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Memórias de um

Saracura: Ir-a-ti (PR)


Calama (Chile)

Cruz del Peregrino –Chaco, Argentina


Rota
Diário de bordo

Suzques, Chile.

O objetivo deste é apenas o de um registro da trajetória de um cicloviajante que fez questão


de se diferenciar de um turista. Ao contrário do turista, o objetivo não foi o de visitar os
lugares comuns, especialmente preparados para tal. Aproveitei o percurso, muito mais do
que tive pressa em chegar. Saboreei as relações interpessoais que envolveram as
necessidades mais imediatas e importantes para a manutenção da vida. Assim, procurei
ultrapassar as relações mediadas pela economia. A perspectiva foi muito mais a de uma
peregrinação e de um retiro espiritual. Um encontro comigo mesmo no esforço físico do
“giro”, com seus prazeres e suas dificuldades, na natureza e seus elementos como o ar (que
se respira e que se movimenta), o sol, a água, o fogo e o alimento. O objetivo foi esvaziar a
mente com a repetição de palavras sagradas e com a reflexão por uma vida mais simples e
gratificante. Segue um simples relato para quem tiver interesse e para eu reler quando tiver
saudades de mim mesmo!
Dia 01 de outubro de 2015
Trajeto: Irati, PR até as margens do Alagado do Iguaçu, Candoi – PR.
210 km
Gasto: 42 reais

Até Guarapuava tinha neblina o que facilitou a pedalada. A pista estava tranquila até umas
9 horas. A paisagem encantadora com os pinheiros imponentes na bruma e os canários e
sabiás acima deles em sua melodia esfuziante. Ao findar a serra da Esperança ganhei umas
maçãs que me deram ânimo em todo o percurso do dia. Almocei no parque das Araucárias.
O arroz integral de garrafa térmica ficou ótimo e degustei com a broa tradicional. Lá pelas
13 horas o Renan (Caloizinho) me encontrou com sua MTB e trocamos altos papos em um
pedal animado. Ele identificou o pneu traseiro murcho. Parei e ele me ajudou a inflá-lo. Mas
logo que nos separamos o pneu murchou novamente e precisei trocar a câmara. A viagem
seguiu tranquila. Não resisti e tirei uma foto de um agricultor que, após arar a terra com
seu cavalo, estava a plantar com uma plantadeira manual (matraca). Me impressionou o
ritmo e precisão que com que executava a tarefa. Ao chegar na margem do rio fui premiado
com um lindo pôr do sol. Atravessei uma das pontes sobre o alagado do Iguaçu e aguardo
uma porção de cascudo com batatas feitos pela Preta e pelo Luiz enquanto registro essas
palavras.

Serra da Esperança. A primeira grande subida!


Dia 02
Trajeto: Alagado do Iguaçu até Marmeleiro, PR
139 km
Gasto: 50 reais.

Sai um pouco tarde, meio atrapalhado com a tralha de camping e café da manhã. Como
estava na beira do Rio, tive que subir. Depois descer, e subir.... A manhã estava radiante.
Até tentei registrar o nascer do sol e o pôr da lua. Em Pato Branco dois rapazes me pararam.
Eles estavam na lanchonete na noite anterior e queriam ver a bike e conversar. Muito
simpáticos. De forma que até Vitorino foi razoável. O legal foi que parei para confirmar o
caminho com um vendedor de jabuticaba e sua família e fui presenteado com um meio
quilo. Estavam muito doces. Aproveitei para preparar o almoço e descansar um pouco.
Algumas subidas depois um vento sul começou a dificultar o pedal. Ele trazia uma chuva
daquelas. Parei num ponto de ônibus. Ajeitei a bagagem, tirei a capa de chuva e a polaina,
esperei a chuva acalmar e segui viagem. Quando estava chegando em Marmeleiro vi nuvens
pretas vindo em minha direção. Avaliei a situação e resolvi entrar em Marmeleiro. Por
coincidência, fiquei no mesmo hotel que me hospedei em 2012, quando retornava de Jujuy
de moto. Um hotel bem familiar do Sr Alécio e sua esposa Gercy. Um menino, o Alécio
Manoel, neto dos donos, muito curioso ficou perguntando sobre tudo. Acho que ele vai
pedalar algum dia, a julgar pelo interesse. Tomara que o tempo melhore amanhã.

