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E d it o r e s
J o ã o d e A lm e id a
J o ã o L u iz d a S ilv a A lm e id a

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P a u l o Q u e ir o z

D ir e it o P e n a l
P a rte G era l
4a edição
Completamente revista e ampliada

E d i t o r a L u m en J u r i s
Rio de Janeiro
2008
Sum ário

Sumário

Nota do Autor............................................................................................... ............................ . x ix

Primeira Parte
FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL

Capítulo I - Introdução............................................................................................................ 3
1. Conceito de direito penai................................................................................................ 3
1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal.............................. 5
1.2. Mas o que é de fato o Direito?................................. ........................................... 7
1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe............. ........................... 9
1.4. Leis são necessárias?...................................... ................................................ .......... 16
1.5. Direito e arte..................................................................................................... ......... 18
2. Direito penal, critníiiologia. e política crim inal................... ............................ 19
2.1. Direito penal e política criminal; há distinção realmente?........................... 20
3. Direito penal e controle social.................................................. ..................................... 24
4. Direito penal e m oral..................... ................................................................................. .26
4.1. Deus e o Direito......................................................................................................... 27
5. Caráter subsidiário do direito penal..................................................................... ...... 30
6 . Caráter fragmentário do direito penal..................................................... ................... 33
7 . Ilícito penal e ilícito não penal.................. ............................... ....... ........................... 33
8. Legislação especial......................................................................................... .................. 34
9. Contagem dos prazos penais e processuais penais..... .................. ........................... 34
Capítulo II - Direito Penal e Constituição.......................................... ........................... 37
1. Direito penal e Constituição............................................................................... ......... 37
2. Direito penal e Estado............................. ........ ............. ....................... ........................ 38
3. Princípio da liberdade................................................................ ..................................... 39
4. Princípios fundamentais................................................ ........................ ........................ 39
4.1. Introdução.................................................................................................................. 39
. 4.2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa. »
"Niülum crimen, milla poena sine praevm le g e ”...................... ...................... 40
4.2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação)....................... 42
4.2.2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal....... 42
4.2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal............................ 43
4.3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo),................ .............. . 46
4.3.1. Princípio da necessidade (nuíhim crim en, nuJla poena sine ne~
cesshate) ..................................................... ...... ...... ............................... .... 47
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade)............... 48
4.3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em
sentido estrito)......................................................................... ................... 48
Sumário

Sumário

Nota do Autor..................................................................................................................... xix

Primeira Parte
FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL

Capítulo I - Introdução.................................................................................................... 3
1. Conceito de direito penal........................................................................................ 3
1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal............................ 5
1.2. Mas o que é de fato o Direito?........................................................................ 7
1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe........................................ 9
1.4. Leis são necessárias?.......................................................................................... 16
1.5. Direito e arte....................................................................................................... 18
2. Direito penal, criminologia e política criminal................................................... 19
2.1. Direito penal e política criminal: há distinção realmente?......................... 20
3. Direito penal e controlesocial................................................................................. 24
4. Direito penal e moral............................................................................................... 26
4.1. Deus e o Direito.................................................................................................. 27
5. Caráter subsidiário do direito penal...................................................................... 30
6 . Caráter fragmentário do direito penal.................................................................. 33
7. Ilícito penal e ilícito não penal............................................................................... 33
8. Legislação especial.................................................................................................... 34
9. Contagem dos prazos penais e processuais penais............................................... 34
Capítulo II - Direito Penal e Constituição.................................................................. 37
1. Direito penal e Constituição................................................................................... 37
2. Direito penal e Estado.............................................................................................. 38
3. Princípio da liberdade.............................................................................................. 39
4. Princípios fundamentais........................................................................................... 39
4.1. Introdução........................................................................................................... 39
„ 4.2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa.
"Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".......................................... 40
4.2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação)...................... 42
■ 4.2:2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal...... 42
4.2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal.......................... 43
4.3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo)................. •:................ 46
4.3.1. Princípio da necessidade (nullum crimen, nulla poen a sine ne-
cessitate).................................................................................................. 47
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade).............. 48
4.3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em
sentido estrito)....................................................................................... 48
Paulo Q ueiroz

4.3.4. O princípio ne bis in idem.................................................................. 49


4.3.5. Princípio da insignificância................................................................ 51
4.4. Princípio da humanidade............................................................................... 53
4.5. Princípio da responsabilidade pessoal ou de culpabilidade...................... 57
4.6. Princípio da lesividade (ou ofensividade)................................................... 58
5. Direito e Interpretação........................................................................................... 59
5.1. Introdução......................................................................................................... 59
5.2. Interpretar é compreender eargumentar...................................................... 61
5.3. O chamado círculo hermenêutico................................................................. 62
5.4. Limites da interpretação................................................................................. 68
5.5. Interpretação e garantismo............................................................................ 69
5.6. Interpretação conforme a Constituição......................................................... - 70
5.7. Direito e analogia............................................................................................ 72
5.7.1. Analogia e interpretação analógica?.................................................. 74
6. Conflito aparente de normas penais..................................................................... 76
6.1. Introdução......................................................................................................... 76
6.2. Princípio da especialidade............................................................................. 78
6.3. Princípio da subsidiariedade......................................................................... 79
6.4. Princípio da consunção ou absorção........................................................... 79
6.4.1. crime complexo ou composto............................................................ 81
6.4.2. crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito...... 81
6.5. Primazia do princípio da especialidade.............................................. 82
Capítulo III - Funções do Direito Penal (teorias da pena)....................................... 83
Introdução....................................................................................................................... 83
1. Teorias legitimadoras.............................................................................................. 85
1. Teorias absolutas.............................................................................................. 85
1.1. Crítica......................................................................................................... 87
2. Teorias relativas (prevenção geral e prevenção especial) ou prevencio-
nistas.................................................................................................................. 87
2.1. Introdução................................................................................................. 87
2.2. Prevenção geral negativa........................................................................ 87
2.2.1. Crítica.............................................................................................. 88
2.3. Prevenção geral positiva.......................................................................... 88
2.3.1. Crítica.............................................................................................. 90
2.4. Prevenção especial ou individual.......................................................... 92
2.4.1. Crítica.............................................................................................. 93
3. Teorias ecléticas (ou unitárias ou mistas)..................................................... 94
3.1. Introdução................................................................................................. 94
3.2. A teoria dialética unificadora de Claus Roxin...................................... 95
3.3. O garantismo de Luigi Ferrajoli.............................................................. 95
ÍI. Teorias deslegitimadoras: abolicionismo e minimalismo radical..................... 96
1. Introdução........................................................................................................ 96
1 . 1. 0 crime não existe: caráter definitorial do delito............................... 97
1.2. Inidoneidade preventiva ou motivadora............................................. 98
D ire ito P e n al - P a rte G eral

1.3. Excepcionalidade da intervenção penal - as cifras ocultas da crim i­


nalidade ................................................................................................................. 98
1.4. Igualdade formal versus desigualdade material: seletividade arbitrá­
ria do sistema penal........................................................................................... 99
1.5. Caráter conseqüencial (sintomatológico), e não causai (etiológico),
da intervenção p e n a l........................................................................................ 100
1.6. Caráter criminógeno do sistema penal....................................................... 100
1.7. Reificação do conflito (do delito): neutralização da vítima pelo siste­
ma penal............................................................................................................... 101
1.8. O sistema penal intervém sobrepessoas, e não sobre situações........... 102
2. Conclusão.................................................................................................................... 102
Capítulo IV - A Lei Penal no Tempo........................................................................... 105
1. Princípio da legalidade e consectários lógicos: anterioridade e irretroativi­
dade da lei penal mais severa......................................................................................... 105
1.1. Introdução................................................................................................................... 105
2. Hipóteses de irretroatividade......................................................................................... 106
2.1. Neocriminalização (novatio legis incrim inadora) .......................................... 106
2.2. Lei nova mais severa (novatio legis in p eju s) .................................................. 106
2.3. Irretroatividade da jurisprudência?..................................................................... 107
3. Hipóteses de retroatividade............................................................................................ 108
3.1. Descriminalização (abolitio crim inis) ................................................................ 108
3.2. Lei penal mais branda (novatio legis in mellius) ............................................. 108
4. Combinação de leis penais (lex tertia )? ...................................................................... 109
5. Sucessão de leis penais: a lei intermediária............................................................... 110
6. Ultratividade da lei penal: leis temporárias e excepcionais.................................. 111
7. Irretroatividade da lei processual................................................................................. 112
8. Irretroatividade da Lei de Execução P enal................................................................ 114
9. Normas penais em branco.............................................................................................. 114
10. Aplicação da lei e vacatio leg is ........................................................................ 115
11. Tempo do crime................................................................................................................ 116

Capítulo V - A Lei Penal no Espaço............................................................................. 119


1. Introdução........................................................................................................................... 119
2. Conceito de território....................................................................................................... 120
3. Lugar do crime................................................................................................................... 120
4. Extraterritorialidade......................................................................................................... 120
5. Pena cumprida no estrangeiro....................................................................................... 121
6. Eficácia da sentença penal estrangeira........................................................................ 122

Segunda Parte
TEORIA DO DELITO

Capítulo I - Introdução Geral....................................................................................... 125


1. Conceito e instrumentalidade da teoria do delito..................................................... 125
1.1. Crítica da razão técnico-jurídica ......................................................................... 127
Paulo Q ueiroz

2. Funcionalismo (sistema racional-final, teleológico ou funcional).................. 131


3. Evolução da teoria do delito: causalismo, íínalismo e funcionalismo............. 133
3.1. Introdução........................................................................................................ 133
3.2. A teoria causai daação (causalismo).............................................................. 134
3.3. A teoria final da ação (finalismo).................................................................. 135
3.4. Funcionalismo.................................................................................................. 136
4. “Responsabilidade penal” da pessoa jurídica....................................................... 137
Capítulo II - Conceito de Crime.................................................................................. 143
1. Infrações penais: crimes e contravenções........................................................... 143
2. Conceito de crime.................................................................................................. 144
3. Conceito definitorial de delito - segundo a teoria do labeling approach (ou
teoria do etiquetamento)........................................................................................ 145
4. Conceito analítico de crime.................................................................................. 145
4.1. Tipicidade......................................................................................................... 147
4.2. Antijuridicidade............................................................................................... 147
4.3. Culpabilidade................................................................................................... 148
4.4. Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime..................... 148
Capítulo III - Evolução do Conceito de Tipo............................................................. 151
1. Sistema tripartido: o tipo como indício de antijuridicidade............................. 151
2. Sistema bipartido: a teoria dos elementos negativosdo tipo............................. 152
3. Posição aqui adotada: teoria dos elementos negativos do tipo (sistema bipar­
tido) .......................................................................................................................... 153
4. Teoria da tipicidade conglobante........................................................................ 155
5. Para uma configuração monista-funcional da teoria dodelito.......................... 156
5.1. Culpabilidade como exigibilidade, tendo em vista os fins de prevenção
geral e especial................................................................................................. 157
Capítulo IV - Classificação dos Crimes....................................................................... 163
Estrutura do tipo: classe de tipos................................................................................. 163
1. Crimes dolosos, culposos e preterdolosos........................................................... 163
2. Crimes materiais, formais e de mera conduta.................................................... 163
3. Crimes comissivos, omissivos próprios e omissivosimpróprios........................ 164
4. Crimes comuns e especiais..................................................................................... 165
5. Crimes principais e acessórios.............................................................................. 165
5. Crimes instantâneos e permanentes..................................................................... 165
7. Crimes simples e compostos................................................................................. 166
i. Crimes de dano e de perigo................................................................................... 166
Crimes unissubjetivos e plurissubjetivos.............................................................. 167
10. Crimes de ação única e de ação múltipla............................................................ 167
11- Crimes habituais..................................................................................................... 168
-apítulo V - Relação de Causalidade.......................................................................... 169
1. Introdução................................................................................................................ 169
Teoria da equivalência dos antecedentes causais ou da conditio sine qua
n on ”.......................................................................................................................... 169
D ire ito P en al - P a rte G eral

2.1. Alcance.................................................................................................................. 170


2.2. Interrupção do processo causai......................................................................... 171
2.2.1. Causas absoluta e relativamente independentes............................... 171
2.2.2. Causas absoluta e relativamente independentes: irrelevância da
distinção................................................................................................... 172
2.2.3. Causa superveniente relativamente independente........................... 173
3. Crítica à teoria da equivalência dos antecedentes causais................................. 174
4. Relação causai nos crimes omissivos...................................................................... 175
4.1. Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios: distinção................... 176
4.2. Causalidade nos crimes omissivos impróprios: requisitos........................... 177
4.3. Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios?........................... 178
5. A moderna teoria da imputação objetiva.............................................................. 181
5.1. Significado e posição sistemática..................................................................... 181
5.2. Conceito de risco permitido............................................................................ 182
5.3. Crítica à teoria da imputação objetiva............................................................ 183
5.4. Conclusão............................................................................................................ 185
Capítulo VI - Teoria do Dolo......................................................................................... 187
1. Introdução: ausência de conduta........................................................................... 187
2. Dolo e consciência da ilicitude............................................................................... 188
2.1. Questão preliminar: dolo normativo versus dolo natural........................... 188
2.2. Dolo numa perspectiva monista-funcional.................................................... 189
3. Conceito e atualidade dolo...................................................................................... 191
4. Elementos do dolo: representação e vontade....................................................... 192
5. Espécies de dolo: dolo direto e dolo eventual....................................................... 193
6 . Dolo eventual e culpaconsciente: distinção.......................................................... 194
6.1. Dolo eventual e culpa consciente: teorias..................................................... 196
7. Elementos subjetivos do tipo?................................................................................. 198
8 . Crime qualificado pelo resultado: preterdolo ou preterintencionalidade....... 199
8.1. Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado?................. 200
9. Ausência de dolo: erro de tipo................................................................................ 201
9.1. Espécies de erro de tipo: erro inevitável e evitável..................................... 202
10. Ausência do conhecimento do injusto: erro de proibição................................. 203
10.1. Conceito............................................................................................................ 203
10.2. Objeto da consciência do injusto.................................................................. 203
10.3. Divisibilidade do erro...................................................................................... 204
10.4. Espécies de erro: inevitável e evitável........................................................ 204
10.5. Posição sistemática.......................................................................................... 205
10.6. Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato: dis­
tinção ................................................................................................................. 205
11. Erro sobre causas de justificação - erro de tipo permissivo............................... 207
11.1. Conceito........................................................................................................... 207
11.2. Espécies: erro inevitável e evitável.............................................................. 207
11.3. Posição sistemática......................................................................................... 208
Paulo Q ueiroz

12. Erro de tipo, erro de proibição e erro sobre causas de justificação: uma dis­
tinção a ser superada.............................................................................................. 209
13. Erro provocado por terceiro................................................................................. 211
14. Erro sobre a pessoa: aberratio ictus..................................................................... 212
14.1. Crítica à disciplina legal da aberratio ictus................................................ 213
15. Resultado diverso do pretendido (aberrado delicti)............................................ 215
Capítulo VII - Teoria do Crime Culposo.................................................................... 217
1. Introdução................................................................................................................ 217
2. Excepcionalidade do crime culposo.................................................................... 218
3. Conceito de culpa: requisitos................................................................................ 218
4. Princípio da confiança........................................................................................... 220
5. Estrutura do crime culposo................................................................................... 221
5.1. Estrutura do crime culposo: causas de justificação e de exclusão de cul­
pabilidade .......................................................................................................... 222
5. Culpa consciente e culpa inconsciente............................................................... 223
7. Imprudência, negligência, imperícia................................................................... 224
}. Autocolocação em perigo...................................................................................... 225
Zapítulo VIII - Consumação e Tentativa................................................................... 227
l. Introdução................................................................................................................ 227
!. Crime consumado: significado.............................................................................. 227
2.1. Consumação nos crimes materiais, formais, de mera conduta e outros ... 229
I. Consumação e exaurimento.................................................................................. 229
L Tentativa: conceito e requisitos............................................................................ 229
4.1. Tentativa e dolo eventual: incompatibilidade?............................................ 231
4.2. Preparação e tentativa: distinção................................................................... 231
4.3. Crimes que não admitem tentativa............................................................... 233
4.4. Punição da tentativa: fundamento político-criminal.................................. 233
4.5. Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade..................... 234
. Desistência voluntária (da tentativa).................................................................... 236
. Arrependimento eficaz (da tentativa).................................................................. 237
6.1. Posição sistemática.......................................................................................... 237
Tentativa inidônea ou crime impossível.............................................................. 237
Crime impossível em razão de preparação deflagrante - a Súmula 145 do STF.. 238
8. 1. Preparação do flagrante.................................................................................. 239
8 .2. Impossibilidade de consumação.................................................................... 240
8.3. Flagrante retardado......................................................................................... 240
Arrependimento posterior..................................................................................... 240
apítulo IX - Concurso de Pessoas: autoria e participação...................................... 243
Introdução................................................................................................................ 243
Conceito e momento.............................................................................................. 243
Requisito: adesão subjetiva ou nexo psicológico................................................ 244
3.1. Desistência voluntária e arrependimento eficaz......................................... 245
Autoria e participação: distinção.......................................................................... 246
4.1. Teoria unitária................................................................................................. 247
D ire ito P e n a l - P a rte G eral

4.2. Teoria objetivo-formal....................................................................................... 248


4.3. Teoria subjetiva................................................................................................... 249
4.4. A teoria do domínio do fato ............................................................................ 249
5. Formas de autoria....................................................................................................... 250
5.1. Co-autoria............................................................................................................. 251
5.1.1. Co-autoria em crimes culposos............................................................. 251
5.2. Autoria mediata (ou indireta)........................................................................... 253
6 . Participação (em sentido estrito): acessoriedade................................................. 254
6.1. Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação................. 255
7. Formas de participação: instigação e cumplicidade............................................ 257
8 . Co-autoria e participação nos crimes omissivos.................................................. 258
9. Participação de menor importância....................................................................... 259
10. Participação dolosamente diversa (ou desvio subjetivo de conduta).............. 259
11. (In)comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal............................. 260
Capítulo X - Teoria da Ilicitude Causas de Justificação............................................. 263
1. Introdução................................................................................................................... 263
2. Requisito subjetivo nas causas de justificação..................................................... 264
3. Excesso nas causas de justificação........................................................................... 265
4. Efeitos.......................................................................................................................... 266
5. Erro sobre causas de justificação............................................................................ 266
6 . Causas de justificação em espécie........................................................................... 267
6.1. Legítima defesa................................................................................................... 267
6.1.1. Requisitos................................................................................................. 268
A) Agressão injusta - atual ou iminente............................................ 268
B) Atualidade ou iminência da agressão............................................ 270
C) Defesa de direito próprio ou de terceiro...................................... 270
D) Uso moderado dos meios necessários........................................... 272
6.2. Estado de necessidade....................................................................................... 273
6.2.1. Significado e posição sistemática........................................................ 273
6.2.1.1. Estado de necessidade, como excludente do crime............ 274
6.2.2. Requisitos................................................................................................ 275
A) Existência de perigo atual e inevitável........................................ 275
B) Perigo não provocado pelo agente................................................ 276
C) Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo...................... 276
D) Inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado.......................... 277
E) Ameaça a direito próprio ou alheio............................................... 277
6.3. Estrito cumprimento do dever legal............................................................... 278
6.4. Exercício regular de direito (em sentido estrito)......................................... 279
6.5. Consentimento do ofendido........................................................................... 279
Capítulo XI Teoria da Culpabilidade: Causas de Exclusão de culpabilidade........ 283
I. Introdução................................................................................................................. 283
Evolução do conceito de culpabilidade................................................................. 285
1. Culpabilidade segundo a doutrina causalista: concepção psicológica da
culpabilidade..................................................................................................... 285
Paulo Q ueiroz

2. Concepção normativa da culpabilidade......................................................... 287


3. Culpabilidade segundo a doutrina finalista: concepção normativa pura .. 287
4. Culpabilidade segundo o funcionalismo: culpabilidade como limite à
prevenção.......................................................................................................... 288
5. Causas de exclusão de culpabilidade em espécie......................................... 291
5.1. Inimputabilidade decorrente de alienação mental............................... 292
5.1.1. Significado e pressupostos............................................................ 292
5.1.2. Efeito................................................................................................ 294
5.1.3. Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída.......... 295
5.2. Menoridade penal..................................................................................... 295
5.3. Coação moral irresistível (CP, art. 2 2 )................................................... 296
5.4. Obediência hierárquica (CP, art. 22)...................................................... - 297
5.5. Embriaguez............................................................................................... 298
5.5.1. Embriaguez involuntária.............................................................. 299
5.5.2. Embriaguez voluntária.................................................................. 299
5.6. Emoção e paixão....................................................................................... 300
Capítulo XII - Concurso de Crimes............................................................................ 303
1. Concurso material (ou real): pluralidade de ações e crimes............................. 303
2. Concurso formal (ou ideal): unidade de ação e pluralidade de crimes........... 303
3. Crime continuado: pluralidade de ações e unidade de crime........................... 304
. 3.1. Requisitos......................................................................................................... 305
3.2. Pena................................................................................................................... 306
3.3. Crime continuado específico......................................................................... 306
3.3.1. Pena.................................................................................................. 307

Terceira Parte
CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICO-PENAIS DO CRIME

Da Pena............................................................................................................. 311
1. Conceito, fins e limites............................................................................ 311
I. Pena de Prisão.................................................................................................. 312
1. Falência da pena de prisão?..................................................................... 312
2. Limites do discurso “reformista-liberal”................................................ 313
II. Individualização Judicial da Pena (sanção penal)........................................ 317
1. Significado e importância........................................................................ 317
1. 1. Individualização da pena e pessoa jurídica.................................... 318
2 . Individualização e garantismo................................................................. 318
2.1. Concurso de agentes e concurso de crimes.................................... 320
2 .2. Emendatio e mutatio libelli.............................................................. 321
2.3. Sistema acusatório e emendatio libelli........................................... 321
3. Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal?................................... 324
4. Erros freqüentes na aplicação da pena................................................... 325
y* Método de fixação da pena............................................................................. 327
1. Primeira fase: fixação da pena-base....................................................... 328
D ire ito P e n al - P arte G eral

2. Segunda fase: fixação da pena provisória............................................... 328


2.1. Concurso de agravantes e atenuantes.............................................. 328
2.2. Qualificadoras e agravantes............................................................... 329
3. Terceira fase: fixação da pena definitiva................................................ 330
3.1. Causas de aumento de pena e qualificadoras: distinção............... 330
3.2. Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento
e diminuição......................................................................................... 330
3.3. Concurso de causas de aumento e diminuição de pena: possibi­
lidades.................................................................................................... 331
V. De como se procede ao cálculo da pena.......................................................... 332
VI. Método para incidência das causas de aumento e diminuição................... 333
VII. Circunstâncias judiciais em espécie................................................................. 334
Introdução........................................................................................................... 334
1. Culpabilidade.............................................................................................. 334
2. Antecedentes do réu................................................................................... 336
3. Conduta social............................................................................................. 337
4. Personalidade do réu ................................................................................. 338
5. Motivos do crime........................................................................................ 338
6 . Circunstâncias e conseqüências do crim e.............................................. 339
7. Comportamento da vítima........................................................................ 339
VIII. Segunda fase: fixação da pena provisória........................................................ 340
IX. Circunstâncias agravantes em espécie............................................................. 340
Introdução........................................................................................................... 340
1. Reincidência................................................................................................ 340
2. Motivo fútil ou torpe.................................................................................. 344
3. Para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou
a vantagem de outro crime........................................................................ 345
4. Traição, emboscada, dissimulação ou qualquer recurso que dificulte
ou tome impossível a defesa do ofendido.............................................. 346
5. Emprego de veneno, explosivo etc............................................................ 346
6. Embriaguez preordenada............................................................................ 347
7. Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge......................................... 347
8 . Contra criança, maior de sessenta anos, enfermo e mulher grávida.. 348
9. Abuso de poder ou violação inerente a cargo, ofício, ministério ou
profissão........................................................................................................ 349
10. Ofendido sob proteção de autoridade...................................................... 349
11. Ocasião de incêndio, naufrágio, inundação òu qualquer calamidade
pública, ou de desgraça particular do ofendido..................................... 349
12. Abuso de autoridade ou prevalecimento de relações domésticas, de
coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na
forma da lei específica............................................................................... 350
13. Agravantes em concurso de pessoas........................................................ 350
13.1.Agente que promove, organiza a cooperação ou dirige a ativi­
dade dos demais agentes.................................................................. 350
Paulo Q ueiroz

13.2. Agente que coage ou induz outrem à execução material do


crime................................................................................................. 351
13.3. Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém su­
jeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição
ou qualidade pessoal....................................................................... 351
13.4. Paga ou promessa de recompensa.................................................. 352
X. Circunstâncias atenuantes em espécie........................................................... 353
Introdução......................................................................................................... 353
1. Idade do agente........................................................................................ 353
2. Desconhecimento da le i.......................................................................... 353
3. Motivo de relevante valor social ou moral........................................... 354
4. Evitação das conseqüências ou reparação do dano............................... - 354
5. Coação resistível, cumprimento de ordem hierárquica etc................ 354
6 . Confissão espontânea............................................................................... 355
7. Influência de multidão em tumulto, se não o provocou.................... 356
XI. Regimes prisionais............................................................................................ 356
1. Progressão e regressão de regime........................................................... 356
1.1. Regime disciplinar diferenciado..................................................... 358
2. Progressão nos crimes hediondos.......................................................... 359
2.1. Constitucionalidade da proibição de progressão dos crimes he­
diondos ............................................................................................... 360
3. Execução provisória da sentença............................................................ 362
XII. Detração............................................................................................................. 365
1. Conceito e cabimento.............................................................................. 365
2. Conexão processual.................................................................................. 366
XIII. Direitos e deveres do condenado.................................................................... 367
XIV. Remição.............................................................................................................. 369
XV. Limite máximo da pena de prisão................................................................... 370
1. Significado e justificação......................................................................... 370
2. Alcance...................................................................................................... 371
3. Superveniência de nova condenação..................................................... 373
XVI. Penas Restritivas de Direitos........................................................................... 374
1. Introdução................................................................................................. 374
2. Requisitos para a substituição................................................................ 375
2.1. Vedação de pena restritiva de direito na nova lei de droga........ 378
3. Conversão em pena privativa da liberdade........................................... 380
4. Penas restritivas de direito em espécie.................................................. 381
4.1. Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas..... 381
4.2. Interdição temporária de direitos................................................... 382
4.3. Limitação de final de semana.......................................................... 384
4.4. Perda de bens e valores.................................................................... 385
4.5. Prestação pecuniária......................................................................... 386
4.5.1. Substituição por prestação de outra natureza.................... 386
4.6. Multa substitutiva............................................................................. 387
D ire ito P e n a l - P a rte G eral

XVII. Pena de Multa...................................................................................................... 387


1. Significado e crítica...................................................................................... 387
2. Individualização da pena: limites máximo e mínimo......................... 388
3. Pagamento e execução da multa............................................................. 389
XVIII. Medidas de Segurança....................................................................................... 389
1. Conceito epressupostos................................................................................ 389
1.1. A Lei de Reforma Psiquiátrica ou LeiAntimanicomial................ 393
2. Finalidade...................................................................................................... 394
3. Prazos máximo e mínimo......................................................................... 395
4. Penas e medidas de segurança se distinguem realmente?.................. 397
4.1. Natureza jurídica da sentença........................................................... 399
5. Espécies........................................................................................................... 400
5.1. Conversão regressiva e progressiva.................................................. 401
6. Extinção......................................................................................................... 401
XIX. Suspensão condicional da execução da pena - sursis................................... 402
XX. Livramento condicional..................................................................................... 404
1. Conceito e requisitos........................................................ ........................ 404
1.1. Pena igual ou superior a dois anos................................................... 405
1.2. Cumprimento de parte da pena........................................................ 405
1.3. Reincidência específica em crime hediondo.................................. 406
1.4. Reparação do dano.............................................................................. 407
1.5. Presunção de não-reincidência......................................................... 407
1.6. Comportamento satisfatório etc........................................................ 408
2. Revogação do livramento......................................................................... 408
2.1. Revogação obrigatória........................................................................ 408
2.2. Revogação facultativa......................................................................... 409
2.3. Efeitos da revogação........................................................................... 409
3. Extinção da pena......................................................................................... 410
XXL Da Ação Penal...................................................................................................... 410
1. Conceito e legitimidade de agir............................................................... 410
2. Ação penal pública..................................................................................... 411
2.1. Princípios que a regem....................................................................... 411
2.2. Irretratabilidade da representação................................................... 412
3. Ação penal privada..................................................................................... 413
3.1. Renúncia do ofendido......................................................................... 413
3.2. Perdão do ofendido............................................................................. 413
4. Ação penal privada subsidiária................................................................. 414
5. Decadência do direito de queixa e de representação............................ 414
XXII. Causas de extinção de punibilidade.................................................................. 415
1. Introdução.................................................................................................... 415
2. Causas de extinção em espécie.................................................................. 416
2.1. Morte do agente.................................................................................. 416
2.2. Anistia, graça e indulto...................................................................... 417
2.3. Perempção............................................................................................ 418
2.4. Retratação............................................................................................. 419
Sum ário

2.5. Perdão judicial................................................................................... 419


2.6. A bolido criminis e outras................................................................. 420
2.7. Prescrição........................................................................................... 420
2.7.1. Conceito e fundamento......................................................... 420
2.7.2. Espécies de prescrição............................................................ 421
2.7.3. Prazos....................................................................................... 423
2.7.3.1. Prescrição da Medida de Segurança................................ 424
2.7.4. Causas de aumento e de diminuição depena...................... 424
2.7.5. Reincidência........................................................................... 425
2.7.6. Concurso de crimes................................................................ 425
2.7.7. Prescrição (ordinária) da pretensão punitiva..................... 426
2.7.8. Prescrição (extraordinária) retroativa esuperveniente......• 426
2.7.9. Prescrição retroativa antecipada.......................................... 427
2.7.10. Termo inicial da prescrição................................................ 429
2.7.11. Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva.......... 429
2.7.12. Termo inicial da prescrição da pretensão executória..... 429
2.7.13. Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição............. 430
2.7.14. Causas interruptivas da prescrição..................................... 431
XXIII. Dos efeitos da condenação............................................................................. 434
1. Significado.................................................................................................. 434
2. Efeitos genéricos........................................................................................ 435
2.1. Dever de indenizar........................................................................... 435
2.2. Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do
crime.................................................................................................... 436
3. Efeitos específicos...................................................................................... 437
3.1. Perda de cargo, função pública ou mandatoeletivo...................... 437
3.2. Incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela ou cura-
tela....................................................................................................... 438
3.3. Inabilitação para dirigir veículo...................................................... 438
XXIV. Reabilitação....................................................................................................... 438
Referências Bibliográficas............................................................................................. 441
N ota do A u to r

xix

Nota do Autor

O texto que o leitor tem em mãos, dirigido basicamente, mas não exclusiva­
mente, a alunos do curso da graduação em direito, pretende tratar o direito penal
a partir de uma perspectiva crítica e comprometida com o sistema de valores e
princípios da Constituição Federal, alfa e ômega do ordenamento jurídico e, pois,
começo e fim da juridicidade. De acordo com essa perspectiva, todos aqueles que
lidam com o direito (juizes, membros do Ministério Público, advogados, autorida­
des administrativas, alunos, professores etc.) hão de deixar de ser meros espectado­
res da lei, para exercerem ativamente, como seus intérpretes e aplicadores vivos,
um papel bem mais dinâmico, complexo, crítico e criativo do direito, tendo como
referência a legalidade constitucional. E esse novo e desafiador papel mais cresce
de importância e mais exige de seus operadores quando se editam e se multiplicam
leis penais simbólicas, demagógicas e que, por conseguinte, só desacreditam mais
ainda o já desacreditado sistema penal, pois servem para só criar uma impressão -
e uma falsa impressão - de segurança jurídica.
Além disso, com a constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais
do homem (CF, art. 5Q), a questão dos fins do direito penal deixou de ser pura espe­
culação teórica para tom ar-se uma questão de direito positivo de fundamental
importância para juizes e legisladores, visto que a Constituição Federal, fundamen­
to de validade da ordem jurídica, deve orientar tanto a elaboração das leis quanto
a sua concreção, vale dizer, deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada de
toda construção e elaboração doutrinária e jurisprudencial.
Naturalmente que um direito penal assim concebido - um direito penal da
Constituição ou conforme a Constituição - há de ser necessariamente mínimo,
garantista, instrumental e subsidiário da política social geral e, em particular, da
política de prevenção e controle da desviação, que deve ter como prioridade máxi­
ma a integração social do homem e a realização de suas necessidades básicas (em­
prego, escola, saúde, lazer), em cujo contexto o direito penal, como parte de uma
política de proteção integral dos direitos humanos, há de ocupar e desempenhar
um papel bastante modesto.
Direito penal m ín im o, porque a vocação libertária do constituinte de 1988 é
manifesta, conforme demonstra seu amplíssimo rol de direitos e garantias indivi­
duais (art. 5q), de sorte que, sendo a liberdade a regra, a não-liberdade, a exceção,
medidas constritivas da liberdade, sobretudo as de caráter penal, devem constituir
a exceção das exceções, é dizer, devem ser o último recurso de defesa da juridici­
dade. Garantista, porque, por maior que seja o interesse do Estado em reprimir
determinadas condutas, tal só será legítimo quando respeitadas, formal e material­
mente, as garantias penais e processuais constitucionalmente consagradas. Instru­
m ental, porque, não constituindo o direito penal um fim em si mesmo, mas um
meio de proteção de bens jurídicos, sua intervenção só se justifica quando e se
necessária para a consecução dos fins que se lhe assinalem. Por fim , subsidiário,
porque sua atuação há de pressupor o fracasso de outras instâncias menos lesivas de
controle social, com as quais deverá concorrer utilmente.
A questão fundamental reside assim em dar efetividade ao projeto democráti­
co, maximizando a proteção do cidadão e minimizando a violência, projeto para o
qual pouco pode contribuir a intervenção penal, inevitavelmente traumática,
cirúrgica e negativa, i Afinal, um Estado que se define Democrático de Direito (CF,
art. 1Q), que declara, como seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, a
cidadania, os valores sociais do trabalho, e proclama, como seus objetivos funda­
mentais, constituir uma sociedade livre, justa e solidária, que promete erradicar a
pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover
0 bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade (art. 3Q), não
pode nem deve pretender lançar sobre seus jurisdicionados, prematuramente, esse
sistema de violência seletiva e discriminatória, que é o sistema penal, máxime
quando é esse mesmo Estado, por ação e/ou omissão, em grande parte co-responsá­
vel pelas gravíssimas disfunções sociais que vicejam e pelos dramáticos conflitos
que daí derivam.
Antes, e para não os trair com a mera retórica constitucional, há de assumir
! não uma postura passiva-negativa (garantismo negativo), mas uma postura ativa-
i positiva (garantismo positivo), em face de seus jurisdicionados, é dizer, há de ali-
I mentá-los, há de dar-lhes teto, há de prestigiar-lhes a saúde, o trabalho, há de rea-
| lizar a função social da propriedade, há de possibilitar-lhes efetivamente o exercí­
cio da cidadania, proporcionando-lhes as condições mínimas de desenvolvimento
de suas potencialidades, e assim reduzir os níveis de desigualdade social (realização
dos direitos sociais), sob pena de esse Estado carecer de toda legitimidade para exi­
gir de tais pessoas qualquer prestação, já que, como ressalta Ferrajoli, a declaração
constitucional dos direitos dos cidadãos eqüivale à declaração constitucional dos
deveres do Estado .2 Urge assim trabalhar com o mínimo de direito penal e com o
máximo de direitos sociais.
Por fim, por não ser o direito penal uma “ciência de professores”, mas uma
“ciência de casos”,3 toda e qualquer construção doutrinária deve ter como priori­
dade absoluta a resolução de conflitos reais, evitando-se abstrações excessivas e
inúteis, de interesse puramente acadêmico, de modo que decisivo é aparelhar as
agências judiciais dos instrumentos necessários à solução justa (ou minimamente

1 A expressão é de Antônio García-Pablos.


2 D erecho y razón. Teoria d e Garantismo Penal. Ed. Trotta. Madrid, 1995, p. 862.
3 A expressão é de Santiago M ir Puig.
Nota do A u to r

injusta) dos conflitos jurídico-penais. Os conceitos e institutos jurídico-penais


devem enfim constituir uma ferramenta - útil - de trabalho, de um trabalho que
se pretende justo.
Aliás, é ingênuo pensar que a técnica jurídica seja bastante para se decidir jus­
tamente. Sim, porque a formação técnico-jurídica só pode oferecer, na meíhor das
hipóteses, isso: uma decisão técnica. Mas uma decisão técnica não é uma decisão
justa ou ao menos não o é necessariamente: em particular aqueles que acompa­
nham mais de perto as decisões do Tribunal do Júri sabem muito bem que os jura­
dos, embora leigos em direito, nãro raro decidem mais justamente do que os juizes
togados. É que, se, para o juiz técnico, importa primeiramente a técnica, para o juiz
leigo, importa primordialmente a justeza das decisões, por vezes, valendo-se inclu­
sive de argumentos insustentáveis do ponto de vista estritamente dogmático.
Parece, inclusive, que no fundo os grandes juizes de Direito, Promotores de Justiça
e advogados talentosos, diferentemente dos meros burocratas, à semelhança dos
poetas e músicos virtuosos, não se tomam; nascem; e a técnica para tais pessoas
constitui apenas um instrumento de aperfeiçoamento de habilidades/qualidades
inatas, preexistentes à formação técnica, a qual não constitui em si mesmo garan­
tia de justiça. É que uma boa interpretação, na arte, como no direito, mais do que
técnica e razão, requer talento e sensibilidade.
Ademais, semelhante perspectiva (garantista), infensa a toda sorte de dogmas,
verdades preconcebidas ou argumentos de autoridade (argumentos potestativos),
convida à dúvida, estimula o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a vali-
dez das leis e de sua aplicação, assim como a consciência do caráter em grande parte
ideal - e, pois, irrealizado e carente de realização - de seus próprios fundamentos
e fontes de legitimação jurídica .4
O leitor logo perceberá que, conseqüente com semelhante projeto, ousou o
autor em mais de um lugar defender posições divergentes da doutrina e do direito
codificado, por entender que o saber penal não é a mera contemplação do direito
como é, mas a projeção do direito que deve ser (Filangieri). Afinal, a história do
direito penal é a história do Estado, um largo caminho de democratização que só
estamos iniciando e que, por isso, requer uma constante revisão crítica e implica ao
mesmo tempo remover, permanentemente, mitos, ficções e alienações que impe­
çam essa revisão .5

4 Ferrajoli, cit., p. 853.


5 Juan Bustos Ramírez. Bases Críticas de un nuevo d erech o p e n a i Bogotá: Tem is, 1982, p. 150.
Primeira Parte

FUNDAMENTOS DO
DIREITO PENAL
D ire ito P en al - P a rte G era l

Capítulo I
Introdução

1. Conceito de direito penal

Simplificadamente ,1 o direito penal ou direito criminal é a parte do ordena­


mento jurídico que define as infrações penais (crimes e contravenções) e comina as
respectivas sanções (penas e medidas de segurança ).2
Eis algumas das definições mais conhecidas: Franz von Liszt o define como o
conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pe­
na, como conseqüência ;3 Mezger, como o exercício do poder punitivo do Estado,
que conecta ao delito, como pressuposto, a pena, como conseqüência jurídica ;4
Welzel, como a “parte do ordenamento jurídico que determina as características da
ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança”.5
Wessels dá uma definição mais completa: “por Direito Penal designa-se a
parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade, bem
como os caracteres específicos da conduta punível, cominando determinadas penas
e prevendo, a par de outras conseqüências jurídicas, especialmente medidas de
segurança.”6 Entre nós, Frederico Marques assinala que para se ter uma noção exata
é imprescindível que nela se compreendam todas as relações jurídicas que as nor­
mas penais disciplinam, inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora
do delito e da pena, apresentando o seguinte conceito: “o direito penal é o conjun­
to de normas que ligam ao crime, como fato, a pena, como conseqüência, e disci­

1 Por conceito, entende-se todo o processo que to m e possível a descrição, a classificação e a previsão dos
objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse term o tem significado generalíssimo e pode incluir qualquer
espécie de sinal ou procedimento sem ântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto,
próximo ou distante, universal ou individual. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. S. Paulo:
M artins Fontes, 2003, p. 164.
2 De acordo com Juarez C irino, o d ireito penal é o setor do ordenam ento ju ríd ico que define crim es,
com ina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incrim inadas. D ireito
Penal. Parte Geral. Rio de Jan eiro: Lum en Juris, 2 0 0 6 , p. 3. Eis ainda o con ceito de Luis Jim énez de
Asúa: “co n ju n to de norm as e disposições ju ríd icas que regulam o exercício do poder sancionador e
preventivo do Estado, estabelecendo o co n ceito do delito com o pressuposto da ação estatal, assim
como a responsabilidade do sujeito ativo, e associando à infração da norm a um pena finalista ou uma
medida de segurança.” La ley e el delito: curso de dogm atica penal. Caracas: ed itorial Anrés Bello,
1945, p. 17.
3 Tratado d e direito penal alemão, trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Briguiet, 1899, v. 1, p. 1.
4 Tratado d e d erech o penal, 2. ed. Madrid: 1946, v. 1, p. 27-28.
5 D erecho pen al alemán, trad. Bustos e Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1993, p. 1.
6 P ireito pen al , trad. Juarez Tavares, 5. ed.. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1976, p. 5.
Paulo Q ueiroz

plina, também, outras relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabi­
lidade de medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder
de punir do Estado.”7
Mas tais definições não são de todo exatas, estando o objeto do direito penal
além delas. Basta referir algumas normas: “não há crime sem lei anterior que o defi­
na, nem pena sem prévia cominação legal”; “ninguém pode ser punido por fato que
lei posterior deixa de considerar crime”; “considera-se praticado o crime no mo­
mento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (CP, arts.
fo a 40). “a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo
mesmo crime” (art. 8e); “o resultado, de que depende a existência do crime, somen­
te é imputável a quem lhe deu causa” (art. 13); “entende-se em legítima defesa
quem...” (art. 25); “é isento de pena...” (art. 181); “considera-se funcionário públi­
co...” (art. 327).
Vê-se assim que as normas jurídico-penais não se limitam à definição de com­
portamentos delituosos, cominando-lhes as respectivas sanções. A prevalecer tão
restrito conceito, só teremos como normas penais aquelas previstas na chamada
Parte Especial dos códigos e leis penais extravagantes que prevêem as condutas
delituosas. A Parte Geral, e não raro também a Parte Especial, em vez de declarar
quais são os comportamentos criminosos ou contravencionais, trata sobretudo de
delimitar o âmbito de atuação das normas penais e de estabelecer os critérios de
interpretação/aplicação do direito penal.
Mas não apenas isso. A Constituição Federal (principalmente) e o Código
Penal definem ainda as bases e os princípios que informam o direito penal, traçan­
do-lhe o perfil, limites e contornos. Numa palavra, dão-lhe a conformação políti-
co-jurídica.
Assim, por exemplo, quando adota o princípio da legalidade, o princípio da
não-perpetuação das penas, o princípio da proporcionalidade etc.. Enfim, as nor­
mas tipicamente penais - previstas ou não num diploma penal - , ao tempo em que
fundam e estruturam o poder punitivo do Estado, fixam os princípios e regras fun­
damentais que vão governar a intervenção jurídico-penal, criando, paralelamente,
um sistema de garantias em face do exercício deste poder.
Ademais, tais definições, ao ressaltarem a relação Estado/infrator, marginali­
zam a vítima, desconsiderando o papel fundamental que esta vem de assumir no
direito penal e processual penal.8

Tratado d e direito penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 24.


Fala-se inclusive de vítimo-dogmática, parte da vitimologia que se ocuparia da influência do comporta­
mento da vítima na dogmática penal; havendo quem entenda (Schünemann, que desenvolve o princípio
vitimológico) que onde seja possível e exigível uma autoproteção fácil e eficaz por parte da própria víti­
ma não ocorre, propriamente, uma lesão socialmente perigosa e digna de repressão jurídico-penal, m oti­
vo pelo qual o ofendido não é, em tal caso, merecedor da proteção outorgada pelo direito penal, dado o
caráter de ultima ratio. Sobre o assunto, Roxin, D erecho penal : parte general. Madrid: Ed. Civitas, 1997,
p. 562-567.
D ire ito P en ai - P a rte G eral

Cabe conceituar assim, e prelim inarm ente, o direito penal como o conjunto
das normas jurídicas que, materializando o poder punitivo do Estado, define as
infrações penais (crimes e contravenções) e comina as sanções correspondentes
(penas, medidas de segurança ou outra conseqüência legal9), estabelecendo ainda
os princípios e garantias em face do o exercício deste poder, ao tempo em que cria
os pressupostos de punibilidade.
Pode-se ainda conceituá-lo, como faz García-Pablos, sob o enfoque dinâmico
e sociológico, como sendo um dos instrumentos do controle social formal por meio
do qual o Estado, mediante determinado sistema normativo (as leis penais), castiga
com sanções negativas de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins)
as condutas desviadas mais nocivas para a convivência, assegurando desse modo a
necessária disciplina social e a correta socialização dos membros do grupo.10
É certo também que, por meio da expressão Direito Penal, é designada a “ciên­
cia do direito penal”. Nesse sentido, o saber ou a ciência penal tem por objeto o co­
nhecimento, a interpretação, a sistematização e a crítica do direito positivo .11
Finalmente, convém advertir que todos esses conceitos são também passíveis
de crítica por confundirem, mais ou menos claramente, direito penal com legisla­
ção penal, isto é, confundem lei e direito, conforme se esclarecerá mais adiante.

1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal

O Direito Processual Penal é o ramo do ordenamento jurídico cujas normas


instituem e organizam os órgãos públicos que cumprem a função jurisdicional do
Estado e disciplinam os atos que integram o procedimento necessário para a apli­
cação de uma pena ou medida de segurança .12 Incumbe ao processo penal, portan­
to, definir competências, fixar procedimentos e estabelecer as medidas processuais
necessárias à realização do direito penal, razão pela qual o processo penal nada mais
é do que um continuu m do direito penal, ou seja, é o direito penal em movimen­
to, e, pois, formam uma unidade.
Por conseguinte, não pode haver crime sem processo, porque é por meio do
processo penal que o Estado, que detém com exclusividade o direito de punir ,13 di­

9 Ao me referir a outra conseqüência legal , quero aludir a medidas despenalizadoras, como a suspensão con­
dicional do processo e a transação (Lei nQ9.099/95), e efeitos não penais da sentença penal condenatória
(obrigação de reparar o dano etc.), bem como adm itir a possibilidade de redefinição e flexibilização da res­
posta penal, segundo o princípio da adequação. No particular, entendo que o direito penal deve ampliar,
sensivelmente, os modos de responder ao conflito, conform e as particularidades de cada caso concreto,
buscando, à sem elhança do direito não penal (civil, administrativo), uma solução para o caso, solução que
não precisa ter necessariamente caráter de pena.
10 D erecho penai: introducción, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1995, p. 1-2.
11 García-Pablos, cit., p. 298.
12 Maier, Julio B. J. D erecho Procesal Penal.Tom o I: Fundamentos. 3. ed. Buenos Aires: Editores dei Puerto,
2004, p. 75.
13 Conforme assinala Aury Lopes Júnior, o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reco­
nhece como legítima para a imposição da pena, visto que o direito penal é desprovido de coação direta e, di­
rá, por exemplo, se há ou não crime, se o crime está ou não provado, se a prova
obtida é ou não lícita, se o autor agiu ou não em legítima defesa, se ele é ou não cul-
pável, se houve ou não prescrição. Por isso é que entre o direito penal e o proces­
so penal há uma relação de mútua referência e complementaridade,14 visto que o
direito penal é impensável sem um processo penal (e vice-versa). Daí dizer Calmon
de Passos que a relação entre o direito material (penal, civil) e o processo não é uma
relação apenas de meio e fim, isto é, instrumental, mas uma relação integrativa,
orgânica, substancial, uma vez que o direito é socialmente construído, historica­
mente formulado, atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço, e,
por isso, somente o é depois de produzido.15
Exatamente por isso, os princípios e garantias inerentes ao direito penal (lega­
lidade, irretroatividade da lei mais severa etc.) devem ser aplicados, por "igual, ao
processo penal, unitariamente, não cabendo fazer distinção no particular. Também
por isso, os constrangimentos gerados pelo processo penal jamais poderão exceder
àqueles que poderiam resultar da própria condenação, sob pena de conversão do
processo em pena antecipada, além de violação ao princípio da proporcionalidade.
Assim, não é legítima a prisão provisória sempre que à infração penal cometida for
cominada pena não privativa da liberdade ou for cabível a sua substituição por pena
restritiva de direito ou semelhante.16
Apesar disso, direito penal e processo penal não se confundem, porque, por
exemplo, a prisão provisória (prisão em flagrante, prisão preventiva) não é a pró­
pria pena cominada ao crime, nem sua antecipação, a qual pressupõe um processo,
sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução
(a própria execução da pena); e, neste caso, o processo, que deveria assegurar ao réu
as garantias que lhe são inerentes, com vistas à realização de um julgamento justo
ou ao menos conforme a Constituição seria um simples pretexto para se impor um
castigo antecipado a alguém e legitimar decisões arbitrárias, como se de fato pro­
cesso algum existisse.
O mesmo deve ser dito quanto à execução penal, última etapa de realização
do direito penal, a qual deve ser regida pelos princípios constitucionais do direito
e processo penal, afinal, o direito, apesar de compartimentado em ramos, pretende
ser um só. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não
podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada
em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa

ferentem ente do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo corresponden­
te, in Introdução crítica ao Processo Penal. 4* edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 3.
14 Figueiredo Dias, Jorge. Direito Processual Penal. 1. ed„ 1974 (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora,
2004, p. 28.
15 J. J.Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 52 e 68.
16 Sobre isso, conferir Antônio Vieira. O Princípio da Proporcionalidade e Prisão Provisória, in Leituras
Complementares de Processo Penal. Salvador: JUSPODIVM, 2008.
D ire ito P e n al - P arte G eral

(v.g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente
aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).
Em conclusão, e contrariamente à doutrina e jurisprudência ainda hoje majo­
ritária, temos que tudo que se disser sobre o direito penal há de igualmente valer
para o direito processual penal e execução penal, necessariamente, a fim de confe-
rir-lhes tratamento unitário e conforme a Constituição .17

1.2. Mas o que é de fato o Direito?

Em primeiro lugar, o direito é um conceito, tal qual justiça, moral, ética ou esté­
tica. E como conceito, remete necessariamente a outros conceitos: lei, ordem, segu­
rança, liberdade, bem jurídico etc., que também reenviam a outros tantos, motivo
pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões, associações.
Em segundo lugar, o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas
um entre vários conceitos possíveis, de sorte que traduz em última análise o ponto de
vista de seu autor ou de quem o adota, afinal outros tantos conceitos, mais ou menos
exatos, mais ou menos amplos, são igualmente possíveis. Também por isso, um con­
ceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo, dentro de um universo de
representações possíveis; um conceito é uma simplificação, uma redução.
Em terceiro lugar, todo conceito, como representação formal do pensamento,
pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo, isto é, pouco ou nada diz sobre as múlti­
plas formas que ele pode histórica e concretamente assumir, até porque, embora
pretenda valer para o futuro, é pensado a partir de uma experiência passada, a reve­
lar que definir algo é de certo modo legislar sobre o desconhecido. Também por isso,
um conceito, como expressão da linguagem, é estruturalmente aberto, e, pois, pode
compreender objetos históricos os mais díspares (v.g., o conceito de legítima defesa
depende do que se entenda, em dado contexto, por “injusta agressão”, “atual ou imi­
nente”, “uso moderado dos meios necessários”, “direito próprio ou alheio” etc.).
Em quarto lugar, um conceito, que é assim socialmente construído, só é com­
preensível num espaço e tempo determinados, motivo pelo qual, com ou sem alte­

17 De modo diverso, Elm ir Duclerc (Curso Básico de D ireito Processual Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 4) sustenta que não é correto vincular a existência do direito processual ao direito penal,
mesmo porque o processo penal “nem sempre será decidido com amparo em normas de direito material
(pense-se, por exemplo, nos processos por crim e de furto, em que pode ser necessário discutir se a coisa
subtraída era ou não alheia à luz do D ireito Civil)”. Não estamos de acordo com isso, evidentemente.
Desde logo, porque o direito é um só, apesar de compartimentado em ramos, que não são compartimen­
tos estanques; segundo, porque o recurso ao conceito jurídico-penal de infração penal (no caso, crim e de
furto) é absolutamente indispensável; terceiro, porque não se pode justificar um conceito a partir de uma
exceção; finalm ente, porque o só fato de um processo penal poder ser anulado por meio de habeas eorpus
por violar normas processuais não desm ente a vinculação essencial entre direito penal e processo penal.
Além disso, o direito processo penal, am es de ser processo, é direito, e não é qualquer processo (civil,
administrativo etc.), mas processo p e n a l isto é, relativo ao direito penal. Enfim , os argumentos invocados
em favor da independência do direito processual penal dizem respeito a aspectos acidentais, não essen­
ciais, da relação político-jurídica em questão.
Paulo Queiroz

8
ração de seus termos, está em permanente mutação, afinal um conceito encerra
uma convenção (sempre provisória), e está condicionado por pré-conceitos ou pré-
juízos. Por isso é que o legal ou ilegal, o lícito ou ilícito variam no tempo e no espa­
ço, independentemente (inclusive) da alteração dos termos da lei, até porque o direi­
to existe com ou sem leis (v.g., comunidades ou países que seguem um direito costu­
meiro). Todo conceito, assim como todo texto, pressupõe um determinado contexto.
Exatamente por isso, o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessaria­
mente amanhã. Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num determina­
do momento algo que se tornará injusto e ilegal - e eventualmente criminoso - em
momento posterior (v.g., a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos
fora do casamento, danos ao meio ambiente), podendo-se imaginar que no faturo,
tal como já ocorre nalguns países, muito do que atualmente é ilegal se tornará legal
(e vice-versa), como a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a ado­
ção por tais casais, a mudança de sexo etc. Aliás, historicamente, nem todas as pes­
soas foram consideradas como sujeitos de direito (v.g., estrangeiros, prisioneiros de
guerra, mulheres, escravos).18
Em quinto lugar, o conceito de direito, tal qual o conceito de justiça, liberda­
de, igualdade, e diferentemente do conceito de cavalo, automóvel etc., que dizem
respeito a algo concreto, não remetem a uma coisa, a um objeto, propriamente, mas
a relações e conflitos que daí resultam (v.g., pais/filhos, empresa/empregados, auto­
res/vítimas, Estado/criminosos etc.). Exatamente por isso, o direito não é um con­
junto de artigos de lei, mas um conjunto de relações humanas.19
Finalmente, todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e,
por isso, constitui uma universalização do não-universal, do singular; um conceito
nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico .20 O conceito de cri­
me, por exemplo, refere-se a um sem-número de condutas que a rigor nada têm em
comum, à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas: matar
alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem provisão de fundos, portar
droga para consumo pessoal, abater espécime de fauna silvestre etc. (espécime que
pode variar de uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por sua vez, uni­
ficam coisas díspares. Com efeito, não existe um homicídio absolutamente igual a
outro homicídio, nem um furto absolutamente igual a outro furto, nem um crime
ambiental absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que sempre
envolvem tais atos tornam cada ação humana singular, única, irrepetível. Enfim,
um conceito é formado pela eliminação do que há de particular em cada ato; e

18 Também por isso, não é correto criticar a justiça ou injustiça de um ato ou instituição (v. g., a escravidão)
desconsiderando o contexto em que surgiram. Não é de admirar, por isso, que no futuro, tal como já ocor­
re nalguns países, se for abolida a repressão ao tráfico ilícito, drogas passem a ser vendidas livremente em
drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar.
19 Arthur Kaufmann. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
20 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos, 1996.
D ire ito P en al - Parte Geral

quanto mais exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se tom a .21 Os fatos são
mais ou menos semelhantes, nunca idênticos.
Aliás, a analogia, que tradicionalmente tem merecido um tratamento secun­
dário, não constitui (conforme se verá mais tarde) um elemento acidental, mas
essencial ao conhecimento/interpretação, pois o belo e o feio, o justo e o injusto, o
legal e o ilegal são construídos em verdade a partir de comparações (analogias), isto
é, recorrendo-se, conscientemente ou não, a experiências (sempre novas) de bele­
za, de justiça e de legalidade.
De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado, pois é parte da
construção social da realidade; e, portanto, o direito não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar
um suposto direito preexistente, mas a forma mesma de produção do direito.
Enfim, não é mais a interpretação que depende do direito (ou da lei), mas o direi­
to (ou a lei) que depende da interpretação.
O que é então o direito? Sob essa perspectiva, uma multidão móvel de metá­
foras e metonímias.22

1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe23

É preciso insistir ainda que o direito não é uma coisa, isto é, não tem uma
essência, uma substância; não existe ontologicamente, independentemente da
representação que fazemos a seu respeito, porque constitui uma criação humana,
que nasce e morre com o homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem
gasoso, nem animal, nem vegetal.24
Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como d ireito ”, são pala­
vras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não
tem existência real. O Direito - demos-lhe maiúsculas - não existe. Ou antes, não
existe a não ser como um nome que reenvia a um objeto, mas serve para designar
uma multiplicidade de objetos históricos possíveis - que, como realidades, não têm

21 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos: 1996.
22 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid:Tecnos: 1996. Naturalmente
que com esse conceito generalíssimo, aplicável a outros saberes, fica por esclarecer o que há (se há) de
peculiar no “fenômeno" jurídico.
23 Conforme se infere de alguns conceitos: “o direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio
de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant,
Metafísica dos costumes, parte I. Lisboa: Edições 70, p. 36); “o domínio do direito é o espírito em geral; aí,
a sua baseprópria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua
substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espí­
rito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (Hegel, Princípios de filosofia do direi­
to , trad. Orlando Vitorino. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 12); “Direito é a ordenação heterônoma,
coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos
segundo valores” (Miguel Reale, Lições prelim inares de direito. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 67).
24 Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67-68.
Paulo Queiroz

os mesmos atributos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”,25 de sorte


que, assim como não existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação
moral dos fenômenos,26 tampouco existem fenômenos jurídicos, mas só uma inter­
pretação jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilíci­
to, mas socialmente construído.
Em conclusão, o direito é o que dizemos que ele é, porque o direito, como de
resto quase tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na norma em si,
mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar, parafraseando o evan­
gelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está dentro de nós, e que nós o criamos
e recriamos permanentemente, dando-lhe distintos significados a cada momento
de sua produção segundo um dado contexto histórico-cultural. Dito de outra
forma: o direito e o não direito, tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, o
ético e o estético, é em nós que ele existe!27
Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/intera­
ções/interpretações/decisões, que é algo que se exerce, que se efetua, que funciona
como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclu­
sivo, mas se dissemina por toda a estrutura social.28 Constitui, por isso, uma gran­
de simplificação supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se
esgote no direito legislado,29 já que cada um carrega dentro de si seus microssiste-

25 Foucault, A norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993, p. 160. De modo similar, Calmon de Passos afirma que
o direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o
Direito", pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo
dado, pronto, preestabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de
determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”, razão pela qual “O
Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente
é enquanto está sendo produzido ou aplicado” . Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 67-68). Não por outra razão, Oliver W endell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz
é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato. Textualmente: “the prophecies o f what the courts
will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by the law”, apud Arthur Kaufmann,
Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
26 Nietzsche, Friederich. Para além do bem e do mal, trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 92.
27 Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que vigora há séculos,
tenha a Suprema Corte entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de
1950), passou-se a considerá-la parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da década de 1970,
prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional. O que mudou, se o texto da
lei é o mesmo desde então? A resposta é simples: o homem que o interpreta!
28 Roberto Machado. Por uma genealogia do poder, in Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1995, p. XIV.
29 Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou territorial, o direito domés­
tico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o direito sistêmico, classificação que não é exausti­
va. O direito doméstico - grandemente informal - é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras,
de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das
relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o con­
junto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assa­
lariado: códigos de fábrica, regulamentos da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.;
o direito da comunidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais
complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser invocado tanto pelos
grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finalmente, o direito territorial ou estatal é o direito do
D ireito Penal - Parte Geral

mas jurídicos, e os faz, ou tenta fazê-los prevalecer, nos seus espaços de intera­
ção/exercício de poder.
Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos processos de
criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e
não é crime, porque assim o exige o princípio da legalidade (CF, art. 5e, XXXIX30);
segundo, por meio dos processos de criminalização secundária, isto é, através das
ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente relacionadas com
o crime (Judiciário, Ministério Público, Polícia, advogados, imprensa, autor, víti­
ma, parentes etc.).
Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, segue-se que,
por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v. g., o incesto),
se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penal-
mente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso.
Numa palavra: crime é só o que o legislador diz que é .31
Mas esse discurso não cessa aí, porque prossegue por meio dos processos de
definição e reação social, isto é, os processos de criminalização secundária, que
nada mais são do que continuum daquele. E que de certo modo a lei nada prescre­
ve, proíbe, autoriza ou permite, pois a lei prescreve ou não prescreve, proíbe ou não
proíbe, autoriza ou não autoriza, permite ou não permite o que dizemos que ela
proíbe, autoriza ou permite, de modo que a lei diz o que dizemos que ela diz.32

espaço da cidadania e, nas sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens
jurídicas, sendo que, ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e pela
ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica da razão indolente , São
Paulo, Cortez, 2000, p. 290 e s.
30 Prescreve o aludido artigo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comi-
nação legal”.
31 Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta, assinala que “o direito não
se origina da pena do legislador. A decisão do legislador (e o mesmo é válido, como hoje se reconhece,
para a decisão do juiz) se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre
as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma deci­
são jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na dignificação sim­
bólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro processual, pelo qual todas as idéias
jurídicas têm que passar para se tornarem socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não
geram o direito propriamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se deci­
de sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter em mente essa diferen­
ça, pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção total­
mente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferen­
ciar entre atribuição e causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legisla­
tivas ou por juizes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação
como algo criativo ou causai; o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento
de possibilidades e sua redução a uma decisão, consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais deci­
sões” Sociologia do direito, II. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário 80, 1985, p. 8.
32 Por isso afirma Lênio Luiz Streck que em rigor não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desa­
cordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construí­
da pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profe­
re um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a
doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que
Paulo Queiroz

Aliás, e conforme assinala Umberto Eco, “um texto, uma vez separado do seu emis­
sor (bem como da intenção do seu emissor) e das circunstâncias concretas da sua
emissão (e conseqüentemente de seu referente implícito), flutua no vácuo de um
espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis. Conseqüentemente,
texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo,
original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que o seu inacessível
sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual”.33
Explicando mais concretamente: a lei prescreve que o crime de estupro con­
siste em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça (CP, art. 213); parece óbvio saber em que consiste o crime, pois. No entan­
to, o que vem a ser m ulher para efeitos penais? Transexual, por exemplo,, pode ser
considerada mulher para fins penais, e, portanto, vítima de estupro? Há algum
tempo uma conhecida judoca brasileira foi impedida de participar de competição
por não ser mulher segundo as regras desportivas: não seria ela, então, passível de
estupro? Práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz
muito tempo, autores importantes afirmavam que o marido não podia responder
por crime de estupro contra a esposa, pois, diziam, entre os direitos inerentes ao
casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão pela qual não
lhe era dado oferecer resistência lícita .34 Ainda hoje, parte da doutrina entende que
haverá estupro nesse caso, “desde que ela tenha justa causa para a negativa”.35 Não
bastasse isso, o Código equipara a estupro violento o estupro com violência presu ­

o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais
que palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela lin­
guagem. É o que a lei manda, mas também o que os juizes interpretam, os advogados argumentam, as par­
tes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez
que designa/atribui significado a fatos e palavras", in Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 210-211.
33 Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. XIV. Apesar disso, e conforme sugere o
próprio título do texto (os limites da interpretação), Umberto Eco entende, com razão, que há limites à
interpretação, de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida. Vide capítulo sobre interpretação.
34 Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu no estupro,
quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negati­
vo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever
dos cônjuges (...). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena cor­
respondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões,
porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exer­
cício regular de um direito”, in Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 125-126.
Assim também, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à, vida conjugal, constituindo
direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não
pode se opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode
furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do
marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à
união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder por excesso cometido”.
Direito penal , v. 3. São Paulo: Saraiva, 27. ed., 2003.
35 Damásio de Jesus. Direito Penal. Parte Especial, 3° volume, p. 96. São Paulo: Saraiva, 2002. Paulo José da
Costa Júnior ainda hoje defende que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo mari­
do. Curso dç Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008.
D ireito Penal - Parte Geral

m ida, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 22436) ou mulher
que padeça de alienação mental, o que significa dizer que muitos namoros poderão
ser interpretados como autênticos estupros. Finalmente, o que significa ou pode
significar “constranger”?
Consideremos um outro exemplo. A Constituição veda, expressamente, as
penas de morte e cruéis (CF, art. 5Q, XLVII37). Mas o que vem a ser pena de morte
ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.
E evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal pro­
clamar a culpa de um réu e condená-lo criminalmente à pena capital, seja com um
tiro de fuzil, seja por enforcamento, seja por qualquer outro meio. A pena de morte
é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas veja: o art. 303,
§ 2e, da Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáuti­
ca), alterada pela Lei ne 9.614/98, bem assim o Decreto ns 5.144, de 16 de julho de
2004, que o regulamentou, previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de
tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso
pena de morte/cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedada? Apesar
disso, apreciando petição que argüia a inconstitucionalidade (não recepção) da alu­
dida lei, o Procurador-Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medi­
da de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser
considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expia-
ção por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segu­
rança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia
das medidas coercitivas precedentes. E importante frisar que tal medida tem por
objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro ”.38
Esse exemplo também demonstra claramente que o direito é realização/manifesta­
ção de poder: diz o que é o direito quem tem atribuição/poder para tanto.
Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que em geral consiste no encarcera­
mento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural (artificial), em espaço físi­
co minúsculo, superlotado, sem salubridade, privado quase que integralmente de con­
tato com o mundo exterior, não seria ela mesma pena cruel? Não seriam as medidas
de segurança uma forma disfarçada de seqüestro por tempo indefinido?

36 Diz o referido art. 224 do Código Penal que “presume-se a violência se a vítima: a) não é maior de 14
(catorze) anos; b) é alienada mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer
outra causa, oferecer resistência”.
37 Dispõe o artigo: “não haverá penas: a) de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84,
XIX; e) cruéis."
38 Processo PGR 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles, então
Procurador-Geral da República, datado de 14-3-2005. Na representação formulada (também por mim
subscrita), os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios: a) inviolabilidade da vida (art. 5°,
caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5°, XLVII, a); c) presunção de inocência (art.
5o, LVTI); d) proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5o, XXXVII); e) devido processo legal (art. 5a);
f) prevalência dos direitos humanos (art. 4a, II); g) defesa da paz (art. 4&, VI); h) solução pacífica dos con­
flitos (art. 4a, VII); i) repúdio ao terrorismo (art. 4°, VII); j) legalidade; 1) proporcionalidade; e m) inviola­
bilidade da propriedade (art. 5°, caput).
Paulo Queiroz

Ademais, nenhum comportamento é criminoso em si mesmo, tudo dependen­


do das reações que desencadeia ou não desencadeia. Assim, se um pai sabe que um
seu filho lhe subtraiu valores, provavelmente não tomará isso como um fato crimi­
noso, isto é, furto, por isso não procurará a polícia, não fará funcionar a máquina
estatal; tudo não passará de um problema de família e resolvido em família.39 O
próprio Código (CP, art. 181, II) prevê isenção de pena sempre que o crime for pra­
ticado contra ascendente ou descendente. Certamente, reações diversas teriam
lugar se, ao invés de um filho, fosse autora do fato a empregada doméstica ou um
estranho. De modo similar, o tráfico ilícito pressupõe que a droga seja ilícita, as
quais são assim definidas pelo Ministério da Saúde um tanto arbitrariamente, den­
tro de um universo vastíssimo de drogas capazes de produzirem dependência físi­
ca ou psíquica, estando excluídos, por exemplo, tabaco, álcool etc. Mais: o assédio
sexual (CP, art. 216-A), embora praticável por qualquer pessoa (crime comum), é
um típico crime masculino, pois é muito raro um homem interpretar o assédio
feminino como algo ofensivo ou criminoso.
Convém repetir, portanto: o que chamados Direito são experiências, relações,
interações, interpretações, decisões.
Naturalmente que o mesmo deve ser dito de todas as demais formas de ilícito
(civil, trabalhista, administrativo), pois não há diferença ontológica quanto ao que
seja violação contratual, esbulho possessório, justa causa etc. Se o direito é um só,
uma só também é a violação ao direito (o ilícito), por conseqüência.
Logo, o direito não é só o que o legislador diz que é; é também o que os juizes
dizem que é, a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos;40 é,

39 Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B), de dois anos, e por
isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao
pudor (CP, art. 214), crime hediondo (Lei nB8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: "per­
sonalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que m oti­
vam os comportamentos regressivos que em ite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao m eio
social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e
agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle
sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de inter-relação social torna-se difícil, sobretudo quando
adota atitudes de supervalorização de si mesma com o uma forma de compensar o sentimento de inferio­
ridade que procura dissimular.” Ora, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta
e outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a ses­
sões de análise ou semelhante, e, no máximo, tiraria dela, provisória ou definitivamente, a guarda da
criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não passaria de um “pro­
blema de família” e resolvido em família.
40 Por essas e outras razões, Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um caráter
puramente retórico, pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática; antes, desempe­
nha uma função retórica que orienta a interpretação, a aplicação e a argumentação referida à lei penal.
Textualmente: “o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui um garantia essencial do
cidadão em face do poder punitivo do Estado. Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e,
diversamente do que afirma a doutrina, não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direi­
tos do acusado. Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incriminação e penas, impede o
emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou, ainda, evita a criação de normas penais pos­
tas em linguagem vaga e indeterminada. O caráter retórico do princípio da legalidade.” Porto Alegre:
Síntese, 1979, p. 17 e 128.
D ireito Penal - Parte G eral

pois, um discurso, uma prática (social) discursiva,41 socialmente construída,


variável no tempo e no espaço, mais ou menos previsível e, no caso penal (mas
não só nele), arbitrariamente seletiva, porque o sistema penal recruta sua clien­
tela quase sempre entre os grupos mais vulneráveis, notadamente autores de cri­
mes patrimoniais (furto, roubo, estelionato), típica criminalidade de rua, própria
de sujeitos socialmente excluídos. La ley es como las serpientes; solo pica a los
descalzos.42
Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem, mas também, e
principalmente, o que dizemos que as normas dizem; não é só o dever ser, mas o
ser. Tem razão, portanto, Arthur Kaufmann, quando assinala que “só quando a
norma e situação de vida, dever e ser, são postos em relação, em correspondência
um com o outro, surge o direito real: o d ireito é a correspondência entre o d ev er e
o ser. O direito é uma correspondência, não tem um caráter substancial, mas sim
relacionai, o direito no seu todo não é o complexo de artigos da lei, um conjunto
de normas, mas sim um conjunto d e relações".43
Assim, supor que a lei é o próprio direito seria confundir o mapa com o terri­
tório, o cardápio com a refeição ;44 seria confundir, enfim, discurso e realidade, teo­
ria e práxis, dever ser e ser, mesmo porque o direito constitui uma idéia, um con­
ceito, que reenvia a outros tantos conceitos, que, à semelhança de compartimentos
vazios, tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pes­
soas e autoridades que participam da sua construção social 45 Daí dizer Nietzsche
que, se houvesse uma escola para legisladores, seria importante ensinar que pala­
vras como lei, direito, dever, propriedade e crime constituem em si mesmas uma

41 No sentido do texto, Carlos Maria Cárcova escreve que “frente aos tradicionais reducionismos da teoria
jurídica (normativismo/facticismo) sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como dis­
curso, com o significado que os lingüistas atribuem a essa expressão, isto é, como processo social de cria­
ção de sentido - como uma prática social discursiva que é mais do que palavras, que é, também, compor­
tamentos, símbolos, conhecimentos; que é, ao mesmo tempo, o que a lei manda, os juizes interpretam, os
advogados argumentam, os litigantes declaram, os teóricos produzem, os legisladores sancionam ou os
doutrinários criticam e sobretudo o que, ao nível dos súditos, opera como sistema de representações”.
Direito, Política e Magistratura. S. Paulo: LTR, 1996, p. 174.
42 A frase parece ser de Oscar Romero.
43 Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 219. Diz Del Vecchio, no entanto, a
partir de postulados kantianos, que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica, aos fenô­
menos jurídicos singulares, sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma. Assim,
“uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica (universal) do Direito. Fora
desta forma, indiferente ao conteúdo, nenhuma experiência jurídica é possível. Sem ela, falta a qualidade
que permite adscrevê-la a esta espécie de experiência. A forma lógica do Direito é um dado a priori - ou
seja, não empírico - e constitui, precisamente, a condição da experiência jurídica em geral”, in Lições de
filosofia do direito , Coimbra, 1979, p. 344-345.
44 A expressão é de Louk Hulsman.
45 Não sem razão dizia Kelsen, de uma perspectiva distinta, que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.
Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser con ­
teúdo de uma norma jurídica”. Teoria Pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.
Paulo Queiroz

abstração sem valor e à espera de conteúdo, cor e significado de acordo com as cir­
cunstâncias particulares que as incrementam .46
Releva notar, por fim, que, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito
em que a dogmática parece ter atingido maior nível de sofisticação, o recurso às
categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se
vem de afirmar. É que, se sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se logi­
camente que também o seu conceito formal-analítico - crime como fato típico, ilí­
cito e culpável - é socialmente construído, de sorte que uma dada conduta será cri­
minosa somente quando dissermos (aceitarmos) que é, uma vez que tais categorias
remetem a conceitos os mais variados: dolo, culpa, significância/insignificância, cau­
salidade, legítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação
física/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencí-
vel/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua
vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida, honra, patrimônio, agressão
justa/injusta, intenção, previsão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, prova líci­
ta/ilícita, exigível/inexigível, valores, princípios etc. Não bastasse isso, o manuseio
de tais conceitos se faz por vezes de modo francamente arbitrário, como acontece,
por exemplo, nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, formado que é por leigos.
Daí dizer Castanheira Neves que “o direito é linguagem, e terá de ser conside­
rado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer
que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito é-o
numa linguagem e como linguagem - propõe-se sê-lo numa linguagem (nas signi­
ficações lingüísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa lin­
guagem, que é”.47

1.4. Leis são necessárias?

Dizendo isso, conviria questionar, sobretudo em virtude da superprodução


legislativa dos últimos anos, em especial, emendas à Constituição e normas penais,
leis, em geral, puramente simbólicas e demagógicas, se a própria atividade legisla­
tiva não seria ela mesma uma atividade desnecessária, inútil, ao menos em relação
aos fins que lhe são tradicionalmente assinalados pelo discurso oficial. Penses nisso:
se em tua casa, tu tiveres necessidade de afixar na parede um aviso, portaria, lei ou
coisa que o valha, advertindo, por exemplo, de que “aqui é proibido matar, estu­
prar,furtar etc.”, em verdade, tu estarás, por um lado, simplesmente proclamando
o óbvio, por outro, se tiveres necessidade de semelhante expediente, é porque em
tua casa as coisas chegaram a uma tal desordem que é evidente que essa simples

46 In A minha irmã e eu. Editora Moraes: S. Paulo, 1992, p. 42-43. Anoto que se trata de um texto um tanto
apócrifo, cuja autoria atribuída a Nietzsche não foi reconhecida por Walter Kaufmann, um de seus maio­
res estudiosos.
47 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 90.
D ireito Penal - Parte Geral

folha de papel não mudará absolutamente nada. E leis são, antes de tudo, folhas de
papel com mensagens impressas.
Parece razoável supor ademais que ninguém deixa de matar, estuprar, furtar etc.
porque existam leis que incriminam tais comportamentos; afinal, as pessoas cometem
ou deixam de cometer crimes porque têm ou não motivação para tanto: emocionais,
psicológicas, morais, culturais, religiosas, econômicas etc. Enfim, as complexas moti­
vações humanas dificilmente podem ser eficientemente debeladas pelo poder mítico
das leis. Não bastasse isso, que legitimidade pode decorrer de leis ditadas por um par­
lamento (em geral) justamente desacreditado, fundado que é num sistema represen­
tativo caduco e a serviço (quase que exclusivamente) dos grupos econômicos que
patrocinam a eleição de deputados e senadores, vereadores, prefeitos etc.?
No particular, a questão fundamental parece residir nisso, porém: pretender
mudar a realidade por meio de leis é grandemente utópico. O melhor exemplo
disso é a própria Constituição Federal cujo projeto de um Estado (Social) e
Democrático de Direito tem sido sistematicamente desacreditado pela realidade,
particularmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos sociais: direito à edu­
cação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outros. Aliás,
combater o racismo, a desigualdade social, o preconceito, o desemprego, a fome
etc. por meio de leis é apenas um modo particular de proclamar retoricamente:
“sejam bons, sejam solidários, sejam éticos, respeitem o próximo etc.”; no essencial,
a Constituição encerra, portanto, uma simples carta de (boas) intenções.
Mas os exemplos disso - inadequação da lei para transformar a realidade - são
inumeráveis no âmbito jurídico-penal, especialmente: a edição de uma lei de cri­
mes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade; a promulgação de uma
lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos; leis
em favor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de
crescer; leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na
infração; leis proibitivas de estupros, tráfico de drogas não parecem evitar tais deli­
tos, mesmo porque o criminoso, antes de decidir praticar uma determinada infra­
ção, não parece fazer uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse res­
peito. Pergunte sinceramente a si mesmo: “por que ainda não pratiquei estupro”?
“por que ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?” É pouco
provável que a resposta seja: “porque há uma lei que o proíbe; e se a lei for revoga­
da, eu o farei”! Pois quem tiver chegado a uma tal resposta, jamais seria obstado
pela simples existência da lei. Ordinariamente, inclusive, o autor de uma infração,
seja qual for, acredita que não será descoberto e segue adiante, se tiver motiva­
ção/disposição bastante para tanto. Note-se ainda que a eventual abolição desses
crimes não significaria autorizá-los, uma vez que tais condutas são proibidas desde
sempre pela moral, pelos costumes, pelas convenções sociais etc.
Parece certo aliás que de certo modo somos todos criminosos, reais ou poten­
ciais, seja por ação, seja por omissão, porque somos capazes de cometer as maiores
violências sob as mais diversas motivações e pretextos, as quais variam de pessoa
Paulo Queiroz

para pessoa, e são mais ou menos vis (poder, dinheiro, ciúme, ódio, inveja etc.).
Enfim, cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos: o decisivo
são sempre as motivações humanas, que mudam permanentemente, as quais podem
ter inclusive, como a história (de ontem e de hoje) o demonstra fartamente, os mais
nobres pretextos: a pátria, o bem, o amor, a honra, a Lei, a Justiça, Deus48 etc.
E de convir, assim, que as leis são (não infreqüentemente) um instrumento
retórico e demagógico de criar uma impressão, uma falsa impressão, de segurança,
criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo
resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efeti­
vação. E as leis parecem assumir nos dias atuais, cada vez mais, uma função mítica,
simbólica. E o legislador tem sabido tirar proveito disso, ao decidir legislar em pro­
fusão, como se a edição de novas leis, ao invés de proteção, não significasse apenas
a multiplicação de novas violações à lei e, pois, mais arbitrariedade.
Por isso é que, se se quiser tomar a sério a legislação, urge adotar um corpo
mínimo de leis: claras, precisas, absolutamente necessárias e com um mínimo de
efetividade social, pois, como há muito disse Montesquieu, as leis desnecessárias
enfraquecem e desacreditam as leis necessárias.
Problemas estruturais demandam soluções também estruturais, mesmo porque
no mais das vezes intervenções individuais apenas servem para manter as coisas
como estão, a pretexto de mudá-las e, pois, têm caráter essencialmente conservador.

1.5. Direito e arte

Parece certo que, por mais que estudemos literatura, teatro ou pintura, é
pouco provável que um dia escreveremos como um Tolstoi, representaremos
como um Charles Chapim ou pintaremos como um Picasso. E que a arte, movida
grandemente pela inspiração, requer qualidades que estão além da técnica, que
pode eventualmente ajudar a aperfeiçoá-las, mas que dificilmente fará de um
desafinado um virtuoso.
Talvez se possa dizer o mesmo do direito: uma excelente formação dogmática
não é garantia de decisões justas, porque a técnica, no direito como na arte, só pode
oferecer, na melhor das hipóteses, isso: decisões tecnicamente corretas. Mas deci­
sões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas, assim como
decisões tecnicamente incorretas não são necessariamente decisões injustas (v.g.,
algumas decisões do tribunal do júri). E que uma boa interpretação, na arte como
no direito, mais do que técnica e razão, exige talento e sensibilidade. E a técnica
jurídica é apenas um meio a serviço de um fim: a justiça.

48 Em nome de Deus, por exemplo, foi e é cometida toda sorte de violência: a noite de São Bartolomeu, o
extermínio dos cátaros (ou albigenses), as cruzadas, a inquisição, os massacres patrocinados por Moisés
(Êxodo, 32: 27 e 28) ou Josué (6:21) e seus atuais seguidores: Bin Laden, Bush, além de outras formas sutis
atuais de violência, como a discriminação contra homossexuais etc.
D ireito Pen al - Parte G eral

Existem outras semelhanças entre direito e arte. Ainda hoje é muito comum
confundir lei e direito, como se fossem a mesma coisa. No entanto, confundir lei e
direito eqüivale a confundir partitura e música, que são, obviamente, coisas distin­
tas, podendo inclusive existir uma sem a outra. Com efeito, é perfeitamente possí­
vel produzir sons, melodias e música, como é comum aliás, e principalmente com­
por, sem partitura alguma, a revelar que a música independe da partitura. Pois bem,
o mesmo ocorre com o direito: é possível decidir casos sem nenhuma lei: basta pen­
sar nos conflitos havidos em comunidades mais primitivas (v.g., indígenas) ou no
com m on law , além dos inúmeros casos não disciplinados pela lei (lacuna legal). O
direito, como a música, existe com ou sem lei, com ou sem partitura.
Mas o mais importante parece residir nisso: uma mesma partitura pode ser
tocada de mil formas e ritmos, como, por exemplo, na forma de música clássica,
rock, samba etc. E cada um desses ritmos e sons variará conforme o seu intérprete,
suas influências, experiência, talento, necessidades etc. Também assim é a lei: uma
lei, por mais clara e precisa, pode ser interpretada de diversos modos, variando con­
forme os pré-conceitos, influências, experiências, motivações e sensibilidade do
seu intérprete. A lei é uma partitura que pode ser interpretada de mil formas,
embora nem todas possam ser plausíveis.
Não se deve, pois, confundir lei e direito, assim como não se deve confundir
partitura e música: a música é o que decorre da execução do músico; o direito é o
que resulta da interpretação do juiz ou tribunal. O direito, como a música, não é a
lei nem a partitura: o direito é interpretação. Algumas interpretações julgamos boas
e aplaudimos, outras julgamos ruins e condenamos.

2. Direito penal, criminologia e política criminal

Distingue-se direito penal, criminologia e política criminal.


A criminologia - expressão que remonta ao antropólogo francês Topinard (1879)
- é uma ciência empírica e interdisciplinar que se ocupa do estudo do crime, da pes­
soa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento criminoso, e que tra­
ta de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e va­
riáveis principais do crime, assim como os programas de prevenção e controle social.49
Portanto, o objeto da criminologia já há algum tempo ampliou sensivelmen­
te, para nele se incluir, além do delito e do delinqüente e suas causas - paradigma
causal-explicativo (ou etiológico-explicativo), próprio da criminologia positiva50 - ,

49 García-Pablos, Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos, trad. Luiz Flávio Gomes. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. Kaiser define a criminologia como “o conjunto ordenado dos saberes
empíricos sobre o delito, o delinqüente, o comportamento socialmente negativo e sobre os controles de sua
conduta”. Incroducción a la criminologia, trad. Rodriguez Devera, 7. ed., Madrid: Dykinson, 1988, p. 25.
50 A chamada criminologia positiva, cujos principais representantes foram Ferri, Lombroso e Garofalo, preo­
cupava-se essencialmente em identificar as causas do crime e meios de combatê-lo eficazmente; propu­
nha uma classificação dos criminosos (nato, habitual, ocasional, louco etc.) e meios de corrigi-los, a fim de
evitar novos crimes.
o estudo da vítima e, em especial, da reação e do controle social mesmo. Diferen­
temente do direito penal, que é uma ciência do dever-ser (normativa), a crimino-
logia é uma ciência do ser, empírica, baseada na análise e na investigação da reali­
dade, por isso que, enquanto a criminologia se serve de um método indutivo, empí­
rico, o direito penal se utiliza dum método lógico, abstrato e dedutivo.51
Já a política criminal, como parte da política, constitui a sistematização das
estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade,52 penais e não
penais; diz respeito enfim à gestão política dos conflitos humanos por parte do
Estado, gestão que compete não só ao legislador e autoridades administrativas, mas
a todos aqueles que de algum modo operam com o direito penal, especialmente jui­
zes, membros do Ministério Público, polícias etc.
Apesar disso, criminologia, política criminal e direito penal caminham, como
ressalta García-Pablos, no sentido de um modelo integrado, imposto pela necessi­
dade de um método interdisciplinar e pela unidade do saber científico. A crimino­
logia deve incumbir-se, assim, de fornecer o substrato empírico do sistema, seu
fundamento científico; a política criminal, de transformar a experiência crimino-
lógica em opções e estratégias concretas de controle da criminalidade; por último,
o direito penal deve encarregar-se de converter em proposições jurídicas, gerais e
obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal,53 devendo o
direito penal ser criminologicamente fundado e político-criminalmente orientado.
Cabe afirmar, finalmente, com Baratta, que, dentre todos os instrumentos de
política criminal, o direito penal é o mais inadequado,54 sobretudo em razão da vio­
lência estrutural que lhe é inerente, de sorte que não se deve confundir controle da
criminalidade com controle penal, em face das múltiplas possibilidades de política
social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação.

2.1. D ireito penal e política crim inal: há distinção realm ente?

Como se vê, a doutrina distingue direito penal, política criminal e criminolo­


gia, recorrendo, ainda que não explicitamente, à estrutura tridimensional do direi­
to: a criminologia se ocupa do crime enquanto fato; a política criminal, enquanto
valor; o direito penal, enquanto norma.55
Mas não é tão fácil estabelecer uma distinção nítida entre política criminal e di­
reito penal. Primeiro, porque o direito penal é um fenômeno político por excelência.56

51 García-Pablos, Criminologia, cit., p. 26-27.


52 Kaiser, Introducción a la criminologia , cit., p. 52.
53 García-Pablos, Criminologia, cit., p. 97-98.
54 Criminologia crítica y crítica dei derecho penal : introducción a la sociologia jurídico-penal, trad. Álvaro
Búnster, 4. ed.. Bogotá: Siglo Veintiuno Ed., 1993, p. 214.
55 Mir Puig, D erecho penal : parte general. Barcelona, 1998, p. 16.
56 O direito é uma espécie de armadura que veste e protege o corpo político, isto é, as estruturas de poder
existentes numa dada sociedade, que são as forças políticas em combate permanente. E se é de combate
que estamos falando, é de prever que os grupos mais vulneráveis, social, econômica e politicamente, sejam
D ireito Penal - Parte Geral

Afinal, sua existência mesma não decorre de uma necessidade moral, religiosa ou
ética, mas política: se num determinado momento o Estado entendeu - e ainda
entende - de se valer de leis e instituições penais para responder a determinados
conflitos, assim o fez por julgá-lo necessário à sua própria afirmação enquanto
poder. Além disso, e conforme assinala Foucault, “a lei nasce das batalhas reais, das
vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a
lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos
inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. Mas isso não quer dizer que
a sociedade, a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras, ou a san­
ção definitiva das vitórias. A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua
a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regu-
lares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas
engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guer­
ra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns con­
tra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e per­
manentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo
ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”.57
Segundo, porque a atividade do juiz é uma tarefa inevitavelmente criado­
ra, por quatro razões, ao menos, conforme assinala Robert Alexy: l 3) a incerteza da
linguagem jurídica; 2a) a possibilidade de conflitos entre normas; 3a) a ocorrência
de lacuna da lei; 4a) a possibilidade, em casos especiais, de se tomarem decisões con­
tra a letra da lei .58 E num contexto que se pretende democrático mais se acentua o
caráter criador da atividade judicial, porque a Democracia é o lugar da indetermi-
nação e da invenção, não havendo, conseqüentemente, espaço para verdades defi­
nitivas e, portanto, um único sentido, uma única resposta.59
Ademais, os limites impostos à atividade judicial e doutrinária, por traduzi­
rem, essencialmente, garantias em favor do cidadão (legalidade, proporcionalidade
etc.), as quais têm, assim, um caráter marcadamente político, tudo isso aliado à abs­
tração e vagueza dos conceitos e institutos jurídico-penais (v. g., estado de necessi­
dade, culpabilidade, crime continuado), permitem múltiplas possibilidades de in­
terpretação e aplicação válidas do direito. Por último, desde 1970 entende-se que a

suas principais vítimas, e é sob este aspecto que se deve entender a arbitrária e discriminatória seletivida­
de do sistema penal. Conseqüentemente, o direito, como realização da política, será menos injusto à medi­
da que houver menos injustiças sociais e maior equilíbrio entre as forças políticas, pois ele é a vestimen­
ta, e não o corpo. Portanto, tinha razão, no particular, Ihering, quando dizia que o fim do direito é a paz,
o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injusti­
ça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta, pois a vida do
direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos (cf. A luta p elo direito, São
Paulo: Ed. Martin Claret, 2004, p. 27).
57 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp. 58-59.
58 Teoria da argumentação jurídica , trad. Zilda Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 268.
59 Samantha Chantal Dobrowolski, A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir
da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2002, p. 120-121.
Paulo Queiroz

dogmática penal deve estar político-criminalmente orientada, segundo as bases do


Estado Constitucional de Direito (Funcionalismo), conferindo-lhe, desse modo, um
papel instrumental e auxiliar da política criminal. E sob essa perspectiva, as cate­
gorias e conceitos fundamentais do sistema tradicional são vistos como instrumen­
tos de valorações político-criminais, uma vez que os pressupostos da punibilidade
têm de orientar-se segundo os fins do Direito Penal.60
Finalmente, sabe-se hoje que o delito, que não tem consistência material ou
ontológica, é socialmente construído (teoria do etiquetamento), tendo o direito
penal um papel importante nessa definição (rotulação) do que seja crime e crimi­
noso, já que é ele que fornece a ferramenta dos que atuam com o sistema penal.
Nesse contexto, a lei penal configura, como diz Vera Andrade, apenas um marco
abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam de
ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma
atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial da criminalidade, pois
entre a seleção abstrata e provisória da lei e a seleção definitiva operada pelos agen­
tes de criminalização secundária (Polícia, Ministério Público, Judiciário etc.)
medeia um complexo e dinâmico processo de refração.61
E se a Constituição Federal, alfa e ômega do ordenamento jurídico e, pois, o
começo e fim da atividade judicial (e doutrinária), não estabelece fórmulas mate­
máticas para solução dos casos penais, declarando, principalmente, em termos
gerais e abstratos, o que os seus intérpretes não podem fazer, mas não o que podem
—limites essencialmente negativos de atuação força é convir que o juiz e o dou-
trinador dispõem, por conseguinte, de ampla liberdade de argumentar jurídica e
validamente.
Assim, não pode o juiz condenar alguém à pena de morte, à prisão perpétua
ou à mutilação de membros. Mas nada impediria, se tais penas fossem admitidas, de
deixar de aplicá-las em nome de determinados valores constitucionais, como a dig­
nidade da pessoa humana. Também por isso, nada o obsta de, a despeito de não
existir previsão legal para tanto, adotar o princípio da insignificância nalguns casos,
entender que a reparação do dano extingue a punibilidade no crime de emissão de
cheque sem provisão de fundos (Súmula 554 do STF) ou admitir a remição por estu­
do (Súmula 341 do STJ) etc.

60 Roxin, Funcionalismo e teoria da imputaçao objetiva, trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
231-232. No mesmo sentido, Munoz Conde, seu discípulo, assinala que “uma dogmática absolutamente
neutra, política ou valorativamente, não pode existir. A relação entre Dogmática jurídico-penal e Política
criminal é, portanto, inevitável. Trata-se de saber, então, de que Política estamos falando; se de uma coe­
rente com os valores do Estado de Direito, a democracia, e o respeito dos direitos humanos; ou de uma
baseada na manutenção das desigualdades sociais, dos privilégios de uns poucos sobre a maioria, a supe­
rioridade da raça ariana, a instrumentalização do ser humano a serviço de valores coletivos ou estatais, ou
a negação dos direitos humanos mais elementares, como ocorreu com o Estado nacional socialista”.
Edmundo Mezger y el derecho penal de su tiempo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 77.
61 A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Ed., 1997, p. 260.
D ireito Penal - Parte Geral

Nesse sentido, as normas penais expressam, sem dúvida, um dado modelo


político-criminal ou, mais exatamente, vários modelos políticos (liberais, conserva­
dores etc.). Falar de direito penal é falar, assim, de um modelo político normatiza-
do que, em razão das múltiplas possibilidades de interpretação e mudança do con­
texto sociocultural, jamais será um modelo estático, mas dinâmico sempre, em per­
manente transformação. Por isso é que, por exemplo, nenhum autor se arvoraria a
defender nos dias atuais, como no passado, que o marido, em razão dos deveres do
casamento, não pode ser sujeito ativo do crime de estupro.
Disso também resulta que a atividade judicial constitui uma atividade políti­
ca por excelência ,62 mesmo porque, conscientemente ou não, o juiz adere sempre
a uma dada concepção político-criminal, dentre as várias possíveis, ainda quando
supõe de forma acrítica estar julgando “rigorosamente conforme a lei”, lei que já é
em si uma expressão política ,63 de sorte que decisões jurídicas são decisões políti­
cas. Por exemplo, em face de uma denúncia por tráfico de pequena quantidade de
droga, o juiz pode em tese adotar as seguintes decisões: 1) absolver o réu, por enten­
der inconstitucional toda norma penal em branco heterogênea, por remeter a sua
complementação a uma norma de grau inferior, no caso, uma simples portaria do
Ministério da Saúde; 2) absolver o réu, por julgar que, embora constitucional o arti­
go em questão, é insignificante a quantia apreendida; 3) condenar o réu a uma pena
intermediária (entre 5 e 15 anos de prisão); 4) condenar o réu a uma pena inferior
ao mínimo legal (4 anos de prisão), admitindo a substituição por pena alternativa,
apesar da vedação legal no particular; 5) entender que o caso não é de tráfico, mas
de porte para consumo etc.
Ao d ecid ira lide, por conseguinte, o juiz, a pretexto de aplicar a lei, faz, neces­
sariamente, dentro da le i e segundo a sua formação (liberal, conservadora etc.) polí­
tica criminal no caso concreto. A descoberta do direito é, portanto, como observa
Roxin, consideravelmente mais do que a aplicação de uma lei já determinada em
todos os seus detalhes por meio de um processo lógico de dedução. Ela é, muito
mais, a concretização de uma moldura contida na regra legal, e, ao desenvolver,
criativamente, as finalidades do legislador, faz verdadeira política criminal sob o
manto da dogmática.64 Daí se afirmar que a tarefa do juiz é construtiva e performa-
tiva, porque decide à semelhança de um diretor de cinema, que grava por horas
para editar um filme de poucos minutos, cuja síntese final é o resultado de uma

62 Não necessariamente político-partidária, exceto naqueles países em que os juizes são eleitos pelo voto e
são filiados a um partido político.
63 Como observa Hassemer, carece de sentido afirmar que o juiz tem de se ater, estritamente, ao sentido lite­
ral da lei, desconhecendo a vagueza e porosidade dos conceitos legais e as diferentes formas que têm os
juizes de compreendê-los, pois, se é verdade que a atuação judicial tão-só estabelece o marco do significa­
do das palavras da lei mediante a interpretação desta em relação ao caso, então a concepção rigorosa da
vinculação do juiz não mudará este fato, senão que o ocultará simplesmente (El pensam iento filosófico
contem porâneo. Madrid: Debate, 1992, p. 210).
64 Funcionalismo, cit., p. 245.
Paulo Queiroz

operação de montagem, isto é, de um sem-número de seleções e abduções, de con-


tinuidades e descontinuidades, de repetições e silêncios constitutivos de sentido .65
Ao sentenciar, portanto, o magistrado monta, a partir de pretensões de validade
enunciadas pelas partes, o que se chama verdade processual, lançando mão das pro­
vas, dos significantes produzidos validamente, manejando a técnica de bricolagem
jurídica, ou seja, construindo com o que tem à mão, sem o pretendido controle
racional total, existindo uma compulsão de dizer o indizível, onde a palavra falha: o
espelho da realidade na escrita que insiste em nomear, em reduzir, em racionalizar.66
Por isso, afirma Maiwald, com razão, que “não existe um limite rígido entre
política criminal, Direito Constitucional e dogmática jurídico-penal”,67 mesmo
porque o dogmático deve, tanto quanto o legislador, argumentar político^criminal-
mente, tendo de terminar de pintar, em todos os seus detalhes, o quadro do direi­
to vigente que o legislador só pode desenhar em suas linhas mestras.68 E mais dis­
cutível ainda é esta delimitação quando se entende a ciência penal não como a
mera descrição do direito como é, mas como a projeção do direito que deve ser
(Filangieri).
E bem verdade, como observa Roxin, que política criminal e dogmática não
têm as mesmas competências, pois do contrário se estaria igualando o juiz ao legis­
lador, violando o princípio da divisão de poderes, e que “a dogmática deve, muito
mais, realizar política criminal dentro da moldura da lei, isto é, dentro dos limites
da interpretação”.69 Mas isso só confirma que dogmática e política criminal são
modos de encarar e enfocar um mesmo problema - o problema da criminalidade
os quais não se opõem nem se repelem, mas, antes, se atraem e se completam
mutuamente, mesmo porque o direito não é senão um momento da política, razão
pela qual não pode nem deve a “ciência penal” simplesmente pretender descrever
o direito, mas sobretudo criticá-lo permanentemente, com vistas a implementar
não apenas um direito penal melhor, mas algo melhor do que o próprio direito
penal (Radbruch).

3. Direito penal e controle social

A vida em sociedade, precisamente porque assim o é, está sujeita a uma mul­


tiplicidade de regras de convivência, que surgem naturalmente das múltiplas inte­
rações sociais que nela se processam. Com efeito, já por ocasião do nascimento, ou
mesmo antes disso, isto é, durante a gestação, sofremos, indefesos, e de forma ine­

65 Carlos Maria Cárcova. Ficción y verdad en la escenadei Derecho, in Direito e Psicanálise:inteseções a


partir de “O Processo", de Kafka. Rio de Janeiro:2007, LumenJuris,coordenador Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho.
66 Alexandre Morais da Rosa. Decisão penal: A bricolagem de significantes. Rio: Lumen Juris editora, 2006,
p. 365-366.
67 Apud Roxin, Funcionalismo, cit., p. 245.
68 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 245.
69 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 245.
D ireito Penal - Parte G eral

vitavelmente autoritária, os efeitos da socialização, que decorre do convívio fami­


liar; mais tarde, e concomitantemente a essa socialização primária, seremos subme­
tidos à socialização escolar, do trabalho, do esporte, da religião, da moral, da im­
prensa, das normas de convenção social etc. Vale dizer, a submissão a regras de
comportamento é tão natural quanto o ato mesmo de existir. A socialização é, por­
tanto, um fenômeno onipresente na ordem social: a todos persegue, a todo o tempo
e em toda parte.
A ordem jurídica e o Estado, sob essa perspectiva, não são, portanto, mais do
que o reflexo ou a superestrutura de determinada ordem social incapaz por si
mesma de regular a convivência de modo organizado e pacífico ,70 motivo pelo qual
o direito não pode ser compreendido senão em referência (e a partir) ao sistema
social em que se insere. Porque as normas jurídico-penais, consideradas em face do
sistema social e do próprio direito, não são senão um dos muitos instrumentos diri­
gidos à socialização do homem. O direito penal, em relação ao sistema social glo­
bal, é um subsistema de controle social, puramente confirmador de outras instân­
cias (família, escola) bem mais sutis e eficazes.71
Portanto, a norma penal não é o começo da socialização, mas a sua culmina­
ção. Não é todo o controle social, nem sequer é sua parte mais importante; é, mais
propriamente, como diz Munoz Conde, a parte visível de um iceberg, em que o que
não se vê (as outras instâncias formais e informais de controle) é talvez o que real­
mente importa, mesmo porque a norma penal não cria valores, nem constitui um
sistema autônomo de motivação do comportamento humano.72 Em conseqüência,
o subsistema penal como um todo ocupa e há de ocupar, dentro do sistema social,
um papel menor, secundário, já que sua função é subsidiar a intervenção de outras
instâncias de controle. Por isso que o direito penal - parte da maquinaria pesada do
Estado - só tem sentido se considerado como continuação de um conjunto de ins­
tituições, públicas ou privadas, cuja tarefa consiste igualmente em socializar e edu­
car para a convivência os indivíduos, por meio da aprendizagem e da internaliza-
ção de certas pautas de comportamento,73 motivo pelo qual somente deve ser uti­
lizado quando as demais instâncias de controle social se revelarem insuficientes. O
direito penal é a ultima ratio do controle social formal.
Se pensarmos, por exemplo, na conduta de quem emite cheque sem fundos,
dolosamente, fato ainda hoje tipificado como crime (CP, art. 171), teremos uma
idéia clara da complexidade do controle social, atuando concorrentemente com a
intervenção jurídico-penal, a saber: censura social, perda do crédito; pagamento de
juros, encerramento da conta bancária, inscrição do nome em serviços de proteção
ao crédito (sanções administrativas); protesto e/ou execução forçada do título (san­

70 Munoz Conde. D erecho penal y control social, Fundación Universitaria de Jerez. ferez: 1985, p. 24.
71 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
72 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
73 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 37.
Paulo Queiroz

ção civil); e, por fim, já agora intervindo o direito penal: indiciamento em inquéri­
to policial. E, a se tomar a sério todo esse controle prévio e/ou concomitante ao
direito penal, resultará bastante questionável a sua necessidade e adequação mesma.

4. Direito penal e moral

Muito próximas, e não raro confundidas, são as relações entre direito penal e
moral.74 Há quem afirme inclusive, como Maggiore, que o direito não é senão um
momento da vida moral ou ética.75 Entretanto, sob a égide de um Estado formal­
mente secular, como é o Estado Democrático, moral e direito não podem ser con­
fundidos, porque, enquanto a primeira visa ao aperfeiçoamento ético do homem, o
segundo quer exclusivamente possibilitar a convivência social, independentemen­
te de lograr, com fazer prevalecer suas prescrições, adesões morais por parte de seus
destinatários. Porque, como diz Rodriguez Mourullo, o direito se ocupa dos com­
portamentos na medida em que transcendam à ordem social exterior, e não pelo
que estes representam em si mesmos do ponto de vista moral, uma vez que sua fun­
ção é bem menos ambiciosa: pretende unicamente evitar as conseqüências pertur­
badoras da paz que tais condutas produzem na ordem social exterior .76
E não poderia ser diferente, até porque o respeito à moral supõe espontanei­
dade, ao passo que o direito não pode existir senão por meio da coercibilidade, isto
é, por meio da possibilidade de apelo à força, para impor suas determinações.
Assim, não pode haver uma coincidência absoluta entre preceitos morais e jurídi­
cos, pois do contrário o Estado, violando o pluralismo ideológico que a adoção do
sistema democrático implica, se converteria em Estado policial simplesmente, tal
como se pretendeu com o Livro V das Ordenações Filipinas.77 Por isso é que, por
mais imorais que sejam ou pareçam ser certos comportamentos, não se justifica a
intervenção penal salvo se forem especialmente lesivos de bem jurídico alheio
(princípio da lesividade ou de proteção de bens jurídicos).78 Não obstante isso, ain­

74 A rigor, não existe uma moral, mas “morais”, de sorte que a própria lei, independentemente de seu con­
teúdo, não deixa de ser a expressão de uma determinada moral; e mesmo uma proposta de abolição da
moral - assim, um hedonismo à Sade na verdade, abolição de uma certamoral (a moral dominante),
seria ela mesma uma forma moral; mais: não existem fenômenos morais,mas apenas uma interpretação
moral dos fenômenos (Nietzsche).
75 D erecho penal, trad. J. Ortega Torres. Bogotá: Ed. Temis, 1971, p. 24-25.
76 Derecho penal: parte general. Madrid: Ed. Civitas, 1978, p. 20.
77 Já o nome de alguns dos títulos revela a confusão entre crime e pecado, entre moral e direito: "dos here-
ges e apóstatas”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães”, “dos que cometem pecado de sodomia e com ali-
márias”, respectivamente, Títulos I, III, IV e XIII.
78 Como diz Fernández Carrasquilla, o direito penal não é um instrumento de moralização ou de aperfeiçoa­
mento espiritual do homem, senão um instrumento para a preservação da paz social, pois, supor que ele
se presta à persecução do primeiro fim, significaria contrariar a liberdade de consciência e, portanto, o
pluralismo ideológico e a tolerância moral e ideológica que aquela implica. Concepto y limites dei dere­
ch o penal. Bogotá: Ed. Temis, 1992, p. 23-24,
D ireito Penal - Parte Geral

da existem no Código Penal diversos crimes que há muito deveriam ser abolidos,
como casa de prostituição (CP, art. 229), mesmo porque, a pretexto de afirmar a
liberdade sexual, a lei acaba por suprimi-la, legitimando dupla violência: contra a
suposta vítima, a quem se nega o direito de decidir por conta própria, e contra seu
parceiro/cliente, que é tratado como criminoso, ficando sujeito à pena.
Existe assim um âmbito da vida pessoal intocável pelo poder do Estado e a res­
guardo do controle público e da vigilância policial: não só as interações e os proje­
tos, mas também os erros de pensamento e de opinião.79
Apesar da distinção, não convém que as normas jurídicas contradigam as
morais, não propriamente para moralizar seus destinatários, mas para que possam ser
efetivamente respeitadas como referencial normativo, porque, como disse Savigny, o
direito serve à moralidade, não porque execute seus preceitos, mas porque assegura a
livre evolução de sua força.80 Ignorá-lo constitui um dos problemas mais sérios da
legislação penal contemporânea, que se expande sem qualquer critério, criminalizan­
do condutas moralmente indiferentes, a exemplo da legislação ambiental, que, den­
tre tantas tolices, tipifica a ação de “destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qual­
quer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em pro­
priedade privada alheia”, ainda que culposamente (Lei ne 9.605/98, art. 49).
Daí dizer Baumann que uma comunidade que, para sua convivência, tenha
adotado normas com cominações penais contrárias à lei moral não seria uma comu­
nidade jurídica, mas uma quadrilha de ladrões.81 Obviamente que seria um absur­
do manifesto, por exemplo, uma norma penal que, a fim de assegurar o crescimen­
to demográfico, considerasse crime “resistir ao estupro” ou similar.
Portanto, é correto dizer, com Ferrajoli, que a imoralidade é uma condição
necessária, mas jamais por si só suficiente para justificar politicamente a interven­
ção coercitiva do Estado na vida dos cidadãos.82
Mas é certo que o legislador por vezes transige com institutos claramente imo­
rais, a demonstrar que o direito é (também) uma dimensão da política. Assim, por
exemplo, quando adota nalguns casos específicos a chamada delação premiada, por
cujo meio premia o criminoso - prêmio que pode consistir na redução da pena ou
na extinção da punibilidade - que delata/trai seus comparsas.

