Em “Contra a moral e os bons costumes: A política sexual da ditadura
brasileira (1964-1988)”, Renan Quinalha tem como objetivo investigar
os contornos da política sexual concebida e implementada pela ditadura civil-militar (1964-1988). Nesse sentido, o autor traz novas perspectivas em torno da repressão moral da ditadura. Resumo No Resumo, o autor afirma que: “Marcado centralmente pelo lema da defesa da “moral e dos bons costumes”, o regime autoritário brasileiro estruturou um complexo aparato repressivo orientado não apenas para eliminar dissidentes políticos, mas também para regular e normalizar os corpos marcados por orientação sexual e/ou identidade de gêneros dissidentes. Para isso, foi preciso fazer convergir a atuação de diversas agências estatais que integravam as comunidades de informações, segurança e de censura em torno de uma agenda moral comum, apesar das disputas e tensões entre elas. (...) erotismo, pornografia, homossexualidades e transgeneridades eram classificados como temas e práticas ameaçadores não apenas contra a estabilidade política e a segurança nacional, mas também contra a ordem sexual, a família tradicional e os valores éticos que, supostamente, coesionavam a sociedade brasileira. Cerceamento da produção cultural, repressão policial nas ruas, vigilância do nascente movimento homossexual e perseguição a seus veículos de expressão e comunicação foram algumas medidas de violência implementadas por diferentes órgãos repressivos e que são examinadas detalhadamente”. Em sua investigação, Quinalha pretende demonstrar como “as questões comportamentais e sexuais foram centrais para o projeto da “utopia autoritária”, ressaltando uma dimensão muitas vezes negligenciada tanto nas reflexões acadêmicas quanto no trabalho de memória sobre este período”. Introdução Verdade e Homossexualidades (p. 15-19) De acordo com Quinalha, o tema das homossexualidades na Comissão Nacional da Verdade enfrentou algumas dificuldades, por que: - Não verificava, até então, um grande número de pesquisas feitas ou mesmo depoimentos em primeira pessoa que poderiam servir de ponto de partida; - A homossexualidade não era vista como um tema sério de pesquisas e tampouco como um recorte pertinente para a reflexão acerca da ditadura e de seu legado; - O universo da militância pelos direitos humanos, reproduzia a estigmatização social das sexualidades dissidentes ou mesmo a indiferença em relação ao tema; - Os herdeiros mais credenciados na produção das memórias, os ex- presos políticos e os familiares de desaparecidos, não pautavam esta dimensão das políticas repressivas da ditadura, ainda que muitos deles a tenham apoiado com grande entusiasmo no período mais recente; - As resistências geradas, sobretudo pelo preconceito e pela falta de sensibilidade que alguns comissionados demonstraram para aceitar que tal tema frequentasse os trabalhos de investigação histórica, foram significativas; - Questões comportamentais e morais, tal qual a sexualidade e o gênero, não eram identificadas como prioritárias ou mesmo tão importantes dentre um conjunto enorme de outras agendas e reivindicações, ficando relegadas a segundo plano. (p. 17-18); Concordo com Quinalha, quando este afirma que a CNV “mostrou-se um esforço bastante limitado pelas diversas circunstâncias acima pontuadas, demonstrando-se mais como um ponto de partida, ainda bastante embrionário, isto é, com o objetivo de abrir um campo para novas investigações, do que um ponto final com revelações mais definitivas” (p. 19). Regimes autoritários e regulação das sexualidades dissidentes (p. 19- 23). Neste tópico o autor apresenta um panorama de como a homossexualidade foi reprimida em diferentes regimes totalitária (Nazismo, Fascismo, Franquismo, Salazarismo, Ditadura Militar Argentina, Ditadura Stalinista e Cubana); Ditadura hétero-militar? (p. 23-25). Quinalha lembra que “abundam trabalhos, sobretudo nos últimos anos, dedicados ao estudo dos pilares básicos do “projeto repressivo global”, quais sejam: espionagem, polícia política, censura da imprensa, censura de diversões públicas, propaganda política e julgamento sumário de supostos corruptos)””. (p. 23). “De modo geral, temas comportamentais, discussões de gênero e questões sexuais, considerados assuntos de ordem moral, não receberam a devida atenção ou, quando muito, foram analisados como fenômenos sem estatuto próprio”. (p. 23). “(...) a literatura sobre a ditadura brasileira concentrou-se em destacar aspectos mais traumáticos e clandestinos da repressão estatal contra dissidentes estritamente políticos. Tal postura pode ser compreendida considerando a gravidade das práticas de violência estatal durante o período, mas acabou, muitas vezes, reforçando uma representação do