Início do dia, Candói, PR


Dia 03
Trajeto: Marmeleiro – Eldorado (Missiones)
205 km
Gasto: 220 pesos

Ontem seu Alécio do Hotel disse que seria difícil para eu sair muito de madrugada. Se
comprometeu a liberar o café às 6. Topei e dito e feito. 6 e 15 já estava na bike. Mas logo vi
que o pneu estava murcho. Resolvi desmontar tudo e consertar a câmara. Saí as 7 e só
depois de uns 20 km lembrei de ligar o strava tão fascinado que eu fiquei com aquela
paisagem de serra. Com a chuva que havia caído tudo estava tão verdinho.... Depois da
serra do Tateto chequei em Flor da Serra e conversei com um morador muito simpático, o
Joarez que me convidou para tomar chimarrão. Começou o que parecia uma gangorra: um
sobe e desce interminável. Parei no terminal Pozo Azul no trevo para San Pedro e comi um
sandwich de empanado com um belo copo de vinho branco. Com uma chuva fina recomecei
a gangorra.

Missiones, Argentina.
Dia 04
Trajeto: Eldorado (Missiones) – San Ignácio
160 km
Gasto: 160 pesos

De Eldorado saí quando o sabiá já estava cantando. Me atrapalhei por que não sabia que o
hotel 315 não servia café. Preparei o meu chocolate e comi com o pão que havia comprado
quando cheguei em Eldorado. Já passavam das sete quando consegui sair. Mandei ver na
estrada. Fico contente com a quantidade de pássaros pretos que encontro pelo caminho.
Eles impressionam-me tanto quanto a paisagem. Ouvi dizer que no Mato Grosso é assim
também. Muita mata e verde. Não tinha a pretensão de chegar a Posadas. Ainda bem,
porque a brincadeira da gangorra me deixou exausto. Outra coisa: Depois de uns 40 km,
simplesmente o acostamento acabou. Então tive que redobrar a atenção. No fim da tarde
o movimento aumentou e havia muitos garotos apostando corrida com suas motos. Fiquei
muito atento a tudo para não correr nenhum risco. Bom, em Santo Ignácio tentei ver as
ruínas mas havia acabado de chegar um ônibus de turistas com suas máquinas a postos. Vi
a fila, tirei uma foto e dei-me por satisfeito. Fui procurar um lugar para dormir. Na saída
havia um camping mas achei o lugar muito estranho. Depois de alguns quilômetros cheguei
em um hotel de beira de estrada, o Teyú. Acampei próximo da porteira em um lugar
excelente. Fui dormir sem banho.

Altares para Defunta Correa e Gauchito Gil, Missiones, Argentina.


Dia 05
Trajeto: San Ignacio – Itá Ibaté
205 km
Gasto: 120 pesos

Os preços subiram muito por aqui desde que vim pela última vez. As coisas estão tão caras
quanto no Brasil. Ou foi a nossa moeda que desvalorizou mesmo e os pesos também em
relação ao dólar. Hoje arrumei a tralha em 50 min. Foi meu record. Mais um pouco de
gangorra até Posadas. Lá comi uma chipa de um senhor que as vendia no trevo, uma delícia.
Fiz o trevo em direção à Corrientes. E a pista mudou bastante. Acostamento largo e limpo
com subidas e descidas leves. Na saída de Missiones tem uma gendarmeria com um
complexo turístico. Muito bonito. Em Corrientes o acostamento se foi. Em compensação as
retas sem fim começaram. Às vezes um vento contra, mas, abaixando-se dava para manter
acima dos 20 por hora. No caminho há vários altares de Gauchito Gil. Em um deles consegui
água e a recepção de muitos cães. Parecia o próprio que me dava água. Parei no pedágio e
aproveitei as mordomias. Lavei roupa, tomei banho, lavei a camisa, a cueca e a meia, passei
protetor solar e segui até um posto Ypf que havia wifi para eu saber notícias de casa. Minha
Ilza está gripada e com a imunidade baixa. Eu tenho tomado spirulina que a Flavia me
indicou e meio dente de alho para me imunizar. Fora o gosto de mortadela do alho, está
funcionando. No posto encontrei um casal (Paulo e ?) de moto com uma teneree 250
(lembrei do Oseias e perguntei tudo sobre o desempenho da moto com peso e alforjes) e
mais outro motociclista brasileiro que estava só. Virei celebridade, tirei umas fotos com eles
e segui adiante. Cheguei em Itá Ibaté, nas margens do rio Paraná onde estou acampando.
Hoje rendeu por conta das retas. Amanhã tem mais. Saúde!

