reduzida a uma natureza’” (HUSSERL, [1923] 1989, p.
“humanidade de fatos” e, portanto, a 8). Tal inclinação naturalista não
uma mera “acidentalidade”, contra a hesitaria, portanto, nos moldes das
perda da crença na possibilidade de ciências positivas, em levar adiante o
uma racionalidade efetiva, Husserl projeto de naturalização da “vida do
aposta suas fichas em uma reforma espírito”, tratando, deste modo, essa
racional da cultura. Nos termos do mesma vida espiritual em termos de
autor, trata-se de reacender: “A uma realidade espacializante,
crença que nos preenche – que à tratando-a em analogia com o
nossa cultura não é permitido se dar número (a própria temporalidade
por satisfeita, que ela pode e deve se vivida como duração na imanência
tornar reformada através da razão e da vida espiritual seria tomada em
da vontade humanas...” (HUSSERL, termos de uma grandeza numérica e,
[1923] 1989, p. 5). Tomada por portanto, tratada em termos
“preconceitos naturalistas” espaciais).
(naturalistische Vorurteile), tal Exercendo um papel
humanidade não perceberia a íntima preponderante na formação da
relação entre tais preconceitos e o mentalidade do homem europeu, o
estado de desamparo, bem como de pensamento natural (como alicerce
impotência que, na primeira metade para a visão positivista)
do século XX, acometeu o homem desconsideraria, enfim, os problemas
europeu em meio ao cenário da metafísicos (as chamadas “questões
guerra. supremas e últimas” que ultrapassam
É preciso lembrar ainda que, o mundo enquanto universo de
impulsionados pelo ideário meros fatos) e, em particular, o
positivista de ciência, alguns dos problema da distinção e da relação
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entre os domínios do corpo e do condição meramente acidental. Se o


espírito (foco das atenções dos artigo de 1923 atesta a preocupação
filósofos de ascendência judia nas em denunciar os perigos do
origens da filosofia contemporânea, naturalismo para a cultura (algo que
tais como Husserl e Bergson). Daí o artigo de 1911 apenas indicava sem
Husserl dizer que a intenção de maiores desdobramentos), é a partir
realizar uma ciência da realidade dos anos 30 que tal preocupação se
espiritual, ao modo de uma evidencia. Em maio de 1935, como
psicologia naturalista, a partir de sabemos, Husserl profere a famosa
procedimentos indutivos, seria um conferência de Viena, intitulada A
contrassenso, por todos os problemas crise da humanidade européia e a
de fundamentos – a confusão entre os filosofia. Nela, Husserl busca uma
domínios do real e do ideal, do elucidação das origens mais
espaço e do tempo, etc – nos quais tal profundas do adoecimento da vida
intenção incorreria. Ao denunciar tal espiritual da Europa. A consolidação
contrassenso, a aspiração por uma de um projeto de naturalização do
reforma racional da cultura deveria espírito – com os seus respectivos
abrir os caminhos obstruídos pelos problemas de fundamentos, para os
preconceitos naturalistas. Por esse quais o autor já chamava à atenção
motivo, tal reforma constituir-se-ia, desde a virada do século XIX para o
antes de tudo, como uma aspiração século XX – fomentou, na formação
que visa “reformar a cultura fática”, da mentalidade europeia, um
reformar uma visão de mundo que esquecimento daquilo que nos
confina os homens a juízos dirigidos remeteria, segundo Husserl, para o
para simples fatos de existência, nos sentido mais originário da vida
quais somente se admite como válido espiritual do homem europeu, para o
o que for objetivamente verificável. que o autor considera a “estrutura
Só assim, superando tais espiritual” (gestige Gestalt) da Europa,
preconceitos, essa humanidade seria a saber: o surgimento da filosofia,
recolocada no caminho de uma enquanto uma nova forma cultural,
racionalidade (que não é senão o na qual todas as ciências estariam
caminho para ideias e ideais incluídas. Esta nova forma cultural
absolutos, válidos conduz os homens, por meio de um
incondicionalmente) cuja “novo tipo de posição” (neuartige
responsabilidade seria inerente ao Einstellung), a um deslocamento do
próprio caminhar, unindo os olhar de suas metas finitas e
indivíduos para além de uma circunstanciais, próprias de suas

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preocupações diárias inerentes a um Como nos diz Husserl,