4.1. Deus e o D ireito

Diz Michel Onfray que, apesar do triunfo (aparente) dos ideais do Iluminis-
mo, que sonhara com um direito laico e que, portanto, distinguisse e separasse,

79 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 482.


80 Citado por Baumann, D erecho penal: conceptos fimdamentales y sistema, trad. Conrado A. Finzi. Buenos
Aires: Depalma, 1981, p. 12.
81 D erecho penal, cit., p. 3.
82 D erecho y razón, cit., p. 222.
Paulo Queiroz

muito claramente, direito e moral, direito e religião, crime e pecado, ainda hoje a
episteme do direito permanece judaico-cristã, pois no essencial se mantém fiel aos
seus valores fundamentais.83 Afirma que, embora os tribunais de justiça da França
não possam ostentar símbolos religiosos nem proferir decisões com apoio na Bíblia,
no Alcorão ou na Torá, “nada existe no direito francês que contravenha essencial­
mente as prescrições da igreja católica, apostólica e romana”.84 Diz mais: o saber e
a metafísica do direito provêm diretamente da fábula do paraíso original, versão
monoteísta do mito grego de Pandora: o homem é livre, e, pois, responsável e cul-
pável; logo, por ser dotado de liberdade, pode decidir e preferir uma coisa a outra
num universo de possibilidades.85*86
Assim, o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição
moral cristã por outros meios, já que todos aqueles que dele se utilizam (legislado­
res, juizes, promotores, advogados etc.) seriam meros portadores, conscientes ou
não, dos valores cristãos; por sua vez, a moral seria a continuação da religião; o
conhecimento, um continuum da moral e da religião, embora por meios diversos.87
Por conseguinte, a tão propalada separação entre direito e moral, entre direito e
religião, entre crime e pecado, seria mais aparente do que real, afinal os dois mil
anos de história e dominação ideológica do cristianismo continuariam a forjar os
sujeitos, ditando-lhes o modo correto de nascer, viver e morrer.88
Será isso exato, especialmente em relação ao direito brasileiro?
Bem, se tomássemos como referência o Livro V das Ordenações Filipinas, que
vigorou, entre nós, de 1603 a 1830, típica legislação medieval contra a qual se

83 De acordo com Emst Cassirer, a consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhe­
cimento, da arte, do direito e da moral, as formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se
encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa. Linguagem e mito. S. Paulo: 2006, p. 64.
84 Tratado de ateología, física de la metafísica. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 2005, p. 73.
85 Idem, p. 73.
86 No particular, ele escreve o seguinte: “a máquina da colônia penitenciária de Kafka repercute diariamen­
te nos palácios chamados de Justiça europeus e em suas prisões contíguas. O choque entre o livre-arbítrio
e a eleição voluntária do Mal que legitima a responsabilidade, portanto, a culpabilidade, portanto o casti­
go, pressupõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a obra pós-cristã de Freud
ilustra através da psico-análise e a de outros filósofos que demonstram o poder dos determinismos incons­
cientes, psicológicos, culturais, sociais, familiares, etológicos etc.”, cit., p. 75.
87 Giles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. Lisboa: Rés-Editora, 2001, p. 148.
88 Naturalmente que isso não constitui uma exclusividade do direito, atingindo todo o conhecimento huma­
no (ético, bioético, pedagógico, político, filosófico etc.). Quanto à psiquiatria, por exemplo, Thomas Szasz
assinala que “o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com
relação às superstições e práticas das caças às bruxas, segundo a interpretação dos propagandistas da
Psiquiatria contemporânea, nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espíri­
to científico do Huminismo, tal como pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria
Institucional é uma continuação da Inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social. O
vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão pseudocientífico que paro­
dia os conceitos da ciência. O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época: é um movi­
mento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade”. A fabricação da loucura.
Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976, p. 56.
D ireito Penai - Parte Geral

insurgiria a filosofia das luzes, não se teria nenhuma dúvida a esse respeito, uma
vez que ali a confusão entre Estado e Igreja era manifesta, conforme se lê de alguns
títulos, como, por exemplo, “dos hereges e apóstatas”, “dos que arrenegão ou blas-
femão de Deos, ou dos Santos”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães, ou bichos
sem autoridade d’El-Rey, ou dos Prelados” (títulos I, II, III e IV) etc.
Mas poder-se-á dizer o mesmo do Brasil de hoje, que é formalmente uma
“República Federativa”, que se constitui em “Estado Democrático de Direito”, Es­
tado secular, portanto, e que tem como objetivos declarados, dentre outros, “pro­
mover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais­
quer outras formas de discriminação”89 (CF, arts. I 9 e 3e, IV)?
Parece-nos que sim. Desde logo, porque foi o próprio Constituinte que, já no
preâmbulo da Constituição, fez consignar que a promulgava “sob a proteção de
Deus”; conferiu, ainda, efeitos civis ao casamento religioso; reconheceu a união
estável entre o h om em e a m ulher, e não simplesmente entre pessoas, independen­
temente da orientação sexual, restrição que terá importantes (e discriminatórias)
implicações no direito civil, como, por exemplo, sobre a adoção, a sucessão, direi­
tos previdenciários etc., decretando, assim, a clandestinidade das relações entre
pessoas do mesmo sexo, bem como entre parentes, tal como a lei mosaica, que dis­
põe sobre os casamentos ilícitos e as uniões abomináveis. Entre nós, sequer existe
a proibição (explícita) de os juízos e tribunais ostentarem símbolos religiosos, razão
pela qual não é incomum encontrar algum crucifixo exposto em salas de audiência.
Semelhantemente, o Código Penal pune, entre outras coisas, o aborto, a biga­
mia, a mediação para servir à lascívia de outrem, o favorecimento à prostituição, a
casa de prostituição, o rufianismo etc.; o mesmo ocorrendo quando a legislação
especial proíbe a produção, o comércio e o porte de droga ilícita, a revelar quão
presente está no direito o ideal ascético, próprio do cristianismo. É que, no parti­
cular, o legislador, tal como Moisés, está a nos dizer o que é lícito fazer e não fazer
com o corpo, assim como o que é permitido e não permitido consumir/fumar.
No essencial, aliás, as proibições penais coincidem com os dez mandamentos
(não matar, não furtar, não prestar falso testemunho).
Também é certo que muitos temas e discussões não avançam ou sequer são
colocados em pauta, a exemplo do aborto e da eutanásia, justamente em razão de
contrariarem os interesses da Igreja, para a qual a vida é um dom de Deus; logo, um
bem jurídico de que não se pode dispor.
Mas isso não é o mais importante; o mais relevante consiste no seguinte: edi­
tar uma legislação democrática ou laica não significa, necessariamente, adotar um

89 De acordo com Scarlett Marton, para Nietzsche, que critica duramente os valores do cristianismo como
falsos valores, considerado moral dos fracos, a revolução francesa, e seus ideais de igualdade e fraternida­
de, é filha e continuadora do cristianismo, tendo cabido ao primeiro a inversão de valores, ao segundo, a
sua preservação. Scarlet Marton: Nietzsche e a Revolução Francesa, in Extravagâncias: ensaios sobre a filo­
sofia de Nietzsche. S. Paulo: Discurso Editorial, 2001.
Paulo Queiroz

direito democrático ou laico, sob pena de se confundir discurso e realidade, teoria


e práxis. É que o direito, uma prática social discursiva, não é só o que as leis dizem,
mas, sobretudo, o que dizemos que as leis dizem, ou seja, o direito não é fato (um
objeto físico), mas interpretação, de sorte que, em última análise, o direito não resi­
de propriamente nos fatos ou nas normas, mas na cabeça das pessoas. Numa pala­
vra, e conforme já o assinalamos: o direito, tal qual o justo e o injusto, o ético e o
estético, é em nós que ele existe, motivo pelo qual, com ou sem alteração da reda­
ção dos textos legais, está em permanente transformação; decisiva, portanto, não é
a lei, mas o homem. E se de fato somos forjados segundo a tradição judaico-cristã,
segue-se que o direito expressará, necessariamente, esses valores.
Dito de outro modo: a pretexto de atuarem em nome da lei, juizes e-tribunais
atuariam, em verdade, em nome de Deus, o Deus do cristianismo. Afinal, embora
façamos como se a religião já não houvesse impregnado e penetrado nas nossas
consciências, corpos e almas, certo é que falamos, vivemos, amamos, sonhamos,
imaginamos, sofremos, pensamos e julgamos segundo o ensinamento judaico-cris-
tão, moldado por mais de dois mil anos de monoteísmo bíblico .90
O parecer de Onfray, ateu e hedonista, sobre tudo isso é muito claro: os três
monoteísmos, movidos por sua pulsão de morte genealógica, compartem de idên­
ticos desprezos: ódio à razão e à inteligência; ódio à liberdade; ódio a todos os livros
em nome de um único (a Bíblia, o Alcorão e a Torá); ódio à vida, ódio ao corpo, aos
desejos e pulsões. Em seu lugar, o judaísmo, o cristianismo e o islã defendem a fé e
a crença, a obediência e a submissão, o gosto pela morte, e paixão pelo além, o anjo
assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe,
a alma e o espírito; e tudo isso significa, em última análise: “crucifiquemos a vida e
celebremos o nada”!91

5. Caráter subsidiário do direito penal

A discussão sobre se o direito penal tem caráter constitutivo (original ou pri­


mário) ou subsidiário (sancionador ou acessório) pode ser considerada em dois sen­
tidos: social (ou político) e lógico-sistemático. Quanto ao primeiro, é pacífica a
doutrina no sentido de que o direito penal somente deve ser chamado a intervir
quando fracassem outras instâncias de controle social, como família, escola, traba­
lho, direito civil ou administrativo. Quanto ao segundo, porém, os autores diver­
gem: uns consideram que o direito penal tem natureza subsidiária; outros, consti­
tutiva. Assim, Jescheck afirma que historicamente o direito penal constitui a forma
mais antiga de manifestação do direito e regula, de maneira autônoma, e sem pre­
cisar recorrer a conceitos e funções de outros ramos do direito, áreas extensas,

90 Michel Onfray, op. cit., p. 243.


91 Cit., p. 91.
D ireito Penal - Parte G eral

como o direito à vida, à liberdade ou à honra .92 Entre nós, Cezar Bitencourt diz que
é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do direito penal, e não sim­
plesmente acessória, uma vez que protege bens e interesses não protegidos por
outros ramos do direito, e, mesmo quando tutela bens já cobertos pela proteção de
outras áreas do ordenamento jurídico, ainda assim o faz de forma particular,
dando-lhes nova feição e com distinta valoração .93
Em verdade, o significado do que seja caráter constitutivo ou sancionador do
direito penal já é em si algo mal compreendido (problemático), resultando numa
resposta conseqüentemente obscura. Pensamos, porém, que em ambos os sentidos,
lógico-sistemático ou político-social, se discute uma só e mesma coisa, qual seja, a
conveniência política de apelar ou não ao direito penal para regulação de determi­
nados conflitos, é dizer, saber se são ou não suficientes outras formas de interven­
ção, jurídicas inclusive. Não se discute, portanto, como sugere Jescheck, questão
cronológica, e sim lógica: saber se o ilícito penal pressupõe um ilícito não penal. Em
qualquer sentido, o direito penal é sempre subsidiário e não primário.
Com efeito, a natureza subsidiária - e não principal - do direito penal diante
de outras formas de controle social decorre, em primeiro lugar, da circunstância de
o direito penal constituir como regra a forma mais violenta de intervenção do
Estado na vida dos cidadãos. E se o é, impõe que somente quando não forem real­
mente suficientes outros modos de intervenção cabe recorrer legitimamente ao
direito penal para proteção de bens jurídicos (princípio da proporcionalidade em
sentido amplo). Assim, já não se justifica nos dias atuais a punição da bigamia, por
exemplo, visto ser suficiente a disciplina do direito civil para resguardo da fideli­
dade conjugal e preservação da instituição do casamento: separação, divórcio, anu­
lação. E também discutível para repressão do contrabando ou descaminho (CP, art.
334) a necessidade da pena, em razão da sanção de perda do produto em favor da
União, imposta administrativamente.
O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle
social resulta, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não
se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo à liberdade se se dis­
põe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de viola­
ção ao princípio da proporcionalidade. A natureza secundária das normas penais é,
assim, como diz Maurach, uma exigência político-jurldica dirigida ao legislador.94

92 Tratado de derecho penal, trad. José Luis Manzanares Samaniego, 4. ed.,Granada: Ed. Comares, 1993, p.
46. Não é exato dizer, porém, que a lei criminal tenha precedido à lei civil ou queas comunidades primi­
tivas só tenham conhecido o direito criminal, seja porque é um tanto arbitrário estabelecer, em relação às
comunidades selvagens, uma clara delimitação entre normas civis e penais, seja porque o acasalamento, o
parentesco, as permutas etc. seguiam regras próprias e não necessariamente criminais. Nesse sentido,
Bronislaw Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Ed. UnB, 2003.
93 Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36.
94 D erecho penal: parte general. Buenos Aires: Astrea, 1994, p. 34.
Paulo Queiroz

Mas além dessa subsidiariedade social, existe, como dito, uma subsidiariedade
lógico-sistemática (do direito penal em relação aos demais ramos do direito), que
decorre da unidade lógica do direito, já que, apesar de compartimentado em discipli­
nas, o direito é um só, não devendo haver contradições dentro do sistema. Portanto,
o ilícito, latente ou manifesto, precede à sistematização do direito penal, pois tal já é
antes objeto do direito civil, processual, tributário etc., mas sobretudo objeto do
direito constitucional, porque toda ilicitude nasce originariamente na Constituição
Federal e só derivadamente na ordem infraconstitucional. Dito de maneira mais
clara: quando a Constituição Federal declara (art. 59) que a propriedade é inviolável,
ela está criando a um tempo o lícito e o ilícito. Sim, porque, ao proclamar a inviola­
bilidade da propriedade, a Constituição está por óbvio declarando, de forma originá­
ria e genérica, a ilicitude dos atos que atentem contra esse bem jurídico.
Em conseqüência, caberá ao legislador ordinário, detalhando os limites dessa
ilicitude, eleger com critério os instrumentos de defesa (civil, administrativo, penal)
desse interesse constitucional. Disso cuida o direito civil, quando, disciplinando a
propriedade e a posse, outorga ao proprietário ou ao possuidor o direito de recorrer
à ação reivindicatória ou aos interditos possessórios, ao desforço incontinente etc.,
ante a turbação ou esbulho, de modo a atender e a dar efetividade àquele manda­
mento constitucional de inviolabilidade da propriedade. Também disso trata o legis­
lador penal quando define como crime o furto ou o roubo, que não são senão modos
qualificados de esbulho. Portanto, há uma subsidiariedade lógica entre o direito
penal (e certamente de todo o direito) e a Constituição. Porque, como disse Luiz
Carlos Perez, o direito penal é o braço armado da Constituição nacional.95
Mas essa subsidiariedade se estende também às demais formas de intervenção
jurídica (civil, administrativa, tributária), pois o direito penal quando criminaliza
determinados comportamento o faz, ou deve fazê-lo, só depois de verificado o fra­
casso dessas formas menos danosas de intervenção do Estado. O direito penal não
constitui o ilícito, portanto, limitando-se a reforçar a proteção de interesses já pro­
tegidos, ao castigar mais gravemente condutas que já são sancionados pelo direito
como um todo. O direito penal é um direito residual.
Assim, o direito penal não cria um sistema exclusivo, autônomo, de ilicitudes,
fora ou além da ordem jurídica vigente, mesmo porque, como disse Hungria, a ilici­
tude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só é o dever jurídico,96 ou seja, todos
os preceitos primários penais pressupõem um outro preceito não penal, do qual são o
complemento e reforço.97 Mas isso não^significa que se lhe recuse autonomia em face
dos outros ramos do direito, utilizando-se de conceitos e institutos próprios que nem
sempre coincidem com os utilizados pelos demais ramos do direito.

95 Tratado de derecho pen ai Bogotá: Ed. Temis, 1967, p. 42-43.


96 Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 1, t. 2, p. 30.
97 Grispigni, Diritto penale italiano. Milano, 1947, v. 1, p. 235.
D ireito Penal - Parte Geral

Naturalmente que não se deve tomar em termos absolutos a afirmação de que o


direito penal é a forma mais grave de intervenção do Estado na vida dos cidadãos,
pois pode ocorrer nalguns casos de a intervenção não penal (civil, administrativa)
ser até mais grave, tal como ocorre nos crimes de trânsito em que as sanções admi­
nistrativas muitas vezes são mais pesadas do que as penais.

6. Caráter fragmentário do direito penal

Conseqüentemente, o direito penal não constitui um sistema exaustivo de ili-


citudes ou de proteção de bens jurídicos (vida, integridade física, honra), mas des­
contínuo, fragmentário, já que sua intervenção pressupõe o insucesso de interven­
ções outras. É que o direito penal seleciona e tipifica condutas atendendo à rele­
vância do bem jurídico, e segundo a intensidade da lesão de que se trate, outorgan­
do-lhes uma proteção relativa. Portanto, não se protegem todos os bens jurídicos,
mas só os mais importantes, nem sequer os protege em face de qualquer classe de
atentados, mas tão-só em face dos ataques mais intoleráveis.98
Assim, nem mesmo o direito à vida recebe proteção penal absoluta, pois, por
exemplo, atos simplesmente preparatórios que visem a sua eliminação são como
regra jurídico-penalmente irrelevantes; e ordinariamente só reprime ações dolosas;
aliás o próprio direito penal tolera a morte quando autoriza o aborto necessário ou
sentimental (CP, art. 228), ou seja, o bem jurídico vida recebe uma proteção ape­
nas fragmentária. Subsidiariedade e fragmentariedade são assim verso e reverso de
uma mesma moeda: a relatividade dessa proteção extrema.

7. Ilícito penal e ilícito não penal

Em razão do que se vem de afirmar, não se pode cogitar, por força da unida­
de do direito inclusive, duma distinção qualitativa, mas quantitativa, entre o ilíci­
to penal e o ilícito não penal. Com efeito, definir ou não determinados comporta­
mentos como delituosos ou contravencionais, para os submeter a seguir a uma dis­
ciplina especialmente dura (o direito penal), é uma questão de conveniência polí­
tica. A distinção entre, por exemplo, as sanções penais e as administrativas é pura­
mente quanto ao maior rigor entre elas (diferença de grau). Assim, enquanto o
direito administrativo/tributário pune o autor dç contrabando ou descaminho com
a perda das mercadorias apreendidas, o Código Penal (art. 334) responde a essa
mesma conduta com pena de prisão de um a quatro anos; enquanto o direito civil
reprime o homicídio culposo com a reparação do dano, o direito penal apela à pena
de um a três anos de prisão (CP, art. 121, § 3a). E em todos os casos, se julgar bas­
tante a repressão administrativa ou civil, o Estado pode renunciar à intervenção

98 Rodriguez Mourullo, D erecho pen a i cit., p. 19.


Paulo Queiroz

penal, descriminalizando o comportamento em questão. Porque na diversidade de


tratamento dos fatos antijurídicos a lei não obedece a um critério de rigor científi­
co ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos, mas a um ponto de vista
de conveniência política, variável no tempo e no espaço."

8. Legislação especial

O Código Penal, como de resto os demais códigos, constitui, em nível infra-


constitucional, a legislação penal fundamental. Mas fora dos códigos existe uma
legislação especial cada vez mais profusa, definindo novos crimes e, por vezes, esta­
belecendo novos critérios de imputação jurídico-penal, a exemplo da Lei nQ9.605/98
(Lei de Crimes Ambientais), que adotou a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Exatamente por isso, dispõe o art. 12 que as regras gerais do Código aplicam-
se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso.
Vigora, no particular, o princípio da especialidade, portanto: a lei especial prevale­
ce sobre a lei geral sempre que dispuser diversa ou contrariamente (lex especialis
derogat legi generali).
Nem poderia ser diferente, já que a lei especial é editada justamente para dar
tratamento melhor e mais sistematizado a determinados temas, seja criminalizan­
do novos comportamentos, seja penalizando mais duramente, seja descriminalizan­
do, seja despenalizando etc.. Por vezes, a mesma conduta acaba por ser criminali­
zada múltiplas vezes inclusive, numa clara ofensa ao princípio n e bis idem ,
Pois bem, apesar de a lei especial prevalecer, em princípio, sobre a lei geral, o
Código Penal, por ser a legislação penal fundamental, é-lhe aplicável relativamen­
te às regras gerais, desde que a lei não disponha de forma diversa. Assim, por exem­
plo, são aplicáveis, ordinariamente, à legislação penal especial os conceitos básicos
(dolo, culpa, erro de tipo etc.), as excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado
de necessidade etc.), as excludentes de culpabilidade (erro de proibição inevitável,
coação moral irresistível), os critérios de individualização judicial da pena (art. 59)
e as causas de extinção de punibilidade (morte do agente, prescrição), entre outros.
E certo ainda que as “regras gerais do Código” a que a alude o artigo 12 não se
confundem com a “Parte Geral”, que vai do art. 1Qao art. 120, porque também na
parte especial há regras gerais aplicáveis à legislação especial, a exemplo do concei­
to legal de funcionário público (CP, art. 327).

9. Contagem dos prazos penais e processuais penais

De acordo com o Código Penal (art. 10), na contagem dos prazos penais (v.g.,
o tempo exato de pena a ser cumprido), é incluído o dia do começo, não havendo

99 Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 29.


D ireito Penal - Parte G eral

prorrogação com a superveniência de férias, sábados, domingos ou feriados. Assim,


o cumprimento de uma pena de um ano de prisão que se iniciar, por exemplo, a
qualquer hora do dia 20 de maio de 2008, terminará às 24 horas do dia 19 de maio
do ano seguinte (2009).
Apesar disso, o prazo penal será interrompido ou suspenso sempre que hou­
ver previsão legal expressa nesse sentido, tal como ocorre com os prazos de pres­
crição (CP, arts. 116 e 117).
Diversa é a contagem dos prazos processuais penais (v.g., prazo para apresen­
tar defesa prévia, alegações finais, recorrer). Com efeito, já agora é excluído o dia
do começo e o cômputo do prazo tem assim início a partir do primeiro dia útil
seguinte, incluindo-se o dia do vencimento (CPP, art. 798, § 1B).
Além disso, quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publicação
com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo terá início na segunda-feira
imediata, salvo se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia
útil que se seguir, conforme dispõe a Súmula 310 do STF.l°° Assim, se o prazo para
a interposição do recurso de apelação se iniciou, por exemplo, no dia 5 (segunda-
feira), a contagem começará no dia 6 (terça-feira), sendo tempestivo o recurso que
for interposto até o dia 12 (segunda-feira), pois o termo final, que se deu no dia 10
(sábado), prorroga-se para o próximo dia útil., prorroga-se para o próximo dia útil.
Se o prazo estiver simultaneamente previsto em ambos os Códigos (penal e
processual penal), prevalecerá o prazo mais favorável ao acusado, isto é, o prazo do
art. 10 do CP, e não art. 798, § 1Q, do CPP. É o que se dará, por exemplo, na conta­
gem dos prazos decadenciais e prescricionais.101
Portanto, na hipótese dos arts. 103 do CP e 38 do CPP, que tratam da deca­
dência para o oferecimento de queixa pelo ofendido ou seu representante legal no
prazo de seis meses, far-se-á a contagem do prazo decadencial na forma do Código
Penal. Por isso, o que poderia parecer regra de direito processual, com previsão no
Código de Processo inclusive (prazo para oferecimento da queixa), é em verdade

100 A Súmula 310 do STF dispõe textualmente: “quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publica­
ção com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo judicial terá início na segunda-feira imediata, salvo
se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir”.
101 Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de justiça:
“RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA.
ARTIGOS 10 E 103 DO CÓDIGO PENAL. CONTAGEM EM MESES.
Segundo precedentes “o prazo de decadência do direito de queixa, expresso em meses, conta-se na forma
preconizada no art. 10, do estatuto punitivo, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o
prazo de um mês tem início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês subseqüen­
te.” Recurso especial conhecido e provido (grifo nosso) (Resp. 203574 - SP. Rei. Min. José Arnaldo da
Fonseca. DJ 06.11.2000).
“PENAL. PRESCRIÇÃO. CONTAGEM EM ANOS. TERMOS INICIAL E FINAL. CP, ART. 10.
O prazo de prescrição é prazo de natureza penal, expresso em anos, contando-se na forma preconizada do
art. 10, do Código Penal, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o prazo de um ano tem
início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês e ano subseqüentes.” (grifo nosso)
(Resp. 188681 - SC. Rei. Min. Vicente Leal. DJ 25.09.2000).
Paulo Queiroz

regra de direito material, que, se não observada, implicará a extinção da punibili-


dade (CP, art. 107, IV).
Quanto à contagem do prazo de prisão cautelar (flagrante, temporária, pre­
ventiva etc.), prisão temporária, em especial, que pode ser decretada pelo prazo de
cinco dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada neces­
sidade, nos termos do art. 2°- da Lei ne 7.960/89, deve-se observar a regra do art. 10
do CPP,102 analogicamente, incluindo-se o dia em que se executar a ordem de pri­
são, portanto.103
Não é preciso dizer que o calendário comum a que o Código (art. 10) se refe­
re é o oficial, gregoriano, sendo que os prazos em meses são contados não pelo
número real de dias (meses com 28, 29, 30 ou 31 dias), mas de determinado dia à
véspera do mesmo dia do mês subseqüente. O mesmo ocorre quanto à contagem de
prazos em anos.104
Na contagem da pena privativa de liberdade (CP, art.ll), desprezam-se as fra­
ções de dia; logo, não há como a pena ser fixada em 15 dias e 8 horas, por exemplo.
Mas as frações de meses (dias) ou ano (meses) devem incidir na pena.
Também na pena de multa devem ser desprezadas as frações de real, ou seja,
os centavos. Apesar de o Código (art. 11) se referir às frações de cruzeiro, em razão
das sucessivas alterações na nossa moeda, é de concluir que o código faz referência
hoje às frações de real.105
Finalmente, cumpre notar que já se decidiu, apesar de opinião em sentido
contrário ,106 que não se computam nas penas de multa as frações de dias-multa,
aplicando-se, por analogia, o art. 11 do CP.

102 Art. 10 do CPP - “O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em fla­
grante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se exe­
cutar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.
103 Nesse sentido: Paulo Rangel. Direito Proccssual Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 648.
104 MIRABETE, Julio Fabbrini. C ódigo PenaI Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.
105 O Decreto-lei n° 2.284/86 criou o cruzado; a Lei nQ8.024/90 voltou a instituir o cruzeiro; a Lei n9 8.697/93
criou o cruzeiro real, sendo que, por fim, a Lei n- 8.880, atualmente vigente, criou o real.
106 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.
D ireito Penai - Parte Geral

Capítulo II
Direito Penal e Constituição

1. Direito penal e Constituição

Do ponto de vista do direito legislado (positivo), todo direito nasce e morre na


Constituição Federal, fundamento que é de validade da ordem jurídica, porque as
leis, ao menos em tese, não formam um conjunto desordenado de disposições, mas
um sistema que se pretende lógico, coerente e hierarquizado, estando todas as nor­
mas vinculadas ao texto constitucional, pois é a Constituição, como diz Konrad
Hesse, que estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do
ordenamento jurídico, convertendo-se em elemento de unidade.1 Em virtude
disso, toda legislação infraconstitucional há de estar conforme os princípios e
regras constitucionais em que se fundam, sob pena de invalidação por meio do con­
trole de constitucionalidade, direto ou incidental.
Além disso, é também a Constituição que define o perfil do Estado, assinalan­
do os fundamentos, objetivos e princípios basilares (arts. l fi a 5S em especial) que
vão governar a sua atuação, motivo pela qual, como manifestação da soberania do
Estado, o direito penal, capítulo que é da anatomia política ,2 deve expressar essa
conformação político-jurídica ditada pela Constituição, mas, mais do que isso, deve
traduzir os valores superiores da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da jus­
tiça e da igualdade, porque o catálogo de direitos fundamentais constitui, como diz
Bergudo Gómez, o núcleo específico de legitimação e limite da intervenção penal
e que, por sua vez, delimita o âmbito do punível nas condutas delitivas.3
Afinal, no Estado Democrático de Direito a novidade sobre a idéia do homem e
da sociedade, com seus efeitos sobre a filosofia do delito e da pena, é que rompe com
a concepção abstrata do homem e da sociedade, como conjunto de sujeitos livres e
iguais, e sustenta uma concepção realista dos homens, como sujeitos submetidos à
desigualdade e à falta de liberdade material para, sobre isso, reclamar uma ação polí­
tica e jurídica destinada a superar essa desigualdade e carência de liberdade.4
Não é, pois, de estranhar que a Constituição Federal preveja num extenso arti­
go (art. 5S), e conforme a tradição liberal, os princípios penais e processuais limita­
dores do juspu nien di, como os de legalidade, devido processo legal e estado de ino­

1 Escritos dc derecho constitucional, Madrid:Centro deEstúdios Constitucionales,1983, p. 17.


2 A expressão é de Foucault.
3 Berdugo Gómez de la Torre e outros. Lecciones dc derecho p en al Barcelona:1996, p.34.
4 Berdugo, Lecciones, cit., p. 34.
cência. Urge assim conhecê-los, pois os princípios, enquanto valores fundamentais
que informam a Constituição, não são apenas a lei, mas o próprio direito, e consti­
tuem a chave do ordenamento jurídico.5
E os princípios exercem essencialmente uma dupla função: constitui um limi­
te à intervenção do Estado (função de garantia) e é um instrumento de justificação
dessa intervenção (função legitimadora), motivo pelo qual tanto serve à legitima­
ção quanto à deslegitimação do sistema.

2. Direito penal e Estado

A vinculação entre direito penal e Estado é assim estreitíssima pelo simples


fato de que é o Estado quem dita as regras jurídico-penais e de ser o titular do direi­
to de punir.
Além disso, o direito penal constitui um dos instrumentos —não o único nem
o mais importante - de que se vale o Estado para a realização de suas funções cons­
titucionais, como assegurar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igual­
dade, à segurança, à dignidade, já que ao criminalizar, por exemplo, o seqüestro, o
homicídio, outra coisa não se persegue senão a proteção subsidiária da liberdade e
da vida, respectivamente, assim resguardando a inviolabilidade proclamada pelo
constituinte (CF, art. 59).
De sorte que a hierarquia entre a Constituição e o direito penal é a um tempo
formal e axiológica, na medida em que suas disposições somente valem e obrigam
quando se prestem à realização dos fins constitucionais e prestigiem os valores mais
caros, aferidos, naturalmente, segundo cada contexto histórico-cultural. Conse­
qüentemente, a definição dos princípios e regras jurídico-penais vai ser determina­
da pela definição dos fins do Estado, porque em última análise Direito e Estado,
pelo seu caráter instrumental (funcional), prestam-se a um fim comum: possibili-;
tar a convivência social, assegurar níveis minimamente toleráveis de violência, por
meio da prevenção/repressão de ataques a bens jurídicos constitucionalmente rele­
vantes. Os limites do direito penal são os limites do Estado.
E na vigência de um Estado que se pretende Democrático de Direito, o direi­
to penal, se quiser ajustar-se à conformação política a que está sujeito e, sobretudo,
se quiser reclamar um mínimo de legitimação, não poderá pretender realizar prO'
pósitos teocráticos, transcendentais ou simplesmente simbólicos - propósitos abso­
lutos, enfim - , mesmo porque a pena não é um sucesso metafísico, mas uma amar­
ga necessidade de uma sociedade de seres imperfeitos (Alternativ-Entwurf'
Código Penal Alternativo alemão, de 1966). Há, assim, de consistir num meio efv
caz e necessário para a proteção dos cidadãos, porque Estado e Direito devexn ser
vir ao Homem, e não o contrário, pois não são um fim em si mesmo, mas só uí

5 Paulo Bonavidcs. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 260.
meio. A Constituição é claríssima no particular, quando, alóm de elevar a dignida­
de da pessoa humana ao status de fundamento do Estado Democrático de Direito
(art. 3"), declara que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre­
sentantes eleitos ou diretamente...” (art. I 0, parágrafo único).

3. Princípio da liberdade

Finalmente, sob a égide de uma Constituição que outorga à liberdade uma


proteção formal especialíssima, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa
humana, valor-fonte do ordenamento jurídico (Reale) - como se vê pelo art. 5P, que
alude à inviolabilidade da vida, da honra etc. - , resulta que a liberdade é assim a
regra; a não-liberdade, a exceção. Por isso que medidas de constrição ao indivíduo,
principalmente as de caráter penal, só se legitimam na medida em que sirvam à
afirmação da liberdade mesma, ou seja, só quando sirvam à efetiva proteção do
cidadão, o que é o mesmo que dizer quando resultem necessárias à realização da
própria liberdade. Em conclusão, a intervenção jurídico-penal só deve ser admiti­
da e tolerada quando não for substituível por outras formas menos violentas - e
adequadas - de controle social. Porque o direito penal é a fortaleza e os canhões dos
demais direitos (Alfonso de Castro).

4. Princípios fundamentais

4.1.Introdução6

Ao conceituar o direito penal, fizemos referência às garantias do cidadão em


face do exercício do direito de punir do Estado, porquanto semelhante poder, que
não é absoluto, encontra limites - formais e materiais - no próprio texto constitu­
cional, tudo a evidenciar o que antes ficou assinalado: o caráter instrumental do
Estado e do direito penal, que não são um fim em si mesmos, mas um só meio -
subsidiário - de regulação dos conflitos sociais mais agudos. O Estado e o Direito
devem servir ao homem e não o contrário.
A maioria dessas garantias e princípios consta explicitamente da Constituição,
como e o caso do princípio da legalidade e da individualização da pena. Outros
(implícitos), embora não estejam previstas expressamente, decorrem da lógica do

J .*0 re^er*r 0 princípio da adequação social formulado por W elzcl, entendido como princípio gera]
cid1If|tT *)reta<^ 0 ('^>crcc^° penal alemán, cit., p. 69), por cujo meio se afastaria a tipicidade (ou antijuridi-
P 228 ) COn^utas soc>almente “adequadas” ou irrelevantes, por julgá-lo, com Jescheck ( Tratado , cit.,
chegar 6 ^ ° X'n ^ crcc^° penal , cit., p. 296-297), desnecessário, a par de vago e impreciso, podendo-se
; nadora ^ meSni0 rcsu' t;i^° Pe^a simples interpretação teleológica (e restritiva) da norma penal incrimi-
venção do -maiS 3 mais’ seu í' ' e;mCf- é, em todo 0 caso, reduzidíssimo, pois, mesmo na hipótese da contra-
cit., p 49 w ® ° blcho- que admitiria sua invocação em favor do "apontador” (Cezar Bitcncourt, ManuaL
per eitamente cabível a adoção do princípio da insignificância.
sistema de valores que a Constituição consagra, como o princípio da proporciona­
lidade e lesividade. Tais princípios representam limitações importantes, formais e
materiais, ao poder punitivo do Estado, por isso que constituem autênticas garan­
tias, visto que oponíveis pelo indivíduo ao exercício do poder punitivo do Estado
Assim agindo, o Estado pretende, como observa Roxin, proteger o bem jurídico
duplamente: através do direito penal e ante o direito penal, cujo uso excessivo pro­
voca precisamente as situações que pretende combater.7
Convém sublinhar que tais princípios nasceram historicamente e permane­
cem constitucionalmente (art. 5S) como autênticas garantias individuais, de modo
que, para bem compreendê-los e interpretá-los, é fundamental não perder de vista
que existem para proteger o cidadão contra possíveis reações públicas ou privadas
arbitrárias, e não para pretextar atuações abusivas do Estado em nome da seguran­
ça pública ou semelhante.

4.2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais


severa. “NulJum crimen, nulla poena sine praevia lege”

A atribuição exclusiva do legislador para definir crimes e cominar penas cons­


titui desde a Revolução Francesa a pedra angular do direito penal moderno,8 sendo
a idéia de submeter a vontade do Estado ao império da lei inerente ao conceito
mesmo de Estado de Direito. Que a atuação do Estado seja orientada por regras
jurídicas que expressem a vontade popular é condição de legitimação democrática
por meio do poder competente, o Poder Legislativo. E particularmente no âmbito
jurídico-penal, em que se materializam as mais sensíveis restrições à liberdade, com
maior força de razões se impõe o respeito ao princípio da legalidade.
Semelhante princípio atende, pois, a uma necessidade de segurança jurídica e
de controle do exercício do juspuniendi, de modo a coibir possíveis abusos à liber­
dade individual por parte do titular desse poder (o Estado). Consiste, portanto,
constitucionalmente, numa poderosa garantia política para o cidadão, expressiva
do im perium da lei, da supremacia do Poder Legislativo - e da soberania popular -
sobre os outros poderes do Estado, de legalidade da atuação administrativa e da
escrupulosa salvaguarda dos direitos e liberdades individuais.9
Do aludido princípio se ocupa o art. 5Q, XXXIX, da Constituição Federal, dis­
pondo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comi-
nação legal”. Tal princípio representa a um tempo uma limitação formal e material,
como dito antes.10

7 Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Ed. Vega, 1993, p. 28.


8 Gómez dc Ia Torre c outros, Lcccioncs, cit., p. 36.
9 García-Pablos. Derecho pennl, cit., p. 234.
10 Como nota Jeschcck, a lei penal, cm sua aplicação, não só tem dc satisfazer os princípios jurídicos formais,
senão também, em seu conteúdo, há dc responder às exigências da justiça, encarnadas no princípio mate­
rial do Estado de Direito. Tratado, cit., p. 112.
Com efeito, form aJmente, significa cjue somente por lei, em sentido estrito,
nada do Poder Legislativo, o Estado poderá legislar sobre matéria penal, defi-
indo crimes ou contravenções, com a indicação das sanções respectivas. São
in c o n stitu c io n a is, portanto, atos legislativos q u e , sem revestirem o status de lei,
e te n d a m definir crimes ou cominar penas. Assim, por exemplo, medida provisó­
ria (CF, art. 62, § 1°, í, b), m esm o porque, quer pela sua efemeridade, quer pela
in c e rte z a que traduz, dada a possibilidade de sua não-conversão em lei ou de sua
re je içã o pelo Congresso Nacional, é claramente incompatível com o postulado de
se g u ra n ç a jurídica que o princípio quer assegurar. Dificilmente se poderá compati­
bilizar ainda os pressupostos de relevância e urgência da medida com pretensões
criminalizadoras, sobretudo à v i s t a dos múltiplos constrangimentos que podem
o c o rre r no curto espaço de sua vigência.
Também em nome do princípio, é inadmissível que se persiga o mesmo pro­
pósito por meio do costume, da analogia (analogia proibida ou in malam p a n em )
ou por meio de outras fontes do direito.
Mas convém ressalvar que outros atos legislativos podem eventualmente dis­
por sobre matéria penal sempre que a hipótese não seja a de definir crimes nem a
de cominar penas ou aumentar o rigor punitivo, e sim a de conceder benefícios ou
similar, como ocorre com o indulto ou a comutação de penas, que competem ao
Presidente da República (CF, art. 84, XII), que se utiliza de simples decreto para
tanto. Também por isso, nada impede que outra norma (v.g., medida provisória)
possa eventualmente dispor sobre matéria penal, desde que favorável ao réu.11
Apesar de a Constituição se referir ao crim e e à pena, tal é também aplicável
às contravenções penais, tanto quanto às medidas de segurança. Enfim, o princípio
é aplicável a toda e qualquer intervenção penal que implique privação ou restrição
a direito ou liberdade do agente, medidas de segurança inclusive, que são um misto
de prisão e hospital tão ou mais lesiva à liberdade quanto a própria prisão.
Compete privativamente à União legislar sobre direito penal (CF, art. 22, I),
mas excepcionalmente os Estados-membros podem fazê-lo quanto a questões espe­
cíficas (v.g., trânsito local), desde que haja autorização por lei complementar para
tanto (CF, art. 22, parágrafo único). No que tange ao direito internacional, quando
se tratar das relações do indivíduo com organismos internacionais (v.g., Tribunal
Penal Internacional), os tratados e convenções internacionais constituem as fontes
diretas do respectivo direito penal, tal como ocorreu com o Tratado de Roma, que
definiu os crimes de guerra, contra a humanidade etc., sujeitos à competência do
TPI (Tribunal Penal Internacional), criado por aquele tratado. Mas essas normas de
direito penal internacional não são aplicáveis às relações entre os indivíduos e o
Estado brasileiro, que ficam sujeitos à justiça brasileira.'2

11 No sentido do texto, Luiz Flávio Gomes. Estado constitucional de direito ç a nova pirâmide jurídica. S.
Paulo: Premier, 2008, p. 42.
'2 Luiz Flávio Gomes, idem, p. 38-39.
Por fim, cumpre ressaltar que o princípio da legalidade, conforme se verá a
seguir, compreende: 1) o princípio da reserva legal: só a lei pode em princípio dis­
por sobre matéria penal; 2) taxatividade: a lei deve descrever com o máximo de pre­
cisão possível os tipos penais incriminadores; 3) irretroatividade da lei mais severa:
lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu.
Há quem, como Ferrajoli, considere que o princípio em sentido estrito com­
preende todas as demais garantias penais e processuais como condições necessárias
à legalidade penal: Proporcionalidade, devido processo legal etc.13

4.2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação)

Mas o Estado poderia iludir uma tal garantia - e o faz com alguma freqüência -
por meio da edição de leis penais de conteúdo vago ou obscuro (tipos penais abertos),
como ocorreu na Alemanha nazista, em que determinada lei previa a punição de
“quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas”,14
bem assim diversas das disposições da Lei de Crimes Ambientais (ne 9 .6 0 5 / 9 8 ),p0r
exemplo. Por isso, materialmente o princípio implica a máxima determinação e taxa­
tividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo na elaboração das leis que
redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao Judiciário
que os interprete restritivamente, de modo a lhe preservar a efetividade.
Porque a máxima taxatividade possível e de real vinculação do juiz à lei é,
como diz Silva Sánchez, um objetivo irrenunciável para o direito penal de um
Estado Democrático de Direito, que implica a máxima precisão das mensagens do
legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens quando das suas decisões,
motivo pelo qual trata-se de um princípio de legitimação democrática das inter­
venções penais como garantia da liberdade dos cidadãos derivada do princípio da
divisão de poderes.16

4.2.2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal

O princípio da anterioridade, uma dimensão do princípio da legalidade, signi­


fica que a lei deve necessariamente preceder às infrações penais nela previstas

13 Dcrccho y razón, cit., p. 95.


14 Roxin-Arzt-Tiedmann. Introducción al derecho penal y al proceso penal, trad. Arroyo Zapatero e Gomez
Colomer. Barcelona: Ed. Ariel, 1989.
15 Escrcve Juarez Tavares que algumas fórmulas sintéticas correntes nas leis penais aceitas acriticamente pela
doutrina importam em violação do princípio da legalidade, a exemplo do crime de aborto, cuja conduta e
descrita como “provocar aborto” (arts. 124, 125 e 126), sem nada dizer sobre a interrupção da gravidez ou
da morte do feto; a injúria, que se resume em “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou decoro” (art.
140), sem referência ao que constitua, afinal, essa atividade de injuriar, o mesmo ocorrendo, freqüentemen­
te, nos crimes culposos, cujo tipo, salvo raras exceções (p. ex., na receptação culposa, art. 180, § I o), não
vem descrito expressamente na lei penal. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 187.
16 Aproximación al derecho penal contemporâneo. Barcelona: Bosch, 1992, p. 256-257.
como condição de validade, pois do contrário a norma acabaria por incidir sobre
comportamentos que até então não constituíam ilícito penal ou que eram punidos
menos gravemente, violando o princípio. Portanto, de acordo com o princípio da
anterioridade, a lei nova só poderá reger fatos futuros e não pretéritos. Em conse­
qüência, vigora como regra geral a irretroatividade da lei penal, não podendo a nova
lei ser aplicada a fatos anteriores à sua vigência. Mas excepcionalmente a norma
operará retroativamente, alcançando, por conseguinte, situações anteriores à sua
entrada em vigor, sempre que for mais benéfica para o infrator: ou porque lhe é mais
branda (lex m itior) ou porque descriminaliza a conduta (a b o lid o críminis). Justifica-
se a exceção em favor da liberdade, mais uma vez, não se verificando, em tal caso,
ofensa à natureza garantista do princípio. Nesse sentido, dispõe a Constituição
Federal, art. 5S, XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

4.2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal

As assim chamadas leis penais em branco - expressão que procede de Karl


Binding - são normas penais incriminadoras que, embora cominem a sanção penal
respectiva, seu preceito, porque incompleto, depende de complementação (expres­
sa ou tácita) por outra norma, geralmente de nível inferior (decreto, regulamenco,
portaria etc.), de modo a precisar-lhe o significado e conteúdo exatos; leis penais em
branco são assim tipos penais estruturalmente incompletos, i7 Exemplo disso são os
casos de tráfico ilícito de droga e a omissão de notificação de doença (CP, art. 269),
que remetem a norma inferior a complementação do seu significado, determinando
quais são as drogas proibidas e quais são as doenças de notificação compulsória.
Mas não se deve confundir tipos penais em branco com tipos penais abertos
ou vagos, uma vez que são conceitos distintos, embora não sejam incompatíveis
entre si.18 A norma que criminaliza o tráfico de droga (norma penal em branco),
por exemplo, não só é completa quanto à descrição do tipo, por descrever seus ele­
mentos essenciais, como é exaustiva ao fazê-lo, referindo uma dezena de verbos
que o constituem. E a distinção é importante, pois do contrário praticamente quase
nenhum tipo ficaria imune à critica que se fará a seguir.
Convém notar aliás que, em virtude da estrutura aberta da linguagem, jurídi­
ca inclusive, todos os tipos são mais ou menos abertos, mais ou incompletos; tam-

lítiiizo aqui a expressão cm sentido estrito (Binding), e não cm sentido amplo (Mezger), pois, do contrá­
rio, confundir-se-ão leis penais em branco com leis penais incompletas. Conceito ainda mais restrito dá-
nos Rodriguez Mourullo, para quem, as leis penais em branco são sempre leis que remetem, expressa ou
tacitamente, a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior. Derecho
penal, cit., p. 87-89.
18 Parece fazer essa confusão Sídio Rosa de Mesquita Júnior, que se posiciona no sentido da constitucionali-
dade das leis penais em branco, argumentando, dentre outras coisas, que o reconhecimento da inconsti-
tucionalidade acabaria por inviabilizar praticamente toda a legislação penal. Comentários à lei antidrogas.
São Paulo: Atlas, 2007.
bém por isso a classificação entre elementos objetivos, subjetivos e normativos do
tipo deve ser adotada com reservas e criticamente; talvez até abandonada.
De todo modo, só há autêntica lei penal em branco quando o tipo legal de
crime, apesar de descrever a ação típica com seus elementos essenciais (objetivos,
subjetivos ou normativos) e cominar a respectiva pena, remeter, expressa ou taci-
tamente, a complementaçâo do preceito primário incriminador a uma norma de
mesmo grau hierárquico (homogênea) ou de grau inferior (heterogênea). Há auto­
res que restringem ainda mais esse conceito, entendendo que não se pode conside­
rar como lei penal em branco aquelas normas que remetem a sua complementaçâo
a uma norma de mesmo nível hierárquico.19
Exatamente por isso, não são leis penais em branco os tipos ditos abertos, em
virtude da vagueza da descrição de seus termos (v.g., culposos), nem tampouco os
que simplesmente recorrem a elementos normativos, como, por exemplo, o “sem
licença ou autorização da autoridade competente”, ou o “em desacordo com a lei”
etc., presentes em muitos tipos penais, inclusive em tipos penais em branco, como
a lei de droga, a demonstrar que, apesar da distinção que se deve fazer, tais classi­
ficações não são incompatíveis entre si, podendo a lei penal ser simultaneamente
em branco e aberta.
Pois bem, questão das mais relevantes diz respeito à compatibilidade desse
tipo de norma com o princípio da reserva legal.
A doutrina em geral tem as leis penais em branco como constitucionais e com­
patíveis com o aludido princípio, embora exija o atendimento de certos requisitos.
Assim, por exemplo, Luzón Pena, para quem o recurso à técnica de remissão há de
ser absolutamente excepcional por resultar estritamente necessário e imprescindí­
vel para completar a descrição típica da conduta.20 De modo semelhante, Cerezo
Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de ;
técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação,
que exigiria uma revisão muito freqüente das ações proibidas ou ordenadas, moti- '
vo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo
essencial da ação proibida ou ordenada.21 Por fim, Jescheck considera que, quando
a norma que há de completar a lei penal em branco tiver caráter delegado, o legis- v.
lador deve prever a cominação legal, bem como descrever com precisão o conteú- s
do, a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mes- -J
ma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena, pois do contrário não se res- - ^
peitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena.22 Entre nós, mani- .
festam-se pela constitucionalidade Luiz Régis Prado.23 Guilherme de Souza Nucd2 4 |

19 Nesse sentido, Rodrigues Mourullo. Derecho Penal. Parte general, Madrid: Civiras, í 97 8.
20 Curso d e dcrccho pena). Madrid: Ed. Universitas, 1996, p. 146 c s. .
21 Curso dc derecho penal espanol: introdueción, Madrid: Tccnos, )997, p. 156. 4-
22 Tratado, cit., p. 98. ^ T
23 C.uiso dc direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 'i
24 Código Penai comentado. São Paulo: Revista do.s Tribunais, 20D2. %j
e Pablo Alfen,^5 enire outros. Defendem a inconstitucionalidade Rogério Greco,
André Copetti, Zaffaroni/Batista26 e Andrei Schm idt.27
Sobre o assunto, o Tribunal Constitucional espanhol (sentença 127/1990, de 5
de julho) já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade das leis penais em
branco, exigindo, porém, que "o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado
em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; que a lei, além de prever a
pena, contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certe­
za, ou... se dê a suficiente concreção, para que a conduta considerada criminosa
fique suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma a que a
lei penal faz remissão e resulte, desta forma, salvaguardada a função de garantia do
tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penalmente comínada”. De
acordo com esse entendimento, portanto, são necessários os seguintes requisitos: a)
necessidade estrita da remissão; b) que a norma, embora incompleta, já preveja a
sanção específica; c) que o preceito contenha o “núcleo essencial da proibição”.
Temos que as leis penais em branco que remetem o complemento a norma
inferior (normas penais em branco heterogêneas) são inconstitucionais, por impli­
carem violação aos princípios da reserva legal e divisão de poderes.
Com efeito. Tomemos como referência o tráfico ilícito de drogas. Inicial­
mente, não há dúvida de que a lei brasileira específica atende aos requisitos exigi­
dos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao descrever o núcleo essencial da con­
duta típica, criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível.
Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico supostamente protegido - a saúde
pública - justifica plenamente a remissão. Estariam assim satisfeitas as exigências
daquela corte constitucional.
No entanto, quando a lei permite que o “núcleo essencial da proibição” seja
completado por simples ato administrativo, é o Poder Executivo quem dirá, em
última análise, o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas; afinal é ele que, um
tanto arbitrariamente, discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo
essencial da proibição.
Caberia então indagar: quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilíci­
to de entorpecentes? Parece claro que não é o Poder Legislativo, mas o Poder
Executivo, mais exatamente o Ministério da Saúde (Anvisa), que se utiliza de sim-
pies portaria, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem
s^r consideradas ilícitas. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre
bateria penal é em última instância o próprio Ministério da Saúde, o Poder Exe­
cutivo, mesmo porque a lei penal em branco era até então uma “alma errante em

^ Leis Penais em bran m ^ r, rjsco , Rj0 jan eiro : Lumen juris, 2004.
Dra«tóiro /, p. 205-206, para os quais "a lei penal em branco sempre foi lesiva ao princípio
e fonnal c, além disso, abriu as portas para a analogia e para a aplicação retroativa, motivos
para considerá-la inconstitucional”.
a legalidade penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 150-156.
busca de um corpo” (Binding), e, portanto, carente de auto-aplicação, ante a mani­
festa imprecisão de seus termos e conseqüente necessidade de complementação. Até
aí a lei penal era uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.
Por conseguinte, semelhante ato viola a um tempo, ainda que indireta e sutil-
mente, o princípio da reserva legal, por tolerar que simples portaria emanada do
Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal, criminalizando uma dada con­
duta, bem como o princípio da divisão de poderes, já que é aquele poder, e não o
Legislativo, que acaba legislando em um tal caso.
Mas isso não quer dizer que as leis penais em branco sejam sempre inconsti­
tucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o
status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha
o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena. O primeiro obs­
táculo poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declarató-
ria das drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria)
do Ministério da Saúde, de sorte a converter uma norma penal em branco hetero­
gênea em homogênea; o segundo, com a redação de tipos penais com a máxima pre­
cisão de seus elementos constitutivos, conforme o princípio da taxatividade. Em
isso não ocorrendo, tolerar-se-á mais uma violação ao princípio da reserva legal,
entre tantas violações que o silêncio ou conveniência vai perpetuando.
Por último, quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordi­
nariamente instável, o que a justificaria, temos que a instabilidade e a incerteza
recomendam o contrário: que não deveria ser objeto de criminalização ou que
somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto, motivo pelo qual,
também por essa razão, sobre ela deveria previamente se manifestar o Poder
Legislativo, seja para aprovar, seja para rejeitar.

4.3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo)

O princípio da proporcionalidade,28 entendido como mandado de otimização


do respeito máximo a todo direito fundamental (Alexy), compreende os princípios
(ou subprincípios) da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em senti­
do estrito, já que a intervenção do poder público sobre a liberdade dos cidadãos só
pode ser legítima na medida em que seja necessária, adequada e proporcional, afi­
nal, como disse Beccaria, na conclusão de seu famoso opúsculo, “a pena, para não
ser um ato de violência contra o cidadão, deve ser essencialmente pública, pronta,

28 O princípio da proporcionalidade é hoje o mais importante princípio de todo o direito c, cm particular,


do direito penal. Pode-se mesmo dizer que tudo em direito penal é uma questão de proporcionalidade,
desde a sua existência mesma, passando pelos conceitos de erro de tipo, de legítima defesa, de coação
irresistível, incluindo toda a controvérsia em derredor da responsabilidade penal da pessoa jurídica, até
chegar às causas de extinção de punibilidade (v. g., prescrição), pois o que se discute é, em última aná­
lise, em todos esses casos, a necessidade, adequação, proporcionalidade, enfim, da intervenção jurídico-
penal.
necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada
ao delito e determinada pela lei”.29
Convém notar todavia que o princípio da proporcionalidade compreende,
além da proibição de excesso, a proibição de insuficiência da intervenção jurídico-
penal. Significa dizer que, se, por um lado, deve ser combatida a sanção penal des­
proporcional porque excessiva, por outro lado, cumpre também evitar a resposta
penal que fique muito aquém do seu efetivo merecimento, dado o seu grau de ofen-
sividade e significação político-criminal, afinal a desproporção tanto pode dar-se
para mais quanto para menos. Exemplo disso - de insuficiência da resposta penal -
são os crimes de abuso de autoridade previstos na Lei nQ4.898/65, que comina, para
as graves infrações que define, prisão de dez dias a seis meses (art. 6e, § 39, b).30

4 .3 .1 . P rin cíp io da necessidade (n u llu m c r im e n , n u lla p o e n a sin e


n e c e s s it a t e )

Se o direito penal constitui, como se vem de ressaltar, a forma mais enérgica


de coerção na liberdade dos cidadãos, segue-se que sua intervenção só deve ocor­
rer em casos de efetiva necessidade para a segurança desses cidadãos. Já Montes-
quieu assinalara a propósito que toda pena que não deriva da necessidade é tirâni­
ca,31 enquanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 8°)
proclamaria pouco depois que a lei devia estabelecer unicamente penas estrita e
manifestamente necessárias.32
Em conseqüência, a intervenção penal, como ultima ratio da política social,
deve ter caráter subsidiário e fragmentário, conforme o princípio de mínima inter­
venção, devendo ser utilizada apenas quando fracassem outras instâncias de pre­
venção e controle social, menos onerosas e mais eficazes.33

29 Dos delitos e das penas, trad. Paulo Oliveira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1980, § XL1I.
30 Sobre o assunto, Ingo Wolfgang Sarlet, Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fun­
damentais entre proibição de excesso e de insuficiência, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, ano 12, n. 47, mar./abr. 2004.
31 O espírito das leis. trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues. Brasília: Ed. UnB, 1995,
Livro XIX, Cap. XIV, p. 232.
32 Por meio de Aviso de 28 de agosto de 1822, o príncipe D. Pedro determinara que os juizes do crime devi­
am guiar-sc pelas bases da Constituição monárquica portuguesa, de 10 de março de 1821, destacadamente
o art. 12, que dispunha: “Nenhuma lei, e muito menos a lei penal, será estabelecida sem absoluta necessi­
dade. Toda pena deve ser proporcionada ao delito, e nenhuma pena deve passar da pessoa do delinqüente.”
33 Por meio do princípio da proporcionalidade se condiciona, portanto, como afirma Canotilho, o exercício
da função legislativa, de modo a coibir abusos à Constituição por meio da lei, apud Suzana Toledo. O prin­
cípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000, p. 74). Segundo Suzana Toledo, sob a perspectiva da adequação, fica excluída qualquer con­
sideração atinente ao grau de eficácia dos meios tidos como aptos a alcançar o fim desejado, visto que a
questão sobre a escolha do meio melhor, menos gravoso ao cidadão, já entra na órbita do princípio da
necessidade (p. 76). O princípio dc subsidiariedade expressa, como assinala García-Pablos, uma exigência
elementar: a necessidade de hierarquizar e racionalizar os meios disponíveis para responder ao problema
criminal adequada e eficazmente. El principio de intervención mínima com o lim ite dei poder penal dei
Estado, disponível no site www.direitocriminal.com.br, Ia 6 2001.
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade)

Se o fim do direito penal é a prevenção geral e especial - conforme a doutrina


hoje majoritária - de comportamentos socialmente lesivos, como forma de proteção
de bens jurídicos, segue-se que a sua intervenção só se justifica quando a isso se pres­
te, sob pena de não existir uma relação lógica de adequação (utilidade) entre meio
(direito penal) e fim (prevenção de delitos). Em conseqüência, sempre que resultar
demonstrada a inutilidade ou inidoneidade - inadequação, enfim - da norma penal
para a realização dos fins que se lhe assinalem, não terá ela razão de ser, impondo-
se, ern conseqüência, a descriminalização ou despenalização,34 conforme se trate de
inadequação da norma penal mesma ou do tipo de pena que se comine.
O princípio da adequação significa, assim, que só é lícito ao Estado, em face
de seu caráter instrumental, lançar mão de meios idôneos para a consecução de
seus objetivos. A esse respeito já se referia Romagnosi, ao dizer que “uma pena só
será justa unicamente quando seja necessária para afastar os delitos da sociedade,
e só na medida em que seja necessária para este fim”, e, ainda, “que uma pena que
resulte ineficaz para conseguir seu fim, que consiste em refrear o delito no cora­
ção dos malvados, longe de ser necessária, não seria em relação com seu fim, senão
um puro nada”.35
Por isso não faz sentido algum insistir em reprimir, por exemplo, os chama­
dos crimes sem vítimas,36 como o porte ilegal de droga para uso pessoal ou a con­
travenção do jogo do bicho, que devem ser objeto de regulamentação administra­
tiva apenas. Aliás, a política nacional de drogas, além de ser um grande equívoco,
constitui um fracasso retumbante: droga, lícita ou ilícita, não é um problema de
polícia, mas um problema de saúde pública.37

4.3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em


sentido estrito)

De acordo com esse princípio, o castigo deve guardar proporção com a gravi­
dade do crime praticado ou, dito de outra forma, tal princípio requer um juízo de
ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito que a pena comporta
e o fim perseguido com a incriminação e com as penas em questão.38 Divide-se em:

34 Descriminalizar (= abolir o crime) significa deixar dc considerar como criminosa, por lei ou interpreta­
ção, determinada conduta; já despenalizar significa, basicamente, utilizar alternativas à pena privativa da
liberdade.
35 Gênesis dei derecho penal, trad. C. Conzálos Cortina e Jorge Gucrrero. Bogotá: Ed. Temis, 1956, Libro L
Caps. 1 c 11, p. 158 164.
36 A expressão proccdc de E. Schur.
37 Sobre o assunto, Karam. De crimes, penas o famasias, 2. ed. Niterói: Ed. Luam, 1993.
38 Gómez de la Torre e outros. Lecciones , cit., p. 47.
a) proporcion alid ad e abstrata (ou legislativa), que ocorre quando se tem de eleger
as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção qualitativa),
bem assim ao estabelecer a graduação (mínimo e máximo) dos castigos (seleção
quantitativa); b) proporcion alid ad e con creta ou ju d icial (ou individualização), que
deve orientar o juiz quando do julgamento da ação penal, promovendo a individua­
lização da pena conforme a culpabilidade do réu, aferida segundo as circunstâncias
jurídico-penalmente relevantes, podendo chegar em alguns casos à absolvição
mesma, se se entender, por exemplo, pela aplicação do perdão judicial ou do prin­
cípio da insignificância; c) p rop orcion alid ad e executória, que corresponde à indi­
vidualização da pena durante a execução penal conforme o mérito do condenado,
progredindo de regime, obtendo livramento condicional, indulto ou eventualmen­
te regredindo de regime etc. O princípio tem, portanto, tríplice destinatário: o
legislador, o juiz e os órgãos da execução penal.
Em nome do princípio da proporcionalidade,39 urge que a pena, a ser comina­
da ou a ser aplicada, guarde justa proporção com o grau de ofensividade da condu­
ta delituosa, objetivando orientar a criminalização de comportamentos pelo legis­
lador, bem como a sua individualização judicial, devendo a reação penal retratar o
merecimento do autor da infração, de acordo com as circunstâncias jurídico-penal-
mente relevantes (CP, art. 59). Portanto, tal princípio rechaça o estabelecimento de
cominações penais (proporcionalidade abstrata) e a imposição de penas (proporcio­
nalidade concreta) que careçam de toda relação valorativa com o fato, contempla­
do na globalidade de seus aspectos.40
Exatamente por isso, o STF decidiu, recentemente, em caráter liminar, pela
inconstitucionalidade do preceito secundário da receptação qualificada (CP, art.
180, § l 2: reclusão de 3 a 8 anos), em virtude de cominar, para a hipótese de crime
com dolo eventual, pena superior à prevista para a receptação com dolo direto (CP,
art. 180, caput: reclusão de 1 a 4 anos), sob o argumento de que o dolo eventual
pode ter pena igual ou inferior ao dolo direto, mas jamais superior.41

4.3.4. O princípio ne bis in idem

Também em razão do princípio da proporcionalidade (e legalidade), é vedado


o bis in idem , isto é, dupla valoração do mesmo fato jurídico, de modo a crimi­
nalizar o mesmo fato ou a agravar a pena. Semelhante princípio proíbe, portanto,

39 Ferrajoli entende, quanto às penas privativas da liberdade, que não se justifica o estabelecimento dc um
mínimo legal, acreditando que seria melhor confiar ao poder eqüitativo do juiz a eleição da pena abaixo
do máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo ou vinculá-lo a um mínimo bastan­
te baixo. Devecho y razón, cit., p. 400. No mesmo sentido, Edson 0 ’Dwyer. Se eu fosse juiz criminal.
Boletim do IBCCrim. São Paulo, n. 8 6 , jan. 2000.
40 Silva Sánchez. Aproximación, cit., p. 260.
41 HC 92525 MC/R}, Relator Ministro Celso de Mello.
Paulo Qu n ro z

a duplicidade de sanções para o mesmo sujeito, por um mesmo fato e por sanções
que tenham um mesmo fundamento, isto é, que tutelem um mesmo bem jurídico.42
O legislador, porém, não raro o viola claramente. Exemplo disso é a adoção do ins­
tituto da reincidência (CP, arts. 61, I, e 63), uma vez que, ao se punir mais grave­
mente um crime, tomando-se por fundamento um delito precedente, está-se em
verdade valorando e punindo uma segunda vez a infração anteriormente pratica­
da, em relação à qual já foi o autor sentenciado, chegando-se por vezes a absurdos,
como, por exemplo, estabelecer o juiz, depois de fixar a pena-base em seis anos de
reclusão (tráfico de droga), um aumento de dois terços em face da reincidência,
aplicando pena definitiva de dez anos. Nota: o crime anterior (um furto) fora ape-
nado em dois anos de prisão, pena inferior ao aumento decorrente da reincidência
(4 anos) (!). A reincidência, por constituir bis in idem , é inconstitucional, por vio­
lação aos princípios da legalidade e proporcionalidade.43
Cumpre notar ademais que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso que
o primário, como se presume. Assim, o autor de estupros seguidos, embora primá­
rio, certamente é bem mais ameaçador do que o condenado reincidente por peque­
nos furtos ou lesões corporais leves, por exemplo. Enfim, a reincidência, sobretudo
nos termos em que se encontra hoje definida, pouco significa, não constituindo
garantia de maior perigosidade do infrator, a justificar, também por isso, a sua abo­
lição pura e simples.
Mas se a reincidência for tolerada, o agravamento que dela decorrer jamais
poderá implicar aumento igual ou superior, mas sempre inferior, à pena que fora
imposta na sentença condenatória anterior que a ensejou, uma vez que o acessório
(agravante da reincidência) não pode exceder o principal (a pena aplicada). Assim,
se o réu foi condenado anteriormente a uma pena de dois anos por furto, não pode­
ria a agravante acarretar, na nova condenação a seis anos por tráfico, aumento de
dois terços (quatro anos) e assim fixar a pena definitiva em dez anos de prisão.

42 Berduzo Gómez dc la Torre c ouiros, Lecciones , cit., p. 45.


43 No mesmo sentido, Silva Franco: “Por outro lado, mostra-se bastante duvidosa, em sua consticucionalida-
de, a agravação obrigatória da pena, em razão de ser reincidente. (...) o princípio do ne bis in idem, que se
traduz na proibição da dupla valoração fática, tem hoje seu apoio no princípio constitucional da legalida­
de. Não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato
criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir dc fundamento a uma agrava-
ção obrigatória de pena, cm relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado
Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma
verdadeira c manifesta contradição lógica” ( Código Penal e sua interpretação jurisprudência!. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1997, v. I, p. 1018-1019). No mesmo sentido, Zaffaroni/Pierangcli (Manual de
direito penal brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 841): “rejeitada, portanto, esta única
tentativa teórica de fundamentar a agravação da pena pela reincidência, sem violar o non bis in idem e a
conseqüente intangibilidade da coisa julgada, estabelece-se o corolário lógico dc que a agravação pela
reincidência não compatível com os princípios de um direito penal de garantias c sua constitucionalida-
dc c sumamente discutível. Estas considerações são as que levaram o legislador colombiano, por exemplo,
a eliminar a reincidência (...). Na realidade, a reincidência decorre de um interesse estatal de classificar as
pessoas em ‘disciplinadas’ c ‘indisciplinadas’, e, é óbvio, não ser esta a função do direito penal garantidor.”
D i r e i t o Pe n a l -■ Pa r te G e r al

Idem, se a condenação anterior fosse por lesão corporal leve a pena de um ano,
parece evidente que na nova condenação por latrocínio a vinte anos de prisão, o
aumento decorrente da reincidência não poderia ser de metade (dez anos), isto é,
dez vezes a pena precedente.

4.3.5. Princípio da insignificância

Da mesma forma, em razão do princípio da proporcionalidade, não se justifi­


ca que o direito penal possa incidir sobre comportamentos insignificantes. Ocorre
que, ainda quando o legislador pretenda reprimir apenas condutas graves, isso não
impede que a norma penal, em face de seu caráter geral e abstrato, alcance fatos
concretamente irrelevantes.
Por meio do princípio da insignificância, cuja sistematização coube a Claus
Roxin, o juiz, à vista da desproporção entre a ação (crime) e a reação (castigo), fará
um juízo (inevitavelmente valorativo) sobre a tipicidade material da conduta, recu­
sando curso a comportamentos que, embora formalmente típicos, não o sejam
materialmente, dada a sua irrelevância. Trata-se, como diz Vico Manas, de um ins­
trumento de interpretação restritiva, fundada na concepção material do tipo penal,
por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem fazer periclitar a
segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da
necessidade de descriminalização de condutas que, apesar de formalmente típicas,
não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.44 E
é realmente preciso ir além de um certo automatismo judicial, que, alheio à reali­
dade, à gravidade do fato, à intensidade da lesão, se perde e se desacredita na per-
secução de condutas de mínima ou nenhuma importância social.45
Cumpre dizer que, embora tenha sido bastante combatido pela jurisprudência
tradicional, hoje os tribunais vêm reconhecendo o princípio amplamente. No
entanto, os julgados em geral têm-no admitido apenas em relação a crimes pratica­
dos sem violência ou grave ameaça à pessoa, sobretudo crimes patrimoniais (peque­
nos furtos e danos) e contrabando ou descaminho.
Apesar disso, em nome do princípio da proporcionalidade, ele é perfeitamen­
te admissível também nos crimes violentos ou com grave ameaça à pessoa, consu­
mados ou tentados, se não para absolver o réu, pelo menos para desclassificar a in­
fração penal, por exemplo, em crimes complexos, como o roubo (CP, art. 157), re­
sultado que é da fusão de furto e constrangimento ilegal. De fato, não parece razoá­

44 O princípio da insignificância com o exciudente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1993,
p. 58.
45 Nesse sentido, decisão do STj: “A apreensão de quantidade ínfima de droga - 0,25g de cocaína - sem qual­
quer prova de tráfico, não tem repercussão penal, à vista da míngua de lesão ao bem jurídico tutelado,
enquadrando-se o tema no campo da insignificância. Habeas corpus concedido” (6 a T., HC 8.020/RJ, rei.
Min. Fernando Gonçalves, j. 25-3-1999, DJU, 13 jun. 1999, p. 227).
vel que o agente que subtraia, mesmo com emprego de violência ou grave ameaça
à pessoa, quantia economicamente insignificante tenha de responder por delito con­
tra o patrimônio cuja pena varia de quatro a dez anos de prisão. Numa tal hipótese,
ante a insignificância do objeto subtraído, não há propriamente ofensa ao patrimô­
nio; logo, não há crime patrimonial, razão pela qual o autor deverá responder uni­
camente pela infração residual, isto é, constrangimento ilegal46 (CP, art. 146).
Em se tratando de crimes contra a Fazenda Nacional (contrabando ou desca­
minho, tributários etc.), tribunais há que, com base na Lei ns 10.522/2002, art. 20,47
que previu o arquivamento das execuções fiscais de débitos de valor consolidado
igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), têm adotado o princípio da insig­
nificância.48
Efetivamente, tendo a União renunciado à execução forçada do crédito, por
entender que os custos daí resultantes não justificam a mobilização do Judiciário,
sentido algum faria promover a ação penal em tais casos, em razão do caráter resi­
dual (subsidiário) do direito penal, que é um plus relativamente à intervenção civil.
Mas o caso não é propriamente de insignificância jurídico-penal da ação, pois
é evidente que não se pode ter à conta de irrelevante uma soma próxima de R$
10.000,00, tanto que a Fazenda Nacional renuncia só à execução forçada do crédi­
to, mas não à cobrança administrativa, ou seja, não perdoa a dívida. O caso é, mais
exatamente, de adoção do princípio da proporcionalidade/subsidiariedade, uma vez
que, se não é necessária/adequada a intervenção menos grave (civil), tampouco será
a mais grave (penal).
Não é preciso dizer que, embora a lei, que é federal, se refira à execução fiscal
da Fazenda Nacional, tem ela de ser aplicada a todos os Estados da Federação e ao
Distrito Federal, em respeito ao princípio federativo, à competência da União para
legislar sobre matéria penal e também ao princípio da isonomia.
Com relação aos crimes contra a fé pública, malgrado juizes e tribunais ainda
relutem em admitir a adoção do princípio, alegando que nesses casos não cabe falar

46 No sentido do texto, Rogério Greco. Direito Penal. Parte Geral. Rio: Impetus, 2003, p. 71, e Antônio de
Padova Marchi Júnior, citado por este autor. Idem, precedente do TJ/MG: “Penal. Roubo. Princípio da
insignificância. É possível a incidência do princípio da insignificância mesmo nos crimes cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, porque o juízo de tipicidade material não passa pela análise do com­
portamento da vítima, ou seja, seu dissenso ou contrariedade à ação do agente e, sim, em um juízo de lesi-
vidade da conduta - nuílum crimem sine iniuria. Sendo o delito de roubo espécie de crime complexo, a
lesividade da conduta para se adequar a este tipo penal deve abranger necessariamente os dois valores pro­
tegidos pela norma, sendo imprescindível significativa lesão ao patrimônio e à pessoa, cumulativamente.
Não havendo lesividade relevante ao patrimônio da ofendida, ocorre a descaracterização do crim e com ­
plexo de roubo” (TJ/MG - 5 3 C. Crim. - Apel. 1.0024.99.087682-3/001 - Rei. para acórdão Alexandre
Victor de Carvalho - j. 13.02.2007 - DOE 10.03.2007 - ementa oficial).
47 Dispõe o art. 20, textualmente: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do
Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da
União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, dc valor consolidado igual ou
inferior a R$ 10.000,00 (dez. mil reais)”. (Redação dada pela Lei n^ 11.033, de 2004).
48 Em sentido contrário vem se posicionando o STJ, conforme julgados recentes.
D ire ito Penal -- Parte G e ra l

de insignificância, em razão de a infração atentar contra bem jurídico difuso, já há


decisão do Supremo Tribunal Federal,49 inclusive, admitindo essa possibilidade.
Nem poderia ser diferente, uma vez que não é justo condenar alguém, por exem­
plo, a uma pena de três anos de prisão (pena mínima) por crime de moeda falsa por
ter colocado em circulação quantia irrisória.
Já se admite também a adoção do princípio em crimes militares e contra o
meio ambiente inclusive.50
É de notar, por fim, que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal
condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos: a) mínima ofensivi-
dade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau
de reprovabilidade; d) inexpressividade da lesão jurídica. Parece-nos, porém, que
tais requisitos são tautológicos. Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não
é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e a ação não perigosa, em conseqüên­
cia, mínima ou nenhuma é a reprovação; e, pois, inexpressiva a lesão jurídica.
Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma idéia por meio de palavras
diferentes, argumentando em círculo.

4.4. Princípio da humanidade

Outra importante limitação ao jus pu n ien d i decorre do art. 1", III, da


Constituição Federal, ao declarar que constitui fundamento do Estado Democrático
a dignidade da pessoa humana, proibitivo, dentre outras coisas, da adoção de penas
que, por sua natureza ou modo de execução atentem contra esse postulado, envile-
cendo o cidadão infrator ou inviabilizando definitivamente a sua reinserção social
ou, ainda, submetendo-o a um sofrimento excessivo;51 proibitivo, enfim, de penas
desumanas ou degradantes. Nem poderia ser diferente, já que o Estado Demo­

49 HC 83.526/CE, rei. Min. Joaquim Barbosa, DJ 7-5-2004.


50 Nesse sentido, precedente do STF: “Por falta de justa causa, a Turma deferiu habeas corpus para trancar
ação penal promovida contra militar acusado da suposta prática do d elito de aband ono de posto (CPM, art.
195). Tratava-se, na espécie, de writ impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de cabo da
marinha que, diante da necessidade de socorrer seu filho que fora internado, em caráter de urgência, para
a retirada de rim, afastara-se por algumas horas de seu posto de serviço (vigiava bomba de gasolina fecha­
da a cadeado). No caso, ante o reduzido grau de reprovabilidade da conduta e considerando seus motivos
determinantes, aplicou-se o princípio da insignificância e entendeu-se configurada, ainda, causa exclu-
dente de ilicitude, qual seja, o estado de necessidade. Ademais, ressaltou-se a jurisprudência da Corte no
sentido da aplicabilidade, ao processo penal militar, do aludido princípio da insignificância. Ordem con­
cedida para determinar a extinção definitiva do procedimento penal instaurado contra o paciente, que tra­
mita perante o Juízo da 4* Auditoria Militar da I a Circunscrição Judiciária Militar do Rio de Janeiro. HC
92910/RJ, rei. Min. Celso de Mello, 20.11.2007. (HC-92910). Admtindo o princípio da insignificância em
crimes ambientais, Ivan Luiz da Silva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
51 Como observa García-Pablos, o princípio de humanidade ratifica e corrige os resultados de uma aritméti­
ca penal talonária, baseada na aplicação mecânica do princípio da proporcionalidade. Entretanto, supera
e transcende a própria idéia de proporcionalidade, porque não só supõe o rechaço de certas penas e con­
seqüências jurídicas inumanas, como também determinada compreensão do processo penal, da execução
de penas e inclusive da política criminal (D erecho penal, cit., p. 292-293).
crático não persegue a realização de valores absolutos de justiça, nem fins teocráti-
cos ou metafísicos, nem o retribuir por retribuir. O princípio da dignidade da pes­
soa humana representa, assim, como diz Daniel Sarmento, o epicentro da ordem
jurídica, conferindo unidade teleológica e axiológica a todas as normas constitucio­
nais, pois o Estado e o Direito não são fins, mas apenas meios para a realização da
dignidade do H o m e m . 52 É que o Estado que mata, que tortura, que humilha o cida­
dão, não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser,
que é servir à tutela dos direitos fundamentais do homem, colocando-se no mesmo
nível dos delinqüentes.53
Conseqüentemente, a Constituição veda de forma expressa a adoção da pena
de morte (salvo no caso de guerra declarada), de caráter perpétuo, de trabalhos for­
çados, de banimento e cruéis (CF, art. 5®, XLVII), mesmo porque claramente
incompatíveis com uma sociedade que se pretende civilizada. São assim inadmissí­
veis, por atentarem contra a dignidade humana: a castração, a mutilação de mem­
bros, a esterilização de órgãos e toda sorte de pena que converta o infrator num
inválido, parcial ou totalmente, ou que o impossibilite de, cumprida a pena, rein­
tegrar-se à vida social. Disso também resulta que as penas constitucionalmente
admitidas, em especial as privativas da liberdade, hão de ser executadas condigna-
mente, em condições mínimas de higiene, salubridade etc., assegurando-se o livre
exercício dos direitos não atingidos pela privação da liberdade, sob pena de se tor­
narem inconstitucionais na sua execução, por degradarem a condição humana,
inviabilizando a reintegração social do cidadão infrator (Lei nQ7.210/84, art. 41).
Significa dizer, noutros termos, que a execução da pena privativa da liberdade há
de ser programada de tal modo que se evitem o quanto possível os efeitos negati­
vos, dessocializadores, próprios da pena de prisão.54
Por isso que a execução de penas ou medidas de segurança (ou mesmo o cum­
primento de prisão cautelar) em condições degradantes em presídios que não ofe­
reçam as condições mínimas de higiene, salubridade etc., são francamente ofensi­
vas do princípio, podendo dar ensejo à concessão de habeas corpus, ou para que se
cumpra a lei em prazo razoável (v.g., transferência de presídio), ou para progredir
de regime ou para ser posto o paciente em liberdade, ante a omissão da autoridade
responsável, que não pode contar, como freqüentemente ocorre, com a indiferen­
ça, conivência ou omissão do Ministério Público, do Judiciário ou dos Conselhos

52 A ponderação de interesses na Constituição Federa]. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 195-196.
53 Ferrajoli, D erecho y razón , cit., p. 396.
54 García-Pablos, Derecho penal , cit., p. 296. Entendendo que o princípio de humanidade das penas também
importa o acolhimento do sistema progressivo de penas, Silva Franco, para quem “um texto legal que pros­
creva toda e qualquer possibilidade de um sistema progressivo de pena privativa da liberdade, deixando o
recluso subordinado unicamente ao regime fechado, num estabelecimento prisional de segurança máxi­
ma, tem, assim, um significado claro e preciso: transformar a finalidade da pena numa resposta estatal que
paga o mal causado com outro mal, de igual ou superior intensidade, dela eliminando não apenas qual­
quer intento ressocializador, mas também o ‘mínimo ético' que é exigível na execução penal” ( Código
Penal e sua interpretação jurisprudência!, cit., p. 35).
D ire ito Penal - P a rle Cicrul

Penitenciários Estaduais, aos quais incumbe a defesa e o cumprimento da lei e da


Constituição.55
Exemplo de pena cruel/degradante e, pois, inconstitucional, é o regime disci­
plinar diferenciado56 (Lei ng 10.792/2003), uma vez que, ao se admitir a possibili­
dade de isolamento do preso numa cela individual durante 360 dias, até o limite de
um sexto da pena aplicada, vedando, em caráter quase absoluto, qualquer possibi­
lidade de contato com o mundo exterior, subtraindo-lhe, assim, direitos básicos,
como o direito ao trabalho, ao exercício de atividades profissionais, desportivas etc.
(Lei ng 7.210/84, art. 41), o Estado acaba por tratá-lo como não-pessoa ou como um
animal qualquer, submetendo-o a um sofrimento absolutamente desnecessário e
desumano. Aliás, fosse outro o animal enjaulado e talvez se tornasse mais fácil per­
ceber, nesse autêntico “zoológico humano”, quão evidentes são os maus-tratos a
que essas pessoas/animais são submetidas por seus donos. Parece óbvio também que
essa nova modalidade de tortura física e psicológica, sem finalidade educativa algu­
ma, frustra claramente os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal, que já em
seu art. 1® proclama que “a execução penal tem por objetivo proporcionar condi­
ções para a harmônica integração social do condenado”.
Já a pena de morte, cuja execução se dará por fuzilamento, e somente após sete
dias de comunicada a sentença condenatória ao Presidente da República (CPM,
arts. 56 e 57), poderá ocorrer exclusivamente nos crimes militares, em tempo de
guerra, como traição, covardia qualificada, espionagem, abandono de posto, deser­
ção em presença do inimigo, homicídio qualificado, genocídio, roubo ou extorsão
etc. (CPM, arts. 355 a 408). Mas o rol das infrações penais que a cominam há de ser
repensado à luz da Constituição Federal de 1988, de modo a afastar a pena capital
dos crimes menos graves, como dano especial e saque, limitando-a aos casos abso­
lutamente necessários, se é que em algum ela o é realmente.
Releva notar que, se nem mesmo por emenda constitucional é possível admi­
tir penas cruéis e degradantes, segue-se que tampouco a subscrição pelo Brasil de
tratados internacionais poderá implicar qualquer concessão no particular, tal como
se pretende por meio do Tratado de Roma (art. 77, § l 9, b), que prevê a pena de pri­
são perpétua sempre que o crime for extremamente grave e considerando as cir­

55 Com acerto, portanto, a 5 9 Turma do STJ, sendo relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca, apreciando
habeas corpus , decidiu: “Pena a ser cumprida em semi-aberto. Condenado recolhido em presídio de segu­
rança máxima, incompatível com o regime fixado na sentença, à alegação de inexistência de vagas no esta­
belecimento adequado. Constrangimento ilegal configurado. Assentada jurisprudência desta Corte no
sentido de que a falta de vagas em estabelecimento adequado para o cumprimento de pena imposta para
o regime semi-aberto não justifica a permanência do condenado em condições prisionais mais severas.
Ordem concedida em parte para determinar a transferência do paciente para o estabelecimento adequa­
do ao regime semi-aberto ou, persistindo a falta de vagas, assegurar-lhe, em caráter excepcional, o cum­
primento da pena em regime aberto, sob as cautelas do Juízo das Execuções, até que surjam vagas no esta­
belecimento prisional adequado” {5dT., HC 13.897, rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 7-11 -2000, v. u.,
DJU, 11 dez. 2000, p. 223).
56 Nesse sentido inclusive manifestou-se o Tribunal de Justiça de São Paulo. HC n 5 978.305.3/0-00.
Paulo Queiroz

cunstâncias pessoais do condenado. Mas o tema é controvertido57 tanto na doutri­


na quanto na jurisprudência.
É de convir ainda, com Zugaldía Espinar, que em nome da dignidade ficam
também proscritas as penas exemplificadoras, porque se prescindirmos das concre­
tas exigências preventivas especiais e passamos a operar com critérios de preven­
ção geral puramente, o delinqüente deixa de ser um fim em si mesmo para se con­
verter num meio para se obter efeitos sobre outros, convertendo a pena individua­
lizada em inumana e degradante.58
Restaria indagar se semelhante limitação também valeria para as medidas de
segurança, em especial em face da indeterminação do tempo máximo de sua dura­
ção prevista em lei (CP, art. 97, § 1Q), já que, de acordo com o Código, a internação
perdurará enquanto não for averiguada mediante perícia médica a cessação da peri-
culosidade.
Pensamos que, a partir do momento em que o legislador adotou o sistema de
determinação de pena, motivo pelo qual, uma vez cumprida o condenado será
necessariamente posto em liberdade ainda que perigoso, a exigência para os inim-
putáveis de que a liberação dependa da cessação da periculosidade é de todo
inconstitucional, por violação aos princípios de isonomia, proporcionalidade e
proibição de penas perpétuas.
Nem se poderia justificar o tratamento diferenciado alegando que medidas de
segurança não são penas. Sim, porque, se formalmente penas não são, materialmen­
te são com freqüência muito mais lesivas para a liberdade de quem as suporta, até
porque que, diferentemente do imputável, que tem direito a indulto, progressão de
regime, livramento condicional, comutação, remição etc., os inimputáveis não fa­
zem jus a nada disso, motivo pelo qual de tudo ou quase tudo são privados, já não
bastassem a miséria e o abandono (do Estado, da sociedade e da própria família) a
que são freqüentemente condenados nos hospitais de custódia e tratamento, autên­
ticos hospitais-prisões ou prisões-hospitais.59

57 Admitindo a pena perpétua e inclusive a entrega de nacionais para o TPI, Valério Mazzuoli. Curso de
direito internacional público. S. Paulo: RT, 2007. Apesar da distinção técnica/formal entre os institutos da
entrega e extradição, é evidente que, materialmente, ambos implicam o mesmo tipo e grau de constrangi­
mento à liberdade individual, tal qual a própria abdução, que consiste num seqüestro criminoso. Na ver­
dade, se a extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para aí ser julgado, força é con­
vir que ela (a entrega) é uma espécie do gênero extradição, compreendida que está no seu conceito; ou, se
preferir, a entrega é uma forma de extradição com nome diverso. Exatamente por isso a entrega e a
extradição devem estar subordinadas aos mesmos princípios e regras, em virtude de encerrarem a mesma
sorte de constrangimento à liberdade e, pois, aos direitos e garantias individuais. Com efeito, a só altera­
ção do nomen juris não pode ter o condão de legitimar certas práticas de violência institucional, ainda que
admitidas a pretexto de castigarem violências maiores. Mutatis mutandis, o mesmo deve ser dito quanto
à possibilidade de aplicação de penas perpétuas pelo TPI, mesmo porque, do contrário, estar-se-ia, ainda
que indiretamente, a atribuir status supraconstitucional a tratado internacional e a negar o caráter resi­
dual dessa jurisdição. Evidentemente que, a ser admitida a prisão perpétua, obstáculo algum haveria à
pena de morte e semelhantes, se assim dispuser o tratado.
58 Fundamentos de) derecho pen ai parte general, 2. ed. Granada: Universidad de Granada, 1991, p. 174-175.
59 A expressão é Ferrajoli.
Direito Penal - Parle Gera

Por isso autores há que, como Luiz Flávio Gomes, propõem que as medidas de
segurança tenham como parâmetro ou limite o máximo da pena cominada. Aliás já
há decisões mais ousadas e justas, procedendo à individualização judicial da pena e
a seguir substituindo-a por medida de segurança pelo prazo da pena aplicada, con­
forme se verá mais tarde. Tratando-se de medida de segurança aplicada em substi­
tuição à pena, em virtude de superveniência de doença mental, seu prazo corres­
ponderá ao tempo restante de cumprimento da pena.60
Releva notar que discussão restou grandemente superada com a Lei de Refor­
ma Psiquiatria de 2001 (Lei n9 10.216), que revogou boa parte das disposições
penais a respeito das medidas de segurança, conforme se verá no capítulo próprio.

4.5. Princípio da responsabilidade pessoal ou de culpabilidade

De acordo com este princípio, impeditivo da responsabilidade penal objetiva ou


presumida ou sem culpa ou sucessiva, nenhuma pessoa pode ser responsabilizada por
fato de terceiro ou objetivamente, devendo ser sempre apurado se o autor agiu com
dolo ou culpa ao menos. Nesse sentido, a Constituição Federal (art. 5e, XLV) dispõe
que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de repa­
rar o dano e a decretação do perdimento de bens, nos termos da lei, ser estendidas
aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do patrimônio transferido”. Nem
poderia ser diferente, pois, se a função do direito penal é a proteção subsidiária de
bens jurídicos, segue-se que semelhante intervenção só pode ter lugar quando os seus
destinatários se achem em condições de agirem conforme a norma, porque fora aí,
onde falte o domínio da vontade humana (v. g., caso fortuito ou força maior), a
norma penal é todo ineficaz, não podendo mudar o curso dos eventos naturais.61
Por conseguinte, só pode haver responsabilidade penal a título de dolo ou culpa
(CP, art. 18), vale dizer, quando os fatos sejam previsíveis e evitáveis, isto é, passíveis
de motivação normativa. Como assinala García-Pablos, um direito penal que preten­
desse exigir responsabilidade por fatos que não dependam em absoluto da vontade do
indivíduo deve ser qualificado de arbitrário e disfuncional, haja vista que a norma
penal carece de todo poder motivador e o castigo perderia toda sua justificação.62
Diferentemente do que ocorre no direito civil, por exemplo, em que a Administração
Pública responde objetivamente pelos danos a que der causa, independentemente da
apuração de culpa por parte do agente, a responsabilidade penal é sempre pessoal,
não cabendo a responsabilidade coletiva, subsidiária, solidária ou sucessiva,® por isso

60 Duração das medidas de segurança. S. Paulo: RT, v. 663.


61 Como assinala Silva Franco, na compreensão do caráter pessoal da responsabilidade penal está inserida a
idéia de que essa responsabilidade é subjetiva, isto é, pertence a seu autor, é própria dele, na medida em
que é responsável pelo fato praticado porque quis ou porque tal fato é devido à falta de um dever de cui­
dado (Código Penal e sua interpretação jurisprudênciaI, cit., p. 36).
62 Derecho penal , cit., p. 287.
63 Nilo Batista, introdução crítica , cit., p. 104.
Paulo (Queiroz

que os pais não respondem pelos filhos, nem os tutores pelos pupilos, nem os cura­
dores pelos curatelados, exceto se houverem concorrido dolosamente para tanto ou
tiverem agido com culpa.64
Quanto à ressalva constitucional de que a obrigação de reparar o dano e a de­
cretação de perdimento de bens poderá se estender aos sucessores do condenado
até o limite do valor do patrimônio transferido, não há aí, como supunha Mirabe-
te,65 afronta ao princípio, uma vez que o que se estende aos sucessores do conde­
nado não é a pena, mas só os efeitos civis da sentença, exclusivamente em relação
aos bens adquiridos com o produto do crime e “até o limite do patrimônio transfe­
rido”, possibilidade há muito permitida.

4.6. Princípio da lesividade (ou ofensividade)

Em conformidade com o princípio da lesividade (nullum crim en sine iniu-


ria),66 só podem ser consideradas criminosas condutas lesivas de bem jurídico
alheio (por isso também conhecido como princípio de proteção de bens jurídicos),
público ou particular, entendendo-se como tal os pressupostos existenciais e instru­
mentais de que a pessoa necessita para a sua auto-realização na vida social (Munoz
Conde), não podendo haver a criminalização de atos que não ofendam seriamente
bem jurídico ou que representem apenas má disposição de interesse próprio, como
automutilação, suicídio tentado, dano à coisa própria etc.
Não por acaso a Constituição argentina (art. 19) dispunha expressamente que
“as ações privadas de homens que de nenhum modo ofendam à ordem e à moral
pública, nem prejudiquem a um terceiro, estão reservadas a Deus e isentas da auto­
ridade dos magistrados”.67 E embora não tenhamos um dispositivo constitucional
tão claro, cabe dizer, com Karam, que o direito à intimidade e à vida privada garan­
tido no art. 5a da nossa Constituição Federal permite depreender, como se deve
depreender de qualquer ordenamento jurídico que se pretenda democrático, que o
direito só pode intervir em condutas que tenham potencialidade lesiva.68

64 Dispõe a esse respeito o art. 29 do Código Penal: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime inci­
de nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”
65 Manual de direito penai, São Paulo: Atlas, 2000, p. 244.
66 Conforme Nilo Batista, o princípio da lesividade tem quatro funções: proibir a incriminação de uma atitude
interna, proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do autor, proibir a incriminação
de simples estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetam
qualquer bem jurídico (introdução crítica, cit., p. 91-97). Penso, porém, que, em realidade, a última função
apontada - que, em rigor, é a função de proteção de bens jurídicos - compreende todas as demais.
67 Com base nesse dispositivo, a Corte Suprema de Justiça argentina, em decisão de 29 de agosto de 1986,
concluiu pela inconstitucionalidade do art. 6 ° da Lei ns 20.771, que corresponde ao nosso art. 16 da Lei de
Tóxicos, que pune o porte de droga para consumo. Em sentido análogo dispunha o art. 4° da Declaração
de Direitos de 1789, ao estabelecer que a liberdade consistia “em poder fazer tudo que não prejudica aos
demais; desse modo, a existência dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que aqueles
que asseguram aos demais membros da sociedade o desfrute desses direitos. Esses limites não podem ser
determinados senão pela lei”.
68 De crimes, penas e fantasias, cit., p. 130.
Direito Penal - Parte Geral

Com efeito, se é objetivo fundamental da República, como declarado no art. 3®,


constituir uma sociedade livre, se são invioláveis a liberdade, a intimidade (art. 5S)
e a vida privada, e se é explícita a sua vocação libertária, segue-se que nenhum ato
de constrição à liberdade pode ser tolerado, salvo quando em virtude do abuso no
seu exercício resultar dano/lesão à liberdade de outrem. Conseqüentemente, condu­
tas meramente imorais, por mais escandalosas, não autorizam a intervenção penal,69
nem tampouco podem vingar em caráter absoluto presunções legais de violência ou
de perigo, como ainda prevê Código Penal, sob pena de absolutizar o que é relativo.
Com razão Stuart Mill assinalava a propósito que o “indivíduo não responde
perante a sociedade pelas ações que não digam respeito aos interesses de ninguém,
a não ser ele próprio. Conselho, ensino, persuasão, esquivança da parte de outras
pessoas, se para o bem próprio a julgam necessária, são as únicas medidas pelas
quais a sociedade pode legitimamente exprimir o desagrado ou a desaprovação da
conduta do indivíduo”.70 Portanto, o autor há de responder exclusivamente pelo
que faz (direito penal do fato) e não pelo que é (direito penal do autor), de modo que
não é o crime que é identificado a partir do criminoso, mas o criminoso a partir do
crime. E no sistema garantista é só lícito criminalizar tipos de ação e não tipos de
autor; castiga-se pelo que se faz, não pelo que se é; interessa-se por comportamen­
tos danosos, não por seus autores, cuja identidade, diversa, tutela, ainda que sejam
desviados; dirige ao processo a prova dos fatos, não a inquisição sobre pessoas.71
Não é preciso dizer que o princípio se dirige tanto ao legislador quanto aos jui­
zes, aos quais compete verificar a existência e a intensidade da lesão, seja para con­
siderar os comportamentos atípicos, se não existir ou for ínfima a lesão, seja para
considerá-los típicos, se existente e relevante o dano, seja para proceder à indivi-
dualização da pena.

5. Direito e Interpretação

5.1. Introdução

A interpretação e a aplicação do direito formam um processo único72 e comple­


xo que compreendem a análise e a apreciação de fatos, provas e textos, de sorte que

69 Tenho, pois, como inconstitucionais as contravenções de vadiagem, de mendicância (LCP, arts. 59 e 60),
além da norma do art. 16 da Lei ne 6.368/76, que pune o porte de entorpecente para consumo, entre out­
ras disposições.
70 Sobre a liberdade , trad. Alberto da Rocha Barros, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 137.
71 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 704.
72 Como diz Eros Grau, “interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O intérprete discerne o
sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado (Gadamer, 1991:397); a interpreta­
ção do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação (Gadamer, 1991:301).
Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos
distintos, porém, frente a uma só operação (Marí, 1991:236). Interpretação e aplicação consubstanciam um
processo unitário (Gadamer, 1991:381), se superpõem”. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do
direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 84.
constituem momento dos mais importantes da (re)construção social da realidade, arbi­
trária e seletiva, como vimos. Além disso, a aplicação da lei em cada caso particular
requer necessariamente, como todo e qualquer texto, interpretação do seu significado,
com vistas a decidir casos concretos, realizando o direito, daí que o aforisma in claris
non fít interpretado não é mais que uma falácia: confunde a ausência de dificuldades
interpretativas com a ausência de interpretação,73 mesmo porque afirmar que um
texto é claro ou que dispensa interpretação já é um modo de interpretá-lo.
Normalmente a doutrina parte dos seguintes pressupostos ao tratar do tema:
a) a lei já contém o direito, que está assim previamente dado; b) a finalidade da
interpretação é encontrar o sentido exato/correto contido na lei, isto é, a “vontade
da lei” ou a “vontade do legislador” etc.; c) a esse sentido correto da lei se chega por
meio dos métodos de interpretação (lógico, teleológico, histórico etc.), de modo
que interpretação correta é uma interpretação conforme o método; d-) o juiz quan­
do julga um caso faz ou deve fazer um juízo lógico de subsunção do fato à lei.
Também por isso, o tema costuma merecer, nos manuais e monografias jurí­
dicas, tratamento absolutamente marginal.
No entanto, e conforme dissemos ao tratar do seu conceito, o direito não exis­
te (fisicamente), pois é socialmente construído, razão pela qual tais pressupostos
não resistem a uma análise minimamente crítica. É que não é possível pensar que
haja um mundo pré-fabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à
nossa disposição aguardando por sua representação em nossa consciência, afinal
nos processos de interpretação não se trata de descobrir/desvelar uma vontade
preexistente e pronta, pois não é a interpretação que depende do direito (ou da lei),
mas o direito (ou a lei) que depende da interpretação.74 Dito de outro modo: os
juristas em geral pensam fundamentar a priori, dedutivamente, o que em verdade
é fundamentado a posteriori, empiricamente.75
Sintetizando: o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, razão
pela qual constitui a forma mesma de produção do direito, afinal não existem fenô­
menos jurídicos, mas apenas uma interpretação jurídica dos fenômenos (Nietzsche).
Parece certo também que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos,
legais ou não, para condenar, condenamos por queremos condenar e porque julga­
mos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou
não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante
fazê-lo. Em síntese: sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque
queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são
atos de verdade, mas atos de vontade.

73 Cobo dei Rosai e Vives Antón, Derecho penal, p. 103.


74 Günter Abel. Verdade e interpretação, in Nietzsche na Alemanha, org. por Scarlett Merton. S. Paulo: Dis­
curso Editorial, 2005.
75 Pierre Bourdieu. Los juristas, guardianes de la hipocresía colectiva, in Jueces para la democracia. 2003:47,
julio.
Direito Penal - Parte Geral

Convém notar, finalmente, que, apesar da condição privilegiada do juiz no


processo penal, não é ele o único a interpretar/julgar, pois tal tarefa é comum aos
diversos personagens que tomam parte nessa construção social da realidade, pois
são especialmente importantes nesse processo de produção de sentido: membros do
Ministério Público, advogados, testemunhas, peritos, vítimas etc., cada um a seu
modo dando sua própria versão e interpretação dos fatos submetidos a julgamento,
de sorte que, em última análise, a interpretação judicial sintetiza múltiplas inter­
pretações: é a interpretação das interpretações.
Exatamente por isso, não se pode dizer a p rio ri se um determinado comporta­
mento é doloso ou culposo, lícito ou não, culpável ou inculpável, razão pela qual
uma mesma conduta (v. g., ferir a esposa por flagrá-la em adultério) poderá ser con­
siderada ora lícita, ora ilícita, ora culpável, ora inculpável, ora punível, ora impu-
nível, a depender da interpretação, afinal todo texto pressupõe um dado contexto.
Finalmente, e conforme ressalta Castaiúieira Neves, o problema jurídico-normati-
vo da interpretação não é apenas o de determinar a significação jurídica que expri­
mem as leis ou quaisquer normas jurídicas, mas o de obter dessas leis ou normas um
critério prático normativo adequado de decisão dos casos concretos, motivo pelo
qual uma boa interpretação não é aquela que, numa perspectiva hermenêutico-exe-
gética, determina corretamente o sentido textual da norma; é antes aquela que
numa perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa
decisão do problema concreto.76

5.2. Interpretar é compreender e argumentar

Ainda hoje é assim corrente a afirmação de que interpretar é dar ao texto legal
seu correto significado, idéia que pressupõe a existência de um sentido prévio à inter­
pretação mesma, sentido a ser descoberto por meio dos métodos interpretativos,
como se o direito já estivesse previamente dado, como se existisse ontologicamente;
e subjacente a isso está uma confusão, mais ou menos consciente, entre lei e direito.
No entanto, interpretar é compreender e argumentar corretamente num sis­
tema aberto,77 argumentação de que participam, sobretudo, advogados, promoto­
res e juizes (mas não só eles). E se múltiplas são as possibilidades de argumentação,
múltiplas também hão de ser as possibilidades de interpretação correta do texto e
da realidade a que se refere.78 Por isso, a interpretação de uma lei não deve neces­

76 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 84.