Missiones, Argentina.
Dia 06
Trajeto: Itá Ibaté - Corrientes
140 km
Gasto: 90 pesos

O dia foi do vento. Aquela reta e nada. Não ia. E o que era para ser um descanso levou o dia
todo num pedal bem puxado. Aproveitei para me alimentar no Comedor Santa Terezinha e
em um outro que não tem nome nem nada. Achei que estavam vendendo churrasquinho e
me interessei. Parei e gastei a fortuna de 30 pesos por um pedaço de costela e choriço.
Além de uma adorável conversa e a explicação sobre um sapo que tem muito em Corrientes
nos alagados da beira da estrada. São pequenos e fazem um barulho como chocalho. Todo
mundo me pergunta se estou só. Ninguém entende o porquê da viagem. Numa das vezes
disse que era devoto de Gauchito Gil. Foi a resposta que melhor colou. No posto useia-a
com os caminhoneiros e funcionou na primeira. Pronto. Aliás os caminhoneiros falam muito
de mulher. Mas o posto é um sossego só. Deve ser saudades de casa.

Corrientes, Argentina.
Dia 07
Trajeto: Corrientes – Presidencia Roque Sáenz Peña
197 km
Gasto: 90 pesos

Hoje comecei cedo para me livrar do trânsito de Corrientes e Resistência e deu certo. Na
saída de Resistência experimentei, ainda de madrugada, uma Torta Frita. Enorme, parecia
uma pizza sem recheio. Mandei ver e me deu energia por um bom tempo. A manhã rendeu
bastante. Mas nos últimos 60 km tive de me acertar com o vento que não deu trégua.
Também havia bastante tráfego de caminhões. A vegetação mudou completamente. As
árvores são mais baixas e lembram as do cerrado brasileiro. Pequenos pássaros pretos,
como os nossos chupins mas com o canto semelhante ao do canário belga impressionam.
Também tive a impressão há alguns dias, que o gado se interessa muito quando passo.
Marrons de cara branca, ficam olhando eu passar. Param imediatamente sua atividade
bovino-filosófica e ficam contemplando. O que pensam? Ouvem e vêem muito bem, com
certeza. Tenho pensado muito sobre a solidão e as relações humanas. Acho que a viagem
está cumprindo seus objetivos. Tem uma cidade, Machagai que produz peças muito bonitas
de uma madeira avermelhada Algarrobo. Havia dezenas de marcenarias no caminho e itens
para a venda. O camping em Saenz Peña é muito estranho. Custa 24 pesos, mas não tem
água nem para cozinhar um miojo. Resultado, fui no posto próximo e fui atendido com
entusiasmo pelo frentista Daniel que adoraria conhecer Florianópolis. Me mostrou a ducha
quentíssima e um local perfeito para acampar embaixo de uma frondosa amoreira. Me
avisou que ia chover à noite e choveu mesmo. Foi tudo perfeito. Como estava chovendo de
madrugada dormi um pouco mais.

Barraca de tortitas na saída de Resistência.


Dia 08
Trajeto: Presidencia Roque Sáenz Peña – Monte Quemado
280 km
Gasto: 290 pesos