“mundo circundante” (Umwelt), para “Essencialmente, não há uma
metas infinitas, transformando-os, zoologia dos povos” (HUSSERL,
assim, na figura de um novo homem [1936] 1976, p. 320). Mas, antes sim,
cuja reflexão – dada a radicalidade de trata-se de uma evolução espiritual
elevá-lo acima de sua própria por intermédio da qual o conjunto da
individualidade – faz dele uma humanidade europeia se unificaria –
espécie de “espectador não pela simples justaposição
desinteressado” (uninteressierter geográfica e cultural das diferentes
Zuschauer), contemplador do mundo nações – mas pelo novo espírito
preocupado tão somente em “ver e crítico orientado para tais metas
descrever adequadamente” (sehen infinitas. Para Husserl, esta nova
und adäquat zu beschreiben), conforme posição – de origem grega, filosófica
Husserl aponta no § 15 de Meditações e europeia – perante o mundo
Cartesianas, em 1931. Trata-se da assumiria a sua função diretriz,
decisão deste novo homem de tornando-se responsável pela “saúde
consagrar toda a sua vida futura à espiritual” desta tal humanidade.
teoria, de dar a ela um caráter Afinal, a filosofia como teoria não
universal, construindo, nos termos de liberta somente o investigador, mas
Husserl, “...conhecimento teórico todo aquele que seja formado
sobre conhecimento teórico in filosoficamente. Nos termos do
infinitum” (HUSSERL, [1936] 1976, p. Husserl, no § 3 de A Crise das Ciências
332). Tais metas infinitas seriam, Européias e a Fenomenologia
segundo Husserl, tal como um telos Transcendental (último grande
espiritual desta nova humanidade testemunho do autor sobre os
(que não é outra coisa senão a razão contrassensos produzidos pelo
filosófica como uma vivência naturalismo, de 1936): “À autonomia
intelectiva originária que estaria além teorética segue-se a prática”
das diferentes formas culturais do (HUSSERL, [1936] 1976, p. 6).
povo europeu, conferindo-lhe o Aos olhos de Husserl, se esta
sentido de uma evolução em direção a humanidade mergulhou em uma
um polo eterno). Trata-se, portanto, profunda crise a partir da Primeira
não de uma evolução biológica, que Guerra, foi fundamentalmente
conduz, em graus sucessivos, os porque ela própria – ao exaltar o
organismos individuais do embrião à conhecimento matemático da
maturidade, do nascimento à morte. natureza e do mundo em geral,
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estendendo-o ao conhecimento do esfera, uma consciência pátria” (das


espírito, também concebido como Bewusstsein einer Heimatlichkeit)
“objetivamente no mundo e como tal (HUSSERL, [1936] 1976, p. 320).
fundado na corporalidade” Trata-se, portanto, de um solo
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 341) — espiritual comum – idealizado pela
sucumbiu a um esquecimento da razão filosófica – no qual a
própria filosofia que, desde o seu humanidade europeia estaria,
surgimento, se tornou responsável originariamente, radicada. A “perda”
por unir, por relações somente deste solo espiritual (no sentido de
espirituais, o povo europeu. Ao se um lhe “dar às costas”) implicaria,
deixar cegar pelo êxito galopante das segundo Husserl, na ruína desta
ciências positivas, por sua prosperity humanidade.
(como diria Husserl no § 2 de A Crise Mas, como Husserl afirmava
das Ciências Européias), tal orgulho desde o artigo de 1923, a Krisis – não
positivista incorporado por essa somente epistemológica, mas
humanidade significou “...um virar também espiritual e existencial –
as costas indiferente às questões que vivida pela Europa resulta da
são as decisivas para uma alienação da humanidade européia a
humanidade genuína” (HUSSERL, um naturalismo funesto, para o qual
[1936] 1976, pp. 3/4). Afinal, nos o homem não é senão um “fato
termos do autor, ainda no § 2 da natural”. Segundo Husserl, os
referida obra: “Meras ciências de próprios cientistas do espírito pouco
fatos, fazem meros homens de fatos” poderiam auxiliar essa humanidade
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 4). em meio a este cenário de crise, uma
Tomadas por este esquecimento, vez que não abdicaram, desde o
sobretudo, a partir da Primeira último quarto do século XIX, de
Guerra, as nações europeias estender este mesmo objetivismo
passaram, em um nacionalismo naturalista para o domínio das
beligerante sem precedentes, a acirrar ciências do espírito. Daí Husserl
o ódio e a destruição. Porém, como dizer, uma vez mais, na conferência
afirma Husserl, por mais hostilizadas de Viena, em tom de alerta, o que
que estejam entre si, tais nações fora uma das suas principais
conservam um peculiar parentesco preocupações ao longo das primeiras
no plano espiritual que as transcende décadas do século XX: “É um
em suas diferenças nacionais. Nos contrassenso considerar a realidade
termos de Husserl: “É algo como do espírito como um anexo real dos
uma irmandade que nos dá, nesta corpos, atribuindo-lhe um ser espaço

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temporal dentro da natureza” autor nos diz, os verdadeiros