Estado como instituição fortemente monolítica e centralizada. Por outro lado, contribuiu, ainda, para a construção de uma narrativa da convivência de uma repressão política dura e um controle moral brando, a emergência da contracultura ou do ‘desbunde’, deixando uma impressão de que a ditadura teria sido tolerante ou condescendente com a evolução dos costumes e com a liberdade sexual que se impuseram naquele momento” (p. 23-24). Concordo com Quinalha, quando este afirma que “resta por ser escrita uma bibliografia mais específica que explore a dimensão sexo-gênero na elaboração das tecnologias repressivas e dos dispositivos disciplinares voltados aos setores considerados moralmente indesejáveis. Ainda que o Estado não seja o único responsável por normatizar os discursos e práticas sexuais, sem dúvidas, durante a ditadura, ele se tornou um locus privilegiado de irradiação de regras proibitivas e licenças permissivas em relação às sexualidades, ajudando a definir as condutas classificadas como inaceitáveis”. (p. 24). “Conforme apontou a Comissão Nacional da Verdade, durante a ditadura civil-militar, de forma mais intensa do que em outros períodos da nossa história, o autoritarismo de Estado também se valeu de uma ideologia da intolerância materializada na perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como uma ameaça ou perigo social. A criação da figura de um “inimigo interno” valeu-se de contornos não apenas políticos de acordo com a Doutrina da Segurança Nacional, mas também morais, ao associar a homossexualidade a uma forma de degeneração e de corrupção da juventude” (p. 25). “Os ideais superiores da Revolução” (p. 25-28). “A retórica moralidade pública e dos bons costumes foi central na construção da estrutura ideológica que deu sustentação à ditadura de 1964” (p. 25). “As diversas manifestações da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorridas entre março e junho de 1964, foram um prenúncio revelador do que estaria por vir” (p. 26). “A agenda de valores conservadores destes setores que realizavam algumas das maiores manifestações públicas de nossa história política, de certo modo, mobilizava anseios antigos, mas também atualizava uma reação contra as mudanças atravessadas pela sociedade brasileira daquela época. Com efeito, para além das políticas progressistas e nacionalistas propostas pelo governo Goulart, tais como as Reformas de Base, desde a década de 1930 estavam em curso transformações culturais mais profundas decorrentes do processo de urbanização e modernização no Brasil que desestabilizavam as relações tradicionais em diferentes planos. Os costumes e as sexualidades não passavam incólumes aos agitados anos 1960” (p. 26). “O uso recorrente de conceitos como “ordem” e seu oposto ‘subversão’ no topo da pirâmide regulatória do novo regime é reflexo direto da Doutrina de Segurança Nacional, que traçava uma linha divisória entre os que estão integrados ao regime e aqueles que seriam desajustados e que, portanto, deveriam ser neutralizados em sua diferença, ou mesmo eliminados. A imposição de uma ordem estabilizada, segura e unitária, coerentemente homogênea, que repeliria qualquer tipo de perturbação, dissenso ou presença incômoda, foi uma marca característica da ditadura”. (p. 28). “Tratou-se de uma verdadeira “utopia autoritária”, com pretensões de totalidade e de alcance absoluto de todas as dimensões da vida social” (p. 28). Dimensões do aparato repressivo (p. 28-31) Quinalha lembra que o controle da sociedade e, especialmente, dos elementos “subversivos” que se opunham à ditadura começa logo após o golpe de 1964 com a estruturação de um amplo e complexo aparato de repressão e perseguição a dissidentes. (p. 28). “Polícias políticas e judiciárias, comunidade de segurança, sistemas de espionagem e vigilância, órgãos de censura e de propaganda política, além do julgamento sumário dos supostos corruptos foram algumas das principais estruturas de que se valeu a burocracia estatal para conformar o já referido “projeto repressivo global”. O fato de não haver um único órgão capaz de centralizar o controle dos dissensos acabou levando a uma multiplicidade de organismos e agências estatais dedicados a essas tarefas. Um grande desafio, para a continuidade do regime, passava necessariamente por articular esses órgãos repressivos de modo a diminuir as tensões entre eles e potencializar as ações conjuntas”. (p. 29). “(...) as diferentes camadas em que se desdobrava a repressão política e moral, em cada momento e contexto específico, assumiram contornos próprios em uma combinação sempre peculiar entre razões superiores de Estado, um sem número de atos legais esparsos e convicções pessoais dos agentes que implementavam as políticas públicas. Reconhecer