Saí tarde. Já eram 7 e meia quando retomei a Ruta Nacional 16. Não tinha qualquer
pretensão de fazer o percurso até Monte Quemado como o Luiz Chagas fez em sua viagem
ao Pacífico. Mas fui ver no que dava. Estava com neblina até próximo das 11 e meia quando
parei em Pampa de los Infiernos para comprar comida. Para comida pronta era muito cedo.
Então passei em uma verdureria e comprei bananas, manzanas e alguns tubérculos além de
tomates e pão. Parei uma hora depois para comer e preparar a tralha de chuva por que o
tempo prometia. O vento deu uma pausa e sem tráfego algum a viagem rendeu. Quando
passava por Los Frentones achei que dava pé. Mesmo com a chuva fina consegui chegar ao
destino um pouco antes das 22. Valeu a pena porque o hotel 9 de Julho é simples mas muito
acolhedor e tem excelentes empanadas que estou comendo com uma garrafinha de
malbec. A impressão que tive foi que as margens da Ruta 16 foram totalmente incendiadas
e agora retomam seu vigor. Não esperava frio aqui. Da outra vez que passei o pára brisas
da moto deformou com tanto calor. Frio e chuva, tive que usar a polaina. Pedalei com blusa
toda a manhã e à tarde com o corta vento. À noite tive que usar tudo. Agora vou descansar
sem programar o desperta dor.

Altar para San La Muerte, Chaco, Argentina.


Dia 09
Trajeto: Monte Quemado – Joaquim Vitor Gonzáles
165 km
Gasto: 190 pesos

Demorei para sair. Descansei bem e oito e meia já estava na Ruta 16. Imaginei que seria
bem fácil fazer o trajeto do dia. Até Nossa Senhora do Bermejo foi tranquilo. Os problemas
começaram à tarde. Rajadas de ventos fortes que me tiravam da estrada e seguiram a tarde
toda. Lá pelo meio dia a estrada de asfalto virou terra e isso seguiu por uns 50 km com
alguns intervalos de asfalto. Vento e terra me exigiram bastante e provaram que a Gauchita,
a bike, é realmente guerreira. Cheguei em Joaquim, procurei um hotel, onde um gentil Sr.
Benino me atendeu e me conseguiu um quarto térreo para dormir e não ter que ascender
a bike. Fui limpar o equipamento totalmente empoeirado assim como eu. Saber notícias
de casa e dormir o sono dos deuses.

Província de Santiago del Estero


Dia 10
Trajeto: Joaquim Vitor Gonzáles - Salta
230 km
Gasto: 134 pesos

O décimo dia de pedal foi excelente. Não pretendia chegar à Salta porque a altimetria era
grande. Sairia de 250 metros até 2300, aproximadamente, ou seja, ganhando altimetria o
dia todo. Logo no início a estrada não ajudou. Muito esburacada, não permitia passar dos
12, 14 km/h. Logo ví que não ia ser fácil. Presenciei um atropelamento de um porco e isso
me deixou muito chateado. Eram dois que estavam atravessando a pista e um caminhão
pegou um deles. A reação do sobrevivente foi sair correndo pelo acostamento. Quando
cansou parou e pude passar por ele e ver seu olhar de medo. O atropelado não morreu,
mas não fui verificar se estava muito machucado. Afinal no que eu poderia ajudar? Eram
porcos grandes e pensei em parar na primeira casa e informar o acontecido. Mas era cedo
e estava tudo fechado. Achei muito triste a situação. A região é praticamente desabitada.
Fora El Galpon, existem pouquíssimas paradas. Com autonomia segui adiante com minha
comida integral, pães e atum que levava comigo. Os km finais da Ruta 16 foram
particularmente inesquecíveis. A paisagem fica serrana com uma vegetação muito linda e
florida. Flores brancas, roxas e amarelas. Há imensas planícies cobertas por elas e ao fundo
a serra. Sublime! Parecia que toda aquela aridez e poeira do Chaco e de Santiago del Estero
se desfaziam ali naquela floração de tirar o fôlego. Chegando à Ruta 9 começou a pista

Para a Ilza, no final da Ruta 16.

dupla e a viagem ficou mais rápida. Novamente a imagem das montanhas que encantam.
Na margem da rodovia há um marco da origem da nação argentina em 1813. Há ruínas de
uma antiga ponte com uma construção colonial ao fundo. Imagem de cartão postal. Cheguei
no cruzamento para Salta num embalo só. Havia subido a mil e cem metros e o trevo estava
a pouco menos de 800. Eu sabia que teria que compensar até Salta. Portanto, cheguei
Província de Salta, Argentina.

no posto, pedi um “ lomo saltado” caprichado com café enquanto teclava com a Gabriela.
Foi meu último acesso à internet no dia. Depois encarei uma altimetria correspondente à
da Serra da Esperança em 50 Km. Daquelas subidas que parecem não acabar mais. Cheguei
no pedágio, tomei um fôlego e fui encontrar o Camping Municipal Carlos Xamena. Fui bem
recebido pelo Sr Beto. Ducha quente e um frio de lascar com wifi e sem internet. Testei à
noite os sacos de dormir. Vou ter que ajustar algumas coisas porque o frio está
prometendo.... Hoje vou descansar, procurar uma internet para tentar conversar com
minha amada Ilzanete e abastecer a despensa.