77 Arthúr Kaufmann, Panorâmica histórica de los problemas de la filosofia dei derecho, in El pensam ienco
jurídico contem porâneo, Ed. Debate, 1992, p. 131.
78 Não é exato dizer, portanto, com Aníbal Bruno, que “interpretar a lei, isto é, penetrar-lhe o verdadeiro
exclusivo sentido, é o primeiro problema do jurista em face do Direito positivo” (Direito penal: parte geral,
Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 127). Tampouco se poderá dizer hoje, com Hungria, que “a fonte única
do direito penal é a norma legal. Não há direito penal vagando fora da lei escrita. Não há distinguir, em ma­
téria penal, entre lei e direito (...). A lei penal é, assim, um sistema fechado: ainda que se apresente omis­
sa ou lacunosa, não pode ser suprida pelo arbítrio judicial, ou pela analogia, ou pelos princípios gerais de di-
Paulo Q ue iro z

sariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta, mas a diversas
soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual
valor.79 Ou seja, interpretar é escolher entre várias possibilidades igualmente váli­
das, pois, como disse Kelsen, o direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma
moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é con­
forme o direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura, que
preencha essa moldura em qualquer sentido possível.80
Mas fato é que, a pretexto de preservar o “princípio da segurança jurídica”, a
doutrina costuma defender a necessidade de se adotarem critérios/métodos no sen­
tido de encontrar a (única ou melhor) resposta correta, invocando, para tanto,
metáforas como o “espírito da lei” e semelhantes, já em si uma tática argumentati-
va. Isso, além de incorreto, não seria nem justo nem conveniente, pois uma tal
idéia, absolutamente incompatível com uma sociedade multicultural e multifaceta-
da, é própria de uma ideologia antiliberal, que não acolhe, antes rechaça, as dife­
renças - de sexo, de raça, de cultura etc. Ademais, pretender unir ciência à idéia de
unidade, de pureza, de perfeição, quer se refira à política, quer se refira à religião,
quer se refira ao direito, é sempre perigoso e tendencialmente tirânico, e que há de
ser, por isso, permanentemente combatido. No particular, nada há a lamentar, por­
tanto, muito ao contrário: com abolir semelhante preconceito, surgem novas pos­
sibilidades de um direito penal democrático (plural), porque reconhecer a incerte­
za e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do
homem. A não ser assim, poder-se-á substituir, no futuro, os atuais juizes, promo­
tores e advogados por sofisticados programas de computador.
Portanto, afirmar que só uma resposta é correta é assumir uma postura arro­
gante diante de outras respostas igualmente possíveis e válidas. Como bem observa
Margarida Camargo, ao contrário dessas posições monolíticas, o que se aponta agora
sob o viés da pós-modemidade é que, no lugar do universal, encontra-se o históri­
co; no lugar do simples, o complexo; no lugar do único, o plural; no lugar do abstra­
to, o concreto; e no lugar do formal, o retórico, pois o direito consiste na realização
de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa.81

5.3. O chamado círculo hermenêutico

Conseqüentemente, interpretar um texto legal, isto é, compreender e fazer


compreender o seu significado, não é uma questão de mera aplicação de métodos,82

reito, ou pelo costume. Do ponto de vista de sua aplicação pelojuiz, pode mesmo dizer-se que a lei penal
não cem lacunas”. Comentários, cit., v. 1, p. 13).
79 Kelsen, Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.390.
80 Teoria pura do direito, cit., p. 390.
81 Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro-Sao Paulo: Renovar, 2003, p. 250.
82 Como assinala Hassemer, não há uma meta-regra das regras interpretativas, isto é, não há uma pauta que
prescreve ao juiz a aplicação de um determinado método em cada caso, pois, metodicamente, o juiz é livre
D i r c i m Pe n a l - Pa rt e C or al

porque entender e interpretar textos não é somente um empenho da ciência, já qu e


pertence ao todo da experiência do homem no mundo,83 e isso se dá de tal modo
que aquele que compreende já está incluído num acontecimento em razão do qual
se faz valer o que tem sentido, de sorte que não existe compreensão que seja livre
de todo preconceito, por mais que a vontade do nosso conhecimento tenha de estar
dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos.84 Dito de outro
modo: a compreensão do sentido lingüístico não constitui um fenômeno puramen­
te receptivo, pois implica inevitavelmente a autocompreensão do próprio sujeito
que realiza a compreensão, fazendo surgir o direito histórico, concreto.85
Assim, a interpretação do direito realiza-se por meio de um processo circular
de compreensão em que entre o texto e o intérprete se estabelece uma mútua refe­
rência, pois, como diz Saavedra, o leitor entende o texto a partir da posição de par­
cialidade que decorre de sua relação com o objeto mencionado no texto: “se o tex­
to”, escreve Saavedra, “fala de poder, de justiça, de arte ou da vida, o leitor com­
preenderá o texto em função de suas próprias experiências sobre o poder, a justiça,
a arte ou a vida. Essas experiências podem mudar, evidentemente, e podem mudar
também a conseqüência do contato que o leitor mantém com o texto, mas o que
parece evidente é que não há nenhuma leitura ingênua, porque o intérprete sem­
pre leva consigo uma compreensão prévia daquilo que quer compreender quando

na eleição das regras interpretativas, e como as diferentes regras conduzem a resultados diferentes quan­
to à compreensão “correta” da norma, não podem elas, por conseqüência, garantir a vinculação estrita do
juiz à lei (Ei pensam iento jurídico contemporâneo, cit., p. 212). No mesmo sentido, Kelsen, Teoria pura
do direito, cit.
83 Gadamer, Verdade e m étodo. Petropólis: Vozes, 1999, p. 31.
84 Gadamer, Verdade c m étodo , cit., p. 708-709. Escreve o citado autor textualmente: “Aquele que com­
preende já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem sentido.
Está justificado que, para o fenômeno hermenêutico, se empregue o mesmo conceito do jogo que para a
experiência do belo. Quando compreendemos um texto nos vem os tão atraídos por sua plenitude de sen­
tido como pelo belo (...). Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verda­
de e quando queremos saber o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde (...). Assim,
é certo que nao existe compreensão que seja livre de todo preconceito, por mais que a vontade do nosso
conhecimento tenha de estar sempre dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos.
No conjunto da nossa investigação evidencia-se que, para garantir a verdade, não basta o gênero de cer­
teza, que o uso dos métodos científicos proporciona. Isso vale especialmente para as ciências do espírito,
mas não significa, de modo algum, uma diminuição de sua cientificidade, mas, antes, a legitimação da pre­
tensão de um significado humano especial, que elas vêm reivindicando desde antigamente. O fato de que,
em seu conhecimento, opere também o ser próprio daquele que conhece, designa certamente o limite do
‘método’, mas não o da ciência. O que a ferramenta do ‘método’ não alcança tem de ser conseguido e pode
realmente sê-lo através de uma disciplina do perguntar e do investigar, que garante a verdade.”
85 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in El pensamiento, cit., p. 129. Já Heidegger escrevera que “a interpre­
tação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia.
A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da
interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que ‘está’ no texto,
aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais do que opinião prévia, indiscutida e
supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo
aquilo que a interpretação necessariamente já ‘põe’, ou seja, que é preliminarmente dado na posição pré-
via, visão prévia e concepção prévia” (S e re tempo, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 207).
empreende a leitura do texto”.86 Dito de outro modo: à semelhança do pintor, que
não pinta sobre uma tela virgem, e do escritor, que não escreve sobre uma página
em branco, pois a tela ou a página já estão cobertas de clichês preexistentes,87 tam­
bém o juiz não julga a partir apenas dos dizeres da lei, isto é, a partir do nada.
Em conseqüência, não é possível, como assinala Arthur Kaufinann, interpre­
tar corretamente segundo métodos ou segundo a hierarquia de argumentos, pois
em última análise sobre o valor e a hierarquia de um meio interpretativo ou de um
argumento decide o próprio intérprete,88 mesmo porque não há um método para a
escolha do método.89 E o juiz que supõe tomar seus critérios de decisão unicamen­
te da lei é vítima de fatal engano, pois (inconscientemente) permanece dependen­
te dele mesmo, quando em realidade só o juiz que tenha plena consciência de que
sua pessoa se co-implica no processo interpretativo pode ser verdadeiramente inde­
pendente.90 Por isso que o ato de interpretar não é algo meramente contemplativo
da norma, não é uma revelação - não é um ato declarativo, mas constitutivo91 - ,
por cujo meio se investiga e se descobre a (prévia) “vontade da lei” ou a “vontade
do legislador”, como ainda entende grande parte da doutrina, mas um ato de cria­
ção do direito, a partir de argumentação que empresta certo e determinado signifi­
cado àquilo que se interpreta.92 Numa palavra: com a interpretação não se extraem
sentidos da lei, mas sentidos lhe são atribuídos por meio da interpretação.
Parece aliás haver algo de mágico nessa crença de que o juiz julga segundo
uma (suposta) vontade da lei ou do legislador, pois seria como acreditar, por exem­
plo, que, a partir do sopro de um sax ou do dedilhar de uma guitarra, se pudessem
produzir todos os sons e melodias, já que, de acordo uma tal concepção, importa

86 Citado por Amilton Bueno de Carvalho, Papel dos juizes na democracia, Doutrina, Rio de Janeiro, nç 1,
2002.
87 Deleuze, Giles e Guattari, Félix. O que é filosofia? S. Paulo; Editora 34, 2005.
88 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in Elpensamiento , cit., p. 129.
89 Lédio Rosa de Andrade, O que é direito alternativo? Florianópolis: Habitus, 2001, p. 54.
90 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in El pensamiento, cit., p. 130.
91 Como ensina Kelsen, “uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter decla-
ratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado,
cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples ‘descoberta’ do Direito ou juris-‘dição’
(‘declaração’ do Direito) neste sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determi­
nação da norma geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simples­
mente declarativo, mas constitutivo.” Teoria pura do direito , cit., p. 264.
92 De acordo com Lênio Streck, não existem em verdade julgamentos de acordo com a lei ou em desacordo
com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construída pelo
intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um
julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a dou­
trina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que o
Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que
palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e p e h lingua­
gem. É o que a lei manda, mas também o que os juizes interpretam, os advogados argumentam, as partes
declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. E, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que
designa/atribui significado a fatos e palavras” (Hermenêutica jurídica em crise, Porto Alegre: Livraria do
Advogado Ed., 1999, p. 210-211).
Direito Penal - Parte Geral

mais o objeto do que o sujeito, mais o instrumento do que o instrumentista. No


entanto, uma boa interpretação, tanto na música como no direito, mais do que téc­
nica e razão, exige talento e sensibilidade.
Não fosse assim, isto é, não fossem os textos compreendidos a partir da expe­
riência do homem no mundo, da pré-compreensão que o próprio intérprete tem do
texto interpretado, não se entenderia como o mesmo enunciado legal pudesse com­
portar ao mesmo tempo múltiplas interpretações (pelo mesmo intérprete até) ou
que, ao longo do tempo, pudesse sofrer tantas mudanças de interpretação, inclusi­
ve sem alteração da redação do texto legal, inclusive, a exemplo da Parte Especial
do Código Penal de 1940, especialmente no que se refere ao capítulo dedicado aos
crimes sexuais. O direito é, assim, algo que, com ou sem mudança dos textos, está
em permanente evolução e transformação, não sendo, em conclusão, um “objeto”
que possa ser conhecido independentemente do “sujeito”.93
Aliás, o espectador minimamente crítico sabe que expressões como “o juiz é
um escravo da lei” ou “o juiz é a boca que pronuncia as palavras da lei”94 etc.95 são
meros chavões, principalmente se já houver tido a oportunidade de assistir ao que
se passa durante uma sessão do Tribunal do Júri, em que se pede aos jurados que
julguem “conforme a consciência e os ditames da justiça” (CPP, art. 472), e não
“conforme a lei”, algo um tanto distinto, onde o resultado do veredicto depende,
grandemente, da performance dos oradores (promotores e advogados); e ali o júri,
mais do que fatos, julga as pessoas envolvidas no conflito (acusado e vítima): seu
modo de ser, seu histórico de vida, sua família, status etc., não raro absolvendo o
réu e condenando a vítima.
Parece inclusive que, no plano do inconsciente, quando os juizes de algum
modo se identificam com o autor do crime tendem naturalmente a absolvê-lo ou a
atenuar o castigo (v. g., a cumplicidade com o marido traído); contrariamente, quan­
do a identificação é com a vítima do crime (v. g., criança indefesa), o desfecho pro­
vável é a condenação.

93 Na verdade, no âmbito do direito penal não se pode falar rigorosamente de uma relação sujeito/objeto,
simplesmente porque o seu objeto é o próprio sujeito, isto é, o homem, autor de uma conduta pretendi-
damente típica, antijurídica, culpável e punível, de modo que aqui o que se estabelece é mais exatamente
uma relação sujeito/sujeito - o homem que compreende, que interpreta, que julga o seu semelhante e que,
portanto, compreende e julga a si mesmo. Daí dizer Boaventura de Souza Santos que todo conhecimento
é uma forma de autoconhecimento e todo desconhecimento é autodesconhecimento. Um discurso sobre
as ciências. São Paulo: Cortez, 2003, p. 92.
94 A expressão é de Montesquieu.
95 Não se pode concordar, portanto, atualmente, com Beccaria, que, tendo fundadas razões para temer o
arbítrio dos juizes, afirmava que “o juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a
menor, a ação conforme a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um
raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro. Nada mais perigoso do
que o axioma de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e
abandonar as leis à torrente das opinões” (Dos delitos e das penas , cit., § IV, p. 35). No particular, seguia
passagem famosa de Montesquieu, para quem os juizes não são mais que a boca que pronuncia as senten­
ças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor (O espírito das leis, cit.,
Livro XI, VI, p. 123).
Paulo Queiroz

Daí dizer Arthur Kaufmann que a hermenêutica jurídica não diz nada dife­
rente do que tem sido válido e sempre tem sido praticado, porque o único que real­
mente faz é mostrá-lo à luz, destruindo assim algumas ilusões, sobretudo a ilusão
de que a investigação do direito seja mera subsunção lógico-formal do fato à lei.96
Enfim, o raciocínio dos magistrados não é, como assinala Lédio Rosa de Andrade,
silogístico, mas redutivo e classificatório, porquanto, ao atribuir uma interpretação
ao signo “lei”, o magistrado usa ideologia e ressignifica seu conteúdo, de modo que
não só acrescenta algo ao direito, como o modifica constantemente.97
Por conseguinte, a interpretação, à semelhança da fotografia, varia conforme não
apenas as imagens que se vêem e se contemplam, mas também segundo a ciência ou a
insciência, a maturidade ou a imaturidade, a arrogância ou a humildade de quem
interpreta ou fotografa, pois o homem-juiz, ao pretender julgar “o processo segundo a
lei”, julga conforme os seus medos, as suas pretensões e os seus sentimentos, a sua
vocação ou o seu alheamento, a sua grandeza ou a sua pequenez, julga, enfim, segun­
do a sua sensibilidade. A interpretação é uma fotografia da alma do intérprete.98
Ademais, o ato de interpretar é um ato singular e único, mesmo porque o con­
texto em que são praticados e julgados os fatos é irrepetível, e, como disse Herácli-
to, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois novas águas estão sempre
fluindo.99 Mais: graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor,
das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a auto­
nomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira indepen­
dente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável.100

96 Panorâmica..., in El pensamiento, cit., p. 131.


97 Direito ao direito, Curitiba: JM Ed., 2001, p. 117.
98 Como observa Alf Ross: “o juiz é um ser humano. Por trás da decisão tomada encontra-se toda a sua per­
sonalidade. Mesmo quando a obediência ao direito (a consciência jurídica formal) esteja profundamente
enraizada na mente do juiz como postura moral e profissional, ver nesta o único fator ou móvel é aceitar
uma ficção. O juiz não é um autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões. E um
ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social, tomando decisões que sente ser corretas de
acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural. Seu respeito pela lei não é absoluto. A obediência a
esta não constitui o único motivo. Aos seus olhos, a lei não é uma fórmula mágica, mas uma manifestação
dos ideais, posturas, padrões ou valorações que denominamos tradição cultural (...). Se na maioria dos
casos o juiz decide dentro do campo de interpretação cognoscitiva, é indício de que sua consciência jurí­
dica julgou possível aprovar a decisão, ou, em todo caso, não a considerou incompatível com o justo ou
com o socialmente desejável, num tal grau que tornasse a recorrer a algum expediente para livrar-se das
amarras da lei. Se os postulados político-jurídico-morais de sua consciência jurídica tivessem levado o juiz
a considerar que a decisão é inaceitável esse teria podido também, mediante uma adequação, descobrir a
via para a melhor solução (...). Podemos, de maneira definitiva, dizer que a administração do direito não
se reduz a uma mera atividade intelectual. Está enraizada na personalidade total do juiz tanto em sua cons­
ciência jurídica formal e material quanto em suas opiniões e pontos de vista racionais. Trata-se de uma
interpretação construtiva, a qual é, simultaneamente, conhecimento e valoração, passividade e atividade”.
Direito e justiça, São Paulo: Edipro, 2003, p. 168-169.
99 Cf. Bertrand Russell, História do pensamento ocidental: as aventuras das idéias dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, p. 31.
100 Paul Ricoeur, in o justo e a essência da justiça, instituto Piaget, Lisboa, 1995,
Direito Penal - Parte Geral

Pois bem, se tudo isso é válido para a interpretação em geral e para as situa­
ções “normais”, tal vale, com maior força de razões, para a interpretação no âmbi­
to do direito penal, em que à superprodução de leis penais sem o menor critério,
editadas, não raro, para criar uma só impressão - e uma falsa impressão - de segu­
rança jurídica (leis puramente simbólicas e grandemente demagógicas), soma-se
uma linguagem em geral confusa e imprecisa, tipos de conteúdo de todo vago, já
não bastasse o fato de a interpretação/aplicação das normas competir a órgãos que
atuam de forma autônoma, sem nenhuma coordenação entre si e com grande mar­
gem de discricionariedade: Polícia, Órgãos da Execução Penal, Ministério Público,
Judiciário etc. Aqui, mais do que em qualquer outro campo do direito, a interpre­
tação/aplicação das normas jurídicas ocorre de forma arbitrariamente seletiva e
criadora de crimes e criminosos. E não se pode ignorar que a construção social do
crime é também, em boa parte, resultado da forma de interpretar e aplicar o direi­
to penal; afinal, a pretexto de julgar fatos, julgam-se, de ordinário, homens; a pre­
texto de julgar homens, julgam-se estereótipos, mesmo porque, estando as normas
dirigidas à descoberta da verdade processual, e não da verdade existencial, ter-se-á
inevitavelmente uma simplificação um tanto deformadora e descontextualizada -
sempre parcial - da natureza humana.101
No particular, Foucault já assinalara que, por meio do direito penal, julgam-se
também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os
efeitos do meio ambiente ou de hereditariedade; punem-se as agressões, mas, por
meio delas, as agressividades, e, ao mesmo tempo, as perversões, impulsos e desejos
humanos; julga-se, enfim, a “alma” do criminoso, de sorte que a sentença que conde­
na ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, pois implica uma apre­
ciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível.102
Por tudo isso, parece-nos inútil estudar interpretação a partir de métodos,
porque; a) não existe um método para a eleição do método, cabendo ao interprete
decidir sobre o método e o argumento a seguir e sua respectiva hierarquia; b) toda
compreensão é precedida de uma pré-compreensão, a qual é determinante para a
compreensão e decisão a ser tomada; c) é possível partir do mesmo método e, não
obstante, chegar a decisões distintas, pois a pessoa do intérprete está co-implicada
no processo de interpretação; d) a eventual adoção de um método, se tiver alguma
relevância, servirá apenas para justificar/legitimar decisões já tomadas previamen­
te à eleição do método; e) o direito não é um saber lógico-subsuntivo, mas analógi­

101 Segundo Vera Felicidade, para quem “a essência humana é uma unidade, que se polariza enquanto sujei­
to e objeto”, “não há um bem, não há um mal; a maldade não resulta de condições sociais e econômicas
adversas, tanto quanto não é um instinto humano, não é uma ausência de Deus, não c a presença do
Demônio. A maldade é a desumanização criada pelo auto-referenciamento, após impasses não enfrenta­
dos, limites não aceitos. As pessoas se comportam como se comportam em função de como se percebem,
como percebem o outro e o mundo. É esta relação que estrutura o humano, que estrutura o desumano” .
Desespero e maldade, Salvador: Ed. do Autor, 1999, p. 14.
102 Vigiar e punir, história da violência nas prisões, trad. Raquel Ramalhete, 12. ed., Petrópolis: Vozes, 1995,
p. 21 c s.
co; f) o direito não está previamente construído; g) por meio da interpretação não
se extraem significados da lei, mas significados lhe são atribuídos.
Enfim: não é a interpretação que depende do direito, mas o direito que depen­
de da interpretação. O direito é interpretação.

5.4. Limites da interpretação

Atualmente parece não haver dúvida de que, por maior que seja a clareza e
exatidão de um texto legal, é sempre possível interpretá-lo de várias formas, em
vfrtude do caráter estruturalmente aberto da linguagem e, pois, dos conceitos jurí­
dicos. Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são infini­
tas (Derrida, Umberto Eco). Mas isso significa que qualquer interpretação é válida?
Existem limites à interpretação?
Parec«-nos que tais limites existem ou devem existir realmente.103
Em primeiro.lugar, é preciso reconhecer que há interpretações erradas, isto é,
tecnicamente incorretas. Exemplo disso são as que se fundam em leis já revogadas
como se ainda estivessem em vigor; as que desconhecem a legislação específica; as
que validam cálculos matemáticos incorretos, relativamente à prescrição, decadên­
cia, prazos etc.; as que se baseiam numa leitura equivocada do texto; as tomadas por
juizes evidentemente incompetentes; as que contrariam princípios e regras por
desconhecimento; as que encerram contradição insuperável, entre outras.
Mas que dizer da interpretação tomada conscientemente e sem erros técnicos?
Pode um juiz deixar de condenar alguém por crime contra a liberdade sexual por
julgar que a vítima, por ser prostituta ou homossexual, não é passível de proteção
jurídica? É sustentável ainda, como no passado, que mulher casada não pode ser
vítima de estupro praticado pelo marido, em razão dos deveres do casamento?
Policiais podem matar fora dos casos legalmente admitidos?
Temos que, seja qual for o rótulo que se associe a cada comportamento (pros­
tituta, homossexual etc.), toda pessoa humana, independentemente de qualquer
outra qualidade, tem direito de ser respeitada enquanto tal, fazendo por isso jus à
proteção da vida, da honra e da liberdade em toda e qualquer circunstância, moti­
vo pelo qual o juiz não pode negar proteção à prostituta, ao homossexual ou à
mulher casada sob nenhum pretexto.
Pela mesma razão, não se pode considerar legítima a ação de policiais que tor­
turam e matam supostos criminosos fora dos casos legalmente autorizados (legíti­
ma defesa) em nome da segurança pública ou semelhante, porque do contrário não

103 Ncssc sentido, Umberto Eco: dizer que um texto c potencialmente sem fim não significa que todo ato de
interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionismos mais radical aceita a idéia de que
existem interpretações clamorosamente inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restri­
ções a seus interpretes. Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto, o que não quer
dizer que coincidem com os direitos do seu autor. Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspec-
Direito Pena] - Pano Geral

existirá diferença alguma entre policiais e criminosos, entre lícito e ilícito, entre o
direito e o torto.
Não obstante isso, por mais que consideremos determinadas decisões como
incorretas, absurdas ou inaceitáveis, uma coisa parece certa: os limites da interpre­
tação são dados por uma outra interpretação, afinal a afirmação de que uma dada
sentença é incorreta, absurda ou inaceitável encerra igualmente uma interpretação.
Naturalmente que a interpretação predominante (majoritária) não é necessa­
riamente a melhor, porque tal implica uma manifestação de poder, motivo pelo
qual prevalecerá a de quem (pessoa, órgão ou instituição) tiver atribuição legal
(poder) para a impor ou institucionalizar, podendo inclusive ser a mais arbitrária
dentre as possíveis.

5.5. Interpretação e garantismo

O garantismo,104 conforme definição de Ferrajoli, constitui um esquema epis-


temológico de identificação da desviação penal destinada a assegurar, em relação a
outros modelos de direito historicamente concebidos e realizados, o máximo grau
de racionalidade e, pois, o máximo grau de limitação da potestade punitiva e de
tutela da pessoa humana contra a arbitrariedade,105 ou seja, constitui uma técnica
de tutela capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade,106 como ins­
trumento de defesa dos direitos fundamentais. Dir-se-á garantista, assim, todo
modelo de direito penal que respeitar, minimamente, as seguintes garantias - os
dez axiomas do garantismo penal - 1) o princípio de retributividade ou de sucessi-
vidade da pena em relação ao delito (nulla p oen a sine crim ine); 2) o princípio da
legalidade (nullum crim en sine leg e); 3) o princípio da necessidade ou da economia
do direito penal (nulla lex sine necessitate)-, 4) o princípio da lesividade ou da ofen-
sividade do fato (nulla necessitas sine iniuría); 5) o princípio de materialidade ou
de exterioridade da ação (nulla iniuria sine actione); 6) o princípio da culpabilida­
de ou de responsabilidade pessoal (nulla actio sine culpa); 7) o princípio da jurisdi-
cionalidade (nulla culpa sine iudició); 8) o princípio acusatório ou de separação
entre juiz e acusação (nullum iudicium sine accusatione);9) o princípio do ônus da
prova ou de verificação (nulla accusatio sine probatione); 10) o princípio do contra­
ditório (nulla probatio sine d efension e).107 Contrariamente, dir-se-á antigarantista
todo modelo de direito que não respeitar, total ou parcialmente, tais princípios.
Dito de outro modo: o garantismo penal é um modelo de legitimação (e tam­
bém de deslegitimação) do sistema penal que parte da premissa de que o direito pe­

104 Convém esclarecer que o garantismo é um modelo de justificação do direito, e não só do direito penal, mas
aqui nos interessa, de modo particular, o direito penal. A expressão também pode ser adjetivada dc garan­
tismo negativo e garantismo positivo. A primeira tem a ver com o respeito às garantias de legalidade, pro­
porcionalidade etc. A segunda diz respeito à realização dos direitos sociais.
105 D erecho y razón, cit., p. 34.
106 Ferrajoli, Dcrccho y razón, cit., p. 851.
107 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 93.
nal surgiu e se justifica, historicamente, como um instrumento de prevenção (sub­
sidiária) de reações públicas ou privadas arbitrárias contra os cidadãos, de tal modo
que os princípios (liberais) de legalidade, proporcionalidade, pessoalidade da pena
etc. constituem autênticas garantias individuais. Ou ainda: o direito penal, por meio
de seu sistema de garantias, constitui a lei do mais fraco diante do mais forte - no
momento do cometimento do crime, pretende proteger a vítima (o mais fraco) con­
tra o criminoso (o mais forte); no momento do processo, o réu (o mais fraco) con­
tra o Estado (o mais forte). Constitui também um sistema que busca aproximar,
maximamente, normatividade e efetividade, diminuindo, tanto quanto possível, o
abismo existente entre o discurso jurídico-penal e sua realidade operativa.

5.6. Interpretação conforme a Constituição108

Se, como afirmamos, o direito nasce e morre na Constituição, segue-se que os


princípios e valores constitucionais fundamentais devem ser, em conseqüência, o
ponto de partida e o ponto de chegada de toda e qualquer interpretação, indepen­
dentemente da natureza (civil, penal) das normas em questão, mesmo porque, em
razão da pretendida unidade lógica do direito, não se pode falar de uma hermenêu­
tica civil, penal ou processual, mas de hermenêutica jurídica simplesmente. Assim, a
Constituição passa a ser, em toda a sua substancialidade, o topos hermenêutico que
conformará a interpretação judicial do restante do sistema jurídico.109 Afinal, se
interpretar é argumentar corretamente, isso significa, antes de tudo, argumentar a
partir de princípios, e não só a partir de regras, buscando sempre a interpretação mais
condizente com os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, especialmente.
Isso vale sobretudo para o direito penal, por traduzir a forma mais incisiva de
intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos, em cujo favor (da liberdade) a
Constituição Federal, visando a assegurar-lhe a efetividade, consagra, num exaus­
tivo artigo - o 5o uma série de garantias (legalidade, humanidade das penas, esta­
do de inocência etc.) E essa incorporação em nível constitucional dos direitos fun­
damentais, altera, como ressalta Ferrajoli, a relação entre o juiz e a lei e atribui à
jurisdição um papel de garantia do cidadão contra as violações da legalidade, em

108 Esclareço que dou à expressão “interpretação conforme a Constituição” significado mais amplo do que o
faz a doutrina constitucional, para referir toda e qualquer interpretação (com e sem redução de texto) de
acorâo com os valores e princípios da Constiruição Federal, isto é, toda e qualquer interpretação garantis-
ta, que traduza, com o máximo de fidelidade, o respeito aos princípios constitucionais, ainda que, para
tanto, tenha o juiz de, eventualmente, atuar como legislador positivo, até porque estou hoje convencido
de que o juiz é, sim, uma espécie de legislador: legislador do caso concreto e, por isso, com maiores limi­
tações. Ademais, o art. 28, parágrafo único, da Lei ne 9.868/99, ao dispor que “a declaração de constitucio-
nalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive interpretação conforme a Constituição e a declaração par­
cial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em rela­
ção aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”, acabou por
equipará-Ias, dando-lhes tratamento unitário quanto aos efeitos.
109 Lênio Streck, Hermenêutica , cit., p. 215.
qualquer nível, por parte dos poderes públicos,110 significando dizer que o direito
de exigir a observância das garantias constitucionais constitui uma garantia do
cidadão em face do poder punitivo do Estado.'11
Por conseguinte, atualmente não basta à aplicabilidade da lei penal sua vigên­
cia - entendida como respeito à competência e procedimento para a sua elabora-
ção; é preciso mais: a sua validade, é dizer, conformação da norma às garantias fun­
damentais da pessoa humana. Aliás, exatamente nessa sujeição do juiz à Consti­
tuição, e, portanto, no seu papel de garante dos direitos fundamentais constitucio­
nalmente estabelecidos, reside o principal fundamento atual da legitimação da
jurisdição e da independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes
(Legislativo e Executivo).112
Conseqüentemente, como guardião da legalidade constitucional, a missão pri­
meira do juiz, em particular do juiz criminal, antes de apreciar fatos e provas, é
apreciar a própria lei a ser aplicada, é apreciar, enfim, a sua compatibilidade - for­
mal e substancial - com o sistema de valores e princípios constitucionais, para, se
a entender ofensiva ao texto, interpretá-la conforme a Constituição ou, não sendo
isso possível, deixar de aplicá-la, simplesmente, declarando-lhe a invalidade.113
Exemplo da primeira hipótese - que se apóia no princípio da conservação das
normas114 - foi dado pelo Superior Tribunal de Justiça, quando, embora reconhe­
cendo que a Lei n5 9.455/97 (Lei de Tortura) tivesse, ao permitir para o crime de tor­
tura (crime equiparado constitucionalmente a hediondo - CF, art. 5S, XLIII) a pro­
gressão de regime, afrontando, assim, a unidade do tratamento dada pela Consti­
tuição aos crimes hediondos e assemelhados, entendeu que semelhante benefício
deveria ser estendido aos demais crimes hediondos (latrocínio, estupro, tráfico), vale
dizer, deu à Lei de Tortura interpretação conforme a C o n stitu iç ã o .D e forma aná-

110 D erechos y garantias: la ley dei más débil, Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 26.
111 Para Lênio Streck, a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio, é um princípio imanen-
te da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que
todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela ( Hermenêutica , cit., p. 2 2 1 ).
112 Ferrajoli, D erechos y garantias, cit., p. 26.
113 Conforme Paulo Bonavides, a interpretação conforme a Constituição, que permite, entre as várias inter­
pretações possíveis, preferir aquela compatível com o texto constitucional, não é, em rigor, um princípio
de interpretação da Constituição, mas um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a
Constituição (Curso, cit., p. 474).
114 Canotilho (Direito constitucional, Coimbra: Almedina, 1996, p. 229): “o princípio de conservação das nor­
mas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma,
ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição.” Sobre as várias formas de interpretação con­
forme a Constituição, ver, também, Alexandre de Moraes, Direito constitucional, São Paulo: Atlas, 2000.
115 A ementa está assim redigida: “A Constituição da República (art. 5a, LXIII) fixou regime comum, consi­
derando-os inafiançáveis e insusceptíveis de graça e anistia, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entor­
pecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. A Lei 8.072/90 conferiu-lhes
a disciplina jurídica, dispondo: 'a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em
regime fechado’ (art. 2°, § Ia). A Lei 9.455/97, quanto ao crime de tortura, registra no art. Io, § 7°: ‘o con­
denado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2°, iniciará o cumprimento da pena cm regime
fechado’. A Lei 9.455/97, quanto à execução da pena, é mais favorável do que a Lei 8.072/90. Afetou, por­
tanto, no particular, a disciplina unitária determinada pela Carta Política. Aplica-se incondicionalmente.
Paulo Queiroz

Ioga, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul con­
siderou que, embora o art. 34 da Lei n9 9.249/95, ao permitir a extinção da punibí-
lidade pelo recolhimento do tributo nos crimes contra a Ordem Tributária e contra
a Previdência Social, violasse o princípio da igualdade, deveria ter seus efeitos esten­
didos para as demais hipóteses de crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa.116
Exemplo da segunda hipótese, de declaração da inconstitucionalidade da nor­
ma (controle - tradicional - de constitucionalidade), já que se nega, pura e simples­
mente, validade à lei, foi o recente reconhecimento da inconstitucionalidade da
não progressão de regime nos crimes hediondos pelo Supremo Tribunal Federal.117
Nem poderia aliás ser diferente, porque a sujeição do juiz à lei, como assinala
Ferrajoli, já não é mais, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei,
qualquer que seja o seu significado, senão sujeição à lei enquanto válida, é dizer, coe­
rente com a Constituição. E no modelo constitucional-garantista a validade já não é
um dogma associado à mera existência formal da lei, razão pela qual a interpretação
judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma, que corresponde ao juiz
junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compa­
tíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por
elas estabelecidos. Isso significa, portanto, a não-sujeição à lei de forma acrítica e
incondicionada, senão sujeição sobretudo à Constituição, que impõe a crítica das leis
inválidas através da sua reinterpretação em sentido constitucional e a denúncia de sua
inconstitucionalidade.118 É que, a prevalecer o comodismo da aplicação acrítica da lei,
sem valorá-la constitucionalmente, se estará a negar efetividade à Constituição, vio­
lando-a substancialmente, numa clara subversão da hierarquia das normas.

5.7. Direito e analogia

É comum dar-se à analogia,119 no direito e fora dele, tratamento secundá­


rio,120 por se pressupor, em geral, que o meio mais apropriado para a interpreta-

Assim, modificada, no particular, a Lei de Crimes Hediondos. Permitida, portanto, quanto a esses delitos,
a progressão de regime" (RE 170.841 - Paraná (98/0025379-3), rcl. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).
116 A ementa está assim redigida: “No estelionato, mesmo que básico, o ressarcimento do dano, antes do ofe­
recimento da denúncia, inibe a ação penal. O Órgão acusador deve tomar todas as providencias possíveis
para espancar dúvidas que explodem no debate judicial, pena de não vingar a condenação (magistério de
Afnínio Silva Jardim). Lição de Lcnio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinqüen­
tes tributários (Lei 9.249/95, art. 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem
violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante” (ACrim
297.019.937, dc 25-9-1997).
117 Nesse sentido, Karam, De crimes, penas e fantasias, cit.
118 Ferrajoli, Derechos y garantias, cit., p. 26.
119 De acordo com Bobbio, a analogia é um procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamentado
a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante. Teoria do ordenamento jurídico. UnB:
Brasília, 1999, p. 151.
120 Apesar de alguns autores, como Bobbio, reconhecerem que “a analogia é certamente o mais típico e o mais
importante dos procedimentos interpretativos de um sistema normativo: e o procedimento mediante o
qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos
expressamente regulamentados.” Teoria do ordenamento jurídico, p. 151.
Direito Penal - Parte Cieral

ção/aplicação do direito é a subsunção, em nome da segurança jurídica principal­


mente. Afirma-se assim que a analogia só é admitida no direito penal quando for
para beneficiar o réu (in bonam partem ), jamais para prejudicá-lo (in malam p a r­
tem); distingue-se ainda analogia de interpretação analógica, que seriam institutos
distintos.
Ocorre, no entanto, que, se, conforme vimos, um conceito surge da postula-
ção de identidade de coisas não idênticas (v. g., a única coisa em comum entre
matar alguém e soltar balões é sua tipificação jurídico-penal), força é convir que a
analogia não constitui um elemento acidental, mas essencial ao conhecimento,
porque os juízos sobre o belo, o justo ou o legal são construídos em verdade a par­
tir de comparações, de analogias, isto é, recorrendo-se, conscientemente ou não, a
experiências (sempre novas) de beleza, de justiça e de legalidade, uma vez que algo
é belo, justo ou legal em relação (comparação) a alguma outra coisa. Nossos juízos
de valor são juízos analógicos.
Significa dizer que a analogia está assim subjacente a nossos juízos éticos, esté­
ticos, jurídicos etc., ainda quando dele não nos apercebemos, de modo que, quan­
do afirmamos, por exemplo, que algo ou alguém é bom ou ruim, partimos sempre
de nossas referências/experiências (permanentemente em mutação) sobre tais
assuntos; e se eventualmente somos questionados ou contestados sobre o juízo que
expressamos a esse respeito, não raro dizemos que “não tem comparação”, “é
incomparável”, “não há nada igual” etc., explicitando assim o que está subjacente
aos nossos julgamentos.
Exatamente por isso, isto é, formamos nossos juízos a partir de experiências
analógicas, é que, com freqüência, o que antes julgávamos belo ou justo julgamos
agora feio ou ultrapassado ou injusto e vice-versa. E que mudam nossos objetos de
comparação, mudam as nossas experiências, mudam os nossos juízos sobre as coi­
sas, mudamos enfim nós mesmos. Naturalmente que isso não significa que coisas
antigas se tornem necessariamente piores ou desinteressantes com o passar do
tempo, embora possam se tornar ultrapassadas (v. g., arquitetura, bens de consumo
etc.); e ainda quando as coisas não mudam, muda nossa percepção sobre elas.
Mas a analogia é essencial ao conhecimento, jurídico em especial, por um
outro motivo: ao recorrerem, na fundamentação de suas decisões, a leis, preceden­
tes judiciais ou doutrina, juizes e tribunais, a pretexto de fazerem subsunção, em
realidade fazem analogia, pois as situações em comparação nunca são idênticas, mas
mais ou menos semelhantes. Dito de outro modo: as leis, doutrina ou precedentes
e situações a que se referem nunca são absolutamente iguais nem absolutamente
desiguais, e sim, mais ou menos análogos; e quando as semelhanças prevalecem
sobre as dessemelhanças - e isso requer um juízo de valor sempre questionável -,
damos tratamento unitário; caso contrário, damos solução diversa. Com efeito, não
existe, v. g., um furto nem um homicídio absolutamente idêntico a outro, porque
as múltiplas variáveis, de tempo e espaço inclusive, que sempre envolvem tais atos,
tornam cada ação singular, única.
P aulo Q u e iro z

Por isso que os casos habituais de subsunção são em verdade casos de analo­
gia, pois, conforme assinala Arthur Kauftnann, só se poderia separar logicamente
subsunção e analogia, se existisse uma fronteira lógica entre igualdade e semelhan­
ça, mas tal fronteira não existe, porque a igualdade material é sempre mera seme­
lhança e a igualdade formal não ocorre na realidade existindo apenas no domínio
dos números e sinais matemáticos (lógico-formais).121 Daí concluir Castanheira
Neves que a analogia é metodologicamente um elemento da interpretação e a inter­
pretação é normativamente um resultado da analogia.122

5.7.1. Analogia e interpretação analógica?

Mas o certo é que ainda hoje a doutrina distingue analogia e interpretação ana­
lógica, afirmando, como faz Damásio, que “a diferença entre interpretação analó­
gica e analogia reside na voluntas legis: na primeira, pretende a vontade da norma
abranger os casos semelhantes por ela regulados; na segunda, ocorre o inverso: não
é pretensão da lei aplicar o seu conteúdo aos casos análogos, tanto que silencia a
respeito, mas o intérprete assim o faz, suprindo a lacuna”.523 De acordo com esse
entendimento, haveria interpretação analógica, por exemplo, no art. 28, II, do CP,
quando se utiliza da expressão “substância de efeitos análogos”; no art. 71, caput,
quando refere “e outras semelhantes” etc. Diferentemente, haveria analogia, quan­
do, não havendo previsão legal expressa, o intérprete puder aplicar a uma hipóte­
se não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante. Exemplo: o art.
128, II, do CP, prevê que não se pune o aborto praticado por médico, se a gravidez
resulta de “estupro”. Então, se se entender que também na hipótese de “atentado
violento ao pudor” (CP, art. 214) é possível aplicar esse dispositivo legal, por ser
também crime contra a liberdade sexual, castigado com a mesma pena, o caso não
seria de interpretação analógica, mas de analogia, pois a lei se referiu especifica­
mente ao estupro e não a este e ao atentado violento ao pudor. Só haveria interpre­
tação analógica, e não analogia, se o Código dissesse, v.g., “se a gravidez resulta de
estupro ou crime análogo”. Outro exemplo de anologia é a súmula 341 do STJ, que
admitiu a remição pelo estudo, embora a lei só se refira à remição pelo trabalho.
Mas semelhante distinção é ilusória, porque pretende diferençar onde há
identidade. Sim, porque, tanto num como noutro caso, trata-se de fazer um juízo
analógico simplesmente. A diferença consiste unicamente nisto: se a lei expressa­
mente permitir o uso da analogia, haveria interpretação analógica; se não o fizer, o
caso seria de analogia. O que ocorre, portanto, é analogia, ora expressa, ora tácita,
mas analogia sempre, isto é, um juízo comparativo entre duas ou mais situações
semelhantes para se extrair uma determinada conclusão, razão pela qual a assim

121 Filosofia do Direito, cit., p. 186.


122 O Princípio da Legalidade Criminal. Coimbra, 1988, p. 142-143.
123 Direito Penai. Parte Geral. S, Paulo: Saraiva, 2003, p. 46.
Direito Pena) - Parte Geral

chamada interpretação analógica é apenas um sinônimo para analogia tácita. Com


efeito, interpretar analogicamente e fazer analogia são uma só e mesma coisa, uma
vez que se está em ambos os casos a interpretar por meio de comparações.
Além do mais, semelhante distinção parte do pressuposto de que a interpreta­
ção jurídica é como regra um ato lógico-subsuntivo e não analógico. Ocorre que a
analogia (comparação), um modo de inferência misto dedutivo-indutivo, constitui
o próprio critério de determinação do direito. Sim, porque o fato e a norma (o ser
e o dever ser), que têm de ser postos em relação recíproca no processo de determi­
nação do direito, nunca são iguais, mas apenas mais ou menos semelhantes, uma
vez que nunca existe uma absoluta igualdade ou uma absoluta desigualdade, por­
que qualquer ente é igual a todos os outros pelo menos no fato de ser, e distingue-
se ao menos pelo fato de estar numa diferente posição espacial.124
Assim, a pretexto de fazer subsunção (lógica) do fato ao tipo legal de crime, o
juiz em realidade faz analogia, pois entre as previsões legais (normas jurídicas) e as
ações humanas (fatos) sempre novas há relação apenas de aproximação, de seme­
lhança, de correspondência.
Por fim, a alegada distinção parte da premissa - equívoca - de que quando da
interpretação/aplicação, o direito já está previamente dado, cabendo ao intérprete
a cômoda tarefa de descobrir uma suposta vontade da lei ou do legislador, ignoran­
do que, em verdade, o crime (e o próprio direito) não existe materialmente, que é
socialmente construído, conforme os processos de criminalização (primária e se­
cundária), motivo pelo qual o juiz não descobre um sentido prévio à interpretação,
mas o cria por meio dela.
E impossível, assim, estabelecer uma diferenciação entre analogia e interpre­
tação analógica, porque é impossível pensar que uma palavra descreva uma gama
limitada de fatos, ficando outras, embora semelhantes, fora dela.125
Também por isso não cabe distinguir, como ainda faz a doutrina e a legislação
(CPP, art. 3pl26), entre interpretação, aplicação e integração do direito, entre inter­
pretação extensiva e analogia etc.127

124 .Arfbur Kaufma nn. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 119-120. De
modo similar, Rosa Maria Cardoso da Cunha assinala que “relativamente à proibição da analogia in malam
partem , há de se considerar que esta constitui um procedimento lógico e semiótico indeclinável no pro­
cesso de interpretação da lei. É que o direito, e particularmente o direito penal, não se comunica de uma
forma digital, como a linguagem algébrica, por exemplo. O estabelecimento da significação jurídica recla­
ma, em todos os níveis, raciocínios ‘por imagens’, de tipo ou caráter analógico. Assim, quando surge um
caso que os critérios estabelecidos ainda não assimilaram aos casos paradigmáticos relacionados com o
tipo, é necessário ampliar-lhe a significação para fazer caber o novo caso". O caráter retórico do princípio
da legalidade. Porto Alegre: 1979, p. 104.
125 Andrei Schmidt. O Princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado editora, 2001, p. 189.
126 Diz o art. 3o do CPP que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva c aplicação analógica,
bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
127 Criticamente, A. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, cit. Idem, A lf Ross, cit.
Paulo Queiroz

6. Conflito aparente de normas penais

6.1. Introdução

Ocorre o conflito aparente de normas128 - unidade de crime ou concurso de


normas - sempre que sobre um determinado comportamento incide, simultanea­
mente, mais de uma norma penal incriminadora, embora só uma possa ser aplica­
da, situação cada vez mais freqüente, em razão da expansão desenfreada da legisla­
ção penal, em que uma mesma conduta sofre múltiplas criminalizações. Assim,
sobre a conduta de eliminar a vida de alguém, incidem em tese, dentre outras, as
normas dos arts. 121 (homicídio), 123 (infanticídio), 124 (aborto), 129, § 3e (lesão
corporal seguida de morte), 157, § 3e (latrocínio), 158, § 3Q(extoríão seguida de
morte), 213, c/c o art. 223, parágrafo único (estupro com resultado morte), 214, c/c
o art. 223, parágrafo único (atentado violento com morte), todas do Código Penal,
visto produzirem o mesmo resultado final: morte de um ser humano.
Em tal caso, não raro de difícil solução, o juiz terá de, considerando as parti­
cularidades do caso, bem assim os elementos que integram o tipo penal, declarar a
norma a ser aplicada à situação dada, sob pena de violação aos princípios da legali­
dade e proporcionalidade. A idéia básica que preside o concurso é que o conteúdo
do injusto e da culpabilidade de uma ação punível pode ser determinado já exaus­
tivamente conforme uma das normas tomadas em consideração, pelo que desapa­
rece a necessidade ulterior de pena.129
Com efeito, a se admitir a aplicação simultânea de normas penais sobre um só
e mesmo fato, violar-se-ia o princípio proibitivo de dupla valoração do mesmo
comportamento (ne bis in idem ), pois do contrário haveria uma imputação multi­
plicada e a imposição de um castigo repetido do mesmo f a t o . '30 Mas nada impede
que o agente seja concomitantemente punido em âmbitos jurídicos distintos, rela-

128 Na verdade, tais situações não expressam qualquer conflito, tampouco esse suposto conflito pode ser apa­
rente. Primeiro, porque tais normas, antes de se conflitarem, convergem para um propósito único: repri­
mir, mais precisamente, determinado comportamento, de modo que, por essa razão, ou bem se superpõem
(concurso de crimes) ou bem se excluem (concurso de normas). Quando, por exemplo, o legislador achou
por bem criminalizar a tortura, quis punir, mais energicamente, atos ofensivos à dignidade da pessoa
humana, inclusive aqueles lesivos à integridade física e à vida, de modo que, quando resultar configurada
a tortura, ficará prejudicada, em princípio, qualquer outra norma, dada a primazia político-jurídica desta.
Logo, se, numa situação concreta, por razões lógicas e de justiça, impõe-se a aplicação de uma única
norma, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, proibitivo do bis in idem, a questão é de
interpretação correta da norma penal aplicável. Assim, por exemplo, não há, obviamente, conflito, tam­
pouco aparente, entre as normas que criminalizam o homicídio praticado mediante tortura e a tortura
qualificada pela morte (Lei nQ9.455/97). Por outro lado, conflitos ou existem ou não existem, sendo um
manifesto contra-senso a idéia de “conflito aparente”, ambíguo termo que já sugere a inexistência de qual­
quer conflito.
129 Jescheck, Tratado, cit., p. 670.
130 Jakobs, Derecho penai: parte general, trad. Joaquin Cueilo Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de
Murillo, Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 1049.
Direito Penal - Parte Geral

ti vãmente à mesma conduta, porque em tal hipótese diversos são os fundamentos da


apenação. Assim, o servidor público corrupto pode ser condenado à pena de prisão,
à demissão e a reparar o dano, respectivamente no âmbito penal, administrativo e
civil. A análise do conflito aparente de normas visa assim a impedir bis in idem,
assegurando-se a efetividade dos princípios de legalidade e proporcionalidade. De
proporcionalidade, porque se forem aplicadas simultaneamente todas as normas em
conflito, punir-se-ia a conduta com penas desproporcionais. De legalidade, porque
o agente acabaria respondendo por tipos penais em que a rigor não incidiu.
Naturalmente que para resolver os vários conflitos não basta a só aplicação dos
princípios que serão vistos a seguir, pois decisivo para a determinação da norma
exata a ser aplicada ao caso é identificar o elemento subjetivo do agente (dolo ou
culpa). Se, por exemplo, o autor quis matar mediante tortura, responderá por homi­
cídio qualificado pela tortura (CP, art. 121, § 2e); se, ao contrário, pretendeu tortu­
rar simplesmente, advindo daí a morte da vítima, incidirá nas penas do crime de
tortura qualificado pelo resultado morte (Lei ns 9.455/97, art. Ia). Se quis num pri­
meiro momento torturar e, depois disso, decidiu, por qualquer motivo, matar a
vítima já torturada, haverá concurso material de crimes - tortura e homicídio.
Ademais, se não agiu com dolo, ou o agente responderá por crime culposo ou
não responderá penalmente (CP, art. 18).
Também é importante verificar se as normas em questão protegem ou não o
mesmo bem jurídico, porque em caso afirmativo haverá em princípio conflito apa­
rente de normas; em caso negativo, ocorrerá concurso de crimes, normalmente.
Mas semelhante critério, embora importante, e indiciário da ocorrência ou não de
conflito aparente, não pode ser levado a extremos, sob pena de inviabilizar o pró­
prio reconhecimento da unidade de crime. Com efeito, se assim for, isto é, se a
diversidade de bens jurídicos for levada às últimas conseqüências, então não se
poderia, por exemplo, admitir absorção do seqüestro pela extorsão mediante
seqüestro, da violação de domicílio pelo furto, pois na extorsão e no furto se prote­
ge o patrimônio, enquanto no seqüestro e na violação de domicílio o bem jurídico
protegido é a liberdade individual.
Por último, não se deve confundir o concurso de normas com o concurso de
crimes (CP, arts. 69, 70 e 71), formal, material ou continuado, pois aqui há em geral
um único crime, enquanto lá há vários, ainda quando o Código lhes dá tratamento
unitário (crime continuado) ou manda aplicar uma única pena com aumento (con­
curso formal). Apesar disso, o concurso aparente de normas e o concurso de crimes
são perfeitamente compatíveis, pois pode ocorrer, por exemplo, de, reconhecida a
continuidade delitiva, discutir-se sobre a incidência do Código Penal ou de deter­
minada lei especial.
Note-se ainda que a distinção entre unidade de crime e concurso de crimes
não preexiste à interpretação, mas é dela resultado.
Também o concurso aparente de normas não se confunde com o concurso de
leis no tempo, visto que no primeiro dá-se o concurso entre leis em vigor, enquan­
Paulo Queiroz

to no segundo há sucessão temporal de leis e, portanto, conseqüente revogação -


total ou parcial - da lei anterior pela posterior.
Basicamente três princípios são admitidos pela doutrina para solucionar seme­
lhante conflito: 1) princípio da especialidade; 2) princípio da subsidiariedade; e
3) princípio da consunção. O Código Penal espanhol, aliás, os refere expressamen­
te (art. 8e), declarando que o preceito especial prevalecerá sobre o geral; que o sub­
sidiário só se aplicará quando não couber o principal; e que o preceito amplo ou
complexo absorverá aquele (menos amplo) que já fizer parte de sua descrição típi­
ca. Afirma ainda que, se forem insuficientes tais critérios, prevalecerá a norma que
cominar pena mais grave. No entanto, a grande maioria dos possíveis conflitos é
perfeitamente solucionável por meio do princípio da especialidade, devendo-se
recorrer aos demais subsidiariamente.
Alguns autores referem ainda o princípio da alternatividade, que teria aplica­
ção quando a norma penal previsse vários fatos alternativamente como modalida­
de de um mesmo crime. No entanto, tais hipóteses, constitutivas de crimes de múl­
tipla ação, não configuram concurso de normas, pois em verdade há uma única
norma a ser aplicada, que é precisamente a que descreve a ação múltipla ou de con­
teúdo variado, a exemplo do art. 33 da Lei nc 11.343/06, que prevê mais de uma
dezena de formas pelas quais se pode praticar o crime de tráfico de droga, sendo
que o cometimento de uma ou mais ações constitui crime único (v.g., exportar,
importar, vender, fornecer etc.).
Releva notar que a prevalência de um determinado princípio não afasta
necessariamente a incidência de outros, que podem ser igualmente importantes
para a solução do conflito de normas. Aliás, se é certo, conforme se verá, que aque­
le que realiza o tipo especial também realiza o tipo geral, embora a recíproca não
seja verdadeira, razão pela qual existe uma relação lógica entre continente e con­
teúdo, uma vez que o tipo especial contém o tipo geral, é de conclui-se que o prin­
cípio da especialidade implica sempre uma relação de consunção. Dito de outro
modo: toda norma especial é uma norma consuntiva, mas nem toda norma consun-
tiva é uma norma especial.

6.2. Princípio da especialidade

Diz-se que uma norma é especial em relação à outra, dita geral, quando, além
dos requisitos que esta prevê, contém ela outros elementos (chamados especializan-
tes), ausentes na descrição do tipo penal genérico, de tal modo que aquele que rea­
liza o tipo especial realiza, necessariamente, o tipo geral, embora a recíproca não
seja verdadeira.131 Havendo, pois, essa relação de generalidade e especialidade, a
norma especial prevalecerá sobre a geral: lex specialis derogat legi generali. Existe,

131 Mir Puig, Derecho pemü, cit., p. 678.


Direito Penal - Parte Gerai

uma relação lógica entre continente e conteúdo, uma vez que o tipo espe­
p o r ta n to ,
cial contém o tipo geral.132 E o que ocorre entre os crimes de homicídio (norma
geral) e infanticídio (norma especial), em que este, além de conter o “matar
alguém” referido no art. 121 do CP, alude ainda às circunstâncias especiais (espe-
cializantes): “o próprio filho”, “sob a influência do estado puerperal” e “durante o
parto ou logo após” (CP, art. 123), inexistentes no art. 121. Igualmente, há especia­
lidade entre tipos penais qualificados e privilegiados (norma especial) em relação
ao tipo básico (norma geral) de que derivam (v. g., entre o furto simples e o quali­
ficado por emprego de chave falsa). Em geral, também as leis penais especiais des­
crevem tipos especiais em face do próprio Código Penal, por isso que prevalecem
sobre este último, ordinariamente.

6.3. Princípio da subsidiariedade

Existe relação de subsidiariedade entre vários tipos penais quando a norma


geral, visando proteger um mesmo bem jurídico, descreve graus distintos de viola­
ção, ou seja, uma é auxiliar/subsidiária em face da outra, dita principal. Existe, pois,
um hierarquia valorativa de um mesmo bem jurídico ou, como diz Honig, há dife­
rentes proposições penais protegendo o mesmo bem jurídico em diferentes fases de
ataque,133 razão pela qual a norma subsidiária - soldado de reserva, conforme a
expressão de Hungria134 - só será aplicada quando não couber a aplicação da norma
principal, de sorte que a norma principal prevalecerá sobre a norma subsidiária: lex
primaria derogat legi subsidiariae. Assim, há relação de subsidiariedade entre os cri­
mes de perigo e os crimes de dano, entre os crimes culposos e os dolosos, entre os
tentados e os consumados etc., hipóteses em que as normas subsidiárias só terão apli­
cação caso a conduta em concreto não configure delito mais grave (delito principal).
Essa relação de subsidiariedade tanto pode ser expressa, quando a lei explici­
tamente condiciona a aplicabilidade da norma subsidiária à inaplicabilidade da
norma principal (v. g., o art. 132 do CP, depois de descrever o fato, comina pena de
prisão de três meses a um ano, “se o fato não constitui crime mais grave”), quanto
tácita, quando, não existindo previsão legal expressa, tal decorra de interpretação
do sistema.

6.4. Princípio da consunção ou absorção

Existe relação de consunção ou absorção entre tipos penais quando o conteú­


do de um já se encontra inserido noutro, de modo que o crime “absorvido” consti­
tui, em verdade, parte da realização do tipo “total”. Nesse caso, como diz Damásio,

132 Dos Santos, Juarez Cirino. Direito Penal: p a n e geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 418.
133 Citado por Jescheck, Tratado, cit., p. 672.
!34 Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 139.
Paulo Queiroz

os fatos não se apresentam em relação de gênero e espécie, mas de minus e plu s, de


conteúdo e continente, de parte e todo, de meio e fim, de fração e inteiro.135 Exem­
plo disso é o crime de dano (CP, art. 163) em relação ao furto qualificado median­
te destruição de obstáculo (art. 155, § 49,1), entre o crime tentado e o consumado,
entre a violação de domicílio (art. 150) e o furto, entre a lesão corporal (art. 129) e
o homicídio (art. 121), entre o seqüestro (art. 148) e a extorsão mediante seqüestro
(art. 159), hipóteses em que o crime de furto absorve o dano e a violação de domi­
cílio; o consumado, o tentado; o homicídio, a lesão; a extorsão, o seqüestro. Lex
consumens derogat legi consumptae.
Além disso, para se falar em consunção, é preciso que uma das leis em concur­
so contemple totalmente o desvalor e a reprovação que o ordenamento jurídico
atribua à conduta de que se trata. Se a considera apenas em sua maior parte, sendo
necessária ainda a combinação de outra lei para apreciar sua totalidade, não have­
rá concurso aparente de normas (consunção impura).136
Como regra, estão em relação de consunção com o fato principal o ante fac-
tum e o p ost factum impuníveis, assim como os “fatos típicos acompanhantes”. O
fato anterior (ante factum) não é punível quando se inclui como meio ou momen­
to de preparação no processo unitário, embora complexo, da prática do fato prin­
cipal.137 A relação existente aqui é de meio e fim (v. g., porte ilegal de arma de fogo
e homicídio, violação de domicílio para a prática de furto em casa habitada etc.).
Logicamente, a absorção de um crime por outro só poderia ocorrer quando o
crime (mais grave) cominasse pena maior do que aquele por ele absorvido (menos
grave), até porque a maior gravidade deveria ser aferida, em princípio, segundo um
critério objetivo, isto é, a pena cominada. Mas na prática, sobretudo em razão da
falta de técnica no legislador, pode acontecer de um crime menor absorver o maior.
Nesse exato sentido, a Súmula 17 do STJ dispõe que “quando o falso se exaure no
estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”, hipótese em que
um crime teoricamente menos grave (estelionato, previsto no art. 171 do CP, cuja
pena varia de 1 a 5 anos de reclusão) pode absorver o mais grave (v. g., falsidade de
documento público, previsto no art. 297 do CP, apenado com reclusão de 2 a 6
anos). Portanto, não cabe tomar em termos absolutos a afirmação de que só pode
haver absorção de crime menos grave por outro mais grave.138
Por igual, o fato posterior (post factum) deixará de ser punido quando se inse­
rir no curso normal de desenvolvimento da intenção do agente ou quando já não
representar maior dano para o bem jurídico anteriormente violado. Assim, a puni­
ção do primeiro crime absorve a dos últimos.139 Na verdade, os atos posteriores

135 Direico penal, cit., v, 1, p. 112.


136 Rosai, M. Cobo Del; Anton, T. S. Vives. Derecho Penal: pane general. Valencia: Tirant lo Blanc, 1996, p. 162.
137 Bruno, Aníbal. Direico Penal: parte geral. Tomo 1. 5. ed. Rio de janeiro: Forense, 2003, p. 170.
138 No sentido do texto, Jakobs, cit.
139 Francisco de Assis Toledo. Ob. cit., p. 54.
Direito Penal - Parte Geral

impunes constituem uma forma de assegurar ou realizar um benefício obtido ou


perseguido por um fato anterior sem lesionar nenhum bem jurídico distinto daquele
antes atingido, sem também aumentar o dano já produzido. Ademais, os diversos
fatos hão de estar numa mesma linha de progressão no ataque a um mesmo bem jurí­
dico protegido, pois do contrário já não se poderá falar em conflito de normas (con­
sunção), senão em concurso de crimes (v. g., furto e receptação por indução; falsifi­
cação e posterior uso de documento falso; falsificação de moeda com posterior intro­
dução em circulação; furto e estelionato, em razão da venda pelo agente da coisa fur­
tada etc.). Como se nota, os fatos posteriores, geralmente, são mero exaurimento ou
aproveitamento do crime, razão pela qual não são punidos autonomamente.
Finalmente, há consunção nos “fatos típicos acompanhantes”,140 que se veri­
ficam quando um resultado eventual previsto para um determinado tipo penal
inclui já em si o desvalor delitivo de outro, de modo que o legislador fixou a pena
do delito que normalmente supõe o fato acompanhante, em tese, mais gravemente
(v. g., lesões leves resultantes da violência exercida no roubo e no estupro).

6.4.1. Crime complexo ou composto

Existe também consunção nos casos de crimes complexos ou compostos, que


ocorrem quando o tipo alude a mais de uma lesão; são crimes que resultam, enfim,
da fusão de mais de um tipo penal (Exemplo: rou bo (art. 157), que deriva da fusão
de furto (art. 155) + constrangim ento ilegal (art. 146); latrocínio, que decorre da
fusão de rou bo + hom icídio). Em tais casos haverá uma única infração penal, qual
seja, aquela resultante da união dos tipos autônomos (mais ampla), a qual absorve­
rá as demais, por já compreendê-las na sua descrição típica.141

6.4.2. Crime progressivo e progressão criminosa em sentido estrito

Por igual, haverá absorção nos assim chamados crimes progressivos, nos quais
o agente, pretendendo cometer crime mais grave, passa, num mesmo contexto da
ação, de um crime menos grave para outro mais grave, violando o mesmo jurídico
(v.g., agride a vítima objetivando matá-la o que de fato acontece), caso em que

140 Zaffaroni, Eugênio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 4. ed.
São Paulo: RT, 2002, p. 735; Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro:
Forense, 1994, p. 359.
141 A exata situação sistemática de tais crimes é controvertida. Para Jakobs, trata-se de uma manifestação do
princípio da especialidade na modalidade especialidade em virtude da intensidade do fato típico (Jakobs,
Ob. cit, p. 1053). No mesmo sentido: W elzel, Hans. Derecho Penal Aleman. 4. edición. Chile: Editorial
Juridica de Chile, 1993, p. 276. Porém, Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 5. ed. São
Paulo: RT, 2004, p. 232-233) e Fragoso ( Lições de Direito Penal: Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
p. 358) entendem que a questão deve ser resolvida pela subsidiariedade implícita. Já Asúa, cuja classifica­
ção é adotada por Damásio (Ob. cit., p. 116), defende que o princípio da consunção é que é aplicável ao
crime complexo.
Paulo Q u e iro z

haverá o crime mais grave (homicídio e não lesão corporal), existindo relação de
meio (lesões) e fim (homicídio).
O mesmo ocorre - absorção do crime menos grave pelo mais grave - na cha­
mada progressão criminosa em sentido estrito, em que o autor visa inicialmente
praticar um crime de menor gravidade e, depois de consegui-lo, resolve continuar
a agressão para consecução de um resultado mais gravoso (v. g., quer só lesionar a
vítima, mas decide matá-la a seguir).
Assim, a diferença básica entre crime progressivo e progressão criminosa é
que nesta há uma mutação no elemento subjetivo do tipo (dolo), ocasionada por
uma sucessão de impulsos volitivos diversos. Já no crime progressivo, existe unida­
de de desígnios, tendo em vista que a intenção do autor é única desde o início do
iter críminis, qual seja, praticar o fato mais grave, ainda que para isso tenha que
cometer delitos de menor gravidade.

6.5. Primazia do princípio da especialidade

Por fim, há quem entenda, como Jakobs, que todos os possíveis conflitos de nor­
mas podem ser resolvidos pelo princípio da especialidade, unicamente, uma vez que
a especialidade é uma forma de manifestação da primazia de uma lei sobre outra,142
a qual compreende, assim, quatro subdivisões: Ia) especialidade em virtude da inten­
sidade do fato típico, que abrange as formas qualificadas, privilegiadas e o crime com­
plexo; 2a) especialidade em virtude de concreção da consumação ou de intensidade
do resultado (hipóteses de subsidiariedade); 3a) especialidade relativa ao fato conco­
mitante (hipóteses de consunção); e 43) especialidade em virtude de intervenção pré­
via. É que, segundo Jakobs, o método para evitar dupla punição consiste em aplicar
somente aquela figura do delito que regula o caso concreto no contexto mais comple­
to, método que se baseia no princípio hermenêutico de que, ceteris paríbus, uma
expressão concreta de conteúdo mais amplo abrange o menos amplo.143

142 Jakobs, Derecho pen al cit., p. 1053.


143 Jakobs, Dcrccho pen al cit., p. 1050.
Direito Penai - Parte Geral

Capítulo III
Funções do Direito Penal
(teorias da pena)

Introdução’

A discussão sobre o fins e limites da pena ou, mais amplamente, a discussão so­
bre as funções do direito penal, constitui tema dos mais controvertidos; e tema polí­
tico por excelência, mesmo porque o direito penal é uma forma de gestão política dos
conflitos mais agudos; nem a única nem a mais importante. Daí dizer Tobias Barreto
que quem procura o fundamento jurídico da pena deve procurar também o funda­
mento jurídico da guerra.2 O Direito Penal é a forma da guerra em tempos de paz.
Há quem entenda inclusive ser impossível saber por que realmente se castiga3
ou simplesmente negue qualquer fim racional à pena, a exemplo de Eugênio Raúl
Zaffaroni, para quem a pena é um exercício de poder que está deslegitimado, mas que
existe como um dado da realidade, como um fato político, como um fato de poder.4
Algumas Constituições assinalam, expressamente, uma determinada finalida­
de à pena, a exemplo da italiana e espanhola. A italiana (art. 27) dispõe que as penas
não podem consistir em tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem
tender à redenção do condenado. E a espanhola (art. 25, § 29) prevê que as penas
privativas de liberdade estão orientadas para a reeducação e reinserção social e não
podem consistir em trabalhos forçados. A Constituição brasileira nada diz a esse
respeito explicitamente, havendo quem defenda, por isso, a plausibilidade de uma
teoria agnóstica da pena a partir dela,5 que deve consistir numa política de redução
de danos. A Lei de Execução Penal (art. 1B) prescreve que “a execução penal tem
por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

1 Para uma análise mais detalhada, Paulo Queiroz, Funções do direico p en a i São Paulo: RT, 2008.
2 Fundamentos do direito dc punir, p. 650. In Revista dos Tribunais (727). São Paulo: RT, 1996.
3 Nesse sentido Nietzsche: “quanto ao elemento móbil do castigo, ou seja, a finalidade, num estado de civi­
lização muito avençada (por exemplo da Europa), o castigo não tem uma só finalidade mas uma síntese de
finalidades: todo o passado histórico do castigo, toda a história da sua utilização para fins diversos, se cris­
taliza por último em certa unidade difícil de resolver, difícil de analisar, e, sobretudo, absolutamente
impossível dc definir. É impossível dizer hoje por que se castiga: todos os conceitos que se resume dum
dado semiótico uma larga evolução, são indefiníveis; só se define o que não tem história.” Genealogia da
moral. S.Paulo: Centauro editora, 2004, p. 45-46.
4 Apud Saio dc Carvalho. Antimanuai de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 139.
5 Nesse sentido. Saio de Carvalho. Antimanuai de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Paulo Queiroz

Naturalmente que os fins da sanção penal (penas e medidas de segurança) hão


de pressupor uma sentença penal condenatória, motivo pelo qual não é lícito pre­
tender realizá-los por meio de prisões provisórias, especialmente a prisão preven­
tiva, porque do contrário já não haverá distinção entre processo de conhecimento
e processo de execução. E que prevenir novos crimes, seja em caráter geral, seja em
caráter especial (evitar a reincidência), não constitui fim da prisão provisória (cau-
telar), mas fim da pena mesma, a exigir, ao menos no Estado Democrático de
Direito, trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Também não é possível falar de fins do direito penal para além do tempo e do
espaço, mesmo porque os fins e limites do direito penal são, em última análise, os
fins e limites do próprio Estado, motivo pelo qual cada modelo de Estado pede um
modelo de direito penal. Convém assim não perder de vista o contexto econômico,
social e político que em que a discussão se passa, mesmo porque cada sociedade tem
sempre suas próprias razões para castigar ou não castigar.
Atualmente duas principais correntes político-criminais devem ser consideradas
quanto à análise das funções da pena ou, mais amplamente, do direito penal, a saber:
as teorias legitimadoras e as teorias deslegitimadoras. As primeiras - tradicionais -
reconhecem, sob os mais diversos fundamentos (absolutos, relativos ou mistos), legi­
timidade ao Estado para intervir na liberdade dos cidadãos por meio do direito penal,
seja como retribuição, seja como prevenção. As segundas, ao contrário, negam seme­
lhante legitimidade, por considerar a intervenção penal desnecessária, imediata (pers­
pectiva abolicionista) ou mediatamente (perspectiva minimalista radical).
Conforme perceberá o leitor, há várias teorias da pena, umas legitimadoras,
outras deslegitimadoras, outras a um tempo legitimadoras e deslegitimadoras do
poder de punir. Perceberá também que, apesar de assim classificáveis, não raro di­
vergem quanto aos fundamentos do direito de punir. Exatamente por isso, não exis­
te, a rigor, uma teoria preventiva especial, mas diversas, cujos argumentos e postu­
lados nem sempre coincidem entre seus partidários. Com efeito, ora falam de
ressocialização, ora de não dessocialização, ora propõem a ressocialização como
uma finalidade a ser perseguida contra a vontade do condenado inclusive, ora como
um direito seu, que não pode lhe ser imposto sob nenhum pretexto. Semelhan­
temente, a prevenção geral negativa proposta por Ferrajoli não é a mesma que
propõe Roxin, que não é a mesma que propunha Feuerbach.
Enfim, como toda classificação, as teorias da pena encerram uma redução,
uma simplificação, podendo compreender, sob o mesmo título, propostas político-
criminais um tanto díspares.
De todo modo, parece-nos que, contrariamente ao que pretendem, em geral,
as diversas teorias, não existe uma razão universal para castigar ou não castigar, isto
é, aplicável a todo e qualquer caso e, pois, válida para além do tempo e do espaço,
motivo pelo qual cada caso pede uma legitimação/deslegitimação particular.
E que o direito penal, como todo conceito, é construído pela equiparação de coi­
sas desiguais e, por isso, constitui uma universalização do não-universal, do singular;
Direito Penal - Parte Geral

um conceito nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico.6 O


c o n c e itode crime, por exemplo, refere-se a um sem-número de condutas que, a
rigor, nada têm em comum, à exceção da circunstância de estarem formalmente
tipificadas: matar alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem provisão de
fu n d o s, portar droga para consumo pessoal, abater espécime de fauna silvestre etc.
(espécime que pode variar de uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por
sua vez, unificam coisas díspares. Com efeito, não existe um homicídio abso­
lutamente igual a outro homicídio, nem um furto absolutamente igual a outro furto,
nem um crime ambiental absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que
sempre envolvem tais atos tomam cada ação humana singularíssima, única,
irrepetível. Enfim, um conceito é formado pela eliminação do que há de singular em
cada ato; e quanto mais exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se toma.7
Além disso, as leis penais supõem uma regularidade de expectativas, emoções
e interesses que simplesmente não existe. E que no fundo praticamos crimes pelas
mesmas razões que não os praticamos, isto é, porque temos ou não motivações para
tanto; e essas motivações variam de pessoa para pessoa e são sempre novas.
Talvez por isso ou também por isso tivesse razão Nietzsche quando afirmava
que é impossível saber por que realmente se castiga, e que o que chamamos justiça
não é outra coisa senão uma transformação do ressentimento e, pois, uma forma de
vingança com nome diverso.8
O presente capítulo pretende ser uma introdução a este tema sempre atual e
controvertido, que é a crítica da razão punitiva, e que encerra uma tríplice discus­
são: porque punir, o que punir e como fazê-lo.

I. Teorias legitimadoras

1. Teorias absolutas

Absolutas são todas as teorias que vêem o direito penal como um fim em si
mesmo, independentemente de razões utilitárias ou preventivas, de sorte que a
rigor, conforme diz Roxin, a pena para nada serve,9 uma vez que sua legitimidade
decorre do só fato de haver sido cometido um delito. Por isso a pena se justifica
quia peccatum est (pune-se porque pecou).
Nesse sentido são as teorias de Kant e Hegel. Para Kant (teoria da retribuição
moral), a pena responde a uma necessidade absoluta de justiça, de um imperativo
categórico, isto é, de um imperativo moral incondicional, independentemente de

6 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
7 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
8 A Genealogia da Moral. S. Paulo: Centauro Editora, 2004.
9 Problemas fundamentais, cit., p. 16.
Paulo Queiroz.

considerações utilitárias, porque “as penas são, em um mundo regido por princípios
morais (por Deus), categoricamente necessárias”.10
Com efeito, “ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os
seus membros (v. g., se o povo que habitasse uma ilha decidisse separar-se e disper­
sar-se pelo mundo), então, o último assassino deveria ser executado”.11 Daí consi­
derar o princípio talional (dente por dente, olho por olho) como o paradigma da
verdadeira justiça, pois “somente a lei de talião proclamada por um tribunal pode
determinar a qualidade e a quantidade da punição”,12 já que “o mal imerecido que
tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o ultrajas, ultrajas a ti mesmo, se tu o
roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas, matas a ti mesmo”.13
Já para Hegel (teoria da retribuição jurídica), a pena, que não responde não a
um mandato absoluto de justiça, como em Kant,14 é uma exigência da razão, que se
explica e se justifica a partir de um processo dialético inerente à idéia e ao concei­
to mesmo de direito. Porque o delito é uma violência contra o direito; a pena, uma
violência que anula aquela primeira violência; a pena é, portanto, a negação da
negação do direito, ou seja, é a sua afirmação (segundo a regra, a negação da nega­
ção é a sua afirmação). Como disse Basileu Garcia, para Hegel, o direito é manifes­
tação da vontade racional; a pena é a reafirmação da vontade racional sobre a von­
tade irracional, servindo a pena para restaurar uma idéia, precisamente para restau­
rar a razão do direito, anulando a razão do delito.15
A legitimidade da pena está assim fora de dúvida: “a pena com que se aflige o
criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade
do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito.”16 E em relação
ao agente do delito a pena constitui um direito seu, uma maneira de sua liberdade
existir, que o “dignifica como ser racional”, pois “está implicada na sua própria von­
tade, no seu ato. Porque vem de um ser de razão, este ato implica a universalidade
que por si mesma o criminoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu
próprio direito”.17

10 Citado por Welzel, D crecho penai alemán, cit., p. 284.


11 La metafísica dei costumi: la dottrina dei diritto, trad. Giovanni Vidari, Milano: Studio Editoriale
Lombardo, 1916, parte K p. 144.
12 Kant, La metafísica, cit., p. 142-143.
13 Kant, La metafísica, cit., p. 142.
14 Apesar disso, Ferrajoli considera que só aparentemente se distinguem as concepções de Hegel e Kant, uma
vez que ao menos em Hegel, que concebe o Estado como um espírito ético ou substância ética, também a
idéia de retribuição jurídica se baseia de fato, em última análise, no valor moral associado, se não a cada
imperativo penal, à ordem jurídica lesionada (Dcrecho y razón , cit., p. 254). }á Eugênio Pacellí observa
não ser exato considerar Hegel defensor de uma teoria retributiva da pena, ainda que se possa reconhecer
nele um partidário de uma teoria absoluta (Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos funda­
mentais, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 31).
15 Basileu Garcia, Instituições de direito pen ai SãoPaulo: MaxLinionad,1980, p. 73.
16 Hegel, Princípios de filosofia do direito, São Paulo:Martins Fontes, 1997, p. 89.
17 Hegel, Princípios, cit., p. 89.
Direito Penai - Parte Gerai

1 .1 . C r í t i c a

Tais teorias parecem de todo incompatíveis com o perfil dos Estados contem­
porâneos - Estados funcionais (ou instrumentais) - que encontram limites consti­
tucionais intransponíveis, em especial a dignidade da pessoa humana, razão pela
qual todo poder há de emanar do povo, que o exerce por meio de seus representan­
tes eleitos ou diretamente (CF, art. l e, parágrafo único), não podendo o direito
penal responder a nenhum propósito transcendental ou metafísico - absoluto,
enfim. Além disso, tal formulação absolutiza na pena todo controle social, sendo
inconciliável com a crescente relativização dos modos de atuação dos sistemas
penais contemporâneos (penas alternativas, transação, descriminalização, despena-
lização). Por fim, ignora a própria injustiça ligada ao funcionamento ordinário do
sistema penal, até porque não raro a maior violência não consiste propriamente em
contrariar a norma, mas em preservá-la, mantendo-se a proibição de algo que
poderia ser permitido ou reprimido por outros meios mais adequados.

2. Teorias relativas (prevenção geral e prevenção especial) ou


prevencionistas

2.1. Introdução

Em oposição às absolutas, as teorias relativas são marcadamente teorias fina­


listas,18 já que vêem a pena não como fim em si mesmo, mas como meio a serviço
de determinados fins, considerando-a utilitariamente, portanto. Fim da pena é
principalmente a prevenção de novos delitos, daí por que são também conhecidas
como teorias da prevenção ou prevencionistas. Dividem-se em teorias da preven­
ção geral - positiva ou negativa - e teorias da prevenção especial. No primeiro caso
(de prevenção geral positiva), a finalidade da pena é fortalecer os valores ético-
sociais veiculados pela norma, estabilizar o sistema social ou semelhante; no segun­
do (de prevenção geral negativa), a norma tem por objetivo motivar os seus desti­
natários a se absterem da prática de novos delitos; finalmente, para as teorias da
prevenção especial, fim da norma é evitar a reincidência por meio da ressocializa­
ção do condenado ou similar.

2.2. Prevenção geral negativa

A principal versão da teoria da prevenção geral negativa deve-se a Paul


Anselm Ritter von Feuerbach.

18 Maurach, D erecho p en a i cit., p. 87.


Paulo Queiroz

Para Feuerbach, todos os crimes têm por causa ou motivação psicológica a


sensualidade, na medida em que a concupiscência do homem é o que o impulsio­
na, por prazer, a cometer a ação. A esse impulso da sensualidade, opõe-se um con-
tra-impulso, que é a certeza da aplicação da pena. Portanto, fim da pena é a pre­
venção geral de novos delitos por meio de uma coação psicológica exercida sobre
seus destinatários, distinguindo-se dois momentos da pena: o da cominação e o da
sua aplicação. No primeiro, o objetivo da pena é “a intimidação de todos como pos­
síveis protagonistas de lesões jurídicas”; no segundo, fim da norma é “dar funda­
mento efetivo à cominação legal, dado que sem a aplicação da cominação, tal seria
ineficaz”.19 Em ambos os casos, a direito penal tem por fim a prevenção geral nega­
tiva de futuros delitos.

2.2.1. Crítica

Como observa Roxin, nessa teoria permanece em aberto a questão de se saber


em face de que comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar, ou seja,
a doutrina da prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição essa debili­
dade, isto é, fica por esclarecer o âmbito do criminalmente punível.20 E desde que
se aceite que o fim de intimidação geral justifica a intervenção penal, e desde que
não lhe delimite o âmbito de atuação, tal doutrina tende claramente para um
Estado de máxima intervenção,21 que se valerá da pena sempre que isso lhe pare­
cer politicamente conveniente.
Apesar disso, Mir Puig entende que quase todas as críticas atacam a preven­
ção geral porque não oferece limites ao poder punitivo do Estado admissíveis num
Estado Democrático, isto é, critica-se a prevenção geral porque conduz a preven­
ção demasiadamente longe, mas não se demonstra que a prevenção geral dentro de
certos limites não constitua uma das possíveis bases de justificação da pena.22

2.3. Prevenção geral positiva

Dentre as atuais teorias da prevenção geral positiva, merece especial referên­


cia a formulação de Günther Jakobs, que, inspirada na teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann, parte da funcionalidade do direito penal para o sistema social. Para ele,
a norma penal constitui uma necessidade funcional/sistêmica de estabilização de
expectativas sociais por meio da aplicação de penas ante as frustrações que decor­
rem da violação das normas. Esse novo enfoque utiliza assim a concepção luhman-

19 Feuerbach, Tratado de derecho penal, trad. E. R. Zaffaroni, Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1989, §§ 13 e s.
20 Problemas fundamentais, cit., p. 23.
21 Roxin, Problemas fundamentais, cit., p. 23.
22 introducción a las bases dei derecho penal, Barcelona: Bosch, 1976, p. 67.
Direito Penal - Parte Geral

niana do direito como instrumento de estabilização social, de orientação das ações


e de institucionalização das expectativas.
De acordo com Jakobs, os contatos e interações sociais geram expectativas as
mais diversas, as quais devem ser asseguradas como condição de preservação do sis­
tema social. Essas expectativas, que podem ser desestabilizadas em face da decep­
ção ou do conflito entre os que participam da interação social, são normatizadas e
asseguram a confiança e a fidelidade das interações interindividuais ou sistêmicas.
A pena, por sua vez, protege as condições de tal interação e tem, portanto, função
preventiva, porque assegura a validade da norma, razão pela qual a reação puniti­
va (a pena) tem como função principal restabelecer a confiança e reparar ou pre­
venir os efeitos negativos que a violação da norma implica para a estabilidade do
sistema e para a integração social.23
Diz Jakobs textualmente: “a pena é uma demonstração da vigência da norma
à custa de um responsável”,24 a fim de assegurar “a estabilização da norma lesiona-
da”,25 como “réplica que tem lugar frente ao questionamento da norma”.26
Portanto, o fundamento da pena não é a prevenção geral negativa para prote­
ção de bens jurídicos, nem a prevenção especial, mesmo porque, de acordo com
Jakobs, “destinatários da norma não são primariamente algumas pessoas enquanto
autoras potenciais, mas todas, visto que ninguém pode passar sem interações soci­
ais e que por isso devem saber o que delas podem esperar”.27 Por isso, o fim último
da pena consiste na m anutenção da norma enquanto modelo de orientação de con­
dutas para os contatos sociais.28
Em conclusão, o delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade social,
enquanto constitui a expressão simbólica da falta de fidelidade ao direito; essa
expressão faz estremecer a confiança institucional, e a pena é, por sua vez, uma
expressão simbólica oposta à representada pelo crime.29
Recentemente Jakobs passou a defender inclusive, ao lado do direito p en al do
cidadão, um direito p en al do inim igo, modelos político-criminais cujas notas dis­
tintivas residem especialmente no seguinte: a) o inimigo não é pessoa, mas inimi­
go (não-pessoa), logo a relação que com ele se estabelece não é de direito, mas de
coação, de guerra; b) o direito penal do cidadão tem por finalidade manter a vigên­
cia da norma; o direito penal do inimigo, o combate de perigos; c) o direito penal
do cidadão reage por meio de penas; o direito penal do inimigo por meio de medi­
das de segurança; d) o direito penal do cidadão trabalha com um direito penal do
fato; o direito penal inimigo, com um direito penal do autor; e) por isso, o direito

23 Baratta, Integración-prevención: una nueva fundamentación de la pena dentro de la teoria sistêmica,


Revista d e D erecho Penal y Criminología, v. 8 , n. 29, p. 81, 1986.
24 Derecho penal, cit., p. 9.
25 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 9.
26 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 14.
27 Jakobs, Derecho penal, cit., p. 18.
28 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 18.
29 Baratta, Integración-prevención..., Revista cit., p. 81.
Paulo Queiroz

penal do cidadão pune fatos criminosos; o direito penal do inimigo, a periculosidade


do agente; f) o direito penal do cidadão é essencialmente repressivo, o direito penal
do inimigo essencialmente preventivo; g) por essa razão, o direito penal do cidadão
deve se ocupar, como regra, de condutas consumadas ou tentadas (direito penal do
dano), ao passo que o direito penal do inimigo deve antecipar a tutela penal, para
punir atos preparatórios (direito penal do perigo); h) o direito penal do cidadão é um
direito de garantias; o direito penal do inimigo um direito antigarantista.
E assim há de ser porque, de acordo com Jakobs, aquele que não oferece um
mínimo de segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só
não pode esperar ser ainda tratado como pessoa, como também “o Estado não deve
tratá-lo como pessoa, já que o contrário violaria o direito à segurança das demais
pessoas, os cidadãos”.30 Com efeito, aquele que por princípio se conduz de modo
desviado e não oferece garantia de um comportamento pessoal (v. g., aqueles que
tomam parte em terrorismo e criminalidade organizada) não pode, conseqüente­
mente, ser tratado como cidadão, devendo ser combatido como inimigo; e esta
guerra se presta a preservar a segurança dos cidadãos.31

2.3.1. Crítica

Há muita semelhança entre a teoria de Jakobs e as teorias absolutas, razão pela


qual o que se disse sobre tais teorias vale para esta; semelhança reconhecida pelo
próprio Jakobs ao confessar que “em Hegel a teoria absoluta recebe uma configu­
ração que em pouco se diferencia da prevenção geral aqui representada”.32
A crítica mais corrente a Jakobs é a de que não se trata de uma perspectiva ins­
trumental, mas simbólica, uma vez que o direito já não serve primordialmente ao
homem, que se reduz a um subsistema físico-psíquico, mas ao sistema, pois o direi­
to não se presta assim à solução de conflitos, nem à proteção de bens jurídicos. Daí
dizer Zaffaroni que o discurso jurídico-penal sistêmico se afasta do homem, per­
dendo todos os limites e garantias liberais, admitindo-se a possibilidade de punir
ações meramente imorais que não lesionam ninguém, a emprestar relevância e pri­
mazia aos dados subjetivos de ânimo e a sustentar um critério de pena puramente
utilitário ou instrumental para o sistema.33
Por isso constitui uma descrição asséptica e tecnocrata do modo de funciona­
mento do sistema, mas não uma valoração e muito menos uma crítica ao sistema,34

30 D erecho penal dei enemigo , Madrid, Cuadernos Civitas, 2003, p. 47.


31 Idem, p. 56-57.
32 Jakobs, Derecho penal, cit., p. 22-23.
33 En busca de Ias penas perdidas: deslegitimacíón y dogmática jurídico-penal, Bogotá: Ed. Temis, 1990, p.
6 6 . Crítica similar formula Ferrajoli, quando observa que, ao reduzir, assim, o indivíduo a um “subsiste­
ma físico-psíquico”, funcionalmente subordinado às exigências do sistema social geral, esta teoria se apro­
xima inevitavelmente de modelos de direito penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à
tutela da pessoa humana.
34 Munoz Conde, Derecho penal y control social, cit., p. 26.
Direito Penal - Parte Geral

0u como diz Baratta, a teoria sistêmica conduz a uma concepção preventiva inte-
gradora em que o centro de gravidade de norma jurídica penal passa da subjetivi­
dade do indivíduo e do mundo axiológico ao sistema e às expectativas institucio­
nais, afastando qualquer reflexão crítica alheia à funcionalidade do castigo para o
sistema.35 Nesse modelo tecnocrático o direito penal já não resolve conflitos sociais
(o problema do crime), senão que os integra no sistema, intervindo onde e quando
aqueles se exteriorizam (sintomatologicamente), não onde e quando são gerados
(edologicamente) .36
Por fim, para a teoria da prev en ção positiva, é determ in ado nível de visibili­
dade social da desviação, de alarma social, e não as cifras ocultas da criminalidade,
que provoca uma resposta penal baseada na teoria da prevenção positiva; esta, por
conseguinte, legitima o princípio da seletividade do sistema e dos processos de imu­
nização da resposta penal, que dependem estreitamente do grau de visibilidade
social dos conflitos de desviação existentes numa sociedade.37
Quanto ao direito penal do inimigo, que parece colocar o homem numa con­
dição inferior à de plantas e animais, os quais têm proteção legal,38 diferentemen­
te deste, que passam a tratados como não pessoas e, pois, não sujeitos de direito,
mas simples objeto do direito, razão assiste a Munoz Conde quando assinala que “os
direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, sobretudo as de
caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilida­
de) e processual penal (direito à presunção de inocência, à tutela jurisdicional, a
não depor contra si mesmo etc.), são pressupostos irrenunciáveis da própria essên­
cia do Estado de Direito. Se se admite sua derrogação, ainda que seja em casos pon­
tuais extremos e mui graves, tem-se que admitir também o desmantelamento do
Estado de Direito, cujo Ordenamento jurídico se converte em um ordenamento
puramente tecnocrático o funcional, sem nenhuma referência a um sistema de
valores, ou, o que é pior, referido a qualquer sistema, ainda que seja injusto, sem­
pre que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para impô-lo. O
Direito assim entendido se converte em um puro Direito de Estado, em que o direi­
to se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as for­
ças que controlem ou monopolizem seu poder. O Direito é então, simplesmente, o
que em cada momento convém ao Estado, que é, ao mesmo tempo, o que prejudi­
ca e faz o maior dano possível a seus inimigos”.39
Parece também evidente que direito p en a l d o cidadão é um pleonasmo e
direito p en a l d o inim igo uma contradição em seus termos.40

35 Baratta, Íntegración-prevención..., Revista, cit.


36 Baratta, íntegración-prevención..., Revista, cit.
37 Baratta, íntegración-prevención..., Revista, cit., p. 95.
38 Gamil Fõppel. Organizações Criminosas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 5.
39 De Nuevo Sobre el "Derecho Penal dei Enemigo’ . In Novos Rumos do Direito Penal Contemporâneo.
Livro em Homenagem ao P rof Dr. Cezar Roberto Bitencourt. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 76.
40 Manuel Cancio Meliá. Derecho Penal dei inimigo, cit.
2.4. Prevenção especial ou individual

Para essa corrente, a finalidade do direito penal é prevenir novos crimes, res-
socializando os seus autores, reeducando-os etc.; ou seja, o sentido do castigo é evi­
tar a reincidência, razão pela qual a prevenção não se dirige a todos, mas a algumas
pessoas em particular, os criminosos. O direito penal pretende em última análise a
conversão do delinqüente num homem de bem.41
Diversas correntes de pensamento advogaram ou ainda advogam essa forma
de justificação do direito de punir: o correcionalismo espanhol (Dorado Montero,
Concepción Arenal); o positivismo italiano (Lombroso, Ferri, Garofalo); a chama­
da moderna escola alemã, de Von Liszt, e mais recentemente o movimento de defe­
sa social, de Filippo Gramatica, Maic Ancel e outros.
Em sua versão mais radical, a teoria da prevenção especial pretende a substi­
tuição da justiça penal por uma espécie medicina social, a fim de promover um
saneamento social, seja pela aplicação de medidas terapêuticas, seja pela segregação
por tempo indeterminado, seja pela submissão a um tratamento ressocializador
apto a inibir as tendências criminosas.
Representante dessa tendência foi Dorado Montero, com seu direito protetor
dos criminosos, que defendia, como missão da administração da justiça penal, o
“saneamento social, uma função de higienização e profilaxia”, razão pela qual os
atuais juizes, em vez de julgarem conflitos de interesse, passariam a ser novos médi­
cos sociais, visando promover e dirigir o tratamento mais adequado à situação de
cada delinqüente: “O juiz severo, adusto e temível”, profetizou Dorado Montero,
“deve desaparecer para passar o posto ao médico carinhoso e entendido”.42 O pro­
cesso penal deveria, por isso, ceder lugar à administração unilateral de tais interes­
ses pelo Estado, pois, para a implantação desse novo sistema, cumpria “suprimir-se
todo o aparato de juizes, magistrados, tribunais hierárquicos, ministério público,
advogados, defensores etc.”,43 o que implicaria necessariamente abolir ou relativi-
zar as garantias do direito e processo penal, uma vez que constituem um obstáculo
a esse fim superior.
Outro postulado daí resultante é a indeterminação da pena ou das medidas de
segurança enquanto durasse a necessidade de tratamento. A Ferri, autor de um
ambicioso sistema de substitutivos penais, pareceu que “a experiência secular tem
demonstrado o absurdo teórico e a deficiência prática da pena em medida fixa, que
é conseqüência lógica do conceito de retribuição da culpa, mediante um castigo
proporcionado”,44 motivo pelo qual a defesa social contra a criminalidade deveria

41 Basileu Garcia, Instituições , cit., p. 72.


42 Bases de un nuevo derecho penal, Buenos Aires: Depalma, 1973, p. 6 6 .
43 Dorado Montero, Bases, cit., p. 94.
44 Princípios de direito criminai, trad. Paolo Capitanio, Campinas: Bookseller, 1996, p. 311.
Direito Penal - Parte Geral

realizar-se “ou com o seqüestro indefinido dos delinqüentes não readaptáveis à vida
livre ou com a reeducação para a vida social dos delinqüentes readaptáveis”.45
Mas coube especialmente a Franz von Liszt universalizar a teoria da preven­
ção especial. Para Von Liszt, fim da pena ou das medidas de segurança era preve­
nir eficazmente a prática de futuros delitos, conforme as peculiaridades de cada
infrator. Assim, missão da pena para os delinqüentes ocasionais, que não precisam
de correção, é a advertência (função de advertência ou de intimidação); para os que
precisam de correção, é ressocializá-los com a educação durante a execução penal
(função ressocializadora); para o delinqüente incorrigível ou habitual, fim da pena
é torná-lo inócuo por tempo indeterminado (função de inocuização), enquanto
dure a necessidade inocuizadora. Para Von Liszt, função da pena e do direito penal
era, portanto, a proteção de bens jurídicos por meio da incidência da pena sobre a
personalidade do delinqüente com a finalidade de evitar futuros delitos.46

2.4.1. Crítica

Em verdade tais teorias não podem operar, como a geral, no momento da


cominação, mas só na execução da pena,47 motivo pelo qual não constituem a rigor
uma teoria do direito penal, mas uma teoria da execução penal. Além disso, nada
dizem sobre os limites da atuação estatal ou sobre os critérios e razões político-cri-
minais que hão de orientar a intervenção do Estado nesse campo, omitindo-se
sobre o conteúdo do poder punitivo.
É de convir, com Ferrajoli, que, ao supor uma concepção do poder punitivo
como bem metajurídico - o Estado pedagogo ou terapeuta - e simetricamente do
delito como m al moral ou enfermidade natural ou social, tais doutrinas se revelam
as mais antiliberais e antigarantistas, a justificarem modelos de direito penal máxi­
mo e tendencialmente ilimitado.48
Além disso, educar para a liberdade em condições de não-liberdade é, como
afirma Munoz Conde, não só de difícil realização como constitui uma utopia irrea-
lizável nas atuais condições de vida nas prisões,49 cujos nocivos efeitos são ampla­
mente conhecidos.
Por fim, a ressocialização ou a reintegração social do preso, tal como prevê a
nossa Lei de Execução Penal (art. l e), pode no máximo constituir um direito do
condenado, mas jamais um fim legítimo a ser perseguido por meio da violência da
pena, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana, fundamento declarado do
Estado Democrático de Direito.

45 Ferri, Princípios, cit., p. 313.


46 Mir Puig, Introducción, cit., p. 70.
47 Mir Puig, introducción, cit., p. 6 8 .
48 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 270.
49 Derecho penal y control social, cit., p. 124.
Paulo Queiroz

Não é preciso lembrar que a prisão, longe de ressocializar, em geral dessocia-


liza, corrompe, embrutece e, pior, não tem impedido os criminosos de continuarem
a delinqüir mesmo quando em presídios ditos de segurança máxima.

3. Teorias ecléticas (ou unitárias ou mistas)

3.1. Introdução

Dizem-se unitárias (ou mistas ou ecléticas) todas as teorias - majoritárias na


atualidade - que, almejando superar as antinomias entre as diversas formulações
teóricas apresentadas, pretendem combiná-las ou unificá-las ordçnadamente.50
Ambicionam, sem compromisso com a pureza ou monismo de modelos, caracterís­
ticos das teorias absolutas e relativas, explicar o fenômeno punitivo em toda a sua
complexidade e pluridimensionalidade.51
As teorias unitárias intentam, assim, conforme observa Jescheck, mediar entre
as teorias absolutas e relativas, não, naturalmente, somando sem mais suas contra­
ditórias idéias básicas, mas mediante a reflexão prática de que a pena, na realidade
de sua aplicação, pode desenvolver a totalidade de suas funções em face da pessoa
afetada e seu mundo circundante, de sorte que o que importa realmente é conse­
guir uma relação equilibrada entre todos os fins da pena (método dialético),52 ser­
vindo de ponte entre umas e outras.53
Para essa teoria, a justificação da pena depende a um tempo da justiça de seus
preceitos e da sua necessidade para a preservação das condições essenciais da vida
em sociedade (proteção de bens jurídicos). Busca-se, assim, unir justiça e utilidade,
razão pela qual a pena será legítima somente quando for ao mesmo tempo justa e
útil.54 Por conseguinte, a pena, ainda que justa, não será legítima se for desneces­
sária (inútil), tanto quanto se, embora necessária (útil), não for justa. Semelhante
perspectiva se caracteriza, pois, por um conceito pluridimensional da pena, que,
apesar de orientado pela idéia de retribuição, a ela não se limita.55
Dentre as teorias mistas atuais, merecem destaque a teoria dialética unificado­
ra de Claus Roxin e o garantismo de Luigi Ferrajoli.

50 Para Roxin, as teorias monistas, quer atendam à culpa, quer à prevenção geral, quer à especial, são neces­
sariamente falsas, porque, quando se trata da relação do particular com a comunidade e com o Estado, a
realização estrita de um princípio ordenador tem forçosamente como conseqüência a arbitrariedade e a
falta de verdade ( Problemas fundamentais, cit., p. 43).
51 Como observa García-Pablos, metodologicamente, quem propugna por essa solução - ou tese semelhante
- procura ressaltar os graves inconvenientes dos monismos e da denominada pureza de modelos (Derccho
penal, cit., p. 105).
52 Tratado, cit., p. 6 6 .
53 Baumann, Derecho penal, cit.
54 Bacigalupo, Derecho penal: parte general, Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1987, p. 53.
55 jescheck, Tratado, cit., p. 67.
Direito Penal - Parte Geral

3.2. A teoria dialética unificadora de Claus Roxin56

Para Roxin, a finalidade precípua do direito penal é a prevenção geral de deli­


tos, como forma de proteção subsidiária de bens jurídicos, que se realiza em três
momentos: a cominação da pena, a individualização judicial e a respectiva execu­
ção. Prevenção geral, porque fim da norma penal é essencialmente dissuadir as pes­
soas do cometimento de delitos e conseqüentemente atuarem conforme o direito;
subsidiária, porque o direito penal somente deve ter lugar quando fracassem outras
formas de prevenção e controle social, como o direito civil, o direito administrativo,
sempre, enfim, que não se dispuser de meios mais adequados de controle. Mas não
apenas prevenção negativa, porque, segundo Roxin, cabe ao direito penal também
fortalecer a consciência jurídica da comunidade,57 intervindo, assim, positivamente.
Por ocasião da individualização da pena, embora permaneça a função de pre­
venção geral, Roxin vê a prevenção especial como último fim da pena, no sentido
de ressocializá-lo. Em conclusão, de acordo com a formulação roxiniana, fim do
direito penal é “criar e garantir a um grupo reunido, interior e externamente, no
Estado, as condições de uma existência que satisfaça as suas necessidades vitais”,58
tarefa que somente pode ser levada a cabo por meio de uma teoria que “não preten­
da manter-se na abstração ou em propostas isoladas, mas que tenha de corresponder
à realidade, tendo de reconhecer estas antíteses inerentes a toda existência social,
para, de acordo com o princípio dialético, poder superá-las numa fase posterior”.59

3.3. O garantismo de Luigi Ferrajoli

Já para Ferrajoli, a única finalidade capaz de legitimar a intervenção penal é a


prevenção geral negativa, exclusivamente, mas não apenas prevenção de futuros
delitos, mas sobretudo prevenção de reações informais públicas ou privadas arbi­
trárias - fim fundamental da pena, a seu ver - , pois a pena “não serve só para pre­
venir os injustos delitos, senão também os castigos injustos; que não se ameaça com
ela e se a impõe só n e peccetur, senão também n epu nietur, que não tutela só a pes­
soa ofendida pelo delito, e sim também o delinqüente, frente às reações informais
públicas ou privadas arbitrárias”. Ferrajoli concebe o direito penal assim como um

56 Sobre o assunto, ver Gamil Fõppel, A função da pena na obra de Claus Roxin, Rio de Janeiro: Forense,
2003.
57 Problemas fundamentais , cit., p. 33 e 45.
58 Claus Roxin, Problemas fundamentais , cit., p. 47.
59 Claus Roxin, Problemas fundamentais, cit., p. 45. No mesmo sentido. Figueiredo Dias: "Desta concepção
básica resulta como conseqüência que não se justifica, nem é conveniente, nem eficaz, assinalar à pena ou
só finalidades de prevenção geral, ou só de prevenção especial. Umas e outras devem coexistir e com bi­
nar-se da melhor forma e até o limiie possíveis, porque umas e outras se encontram num propósito comum
de prevenir a prática de crimes futuros” ( Questões fundamentais do direito penal revisitadas , São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 129).
Paulo Queiroz

sistema de garantias (conforme a tradição liberal iluminista) do cidadão perante o


arbítrio realizável pelo Estado ou pelos próprios indivíduos. Finalmente, defende
um direito penal mínimo, isto é, que se limite às hipóteses de absoluta necessida­
de, segundo os princípios de um direito penal (e processual) garantista: legalidade,
lesividade, proporcionalidade, ampla defesa, dentre outros.
Finalmente, Ferrajoli - que propugna pela abolição gradual das penas privati­
vas da liberdade, por lhe parecerem excessiva e inutilmente aflitivas, assim como
propõe a adoção de penas máximas de dez anos de prisão - opõe-se à prevenção
especial (ao menos nos moldes tradicionais). Porque “o Estado” - escreve Ferrajoli
- “que não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados, senão só o de
impedir que se danem entre si, tampouco tem o direito de alterar - reeducar, redi­
mir, recuperar, ressocializar ou outras idéias semelhantes - a personalidade dos
réus. E o cidadão, embora tenha o dever jurídico de não cometer fatos delitivos,
tem o direito de ser interiormente malvado e de seguir sendo o que é. As penas, por
conseguinte, não devem perseguir fins pedagógicos ou correcionais, senão que
devem consistir em sanções taxativamente predeterminadas, e não agraváveis com
tratamentos diferenciados e personalizados do tipo ético ou terapêutico”.60
Coerente com sua proposta de direito penal mínimo, que exige o máximo de
certeza da intervenção jurídico-penal, Ferrajoli critica, inclusive, a flexibilização
da pena na fase executiva, seja para agravá-la, seja para atenuá-la, razão pela qual
ou bem se deve extinguir os atuais benefícios da execução (livramento condicional,
progressão, remição etc.) ou bem se deve convertê-los em direitos do preso já ao
tempo da sentença condenatória, pois “a pena quantitativamente flexível e qualita­
tivamente diferenciada na fase executiva não é menos despótica que as penas arbi­
trárias pré-modernas”.61

II. Teorias deslegitimadoras: abolicionismo e minimalismo radical

1. Introdução

As teorias deslegitimadoras, representadas, basicamente, pelo abolicionismo


penal (Hulsman62 e outros) e pelo minimalismo radical (Baratta, ZafJaroni e
outros), têm em comum o fato de se insurgirem contra a existência mesma do direi­
to penal. Recusam legitimidade ao Estado para exercer o poder punitivo, ressaltan­
do principalmente a disparidade entre o discurso e a prática penais, bem como a

60 Derecho y razón, cit., p. 223-224.


61 Derecho y razón, cit., p. 408-409.
62 Hulsman e Scheerer são alguns dos poucos autores que ainda podem ser considerados realmente abolicio­
nistas, visto que Christie reviu sua posição inicial (à semelhança de Matthiesen), para declarar-se minima­
lista, conforme entrevista concedida a Ana Sofia S. Oliveira e André isola Fonseca, Revista do IBCCrim,
São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 6 , n. 21, jan./mar. 1998.
D ireito Penal - Parte G eral

circunstância de o direito penal criar mais problemas do que resolve, sendo crimi-
nógeno, arbitrariamente seletivo e causador de sofrimentos inúteis.
Além disso, o direito penal, a pretexto de cumprir finalidades declaradas, de
proteção de bens jurídicos, prevenção geral e especial etc., jamais comprovadas ou
passíveis de comprovação, em verdade cumpriria funções latentes, não declaradas,
que o deslegitimam e, pois, autorizam a sua abolição.
A seguir, alguns dos argumentos mais correntes dessa perspectiva deslegitima-
dora, comuns ao abolicionismo e ao minimalismo radical.63

1.1. O crime não existe: caráter definitorial do delito

Adotando postulado do labeling approach (teoria do etiquetamento), ressalta-


se que, sob a etiqueta de delito, reúne-se toda uma série de comportamentos que
nada têm em comum, exceto quanto ao fato de estarem igualmente criminalizados.
Significa ainda que o crime não é um objeto do sistema penal, mas o resultado
mesmo do seu funcionamento, razão pela qual a criminalidade não existe por natu­
reza, pois é, mais exatamente, uma realidade socialmente construída mediante pro­
cessos de definição e interação.64 Adota-se o teorema (Thomas) segundo o qual, se
se definem situações como reais, são reais em suas conseqüências.65
Por isso que nada haveria na natureza do fato, na sua formação intrínseca, que
permita reconhecer se se trata ou não de um crime, exceto a competência formal
do sistema para intervir em determinadas situações. O conceito de crime, observa
Hulsman, não é operacional, porque é a lei que cria o crime e, pois, o criminoso.66
Christíe assinala que o delito não é uma coisa. E antes um conceito aplicado em cer­
tas situações sociais onde é possível cometê-lo e quando a uma ou a várias partes
interessa que assim se defina. Pode-se criá-lo, diz ele, “criando sistemas que requei­
ram essa palavra; podendo-se extingui-lo criando os tipos opostos de sistemas”.67

63 Emprega-se a expressão radicai para distinguir do chamado minimalismo moderado, defendido, dentre
outros, por Ferrajoli, García-Pablos, Larrauri, Hassemer e Naucke.
64 Baratta, Criminologia crítica, cit., p. 109.
65 Expressivas, no particular, são as investigações de Fritz Sack: “1) Os mecanismos de distribuição da quali­
dade negativa ‘criminalidade’ são um produto de ajustes sociais como os que regulam a distribuição dos
bens positivos em uma sociedade; 2) A distribuição do bem negativo ‘criminalidade’ acontece da mesma
maneira em que ocorre a distribuição de bens positivos. Para a análise dela se utilizam conceitos que geral­
mente têm dado bom resultado em sociologia, como o scatus, modelos de recrutamento, carreira, critérios
de atribuição etc.; 3) A criminalidade, e de maneira absolutamente geral o comportamento desviado, deve
ser compreendida como um processo no qual os partners, por uma parte aquele que se comporta de modo
desviado e, por outra, quem define o comportamento como desviado, são postos um frente ao outro; 4)
Neste sentido, comportamento desviado é aquele que outros definem como desviado. Não é uma qualida­
de ou uma característica que concerne ao comportamento como tal, senão que é atribuída ao comporta­
m ento” (cf. Baratta, Criminologia crítica, cit., p. 108-109).
66 Hulsman et al., Penas perdidas: o sistema penal em questão, trad. Maria Lúcia Karam, Niterói: Ed. Luam,
1993, p. 64.
67 Los limites dei dolor, México: Fondo de Cultura Econômica, 1984, p. 101.
Paulo Queiroz

1.2. Inidoneidade preventiva ou motivadora

A norma penal, embora pretenda dissuadir comportamentos delituosos (fun­


ção de prevenção geral ou especial), em verdade não se presta a esse fim, pois pro­
vavelmente ninguém se abstém de praticar crimes em atenção à possibilidade de
sofrer a incidência do aparato repressivo, vale dizer, a norma penal não intervém
no processo motivacional de formação da vontade de delinqüir, já que, quando
alguém se abstém de praticar crime, assim o faz por motivos de outra ordem (moral,
religioso, cultural etc.) que não o sistema penal. Já a prevenção especial é um mito,
uma vez que a prisão, a principal arma dos sistemas penais contemporâneos, não
ressocializa o criminoso, antes o dessocializa, o embrutece, o estigmatiza. De todo
modo, não está provado que o direito penal tenha de fato capacidade preventiva.
Argumenta-se que, para além disso, em realidade o verdadeiro e real poder
do sistema penal não é o repressivo (poder negativo), e sim o configurador disci-
plinário (positivo), arbitrário e seletivo, uma vez que, renunciando à legalidade
penal, confia-se às agências do sistema penal um controle social militarizado e
verticalizado de uso cotidiano e exercido sobre a maioria da população, que vai
muito além do alcance meramente repressivo, por ser substancialmente configu-
rador da vida social.68

1.3. Excepcionalidade da intervenção penal - as cifras ocultas da


criminalidade

Alega-se que a diferença entre o número de crimes praticados (abortos, fur­


tos, homicídios etc.) e o número de delitos submetidos à efetiva atuação do sistema ■
penal é abismai (contrapõem-se cifras ocultas a cifras oficiais), significativa da des­
necessidade do sistema penal, porquanto a maior parte dos casos passíveis de inter­
venção penal passa ao largo do conhecimento ou da atuação do sistema. Ora, se só
excepcionalmente se verifica a resolução dos casos por meio do recurso à pena, o
direito penal não é necessário, já que as vítimas, ou quem as represente, ordinaria­
mente prescindem dele.
Argúi-se que, se se tiver em conta os números da criminalidade oculta (nacr
registrada), ou seja, a soma de crimes diariamente praticados e que, não obstante,
passa ao largo do conhecimento ou da atuação do sistema penal - quer porque des-;
conhecida, quer porque não identificados os seus autores, quer porque alcançados,,
pela prescrição, quer porque objeto de composição extrajudicial, quer porque não,
provados etc. - , verificar-se-á que a criminalidade registrada, investigada, proces-'
sada e objeto de condenação e execução penais é irrisória, desprezível. E, pois, a

68 Zaffaroni, En busca de las penas perdidas, cit., p. 12-13.


D ireito Penal - Parte Geral

imunidade, e não a penalização, a regra no modo de funcionamento do sistema


penal.69 Por que achar normal - questiona a esse respeito Hulsman70 - um sistema
que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão des­
prezível? E um sistema que somente rege casos esporádicos é desnecessário, por isso
pode e deve ser abolido.