(HUSSERL, [1936] 1976, p. 342). A combates do nosso tempo são os
aceitação de tal objetivismo combates entre uma humanidade já
naturalista implicaria, segundo arruinada pela guerra, reduzida ao
Husserl, em uma “unilateralidade solo de suas particularidades, tais
ingênua” (naive Einseitigkeit): como nação, raça e cultura
contraditória teoreticamente e específicas, e outra que ainda resiste
perigosa para a cultura. Para Husserl, e luta pela sua “auto-compreensão”
tal visão naturalista do mundo e do (Selbstverständnis), por uma nova
homem, ao relegar à vida espiritual radicação a este solo espiritual
(criadora de formas culturais) um originário (mantendo a crença no
sentido meramente “fisiológico”, se "ideal de uma filosofia universal”, de
tornou a principal responsável por uma philosophia perenis). Perder a
restringir esta humanidade a uma crença na capacidade do homem de
humanidade meramente acidental, prover à sua existência individual e
fomentando, junto a ela mesma, a geral um sentido racional implica,
perda do solo espiritual comum no para Husserl, em perder a crença
qual radica o povo europeu. Para “em si mesmo”. A aceitação de um
remediar tal estado de adoecimento solo meramente geográfico,
espiritual no qual se encontrava o circunscrito a cada uma das nações
homem europeu seria necessário europeias, abriria novamente as
denunciar, novamente, o portas para um relativismo cético
contrassenso teórico no qual que, além de incorrer em um
inevitavelmente incorreria a doutrina contrassenso teorético, se encontraria
naturalista, bem como os perigos que na iminência de impactar gravemente
tal doutrina representaria para a a cultura. Daí o tom alarmante do
cultura. Husserl não hesita em discurso de Husserl, ao final do § 5
convocar essa humanidade a reviver de A Crise das Ciências Européias:
o que foi esquecido, fazendo renascer “Nós, homens do presente, que
a experiência de uma “racionalidade surgimos neste desenvolvimento,
efetiva” (wirklichen Rationalität) que, encontramo-nos no grande perigo de
ao triunfar sobre o naturalismo, uma nos afundarmos no dilúvio cético e,
vez mais, uniria esta mesma assim, de deixar escapar a nossa
humanidade europeia, fortalecendo-a verdade própria” (HUSSERL, [1936]
novamente em seu solo espiritual 1976, p. 12). A nova denúncia (cujos
originário. Afinal, como o próprio contornos começam a ser notados a
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partir da década de 20) mostra uma fundamentos), ao passo que a


face da crítica de Husserl ao segunda nos remete para
naturalismo, a partir da qual o que se considerações do domínio ético-
encontra em jogo não consiste em social, no cenário da cultura europeia
evidenciar tão somente o da primeira metade do século XX.
contrassenso teórico – no âmbito do Conforme vimos, de 1896 a 1911,
debate sobre a fundamentação da Husserl alerta-nos, para a seguinte
Lógica, da Matemática e mesmo da implicação da aceitação da posição
própria Filosofia – inerente à naturalista: a de que todo pensamento
aceitação da doutrina naturalista, que tenha como base a doutrina do
mas mostrar que tal aceitação naturalismo incorre, inevitavelmente,
reabriria as portas para um em um contrassenso teórico e, por
relativismo cético, afastando-nos, conseguinte, em um ceticismo que se
dessa vez, do que há de mais genuíno autocontradiz. Já no período de 1923
no próprio homem (enquanto animal a 1935, como pudemos acompanhar,
rationale): a manifestação da Husserl concentra-se em denunciar os
experiência originária de uma impactos de tal modo de consideração
racionalidade efetiva por meio da sobre a formação da mentalidade do
qual atribuímos sentido racional ao homem europeu, propondo-nos um
mundo e a nossa própria existência. diagnóstico da etiologia da crise que
Passemos, então, para as se instaurou na cultura europeia. Tais
considerações finais a respeito da denúncias encontram-se
relação indissociável entre os dois indissociavelmente ligadas. Afinal, ao
aspectos da crítica de Husserl à dar às costas para os problemas de
doutrina naturalista. fundamentos nos quais o naturalismo
e, sobretudo, o projeto de
naturalização da “vida do espírito”,
CONCLUSÕES incorria, esta mesma humanidade
A crítica de Husserl ao europeia fomentava uma posição
naturalismo apresenta-nos, portanto, perante o mundo, na qual ela mesma
dois aspectos indissociáveis, a partir ignorava o seu próprio “solo
dos quais somos, correlativamente, espiritual”, se afastando, cada vez
colocados diante de duas denúncias mais, do que Husserl considerava o
cruciais, inseparáveis no itinerário seu telos originário, esvaindo-se,
husserliano: a primeira delas é de enfim, em um objetivismo naturalista.
ordem puramente teorética A ingenuidade teorética de tal
(relacionada a problemas de objetivismo converte-se em um