Cidade de Salta, La Linda, Argentina.


Dia 11
Trajeto: Salta - San Salvador de Jujuy
90 km
Gasto: 220 pesos

Hoje foi um dia dedicado a descansar. Acordei mais tarde, fiz o chocolate e tomei com
castanhas. Conversei com Sr Carlos que já viajou de bike nos anos idos. Pelo Brasil e
Argentina. Ele pedalava 100 km por dia. Hoje não pode andar direito mas continua viajando
sem bike. Ele me recomendou não ir para Jujuy pelo caminho das montanhas que eu havia
planejado. Depois fui à panederia tomar um café e usar o wifi. Falei com a Rafa e revisei a
rota. Em conversa com o proprietário ele me indicou justamente o contrário. Seguir pela
ruta 9 no caminho das montanhas e dos diques. Disse que era muito bonito e animado,
especialmente no domingo. Não tive dúvidas. Juntei a tralha e fui conhecer o centro de
Salta, La Linda, antes de pegar a estrada. No centro mesmo encontrei um cicloviajante
americano. Trocamos algumas ideias. Mas meu inglês precisa melhorar. Sai de Salta por
volta das 13 30 para Jujuy. Foi a estrada mais linda que percorri. Ela é estreita e os poucos
carros trafegam devagar. Em meio a uma linda vegetação e marginando o rio, vai-se morro
acima até 1600 m, aproximadamente. Pude ver lindos diques e alagados com as montanhas
ao fundo. No alto encontrei dois ciclistas de Buenos Aires, o Chistian e o Mariano.
Conversamos sobre nossos planos, tiramos fotos e trocamos contatos. Estavam
descansando de um longa subida como eu, em direções opostas. Dali em diante foi só
alegria. Me diverti muito com “la corniça”. Cheguei em Jujuy já noite e como não havia
planejado pouso, parei no Ypf para usar o wifi e perguntar. Nessa hora encontrei alguma
dificuldade. O celular simplesmente descarregou toda a bateria. Assim não pude me
orientar por gps. Felizmente achei um hotel bem interessante por 200 pesos. O hotel Brisas
fica rumo ao centro. Descanso merecido.

Ruta 9, entre Salta e Jujuy, Argentina.


Dia 12
Trajeto: San Salvador de Jujuy - Purmamarca
70 km
Gasto: 175 pesos

Esperava conseguir uma bateria para o celular, mas, assim como no Brasil, hoje é feriado
em Jujuy. Dia do descobrimento para alguns. Para muitos, dia De La Raça. Então, depois do
desayuno e de uma conversa animada com os donos do hotel, sr Emiliano, D. Benigna e com
a Dora, uma das filhas, resolvi seguir viagem. Ajeitei tudo, passei pomada num dos joelhos
que amanheceu doendo, lubrifiquei a correia e o cabo usb do celular. Peguei leve na subida
para não forçar nada. E a subida foi calma. Parei numa despensa para comprar folhas de
coca e algumas broinhas integrais. E fui subindo, subindo, subindo e tirando fotos daquela
imensidão, no início verde, depois cheia de cactos e desértica. Alguns ciclistas treinavam e
me passavam e desciam e voltavam a subir. Parei em Vulcan para ver os artesanatos de lã
de llama. Tudo muito legal, pesado e caro. Depois disso o caminho ficou plano até a Ruta
52 quando o vento, que antes estava a favor, resolveu virar contra. Ao chegar em