1.4. Igualdade formal versus desigualdade material: seletividade


arbitrária do sistema penal

O sistema penal, quer na fase de elaboração das leis (criminalização primária),


quer na fase de sua aplicação (criminalização secundária) seleciona sua clientela,
sempre e arbitrariamente, entre os setores mais vulneráveis da sociedade, entre os
miseráveis, enfim, reproduzindo desigualdades sociais materiais. Por conseqüência,
o fato de as prisões se acharem superlotadas de pessoas pobres não é acidental, por­
que inerente à lógica funcional do modelo capitalista de produção, em cujo sistema
o acesso aos bens e à riqueza se dá de modo inevitavelmente desigual.
Assinala-se assim que o direito, e o direito penal em particular, reflete uma con­
tradição fundamental entré igualdade dos sujeitos de direito e desigualdade substan­
cial dos indivíduos. A igualdade formal dos sujeitos de direito serve em realidade de
instrumento de legitimação de profundas desigualdades materiais.71 Porque há, con­
forme assinala Baratta, um nexo funcional entre os mecanismos seletivos do proces­
so de criminalização e a lei de desenvolvimento de formação econômica.72
Afirma-se ainda que a realidade operativa dos sistemas penais jamais póderá
se ajustar à planificação do discurso jurídico-penal, já que todos os sistemas penais,
quaisquer que sejam, apresentam características estruturais próprias de seu exercí­
cio de poder e que anulam o discurso jurídico-penal. Porque “a seletividade”, escre­
ve Zaffaroni, “a reprodução da violência, o condicionamento de maiores condutas
lesivas, a corrupção institucional, a concentração de poder, a verticalização social,
e a destruição das relações horizontais ou comunitárias, não são características con­
junturais, mas estruturais ao exercício do poder de todos os sistemas penais”.73 De

69 Hulsman apud Baratta, Criminologia critica, cit., p. 49.


Penas perdidas, cit., p. 66.
71 Baratta, Criminologia critica, cit.
^ Criminologia crítica, cit., p. 171. Entre nós, Vera Regina Pereira de Andrade chega a conclusões seme­
lhantes, ao dizer que, para “além das intervenções contingentes, há uma lógica estrutural de operaciona
lização do sistema penal nas sociedades capitalistas, que implicando a violação encoberta (seletividade) e
aberta (arbitrariedade) dos direitos humanos, não apenas viola a sua programação normativa, mas é, num
plano mais profundo, oposta a ambas, caracterizando-se por uma eficácia instrumental invertida à qual
uma eficácia simbólica confere sustentação". Mais adiante, após consignar que os limites do sistema são os
limites da própria sociedade, afirma ser “irreversível essa lógica e impossibilidade de operacionalização
dos sistemas penais adequar-se à sua programação, já que constitui uma marca estrutural do exercício do
2 Poder que não pode ser eliminada sem a própria supressão dos sistemas penais’’ (A ilusão, cit., p. 311-319).
busca de Ias penas perdidas, cit., p. 61.
Paulo Queiroz

fato, ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juizes fossem santos
ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que delegados e poli­
ciais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito, e o direito penal
em particular, seria um instrumento de desigualdade, porque a igualdade formal ou
jurídica não anula a desigualdade material subjacente.74
Portanto, o sistema penal atua sempre seletivamente, e seleciona conforme
estereótipos fabricados pelos meios massivos de comunicação;75 cria e reforça as
desigualdades sociais;76 é, contrariamente a toda aparência, um sistema injusto por
excelência.77

1.5. Caráter conseqüencial (sintomatológico), e não causai (etiológico),


da intervenção penal

Argumenta-se que o direito penal constitui uma resposta aos sintomas (ou
conseqüências) do crime, e não às suas causas. Logo, pouco ou nada se pode espe­
rar de semelhante intervenção, pois mais leis, mais policiais, mais juizes, mais pri­
sões, significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos (Jeffery). De
acordo com esse enfoque, a eficácia preventiva do direito penal, se é que existe, é
bastante limitada, uma vez que intervém demasiadamente tarde no conflito social:
não quando este se produz, mas quando e onde se manifesta; e intervém mal, já que
não traduz uma resposta etiológica, adequada às causas do problema, mas mera­
mente sintomatológica.78 O sistema penal tecniciza conflitos humanos e, ao fazê-
lo, os despolitiza, os descontextualiza e os desumaniza.

1.6. Caráter criminógeno do sistema penal

Também é corrente a afirmação de que a atuação do sistema penal é criminó-


gena em muitos caso, visto que, em vez de coibir determinadas condutas, em ver­
dade cria um clima propício não só para que tais condutas proliferem, como tam­
bém para que outras atividades criminosas vicejem. Exemplo disso é a política de
repressão à contravenção do jogo do bicho e ao tráfico ilícito de drogas, porque o
direito penal, além de não inibir tais comportamentos, ao condená-los à clandesti­
nidade, torna-os extremamente atraentes do ponto de vista econômico-fmanceiro,
gerando entre os seus exploradores uma concorrência violenta e sanguinária. Com
efeito, se, por um lado, esse comércio persiste e persistirá inevitavelmente, por

74 Paulo Queiroz, Do caráter subsidiário, cit., p. 30.


75 Zaffaroni, En busca de ]as penas perdidas , cit.
76 Hulsman, Penas perdidas, cit., p. 75.
77 Baratta. Criminologia crítica , cit., p. 169.
78 Garcia Pablos, Derecho penal , cit., p. 274.
D ireito Penal - Parte Gerai

outro, a proibição acaba por estimular uma série de outros males e crimes: contra­
ban do de armas, extermínio de grupos rivais, freqüentes confrontos violentos com
a Polícia, lavagem de capitais e evasão de divisas, sonegação tributária, corrupção
de agentes da segurança pública, criação de preços artificiais da droga, falta de con­
trole sobre a qualidade da droga consumida etc. Apesar disso, drogas ilícitas são
facilmente encontradas em qualquer Estado da Federação. Assim, o direito penal
não evita a criminalidade; ao contrário, fomenta-a, tomando-se criminógeno.

1.7. Reificação do conflito (do delito): neutralização da vítima pelo


sistema penal

Assinala-se que definir fatos ou situações como delituosos significa limitar


extraordinariamente as possibilidades de compreendê-los e apresentar uma respos­
ta minimamente racional. Daí se preferir a expressão “situações problemáticas” ou
semelhantes ao tradicional crime ou delito, num modelo alternativo de justiça que,
para fazer face a tais situações, tenha em conta todas essas opções e possibilidades,
no sentido de melhor resolvê-las.79 E justamente o que pretende fazer a atual movi­
mento por uma justiça restaurativa.80
Além disso, acredita-se que a intervenção estereotipada do sistema penal
tanto age sobre a vítima como sobre o delinqüente. Porque todos são tratados da
mesma maneira, como se todas as vítimas tivessem as mesmas reações e as mesmas
necessidades, afinal o sistema não leva em conta as pessoas em sua singularidade e,
operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que diz proteger,8! escreve
Hulsman.82 Nesse sentido, também Christie afirma que a vítima no processo penal
é em geral um perdedor duplamente: em primeiro lugar, em relação ao infrator, e
depois em relação ao Estado, porque está excluído de qualquer participação em seu
próprio conflito. E o Estado lhe rouba o conflito, um todo que lhe é levado a cabo
por profissionais.83

79 Como exemplo das várias reações possíveis em dada situação conflitiva: punitiva (reação penal típica),
compensatória, terapêutica (curativa) e conciliadora, Hulsman figura hipótese bastante ilustrativa: cinco
estudantes moram juntos e, em determinado momento, um deles sc arremessa contra a televisão e a dani­
fica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente, responde, que ne­
nhum deles vai ficar contente. Mas cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma
atitude diferente. O estudante número 2, furioso, dirá que não quer morar com o primeiro e fala em expul-
sá-lo da casa; o terceiro declarará: “o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos
e ele que pague.” O quarto estudante, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: "ele está evi­
dentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra etc.” O último ainda sussurra:
“a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para per­
mitir um gesto como esse. Vamos juntos fazer um exame de consciência” (Penas perdidas , cit., p. 100).
80 Sobre o assunto, Leonardo Sica. Justiça Restaurativa. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007.
81 Penas perdidas , cit., p. 83-84.
82 Penas perdidas, cit.
83 Limites dei dolor, cit., p. 126.
Paulo Queiroz

1.8. O sistema penal intervém sobre pessoas, e não sobre situações

Argumenta-se que todo o sistema penal gira em tomo da idéia de culpabilida­


de individual (pessoal), desprezando por completo o ambiente ou o sistema social
em que se insere. Culpam-se os indivíduos; ignoram-se os sistemas, as estruturas
sociais. De acordo com Christie, o fato decisivo é o delito, não os desejos da vítima,
não as características individuais do culpado, não as circunstâncias particulares da
sociedade local, sendo que, ao excluir todos esses fatores, o sistema se converte em
uma negação de toda uma série de opções e possibilidades que deveriam ser toma­
das em consideração. E um sistema, diz o criminólogo norueguês, que permite a si
mesmo ser dirigido unicamente pela gravidade do ato, em nada contribui para se
ter um conjunto satisfatório de modelos para os valores da sociedade.84
A pessoa é assim considerada pelo direito penal como uma variável indepen­
dente e não como uma variável dependente das situações.85 Vale dizer, a lei penal
trabalha com imagens falsas, pois se baseia em ações, em vez de interações, funda-
se em sistemas de responsabilidade biológica e não em sistemas de responsabilida­
de social.®6

2. Conclusão

Falar de direito penal é falar inevitavelmente de violência, mas não apenas da


violência que é materializada pelos fatos considerados delituosos (homicídio, latro­
cínio, estupro), como também é falar da violência que é o próprio direito penal e
seus modos de atuação, pois ele é em si mesmo violência, seletiva, discriminatória,
desigual e de discutível utilidade, de sorte que tão grave e importante quanto o con­
trole da violência é a violência do controle.87 A pena de morte, a pena de prisão, as
prisões cautelares, por exemplo, distinguem-se dos crimes de homicídio e de seqües­
tro pelo só fato de que aqueles constrangimentos estão autorizados pelo direito,
enquanto estes últimos não, ou seja, a pena de morte e as prisões outra coisa não são
senão autênticos homicídios e seqüestros levados a cabo pelo Estado legalmente.
O direito penal é uma espada de duplo fio, pois é lesão de bens jurídicos para
proteção de bens jurídicos;88 é violência a serviço do controle da violência.
Ademais, é certo que quem pretenda estudar e compreender o sistema penal
- e, mais ainda, interpretá-lo e aplicá-lo criticamente - não pode deixar de reco­
nhecer que de fato o direito penal assenta sobre fundamentos teóricos (prevenção

84 Limites dei àolor, cit., p. 60-61.


85 Baratta, Direitos humanos: entre a violência estrutural e a violência penal, Fascículos de Ciências Penais ,
Porto Alegre, 1993.
86 Larrauri, Abolicionismo dei derecho penal, P od ery Control, n. 3, p. 95-117, 1987.
87 A expressão é de Vera Andrade.
88 A. expressão é de Franz von Liszt.
D ire ito Penai - Parte Gera)

geral, especial, igualdade, culpabilidade etc.) no mínimo duvidosos; e sua necessi­


dade é em todo caso questionável, sobretudo em face da excepcionalidade de sua
intervenção, da duvidosa eficácia motivadora de sua intervenção, da possibilidade
de apelo a outras formas menos violentas de controle social e da arbitrária seletivi­
dade inerente ao seu funcionamento ordinário.
Mas se isso é verdadeiro, também é certo que não podemos, aqui e agora, abdi­
car pura e simplesmente do direito penal, como pretende o abolicionismo penal,
mesmo porque, ainda quando semelhante pretensão fosse realmente factível, tería­
mos de necessariamente passar por um processo gradual de descriminalização até
alcançarmos tal estágio, invertendo, inclusive, o processo atual de expansão desen­
freada do sistema penal. De mais a mais, abolir o direito penal constituiria, como
diz Bustos Ramírez, uma simples “fraude de etiquetas”, porque continuaria a exis­
tir, ainda que com nome diverso, um direito sancionador também seletivo e discri-
minador, já que não desapareceriam as estruturas do Estado que lhe dão vigência e,
pior, sem nenhuma garantia.89 E seria de fato uma utopia regressiva, conforme assi­
nala Ferrajoli:90 o abolicionismo, para além de suas intenções libertárias e humani­
tárias, configura-se como uma utopia regressiva que, sob os pressupostos ilusórios
de uma sociedade boa e um Estado bom, apresenta modelos em realidade desregu-
lados ou auto-regulados de vigilância e/ou castigo, em relação aos quais é o direito
penal, com seu complexo, difícil e precário sistema de garantais, que constitui, his­
tórica e axiologicamente, uma alternativa progressista.
Bem mais razoável é, portanto, propugnar por um direito penal conforme a
Constituição, é dizer, um direito penal mínimo, que se limite a disciplinar situações
de absoluta necessidade para segurança dos cidadãos.
Naturalmente que um direito penal mínimo não é em si uma solução, mas
parte da solução, pois o decisivo, para o controle racional da criminalidade, além
da efícientização do controle social não penal (particularmente a eficientização do
controle administrativo), é privilegiar intervenções estruturais (etiológicas), e não
apenas individualizadas e localizadas (sintomatológicas), em especial com vistas a
criar as condições para que se evite o processo de marginalização social do homem,
por meio de políticas sociais de integração social deste. Um direito penal assim resi­
dual não é só, portanto, o programa de um direito penal mais justo e mais eficaz; é
também parte de um grande programa de justiça social e de pacificação dos confli­
tos.91 Assim postas as coisas, terá o direito penal um papel bastante modesto e sub­
sidiário de uma política social de largo alcance, mas nem por isso menos importan­
te. Uma boa política social ainda é, enfim, a melhor política criminal.92

89 Introducción al derecho penal, Bogotá: Ed. Temis, 1994, p. 195-196.


90 Derecho y razón, cit., p. 341.
91 Baratta, La política criminal y el derecho penal de la Constitución: nuevas reflexiones sobre el modelo
integrado de las ciências penales, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 8, jan./mar. 2000.
92 A expressão é de Franz von Liszt.
Paulo Queiroz

Porque no fundo, e como se vem de demonstrar, segurança e proteção têm


pouco a ver com proteção penal ou com o aumento de sua carga repressiva, isto é,
o controle (real) da criminalidade tem, em verdade, pouco a ver com o controle
penal93 (polícia, juizes etc.). E mais importante: a necessidade de segurança dos
cidadãos não é somente, como assinala Baratta, uma necessidade de proteção da cri­
minalidade e de processo de criminalização, pois a segurança dos cidadãos corres­
ponde, também, à necessidade de estarem e sentirem-se garantidos no exercício de
todos os seus próprios direitos: direito à vida, à liberdade, ao livre desenvolvimen­
to da personalidade e de suas próprias capacidades; direito de expressar-se, de
comunicar-se, direito à qualidade de vida, assim como direito de controlar e influir
sobre as condições das quais depende, em concreto, a existência de cada um. Enfim,
a relação entre garantismo negativo (limites ao poder punitivo) e garantismo posi­
tivo (assegurar as condições de poder viver condignamente - realização dos direi­
tos sociais) eqüivale à relação que existe entre a política de direito penal e a políti­
ca integral de proteção dos direitos.94
Releva notar ainda que, enquanto o direito penal existir, e nada sugere o con­
trário, e independentemente da comprovação da sua (in)capacidade preventiva,
investigar as suas funções latentes e manifestas constituirá questão permanente­
mente nova e renovável, e sobre a qual o jurista conseqüente jamais poderá descui­
dar, seja para denunciar as injustiças ligadas ao seu funcionamento, seja para apon­
tar novos caminhos no sentido de um direito penal menos injusto, mais democrá­
tico e fraterno.
Finalmente, e conforme vimos ao tratar do conceito de direito, se o direito é
uma prática social discursiva, é evidente que abolir as normas e instituições jurídi­
co-penais não significaria abolir o direito penal, mas apenas o sistema formal de,
repressão, de modo que, se quisermos abolir o direito penal realmente, teremos de
começar por aboli-lo de nós mesmos, isto é, abolir nossos microssistemas punitivos.

93 A pena, como assinala García-Pablos, que não convence, só atemoriza, reflete mais a impotência, o fracas­
so e a ausência de soluções que a convicção e a energia necessárias para abordar os problemas sociais. Por
isso, uma verdadeira e eficaz prevenção há de ser programada a médio e longo prazo, e não deve ser enten­
dida em sua estrita e negativa acepção intimidatória, quase policial, senão positivamente: como prevenção
social e comunitária (El principio de intervención mínima, cit., www.direitocriminal.com.br, l°-6~200l)-
94 Baratta, La política criminal..., Revista, cit.
D ireito Penal - Parte Geral

Capítulo IV
A Lei Penal no Tempo

1. Princípio da legalidade e consectários lógicos: anterioridade e


irretroatividade da lei penal mais severa

1.1. Introdução

Como vimos, de acordo com o princípio da legalidade (compreensivo da


reserva legal, taxatividade e irretroatividade da lei mais severa), não há crime sem
lei que o defina, nem pena sem cominação legal (CF, art. XXXIX; CP, art. 1Q). Mas
semelhante princípio seria de todo inútil caso pudesse a nova lei retroagir para
incidir sobre fatos consumados antes da sua entrada em vigor. A anterioridade da
lei penal e sua conseqüente irretroatividade são, por isso, corolário lógico do prin­
cípio da legalidade, já que, como disse Hobbes, “se a pena supõe um fato conside­
rado como transgressão à lei, o dano praticado antes de existir a lei que não o proi­
bia não é uma pena, mas um ato de hostilidade, pois antes da lei não existe trans­
gressão à lei”.5 Por isso que a Constituição Federal (e o Código Penal) dispõe que
“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”,
de sorte que a formulação completa do princípio da legalidade compreende, neces­
sariamente, a anterioridade da lei (nullum crim en, nulla p oen a sine praevia lege) e
a sua irretroatividade. Por conseqüência, a lei nova somente regerá como regra fatos
presentes e futuros (posteriores à sua entrada em vigor), e não fatos pretéritos.
Exatamente por isso, a Constituição (art. 5Q, XL, e CP, art. 2e) proclama que “a
lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”, de modo que vigora o princípio da
irretroatividade da lei penal mais severa, proibitivo da retroatividade da lei penal
em prejuízo do réu, seja porque criminaliza novos comportamentos, seja porque
confere tratamento mais gravoso aos já criminalizados. Significa dizer, por outro
lado, que a lei poderá retroagir sempre que dispuser favoravelmente ao acusado,
quer porque descriminaliza a conduta (abolitio críminis), quer porque lhe dá trata-
mento mais brando. A razão a autorizar a exceção é já conhecida: sendo o princí-
P!o da legalidade uma garantia do acusado, seu fundamento político (e histórico,
mclusive) é impedir excessos por parte do Estado no exercício do poder punitivo,

1 ieviatâ, São Paulo: Abril Cultural, 1992, XXVIII.


Paulo Queiroz

de sorte que, nas hipóteses em que a retroatividade da lei for mais benéfica, não •
haverá ofensa alguma à pretensão garantista que o princípio encerra.
Ao adotar os princípios da anterioridade e da irretroatividade das leis penais,
objetiva-se, ademais, evitar que os seus destinatários sejam surpreendidos por dis- ,
posições que incriminem fatos novos ou que os agravem, de modo que tais garan­
tias constituem também uma exigência infranqueável de segurança jurídica. Por
fim, se a finalidade principal do direito penal é a prevenção subsidiária de delitos,
segue-se que tais infrações devem ser conhecidas por seus destinatários já ao tempo
do seu cometimento, e não depois, haja vista que só assim podem as normas jurídi­
co-penais advertir e prevenir.2

2. Hipóteses de irretroatividade '

2.1. Neocriminalização (novatio legis incriminadora)

Sempre que a lei definir fatos novos como infração penal (novatio legis incri­
minadora), passando a criminalizar comportamentos que até então eram jurídico-
penalmente irrelevantes, sua aplicação se limitará às situações consumadas a partir !
de sua entrada em vigor, não antes. Assim, por exemplo, a Lei de Tortura (Lei ne .
9.455/97) e a Lei de Crimes Ambientais (Lei n9 9.605/98), que elevaram à categoria
de crime diversas condutas que não constituíam infração penal. Nesses casos tais
disposições (neocriminalizadoras) não poderão alcançar as pessoas que, anterior- ;
mente à sua vigência, tenham incorrido na prática de tais infrações. Sua aplicação
dar-se-á, em conseqüência, exclusivamente em relação aos fatos ocorridos a partir
da sua entrada em vigor.

2.2. Lei nova mais severa (novatio legis in pejus)

Por igual, não retroagirá a norma penal que de qualquer modo der tratamen­
to mais severo a condutas já punidas pelo direito penal, seja criminalizando o que
antes constituía simples contravenção, seja de qualquer modo conferindo discipli­
na mais gravosa, hipótese em que se limitará a reger unicamente as infrações con­
sumadas a partir de sua efetiva vigência. Exemplo disso é a Lei de Crimes Hedion­
dos (Lei ns 8.072/90), que, elevando determinados crimes à categoria de hedion­
dos (latrocínio, extorsão mediante seqüestro etc.), conferiu-lhes tratamento bem
mais severo, como, por exemplo, aumentando as penas cominadas, vedando a pro­
gressão de regime, negando a possibilidade da concessão de graça, anistia e indul- \

Como escreve García-Pablos, seja ou não seja inerente à própria estrutura da lei, o certo é que a proibição
de retroatividade, de algum modo, vem reclamada pelos conceitos de delito, culpabilidade e pena e por
poderosas exigências político-criminais (Derecho penal, cit., p. 247).
D ireito Penal - Parte G eral

to etc. No mesmo sentido é a Lei 11.343/2006, relativamente à pena, que, entre


outras coisas, aumentou a pena cominada ao tráfico ilícito de droga; não podendo
retroagir, portanto.

2.3. Irretroatividade da jurisprudência?

Convém saber ainda se semelhante princípio só vale para as leis penais mais
severas ou, se, ao contrário, seria também aplicável ao precedente judicial que con­
fira às normas interpretação desfavorável ao réu.
O entendimento francamente majoritário - defendido, entre outros, por Roxin
- é o de que a proibição de retroatividade se refere à lei, exclusivamente. Para
Roxin, com efeito, “se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorá­
vel para o acusado que o havia feito a jurisprudência anterior, este tem de suportá-
lo, pois, conforme o seu sentido, a nova interpretação não é uma punição ou agra-
vação retroativa, mas a realização de uma vontade da lei, que já existia desde sem­
pre e que somente agora foi corretamente r e c o n h e c id a ”.3
Já Odone Sanguiné sustenta com razão que a posição mais correta consiste em
solucionar essa questão da perspectiva constitucional, estendendo a proibição de
retroatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu, postura que se
ampara, por um lado, na idéia de segurança jurídica como fundamento do princí­
pio da irretroatividade e, ademais, na proposta de revisão do vetusto significado da
separação dos poderes; por outro, na harmonização dessa doutrina com o princípio
de determinação a fim de substituir a posição tradicional por uma visão superado-
ra da pretendida distinção absoluta entre a função da lei e a função da jurisprudên­
cia penal.4 E que a lei e sua interpretação - escreve Sanguiné - se encontram em
um vínculo necessário de complementação, de modo que a realidade jurídica do
princípio da legalidade só será atendida quando, para determinado tipo penal, vigo­
re a mesma interpretação que lhe era dada à época do cometimento do fato e que
corresponda à verdadeira pretensão normativa.5
Pela mesma razão, alterações da jurisprudência que favoreçam o réu devem
retroagir, de sorte a admitir a revisão criminal inclusive. Assim, por exemplo, a
recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalida­
de da Lei ne 8.072/90, quanto à vedação de progressão de regime para os crimes
hediondos e afins.

3 D erecho p en a i cit., p. 165.


4 Irretroatividade e retroatividade das alterações da jurisprudência penal, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, ano 8, n. 31, p. 154, jul./set. 2000.
5 Irretroatividade..., Revista, cit., p. 162.
Paulo Queiroz

3. Hipóteses de retroatividade

3.1. Descriminalização (abolido críminis)

Se a intervenção jurídico-penal só se justifica quando irrenunciável para a


segurança dos cidadãos, segue-se que seus efeitos não podem prevalecer quando o
próprio Estado, titular do jus puniendi, renunciando a esse direito, manifestar
desinteresse na punição de tais condutas (descriminalizadas). Por isso é que, com a
descriminalização do comportamento (abolitio críminis), todos os efeitos penais,
principais e acessórios, cessam com a cessação da sua causa (a norma revogada). Em
conseqüência, o inquérito ou o processo instaurados serão arquivados, sendo posto
em liberdade quem se achar preso. Ou seja, a partir da abolição do-crime, todos os
efeitos penais da norma penal desaparecem, como se ela simplesmente jamais tives­
se existido. O Código Penal (art. 2e) é claríssimo em afirmar: “ninguém pode ser
punido por fato que a lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude
dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória transitada em julga­
do.” Exemplo disso foi a abolição dos crimes de adultério e sedução.
Cumpre notar que a expressão descriminalizar (= abolir o crime), como o indi­
ca o étimo da palavra, significa retirar de certa conduta o caráter de criminosa, mas
não o caráter de ilicitude, já que, como vimos, o direito penal não constitui o ilíci­
to (caráter subsidiário); logo, não pode, pela mesma razão, desconstituí-lo. Por isso
que, embora não subsistindo quaisquer dos efeitos penais (v. g., reincidência), per­
sistem todas as conseqüências não penais (civil, administrativa) do fato, como a
obrigação civil de reparar o dano, que independe do direito penal.

3.2. Lei penal mais branda (novatio legis in mellius)

A norma penal ainda retroagirá, para incidir sobre situações consolidadas


antes de sua entrada em vigor, sempre que dispuser mais favoravelmente ao infra­
tor. E o que dispõe o Código Penal, art. 2S, parágrafo único: “a lei posterior, que de
qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decidi­
dos por sentença condenatória transitada em julgado.” Assim, por exemplo, se ate­
nua a pena cominada ou passa a admitir determinados benefícios legais em seu
favor, não permitidos anteriormente, como admissão de penas alternativas, pro­
gressão de regime ou que de qualquer outro modo o favoreça. Exemplo disso é a
nova Lei de Drogas relativamente à causa de aumento de pena prevista no art. 18,
III, Lei 6.368/76, que dizia respeito ao envolvimento no tráfico de pessoa menor de
vinte e um anos, maior de sessenta ou incapaz, atualmente revogada.
Naturalmente que, para decidir sobre qual é a lei mais favorável, poderá não
ser suficiente a consideração da lei em abstrato, razão pela qual o juiz terá de tomar
em conta as múltiplas variáveis do caso e os resultados concretos para o autor, pro­
cedendo, quando necessário e cabível, à individualização judicial da pena inclusive.
D ireito Penal - Parte Geral

Se houver dúvida sobre qual é a lei mais favorável para o infrator, quer se con­
siderando a norma abstrata, quer concretamente, nada impede, em que pese as opi­
niões em sentido contrário, que se consulte o interesse do infrator, em cujo favor
milita a garantia constitucional. Aliás o Código Penal espanhol (1996) assim dispõe
exatamente: no caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável, será
ouvido o réu (art. 2°, 2).
Finalmente, a definição da autoridade judiciária competente para decidir
sobre a lei mais favorável dependerá do andamento do processo: se estiver na fase
de conhecimento, competente será o juiz de primeiro grau; se em grau de recurso,
será competente o respectivo tribunal; se o processo já se encontrar em fase de exe­
cução, será competente o juiz da execução penal, conforme dispõe a Súmula 611 do
STF: “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execu­
ções a aplicação da lei mais benigna.” Mas nem sempre a definição da autoridade
judiciária competente será tão simples, podendo haver necessidade de submeter a
questão à apreciação do tribunal se a matéria transcender a competência dos juizes
de primeiro grau, inclusive do juiz da execução.

4. Combinação de leis penais (lex tertia)?

No caso de sucessão de leis, pode ocorrer de a nova lei ser em parte desfavo­
rável e em parte favorável ao réu, situação que, embora rara, tem como exemplo
recente a revogação do artigo 12, c/c art. 18, I, da Lei n5 6.368/76 pelo art. 33, c/c
o art. 4 0 ,1, da Lei ne 11.343/2006, que tratam do tráfico ilícito de droga para o exte­
rior. Com efeito, apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime, de
3 a 12 anos de reclusão, para 5 a 15 anos de reclusão, e, portanto, é mais severa no
particular, reduziu a causa de aumento de pena relativa ao tráfico para o exterior,
que era de um terço a dois terços, para um sexto a dois terços. Nessa hipótese dis-
cute-se então se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da lei
6.368/76 (revogada) poderia ficar sujeito àquela pena inicial (3 a 12 anos) com o
novo aumento (um sexto a dois terços), por lhe ser mais favorável, havendo posi­
cionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos, isto é, contrário e
a favor da combinação.6 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam em
geral que a combinação implicaria criação de uma terceira lei (lex tertia) e o juiz
estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta ao princípio da
legalidade e divisão de poderes.
Pensamos que a questão está mal colocada, porque rigorosamente não há em
tal caso combinação alguma, mas mera retroatividade parcial da lei. E que a nova

6 Admitindo a combinação, Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus, Cezar Roberto
Bitencourt, Juarez Cirino dos Santos, Andrei Schmidt, entre outros. Contrariamente, Nelson Hungria,
Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso etc.
lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu, podendo inclusive ser
benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou vice-versa.
Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu (v. g., diminui os
limites mínimos e máximos de pena), é evidente que retroagirá de forma integral;
mas se o for em parte (v. g., suprime a pena mínima cominada, mas aumenta o limi­
te máximo de pena), então o caso não é de combinação, mas de retroatividade par­
cial da nova lei. Parece evidente assim que, se a lei deve retroagir quando for inte­
gralmente favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em
parte, em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior,
pouco importando o quanto de beneficio encerre; afinal, se a lei deve retroagir no
seu todo quando mais branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em
parte. Ademais, o Código (art. 2®, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a
lei posterior favorecer o agente d e qualquer m odo, isto é, incondicionalmente,
sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo.
Não existindo, portanto, combinação de lei, mas mera retroatividade parcial
da nova lei, é impróprio falar de criação de uma nova lei, pois o que ocorre é uma
simples aplicação simultânea de leis igualmente válidas. E não admiti-la, a pretex­
to de que tal importaria criar lex tertia, é negar vigência ao princípio constitucio­
nal da retroatividade da lei mais favorável.7
Finalmente, aqueles que se opõem ao que chamam de combinação de leis par­
tem de uma perspectiva hermenêutica há muito superada (vide capítulo sobre o con­
ceito de direito; o direito não existe e também interpretação/aplicação do direito).

5. Sucessão de leis penais: a lei intermediária

Em havendo sucessão de leis penais, questiona-se a possibilidade de aplicação


de uma lei intermediária mais favorável ao delinqüente, ainda que não seja nem a
lei da época do cometimento do fato nem a do seu julgamento pelo juiz da causa.
Assim, por exemplo, se ao tempo da prática do delito vigora a lei X, sucedida pela
lei Y, estando em vigor, finalmente, quando do julgamento, a lei Z, sendo a lei Y
(lei intermediária) a mais favorável. Em tal hipótese, não há dúvida, aplica-se ao
infrator a lei mais benéfica, vale dizer, a lei Y (lei intermediária), ainda que não seja
nem a lei do tempo do fato nem a do seu julgamento.

7 No sentido do texto, Ney Moura Teles assinala que, se a Constituição Federal manda a lei penal mais bené­
fica retroagir sempre, o que se pode afirmar é que apenas o dispositivo benéfico retroage, irretroativo o
mais severo, uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica, e não o texto legal
integral, a não ser que fosse ele integralmente mais favorável. Se num texto há vários dispositivos, uns
benéficos, outros prejudiciais, é claro que só aqueles retroagem. Ao combinarem os dispositivos de duas
leis, o juiz não cria uma terceira lei, mas apenas obedece ao preceito constitucional, maior, que não manda
a lei retroagir por inteiro, mas determina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier
favorecer o réu. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Atlas, 2006.
D ireito Penal - Parte Geral

Enfim, prevalecerá sempre a lei mais favorável, independentemente de ser a


lei vigente à época do fato, à época do julgamento do fato ou intermediária.

6. Ultratividade da lei penal: leis temporárias e excepcionais

Excepcionalmente, pode ainda ocorrer de a norma penal ser aplicada ao caso


mesmo depois de sua revogação, em relação a fatos consumados na sua vigência,
sempre que for editada para disciplinar relações temporárias ou excepcionais,
estando sua duração, portanto, predeterminada no tempo (leis temporais) ou con­
dicionada à persistência das razões extraordinárias que as motivaram (leis excep­
cionais). Significa dizer que as leis temporárias e excepcionais valem mesmo após a
sua revogação, isto é, atuam ultrativamente quanto aos fatos ocorridos durante a
sua vigência.
Nesse sentido o art. 3e do Código Penal dispõe que: “a lei excepcional ou tem­
porária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias
que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.” Lei tempo­
rária é a norma cuja vigência vem pré-fixada pelo legislador; excepcional, a edita­
da para atender a situações anormais ou emergenciais (guerra, calamidade públi­
ca etc.). Nelas, como assinala Frederico Marques, o tempo integra a estrutura da
norma, ou como condição de maior punibilidade, exterior ao tipo, ou como ele­
mento a este inerente. A pena cominada liga-se ao fato descrito no preceito pri­
mário, porque este foi cometido em determinada época ou durante o desenvolver
de algum acontecimento excepcional. O crime então consiste na prática de certo
fato em determinado tempo ou enquanto perduram ou se desenvolvem certos
acontecimentos.8
Essa é a razão prática a legitimar a ultratividade desse tipo de lei: se tais nor­
mas ao final de sua duração perdessem o seu poder coercitivo, seria improvável que
os seus destinatários as tomassem a sério e, pois, seriam incapazes de motivá-los
(função motivadora da norma). Justifica-se-ia a ultratividade em nome da auto­
ridade da lei, razão pela qual subsistem todos os seus efeitos, mesmo após a cessação
de sua vigência, relativamente àqueles crimes praticados durante a sua existência.
No entanto, discute-se atualmente a constitucionalidade (recepção) do art. 3e
do Código, que prevê a ultra-atividade das leis excepcionais e temporárias.9 Temos
que há realmente violação ao princípio da retroatividade, apesar de não ser o caso,
propriamente, de sucessão de leis penais no tempo, mas de decurso puro e simples
do prazo legal de sua vigência.
E que o advento do termo final da lei excepcional ou temporária implica, auto­
maticamente, a descriminalização da conduta (abolitio críminis), e, pois, nenhum

8 Tratado, cit., p. 268.


9 No sentido da não recepção, Andrei Schmidt, Zaffaroni/Batista, Juarez Cirino dos Santos e Gamil Fõppel.
efeito pode produzir desde então, mesmo em relação àqueles que cometeram crime
durante a sua vigência, tal como ocorre com as leis normalmente editadas. Ade­
mais, quando sobrevêm o prazo legal de duração da lei, o Estado renuncia, ainda
que implicitamente, ao poder de punir, não se justificando, também por isso, a
penalização dos infratores, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade
inclusive, afinal a pena já não é necessária para prevenção geral e especial de
futuros delitos. E o só argumento prático-utilitário de lhes assegurar a função
motivadora não é suficiente para legitimar a pretendida ultra-atividade.
Finalmente, é certo que a Constituição não previu nenhuma exceção no
particular.

7. Irretroatividade da lei processual

A doutrina considera, em geral, que a nova lei processual penal deve ser apli­
cada ao processo desde logo (CPP, art. 2e), podendo incidir sobre crime cometido
anteriormente à vigência, ainda quando mais severa. Assim, por exemplo, se uma
determinada lei passasse a considerar como hediondo crime que não o era até
então, aumentando-lhe a pena cominada, e, além diso, proibisse a liberdade provi­
sória, deveria ser aplicada imediatamente quanto à parte processual: proibição de
liberdade provisória, embora o mesmo não pudesse ocorrer quanto à parte penal:
equiparação à crime hediondo com aumento de pena.
Temos, porém, que a irretroativade da lei penal deve também compreender,
pelas mesmas razões, a lei processual penal, apesar do que dispõe o art. 2Qdo Código
de Processo Penal, que determina a aplicação imediata da norma, uma vez que deve
ser (re)interpretado à luz da Constituição Federal. Com efeito, sempre que a nova lei
processual for prejudicial ao réu, porque suprime ou relativiza garantias - v. g., adota
critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares, veda a liberdade pro­
visória, restringe a participação do advogado etc. - , limitar-se-á a reger as infrações
penais consumadas após a sua entrada em vigor; afinal, também aqui, a lei deve cum­
prir sua função de garantia, de sorte que por norma processual menos benéfica se há
de entender toda disposição normativa que importe em diminuição de garantias, e
por mais benéfica, a que implique o contrário: aumento de garantias processuais.10
Contrariamente, sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável
ao réu - v. g., passa a admitir a fiança, amplia a participação do advogado, aumen­
ta os prazos de defesa, prevê novos recursos etc. terá aplicação retroativa.
Tratando-se de normas meramente procedimentais, que não impliquem
aumento ou diminuição de garantias - como ocorre com regras que modificam a

10 No sentido do texto, Aury Lopes Júnior. Introdução crítica ao Processo Penal. 4. edição. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.‘Também assim, Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya. Introdução ao Dirito
Penal. Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
D ireito P en al - P arte G eral

competência ou alteram a forma de intimação terão igualmente aplicação ime­


diata (CPP, art. 2q), alcançando o processo no estado em que se encontra e respei­
tados os atos validamente praticados.
No particular, é de todo irrelevante, portanto, a mui recorrente distinção en­
tre lei penal e lei processual penal,11 uma vez que ambas cumprem a mesma fun­
ção político-criminal, de proteção do mais débil (o acusado) em face do mais forte
(o Estado), além do que o Direito é uno, não podendo, por isso, ser garantista num
momento (penal) e antigarantista noutro (processual). Dito de outro modo: no que
toca ao tema da retroatividade da lei, o que importa, numa perspectiva garantista,
não é a natureza jurídica da norma - se penal, se processual penal, distinção nem
sempre fácil - , mas o grau de garantismo que encerra. Afinal, e como assinala
Binder, tanto a infração penal quanto o modo de comprovação de sua existência e
aplicação da pena têm de vir previstos antes do fato que motivou a intervenção
jurídico-penal, a fim de que o cidadão saiba claramente o que deve e o que não deve
fazer, como também o que será sancionado, quais são as limitações do juiz e quais
são suas garantias no processo penal.12 Ou seja: as regras do jogo hão de ser conhe­
cidas antes mesmo de seu início, as quais não poderão, por isso, ser modificadas
depois de iniciado, salvo para favorecer o réu.
Finalmente, cuidando-se de normas de conteúdo misto - em parte favorável
ao réu e em parte não - , vale o que já se disse sobre a irretroatividade da lei penal,
sendo também admitida a combinação entre as normas (anterior e posterior). Mas
não sendo isso possível, em razão do caráter unitário da alteração levada a efeito, a
eleição da norma aplicável ao caso deverá ter em conta o significado político-cri­
minal prevalecente da reforma para os interesses concretos do acusado. Exemplo
disso foi dado pela Lei na 9.271/96, que, modificando a redação do art. 366 do
Código de Processo Penal, determinou que, quando o réu, citado por edital, não
comparecer em juízo nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o
prazo prescricional. Assim, enquanto a parte relativa à suspensão do processo é

11 Não é exato dizer, portanto, com Frederico Marques: “Nada mais condenável que esse alargamento da lei
penal mais branda, porquanto invade os domínios do direito processual, em que vigoram diretrizes diver­
sas no tocante às normas intertemporais. Direito Penal é Direito Penal, e processo é processo. Um disci­
plina a relação material consubstanciada no jus puniendi, e outro, a relação instrumental que se configu­
ra no actum trium personarum do juízo, seja civil ou penal. E inaceitável assim, como lembra Antón
Oneca, ‘a aplicação das regras do Direito Penal intertemporal ao processo penal’. Se a lei penal não é lei
processual, e a lei processual não é lei penal, as regras sobre a ação penal e as condições de procedibilida-
de (queixa, representação e requisição ministerial) não se incluem no cânon constitucional do art. 58, XL,
que manda retroagir, em benefício do réu, tão-só a lei penaV ( Tratado, v. 1, p. 258). Na linha adotada por
Frederico Marques, pensam (ainda) Edilson Bonfim e Fernando Capez, Direito penal: parte geral, São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 186, para os quais a lei processual não se submete ao princípio da retroatividade
em benefício do agente, tendo aplicação imediata, nos termos do art. 2a do CPP, ainda que o crim e lhe seja
anterior e a situação do acusado agravada. E Tourinho Filho, que conclui: “entrando em vigor nova lei
processual penal hoje, ela terá aplicação mesmo aos processos que estejam em curso, pouco importando
sua severidade ou brandura”, Processo penalySão Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 114.
Introdução ao direito processual penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 99.
1
Paulo Queiroz

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favorável ao réu, por implicar aumento de garantia, pois a redação original do art.
366 previa o prosseguimento do feito no caso de citação por edital e revelia, a parte
alusiva ã suspensão do prazo de prescrição lhe era prejudicial, pois antes a prescri­
ção corria normalmente. Num tal caso, a combinação de normas é impossível, uma ^
vez que a suspensão do prazo prescricional pressupõe, logicamente, a suspensão do A
processo. Daí ter decidido o STF, corretamente, que a reforma introduzida pela Lei
na 9.271/96 era irretroativa, pois no todo era nociva aos interesses do acusado.

8. Irretroatividade da Lei de Execução Penal

O mesmo se deve dizer quanto à Lei de Execução Penal, porque também aqui
se trata de preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários ’
momentos de concretização (cominação, investigação/aplicação e execução da
pena), de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado,
não poderão retroagir, só incidindo, em conseqüência, sobre os crimes consumados -
após a sua entrada em vigor. Exemplo disso foi dado pela Lei n9 10.792/2003, que,.
alterando a Lei de Execução Penal (Lei n9 7.210/84), introduziu (art. 52) o regime . -
disciplinar diferenciado,13 que consiste no cumprimento da pena em condições '*
extremamente penosas para o preso, regime a ser imposto exclusivamente àqueles
que cometeram delito após a sua vigência, e não antes, sob pena de violação ao /
princípio da legalidade da pena.
Aliás, aqui, mais do que no processo de conhecimento, importa respeitar o alu- 1'
dido princípio, pois é na execução penal que se verifica, ordinariamente, o maior
déficit de proteção jurídica (menor grau de garantismo), tal é a relativização ou ine- -
xistência mesma das garantias (contraditório, defesa técnica por advogado etc.) que
o informam. E onde há maior vulnerabilidade, maiores devem ser os níveis de tute-
la legal (maior grau de garantismo), conforme o princípio da proporcionalidade.

9. Normas penais em branco


3
:V3?
.
Como vimos, normas penais em branco - expressão que procede de Karl Bin- ;
ding - são os tipos penais cujo conteúdo, incompleto, é integrado por outra regra -
jurídica (lei, decreto, regulamento, portaria), ou, como diz Assis Toledo, são as que i
estabelecem a cominação penal, mas remetem à complementação da descrição da ;
conduta proibida para outras normas legais, regulamentares ou administrativas.14 ?

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13 Dispõe o referido art. 52 que “a prática de fato previstocomo crime dolosoconstitui falta grave e, quan- ;
do ocasione subversão da ordem ou disciplina intemas, sujeita o presoprovisório, ou condenado, ao regi'
me diferenciado”. Nesse caso, o preso será recolhido “em cela individual” (inciso II), com “direito à saída
da cela por duas horas diárias para banho de sol” (inciso IV), de modo que só poderá ficar isolado por vinte
e duas horas diárias.
14 Princípios básicos, cit., p. 142.
D ireito Penal - Parte G eral

Exemplo disso são a norma do art. 269 do CP (omissão de notificação de doença) e


as normas que tipificam o tráfico de drogas. Ambas, com efeito, não dizem respec­
tivamente quais são as tais doenças de notificação compulsória, nem quais são as
drogas proibidas. Silenciando a esse respeito, sua eficácia fica condicionada às nor­
mas (emanadas do Ministério da Saúde) que lhes complementam o conteúdo e o
sig n ific a d o , esclarecendo quais são as doenças de notificação obrigatória e quais são
as drogas que determinam dependência física ou psíquica.
A questão que as leis penais em branco suscitam no particular é saber, na
hipótese de revogação das normas complementares (lei, decreto, regulamento), se
teriam ou não efeito retroativo.
Em verdade, semelhante questionamento não oferece maiores dificuldades.
Com efeito, salvo a hipótese de a norma complementar ter conteúdo temporário
ou excepcional, tal como nas situações já estudadas, e pelas mesmas razões já
estudadas, caso em que terá efeito ultrativo, a conseqüência da revogação será
como regra o retroativo. Assim, se essas normas não tiverem tal caráter tempo­
rário ou excepcional, terão efeito retroativo sempre que beneficiem o réu (v. g.,
caso a maconha - can n abis sativa - deixasse de figurar no elenco das drogas ou
se determinada doença deixasse de integrar o rol das enfermidades cuja notifi­
cação fosse compulsória). Contrariamente, tabelas de preço (em relação aos cri­
mes contra a economia popular), mesmo após a cessação de sua vigência, conti­
nuarão regendo as situações consumadas durante a sua existência, em face do
seu caráter temporário.
Por fim, e conforme vimos, temos por inconstitucionais as chamadas leis
penais em branco heterogêneas, por violarem o princípio da divisão de poderes e
reserva legal.

10. Aplicação da lei e vacatio legis

Discute-se se seria possível a aplicação da lei mais benéfica já durante o perío­


do de vacatio, isto é, durante o prazo que precede à sua entrada em vigor (v.g., trin­
ta, sessenta dias). A doutrina majoritária entende que tal não é possível simples­
mente porque a lei ainda não vige, logo, não é passível de aplicação, mesmo que
favorável ao réu.
Temos, no entanto, que a razão está com a doutrina minoritária, visto que o
período de vacatio legis objetiva evitar surpresas para aqueles a que se destinam as
leis, muito especialmente os infratores que vão sofrer os seus efeitos.15 Portanto,

15 No sentido do texto, Gamil Fõppel. O principio da legalidade com um ideal radicalmente garantista, in
Novos desafios do direito pena! no terceiro milênio. Rio: Lumen Juris, 2008. E Alberto Silva Franco.
Código Penal e sua interpretação judicial. S. Paulo: RT, 2001.
Paulo Queiroz

não há motivo para que os juizes não possam desde logo aplicá-la, já que instituída,
essencialmente, para proteção do indivíduo, sempre que dispuser em seu favor.
Finalmente, também se discute a retroatividade das leis inconstitucionais.16

11. Tempo do crime

Sobre o tempo do crime, há três teorias: a) teoria da ação, que considera pra­
ticado o crime no momento da ação ou omissão; b) teoria do resultado, que consi­
dera como tempo do crime o momento do resultado; e c) teoria mista ou da ubiqüi­
dade, que considera como tempo do crime tanto o momento da ação quanto o do
resultado, indiferentemente.
O legislador penal brasileiro adotou a primeira teoria, a teoria da ação. Com
efeito, o art. 4Qdo Código dispõe que: “considera-se praticado o crime no momen­
to da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” Por conse­
guinte, no homicídio (CP, art. 121), por exemplo, tempo do crime é o momento em
que o agente desfere os tiros de revólver (momento da ação), ainda que o resulta­
do (a morte) só venha a consumar-se meses após. Semelhantemente, se o agente, ao
tempo do disparo, era menor de dezoito anos, será considerado penalmente inim-
putável, ainda que ao tempo da morte da vítima já houvesse atingido a maioridade
penal. O Código, porém, ao tratar da prescrição (CP, art. 111), transigiu com a teo­
ria do resultado, estabelecendo que o termo inicial da prescrição é, em princípio, a
data da consumação do crime.
Tratando-se de crimes permanentes, cuja consumação se protrai no tempo en­
quanto perdura a ofensa ao bem jurídico (v. g., extorsão mediante seqüestro), o tempo
do crime se dilatará pelo período de permanência. Assim, se o autor, menor, durante
a fase de execução do crime vier a atingir a maioridade, responderá segundo o Código
Penal e não segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei ne 8.069/90).
Quanto aos crimes continuados, que em verdade são vários crimes (concurso
material de crimes), mas tratados como se fosse crime único (tratamento próprio
do concurso formal), atendendo à conveniência político-criminal (CP, art. 71), o
Supremo Tribunal Federal, acompanhando a doutrina majoritária, editou a súmu­
la 711, com o seguinte teor: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado
ou ao permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da
permanência”, razão pela qual passaram a ter tratamento idêntico ao dos crimes
permanentes. Assim, se o agente comete crime continuado durante meses seguidos,
a continuação delitiva será regida, no caso de sucessão de normas, não pela lei que
vigora à época do primeiro crime, mas do último, isto é, da cessação da continui­
dade, ainda que seja a mais gravosa.

16 Nesse sentido, Gamil Fòppel, cit.


D ireito P en al - Parte Geral

Com efeito, e conforme Hungria, se os atos sucessivos já eram incriminados


pela lei antiga, não há duas séries (uma anterior, outra posterior à nova lei), mas
uma única (dada a unidade jurídica do crime continuado), que incidirá sob a nova
lei, ainda que esta seja menos favorável que a antiga, pois o agente já estava adver­
tido da maior severidade da sanção, caso persistisse na continuação. Se, entretanto,
a incriminação sobreveio com a lei nova, segundo esta responderá o agente, a títu­
lo de crime continuado, somente se os atos posteriores (subseqüentes à entrada em
vigor da lei nova) apresentarem a homogeneidade característica da continuação,
ficando abstraídos os atos anteriores.17 Esse entendimento conduz às seguintes
conseqüências: 1) se o agente praticou uma série de crimes na vigência de leis
diversas, todas as infrações serão regidas pela última lei, ainda que seja a mais gra-
vosa (admite-se a n ovatio legis in pejus); 2) se houver novatio legis incriminadora
(a nova lei criminaliza conduta até então atípica), a lei nova regerá exclusivamen­
te os delitos cometidos na sua vigência, já que até então não havia crime algum a
punir; 3) se houver abolitío crim inis ou novatio legis in mellius, a nova lei retroa-
girá para favorecer o réu.
Não estamos de acordo com semelhante orientação (item 1), relativamente à
incidência da lei nova mais gravosa para os atos cometidos em continuidade deliti-
va, pois ela implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de conti­
nuação, ofendendo o princípio da legalidade. E que, de acordo com o Código (art.
71), no delito continuado os crim es subseqüentes são havidos com o continuação do
prim eiro, e não o contrário, de modo que o agente, ao invés de responder por vários
crimes em concurso material, deve responder por um único delito, o mais grave, se
diversos, com aumento de um sexto a dois terços. Portanto, os crimes subseqüen­
tes só têm relevância jurídico-penal para efeito de individualização judicial da
pena: escolha da pena mais grave (quando diversas as infrações) e fixação do res­
pectivo aumento, pois o primeiro crime prevalece sobre todos os demais como se
estes simplesmente não existissem, exceto para efeito de aplicação da pena.
Por conseguinte, se o autor só responde jurídico-penalmente pelo primeiro
crime e não pelos subseqüentes, parece evidente que a lei posterior mais severa não
poderá alcançá-lo, porque, se assim for, inverter-se-á o conceito legal de crime
continuado lógica e cronologicamente: os últimos crimes serão os primeiros, con­
siderando-se a continuação do final para o início, ou seja, os subseqüentes prevale­
cerão sobre o primeiro e não o contrário: o primeiro prevalecer sobre os subse­
qüentes, como prevê a lei.
A súmula, portanto, contraria claramente o princípio da legalidade em prejuí­
zo do réu, conferindo à continuação tratamento jurídico-penal diverso mais gravo-
so, além de lógica e cronologicamente insustentável.

17 Comentários, cit., p. 128. No mesmo sentido, Frederico Marques e Damásio de Jesus, entre outros.
Não bastasse isso, a súmula de certo modo acaba por emprestar ao crime con­
tinuado tratamento legal mais severo do que aquele conferido ao concurso mate­
rial de crimes. Sim, porque, no caso de concurso material, cada delito é regido pela
lei vigente à época de sua consumação, não podendo ser alcançado por novatio legis
in pejus, ao passo que agora, na continuação, crimes anteriores à nova lei seriam
por ela atingidos.
Também por isso, a súmula é inconstitucional por violar o princípio da irre­
troatividade da lei, pois, por meio de um novo conceito de crime continuado, per­
mite a incidência da nova lei sobre fatos ocorridos antes da sua vigência, como
reconhece aliás Cezar Bitencourt.18
Quanto à prescrição, o problema é diverso, pois, no caso de concurso de crimes,
continuação delitiva inclusive, cada crime prescreverá isoladamente, como se con­
curso não existisse, conforme dispõem o art. 119 do Código e Súmula 497 do STF.

18 Tratado d e direito penal. Parte geral. S. Paulo: Saraiva, 2007, 11. ed., p. 173-174.
D ireito Penal - Parte Geral

Capítulo V
A Lei Penal no Espaço

Cortesia
fasmmhjuris\éãitom
I. Introdução

A aplicação da lei penal no espaço, questão diretamente ligada ao princípio da


soberania, dá-se, naturalmente, dentro dos limites do território em que o Estado é
soberano e, pois, exerce o jus im perium . Além disso, sendo a lei penal um produto
histórico-cultural, não poderia tampouco pretender ter validez universal, ficando
sua aplicação submetida, em conseqüência, a determinadas limitações espaciais,1
porque seria absurdo, v. g., que aqui vigessem as leis penais chinesas ou que lá vigo­
rassem as leis penais brasileiras.
Por isso, o Código Penal, de conformidade com a Constituição Federal (arts.
I9,1, e 49,1), consagra (art. 59, caput) o princípio da territorialidade, segundo o qual
ao Estado brasileiro compete apurar, processar e julgar todas as infrações penais
ocorridas em território nacional, independentemente da nacionalidade dos envol­
vidos (autores e vítimas).
Mas a adoção de semelhante princípio não se deu de forma absoluta, uma vez
que excepcionalmente o Código previu a não-incidência da lei penal brasileira,
mesmo em relação a infração penal ocorrida em território nacional, sempre que
assim dispuser convenção, tratado ou regra de direito internacional. O art. 5®,
caput, é claro no particular, ao estabelecer: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo
de convenções, tratados e regras d e direito internacional, ao crime cometido no
território nacional.” Daí se dizer que o Código adotou como regra geral o princípio
da territorialidade temperada.
Foram também adotados, em caráter excepcional e complementar, no que
toca à extraterritorialidade da lei, vale dizer, incidência da lei brasileira sobre crime
praticado fora do território nacional, os princípios da nacionalidade (art. 79, II, b),
da proteção (art. 7S, I, a, b e c), universal (art. 7e, II, a) e da representação (art. 79,
II, c). De acordo com o princípio da nacionalidade (ou personalidade), o Estado
sanciona segúndó seu direito todos os fatos cometidos por (nacionalidade ativa) ou
contra (nacionalidade passiva) seus nacionais, sendo indiferente o lugar do come-
timento. Segundo o princípio da proteção (ou defesa ou real), o Estado castiga todas
as ações que se dirijam contra seus interesses, sem importar onde e por quem

1 Zugaldía Espinar, Fundamentos, cit., p. 230.


Paulo Queiroz

tenham sido cometidos. O princípio universal (ou cosmopolita) confere ao Estado


o poder de castigar todos os fatos que sejam puníveis conforme seu direito, sem
importar onde, por quem e contra quem tenham sido cometidos.2 Finalmente, pelo
princípio da representação (ou da bandeira), a lei penal brasileira é aplicável aos
crimes cometidos a bordo de aeronaves e embarcações privadas que se achem em
território estrangeiro e aí não sejam julgados.

2. Conceito de território

A expressão território, cujo conceito jurídico não coincide, rigorosamente,


com o conceito geográfico, compreende todo o espaço - terrestre, fluvial, maríti­
mo e áereo - onde o Estado brasileiro é soberano. São também território nacional
as embarcações e aeronaves brasileiras públicas ou a serviço do goveno brasileiro,
onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e embarcações brasileiras,
mercantes ou de propriedade privada, desde que se achem, respectivamente, no
espaço aéreo correspondente ou em alto-mar (art. 5®, § 1Q). O mesmo ocorre, inver­
samente, com as aeronaves e embarcações estrangeiras: se públicas, são no Brasil
território estrangeiro; se privadas, são território nacional (art. 5Q, § 2S).

3. Lugar do crime

Para a definição do lugar do crime, o Código (art. 69), diferentemente do que


ocorreu quanto ao tempo do crime (art. 4S), adotou o princípio da ubiqüidade, de
sorte que é lugar do crime tanto o lugar do comportamento (ação ou omissão)
quanto o do resultado, indiferentemente. Assim, pouco importa que o crime tenha
se iniciado em território brasileiro e se consumado no exterior ou vice-versa, pois
em ambos os casos a justiça brasileira é competente para decidir sobre a matéria.
Tratando-se de crime tentado cujos atos de execução tenham se iniciado em
território estrangeiro, o Brasil será competente sempre que aqui “deveria produzir-
se o resultado” (art. 6a, final).

4. Extraterritorialidade

A lei penal brasileira pode também incidir, excepcionalmente, sobre crimes


ocorridos em território estrangeiro. Dessas hipóteses de extraterritorialidade da lei
brasileira, que pode ser incondicionada e condicionada, cuida o art. 7Qdo CP. No
primeiro caso, a fixação da competência independe do implemento de qualquer
condição; no segundo, a extraterritorialidade da lei depende do atendimento de

2 Maurach, D erecho p en al cit., p. 174.


D ireito P en al - P arte Geral

determinados requisitos. São hipóteses de extraterritorialidade incondicionada


aquelas previstas no inciso I, regidas pelos princípios da proteção (letras a, b e c) e
da justiça universal (letra d), puníveis independentemente de condenação ou absol­
vição no exterior. Ei-las: 1) crimes contra a vida ou a liberdade do Presidente da
República (homicídio, seqüestro etc.); ficando, pois, excluidos os demais crimes (v. g„
patrimoniais); 2) crimes contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito
Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de
economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; 3) crimes
contra a Administração Pública, por quem está a seu serviço; 4) crimes de genocí­
dio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil.
São hipóteses de extraterritorialidade condicionada aquelas previstas no inci­
so II, a, b e c, do § 3Qdo art. 79, cuja fixação da competência depende do implemen­
to das condições estabelecidas nos §§ 2S e 39. Os casos de extraterritorialidade con­
dicionada regem-se pelos princípios da justiça universal (II, a), da nacionalidade
(II, b), da representação (II, c) e da proteção (§ 3e), a saber: 1) crimes que, por tra­
tado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir; 2) praticados por brasileiro; 3)
praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade
privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados. Nesses casos, a
aplicação da lei brasileira depende do implemento das seguintes condições: a)
entrar o agente em território nacional; b) ser o fato punível também no país em que
foi praticado; c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira
autoriza a extradição; d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter
aí cumprido a pena; e) ser o fato ainda punível, isto é, não ter sido atingido por cau­
sa de extinção de punibilidade (prescrição, decadência, perdão etc.). Finalmente, a
lei brasileira aplica-se ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do
Brasil se, além de atendidas tais condições, não foi pedida ou negada a extradição e
houve requisição do Ministro da Justiça (§ 3Q).
Tratando-se de contravenção, o princípio da extraterritorialidade não incide,
uma vez que a lei brasileira não é aplicável à contravenção praticada em território
nacional (Dec.-Lei ne 3.688/41, art. 29).

5. Pena cumprida no estrangeiro

Por força do princípio n e bis in idem , a pena cumprida no estrangeiro atenua


a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computa­
da, quando idênticas (CP, art. 89). Signfica dizer que o autor não cumprirá pena no
Brasil se o fizer no estrangeiro, relativamente ao mesmo crime. Na hipótese de a
pena lá cumprida ser inferior àquela a ser cumprida aqui, deverá submeter-se ao
tempo restante de pena.
Cuidando-se não propriamente de execução de pena no estrangeiro, que pres­
supõe sentença penal condenatória transitada em julgado, mas de cumprimento de
prisão provisória (prisão em flagrante, prisão preventiva etc.), que precede à sen­
Paulo Queiroz

tença e tem natureza cautelar, dá-se, mutatis mutandis, o mesmo, aplicando-se o


instituto da detração (CP, art. 42), abatendo-se o período em que lá esteve proviso­
riamente preso ou internado, conforme o caso.

6. Eficácia da sentença penal estrangeira

Em razão do princípio da soberania, a sentença penal estrangeira não tem,


como regra, eficácia no Brasil. Mas em caráter excepcional, o Código admite tal
possibilidade, emprestando-lhe eficácia de título executivo, para obrigar o conde­
nado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis (art. 9S, I). Também
é possível para submeter o sentenciado à medida de segurança, nos termos do art.
9®, II. Semelhante possibilidade parece ferir, no entanto, o princípio da isonomia,
pois, tanto quanto a pena, a medida de segurança constitui sanção penal restritiva
da liberdade do sentenciado, devendo, conseqüentemente, submeter-se às mesmas
limitações e princípios.
A eficácia da sentença estrangeira, sujeita à homologação pelo Superior Tribu­
nal de Justiça (CF, art. 1 0 5 ,1, i), depende: a) para os efeitos de reparação, de pedido
do interessado; b) para sujeição à medida de segurança, da existência de tratado de
extradição com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta
de tratado, de requisição do Ministro da Justiça (art. 9S, parágrafo único, a e b).
Cumpre notar, por fim, que casos há em que a sentença estrangeira produz
efeitos no Brasil independentemente de homologação judicial, como ocorre, v. g.,
com a reincidência (CP, art. 63) e a detração (art. 42).
Segunda Parte

TEORIA DO DELITO
D ireito P en al - P arte G eral

Capítulo I
Introdução Geral

1. Conceito e instrumentalidade da teoria do delito

A teoria do delito (ou teoria do crime ou teoria do fato punível) ocupa-se dos
pressupostos gerais - formais e materiais - que devem concorrer para que determi­
nado comportamento humano possa ensejar a aplicação de uma sanção penal (pena
ou medida de segurança). Estudá-la é estudar as categorias sistemáticas tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade, bem assim os conceitos e institutos que lhes são
inerentes. A teoria do delito cuida, portanto, dos pressupostos jurídico-penais da
punibilidade de uma conduta; ocupa-se, assim, da interpretação, sistematização e
crítica dos institutos jurídico-penais.
Mas é importante perceber que, ao recorrer à teoria do delito e seus concei­
tos, o juiz não se limita a constatar um crime e aplicar-lhe uma pena, mas a cons­
truí-lo socialmente, afinal o direito, e, pois, o crime, não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação da teoria do crime não é um
modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente, mas a forma
mesma de produção do direito e do crime.1
Como mostra a leitura dos diversos tratados, manuais e cursos de direito
penal, trata-se de sua parte mais exaustivamente estudada e, por conseqüência, ela­
borada. Mas esse estudo, pelo seu caráter generalizante, foi tradicionalmente mar­
cado por excessiva abstração, a ponto de se desvencilhar, quase por completo, da
realidade social a que deveria destinar-se e regular, como se a dogmática penal
constituísse um fim em si mesmo.2 Tal excesso teria ainda como efeito colateral o
franco desprestígio de tema sumamente importante: a teoria da pena. Ainda hoje a
doutrina lhe dá tratamento claramente marginal.
No entanto, é preciso não perder de vista que a teoria do delito tem um papel
instrumental e auxiliar, pois existe e se destina a resolver conflitos de interesses,
tendo declarada vocação pragmática. Por conseguinte, deve estar sempre orienta-

É o que a criminologia designa como criminalização secundária.


Como assinala Roxin, “fruto de um ponto de partida positivista, chegou-nos um sistema classificatório na
forma de uma pirâmide conceituai de modo bastante análogo ao sistema de plantas de Lineu: a constru­
ção ergue-se da massa dos elementos do crime através de sucessivas abstrações feitas extrato por extrato,
até chegar ao conceito superior e genérico da ação. A causa pela qual um sistema fechado, surgido de tal
maneira, nos afasta da solução de nosso problema: ele isola a dogmática, por um lado, das decisões valo-
rativas político-criminais, e por outro, da realidade social, ao invés de abrir-lhe os caminhos até elas”
(Política criminal e sistema jurídico-penal, trad. Luis Greco, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 22-23).
Paulo Queiroz

da para a solução de problemas sociais reais, pois o direito penal não é uma “ciên­
cia de professores”, mas uma “ciência de casos” (Mir Puig). Além disso, o sistema,
como assinala García-Pablos, não é um estado final de elaboração dogmática, mas
um momento desta, não um fim, mas um meio, flexível, provisório, aberto ao pro­
blema, que não se justifica por si mesmo, nem por sua coerência ou rigor lógico,
mas por seus resultados e funções.3 Determinante há de ser sempre a solução da
questão de fato,4 portanto.
Significa dizer, enfim, que a interpretação/aplicação dos institutos jurídico-
penais, isto é, interpretação das categorias dogmáticas (tipicidade, antijuridicidade,
culpabilidade), há de ser feita criticamente, com vistas à justa solução do caso con­
creto, à luz dos fundamentos, objetivos e princípios próprios do modelo constitu­
cional de direito. Aliás, seria ingênuo supor que a técnica jurídica' fosse bastante
para se decidir justamente; sim, porque a formação técnico-jurídica só pode ofere­
cer, na melhor das hipóteses, isso: uma decisão técnica. Mas uma decisão técnica
não é uma decisão justa ou ao menos não o é necessariamente: em particular aque­
les que acompanham mais de perto as decisões do Tribunal do Júri sabem que os
jurados, embora leigos em direito, não raro decidem mais justamente do que os jui­
zes togados. E que, se, para o juiz técnico, importa primeiramente a técnica, para o
juiz leigo, importa primordialmente a justeza das decisões, por vezes, valendo-se
inclusive de argumentos insustentáveis do ponto de vista estritamente dogmático.
Dito de outro modo: decisões tecnicamente corretas não são necessariamente deci­
sões justas, assim como decisões tecnicamente incorretas não são decisões necessa­
riamente injustas.
Parece inclusive que no fundo os grandes Juizes de Direito e Promotores de
Justiça, tanto quanto os Advogados talentosos, diferentemente dos meros burocra­
tas, à semelhança dos poetas e músicos virtuosos, não se tomam; nascem; e a téc­
nica para tais pessoas parece constituir apenas um instrumento de aperfeiçoamen­
to de habilidades/qualidades inatas, preexistentes à formação técnica, a qual não é
em si mesma garantia de justiça. E que uma boa interpretação, na arte, como no '¥
direito, mais do que técnica e razão, requer talento e sensibilidade.
Em conclusão, a dogmática penal deve ser não um sistema neutro5 (pretensa- » :
mente neutro) e tecnocrata, mas pragmática e político-criminalmente orientado; '

3 Derecho penal, cit., p. 413.


4 Jescheck, Tratado, cit., p. 176.
5 Como assinala Mir Puig, um dos aspectos mais criticáveis da fundamentação tradicional da teoria do deli­
to, fortemente positivista, é a pretensão de apresentar todos os conceitos como não disponíveis valorati-
vamente, mas como exigências sistemáticas, puramente. Por isso, entende que é preciso rechaçar tal pers­
pectiva, que encobre autênticas decisões valorativas através de um aparato conceituai aparentemente
asséptico e neutro, pois “a grande maioria dos conceitos que intervém na teoria do delito são intensamen­
te valorativos (...). O neokantismo chamou a atenção para a dimensão valorativa das categorias da teoria
do delito, mas não o seu significado político. Desde os anos 70, reconhece-se que a construção teórica do
delito deve partir da função político-críminal do Direito Penal (funcionalismo). Porém, a Política
Criminal depende de cada modelo de Estado” (D erecho penal, cit., p. 108-109).
Direito Penal - Parte Geral

um sistema, portanto, aberto à realidade social e suas necessidades, e não cerrado


em si mesmo, não podendo a justiça e a eficácia das soluções dos problemas con­
cretos fundamentar-se exclusivamente em deduções lógicas ou silogismos,6 de
modo que o método da simples subsunção deve ceder lugar ao da ponderação de
interesses. Semelhante perspectiva está a exigir, em conseqüência, uma prudente
revalorização do pensamento aporético ou problemático,7 bem como a adoção de
um modelo integrado de criminologia, política criminal e direito penal, pois repre­
sentam três momentos incindíveis da resposta social ao problema do crime: um
momento explicativo-empírico (a criminologia), um decisório (a política criminal)
e um instrumental (direito penal).8
Mas politizar a dogmática não significa que o juiz não deva obediência à lei,
mas que tem de ser interpretada e que toda interpretação é um complexo labor
valorativo dentro do marco dos direitos fundamentais positivos (constitucionais e
internacionais).9
Finalmente, ao assinalar à dogmática jurídico-penal um papel puramente ins­
trumental e auxiliar, não se pretende ignorar ou rechaçar, sem mais, a sua impor­
tância, pois, como afirma Gimbemat Ordeig, quanto menos desenvolvida a dogmá­
tica penal, mais imprevisíveis serão as decisões dos tribunais, dependendo a absol­
vição ou a condenação dos réus do azar e de fatores incontroláveis, subtraindo o
direito penal à irracionalidade, à arbitrariedade e à improvisação.10

1.1. Crítica da razão técnico-jurídica

Como é sabido, a tecnicização do direito e, por conseqüência, a tecnicização


daqueles que operam com o direito, visou atender a uma demanda de segurança
jurídica, por se considerar que as questões complexas e difíceis de que cuida a dog­
mática jurídica contemporânea deveriam competir a especialistas: advogados, pro­
motores, juizes, enfim pessoas com formação especializada. A técnica do direito e
dos seus operadores respondeu, assim, a uma mesma pretensão de segurança e cor­
reção das decisões, a evitar a improvisação e o domínio das paixões na administra­
ção da justiça.11 A tecnicização representou o triunfo da razão no direito.

6 García-Pablos, D erecho penal, cit.


7 García-Pablos, D erecho penal, cit., p. 391 e 414.
® García-Pablos, D erecho penal, cit., p. 406.
9 Femández Carrasquilla, Concepto, Proemio, cit.
10 Tiene futuro la dogmática jurídico-penal?, Bogotá: Ed. Temis, 1983, p. 27 e 158.
11 Segundo Saio de Carvalho, “o homem teórico, forjado na cultura helênica ocidental por Sócrates, narco-
tizado pela busca da verdade, atribuiu ao saber científico a capacidade de distinguir o erro, de separar
essência e aparência. No entanto este otimismo na razão sistematizadora ofuscou a pluralidade dos fenô­
menos existentes na realidade e as infinitas formas de interpretá-lo, ou seja, impediu perceber inúmeras
formas de manifestação das verdades: de verdades marginais que transpõem os horizontes da moral".
Antimanual de Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 179/180.
Paulo Queiroz

De acordo com Hans Welzel, a ciência sistemática dá base para uma adminis­
tração da justiça uniforme e justa, pois só o conhecimento das relações internas do
direito impede o acaso e a arbitrariedade. E que a renúncia a uma teoria do delito,
tanto generalizadora como diferenciadora em favor de uma valoração individual
qualquer, são palavras de Claus Roxin, faria retroceder a nossa ciência a vários
séculos, ou seja, àquela situação de acaso e arbitrariedade. O sistema, portanto,
implica segurança, previsibilidade e certeza, conclui García-Páblos.12
Apesar disso, a tecnicização não se deu de forma absoluta, porque ainda exis­
tem aqui e ali instituições jurídicas cuja composição toca a leigos em direito, a
exemplo do Tribunal do Júri, a quem compete decidir alguns dos crimes mais im­
portantes: os crimes dolosos contra a vida (homicídio doloso etc.).
Mas a tecnicização e profissionalização no direito têm uma série de limitações
e, pois, acarretam vantagens e desvantagens.
1) Uma primeira questão diz respeito à própria especialização, isto é: os juris­
tas são realmente especialistas, isto é, peritos nos assuntos de que tratam?13
Parece-nos que em grande parte a especialização dos juristas é um mito. Sim,
porque são chamados a se manifestarem sobre praticamente tudo e, portanto, sobre
temas os mais diversos e nos quais é ou pode ser ignorante: imprudência técnica (de
médicos, engenheiros etc.), sistema financeiro etc., por vezes assumindo o papel de
economistas, de administradores ou de todos conjuntamente.
Não raro a maior especialização do jurista é, assim, um simples preconceito,
porque, apesar de sua formação técnica numa área específica (a lei e o direito), tem
em tese competência para todo e qualquer assunto, dada a onipresença do fenôme­
no jurídico: medicina, psiquiatria, finanças etc.; são, paradoxalmente, especialistas
sem especialidade. Exatamente por isso, certas interpretações jurídicas podem
eventualmente parecer ridículas aos olhos de um autêntico especialista/perito.
Além disso, tem razão Feyerabend quando afirma que não especialistas freqüen-’
temente sabem mais do que os especialistas e deveriam, portanto, ser consultados.14
2) Outra questão é que decisões tecnicamente corretas não são necessariamente
decisões justas, assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessariamen­
te decisões injustas. Imagine-se, para ficar num único exemplo, que a esposa queira r*j
matar seu marido em virtude dos maus-tratos que sofre sistematicamente; para tanto,
adiciona veneno na sua refeição, a qual, por desgraça, vem a ser provada pelos filhos, '
que morrem. Pois bem, de acordo com a técnica fria do Código Penal, houve um
homicídio doloso consumado contra o marido, que está vivo e que voltaria a viver com ;
ela tempos depois. Enfim, trata-se de uma tragédia real lida como ficção.
Convém notar ainda que subsistema penal está assentado sobre uma estrutura <
econômica e social profundamente desigual, e, por isso, é arbitrariamente seletivo e y

12 Derecho Penal. Parte general. Madrid: Universidad Complutense, 1995, p. 386. As citações anteriores
constam do mesmo livro e página.
13 Uso a expressão “jurista” no sentido de pessoa versada na lei.
14 Contra o Método. S. Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 17. '
D ire ito Penal - P arte Geral

assim recruta a sua clientela entre os grupos mais vulneráveis, a revelar que a pre­
ten sã o de justiça está grandemente comprometida desde a sua concepção. Em sua
majestática igualdade, dizia Anatole France, a lei proíbe tanto ao rico quanto ao
pobre dormir embaixo das pontes, esmolar nas ruas e furtar pão.15 E isso sem falar
na descontextualização e despolitização dos conflitos que resultam da tecnicização.
Assim, pode ocorrer inclusive de ser aconselhável não apenas ignorar deter­
minada regra, por mais racional, mas adotar a regra oposta.16 É que a questão fun­
damental não reside em produzir decisões tecnicamente perfeitas, mas decisões
minimamente justas e razoáveis.17 Afinal, e conforme assinala Castanheira Neves,
uma boa interpretação não é aquela que, numa perspectiva hermenêutico-exegéti-
ca, determina corretamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa
perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão
do problema concreto.18
Quanto às decisões tecnicamente incorretas, mas nem por isso injustas, basta­
ria lembrar certas decisões do Tribunal do Júri, formado que é por leigos, e cujos
jurados são chamados a decidir, não segundo a lei, mas conforme “a consciência e
os ditames da justiça” (CPP, art. 472).
3) Também por isso (distinção entre técnica e justiça), segue-se que uma boa
formação técnico-jurídica não constitui garantia de profissionais (juizes, promoto­
res, advogados etc.) justos, mesmo porque podem ser, não obstante a excelência
técnica, corruptos, preguiçosos, insensíveis etc. E uma boa interpretação, na arte
como no direito, além de técnica e razão, requer talento e sensibilidade. É que tais
atividades demandam habilidades que estão muito além da simples técnica: matu­
ridade, experiência, coragem, capacidade de trabalho.19 E decidir não é exclusivi­
dade dos juizes, afinal todos nós decidimos permanentemente, como filhos, irmãos,
pais, profissionais, membros de órgão de classe etc.

15 Citado por Gustav Radbruch. Incrodução à ciência do direito. S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 107.
16 Paul Feyerabend. Contra o Método. S. Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 37-38.
17 Como ensina Castanheira Neves, a linha de orientação exata só pode ser, pois, aquela em que as exigên­
cias de sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fecham numa auto-suficiência, a impli­
car também a auto-subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abrem a uma
intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta e judicativa-decisória realização, se
oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as recons­
titua pela sua experimentação concretizadora. Não é outro o sentido da interpretação enquanto problema
normativo, em que, portanto, também estarão presentes as duas grandes coordenadas da racionalidade
jurídica, o sistema e o problema, Metodologia Jurídica, cit. 123.
18 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 84.
19 Já Radbruch afirmava que “o novo direito penal não poderá vingar sem um juiz totalmente novo. Exige,
portanto, uma inversão da formação criminalista. O que vale para o juiz em geral vale particularmente
para o juiz penal: para m eio centavo de doutrina deveria corresponder um real de conhecim ento da natu­
reza humana e da vida. Por isso a formação do futuro juiz penal não poderá ser uma formação meramen­
te jurídica, deverá estender-se a técnica criminal, psicologia criminal, teoria carcerária, antes de tudo tam­
bém experiência prática em instituições de todos os tipos. Tudo isso é necessário para o juiz penal, mas de
modo algum suficiente, pois, afinal, o bom juiz penal o é de nascença. O coração bondosamente com­
preensivo e a mão que conduz com firmeza, que não lhe podem faltar, não lhe poderão ser dados por
nenhuma formação. Introdução à ciência do direito. S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 123.
Paulo Queiroz

JR

4) É certo ainda que as decisões estão de um modo geral predeterminadas ou j:


pré-condicionadas por nossos preconceitos, e, portanto, na sua origem prescindem
da formação técnico-jurídica, de sorte que um conhecimento formal do direito ^
parece servir apenas para justificar decisões tomadas a partir de certas experiências L
e pré-juízos, que independem da técnica e que lhe precedem necessariamente.
Enfim: a interpretação é o resultado do seu resultado; o meio interpretativo e, pois,
a forma técnico-jurídica, só se escolhe depois do resultado já estabelecido;20 deci- i-
dimos, primeiro; classificamos depois.
5) Não infreqüentemente, os técnicos do direito (a doutrina em especial) se
põem a criar e sofisticar conceitos e institutos com absoluta independência da rea- v
lidade, sem nenhuma relevância prática ou mesmo teórica ou acadêmica. A técni- v?
ca, que deveria assim ser um meio a serviço da justiça, converte-se em um fim em b
si mesmo por meio de um diálogo (às vezes um monólogo) entre diletantes do í*
direito, os quais elegem os temas considerados importantes e lançam, por assim
dizer, a moda no direito. ^
6) Outro problema grave reside no ensino jurídico que, ligado a um modelo 0
pedagógico autoritário, no mais das vezes privilegia a memória, a repetição e a uni-
formidade de pensamento, em prejuízo da inteligência, da imaginação e da diver- J '
sidade, e assim desencoraja a formação crítica e aniquila a individualidade.21 Falta
com freqüência o essencial: a formação de espíritos capazes de pensar por conta jç
própria, mesmo porque ensinar não é só transmitir informação, mas criar as condi- |'■
ções para produção do conhecimento.22
Não surpreende assim que ensinar/aprender direito significa hoje, basicamen- |J
te, preparar alguém para ser aprovado em concurso público, e, pois, obter um em-
prego estável e bem remunerado, de modo que o “bom” aluno, o “bom” profissio- r %
nal, é aquele que obtém aprovação em concurso público, concurso que em geral se ; ,
limita a cobrar informação de leis e códigos;23 e indiretamente estimula a subser- ^
viência e o conservadorismo. Por conseqüência, o “bom” juiz, o “bom” promotor, é
também aquele que se conforma com a orientação dominante ditada pelo tribunal
ou instituição a que pertence. E o “êxito” na carreira jurídica é um continuum desse
processo de domesticação, que precede à formação jurídica inclusive. Ç

20 Radbruch, Gustav, citado por Arthur Kaufmann. Filosofía do Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 121.
21 E a ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas, não rígidos imitadores de padrões co m -*r
portamentais estabelecidos. Feyerabend, cit.
22 Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra: S. Paulo, 2004. Freire chama isso de concepção “ban-
cária” da educação, que consiste em transmitir informação sem nenhum senso crítico. Pedagogia do opn~ ~
mido. S. Paulo: Paz e Terra, 2004. .
23 Saio de Carvalho chama a atenção inclusive para o fato de que os currículos e livros didáticos de direito penal *■£
são pensados e estruturados a partir da disposição dos temas e dos institutos apresentados pelo Código Penal, ■
sendo certo que a codificação determina o conteúdo programático dos cursos. Antimanual, cit., p. 24. 2
D ireito Penal - Parte G eral

Não é preciso dizer o quanto essa cultura da lei e da ordem favorece a legiti­
mação de estruturas elitizadas de poder (instituições, tribunais, conselhos) facil­
mente criticáveis e eventualmente extinguíveis fosse outro o ambiente.
7) Numa confusão mais ou menos consciente entre lei e direito, ignora-se que
o direito, assim como justiça, ética, estética etc., é, em última análise, uma metáfo­
ra associada ao que julgamos bom e razoável, e que por isso tem conteúdo grande­
mente indeterminado; afinal, o direito e o torto não preexistem à interpretação,
mas são dela resultado. Pressupõe-se enfim que a interpretação depende da lei e do
direito e não o contrário, que é a lei e o direito que dependem da interpretação.
Exatamente por isso, a lei, por mais clara, pode ser interpretada de formas diversas
e, portanto, conduzir a diversos resultados.

2. Funcionalismo (sistema racional-final, teleológico ou funcional)

Um sistema assim formulado e orientado é claramente teleológico ou funcio­


nal, na medida em que se persegue por meio da dogmática (meio) a realização da
justiça criminal no caso concreto (fim), segundo dada concepção político-criminal.
Pois bem, semelhante perspectiva, de orientar a dogmática político-criminal-
mente, deve-se a Claus Roxin, que a propôs pela primeira vez em sua obra
Kriminalpolitik und Strafrechtssystem 24 (Política criminal e sistema de direito
penal), de 1970.
Os defensores dessa orientação estão de acordo - são palavras de Roxin - em
rechaçar o ponto de partida do sistema finalista e consideram que a formulação do
sistema jurídico-penal não pode vincular-se a realidades ontológicas prévias - ação,
causalidade, estruturas lógico-reais - , senão que, única e exclusivamente, pode guiar-
se pelas finalidades do direito penal.25 O próprio Roxin reconhece, contudo, que tal
ponto de vista não introduz algo de absolutamente inovador, pois parte de postula­
dos neokantianos, mas avança no sentido de substituir a “algo vaga orientação neo-
kantiana aos valores culturais por um critério de sistematização especificamente jurí­
dico-penal: as bases político-criminais da moderna teoria dos fins da pena”.26 Em

24 Nela defende Roxin que o “caminho correto só pode ser deixar asdecisões valorativas político-criminais
introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsi­
bilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas desse sistema não fiquem a dever nada à
versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-cri-
minais não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese da mesma forma que Estado de
Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem
jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denomi­
nação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do
Estado de Direito”, afirmando, mais adiante, que "a unidade sistemática entre política criminal e direito
pena], (...) também deve ser realizada na construção da teoria do delito, é somente o cumprimento de uma
tarefa que é colocado a todas as esferas da ordem jurídica” (Política criminal, cit., p. 20 e 22).
25 D erecho penal, cit., p. 203.
26 Roxin, D erecho penal, cit., p. 203.
conseqüência, cada categoria do delito - tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade
-deve ser observada, desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função polí-
tico-criminal.27
0 funcionalismo pretende unir assim a teoria do delito à teoria da pena ou
integrar política criminal e dogmática penal, temas tradicionalmente tratados de
forma separada, como se nenhuma relação mantivessem entre si (ao menos para a
doutrina).28 De acordo com esse ponto de vista, o sistema de direito penal há de
estar estruturado teleologicamente, atendendo a finalidades valorativas,29 é dizer,
as finalidades que constituem o sistema de direito penal só podem ser de tipo polí-
tico-crirmnal, já que os pressupostos de punibilidade hão de orientar-se aos fins do
direito penal, motivo pelo qual as categorias básicas do sistema tradicional (tipici­
dade, antijuridicidade, culpabilidade) se apresentam como instrumentos de valora-
ção política.30
Mas se, por um lado, a adoção da perspectiva funcional constitui, sem dúvida,
um avanço em face do pensamento tradicional (causalista, finalista ou misto, preten-
samente neutro), uma vez que junta definitivamente a teoria do delito à teoria da
pena,31 por outro, incerta é a sua exata repercussão quanto à estrutura da teoria do
delito, tantas são as concepções político-criminais sobre o papel do direito penal, ou
tantos sao os funcionalismos, porque, afinal, e como observa Mir Puig, o problema da
função do direito penal constitui tema inevitavelmente valorativo e opinável.32 No
particular, Roxin entende , em conformidade com a sua teoria dialética unificadora da
pena, que os direitos humanos e os princípios do Estado Social integram as valora-
ções político-criminais, que devem constituir a espinha dorsal do sistema.33

27 Política criminal, cit., p . 29.


28 Digo ao menos para a doutrina por considerar que o legislador e os juizes em geral, notadamente o tnbu-
na iúri, diferentemente da doutrina, sempre se guiou por motivos pragmáticos, buscando sempre
resolver, prioritariamente, situações concretas, e, nesse sentido, sempre foi funcional, sobretudo se se tive­
rem em conta as múltiplas causas de extinção de punibilidade (CP, art. 107).
29 Roxin, Derecho penal, cit., p. 2 1 7 .
30 Roxin, Derecho penal, c it ., p. 2 1 7 - 2 1 8 .
claramente Roxin: “o direito penal é muito mais a forma, através da qual as finalidades político-cn-,
minais podem ser transferidas para o modo da vigência jurídica. Se a teoria do delito for construída neste
sentido, teleologicamente, cairão por terra todas as críticas que se dirigem contra a dogmática abstrata-
conceitual, herdada dos tempos positivistas. Um divórcio entre construção dogmática e acertos político-
criminais é de plano impossível, e também o tão querido procedimento de jogar o trabalho dogmático-
penal e o criminológico um contra o outro perde o seusentido: pois transformar conhecimentos crimino-
g cos em exigências político-criminais, estas em regras jurídicas, da lex lata ou ferenda, é um processo
em cada uma de suas etapas, necessário e importante para a obtenção do socialmente correto” ( Política ■
criminal, cit., p. 82).
^ 1982^ ^ ^ Pena y teona d d delito en el Estado Social y Democrático de Derecho, Barcelona: Bosch,;

33 Roxin, Funcionalismo, cit., p. 232. No mesmo sentido, Greco, em sua Introdução a esta obra, p. 64, sus­
tenta que a política criminal legítima não pode ser do tipo lei e ordem ou abolicionista, mas a “política
socia do Estado Democrático de Direito, que adscreve ao Direito Penal uma função de tutela subsidiária'
ens jurídicos, através da prevenção geral e especial, sempre com respeito absoluto aos direitos e garatt'
tias c°nstitucionalmente asseguradas”.
D ireito Penal - Parte Geral

Conseqüentemente, teremos perspectivas funcionais liberais ou conservado­


ras, conforme sejam as funções (liberais ou conservadoras) que se cometam ao
direito penal. Daí se falar, atualmente, de um funcionalismo moderado (Roxin e
seguidores), que parte da teoria dialética unificadora, e de um funcionalismo radi­
cal ou sistêmico, adotado por Jakobs e outros, que partem da teoria da prevenção
geral positiva ou integradora, de inspiração sistêmica; aquele, de corte liberal; este,
conservador.34 Por último, a configuração e o papel a ser desempenhado pela dog­
mática e cada uma de suas categorias sistemáticas dependerão, por igual, do ponto
de partida que se adote.35
É de convir, finalmente, com Silva Sánchez, que a corrente dogmática que
hoje é denominada funcionalista ou teleológica não é mais que o produto da acen­
tuação dos aspectos teleológicos valorativos já presentes na concepção dominante,
não constituindo, assim, algo absolutamente novo, e que como tal ameace destruir
toda a dogmática tradicional.36 O próprio Roxin reconhece que não se deve super-
dimensionar a divergência, pois, apesar das mudanças dialéticas de direção, tais sis­
temas se encontram numa linha de desenvolvimento contínuo: as categorias fun­
damentais se mantiveram desde o naturalismo até hoje, apesar de todas as modifi­
cações de conteúdo a que foram submetidas.37

3. Evolução da teoria do delito: causalismo, finalismo e funcionalismo

3.1.Introdução

A forma como se encontra hoje sistematizada a teoria do delito deve-se, fun­


damentalmente, a dois grandes sistemas - o causalista ou naturalista e o finalista,
os quais travaram exaustivo debate sobre o conceito de ação humana, considerada
por ambos como questão fundamental para a correta sistematização da teoria do
delito. A partir de 1970, surgiu, como vimos, um novo sistema, chamado funcional
ou teleológico, que parece assumir aos poucos status de dominante.

34 Como o reconhece o próprio Jakobs, ao se referir a Baratta, que tem sua foimulação como “conservado­
ra”, e Smaus, que a tem como própria de uma “justiça classista” (D erecho penal, cit., p. 21-22, nota de
rodapé).
35 Sobre a distinção entre o seu sistema e o de Jakobs, Roxin assinala que “a diferença essencial entre os
meus esforços, no plano dogmático e sistemático, e os objetivos de Jakobs é que eu pretendo converter
em categorias dogmáticas e soluções de problemas jurídicos os ideais orientadores de um Estado de
Direito liberal e social, enquanto que, devido ao ponto de partida sistêm ico-teorético de Jakobs, não
constituem dados prévios nenhum conteúdo, nenhuma finalidade de política crim inal...” (Sobre a evo­
lução da ciência juspenalista alemã no período posterior à guerra — Universidade Lusíada, 21 de março
de 2000).
36 Aproximación, cit., p. 67.
Funcionalismo, cit., p. 211.
Paulo Queiroz

3.2. A teoria causai da ação (causalismo)


J(
Para a teoria causai da ação (ou naturalista), que, como sugere o nome, pre- íí
tendia submeter o direito penal ao método próprio das ciências naturais, regidas ;
pela lei da causalidade, desenvolvida por Von Liszt,38 Beling e também Radbruch, "i
a vontade humana compreendia duas partes distintas: uma parte externa (objetiva);**<
que corresponde ao processo causai (movimento corporal, natural, mecânico) da
ação, e outra interna (subjetiva), que corresponde ao conteúdo final da ação. A açao
(parte externa) é, portanto, segundo essa teoria, o resultado de um processo pura
mente causai. Nesse sentido, Radbruch escreve que há de “adotar aquele conceito ;
amplo de ação, que exige unicamente a causalidade da vontade e que remete com­
pletamente à culpabilidade o problema de qual era o conteúdo do q u e r e r ” . 39 Masí '■
isso não quer isso dizer que os causalistas fossem a favor da responsabilidade penal, •,
objetiva, porque, em verdade, simplesmente remetem a verificação do conteúdo dat­
ação para outro momento, o da culpabilidade (a parte interna ou subjetiva). Cofl-' '
seqüentemente, tipicidade e antijuridicidade expressariam juízos puramente obje-1**
tivos (causais), ao passo que a culpabilidade, ao contrário, encerraria um juízo sub’-^
jetivo, quando então se examinaria o conteúdo final da ação. Também por isso, dolo,,
e culpa (elementos subjetivos) integrariam a culpabilidade, que corresponde, assim,;,
à relação psicológica (subjetiva) entre o autor e seu fato (concepção psicológica dà‘,|
culpabilidade).
A base desse sistema é, portanto, o conceito de ação, entendida de maneira'^'
totalmente naturalística como movimento corporal (ação em sentido estrito) e mo-y,
dificadora do mundo exterior (resultado), unidos pelo nexo causai, e, uma vez veri-íi
ficada a presença de uma ação, cumpriria examinar a seguir se concorriam os pre-"-.';
dicados de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, questão que distinguiar;
necessariamente, entre elementos objetivos e subjetivos.40 -«•
O sistema acaba então com a seguinte feição, conforme síntese de Luís Greco: o
tipo compreende os elementos objetivos e descritivos; a antijuridicidade, o que hou- h
ver de objetivo e normativo; e a culpabilidade, o subjetivo e descritivo. O tipo é a des- ^
crição objetiva de uma modificação no mundo exterior. A antijuridicidade é defini--í
da formalmente como contrariedade da ação típica a uma norma do direito, que se
fundamenta simplesmente na ausência de causas de justificação. E a culpabilidade è <
psicologicamente conceituada como a relação psíquica entre o agente e o fato.41

38 Para Liszt, a ação é mudança do mundo exterior referível à vontade humana, isto é, causação do resulta-
do por um ato de vontade, entendido como movimento corpóreo voluntário, isto é, com tensão (contra­
ção) dos músculos, determinada, não por coação mecânica, mas por idéias ou representações e efetuada
pela intervenção dos nervos ( Tratado, cit., p. 193 e 198). *•
39 Citado por W elzel, Derecho penal alemán, cit., p. 46.
40 Jescheck, Tratado, cit., p. 182.
41 introdução à dogmática funcionalista do delito, Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 48, p. 36, jul. 200G.
D ireito Penal - Parte Geral

Com semelhante formulação, chega-se, como se vê, a um quadro extrema­


m en te formal das características do comportamento humano que devem integrar a
e stru tu ra do conceito de crime, entendendo-se a ação naturalisticamente; o tipo
o b jetiv a e descritivamente; a antijuridicidade objetiva e normativamente; e a cul­
pabilidade subjetiva e descritivamente.42

3.3. A teoria finai da ação (finalismo)

Já para a teoria final da ação, criação de Hans Welzel, a ação humana é o exer­
cício de uma atividade final; a ação é, por isso, uma conduta final, e não apenas cau­
sai.43 A finalidade - escreveu Welzel - ou o caráter final da ação se deve ao fato de
que o homem, graças ao seu saber causai, pode prever, dentro de certos limites, as
conseqüências possíveis de sua atividade, eleger, em conseqüência, fins diversos e
dirigir sua ação conforme seu plano. Por isso, a finalidade é “vidente”, a causalida­
de, “cega”,44 sendo isso que distingue uma ação humana de um evento natural. Por
conseguinte, não se abandonou, com o finalismo, a idéia de causalidade, pois sim­
plesmente se lhe acrescentou o elemento finalidade, ou seja, a substituiu, como diz
Assis Toledo, por uma causalidade dirigida.45 Quem se dispõe a matar, elege os
meios, adquire a arma a ser utilizada, adota a melhor forma de levar a cabo a em­
preitada criminosa, toma os cuidados para realizá-la com sucesso etc., sendo a cau­
salidade apenas uma parte desse processo final.
Por conseqüência, com o finalismo, dolo e culpa são deslocados da culpabili­
dade para a tipicidade, já que é a finalidade da ação (o dolo) que dirá, por exemplo,
se estamos diante de um crime de lesão corporal ou de uma tentativa de homicídio
(se a intenção é matar, homicídio; se apenas ferir, lesão), ou se estamos perante um
crime ou um fato penalmente irrelevante (como regra, só são puníveis ações dolo­
sas - v. g„ aborto, infanticídio e dano culposos constituem um indiferente penal),
uma vez que, externamente, ou do ponto de vista puramente causai, tais condutas
em nada se distinguem. A doutrina finalista implica, assim, contrariamente ao sis­
tema causalista, uma nova subjetivação do injusto e uma crescente dessubjetivação
e normativização da culpabilidade.46
Mas se ação é o exercício da atividade final, como explicar a estrutura dos cri­
mes culposos? Cláudio Brandão responde a isso, dizendo que existe, sim, nesses cri­
mes, uma vontade dirigida a um fim, só que o fim será conforme o direito, de modo
que a reprovação nos crimes culposos não recai na finalidade do agente, mas nos
meios que o agente elegeu para a consecução de um fim.47 No entanto, parecv que

42 Jescheck, Tratado, cit., p. 183.


43 Welzel, D erecho penal alemán, cit., p. 39.
44 D erecho p en a l alem án, cit., p. 39-40.
45 Princípios básicos, cit., p. 95.
Roxin, Funcionalismo, cit., p. 200.
Teoria jurídica d o crim e. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 26.
Paulo Queiroz

o próprio Welzel não estava suficientemente convencido de semelhante explicjg


ção, pois, como observa Luzón Pena, em sua última etapa, Welzel propôs inclusi|
ve ainda que de modo fugaz, substituir o conceito de ação final por ação “cibernéS
tica”, na qual o que conta é o “controle” da vontade, presente tanto nos fatos doloS
sos quanto nos culposos.48
Apesar das diferenças, causalistas e finalistas coincidem num ponto fundai
mental: partem de um conceito ontológico de ação, isto é, pré-jurídico, que perteríSj
ce ao mundo do ser, da realidade.49 Há quem considere, inclusive, que no fundei
não há diferença alguma entre o conceito causalista e o conceito finalista de ação.501

3.4. Funcionalism o

Em 1970, nasce, como assinalado, com a obra de Qaus Roxin Kríminalpohtà


und Straírechtssystem (Política criminal e sistema de direito penal), o funcionalismo
que, com marcada preocupação pragmática, e como reação à excessiva abstração d<
finalismo, em especial ao seu ontologismo (estruturas lógico-reais ou materiais^
ação, isto é, prévias ao direito), pretende orientar a dogmática penal segundo as fu
ções político-criminais cometidas ao direito penal (prevenção geral e especial). '»
De acordo com Roxin - que relega o conceito de ação a plano secundário^
sob a bandeira do conceito de ação, a dogmática penal penetrou em domínios jurí
dicos que lhe são estranhos, e o conceito de ação, tal como formulado por causalis
tas e finalistas, não serve para absolutamente nada fora do direito penal, e, mesiíu
em relação ao direito penal, tem importância teórica secundária e carece de quál
quer importância prática.51
No sistema funcional roxiniano, a teoria do delito está assim estruturada®
tipo - formulado conforme o princípio da legalidade e tendo por função básicag

48 Curso, cit., p. 253. Este autor afirma ainda que o conceito final de ação responde a um modelo demasiadi
racionalista da conduta humana, limitando-se às ações mais perfeitamente elaboradas, as planificaijl
consciente e controladamente para um objetivo, sendo, pois, excessivamente restrito, já que deixa for
muitas formas de ação (p. 254).
49 Como observa Greco, o sistema finalista tenta superar o dualismo metodológico do neokantismo, negajE
do o axioma sobre o qual ele assenta: o de que entre ser e dever ser existe um abismo impossível de ultfii^
passar. A realidade, para o finalista, já traz em si uma ordem intema, possui uma lógica intrínseca: a
ca da coisa (sachiogik ). O direito não pode flutuar nas nuvens do dever ser, uma vez que o que vai regu^
lar é a realidade. Deve, portanto, descer ao chão, estudar essa realidade, submetê-la a uma análise fen£
menológica, e, só após haver descoberto suas estruturas internas, passar para a etapa da valoraçâo juríd^
ca. “Os conceitos científicos não são variadas 'composições' de um material idêntico e avalorado, mj
‘reproduções’ de pedaços de um complexo ser ôntico, ao qual são imanentes estruturas gerais e diferenç*
valorativas, que não foram fruto da criação do cientista (Welzel)” (Introdução..., Revista, cit., p. 39),
50 Assim, Gimbemat: “... ou seja, para Welzel existe ação sempre que se persiga um fim , sendo ‘indiferén]
qual o fim que se persegue. Apesar de meus esforços, não consigo ver diferença alguma entre este conceíj
to de ação e o mantido desde sempre pela doutrina causalista, para a qual há ação quando se quer
sendo ‘indiferente’ o que seja este algo" ( Escudios de derecho penal, Madrid: Tecnos, 1990, p. 169-170)5
51 Problemas fundamentais, cit., p. 91-92.
D ire ito Penal - P arte G eral

venção geral de delitos, motivo pelo qual uma ação é considerada punível inde-
pgndentemente da situação concreta e do seu autor (salvo situações excepcionais)
- passa a desempenhar o seguinte papel: a) cada tipo deve ser interpretado segundo
o fim da lei (teleologicamente), isto é, de maneira que os comportamentos legalmen­
te proibidos sejam completamente compreendidos e que o efeito motivador preven-
tivo-geral se mostre livre de lacunas; b) uma prevenção geral eficaz pressupõe,
igu alm en te, a determinação (taxatividade) da lei, com a maior exatidão e fidelidade
ao sentido literal possíveis; c) no âmbito da tipicidade será também analisada a pre­
sença dos requisitos que autorizam a imputação objetiva do resultado. Conseqüen­
tem en te, a necessidade abstrata da pena, sob o aspecto da prevenção geral, e o prin­
cípio da culpabilidade são os pontos de vista político-criminais que regem o tipo,
excluída, nesse contexto, a prevenção especial, que é estranha ao tipo, uma vez que
pressupõe um autor concreto, que aqui não desempenha papel nenhum.52 De notar
que, no sistema teleológico-funcional, a categoria da tipicidade enriquece cada vez
mais com a adoção - e agora vasta literatura - da moderna teoria da imputação obje­
tiva, que tem em Roxin e Jakobs seus principais expoentes.
Na categoria do injusto (= fato típico e antijurídico), a ação típica concreta é
, analisada segundo o aspecto da autorização ou da proibição, levando-se em conta
todos os elementos reais da situação particular, que passa a ser moldado, político-
criminalmente, por três funções: a) solucionar colisão de interesses de forma rele­
vante para a punição de um ou mais envolvidos no fato; b) servir como ponto de
apoio para as medidas de segurança e outras conseqüências jurídicas; c) ligar o
direito penal à totalidade do ordenamento jurídico, integrando as valorações deci­
sivas deste, uma vez que não é uma categoria específica do direito penal, mas do
direito como um todo.53
Finalmente, na categoria da responsabilidade, expressão compreensiva da cul­
pabilidade e necessidade preventiva, interessa saber se o autor individual merece,
concretamente, punição pelo injusto realizado, de sorte que, no campo dos pressu­
postos da punição, a responsabilidade se apresenta como a realização dogmática da
teoria dos fins da pena, dirigindo-se não ao fato, mas ao seu autor, uma vez que se
pergunta a respeito de sua necessidade individual de pena.54

4. “Responsabilidade penal” da pessoa jurídica55

Reinava absoluto até recentemente o princípio societas d elin qu ere non p otest
(as sociedades não podem delinqüir), contrário à possibilidade de “responsabiliza-

53 D0X*n’ D erech o pen al,cit., p. 235.


Roxin, D erech o pen al, cit., p. 235-236.
55 ' n05“n' D erecho PenaI>cit., P- 241-242.
uizo a expressão “responsabilidade penal” entre aspas por entender que semelhante responsabilidade
1130 tem caráter penal, mas civil e/ou administrativo.
Paulo Queiroz

ção penal” da pessoa jurídica. Diversas legislações, porém, à vista do aumento da


chamada criminalidade empresarial e com o propósito de preveni-la e reprimi-la
mais eficazmente, têm admitido a punição da pessoa jurídica “criminosa”, a exem­
plo da Inglaterra, Estados Unidos, Holanda, França e Dinamarca.56 Afirma-se,
assim, com Von Liszt, que quem pode firmar contratos, pode também firmá-los
fraudulentamente.57 i
Entre nós, a Constituição Federal, à semelhança dessas legislações, estabele­
ceu que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão v;
os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, inde­
pendentemente da obrigação de reparar os danos causados” (art. 225, § 3S). No ■'
mesmo sentido, dispôs o art. 39, caput, da Lei nQ9.605/98 (Lei Ambiental), que “as .
pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente confor­
me o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de T
seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interior ou í
benefício da sua entidade”. A adoção da “responsabilidade penal” da pessoa jurídi­
ca, exclusivamente quanto aos crimes ambientais, parece fora de dúvida.58
Apesar disso, alguns autores entendem que a Constituição não chegou a admi- ,
tir a responsabilidade penal da pessoa jurídica.59 Pelo que se lê da Constituição, no ■
entanto, não se pode afirmar que o constituinte tivesse tratado clara, separada é >
autonomamente, as responsabilidades penal e não penal. Muito ao contrário, de :
tudo cuidou num único e só artigo, melhor, inciso, dizendo que as condutas lesivas “
ao meio ambiente sujeitarão seus infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções
penais e administrativas. Em momento algum, disse que só as pessoas físicas esta-,
riam sujeitas ao direito penal, e que as jurídicas estariam sujeitas exclusivamente às' *
sanções administrativas e civis, excluindo-as da penal. Na verdade, ao tratar unitá­
ria e indistintamente o assunto, tudo indica e sugere exatamente o contrário da tese-
sustentada por tais autores, pois o que se quis realmente foi submeter todos, peS''*;»
soas físicas e jurídicas, à lei penal, e não só à lei administrativa. No particular a Lei
ns 9.605/98 se limitou a regulamentar a Constituição Federal, portanto. i
Ainda assim duas objeções podem ser feitas contra tal inovação.60 A primeira,;,
de caráter político-criminal; a segunda, de cunho dogmático.61

56 Cf. Shecaira, Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
57 Tratado, cit., t. 1, p. 191.
58 Há quem entenda, como Cezar Bitencourt, que, apesar dessa previsão constitucional, não houve em ver- •
dade pretensão de consagrar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, pois “a obscura previsão do art.
225, § 3o, da Constituição Federal, relativamente ao m eio ambiente, tem levado alguns penalistas a sus-,
tentar, equivocadamente, que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. No :
entanto, a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual”
(Manual, cit., v. 2, p. 21).
59 Nesse sentido, René Ariel Dotti, Miguel Reale Júnior e Sheila Jorge Selim de Sales.
60 No sentido do texto, Régis Prado, René Ariel Dotti, entre outros.
61 No sentido do texto, precedente do STJ, rei. Min. Félix Fischer, RE 622.724/SC (2004/0012318-8), que tem 'U
a seguinte ementa: “PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO ~
AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPON'
D ireito Penal - Parte Geral

Político-criminalmente, porque semelhante dispositivo viola o princípio da


proporcionalidade, pois, tendo em vista os fins preventivos gerais e especiais da
pena, tal responsabilidade é a um tempo desnecessária, inadequada e desproporcio­
nal (em sentido estrito). Primeiro, porque as sanções administrativas já existentes
são, sem dúvida, bastantes para debelar os atos abusivos praticados por empresas.
Se compararmos, aliás, a resposta prevista nos artigos que tratam das sanções penais
e administrativas, verificaremos que são essencialmente as mesmas,62 a revelar um
bis in idem manifesto.
Também é inadequada porque, se com as medidas administrativas já previstas,
não se atingem os fins preventivos desejados, apesar da menor formalidade e maior
presteza que as informam, muito menos se alcançarão tais finalidades por meio de
um recurso (o processo penal), que é sabidamente demorado, burocrático e cerca­
do de rigorosas garantias penais e processuais. Bem mais razoável será eficientizar
os controles (civis, administrativos, comunitários) já existentes.
Em conclusão, a irresponsabilidade penal da pessoa jurídica é uma exigência
infranqueável do caráter subsidiário do direito penal.
Dogmaticamente, porque estruturado e destinado a reger a vontade humana
(a pessoa física) e suas motivações, exclusivamente, o direito penal, ao menos como
ainda hoje o conhecemos, é de todo incompatível com essa pretendida responsabi­
lidade, de sorte que penalmente a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de uma
ação que seja típica, antíjurídica e culpável. Não sem razão, tem-se afirmado que
praticamente todas as propostas de fundamentar a imputação penal à pessoa jurídi­
ca são superficiais (Schünemann).63
Com efeito, se é função do direito penal motivar seus destinatários a atuarem
conforme o direito, quer em caráter geral (prevenção geral), quer em caráter indi­
vidual (prevenção especial), segue-se que só a pessoa humana, dotada de capacida-

SABILIDADE OBJETIVA. Na dogmática penal a responsabilidade se fundamenta em ações atribuídas às


pessoas físicas. Dessarte, a prática de uma infração penal pressupõe necessariamente uma conduta huma­
na. Logo, a imputação penal a pessoas jurídicas, frise-se, carecedoras da capacidade de ação, bem como de
culpabilidade, é inviável em razão da impossibilidade de praticarem um injusto penal (precedentes do
Pretório Excelso e desta Corte)”. Há, no entanto, julgado no sentido contrário.
62 De fato, as penas aplicáveis às pessoas jurídicas são: multa, suspensão parcial ou total de atividades, inter­
dição temporária de estabelecimento, obra ou atividade, proibição de contratar com o Poder Público, bem
como dele obter subsídios, subvenções e doações, além de prestação de serviço à comunidade (arts. 2 1 a
23). Já as sanções administrativas (art. 72), cujo rol é mais extenso, são: multa simples e diária, apreensão
de animais, destruição ou inutilização do produto, suspensão de venda e fabricação do produto, embargo
de obra ou atividade, demolição de obra, suspensão parcial ou total de atividades, além de restritivas de
direito: suspensão e/ou cancelamento de registro, licença ou autorização, perda ou restrição de incentivos
e benefícios fiscais, proibição de contratar com a Administração etc.
63 Como afirma Gracia M artin, rebatendo Tiedemann, Brender e Hirsch, que defendem a “responsabilidade
penal” da pessoa jurídica, todos os argumentos desenvolvidos em seu favor remetem constantemente à
pessoa física e, com isso, demonstram que só esta (a pessoa humana) pode ser realmente destinatária da
norma penal, por ser sujeito de uma infração e de uma sanção (La cuestión de la responsabilidad penal de
las personas jurídicas, in Responsabilidade pen al da pessoa jurídica: em defesa da imputação subjetiva, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 66).
Paulo Queiroz

140
de de discernimento e autodeterminação, pode ser sujeito ativo de crime, visto que
só os seres humanos podem ouvir e entender as normas; só eles são passíveis de
motivação e, portanto, de cometer crimes.64 Ademais, se duvidosa é função moti-
vadora da norma penal quanto aos crimes dolosos praticados por pessoas físicas,
ainda mais discutível ela o é quanto aos crimes culposos, que parecem ser os mais
freqüentemente praticados por empresas em matéria ambiental.
Em realidade, a imputação (supostamente penal) que se lhe faz constitui uma
autêntica responsabilidade de natureza civil e/ou administrativa - logo, não penal
- embora decretada por um juiz criminal. Daí afirmar Gracia Martin que, por care­
cer de capacidade de ação, e, portanto, de realizar ações típicas, o critério de impu­
tação do fato à pessoa jurídica não pode ter caráter jurídico-penal, tendo natureza
bem diversa, como risco objetivo, benefício, enriquecimento sem causa, reafirma­
ção do direito de terceiros de boa-fé, afirmação da validez da aparência jurídica
etc., critérios que são, em todo caso, estranhos ao direito penal.65
Convém dizer ademais que não é propriamente a pessoa jurídica que celebra
contratos, uma vez que simplesmente a eles se vincula, os quais em verdade são
celebrados pelas pessoas individuais que atuam como seus agentes.66 Tem razão,
portanto, Gracia Martin, quando, distinguindo entre “sujeito da ação” e “sujeito da
imputação”, sustenta que, no caso das pessoas jurídicas, sujeito da ação e sujeito da
imputação são sempre e inevitavelmente distintos, pois estas só podem atuar por
meio de órgãos e representantes, é dizer, as pessoas físicas (sujeitos da ação).67
Conseqüentemente, não podendo praticar uma ação, não podem realizar um
fato típico, antijurídico e culpável. Por isso é que todo o arsenal de conceitos e ins­
titutos jurídico-penais hoje existente é claramente incompatível com a “responsa­
bilidade penal” da pessoa jurídica. Assim, por exemplo, a idéia de dolo, de descri-
minantes putativas, de legítima defesa, de erro de proibição, de coação irresistível,’
de concurso de agentes etc.
Também por isso, não basta simplesmente que a lei preveja a possibilidade de
responsabilização penal da pessoa jurídica, como fez a Lei ne 9.605/98. E necessá-

64 Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 91.