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Aoristo)))))
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realismo fatídico sem ideais. Em um mesma conferência de 1935: “...a


mundo reduzido a uma realidade de situação nunca melhorará enquanto
fatos naturais, esta humanidade não se colocar em evidência a
acidental não tardaria em justificar ingenuidade do objetivismo...”
suas decisões com base em (HUSSERL, [1936] 1976, p. 345) e não
proposições extraídas dos fatos e, nos convencermos do absurdo de
portanto, inferidas a partir da considerar a natureza e o espírito
observação positiva dos mesmos. Tais como realidades de sentido
proposições – enquanto homogêneo, confundindo, com isso,
generalizações da experiência – não os domínios do real e do ideal, do
perderiam a sua circunstancialidade. espaço e do tempo, do que pode ser
A existência humana estaria, tratado em termos de grandeza
portanto, destinada a um desamparo numérica e do que somente pode ser
irreversível, uma vez que, por mais descrito como uma vivência de
êxito que o pensamento obtivesse, em duração. Tal ingenuidade naturalista
meio à exaltação do objetivismo teria, portanto, um duplo aspecto:
naturalista (que somente considera alimentar, sem se aperceber, um
como válido o que é verificável a contrassenso teórico, além de renovar
partir da observação sistemática da uma posição perante o mundo, cujo
regularidade dos fatos), o próprio perigo logo se faz notar na própria
pensar – restrito a inferências de cultura. Trata-se, portanto, de uma
proposições empíricas – não poderia ingenuidade – dada a sua
apreender conteúdos cuja validade periculosidade para a própria cultura
estivesse inteiramente livre do – distinta daquela mencionada por
assédio do que é contingente. Esvaída Husserl a propósito da figura do
em um naturalismo generalizado, a filósofo como “observador
filosofia estaria na iminência de seu desinteressado” e “contemplador do
fim e a humanidade europeia mundo”. Se a primeira arruína a
mergulharia, inevitavelmente, em humanidade, reduzindo-a a uma
uma crise sem precedentes. Apesar de mera acidentalidade, a segunda é
suas convicções, Husserl parece própria do caminho a ser trilhado
pressentir que a crítica ao naturalismo para redimi-la do esquecimento
pode permanecer inaudita por esta daquilo que Husserl considera o telos
mesma humanidade cujo espiritual do homem europeu. Mais
adoecimento espiritual é manifesto. do que nunca, ao denunciar tais
Afinal, como ele próprio nos diz, na aspectos da “má ingenuidade”,
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As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação


teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

enquanto “funcionário da HUSSERL, E. Die Idee der Phänomenologie


humanidade” (Funktionär der – Fünf Vorlesungen. Husserliana. Band II.
Menschheit), observador anônimo do Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1907]
1950). HUSSERL, E.
mundo, a figura do filósofo renasce, Philosophie als strenge Wissenschaft. In:
como uma fênix, para redimir esta Logos: Zeitschrift für systematische.
humanidade da sua própria Philosophie / Logos, 1910-1911, 53 Seite
incredulidade em uma “racionalidade (n), pp. 289-341.
efetiva”, para redimi-la, enfim, do HUSSERL, E. “Erneuerung. Ihr Problem
esquecimento da própria filosofia, und ihre Methode (1923)”. In: Aufsätze
und Vorträge (1922-1937). Husserliana.
forma cultural a partir da qual se
Band XXVII. Dordrecht / Boston / London:
anuncia, aos olhos de Husserl, não Kluwer Academic Publishers, ([1923]
uma aquisição acidental de uma 1989).
humanidade fática (algo como um HUSSERL, E. Cartesianische Meditationen
mero “delírio histórico fático”), mas, und Pariser Vorträge. Husserliana (Band
antes sim, o sentido originário da I). Den Haag, Netherlands: Martinuos
vida espiritual, o solo genuíno do Nijhoff, ([1931/ 1929] 1973).
HUSSERL, E. “Die Krisis des europäischen
homem europeu. Menschentums und die Philosophie”. In:
Die Krisis der europäischen Wissenschaften
und die transzendentale Phänomenologie.
REFERÊNCIAS Husserliana. Band VI. Netherlands:
Martinus Nijhoff, ([1935] 1976).
HUSSERL, E. Logische Untersuchungen.
Erster Band. Prolegomena zur reinen HUSSERL, E. Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale
Logik. Halle a. d. S.: Max Niemeyer, ([1900]
1913). Phänomenologie. Husserliana. Band VI.
Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1936]
HUSSERL, E. Einleitung in die Logik und
Erkenntnistheorie – Vorlesungen 1906/07. 1976).
Husserliana (Band XXIV). Dordrecht, The
Netherlands: Martinus Nijhoff,
([1906/1907] 1984). Submetido: 24 de julho 2017

Aceito: 31 de julho 2017

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