Purmamarca encontrei 3 mochileiros de Buenos Aires que vão para Bolívia. Acampado aqui
no Camping Relíquia tem mais um mochileiro que vai até ao Equador. Viajam “a dedo”, ou
seja, pedindo carona e seguindo o fluxo. Girei por todas as ruas de Purmamarca. Uma
tentação para turista. Visitei o monte 7 colores. Vou ler um pouco e repor as forças para
bater na Puerta de Lipan amanhã temprano. O frio está pegando e o vento não cede.
Dia 13
Trajeto: Purmamarca – Salinas Grandes
70 km
Gasto: 0 pesos

Acordei naturalmente antes do dia nascer. Arrumei as tralhas, tomei o chocolate e saí antes
das sete. O dia seria de uma longa subida, a maior que fiz até hoje. Nos 35 km de subida
fiquei impressionado em como a vida necessita de água e basta ter um pouco de umidade,

Costa do Lipan, Jujuy, Argentina.

surge algum cultivo e alguma casa nos lugares mais improváveis. Duas fontes de água são
importantes para os cicloviajantes. Uma ha uns 5 km de Purmamarca. E a mais importante,
antes de uns 7 km para acabar a subida. Encontrei dois ciclistas descendo. O Jorge da
Alemanha e o Marcos de Buenos Aires. Ambos pararam para conversar. Eu pedi
informações sobre pouso em Salinas. Inúmeros são os caracóis que a estrada dá na
interminável subida. Parecia que ia acabar e do nada saía mais um caracol. Mas o desafio
maior nem foi esse. O grande problema foi o vento que em algumas situações me
empurrava, mas na medida que o Lipan ia acabando ele se voltou definitivamente contra.
Quando eu já estava no final tive que descer da bike para não ser arrastado. E que fúria!
Quando comecei a descer contra o vento, tive várias situações de quase queda. Uma rajada
mais forte lateral e a bike deitava ou saía para o acostamento. Na terceira situação eu caí e
rasguei a calça na altura do joelho. Foi só um susto. Quando cheguei em Salinas, parei num
ponto de informações turísticas improvisado com blocos de sal. Ofereceram-me o lugar
para acampar, mas resolvi ir adiante e foi ótimo. Estou acampado numa casa de sal. Sem
banheiro mas abrigado do vento e com energia elétrica até as 22. Valeu o dia, a maior subida
e luta contra o vento dessa minha breve existência.

Salinas Grandes, Jujuy, Argentina.


Dia 14
Trajeto: Salinas Grandes – Paso de Jama
200 km
Gasto: 290 pesos – todos los pesos

Sai temprano, pedalei cerca de 40 km. Presenciei uma das coisas imagens mais
espetaculares desta jornada: o nascer do sol em contraste com as montanhas rumo ao

Salinas Grandes, Jujuy, Argentina.


Chile. Quando o sol bateu nas ervas fez uma composição divina com as montanhas.
Entretanto o meu amigo vento já havia marcado hora. Empurrei com dificuldade a bike por
cerca de duas horas morro acima, sem qualquer hipótese de pedalar. O vento era muito
forte e não me permitia ficar sobre a bike. Quando finalmente consegui subir na bike,
pedalei por cerca de 20 min e uma pikup do ministério da educação me ofereceu carona.
Subi na carroceria segurando a bike. Faltavam 10 km para Susquez. No desembarque me
ofereceram carona até Jama, onde estou do lado chileno. O que me fez aceitar a carona foi

Cemitério em Suzques, Argentina.

a informação de fortes tempestades de areia. De fato, no caminho as encontramos. Muito


antes das salinas de Jama de onde se extrai o lítio. Alguns motociclistas estavam parados

Tempestade de areia, Suzques, Argentina.

em meio à tempestade. Eles são de São Paulo e caíram quando da tempestade. Enfim, tive
muita sorte de encontrar o Ricardo e o motorista Marcelo que são de Jujuy e os funcionários
Henrique e Lino que foram me explicando sobre as salinas, as comidas, as lhamas e tudo
que se faz por aqui. Esta viagem está sendo ótima. Volto a ter esperança no humano. Aqui
em Jama, fui gastar meus últimos pesos argentinos comendo uma empanada, tomando um
vinho e um banho e conversando com o Nelson. Um rapaz de 22 anos que na saída pediu-
me para ir ao Ypf e comprar-lhe preservativos. Sem qualquer pergunta fiz isso de bom grado
pela gentileza com que me tratou e assistiu comigo um filme qualquer do canal Space
enquanto sua mãe preparava a empanada com pasta. Está frio e tem neve e no caminho
para San Pedro de Atacama. Vou dormir porque quero sair antes do vento acordar.
Dia 15
Trajeto: Paso de Jama- Salar Tora e Águas Calientes, Reserva Nacional dos Flamingos
60 km
Gasto: 0