65 La cuestión..., in Responsabilidade, cit., p. 45.
66 Rodriguez Mourullo apud Gracia Martin, La cuestión..., in Responsabilidade, cit., p. 43.
67 Escreve, textualmente, Gracia Martin: “No caso das pessoas jurídicas, ao contrário, sujeito da imputação e
sujeito da ação têm que ser sempre e irremediavelmente diferentes, pois aquelas só podem atuar através
de seus órgãos e representantes, é dizer, as pessoas físicas (sujeitos da ação). Pois bem, a meu juízo aquilo
que é imputado imediatamente à pessoa jurídica são, em primeiro lugar, os efeitos jurídicos produzidos*
pela ação do órgão ou do representante, por exemplo, dos efeitos jurídico-civis do contrato celebrado ime­
diatamente pela pessoa física que representa a jurídica, o que talvez possa coincidir em seus e le m e n t o s
naturalísticos com a descrição do tipo objetivo do fato punível. Porém, o elemento portador da possibili"
dade de imputação jurídico-penal é, em qualquer caso, só o exercício da vontade, em sentido p sic o ló g ic o
e no processo de sua formação. Se a ação é concebida, como eu entendo, como exercício da atividade fina­
lista e a omissão como não-realizaçâo de uma ação finalista, então é evidente que a pessoa jurídica carece
de capacidade de ação no sentido do Direito Penal” (La cuestión..., in Responsabilidade, cit., p. 41-42).
Direito Penal - Parte Geral

rio ainda estabelecer os critérios (objetivos e subjetivos) de imputação e individua­


lização judicial da pena, conforme as peculiaridades da pessoa jurídica.
Mas nada disso impediria, se se entender necessário, a adoção de medidas (adi­
cionais) de natureza civil e/ou administrativa aplicáveis à pessoa jurídica, a título
de conseqüências acessórias, tal como faz o Código Penal espanhol,68 por exemplo.

68 Dispõe, com efeito, o art. 129 do Código espanhol: o Juiz ou Tribunal, nos casos previstos neste Código, e
mediante prévia audiência dos titulares ou de seus representantes legais, poderá impor, motivadamente,
as seguintes conseqüências: a) interdição da empresa, seus locais ou estabelecimentos com caráter tempo­
ral ou definitivo; b) dissolução da sociedade, associação ou fundação; c) suspensão das atividades da socie­
dade, empresa, fundação ou associação por um prazo que não poderá exceder a cinco anos; d) proibição
de realizar atividades no futuro, operações mercantis ou negócios; e) intervenção na empresa para salva­
guarda dos direitos dos trabalhadores.
D ireito Penal - Parte G eral

Capítulo II
Conceito de Crime

1. Infrações penais: crimes e contravenções

As infrações penais podem consistir em crimes e/ou delitos e contravenções,


conforme se adote uma classificação tripartida ou bipartida. Esta última - a mais
corrente - é a acolhida pelo Direito brasileiro, de modo que infração penal, entre
nós, ou é um crime ou é uma contravenção (Dec.-lei ne 3.688/41), sendo a expres­
são delito empregada como sinônimo de crime, diferentemente de países que utili­
zam uma divisão tripartida, distinguindo crime, delito e contravenção, segundo a
magnitude da lesão.
No particular a Lei de Introdução do Código Penal brasileiro (Dec.-lei n®
3.914/41) dispõe (art. l e): “considera-se crime a infração penal a que a lei comina
pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumula­
tivamente com pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isola­
damente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulati­
vamente”. Mas essa definição legal de crime não é de todo exata, seja porque há cri­
mes na legislação extravagante punidos exclusivamente com pena de multa ou
penas restritivas de direito, seja porque a Constituição Federal (art. 5S, XLVI) admi­
te outras penas que não a prisão e a multa.
Assim como não existe distinção quanto à essência entre o ilícito penal e o ilí­
cito civil, também a diferenciação entre crimes e contravenções é puramente de
grau, quantitativa: os primeiros são infrações mais graves, por isso que punidos com
reclusão ou detenção (e eventualmente multa, de forma cumulativa); as segundas
são infrações de menor potencial ofensivo, sancionadas com prisão simples ou
multa. A razão é simples: definir determinadas infrações como crime ou contraven­
ção é uma questão de mera conveniência política. Aliás, não é incomum que con­
travenções sejam transformadas em crime, como ocorreu, por exemplo, com o
porte ilegal de arma e com algumas contravenções contra o meio ambiente, con­
vertidos que foram em crime. Mas o inverso, crimes tomarem-se contravenções, é
de difícil ocorrência, já que, como regra, opera-se a descriminalização pura e sim­
ples da conduta, passando a ser um indiferente penal. Pensamos inclusive que as
contravenções deveriam ser prontamente abolidas por serem desnecessárias e
mcompatíveis com um modelo de direito penal mínimo.
Paulo Queiroz

2. Conceito de crime

O conceito de crime pode ser tomado em dois sentidos: formal e material. Por
força do princípio da legalidade, o conceito de crime é inevitavelmente um concei­
to formal. Por conseguinte, crime é o que a lei descreve como tal.
No entanto, por constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na
vida dos cidadãos (caráter subsidiário), não podem ser desprezados critérios mate­
riais para a definição legal das infrações penais, motivo pelo qual só devem ser ele­
vados à categoria de delitos comportamentos especialmente lesivos de bens jurídi­
cos, vale dizer, condutas realmente intoleráveis para a convivência social, cuja pre­
venção/repressão não possa ser confiada a outras instâncias de controle social.
Além disso, os pressupostos materiais da intervenção jurídico-penal (proporciona­
lidade, lesividade etc.) são relevantes não apenas para editar a norma penal, mas
também para interpretá-la/aplicá-la, evitando sua incidência sobre condutas que,
embora formalmente típicas, não representem em concreto qualquer lesão ou peri­
go sério de lesão para o bem jurídico que se quer tutelar jurídico-penalmente.
Não quer isso significar, porém, que seja possível conceituar ontologicamente o
delito, emprestando-lhe consistência material, como pretendeu, sem sucesso, o posi­
tivismo criminológico, em especial Garofalo, com o seu conceito de “delito natural”,
que consistiria na “lesão daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimen­
tos altruístas fundamentais (piedade e probidade) segundo a medida média em que se
encontram as raças humanas superiores, cuja medida é necessária para a adaptação do
indivíduo à sociedade”.1 E sem êxito porque, além de sua vagueza e imprecisão, tal
prescinde dos processos de reação social e não tem em conta que o conceito de deli­
to é necessariamente relativo, histórica e culturalmente condicionado.2
Em conclusão, não é suficiente nem um conceito formal, nem um conceito
material, exclusivamente, já que ambos são igualmente importantes para o direito
penal. Daí a atualidade do conceito formal-material de Carrara, para quem o delito
consistia “na infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos
cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmen­
te imputável e politicamente danoso”,3 conceito que compreende os princípios da
legalidade (infração da lei do Estado) e lesividade (ato politicamente danoso).
Infração penal (crime ou contravenção) é, portanto, uma conduta que, descri­
ta em lei como tal, se revele em concreto especialmente lesiva de bem jurídico-
penalmente relevante.

1 Criminología (citado por García-Pablos, Criminologia, cit., p. 124).


2 Como assinala García-Pablos, não existe uma conduta desviada in se ou per se,nem sepode elaborar a
priori um seu catálogo, pois um comportamento é definido como desviado na medida em que se aparta
das expectativas sociais cambiantes, da maioria social, ou seja, a desviação não reside na conduta mesma,
senão nas demais ( Derecho penal , cit., p. 15).
3 Programa do curso de direito criminal', parte geral, trad. José LuizV. Franceschini e J. R. PrestesBarra,
São Paulo: Saraiva, 1956, v. 1.
D ireito Penal - Parte Geral

3. Conceito definitorial de delito - segundo a teoria do “labeling


approach” (ou teoria do etiquetamento)
Uma última referência merece ainda o conceito de delito segundo a teoria do
etiquetamento (labelin g approach), a que já nos reportamos quando tratamos do
conceito de direito e das funções do direito penal.
Para essa teoria, o delito carece de consistência material, mas, mais do que
isso, são os processos de reação social, é dizer, o controle social mesmo, que criam
a conduta desviada, ou seja, a conduta não é desviada em si (qualidade negativa ine­
rente à conduta), mas em razão dum processo social, arbitrário e discriminatório,
de reação e seleção. O delito - comportamento desviado, por excelência - é assim
uma etiqueta lançada sobre certas pessoas, sobretudo em razão do status social do
delinqüente e da vítima, da repercussão social, das suas conseqüências, da reação
das partes envolvidas etc. “Os grupos sociais”, escreve Howard Becker, “criam os
desvios ao fazerem as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicarem essas
regras a pessoas particulares e rotulá-las como marginais e desviantes. Desse ponto
de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma con­
seqüência da aplicação, por outras pessoas, de regras e sanções a um transgressor.
O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comporta­
mento desviante é o comportamento que as pessoas rotulam como tal”.4
Portanto, é a lei em última análise que cria o crime e o criminoso, ao etique­
tar e selecionar arbitrariamente determinados comportamentos num rol infindável
de ações formalmente criminalizáveis. Ainda hoje ocorre, por exemplo, de homi­
cidas passionais serem absolvidos pelo Tribunal do Júri ao argumento de legítima
defesa da honra, especialmente se provam a infidelidade da vítima, invariavelmen­
te mulher. O crime é parte da construção social da realidade; depende de como rea­
gimos a determinadas condutas, de como as interpretamos.
A teoria em questão tem o mérito de mostrar a injustiça, a excepcionalidade
(cifras ocultas da criminalidade) e o caráter arbitrariamente seletivo e discriminató­
rio do sistema penal. Apesar disso, García-Pablos entende que ela faz depender
exclusivamente da seletividade do controle social a noção de delito (eficácia cons­
trutiva do controle social), vício metodológico que impede qualquer análise teórica
sobre a essência do comportamento criminal e fatores etiológicos relevantes deste.5

4. Conceito analítico de crime


A teoria do delito trabalha com três conceitos fundamentais; tipicidade, ilici­
tude e culpabilidade (a punibilidade não constitui, segundo a doutrina [majoritá­

4 Outsiders, studies in the sociology o f deviance, cap. 1, in Uma teoria da ação coletiva , trad. Márcia
Bandeira de M. L. Nunes, Rio de Janeiro: Zahar, 1957, p. 53 e s.
5 D erecho penal, cit.
ria], elemento do crime, mas sua conseqüência). Analiticamente, portanto, o crime
é um fato típico, antijurídico e culpável,6-7 havendo entre tais categorias uma rela­
ção de sucessão e prejudicialidade, uma vez que a culpabilidade pressupõe a antiju-
ridicidade e esta, a tipicidade. Tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são assim
predicados de um substantivo, que é a conduta humana definida como crime,8 de
sorte que a análise do caráter criminoso de um ato demanda a verificação sucessiva
do seu caráter típico, antijurídico e culpável.9 O conceito analítico é, pois, um des­
dobramento do conceito formal de crime, isto é, crime como infração à lei penal.
Releva notar que, apesar de a doutrina majoritária defender um conceito tri-
partite de crime, há quem adote uma concepção quadripartite (crime como fato

6 Na doutrina brasileira, os autores divergem sobre se a culpabilidade integra ou não a estrutura do delito.
Damásio {Direico p en al cit., v. 1, p. 451 e s.) defende a tese de que o crime se compõe de fato típico e anti­
jurídico somente, figurando a culpabilidade como mero pressuposto da pena. Pensamos, em primeiro
lugar, que semelhante discussão não tem importância teórica e muito menos prática. Mas, ao se conside­
rar, como quer Damásio, que a culpabilidade é pressuposto da pena, simplesmente, esquece-se, porém,
que, como regra, a ausência de culpabilidade dá lugar não à medida de segurança (exclusiva de inimputá-
veis e semi-imputáveis), mas à absolvição pura e simples (assim, erro de proibição invencível, coação
moral irresistível etc.), não se aplicando a seus autores (imputáveis) qualquer medida de segurança ou
similar. Ora, em tais hipóteses, se há absolvição (sem mais) é porque se reconhece que não se está diante
de uma conduta criminosa, embora tenha o seu autor agido típica e ilicitamente (realizado um injusto).
Portanto, a culpabilidade integra, sim, o conceito de crime, já que sem ela não há, em princípio, qualquer
conseqüência penal. Mas, ainda que assim não fosse, teríamos de convir que não só a culpabilidade como
também a tipicidade e a ilicitude são pressupostos da punibilidade, pois toda e qualquer conseqüência jurí­
dico-penal pressupõe tipicidade e antijuridicidade e, a seguir, culpabilidade. Finalmente, ao contrário do
que parece supor Damásio, Welzel (nem Maurach, nem qualquer outro finalista) jamais defendeu a idéia
de que o crime se compõe só de fato típico e antijurídico. Para uma crítica à posição de Damásio, Cezar
Bitencourt ( Manual, cit., p. 313 e s.).
7 Em artigo que chamou “Da punibilidade como terceiro requisito do fato punível” (in www.direitope-
nal.adv.br), Luiz Flávio Gomes defende tese segundo a qual a punibilidade, de conseqüência do crime, passa
a integrar a estrutura do “fato punível”. Diz mais: “a culpabilidade passa a figurar como ‘elo de ligação entre
a teoria do crime e a teoria da pena’, e que a punibilidade não pode deixar de ser admitida como terceiro
requisito do fato punível’; ‘o fato (materialmente típico e antijurídico) só é punível quando ameaçado com
pena’; injusto penal, fato punível e culpabilidade: o injusto penal é composto de dois requisitos: fato mate­
rialmente típico e antijurídico. O fato punível exige três requisitos: fato materialmente típico, antijurídico e
punível. A culpabilidade, como se nota, definitivamente, não integra a teoria do delito. Mas como pressu­
posto indeclinável da pena, é ela que faz a ligação entre a teoria do delito e a teoria da pena”. Parece-nos,
porém, que toda a argumentação se desenvolve a partir de uma tautologia, pois afirmar que “a punibilidade
é requisito do fato punível” é o mesmo que dizer, v. g., que “a culpabilidade é requisito do fato culpável”, que
“a antijuridicidade é requisito do fato antijurídico” ou que “a tipicidade é requisito do fato típico”. Considera
o autor também que a culpabilidade "está fora do injusto penal assim como do fato punível, vem, cronologi­
camente falando, depois dos três requisitos que compõem o fato punível (fato materialmente típico, antiju­
ridicidade e punibilidade)”. Há aí, no entanto, clara inversão da ordem natural das coisas, pois antes de cul-
páveis, as condutas seriam puníveis, de modo que, por exemplo, quem age sob o manto de causa de excul-
pação (erro de proibição, coação moral irresistível etc.) já teria praticado um fato punível, uma vez que a
verificação da culpabilidade “vem cronologicamente depois". Segundo esta formulação, portanto, o castigo
precede ao crime; a pena à culpa (!). Cremos, em conclusão, que semelhante tese, apesar da excelência de
quem a subscreve, não é logicamente sustentável, nem se justifica do ponto de vista prático ou sistemático.
8 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 317.
9 A sistematização da categoria tipicidade deve-se a Ernest v. Beling (1906); a antijuridicidade, a Rudolf v.
Hiering (1867), Franz v. Liszt e Beling; a culpabilidade teve em Adolf Merkel o início de um conceito
específico (cf. Jescheck, Tratado, cit., p. 181).
D ireito Penal - Parte G eral

típico, ilícito, culpável e punível), como é o caso de Francisco Munoz Conde e Mer­
cedes Garcia Arán.10
Finalmente, se certo é, conforme vimos ao tratar do conceito de direito, que
o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, segue-se que o que é
típico, ilícito ou culpável (e o seu contrário) depende de como se interpreta.

4.1. Tipicidade

Dir-se-á típica uma conduta sempre que se ajuste à descrição prevista numa
norma penal incriminadora (v. g., matar, roubar), de modo que, tratando-se de fato
que não encontre ajustamento típico (v. g., aborto culposo), a conduta será atípica,
ficando prejudicada, em conseqüência, a análise de tudo mais (antijuridicidade e
culpabilidade). Declarar, pois, típica uma ação, é declará-la jurídico-penalmente
relevante; ao invés, afirmá-la atípica é afirmá-la penalmente indiferente.
É que, em razão do princípio da legalidade, só pode constituir infração penal
(crime ou contravenção) o que a lei descreve como tal. A essa descrição legal dos
elementos do crime (ou contravenção) dá-se o nome de tipo. Típica é, em conse­
qüência, toda conduta humana que corresponda ao modelo legal (tipo penal).
Tipicidade significa, assim, a coincidência entre dado comportamento humano e a
norma penal incriminadora (v. g., o homicídio, o furto, o estupro). Não é típico
(mas atípico), diversamente, o aborto ou dano culposos, por exemplo, por falta de
previsão legal que os incriminem.
O legislador, portanto, trabalha com tipos e pensa com tipos.11 E, ao se fazer refe­
rência à “lei penal” e sua função de garantia, sempre se quer aludir ao “tipo penal”.12

4.2. A n tijuridicidade

Cuidando-se de uma ação típica, passa-se a seguir à análise da ilicitude, isto é,


cumpre verificar agora se, além de típica, tal conduta é também contrária ao ordena­
mento jurídico como um todo (e não apenas em relação ao direito penal). Se, embo­
ra típica, não for ilícita - isto é, for lícita, por exemplo, se ficar provado que o agen­
te agiu em legítima defesa - , ficará prejudicada a indagação sobre a culpabilidade.
Diz-se assim ilícita a ação quando praticada contrariamente ao direito, é dizer,
sem o amparo de causa de exclusão da ilicitude, como a legítima defesa, o estado de
necessidade, o estrito cumprimento do dever legal ou o exercício regular de direi­
to (CP, art. 23). Assim, não há crime de homicídio, mas homicídio simplesmente,
quando, por exemplo, o agente mata outrem em legítima defesa de sua própria

10 Derecho Penal. Parte General. Valencia: 2000, 4. ed., p. 223-226.


11 Sauer, D erecho penal, trad. Juan dei Rosai e José Cerezo, Barcelona: Bosch, 1956, p. 114.
12 Maurach, D erecho p en al cit., p. 348.
Paulo Queiroz

vida. Significa dizer que, embora típica a ação, visto coincidir com a descrição do
art. 121 do Código Penal, ela não é considerada ilícita, uma vez que está autoriza­
da pelo direito, de sorte que quem mata em legítima defesa mata legitimamente;
atua dentro da legalidade.
A conduta típica, no entanto, será ilícita sempre que não concorra - como é
comum - uma causa de justificação (de exclusão de ilicitude). Em geral o autor de
um fato típico atua fora da legalidade; ilicitamente, portanto.

4.3. Culpabilidade

Tratando-se de uma ação típica e antijurídica (= injusto penql), cumprirá


finalmente indagar sobre a culpabilidade do autor, isto é, se, nas condições dadas,
ele poderia agir conforme a norma, pois, se tal não lhe fosse possível, porque, por
exemplo, agia sob coação moral irresistível, será declarado inculpável. Ao contrá­
rio, se lhe era perfeitamente possível (e exigível) atuar segundo o direito, ficará
caracterizada a culpabilidade, dando lugar à punibilidade.
A culpabilidade constitui, em conseqüência, as condições subjetivas que
devem concorrer para que seu autor seja merecedor de pena, pois do contrário, isto
é, se inculpável, não sofrerá pena alguma, devendo ser absolvido. Excepcionalmen­
te, apesar da ausência de culpabilidade, poder-se-á impor ao agente medida de
segurança, isto é, quando se trate de inimputável (CP, art. 26), em virtude de doen­
ça mental ou perturbação da saúde mental.
Portanto, culpabilidade é um juízo de reprovação sobre o autor de um fato
típico e ilícito, por lhe ser possível e exigível, concreta e razoavelmente, um com­
portamento diverso, isto é, conforme o direito.
Naturalmente que a verificação de tais conceitos deve ter sempre como refe­
rência o sistema de valores e princípios constitucionais, conforme o método da
ponderação de interesses, não se limitando à mera subsunção do fato ao tipo,
mesmo porque o direito não é um saber lógico, mas analógico.
A seguir, problematizar-se-ão o conceito e a relação existente entre tais cate­
gorias.

4.4. Relação entre os conceitos definitorial e analítico de crime

Como vimos ao tratar do conceito do direito penal, materialmente o crime


não existe, uma vez que ele é o resultado das múltiplas interações/reações/interpre­
tações relativas ao comportamento definido como infração penal, razão pela qual é
parte da construção social da realidade, ou seja, o crime é o que dizemos que ele é;
dizemo-lo, primeiro, por meio da lei (criminalização primária); depois, por meio
dos processos de reação social (criminalização secundária).
D ireito Penal - P a n e Geral

Assim, se, sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se logicamente
que também o seu conceito formal ou analítico - delito como fato típico, ilícito e
culpável - não está previamente dado, pois é construído socialmente, de sorte que
uma determinada conduta será ou não típica, ilícita e culpável quando dissermos
(aceitamos) que ela o é, mesmo porque tais conceitos remetem necessariamente a
diversos outros conceitos: dolo, culpa, significância/insignificância, causalidade, le­
gítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação física/moral
resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencível/invencí-
vel, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua vez, a
outros tantos, como vida, honra, propriedade, agressão justa/injusta, intenção, pre­
visão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, confissão, prova lícita/ilícita, exigí-
vel/inexigível, valores, princípios etc.
Também por isso, não se pode dizer a p riori se um determinado comporta­
mento é doloso ou culposo, lícito ou não, culpável ou inculpável, pois, conforme
vimos, o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. Significa dizer
que, a depender da interpretação, uma mesma conduta (v. g., agredir a esposa por
flagrá-la em adultério) poderá ser considerada ora lícita, ora ilícita, ora culpável,
ora inculpável. Enfim, não é a interpretação que depende do direito, mas o direito
que depende da interpretação.
D ireito P en al - Parte Geral

Capítulo III
Evolução do Conceito de Tipo

1. Sistema tripartido: o tipo como indício de antijuridicidade

O que hoje chamamos teoria do tipo nasceu com Emest von Beling, que a
difundiu por meio da obra D ie L eh re vom V erbrechen (A teoria do delito), de
1906, e por cujo meio o tipo passaria a constituir uma das notas essenciais do con­
ceito de crime, somando-se à antijuridicidade e à culpabilidade, como exigência
infranqueável do princípio da legalidade. De acordo com a formulação inicial de
Beling,! o tipo penal é a descrição abstrata dos elementos do fato ou suposto de fato
(Tatbestand) previsto na norma penal incriminadora, descrição que não supõe
qualquer (des)valoração, razão pela qual o tipo penal constitui assim uma categoria
dogmática valorativamente neutra, pertencendo a valoraçâo da conduta à antijuri­
dicidade. Por conseguinte, tipo e antijuridicidade constituem, segundo Beling,
categorias sistemáticas autônomas, mesmo porque o fato, embora típico, pode não
ser antijurídico, sempre e quando praticado sob o amparo de uma causa de justifi­
cação. Assim, por exemplo, quem fere alguém em legítima defesa ou em estado de
necessidade realiza um fato típico, mas não antijurídico, porque autorizado pelo
direito. O tipo, portanto, é apenas um indício (ratio cognoscendí) da ilicitude.
Com o neokantismo, que introduz a idéia do valor na teoria do delito, seme­
lhante formulação vem a ser criticada (M. E. Mayer, Mezger, Sauer) por seu exces­
sivo formalismo. Primeiro, porque não se pode falar de um tipo puramente objeti­
vo, pois freqüentemente o legislador, ao descrever ações típicas, recorre a elemen­
tos subjetivos (v. g., o “para si ou para outrem”, referido no art. 155 do CP), de sorte
que o tipo não está imune a juízos de valor. Além disso, a redação dos tipos não raro
contém elementos normativos (assim, o conceito de “fraude”, de “funcionário pú­
blico” e de “coisa alheia”), supondo quase sempre uma valoraçâo ética, jurídica,
social, cultural etc., concretamente avaliada, não podendo prevalecer a tese de um
tipo penal neutro ou puramente objetivo. Nesse sentido, Sauer, para quem a tipici­
dade era a “antijuridicidade tipificada”, afirmaria que “o tipo é já um sintoma da cri­
minalidade objetiva, da danosidade social e da perigosidade social de um atuar”.2

1 Digo inicial porque mais tarde (Lehre von Tatbestand, 1930) Beling desenvolveria um conceito ainda mais
abstrato de tipo como Leitbild, conceito não acolhido pela doutrina, que continuaria utilizando o concei-
to inicial por ele formulado.
2 D erecho penal, cit., p. 111.
Paulo Queiroz

152
Com o advento da doutrina finalista, que, coerente com o seu conceito final de
ação, desloca o dolo e a culpa para o tipo penal, como elementos subjetivos, que antes,
com o causalismo, pertenciam à culpabilidade, o tipo seguiria, apesar disso, como um
tipo meramente indiciário da ilicitude,3 de modo que o crime, sob o aspecto analíti­
co, permanece sendo fato típico, antijurídico e culpável (sistema tripartido).

2. Sistema bipartido: a teoria dos elementos negativos do tipo

Já para a teoria dos elementos negativos do tipo,4 cuja formulação inicial


deve-se a Merkel (1889), desenvolvida por Frank e Radbruch e que teve em
Baumbarten a sua mais acabada elaboração,5 diferentemente, tode fato típico é
sempre um fato antijurídico. De acordo com essa teoria, com efeito, o tipo penal
contém já toda matéria proibida e antijurídica, compondo-se, por isso, de duas
partes: a) uma parte positiva (tipo positivo), que corresponde à completa realiza­
ção dos elementos (objetivos, subjetivos e normativos) do tipo (tipo no sentido tra­
dicional); b) uma parte negativa (tipo negativo), que corresponde à ausência de
causas de justificação. Ou seja, na formulação do tipo penal estaria implícita a
ausência de causas de justificação, de modo que, por exemplo, na norma do art.
121 do CP, “matar alguém”, estaria subentendido que “matar é crime”, “salvo em
legítima defesa, em estado de necessidade etc.”, ressalva que não consta do artigo
de lei por razões de estilo, exclusivamente. Daí o seu nome teoria dos elementos
negativos (= causas de justificação) do tipo, visto que a presença de tais elementos
(legítima defesa, estado de necessidade) nega o próprio tipo; sua ausência, ao con­
trário, confirma-o totalmente, ou seja, as causas de justificação constituem ele­
mentos que negam o tipo penal. Logo, todo fato típico é, para essa perspectiva
totalizadora, simultaneamente, um fato ilícito, embora nem todo fato ilícito seja
típico (v. g., dano e aborto culposos), em razão de ser a ilicitude um conceito do
direito, e não um conceito do direito penal.

3 Como observa Mir Puig, o fmalismo adotou um conceito próximo do ideado por Beling: o tipo como mero
indício - ratio cognoscendi - da antijuridicidade, que não só pode desvirtuar-se pelo concurso de causas
de justificação (nem toda ação típica é antijurídica), senão que tem um significado independente da anti­
juridicidade (D erccho penal, cit., p. 129).
4 Entre nós, adota posição similar Assis Toledo: “a tipicidade e a ilicitude implicam-se numa relação indis­
solúvel no interior do injusto, mas conceitualmente não se confundem. O tipo, para não reduzir-se a um
abstrato Leitbild , ou a um ‘princípio formal’, só pode ser a descrição de condutas proibidas, portanto, um
‘tipo de injusto’ ( Unrechtstypus). A expressão do injusto, pela incidência de uma norma permissiva (causa
de justificação ou de exclusão de ilicitude), opera-se no momento mesmo da realização do fato justifica­
do, não depois, quando do desenvolvimento do raciocínio do julgador, este sim condicionado a um pro­
cesso cognoscitivo bifásico. O tipo de injusto, assim entendido, está infiltrado pela ilicitude, que lhe dá o
verdadeiro conteúdo material” ( Princípios básicos, cit., p. 124). Semelhantemente, Reale Júnior, Teoria do
delito, São Paulo: Saraiva, 1998. Também Juarez Tavares, embora critique a teoria dos elementos negati­
vos, chega a uma formulação muito próxima, teoria do injusto penal.
5 Cf. Rodriguez Mourullo, D erecho p en al cit., p. 249.
D ireito Penal - Parte Geral

3. Posição aqui adotada: teoria dos elementos negativos do tipo


(sistema bipartido)

Com o advento do funcionalismo, a orientar politicamente a dogmática jurí-


dico-penal, a teoria dos elementos negativos do tipo6 se reforça e parece que aca­
bará se impondo. Desse entendimento não diverge Schünemann, afirmando que “a
sistemática funcional do direito penal unicamente pode conciliar-se com a concep­
ção do tipo total do injusto, que a dota de uma base mais sólida e suprapositiva. A
adequada configuração dogmática deste conceito sistemático é desenvolvida pela
teoria dos elem en tos negativos do tipo, que experimenta assim, de novo, um apro­
fundamento e consolidação”.7 Roxin, por sua vez, embora entenda que se deva pre­
servar a autonomia entre tipicidade e antijuridicidade, convém que a estrutura
bipartida não só é logicamente praticável como também tem sob o aspecto teleoló-
gico muitas vantagens em seu favor, pois, da perspectiva do tipo como ratio essen -
di do injusto, não há razão alguma para lhe subtrair uma parte dos elementos essen­
ciais para o injusto; ademais, freqüentemente é só uma questão de redação estilís­
tica casual da lei o fato de uma circunstância ser prevista já no tipo como funda-
mentadora do injusto ou só na antijuridicidade como excludente do injusto.8
E assim é porque os conceitos de tipicidade e antijuridicidade estão de fato
funcionalmente vinculados. Com efeito, se o fim do direito penal é a prevenção
subsidiária de comportamentos lesivos de bens jurídicos, segue-se que a definição
legal de crimes, por meio do processo legislativo penal, pressupõe que tais condu­
tas sejam contrárias à ordem jurídica, e não por ela autorizadas, pela lógica razão
de que não se pode prevenir, proibindo, aquilo que se permite. Como afirma Graf
zu Dohna, uma ação juridicamente permitida não pode ser ao mesmo tempo proi­
bida pelo direito, isto é, o exercício de um direito nunca é antijurídico.9 Porque,
relativamente às condutas autorizadas pelo direito, não pode ter lugar a “função
motivadora” da norma penal, precisamente porque o matar em legítima defesa, por
exemplo, presta-se à realização da missão mesma do direito penal, que é a proteção
de bens jurídicos por meio do rechaço (autorizado), pelo particular, de ataques a
interesse juridicamente tutelado. Numa palavra: o Estado, por meio do direito
penal, quer coibir crimes (e só isso), o que necessariamente pressupõe condutas
antijurídicas. Portanto, tem razão Gimbemat Ordeig quando afirma que a proble-

6 Sobre a teoria dos elementos negativos do tipo, por todos, José Cirilo de Vargas, Introdução ao estudo dos
crimes em espécie, Belo Horizonte, texto inédito.
7 La función de la delimitación de injusto y culpabilidad, in Fundamentos de un sistema europeo d ei d ere­
cho penal, Barcelona: Bosch, 1995, p. 226.
8 D erecho penal, cit., p. 284-285. Em texto anterior, Roxin já havia notado que “o tipo total é essencialmente
correto”, visto que “todas as ações que se ajustam a este tipo expressam um elemento fundamental comum:
mereceram a reprovação do legislador e são, portanto, socialmente danosas e materialmente contrárias ao
direito” ( Teoria d ei tipo penal, trad. Enrique Bacigalupo, Buenos Aires: Depalma, 1979, p. 274-277).
9 Citado por Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 181.
mática quanto ao conteúdo do tipo é a problemática mesma quanto à conduta que
o legislador quer motivar ou prevenir.10
Afinal, o legislador, ao permitir, por exemplo, a legítima defesa para proteção
individual, persegue simultaneamente um fim de prevenção geral, pois considera
desejável que o ordenamento jurídico se afirme diante de agressões a bens jurídi­
cos individuais.11 ‘
Além disso, quando o legislador recorre a uma lei penal e passa a definir um
dado comportamento como criminoso, pressupõe sua oposição ao ordenamento
jurídico, e não o contrário, mesmo porque fora daí faltariam os pressupostos mate-"'
riais da intervenção penal (lesividade social etc.), nem faria sentido intervir penal­
mente. Função primária do tipo é pois declarar, dentro de uma multitude de ações
antijurídicas, aquelas que merecem significação penal, criando uma' “antijuridicida-
de específica”. Não por outra razão, aliás, o ônus de provar a presença de uma causa
excludente de criminalidade incumbe em princípio ao réu. Daí dizer Mezger que o
ato de criação legislativa do tipo contém já a declaração de antijuridicidade, a fun­
damentação do injusto como injusto especialmente tipificado.12 É que as normas
proibitivas, de um lado, e as proposições permissivas, de outro, formam uma uni­
dade, apesar de sua formulação em separado.13
Parece-nos incorreta, em conseqüência, a doutrina ainda dominante quando
opta por um conceito puramente formal do tipo (tipo indiciário), afirmando que.
um fato, embora típico, não é necessariamente antijurídico, porque pode estar
autorizado pelo direito, até porque fato típico é, por definição, comportamento
proibido penalmente, sendo um manifesto contra-senso falar que uma conduta,”
apesar de penalmente típica (= proibida penalmente), não é antijurídica (= autori-'
zada pelo direito). É como afirmar que o proibido está ou pode estar permitido (=
é típico m as não antijurídico).
Em conclusão, e conforme assinala Luzón Pena, missão do tipo não é descre­
ver condutas neutras, nem meramente indiciárias de uma proibição, mas descrever,
para conhecimento geral e para cumprir sua missão de norma de determinação das
condutas dos cidadãos, todos os elementos, positivos e negativos, que fundamen­
tam a valoraçâo negativa e, portanto, a proibição geral - em face de todos - de uma
conduta,14 tarefa (prevenção geral) que só pode ser levada a cabo quando não con­
corram causas de justificação, evidentemente.
E natural, porém, que, ao relativizar a autonomia de tais categorias, não se esta
a confundir os conceitos de tipicidade e antijuridicidade, pois, apesar de interde­
pendentes, não se eqüivalem.

10 Estúdios, cit., p. 172.


11 Roxin, D erecho penal, cit., p. 608.
12 Citado por Roxin, D erecho penal, cit., p. 282.
13 Stratenwerth, D erecho penal: parte general, trad. Gladys Romero, Madrid: Edersa, 1982, p. 64-65.
14 Curso, cit., p. 299.
D ire ito P en al - Parte G eral

4 Teoria da tipicidade conglobante

Para a teoria da tipicidade conglobante, o juízo de tipicidade exige, além da


tipicidade legal, a tipicidade conglobante (de conglobar, isto é, dar a forma de globo,
acumular, reunir etc.), consistente na averiguação do alcance proibitivo da norma,
que não pode ser considerada isoladamente, mas conglobada na ordem jurídica. Por
isso, dizem Zaffaroni e Pierangeli que “a tipicidade conglobante é um corretivo da
tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que
apenas aparentemente estão proibidas, como acontece no caso exposto do oficial de
justiça, que se adequa ao ‘subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel’ (art.
155, caput, do CP), mas que não é alcançada pela proibição do ‘não furtarás’”.15
Essa teoria, que se inspira na teoria das normas de Binding e no conceito de
antinormatividade de Welzel, considera que todo tipo penal pressupõe uma norma
que lhe é subjacente (anteposta a ele), como, por exemplo, no homicídio, a norma
“não matarás”, no furto, a norma “não furtarás” etc. Resulta, assim, “que a condu­
ta, pelo fato de ser penalmente típica, necessariamente deve ser também antinor-
mativa. Não obstante, não se deve pensar que, quando uma conduta se adapta for­
malmente a uma descrição típica, só por esta circunstância seja penalmente típica.
Que uma conduta seja típica não significa necessariamente que seja antinormativa,
isto é, que esteja p roibid a pela norma (pelo “não matarás”, “não furtarás” etc.)”.
Sintetizando: tipicidade legal e tipicidade penal não são a mesma coisa: a tipicida­
de penal pressupõe a legal, mas não a esgota; a tipicidade penal requer, além da tipi­
cidade legal, a antinormatividade.16
A teoria da tipicidade conglobante distingue, portanto, três níveis sucessivos
. e complementares de tipicidade: tipicidade legal (adequação do fato à formulação
legal do tipo), tipicidade conglobante (antinormatividade, ou seja, violação da
Jiorma subjacente ao tipo) e tipicidade penal (tipicidade legal + antinormatividade),
que é o resultado da conjunção das duas anteriores, sendo que a antinormativida­
de - que não se confunde com antijuridicidade17 - não é comprovada somente com
a adequação da conduta ao tipo legal, porque requer uma investigação sobre a afe­
tação do bem jurídico.18

^5 Manual d e d ireito p en al, São Paulo, RT, 2004, p. 436.


16 Idem, p. 433-434.
17 Com efeito, dizem os autores que “é precisamente esta a mais importante diferença entre a tipicidade con­
globante e a justificação: a atipicidade conglobante não surge em função de p erm issões que a ordem jurí­
dica resignadamente concede, e sim em razão de m andatos ou fo m e n to s normativos ou de in d iferen ça (por
insignificância) da lei penal. A ordem jurídica resigna-se a que um sujeito se apodere de uma jóia valiosa
Pertencente a seu vizinho, e que a venda para custear o tratamento de um filho gravemente enfermo, que
"ão tem condições de pagar licitamente, mas orden a ao oficial de justiça que apreenda o quadro e lhe
wipõe uma pena se não o faz, fom en ta as artes plásticas, enquanto se mantém indiferente à subtração de
Uma folha de papel rabiscada”. Idem, p. 438.
18 íbidem, p. 434.
Apesar da autoridade daqueles que a defendem, temos que tal teoria, um tanto
confusa e desnecessária, não procede. Desde logo, não é exato dizer que a conduta
do oficial de justiça que busca e apreende objetos no exercício regular de suas fun­
ções seja típica (formalmente) à luz do art. 155 do Código Penal. Com efeito, ao
assim proceder, ele não “subtrai coisa alheia móvel”, tampouco “subtrai para si ou
para outrem"', nem age dolosamente, isto é, não tem a intenção de furtar quem quer
que seja; muito ao contrário, se deixar de assim proceder, poderá responder em tese
por ilícito administrativo ou penal (v. g., desobediência, prevaricação). Além disso,
a ação do oficial zeloso de suas funções, embora realmente seja atípica à luz do art.
155, assim o é por uma outra razão, uma razão tautológica: quem está no estrito
cum prim ento do dev er legal não atua tipicamente, pois é óbvio que ninguém pode
estar em acordo e em desacordo com o tipo ao mesmo tempo.
Ademais, aquilo que se vem de chamar de “tipicidade conglobante” é apenas
um modo de interpretar o texto a partir do contexto, dando-lhe interpretação siste­
matizada. Também é evidente que tal ação não implica ofensa ao bem jurídico tute­
lado pela norma (o patrimônio), mesmo porque, ao criminalizá-lo, não era eviden­
temente esse tipo de comportamento, autorizado e fomentado pelo direito, que o
legislador quis prevenir e castigar; finalmente, ao atuar no estrito cumprimento do
dever legal, o agente não cria risco proibido, mas juridicamente permitido (e esti­
mulado). Por último, a idéia de uma “tipicidade formal” (legal), que consistiria num
juízo de mera subsunção (lógica) do fato ao tipo, já deveria estar superada, pois o
direito não é um saber lógico, mas analógico,19 conforme se vem de demonstrar
desde o seu conceito, razão pela qual ou o fato é típico ou não o é, decisão que recla­
ma um juízo inevitavelmente valorativo, de ponderação de interesses, complexo.
Não bastasse isso, de acordo com o próprio Welzel, “toda realização do tipo de
uma norma proibitiva é certamente antinormativa, embora nem sempre seja anti- .
jurídica”,20 de modo que resta por se explicar o porquê de a violação ao tipo legal
de crime (tipicidade) não implicar, necessariamente, ofensa à alegada norma que
lhe é subjacente (antinormatividade).

5. Para uma configuração monista-funcional da teoria do delito

Apesar de tudo, força é convir que ainda hoje é absolutamente dominante o


sistema tripartido, segundo o qual o crime, analiticamente, compõe-se de fato típi­
co, antijurídico e culpável, categorias autônomas entre si. De acordo com essa for­
mulação, diz-se típica a conduta que se ajusta ao modelo legal; antijurídica, se con-

19 Como assinala Arthur Kaufmann, a analogia (comparação), que consiste num modo de inferência misto
de dedução e indução, constitui o próprio critério de determinação do direito, uma vez que nunca existe
uma absoluta igualdade ou desigualdade, mas semelhanças, razão pela qual juizes e legisladores se utili­
zam invariavelmente da analogia. Filosofia do direito , p. 119-120.
20 D erecho penal, cit., p. 60.
D ireico Penal - Parte Gera]

trária ao ordenamento jurídico; e, finalmente, analisar-se-á a culpabilidade, juízo


de reprovação que incide sobre o autor do fato típico e antijurídico, por lhe ser pos­
sível e exigível comportamento diverso (conforme o direito). Pois bem, com o
advento do funcionalismo, tem-se levantado uma discussão nova: saber se é possí­
vel estabelecer uma delimitação clara entre injusto e culpabilidade, saber se é pos­
sível, enfim, autonomizar a culpabilidade em face das demais categorias sistemáti­
cas (tipicidade e antijuridicidade). Schünemann21 entende que sim. Pensamos que
não, por considerar que a perspectiva funcional conduz a uma configuração monis-
ta da teoria do delito, conforme se desenvolverá a seguir.

5.1. Culpabilidade com o exigibilidade, ten d o em vista os fin s de


prevenção geral e especial

A culpabilidade constitui, essencialmente, segundo a doutrina majoritária,22 um


juízo de reprovação sobre o autor do fato ilícito,23 em face da possibilidade de se lhe
exigir, concreta e razoavelmente, uma atuação conforme o direito, de sorte que, se o
indivíduo, por falta de maturidade, por defeito psíquico, por desconhecer o conteú­
do da proibição normativa ou por se encontrar numa situação na qual não lhe era exi­
gível um comportamento diverso, não pode ser motivado pela norma, ou se a moti­
vação se altera gravemente, faltará a culpabilidade, e ao autor do fato típico e antiju­
rídico não se poderá atribuí-la; logo, não poderá ser sancionado com uma pena.24
Culpabilidade, portanto, é exigibilidade; inculpabilidade, inexigibilidade.25

21 Segundo Schünemann, “a norma proibitiva, como base do injusto jurídico-penal deve abarcar todos os
pressupostos da lesividade social, salvo a capacidade do autor de com portar-se conform e a norma, cuja
exclusão do mandato normativo se deve a razões lógicas, já que a capacidade de cumprimento só pode for-
mular-se e examinar-se tomando como referência uma norma que está desvinculada daquele, já que se, ao
contrário, a capacidade de cumprimento se formula como pressuposto da norma proibitiva, a negação
desta norma faria desaparecer aquela, porque acerca duma norma inexistente não cabe imaginar nem
constatar capacidade de cumprimento algum. Portanto, a diferenciação sistemática entre poder atuar de
outra maneira e a lesividade social resulta necessária e ostenta pleno sentido...” (La función..., in
Fundamentos, cit., p. 225).
22 Comparem-se, a propósito, alguns conceitos de culpabilidade: “reprochabilidade de um fazer ou de um
omitir antijuridicamente desaprovado, ou, mais brevemente, é um reproche fundado sobre o autor”
(Maurach, D erecho penal, cit., p. 582); “possibilidade de conhecer a exigência do dever e de comportar-
se de acordo com ele, vale dizer, é a possibilidade de uma decisão responsável” (Stratenwerth, D erecho
penal, cit., p. 71); “culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade” (Jescheck, Tratado , cit., p.
364); “é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante, num comportamento anti­
jurídico” (Jakobs, D erecho penal , cit., p. 566); “atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico,
podendo atuar de modo diverso, quer dizer, conforme o direito” (Munoz Conde, Teoria gerai d o delito,
trad. Juarez Tavares e Régis Prado, Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1988, p. 125); “culpabilidade é
exigibilidade” (Silva Sánchez, Aproximación, cit., p. 413).
23 Nisso, aliás, reside, conforme Maurach, a distinção entre antijuridicidade e culpabilidade: a primeira é um
juízo sobre o fato; a segunda, um juízo sobre o autor (D erecho penal, cit., p . 418-419).
24 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 162.
^ A idéia de exigibilidade provém de Henkel, que pôs de manifesto que a inexigibilidade é critério regula-
tivo jurídico geral, dividindo-a em inexigibilidade geral e individual: a primeira excluiria a antijuridicida­
de; a segunda, a culpabilidade (cf. Luzón Pena, Curso, cit., p. 649).
Paulo Queiroz

Por isso é que, conforme a doutrina, são elementos da culpabilidade: a impu­


tabilidade ou capacidade de culpabilidade, o conhecimento da antijuridicidade do
fato praticado, a exigibilidade de conduta diversa. Logo, excluem-na: a inimputa-
bilidade (em razão de alienação mental ou menoridade), o erro de proibição, a coa­
ção moral irresistível, a obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal
etc. Claro é o fundamento dessa exclusão de culpabilidade: em todas essas hipóte­
ses não se pode exigir do autor do ilícito um comportamento conforme a lei, dada
a sua impossibilidade ou falta de razoabilidade de semelhante exigência, já que não
pode o legislador ou o juiz pretender, do destinatário das normas, atos de heroís­
mo, pois a lei não se dirige a heróis ou santos.26 Mais: se função da norma é dissua­
dir comportamentos lesivos de bens jurídicos, em tais casos a pena carece de capa­
cidade dissuasiva, sendo de todo ineficaz.
Pois bem, essa a tese aqui defendida: a exigibilidade de um'a conduta diversa
(conforme o direito) não é uma análise posterior nem estranha à verificação do
injusto penal, nem é exclusividade da (categoria dogmática) culpabilidade. E algo
contemporâneo da intervenção jurídico-penal mesma, por ser um corolário lógico
da natureza instrumental (ou funcional ou preventiva) do direito penal. Mais
ainda: é ela (a exigibilidade, em face da norm al motivabilidade) que determina, em
última análise, a atipicidade do fato (mas não só ela, pois contam, também, crité­
rios de conveniência político-criminal) e a justificação do comportamento (refiro-
me às causas de exclusão de ilicitude). Conclusão: a culpabilidade é o pressuposto
lógico de aplicabilidade das normas jurídico-penais que, como tal, perseguem a
prevenção - geral ou especial - de comportamentos socialmente lesivos, não cons­
tituindo uma categoria autônoma da teoria do delito. A idéia, aliás, de exigibilida­
de atravessa o ordenamento jurídico, e não apenas o ordenamento jurídico-penal,
constituindo um princípio regular e informador de todo o ordenamento jurídico.27
Com efeito, se função do direito penal é motivar comportamentos (função
motivadora) no sentido do comando normativo, isto é, se é missão da norma que
seus destinatários ajam de forma a não as violar, matando alguém, estuprando, fur­
tando etc. (prevenção geral negativa-subsidiária28), segue-se que semelhante tare­
fa somente pode ser dirigida àqueles que se achem em condições físicas, psíquicas,
culturais, de entender tais normas e de poder agir segundo a pretensão do legisla­
dor que as editou.
Significa dizer, noutras palavras, que as normas penais não estão dirigidas a
quem não esteja em condições de respeitá-las, seja porque carecem de discemimen-

26 Como afirma Munoz Conde, “o direito não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda normá
jurídica tem um âmbito de exigência, fora do qual não pode exigir responsabilidade alguma” (Curso, cit.,
p. 132).
27 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 162.
28 Apesar de adotar semelhante perspectiva, essencialmente nada muda, para esse efeito, se se entender pre­
venção como prevenção positiva.
D ireito Penal - Parte G eral

to (assim, os incapazes), seja porque atuam sob erro de proibição, seja porque este­
jam sob coação moral irresistível, seja, enfim, porque atuem sob o amparo de quais­
quer das causas de exclusão de culpabilidade, visto que, como assinala Mufioz
Conde, a comunicação entre o indivíduo e os mandamentos da norma só pode
ocorrer se o indivíduo tem capacidade para se sentir motivado pela norma, conhe­
ce seu conteúdo ou se encontra numa situação na qual não pode ser regido, sem
grandes esforços, por ela.29 Em conclusão: as normas penais só podem ter logica­
mente como destinatário quem se encontre em condições de optar entre acatá-las
ou violá-las, já que, como afirma Jescheck, a culpabilidade tem como pressuposto
lógico a liberdade de decisão do homem.30
Mas - e é isso que se quer destacar - é justamente por essa mesmíssima razão
que atos praticados sob, por exemplo, hipnose (ausência de conduta), ou sem dolo
ou culpa (comportamento atípico), em legítima defesa (ação conforme o direito),
ou sob coação moral irresistível (conduta não culpável), conduzem ao mesmo
resultado: uma sentença penal absolutória. Logo, embora possam ter significado
distinto, têm o mesmo tratamento político-criminal. É que em todos esses casos a
norma penal carece do poder de motivar, não sendo exigível, de parte do autor de
um fato assim praticado, uma atitude diversa ou conforme o direito, dada a impos­
sibilidade física ou psíquica do seu destinatário. Ou porque, ainda quando exigível,
a pena careceria de todo sentido, tendo em vista os fins (preventivos) do direito
penal, não sendo o agente merecedor de pena.
Dito mais claramente: se é atípica (segundo a doutrina hoje dominante) a ação
praticada sem dolo ou sem culpa, é porque em tal hipótese a norma carece de efi­
cácia motivadora, não sendo, por isso, exigível uma ação diversa, já que estamos
ante uma situação de caso fortuito ou força maior, vale dizer, estranha à vontade
do agente (sem pertinência subjetiva); por igual, se alguém, para não morrer, pre­
cisa matar, e o faz legitimamente {v. g., em legítima defesa ou em estado de neces­
sidade), não responde penalmente porque o Estado não pode exigir uma ação dis­
tinta, digamos, no caso de legítima defesa, que tolere sem mais a agressão, ou que,
podendo fugir, assuma, assim, uma postura de covarde etc., uma vez que não é
razoável o sacrifício do bem jurídico lesionado ou ameaçado de lesão (em relação
ao ofendido, está claro).
Parece que idêntica é a situação nas hipóteses das causas de exclusão de cul­
pabilidade. Com efeito, nos casos de coação moral irresistível, de obediência hie­
rárquica, tampouco é exigível uma atitude diversa do destinatário da norma, pelas
mesmíssimas razões já assinaladas. Conclusão: a exigibilidade de. conduta diversa
está também presente, necessariamente, na análise tanto da tipicidade quanto da
antijuridicidade. Em suma: a exigibilidade, que não é privativa da culpabilidade,
atravessa todas as categorias sistemáticas do delito.

29 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 131.


30 Tratado, cit., p. 367.
Paulo Queiroz

^°r isso é que razão assiste a Mir Puig, quando observa, a propósito do erro de 1^
bens '■^° ' nev't ^ve^ que, “se o Direito Penal se justifica pela função de proteção de •
^ta^rídicos através da motivação da norma - o que estimo necessário num í
0 social e democrático de Direito —, só se pode proibir aqueles comportamen- .<
rnotf15 Podem ser evitados pela motivação. Pois bem, para que o sujeito possa ser ,iv
rec' a^° Pe^a norma Penal que protege um bem jurídico-penal determinado, é -N
elo h- ^Ue ^'t0 sujeito possa saber que se encontra frente a um tal bem protegido : |
ado lre't0'
Pj 0 suje^Co não pode saber que sua ação irá lesionar um bem ampa-
Pelo Direito, como poderá sentir-se motivado a evitar dita ação pela norma *’
^ndcj se não pode ser motivado por ela? E se a norma não pode motivá-lo, não faz
roib'°~^Ue ° Pretenda Pr°ibindo o fato”, razão pela qual concluirá que “o erro de .
ao excluirá o terceiro e último nível necessário para que o dólo seja o dolus f;
3] ,
Semelhante argumento, no entanto, é plenamente válido para toda e qual- í
^ ^ s a de exclusão de culpabilidade, e não somente para o erro de proibição.32, S;
.. ao por outra razão uma causa de exclusão de culpabilidade pode vir a ser con- ‘;
3 eventualmente como excludente da tipicidade sem produzir outra conse- ; „
^nafj3 Senao de or^em sistemática (v. g . , dolo e culpa, que com o advento da dou-
, ^alista passaram a fazer parte da tipicidade, saindo da culpabilidade), o mesmo |Ü
P° «o ocorrer com as causas de justificação, como, por exemplo, com o consenti-; !
. «o ofendido, que, segundo Roxin,33 constitui causa de exclusão de tipicidade,
[ dor ilicitude- c°nforme a doutrina tradicional. Nada impede ainda que o legis- í;]
3 tl^nsforme uma causa de exclusão de culpabilidade em causa de justificação, já
fitllelhante distinção atende em última instância a razões político-criminais. ü
^ distinção entre umas e outras não preexiste à interpretação, mas é dela resul- -;4
0 . '.^Uvo pelo qual o mesmo comportamento ora pode considerado excludente de
^q ora de ilicitude, ora de culpabilidade, ora contrário ao direito.
( . r^> se assim é, resulta que a culpabilidade é, como assinalado, o pressuposto
1°S' dç efetividade (aplicabilidade) das normas jurídico-penais que se prestam à ,
Pre ^Çlo geral e especial de comportamentos socialmente lesivos e que, como tal,
na análise das várias categorias dogmáticas (tipicidade, antijuridicida-
Pabilidade), não constituindo, portanto, categoria autônoma da teoria do
de»0-Afinai como observa García-Pablos, um direito penal que pretenda exigir í
J I mSabilidades Por fatos que não dependam em absoluto da vontade do indiví-
U0 6íece ser qualificado de arbitrário e disfuncional, porque precisamente a
P jyj ece de poder motivador, e o castigo perderia toda sua justificação.34
de(legít^ ^SS° n^° ^uer d*zer que as chamadas causas de exclusão de antijuridicida-
l*tia defesa, estado de necessidade) signifiquem o mesmo que as denomina-

32 Hesse s° Pena^<c >t-. P- 568-569.


33 Perec t erit^ 0, Schünemann, La función..., in Fundamentos, cit., p. 224-225.
34 9erec i ° P en a L c it-> P- 509 e s. ?
° penai, cit., p. 287. *
D ireito Penal - P a n e G eral

das causas de exclusão de culpabilidade (coação moral irresistível etc.), já que têm,
como dito antes, valor distinto, embora político-criminalmente se equiparem. De
fato, a distinção entre umas e outras radica em que as primeiras, por constituírem
c o n c e ito s do direito em geral, e não apenas do direito penal em particular, valem
para todo o ordenamento jurídico, motivo pelo qual a sentença penal como regra
faz coisa julgada no cível,35 porque constituem conceitos (ou valorações) gerais do
direito. Já as causas de exclusão de culpabilidade - conceitos jurídico-penais - só
valem para o direito penal (a sentença penal não faz coisa julgada no cível, assim,
v. g ., se reconhece a coação moral irresistível). Podemos assim dizer que as primei­
ras constituem causas gerais de justificação (válidas para todo o direito); as segun­
das, causas especiais de justificação (válidas em princípio só para o direito penal).36
Além disso, as primeiras (causas de exclusão de antijuridicidade) encerram uma
valoração eminentemente - mas não exclusivamente - objetiva37 ao passo que as
segundas (causas de exclusão de culpabilidade) resultam duma aferição essencial­
mente subjetiva.
De todo o exposto, pode-se concluir nos seguintes termos: o ato de tipificar
uma conduta como criminosa (isto é, a opção política por criminalizar) já parte do
pressuposto da exigibilidade da conduta conforme a norma, razão pela qual em
todos os momentos de verificação do injusto penal impõe-se indagar sobre tal cir­
cunstância. Logo, forçoso é reconhecer que as várias categorias dogmáticas carecem
de autonomia, já que não passam de “momentos” ou “níveis” ou “graus” de aferição
do caráter criminoso do fato. E se assim é, a tipicidade (total) compreende, num sis­
tema funcional: a) a realização dos elementos do tipo (positivos, negativos e nor­
mativos); b) a ausência de causas de justificação; e c) a ausência de causas de exclu­
são de culpabilidade. De modo que se poderia, reformulando a teoria dos elemen­
tos negativos do tipo, acrescentar esse terceiro elemento (letra c), ou seja, o tipo
total também compreende a ausência de causas de exclusão da culpabilidade.
Mas como justificar, num sistema funcional, que o direito penal tenha inim-
putáveis como destinatários se não podem compreender a mensagem normativa e
atuar segundo seu comando (não matar, não roubar etc.)? Basicamente duas são as
razões político-criminais que justificariam semelhante intervenção: prevenção

35 Código de Processo Penal, art. 65: “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o
ato praticado em legítima defesa, em estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal e no
exercício regular de direito”.
36 Conforme Silva Sánchez, que chama as causas de exclusão dé culpabilidade de “situação de justificação
incompleta ”, “...a diferença entre a justificação e a exculpação é de grau e que, em teoria, o legislador
poderia converter uma causa de exculpação em causa de justificação” ( Aproxim ación , cit., p. 414).
37 Basta pensar, por exemplo, que não se reconhece a legítima defesa se, embora presentes os requisitos obje­
tivos, houver sido motivada por vingança. Como observa Juarez Tavares, a adoção de elementos subjeti­
vos de justificação significa, simplesmente, que o autor só será acobertado ou só se beneficiará, por exem­
plo, da legítima defesa se também, ao lado dos pressupostos objetivos, tiver atuado com a vontade de se
defender; no estado de necessidade, se agir com vontade de salvar o bem jurídico ameaçado etc. ( Teorias
do delito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 69-70).
Paulo Queiroz

geral de possíveis reações informais arbitrárias contra o inimputável e prevenção


especial, é dizer, impedir que volte a delinqüir. Só assim se pode compreender a
resposta penal no particular. Naturalmente que, à semelhança do que se passa com
os menores de dezoito anos, tais pessoas poderiam igualmente ficar sujeitas à legis­
lação especial.
Mas não é exato afirmar que a culpabilidade não desempenhe qualquer papel ‘
relativamente ao inimputáveis, ao argumento de que a pena pressupõe culpabilida­
de, e a medida de segurança, periculosidade. E que ilegítima será a aplicação de
medida de segurança, como sanção penal que é, sempre que concorrerem em favor
do inimputável causas excludentes de culpabilidade, como erro de proibição inevi­
tável, coação moral irresistível etc. Numa perspectiva garantista, não há distinção
substancial, quanto aos pressupostos, entre pena e medida de segúrança, uma vez
que todos os princípios e garantias constitucionais-penais devem socorrer o inim­
putável, que só ficará sujeito a essa sanção penal específica quando for autor de um ~
fato comprovadamente típico, ilícito, culpável e punível. Se fica sujeito à medida
de segurança, e não à pena, é porque assim recomenda o princípio da proporciona­
lidade, pois sentido algum faria castigá-lo ou enclausurá-los numa penitenciária.38 ;l
Com recusar autonomia às várias categorias sistemáticas (tipicidade, antijuri- >■..
dicidade, culpabilidade), chegamos, assim, a uma configuração monista-funcional
da teoria do delito, sem pretende equipará-las ou confundi-las.
Apesar disso, por motivos didáticos, com freqüência utilizar-se-ão aqui as
expressões tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade no sentido tradicional. ;

38 Uma formulação semelhante encontra-se em Georg Freund, Strafrecht Allgem einer Teil, Heidelberg, '
1998, p. 112-117: “Visto desse modo, não há necessidade de um princípio geral e autônomo de exclusão
de culpabilidade. Os casos concretos devem ser afastados já no campo da tipicidade ou então ser solucio­
nados pelo princípio geral da justificação (...) se, considerada a proteção in concreto de interesses maiores'
próprios ou de terceiros, não for possível proferir um juízo de reprovação de determinada conduta, não -
estará configurada a infração à norma de conduta como requisito essencial da incidência de pena (...) a ;
idéia da inexigibilidade de conduta diversa (lícita), freqüentemente discutida apenas sob o aspecto da cul­
pabilidade, já adquire importância também para a questão da tipicidade ou, ainda, para a questão da jus- '
tificação: uma norma jurídica que exige o inexigível não possui legitimação jurídica. Caso se tome aquela
idéia como princípio regulativo, como, por exemplo, para a delimitação adequada do alcance dos ‘deveres
de cuidado e ação’ nos delitos culposos e omissivos, resta visível que aqui não se trata de mero problema
de culpa em relação a uma conduta ilícita típica, mas de um problema de delimitação adequada da tipici­
dade (...). Se uma pessoa é inimputável (por exemplo, a criança, na forma do art. 19 do Código Penal, ou
em conseqüência de doença, conforme o art. 2 0 ) ou se, por outra razão, está afastada a responsabilidade
do indivíduo pelos próprios atos (exemplo: erro inevitável de proibição, art. 17, Ia frase), não ocorre a >
infração da norma de conduta, que, por motivos axiológicos e de conveniência, é o requisito para a puni­
ção como conseqüência jurídica. A conduta do inimputável nem sequer representa perigo de dano para a *
validade da norma. Em momento algum o indivíduo fica aquém do que se pode exigir dele de direito. Ele
não pratica qualquer injusto pessoal; seu comportamento não viola as normas de conduta e, nesse senti­
do, não é ilícito. Por isso, é irrelevante para a punição como conseqüência jurídica se alguém age com jus- ^
tificação ou ‘meramente’ sem cuipa (...) a exclusão de tipicidade, a incidência de justificação, a exclusão ‘
da culpabilidade e a escusa têm uma conseqüência comum: exclui-se a punição, de tal sorte que a classi- '
ficação, freqüentemente controvertida, não tem relevância”.
D ire ito Penal - Parte Gera)

Capítulo IV
Classificação dos Crimes

Estrutura do tipo: classe de tipos

1. Crimes dolosos, culposos e preterdolosos

De acordo com o Código (art. 18), há crime doloso quando o agente quer o
resultado (dolo direto) ou assume o risco de produzi-lo (dolo eventual); culposo,
quando der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia; e preter­
dolosos ou pretenrintencionais são os crimes cujo resultado final vai além da inten­
ção do agente, havendo dolo quanto à ação, e culpa quanto ao resultado (v. g., agri­
de a vítima levemente, sem pretender causar-lhe maior dano, mas essa vem a óbito
por ser fisicamente muito frágil).

2. Crimes materiais, formais e de mera conduta

São crimes materiais (ou de resultado) aqueles em que o tipo penal descreve um
comportamento cuja consumação - entendida como completa realização dos ele­
mentos do tipo - somente ocorre com a produção do resultado nele previsto. Assim,
por exemplo, o homicídio (CP, art. 121) e o aborto (art. 124), em que a consumação
se dá com a morte da pessoa ou do feto, não bastando a prática de atos de execução,
de sorte que, inocorrendo o resultado, o crime será simplesmente tentado.
Crimes form ais (de consumação antecipada) são aqueles cuja consumação
ocorre com a realização da ação, pouco importando o resultado, que constitui, em
conseqüência, mero exaurimento de um crime já previamente consumado. Assim,
por exemplo, a concussão (CP, art. 316) ou a extorsão mediante seqüestro (CP, art.
159), cuja consumação se dá, respectivamente, com o fato de o funcionário público
exigir (ação) vantagem indevida e de seqüestrar pessoa com o fim de obter qualquer
vantagem, independentemente do sucesso da ação (resultado). Por conseguinte, a
eventual obtenção da vantagem constituirá mero exaurimento de um crime já ple­
namente consumado, isto é, consumado com a só exigência da vantagem indevida.
Por fim, nos chamados crim es d e m era conduta (crimes sem resultado), o tipo
só descreve uma ação (positiva ou negativa), sem aludir a qualquer resultado, de
niodo que a consumação se dá com a prática da ação ou omissão. Assim, o entrar
ou perm anecer, clandestina ou astuciosamente, em casa alheia (CP, art. 150), o
Paulo Q ueiroz

devassar correspondência alheia (CP, art. 151), o praticar ato ob scen o (CP, art. 233)'
etc., em que a só realização de tais ações basta para consumar o crime. \
Note-se que semelhante classificação decorre de conveniência político-cri-1
minai, de modo que, se o legislador quisesse transformar um crime material em H
formal ou um de mera conduta em formal ou material, bastaria alterar a redação^
do tipo. Assim, a concussão tornar-se-ia um crime material se, em vez de se decla- j
rar que constitui crime “exigir vantagem indevida, com o fim de obter...”, se dis- H
sesse: “obter, mediante exigência, vantagem indevida...”; igualmente, a violação-J
de domicílio, se se acrescentasse a expressão “perturbando a paz de seus morado-‘j|
res” etc. Por conseguinte, é a redação de cada tipo penal, notadamente o verbo 7-
usado na oração, que dirá se estamos diante de um crime material, formal ou de íjj
mera conduta.
O mesmo deve ser dito quanto às demais classificações referidas a seguir, pois
o critério determinante é sempre a redação de cada tipo penal. ‘^

3. Crimes comissivos, omissivos próprios e omissivos impróprios

Comissivos são os crimes (é a regra) cujos tipos descrevem um comportamen-J


to positivo, consistindo, assim, num fazer o que a lei proíbe (matar, furtar etc.). Nos
omissivos próprios (é a exceção), contrariamente, o tipo alude a uma abstenção de]s
conduta (conduta negativa), um não fazer, ou seja, o agente deixa de praticar aqui-|íj
lo que a lei determina (v. g., omissão de socorro - CP, art. 135; e omissão de noti- *
ficação de doença - CP, art. 269). Finalmente, os omissivos im próprios (ou comis
sivos p o r omissão) são em verdade crimes comissivos, mas realizados (excepcional- >
mente) na forma omissiva, como no caso da mãe que, querendo matar o próprio dj
filho, deixa de amamentá-lo ou alimentá-lo, situação em que responderá por homi­
cídio, isto é, por crime comissivo por omissão (ou impropriamente omissivo, já que
propriamente é um crime comissivo - matar alguém).
Releva notar que, para a caracterização de um crime omissivo impróprio, é
necessário que, além de um dever legal de agir, o agente tenha o dever de evitar o Ã*
resultado (CP, art. 13, § 29), por se encontrar na condição legal de garante. Assim,
por exemplo, se A, salva-vidas, deixa de socorrer uma criança, que se afoga, respon­
derá por homicídio, por ter o dever legal de evitar o resultado morte; se, porém,
não é salva-vidas (não é garante), nem tem para com a criança o dever legal de cui­
dado, proteção ou vigilância (v. g„ é um estranho que passeava pela pràia), respon- w
derá apenas por omissão de socorro, por não ter o dever legal de evitar o resultado ^
morte, mas o simples dever legal de agir. ig
A distinção entre omissão própria e imprópria reside nisso, portanto: nos cri- “
mes omissivos próprios o agente responde pela só omissão; nos omissivos impró­
prios o agente/garante responde pelo resultado, tratando-se de uma omissão quali- j|j
ficada e, pois, mais gravemente punida. 5
D ireito Penal - Parte G eral

4. Crimes comuns e especiais

Crime com um (é a regra) é aquele em que o tipo não exige condição especial
a lg u m a do sujeito ativo, podendo ser praticado por qualquer pessoa, a exemplo do
homicídio, do furto ou do estelionato. Já no especial ou próprio (é a exceção), dife­
rentemente, o tipo faz referência a uma qualidade especial do agente, só podendo
ser praticado por algumas pessoas em particular, a exemplo do peculato, da concus­
são (CP, arts. 312 e 316) e do patrocínio infiel (art. 355), que só podem ser pratica­
dos, respectivamente, por funcionário público e advogado.
A doutrina refere ainda como espécie de crime especial, os crimes d e m ão p r ó ­
pria, que são aqueles que exigem, de parte do autor, a realização pessoal do tipo, não
se admitindo, por isso, a realização por interposta pessoa (autoria mediata), como
bigamia e falso testemunho. Ao contrário do que comumente se afirma, temos que
a participação nos delitos por mão própria é possível, visto que o partícipe coopera
na ação de outro, e, em conseqüência, não precisa ter a qualidade de autor.1

5. Crimes principais e acessórios

Principais (é a regra) são os crimes cuja configuração não depende da ocorrên­


cia de qualquer outra infração penal (homicídio, lesão corporal, furto, estelionato),
uma vez que são criados autonomamente, sem remissão expressa ou tácita a
nenhum outro delito. A cessórios (é a exceção) ou dependentes são os que pressu­
põem necessariamente a ocorrência prévia de outro crime, de cuja existência
dependem. Assim, a receptação (CP, art. 180), que somente se caracteriza se a coisa
receptada é produto d e crim e, vale dizer, é produto de furto, roubo, peculato etc.,
de modo que, não se configurando o crime principal, não se caracterizará o crime
acessório. Fora daí, ou seja, não constituindo a infração anterior crime algum, o
delito não se perfaz, exatamente porque acessório, conforme o princípio afirmati­
vo de que o acessório segue a sorte do principal.

6. Crimes instantâneos e permanentes

Diz-se instantâneo (é a regra) o crime cuja realização se dá com o cometimen-


to da ação prevista no tipo, independentemente do fator temporal, ou seja, é o que
se realiza instantaneamente com a prática da conduta típica (matar, furtar, roubar)
a título consumado ou tentado. Já o p erm an en te (é a exceção) é o delito cuja con­
sumação, por ser passível de diferimento, se protrai no tempo enquanto perdura a
vontade do agente de realizar a conduta típica, de seqüestrar, de manter em cárce-

1 Cf. M aurach, Derecho penal, cit., p. 368.


re privado etc. Portanto, enquanto nos delitos instantâneos a ofensa ao bem jurídi­
co cessa com a produção do resultado ou com a cessação da atividade criminosa, nos
permanentes a ofensa se renova no tempo, enquanto não cessa a atividade típica, e,
pois, persiste a violação ao bem jurídico de que se trate.
Fala-se ainda de crim es instantâneos d e efeitos perm anentes, quando, embo­
ra consumado o delito de forma instantânea, seus efeitos permanecem (homicídio,
estupro etc.).
Não se deve confundir, porém, crime permanente com crime continuado, pois
na continuação delitiva (CP, art. 71) há em verdade vários crimes praticados em
concurso material (v. g., vários furtos), mas a lei, por motivo de política criminal,
os trata como se constituíssem um único crime (concurso formal), embora com ^
aumento de pena. __

7. Crimes simples e compostos Jl

Crime sim ples é aquele em que o tipo penal descreve uma única lesão jurídi- jj.
ca (homicídio: matar alguém; lesão corporal: ofender a integridade física ou a saúde
de outrem; furto: subtrair coisa alheia móvel). Dizem-se com postos (ou complexos)
os crimes em que o tipo alude a mais de uma lesão; são crimes que resultam, enfim, ';á
da fusão de mais de um tipo penal. Exemplo: roubo (art. 157), que deriva da fusão
de furto (art. 155) + constrangimento ilegal (art. 146); latrocínio, que decorre da
fusão de rou bo + hom icídio. -i;;
A importância dessa classificação decorre sobretudo do disposto no art. 101 do -4
CP, que dispõe que, “quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do 3
tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação penal em relação >
àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do
Ministério Público”. ‘
i
8. Crimes de dano e de perigo

Crimes d e dano são aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de
um bem jurídico, de modo que a conduta somente assume relevância jurídico- ;
penal quando se verificar dano (lesão) real ou potencial (consumação ou tentativa)
ao interesse tutelado (v. g., homicídio, roubo). Já nos crim es de perigo, o legislador,
ao descrever o tipo, contenta-se com o só perigo que a ação representa para o bem
jurídico. O perigo será concreto quando a descrição do tipo aludir a um perigo ”
ocorrido (real) de lesão, devendo ser comprovado. O perigo é abstrato ou presumi- ;
do quando o legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si, independen- ]
temente de qualquer risco efetivo, isto é, a lei o presume ju re et d e jure. !
Objeção corrente aos crimes de perigo abstrato é que, ao se presumir o perigo j
prévia e abstratamente, resulta em última análise que perigo não existe, de modo
D ireito Penal - P arte G eral

que se acaba por criminalizar a simples atividade, afrontando-se o princípio de lesi­


bem assim o caráter de extrem a ratio (subsidiário) do direito penal. Por isso
v id a d e ,
há quem considere inconstitucional toda sorte de presunção legal de perigo.2 No
entanto, força é convir que nem sempre a sua adoção é inconstitucional (como já o
su ste n te i, inclusive), por ofensa ao princípio da lesividade, pois casos há em que o
perigo de lesão é de tal modo grave que a sua criminalização se justifica plenamen­
te, tal como ocorre com a falsificação de moeda, por exemplo, razão pela qual cum­
pre verificar cada caso concretamente, de modo a verificar se sua tipificação é ou
não legítima.

9. Crimes unissubjetivos e plurissubjetivos

Unissubjetivos (é a regra) são os crimes realizáveis por uma única pessoa,


podendo haver concurso (eventual) de agentes, a exemplo do homicídio, da lesão,
do roubo. Já os plurissubjetivos (ou de concurso necessário) necessariamente exi­
gem, para a sua caracterização, a intervenção de mais de uma pessoa, como o bando
ou quadrilha (CP, art. 288); pode o concurso, segundo os interesses dos concorren­
tes, ser p aralelo (bando ou quadrilha), con vergen te (bigamia) ou divergente (rixa).
Em suma: nos crimes plurisssubjetivos a participação de várias pessoas (impu-
táveis ou não) é inerente ao tipo legal de crime; nos unissubjetivos não, podendo
ser praticado por única pessoa, motivo pelo qual se mais de uma pessoa tomar parte
no delito, haverá concurso de agentes (co-autoria ou participação).

10. Crimes de ação única e de ação múltipla

De ação única é o crime cujo tipo recorre a um único verbo (matar, subtrair,
seqüestrar); de ação múltipla, quando apela a vários verbos incriminadores, como
na receptação (adquirir, receber, transportar) ou no tráfico de drogas (importar,
exportar, remeter etc.), hipótese em que, havendo a realização de mais de uma ação
(v. g., adquirir droga, transportá-la, vendê-la), configura-se um único delito.
Cumpre notar que os crimes de múltipla ação dificilmente admitem a forma
tentada, visto que, embora em relação a algum verbo a ação possa ser considerada
tentada, o crime em geral é consumado, em face da realização plena de outros ver­
bos típicos. Assim, por exemplo, o agente que é preso no aeroporto com droga já
acondicionada no avião para exportá-la responde por crime consumado, haja vista
que, não obstante a ação de exportar seja meramente tentada, ele já havia incorri-

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes, A contravenção do art. 32 da Lei de Contravenções é de perigo abstra­
to ou concreto?, Revista do IBCCrim, ano 2, n. 8 , out./dez. 1994; e A presunção de violência nos crimes
sexuais, Revista d o IBCCrim , ano 4, n. 16, out./dez. 1996.
Paulo Queiroz

do noutros verbos típicos (conduzir, trazer consigo, guardar etc.); afinal, o crime é!
“traficar droga”, formado de múltiplas ações, e não “exportar droga” simplesmente.'
Se se entender que existem vários crimes, violar-se-á o princípio da legalidade e ne%
bis in idem. ‘S

11. Crimes habituais

Dizem-se habituais os crimes cuja realização típica necessariamente pressupõe!


a prática de atos sucessivos, de modo que cada ato isoladamente considerado cons­
titui um indiferente penal, ou seja, são delitos que reclamam habitualidade, por tra-3
duzirem em geral um modo de vida. Assim, casa de prostituição (art. 229), exerci-
cio ilegal da medicina (art. 282), curandeirismo (art. 284), quadrilha ou bando (art.j£-
288) etc.
Em geral, a doutrina entende que tais crimes, por exigirem habitualidade, não
admitem a forma tentada, mas consumada apenas.
D ireito Penal - Parte G eral

Capítulo V
Relação de Causalidade

1. Introdução

Para se fazer uma imputação criminosa a alguém, é preciso previamente apu­


rar se existe relação de causalidade entre a ação e o resultado, pois, se não houver,
ficará prejudicada a análise de tudo o mais. A causalidade constitui, assim, um ele­
mento objetivo prévio dos tipos (delitos) de resultado; uma questão de imputação
objetiva do resultado, portanto.
E fixar critérios precisos de delimitação da causalidade é fundamental para evi­
tar que o agente responda por resultados de exclusiva responsabilidade de terceiro
ou puramente causais, estranhos, em todo caso, à sua vontade. Assim, por exemplo,
se A atira contra B, com intenção de matar, atingindo-o em região não letal (v. g„ o
braço), o qual, no entanto, vem a falecer em virtude de “erro médico”, não pode A
responder por homicídio consumado, mas tentado apenas, pois do contrário acaba­
ria por se lhe responsabilizar por ato de terceiro, contrariando os princípios da pro­
porcionalidade, pessoalidade da pena e também da legalidade, uma vez que não se
pode dizer que A m atou B nos exatos termos do art. 121 do Código Penal.

2. Teoria da equivalência dos antecedentes causais ou da “conditio


sine qua non”

Da relação causai cuida o art. 13, caput, do Código Penal, dispondo que “o
resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe
deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria
ocorrido”. O Código adotou, portanto, a teoria da equivalência dos antecedentes
causais ou teoria da conditio sine qua non (condição sem a qual não),1 embora de
forma mitigada, uma vez que o § l s do referido artigo a relativiza consideravelmen­
te, teoria cuja formulação se deve a Julius Glaser (1858) e, em especial, a Maximilian

A despeito disso, o Código, como nota Tavares, tendo em vista a questão das concausas supervenientes e
com o propósito de limitar o regresso infinito do processo causai, procurou dispor acerca da interrupção
da causalidade, por meio de uma fórmula que praticamente desnatura a teoria da condição por ela adota­
da: “a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produ­
ziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou” (art. 13, § 1Q) ( Teoria do
injvsco penal , cit., p. 216-217).
Paulo Queiroz

von Buri (1873), magistrado do Supremo Tribunal do R eich , e segundo a qual’


causa é toda e qualquer condição que concorra para a produção do resultado, não
se distinguindo entre causa e concausa ou entre causa e condição, já que os ante­
cedentes causais se eqüivalem (daí o nome: teoria da equivalência dos anteceden­
tes causais).
Para essa teoria, a questão de quando uma conduta pode ser considerada como
causa de um evento há de ser resolvida por meio de uma fórmula heurística de
caráter hipotético: a fórmula da conditio sine qua non,2 é dizer, para saber se deter­
minada condição pode ser considerada causa do resultado, dever-se-á utilizar o
chamado método (ou procedimento) h ipotético de elim inação, segundo o qual
quando, eliminada mentalmente a causa, eliminar-se o efeito, haverá nexo causai;
caso contrário, isto é, se, cessada a causa, não cessar o efeito, a relação causai não
estará configurada, e, em conseqüência, o resultado não será imputado ao agente,
porque tal causa não constituirá condição sem a qual o resultado não teria ocorri­
do (conditio sine qua non).
Assim, por exemplo, se A atira contra B, que morre em razão dos ferimentos *
sofridos, o nexo causai é indiscutível, pois, suprimindo-se, hipoteticamente, os
tiros, concluiremos que o resultado não teria ocorrido (B estaria vivo). No entanto,
se se provar, v. g., que B já estava morto minutos antes, em razão de um ataque car­
díaco, é evidente que o liame causai não se configuraria e a hipótese seria a de
crime impossível (CP, art. 17), visto que não existiria causalidade entre os disparos
e a morte (eliminada a suposta causa, ainda assim o efeito subsistirá). Enfim, A não
causou a morte de B.
Para bem compreender a teoria em questão, deve-se considerar que o resulta­
do não teria ocorrido com o ocorreu, isto é, do m odo e no tem po em que ocorreu.
Por isso é que o médico responderá por homicídio consumado (eutanásia) se desli­
gar os aparelhos e assim antecipar a morte do paciente, ainda quando se prove que
este morreria inevitavelmente.

2.1. Alcance

Semelhante questionamento, sobre a existência ou não de nexo causai, tem


importância apenas para os crimes materiais (de ação e resultado), visto que, em se
tratando de crimes formais (de consumação antecipada), de mera conduta (sem
resultado) e omissivos próprios (que não dependem de resultado), o resultado
(naturalístico) é irrelevante, pois a consumação dá-se com a só prática da ação
incriminada, antecipadamente. A eventual produção do resultado será exaurimen-
to de um crime já consumado.

M ir Puig, D erecho penal, cit., p. 219.


D ireito Penal - P arte G eral

2.2. Interrupção do processo causai

2.2.1. Causas absoluta e relativamente independentes

O Código (art. 13, § l e) dispõe que “a superveniência de causa relativamente


independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos
anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou”.
O nexo causai pode ser interrompido pela superveniência de causa absoluta­
mente independente ou pela superveniência de causa relativamente independente,
hipóteses em que o resultado não será em princípio imputado ao agente, haja vista
que, num e noutro caso, estabelece-se, a partir da causa superveniente, um novo
curso causai, desde que tenha produzido o resultado por si só. Assim, por exemplo
(exemplo de causa absolutamente independente), se A atira contra B, que em segui­
da morre em razão de um atropelamento por C, que invade a sua casa, em razão
dessa segunda causa, exclusivamente, não se poderá imputar a A o resultado (morte
de B), devendo, em conseqüência, responder tão-só por tentativa'de homicídio, em
razão do quanto dispõe o caput do art. 13. E que a causa superveniente se incum­
biu sozinha do resultado, e, não tendo ligação alguma com a ação ou omissão, esta
passa a ser, no tocante ao resultado, uma “não causa”.3 Além disso, em tal hipótese
o resultado teria ocorrido, apesar da atuação criminosa do agente.
O mesmo ocorreria se A (exemplo de causa relativamente independente),
depois de sofrer um golpe de faca, viesse a morrer no caminho para o hospital, em
razão, unicamente, de uma colisão da ambulância com outro veículo. Tais resulta­
dos não podem ser imputados ao agente pela simples razão de que não foi ele quem
causou a morte de A, isto é, seu comportamento não foi a causa determinante da
morte. Não quer isso significar, porém, que a ação seja impunível, mas que simples­
mente o resultado final (morte) não é imputável ao seu autor, devendo este respon­
der por crime tentado.
O fundamental é verificar se a nova causa interrompeu ou não o curso causai,
vale dizer, se ela produziu por si só, isto é, exclusivamente, o resultado, pois se real­
mente houve interrupção do nexo causai, o resultado não poderá ser imputado ao
agente, pela lógica razão de que, com a nova causa, estabeleceram-se dois cursos
causais distintos e autônomos. Caso contrário, se as causas anterior e posterior con­
correm (= causam) para o resultado, este será imputado a quem o causou, mesmo
porque o Código não faz distinção entre causa e concausa (equivalência dos ante­
cedentes causais).

3 H ungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 67.


Paulo Queiroz

2.2.2. Causas absoluta e relativamente independentes: irrelevância da


distinção

Como se vê, o Código distingue causas absoluta e relativamente independen­


tes. Causas absolutamente independentes são aquelas que, sob qualquer considera­
ção, situam-se fora do processo causai em que se insere a ação do agente, de modo
que se pode dizer que, mesmo que o agente se esforçasse, não poderia intervir nos
seus efeitos; já as relativamente independentes são as que, embora se insiram no
processo causai posto em marcha pelo agente, produzem o resultado, sem contar
com a interferência de sua ação no momento em que esse resultado se verifica.4
Dito mais claramente: causas absolutamente independentes são as qoe não mantêm
entre si nenhuma relação de interdependência; relativamente independentes são as
que interdependem umas das outras, de sorte que uma é inimaginável sem a outra.
Pois bem, a doutrina tem afirmado, com base na forma como se acha discipli­
nada a matéria, que as causas absolutamente independentes estariam afastadas pela
cabeça do artigo, enquanto as relativamente independentes são objeto do seu § l s,
quando então importará saber se a ação produziu o resultado por si só. Por isso, diz-
se, a superveniência de causa absolutamente independente sempre interrompe o
nexo causai, devendo o autor responder tão-só pelos atos anteriores, com base no
caput do art. 13, não se aplicando o seu § l e, o qual teria a ver, exclusivamente, com
a superveniência de causa relativamente independente.
Mas a questão não é, segundo pensamos, tão simples assim. E em verdade é
irrelevante saber se a causa superveniente é absoluta ou relativamente indepen­
dente, pois em ambos os casos pode não haver interrupção do curso causai, caben-'
do, portanto, a imputação do resultado ao agente. Imagine-se, por exemplo (exem­
plo de causas absolutamente independentes), que, embora a vítima tenha sido atin­
gida mortalmente por um raio, fique provado que a morte aconteceu em razão do
concurso de um anterior esfaqueamento e do próprio raio. Em tal caso, não se
poderá imputar o resultado ao agente, como afirma a doutrina? Pensamos que, ape­
sar de a segunda causa (o raio) constituir causa absolutamente independente, já que
nenhuma relação tem com a anterior, o seu autor responderá por homicídio con­
sumado (imputação do resultado) se agiu com animus necandi. E por que isso?
Porque, eliminando-se o golpe de faca, a morte não teria ocorrido, isto é, as lesões
produzidas pela descarga elétrica não constituíram uma causa sem a qual o resulta­
do não teria ocorrido (não é con d id o sine qua non), já que nem a facada nem o raio,
isoladamente, seriam suficientes para matar. De todo modo, se houver fundada
dúvida a esse respeito, é cabível a aplicação do princípio in dubio p ro reo.

4 Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 217.


D ireito Pen al - Parte G eral

A questão decisiva, em qualquer caso, é saber, portanto, se a nova causa -


pouco importa se absoluta ou relativamente independente - produziu, por si só, o
resultado, pois só assim é que se dará autêntica con ditio sine qua non.

2.2.3. Causa su perven iente relativ am en te in d ep en d ente

Como vimos, causa relativamente independente é a que, funcionando em face


da conduta anterior, conduz como se por si só tivesse produzido o resultado.5 As­
sim, no exemplo da vítima que morre ao ser conduzida para o hospital onde seria
tratada de uma lesão anterior, a segunda causa é só relativamente independente, já
que, não fosse o golpe de faca, ela não seria levada para o hospital, sofrendo a coli­
são que a mataria. Esclarecido que se trata de causa relativamente independente
(hipótese em que se imputará em princípio o resultado ao seu autor), restará saber,
finalmente, se essa nova causa - superveniente - produziu, por si só, o resultado.
Se produziu o resultado, exclusivamente, o agente não responderá por ele, porque
não deu causa àquele resultado; caso contrário, o seu autor responderá pelo resul­
tado final (concausa).
Cumpre esclarecer que, não obstante o Código se refira unicamente à causa
superveniente, a interrupção também poderá ocorrer, pelas mesmas razões, sempre
que se tratar de causa preexistente ou concomitante,6 uma vez que, como já assina­
lado, é irrelevante saber o momento da causa ou se é relativa ou absolutamente
independente, mas se produziu, por si só, o resultado. Exemplo (de causa preexis­
tente): se A atira contra B, que morre, não em razão dos disparos, mas em virtude
de haver ingerido veneno horas antes, A responderá apenas por homicídio tenta­
do, já que não deu causa à morte.
Daí por que não é exato dizer, como Damásio: “vê-se que as causas preexisten­
tes e concomitantes, quando relativamente independentes, não excluem o resulta­
do’^ Com efeito, ainda que se trate de causa preexistente ou concomitante, se ela
produziu, exclusivamente, o resultado, ao contrário do que afirma Damásio, não se
poderá imputá-la ao agente, simplesmente porque a sua conduta não foi condição
sem a qual não se produziria o resultado, já que este teria ocorrido ainda que ele
nada fizesse. Assim, para usar exemplo desse autor, se A golpeia B, hemofílico, e
este vem a falecer, em razão, unicamente, de sua particular condição fisiológica,

5 Damásio, Direito penal, cit., p. 257.


6 De modo semelhante, Paulo José da Costa Júnior: “Parece-nos, entretanto, mais coerente a conclusão
seguinte: embora o § Io do art. 13 se refira somente às causas supervenientes, acreditamos que também as
antecedentes ou intercorrentes, que tenham sido por si sós suficientes (em sentido relativo) para produ­
zir o evento, prestam-se à exclusão do vínculo causai penalmente relevante (...). Conseqüentemente, teria
sido preferível que a nova lei penal houvesse contemplado, no § 1“ do art. 13, a par da superveniência, a
preexistência ou a intercorrência de causa relativamente independente. Ou, então, que se abstivesse de
vez de regular a relação de causalidade” (Nexo causai, São Paulo: M alheiros, 1996, p. 108-109).
^ Direito penal, cit., p. 257.
Paulo Queiroz

caso a lesão produzida pelo golpe fosse leve ou em região não fatal (causa preexisten­
te). Entretanto, se a morte sobreveio em razão do agravamento do quadro hemofíli­
co causado pelo golpe (hipótese mais provável), evidente que A responderá pela
morte. Por conseguinte, é também irrelevante, para efeito de estabelecer o nexo cau­
sai, se a hipótese é de causa preexistente ou concomitante ou mesmo superveniente.
O importante não é o tempo da causa, mas a sua eficiência no caso concreto.
Para além disso, a questão fundamental reside sempre em dar ao caso concre­
to uma solução justa e conforme com os princípios penais.

3. Crítica à teoria da equivalência dos antecedentes causais

Apesar de adotada pelo Código Penal brasileiro e de ter sido considerada um


“meio infalível de descoberta do nexo causai” (Mezger), há muito a teoria da equi­
valência tem sido duramente criticada. E com razão.
Com efeito, constitui uma tautologia afirmar que causa é toda ação sem a qual
o resultado não teria ocorrido. Porque, se, por exemplo, A dispara contra B, cau­
sando-lhe a morte, vindo a perícia a constatar, como costuma acontecer, que B
morreu em virtude dos disparos de arma de fogo, será desnecessário recorrer à teo­
ria em questão. E que a causação será comprovada com o respectivo laudo de exame
cadavérico e se imporá intuitivamente. E se eventualmente o laudo não puder, por
qualquer motivo, precisar a causa da morte, o método de eliminação não poderá
acrescentar absolutamente nada a esse respeito, pois em verdade a fórmula da
exclusão mental pressupõe aquilo que ela deveria descobrir.8 Por isso afirma Roxin
que ela não só é uma teoria inútil, como também capaz de conduzir a erros graves.9
No mesmo sentido, Jakobs entende que a fórmula é supérflua, porque o resultado
da supressão mental só pode ser determinado se se conhece de antemão se a con­
dição é causai, constituindo um círculo vicioso, porque o conceito que se pretende
definir aparece oculto no material com o qual se define.10 Enfim, a teoria da con­
ditio sine qua non não capta diretamente o nexo causai, antes o pressupõe, pois só
quando se souber que entre a causa e o resultado existe relação causai será possível
dizer que sem essa causa não se produziria a conseqüência.11
Mas, além de já pressupor logicamente a resposta a que se pretende chegar
com a sua utilização, a teoria da equivalência pode conduzir em muitos casos a uma
solução equivocada. Assim, por exemplo, nos casos de causalidade hipotética ou
alternativa. Na causalidade hipotética, em que alguém realiza um fuzilamento ilí­
cito numa guerra, sendo que, no caso de recusa, outra pessoa o teria cometido de

8 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 278.


9 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 278.
10 D erecho penal, cit., p. 227.
11 Jescheck, Tratado, cit., p. 253-254.
D ireito Penal - Parte Geral

maneira exatamente idêntica, a ação poderia ser excluída mentalmente sem que o
resultado desaparecesse. A causalidade de seu comportamento, por óbvio, não
deixa de existir; se se quisesse questioná-la, então, uma vez que tampouco o com­
portamento hipotético do segundo é causa, chegar-se-ia à absurda conclusão de que
a morte da vítima não teve causa alguma. O mesmo vale para o exemplo da causa­
lidade altenativa, em que A e B, de modo independente, adicionam veneno ao café,
mas a quantidade tanto de A como de B já for por si só suficiente para causar a
morte exatamente da mesma maneira, então se poderia eliminar a ação de qualquer
dos dois, sem que o resultado desaparecesse. Não existiria, também aqui, qualquer
causalidade para a morte ocorrida, de modo que A e B só poderiam ser punidos pelo
homicídio tentado, quando o correto seria, se as duas doses tiveram eficácia real,
considerar que A e B tenham causado a morte, devendo ambos responderem por
crime consumado.12
Por fim, em muitas situações de concurso de agentes, notadamente na “partici­
pação de menor importância” (CP, art. 29, § l s), poder-se-ia objetar, na grande maio­
ria dos casos, que não existe nexo causai, pois, suprimida essa participação, o resulta­
do teria ocorrido como ocorreu, a ensejar a absolvição pura e simples do partícipe.
Não obstante, muitos autores há que ainda a defendem, como Luzón Pena,
para quem, apesar de tudo, a fórmula hipotética da con ditio sine qua non continua
sendo um instrumento auxiliar muito útil para determinar se em concreto há ou
não relação causai nos casos duvidosos.13 Também assim Santiago Mir Puig.

4. Relação causai nos crimes omissivos

Além de reprimir comportamentos positivos, o Código pune, em caráter


excepcional, comportamentos negativos, os crimes omissivos, já que, tanto quanto
a ação, a inação pode ser também socialmente reprovável e lesiva a bem jurídico.
Como vimos, tais crimes podem ser omissivos próprios (ou puros) e omissivos
impróprios (ou comissivos por omissão); nos primeiros, a lei reprime a omissão em
si mesma (v. g., omissão de socorro); nos segundos, nos quais o agente se encontra
na condição de garante, conferindo-lhe uma especial relação de cuidado, proteção
ou vigilância, pune-se o agente por não evitar um resultado evitável, razão pela
qual a omissão imprópria ou comissão por omissão eqüivale à realização ativa de
um crime de resultado.14 Na omissão própria, há assim uma simples omissão; na
omissão imprópria, uma omissão qualificada, pois só quem se encontre na condição
de garante (ou garantidor) pode responder nesses termos, tratando-se de um crime

12 Roxin, Funcionalismo, cit., p. 278-279.


13 Curso, cit., p. 372.
14 José Ramón Serrano-Piedecasas. El delito de omisión en el Código Penal espanol. Alé Kumá, n. 23-24,
enero-agosto de 2005.
Paulo Queiroz

'6
especial, porque requer uma qualificação especial do autor. Por isso, Jescheck pre­
fere a denominação “omissão simples” e “omissão qualificada” a omissão própria e
imprópria, respectivamente.15

4.1. Crimes omissivos próprios e omissivos impróprios: distinção

Tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos omissivos impróprios, o legis­
lador pune a abstenção do comportamento do agente, que deixa de praticar uma
ação que lhe é determinada por lei. Portanto, a omissão não significa “não fazer
nada”, mas “não fazer algo determinado” (Blei), já que todos os crimes omissivos
têm em comum a omissão do dever jurídico, constituindo infrações-de normas pre-
ceptivas,16 ou, como diz Welzel, omissão não significa um mero não fazer, mas não
fazer uma ação possível subordinada ao poder final de uma pessoa concreta.17
No entanto, enquanto os omissivos próprios supõem a violação de um dever
d e agir, simplesmente, nos comissivos por omissão, o agente tem, além desse dever
legal de agir, um dever legal de evitar o resultado, motivo pelo qual o omitente res­
ponde como se o tivesse produzido, em razão de o legislador considerar, nos omis­
sivos impróprios, mais grave a inação, dado o tipo especial de relação que se esta­
belece entre o agente e o bem jurídico tutelado. Dito mais claramente: nos crimes
omissivos impróprios, o legislador equipara a om issão à ação, de sorte que, por
exemplo, responde por homicídio quem, embora não tendo matado a vítima, devia
agir no sentido de evitar-lhe a morte (assim, policiais, bombeiros, salva-vidas), mas
não o fez, podendo fazê-lo.
Naturalmente que, com a ação requerida nos crimes omissivos próprios, pre­
tende-se também evitar um resultado valorado negativamente pelo ordenamento
jurídico (no exemplo seguinte, morte da criança), mas o legislador não obriga 0
omitente a impedir o resultado,18 diferentemente do que ocorre nos crimes omis­
sivos impróprios, em que há a obrigação de evitá-lo.
Assim, por exemplo, se A, ao passear pela praia, percebe que uma criança se
afoga e deixa de prestar-lhe socorro, embora pudesse fazê-lo sem risco pessoal, res­
ponderá por crime de omissão de socorro (CP, art. 135). No entanto, se A for 0
salva-vidas que ali atue, a ele será atribuído o resultado, é dizer, a morte da crian­
ça, como se ele mesmo 0 tivesse produzido. Ou seja, se, na primeira hipótese, impu-
ta-se-lhe a só omissão (pelo não-cumprimento do dever), na segunda se lhe atribui
o próprio resultado da omissão (algo mais): a morte. Nos crimes omissivos impr^
prios, enfim, o Código equipara, como dito, a omissão à ação. O Projeto Alcântara

15 Tratado, cit., p. 551.


16 Jescheck, Tratado, cit., p. 547. **
17 D ercch o p e n a l cit., p. 238. -4*
18 Jescheck, Tratado, cit., p. 551.
D ireito Penal - Parte G eral

Machado (1969), aliás, dispunha no particular que “não impedir um evento que se
tem o dever jurídico de evitá-lo eqüivale a causá-lo”.
Por conseguinte, se os crimes omissivos próprios são crimes de mera conduta,
os omissivos impróprios são crimes materiais.
Naturalmente que o agente responderá a título de dolo ou culpa, conforme as
circunstâncias do caso concreto, tal como ocorre com os crimes comissivos.

4.2. Causalidade nos crimes omissivos impróprios: requisitos

Diferentemente dos crimes comissivos, nos quais a relação causai é físico-


natural (A morre em razão dos tiros deferidos por B), nos omissivos impróprios a
relação causai decorre da lei, é normativa (ficta), portanto. Com efeito, a criança
afogada (no exemplo citado) não morreu por ação de A, mas tragada pelo mar (ação
da natureza), de sorte que A responderia pela só omissão de socorro, não fosse a
norma do § 2S do art. 13, equiparando a omissão à ação.19 O nexo causai é norma­
tivo, enfim, porque uma inação não pode produzir logicamente uma ação (ex nihi-
lo nihil fit). Como afirma Kelsen, a causalidade só pode ser concebida enquanto
causalidade material, pertencente ao mundo do ser, regido pelo princípio da cau­
salidade; no mundo axiológico (dever-ser) vige o princípio da imputação.20
Uma omissão necessariamente supõe uma ação, pois não existe uma omissão em
si, mas tão-só a omissão de uma ação determinada.21 Por conseqüência, a imputação
do resultado por causa de uma omissão supõe sempre que o agente se ache em con­
dições concretas de realizar a ação que se lhe exige. O primeiro requisito, pois, da
imputação nos crimes omissivos (requisito comum aos crimes omissivos próprios e
impróprios) é a possibilidade efetiva de realização da ação, evitando o resultado lesi­
vo de que se trate, já que a lei, não se destinando a heróis ou santos, não pode pre­
tender exigir o inexigível. Daí dispor o Código que “a omissão é penalmente relevan­
te quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado” (art. 13, § 2e).
Mas não basta o poder agir para evitar o resultado: é preciso mais, que essa
aÇão que se omite seja realmente capaz de evitar o resultado, pois do contrário, isto
ei ficando demonstrada a inocuidade da possível atuação do sujeito, não caberá a
Jniputação do resultado, porque em tal caso não existe relação causai entre a omis­
são que se exige e o resultado que se realiza (princípio da proporcionalidade).

^ Como diz Tavares, a relevância da om issão, com o violação do dever de agir, é que assinala sua própria ex is­
tência, pois ela p ertence àquela categoria dos objetos dependentes dc que falava Husserl, de m odo que não
possui existência real por si m esm a, senão quando associada a outro elem en to , representado pelo dever
controvérsias cm torno dos crim es omissivos, Rio de ja n eiro : Institu to L atin o-A n ierican o de
"20 ^0oPen ,Çã° Penal, 1996, p. 29).
■ teoria pura do direito, cit.
_ Welze), Derecho penaU cit., p. 238.
Finalmente, a imputação do resultado nos crimes omissivos impróprios pres­
supõe que o omitente tenha o dever legal d e agir, dever que, segundo os termos do
Código, incumbe às pessoas taxativamente indicadas no § 2Qdo art. 13, a saber: a)
quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) quem, de outra
forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) quem, com seu com­
portamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Tratando-se de pes­
soa que aí não se inclua, o agente não responderá pelo resultado, sob pena de vio­
lação do princípio da legalidade, podendo-se no máximo imputar^lhe crime omis-
sivo próprio [v. g., omissão de socorro).
A primeira hipótese a justificar a equiparação da omissão à ação, devendo o
agente responder como se tivesse ele mesmo produzido o resultado, diz respeito
àqueles que tenham o dever legal de proteger, cuidar ou vigiar (v. g., policiais,
bombeiros, médicos, pais, tutores). A segunda, residual em relação à primeira, pre­
tende alcançar situações em que o agente, embora não tendo o dever legal, assume,
por qualquer outro modo, a responsabilidade de impedir o resultado, isto é, assume
o dever de cuidar, proteger ou vigiar, que pode resultar tanto de uma manifestação
unilateral de vontade como de acordo (v. g., guarda de segurança particular, guia
de turismo). Por último, a lei refere a hipótese de o agente criar risco de ocorrên­
cia do resultado (v. g., o causador de um incêndio, o alpinista, em relação àquele
que instiga a acompanhá-lo).
Em se configurando a relevância jurídico-penal da omissão, nos exatos termos
do § 2S do art. 13, o agente responderá a título de dolo ou culpa, conforme tenha
se omitido intencional ou imprudentemente, também em respeito ao princípio da
legalidade.22 A estrutura, aliás, do dolo e da culpa no crime omissivo impróprio é
basicamente a mesma do delito comissivo,23 admitindo-se a punição a título de
culpa tão-só quando houver previsão legal expressa.