tal sobreposição de fatores e motivações, de modo algum, significa diluir responsabilidades ou ignorar as forças centrípetas quase irresistíveis que asseguraram uma linha política identificável e com eficácia mínima. Antes, trata-se de dar conta da complexidade e profundidade das políticas que amalgamaram e mobilizaram diferentes dimensões do Estado para atingir os objetivos programados no âmbito da Doutrina de Segurança Nacional” (p. 30). “Carlos Fico considera que a centralização e coerência mínimas foram alcançadas graças à atuação da comunidade de informações como “porta-vozes especialistas” sob o influxo da comunidade de segurança”. “Neste sentido, as chamadas ‘comunidades de segurança e informações, instituídas de modo mais autônomo nos primeiros anos da ditadura, encontraram, a partir de 1968, uma centralização bastante marcada. O Sistema Nacional de Informações, criado em 1964, tinha propósitos mais modestos quando se converteu, a partir de 1967, no ponto de centralização e comando de uma ampla rede de espionagem. A vitória da chamada linha-dura, ‘representada pela decretação do AI- 5, fez com que a espionagem passasse a atuar a serviço dos setores mais radicais, divulgando as avaliações que justificavam a escalada e a manutenção da repressão’. Isso é bastante visível no caso das informações produzidas sobre atentados à moral e aos bons costumes, sempre acompanhadas do clamor por mais censura e por atuação mais rigorosa dos órgãos de segurança”. “A ideologia e o aparato repressivos dão concretude, portanto, à preocupação marcada da ditadura brasileira com a pornografia, o erotismo, as homossexualidades e as transgeneridades, fenômenos classificados como temas e práticas ameaçadores não apenas contra a estabilidade política e a segurança nacional, mas também contra a ordem sexual, a família tradicional e os valores éticos que, supostamente, integravam a sociedade brasileira. Dessa forma, a análise aqui empreendida deve partir dessas esferas para demonstrar os traços da concepção oficial de política sexual da ditadura”. (p. 31). P. 35 A CENSURA EM NOME DA MORAL E DOS BONS COSTUMES “Os fatores adversos ao desenvolvimento dos valores espirituais e morais da nacionalidade” Como a censura da ditadura atuou contra produções culturais que contrariassem a fórmula “moral e bons costumes”? Qual a função que a comunidade de informações cumpria ao alimentar uma sensação permanente de indignação para provocar medidas cada vez mais rigorosas das estruturas censórias nas diferentes linguagens artísticas e meios de comunicação, quais sejam, televisão, teatro, cinema, música, livros, revistas e jornais, inclusive na chamada “imprensa gay”? Para dar conta das especificidades da repressão na ditadura, uma parcela relevante da literatura historiográfica demarca uma distinção entre dois tipos de censura: a político ideológica e a moral. Na visão de Carlos Fico, um dos principais especialistas que sustenta essa perspectiva, não havia apenas uma, mas duas censuras na ditadura, sendo “possível distinguir a dimensão moral e a dimensão estritamente política seja na censura da imprensa, seja na censura de diversões públicas. Naturalmente, porém, prevalecia no caso da imprensa a censura de temas políticos, tanto quanto os temas mais censurados entre as diversões públicas eram de natureza comportamental ou moral”. Quinalha (p. 38), citando Fico (Além do golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 91). “De fato, política e moral não são redutíveis um ao outro. A despeito de intimamente implicados, trata-se de esferas da vida que guardam relativa autonomia entre si, estruturadas com códigos e funções próprios. Elas são marcadas, portanto, por peculiaridades que não podem ser desconsideradas ou subestimadas” (p. 41). “No entanto, é preciso problematizar visões que idealizem em uma divisão estanque e de contornos bem definidos entre as repressões política e moral durante a ditadura por diversas razões” (p. 42). “Neste sentido, não seria demais afirmar, em se tratando da ditadura brasileira, que política e moral são duas faces complementares de um mesmo projeto global de repressão que pode ser designado como “utopia autoritária””. “nossa intenção se limita a compreender justamente as conexões internas e fluidas entre esses dois palcos nos quais se desenrolou a ação repressiva contra a nudez, a pornografia, a sexualidade, as representações homoeróticas e as transgeneridades. O esforço a ser feito, portanto, não é no sentido de dissociar política e moral, mas, antes, analisar os modos de politização da moralidade e dos costumes, verificando como eles transitaram entre ambas as estruturas censórias no projeto global de controle imposto pelo regime autoritário”. (p. 43).