Acordei cedo com o relógio. esperava não ouvir o vento. Queria sair antes, mas o quê? Sete
horas precisei tomar a decisão, ir com vento mesmo. Ontem à noite fiquei preocupado com
o que dois ciclistas me disseram. Eles demoraram 3 dias para fazer o percurso de São Pedro
a Jama. Disseram que estava ventando muito e a viagem não rendeu. Fui preparado para o
que desse e viesse. Fiz tudo direitinho. Me alimentei, bebi bastante água. Fiz pausas
menores e pausas maiores a cada duas ou três horas. Mas o vento ficou contra todo o
tempo. Quando deu 18 horas não estava mais aguentando o esforço e escolhi um lugar bem
protegido do vento para passar a noite. O celular entregou os pontos. Com velocidades
baixas o dínamo não o carrega. Nem consegui salvar a rota. E o vento continua. Acho que
estou sendo lapidado por ele. Tenho que sair disso alguém mais resistente às intempéries.
Comi cereais com sopa de galinha. O sol já entrou e vou dormir também.. Espero chegar a
San Pedro amanhã.

Paso de Jama, Chile.


Dia 16
Trajeto: Salar Torá e Águas Calientes, Reserva Nacional dos Flamingos – San Pedro de
Atacama
90 km
Gasto: 22500 pesos chilenos

Acordei com o sol nascendo lindo por trás das montanhas. Como estava sem despertador
acordei naturalmente e totalmente recarregado, disposto a encarar novamente mais uma

Salar Torá e Igreja de San Pedro de Atacama, Chile.

batalha com o Séfiro. Foi uma das noites mais bem dormidas em toda a viagem. Dormi
protegido mas ninado pelo vento que não parou desde Purmamarca. E de fato, foram mais
50 km de subidas com o vento soprando contra. Mas a paisagem das salinas, das lagunas,
da montanha, do Licancabur compensaram todo o esforço. Ao final da tarde fui brindado
com 40 km de descida. Agora estou em San Pedro aguardando um pesto. Tive a impressão
de ter visto uma ossada de criança com costelas, coluna e ossos da bacia, logo que comecei
a subida. Passei bem perto da divisa com a Bolívia, cerca de 5 km. Na descida encontei 3
cicloviajantes, mas nem tentei frear há mais de 50 Km. As ruelas de San Pedro estavam
lotadas. Muitos franceses, inclusive no Hostel que fiquei.
Dia 17
Trajeto: San Pedro de Atacama - Calama
100 km
Gasto: 2200 pesos chilenos

Acordei às 6, sabendo que o pedal do dia seria curto mas intenso com ganho considerável
de altimetria. Arrumei tudo, passei mais creme no rosto queimado pelo sol, pelo vento e
pelo frio e deixei o Hostal Matty um pouco depois das 7. Passei na despensa, comprei
deliciosos pães e mussarela. Tirei algumas fotos na pracinha central, da igreja e do museu
de Arqueologia e pé na estrada! Começou com uma subida de uns 40 minutos pelo Vale de
la Muerte. Depois uma descida pelo Vale de la Luna e uma imensa subida de umas 3 horas.
Parei ao meio dia para almoçar meus grãos já cozidos com a ajuda da garrafa térmica, na
entrada de Rio Grande onde há um ponto de buses. Barriga cheia, seria só uma descida até

Calama, Chile.