4.3. Inconstitucionalidade dos crimes omissivos impróprios?

Distingue-se, assim, distinção que remonta a Luden24 (1840), entre crimes


omissivos próprios e impróprios. Nos primeiros, o legislador tipifica a simples omis­

22 Por isso não me parece correto dizer, como faz Cláudio Brandão, que, se um sujeito atropela um pedestre
em local ermo e deixa de socorrê-lo ao notar que a vítim a é um seu desafeto, aband onando-a, a qual vem
a m orrer, teria de responder, nesse caso, por hom icídio doloso, e não por omissão de socorro, porque com
o atropelam ento causou um perigo para a vida da vítima (Teoria, cit., p. 36). Nesse caso, em verdade, o
agente deverá responder, unicam ente, pelo que fez, isto é, matar culposam ente; incorren do, ipso facto, nas
penas do crim e de hom icídio culposo qualificado pela não-prestação de socorro (C P , art. 121, §§ 3a e 4a).
É que o só fato de não prestar socorro à vítima não pode converter uma ação culposa em dolosa, sob pena
de violação dos princípios da legalidade e proporcionalidade.
23 Nesse sentido, Sheilla Bierrenbach, para quem o dolo exige consciência e vontade de p reen cher o tipo
norm ativo, sendo com preensivo, portanto, da situação típica, do poder de agir e da posição de garante
(Crimes omissivos impróprios , Belo H orizonte: Del Rey, 2002, p. 95),
24 Cf. Jescheck, Tratado, cit., p. 550.
D ireito Penal - Parte Geral

são, isto é, a mera abstenção de fazer algo legalmente determinado, a exemplo da


omissão de socorro (CP, art. 135) e da omissão de notificação de doença (CP, art.
269). Nos segundos, em razão de um dever legal especial de evitar o resultado
imposto a certa e determinada pessoa, chamada garante, imputa-se-lhe o próprio
resultado, como se ela mesma o tivesse causado. É o que se dá com os pais em rela­
ção aos filhos, os médicos em relação aos pacientes, os salva-vidas em relação aos
banhistas etc. Essa equiparação legal da omissão à ação (CP, art. 13, § 2e), como assi­
nalado, pressupõe: a) posição de garante e, pois, dever de agir e de evitar o resulta­
do; b) possibilidade concreta de agir; c) causação de um resultado imputável ao
omitente. A omissão imprópria consiste, portanto, na não-evitação do resultado
típico por parte de quem tem o dever legal de agir em defesa do bem jurídico em
perigo, tentando, ao menos, impedir sua conversão em dano.25
Nesse dispositivo, o legislador consagra uma cláusula geral - aplicável em tese
a todos os crimes - que põe omissão e ação em pé de igualdade, de modo que, por
exemplo, matar por omissão (v. g., deixando de alimentar o filho) é tão grave e
reprovável jurídico-penalmente quanto matar por ação (v. g., empurrando o filho
da escada). Por meio do § 2S do art. 13, o Código eleva, enfim, à categoria de cri­
minosos, comportamentos que, em princípio, ou seriam atípicos, ou só configura-
dores de omissão própria. Afinal, os omitentes respondem pelo resultado não por­
que tenham causado a conduta típica, mas por não terem agido em defesa do bem
jurídico, a fim de tentar impedir o evento.26
Pois bem, semelhante equiparação, embora amplamente adotada pelas legis­
lações e, em geral, pouco discutida pela doutrina, pode e deve ser questionada em
face de três princípios constitucionais: legalidade, pessoalidade da pena e propor­
cionalidade.27
Com efeito, se o princípio da legalidade implica a máxima taxatividade e pre­
cisão das mensagens do legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensa­

25 Sheila Bierrenbach, Crimes omissivos, cit., p. 60.


26 Sheila Bierrenbach, Crimes omissivos, cit., p. 74.
27 No sentido do texto, Zaffaroni, para quem semelhante equiparação é inconstitucional por violação ao
princípio da legalidade, implicando analogia in maJam partem , ao emprestar ao ilícito civil caráter penal,
pois “é inadmissível que se pretenda preservar a legalidade penal com o dever que emerge de outras leis,
como pode ser a lei civil: o descumprimento de um contrato não é matéria do Código Pena], senão que
constitui um injusto civil e nada autoriza a convertê-lo em penal na ausência de um tipo escrito; igual­
mente, a violação de um dever imposto pelo direito de família, tem suas sanções reguladas neste mesmo
direito e, na falta do tipo legal, não é admissível a construção judicial de um tipo para impor uma pena
quando o legal seja um divórcio por injúria com o seu conseqüente efeito patrimonial” (En torno de ia
cuestión penai, p. 215-228). Posição conciliadora defende Juarez Cirino dos Santos, para quem se os tipos
de resultado são lidos como descrição simultânea de ações e deomissões de ações produtoras deresultado
(p. ex., matar alguém por ação proibida ou por omissão de ação mandada, na posição de garantidor do bem
jurídico), então a produção do resultado por ação e não evitação do resultado por omissão de ação consti­
tuem equivalentes lesões de bens jurídicos, igualmente compatíveis com o princípio da legalidade: a posi­
ção de garantidor seria característica típica geral de autoria dos tipos de resultado (art. 13, § 2°, do CP),
que não depende de repetição nas definições legais respectivas (A m oderna teoria, 4a ed., rev. e atual., Rio
de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 129).
Paulo Queiroz

gens,28 é evidente que o Código, ao se utilizar de uma cláusula geral e grandemen­


te vaga, que equipara ação a omissão, não atende a tal exigência político-criminal
e se revela claramente antigarantista. Porque afinal o legislador limita-se a estabe­
lecer os pressupostos gerais do dever de agir e de impedir o resultado, mas nada
esclarece quanto ao seu conteúdo, remetendo a complementaçâo do seu significado
(lei penal em branco) a uma outra lei, a um contrato ou uma situação concreta de
criação de risco, em geral ainda mais imprecisos e indeterminados, de sorte que fixar
os limites da posição de garante é especialmente problemático.29 Por isso, diz Jakobs
que “a determinação do garante é uma das tarefas mais difíceis da Parte Geral”.30
Conseqüentemente, os crimes omissivos impróprios, à semelhança dos crimes
culposos, para bem atenderem ao princípio da legalidade, deveriam ter previsão
expressa em cada tipo penal, com clara e precisa delimitação de seus limites. Disso,
aliás, não diverge Tavares quando afirma que a solução mais coerente com a exigên­
cia do princípio da legalidade, embora não exaustiva nem perfeita, seria a previsão,
na Parte Especial do Código Penal, dos delitos que comportassem a punição por
omissão.31 Em não existindo semelhante previsão, entende, porém, segundo o crité­
rio da identidade - adotado, a seu ver, pelo nosso Código, diferentemente do alemão,
que adotou o critério da equivalência - , que a omissão imprópria deve ficar restrita
aos crimes contra a vida, a integridade corporal e a liberdade, cujos objetos jurídicos,
pela sua natureza e pelas conseqüências, necessitam de uma imediata e oportuna
intervenção protetiva, que não pode ser postergada para não se tomar inócua.32
Também, e aqui reside uma objeção mais radical, a omissão imprópria impli­
ca, de ordinário, ainda que sutilmente, violação ao princípio da pessoalidade da
pena, sobretudo naquelas hipóteses em que se pretende imputar ao omitente uma
ação de outrem ou um evento puramente natural, a justificar ou a sua abolição pura
e simples ou a sua completa reformulação. Assim, por exemplo, quando se preten­
de que o salva-vidas responda pela morte do banhista que se afoga, que o médico
responda pela morte do paciente que lhe implorava socorro, que a mãe responda
por maus-tratos do companheiro contra filho menor etc., está-se em realidade em
todos esses casos a imputar ao garante (salva-vidas, médico, mãe) fato de responsa­
bilidade de terceiro ou puramente causai; sendo, pois, ilegítima a imputação do
resultado a pessoa que não o próprio autor da ação.

28 Silva Sánchez, Aproximación , cit., p. 256.


29 Mesmo um exemplo tido como inquestionável - a mãe que deixa de amamentar o filho, causando-lhe a
morte - é justamente questionado por Tavares, para quem "esta conclusão sempre foi tomada arbitraria­
mente pela doutrina, com base no costume, fazendo deste uma fonte de incriminação, o que violava o
princípio da legalidade e toda a tradição liberal”, pois o art. 384 do Código Civil, ao tratar do pátrio poder,
não contemplava expressamente essa responsabilidade, apenas obrigando à criação e à educação dos filhos,
sendo que tal previsão somente veio a ocorrer, de fato, com a Constituição Federal de 1988 (art. 229) (As
controvérsias, cit., p. 66-67).
30 Derecho penal, cit., p. 968.
31 As controvérsias, cit., p. 70.
32 Juarez Tavares, As controvérsias , cit., p. 81-82.
D ireito Pen al - Parte Gera)

Assim, a pena que se pretende impor ao omitente é francamente despropor­


cional e também ofensiva ao princípio da igualdade, na medida em que se equipa­
ra, sem mais, a simples omissão à ação, comportamentos cuja significação ética e
social é muito distinta, em franca contradição, aliás, com o caráter subsidiário do
direito penal, pois bem mais razoável seria que o garante respondesse por omissão
própria qualificada ou (eventualmente) crime algum, sem prejuízo das conseqüên­
cias extrapenais de seu ato: demissão do salva-vidas, suspensão ou cassação da
licença para o exercício da medicina, perda do poder familiar por parte da mãe etc.,
conforme o caso.
Finalmente, a eventual irresponsabilidade do legislador, que não cuidou de
criminalizar determinadas condutas de modo específico, não pode justificar a irres­
ponsabilidade dos juizes, os quais, ao apelarem àquela cláusula geral de equipara­
ção, acabam por assumir, por meio da anologia in m alam partem , o papel do legis­
lador, conferindo ao ilícito civil caráter penal.

5. A moderna teoria da imputação objetiva

5.1. Significado e posição sistemática

A (moderna) teoria da imputação objetiva33 - que procede de Larenz e Honig


(1927, 1930) - tem atualmente em Roxin e Jákobs seus mais destacados represen­
tantes, teoria cuja pretensão não é propriamente, em que pese o nome, imputar
resultado, mas em especial delimitar o alcance do tipo objetivo,34 de sorte que a
rigor é mais uma teoria da “não-imputação” do que uma teoria “da imputação”.
Trata-se, além disso, não só de um corretivo à relação causai, mas de uma exigên­
cia geral da realização típica,35 a partir da adoção de critérios essencialmente nor­
mativos, de modo que sua verificação constitui uma questão de tipicidade, e não de
antijuridicidade,36 prévia e prejudicial à imputação do tipo subjetivo (dolo e culpa).
Para essa teoria, o resultado de uma ação humana só pode ser objetivamente
imputado a seu autor quando sua atuação tenha criado, em relação ao bem jurídi­
co protegido, uma situação de risco (ou perigo) juridicamente proibido, e que tal

33 Entende, porém, Sancinetti que a teoria da imputação não é, propriamente, uma teoria, no sentido de um
corpo harmônico de proposições teóricas, mas sím o nome sob o qual aglutinou-se um conjunto de prin­
cípios delimitadores e corretivos da tipicidade ( apud Fábio Roberto D’Avila, Crime culposo e a teoria da
imputação objetiva, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 136).
34 Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 222.
35 Mir Puig, D erecho penal, cit., p. 231.
36 Em sentido contrário, Bustos Ramírez, para quem a imputação objetiva constitui uma questão afeta à ili­
citude: “a imputação do resultado não pode ser um aspecto de tipicidade, nem conceituai nem sistemati­
camente, mas só de antijuridicidade, enquanto aqui entram em jogo todas as outras valorações que recor­
rem ao bem jurídico desde o ordenamento em seu conjunto” ( Manual de derecho penal, Barcelona: Ed.
Ariel, 1996, p. 200).
Paulo Queiroz

risco se tenha materializado num resultado típico,37 ou seja, a imputação do tipo


pressupõe que o resultado tenha sido causado pelo risco não permitido criado pelo
autor.38 Significa dizer, enfim, que, estando o risco produzido dentro do que nor­
malmente se admite e se tolera socialmente, não caberá a imputação objetiva do
tipo, ainda quando se trate de uma ação dolosa e que cause lesão ao bem jurídico
em questão.
Em suma, a imputação do tipo objetivo pressupõe um perigo criado pelo autor
e não coberto por um risco permitido dentro do alcance do tipo,39 é dizer, que
determinado resultado lesivo só pode ser juridicamente - teleológico-valorativa-
mente - atribuído a uma ação como obra sua, e não como obra do azar.40

5.2. Conceito de risco permitido

A teoria da imputação objetiva trabalha assim com um conceito-chave: o con­


ceito de risco perm itido. Se permitido o risco (socialmente tolerado), não caberá a
imputação; se não permitido, como regra terá lugar a imputação objetiva do tipo.
A expressão “risco permitido”, no entanto, é utilizada em múltiplos contextos,
e sobre sua significação e posição sistemática reina, como reconhece o próprio
Roxin, “a mais absoluta falta de clareza”.41 Para ele, porém, risco permitido deve ser
entendido como uma conduta que cria um risco juridicamente relevante, mas que,
de modo geral (independentemente do caso concreto), está permitida, e, por isso, à
diferença das causas de justificação, exclui a imputação do tipo objetivo.42 Assim,
por exemplo, se A, apesar de conduzir veículo automotor observando as regras de
trânsito, vem a atropelar B, não haverá, malgrado a relação causai, a imputação obje­
tiva do tipo de homicídio culposo, uma vez que A atuou dentro do risco permitido
inerente ao tráfego viário.43 O mesmo se deve dizer dos riscos ordinários inerentes
(riscos permitidos) ao tráfego aéreo, ferroviário, marítimo, ao funcionamento das
instalações industriais, à prática de esportes, às intervenções cirúrgicas etc.
Releva notar que, apesar de a idéia de risco permitido ter especialmente a
ver com a noção de crimes culposos e materiais, a teoria da imputação objetiva
também é aplicável aos crimes dolosos e de consumação antecipada (formais e de
mera conduta).
Considere-se o seguinte exemplo: dois ciclistas trafegam com bicicletas sem
iluminação durante a noite por uma rodovia, um seguindo o outro. O ciclista da

37 Jescheck, Tratado, cit,, p. 258.


38 Roxin, Derecho pena!, cit., p. 373.
39 R oxin, Derecho penal, cit., p. 364.
40 Luzón Pena, Curso, cit., p. 377.
41 Roxin, Derecho penal, cit., p. 371.
42 R oxin, Derecho penal , cit., p. 371.
43 Cf. Roxin, D erecho penal, cit., p. 371.
D ireito Penal - Parte Geral

frente choca-se com um terceiro ciclista, que transitava no sentido contrário e não
o viu, em face da falta de iluminação. Certamente, se o ciclista que vinha atrás esti­
vesse iluminando o seu caminho, o terceiro ciclista teria evitado a colisão. Em tal
hipótese, Roxin afirma que a impossibilidade de imputação se dá em virtude da ine­
xistência da obrigação de iluminar bicicletas alheias, e que a norma que impõe o
dever de trafegar com faróis acesos tem a finalidade de evitar sinistros com a pes­
soa do próprio condutor, e não de terceiros.44 A não-imputação do tipo de lesões
ou homicídio decorreria, enfim, do fato de não se achar o resultado coberto pelo
fim de proteção da norma.

5.3. Crítica à teoria da imputação objetiva

Crítica contundente à teoria da imputação objetiva faz Enrique Gimbemat


Ordeig. Para Gimbemat Ordeig, relativamente aos crimes culposos, se o agente se
mantém dentro do risco permitido, não há imputação objetiva simplesmente por­
que não existe, em tal caso, culpa, já que o autor, atuando dentro do risco social­
mente tolerado, não infringe, assim, o dever objetivo de cuidado, de sorte que não
é necessário apelar à teoria da imputação objetiva. Logo, “a tese de Jakobs - e dos
que pensam como ele” - escreve Gimbemat Ordeig - “de que nos delitos culposos,
se a ação se mantém dentro do risco permitido, fica excluída a tipicidade p orqu e
falta a imputação objetiva, há de ser rechaçada: o tipo culposo fica excluído unica­
mente por uma razão tautológica: porque não houve culpa, elemento que, por ser
requisito legal expresso, não tem nada a ver com imputação objetiva”.45
De fato, em tais casos, risco permitido significa em última análise ausência de
imprudência, imperícia ou negligência; ausência de culpa, enfim. O mesmo se deve
dizer do exemplo dos ciclistas, pois em tal hipótese tampouco se poderá argüir que
o segundo ciclista tivesse agido culposamente quanto à provocação do acidente, já
que ele não tinha, em relação aos demais, o dever objetivo de cuidado, é dizer, este
era um dever dos outros, e não seu. Não há, em tal contexto, nexo causai simples­
mente, pois o segundo ciclista não causou as lesões no primeiro e terceiro ciclistas.
E a essa conclusão se chega pela mera interpretação teleológica da norma do art.
121, § 3", do CP.

44 Roxin, D erecho penal , cit., p. 377.


45 Estúdios, cit., p. 2 1 3 -2 1 4 . Escreve o citad o autor, textualm ente: “segundo Jakobs, n o delito culposo, a
im putação objetiva do resultado fica excluíd a se a ação se m antém den tro do risco perm itido, isto é, se não
havia infração do dever de diligência. De acordo com ele, pois, se um a pessoa m orre em conseqüência de
uma intervenção cirúrgica, essa m orte não é o bjetivam en te im putável ao cirurgião se este realizou a ope­
ração conform e a lex artis (isto é, se a realizou prudentemente). Porém , se um a ação não superou o risco
perm itido, en tão tam pouco é culposa n o sentid o do artigo 1° do CP; e se não é culposa, então a ausência
de tipicidade vem fundam entada num elem en to expressam ente exigido pela Lei (a culpa), e não na im pu­
tação objetiva que opera com critério s não m encionados na Lei para ex clu ir a tipicidade de com portam en­
tos precisam ente culposos ou dolosos causadores de resultados típicos".
Paulo Queiroz

Já no que diz com a imputação nos crimes dolosos, como, por exemplo, se A,
querendo matar ou lesionar B , o convence a praticar esportes violentos ou similar,
conseguindo seu propósito lesivo, tampouco é necessário recorrer a critérios de
imputação objetiva. É que, segundo Gimbemat Ordeig, em tais casos, a se imputar
o resultado lesivo ao autor, violar-se-ia a máxima cogitationis poenam n em o pati-
tur, proibitiva da punição de simples intenções. Com efeito, “o legislador não pode
proibir meros pensamentos nem intenções se estes não se exteriorizam num com­
portamento com mínima aparência delitiva (...), porque se tal resultasse proibido
(tipificado), então não se estariam castigando fatos - que são absolutamente corre­
tos - senão unicamente pensamentos que não se traduziram numa manifestação
exterior que ofereça aparência alguma de desvalor. O tráfego aéreo, a exploração
de minas de carvão ou as corridas de fórmula 1, quando realizadas'observando a
diligência devida, são atividades expressamente aprovadas - porque nelas não exis­
te um mínimo desvalor objetivo - pelo ordenamento jurídico; e se o fato realizado
constitui uma conduta correta - por mais que se realize com más intenções - então,
para um Direito penal regido pelo princípio do fato, não existe tampouco uma
manifestação externa à qual se possa vincular uma proibição (tipificação) penal”.46
O mesmo se deve dizer dos exemplos de que se socorre Damásio, do fugu
assassino (peixe que contém veneno mortal) e do carrasco frustrado: no primeiro
caso, a esposa, desejando que o marido morra, incentiva-o a consumir o fugu, prato
que aprecia, na esperança de que um descuido do cozinheiro (não eliminar o vene­
no do fugu ao prepará-lo) proporcione a morte do indesejado companheiro; no
segundo, condenado à guilhotina o autor de estupro, frações de segundo antes de o
carrasco puxar a alavanca, o pai da vítima, que assistia à execução, utilizando-se de
um revólver, dispara um tiro contra a cabeça do condenado, matando-o e frustran­
do a execução. Com efeito, na primeira hipótese (do fugu), contrariamente ao que
afirma Damásio, para quem há uma ação dolosa e nexo de causalidade, em verda­
de não existe uma ação, nem sequer - logo, não há tipicidade - no sentido jurídi-
co-penal, pois a atuação do agente é objetivamente correta e, como tal, desprovida
de desvalor social. Há, isso sim, um simples desejo de que tal ato (consumir deter­
minado prato ou, se fosse o caso, praticar esportes violentos ou viajar de avião)
cause a morte da vítima, não sendo a atuação da mulher que matou o marido, mas
o consumo, espontâneo e normal, do fugu. Por conseqüência, tem toda pertinên­
cia, no particular, a máxima invocada por Gimbemat Ordeig, atribuída a Ulpianus:
cogitationis poenam n em o patitur. Não é preciso maior esforço para chegar a tal
conclusão; muito menos apelar à teoria da imputação objetiva.
Já quanto ao segundo caso (do carrasco frustrado), diferentemente do que pre­
tende Damásio, existe, sim, nexo causai entre a ação do autor do disparo (pouco
importando de quem parta) e a morte do condenado sob execução, pois, embora o

46 G im bernat, Estúdios, cit., p. 215-216.


D ireito Penal - Parte Geral

resultado viesse a ocorrer inevitavelmente, tal não ocorreria na forma e no tempo


em que ocorreu, tendo uma causa - modal e temporalmente - diversa. Aliás, é o
próprio Damásio quem afirma (ou afirmava), textualmente, que “o procedimento
hipotético de eliminação precisa ser bem compreendido. O importante é fixar que,
excluindo-se determinado acontecimento, o resultado não teria ocorrido ‘como
ocorreu’: a conduta é causa quando, suprimida mentalmente, o evento in con creto
não teria ocorrido no momento em que ocorreu. Suponha-se que o agente encon­
tre a vítima mortalmente esfaqueada, em local absolutamente solitário e lhe desfi-
ra outros golpes de punhal, produzindo-se a morte. Prova-se que os últimos feri­
mentos concorreram para o êxito letal. Suprimindo-se, mentalmente, os golpes
desferidos pelo agente, ainda assim a morte teria acontecido em virtude dos acon­
tecimentos anteriores. Assim, à primeira vista, parece que a conduta do sujeito não
deve ser considerada causa do resultado. Todavia, sem ela, o evento não teria ocor­
rido com o ocorreu".47
Se assim é, não é exata a afirmação de Damásio de que “a conduta do pai não
poderia ser considerada causa da morte, uma vez que sem ela o evento teria acon­
tecido da mesma maneira”,48 pois o evento teria acontecido, sim, mas de maneira
diversa, isto é, na forma e em tempo distintos.
Por isso é que Gimbemat Ordeig conclui que a teoria da imputação objetiva é
uma teoria que não se sabe exatamente o que é, nem qual é o seu fundamento.49

5.4. Conclusão

Em realidade, a teoria da imputação objetiva constitui essencialmente uma


proposta de nova linguagem jurídico-penal para solução de velhos problemas, uma
vez que, do ponto de vista da práxis, as coisas continuam tal e qual, pois por meio
dela chega-se, na quase-totalidade dos casos, à mesma decisão judicial a que se che­
gava antes. Portanto, tem razão Luís Greco, quando reconhece que, “na verdade, e
isto a doutrina alemã majoritária ainda custa em reconhecer, a imputação objetiva
e seus conceitos básicos nada mais são do que a teoria do crime culposo - só que
com diverso nome e alcance”.50 Porque, de fato, aquilo que anteriormente se cha­
mava violação do cuidado objetivo no âmbito da imputação objetiva recebe o nome
de criação de um risco desaprovado; o nexo de antijuridicidade passa a chamar-se
realização do risco, mas substancialmente trata-se da mesma problemática, com
idênticos fundamentos e idêntica solução.51

4? Direito penal, cit., p. 2 4 8 -2 4 9 .


48 Im putação objetiva: o “fugu assassino e o carrasco frustrado”, Boletim do IBCCrim, São Paulo, p. 13, jan.
2000 .
49 Estúdios, cit., p. 213.
50 Introdução à obra Funcionalismo, cit., p. 44.
51 G reco, Funcionalismo, cit., p. 44.
A despeito disso, força é convir, com Frisch, que as objeções feitas contra a
teoria são, em boa parte, de cunho terminológico, como terminológica é a sua pró­
pria contribuição e, mais, os fundamentos da teoria em questão, ao menos no que
se refere ao crime culposo, estão amplamente admitidos.52
Mas o mais importante é que a moderna teoria da imputação objetiva, apesar
de suas imperfeições, pretende responder, político-criminalmente, a uma preten­
são garantista e, pois, conforme a Constituição, em especial conforme os princípios
da legalidade, proporcionalidade e pessoalidade da pena, uma vez que, como assi­
nala Tavares, ela não é uma teoria para atribuir, senão para restringir a incidência
da proibição sobre determinado sujeito,53 de sorte que, à medida que puder cum­
prir semelhante função, sua adoção é válida e louvável.
Por último, o instrumental teórico hoje existente, especialmente no que toca
aos crimes culposos, não é melhor nem mais preciso do que o que propõe a teoria
em causa.

52 La imputación objetiva: estado de la questión, in Sobre el estado de la teoria do delito, Cuadernos CiVifas.
Madrid, 20 0 0 .
53 Teoria do injusto penal, cit., p. 222.
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

Capítulo VI
Teoria do Dolo

1. Introdução: ausência de conduta

Se a finalidade declarada do direito penal é a prevenção geral e especial - sub­


sidiárias - de comportamentos socialmente lesivos, sua atuação há de pressupor,
lógica e necessariamente, ações e omissões voluntárias, e não involuntárias ou
naturais, simplesmente, é dizer, a intervenção penal começa e termina com o iní­
cio e fim da vontade humana, pois fora daí teria lugar a responsabilização penal
objetiva, isto é, responsabilização por fatos estranhos à vontade humana, puramen­
te causais, ainda quando emanados de um ser humano.
Como assinala Stratenwerth, as proibições e mandamentos jurídicos não
podem ir além da capacidade do homem de intervir com sua ação no curso dos
acontecimentos, pois o imprevisível ou inevitável não pode ser proibido nem exi­
gido, de sorte que para o direito penal importam, exclusivamente, aqueles mo­
mentos estruturais do comportamento humano que aparecem como objeto possí­
vel de normatização jurídica, isto é, como um fato que pode ser dominado pelo
homem.1
Em decorrência da função motivadora que perseguem, as normas penais
pressupõem, portanto, previsibilidade e evitabilidade do comportamento, porque
passíveis de motivação, isto é, ações dolosas ou culposas ao menos.
Finalmente, só as ações humanas exteriorizadas e lesivas de bem jurídico
(princípio da lesividade) podem ser objeto de repressão penal, não se punindo ações
meramente imorais ou a simples cogitação para delinqüir (cogitationis poenam
nem o patitur), conforme um direito penal do fato, e não do autor.
Pois bem, não obstante adotem conceitos distintos de ação, causalistas e fina­
listas - e, de igual modo, a doutrina atual (funcional ou mista) - coincidem quanto
às situações consideradas de ausência de conduta, a saber: coação física irresistível,
estados de inconsciência (hipnotismo, sonambulismo, embriaguez letárgica), caso
fortuito e força maior, movimentos reflexos etc. E que, apesar de tudo, causalismo
e finalismo coincidem em requerer, para a existência de uma ação, uma vontade,
independentemente do seu conteúdo.2

1 D erechopenal, cit., p. 51.


2 Mir Puig, D erecho penal, cit., p. 183.
P a u io Q u e ir o z

2. Dolo e consciência da ilicitude

2.1. Questão preliminar: dolo normativo versus dolo natural

Para a doutrina naturalista (causalista), o dolo significava vontade e consciência


de realizar uma conduta antijurídica (dolus malus ou normativo), de modo que com­
preenderia, necessariamente, a consciência da ilicitude. Nesse sentido, Binding
entendia dolo como vontade conscientemente contrária ao direito,3 à semelhança de
Carrara, para quem dolo era a intenção mais ou menos clara de praticar um ato que
se sabe contrário à lei. Entre nós, Magalhães Noronha afirmava que “age dolosamen­
te quem atua com conhecimento ou ciência de agir no sentido do ilícito ou antijurí­
dico, ou, numa palavra, com conhecimento da antijuridicidade do fato”,4 por isso
que, “se a consciência da ilicitude falta, não há dolo, e sem dolo não há crime”.5
Com a teoria final da ação, passou-se a adotar um conceito mais restrito de
dolo, porque, embora o deslocasse da culpabilidade para a tipicidade, o destacaria
da consciência da ilicitude, adotando, em conseqüência, um conceito natural (neu­
tro) de dolo, razão pela qual o conhecimento do caráter ilícito (proibido) do com­
portamento permanece pertencendo, com o finalismo, à culpabilidade. Por isso, o
dolo (dolo de tipo) - escreve Welzel - “é só a vontade de ação orientada à realiza­
ção do tipo de delito”, ou seja, “dolo é o saber e querer a realização do tipo”.6 Por
conseguinte, “a consciência da antijuridicidade da ação não pertence ao dolo de
tipo, senão que é um momento da culpabilidade”.7 De acordo com esse entendi­
mento, age com dolo, por exemplo, o estrangeiro (digamos, um holandês) que traga
de seu país de origem pequena quantidade de droga para uso pessoal, ainda quan­
do convencido (de boa-fé) de que tal seja permitido entre nós, à semelhança de seu

3 Binding, Die Normen, citado por Von Liszt, Tratado, cit., p. 285. Nem todos os causalistas assim pensa­
vam, porém. Von Liszt, por exemplo, era de opinião de que o dolo não compreendia a consciência da ile­
galidade, pois, a se exigir tal coisa, paralisar-se-ia a administração da justiça, impondo-lhe o encargo de
provar, em cada caso ocorrente, que o agente conhecia o preceito violado.
4 Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1984, v. 1, p. 145. No mesmo sentido Hungria: “dolo não é só represen­
tação e vontade do resultado antijurídico: é também consciência de que se age contrariamente ao direito,
ou, mais concisamente, consciência da injuridicidade. Sem o entendimento de oposição ao dever jurídico
ou de que se incide no juízo de reprovação que informa o preceito incriminador, não há falar de dolo
(Comentários, cit., p. 143). Também Frederico Marques: “a concepção do dolo, sem essa consciência da
ilicitude, além de estreita e limitada, é contrária aos fundamentos éticos do direito penal. Quem atua de
boa-fé, crendo não estar em oposição à ordem jurídica, nada apresenta de reprovável em sua conduta-
diz Beling: só se lhe pode censurar a inadvertência, o que não corresponde ao comportamento doloso,
expressão máxima da culpabilidade. E acrescenta o mestre germânico: ‘a intenção só tem sentido dirigm-
do-se ao tipo de ‘ilicitude’ e não apenas ao externamento típico prescindindo do conteúdo ilícito
( Tratado, cit., p, 258).
5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., p. 160.
6 Derecho penai alemán, cit., p. 77.
7 Welzel, Derecho penal alemán, cit., p. 92.
D ir e ito P e n a l - P a r te Geral

país de origem. É que, segundo o finalismo, o dolo requer apenas o conhecimento


dos elementos objetivos do tipo, não o da sua proibição, que pertence à culpabili­
dade. Esse é ainda hoje o conceito absolutamente dominante na doutrina, adotada
mesmo por autores que compartem da teoria dos elementos negativos do tipo.8
Também é o conceito adotado pelo Código Penal brasileiro (arts. 18, I, e 21).
Conseqüentemente, o dolo compreende um elemento volitivo (o querer o
resultado) e um cognitivo (ou intelectivo), isto é, a “valoração paralela na esfera do
profano” (Mezger), ou seja, não se exige “conhecimento de especialista” (MirPuig).
Por isso, para agir dolosamente, o sujeito ativo deve saber o que faz e conhecer os
elementos que caracterizam sua ação como típica. Quer dizer, deve saber, no homi­
cídio, que mata outra pessoa; no furto, que se apodera de coisa alheia móvel; no
estupro (com presunção de violência), que mantém conjunção carnal com mulher
menor de catorze anos ou incapaz.9 Logo, não há dolo de homicídio se o autor
supõe, fundadamente, que abate um animal; não há furto se imagina própria a
coisa, nem estupro (com presunção de violência) quando julga que a vítima (mu­
lher) é maior de catorze anos (hipóteses de erro de tipo). Dito mais claramente: o
agente deve saber que mata alguém, que furta coisa alheia ou que estupra, o que
pressupõe, como é natural, conhecer o significado de tais ações.

2.2. D olo num a perspectiva m on ista-fu n cion al

Apesar de o conceito finalista de dolo ser absolutamente dominante na atua­


lidade, dele divergimos em razão de sua evidente artificialidade.
Com efeito, não é possível um “conhecimento profano” do fato se não tomar­
mos em consideração o grau de socialização do sujeito ativo do crime, sob pena de
não existir conhecimento algum, de sorte que o agente necessariamente haverá de
ter uma idéia mais ou menos clara do significado social do que seja “matar”, do que
seja “furtar” ou do que seja “estuprar”, até porque, se tal conhecimento é relativa­
mente fácil quanto aos crimes clássicos (homicídio, furto, estupro), não o é,
porém, para as novas formas - não raro artificiais - de criminalidade. Por isso afir­
ma Roxin que o dolo supõe o conhecimento do “sentido social”, mas não o da
“proibição jurídica”.10 Também Süva Sánchez considera que não basta, para a con­
figuração do dolo, um conhecimento naturalístico, senão que deve dar-se um
conhecimento do conteúdo do sentido social do fato.11 Mir Puig vai além, para

8 Assim, por exemplo, Luzón Pena: o conceito de dolo que aqui se mantém é: conhecim ento e vontade
de realizar todos os elementos objetivos do tipo total de injusto, tanto os de sua parte positiva ou tipo indi-
ciário, como os de sua parte negativa do tipo, é dizer, a ausência dos elementos de causas de atipicidade e
causas de justificação; uns e outros são ospressupostos da antijuridicidade ouproibição penal. Em contra­
partida, o dolo não requer conhecimento ou consciência da própria antijuridicidade ou proibição (nem
geral nem penal) da conduta” (Curso, cit., p. 405).
9 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 57.
10 D erecho penal, cit., p. 463.
^ Aproximación, cit., p. 402.
P a u lo Q u e ir o z

entender, com razão, o dolo como dolus malus,12 é dizer, compreensivo da cons­
ciência da ilicitude.
Sabemos, por exemplo, que, entre algumas tribos indígenas brasileiras é
comum o acasalamento desde tenra idade. Ora, dizer para um índio de tal tribo que
ele comete umiCrime de atentado violento ao pudor (ou estupro) lhe parecerá estra­
nho e absolutamente incompreensível, pois tal prática faz parte de suas tradições e
costumes. Dizer, enfim, com o finalismo, que tal índio age com dolo - embora não
atue culpavelmente - é algo um tanto artificial, pois que constituirá um juízo a-his-
tórico, a-social, a-valorado, enfim. Dito de outra forma: nem sequer possui o índio
o conhecimento profano, pois só poderia ser diferente se tivesse um conhecimen­
to de especialista em costumes e tradições “brancas”. Em relação, assim, à imputa­
ção do tipo do art. 214, o nosso índio, sua parceira e sua tribo poderão legitimamen­
te questionar: atentado violento ao pudor de quem? Imagine-se ainda se a hipóte­
se fosse a de imputar-lhe a prática de crime de ato obsceno (CP, art. 233) por man­
ter relações sexuais publicamente ou por simplesmente expor sua nudez.
Já não bastasse isso, o índio, atuando dentro do que lhe é constitucionalmen­
te assegurado (CF, art. 231, caput), atua legitimamente (exercício regular de direi­
to), não praticando sequer um fato típico (segundo a perspectiva aqui adotada).
Ademais, se o dolo é, como diz Welzel, “saber e querer a realização do tipo”,
como afirmar nessas circunstâncias que tais pessoas queiram e saibam que realizam
o tipo de atentado violento ao pudor ou de estupro se carecem do conhecimento
mínimo do significado negativo/desvalor social da conduta? Definitivamente, afir­
mar a presença de dolo neste e noutros tantos casos só é possível se descontextuali-
zarmos e abstrairmos o sujeito do seu ambiente sociocultural, ou seja, a idéia de um
dolo natural só é possível à margem da realidade; é pois uma criação artificial. Por
isso é que semelhante conceito valeria, indistintamente, para a criança e o adulto,
alemães e afegãos, apesar das enormes diferenças que os separam. Não existe um
conceito de dolo - nenhum conceito aliás - válido para além do tempo e de espaço.
Consideremos um outro exemplo: suponha que uma pessoa - habitante da
zona rural dos confins do Brasil, que tenha por hábito caçar nos finais de semana,
como faz a maioria das pessoas que habita aquele lugar (coisa que lhe parece abso­
lutamente normal e legítima) - venha a ser presa em flagrante delito por crime
contra o meio ambiente e porte ilegal de arma de fogo. Ora, como sustentar que em

12 D erecho penal, cit., p. 240. Escreve o citado autor, textualmente: “a nosso juízo, o dolo com pleco exige a
‘consciência da antijuridicidade’, porém é conveniente distinguir três graus ou níveis de dolo: o dolo típi"
co, que só exige o conhecimento e vontade do fato típico, o dolo referido ao fato típico sem os pressupos­
tos típicos de uma causa de justificação, e o dolo completo, que, ademais, supõe o conhecim ento da anti­
juridicidade ( dolus malus). A o escudar o tipo doloso importa unicamente o prim eiro nível d e dolo típico,
que corresponde ao conceito de dolo natural usado p elo finalismo. Nesse contexto, e por motivos de bre­
vidade, em princípio, utilizaremos o termo dolo no sentido de dolo típico. Quando nos ocuparmos das
causas de justificação, veremos que então o dolo exige o segundo nível de dolo correspondente.
Finalmente, o dolo completo será necessário para a imputação pessoal da antijuridicidade penal.”
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

tal caso o agente tenha a “vontade conscientemente dirigida à realização do tipo de


caça proibida ou de porte ilegal de arma” se ele não tem a menor idéia do que isso
signifique, ou seja, não tem a menor noção do desvalor social - e, portanto, jurídi­
co-penal - da ação? Dizer enfim que age dolosamente, mas sem culpabilidade (erro
de proibição), constitui um sofisma manifesto.
Note-se, por fim, que em nenhum desses casos se está a exigir conhecimento de
especialista, vale dizer, conhecimento da existência da norma penal proibitiva, mas
tão-só consciência do caráter socialmente reprovável - e portanto jurídico - do com­
portamento, isto é, conhecimento profano mesmo. Concluindo, o conceito causalis-
ta de dolo (dolus malus), entendido como consciência e vontade de praticar um fato
que se sabe proibido, readquire plena atualidade, não bastando, por conseguinte, um
conhecimento naturalístico apenas, teorizado e construído à margem da realidade.
Por isso afirmam, com razão, Cobo dei Rosai e Vives Antón (se bem que ado­
tando uma perspectiva causalista, isto é, dolo como elemento da culpabilidade) que
o conhecimento do significado antijurídico da conduta é elemento imprescindível
do dolo, visto que os tipos não descrevem meros acontecimentos físicos, mas
sociais, inevitavelmente valorativos.13
Além disso, um conceito de dolo assim formulado é o que mais condiz com uma
configuração funcional da teoria do delito, já que, se a função da norma penal é moti­
var pessoas a agirem segundo o seu comando, impõe-se que os seus destinatários
tenham consciência da proibição da conduta, em face de seu desvalor social e, pois,
jurídico, podendo compreender a mensagem normativa e serem conseqüentemente
motivados. Cumpre dizer ainda que um conceito de dolo nesses termos mais atende
ao caráter garantista que deve informar os conceitos e institutos jurídico-penais.

3. Conceito e atualidade dolo

Dolo há de significar, portanto, consciência e vontade de praticar um fato que


se sabe proibido pelo direito.14 Haverá assim dolo de homicídio quando o agente,

13 D erecho penal, cit., p. 558.


^4 Crítica contundente à teoria da vontade faz Puppe, para quem: “a tese central da teoria da vontade, de que
o dolo é vontade, não fo i por ela justificada normativamente, nem definida em seu conteúdo, nem segui­
da d e m odo conseqüente. A teoria da vontade recorre ao sentido cotidiano da palavra dolo, como inten­
ção, defende porém um conceito estendido de dolo, que se afasta consideravelmente dessa idéia cotidia­
na. Todas as expressões com as quais se tenta descrever esse conceito estendido de vontade, como acolher
em sua vontade, anuir, assumir o risco aprovando o resultado, são transformadas em ambíguas, utilizadas
por um lado em sentido descritivo, psicológico, por outro em sentido normativo, atribuitivo. Em sentido
normativo, são usadas para definir o conceito de dolo em sentido amplo e para legitimar essa descrição
como um substantivo da vontade. Em sua aplicação ao caso concreto, aparecem elas em sentido descriti-
vo-psicológico. Ao final das contas, da oposição entre injusto querido e não querido, na qual se baseia a
diferença de desvalor entre dolo e culpa consciente, nada mais resta do que a distinção entre confiança
m eram ente vaga (dolo) e séria (culpa) na não-ocorrência da realização do tipo” (A distinção entre dolo e
culpa, São Paulo: Manole, 2004, p. 50, tradução e notas de Luís Greco).

iL
P a u )o Q u e ir o z

querendo matar um desafeto, de posse de uma arma de fogo, dispara tiros em sua
direção; de furto, quando, pretendendo apossar-se de um automóvel, aciona o
motor com chave falsa, fugindo a seguir; de receptação, quando adquira mercado­
ria que sabe roubada; de estupro, quando, visando manter relações sexuais com
uma mulher, faça uso de violência ou grave ameaça para tanto. Necessariamente o
dolo deverá ser contemporâneo da prática da conduta criminosa, de modo que, se
for posterior ou anterior à conduta, não se caracterizará. Assim, por exemplo, se,
após comprar mercadoria em condições normais e de boa-fé, o agente vier a saber
dias depois que se tratava de coisa obtida criminosamente, não há dolo de recepta­
ção na modalidade “adquirir” (CP, art. 180), porque a aquisição do conhecimento é
posterior (e não contemporânea) à consumação do fato.
Portanto, o dolo deve existir ao tempo da execução do crime e nãb depois de con­
sumado; mas isso não significa que deva existir durante toda a fase de execução, pois
mesmo que o agente desista ou se arrependa e tente inutilmente evitá-lo, responderá
por crime doloso. Assim, por exemplo, se o autor de um atentado, depois de colocar a
bomba, arrependido, tenta por rádio conseguir uma aterrissagem prematura do avião
e assim salvar os passageiros, responderá a título de dolo, se não tiver êxito.15
Também não basta a existência de dolo antecedente à execução, porque o dolo
na fase de cogitação ou preparação não é punível como tal: quem adquire uma arma a
fim de matar, persegue a vítima, aponta em sua direção e desiste de fazê-lo, mas ainda
assim dispara acidentalmente, responde por crime culposo e não doloso.

4. Elementos do dolo: representação e vontade

Por conseguinte, o dolo compreende um elemento cognitivo (ou intelectivo)


e um volitivo, é dizer, o agente deve conhecer os elementos do tipo (elemento cog­
nitivo) e querer realizá-lo (elemento volitivo). O primeiro compreende todos os
elementos (objetivos, subjetivos, normativos) constitutivos do tipo, além do conhe­
cimento do caráter proibido do fato; o segundo, a vontade, mais ou menos clara, de
praticá-lo. Com efeito, embora ainda hoje haja muita divergência16 sobre se o dolo
exige só representação (teoria da representação) ou se é também vontade (teoria da
vontade), fato é que representação sem vontade é coisa inexpressiva, e vontade sem

15 Roxin, Derecho Penal, cit., p. 454.


16 Silva Sánchez, que comparte, no essencial, da concepção de Frisch acerca do dolo, entende que a volun-,
tariedade não é elemento do dolo, mas um elemento da ação, comum, portanto, aos delitos dolosos e cul­
posos. O específico do dolo em face da culpa é, pois, que o sujeito que atua dolosamente con hece o signi­
ficado típico da conduta que realiza voluntariamente, e o sujeito imprudente desconhece em toda a sua
dimensão esse significado, de sorte que o decisivo são os aspectos cognoscitivos, e não os volitivos
(Aproximación, cit., p. 401-402). No entanto, como assinala Luzón Pena, quando se refere à vontade no
crime doloso, não se quer aludir à vontade genérica da ação, comum aos crimes dolosos e culposos, mas»
precisamente, à vontade de realizar a conduta típica, isto é, o querer realizar todos os elementos do tipo
de que se tem conhecimento (Curso, cit., p. 411).
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

representação é impossível (Florian), pois o primeiro, o conhecimento, é pressu­


posto do segundo, a vontade, que não pode existir sem aquele,17 uma vez que nin­
guém pode querer realizar algo que não conheça.18
Afinal, não se pode querer conscientemente senão aquilo que se previu ou
representou em mente, ao menos em parte; por conseqüência, para agir com dolo,
não basta que o evento tenha sido previsto pelo agente; é preciso que seja queri­
do,19 de modo que a representação, embora necessária, não é suficiente à caracte­
rização do dolo.20 Assim, por exemplo, em relação ao crime de estupro com violên­
cia presumida (CP, art. 213), para a exata caracterização do dolo, o agente deverá
saber que está diante de uma “mulher”, que é “menor de 14 anos”, que resiste seria­
mente ao ato - elemento cognoscitivo - , e agir no sentido de “constrangê-la,
mediante violência ou grave ameaça” e de “ter com ela conjunção carnal” - ele­
mento volitivo - , sob pena de o dolo não se configurar, seja por ausência de repre­
sentação, seja por ausência de vontade.
O Código, ao dispor que há crime doloso “quando o agente quis o resultado ou
assumiu o risco d e p rod u zi-lo” (CP, art. 18, I), deixou claro ao menos, por meio
dessa fórmula um tanto ambígua (assum ir o risco), que, para a configuração do dolo
eventual, não é suficiente a presença de elementos cognitivos, mas também de ele­
mentos volitivos.21
Dolo direto e dolo eventual têm, pois, o mesmo tratamento jurídico-penal e
estão sujeitos à mesma pena. Mas nalguns casos a lei exige, para configuração de
determinados crimes, dolo direto, não bastando o dolo eventual, a exemplo da
receptação dolosa (CP, art. 180, caput), que reclama, de parte do sujeito ativo, que
saiba, isto é, que tenha certeza de que a coisa é produto de crime; não sendo sufi­
ciente o dolo eventual.

5. Espécies de dolo: dolo direto e dolo eventual

Atualmente a doutrina brasileira distingue em geral duas espécies de dolo: o


dolo direto e o dolo eventual, restando superadas outras classificações, como dolo

17 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 244.


18 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 59.
19 Magalhães Noronha, Direito penal , cit., p. 144.
20 Hungria, Comentários, cit., p. 114.
21 No mesmo sentido, Hungria: “vê-se que o legislador de 40, ao fixar a noção de dolo, não se ateve à cha­
mada teoria da representação (para a existência dodolo, basta a representação subjetiva ou previsão do
resultado como certo ou provável), que, aliás, na sua pureza, está inteiramente desacreditada; e, com acer­
to, preferiu a teoria da vontade (dolo é vontade dirigida ao resultado) completada pela teoria do consen­
timento (é também dolo a vontade que, embora não dirigida diretamente ao resultado previsto como pro­
vável, consente no advento deste ou, o que vem a ser o mesmo, assume o risco de produzi-lo)”
{Comentários, cit., p. 114). Note-se que a redação original do CP não mudou com a reforma de 84, que
dispunha (art. 1 5 ,1) que havia crime doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de pro­
duzi-lo”.
Paulo Queiroz

alternativo, dolo genérico ou dolo específico.22 Dolo direto há quando o autor quer
o resultado e age no sentido de realizá-lo, como nos exemplos antes citados;23 e
dolo eventual, quando, fora do caso anterior, o agente considera seriamente possí-
vel a realização do tipo e se conforma com isso,24 ou, para dizê-lo com o Código (art.
1 8 ,1, parte), no dolo eventual, o agente assume o risco de produ zir o resultado.
Mas a distinção não é tão fácil assim, conforme se verá logo mais.
A doutrina, especialmente alemã e espanhola, distingue ainda dolo de primei­
ro grau de dolo de segundo grau: o primeiro compreende o resultado ou resultados
que o agente persegue diretamente; o segundo, todas as conseqüências que, mesmò ,
que não perseguidas e até eventualmente lamentadas, o autor prevê como inevitá­
veis. Assim, por exemplo, quem coloca uma bomba num automóvel pretendendo -
atingir uma pessoa determinada sabe que poderá matar outras pessoas próximas ou,
que acompanhem a vítima. Existirá assim dolo de primeiro grau quanto à primeira
vítima e dolo de segundo grau quanto às demais.
Também aqui não existe distinção quanto ao tratamento legal nem quanto à pena v
cominada, mesmo porque o Código Penal brasileiro não a conhece nem a refere.

6. Dolo eventual e culpa consciente: distinção

Delimitar o dolo eventual da culpa consciente, conforme disse Welzel, é umí


dos problemas mais difíceis e discutidos do direito penal.25
Pode-se todavia dizer que diferentemente da culpa consciente (ou culpa com i
previsão), no dolo eventual, o agente, ainda que só indiretamente, quer o resulta-^
do,26 isto é, aceita a sua produção; na culpa consciente, porém, há mera previsão;;

22 Como assinala Juarez Tavares, não há mesmo razão cientifica alguma na apreciação da terminologia dej
dolo de ímpeto, dolo alternativo, dolo determinado, dolo indireto, dolo específico ou genérico, quepodè^
trazer confusão à matéria e que se enquadra ou entre os elementos subjetivos do tipo ou nas duas espécies',
mencionadas (Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo, Revista de Direito Penal, Rio de-.
Janeiro: Borsoi, n. 6 , p. 22, 1972).
23 A doutrina alemã refere, além do dolo direto e eventual, a intenção (ou propósito), em verdade, espécie ''
do gênero dolo direto (em sentido amplo). Para Roxin, segundo o qual ‘“a realização do plano’ constitui.a^
essência do dolo: um resultado há de se considerar dolosamente produzido quando e porque se correspon' -
de com o plano do sujeito em sua valoração subjetiva”, “sob o conceito de intenção ou propósito cai o quç .
o sujeito persegue; por dolo direto (de segundo grau) são abrangidas todas as conseqüências que, embora.-^
não as persiga, o sujeito prevê que se produzirão com segurança; e com dolo eventual atua quem nãopeT"
segue um resultado e tampouco o prevê como seguro, senão que só prevê que é possível que se produza*:^
porém para o caso de sua produção o assume em sua vontade” (Derecho penal, cit., p. 415). Apesar da dis*Y
tinção, desnecessária, entende Jescheck que, diante da certeza de que em todo caso se realiza o tipo, cabe, ,
equiparar o dolo direto com a intenção quanto ao conteúdo do injusto e da culpabilidade ( Tratado, cit.p ..
269). Adotando a distinção proposta pela doutrina alemã, entre nós, Juarez Cirino dos Santos, A moderDK
teoria do fato punível, 2. ed., Rio de Janeiro: Revan.
24 Jescheck, Tratado, cit., p. 269. ' .«
25 Derecho penal alemán, cit., p. 83.
26 Como diz Silva Franco, tolerar o resultado, consentir na sua provocação, estar com ele conforme, assu®^*
o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de aprova*"0
resultado alcançado, enfim, o de querê-lo (Código Penal e sua interpretação jurisprudencial , cit., p- *■”*'
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

sem que com isso se aceite o resultado. No dolo eventual, pois, o autor atua segun­
do a fórmula: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”
(Frank)- Na culpa consciente há um erro de cálculo enquanto no dolo eventual há
uma dúvida.27
Existe, por conseguinte, entre dolo eventual e culpa consciente, como obser­
va Hungria, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico, ma?, enquanto
no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo
arriscar-se a produzi-lo, em vez de renunciar à ação, na culpa consciente, ao con­
trário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência
do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocor­
rerá,28 pois assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o
risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este a ocorrer realmente.29
Se, por exemplo, A, portador do vírus HIV, mantém relações sexuais com B, sua
parceira, sem adotar qualquer precaução, motivo pelo qual B contrai o vírus (e a
doença), responderá A a título de dolo eventual (de homicídio ou lesão grave, con­
forme o caso); se, porém, utiliza preservativo e ainda assim ocorre a contaminação
em razão do seu rompimento, haverá culpa consciente.30 E que no primeiro caso o
agente assumiu o risco de produzir o resultado; no segundo, confiou em que, com
a adoção dos cuidados mínimos, tal não ocorreria.
Pode-se enfim dizer que há dolo eventual quando o sujeito conta seriamente
com a possibilidade de realização do tipo, mas segue atuando para alcançar o fim
perseguido e se conforma com a eventual produção do resultado; contrariamente,
haverá culpa consciente quando preveja a realização do tipo, mas não a toma a sério
e, em conseqüência, tampouco se conforma com sua ocorrência, acreditando,
imprudentemente, que não se realizará.3! Existe culpa consciente em geral por
parte de médicos que realizam cirurgias especialmente perigosas e causam a morte
do paciente por imprudência ou imperícia; com mágicos que submetem a si e a
outras pessoas a truques muito arriscados; com pessoas que praticam esportes radi­
cais, com dublês em estúdio de cinema etc., que sabem que podem ferir ou matar,
e produzem resultados imprudentes, mas não agem dolosamente.
Apesar disso, forçoso é reconhecer, com Tavares, que a distinção entre dolo
eventual e culpa consciente continua sendo um dos pontos mais controvertidos e
nevrálgicos da teoria do delito,32 mesmo porque no fundo tanto no dolo eventual
quanto na culpa consciente o agente assume igualmente, segundo pensamos, o
nsco de produzir o resultado. O que de fato distingue uma situação da outra é que

"P Paulo José da Costa Júnior, Curso de direito penal, São Pauio: Saraiva, 1999, p. 83.
29 ^onienfános, cit., p. 116-117.
•jq Hungria^ Comentários, cit., p. 122.
Cf. Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 289.
Roxin, D erecho penal, cit., p. 427.
Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 283.
na primeira o autor quer, ainda que só eventualmente, o resultado, ao passo que na
segunda não o quer, nem mesmo indiretamente. Dito de outra forma: no dolo
eventual, o agente assume o risco e assume o seu possível resultado; na culpa cons­
ciente, ao invés, o agente assume o risco, mas não assume o resultado, acreditando
(e desejando) que não ocorrerá.

6.1. Dolo eventual e culpa consciente: teorias

Para distinguir dolo eventual e culpa consciente, a doutrina ora recorre a cri­
térios cognitivos (intelectuais), ora apela a critérios volitivos. Dentre as primeiras
teorias, convém referir a teoria da representação (ou da possibilidade), a teoria da
probabilidade, a teoria da evitabilídade e a teoria do risco. Dentre'as segundas, as
teorias do consentimento ou da assunção e a teoria da indiferença.
Para a teoria da representação (Schrõder e Schimdhãuser), que só admite a
culpa inconsciente, negando a existência da culpa consciente, haverá dolo eventual
sempre que o agente admita conscientemente a possibilidade da ocorrência do
resultado, razão pela qual a distinção entre dolo e culpa reside no conhecimento ou
desconhecimento do autor quanto aos elementos do tipo objetivo, de modo que, se
houver conhecimento, haverá dolo, se não, haverá culpa.33
Já para a teoria da probabilidade, que é uma variante da anterior, haverá dolo
eventual sempre que o autor tiver considerado como provável a lesão do bem jurí­
dico. Adepto dessa corrente, Jakobs considera que há dolo eventual quando, no
momento da ação, o autor julgar que a realização do tipo não é improvável como
conseqüência de sua ação, mas para tanto não basta o mero pensar na possibilida­
de do resultado, pois é necessário ainda um conhecimento que se apresente ao
autor como capaz de produzir o resultado segundo a experiência, não se tratando
de mera especulação, é dizer, para configuração do dolo eventual, exige-se um juízo
refletivo, válido, sobre o poder concreto de lesão de sua ação.34 Assim, por exem­
plo, quem, para ganhar uma aposta, atira na direção de uma bola de cristal que uma
pessoa sustenta na mão, atua com dolo eventual de lesões, não o d e s c a r a c te r iz a n d o
o seu esforço para s ó acertar o alvo e não a pessoa.35
Também Puppe entende que um perigo será um perigo doloso, que funda­
menta o dolo, quando ele representar em si um meio idôneo para a provocação do
resultado, sendo que os critérios com base nos quais se deve valorar se um perigo e
ou não idôneo não são entregues à disposição do autor, mas determinados norma-
tivamente, como critérios objetivos.36 Assim, de acordo com Puppe, que trabalha
com o critério do conhecimento sobre um perigo qualificado, haverá dolo quando

33 Juarez Tavares, Teoria do injusto p en ai p. 335.


34 Derecho penal , p. 327.
35 Derecho penal , p. 327.
36 A distinção entre dolo e culpa, cit., p. 79 e s.
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

o perigo que o agente, consciente ou supostamente, produziu para o bem jurídico


for de tal quantidade e qualidade que uma pessoa sensata ou cuidadosa só o aceita­
ria sob a condição de que o resultado deveria ocorrer.37
De acordo com a teoria da evitabilidade (Armín Kaufmann), sempre que o
agente representar como possível o resultado, haverá dolo eventual, exceto se agir
concretamente de modo a evitá-lo, caso em que haverá culpa consciente. Já segun­
do a teoria do risco, formulada por Frisch, para a configuração do dolus eventualis
é suficiente o conhecimento do risco não permitido, não sendo necessária a presen­
ça de elementos volitivos de nenhuma espécie, motivo pelo qual haverá dolo even­
tual sempre que o autor tiver conhecimento desse risco, que não é qualquer risco,
mas o risco tipificado como ação proibida.38
Finalmente, para as teorias da vontade, à caracterização do dolo não basta a só
representação ou possibilidade de ocorrência do resultado, pois o decisivo para
tanto é a vontade dirigida à realização dos elementos do tipo. Assim, para a teoria
do consentimento ou da assunção, é necessário que o autor se ponha de acordo com
o resultado lesivo que previu concretamente, existindo dolo sempre que o autor
aceitar o evento ou aprová-lo ou consenti-lo. Já a teoria da indiferença (Exner,
Engisch) tem que a distinção entre dolo e culpa reside no alto grau de indiferença
do autor para com o bem jurídico ou sua violação.
Nenhum dos aludidos critérios satisfaz, porém, mesmo porque a complexida­
de e riqueza dos fatos excedem, freqüentemente, as presunções/pretensões teóricas.
De todo modo, é preciso ter presente que o dolo é um conceito referencial, que
sempre remete a um tipo penal específico, razão pela qual não existe “dolo” sim­
plesmente, mas “dolo de” (“dolo de tipo”), isto é, dolo de matar, de furtar, de estu­
prar etc. Assim, por exemplo, quem, de posse de arma de fogo, atira contra alguém,
tanto pode responder por homicídio como por lesões corporais, dolosa ou culposa-
mente, tudo a depender do conteúdo exato da vontade a ser verificado in co n cre­
to: se atirou em região letal (v. g., a cabeça), com intenção de matar, haverá homi­
cídio (tentado ou consumado, conforme o caso); se quis só lesionar, alvejando
região não letal (v. g., o pé), haverá lesão corporal; se, no entanto, pretendeu assus­
tar um amigo com uma arma que supunha, fundadamente, descarregada, haverá
crime culposo.
Ademais, expressões como “assumir o risco”, “aprovar o resultado”, “ser indi­
ferente ao resultado” etc., embora importantes para apuração do caráter doloso ou
culposo do crime, são apenas critérios indiciários da natureza do atuar criminoso,
uma vez que imprescindível é sempre a consideração das múltiplas variáveis que
envolvem o caso concreto.
E de convir finalmente, com Juarez Tavares, que, dada a equiparação legal, o
dolo, seja direto, seja eventual, deve ter uma base normativa comum que justifique

37 Juarez Tavares, cit. p. 336.


38 Cf. Roxin, D erecho penal, p. 439-440.
sua inclusão no âmbito volitivo do sujeito,39 sendo decisivo, por isso, conhecer o:
conteúdo da vontade do agente, concretamente manifestada, já que ele pressupõe''
sempre querer realizar o tipo, lesando o bem jurídico. JSj

7. Elementos subjetivos do tipo?

A doutrina distinguia - distinção hoje grandemente superada - entre dclo


gen érico e dolo específico. Aquele - escrevia Magalhães Noronha - “reside na vori-1
tade de realizar o tipo descrito na lei”, enquanto este “é considerado como um
especial e próprio do delito”. De acordo com tal formulação, portanto, o dolo com-í
preendia todos os elementos do tipo; mas haveria um dolo genérico, compreensivo^
do tipo objetivo e, eventualmente, um dolo específico, compreensivo dos elemen-^j
tos subjetivos especiais referidos no tipo.
Superada tal distinção, por se entender que o dolo é um só, permanceu-se ado­
tando, porém, um conceito restritivo de dolo, isto é, dolo como realização do tipo.
objetivo unicamente, razão pela qual a doutrina moderna fala de elementos subjeÊ
tivos do tipo ou elem entos subjetivos do injusto, para assim designar “todos aquef
les requisitos de caráter subjetivo distintos do dolo que o tipo exige para sua reáli
zação”. Numa palavra, o que antes se chamava “dolo específico” chama-se agora
“elementos subjetivos do tipo” ou “elementos subjetivos do injusto”. Assim, o an ifi
mus furandi no furto (art. 155), o “intuito de obter vantagem econômica”, na extor­
são (CP, art. 158) etc. não estariam compreendidos no dolo; seriam elementos sub‘-1
jetivos do injusto que dele se distinguiriam.
Os elementos subjetivos do injusto seriam, assim, conforme definição de Da-J;
niela Marques, elementos do campo psíquico-espiritual do agente, traduzidos em.j
especiais tendências, intenções ou propósitos (fim especial de agir) que condicio-T
nam ou que fundamentam o juízo de ilicitude do comportamento.40 Deu-se, por-j
tanto, ao antigo “dolo específico” nova denominação.
Ocorre que, se o dolo compreende, como assinalado, todos os elementos do
tipo, parece evidente que deverá também compreender tais elementos, não fazen- •r
do sentido, por conseguinte, pretender autonomizá-los em face do conceito de ^
dolo.41 Com efeito, se se entende dolo como “saber e querer a realização do tipo ,
tal há de compreender, necessariamente, todos os elementos que o integram, pouco
importando se objetivos ou subjetivos, mesmo porque o conceito de dolo é um con­
ceito referencial, e, pois, só tem sentido em referência a uma descrição típica certa i

39 Teoria do injusto, p. 346. *


40 Elementos subjetivos do injusto, cit., p. 119.
41 Divirjo, portanto, da doutrina, a exemplo de Cezar Bitencourt, para quem “o especial fim de agir ou mot*
vo de agir, embora amplie o aspecto subjetivo do tipo, não integra o dolo nem com ele se confunde, unia
vez que (...) o dolo esgota-se com a consciência e a vontade de realizar a açâo com finalidade de obter o
resultado delituoso” ( Manual, cit., p. 216).
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

e determinada, não havendo por que se lhe restringir o alcance a determinados ele­
mentos seus - os objetivos. Afinal, não existe, realmente, um “dolo genérico” ou
um “dolo específico”, mas um “dolo de tipo”, isto é, um dolo de matar, de furtar
etc., compreensivo, portanto, de todos os elementos que o formam.
Finalmente, a pretendida distinção entre elementos objetivos, subjetivos e
n o rm ativ o s do tipo é bastante questionável, em virtude do caráter estruturalmen­
te aberto da linguagem.42

8. Crime qualificado pelo resultado: preterdolo ou


preterintencionalidade

Diz-se preterdoloso (de p raeter dolus, isto é, além do dolo) ou preterintencio-


nal o crime quando, num mesmo tipo penal, conjugam-se dolo e culpa, de modo
que o delito consiste na fusão de ambos, havendo dolo no ato antecedente e culpa
no conseqüente. Trata-se, portanto, de um comportamento doloso cujo resultado
final é punido a título de culpa. Assim, por exemplo, o crime do art. 129, § 3S, do
CP, em que se pune a lesão corporal a título de dolo e a morte a título de culpa,
desde que “as circunstâncias evidenciem que o agente não quis o resultado, nem
assumiu o risco de produzi-lo”, ou seja, o agente quis, simplesmente, causar lesão
(v. g., por meio de um soco), vindo, porém, a matar a vítima, tal foi a violência do
impacto. Na preterintencionalidade o resultado vai além da intenção do agente.
O crime preterdoloso pressupõe, por conseguinte, que o autor não tenha
agido, em relação ao resultado final de sua ação, com dolo, nem mesmo eventual,
mas com culpa, pois do contrário ou responderá por crime doloso (homicídio, con­
forme o exemplo) ou somente por crime de lesão corporal (também dolosa), caso
fique provado, neste último caso, que a morte era imprevisível e inevitável, sob
pena de consagração da responsabilidade penal objetiva (sem culpa). O Código no
particular é claro ao determinar que “pelo resultado que agrava especialmente a
pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente” (art. 19).
Cumpre não confundir, finalmente, crime preterintencional com crime qua­
lificado pelo resultado, pois o primeiro é espécie do segundo (seu gênero), ou seja,
todo crime preterdoloso é um crime qualificado pelo resultado, mas nem todo
crime qualificado pelo resultado é um crime preterdoloso. É que há crimes qualifi­
cados pelo resultado cuja circunstância qualificadora resulta não de culpa (como
°corre no crime preterintencional), mas de dolo mesmo, tratando-se, em conse-

Por isso, Rosa Maria Cardoso da Cunha, quando afirma que é arbitrária a distinção feita pelo pensamen-
to dogmático entre elementos descritivos e normativos, com o fim de situar apenas estes últimos como
objeto valorativo do juízo, porque tal distinção desconsidera a circunstância de que nenhum elemento do
tipo pode ser conhecido pela simples verificação sensorial. Com efeito, mesmo expressões como homem,
casa, membro etc. apontam para objetos que reclamam um juízo histórico e valorativo. O caráter retóri­
co do princípio da legalidade. Porto Alegre: 1979, p. 64.
P a u lo Q u e ir o z

qüência, de um crime doloso (apenado mais gravemente em razão do resultado).


Assim, por exemplo, as lesões corporais graves previstas no art. 129, §§ l s e 2».
Existem ainda, além dessa combinação de dolo e dolo, delitos qualificados que
resultam da fusão de culpa e culpa, a exemplo do desastre ferroviário culposo com
resultado de lesão ou morte culposa (CP, arts. 260, § 2e, e 263).

8.1. Inconstitucionalidade dos crimes qualificados pelo resultado?

Tem-se objetado, não sem razão, que os crimes qualificados pelo resultado são
inconstitucionais, uma vez que atentam contra os princípios de proporcionalidade
e isonomia.
Nesse sentido, Juarez Cirino assinala que “os crimes qualificados pelo resulta­
do, especialmente os tipos com lesão corporal ou roubo com resultado morte
imprudente (por exemplo, A golpeia o rosto de B com um revólver carregado, que
dispara e acidentalmente mata B), são incompatíveis com o princípio da culpabili­
dade, porque a gravidade da pena é desproporcional em relação às punições inde-
pendentes do tipo fundamental e do homicídio imprudente, o que transforma a
responsabilidade penal por tais crimes numa versão moderna do velho versari in re
illicita do direito canônico, originando propostas desde a redução corretiva da
pena, como quer Jakobs, até a abolição d e leg e ferenda dos crimes qualificados pelo
resultado, como sugere Jescheck”.43
Posição semelhante adota Tavares, para quem os delitos qualificados pelo
resultado só poderiam ser admitidos se constituídos com o mesmo conteúdo de
injusto dos delitos que resultassem de uma relação de concurso formal, pois do con­
trário violam o sistema de fundamentação do injusto penal, porque não represen­
tam maior gravidade na lesão ou perigo de lesão ou no perigo de lesão de bem jurí­
dico.44 Considera ainda que no que toca à pena cominada, por exemplo, aos crimes
de lesão seguida de morte e latrocínio, pela disparidade das sanções possíveis, acres­
cidas no máximo de agravação do concurso formal, pode-se afirmar que se está vio­
lando o princípio da proporcionalidade, segundo o qual para resultados danosos
idênticos deve-se seguir a mesma conseqüência penal.45 Já Roxin entende que as
objeções, embora procedentes em parte, não justificam a abolição dos crimes qua­
lificados pelo resultado, mas sugerem uma ampla restrição dos mesmos à provoca­
ção temerária do resultado mais grave.46
De todo modo, enquanto existirem tipos qualificados pelo resultado será pre­
ciso estar atento para a não aplicação de penas desproporcionais, isto é, penas que

43 A moderna teoria, cit., p. 127.


44 Teoria do injusto penai, cit., p. 199.
45 Teoria do injusto penal, cit., p. 198.
46 Derecho penai, cit, p. 331.
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

excedam àquelas que seriam cabíveis para o concurso de crimes, sobretudo concur­
so material de crimes.

9. Ausência de dolo: erro de tipo

A teoria do erro de tipo (erro de tipo essencial) se relaciona diretamente com


a teoria do dolo, porque o erro de tipo não é outra coisa senão a negação da repre­
sentação exigida para o dolo, ou seja, há erro de tipo quando o autor desconhecer
os elementos do dolo segundo o correspondente tipo.47 Assim, quanto ao conteú­
do, o dolo pode consistir tanto em uma represen tação falsa da realidade como na
sua falta d e representação, pois o erro é, em termos gerais, a discrepância entre
consciência e realidade.48
Com efeito, se o dolo pressupõe a consciência e a vontade de realizar os ele­
mentos do tipo, segue-se que não se terá por dolosa a ação sempre que o agente
errar sobre os elementos que o constituem, pois faltará a exata representação da
realidade, não importando, para tanto, se descritivos ou normativos os elementos
sobre os quais recai o erro. Por exemplo, em relação ao tipo de homicídio, quando
numa caatinga fechada o agente atira contra o que supõe ser um animal, vindo a
matar, porém, uma pessoa, caso em que erra sobre o “alguém” (elemento constitu­
tivo) do art. 121 do CP; o mesmo ocorrendo quando na hipótese de furto imagine
sua coisa alheia (digamos, uma bolsa que se assemelhe à sua), saindo em seguida,
situação em que erra sobre o “alheia” do art. 155; ou quando no estupro (com vio­
lência presumida), tiver que sua parceira é maior de 14 anos etc. Em todos esses
casos, que põem em evidência a ausência de dolo, já que em todos eles o agente não
conhece nem quer praticar crime algum, dá-se o que se convencionou chamar erro
de tipo, exatamente porque incidente sobre seus elementos essenciais.
O erro de tipo consiste, por conseguinte, na ausência ou na falsa represen­
tação da realidade, motivo pelo qual, comprovado o engano do sujeito ativo,
excluir-se-á o dolo, respondendo o agente somente a título de culpa, se culpa
houver e se se tratar de crime punível a esse título. Dele cuida o art. 20, caput,
do Código Penal, que tem a seguinte redação: “o erro sobre elemento constituti­
vo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culpo­
so, se previsto em lei.”
A conseqüência invariável, portanto, do erro de tipo, é a exclusão do dolo,
afastando, em princípio, a própria tipicidade penal, podendo o agente responder
por crime culposo, se culpa existir (erro de tipo evitável ou culposo) e desde que o
tipo penal de que se trate preveja a forma culposa.

47 Jescheck, Tratado, cit., p. 275.


48 jescheck, Tratado, cit., p. 275.
Paulo Q u e iro z

9.1. Espécies de erro de tipo: erro inevitável e evitável

O erro de tipo pode ser, portanto, inevitável - logo, escusável - ou evitável,


inescusável, pois. No primeiro caso, o sujeito ou não tem noção alguma da realida­
de que o circunda, ou a tem de forma inexata, sendo levado a tal circunstância de
modo absolutamente inevitável, como ocorre nos casos antes referidos. Em ambas
as situações o agente não responderá por crime algum, porque, dadas as circunstân­
cias (a serem concretamente avaliadas), não imaginava que matava um ser huma­
no ou que se apossava de coisa alheia; não sabia, enfim, que realizava os tipos legais
de homicídio e furto.
Dá-se o erro evitável sempre que a ele for levado o agente por falta de pru­
dência, podendo evitá-lo caso fosse minimamente cuidadoso. Assim, se o caçador
pudesse saber que mirava uma pessoa e não um animal, caso tivesse adotado as cau­
telas mínimas, como aproximar-se mais do alvo, verificar melhor etc. Em tal hipó­
tese, em face da evitabilidade do erro, o caçador responderá por crime culposo,
visto que o homicídio é punível a esse título. O mesmo não ocorreria quanto ao
furto, pois tal delito não é punível na forma culposa.
Significa dizer que a punição a título de culpa, na hipótese de erro evitável
(erro culposo), somente ocorrerá se o crime de que se trate admitir a forma culpo­
sa, porque do contrário não haverá punição alguma, ou seja, mesmo em se tratan­
do de erro evitável, ocorrerá a exclusão da tipicidade (princípio da legalidade).
Assim, por exemplo, na hipótese de mulher grávida que aborta culposamente
(digamos, tomando um remédio para úlcera, mas que, sem que o saiba, cause o
aborto), já que semelhante crime só é punido na forma dolosa, não existindo crime
de aborto culposo. Essa é uma conseqüência direta da norma do art. 18, parágrafo
único, do Código Penal, que determina que, “salvo os casos expressos em lei, nin­
guém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o praticar dolo­
samente”, de sorte que a punição a título de culpa é uma situação excepcional,
somente admissível quando o tipo penal de que se trate preveja a modalidade cul­
posa expressamente.
Pode ainda o erro de tipo acarretar outros efeitos que não a exclusão do dolo
ou da culpa, como a desclassificação do delito. Assim, se o sujeito desacatar funcio­
nário público, desconhecendo essa sua qualidade, poderá responder não por desa­
cato (CP, art. 331), mas por crime contra a honra (v. g., injúria). Também pode o
erro incidir sobre circunstâncias agravantes ou qualificadoras. Exemplo: quem
induz a própria filha a satisfazer a lascívia de outrem, ignorando a relação de paren­
tesco, não responde pela qualificadora prevista no art. 227, § l 9, do Código,49
embora responda pelo crime na forma simples.

49 D a m á s io , Direito pen al c it., p. 3 0 1 .


D ir e ito P e n a l - P a r te G era l

Finalmente, além desse erro de tipo (essencial) de que estamos tratando, have­
rá erro de tipo acidental, que não afasta nem o dolo nem a culpa, nos seguintes casos:
erro sobre a pessoa (error in person a), erro na execução (aberratio ictus), resultado
diverso do pretendido (aberratio criminis) etc., dos quais se tratará mais adiante.

10. Ausência do conhecim ento do injusto: erro de proibição

10.1. Conceito

Há erro de proibição ou “erro sobre a ilicitude do fato”, como prefere o Código


(art. 21), quando o agente supõe, erradamente, praticar um fato juridicamente per­
mitido, mas realiza em verdade um comportamento proibido pelo direito. No erro
de proibição, portanto, o agente engana-se quanto ao caráter proibido (ilícito) do
seu comportamento, supondo lícita uma ação ilícita. Assim, um estrangeiro (cida­
dão holandês, p. ex.) que desembarcasse na Bahia com pequena quantidade de
maconha para consumo pessoal, imaginando que tal fosse permitido entre nós,
como no seu país de origem. Diferentemente do erro de tipo, portanto, em que o
agente não sabe o que faz, no erro de proibição o agente sabe exatamente o que faz,
mas supõe atuar dentro da legalidade, legitimamente, tal como no exemplo do
“matuto” que, tendo por hábito (comum na sua região) caçar aos domingos, vem a
ser preso (por crime contra o meio ambiente e porte ilegal de arma) ao trazer no
alforje algumas perdizes que abatera naquele dia festivo. Distinguindo por meio de
um exemplo: se o sujeito tem em casa cocaína supondo ser outra substância, inó­
cua, trata-se de erro de tipo; mas se a tem supondo que o depósito não é proibido,
o tema é de erro de proibição.50 São também exemplos freqüentes de erro de proi­
bição: tirar cópia de livro, baixar músicas via internet etc., caso se entenda que
algumas dessas práticas configuram violação de direitos autorais, bem como adqui­
rir produtos estrangeiros introduzidos no país clandestinamente (receptação).
Dessa modalidade de erro cuida o art. 21, caput, segunda parte, do Código
Penal, que tem o seguinte enunciado: “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitá­
vel, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

10.2. Objeto da consciência do injusto

Para a configuração do erro de proibição, não basta a consciência da lesivida­


de social ou a só consciência da imoralidade da conduta, uma vez que as valorações
sociais e morais são tão variáveis em uma sociedade pluralista que o direito não
poderia exigir a orientação incondicional a tais valores, de modo que o sujeito

50 D a m á s io , Direito penal, c it., p. 3 0 3 .


Paulo Queiroz

somente pode ser considerado culpável quando desatenda, conscientemente, a


proibições e mandamentos jurídicos.51 Numa palavra: tem consciência do injusto
quem sabe que seu comportamento é proibido pelo direito. Logo, incorre em erro
de proibição quem, fundada e concretamente, julga atuar conforme o direito,
supondo juridicamente permitida sua atuação.
Para o conhecimento do injusto é pois suficiente a consciência de infringir
uma norma jurídica formalmente válida, pois em tal caso o sujeito sabe que atua
contrariamente ao direito, mas não se exige conhecimento do preceito jurídico
lesionado ou da punibilidade.52 Em conclusão, atua culpavelmente quem pratica
determinado comportamento sabendo-o contrário ao direito.

10.3. Divisibilidade do erro

A consciência da ilicitude é divisível não só em relação aos distintos tipos, mas


também quanto ao mesmo tipo quando este protege bens jurídicos distintos.53
Assim, por exemplo, no roubo (art. 157), se o autor toma com violência coisa do
deveder em mora, com conhecimento do injusto quanto à violência, mas podendo
errar quanto à subtração que julgava lícita, diante da ilegal resistência ao seu direi­
to. Pela mesma razão, o erro pode também recair sobre circunstâncias qualificado-
ras do tipo.
E ainda possível que o agente incida em duplo erro de proibição: desconhece
a proibição específica do tipo, mas o considera proibido por outra razão, quando, v. g.,
um tio seduz uma sobrinha menor de catorze anos, sem saber que tal constitua
estupro com violência presumida, mas imaginando que seja punido como incesto.
Nesse caso, tem uma falsa consciência da ilicitude, pois supõe uma proibição que
não existe, bem como ignora a que realmente existe, incorrendo em erro de proi­
bição, porque lhe falta a consciência do injusto específico do tipo.54

10.4. Espécies de erro: inevitável e evitável

À semelhança do erro de tipo, o erro de proibição pode ser inevitável ou evi­


tável. Se inevitável, haverá isenção de pena; se evitável, a pena será diminuída de
um sexto a um terço. Dir-se-á evitável o erro “se o agente atua ou se omite sem a
consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou

51 Roxin, Derecho penai, cit., p. 866 .


52 Jescheck, Trarado, cit., p. 410. De modo diferente Juarez Cirino, que, seguindo Otto, entende que conhe­
cimento do injusto significa conhecimento da punibilidade do comportamento através de uma norma
legal penal positiva, ou seja, consciência do injusto significa conhecimento de infringir uma presença0 ,
penal, embora não se exija conhecimento preciso dos parágrafos da lei infringidos (A moderna teoria, cit.»
p. 232-233).
53 Roxin, Derecho penal , cit., p. 870.
54 Roxin, Derecho pen ai p. 870.
D ir e ito P e n a l - P a rte G e ra l

atingir essa consciência” (CP, art. 21, parágrafo único). Vale dizer: somente terá
lugar a isenção de pena por erro inevitável quando o agente não puder, com um
esforço mínimo, obter concretamente o conhecimento do caráter ilícito do fato.
Portanto, o conhecimento que se exige não é atual, mas potencial (possibilidade de
atingir a consciência da ilicitude). Do contrário, não poderá, sem mais, socorrer-se
da isenção de pena, beneficiando-se apenas da redução da pena, por erro evitável.

10.5. Posição sistemática

Sistematicamente, distingue-se, como se vê, o erro de tipo do erro de proibi­


ção, porque, se no erro de proibição o Código utiliza a expressão “isenta de pena”,
no erro de tipo afirma que “exclui o dolo”. Significa dizer, portanto, que o erro de
tipo, excluindo o dolo, exclui a tipicidade; já o erro sobre a ilicitude do fato, isen­
tando de pena, exclui a culpabilidade, subsistindo o dolo e, pois, a tipicidade.
Tratando-se de erro evitável, dá-se o mesmo: lá (no erro de tipo), exclui-se o dolo,
subsistindo a punição a título de culpa (se o tipo admitir punição a esse título),
enquanto aqui (erro de proibição), diversamente, o sujeito continua respondendo a
título de dolo, mas com a pena diminuída de um sexto a um terço.
Em conclusão, o erro de tipo exclui a tipicidade; o erro de proibição, a culpa­
bilidade. E assim é porque o Código no particular aderiu ao finalismo, entendendo
dolo como dolo natural (neutro), dissociado da consciência da ilicitude, por consi­
derar que o potencial conhecimento da ilicitude é uma questão de culpabilidade e
■v não de tipicidade.
Por certo que, segundo o conceito de dolo aqui proposto (dolus malus), tal dis­
tinção carece de sentido, visto que em ambos os casos ocorreria a exclusão do dolo.
Como se verá mais adiante, o que aqui também se propõe é a equiparação entre
essas várias modalidades de erro por considerar que semelhante distinção não tem
razão de ser.

10.6. Desconhecimento da lei e desconhecimento da ilicitude do fato:


distinção

Não se deve confundir, porém, o desconhecimento da lei, que em princípio a


ninguém aproveita, com o erro de que estamos tratando. Com efeito, com declarar
que “o desconhecimento da lei é inescusável” (CP, art. 21), o legislador quer aten­
der a uma pretensão de segurança jurídica (necessariamente relativa), pois do con­
trário qualquer pessoa poderia em tese se escusar de cumprir a lei invocando a sua
'gnorância, de sorte que só juristas estariam obrigados a cumpri-la. Ninguém pode­
rá isentar-se, portanto, de pena declarando que não sabia que a lei proibia o homi­
cídio ou o roubo ou o estupro, por exemplo.
P a u lo Q u e ir o z

Naturalmente que entre o conhecimento da lei e o conhecimento do injusto


há uma íntima e forte relação e, por vezes, conhecimento da lei e conhecimento da
ilicitude significam uma só e mesma coisa. Como assinala Juarez Cirino, separar,
como faz a lei, conhecimento do injusto e conhecimento da lei para atribuir rele­
vância ao primeiro e irrelevância ao segundo é ignorar que o injusto penal só pode
existir como injusto tipificado na lei.55 E se no direito penal comum é relativamen­
te fácil ter ou atingir o conhecimento do injusto, o mesmo não se pode dizer quan­
to ao direito penal especial, em que freqüentemente tal pressupõe o conhecimento
do próprio texto legal e seus artigos. Conseqüentemente, hoje não se pode mais
pretender emprestar caráter absoluto à idéia de que “o desconhecimento da lei é
inescusável”, de sorte que o brocardo ignorantia legis non n em inem excusat per­
deu boa parte de seu prestígio em face do princípio da culpabilidade'. Afinal, quem
poderá saber, por exemplo, que é crime terem depósito ou guardar madeira, lenha,
carvão e outros produtos d e origem vegetal, sem licença da autoridade com peten ­
te (Lei nB 9.605/98, art. 46, parágrafo único)?56
O desconhecimento da lei, por conseguinte, mais do que atenuante, poderá e
deverá conduzir em muitos casos à absolvição mesma, pela ausência de culpabili­
dade, por encerrar um autêntico erro de proibição.57
O agente poderá, no entanto, conhecendo ou não a lei,58 e por uma série de
circunstâncias, errar sobre o caráter proibido do comportamento, já que a cons­
ciência da ilicitude se adquire (ou não se adquire) sobretudo com a socialização,
porque sabemos desde tenra idade que matar, roubar, estuprar, seqüestrar etc. é
crime, pois tal consciência do caráter anti-social da conduta se obtém com os con­
tatos e interações sociais que se processam nos mais diversos ambientes (família,
escola, trabalho). Exatamente por isso é que sabemos o que é um automóvel sem
conhecermos mecânica; sabemos o que é pneumonia sem conhecer medicina e
sabemos o que é ilícito sem conhecer o direito (Asúa).

55 A moderna teoria* cit., p. 245. Escreve o citado autor, textualmente: “separar conhecimento do injusto e
conhecimeno da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto e irrelevância ao desconheci­
mento da lei penal, é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei, hoje gene­
ralizado sob o conceito de tipo de injusto que, por força do princípio da legalidade, aparece na lei penal
sob a forma de tipo legal (ou tipo penal), como descrição do comportamento proibido; precisamente por­
que injusto penal e lei penal representam, respectivamente, as dimensões concreta e abstrata das proibi­
ções ou comandos do direito penal é possível, no direito penal comum, ter ou atingir o conhecimento da
lei através do conhecimento do injusto, mas no direito penal especial é, freqüentemente, impossível ter
ou atingir o conhecimento do injusto, exceto através do conhecimento da lei penal” (p. 245).
56 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 244-245.
57 No mesmo sentido, Mestieri: “Assim, de nenhum modo o sistema jurídico admite a alegação do desconhe­
cimento da lei; todavia, essa posição está em franca oposição ao moderno princípio da culpabilidade, o que
exige, obviamente, a capacidade concreta de agir (poder), na qual se insere, induvidosamente, não apenas
o conhecim ento da regra como a estruturação da vontade de maneira reprovável” (Manual de derecho
penal, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 182).
58 Como diz Paulo José da Costa Júnior, é possível ignorar a lei e conhecer a proibição; ou conhecer a lei e
ignorar a proibição da conduta (Curso, cit., p. 89).
D ir e ito P e n a l - P a rte G era l

Em síntese: é possível conhecer a proibição sem conhecer a lei, como ordina­


riamente ocorre, assim como é possível conhecer a lei e desconhecer a proibição,
havendo erro de proibição sempre que o agente, conhecendo ou não a lei, ignorar
a proibição. Normalmente quem desconhece a proibição também desconhece a
própria lei.

11. Erro sobre causas de justificação - erro de tipo permissivo

11.1. Conceito

Sob a rubrica de descriminantes putativas (= supostas), o Código trata das


situações em que o agente se supõe achar, erradamente, em legítima defesa, em
estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício
regular do direito (causas de justificação ou descriminantes). Cuida-se, portanto,
de erro sobre as descriminantes, daí o seu nome. Exemplo: alguém, jurado de
morte por seu desafeto, encontra-o em lugar ermo, e, vendo-o retirar um volu­
me do bolso, que imagina ser um revólver (em verdade é um aparelho celular),
atira contra ele precipitadamente, ferindo-o. Em tal hipótese, aquele que acredi­
ta se encontrar em estado de legítima defesa real, quando em verdade está em
situação de legítima defesa putativa, isto é, imaginária. Dessa modalidade de erro
cuida o art. 20, § 1°: “E isento de pena quem, por erro plenamente justificado
pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legí­
tima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punido
como crime culposo.”
Convém notar que, embora a lei se refira ao erro incidente sobre causas de jus­
tificação, há quem entenda59 que o erro também poderá recair sobre excludentes
de culpabilidade (coação moral irresistível, obediência hierárquica etc.) sempre
que o autor julgar, fundadamente, que se encontra numa tal situação, podendo
assim haver coação moral ou obediência hierárquica putativas, sempre que o autor
agir imaginando se achar sob coação moral irresistível ou no cumprimento de
ordem hierárquica superior que não existem realmente.

11.2. Espécies: erro inevitável e evitável

Também aqui o Código distingue o erro inevitável do erro evitável. Se inevi­


tável, o autor ficará isento de pena, sendo absolvido. Se evitável (erro culposo), o
agente responderá a título de culpa, se a esse título for apenado o delito, já que do
contrário não haverá punição alguma.

59 D am ásio, cit., p. 317.


P a u lo Q u e ir o z

11.3. Posição sistemática

Como se vê, o tratamento legal dado ao erro sobre causas de justificação é bas­
tante semelhante àquele conferido ao erro de tipo, pois em ambos os casos, se evi­
tável o erro, terá lugar a punição a título de culpa. Se inevitável, o agente será
absolvido da imputação que se lhe faz. Mas há uma diferença sutil: enquanto no
erro de tipo o Código diz claramente que o erro “exclui o dolo”, “mas permite a
punição por crime culposo”, no erro sobre descriminante o legislador optou por
dizer: “é isento de pena”, e que “não há isenção de pena” “quando o erro deriva de
culpa”, ou seja, não diz, ao menos expressamente, que o dolo fica excluído.
Em razão disso, há muita divergência sobre a exata posição sistemática do erro
em questão. Assis Toledo considera-o um erro de tipo;60 Alcides Munhoz Neto,61
um erro de proibição; Luiz Flávio Gomes, um erro de proibição sui gen eris,62
E bem verdade que as expressões “isentar de pena” e “excluir o dolo” não se
eqüivalem. No entanto, se isso é certo, não é menos verdadeiro que, ocorrendo erro
evitável (vencível), não haverá “isenção de pena”, exatamente porque o “erro deri­
va de culpa” e o fato é punível como crime culposo” (art. 20, § l e). Se assim é, força
é convir que, apesar do uso (impróprio) da expressão “isenção de pena”, o erro ven­
cível, ao ensejar a punição só a título de culpa, exclui o dolo obviamente, pois do
* contrário o legislador teria de dizer o mesmo que disse quanto ao erro de proibi­
«IMWI ção, isto é, “se evitável (o erro), poderá diminuí-la (a pena) de um sexto a um

60 Escreve Assis Toledo, textualmente: “embora a sede das descriminantes putativas seja o § I a do art. 20 ...
(‘quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse tor­
naria a sua ação legítima’), pensamos que tal preceito não é exaustivo, não esgota as hipóteses das descri­
minantes imaginárias. Percebe-se, com efeito, claramente, que esse preceito, completado pela parte final
do parágrafo (‘não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime
culposo’), aplica-se apenas ao erro de ‘tipo permissivo’, excludente do dolo, não ao erro excludente da cen­
sura de culpabilidade, tanto que se permite a punição a título de culpa stríeto sensu (esta é, aliás, a posi­
ção da teoria limitada da culpabilidade, que adotamos)” (Princípios básicos, cit., p. 272-273). No mesmo
sentido» Damásio, Direito penal, cit., p. 309.
61 Afirma esse autor, literalmente: “(...), no direito brasileiro cabe afirmar que o erro nas descriminantes
putativas é erro de proibição. Como o conhecimento da antijuridicidade não integra o dolo, mas perten­
ce à culpabilidade, segue-se que se age na errônea crença de ser legítimo o seu comportamento procede
dolosamente” (A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 112).
62 Erro de tipo e erro de proibição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 144. No mesmo sentido, Cezar
Bitencourt, (Manual, cit., p. 392-393): "o art. 20, caput, do Código Penal determina expressamente que o
erro sobre o tipo exclui o dolo, enquanto o seu § l fl - que trata do erro que incide sobre os pressupostos
fáticos das descriminantes putativas - isenta de pena. Como se percebe, o nosso Código Penal, ao regular
o erro de tipo permissivo (art. 2 0 , § 1°), não estabelece que a sua conseqüência é a exclusão do dolo, como
faz em relação ao erro do tipo incriminador, prevendo, simplesmente, a isenção de pena. E, como é sabi­
do de todos, no Direito brasileiro, excluir o dolo e isentar de pena não significam a mesma coisa (...)• Na
realidade, não seria exagero afirmar que o ‘erro de tipo permissivo’ constitui uma terceira espécie de erro.
Seria um misto de erro de tipo e de erro de proibição indireto (...). Em síntese, trata-se de um erro sui
generis, que estruturalmente se parece mais com o erro de tipo do que com o erro de proibição, mas que
também se assemelha com o erro de proibição, porque a causa de justificação exclui a antijuridicidade"
sua conseqüência - e não a tipicidade do fato.”
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

terço”. Vale dizer: se, com o erro evitável, só se admite a punição a título de culpa,
é porque o erro exclui o dolo. O Código o diz tacitamente, portanto.
Por conseguinte, em face da disciplina do Código Penal, o erro sobre causas
de justificação implica a exclusão do dolo, constituindo uma questão de tipicidade,
e não de culpabilidade.
Semelhante interpretação está aliás conforme a teoria dos elementos negati­
vos do tipo, pois, como diz Luzón Pena, se as causas de justificação são elementos
negativos do tipo, porque, tal como os elementos positivos, são pressupostos (nega­
tivos) da proibição, a crença errônea de que concorrem em dada situação os pres­
supostos de uma causa de justificação constitui um erro de tipo, com todas as suas
conseqüências.63

12. Erro de tipo, erro de proibição e erro sobre causas de


justificação: uma distinção a ser superada

Como visto, a separação entre consciência do fato e consciência da ilicitude


do fato determina a distinção entre erro de tipo (excludente do dolo) e erro de proi­
bição (excludente da culpabilidade). Assim, o erro de proibição é um erro sobre a
antijuridicidade do fato, ou seja, sobre a natureza proibida da ação típica: o autor
sabe o que faz, mas pensa erroneamente que é permitido, seja por crença positiva
na permissão do fato, seja por falta de representação da valoração jurídica do fato,64
enquanto no erro de tipo o agente atua sem dolo por não saber o que faz.
Ocorre que se, como temos sustentado, o dolo compreende a ilicitude do fato,
resulta, por conseqüência, que a distinção entre erro de tipo e erro de proibição não
se justifica, porque em ambos os casos o agente não atua dolosamente. A prevalecer
o conceito normativo de dolo, a equiparação de tais erros é imperiosa, portanto.
Mas ainda que assim não concebêssemos o dolo, teríamos de convir que errar
sobre o tipo é também errar sobre a proibição do fato. Com efeito, quem não tem a
exata representação da realidade (erro de tipo) tampouco terá idéia da dimensão
jurídica do seu ato (erro de proibição). Por exemplo, o agente que transporta droga
ilícita supondo ser uma substância inócua qualquer não somente erra sobre elemen­
to constitutivo do tipo (droga ilícita) como também erra, em conseqüência, sobre a
proibição do fato, tomando como lícita (transportar substância inócua) uma ação ilí­
cita (transportar droga ilegal), ou seja, o erro de tipo implica um erro de proibição.65
A recíproca é verdadeira: quem erra sobre a proibição do fato erra igualmen­
te sobre o elemento constitutivo do tipo, a ilicitude do comportamento. Se de fato
a tipicidade já pressupõe e contém, lógica e funcionalmente, a antijuridicidade, co­

63 Curso, cit., p. 473.


64 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 229.
65 Assim também Silva Sánchez. Aproximación al derecho penal contemporâneo, cit., p. 397.
P a u lo Q u e ir o z

210
mo entendemos, em razão da adoção da teoria dos elementos negativos do tipo,
resulta que errar sobre a proibição do comportamento é também errar sobre ele­
mento constitutivo (implícito) do tipo, qual seja, a sua ilicitude. Logo, todo erro de
proibição é um erro de tipo, pois recai sobre elemento que o integra: a ilicitude.
Além disso, se, conforme assinalamos, o direito não está nos fatos, nem nas
normas, mas na cabeça das pessoas e, pois, o direito não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, também por isso não se justifica a distinção entre conheci­
mento do fato e conhecimento da proibição.
Semelhante perspectiva conduz assim à superfluidade da distinção entre erro
de tipo e erro de proibição (afinal, ambos são modos de errar sobre elementos do
tipo), já que recaem sobre seus elementos, mesmo porque, ainda que assim não
fosse, teríamos de reconhecer que ambos os erros, do ponto de vista político-crimi-
nal, têm a mesma importância e por isso que conduzem, quando invencíveis, ao
mesmo resultado prático: uma sentença penal absolutória. Se vencíveis, à atenua­
ção do rigor da punição: um punido a título culposo; o outro, com pena reduzida.
Em termos práticos, enfim, equiparam-se, mesmo porque raramente se reconhece
o erro vencível.66

66 Critica-me Luiz Flávio Gomes, primeiro, criticando a teoria dos elementos negativos do tipo, segundo,
argumentando que, “no que diz respeito à função motivadora do Direito penal (da norma penal), o que
cabe sublinhar é que ele não é a única, e tampouco a mais importante. Outras funções (missões) mais rele­
vantes desempenha o Direito penal: missão de proteção de bens jurídicos, missão de evitar a vingança pri­
vada, missão de constituir um conjunto normativo dotado de garantias” (Erro de tipo e erro de proibição,
cit., 2001, p. 83-84). Semelhante crítica não procede, porém. Inicialmente, tenho que todas as críticas à
teoria dos elementos negativos do tipo somente são admissíveis se se adotar uma perspectiva causalista ou
finalista. Se se entender, no entanto, como parece entender Luiz Flávio, superados esses paradigmas, as
críticas ficam também superadas. Aliás, julgo inteiramente irrelevante o argumento welzelniano, freqüen­
temente invocado, de que, para a teoria dos elementos negativos do tipo, tanto é atípica a conduta de
matar um mosquito como o é a de matar um ser humano em legítima defesa. É que, ao se adotar a teoria
dos elementos negativos, não se pretende, por óbvio, equiparar a ação de matar um mosquito à de matar
um ser humano, mesmo porque, no primeiro caso, nem sequer se pode ter o ato à conta de uma ação no
sentido jurídico-penal. Fato é que, adotando ou não essa teoria, o ato de matar um mosquito e o de matar
um homem terão, sempre e sempre, significado diverso, pois o direito penal não cria valores, mas tão-só
regula aqueles - mais importantes - que medram na comunidade. Assim, por exemplo, matar um homem
nunca será o mesmo que abater um animal silvestre (protegido pela legislação ambiental), v. g., uma cobra,
do mesmo modo que matá-lo em legítima defesa jamais significará o mesmo que abater o réptil em esta­
do de necessidade. Igualmente, furtar um toca-fitas nunca será o mesmo que furtar o próprio automóvel,
ainda quando ambas as ações sejam consideradas típicas. Vale transcrever, ainda, a crítica que
Schünemann faz a Munoz Conde, que se socorre do mesmo argumento invocado por Luiz Flávio: “o velho
argumento de W elzel e de Hirsch”, escreve Schünemann, “que hoje em dia Munoz Conde volta a reto­
mar, de que a morte justificada de uma pessoa é distinta da morte de um mosquito, existindo, portanto,
diferença essencial entre ausência de tipicidade e justificação, é errônea desde o ponto de vista da lesivi-
dade social, já que, querendo ou não, a morte de uma pessoa em legítima defesa é tão pouco lesiva social­
mente como a morte de um mosquito” (La fúnción..., in Fundamentos, cit., p. 222). Quanto ao segundo
argumento, de que o direito penal persegue outras funções, além da função motivadora, penso que a ques­
tão está mal colocada. É que todas as “missões” a que se refere Luiz Flávio estão, em verdade, compreen­
didas na “função motivadora” da norma penal (embora o conteúdo da “função” possa variar de autor para
autor), podendo-se dizer, assim, que tanto a proteção de bens jurídicos quanto a função de garantia (coi­
bir reações formais ou informais arbitrárias) são apenas variáveis de uma coisa única, qual seja, da função
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

Portanto, não se justifica a distinção, porque quem incide num ou noutro erro
carece do mesmo sentimento ou da mesma vontade de atuar contrariamente ao
direito: um, levado por erro de representação (erro de tipo); outro, pela má com­
preensão do significado social e jurídico do fato (erro de proibição).
Aliás, a polêmica antes referida a respeito da natureza jurídica das descrimi-
nantes putativas é conseqüência direta da imprecisão dos conceitos hoje utilizados
pela doutrina sobre erro de tipo e erro de proibição, pois em verdade o erro sobre
causas de justificação pode ser considerado, em face dessa inexatidão, tanto um erro
de proibição quanto um erro de tipo. Erro de proibição porque quando o sujeito
atua, v. g., em legítima defesa putativa, toma, segundo sua representação, como
lícita uma ação ilícita, é dizer, supõe agir legitimamente. E também um erro de
tipo, porque, dentre outras razões, assim o Código tratou o assunto.
Frise-se, finalmente, que a pretensão de equiparar tais erros quanto aos seus
efeitos é amplamente difundida na Alemanha, conforme informa Schünemann,
também favorável à equiparação.67

13. Erro provocado por terceiro

Dispõe o art. 20, § 2e, do Código, que “responde pelo crime o terceiro que
determina o erro”. Com adotar tal dispositivo, o legislador pretende responder a
situações em que o agente é induzido por outrem a praticar um crime. Exemplo: A
entrega um revólver a B, que, supondo-o descarregado ou de brinquedo, aponta em
direção a C, acionando o gatilho e causando-lhe a morte.
Cumpre distinguir provocação dolosa e culposa. Se A tinha a intenção de ma­
tar C, induzindo B a erro, responderá por homicídio doloso (autoria mediata). Caso
contrário, responderá por homicídio culposo ou não responderá por crime algum,
se a conduta não lhe for imputável sequer a título culposo. Por sua vez, B respon­

de motivar os destinatários da norma a atuarem conforme o direito, pois assim se protegem bens jurídi­
cos, assim se previnem vinganças e assim o direito se constitui como um sistema de garantias do cidadão
em face dos abusos praticáveis pelo Estado e pelos próprios indivíduos.
67 Afirma o citado autor: “E finalmente considero recomendável, sem que aqui possa estender-me mais a res­
peito, de acordo com uma concepção hoje como ontem amplamente difundida na Alemanha, que o legis­
lador equipare erro de proibição e erro de tipo, e trate ambos os erros de acordo com o disposto no p. 16
no âmbito do Direito penal especial” (La función..., in Fundamentos, cit., p. 238). Sobre o assunto, já se
pronunciara Everardo Uma: “Uma vez que os fatos e valores são incindíveis, porque gravitam dentro da
realidade jurídica, que é, a um tempo, direito e realidade, conclui-se que a distinção entre erro de fato e
erro de direito não era uma distinção substancial, existindo apenas para o atendimento de certas finalida­
des práticas (...). E afirmou-se que, assim como em todos os erros de fato está ínsito um erro de direito,
assim também em todos os erros de direito insere-se, inapelavelmente, um erro de fato. Desse modo, o
clássico exemplo de Finger, que via erro de direito tanto no fato de conduzir cocaína sem autorização,
quanto no fato de conduzi-la sem conhecê-la (...)• Sucede, porém, que, mesmo considerando-se que a dis­
tinção entre erro de fato e erro de direito não ataca substancialmente a realidade, mesmo assim, é inegá­
vel a dificuldade para unificar o erro e tratá-lo com a obediência que a justiça material exige” (Direito
penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 245-256).
P a u lo Q u e ir o z

derá em ambos os casos por homicídio culposo, se ficar provado que se houve com
imprudência.
Obviamente se, na mesma hipótese, B tiver percebido que se tratava de arma
de fogo carregada, disparando ainda assim, a norma em questão não será aplicada
ao caso, simplesmente porque erro não houve. E não existindo erro provocado, B
responderá por crime doloso ou culposo, conforme o caso.