Calama. Todavia, já antes de passar pela usina eólica, na verdade, nos últimos 30 Km, o
vento voltou a acompanhar a viagem. Como sempre, quixotescamente contra. Cheguei ao
aeroporto por volta das 16 horas e fui embalar a bike, usando tudo que tinha para
amortecer o ímpeto dos carregadores/jogadores. A Gauchita mereceu o carinho, afinal,
resistiu muito bem ao percurso com altos, baixos, com estrada, sem estrada, com retas e
curvas, carregando peso e eu próprio. Formamos uma dupla de sucesso.
Dia 18 - a chegada ao
doce lar
Trajeto: Aeroporto Afonso Pena - Irati
172 km
Gasto: 30 reais

Cheguei em São José dos Pinhais por volta das 10 horas. Desempacotei a Bike, acondicionei
a bagagem e peguei a estrada. Passei numa churrascaria na Avenida das Torres e negociei
uma marmita por 5 reais. Comi com gosto porque comida de avião só engana. Na subida da
Serra de São Luiz do Purunã encontrei o Moisés. Festejamos nosso reencontro e ele me
passou a boa notícia que o Paraná voltou a ter dois clubes Audax. Um em Curitiba e o de
Lapa. Foi muito agradável poder subir a serra com ele que gentilmente diminuiu seu ritmo
para me acompanhar. Parei em Palmeira no início da noite para tomar um chocolate e
comer um queijo quente. Antes de findar o décimo oitavo dia estava chegando em casa
onde uma janta, uns morangos e principalmente o carinho de minha família me
aguardavam.

Chegada em Purmamarca. Foto da Cláudia que me atendeu em La Relíquia.


Finais
Números
40 kg – bike e bagagem
63 kg – ciclista no início
59 kg – ciclista no final
2750 km
18 dias de pedal
700 reais
4 noites em hotéis ou hosteis
3 noites em campings
10 noites em barraca sem pagar
2 dias sem banho
½ kg de arroz, chia, quinoa, soja, lentilha, azuki e ervilha
3 miojos, 3 sopas
1 carga de gás de 200g
½ kg de chocolate e leite em pó
30 cápsulas de spirulina
50 cápsulas de levedo
Muito pão, banana e maçã

Palavras da estrada
Kiosko
Gomeria
Tercera trocha
Comedor
Gasolinera
Carniceria
Banquina

Equipamento
Celular Sansung.

Aforismática de um Saracura três potes


Quem se preocupou ficou em casa!
Quem pedala só tem que ficar dizendo: si, solo!
A polaina é essencial para a chuva, mas, principalmente para o frio.
Não gastei uma carga completa de gás.
Só encontrei três altares de San La Muerte. O mesmo tanto de Defunta Correa. Já
Gauchito Gil é pop!
Com 500 reais atravessei a Argentina.
No Chile não encontrei altares para santos mas túmulos para mortos em acidentes, às
vezes com carro e tudo.
O vento purifica a mente transformando o corpo em pó!
Barraca de uma vareta precisa de pedras.
Uma sacola grande de plástico foi a melhor bolsa de viagem que levei.
A estrada é mais bonita pela manhã.
Encontrei frio do Chaco em diante.
Havia pouca neve no alto da Cordilheira, mas havia gelo nos rios e lagunas.
Os mais pobres são os mais generosos.
Os comerciantes ouvem a história mas querem seu dinheiro.
A balaclava não deu conta do frio. Salvo pela badana do Bob Marley.
Levei roupa demais.
Dois isolantes térmicos e uma manta térmica foram suficientes.
No deserto não tem wifi.
Os Flamingos não estavam por lá, também só ví 3 vicunhas, o mesmo número de
jumentos.
As vacas hereford dos pampas param para olhar o ciclista, assim como as lhamas. Já as
cabras e equinos nem ligam.
Os porcos morrem de medo dos ciclistas e nem ligam para os caminhões.
Para os argentinos os chilenos são os outros.
Os preços no Chile são bem maiores.
As tempestades de areia derrubam os motociclistas em Susquez. Os ciclistas protegidos
em pikups ficam imunes.
Um cicloviajante fica perdido em terra de turista.
As melhores minutas são as que matam uma grande fome. Refeição epicurista.
A água é fundamental e precisa de Pet no deserto.
Alho aumenta a imunidade.
Pampa del Infierno é muito acolhedora.
A Ruta9 entre Salta e Jujuy é a mais bela e divertida.
A viagem termina quando a saudade fica insuportável.

Saracura três potes


Helio. Sochodolak, sochodo@gmail.com

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