14. Erro sobre a pessoa: aberratio ictus

O agente pode pretender praticar um crime contra alguém e atingir outrem


por erro, caso em que responderá como se tivesse atingido a vítima virtual e não
a real. Assim, se, querendo matar o próprio pai, mata um estranho, responde como
se matasse o pai, razão pela qual incidirá a agravante do art. 61, II, e, do CP (crime
contra ascendente); se, ao contrário, querendo ferir o estranho, fere o próprio pai,
responde como se ferisse aquele, não se aplicando a agravante. E que, de acordo
com a teoria da equivalência adotada pelo Código, “não se consideram as condi­
ções ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria pra­
ticar o crime” (CP, art. 20, § 3a). A solução seria diferente se o Código tivesse ado­
tado a teoria da concretização, hipótese em que o agente responderia pelo que de
fato aconteceu: se querendo matar o pai, matou um estranho, responderia por
matar um estranho.
O erro sobre a pessoa tanto pode resultar de erro de representação (v. g., matar
um sósia), como de erro na execução do crime ou aberratio ictus (v. g., A atira con­
tra B, vindo, porém, a matar C, que estava próximo). O tratamento legal em ambos
os casos é o mesmo: o agente responde como se tivesse cometido o crime contra a
vítima virtual e não a real. Se eventualmente houver mais de um resultado lesivo
(se, no exemplo citado, A atingisse B e Q , ainda assim o agente responderá, em
concurso formal, por um crime único, o crime mais grave, mas com pena aumen­
tada de um sexto até a metade (CP, art. 73). Se no exemplo dado o disparo de A
atingisse B e C, matando um e ferindo o outro, aplicar-se-ia a pena do crime de
homicídio (o crime mais grave), com o referido aumento. Mas em caso algum a
pena poderá exceder àquela cabível para o concurso material de crimes quando
então as penas são aplicadas cumulativamente.68
Se o autor agir com desígnios autônomos, isto é, se for sua intenção atingir as
várias vítimas, não haverá erro algum, mas concurso formal impróprio, motivo pelo
qual as penas serão aplicadas cumulativamente (CP, art. 70), aplicando-se a regra
do concurso material (CP, art. 69).69

68 Fernando Galvão, Imputação objetiva, Belo Horizonte: Ed. Mandamentos, 2000, p. 122.
69 Fernando Galvão, Imputação objetiva, cit., p. 123.
D ir e i 10 P e n a l - P a r te G e ra l

14.1. C rítica à disciplina legal da a b e r r a t io ic tu s

CASO. A, residente no interior da Bahia, deliberou, em razão dos maus-tratos


sofridos e constantes ameaças de morte, matar seu companheiro, B. Para tanto,
deu-lhe uma refeição, acondicionada em vasilha plástica, composta de farinha e
carne, sendo que, ao prepará-la, adicionou uma colher de chá do veneno conheci­
do por “chumbinho”. Posteriormente, B encontrou os seus filhos C, 7 anos, e D, 12
anos, aos quais entregou a marmita, a fim de que a levassem para casa, em razão de
não haver serviço naquele dia. Ocorreu que os menores, antes de chegar à residên­
cia, comeram a refeição e, em conseqüência, agonizaram até a morte. Presa, A foi
denunciada pelo Ministério Público Estadual pelo crime do art. 121, § 2Q, III, c/c os
arts. 61, II, f, e 73, todos do Código Penal (homicídio doloso consumado qualifica­
do e agravado contra o marido).
Como vimos, o Código Penal de 1940 consagrou no particular a teoria da equi­
valência,70 hoje minoritária, segundo a qual é irrelevante que o, dolo se concretize
em pessoa diversa da pretendida, uma vez que, sendo tipicamente equivalentes os
resultados (matar o companheiro ou matar os filhos), o autor deve responder por
crime único, crime consumado.71 Dito mais claramente: quando, por acidente ou
erro no uso dos meios de execução, o agente, em vez de atingir a pessoa que pre­
tendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime
contra aquela (CP, art. 73), motivo pelo qual não se consideram, nesse caso, as con­

70 Essa teoria considera que o dolo só deve abranger o resultado típico quanto aos elementos determinantes
de sua espécie: A quis matar uma pessoa (B) e realmente matou uma pessoa (C), de sorte que o desvio do
curso causai não tem influência no dolo, devido à equivalência típica dos objetos, havendo, assim, homicí­
dio consumado. Já para a teoria da concreção (ou concretização), o dolo pressupõe sua concretização num
determinado objeto, motivo pelo qual se o agente atinge pessoa diversa da pretendida não age com dolo
quanto à pessoa realmente atingida. Logo, se pretendia matar B, vem a atingir C, responde, segundo essa
teoria, por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra C (cf. Roxin, D erecho penal , cit., p. 492).
71 A Exposição de Motivos do Código de 1940 dispunha que, “no art. 53, é disciplinada a aberratio ictus seu
actus, que eventualmente pode redundar em concurso de crimes. O projeto vê na aberratio uma unidade
substancial de crimes, ou seja, um só crime doloso (absorvida por este a ‘tentativa’ contra a pessoa visada
pelo agente), ou, no caso de ser também atingida a pessoa visada, um concurso formal de crimes. Na pri­
meira hipótese, o erro sobre o ‘objeto material’ (e não sobre o ‘objeto jurídico’) é ‘acidental’ e, portanto,
irrelevante. Na segunda hipótese, a solução dada se justifica pela ‘unidade’ da atividade criminosa. Vê-se,
desta maneira, que o Código abraçou a orientação dos que entendem que deve ser dado idêntico tratamen­
to penal quer ao error in persona, quer à aberratio ictus'. A Nova Parte Geral manteve, no essencial, a dis­
ciplina do Código de 40, prevendo, apenas, que a pena nunca poderá exceder àquela que seria cabível no
caso de concurso material. Declara expressamente (item 57) que “a inovação contida no parágrafo único
do art. 70 visa tornar explícito que a regra do concurso formal não poderá acarretar punição superior à
que, nas mesmas circunstâncias, seria cabível pela aplicação do cúmulo material. Impede-se, assim, que na
hipótese de aberratio ictus (homicídio doloso mais lesões culposas), se aplique ao agente pena mais seve­
ra, em razão do concurso material. Quem comete mais de um crime mediante uma única ação não pode
sofrer pena mais grave do que a imposta ao agente que, reiteradamente, com mais de uma ação, comete
os mesmos crimes”.
P aulo Q u e iro z

dições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria pra­
ticar o crime (art. 20, § 35).
De acordo com o Código Penal, portanto, que se utiliza claramente de uma
ficção, A responderá por crime de homicídio consumado contra B (qualificado e
hediondo em razão do emprego de veneno) dolosamente, ainda que de fato tivesse
matado seus próprios filhos culposamente.
Essa solução é francamente desproporcional.
Em primeiro lugar, a teoria da equivalência consagra resquício próprio de um
direito penal do autor,72 devendo ser repudiada. Sim, porque, para ela, não impor­
ta, ou só importa secundariamente, o fato efetivamente praticado pelo autor, mas
aquele que pensou ou pretendeu praticar. Não interessa, por conseguinte, que A
tenha matado os próprios filhos, que, presume-se, amava, mas o companheiro que,
por certo, odiava. Numa palavra, para a lei, não importa que tenha matado os filhos
culposamente, mas que tenha pretendido matar seu companheiro dolosamente.
Privilegia-se, pois, uma ficção em prejuízo da trágica realidade.
Em segundo lugar, tal solução é claramente desproporcional. Com efeito, não
é razoável que alguém que tenha se envolvido em semelhante tragédia, que possi­
velmente mais necessita do perdão do que do castigo, responda por um crime de
homicídio doloso consumado e qualificado (CP, art. 121, § 2Q, 111) - logo, hedion­
do - sujeito a uma pena de doze a trinta anos de reclusão. Note-se que a solução
adotada é bastante gravosa para o agente, uma vez que a pena do homicídio consu­
mado é superior à pena resultante do concurso material da tentativa de homicídio
(contra B) e do homicídio culposo (contra os filhos).
E bem verdade que, na hipótese de ser também atingida a pessoa que o agen­
te pretendia ofender, o agente responde em concurso formal (CP, art. 73, final),
com o respectivo aumento de um sexto até metade (art. 70) e que a pena não pode­
rá exceder à que seria cabível pela regra do concurso material (art. 70, parágrafo
único), mas, desgraçadamente, nada disso tem o condão de corrigir a injustiça da
disciplina legal conferida à aberratio.
Mais razoável, portanto, seria que, adotada a teoria da concretização (ou con-
creção), hoje majoritária, A respondesse unicamente pelo que de fato fez, e não
pelo que pretendeu fazer: matar culposamente seus próprios filhos - com a possi­
bilidade de concessão do perdão judicial (CP, art. 121, § 59), inclusive - e homicí­
dio tentado contra seu companheiro, se se entender que in casu houve in ício dos
atos d e execu ção (CP, art. 14, II), em relação a este.
Finalmente, outra deveria ser a disciplina legal a respeito, também porque a
aberratio ictus não é uma figura jurídica autônoma, mas um caso especial de des­
vio do curso causai e que, por isso, há de ser tratada conforme as regras deste.73

72 No sentido de que se trata de previsão legal de responsabilidade objetiva, Guilherme de Souza Nucci,
Código Penal comentado, cit., p. 274-275.
73 Roxin, D erecho penal, cit., p. 495.
D ireito Penal - Parte Geral

Convém dizer, por último, que, a despeito da solução consagrada pelo legisla­
dor, temos que o juiz pode, por meio de uma interpretação conforme a Constitui­
ção, adotar este entendimento, de modo a que o agente responda por dois crimes,
em concurso material: homicídio culposo contra os filhos e homicídio doloso ten­
tado contra o companheiro, porque ao legislador não é dado transformar, sem mais,
e em prejuízo do réu, em doloso um crime culposo, nem em consumado um crime
tentado. Aliás, o próprio Código Penal (art. 70, parágrafo único), ao determinar que
a pena do concurso formal não poderá exceder a que seria cabível pela regra do art.
69, exige essa leitura/interpretação, pois não seria justo nem razoável que, num tal
caso, a autora sofresse castigo superior àquele previsto para o concurso material. Se
aplicada a regra do concurso material, e se fixada fosse a pena no mínimo legal, a
autora poderia ser punida por duplo homicídio culposo a pena de dois anos de
detenção (CP, art. 121, § 39) - passível de perdão judicial (§ 5B) - e homicídio dolo­
so tentado contra o marido a pena de dois anos de reclusão (CP, art. 121, caput, c/c
o art. 14, parágrafo único).

15. Resultado diverso do pretendido (aberratio delicti)

O Código prevê que “quando, por acidente ou erro na execução do crime,


sobrevêm resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa” (art. 74).
Exemplo: quis quebrar a vitrine da loja, vindo a produzir, porém, exclusivamente,
lesões no balconista. Nesse caso, o autor responde por culpa (se punível a título de
culpa), isto é, por lesões contra o balconista. Na hipótese de, além de lesionar o bal­
conista, quebrar também a vitrine, haverá concurso formal de crimes (art. 70),
impondo-se, em conseqüência, a pena do crime mais grave, com o aumento decor­
rente do concurso.
A redação defeituosa do dispositivo pode conduzir, todavia, a soluções absur­
das, pois se o agente responde por culpa, na hipótese de atirar contra o balconista
com a intenção de matar, vindo a atingir a vitrine, ficaria isento de pena, visto que
se teria de imputar-lhe “resultado diverso do prentedido” a título culposo - dano,
fato que nem sequer constitui crime, já que o crime de dano só é punível a título
doloso. Para evitá-lo, é preciso interpretar o dispositivo de forma sistemática.
Efetivamente, como lembra Fernando Galvão, muito mais precisa era a reda­
ção do art. 22, § l e, do Código Penal de 1969, ao dispor que “se, por erro ou outro
acidente na execução, é atingido bem jurídico diverso do visado pelo agente, res­
ponde este por dolo, se assumiu o risco de causar este resultado, ou por culpa, se o
previu, ou podia prever, e o fato é punível como crime culposo”.74
Em realidade a previsão de norma específica a esse respeito é absolutamente
desnecessária, em razão do tratamento legal conferido aos crimes dolosos e culposos.

?4 Teoria da imputação, cit., p. 130.


D ireito Penai - Parte G eral

Capítulo VII
Teoria do Crime Culposo

1. Introdução

Tanto quanto os dolosos, os comportamentos culposos podem resultar igual­


mente lesivos de bens jurídicos, a justificar, assim, a intervenção penal, justificação
que cresce de importância à medida que com o avanço tecnológico parece aumen­
tar1 os riscos a que nos sujeitamos diariamente - “sociedades de risco”, conforme a
expressão de Ulrich Beck.2 Externamente, aliás, tais condutas em nada diferem das
ações dolosas, porque, v. g., à semelhança do crime de homicídio doloso, o homi­
cídio culposo produz o mesmo resultado naturalístico: a morte.
Apesar disso, nem todos os tipos penais admitem a punição a título de culpa,
pois só em caráter excepcional condutas culposas assumem relevância jurídico-
penal. E isso por duas razões básicas: ou porque a natureza do crime é incompatí­
vel com a culpa - parecem inimagináveis estupro, roubo ou estelionato culposos -
ou porque, sendo compatível {v. g., o aborto ou o dano culposos), tal comportamen­
to carece de dignidade penal, em razão do caráter subsidiário do direito penal, de­
vendo, em conseqüência, ser objeto de outras instâncias de controle social. Ade­
mais, distinto é o desvalor social que se atribui a uma e outra, sendo por isso puni­
dos menos severamente os crimes c u lp o s o s .3
Os acidentes de trânsito configuram em geral crimes culposos, porque, no
mais das vezes, seus autores agem imprudentemente, por mais temerária e perigo­
sa a sua atuação. Mas, diante da grande ocorrência de mortes no trânsito, os tribu­
nais tendem atualmente a interpretar tais delitos como dolosos (dolo eventual),
especialmente quando precedidos de “pega” ou “racha” ou quando seus condutores
estão embriagados. De todo modo, cabe analisar cada caso judiciosamente, sob pena

Nem todos estão de acordo com a idéia de uma sociedade de riscos, seja porque riscos sempre existiram,
seja porque o avanço tecnológico implicou a redução de riscos nas mais diversas áreas.
Como escreve Juarez Cirino, do ponto de vista de sua freqüência real, crimes de homicídio e de lesões cor­
porais imprudentes representam a maioria absoluta dos fatos puníveis e, do ponto de vista dos bens lesio-
nados, integram a criminalidade mais relevante, de modo que se pode dizer que a antiga exceção é, atual­
mente, a regra da criminalidade, razão pela qual a teoria dos crimes imprudentes se transformou de entea­
da em filha predileta do trabalho científico do direito penal (A m oderna teoria, cit., p. 97-98).
Convém notar, com Cobo dei Rosai e Vives Antón, que toda definição de culpa há de conter uma refe­
rência ao dolo. Certo é que a culpa não representa em face do dolo simplesmente um minus, senão um
aliud. A culpa é distinta do dolo; porém, a presença do dolo exclui a culpa (D erecho penal , cit., p. 570).
Paulo Queiroz

de se criar presunções de atuação dolosa em ação tipicamente culposa, com viola­


ção ao princípio da legalidade.

2. Excepcionalidade do crime culposo

Diferentemente dos dolosos, os crimes culposos só são puníveis quando há


previsão legal expressa nesse sentido, pois do contrário a imputação do resultado
somente poderá ocorrer na forma dolosa. Neste sentido o Código Penal (art. 18,
parágrafo único) dispõe que “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser
punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.
O crime culposo constitui, portanto, uma forma excepcional de crime, porque
a punição de alguém a esse título só é admissível quando o tipo penal previr expli­
citamente essa possibilidade (assim, o homicídio ou a lesão corporal), motivo pelo
qual não existe, à falta de previsão legal expressa, o crime de infanticídio ou abor­
to culposos. Portanto, jurídico-penalmente o dolo é a regra; a culpa, a exceção.
Tratando-se de crimes preterdolosos, resultado da fusão de uma ação dolosa e
um resultado culposo, a sua imputação somente ocorrerá quando o resultado não
querido pelo agente tiver decorrido de imprudência, negligência ou imperícia.
Diz-se ainda que são tipos abertos, porque a lei não descreve exatamente em
que consiste a ação delituosa, recorrendo-se, em geral, a fórmulas um tanto vagas,
como imprudência etc.

3. Conceito de culpa: requisitos

O crime culposo pressupõe a realização de um perigo criado pelo autor, não


coberto pelo risco permitido, dentro do alcance do tipo.4 Pressuposto da imputação
objetiva do tipo culposo é a criação de um risco proibido lesivo de bem jurídico e
a realização desse risco no resultado.5
Como regra, só haverá assim imputação de crime culposo quando o autor, vio­
lando um dever de cuidado, criar um risco juridicamente proibido.6 Para utilizar
exemplo mui ilustrativo, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nQ9.503/97), depois
de instituir um dever geral de atenção na direção de veículo (art. 28), em nome da

4 Roxin, Funcionalismo, cit., p. 310.


5 Cumpre precisar, com Jakobs, porém, que “o risco permitido não limita o conceito de imprudência, senão
só a relevância jurídica da imprudência” (D erecho pena1, cit., p. 385).
6 Para Roxin, em realidade, por trás da infração do dever de cuidado ocultam-se distintos elementos de
imputação que caracterizam os pressupostos da imprudência, sendo, em conseqüência, um conceito vago
e prescindível (Funcionaiismo, cit., p. 1000). Também Jakobs considera que, sobretudo no crime comissi-
vo, dizer que o autor deixou de observar o cuidado prescrito é falso do ponto de vista da lógica das nor­
mas, pois, em tais crimes, o autor não deve atuar cuidadosamente, mas omitir o comportamento descui­
dado (D erecho p en al cit., p. 384).
D ireito Penal - Parte Geral

segurança do tráfego e da proteção da integridade física das pessoas, estabelece as


normas de cuidado a que se submeterão os condutores de veículos automotores
(arts. 29 a 55), sob pena de, com a violação, criarem-se riscos proibidos e, pois,
ensejadores de crimes culposos, tais como: circulação pelo lado direito, manter
determinada distância de segurança lateral e frontal entre veículos, prioridade e
preferência de passagem, ultrapassagem pela esquerda, respeito à sinalização etc.
Assim, se o condutor do veículo desatender a tais comandos e, nessa condição,
causar lesões, responderá, como regra, por crime culposo, uma vez que criou e rea­
lizou risco proibido (não permitido). A imputação de crime culposo está, por con­
seguinte, diretamente ligada à inobservância de norma de cuidado - não necessa­
riamente escrita - disciplinadora de arte, ofício ou profissão. Significa dizer que em
geral, quem, respeitando as regras de trânsito, vier a causar lesões, não responderá
jurídico-penalmente (v. g., atropelar pedestre, embora respeitando o limite de
velocidade e a sinalização), porque estará atuando dentro do risco inerente à circu­
lação de veículos e, pois, socialmente tolerado. Ao invés, responderá por crime cul­
poso quando, inobservando as normas de trânsito, produzir danos a terceiro (v. g„
ultrapassando o limite de velocidade e a sinalização, vier a atropelar pedestre).
Mas semelhante critério não tem caráter absoluto, pois o que é proibido por
tais normas constitui apenas indício da natureza não permitida de um risco.7 Não
fosse assim, aliás, confundir-se-iam as instâncias administrativa e penal, igualando
distintos modos de apuração da responsabilidade (penal e não penal). Daí dizer
Roxin que, embora a infração da norma de cuidado seja efetivamente um indício
para a constatação da imprudência, tal não impede um exame judicial autônomo do
risco criado.8 Assim como o só fato de ter habilitação para dirigir veículo não sig­
nifica, necessariamente, que o condutor seja realmente hábil, tampouco a circuns­
tância de dela não dispor não quer dizer que seja sempre inábil ou inexperiente.
Por isso é que excepcionalmente o resultado poderá ser imputado ao autor a
título de culpa, não obstante observe as normas de trânsito, uma vez que a culpa -
ou mesmo o dolo eventual - deve ser apurada em concreto (v. g„ condutor que,
embora dentro do limite de velocidade, podendo diminuí-la ou mesmo parar o veí­
culo, atropela uma criança que avança o sinal vermelho), não bastando critérios
exclusivamente abstratos para a verificação da imprudência. A recíproca é também
verdadeira: o resultado poderá não ser imputável, embora haja violação de norma
de cuidado (v. g., se se provar que, mesmo que respeitasse o limite de velocidade,

7 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 249. No mesmo sentido, Fábio D’Ávila assinala que “as regras regulamen-
tadoras de atividades perigosas propiciam um padrão de análise para circunstâncias ideais, não podendo
ser admitidas como limites absolutos para toda e qualquer conduta. A imensa variedade de circunstâncias
concomitantes que podem concorrer para a criação do perigo de lesão ou da própria lesão acarretam,
necessariamente, a admissão de um risco não permitido variável, flutuante, a ser avaliado em face das
peculiaridades do caso concreto" (Crime culposo e a teoria da imputação objetiva, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 51).
8 D erecho penal, cit., p. 1003.
o agente teria atropelado a vítima que avançou contra o veículo, fugindo de uma
perseguição), pois não se pode pretender absolutizar o que é relativo por natureza,
isto é, as regras de cuidado, as quais têm caráter instrumental, uma vez que visam
preservar a segurança do tráfego e a integridade física das pessoas em condições
normais. E tanto a observância quanto a inobservância das regras técnicas podem
ser in concreto comprovadamente irrelevantes para a realização do evento.9 O
decisivo é apurar concretamente se houve criação de risco não permitido e se o
resultado decorreu desse risco proibido.
Pode assim acontecer de, apesar da criação de risco proibido, não ocorrer a
realização desse risco no resultado. E que a imputação do crime culposo pressupõe
que o resultado se apresente como realização justamente do risco que o autor criou,
razão pela qual haverá exclusão da imputação quando, mesmo tendo o autor cria­
do um risco para o bem jurídico protegido, o resultado não for conseqüência desse
perigo, mas fruto do acaso.10

4. Princípio da confiança

Como o dever de cuidado, e, pois, de não criar riscos proibidos, é comum a


todos, indistintamente, resulta que, para a verificação da culpa, é preciso tomar em
conta, sobretudo no trânsito, o comportamento dos demais condutores e da própria
vítima, porque também lhes compete atuar prudentemente. O princípio da con­
fiança constitui, assim, um elemento (adicional) de apuração da responsabilidade
penal por crime culposo. Em sua forma mais geral afirma-se que quem se compor­
ta devidamente pode confiar em que outros também o façam, sempre e quando não
existam indícios concretos para supor o contrário,11 ou seja, não se poderá dizer
imprudente o autor de uma lesão quando tal resultar de uma quebra da relação de
confiança por parte da vítima. Assim, por exemplo, se o condutor de veículo, res­

9 O mesmo - exclusão da imputação pela não-realização do risco proibido - ocorre no exemplo citado por
Roxin, do gerente da fábrica de pincéis que entrega aos trabalhadores pêlos de cabras chinesas sem tomar
as devidas medidas de desinfecção. Quatro trabalhadores são infectados pelo bacilo antrácico e falecem.
Uma investigação posterior conclui que os meios de desinfecção prescritos seriam ineficazes contra o baci­
lo, até então desconhecido na Europa. Entende, então, Roxin que “o autor, ao deixar de proceder à desin­
fecção, criou um grande perigo segundo um juízo ex ante, perigo esse que, como pôde verificar-se poste­
riormente, nào se realizou. Se lhe imputássemos ainda assim o resultado, ele estaria sendo punido pela vio­
lação de um dever cujo cumprimento seria inútil. Isso viola o princípio da igualdade, pois o curso causai
corresponde exatamente àquilo que ocorreria se o autor se mantivesse dentro dos limites do risco permi­
tido, não se justificando um tratamento diverso. Se o fabricante tivesse dolo de homicídio, ele poderia ser
punido unicamente por tentativa. Na hipótese mais freqüente, de simples culpa, ele estaria isento de pena
( Funcionalismo , cit., p. 332). Referindo-se a esse exemplo, Fernando Galvão escreve que, “nos te rm o s da
legislação brasileira, a omissão não é considerada causa do resultado, pois este não seria evitado com a
desinfecção. Contudo, o fornecimento do pêlo de cabra caracteriza crime comissivo, o que significaria
homicídio consumado” (imputação objetiva, cit., p. 65).
10 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 327.
11 Roxin, Derecho penal, cit., p. 1004.
D ireito Penal - Parte Geral

peitando o limite de velocidade permitida, vier a atropelar pedestre que, ignoran­


do o sinal vermelho, avança no sentido de atravessar a rua, não responde, em prin­
cípio, por lesão culposa, uma vez que tinha razões para confiar que a vítima aten­
desse à sinalização. Naturalmente que sempre que houver motivo não para confiar,
mas para desconfiar (v. g., crianças, idosos, pessoa embriagada), não será legítima a
invocação do princípio.
Em conclusão, jurídico-penalmente relevante é só a previsibilidade e, pois, a
evitabilidade, daquele risco que ultrapassa o risco permitido e que é, ademais, obje­
tivamente imputável.12

5. Estrutura do crime culposo

Essencialmente, a estrutura do crime culposo em nada difere do crime dolo­


so. A doutrina majoritária considera, porém, que o crime culposo constitui infra­
ção de um dever objetiv o de cuidado, de sorte que, para a verificação da tipicidade
penal, basta que se constate a violação de um cuidado genérico exigível de qual­
quer pessoa (h o m o m edius) em dada situação, como, no caso de crime de trânsito,
ter habilitação para dirigir, atender às regras de trânsito etc., não importando, para
tanto, as condições individuais concretas do autor do fato (v. g., idade, experiência,
aptidão), que constituem uma questão de culpabilidade. Nesse sentido, Cezar Biten-
court afirma que “culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado manifestada
numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível”,
motivo pelo qual, “no plano da tipicidade, trata-se, apenas, de analisar se o agente
agiu com o cuidado necessário e normalmente exigível”, de modo que “a indagação
sobre se o agente tinha as condições, isto é, se podia, no caso concreto, ter adotado as
cautelas devidas, somente deverá ser analisada no plano da culpabilidade”.13
De acordo com esse ponto de vista, sempre que o autor tiver atuado dentro do
que se pode normalmente exigir de alguém em tais condições, ficará excluída a tipi­
cidade da conduta, uma vez que não violou o dever objetivo de cuidado, ainda que
pudesse, segundo as suas condições pessoais especiais (acima do padrão médio), evi­
tar o resultado (v. g., piloto de fórmula 1). Se, ao contrário, tiver violado o dever
objetivo de cuidado (abaixo do padrão médio - motorista de idade avançada, p. ex.),
poderá, no máximo, ser exculpado, se provar que, em razão de suas condições pes­
soais (idade, experiência, aptidão etc.), não lhe era possível atuação diversa.
Tal posição, majoritária embora, não p r o c e d e . >4

12 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 385.


13 Manual, cit., p. 259-260.
14 Defendendo uma posição conciliadora, Roxin entende que se deve levar em conta a capacidade individual
do agente apenas na hipótese de ser superior ao padrão objetivo; sendo inferior, mantém-se o padrão obje­
tivo, ficando a análise no âmbito da culpabilidade. Aduz textualmente o citado autor que “a impossibili­
dade individual de atuar de outro modo é - ao menos nos crimes comissivos - sempre um problema de
culpabilidade, enquanto a imputação do tipo objetivo se vincula a baremos da criação do perigo e ao fim de
Paulo Queiroz

Em primeiro lugar, porque, como assinala Jakobs, a idéia mesma de previsibi­


lidade objetiva (ou dever objetivo de cuidado), além de ser incompatível com o
conceito individual de ação, não desempenha nenhuma função que já não desem­
penhe a de risco permitido, sendo, por isso, tão supérflua quanto seria a idéia de um
“dolo objetivo”,15 de modo que a tipicidade nos crimes culposos deve ser analisada,
sim, subjetiva e concretamente, não tendo qualquer importância a vaga idéia de um
h om o m edius,16 Aliás, segundo o que dispõe o Código Penal brasileiro, outra não
pode ser a posição a adotar, pois só em face das condições pessoais concretas do agen­
te é que se poderá dizer que se está diante de alguém “imprudente”, “negligente” ou
“imperito”, não sendo possível tal julgamento senão em face de alguém concretamen­
te considerado. Dito mais claramente: se A atropela B, matando-o, só será possível
concluir pela existência de um crime culposo, conhecendo, dentre outras variáveis,
as circunstâncias em que A dirigia, a velocidade que imprimia, as condições da estra­
da, a experiência e aptidão do condutor, o comportamento da vítima etc.
Não havendo, assim, um dever puramente objetivo de cuidado, a aferição da
culpa deverá ser feita conforme a capacidade maior ou menor do autor in concreto.
Daí não se compreender, por exemplo, por que razão um cirurgião com especiais capa­
cidades estaria obrigado a utilizar, em uma operação arriscada, unicamente aquelas
técnicas que constituem um standard mínimo de todos que exercem a cirurgia.17
Em segundo lugar, como observa Stratenwerth, ao se considerar que a evita-
bilidade individual do agente é um problema de culpabilidade, e não de tipicidade,
*nj
resulta necessário contemplar os pressupostos da culpabilidade com as exigências
« “subjetivas” da lesão do dever de cuidado, apesar de não afetarem diretamente a
i liberdade de determinar-se segundo o dever jurídico, o que ocasiona clara ruptura
da unidade sistemática dos requisitos da culpabilidade. No entanto, se a possibili­
dade individual de ação, ao contrário, é analisada já na tipicidade, não haverá, em
relação à culpabilidade, diferença estrutural alguma entre os crimes culposos e
dolosos, já que em ambos se requererá imputabilidade, conhecimento potencial da
proibição e exigibilidade.18

5.1. Estrutura do crime culposo: causas de justificação e de exclusão de


culpabilidade

Basicamente, como assinalado, não há diferença substancial na estrutura dos


crimes culposos. Com efeito, no plano da antijuridicidade, importa analisar a pos­

proteção, que são independentes da individualidade do sujeito. Se se fizer depender a realização do tipo
de baremos individualizadores, então se anulará em parte a separação entre injusto e culpabilidade
(Derecho penal, cit., p. 1015).
15 D erecho penal, cit., p. 386-388.
16 Criticamente, Fábio D’Ávila, Crime culposo, p. 92 e s.
17 Stratenwerth, Derecho penal, cit., p. 324.
18 Derecho penal, cit., p. 331.
D ireito Penal - Parte G era!

sível ocorrência de causas de justificação, que, em princípio, são as mesmas dos cri­
mes dolosos. Haverá legítima defesa em delito culposo, portanto, sempre que o
agente repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, por
meio de uma ação culposa.19 Assim, por exemplo, age em legítima defesa quem dis­
para um tiro de advertência contra o seu agressor, atingindo-o, porém, por falta de
atenção, se, dada a situação fática, o disparo com esse fim esteja também justifica­
do; igualmente, atua em estado de necessidade o médico que, para prestar socorro
a um paciente, imprime velocidade excessiva ao veículo vindo a atropelar alguém,
causando-lhe lesões.20
O mesmo deve ser dito quanto à culpabilidade, quando deverão concorrer a
capacidade de culpabilidade, a exigibilidade de conduta diversa e, mais, conforme
a doutrina, o potencial conhecimento da ilicitude. Quanto ao erro de proibição,
Fábio D’Ávila entende com razão que ele só é possível na hipótese de culpa cons­
ciente, ou seja, quando o autor acreditar ser lícita a sua ação descuidada em virtu­
de de circunstâncias especiais; não cabendo, portanto, sua argüição no caso de
culpa inconsciente, uma vez que, se o agente não tem consciência do caráter des­
cuidado da ação, tampouco terá consciência da ilicitude de seu ato, de modo que,
sempre que houver culpa inconsciente, haverá também ignorância quanto à licitu-
de ou ilicitude da conduta.21 Se, por exemplo, o condutor de veículo, em razão da
precariedade da sinalização, supõe, fundadamente, dirigir pela preferencial, estan­
do, em realidade, a trafegar pela contramão, causando lesões a terceiros, não será o
caso de invocar erro de proibição, mas erro de tipo. Afinal, no erro de proibição, o
agente sabe exatamente o que faz, mas supõe lícito um comportamento ilícito, ao
passo que no erro de tipo tem-se uma falsa representação da realidade, isto é, o
autor não sabe o que faz, como no exemplo citado.

6. Culpa consciente e culpa inconsciente

A doutrina distingue culpa consciente (culpa com previsão) de culpa incons­


ciente (culpa sem previsão). Na primeira, o autor cria, conscientemente, risco juridi­
camente desaprovado, acreditando, porém, que tal não causará lesão a bem jurídico,
ou seja, o agente prevê a realização de um tipo, mas confia em sua não-realização.22

*9 Entende Tavares, todavia, que o resultado deve ser objetivamente necessário para repelir a agressão, mas,
mesmo que o resultado vá além do necessário, cabe reconhecer a legítima defesa, pois, faltando ao agen­
te a consciência de seus pressupostos, é admissível e justificável um erro no uso dos meios (Direito penal
da negligência, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 160).
20 Exemplos de Jescheck, Tratado, cit., p. 535-536.
21 Crime culposo, cit., p. 131.
22 Como assinala Jescheck, na culpa inconsciente, o autor, embora infrinja dever de cuidado, não pensa na
possibilidade da realização do tipo legal por sua parte, enquanto na culpa consciente percebe a presença
do perigo concreto para o objeto protegido da ação, porém, por infravaloração do grau daquele, pela sobre-
valoração de suas forças ou por simples confiança na sua sorte, confia, indevidamente, em que não se rea­
lizará o tipo legal ( Tratado, cit., p. 516).
Pauio Queiroz

Na segunda, ao contrário, o agente não prevê, embora lhe fosse concretamente pre­
visível, a realização do tipo.23 A distinção reside, então, nisto: na culpa consciente,
há previsão do resultado; na inconsciente, imprevisão do resultado. Mas em ambos
os casos o autor não quer nem assume, direta ou eventualmente, o resultado, pois
do contrário haveria dolo direto ou eventual. Se, por exemplo, durante uma caça- .
da, o agente, embora percebendo que atirando na caça poderá também acertar o
companheiro, mas acreditando em sua pontaria, atira contra o animal, atingindo
seu parceiro, haverá culpa consciente.24
O tratamento legal em ambos os casos é o mesmo: o agente sempre responde
por crime culposo.

7. Imprudência, negligência, imperícia

Imprudência, negligência e imperícia são, segundo o Código Penal, modalida­


des de culpa em sentido estrito. Em realidade a expressão “imprudência” é tão
ampla que abrange tanto a negligência quanto a imperícia.25 Não por acaso, aliás, a -
doutrina estrangeira - em especial a espanhola26 - prefere chamar o crime culpo- \
so de “crime imprudente” e a culpa de “imprudência”. Imprudência, porém, toma- :
da em sentido estrito, significa a prática de uma ação arriscada ou perigosa, tendo,
assim, caráter eminentemente comissivo (ativo), como, por exemplo, dirigir em U.
alta velocidade, embriagado, trafegar na contramão ou participar de “racha”. Já a
negligência supõe uma atuação passiva, isto é, desleixo, falta de precaução, como ;
trafegar com veículo com pneus excessivamente desgastados etc. Finalmente, a 1;
- Ti,
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T- +
23 Para Tavares, no entanto, há culpa consciente (negligência consciente), não só quando o agente prevê o
resultado e espera que não ocorra, mas, sobretudo, quando o agente está ciente, isto é, sabe que com sua ’’
atividade lesa ou está lesando um dever de cuidado, de modo que a previsão do resultado, por si só, nao '
basta para dizer-se consciente a culpa, motivo pelo qual a denominação culpa com previsão é imprópria. ^
Já na culpa inconsciente (negligência inconsciente), o agente não pensa poder realizar o tipo mediante a
lesão ao dever de cuidado, pois isso lhe é desconhecido concretamente, apesar de conhecível, de modo que . -
a característica básica dessa forma de culpa reside exatamente no fato de que atua o agente sem saber que ,>
sua atividade desatende ao cuidado objetivamente necessário a evitar o perigo ou lesão ao bem jurídico
(Direito penal da negligência, cit., p. 172). .
24 Exemplo de Damásio, Direito penal, cit., p. 295.
25 Pensa o mesmo Basileu Garcia quanto ao termo “negligência”: “a rigor, a palavra negligência seria sufi*
ciente para ministrar todo o substrato da culpa. Mas costuma-se aludir também à imprudência e à impe- , ■•
rícia. Essas duas idéias poderiam caber dentro da de negligência. O médico, que se revela imperito em uma
intervenção cirúrgica e mata o seu cliente, não deixa de ser negligente, no sentido de que, ou não tomou
as cautelas necessárias, ou, sabendo-se inábil, se abalançou a uma tarefa superior à sua aptidão” (Insti­
tuições, cit., v. 1, p. 287). -. ,
26 Mir Puig, por exemplo, afirma que “o termo ‘imprudência’ eqüivale ao de culpa’, e o ‘imprudente’ ao àe
‘culposo’. Embora todos eles sejam amplamente utilizados na doutrina, a palavra ‘imprudência’ tem van-
tagens como a de resultar mais facilmente compreensível ao profano e a de facilitar a distinção quanto ao
termo ‘culpabilidade’, de uso muito distinto. Por isso propus substituir o adjetivo ‘culposas’ que utilizava
o Projeto de CP de 1980 e que introduz a reforma de 1983 no art. Ia do anterior CP pelo atual ‘imp*11" ■
dentes’” (D erecho penal, cit., p. 269). ’’A
D ireito Penal - Parte Geral

imperícia, que não é mais que uma forma especial de imprudência ou de negligên­
cia: é a inobservância, por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos
técnicos, das cautelas específicas no exercício de uma arte, ofício ou profissão.27

8. Autocolocação em perigo

Em princípio, não haverá crime culposo nas hipóteses de autocolocação em


perigo em que alguém, consciente e deliberadamente, se puser em situação de peri­
go, vindo a sofrer lesões, pois do contrário o autor responderia, em última análise,
por ato de exclusiva responsabilidade da própria vítima, sobretudo naqueles casos
em que o agente nem sequer se deu conta do perigo. Assim, por exemplo, não res­
ponderá penalmente o maquinista/motorista (trem/ônibus) quanto às lesões sofri­
das por pessoa que, embora advertida, insiste em viajar por sobre o teto do veícu­
lo, fazendo “su rf ferroviário/rodoviário". Naturalmente que, se nesses mesmos ca­
sos, o agora irritado maquinista/motorista, querendo se vingar, freia bruscamente o
veículo ou o acelera consideravelmente, deverá responder penalmente, a título de
dolo, inclusive, ainda que eventual. Outro exemplo dessa autocolocação em perigo
apta a afastar a culpa é o caso de ciclistas que “tomam carona” no fundo da carro-
ceria de caminhões enquanto estes estão imprimindo (normalmente em subidas)
baixa velocidade. No entanto, também aqui o caminhoneiro responderá penalmen­
te, a título de dolo ou de culpa, conforme as circunstâncias do caso concreto, sem­
pre que, querendo “dar uma lição”, frear bruscamente ou praticar ação capaz de
desequilibrar o ciclista e lesioná-lo.
Nesse sentido, a jurisprudência alemã, apreciando caso em que o autor fez a
entrega de heroína à vítima para consumo, a qual veio a falecer após injetar a droga,
decidiu que “autocolocações em perigo realizadas e queridas de modo responsável
não se enquadram no tipo do delito de lesões corporais ou homicídio, ainda que o
risco que conscientemente se corre realize-se em um resultado. Aquele que provo­
ca, possibilita ou facilita uma tal autocolocação em perigo não é punível pelo deli­
to de lesões corporais ou homicídio”.28
Descaberá também a imputação do resultado sempre que a vítima de uma
lesão recusar a ajuda ainda possível na plena consciência do risco. Assim, por exem­
plo, se A fere B em acidente de trânsito, e B falece por se opor à transfusão de san­
gue por motivos religiosos, não se deve punir A por homicídio culposo, mas unica­
mente por lesões corporais, já que B se expôs, por decisão própria, à certeza ou ao
grande perigo de morte.29

27 Hungria, Comentários , cit., p. 203-204.


28 Apud Roxin, Funcionalismo, cit., p. 357-8.
® Roxin, idem, p. 365.
Paulo Queiroz

Por fim, fala-se de heterocolocação em risco quando é a vítima que move o &
autor a praticar uma ação perigosa, assumindo conscientemente os riscos da ação .ft
provocada (v. g., o empregador determina ao seu motorista que siga viagem, apesar
da resistência deste em virtude das condições da estrada, à noite e em dia chuvoso, '
dando ensejo a um acidente que mata o primeiro). A solução para tais casos é seme­
lhante à autocolocação.
D ireito Penal - Parte Geral

Capítulo VIII
Consumação e Tentativa

1. Introdução

Se o direito penal representa, conforme temos afirmado, a forma mais violen­


ta de intervenção do Estado na vida dos cidadãos, tal intervenção, por conseqüên­
cia, há de ter lugar diante de ações especialmente lesivas de bens jurídicos, isto é,
quando socialmente intoleráveis. Por isso é que, como regra, só assumem relevân­
cia jurídico-penal crimes consumados ou tentados ao menos, pois fora daí, quando
os atos fiquem na só intenção do agente ou constituam mera preparação para um
agir criminoso, seus autores não respondem penalmente. Assim, por exemplo, são
irrelevantes a contrafação da chave falsa ou a aquisição da arma, quanto aos crimes
de furto e homicídio, respectivamente, se o agente não vai além disso.
Nem poderia ser diferente, pois, sob a vigência de um Estado que se pretende
Democrático de Direito, em que à liberdade se outorga constitucionalmente uma
proteção formal amplíssima (CF, art. 5S), não se poderia elevar à categoria de cri­
minoso o simples desejo de cometer delitos (direito penal do fato) e, pela mesma
razão, meros atos preparatórios, de modo que, em não se exteriorizando essa von­
tade delituosa de forma concretamente lesiva a bem jurídico (princípio da lesivida­
de), é de todo descabida a repressão penal. Finalmente, não se compreenderia que
um Estado secular pudesse intervir nesse terreno (do cogitar, simplesmente), con­
fundindo Moral e Direito.
Mas excepcionalmente o legislador criminaliza atos preparatórios, como é o
caso do art. 288 do Código Penal, que pune o bando ou quadrilha. De modo similar,
o art. 291 (petrechos para falsificação de moeda) e o art. 14 da Lei nB 10.826/2003,
que pune o porte ilegal de arma de fogo, entre outros. E que o legislador penal julga
de tal modo graves tais condutas que as tipifica desde logo.
Em conclusão, dos atos que integram o processo executivo da infração penal
(o iter criminis), quais sejam, cogitação, preparação, execução e consumação, ordi­
nariamente só assumem significação jurídico-penal os atos tentados e consumados,
em razão da particular ofensividade de que se revestem.1

2. Crime consumado: significado

Consumação - conceito inevitavelmente formal, por força do princípio da


kgalidade - é a completa realização dos elementos do tipo. A noção de consumação

No sentido de que também o exaurimento faz parte do iter criminis » Rogério Greco, cic.
expressa, portanto, como diz Damásio, a total conformidade do fato praticado pel0
agente com a hipótese abstrata descrita pela norma penal incriminadora,2 é dizer, o
crime se consuma quando a conduta levada a efeito realiza, integralmente, os ele- ■
mentos descritos no tipo legal de crime, objetivos e subjetivos. Fora daí, a hipótese
será de crime tentado ou simplesmente preparado e, pois, impunível (em princípio)
Nesse sentido, o Código (art. 14, II) considera consumado o crime “quando nele
se reúnem os elementos de sua definição legal”, significando dizer que só é possível"
saber se um crime está consumado (= tipo consumado) verificando se o comporta­
mento de que se trate perfaz todos os requisitos que compõem o tipo penal, ou seja,
somente é possível saber se há ou não consumação confrontando-se o fato praticado
com a redação (especialmente o verbo empregado) do tipo em questão. Daí se dizer
que a tentativa é um tipo dependente, pois não existe uma tentativa em si mesma,
mas tentativa de um determinado crime, isto é, tentativa de homicídio, de furto etc.3 :
Assim, a consumação do aborto dá-se com a morte do feto (art. 124: provocar abor­
to); a do seqüestro, com a privação da liberdade de alguém (art. 148; privar alguém'
de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado); a do furto, com a efetiva*,
subtração da coisa alheia móvel (art. 155; subtrair coisa alheia móvel) etc. s
Por essa razão é incorreta a Súmula 610 do Supremo Tribunal Federal,4 que con­
sidera consumado o crime de roubo seguido de morte ou latrocínio (CP, art. 157, § 3e,
segunda parte) quando o agente mata a vítima, mas não consegue subtrair a coisa. É
que em tal caso não se reúnem “todos os elementos da definição legal” (CP, art. 14, II),
mas apenas parte deles, já que o tipo se compõe de morte e subtração. Além disso, tra­
tando-se de crime contra o patrimônio, não se pode considerá-lo consumado quando,
embora realizado o crime-meio (homicídio), não se realize o crime-fim (roubo), razão ,
pela qual só se pode falar de latrocínio consumado quando se consumarem a morte é
a subtração, pois fora daí (morte tentada ou subtração tentada), a hipótese será dè '
crime tentado. Também é inadmissível falar de concurso de crimes (v. g., homicídio
em concurso com roubo), visto que tal implicaria quebra da unidade concebida pelo
Código, dando margem a um casuísmo ofensivo ao princípio da legalidade.5

2 Direito penal, cit., v. 1, p. 321.


3 No mesmo sentido, Fragoso: de notar que a determinação do início da execução só é possível fazer em face
de cada tipo de crime, tomando-se em conta a ação que o configura, expressa por um verbo. Trata-se de
saber quando se inicia a execução do homicídio, do furto, do estelionato, da sedução etc. (Lições de direi­
to penal , Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 241).
4 Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de
bens da vítima.
5 Nesse sentido, Hungria (Comentários, cit., v.VII): se se admitisse tentativa de latrocínio quando se consu­
ma o homicídio (crime-meio) e é apenas tentada a subtração patrimonial (crime-fim) ou, ao contrário,
quando é tentado o homicídio, consumando-se a subtração, o agente incorreria, no primeiro caso, em pena
inferior à do homicídio simples (!), e, no segundo, em pena superior à da tentativa de homicídio qualifi*
cado pela conexão de meio a fim com outro crime, ainda que este outro crime seja de muito maior
dade que o roubo. A solução que sugiro, nas hipóteses formuladas, como menos subversivas dos princípios
é a seguinte: ou o agente responderá, e tão-somente, por consumado ou tentado o homicídio qualificado,
dada a relação de meio a fim entre o homicídio consumado e a tentativa de crime patrimonial ou entre
homicídio tentado e a consumada lesão patrimonial.
2 1. Consumação nos crimes materiais, formais, de mera conduta e outros

Nos crimes materiais, a consumação ocorre com a realização do resultado.


Assim, o homicídio se consuma com a morte da vítima; o furto, com a efetiva sub­
tração da coisa. Já nos formais (ou de consumação antecipada), a consumação ocor­
re com a realização da ação, pouco importando o resultado. Assim, a concussão
(CP, art. 316), cuja consumação ocorre com o só fato de o funcionário público exi­
gir (ação) vantagem indevida, independentemente da obtenção dessa vantagem
(resultado). Nos crimes de mera conduta ou simples atividade, em que o tipo penal
não alude a nenhum resultado (são crimes sem resultado), a consumação se dá com
a realização da conduta incriminada, tal como ocorre com a violação de domicílio
(CP, art. 150). Finalmente, nos crimes culposos, a consumação dá-se com o resul­
tado naturalístico; nos omissivos próprios, com a omissão do dever legal; nos omis­
sivos impróprios (crime material), com o resultado lesivo; nos permanentes, a con­
sumação protrai no tempo enquanto se renovam os atos de execução; e nos habi­
tuais, quando houver reiteração de atos capazes de configurarem habitualidade, já
que atos isolados ou eventuais não são suficientes à consumação; por fim, nos con­
tinuados cada crime se consuma em princípio autonomamente.

3. Consumação e exaurimento

Não se deve confundir consumação com exaurimento, ou seja, consumação


formal com consumação material. A corrupção passiva (art. 317) - crime formal
por exemplo, consuma-se com o só ato de solicitar vantagem indevida, sendo a efe-
tiva obtenção dessa vantagem mero exaurimento de uma ação delituosa já previa­
mente consumada. O exaurimento pode também constituir crime autônomo,
como, por exemplo, a ocultação de cadáver (CP, art. 211), em relação ao homicí­
dio; ele é, portanto, uma etapa posterior à consumação do crime, quando o autor
não só realiza todos os elementos típicos, mas também consegue satisfazer a inten­
ção que perseguia: herdar do parente que matou, lucrar com o delito patrimonial
praticado etc.,6 podendo caracterizar um fato criminoso autônomo, um indiferen­
te penal ou, ainda, causa de aumento de pena ou qualificadora, a exemplo do crime
de resistência (CP, art. 329, § 1Q), em que a não execução do ato legal por parte do
íuncionário público qualifica o delito.

4. Tentativa: conceito e requisitos


A tentativa é a realização de uma decisão de levar a efeito um crime median­
te uma ação que constitui o início de sua execução.7 O crime tentado não se distin­

6 Munoz Conde, Francisco. Teoria Geral do Delito, cit., p. 179.


7 W elzel, D erecho penal alemán, cit., p. 224.
gue do consumado em virtude da vontade do agente, que é rigorosamente a mesma
em ambos os casos, mas em razão do tipo objetivo, que é incompleto, pela interrup­
ção do iter críminis por fato estranho à vontade do agente. Do ponto de vista da
vontade do agente, não há distinção, portanto, entre tentativa e consumação, por­
que em ambos os casos há dolo de consumar o crime, razão pela qual a distinção
reside no plano objetivo unicamente.
Se a consumação é assim a completa realização dos elementos do tipo penal, a
tentativa constitui, conseqüentemente, a sua realização incompleta, vale dizer, é a
não-consumação do delito por circunstância alheia à vontade do agente. Nesse sen­
tido, dispõe o Código (art. 14, II) que a tentativa ocorre quando, “iniciada a execução,
o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”, razão pela .
qual só em referência à descrição típica e específica da norma penal que se pretende
violada é que se poderá distinguir a consumação da tentativa e, de igual modo, entre
esta e os atos preparatórios. A tentativa, enfim, é sempre comportamento concreto
relacionado a tipos penais certos e determinados. São, pois, requisitos da tentativa: a) ’
início da execução do crime; b) não-consumação por circunstâncias alheias à vonta­
de do agente. Poder-se-ia também incluir o dolo de consumar entre os requisitos, mas '
tal já está implícito no item £>, além de dizer respeito também à consumação.
Com efeito, só se pode falar de tentativa quando o autor tiver dado início à
execução do crime, com a intenção de consumar o crime. Assim, o processo de exe­
cução do homicídio tem início com o disparar os tiros (ainda que erre o alvo); o r
furto, com o fazer uso de chave falsa; o estupro, com o empregar a violência ou .
grave ameaça à conjunção carnal. É que em todas essas situações há início do matar
alguém (art. 121), do subtrair coisa alheia móvel (art. 155), do constranger mulher >
mediante violência ou grave ameaça à conjunção carnal (art. 213).
Mas não basta que se dê início à execução do crime; é preciso ainda que haja >"
interrupção do iter crím inis por fato independente da vontade do seu autor (còri- -
sumação completa do tipo subjetivo), ou seja, é preciso que a consumação não ocor­
ra por circunstâncias alheias (estranhas) à sua vontade, tais como resistência da -
vítima, intervenção policial ou de terceiro etc., pois do contrário, isto é, se a con­
sumação não ocorrer em razão de desistência voluntária do próprio agente ou de.
arrependimento eficaz seu - circunstâncias dependentes (não alheias) da sua p ró -'
pria vontade - , já não se poderá falar de crime tentado, por ausência de requisito
essencial: não-consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente (presen­
ça do dolo de consumar). Não há tentativa, portanto, embora se tenha iniciado a
execução do crime, quando o agente, depois de dar o primeiro disparo, desiste de .
prosseguir ou, mesmo após realizar todos os disparos, arrepende-se e presta socor-
ro à vítima, evitando-lhe a morte (ausência do dolo de consumar). É que a tentaO-,*
va, tanto quanto a consumação, exige o tipo subjetivo (dolo) completo.8

W eizel, Derecho penal alemán, cit., p. 224.


D ire ito Penal - Parte Geral

Finalmente, só se pode falar de tentativa tomando-se, para tanto, o conteúdo


da vontade do agente, isto é, o dolo. Assim, se A agride B, ferindo-o gravemente,
tal situação tanto poderá configurar crime consumado quanto tentado, a depender
da sua intenção: se a vontade de A era matar B, a hipótese é de homicídio tentado;
se era intenção sua causar-lhe lesão corporal simplesmente, responderá por lesão
corporal consum ada. Daí aludir o Código alemão,9 ao definir a tentativa, à repre­
sentação d o autor, pois o critério para verificação da tentativa ou consumação não
é puramente objetivo; é também subjetivo.

4.1. Tentativa e dolo eventual: incompatibilidade?


Há quem considere, como Rogério Greco, que a tentativa é incompatível com
o dolo eventual, alegando, fundamentalmente, que este tem a estrutura de uma
imprudência, sendo tratado como crime doloso por razões de política-criminal.10
Não estamos de acordo com isso, porém. E que, como vimos, o dolo no crime
tentado é absolutamente idêntico ao dolo no crime consumado, havendo diferença
apenas no plano objetivo/material, já que a tentativa representa uma frustração rela­
tivamente ao resultado pretendido. Se assim é, o fato de o crime não se consumar
por circunstância alheia à vontade do agente (v. g„ erro de execução, intervenção
de terceiro) não modifica em absolutamente nada o dolo do agente, que permanece
o mesmo e que necessariamente antecede à ação e ao resultado, pouco importando
para esse efeito o seu sucesso ou insucesso. Enfim, é possível tentativa de crime com
dolo eventual pela mesma razão que o é na consumação, pois no particular não há
diferença alguma. O dolo eventual é espécie do gênero dolo, frise-se.
Assim, por exemplo, se o agente atira contra a vítima com dolo eventual, atin­
gindo-a mortalmente, responderá por homicídio doloso consumado; se a vítima
resiste ao disparo, haverá homicídio doloso tentado. Se, existindo mais de uma víti­
ma, o agente agir com dolo direto quanto a uma e dolo eventual quanto a outra, a
resposta é exatamente a mesma que se daria para o caso de consumação: se ambas
resistirem, haverá duplo homicídio tentado.
Por fim, a alegada incompatibilidade entre tentativa e dolo eventual acabaria
Por eliminar a distinção entre dolo (eventual) e culpa, conferindo-lhes tratamento
unitário, própria dos crimes culposos, numa clara ofensa aos princípios da legalida­
de e proporcionalidade.

4.2. Preparação e tentativa: distinção

Basicamente há dois critérios para distinguir entre atos preparatórios e atos


executórios: material e formal. O primeiro toma em consideração a lesão ou peri-

^ Dispõe o Código alem ão ( § 2 1 ) que há tentativa quando o au tor "dá in ício d ireta m en te à realização do tipo
segundo a sua representação do fato”.
Direito Penal, cit.
Paulo Queiroz

go de lesão ao bem jurídico protegido; critério, porém, que não satisfaz, já que.
mesmo nos atos meramente preparatórios, há no mínimo perigo de lesão. Além
disso, e mais importante, sua adoção poderia resultar, em última análise, em viola­
ção ao princípio da legalidade. Já para o segundo, os atos executórios começam com
o início da realização do tipo penal ou, como diz o Código, in ício da execu ção do
crime. Assim, a execução do homicídio começa com o ato de m atar alguém, o furto,
com o ato de subtrair, o estupro, com o constranger.
Mas a expressão “início da execução do crime” não coincide necessariamente
com in ício d e realização do tipo.11 Exemplo: A é preso no quintal de uma residên­
cia antes de adentrar seu interior para furtar; B, fmgindo-se cliente de um banco,
é preso minutos antes de anunciar o roubo. No primeiro caso, h4 um fato punível
(furto tentado); no segundo, não. Por quê? Porque na primeira hipótese o ato de
transpor os muros do quintal - quando A já operava ilegalmente (saltara o muro) -
já constitui, sem dúvida, o início de “execução de um crime”, embora não consti­
tua um “início de realização do tipo penal de furto", isto é, não se iniciara o “sub­
trair”; já na segunda hipótese, B, ainda operando dentro da legalidade (adentrar
lugar de acesso público), não iniciara crime algum, tampouco começara a realiza­
ção do tipo de roubo, de sorte que somente se poderia falar de tentativa a partir do
momento em que B anunciasse o “assalto”.
A tentativa, segundo o Código, ocorre, assim, com o “início da execução do
crime” - o que supõe um atuar ilegal imediatamente anterior à realização do tipo -,
ainda quando tal não signifique começo “da realização do tipo”. Por conseguinte, as
ações que caracterizam a tentativa são os atos “que se encontram situados imediata­
mente antes da realização do tipo” (Bokelmann). Têm razão, por isso, Cobo dei Rosai
e Vives Antón quando assinalam que o início da execução há de ser delimitado a‘
partir dos aspectos constitutivos da infração: a materialidade do fato, o conteúdo do
injusto e o conjunto dos dados típico-formais que a individualizam.12
Enfim, o conceito de execução, como o de consumação, é de natureza formal
e, como tal, refere-se ao tipo delitivo de cuja execução se trate,13 sob pena de, par­
tindo de critérios outros, como o plano do autor ou a ofensividade da ação, exclu­
sivamente, acabar-se por violar o princípio mesmo da legalidade. Por exemplo,
ainda que, do ponto de vista do plano do autor decidido a matar, seja já ato execu­
tivo procurar a vítima para matá-la, atalaiá-la, sacar a arma do coldre ou comprá-
la, do ponto de vista do princípio da legalidade, tais ações não podem ser conside­
radas por um observador imparcial como “início de execução” da ação de “matar”,
que é a ação típica do homicídio, e, portanto, não constituem tentativa desse deli­
to, mas atos preparatórios.14

11 Executar um delito - escrevem Cobo dei Rosai e Vives Antón - é dar início à realização do tipo (Derecho
penal, cit., p. 642).
12 D erecho penal, cit., p. 646-647.
13 Mufioz Conde, Teoria, cit., p. 183.
14 Munoz Conde, Teoria, p. 184-185.
D ireito Penal - Parte G eral

Por conseguinte, o problema da determinação do início da execução do crime,


com o afirma Aníbal Bruno, há de ser resolvido em relação a cada tipo de crime,
tomando-se em consideração sobretudo a expressão que a lei emprega para desig­
nar a ação típica (matar, subtrair, constranger), uma vez que é em referência ao tipo
penal considerado que se pode decidir se estamos diante de simples preparação ou
já da execução iniciada, sendo necessário, para tanto, ter presente o fim visado pelo
agente, pois, embora a linha diferencial seja fundamentalmente de natureza obje­
tiva, há nela sempre a influência do elemento subjetivo do agente, do fato punível
a que verdadeiramente se dirige a sua resolução.15 Em persistindo dúvida sobre se
se trata de preparação ou de tentativa, é de se invocar a máxima in du bio p ro reo.

4.3. Crimes que não admitem tentativa

Nem todos os crimes admitem tentativa, porém. Assim, por exemplo, os cri­
mes culposos, pois são sempre consumados (se, v. g., atropelou e não matou, res­
ponde por lesões culposas; se matou, por homicídio culposo), vale dizer, só se pode
cogitar de tentativa em face de crimes dolosos. Por igual, não comportam a tenta­
tiva os crimes omissivos próprios, uma vez que, não exigindo resultado naturalísti-
co, consumam-se com a só abstenção da ação devida; os habituais, visto que atos
isolados são insuficientes à sua configuração; os preterdolosos, porque ou o fato
conseqüente culposo ocorre, caso em que estará consumado o crime, ou não ocor­
re, quando então a hipótese será de crime doloso (consumado ou tentado, confor­
me o caso); e, finalmente, não admitem a tentativa as contravenções penais, por
expressa disposição legal (LCP, art. 4o).16

4.4. Punição da tentativa; fundamento político-criminal

A tentativa, salvo disposição em contrário, é castigada com a mesma pena do


crime consumado, mas com diminuição de um a dois terços (CP, art. 14, parágrafo
único), sendo que, quanto mais o crime se aproximar da consumação, menor será a
diminuição (maior pena); quanto mais distante da consumação, maior a diminui­
ção (menor pena). Enfim, importa, para efeito de fixação da pena, a ofensividade
manifestada concretamente. Assim, por exemplo, merece menor pena o agente que
atira várias vezes contra a vítima sem acertá-la (tentativa branca) do que aquele
que a acerta, ferindo-a gravemente.
O Código adotou no particular um critério puramente objetivo para a apena-
Ção da tentativa, já que no plano subjetivo não há diferença alguma entre tentati­

15 Exemplo dessa hipótese excepcional é o art. 352 do CP, que pune, indistintamente, "evadir-se ou tentar
evadir-se.
16 Aníbal Bruno, Direito penal, cit., p. 246.
va e consumação: em ambos os casos o agente quer a realização do tipo e atua no
sentido de consumá-lo (dolo de consumar). Excepcionalmente a lei dá ao crime ten­
tado o mesmo tratamento do crime consumado, equiparando-os inclusive quanto à
pena cominada. Exemplo disso é o art. 352 do CP, que pune igualmente o “evadir-
se ou tentar evadir-se o preso”, bem assim o art. 309 do Código Eleitoral, que castiga
igualmente “o votar ou tentar votar duas vezes”; idem, Lei n9 7.170/83, arts. 9° e 11.
Não obstante parte da doutrina pretenda uma justificação especial para o
crime tentado, assiste razão a Munoz Conde quando assinala que o fundamento da
punição de todos os atos de execução do delito, idôneos ou não, deve ser necessa­
riamente unitário, e corresponder à mesma finalidade político-criminal e preven­
tiva que preside todo o direito penal, uma vez que as formas imperfeitas de execu­
ção são causas de extensão da pena, que correspondem a uma mesma necessidade:
estender a ameaça ou a cominação penal às condutas que, embora não consumati-
vas de crime, estão muito próximas disso e que importam em grave ofensa ou peri­
go concreto de ofensa a bem jurídico.17 Pune-se, portanto, a tentativa pela mesma
razão que se pune o crime consumado.
Enfim, e como diz Welzel, se o delito é uma lesão ao ordenamento da comu­
nidade, intolerável social e especialmente ofensiva, segue-se que o fato punível
começa fundamentalmente quando o autor inicia uma ação insuportável desde um
ponto de vista ético-social, isto é, com a tentativa.18

4.5. Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade19

Como se percebe, o legislador, ao distinguir preparação, tentativa e consuma­


ção, não atende a uma razão de ordem ontológica (nem sequer lógica), mas axioló-
gica (ou de conveniência política), mesmo porque o fundamento da punição de
todos os atos de execução (idôneos ou não) tem de ser necessariamente unitário e
responder à mesma finalidade político-criminal e preventiva que preside todo o
direito penal.
A questão a formular e responder é a seguinte: será que de fato a tentativa de
crime constitui, do ponto de vista político-criminal, uma ofensa s u f i c i e n t e m e n t e
grave a justificar a intervenção jurídico-penal? Noutras palavras: é razoável, à luz
dos princípios da ofensividade e proporcionalidade, a punição da tentativa de
forma irrestrita?
Pensamos que não.

17 Teor/a, cit., p. 184-185.


18 D erecho penal alemán, cit.
19 Ver Paulo Queiroz e Ana Cláudia Pinho: Tentativa e os princípios da proporcionalidade e ofensividade*
uma necessária aproximação, Boletim do JBCCrím.
D ire ito Penal - Parte Geral

Em primeiro lugar, porque, como já assinalado, subjetivamente diferença


alguma há entre preparar e tentar um crime, pois idêntico é o dolo de quem, v. g.,
prepara a morte de alguém ou tenta matá-lo. A distinção, portanto, dá-se no plano
puramente objetivo: a tentativa implicaria lesão ao bem jurídico tutelado, enquan­
to na mera preparação tal não ocorreria (o acionar o gatilho é mais grave que o só
apontar a arma na direção da vítima).
A distinção entre preparar e tentar - freqüentemente problemática - reside,
portanto, não propriamente no desvalor da ação (v. g., no dolo de matar que é o
mesmo), mas no desvalor d o resultado (lesão ao bem jurídico), mesmo porque se o
conceito de injusto se baseasse apenas no desvalor da ação, não seria necessário dife­
rençar (sequer) entre tentativa e consumação, a autorizar tratamento legal idêntico.
Pois bem, uma tal distinção só é válida em termos abstratos. E que em con­
creto o desvalor do resultado do ato preparatório pode ser essencialmente o
mesmo do crime tentado. Assim, por exemplo, não há diferença relevante entre
surpreender um ladrão de jóias escalando uma joalheria e encontrá-lo já no seu
interior, a ponto de justificar que no segundo haja crime (tentado) e no primeiro
não (preparação). Ambas as ações - distinguíveis apenas temporalmente (momen­
to da prisão) - têm em realidade a mesma significação, não se justificando que uma
seja punível e a outra não.
E também no plano concreto que se poderá identificar (com precisão) o maior
desvalor da tentativa em relação à preparação. Assim, v. g., atirar contra alguém
(com intenção de matar) atingindo-o gravemente em região não letal é bem mais
censurável que simplesmente comprar a arma, preparar a emboscada etc. Em con­
clusão, a gravidade de um ato - preparado, tentado ou consumado - há de ser sem­
pre aferida concretamente, não bastando a só previsão da punibilidade da tentati­
va e impunibilidade dos atos preparatórios.
Releva notar que em muitas situações de desistência e arrependimento efica­
zes o desvalor do resultado poderá ser maior do que em hipóteses de crimes tenta­
dos. Não há dúvida de que, por exemplo, disparar contra alguém, errando o alvo
por imperícia, é menos reprovável que acertar a vítima e desistir ou se arrepender
eficazmente logo a seguir. No entanto, no primeiro caso, há tentativa (branca), no
segundo, não, respondendo o agente unicamente pelos atos já praticados.
O critério, pois, do (maior) desvalor do resultado nos crimes tentados (ou
mesmo consumados), não tem caráter absoluto, devendo ser sempre aferido con­
cretamente; não basta, jamais, a mera presunção legal (abstrata) de maior gravida­
de no crime tentado e menor gravidade nos atos que não o constituem.
Enfim, razoável seria: a) que o legislador, à semelhança do que fez quanto às
contravenções (LCP, art. 4o), previsse a impunidade da tentativa de crime sempre
que praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa; b) nesses crimes, sem vio­
lência, não havendo distinção relevante entre a preparação e a tentativa, é perfei­
tamente possível interpretação (restritiva e sistemática) para considerar atípicas
tais condutas, com base nos princípios da proporcionalidade e ofensividade, mesmo
Paula Queiroz. •

■M T *

porque, se se admite, nos crimes consumados (inclusive), a adoção do princípi0 da


insignificância, com maior força de razões se há de admitir a impunibilidade
do o dano nem sequer se concretize (mera tentativa de crime). ^
A ressalva quanto aos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pes_'
soa justifica-se pelo maior desvalor da ação destes, que não é o mesmo dos crimes'-
não violentos (tentar roubar, constrangendo a vítima com um revólver apontado
contra a sua cabeça não é o mesmo que tentar furtar, ausente o dono da coisa).

5. Desistência voluntária (da tentativa)

O agente que, podendo prosseguir na execução de um crime, deixe de fazê-lo’


desistindo voluntariamente de consumar o delito cuja execução iniciara, não res­
ponde por tentativa. É que nesse caso faltará requisito essencial da tentativa, qual
seja, a não-consumação p o r circunstâncias alheias à vontade d o agente, respondei
do o autor, em conseqüência, unicamente pelos atos já praticados (v. g., lesão cor^
poral, na hipótese de iniciada a execução de um homicídio). Nesse sentido, dispõe*’
o Código Penal (art. 15, 1- parte) que “o agente que, voluntariamente, desiste de'
prosseguir na execução (...) somente responde pelos atos já praticados”. Assim, pór*
exemplo, se, depois de dar um primeiro golpe, ferindo gravemente a vitima, 6
autor, embora podendo prosseguir golpeando, desiste voluntariamente, não res-;:
ponderá por homicídio tentado, mas pelos atos já praticados, isto é, responderá por*»
lesões graves ou não responderá por crime algum, caso não resulte nenhuma lesão)
Evidentemente que na mesma situação não se poderá falar de desistência^
voluntária se o agente supôs, depois do desmaio da vítima, que esta falecera, pois-s-
não houve desistência, mas mera suposição de consumação do delito. Tampouco se^,«-
poderá cogitar de desistência se nesse mesmo caso o agente empreende fuga aó per?";
ceber a aproximação de policiais, por exemplo, pois a não-consumação se deveu a ■.
circunstância alheia à sua vontade, não se podendo falar de desistência, muito.1
menos voluntária, mas involuntária (contra a vontade do agente). E que na desis­
tência voluntária o agente muda de propósito, já não quer o crime; na involuntária ...
(forçada), mantém o propósito, mas recua diante da dificuldade de prosseguir20 '
Mas não se exige espontaneidade da desistência; é suficiente que seja v o l u n t á n s , é
dizer, que não resulte de coação moral ou física. Há desistência mesmo quando o .
agente desista por medo, piedade, remorso etc.
A desistência tem assim a ver com a tentativa im perfeita,21 é dizer, quando,
iniciada a execução do crime, o autor não exaure todos os meios de que dispõe p®1®
consumar o delito. Fora daí, isto é, já havendo exaurido os meios de que dispõe

20 Aníbal Bruno, Direito penal , cit., p. 246. • .


21 A distinção entre tentativa perfeita e imperfeita, como observa jescheck, só pode ser delimitada, P° Sr i
segundo um critério subjetivo, porque a questão de saber se o autor exauriu, ou não, os meios de ex _
ção depende do seu plano de fato e de sua representação ( Tratado, cit., p. 490).
a c o n s u m a ç ã o (tentativa perfeita), a hipótese será de arrependim ento eficaz, que
produz o mesmo efeito.

6 Arrependimento eficaz (da tentativa)

Igual efeito produz o arrependimento eficaz, que ocorre quando o agente


“impede que o resultado se produza” (art. 15, 2a parte). O arrependimento tem a ver
com a tentativa p erfeita ou acabada, hipótese em que há, segundo o plano do autor,
e x au rim e n to dos meios de produção do resultado. Dá-se o arrependimento, portan­
to, quando o agente, tendo já ultimado o processo de execução do crime, desenvol­
ve nova atividade, impedindo a produção do resultado; diferentemente, pois, da
desistência, que tem caráter eminentemente negativo, o arrependimento tem natu­
reza positiva.22 Assim, por exemplo, se, após ministrar veneno à vítima, o autor lhe
dá um antídoto, salvando-lhe a vida, ou quando, após disparar todos os tiros de que
dispõe, conduz a vítima ao hospital, frustrando a morte.
Por óbvio que a desistência e o arrependimento, pressupondo processo de exe­
cução na fase de tentativa e atuação eficazes, ficarão excluídos sempre que o agen­
te desistir ou se arrepender inutilmente, isto é, de forma ineficaz, situação em que
haverá crime consumado, com mera atenuação da pena. Assim, por exemplo, se A,
após atirar contra B, desistisse e o levasse ao hospital, vindo B, apesar disso, a fale­
cer, responderá por crime consumado.
A desistência voluntária e o arrependimento eficaz - hipóteses constitutivas
de um tipo objetiva e subjetivamente incompleto - dizem respeito ao crime tenta­
do, exclusivamente.

6.1. Posição sistemática

Discutível é a posição sistemática da desistência voluntária e do arrependi­


mento eficaz. Hungria é de opinião que se trata de causa de exclusão de punibili­
dade, por entender que em tal caso o Estado, por motivos de oportunidade, renun­
cia ao direito de punir. Damásio23 considera com razão que em verdade se trata de
UIna causa que exclui a própria tipicidade, uma vez que há exclusão do tipo tenta­
do relativamente ao crime de que se desistiu ou se arrependeu eficazmente.

Tentativa inidônea ou crime impossível

A tentativa de um crime é considerada inidônea quando, em razão da inido-


neidade dos meios de execução ou do objeto a que se dirige a ação, for impossível

^ " --
Damásio, Direito penai, cit., p. 336.
B irejtopenal , cit., p. 334.
a consumação do crime nas circunstâncias dadas. Nesse sentido, dispõe o C ódigo
(art. 17) que “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou
por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Assim,
conforme exemplos clássicos, quando o agente, com dolo de homicídio, ministra
açúcar no café da vítima supondo arsênico; aciona o gatilho de arma descarregada
(exemplos de ineficácia absoluta do meio); ou quando atira contra um cadáver; pra­
tica manobras abortivas supondo-se equivocadamente grávida (exemplos de impro­
priedade absoluta do objeto da ação).
A impossibilidade pode resultar assim tanto de meio ineficaz (revólver sem
munição), como de impropriedade do objeto (matar um cadáver) ou da conjugação
de ambas as formas.
Portanto, o crime impossível ou tentativa inidônea ocorre sempre que se veri­
ficar, concretamente, que era absolutamente impossível a consumação do crime.
Por isso não basta a só impossibilidade abstrata da ação, pois um instrumento pode
ser inofensivo em abstrato mas se tomar ofensivo em concreto (v. g., açúcar, rela­
tivamente ao paciente diabético), assim como o meio lesivo abstratamente pode ser
inofensivo no caso (v. g., arma de fogo desmuniciada). A possibilidade ou impossi­
bilidade do crime deve assim ser aferida concretamento, de modo a verificar o grau
de ofensividade que a ação representa para o bem jurídico tutelado, avaliada a par­
tir das múltiplas variáveis do caso.
Tratando-se, porém, de tentativa só relativamente inidônea, isto é, meio ou
objeto que só acidentalmente é ineficaz ou impróprio, haverá tentativa punível (v. g.,
dispara contra a vítima, mas a arma nega fogo).
Não se deve confundir a tentativa inidônea com delito putativo (espécie de
erro de proibição às avessas), pois neste, diferentemente, o agente supõe praticar um
fato criminoso que, no entanto, constitui fato penalmente indiferente, como prati­
car incesto. O delito putativo só existe na imaginação do próprio agente, portanto.

8. Crime impossível em razão de preparação de flagrante -


a Súmula 145 do STF

A Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “não há crime quan­
do a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou
seja, “não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimen-
to, direto ou por concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arran­
jar o flagrante” (STF, RTJ, 98/136). Ao editar a referida súmula, o STF pretendeu
disciplinar aquelas situações em que a polícia, objetivando prender suspeitos de
crime (sobretudo suspeitos de tráfico de drogas), cria uma situação com vistas a
atraí-los a cometer o delito, a fim de surpreendê-los em flagrante. Em tal caso, eW
que o crime não passa de uma encenação, não apenas nulo é o flagrante como tam­
bém impossível o delito, sendo atípico o fato cometido em razão da preparação.
D ireito Penal - Parte G eral

A aplicação da súmula exige dois requisitos: 1) preparação do flagrante pela


polícia; 2) impossibilidade absoluta de consumação do crime.

8.1- Preparação do flagrante

Inicialmente é necessário que a polícia forje uma situação de flagrante, para,


com tal expediente, oportunizar a prisão, como manter contato com o suspeito de
tráfico de drogas, passando-se por cliente, para assim adquirir substância entorpe­
cente, prendendo-o no ato de venda. Não se deve, porém, confundir o flagrante
preparado (do qual se ocupa a súmula) com o simplesmente esperado, que é aque­
le em que a polícia, previamente informada do crime, que não preparou (ou pro­
vocou), aguarda o momento de sua ocorrência, realizando a prisão em flagrante.
Neste último caso (flagrante esperado), não se aplica a súmula, havendo crime
(consumado ou tentado, conforme o caso). Exemplo: A polícia, informada de que
em local próximo a uma escola traficantes ali aparecem para fornecer droga a estu­
dantes, os aguarda e os surpreende em flagrante.
Cumpre ressaltar que, embora a súmula se refira a flagrante preparado pela
polícia, também é aplicável às situações em que a preparação é realizada por não
policiais (guardas de segurança privada, vítima, repórter etc.).
Finalmente, a nulidade do flagrante preparado limita-se àqueles fatos objeto
da preparação, pois em relação a fatos outros que independam dela, há, sim, crime
punível, não se aplicando a súmula. Exemplo: o agente é preso por vender cocaína
a um policial que se passou por um cliente, mas em seguida se descobre que sua casa
servia de depósito para carros roubados. Nesse caso, a nulidade do flagrante limi-
tar-se-á ao crime de tráfico, não atingindo o crime de receptação, para o qual não
concorreu a provocação policial. E de se notar, porém, que no âmbito processual
poder-se-á questionar a licitude da prova.
Convém notar que há precedentes do Supremo Tribunal Federal entendendo
que, no caso de tráfico de droga, embora o agente não possa ser licitamente preso
por venda da droga em virtude da provocação (crime impossível), tal não impedi­
ria que pudesse responder pela guarda ilícita da droga posteriormente encontrada
em depósito, uma vez que constituiriam ações distintas e autônomas: vender e
guardar em depósito, igualmente proibidas por lei.
Ocorre, no entanto, que o crime de tráfico, embora de múltipla ação (expor­
tar, vender, expor à venda, guarda em depósito etc.), constitui crime único, moti­
vo pelo qual o agente, caso pratique várias ações, responderá por um só e mesmo
crime: tráfico ilícito de droga. Exatamente por isso, não parece correta a interpre-
taÇão no sentido de considerar impossível o delito quanto a uma ação (vender) e
possível quanto a outra (guardar em depósito), como se não houvesse crime de
múltipla ação, mas múltiplos crimes em concurso material.
Paulo Queiroz

8.2. Impossibilidade de consumação

Ao referir a impossibilidade “de consumação”, a súmula evidentemente


tem aplicação quando a preparação tenha lugar após a consumação do crime ist^
é, já na fase de exaurimento. Exemplo: um funcionário público, que exigira vanta­
gem indevida de alguém, vem a ser preso dias depois, pela polícia, que foi previ^
mente avisada pela vítima sobre quando receberia o dinheiro. É que, tratando-se dé
crime formal (concussão - CP, art. 316), a consumação já havia ocorrido no djj
mesmo da exigência da vantagem, de modo que o recebimento do dinheiro é só’ò
exaurimento de crime antes consumado. Neste caso, o crime não só é possível coiiS
já consumado. E o flagrante não subsiste por outra razão: inexistência.
Cumpre notar, por fim, que autores há, como Eugênio Pacelli, que não ques­
tionam a distinção feita entre flagrante esperado e flagrante provocado, razão jj^a
qual tais hipóteses devem ter tratamento unitário, seja para validá-las - hipóteü
que tem como acertada - , seja para invalidá-las.24 .
..*3.
8.3. Flagrante retardado

E preciso não confundir o flagrante provocado com o simplesmente retafi


do (ou prorrogado), previstos nalgumas leis especiais, como a Lei ne 11.343/2uut>,
pois neste último não há nem pode haver nenhum tipo de induzimento, instigação
ou auxílio por parte da polícia, sob pena de também se converter em flagrante pr£
parado, tomando impossível o delito. Com efeito, só há genuinamente flagran'
retardado quando a polícia ou autoridade competente, ao invés de proceder à pn“
são desde logo, prorroga tal ato para um momento mais adequado do ponto de vista
das investigações em curso, a fim de conferir-lhes o maior êxito possível, como, por
exemplo, identificar os principais criminosos, desbaratar uma grande quadrilháj
reunir o máximo de elementos de prova etc. Trata-se, portanto, de uma espécie do
gênero flagrante esperado e, pois, legítima.

9. Arrependimento posterior

O assim chamado arrependimento posterior - aplicável aos crimes dolosos>


culposos, consumados ou tentados, patrimoniais ou não patrimoniais - está previs­
to, como causa geral e obrigatória de redução de pena, no art. 16 do CP: “nos cri'
mes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restj'
tuída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato v o l u n t á r i o dó
agente, a pena será reduzida de um a dois terços”. Seu reconhecimento reclaft|
assim o concurso dos seguintes requisitos: a) crime sem violência ou grave ameaça

24 Curso d e processo penal, Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 505-510.


D ireito Pena] - Parte G eral

j pessoa; b) reparação ou restituição anterior ao recebimento da denúncia ou quei-


xa_c) yoluntariedade do ato.
A doutrina considera que só a reparação feita pelo próprio agente, e não por
terCeiro (v. g ., um parente), pode ensejar a redução legal da pena. No entanto, se,
como diz a Exposição de Motivos do Código, tal providência de Política Criminal
é in stitu íd a menos em favor do agente do que da vítima (item 15), não faz muito
sentido recusar idêntico tratamento quando um terceiro, intervindo em favor do
agente, restitua a coisa ou repare integralmente o dano. Também não é razoável
exigir que a reparação tenha lugar, necessariamente, como quer a letra da lei, em
ato anterior à citação do réu: o recebimento da denúncia ou da queixa, quando
toma o réu conhecimento oficial da acusação que se lhe faz. Outro, enfim, deveria
ser o momento processual a tolerar o arrependimento, sempre posterior e não ante­
rior à citação. Nesses casos, o juiz pode e deve ser mais tolerante que o legislador,
de modo a permitir o arrependimento sempre que, citado, o réu manifeste interes­
se em reparar o dano ou restituir a coisa. Mas se o arrependimento não for admiti­
do posteriormente ao recebimento da denúncia, a reparação funcionará como cir­
cunstância atenuante (CP, art. 6 5 , III, b).
Cumpre dizer que, na hipótese de a reparação ou a restituição já figurar como
causa de extinção de pena, como ocorre no peculato culposo (CP, art. 312, § 3S),
ficará prejudicada a aplicação do art. 16, prevalecendo a norma mais favorável ao
réu (princípio da especialidade).
Por fim, a Súmula 554 do STF prevê que o pagamento do cheque antes do
recebimento da denúncia extingue a punibilidade do crime de estelionato previsto
no art. 171, § 2S, VI, do Código Penal.
D ireito Pena] - Parte Geral

C ap ítulo IX
C o n cu rso de Pessoas: au to ria e p articip ação

1. Introdução

O crime, como toda e qualquer ação humana, pode ser praticado por uma ou
mais pessoas. Na hipótese de ser cometido por mais de uma pessoa - concurso
eventual —, cumprirá saber quais as condições que deverão reunir-se para que possa
assumir relevância jurídico-penal, a fim de se estabelecer e precisar a respectiva
responsabilidade e promover a individualização judicial da pena de cada um dos
concorrentes: autor, co-autor ou partícipe. Trata-se de problema específico dos
chamados crimes unissubjetivos, os quais podem ser praticados por uma ou mais
pessoas, haja vista que nos crimes plurissubjetivos (ou de concurso necessário) a
participação de mais de um agente faz parte da própria descrição típica (rixa, qua­
drilha ou bando etc.), sendo inerente à realização do tipo legal de crime.

2. Conceito e mom ento

Concurso de pessoas (ou de agentes) - expressão compreensiva da co-autoria


e da participação (em sentido estrito) - é a ciente e voluntária cooperação de duas
ou mais pessoas na mesma infração penal.1 Pressupõe, portanto, convergência de
vontades para um fim comum, que é a realização do tipo penal, embora seja dis­
pensável para tanto a existência de acordo prévio entre tais pessoas, bastando que
um dos delinqüentes saiba que participa da conduta delituosa.2
O concurso pode ocorrer desde a fase da ideação do crime até a sua consuma­
ção - durante o iter críminis; não depois, na fase de exaurimento, pois já plena­
mente realizado o tipo. Assim, quem simplesmente oculta cadáver não responde
por homicídio, assim como quem auxilia autor de crime a subtrair-se à ação da
autoridade pública tampouco responde pelo delito imputado ao auxiliado, sempre
que a participação tenha lugar de fato após a consumação do crime, já na fase de
exaurimento. Tais fatos ou são punidos autonomamente (assim, a ocultação de
cadáver - CP, art. 211 - e o favorecimento pessoal - CP, art. 348) ou não consti­
tuem crime algum.

1 Magalhães Noronha, Direito penal, cit., v. 1, p. 214.


2 Mirabete, Manual, cit., p. 226.
Paulo Queiroz

3. Requisito: adesão subjetiva ou nexo psicológico

Para a caracterização do concurso, é indispensável que o co-autor ou partíci­


pe tenha voluntariamente, a título de dolo ou culpa, concorrido para o crime, pois
do contrário haverá simples autoria colateral, que não constitui concurso de cri­
mes, mas crimes autônomos. Aderir subjetivamente significa, nos crimes dolosos,
tomar parte dolosamente no crime de que se trate; nos culposos, significa aderir,
com a sua atuação imprudente, à ação culposa de outrem. Se um agir dolosamente,
outro, culposamente, não haverá concurso de agentes, mas ações autônomas, típi­
cas ou não, conforme o caso.
E necessário que haja a vontade consciente e livre de concorrer, com a pró­
pria ação, na ação de outrem.3 Não obstante o concurso de pessoas ordinariamente
se realize mediante acordo prévio entre aqueles que nele intervém, como na hipó­
tese de roubo a banco, por exemplo, em que os co-autores se reúnem para discutir
o m odus operandi, elegem a vítima, combinam a repartição do produto do crime
etc., tal acerto não é imprescindível à configuração do concurso, bastando que o
agente saiba que está cooperando para um crime (nexo subjetivo). Suficiente é,
enfim, a voluntária adesão de uma atividade à outra, não importando que seja igno-
rada ou até mesmo recusada por quem a recebe.4 Assim, por exemplo, se A, após
agredido por B, vem a ter, minutos depois, bens subtraídos por C, que simula pres-
tar-lhe socorro, não há cogitar de concurso entre B e C, mas de crimes autonoma-
mente praticados. O mesmo ocorreria se ambos furtassem, simultânea e indepen­
dentemente, determinada joalheria.
Naturalmente que não constitui concurso de pessoas o simples ato de assistir
ao evento, com ou sem o prévio conhecimento, o desejo de que o delito se realize
ou a só omissão, exceto se o omitente tiver o dever legal de agir e de evitar o resul­
tado. Não basta, portanto, a mera cogitação ou simples desejo de participar do
crime, nem a só aprovação dos atos criminosos,5 por carecerem de lesividade que
justifique a intervenção jurídico-penal (direito penal do fato).
Quanto à chamada cumplicidade por meio de ações neutras, vale dizer, con­
tribuições para fato ilícito alheio que, à primeira vista, pareçam completamente
normais,6 como, v. g., o empréstimo ou a venda de arma de fogo para alguém que
sabidamente a utilizará para matar outrem, temos que tais ações, se forem realmen­
te neutras, isto é, não constituírem algo mais grave, como sugerir, incentivar, moti­
var o crime, são, em realidade, jurídico-penalmente irrelevantes e, pois, atípicas.
Ademais, tivesse o pretendido cúmplice de responder por crime, se lhe estaria a
imputar, em última análise, conduta de exclusiva responsabilidade de terceiro, no

3 Hungria, Comentários, cit., p. 414.


4 Hungria, Comentários, cit., p. 414.
5 Frederico Marques, Tratado, cit., p. 406.
6 Luís Greco, Cumplicidade através de ações neutras, Rio de Janeiro, Renovar, 2004.
D ireiio Penal - Parte Geral

caso, o autor do homicídio, em clara ofensa ao princípio da pessoalidade da pena.


Tampouco haverá em tais casos autêntico concurso de agentes, visto não existir,
ordinariamente, adesão dolosa ao crime. Finalmente, não seria justo nem razoável
que o sujeito que só empreste ou venda arma responda por quão grave delito
(homicídio, simples ou qualificado, conforme o caso).
A doutrina costuma considerar ainda, como requisitos do concurso, além
dessa necessária adesão subjetiva, a pluralidade de condutas, a identidade da infra­
ção penal e o nexo causai. Entretanto, em verdade a pluralidade de condutas é pres­
suposto do próprio concurso de agentes, já que só se pode imaginar a sua existên­
cia, obviamente, quando concorram para um mesmo evento diversas ações, e não
uma única. A unidade da infração tampouco constitui requisito do concurso, mas
conseqüência lógica da teoria unitária adotada pelo Código. Finalmente, o nexo
causai não é imprescindível à caracterização do concurso, pois em muitos casos a
participação se configura por meio de atos secundários, sem os quais o resultado
final teria ocorrido inevitavelmente. Assim, por exemplo, a atuação de alguém que,
tomando parte em crime de extorsão mediante seqüestro, se limitasse a obter o
número de alguns telefones e endereços ou que se cingisse a manter alguns conta­
tos telefônicos com a família da vítima (participação de menor importância).

3.1. Desistência voluntária e arrependimento eficaz

Conforme vimos, o agente que voluntariamente desiste de prosseguir na exe­


cução (desistência voluntária) ou impede a produção do resultado (arrependimen­
to eficaz), só responde pelos atos já praticados, ficando afastada a tentativa, visto
que esta pressupõe a não consumação por circunstância alheia à vontade.
Pois bem, no caso de concurso de agentes, questiona-se se essa desistência ou
arrependimento se comunica aos eventuais co-autores ou partícipes. Imagine-se
que A contrate B para matar alguém; vindo B, depois de atirar contra a vítima, a
desistir e assim evitar o resultado morte, caso em que B não responderá por crime
tentado, mas pelos atos anteriores já praticados (lesões corporais). Temos, porém,
que A, diversamente, deve responder por crime tentado, não podendo ser benefi­
ciado pela desistência/arrependimento, por duas razões:7 1) porque, embora inicia­
da a execução, o crime não se consumou por circunstância alheia à sua vontade
(desistência de B); 2) porque a desistência é uma circunstância pessoal que diz res­
peito exclusivamente à pessoa do desistente (B), não podendo alcançar pessoa estra­
nha à própria ação. Se ocorresse o inverso, desistência/arrependimento de A, que
intervém, impedindo que B consumasse o delito, A só responderia pelos atos já pra­
ticados, ficando afastada a tentativa.

7 De modo diverso, Hungria entende que, se o desistente/arrependido è o executor, a desistência/arrepen­


dimento, por ter caráter misto (subjetivo/objetivo), é comunicável, alcançando todos que tenham tomado
parte no crime. Comentários, cit., p. 435.
No caso de participação, a solução é exatamente a mesma, apesar das opiniões
em contrário,8 porque, além do que já se disse, a teoria da acessoriedade (limitada)
não constitui óbice algum no particular, uma vez que a conduta é típica e ilícita, o
que já seria suficiente, além de culpável e também punível quanto ao executor (B).
Se eventualmente a desistência ou o arrependimento for inútil/ineficaz, so­
brevindo a consumação, todos responderão por crime consumado. Para essa segun­
da hipótese, o Código Penal espanhol (art. 16, 3) dispõe, um tanto diversamente,
que “quando num fato intervenham vários sujeitos, ficarão isentos de responsabili­
dade penal aquele ou aqueles que desistam da execução já iniciada, e impeçam ou
tentem impedir, séria, firme e decididamente, a consumação, sem prejuízo da res­
ponsabilidade em que poderiam haver incorrido pelos atos executados, se estes
forem já constitutivos de outro delito ou falta”.
Por fim, não é preciso dizer que, se mais de um desistir ou se arrepender efi­
cazmente da execução, a desistência/arrependimento aproveitará a todos os desis­
tentes ou arrependidos. Parece também evidente que se, por força da intervenção
do desistente/arrependido, não tiver início a fase de execução do delito, não have­
rá infração penal a punir (CP, art. 31).
Conclusão: 1) se o mandante e o executor desistem ou se arrependem eficaz­
mente não respondem por tentativa, embora iniciados os atos de execução; 2) se o
mandante ou executor, indiferentemente, desiste ou se arrepende de forma inefi­
caz, ambos respondem por crime consumado; 3) se o executor desiste ou se arre­
pende eficazmente, contra a vontade do mandante, só este último responde por
tentativa; 4) se o mandante desiste ou se arrepende eficazmente, contra a vontade
do executor, embora iniciados os atos de execução (v. g., golpeando-o), só o execu­
tor responde; 5) se não tiverem início os atos de execução, não há crime a punir,
tentado ou consumado.

4. Autoria e participação: distinção

Do ponto de vista dogmático, é realmente fundamental a distinção entre auto­


ria e participação, porque esta é um conceito de referência e supõe sempre a exis­
tência de um autor principal em função do qual se tipifica o fato, de modo que a
participação é acessória e a autoria principal, e isso independentemente da pena
que mereça o partícipe ou o autor no caso concreto.9
Por isso, algumas legislações distinguem explicitamente autoria de participa­
ção, a exemplo do Código Penal espanhol, que declara que “são responsáveis crimi-
nalmente dos delitos e faltas os autores e os cúmplices” (art. 27), sendo autores
“aqueles que realizam o fato por si só, conjuntamente ou por meio de outro de que
se serve como instrumento” (art. 28). E são considerados cúmplices “os que, não

8 Nilo Batista, cit.


9 Munoz Conde, Teoria , cit., p. 195-196.
D ireito Penal - Parte Geral

estando compreendidos no artigo anterior, cooperam na execução do fato com atos


anteriores ou simultâneos” (art. 29).
O Código Penal brasileiro não faz semelhante distinção, ou pelo menos não o
faz explicitamente, já que inicia o principal artigo dedicado ao concurso - o art. 29
_ com declarar que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas
penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Não é de todo exato, por­
tanto, que o legislador decidiu “optar, na parte final do art. 29, e em seus parágra­
fos, por regras precisas que distinguem a autoria da participação” (Exposição de
Motivos). O Código adotou um conceito unitário de autor, não distinguindo,
expressamente, entre autoria e participação.
Apesar disso, tem razão Juarez Cirino quando assinala que, se a lei brasileira
assume em princípio um conceito unitário de autor, a adoção legal de critérios de
distinção entre autor e partícipe transforma na prática judicial o paradigma monís-
tico em paradigma diferenciador,10 até porque a idéia mesma de “concorrer” já
sugere a existência de autor principal.
Sobre o conceito de autor e, pois, sobre a distinção entre autoria e participa­
ção, diverge a doutrina, merecendo destaque, presentemente, a teoria objetivo-for-
mal, a teoria subjetiva e a teoria do domínio do fato, além da teoria unitária (monis-
ta), adotada pelo nosso Código.

4.1. Teoria unitária

O conceito unitário de autor representa a mais antiga teoria sobre a relação do


sujeito com o fato: autor é quem produz qualquer contribuição causai para a reali­
zação do tipo legal, não se distinguindo entre autor e partícipe.11 São considerados
autores, assim, todos os que intervenham no processo causai de realização do tipo,
independentemente da importância que a sua colaboração possua dentro da totali­
dade do fato, questão que só oferece interesse na aplicação da pena.12 Conse­
qüentemente, a causalidade constitui o único critério de relevância jurídico-penal
de um comportamento, restando supérfluo o conceito de acessoriedade.13
Nesse sentido, o Código Penal brasileiro, coerente com a adoção, quanto ao
nexo causai, da teoria da equivalência dos antecedentes causais, segundo a qual
toda e qualquer condição que concorra para o crime é causa do resultado (CP, art.
13), consagrou, quanto ao concurso de pessoas, a teoria unitária,14 pois “quem, de

tO A m od ern a teoria, cit., p. 280.


11 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 275.
12 Jescheck, Tratado, cit., p. 587.
13 Jescheck, Tratado, cit., p. 587.
14 A lei brasileira, enfim, como escreve Fragoso, resolveu em termos simples a questão da co-delinqüência,
partindo da teoria da equivalência dos antecedentes, adotada quanto à relação de causalidade. Assim como
não distingue entre os vários antecedentes causais do delito, não distingue também entre os vários partí­
cipes na empresa delituosa comum: todos são co-autores e responderão pelo crime segundo a mesma esca­
la penal. Somente se distingue entre os diversos partícipes na aplicação da pena, que dependerá da culpa­
bilidade maior ou menor de cada um (Lições, cit., p. 251).
Paulo Queiroz

qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas, na medi­
da de sua culpabilidade” (CP, art. 29). Relevante é saber, portanto, se o agente de
alguma forma contribuiu dolosamente para o crime de que se trate, hipótese em
que, reconhecido o concurso, o co-autor ou partícipe incidirão nas penas comina­
das ao delito. Para essa teoria, enfim, toda pessoa que concorra para a produção do
crime, causa-o em sua totalidade, motivo pelo qual se imputa o delito integralmen­
te a cada um dos partícipes (Antolisei).
Não quer isso significar que a punição dos vários agentes do crime se dará
indistintamente, isto é, à revelia da importância e gravidade da participação de
cada um dos envolvidos, pois, ao se adotar um critério puramente objetivo de res­
ponsabilização penal dos autores e partícipes, violar-se-iam os princípios de pro­
porcionalidade e culpabilidade, entre outros. Daí estabelecer o Código que o agen­
te responderá “na medida de sua culpabilidade” (art. 29, caput), dispondo ainda
que, “se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um
sexto a um terço” (§ Ia). Também por isso se consagra a “participação dolosamente
diversa” (§ 2S).
Nada obsta ainda a que o juiz, invocando o princípio da insignificância, por
exemplo, decrete a absolvição do acusado, tendo em conta a irrelevância jurídico-
penal da participação.
E comum dizer-se que, se, por um lado, a teoria unitária tem a vantagem de
simplificar o tratamento legal dos múltiplos problemas relacionados à autoria e à
participação, por outro, tem a desvantagem de ampliar consideravelmente a puni-
bilidade, e por isso seria dificilmente compatível com um Estado Democrático de
Direito.15 Mas a crítica só será procedente se, primeiro, a teoria for adotada em ter­
mos absolutos, isto é, sem os devidos ajustes; segundo, se o intérprete não tiver a
preocupação - que deve existir sempre - de privilegiar a interpretação mais con­
forme os princípios penais.

4.2. Teoria objetivo-formal

Para esta teoria, que trabalha com um conceito restritivo de autor, fundamen­
tal é a realização de todos ou alguns dos atos executivos previstos expressamente no
tipo legal, ou seja, autor é quem pratica a ação típica enunciada pelo verbo da ora­
ção,16 de sorte que autor é aquele que, no tipo de homicídio, pratica a ação de
“matar”; no furto, a ação de “subtrair”; no estupro, a ação de “constranger”. Nos
demais casos haverá participação.
Apesar de ser ordinariamente aceito semelhante conceito de autor, critica-se
com freqüência o fato de não poder explicar as hipóteses de autoria mediata, quan­

15 Nesse sentido, Roxin. Autoria y dominio dei hecho en el derecho penal, cit., p. 489.
16 Magalhães Noronha, Direito penal, cit., p. 217.
D ir e ito P e n a i - P a r te G e ra l

do o autor (mediato) se utiliza de outrem (autor imediato) para a prática do delito,


caso em que o agente mediato responde como autor, e não como partícipe, embora
não realize a ação típica de “matar”, de “subtrair”, de “constranger”, conforme o caso.

4.3. Teoria subjetiva

A teoria subjetiva, que trabalha com um conceito extensivo de autor, distin­


gue autoria de participação a partir da vontade dos concorrentes: é autor quem atua
com ânimo de autor (animus auctoris), qualquer que seja sua contribuição material
para o fato, ou seja, independentemente de realizar uma ação típica; é partícipe
quem toma parte em fato alheio, atuando com ânimo de partícipe (animus socii),
ainda que realize a ação típica. Decisivo, pois, para a distinção, será sempre a von­
tade do agente, pouco importando sua contribuição material para o crime. Critica-
se a insuficiência do critério utilizado para a distinção pretendida, porque eviden­
temente não se pode prescindir do aspecto material, de modo que, a prevalecer
semelhante formulação, em muitos casos poder-se-á considerar autor quem é mero
partícipe, e partícipe quem é autor, tal a imprecisão.

4.4. A teoria do domínio do fato

Para a teoria do domínio do fato, uma teoria mista que combina critérios obje­
tivos e subjetivos, especialmente impulsionada por Welzel e Roxin, autor, como
sugere a denominação, é a pessoa que detém o domínio da conduta delituosa, isto é,
decide, em linhas gerais, o “se” e o “como” de sua realização,17 ou, como diz Welzel,
autor é o senhor da realização do tipo, o qual, por meio do domínio final da ação,
distingue-se, assim, do mero partícipe, que é quem o auxilia num ato dominado
finalmente pelo autor ou que o incita à decisão de delinqüir.18 Por conseguinte, na
hipótese de “crime de mando” (v. g., um homicídio), tanto é autor o mandante do
crime quanto o mandatário (executor); ambos são co-autores, mesmo porque a co-
autoria é uma forma de autoria, cujo domínio do fato é comum a várias pessoas.
A teoria do domínio do fato tem, em conseqüência, as seguintes implicações:19
a) é autor quem executa, por sua própria mão, todos os elementos do tipo (quem
mata, quem estupra etc.); b) é autor quem executa o fato utilizando outro como ins­
trumento (autoria mediata); c) é autor ou co-autor quem realiza uma parte neces­
sária da execução do plano global (domínio funcional do fato), ainda que não seja
um fato típico em sentido estrito, mas participando da resolução criminosa. Nos
demais casos haverá participação.

17 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 196.


18 D erecho pen al alemán , cit., p. 119.
19 Cf. Jescheck, Tratado, cit., p. 593.
Paulo Queiroz

Discute-se se a teoria é também aplicável aos crimes omissivos. Roxin, que os


insere na categoria dos delitos de infração de dever, entende que não, seja porque
o omitente não é autor por seu eventual domínio do fato, mas por infringir um
dever de evitar o resultado, seja porque o domínio do fato pressupõe uma atuação
ativa por parte do autor, o que não existe nos crimes omissivos,20 seja porque, a se
admitir a simples omissão como uma forma de domínio, então não seria possível
distinguir autoria de participação, pois qualquer contribuição (a omissão inclusive)
para o fato poderia ser considerada domínio do fato,21 motivo pelo qual a teoria
seria aplicável exclusivamente aos crimes comissivos. Discussão semelhante há
quanto aos crimes culposos.
Apesar de amplamente adotada na atualidade, e aqui acatada èm suas linhas
gerais, semelhante teoria tem sido criticada por vários autores,22-23 ressaltando-se,
dentre outras coisas, a imprecisão do que seja realmente dom ínio d o fato , bem
como a circunstância de que o controle material do fato não é suficiente à diferen­
ciação pretendida, pois tal controle (domínio) pode achar-se eventualmente em
mãos do partícipe e mesmo de terceiro.

5. Formas de autoria

A autoria pode se manifestar por três modos distintos: autoria direta (ou ime­
diata), co-autoria e autoria mediata (ou indireta). Autor direto é aquele que come­
te pessoalmente o delito. É enfim o sujeito ativo que está implícito em todo tipo
penal de crime: no homicídio é o que dispara o revólver; no furto, o que subtrai a
coisa; no estupro, o que constrange a mulher à conjunção carnal. A co-autoria
ocorre quando várias pessoas tomam parte, conjuntamente, no delito, de modo que

20 Ibidem, p. 501-504.
21 De acordo com Roxin, uma formação de conceitos segundo o qual o “domínio do fato” do omitente se
baseia na possibilidade de intervir e evitar o resultado é incorreta e inviável na prática, por isso não exis­
te domínio do fato nos casos de omissão e, se houvesse, com sua ajuda não seria possível fazer uma deli­
mitação das formas de participação. Ibidem, p. 504.
22 Nesse sentido, Mir Puig: “em que consiste realmente o domínio do fato? Tem-se acusado esta fórmula de
carecer de um conteúdo preciso para servir para resolver com nitidez a questão da delimitação entre auto­
ria e participação. Uma possibilidade de concreção do conceito de domínio do fato é entender que con­
corre no sujeito que tem o poder de interromper a. realização do tipo. Poder-se-ia dizer, então, que o exe­
cutor material tem o domínio do fato, e é autor, porque todas as contribuições anteriores (por exemplo,
do indutor) dependem de que aquele culmine a execução e não a deixe inacabada. Mas a doutrina tem
advertido que o poder de interrupção não pode bastar para autoria, pois tal possibilidade pode achar-se
em mãos do indutor, do cúmplice e até de terceiros”, entendendo, em conseqüência, que se deve adicio­
nar a idéia de “relação de pertinência”, por isso “só são autores aqueles que causam o fato imputável a
quem se pode atribuir a pertinência, exclusiva ou compartida, do delito” (Derecho penal , cit., p. 366-367).
23 De modo similar, Cobo dei Rosai e Vives Antón, os quais consideram que a teoria do domínio do fato é
mais uma imagem do que um autêntico conceito e é, em todo caso, uma fórmula imprecisa: in te rp reta d a
rigorosamente, resulta inaplicávei, pois um homem nunca chega a dominar por inteiro o curso dos acon­
tecimentos; e, ao contrário, entendida em sentido amplo, poderia predicar-se de qualquer classe de ação
voluntária, pois todas elas supõem certo domínio do fato (Derecho penal , cit., p. 669).
D ir e ito P e n a l - P a rte G e ra l

o domínio do fato é comum a todos que dele participam. Finalmente, a autoria


mediata dá-se quando o agente (autor mediato) se utiliza de outrem como instru­
mento (em geral, não responsável) para a realização de seu crime.

5.1. Co-autoria

A co-autoria, como se disse, é a realização conjunta de um delito por várias


pessoas que nele tomam parte dolosamente. O decisivo, portanto, na co-autoria é
que o domínio do fato pertença a várias pessoas que, em virtude do princípio da
divisão de trabalho, assumam igual responsabilidade de sua realização, de modo
que as distintas contribuições devem assim ser consideradas como um todo, e o
resultado total deve ser atribuído a cada co-autor, independentemente da valora-
ção material de sua intervenção.24 A co-autoria é, pois, uma forma de autoria, cuja
peculiaridade consiste em que o domínio do fato unitário é comum a várias pessoas
e, diferentemente da participação, em que o partícipe atua com animus socii, ou
seja, quer o fato como alheio, o co-autor atua com anim us auctorís, isto é, ele quer
o fato como próprio, de sorte que a diferença decisiva entre um e outro reside no
âmbito subjetivo.25
E certo ainda que para a configuração da co-autoria não é necessário que os
co-autores pratiquem condutas idênticas - v. g., que todos atirem ou que todos sub­
traiam valores - , visto que a divisão funcional do trabaho na co-autoria, como em
qualquer outro empreendimento coletivo, implica contribuição mais ou menos
diferenciada para a obra comum.26
Por fim, por ser necessária a adesão subjetiva/convergência de vontades entre
os co-autores, discute-se a possibilidade de co-autoria e participação em crimes cul­
posos.27

5.1.1. Co-autoria em crimes culposos

A doutrina alemã28 em geral não admite nem a co-autoria nem a participação


em crimes culposos, diversamente da espanhola.29 Já a doutrina brasileira está divi­
dida no particular, havendo posicionamento em ambos os sentidos.

24 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 198-199.


25 Welzel, D erecho pen al alemán, cit., p. 129-130.
26 Juarez Cirino, A m oderna teoria , cit., p. 286.
27 De acordo com W elzel, quem pratica um fato culposamente, mediante uma ação que não observa o dever
de cuidado, é autor do respectivo crime culposo, motivo pelo qual não existe, no âmbito dos crimes cul­
posos, diferença entre autoria e participação ( D erecho pen al alemán, cit., p. 119). No sentido contrário,
porém, de entender cabível a co-autoria em crime culposo, não obstante falem da necessidade do requi­
sito subjetivo entre os concorrentes, Damásio ( Direito penaL cit.) e Mirabete ( Manual, cit.).
28 Assim, W elzel, Jescheck, Roxin.
29 Assim, M ir Puig e outros.
Paulo Queiroz

Juarez Tavares entende que nem a co-autoria nem a participação são possíveis
nos crimes culposos. E que, diferentemente do crime doloso, em que o agente atua,
desde o início, contrariamente à norma, lesando ou pondo em perigo de lesão o bem
jurídico, para a configuração do delito culposo, é preciso, primeiro, que o agente rea­
lize uma ação perigosa; segundo, que essa ação perigosa contravenha a norma de
cuidado que se destina a regular aquela espécie de atividade que está sendo desen­
volvida; e, por fim, que a execução dessa atividade descuidada tenha se realizado no
resultado proibido.30 Portanto, em virtude dessa estrutura complexa do crime cul­
poso, se duas ou mais pessoas têm um dever de cuidado e atuam negligentemente de
modo a causarem lesão jurídico-penalmente relevante a bem jurídico, então cada
uma haverá de responder por seu próprio crime, autonomamente (autoria colateral),
e não em co-autoria (v. g., equipe médica que decide em conjunto levar adiante
cirurgia de risco, causando a morte do paciente por imperícia ou imprudência).
De acordo com Tavares, também não é possível falar, pela mesma razão, de
participação (dolosa ou culposa) em crime culposo. Assim, por exemplo, o carona
que instiga o motorista a correr mais do que o legalmente permitido não pode res­
ponder por crime culposo, porque não há relativamente a ele um dever de cuida­
do, e, pois, infração a uma norma de cuidado. Em verdade, está-se num impasse:
não pode o instigador ser autor, porque não tem dolo de autor; não pode ser partí­
cipe, porque se seu dolo se estender à ação descuidada, será então autor e não mais
partícipe; não pode igualmente ser partícipe, porque, para tanto, deveria executar
a ação perigosa e, se o fizesse, seria autor, bem como, não a executando, está deso­
brigado ao cuidado necessário.31 Conseqüentemente, a participação é logicamente
inadmissível nos crimes culposos, devendo cada um dos participantes responder
como autor pela sua respectiva ação, dolosa ou culposa.32
De modo similar, Juarez Cirino dos Santos entende que, do ponto de vista con­
ceituai, o concurso no crime culposo é impossível, e, do ponto de vista prático, é des­
necessário, porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos cada
lesão do dever de cuidado ou do risco permitido estaria ligada ao resultado, motivo
pelo qual seria imputável a cada um dos agentes a título de autoria colateral.33
Não estamos de acordo com isso. Com efeito, temos que tanto a co-autoria
quanto a participação são perfeitamente compatíveis com os crimes culposos.
Desde logo, porque o Código, ao adotar a teoria monista, não fez distinção expres­
sa entre autoria e participação, nem entre concurso doloso e culposo, de sorte que,
quem de qualquer modo concorre para o crime, a título culposo inclusive, respon­
de penalmente na medida de sua culpabilidade, desde que adira à ação impruden­
te do autor. Assim, por exemplo, se duas pessoas ajustam entre si a realização de um

30 Juarez Tavares. Direito Penal da Negligência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 416-417.
31 Juarez Tavares, idem.
32 Juarez Tavares, ibidem.
33 Direito Penal, cit.
“pega” ou “racha” (Código de Trânsito, art. 308) e um deles vem a colidir com um
terceiro, causando-lhe a morte, o causador do evento letal responderá como autor
de crime culposo (abstraída a discussão sobre a possibilidade de dolo eventual),
enquanto o outro responderá por participação culposa; se este eventualmente tiver
também colidido com o terceiro, haverá co-autoria.
Também porque, no caso de crime culposo, a co-autoria e a participação não
dizem respeito à produção de um resultado não querido e geralmente não previs­
to, mas à ação negligente tomada conjuntamente.
Finalmente, porque, se assim não for, freqüentemente o co-autor ou partícipe
ficarão impunes, pois, negada a possibilidade de co-autoria ou participação em
crime culposo, dificilmente poderão ser considerados como autor, apesar da rele­
vância causai da conduta.
Releva notar ainda que, nos crimes culposos, a adesão subjetiva não se refere
ao resultado, obviamente, mas à vontade no sentido de atuar imprudentemente
(dirigir embrigado, em alta velocidade, competir etc.).
Naturalmente que se não existir nenhum tipo de adesão subjetiva entre tais
pessoas, haverá autoria colateral em crime culposo, sempre que derem causa a um
mesmo resultado por meio de ações imprudentes autônomas.

5.2. Autoria mediata (ou indireta)

A chamada autoria mediata - forma de autoria, e não co-autoria ou participa­


ção, e, pois, conduta principal e não acessória - ocorre quando o autor (mediato) se
utiliza, dolosamente, de uma terceira pessoa como instrumento para a prática do
delito, caso em que só o autor mediato responde, em princípio, penalmente, uma
vez que detém o domínio do fato. A autoria mediata é, enfim, uma forma de auto­
ria, e tanto quanto a autoria imediata ou direta, caracteriza-se pelo domínio do fato
pelo autor mediato, que é aquele que se utiliza de outrem como instrumento de sua
ação criminosa.34
Naturalmente que a figura jurídica da autoria mediata não é de aplicação ili­
mitada, de sorte que ela termina quando o sujeito utilizado como instrumento é um
autor plenamente responsável por seu ato, porquanto só se pode afirmar o domínio
do fato por parte do autor mediato quando o autor imediato (instrumento) se
encontre em situação de autêntica subordinação, a qual pode decorrer de coação,
erro, incapacidade etc.35 É assim autor mediato quem, por exemplo, coage, física ou
moralmente, outrem a praticar um delito; quem o induz a erro (v. g., o médico que
dolosamente orienta a enfermeira a aplicar no paciente dose excessiva de determi­
nada droga, causando-lhe a morte) ou quem instiga enfermo mental a delinqüir etc.

34 Jescheck, Tratado, cit., p. 604.


35 Jescheck, Tratado , cit., p. 605.
Paulo Queiroz

Não basta, porém, tais circunstâncias para qualificar alguém como autor
mediato, pois é necessário que o erro ou a violência sejam de tal natureza que con­
vertam realmente em instrumento aquele que atua sob sua influência,36 porque do
contrário haverá concurso de pessoas. Não há assim autoria mediata, mas concur­
so, quanto a adolescentes ou mesmo crianças que tomam parte em crime com cri­
minosos adultos, como executores materiais ou não, atuando livremente, indepen­
dentemente de serem puníveis, uma vez que a punibilidade do autores é um dado
acidental, não essencial, para a configuração jurídico-penal da autoria mediata.
Dito de outro modo: embora infreqüente, nem sempre a criança ou adolescente que
praticar crime a mando de outrem, estará numa situação de instrumento, e, pois,.
de autoria mediata, porque pode ocorrer, inclusive, de ser o mentor da infração
penal e ter eventualmente ascendência sobre os demais.37 E que quem pode ser
autor pode igualmente figurar como co-autor ou partícipe, independentemente de
ser punível no caso concreto.
Não comportam autoria mediata os crimes culposos, já que nessa situação falta
o domínio do fato e, mais, tal figura é desnecessária, pois qualquer pessoa que crie
risco não permitido e cause resultado desaprovado seria considerada autor parale­
lo de crime imprudente. De acordo com a doutrina majoritária, não há também
autoria mediata nos chamados crimes de mão própria, visto exigirem atuação pes­
soal do autor (bigamia).38

6. Participação (em sentido estrito): acessoriedade

A participação39 - cooperação dolosa em crime alheio - pressupõe, logica­


mente, a autoria, tratando-se, por conseguinte, de um conceito não autônomo, mas
acessório, que, como tal, depende do conceito principal: o conceito de autor.40

36 Cobo dei Rosai e Vives Antón, D erecho penal, cit., p. 678. Entendem esses autores que “para falar-se de
autoria mediata o instrumento há de atuar: se não realiza uma ação, como sucede com a hipótese de vis
absoluta, então a autoria do ‘homem de trás’ (hitermann ) não é mediata, sino imediata” (idem).
37 No sentido do texto, Welzel, para quem a criança ou o enfermo mental pode desenvolver vontade pró­
pria, motivo pelo qual no caso de participação de terceiro nesses fatos haverá instigação ou cumplicidade,
Derecho Penal, cit., p. 124; também Jescheck, Tratado, cit., p. 609; e Jakobs, que afirma que se, contra­
riando a presunção legal, a criança é já capaz de conhecer e observar a norma, haverá participação ou co-
autoria, Derecho Penal, cit., p. 779. Criticando Welzel e defendendo posição diversa, Roxin assinala que,
quando houver uso de crianças o sujeito que está por detrás, que determina a ação é sempre autor media­
to. Não obstante, entende que quando a criança, por sua conta e risco, decidir cometer o crime e alguém
o auxilia, haverá cumplicidade. Autoria y domínio dei hecho en Derecho Penal, 73 editión, Madrid:
Marcial Pons, p. 266-267.
38 Assim, Jescheck, Tratado, cit. No sentido contrário, de entender que também os crimes culposos admitem
a autoria mediata, Cobo dei Rosai e Vives Antón, Derecho penal, cit., p. 679.
39 Toma-se aqui a expressão em sentido estrito, pois, em sentido amplo, a participação compreende também
a co-autoria.
40 Munoz Conde: do ponto de vista dogmático, é fundamental a distinção entre autoria e participação, por~
que é um conceito de referência e supõe sempre a existência de um autor principal em função do qual se
tipifica o fato ( Teoria , cit., p. 195).
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l

Em razão desse caráter acessório da participação, só se pode dela cogitar, con­


seqüentemente, quando o autor tiver praticado um fato típico e antijurídico,41 já
que não há sentido em pretender punir alguém que se limite a participar de um fato
jurídico-penalmente irrelevante (atípico) ou conforme o direito (lícito). A partici­
pação requer, portanto, um injusto penal - principal - doloso.
Por isso é que não se pune a participação dolosa quando o crime não chega a
ser tentado ao menos, pois como regra não são puníveis atos meramente prepara­
tórios, os quais são assim atípicos. Daí dispor o Código, expressamente, que “o ajus­
te, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrá­
rio, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado” (art. 31).
Pela mesma razão, se, embora iniciada a execução do crime, o autor desistir volun­
tariamente ou arrepender-se eficazmente, não responderá o partícipe. Caso contrá­
rio, é dizer, se não forem eficazes a desistência ou o arrependimento, haverá a con­
sumação, cabendo a punição de todos que tenham tomado parte no crime. A tipi­
cidade e a antijuridicidade da participação pressupõem sempre a tipicidade e a anti­
juridicidade da autoria ao menos.
Não se exige, porém, seja imputável o autor, uma vez que a imputabilidade é
uma questão eminentemente pessoal e, pois, não comunicável ao partícipe. Pela
mesma razão, não há necessidade de ser o fato punível, porque mesmo que o autor
seja isento de pena por qualquer motivo (v. g., furto contra ascendente - CP, art.
181), ainda assim o partícipe responderá. A punibilidade da participação indepen­
de, enfim, da punibilidade da autoria.

6.1. Adoção da teoria da acessoriedade extremada da participação

Conforme dito, a participação, isto é, cooperação dolosa em crime alheio, pres­


supõe, logicamente, a autoria, tratando-se, por conseguinte, de um conceito não
autônomo, mas acessório, que, como tal, depende do conceito principal: o conceito
de autor. Exatamente por isso, o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio
não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado (CP, art. 31).
Mas esse caráter acessório da participação comporta graus42 e é ordinariamen­
te assim classificado: a) acessoriedade mínima: a punição do partícipe depende da
simples conduta típica do autor); b) acessoriedade limitada: a punição do partícipe
exige conduta típica e antijurídica do autor; c) acessoriedade máxima ou extrema­
da: a punição do partícipe exige, além da conduta típica e antijurídica, a culpabili­

41 A dependência da participação em face do fato principal, como escreve Juarez Cirino, refere-se ao conteú­
do do injusto respectivo: a participação não tem conteúdo de injusto próprio e, por isso, assume conteúdo
de injusto do fato principal; por outro lado, a dependência da participação é limitada à tipicidade e antiju­
ridicidade do fato principal, ou seja, ao tipo de injusto do fato principal (A moderna teoria, cit., p. 291-292).
42 MAYER, Marx Ernest apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 164.
Paulo Queiroz

dade do autor; d) hiperacessoriedade: a punição do partícipe depende também da


punibilidade do autor.
Pois bem, apesar de a teoria da acessoriedade limitada (item b) ser absoluta­
mente majoritária na doutrina,43 pensamos que a razão está com a teoria da acesso­
riedade extremada, motivo pelo qual sempre que o autor for absolvido por incul-
pabilidade (v. g„ erro de proibição, coação moral irresistível), tal deverá beneficiar
o partícipe, em virtude do caráter acessório da participação.
Em primeiro lugar, porque a inculpabilidade do autor implica o reconheci­
mento do caráter não criminoso do fato principal; logo, não faria sentido que se
tivesse por criminosa a participação, acessória que é. E que a participação em fato
não criminoso, criminoso logicamente não é. Em segundo lugar, porque a teoria da
acessoriedade limitada acaba por autonomizar a participação relativamente à auto­
ria, negando-lhe a pressuposta acessoriedade. Em terceiro lugar, porque não parece "
compatível com o princípio da proporcionalidade que, embora absolvido o autor,
se possa castigar o partícipe. Em quarto lugar, porque nem sempre é fácil estabele- , '
cer uma diferenciação clara entre excludentes de ilicitude e de culpabilidade (v. g'*-'%
coação moral irresistível e legítima defesa de terceiro), e, pois, saber se o partícipe
é ou não jurídico-penalmente responsável. Além disso, a distinção entre uma e *
outra não preexiste à interpretação, mas é dela resultado.
Daí se dizer que não se pode aplicar a teoria da acessoriedade limitada sem •
maiores reflexões.44 É que situações há em que a não inculpabilidade do autor J:
haverá de se comunicar ao partícipe necessariamente. E o caso do pai que realiza a
conduta típica sob séria ameaça de morte de seu filho (coação moral irresistível),
hipótese em que o partícipe que o auxilia não poderá ser responsabilizado, isola-- S*
damente, pelo cometimento do crime. í
O mesmo pode ser dito quando o partícipe auxilia o autor a praticar um fato, t.
amparado pela inexigibilidade de conduta diversa. E o caso do dono da empresa :1
que, já em processo falimentar e com vários títulos protestados, deixa de repassar à
Previdência Social as contribuições descontadas de seus empregados. Com efeito, /?

43 Nesse sentido: WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1993, p.
135; JESCHECK, Hans-Heírich. Tratado de D erecho Penal: Parte General. 4. ed. Granada: Editorial ;
Comares, 1993, p. 596-597. No Brasil: DE JESUS, Damásio. Direito Penal: Parte Geral. 27. ed. Vol. 1- São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 416; BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 11.
ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 423-424; BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio de Janeiro: ^
Lumen Juris, 2004, p. 164-165; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Vol 1. 8.>ed. ’■
Niterói: ímpetus , 2007, p. 453-454; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Manual de Direito Penal B ra sü e ito ■ _
Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 684-686. Contrariamente, adotando a teona
da acessoriedade limitada: Bruno, Aníbal apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio ^e_ i;
Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 165; BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Direito Penal: Parte Geral. Vol
J. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 416-417; RAMOS, Beatriz Vargas. Do Concurso de pessoas. Belo Horiz°fl . . .
te: Del Rey, 1996, p. 42. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. I. 9. ed. São Paulo: Saraiva, , ^
2005, p. 342-343. u
44 GALVAO, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: ímpetus, 2004, p. 471-472. %
quem ajuda o agente que se encontra em tal situação não pode responder autono-
mamente pelo crime do art. 168-A do Código, pois tampouco lhe é exigível con­
duta diversa. Também não faz sentido que o autor seja absolvido por erro de proi­
bição inevitável c o partícipe condenado (v. g., o caçador e quem o auxilia; aquele
absolvido, este condenado).
Quanto à objeção de que o partícipe seria beneficiado por circunstância pes­
soal que não lhe diz respeito, tal é perfeitamente aplicável às excludentes de
tipicidade (v. g., erro de tipo) e ilicitude (v. g., legítima defesa), e, pois, não procede.
Finalmente, tudo o que acaba de ser dito não se aplica à hipótese de inimputa-
bilidade por alienação mental ou menoridade, porque, diversamente dos demais
casos de exclusão de culpabilidade, aqui o autor (inimputável) sofrerá uma sanção
adequada à sua situação; medida de segurança ou medida sócio-educativa, confor­
me o caso. Exatamente por isso, o partícipe, tendo tomando parte numa ação típica,
ilícita e culpável, logo, punível, será castigado na forma da lei. Aqui, sim, a circuns­
tância de caráter pessoal do autor não lhe aproveita. E mesmo que pudesse apro­
veitá-lo, não seria para deixá-lo impune, mas para lhe impor medida de segurança
ou medida sócio-educativa, sanções legalmente incompatíveis com a sua condição
de imputável.
Por último, não é correto dizer que o Código Penal adotou a teoria da acesso-
riedade limitada por conta do disposto nos arts. 29, § 2Q, 30, 31 e 62, todos do CP.45
Sim, porque, embora tais artigos afirmem a acessoriedade da participação, nada di­
zem sobre o seu grau, que é assim uma questão doutrinária.46 Mais: dizem respeito
essencialmente à punibilidade e à individualização judicial da pena, e só aciden­
talmente à teoria do crime.

7. Formas de participação: instigação e cumplicidade

Embora o Código não faça referência às diferentes modalidades de participa­


ção, a doutrina distingue duas formas básicas: a instigação e a cumplicidade. A pri­
meira ocorre quando o instigador provoca o autor, por meio de conselhos, promes­
sas, ameaças etc., a praticar o crime. A instigação significa, assim, a determinação
dolosa de outrem a cometer um crime, ou seja, o instigador provoca a decisão do
fato mediante influência espiritual sobre o autor, mas não tem controle sobre o
feto, reservado exclusivamente ao autor,47 pois do contrário haverá co-autoria ou
autoria mediata, e não participação. A segunda - cumplicidade - dá-se com a ajuda
®aterial, v. g„ compra da arma, colheita de informações sobre a vítima, prestada ao
aut°r, mas sem se lhe retirar o domínio do fato. Não raro, porém, a participação

® Nilo Batista. Concurso d e agentes, cit, p. 165 e GALVÃO, Fernando. Direito Penal, cit, p. 472.
Flávio Augusto Monteiro de Barros. Direito Penal, cit, p. 417.
Juarez Cirino, A m oderna teoria , cic., p. 294.
Pauio Queiroz

materializa-se mediante ambas as formas: o partícipe não só instiga o autor como


lhe presta auxílio material para delinqüir.

8. Co-autoria e participação nos crimes omissivos

Discute-se a possibilidade de co-autoria e participação em crime omissivo


havendo quem, como Armin Kaufmann, responda negativamente, porque, v. g.t se
cinqüenta pessoas que sabem nadar assistem passivamente a uma criança se afogar,
cada um é autor de uma omissão punível.48 Parece-nos, todavia, que tanto a co-
autoria quanto a participação são perfeitamente possíveis nos crimes omissivos pró­
prios e impróprios.49 Com efeito, haverá co-autoria por omissão - própria ou
imprópria - sempre que os co-autores deixarem de cumprir um dever legal de agir
que lhes compete conjuntamente50 (v. g., diretores de uma empresa), desde que
assim procedam de comum acordo (nexo subjetivo), pois do contrário ambos res­
ponderão, individual e autonomamente, como autores de uma omissão, tal como
no exemplo dos nadadores. O princípio, portanto, é o mesmo dos crimes comissi-
vos: houve consciência e vontade de realizar um empreendimento comum, ou
melhor, de não realizá-lo conjuntamente;51 logo, respondem em co-autoria.
No caso de omissão imprópria só ocorrerá a co-autoria se os co-autores osten­
tarem simultaneamente o status de garante, já que, como assinalado, a co-autoria é
uma forma de autoria. Se alguns deles não for garante, será partícipe, se concorrer
(instigar, induzir) dolosamente para a omissão criminosa.
A participação também é possível tanto nos crimes omissivos próprios quan- -
to nos impróprios por parte de quem, não tendo o dever legal de agir, não sendo
autor, portanto, tenha dolosamente concorrido para o não-fazer criminoso. Note-
se que a participação pressupõe que o partícipe instigue ou induza o autor a se omi­
tir (participação por comissão em crime omissivo), porque, se houver simples omis­
são, a sua conduta será jurídico-penalmente irrelevante, de modo que nos crimes
omissivos próprios não é possível, portanto, participação por simples omissão.
Tratando-se de crime comissivo, e à exceção da situação do garante, também
a simples omissão é atípica. No caso do garante, poderá ocorrer inclusive a chama­
da participação omissiva em crime comissivo (v. g., o agente da segurança deixa de
fechar o cofre a fim de facilitar um furto). Naturalmente que, se nesse mesmo
exemplo, for o próprio agente a pessoa responsável por abrir o cofre, o caso não será
de participação por omissão, mas de participação por ação.
Finalmente, quanto à autoria mediata em crimes omissivos, a doutrina majo­
ritária responde negativamente.

48 Dogmática de los delitos de omisión. Madrid: Marcial Pons, 2006, p. 202.


49 No sentido do texto, Roxin. Autoria y participación, cit., p. 507-510.
50 Jescheck, Traçado, cit., p. 582.
51 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 396.
D ireito Penal - Parte G eral

9. Participação de m enor im portância

O Código (art. 29, § 1Q), coerente com o princípio da proporcionalidade, dis­


põe que, se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de
um sexto a um terço. Naturalmente que a participação que aí se supõe não é a que,
pela sua absoluta irrelevância, dá margem à invocação do princípio da insignificân­
cia, mas aquela que, confrontada com a cota de participação de cada um dos envol­
vidos (autores, co-autores ou partícipes), seja realmente secundária, “de menor
importância”, embora jurídico-penalmente relevante. É o caso da faxineira que
intervém numa extorsão mediante seqüestro limitando-se a atender ligações tele­
fônicas, alimentar a vítima em cativeiro etc.
Reconhecida a participação de menor importância, o juiz deverá, em conse­
qüência, reduzir a pena de um sexto a um terço, conforme o caso, não se tratando,
portanto, de mera faculdade do juiz promover a redução da pena, apesar de o
Código utilizar a expressão “pode”.

10. Participação dolosamente diversa (ou desvio subjetivo


de conduta)

Dispõe o art. 29, § 2fi, que, “se algum dos concorrentes quis participar de crime
menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a meta­
de, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”. Com semelhante dis­
positivo, o legislador pretendeu dar tratamento adequado àquelas situações - basi­
camente de excesso de mandato - em que o autor do crime vai além do combina­
do com o co-autor ou partícipe, cometendo um delito mais grave. Exemplo: A acer­
ta com B que dê uma “surra” em C; B, porém, se excede e mata C. O sentido da
norma é evitar que o partícipe responda não por um ato seu, mas por ato de res­
ponsabilidade de terceiro, de modo a coibir a responsabilidade penal objetiva, asse­
gurando-se ademais a vigência do princípio da proporcionalidade.
De acordo com a norma adotada pelo Código, portanto, cada um responde
somente até onde alcança o acordo recíproco,52 devendo o concorrente responder
em consonância com o que quis, segundo o seu dolo, e não conforme o dolo do
autor.53 Em conseqüência, no exemplo citado, A responderá, em princípio, por
lesões corporais simplesmente (leves ou graves, conforme o caso concreto); se pre-
visível, porém, o resultado mais grave, responderá, ainda assim, por lesões corpo-
rais, já agora com pena aumentada até a metade. Evidente que, se imputável o
resultado mais grave a título de dolo eventual, não haverá autêntico desvio subje-
tlvo de conduta, respondendo o partícipe por homicídio.

^ Welzel, D erecho penal alemán, cit.


Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 450.
Paulo Q ueiroz

A norma em questão deve então ser assim entendida: se o resultado mais grave
não for imputável ao partícipe a título culposo, porque imprevisível, responderá
nos limites do ajustado com o autor (se foi uma lesão, responderá por lesão; se uiu
furto, responderá por furto); se, ao contrário, tal lhe for imputável a título de culpa,
porque previsível, responderá nos limites do ajustado, mas com pena aumentada
até a metade; finalmente, se o resultado mais grave for imputável a título de dolo,
inaplicável será o dispositivo em causa, pois em tal contexto não existirá verdadei­
ra “cooperação dolosamente diversa”, mas “dolosamente idêntica”. Assim, tem-se
reconhecido freqüentemente que partícipe de roubo com emprego de arma de fogo
responde por latrocínio, se morte houver, visto que este resultado, além de previ­
sível, decorre de dolo eventual ao menos.

11. (In)comunicabilidade das circunstâncias de caráter pessoal

Dispõe o art. 30 do Código que “não se comunicam as condições e circunstân­


cias de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”. A contrario sensu, em
princípio são comunicáveis as circunstâncias de caráter impessoal ou reais (objetivas).
Circunstâncias, no sentido lato como o vocábulo é aqui empregado, não são
apenas as que excedem a configuração do crime, isto é, as agravantes e atenuantes,
genéricas e especiais, mas também as que constituem elementos essenciais do crime
ou, de qualquer modo, alteram, excluem ou extinguem a punibilidade.54 Chamam-
se pessoais as de natureza subjetiva, as condições ou qualidades que só dizem com
a pessoal de tal ou qual concorrente, sem qualquer reflexo sobre a execução mate- '
rial do crime, como a reincidência, o motivo torpe, a embriaguez preordenada etc;;
reais (ou objetivas) as que afetam a execução material do crime, isto é, que dizem
respeito à natureza, espécie, meios, objeto, tempo, lugar etc., como são a embosca­
da, o emprego de veneno etc.55
Pois bem, o fim da norma é preservar, em especial, o princípio da responsabi­
lidade subjetiva, impedindo que o co-autor ou partícipe responda por uma condi­
ção ou circunstância que não lhe diz respeito, dado o seu caráter pessoal. Imagine-
se, por exemplo, que A venha a cometer homicídio contra B, seu pai, contando com
o apoio de C. Em tal hipótese, aplicar-se-á a A a agravante do art. 61, e (crime con­
tra ascendente). C, porém, não terá sua pena agravada por isso, em razão do cará­
ter pessoal da circunstância agravante em questão (ser filho da vítima). É que, a se
permitir que também a Cse aplique tal agravante, afrontar-se-ia, pela via oblíqua,
o princípio da responsabilidade subjetiva, em particular, já que se lhe responsabili­
zaria por circunstância relativa a terceiro (A).

54 Hungria, comentários, v. 1, cit., p. 436.


55 Hungria, idem, p. 436-7.
D ireito Penal - Parte Geral

Em conseqüência, vigora como regra geral o princípio da incomunicabilidade


das circunstâncias ou condições de caráter pessoal (subjetivas), não se estendendo
elas aos concorrentes. Assim, por exemplo, não se comunicam a reincidência, o
motivo fútil ou torpe, a embriaguez preordenada, o parentesco (art. 61), a menori-
dade, o motivo de relevante valor moral (art. 65) etc., seja para agravar a pena, seja
para abrandá-la.
Excepcionalmente, tais circunstâncias de caráter pessoal, quando elevadas à
categoria de elementares do crime, isto é, quando passem a integrar a própria defi­
nição do tipo penal, comunicar-se-ão aos partícipes. Assim, v. g., quem concorre
para o peculato (art. 312) ou para a concussão (art. 316) - crimes especiais, porque
somente realizáveis por funcionário público - responderá por esses crimes, e não
por outro (crime patrimonial), apesar de não ser funcionário público. No particu­
lar, incide o “salvo quando elementares do crime” constante do art. 30. Mas tais cir­
cunstâncias não se comunicarão se o concorrente as desconhece, em nome do
mesmo princípio que, com a adoção da norma, se pretendeu preservar (responsa­
bilidade subjetiva).
Por fim, as circunstâncias objetivas (materiais ou reais), em razão do seu cará­
ter impessoal, comunicam-se como regra aos partícipes (v. g., emprego de veneno,
meio cruel, traição, emboscada). Mas não é exato dizer, como Hungria, que “são
sempre comunicáveis, porque quem se mete numa empresa criminosa, aceita-lhe,
de antemão, os riscos”.56 Sim, porque também aqui é preciso não perder de vista os
princípios da legalidade e responsabilidade penal subjetiva (ou pessoal), principal­
mente, a fim de evitar que o sujeito responda por uma circunstância que, embora
impessoal (objetiva) não lhe diga respeito, seja porque a desconhecia, seja porque
não concorreu de modo algum para tanto. Exemplo: se A encomenda a B a morte
de C, simplesmente, sem mais, não parece justo que, se B, por sua conta e risco, o
fizer por meio de emboscada, emprego de veneno etc., sem que A tenha prévio
conhecimento disso ou anuído para tanto, responda ele (A) também por essa qua-
lificadora, que deve ser imputada ao seu autor, exclusivamente, isto é, B. A não ser
assim, haveria responsabilidade penal objetiva, relativamente à incidência da qua-
lificadora.

56 H ungria, ibidem , cit., p. 436.


D ireito Pen al - Parte Geral

Capítulo X
Teoria da Ilicitude
Causas de Justificação

1. Introdução

Diferentemente dos conceitos de tipicidade e culpabilidade, conceitos pro­


priamente jurídico-penais, a ilicitude ou antijuridicidade, expressões aqui empre­
gadas como sinônimas, é um conceito geral do direito, motivo pelo qual seu reco­
nhecimento há de ter a Constituição Federal como fundamento último.
Em razão da unidade do ordenamento jurídico, apesar de compartimentado
em diversos ramos, única também deve ser a ilicitude, de modo que a teoria da
antijuridicidade é uma teoria da juridicídade,1 pois o conceito de antijuridicidade
se opõe ao de juridicídade: assim como a juridicídade indica conformidade ao direi­
to, a antijuridicidade indica contradição ao direito.2 Por conseguinte, não há uma
ilicitude exclusivamente jurídico-penal, mas uma ilicitude válida para todo o direi­
to, de tal forma que o que é ilícito em um ramo do direito o é também para os
demais ramos do ordenamento jurídico.3
Por isso que a ilicitude há de significar assim a violação da ordem jurídica em
seu conjunto, mediante a realização do tipo,4 razão pela qual o catálogo de causas
de justificação (legítima defesa, estado de necessidade etc.) não pode ser taxativo,
porquanto não são um problema específico do direito penal, mas um problema
geral do ordenamento jurídico.5 Assim, qualquer ato lícito, do ponto de vista do
direito público ou privado, deve sê-lo também para o direito penal e, inversamen­
te, qualquer ato justificado no direito penal é também um ato justificado para os
restantes ramos do ordenamento jurídico.6
Portanto, dir-se-á ilícita a ação típica sempre que contrariar o direito como
um todo, constituindo a ilicitude um juízo negativo de valor que recai sobre o com­
portamento típico, tendo em vista as exigências do ordenamento jurídico,7 de
modo que, atuando sob o amparo de uma causa de justificação, embora sacrifican­

1 Maurach, D erecho penal , cit., p. 414.


2 Juarez Cirino, A m oderna teoria, cit., p. 148.
3 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 42.
4 W elzel, D erecho pen al alemán, cit., p. 96.
Munoz Conde, Teoria, cit., p. 42.
® W elzel, D erecho pen al alemán, cit., p. 92.
7 Fragoso, Lições, cit., p. 181.
do um bem jurídico alheio, o agente atua conforme o direito; atua legalmente, por­
tanto, porque afirmar que um comportamento está justificado é afirmar que é con­
forme o direito, e dizer que é ilícito é dizer que se opõe ao ordenamento jurídico
como um todo.8

2. Requisito subjetivo nas causas de justificação

Para a configuração de uma causa de justificação, não é suficiente a presença


dos requisitos objetivos, exigindo-se ainda que quem a invoca saiba que se encon­
tra numa situação justificante. Assim, não pode se valer da legítima defesa quem
mata alguém por vingança, embora venha a se provar que se encontrava em situa­
ção passível de invocação da excludente, se tal estado lhe era infeiramente desco­
nhecido.
É que ao atuar movido por vingança, e não com o propósito de autodefesa, o
agente pratica, de acordo com sua representação, um crime, não podendo assim
valer-se de uma causa de justificação, pois não pode ser considerada conforme o
direito uma conduta que subjetivamente constitui um delito.9 Além disso, e como
assinala Roxin, do ponto de vista da concepção do injusto hoje dominante, uma
conduta só pode ser conforme o direito se desaparecem tanto o desvalor da ação
como o desvalor do resultado, o que não ocorre em tal situação, já que subsiste ao
menos o desvalor da ação em toda a sua extensão.10
Em todas as causas de justificação, portanto, o sujeito que a invoca, além de
atender aos requisitos de ordem objetiva, deve também agir com o conhecimento
da situação justificante.11 Por isso é que, subsistindo o desvalor da ação, não pode
haver legítima defesa sem vontade de defender-se, estado de necessidade sem
intenção de salvar bem em perigo, nem estrito cumprimento do dever legal ou
exercício regular de direito sem consciência de agir em tais condições.12
De modo diverso pensa Tavares, entendendo que o juízo de ilicitude, à seme­
lhança do juízo de tipicidade, por fazer parte de um processo de imputação, deve

8 Latrauri, Justificación material y justificación procedimental en el derecho penal, Madrid: Tecnos, 1997,
p. 6 1 .
9 Roxin, D erecho penal, cit., p. 597.
10 Derecho penal, cit., p. 597.
11 Em sentido contrário, autores “causalisras”, coerentes com o conceito objetivo de a n tiju rid icid a d e , a
exemplo de Hungria: “a legítima defesa,por isso mesmo, éuma causa objetiva deexclusão de in ju r id ic i'
dade, só pode existir objetivamente, isto é, quando ocorrem, efetivamente, os seus pressupostos objetivos*
Nada têm estes a ver com opinião ou crença do agredido ou do agressor. Devem ser reconhecidos de uni
ponto de vista estritamente objetivo (...). Assim, se Tício, ao voltar à noite para casa, percebe que dois
víduos procuram barrar-lhe o passo em atitude hostil, e os abate a tiros, supondo-os policiais que o va«
prender por um crime anteriormente praticado, quando na verdade são ladrões que o querem desp°jar’
,
não se pode negar a legítima defesa” ( Comentários cit., p. 289).
12 Fragoso, Lições, cit., p. 185.
D ireito Penal - Parte G eral

ser sempre aferido objetivamente, bastando assim que o sujeito tenha tomado como
possível a verificação de uma situação justificante.13

3. Excesso nas causas de justificação

O Código Penal (art. 23, parágrafo único) prevê que o agente responderá, em
qualquer das causas de justificação, por excesso doloso ou culposo. Naturalmente
que o excesso que aí se supõe é aquele que não descaracteriza, pela desnecessidade
ou desproporção dos meios, a própria descriminante (v. g., matar uma criança que
subtrai frutas), pois do contrário não se cogitará desse tipo de excesso, mas de
ausência pura e simples da justificativa, por não ser necessária, já que a autodefesa
e a proteção da ordem jurídica encontram a sua limitação conjunta no princípio da
proporcionalidade, que, atravessando a ordem jurídica como um todo, faz com que
se negue, por exemplo, a legítima defesa, quando houver total desproporção entre
os bens jurídicos em conflito.14
Pressuposto, portanto, da aplicação do dispositivo é que, não obstante o exces­
so, haja o reconhecimento da causa de justificação, ou seja, há excesso nas causas
de justificação quando o sujeito, achando-se inicialmente em legítima defesa ou em
estado de necessidade etc., vai além dos limites da justificativa, ultrapassando-a, 15
de modo que, para a admissão do excesso, é indispensável que a situação caracteri­
ze a presença da excludente, cujo exercício, em um segundo momento, mostra-se
excessivo.16 Em tal caso, há, por assim dizer, uma legítima defesa, um estado de
necessidade ou um exercício regular de direito excessivos. Exemplo: A, após imo­
bilizar B, que tentava agredi-lo com uma faca, dá-lhe outros golpes (desnecessá­
rios), causando-lhe lesões, hipótese em que responderá pelas lesões subseqüentes à
situação justificante reveladoras de excesso; se eventualmente der causa à morte,
poderá responder por homicídio doloso inclusive. Em conclusão, há excesso quan­
do o agente, embora inicialmente amparado por uma causa de justificação e mesmo
depois de fazer cessar a agressão que contra ele começara, prossegue lesionando seu
agressor, desnecessariamente, que agora se converte em vítima, causando-lhe
lesões ilícitas. Enfim, havendo excesso, o agente que se defendia passa da legalida­
de à ilegalidade, devendo responder jurídico-penalmente a título de dolo ou culpa,
conforme o caso. E assim é porque, cessada a agressão injusta, cessa também a auto­

13 Teoria d o injusto penal, cit., p. 308 e s.


14 Roxin, Política criminal, cit., p. 54.
^ Damásio, Direito penal, cit., p. 360.
Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 252. Por isso não é exato dizer, como faz Assis Toledo, que “ocorre
excesso quando o agente, ao se defender de uma injusta agressão, emprega meio desproporcionadamente
desnecessário (exemplo: para defender-se de um tapa, mata a tiros o agressor)..." (Princípios básicos, cit.,
p. 208). Com efeito, sendo o recurso desnecessário, como o é revidar um tapa com o tiro, o agente não
poderá invocar legítima defesa, ante a evidente ausência de um seu requisito fundamental: necessidade
dos meios empregados.
Paulo Queiroz

rização legal para a defesa, que, embora inicialmente legítima, converte-se em ile­
gítima. Assim, por exemplo, se A, depois de imobilizar B, que, de posse de uma
faca, tentara roubar-lhe o veículo, resolve matá-lo desnecessariamente, responde­
rá pelo excesso: homicídio doloso.
Havendo excesso, poderá ocorrer inclusive a chamada legítima defesa suces­
siva: o agressor converte-se em vítima do agredido, podendo reagir legitimamente.
Reconhecido o excesso, o agente responderá a título de dolo ou culpa, confor­
me seja intencional ou não a sua atuação excessiva. Obviamente que a punição do
excesso culposo só ocorrerá quando se tratar de fato punível a esse título e tal não
for exculpável.

4. Efeitos

Em razão do seu caráter geral, as causas de justificação produzem os seguintes


efeitos:17 1) excluem, como regra, a responsabilidade extrapenal (civil, administra­
tiva); 2) impedem a aplicação de qualquer outra conseqüência jurídico-penal, a
exemplo das medidas de segurança; 3) em razão do caráter acessório da participa­
ção, os partícipes não respondem, uma vez que o autor atua legitimamente.18
Cumpre assinalar, finalmente, que, ao adotar a teoria dos elementos negativos do
tipo, entendemos que um fato considerado lícito (justificado) já nasce atípico, pois, ao
tipificar/criminalizar certos comportamentos, é evidente que o Estado pretende dis­
suadir somente aqueles que contrariem o direito, e não os que se realizem conforme
o direito, haja vista que, por não serem criminosos, carecem de lesividade social. Sou­
besse o legislador a priorí que as condutas tipificadas seriam sempre realizadas segun­
do o direito e sentido algum teria a existência do direito, muito menos o direito penal.

5. Erro sobre causas de justificação


Como vimos, pode ocorrer de o agente supor equivocadamente amparado por
uma causa de justificação. Dessa modalidade de erro, o Código trata (art. 20, § Ia) sob

17 Em sentido contrário, Larrauri (Justificación , cit., p. 66), para quem nem sempre há essa exclusão da res­
ponsabilidade penal: “a persistência da responsabilidade civil (ou administrativa) não é, em minha opi­
nião, um critério válido para afirmar ou negar a presença de uma causa de justificação. Expressando em
outros termos, o fato de que uma causa de justificação não elimina todo efeito jurídico ulrerior - seja uma
responsabilidade civil ou sanção administrativa - é porque a pena, sanção ou responsabilidade civil, têm
distinto fundamento”. Cita como exemplo a declaração judicial de que um guarda municipal tenha atua­
do no cumprimento do dever, o que não impediria que um terceiro acionasse a Administração Pública
para obter indenização, com base na responsabilidade objetiva (p. 66-68). Apesar disso, afirma: “em sín-,
tese, em minha opiniào, é correto afirmar que as causas de justificação marcam o âmbito dos co m p o rta ­
mentos autorizados, que estas têm como função delimitar o justo do injusto’ (Roxin, 1987:234; 1994:496).:
que representam o ‘dever ser’ (sollerí) frente ao ‘poder’ (Aónnen) próprio da culpabilidade (Welzel
1976:200; Hassemer, 1987:194), porém disso não deriva que eliminem toda conseqüência jurídica ou que
devem ter um paralelo direito ou dever noutros setores do ordenamento jurídico” (p. 73-74).
18 Luzón Pena, Curso, cit., p. 577-578.
D ireito Pen al - P arte G eral

o nome de descriminante putativa, com a seguinte redação: “é isento de pena quem,


por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se
existisse, tomaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de
culpa e o fato é punível como crime culposo”. Nesse caso, portanto, se o agente ofen­
de um seu desafeto que supunha, fundada, mas erradamente, que iria matá-lo, não
responderá por homicídio doloso, mas culposo, se a culpa restar demonstrada, pois do
contrário não responderá penalmente. Parece claro que tal situação exige, tanto
quanto a situação real de justificação, a presença de todos os seus requisitos legais.
Não obstante a doutrina divirja quanto à natureza jurídica da descriminante
putativa, certo é que, quem supõe circunstâncias cuja presença justificaria sua ação,
atua em razão de uma finalidade que é absolutamente compatível com o direito,19
de modo que não seria correto dizer que agiu com dolo. Semelhante erro constitui,
portanto, uma modalidade especial de erro de tipo e, como tal, idôneo a excluir o
dolo, como tratou o legislador brasileiro, inclusive, que dele cuidou num artigo - o
art. 20 —dedicado ao erro sobre elementos do tipo.

6. Causas de justificação em espécie

6.1. Legítima defesa

Se o fim do direito penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos ante os ata­


ques mais intoleráveis, nada mais razoável que outorgar àquele que sofra uma lesão
jurídica, ou se ache sob ameaça de sofrê-la, o direito de se autodefender sempre e
quando a proteção jurídica que o Estado se predispõe a conferir não puder ser rea­
lizada direta e eficazmente, em virtude da urgência da situação. Daí se reconhecer
a todo indivíduo o direito à legítima defesa diante de ataques ilícitos a bem jurídi­
co seu ou de outrem.
O indivíduo, assim, ao se valer da legítima defesa, não apenas exerce um direi­
to seu, como também concorre para a realização daquela tarefa primária do direito
penal, que é a proteção de bens jurídicos (vida, integridade física, liberdade), por
meio da autodefesa necessária à preservação de direito seu ou de terceiro injustamen­
te violado ou sob séria e grave ameaça de violação. Portanto, além da proteção indi­
vidual, a legítima defesa tem outro fundamento: a afirmação do próprio direito. Daí
se dizer que o legislador, ao permitir a legítima defesa para proteção individual, per­
segue simultaneamente um fim de prevenção geral, pois considera desejável que o
ordenamento jurídico se afirme em face de agressões a bens jurídicos individuais.20

19 Roxin, D erecho penal, cit., p. 583-584.


20 Roxin, D erecho penal, cit., p. 608. No mesmo sentido, Hungria: “... a defesa privada não é contrária ao
direito, pois coincide com o próprio fim do direito, que é a incolumidade dos bens ou interesses que colo­
ca sob tutela. Realiza vontade primária da lei, colabora na manutenção da ordem jurídica. E assim não
pode deixar de ser autorizada ou facultada, ou declarada, pela própria lei, objetivamente lícita”
(Comentários, cit., p. 286).
6.1.1. Requisitos
O reconhecimento da legítima defesa (CP, art. 25) reclama, necessariamente
o concurso dos seguintes requisitos: a) agressão injusta; b) atualidade ou iminência
da agressão; c) defesa de direito próprio ou de terceiro; d) necessidade e moderação
dos meios empregados.

A) Agressão injusta - atual ou im inente

Em primeiro lugar, se é de defesa que se trata, tal há de pressupor um ataque


proveniente de terceiro. Logo, não pode haver legítima defesa senão em face de
uma agressão, necessariamente agressão humana, isto é, ato de terÊeiro (ação ou
omissão) que lese ou ameace de lesão bem jurídico próprio ou alheio. Tratando-se
de ataque de animais, a hipótese será a de estado de necessidade, salvo se se tratar
de ataque dirigido por uma pessoa, caso em que o animal (v. g., um cão) constitui­
rá apenas o instrumento de realização de uma agressão humana. Não é possível,'
pela mesma razão, legítima defesa para repelir ato de pessoa jurídica ou do Estado,'
embora seja plenamente válida contra aqueles que a representem e atuem antijuri-
dicamente. Assim, o autor de crime que vier a ser preso legalmente, poderá empre­
gar eventualmente violência contra o policial que lhe impuser ilegal constrangi­
mento (v. g., tortura), tanto quanto poderá socorrer-se da legítima defesa sempre
que, embora preso legalmente, vier a ser submetido a maus-tratos ou tortura, por
exemplo. De modo similar, não comportam legítima defesa atos puramente causaisí
isto é, atos que não sejam propriamente ações humanas, como ataque convulsivo
epiléptico ou durante o sono etc., os quais podem ensejar estado de necessidade.21.'
Também condutas culposas autorizam a invocação da legítima defesa, como a
ameaça (com emprego de arma inclusive) exercida contra motorista que dirige em’
alta velocidade, imprudentemente, pondo em risco a vida dos passageiros.22 Por
igual, a omissão - própria ou imprópria - pode constituir agressão passível de legí­
tima defesa (v. g., delegado que se recuse a cumprir alvará de soltura, médico que
deixe de conceder alta ao paciente). No caso de omissão imprópria, a legítima defe­
sa diante de uma agressão omissiva pode ser realizada ou obrigando o garante a efe­
tuar a atividade que evite o resultado (v. g., obrigar a mãe, mediante ameaça, a ali­
mentar o filho que pretendia matar por inanição), ou sendo o próprio terceiro
defensor que o faça.23 Quanto à omissão própria, embora parte da doutrina enten­
da que não pode ensejar a legítima defesa,24 nada impede que, à semelhança da

21 Nesse sentido, Roxin, D erecho penal, cit., p. 612.


22 Em sentido contrário, Zaffaroni/Pierangeli, Manual, cit.
23 Roxin, Derecho penal, cit., p. 612.
24 Assim, Roxin, que considera não ser possível, por exemplo, que o motorista que se recuse a levar ao hos­
pital vítima de um acidente de trânsito não possa ser coagido a tanto, uma vez que, se a omissão própna
não é punível como lesão ao bem jurídico (homicídio, lesão corporal), tampouco pode fundamentar a
agressão ao bem jurídico (D erecho penal, cit., p. 614). No sentido do texto, Jescheck ( Tratado, cit.).
D ireito P en al - P arte G eral

situação anterior, se obrigue, por exemplo, alguém a prestar socorro quando possí-
vel fazê-lo sem risco pessoal (CP, art. 135), bem como se constranja o médico a
notificar doença (CP, art. 268).
A agressão, para poder ensejar a defesa legítima, deverá ser também injusta,
isto é, não autorizada pelo direito, não precisando constituir necessariamente infra­
ção penal (crime ou contravenção), podendo ser exercitada, por exemplo, para pro­
teção da posse, nos termos do Código Civil, pouco importando se tal fato constitui
ou não crime. Sendo justa a agressão, evidentemente que não se admitirá a defesa,
como, v. g., a reação contra prisão regular em flagrante delito ou cumprimento de
mandado judicial. Por essa razão, não pode haver legítima defesa contra legítima
defesa, contra estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício
regular de direito ou consentimento do ofendido, exceto se um dos contendores
estiver em situação putativa, pois obrigatoriamente alguém terá de estar atuando
antijuridicamente.25 Tal agressão, embora injusta, não precisa ser culpável,26 po­
dendo, pois, partir tanto de imputável quanto de inimputável, bem como de incul-
páveis de modo geral, mesmo porque não pode a ordem jurídica impor a ninguém
um sacrifício de direito seu diante de ataque de pessoa inculpável por qualquer
motivo (v. g., agente sob coação moral irresistível).
Mas nesse caso, tendo-se em conta a especial vulnerabilidade do agressor, sobre­
tudo quando se tratar de crianças, alienados mentais e ébrios sem sentido, é de convir,
com Roxin,27 que o recurso à legítima defesa somente deve ocorrer em último caso,
pois do contrário não haverá necessidade da reação, a justificar a defesa: a) o agredido
tem de esquivar-se sempre que for possível fazê-lo sem risco pessoal; b) deve-se bus­
car auxílio alheio se possível assim repelir, menos duramente, a agressão.28
Não afasta a legítima defesa eventual provocação do agredido, isto é, não eli­
mina a injustiça da agressão, exceto se isso constituir uma simulação para oportu-
nizar uma situação de legítima defesa. Também não pode invocar a excludente o
agente que aceita desafio ou duelo.
Com relação ao chamado agente infiltrado, cuja atuação requer autorização
judicial que estabelecerá clara e fundamentadamente os poderes e limites de sua
atuação, não detém ele permissão legal para cometer crimes, mas, se eventualmen­
te os cometer, em tese é possível invocar em seu favor a legítima defesa própria ou

25 Como nota Damásio, tal é possível, contudo, se alguém se achar numa situação de justificação putativa,
bem como é possível, obviamente, estado de necessidade contra estado de necessidade (Direito penal, cit.,
p. 383-384).
26 De modo diverso, Jakobs, D erecho penal, cit.
27 D erecho penal , cit., p. 638.
28 No mesmo sentido, Jescheck: “frente a crianças, jovens, ébrios, enfermos mentais, pessoas sujeitas a erro e pes­
soas que atuam imprudentemente ou em estado de necessidade (§ 35), não se precisa de nenhuma afirmação
do ordenamento jurídico, pois sua vigência, ou não é questionada pela agressão, ou só o é de modo acidental.
Por isso, em tais casos a razão do direito de legítima defesa consiste, unicamente, na faculdade de autodefesa.
Isso significa que o agredido deve limitar-se à proteção dos bens jurídicos e só se acha autorizado para lesio-
nar o agressor quando não possa defender-se sem abandonar o interesse protegido” ( Tratado, cit., p. 310).
de terceiro, se preenchidos os requisitos legais para tanto; caso contrário, incorre­
rá na prática de infração penal. Não seria a hipótese de estrito cumprimento do
dever legal simplesmente porque não existe entre nós o dever legal de praticar deli­
tos, uma vez que a legislação prevê apenas a infiltração de agentes de polícia ou de
inteligência em tarefas de investigação mediante circunstanciada autorização judi­
cial e ouvido o Ministério Público (Lei ns 11.343/2006, art. 5 3 ,1; e Lei ne 9.034/95,
com a redação da Lei ns 10.217/2001). Aliás, se se tolerasse sem mais que o agente
infiltrado pudesse cometer crimes, o Estado se colocaria no mesmo nível dos cri­
minosos e estaria incentivando a prática de delitos, ao invés de preveni-los, numa
clara subversão dos princípios e fins próprios do Estado de Direito

B) A tualidade ou im inência da agressão

Mas não é qualquer agressão injusta que pode ensejar a legítima defesa, deven­
do ser atual, isto é, que está se consumando, ou iminente, que está por se consu­
mar. Tratando-se, por conseguinte, de agressão passada, não se configurará a defe­
sa legítima, situação em que haverá vingança puramente, não amparada pelo direi­
to. Por igual, se se cuidar de agressão futura - logo, nem atual nem iminente, incer­
ta, enfim - , não se admitirá a invocação da excludente, pois, como dizia Magalhães
Noronha, a legítima defesa não se funda no temor de ser agredido nem no revide
de quem já o foi.29 A reação é, portanto, em qualquer caso, preventiva: preventiva
no começo de ofensa ou preventiva de maior ofensa, não sendo cabível contra
agressão que já cessou ou contra simples ameaça desacompanhada de perigo con­
creto e imediato.30 E que, não sendo nem iminente nem atual a agressão, não exis­
tirá propriamente uma reação, tampouco necessidade de defesa.
Releva notar, porém, que, cuidando-se de agressão criminosa, a atualidade ou
iminência pode dar-se ainda na fase de exaurimento do crime, e não apenas duran­
te a fase de execução (tentativa e consumação e, excepcionalmente, até na prepa­
ração imediatamente anterior ao início da execução). Assim, em qualquer fase da
extorsão mediante seqüestro, já consumada com a exigência de vantagem como
condição ou preço do resgate (CP, art. 159), poderá a vítima defender-se legitima­
mente, inclusive depois de iniciada a fuga do cativeiro.

Q D efesa de direito próprio ou d e terceiro

A defesa poderá amparar tanto direito próprio como alheio. E qualquer direi­
to - vida, integridade física, honra, patrimônio etc. - é passível de proteção por
meio da defesa legítima. A razão é simples: se a sua função é assegurar a vigência

29 Direito penal , cit.


30 Hungria, Comentários, cit., p. 291.
D ireito Penal - Parte G eral

ou integridade de um bem jurídico, ela deverá ter lugar diante de qualquer interes­
se digno de proteção jurídica. A expressão “direito”, assim, é aqui empregada em
sentido amplo, de sorte a abranger qualquer interesse passível de proteção jurídica,
por isso que até a vida em formação pode e deve ser protegida legitimamente, de
sorte que o nascituro é protegível não só contra agressão de terceiro como ainda de
agressão da própria gestante que pretenda abortar. Também maus-tratos e tortura
contra animais são passíveis de legítima intervenção. Não o é, porém, em princípio,
o mero inadimplemento contratual, pois do contrário qualquer credor poderia
fazer valer seu direito violentamente, o qual deverá socorrer-se dos meios jurídicos
postos à sua disposição, sob pena de incorrer no crime de exercício arbitrário ou
abuso de poder (CP, art. 350), inclusive.
A honra, como qualquer outro bem jurídico, merece proteção penal, poden­
do haver legítima defesa em seu favor. O que se poderá discutir, no entanto, é a
necessidade e a moderação da reação. Assim, por exemplo, não pode dizer-se em
legítima defesa quem, a pretexto de defender a sua honra de marido traído, preten­
da matar sua companheira, como ainda reconhece, nalguns casos, o Tribunal do
Júri, sobretudo em comarcas do interior. Tais comportamentos são claramente cri­
minosos e plenamente puníveis, podendo invocar-se, no máximo, o privilégio do
art. 121, § le, do CP.
Também é perfeitamente admissível a legítima defesa de bens jurídicos do
Estado ou de pessoa jurídica quando se tratar de bens jurídicos individuais (v. g„ a
propriedade de bens públicos contra furtos e roubos), bem assim para defesa de
bens jurídicos da comunidade sempre que uma pessoa individual resultar direta­
mente afetada pela agressão.31
Tratando-se, porém, da preservação de direito de terceiro, o exercício da legí­
tima defesa há de ser relativizado, de modo a ser admitido só quando o titular do
direito ofendido tiver interesse, real ou presumido, na proteção jurídica que se lhe
quer emprestar, pois se não há, concretamente, um bem jurídico individual neces­
sitado de proteção, não se pode pretender defendê-lo legitimamente.32 Assim, não
pode, em princípio, o caseiro argüir legítima defesa, se, embora terminantemente
orientado de que, em caso de furto de determinados materiais guardados em depó­
sito, se limitasse a dar tiros de advertência ou chamasse a polícia, jamais atirando
contra o agressor, venha a atingi-lo intencional e mortalmente. É que em tal caso
não há, a juízo do titular do direito, necessidade de uma tal defesa. Pela mesma
razão, se houver consentimento do titular do direito ofendido, não se justifica a
defesa em seu favor - v. g., não pode invocá-la quem, a pretexto de proteger uma

31 Jescheck, Tratado , cit., p. 305.


32 Nesse sentido, Roxin: o direito à defesa de um terceiro só é aplicável na medida em que o agredido quiser
ser defendido, fato que deriva do princípio da proteção individual: se não há um bem jurídico individual
necessitado de proteção, o cidadão não cem direito de defesa (D erecho penal , cit., p. 661).
Paulo Queiroz

mulher vítima de estupro, que em verdade o consentira claramente, agride o


(suposto) estuprador.
Cumpre notar ainda que, cuidando-se de defesa de bem jurídico indisponível
(v. g., a vida), é absolutamente irrelevante a vontade do agredido, não importando
eventual consentimento, porque inválido.

D) Uso m oderado dos m eios necessários

E preciso também que haja proporcionalidade entre a ação (a agressão injusta)


e a reação (defesa), sob pena de carecer a defesa de legitimidade, em face do arbítrio
de que se reveste. Nem poderia aliás ser diferente, já que, como dito, ao realizar a
legítima defesa, cumpre-se a própria função de prevenção geral de comportamentos
lesivos de bens jurídicos, a exigir necessidade e moderação; proporção, enfim. Os
meios empregados para a repulsa da agressão injusta hão de ser necessários. São
necessários os meios reputados eficazes e suficientes para repelir a agressão.33 São-
no quando, segundo as circunstâncias concretas do caso (e não segundo pura abstra­
ção), estritamente adequados para a defesa que se pretenda exercer, conforme a
natureza e intensidade do ataque. Assim, não se pode reconhecê-la na ação de quem,
para proteger o seu pomar, atira contra crianças, matando-as ou causando-lhes
lesões corporais, porque os meios empregados são evidentemente desproporcionais,
em face da pouca significação do interesse que se quis proteger (o pomar) e da
dimensão (danosidade) da lesão produzida (morte ou lesões à integridade física).
A necessidade da defesa, a ser aferida concreta e contextualizadamente, deve
constituir, por conseguinte, o meio mais brando possível dentre os disponíveis:
quem pode rechaçar o agressor com seus punhos, não pode recorrer, sem mais, a
uma arma de fogo; quem pode intimidar seu agressor com simples ameaças ou
mediante um disparo de advertência, não pode invocá-la por evidente desnecessi­
dade.34 Aliás, agressão à vida somente pode ser tolerada em face de ofensas espe­
cialmente graves, porque o Estado não pode tolerar, sem mais, penas de morte,
sejam formais, sejam informais.
Naturalmente que a apreciação da necessidade e da moderação, como ressalta
Hungria, deve ser feita sempre de caso em caso, segundo um critério de relativida­
de ou cálculo aproximativo. Não se trata de pesagem em balança de farmácia, mas
de aferição ajustada às condições de fato do caso vertente. Não se pode exigir uma
perfeita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão, desde que
o meio necessário empregado tinha de acarretar, por si mesmo, inevitavelmente, o
rompimento de tal equação.3^
Os ofendículos, isto é, dispositivos predispostos para a defesa da propriedade
(v. g., cerca de arame ou eletrificada, mecanismos de disparo automático, cães fero­

33 Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 201.


34 Roxin, Derecho penal, cit., p. 629.
35 Comentários, cit., p . 302.
D ire ito P en al - P arte G eral

zes etc.) podem também ensejar a legítima defesa, pois, não obstante alguns auto­
res ainda opinem no sentido de que se trata de exercício regular de direito,36 fato
é que quem predispõe o offendiculu m não se encontra em situação diversa, por
exemplo, daquele que se arma de um revólver, prevendo a eventualidade de um
assalto, não importando que a instalação do aparelho insidioso preceda ao momen­
to da agressão, desde que só entre em funcionamento na ocasião em que o perigo
se fizer atual.37 No entanto, os riscos que tais instrumentos comportam correm a
cargo de quem se defende de tal modo,38 motivo pelo qual o autor poderá respon­
der penalmente, a título de culpa ou mesmo dolo, sobretudo quando atingir ino­
centes. Ademais, os dispositivos perigosos para a vida quase nunca são necessários:
não são legitimáveis disparos automáticos ou minas explosivas quando bastem dis­
positivos de alarme, descargas elétricas ligeiras etc.39
Conviria saber, por último, se, ocorrendo lesão a terceiro estranho ao confli­
to havido entre os contendores, poderá o agredido invocar a proteção legal. Roxin
considera que, se o prevalecimento do direito junto à proteção individual é carac­
terística de toda legítima defesa, isso só tem sentido em face do agressor, e não em
face de terceiro, circunstância que não excluiria, contudo, eventual estado de
necessidade exculpante, de modo que, quem, por exemplo, dispara contra autor de
roubo, admitindo a possibilidade de atingir um transeunte, deverá responder em
princípio pelas lesões causadas a este,40 a título de dolo ou culpa, conforme o caso.
Mas semelhante posicionamento não é sustentável ao menos em face da legis­
lação penal brasileira, porque tal importará erro de execução (aberratio ictus),
razão pela qual, na forma do art. 73 do Código, o agredido responderá como se
tivesse atingido o agressor; valer-se-á da legítima defesa, portanto.41 A despeito
disso, responderá civilmente pelos danos causados ao terceiro inocente.

6.2. Estado de necessidade

6.2.1. Significado e posição sistemática

O estado de necessidade constitui, no direito penal brasileiro, autêntica causa


de justificação (CP, arts. 2 3 ,1, e 24), de modo que entre nós não cabe distinguir, em
princípio, como faz a doutrina estrangeira, entre estado de necessidade justifican­
te e estado de necessidade exculpante (teoria diferenciadora), uma vez que o

36 Assim, Régis Prado, Curso, cit., p. 331.


37 Hungria, Comentários , cit., p. 294-295.
38 Jescheck, Tratado, cit., p. 307.
39 Roxin, D erecho p en al cit., p. 634-635.
40 D erecho penal, cit., p. 664.
41 No mesmo sentido, Assis Toledo: “em tais hipóteses,não se desfigura acausa dejustificação em exame,
pois, a teor do art. 73, Tício responderá pelo fato como se tivesse atingido o agressor Caio, ouseja, a pes­
soa que pretendia atingir (Princípios básicos , cit., p. 198).
P a u lo Q u e ir o z

Código Penal, adotando a teoria unitária,42 conferiu-lhe tratamento único: o esta­


do de necessidade exclui sempre a ilicitude do comportamento (estado de necessi­
dade justificante). Em conseqüência, caso não seja reconhecido o estado de neces­
sidade, a hipótese poderá no máximo dar lugar à exclusão da culpabilidade, em
razão da ineligibilidade de conduta diversa43 (estado de necessidade exculpante,
segundo a doutrina estrangeira).
Cumpre notar, no entanto, que o Código Penal Militar prevê o estado de ne­
cessidade como excludente de ilicitude e de culpabilidade,44 respectivamente, arts.
39 e 40.

6.2.1.1. Estado de necessidade, como excludente do crime

No estado de necessidade, diferentemente da legítima defesa, dá-se uma coli­


são de interesses entre titulares de bens jurídicos, reconhecendo-se o direito de
qualquer deles sacrificar interesse alheio, de forma a preservar interesse próprio,
quando tal sacrifício seja inevitável, razão pela qual é perfeitamente possível esta­
do de necessidade contra estado de necessidade, real ou putativo. Assim, por exem­
plo, o sacrifício de cão para preservar a incolumidade física, a violação de domicí­
lio e danos à propriedade para socorrer vítimas de inundação ou incêndio, a sub­
tração de alimentos para evitar a morte por inanição (furto famélico), o aborto para
salvar a vida da gestante (aborto necessário - CP, art. 1 2 8 ,1) etc.
Tais perigos tanto podem resultar de ação da natureza como de ato humano. Mas
se houver uma agressão injusta e atual a direito alheio, o caso será de legítima defesa.
6.2.2. Requisitos

42 De modo diverso, Fragoso: “A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessida­
de e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, com­
preende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do náufrago que, para reter a
única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre
é o estado de necessidade excludente da culpa (inexigibilidade de outra conduta)” (Lições , cit., p. 189).
43 Nesse sentido, Assis Toledo, para quem não é possível invocar estado de necessidade, sacrificando bem de
maior valor para proteção de bem de menor valor, tendo-se, aí, uma ação típica e antijurídica. No entan­
to, tal não impede que, eventualmente, seja reconhecida a falta de culpabilidade, de modo que “admiti­
mos, pois, com as ressalvas expostas, o estado de necessidade exculpante, como causa extralegal de exclu­
são da culpabilidade, por ser isso resultado de simples desdobramento do princípio da culpabilidade”
(Princípios básicos, cit., p. 181).
44 Com efeito, dispõe o art. 39 do COM: Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou
de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual,
que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao
direito protegido, desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa. Art. 42. Não há crime
quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cum­
primento do dever legal; IV - em exercício regular de direito. Art. 43. Considera-se em estado de neces­
sidade quem pratica o fato para preservar direito seu ou alheio, de perigo certo e atual, que não provocou,
nem podia de outro modo evitar, desde que o mal causado, por sua natureza e importância, é considera­
velmente inferior ao mal evitado, e o agente não era legalmente obrigado a arrostar o perigo.
D ire ito P en al - Parte G eral

Do estado de necessidade cuida o art. 24, caput, do Código Penal, que tem o
seguinte enunciado: “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato
para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro
modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se”. § 1Q: “não pode alegar estado de necessidade quem tinha o
dever legal de enfrentar o perigo”. § 2a: “embora seja razoável exigir-se o sacrifício
do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”. Seu reconhe­
cimento reclama, portanto, o concurso dos seguintes requisitos: a) existência de
perigo atual e inevitável; b) perigo não provocado pelo agente; c) inexistência de
dever legal de enfrentar o perigo; d) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaça­
do; e) ameaça a direito próprio ou alheio.

A) Existência d e p erig o atual e inevitável

Só há autêntico estado de necessidade diante de perigo atual, vale dizer, um


perigo presente, que está ocorrendo. Diferentemente da legítima defesa, em que se
alude a “injusta agressão, atual ou iminente”, o Código aqui cita apenas o perigo
atual, sem referir o iminente. A razão é simples: é que, tratando-se de “perigo”, e não
de “dano” (a expressão “injusta agressão” da legítima defesa pressupõe um dano,
atual ou iminente), segue-se que somente diante de um perigo atual - probabilida­
de de dano - , e não suposto, incerto, se admita a invocação da dirimente. Por isso,
Frederico Marques afirma que não se inclui aqui o perigo iminente porque a atuali­
dade se refere ao perigo, e não ao dano.45 Daí se dizer que, embora o Código não
preveja, para o estado de necessidade, o perigo atual, aceita a iminência do dano.46
Deve-se ter presente, contudo, que o perigo é também considerado atual
quando, mesmo que ainda não seja iminente a produção do dano, protelar a inter­
venção implique aumento considerável e não recomendável dos riscos de dano,
como pode ocorrer com a interrupção da gravidez por médico.47 Haverá ainda
atualidade do perigo sempre que se tratar de perigo permanente, isto é, perigo que
se renove no tempo, podendo a qualquer momento produzir danos, a exemplo de
imóveis em ruína etc. Naturalmente que nem o perigo que já cessou (passado) nem
o futuro admitem a invocação da excludente.
Ademais, o perigo, para autorizar a excludente, deverá ser inevitável, ou seja,
é preciso que o agente não disponha de outros meios de evitá-lo, estando somente
legitimada a ação menos lesiva dentre as disponíveis concretamente. A inevitabili­
dade significa que o recurso utilizado pelo agente para afrontar o perigo seja
insubstituível (que não podia de outro modo evitar) e idôneo, idoneidade que deve
ser conhecida in abstracto, pouco importando que no caso concreto não tenha sido

45 Tratado , cit., p. 167.


46 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 298.
47 Assim R oxin, D erecho penal, cit., p. 680.
P a u lo Q u e ir o z

suficiente para salvar o bem jurídico ameaçado.48 Do contrário, o estado de neces­


sidade não se configurará, visto que o sacrifício do bem jurídico não é realmente
necessário. Daí dizer Hungria que o estado de necessidade, contrariamente à legí­
tima defesa, é eminentemente subsidiário: não existe se o agente podia conjurar o
perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem.49
Se houve assim possibilidade razoável de salvação do bem ameaçado, de modo
a evitar ou, ao menos, reduzir o dano a bem de outrem, a inevitabilidade do dano
causado (ou do dano maior) desaparecerá.50

B) Perigo não p rovocado p e lo agente

Também é imprescindível à configuração do estado de necessidade que o peri­


go não tenha sido voluntariamente provocado pelo agente que o invoca. Assim, por
exemplo, não pode valer-se da causa de justificação quem, para obter seguro, ateie
fogo em imóvel, tendo de causar dano ao patrimônio alheio para se salvar. Apesar
de a expressão voluntária compreender tanto as ações dolosas quanto as culposas, a
doutrina majoritária5! tem considerado que só a provocação dolosa deve afastar a
dirimente, de modo que, ainda quando o perigo resulte de provocação culposa,
admitir-se-á o estado de necessidade, como, no exemplo dado, se o incêndio resul­
tasse não de uma ação premeditada, mas imprudente.

Q Inexistência d e d ever legal d e enfrentar o perigo

O dever impeditivo da invocação do estado de necessidade há de ser legal,


decorrente de lei, decreto etc., de sorte que o simples dever social, religioso ou con­
tratual não impede o reconhecimento da dirimente. Não podem, porém, invocá-lo:
o policial que teme o autor de crime em perseguição, o bombeiro com receio de
sofrer queimaduras etc., haja vista que têm o dever legal de enfrentar o perigo. Tais
deveres de proteção estão limitados aos perigos próprios de cada profissão, como o
policial em relação à perseguição de autor de crime, o médico em relação ao aten­
dimento do paciente etc.

48 Hungria, Comentários, cit., p. 276.


49 Comentários, cit., p. 276.
50 Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 184.
51 Em sentido contrário, Assis Toledo: “Daí, porém, não se conclua, como fazem alguns autores, que só o ato
doloso, não o culposo, afasta o estado de necessidade. Esses autores confundem ‘provocação do perigo’ com
‘provocação do resultado’, duas situações bastante diversas. Quem provoca conscientemente um perigo
(engenheiro que, na explosão de minas, faz explodir dinamites, devidamente autorizado para tanto) age
‘por sua vontade’ e, em princípio, atua licitamente, mas pode causar, por não ter aplicado a diligência ou
o cuidado devidos, resultados danosos (ferimentos ou mortes) e culposos ( Princípios básicos, cit., p. 185).
Também, Magalhães Noronha, Direito penal , cit. Na Alemanha, segundo Roxin, atualmente é unânime a
opinião no sentido de que a provocação culposa da situação de necessidade não exclui a possibilidade de
invocar o estado de necessidade (D erecho penal, cit., p. 697).
D ireito Penal - Parte Gera)

Naturalmente que o dever de arrostar perigo não tem caráter absoluto, de


sorte que, não se dirigindo a norma a heróis ou santos, só se podem exigir do agen­
te atitudes que não importem o sacrifício da própria vida, por exemplo. Conse­
qüentemente, também àquele que tenha o dever legal de afrontar perigo é dado
invocar o estado de necessidade, não cabendo exigir-lhe ações extraordinariamen­
te danosas à vida, à saúde ou à integridade física, inumanas, enfim.52

D) Inexigibilidade d o sacrifício d o bem am eaçado

Também o estado de necessidade, para constituir autêntica causa de justifica­


ção, deve orientar-se pelo princípio da proporcionalidade, de sorte que não se con­
figurará quando houver manifesta desproporção entre o perigo que se quer evitar
e o dano que se quer justificar. Por isso, não é lícito sacrificar um bem jurídico de
valor superior para proteção de bem jurídico de menor valor. Não pode, por exem­
plo, invocá-la quem, para proteger o patrimônio, pretenda causar lesões graves ou
a morte de alguém, pois “o sacrifício era razoável exigir-se”. Entretanto, a análise
da razoabilidade do sacrifício do interesse deve ser sempre feita concretamente,
contextualizadamente.
Finalmente, embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado,
a pena poderá ser reduzida de um a dois terços (CP, art. 24, § 29).

E) A m eaça a direito p ró p rio ou a lh eio

A semelhança da legítima defesa, também o estado de necessidade poderá


dar-se tanto para preservar direito próprio como alheio (vida, integridade física,
honra etc.). Por direito deve se entender qualquer interesse digno de proteção
jurídica, de modo que se um dos interesses em conflito não for legítimo, não se
poderá invocar a proteção legal. Tratando-se, porém, de intervenção para prote­
ção de direito disponível de terceiro, é indispensável que essa intervenção esteja
autorizada pelo titular do direito. Também aqui, se não é concebível a ação
necessitada por parte da pessoa jurídica (de direito público ou privado), é perfei­
tamente admissível que uma pessoa física intervenha para resguardar de lesão
seus direitos em perigo.53
6.3. Estrito cumprimento do dever legais

52 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt: este dever não tem caráter absoluto, a ponto de negar-se qual­
quer possibilidade de ser invocado o estado de necessidade. A exigência de sacrifício no exercício dessas
atividades perigosas não pode atingir o nível de heroísmo. O princípio do razoável também vige aqui,
embora em sentido diverso: para se salvar um bem patrimonial é inadmissível que se exija o sacrifício de
uma vida” (Manual, cit., p. 261).
53 Hungria, Comentários, cit., p. 276.
P a u lo Q u e ir o z

Evidentemente que também crime algum haverá - nem sequer será típica a
conduta, conforme a perspectiva aqui adotada - quando o agente praticar o fato no
estrito cumprimento do dever legal (CP, art. 23, III, I a parte). Ao contrário, have­
rá ilícito administrativo ou mesmo crime contra a Administração Pública (v. g.t
prevaricação - CP, art. 319) se o funcionário público deixar de praticar o que a lei
lhe impõe. Daí entendermos que, independentemente da adoção da teoria dos ele­
mentos negativos do tipo, a atipicidade da conduta praticada sob o manto do estri­
to cumprimento decorre de uma razão tautológica: quem cumpre um dever legal
estritamente não pode ao mesmo tempo realizar tipo penal algum.
Assim, por exemplo, o policial que prende em flagrante delito ou o oficial de
justiça que cumpre mandado judicial de despejo não respondem por crime, ainda
quando para tanto façam emprego de violência e causem lesões, moderadamente'.
Se é de dever estrito que se trata, segue-se que só estará legitimada a ação rea­
lizada rigorosamente dentro do que a lei autoriza, sob pena de descaracterizá-lo (v. g.,
prisão fora dos casos legalmente permitidos). O dever, por sua vez, há de provir de
norma de direito positivo (lei, decreto, regulamento), não valendo, para tanto,
deveres simplesmente sociais, morais, religiosos, nem meramente contratual.
Em sendo a pena de morte constitucionalmente vedada, devendo o Estado;
ademais, emprestar a máxima proteção à vida, não se pode contemporizar, eviden­
temente, com ações arbitrárias e criminosas de agentes do poder público, em espe­
cial da polícia, que, a pretexto de combaterem o crime, pretendem justificar atos de
“execução sumária”, eliminando supostos criminosos, mesmo porque não existe,
nem pode existir, o dever legal de matar, exceto se se tratar de carrasco legalmen­
te investido nas suas funções.55 Mas nada impede a invocação da legítima defesa,56
sempre que se tenha de repelir injusta agressão, atual ou iminente, para defesa dev
direito próprio ou alheio, utilizando, moderadamente, dos meios necessários (CP,1
art. 25). Mas, mesmo nessa situação, maiores devem ser as exigências para reconhe­
cer-se a legítima defesa, uma vez que se trata de um agente especializado do Estadó
a quem incumbe preservar a vida das pessoas e que em geral é (ou deveria ser) um
perito no uso de arma.

54 Para uma análise exaustiva do tema, ver Luís Augusto Sanzo Brodt, Do estrito cumprimento do dever
leg al tese de doutorado, UFMG, 2003.
55 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt: “essa norma permissiva não autoriza, contudo, que os agentes do
Estado possam, amiúde, matar ou ferir pessoas porque são marginais ou estão delinqüindo ou então estao.
sendo legitimamente perseguidas. A própria resistência do eventual infrator não autoriza essa excepciO"
nal violência oficial. Se a resistência - ilegítima - constituir-se de violência ou grave ameaça ao e x e r c íc io
regular da atividade de autoridades públicas, configura-se numa situação de legítima defesa, p e r m it in d o a
reação dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessários para impedir ou
repelir agressão” (Manuai, cit., p. 270).
56 De modo diverso, entende Jakobs que o policial, quando do exercício do seu dever funcional, não p°^e
invocar legítima defesa, podendo fazê-lo apenas na condição de particular (D erechopenal, cit., p. 479-48®)'
D ireito Penal - Parte G eral

Embora o dever legal suponha naturalmente que seu executor seja agente do
poder público, também o particular poderá invocá-lo eventualmente, desde que
exerça função pública (jurado, perito etc.). Cabe dizer ainda que o estrito cumpri­
mento poderá concorrer com outras causas de justificação, por exemplo, quando
policial fere autor de crime preso em flagrante não apenas para efetivar a prisão,
mas também para repelir a agressão por ele praticada,57 hipótese em que o estrito
cumprimento coexiste com a legítima defesa.

6.4. Exercício regular de direito (em sentido estrito)

Também exclui a ilicitude do comportamento o exercício regular de direito


(CP, art. 23, III, 2a parte), porque em tal hipótese simplesmente se exerce uma
faculdade legalmente autorizada. Assim, a prisão em flagrante delito feita por par­
ticular, o penhor forçado, o castigo moderado aplicado pelos pais aos filhos, lesões
esportivas etc. Também aqui só é legítima a ação que se realizar regularmente, é
dizer, dentro dos limites tolerados pelo direito. Por isso, lesões esportivas, por
exemplo, só são admitidas dentro das regras de cada esporte, pois fora delas, have­
rá crime. Assim, ainda que o agente, v. g„ lutador de boxe ou vale-tudo, lute com
a intenção de matar ou ferir seu oponente (este último inerente à prática esportiva
em questão), se o fizer dentro das regras do esporte específico, não se lhe poderá
acusar de crime algum, pois o fato não lhe é imputável objetivamente, porque
atuou de acordo com as normas de um esporte violento cuja prática pode resultar
tanto em lesões quanto em morte. A imputação objetiva do resultado pressupõe
assim a não-observância das regras do esporte em questão (v. g., pontapé, soco con­
tra o abdômen ou golpear o oponente fora de combate, no caso do boxe).

6.5. Consentimento do ofendido

De acordo com a doutrina, o consentimento válido do ofendido ora funciona


como causa de exclusão da tipicidade, ora como causa de exclusão de antijuridici­
dade. Exclui a tipicidade sempre que o dissenso da vítima, expressa ou tacitamen-
te, fizer parte do tipo penal. Assim, por exemplo, a violação de domicílio (art. 150)
exige, para a realização do tipo, que o fato se dê “contra a vontade expressa ou táci­
ta de quem de direito”; o crime do art. 164 supõe que a introdução de animais ocor­
ra “sem o consentimento de quem de direito”; o estupro (art. 213) pressupõe que
haja resistência (real ou presumida) da mulher, pois do contrário não haverá cons­
trangimento ilegal. Em todos esses casos, portanto, para a configuração do crime é
^dispensável que haja dissentimento da vítima, de modo que o fato será jurídico-
penalmente irrelevante sempre que houver consentimento válido.

■*7 Exem plo de Magalhães N oronha, Direito penal, c it., p. 210.


Paulo Queiroz

Nos demais casos, em que o dissentimento não fizer parte do tipo, a hipótese
constituiria causa excludente de ilicitude, desde que proviesse de pessoa capaz de
dispor. Assim, por exemplo, o consentimento em relação ao crime de dano (art.
163) e a lesão corporal (art. 129).
Cremos, porém, como Roxin, que o consentimento do ofendido sempre cons­
titui causa de exclusão da tipicidade.58 E que, se os bens jurídicos servem para o livre
desenvolvimento do indivíduo, não pode existir lesão alguma a este quando uma
ação se fundar em disposição válida do titular do bem jurídico, que assim não depre­
cia seu desenvolvimento, mas ao contrário constitui sua expressão.59 Assim, se o
proprietário, em virtude de decisão livre, consente que se destrua coisa sua, não
existe lesão ao bem jurídico, e sim cooperação para seu exercício livremente tolera­
do, o mesmo se devendo dizer do cirurgião plástico, que não viola a liberdade do seu
paciente no trato do seu corpo, mas o ajuda na realização de sua imagem corporal.6*)
Bem jurídico e poder de disposição sobre o bem jurídico formam, assim, como
assinala Rudolphi, não só uma unidade, senão que objeto de disposição e faculdade
de disposição são, em sua relação mútua, o bem jurídico protegido no tipo.61
Naturalmente que, tratando-se de bem jurídico indisponível ou de consenti­
mento emitido por agente incapaz, tal será inválido e, em conseqüência, penalmen­
te ineficaz. Assim, por exemplo, há crime de homicídio na hipótese de o paciente
consentir no desligamento dos aparelhos, antecipando-lhe a morte (eutanásia).
Pressupostos do consentimento são: a) a disponibilidade do direito; b) a disposição
por agente capaz de consentir.
E de convir, porém, que rigorosamente falando não existem bens jurídicos
indisponíveis ou pelo menos a indisponibilidade não é absoluta, porque absoluto
nenhum direito é. Em verdade, o que há são graus diversos de disponibilidade,
maior ou menor, pois, v. g„ a integridade física, a liberdade e a própria vida com­
portam relativização, a depender do contexto e dos interesses em jogo. Assim, em
princípio é perfeitamente válido o consentimento quanto a lesões leves entre sado-
masoquistas, a esterilização (laqueadura), a extração de órgãos para transplante, a
mudança de sexo etc., não respondendo os autores de tais lesões-intervenções (con­
sentidas) jurídico-penalmente,62 exceto se o consentimento partir de agente inca­
paz ou se houver vício do consentimento (coação, erro etc.)
Quanto à vida, cabe lembrar que, além de se admitir a sua supressão nalguns
casos excepcionais, v. g„ aborto necessário e aborto no caso de gravidez resultante

58 No sentido do texto, Juarez Cirino (A moderna teoria , cit., p. 194): “do ponto de vista teórico, os argumen­
tos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo parecem convincentes: o con­
sentimento real exclui o desvalor de ação e o desvalor de resultado e, por conseqüência, descaracteriza o
próprio tipo de crime; o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e, portan­
to, indica situação de ausência de conflito, ao contrário da situação de conflito do sistema de justificações".
59 Derecho penal, cit., p. 517.
60 Roxin, D erecho penal, cit., p. 517.
61 Citado por Roxin, D erecho penal, cit., p. 518.
62 Nesse sentido, Roxin, D erecho penal, cit., p. 530-531.
D ireito Penal - P a n e Geral

de estupro (CP, art. 1 2 8 ,1 e II), alguns países já admitem ou pretendem admitir


eutanásia, como Bélgica e Holanda.
D ireito Pen al - Parte G eral

Capítulo XI
Teoria da Culpabilidade: Causas de Exclusão de culpabilidade

l. Introdução

A palavra culpabilidade é utilizada em vários sentidos, tais como: a) princípio


da culpabilidade; b) princípio de não-culpabilidade; c) crime culposo; d) culpabili­
dade como circunstância judicial; e) culpabilidade como elemento do conceito ana­
lítico de crime. E mais recentemente, alguns autores1 falam de co-culpabilidade.
No sentido de princípio de culpabilidade, o conceito é empregado como sinô­
nimo de princípio da responsabilidade penal pessoal/subjetiva, significando que
nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente, motivo pelo qual só deve respon­
der pela infração penal o seu respectivo autor, co-autor ou partícipe; constitui, p õ í-
tanto, um postulado político-criminal que impede a responsabilidade penal objeti­
va e/ou presumida, compreendendo o dolo e a culpa inclusive. No sentido de prin­
cípio da não-culpabilidade - ou princípio da presunção de inocência - significa que
ninguém poderá ser considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
penal condenatória; constitui, assim, um princípio de caráter processual: até prova
em sentido contrário, é de se ter o agente como inocente, de modo que, se a ino­
cência é presumida, a culpa requer prova por parte de quem formula a acusação
(Ministério Público ou querelante).
Já quando empregada impropriamente como sinônimo de crime culposo
(culpa em sentido estrito), corresponde ao crime praticado com imprudência,
negligência ou imperícia, isto é, com infração de um dever de cuidado, ou, ainda,
criação de risco proibido e realização desse risco no resultado.
A culpabilidade também constitui circunstância judicial (CP, art. 59) a ser
considerada no momento da individualização judicial da pena; significa então que,
ao proceder à fixação da pena, o juiz deverá tomar em conta o grau de reprovabili-
dade/exigibilidade da conduta: quando mais exigível um comportamento diver­
so/conforme o direito, mais reprovável será a infração penal; quando menos exigí­
vel, menor a censurabilidade e, pois, menor o castigo. Enfim, a culpabilidade cor­
responde aqui à idéia mesma de proporcionalidade em sentido estrito, a ser aferida
segundo múltiplas circunstâncias.
Mais recentemente alguns autores falam ainda de co-culpabilidade como cir­
cunstância supra-legal de atenuação da pena.2 E que há casos em que as condições

1 Especialmente Zaffaroni, Juarez Cirino e Grégore Moura.


2 Assim, Grégore Moura. Do princípio da co-culpabilidade. Niterói, Rio: Impetus, 2006.
Paulo Queiroz

sócio-econômicas do agente são de tal modo adversas que o juiz, ao proceder à indi-
vidualização da pena, não pode ignorá-las, devendo lhe atenuar o castigo por isso
desde que haja relação casual entre tais condições e o delito cometido, motivo pel0
qual a sua aplicação ocorrerá principalmente, mas não exclusivamente, nos crimes
patrimoniais (furto, estelionato etc.).
Convém notar, aliás, que alguns códigos penais a referem claramente, embo­
ra sem recorrer, em geral, a essa denominação, como o código colombiano, ao dis­
por que a pena será atenuada se o autor praticar a infração penal sob a influência
de profunda situação de marginalidade, ignorância ou pobreza extrema que hajam
influenciado diretamente o cometimento do crime e não sejam suficientes para
excluir a própria responsabilidade jurídico-penal (art. 56).
Trata-se, portanto, de um conceito que se aproxima muito do estado de neces­
sidade e da inexigibilidade de conduta diversa, mas que com estes não se confun­
de, e em relação aos quais tem caráter residual/subsidiário, pois a adoção da ate­
nuante da co-culpabilidade pressupõe, logicamente, a rejeição ou o não reconheci­
mento da causa de justificação (estado de necessidade) ou da excludente supra-legal
de culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa) com as quais guarda seme­
lhança. É que tais excludentes conduzem à absolvição pura e simples; a co-culpa­
bilidade, ao contrário, pressupõe a condenação. *
Temos, porém, que em verdade a chamada co-culpabilidade não é senão uma
dimensão do próprio conceito de culpabilidade enquanto circunstância legal, a ate­
nuar ou agravar a pena,3 conforme o caso, uma vez que, se culpabilidade é exigibi­
lidade (maior ou menor), a ser aferida tomando em conta as múltiplas variáveis do
caso concreto, tal há de ser menor quanto àquele que comete delito premido por
condições sócio-econômicas especialmente adversas. Em suma, parece-nos que co-
culpabilidade é um nome novo para designar coisa velha: a própria culpabilidade. ■
Finalmente, quando se afirma que um crime é, do ponto de vista analítico, um
fato típico, ilícito e culpável, quer-se dizer que, além da tipicidade e ilicitude, a
punibilidade de um comportamento reclama a comprovação de que, no caso con­
creto, era perfeita e razoavelmente possível e exigível do seu autor um comporta­
mento diverso, isto é, conforme o direito; o agente não atuará, por isso, culpavel-
mente, mas inculpavelmente, sempre que lhe faltar a imputabilidade, a potencial
consciência da ilicitude ou a exigibilidade de conduta diversa. É neste exato senti­
do que o conceito nos interessa no presente capítulo.
Conforme vimos, do ponto de vista formal/analítico, o crime é um fato típico,
ilícito e culpável, constituindo a culpabilidade o último dos requisitos do fato puní­
vel. A culpabilidade é assim um juízo de reprovação sobre o autor de um fato típi­
co e ilícito, em razão de lhe ser possível e exigível, concreta e razoavelmente, um
comportamento diverso, isto é, conforme o direito, motivo pelo qual pode-se dizer

Tanto é assim que se fala também de co-culpabilidade ás avessas, situação que agravaria a pena.
D ireito Pen al - P arte Geral

que culpabilidade é exigibilidade; inculpabilidade, inexigibilidade. Como juízo


n e g a tiv o de imputação subjetiva sobre o autor de um fato típico e ilícito, a culpa­
bilidade pressupõe: a) imputabilidade ou capacidade de culpabilidade; b) conheci­
mento da ilicitude do fato; c) exigibilidade de um comportamento diverso.
Com efeito, se a norma jurídico-penal, por meio de mandatos e proibições,
pretende prevenir, em caráter geral e especial, infrações penais, segue-se que,
para tanto, seus destinatários hão de estar em condições físico-psíquicas (maturi­
dade, sanidade etc.) de entender o conteúdo de suas mensagens e, pois, de agirem
de acordo com elas; pressupondo imputabilidade (capacidade de culpabilidade),
portanto.
Assim, a culpabilidade não é um pensamento nem um simples aspecto inter­
no da pessoa, mas um elemento do fato, isto é, uma condição sin e qua non do
mesmo, fundada, mais que em razões éticas ou utilitárias, na estrutura lógica da
proibição, que implica a possibilidade material da realização ou não realização da
ação, imputáveis à atuação de um sujeito.4
A relação entre prevenção e culpabilidade é evidente: só se pode exigir (proi­
bir) uma ação quando a omissão for possível e, portanto, só se pode exigir uma
omissão quando a ação for possível. Do contrário, a norma implicaria uma violên­
cia inútil, pois estaria a exigir o inexigível, abstrata ou concretamente.
Também faltará a culpabilidade sempre que o agente, embora imputável, des­
conhecer o conteúdo da proibição, mesmo porque num sistema democrático a
regra é a liberdade; a não-liberdade, a exceção. E que também aqui a norma não é
passível de motivar seus destinatários, razão pela qual a culpabilidade requer
conhecimento da ilicitude do fato.
Normalmente o direito penal exige a realização de comportamentos mais ou
menos incômodos, mais ou menos difíceis, mas não impossíveis. De todo modo, não
pode exigir comportamentos heróicos, pois toda norma tem um âmbito de vigência
fora do qual não se pode exigir responsabilidade alguma.5 Enfim, só se pode falar de
culpabilidade quando for possível e exigível um comportamento diverso.

Evolução do conceito de culpabilidade

1. Culpabilidade segundo a doutrina causalista: concepção


psicológica da culpabilidade

Para a doutrina causai da ação (ou naturalista), a culpabilidade consistia na


relação psicológica entre a conduta e o seu agente, ou, para expressá-la com pala-

4 Ferrajoli, Luigi. D erecho y razón, cit., p. 501.


5 Munoz Conde e Mercedes Garcia Arán. D erecho Penal. Parte General, p. 40. Valencia: Tirant lo blanch.
2000 .
Paulo Queiroz

vras de Von Liszt, culpabilidade é a ligação subjetiva entre o ato e o autor,6 concei­
to que se mantém coerente com a sua concepção naturalista da ação. De fato, se,
como pregavam os causalistas, a conduta se dividia em duas partes, uma externa -
a antijuridicidade, de caráter objetivo - e outra interna - a culpabilidade, de natu­
reza subjetiva - , resulta que nesta última devia residir todo o subjetivismo ou psi-
quismo do delito, vale dizer, o dolo e a culpa. Nesse sentido, afirmava Von Liszt que
“não basta que o resultado possa ser objetivamente referido ao de vontade do agen­
te; é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva. Culpa é a res­
ponsabilidade pelo resultado produzido”.7
Por conseguinte, dolo e culpa constituíam as formas possíveis dessa conexão
psíquica (subjetiva) entre o autor e seu fato,8 ou seja, age culpavelmente quem atua
com dolo ou culpa (culpa em sentido estrito). Em conseqüência, o delito, segundo
a perspectiva causalista, apresenta-se como dupla vinculação causai: a relação de
causalidade material, que dá lugar à antijuridicidade, e a conexão de causalidade
psíquica, que é a culpabilidade.9 Dentro de tal construção, o dolo e a culpa não só
eram as duas espécies de culpabilidade como também a totalidade da culpabilida- <
de, admitindo-se, porém, como pressuposto jurídico-penal, a imputabilidade, 1
entendida como capacidade de ser culpável.10 4,
Semelhante formulação sofreria diversas críticas, sobretudo por não explicar. >
a contento tal conexão (psicológica) nos crimes culposos (salvo na culpa consr. .■>
ciente), nos quais não existe, a exemplo do que ocorre nos crimes de trânsito., ■'
Como assinala Damásio, se o dolo é caracterizado por um querer, a culpa, por um
não querer, conceitos positivo e negativo, tais conceitos não podem, em conse­
qüência, ser espécies de um denominador comum, qual seja, a culpabilidade,
mesmo porque na culpa (sobretudo na culpa inconsciente) não existe essa preten­
dida relação psíquica.11 Além disso, com o advento da doutrina finalista, o dolo e
a culpa viriam a ser deslocados da culpabilidade para a tipicidade. No entanto,
nem por isso a culpabilidade deixaria de existir como categoria sistemática da
teoria do delito, mesmo porque, apesar de o autor agir com dolo ou culpa, a cul- ;
pabilidade pode ser excluída, como, por exemplo, se tiver atuado sob coação
moral irresistível. .t . ,
Sintetizando, a culpabilidade, segundo a formulação causalista (clássica), com- ~
punha-se de: a) imputabilidade; b) dolo e culpa em sentido estrito. ";v

_______
6 Von Liszt, Tratado, cit., p. 249. Igual conceito é adotado pela doutrina penal brasileira menos reccnte^7 '
Assim, por exemplo, Basileu Garcia: “a culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu autor. i
(Instituições, cit., p. 273). . .
7 Tratado, cit., p. 249. s v;
8 Mir Puig, Derecho penal, cit., p. 540.
9 Mir Puig, Derecho penal , cit., p. 541. ‘VyVT'. ■“?
10 Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 220.
11 Direito penal, cit., p. 456. ' .<
D ireito Penal - Parte G eral

2. Concepção norm ativa da culpabilidade

As críticas que se seguiram à concepção causalista clássica dariam lugar à sua


reformulação, para se lhe adicionar um elemento novo, de caráter normativo (um
juízo negativo de valor), qual seja, a reprovabilidade (ou censurabilidade), para se
entender culpabilidade como um juízo de reprovação (ou censura) sobre o autor,
por ter atuado ilicitamente, quando lhe era exigível (e possível) uma atuação con­
forme o direito. Com semelhante formulação, o dolo e a culpa, embora permane­
cessem integrando a culpabilidade, deixariam de constituir suas espécies, conver­
tendo-se em seus elementos. Tal concepção - que se deve, em especial, a Frank,
Goldschmidt e Freudenthal - , exatamente por ser acrescida desse elemento norma­
tivo (valorativo), ficou conhecida como norm ativa ou psicológico-norm ativa.
De acordo com essa concepção, para ser culpável, não basta, como explica
Assis Toledo, que o fato seja doloso ou culposo; é preciso que, além disso, seja cen­
surável o autor. O dolo e a culpa stricto sensu deixam de ser esp écies de culpabili­
dade e passam a ser elem en tos dela. A culpabilidade enriquece com novos elemen­
tos - o juízo de censura que se faz ao autor do fato e, como pressuposto deste, a exi­
gibilidade de conduta conforme a norma.12
Assim, há culpabilidade ainda quando não haja relação psicológica entre o
autor e seu fato, como ocorre na culpa inconsciente (culpa sem previsão), em razão
' de o agente atuar reprovavelmente, violando um dever de cuidado. Segundo a con­
cepção normativa, a culpabilidade constitui-se, em conseqüência, dos seguintes
, elementos: a) imputabilidade; b) dolo e culpa; c) exigibilidade de conduta diversa,
isto é, conforme o direito.

3. Culpabilidade segundo a doutrina finalista: concepção


‘ normativa pura

Com o advento do finalismo, que deslocaria o dolo e a culpa para a tipicidade


; ~e assim abandonaria o critério psicológico - , a culpabilidade passou a ter um con­
teúdo puramente normativo. Em conseqüência, o juízo de reprovação da culpabi­
lidade, de acordo com Welzel, criador da doutrina finalista, pressupõe que o autor
P°ssa atuar de acordo com a norma, e isso não num sentido abstrato de algum
homem em vez do autor, mas que, concretamente, este homem poderia em tal
atuação estruturar sua vontade segundo a norma.13 A culpabilidade, conforme a
■, perspectiva finalista, significa assim a possibilidade de o agente atuar, concreta-
rnente, segundo o direito. E tal possibilidade deixaria de existir sempre que o autor

Princípios básicos, cit., p. 223.


D erecho pen al alemán, cit., p. 169.
Paulo Queiroz

fosse inimputável, desconhecesse o caráter antijurídico do fato ou sofresse coação


(moral) irresistível etc.
A culpabilidade, portanto, segundo a concepção normativa pura, pressupõe: a)
imputabilidade; b) potencial consciência da ilicitude; c) possibilidade e exigibilida­
de de conduta diversa.
O dolo e a culpa passam a integrar, como assinalado, a própria tipicidade. O
dolo, porém, com o finalismo, é desvinculado da consciência da ilicitude, que
remanesce na culpabilidade (potencial consciência da ilicitude).

4. Culpabilidade segundo o funcionalismo: culpabilidade como


limite à prevenção

Se, para o funcionalismo, a dogmática penal deve estar orientada segundo os


fins político-criminais (teleologicamente) perseguidos pelo direito penal, a culpa­
bilidade, como categoria do delito, há de ser, por conseqüência, também entendi­
da em termos preventivos (funcionalmente).
Assim, Jakobs, partindo da premissa de que a função da pena é afirmar a
vigência da norma (prevenção geral positiva), em favor da estabilização do sistema
social, considera que a culpabilidade constitui “uma falta de fidelidade ao direito”,
justificando a imposição da pena. Assim, o autor de um fato antijurídico, escreve
Jakobs, tem culpabilidade quando tal atuação antijurídica não só indica uma falta
de motivação jurídica dominante - por isso é antijurídica - , senão quando o autor
é responsável por essa falta. Essa responsabilidade ocorre quando falta a disposição
de motivar-se conforme a norma correspondente. Essa responsabilidade por um,
déficit de motivação jurídica dominante, num comportamento antijurídico, é a cul-' JSr
pabilidade.14
Ao adotar semelhante perspectiva, Jakobs acaba por substituir, em verdade, o
conceito de culpabilidade pelo de prevenção geral.15
Já para Roxin - que se opõe à formulação de Jakobs16 por conduzir, a seu ver,
à instrumentalização do homem em favor do sistema social, violando o princípio

14 D erecho penal, cit., p. 566.


15 Cf. Schünemann. “Resta por questionar - escreve Schünemann - se acaso não devem ser extraídas conse­
qüências mais radicais da transformação de um direito penal retributivo em direito penal preventivo e,
em conseqüência, não se deve substituir de modo completo a categoria, como pressuposto da p u n ib ilid a
de, pela necessidade preventivo-geral da pena, tal como exige Jakobs e alguma vez insinuou Roxin (I*
función..., in Fundamentos, cit., p. 160).
16 Com efeito, afirma Roxin, referindo-se a Jakobs: “a esta concepção se opõe sobretudo o fato d e que aban*j
dona a função restritiva da culpabilidade em atenção à prevenção geral. A punibilidade do particular nãc _ ^
depende já de circunstâncias que radicam em sua pessoa, senão do que seja presumivelmente n e c e s s á r io
para o exercício dos cidadãos na finalidade ao Direito, para a estabilização da confiança no o r d e n a m e n t o »
(...). Uma instrumentalização tal do indivíduo, que só serve já como instrumento dos interesses sociais
estabilização, foi criticada por Kant como violação da dignidade humana” (D erecho penal , cit., p. 806).
D ireito P en al - Parte G eral

da dignidade humana passa a ter papel central o conceito de “responsabilidade


penal”, que deve ser entendido a partir dos conceitos de culpabilidade e necessida­
de de prevenção, seus pressupostos, pois, segundo Roxin, só mediante o reconheci­
mento de culpabilidade e necessidade preventiva, como pressupostos da responsabi­
lidade jurídico-penal, pode a dogmática conseguir conectar-se com a teoria dos fins
da pena, de modo que só culpabilidade e necessidade preventiva, conjuntamente,
podem dar lugar a uma sanção penal.17 Portanto, culpabilidade e necessidades pre­
ventivas limitam-se reciprocamente: necessidades preventivas jamais podem auto­
rizar a punição quando inexista culpabilidade, nem a culpabilidade basta por si só
para legitimar a pena, que deve ser indispensável do ponto de vista preventivo.18
Por conseqüência, a pena há de pressupor sempre culpabilidade, de sorte que
nenhuma necessidade preventiva de punição, por maior que seja, pode justificar
uma sanção penal que contradiga o princípio da culpabilidade.19 Por isso, a exigên­
cia do reconhecimento da necessidade preventiva como pressuposto adicional da
punibilidade significa, unicamente, ulterior proteção ante a intervenção do direito
penal, enquanto não só se limita o preventivamente admissível mediante o princí­
pio de culpabilidade, mas também se restringe a possibilidade de punição da con­
duta culpável à exigência de que esta seja preventivamente imprescindível.20
Para Roxin, portanto, a culpabilidade, como pressuposto fundamental da res­
ponsabilidade penal, tem papel ambivalente: se, por um lado, só pode ser declara­
do culpável quem pode ser motivado pela norma, isto é, alcançado pela prevenção,
por outro, a culpabilidade funciona também como limite à própria prevenção. Com
efeito, carecendo a norma do poder de motivar/ prevenir, a aplicação do direito
penal é desnecessária e inadequada quando a suposição de que uma pessoa era
motivável pelo direito resulte infundada pelo seu estado mental ou anímico ou
pelas circunstâncias da situação, como ocorre com os enfermos mentais, por exem­
plo, de quem não se espera que observem as normas, os quais, quando infringem a
lei, não defraudam expectativa social alguma e a consciência social não se comove;
logo, ninguém resulta motivado a imitá-los porque a vigência da norma, aos olhos
da opinião pública, não resta diminuída por esses fatos.21
Decisivo, porém, segundo a formulação roxiniana, no que se distingue de
Jakobs, é o caráter limitativo (garantista) da culpabilidade ao fim de prevenção
geral (positiva e negativa - conforme sua teoria dialética unificadora), visto que,
como ressalta, “a mui citada expressão de Kohlrausch de que a culpabilidade como
poder individual seria uma ‘ficção necessária para o Estado’ há de ser corrigida. Um
direito penal da culpabilidade não é de modo algum ‘necessário para o Estado’, pois

17 D erecho penal , cit., p. 793.


18 Roxin, Política crim inal cit.
^ Roxin, D erecho penal, cit., p. 793.
^ Roxin, D erecho penal, cit., p. 793.
Roxin, D erecho penal, cit., p. 810-811.
Paulo Queiroz

os fins preventivos do Estado podem ser perseguidos muito mais livremente


mediante um puro Direito de medidas de segurança. A culpabilidade é, ao contrá­
rio, uma 'garantia da liberdade’ dirigida contra os excessos punitivos do Estado. 0
princípio de culpabilidade não prejudica o cidadão (porque as necessidades preven­
tivas se imporiam com total independência da vinculação à culpabilidade), senão
que o protege. Ao manter a persecução dos fins preventivos nos limites próprios do
Estado de Direito, serve, por sua vez, a uma política criminal razoável”.22
Semelhantemente, Schünemann assinala que, de fato, a pena necessita para a
sua justificação, além de sua utilidade preventiva, de um princípio autônomo de
legitimação, para o qual só se pode tomar em conta a culpabilidade, de modo que,
se a necessidade da pena surge exclusivamente de considerações preventivas, a cul- ;
pabilidade constitui a base complementar de legitimação, vale dizer, “a finalidade ■
preventiva fundamenta a necessidade da pena, o princípio de culpabilidade limita - ,
sua admissibilidade”.23
Uma concepção também funcional adota Francisco Munoz Conde, que, par-j?,^
tindo da função motivadora da norma penal como fundamento material da culpá->g||
bilidade, observa que “a correlação entre culpabilidade e prevenção geral, quer®®
dizer, a defesa de determinados interesses, legítimos ou ilegítimos, é, pois, evideff|l
te. Se em dado momento histórico se considerou que o alienado ou o menor fica||
vam isentos de responsabilidade criminal, isso não se fez para debilitar a prevenção^
geral ou a defesa dos interesses da sociedade frente a essas pessoas, mas, pelo con*^.,^
trário, porque o efeito intimidatório geral e a defesa social se fortaleceriam ao se^ ^
declararem isentas de responsabilidade criminal (quer dizer, de culpabilidade),Tia
umas poucas pessoas que, como a experiência ensina, não se pode esperar que cum*
pram as expectativas de condutas contidas nas normas penais, confirmando assiffij
a necessidade de seu cumprimento para as outras pessoas que não se encontraS!
nessa situação”.24
Portanto, para o funcionalismo - exceção feita a Jakobs, sobretudo agora emí
que defende u m direito penal do inimigo - , a culpabilidade tem papel e m in e n t e - /
mente garantista ou limitativo do poder punitivo do Estado, pois só pode ser decla-|

22 Roxin, D erecho penaly cit., p. 811-812. Adota idêntico posicionamento Figueiredo Dias: “A v e rd a d e ira :
função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de exces ^
so; a culpabilidade não á fundamento da pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultra ^
passável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas — sejam de prevenção geral
tiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de s o c ia b z a g p
ou antes negativa de segurança ou neutralização. A função da culpabilidade, deste modo inscrita,
tente liberal do Estado de Direito é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda
tível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvúnfiigjí-
sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta v ia ,
lecer uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e o veto incondicional a o s
tes abusivos que ele possa suscitar” (Quesfões fundamentais, cit., p . 134).
23 La función..., in Fundamentos, cit., p. 162-172.
D ireito Penal - P arte G eral

rado culpável quem, ao praticar um fato antijurídico, tinha condições razoáveis de


atuar motivado pela norma, agindo conforme o direito, não o fazendo, embora
pudesse fazê-lo sem sacrifícios extraordinários. Logo, se a prevenção constitui o fim
do direito penal, a culpabilidade, conquanto entendida preventivamente, serve de
limite à prevenção; sendo assim, a prevenção é condição necessária à justificação
do castigo (são culpáveis os passíveis, em dada situação, de serem motivados,
podendo agir conforme a norma), mas não suficiente para dar lugar à sua imposi­
ção, que dependerá sempre de culpabilidade (pressuposto fundamental da sanção),
sob pena de, se desprezada, ter lugar um Estado policial, pela aplicação irrestrita de
medidas de segurança, por exemplo.
É correto dizer ainda, com Silva Sánchez, que o conceito de culpabilidade pode
e deve ser contemplado desde a perspectiva da exigibilidade, podendo-se afirmar
que culpabilidade é exigibilidade; inculpabilidade, inexigibilidade. Atua culpavel-
mente aquele de quem se pode exigir uma atuação conforme o direito, sendo que o
grau concreto de exigibilidade resultará do conflito posto em relação, por um lado,
das necessidades preventivas, que abonariam o estabelecimento de maiores níveis de
exigência, e, por outro, dos argumentos utilitaristas de intervenção mínima, assim
como de critérios humanitários, garantistas, enfim, que apoiariam sua redução.25
Convém notar, finalmente, que o princípio de culpabilidade opera como limi­
te do jus pu n ien di não só quanto à determinação dos pressupostos da pena como
também no âmbito da individualização judicial, significando dizer que a pena não
deve exceder ao limite do que seja adequado à gravidade da culpabilidade do autor,
por mais que possa ser necessária, no caso concreto, por motivos de prevenção geral
e especial.26 É que a culpabilidade, além de fazer parte do conceito analítico de
crime, também constitui uma circunstância judicial a ser considerada quando da
.fixação da pena.

5. Cansas de exclusão de culpabilidade em espécie

O Código prevê as seguintes causas de exclusão de culpabilidade: a) inimpu-


tabilidade, em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado; b) inimputabilidade do menor de dezoito anos; c) embriaguez involun­
tária completa; d) erro de proibição inevitável; e) obediência hierárquica a ordem
r>ao manifestamente ilegal; f) coação moral irresistível.
Discute-se, porém, se não se poderia cogitar, à semelhança das causas de justi­
ficação, de causas supralegais de exculpação, por inexigibilidade de conduta diversa.
'á Roxin afirma que, “se se permitisse que a política-criminal do juiz decidisse
KPbre a punibilidade de uma conduta, atentar-se-ia contra a divisão dos poderes,
como contra o princípio constitucional de precisão e concreção”, sendo, em
%k
2 5 ----
v ^proxímadón, cit., p. 413.
Gatcía-Pablos, Derecho penai, cit., p. 286.
conseqüência, “inadmissível habilitar o juiz, em caráter geral, para eximir de pena,
sem base na lei, com ajuda de uma fórmula vazia como a da inexigibilidade”.27
Mas tal posição não adotada pela doutrina brasileira majoritária,28 nem tam­
pouco pela jurisprudência,29 peca pelo excessivo formalismo. Primeiro, porque, por
mais imaginoso que seja o legislador, não pode ele, evidentemente, contemplar
todos os fatos passíveis de legítima exculpação, em face da dinâmica social e da con­
seqüente multiplicidade de situações que podem surgir na prática. Segundo, por­
que a possibilidade de reconhecimento de uma causa geral de exculpação por ine­
xigibilidade de conduta diversa está plenamente de acordo com o caráter garanti-
dor do princípio de culpabilidade. Terceiro, porque admitir que só por meio de lei
se possa reconhecê-la é a um tempo votar reverência desmedida ao legislador,
expressando uma desconfiança, também desmedida, à atuação do jüiz, ignorando
que interpretar é criar direito, inevitavelmente, dada a irredutível margem de livre
apreciação judicial (Larenz), de sorte que confunde, em última análise, lei e direito.
Finalmente, o princípio da divisão de poderes, que não é um fim em si mesmo,
nem absoluto, há de estar a serviço da realização dos valores constitucionais fun­
damentais, em especial a dignidade da pessoa humana (CF, art. l s, III).

5.1. Inim putabilidade decorrente de alienação mental

5.1.1. Significado e pressupostos

Dispõe o art. 26, caput, do Código, que “é isento de pena o agente que, por
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo

27 D erecho penal, cit., p. 961.


28 Nesse sentido, Damásio: "a aplicação da teoria da inexigibilidade de conduta diversa com o causa suprale-
gal de exclusão da culpabilidade en con tra apoio na integração da lei penal. V im os que o D ireito Penal
positivo possui lacunas. Havendo omissão legislativa n o co n ju n to das norm as penais não incrim ínadoras,
e não havendo o obstáculo do princípio da reserva legal, a falha pode ser suprida pelos processos determi­
nados pelo art. 4a da LICC: a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. S e o caso é de inexi-
gibilídade de conduta diversa e não encontrando o juiz norm a a respeito no direito positivo, pode lançar
mão da analogia para absolver o agente” (Direito penal, cit., p. 480).
29 Nesse sentido, decisão do Tribunal Regional Federal, 2a Região (Ap. 1999.02.036277-3/RJ, 3 a T ., rei. fuíz con­
vocado G uilherm e D refendlhaeler, j. l ü-12-1999, DJU, 27 jun. 2000, p. 228): “uso de passaporte falso (art.
3 0 4 do CP). Inexigibilidade de conduta diversa, causa supralegal de exclusão da culpabilidade. I - Utilizaçao
de passaporte falso para perm itir ingresso nos Estados Unidos da Am érica por pessoa à procura de melhores
oportunidades e condições de vida. II - Cabe ao juiz distinguir situações perigosas à ordem e à segurança jun*
dica daquelas que configuram meros ‘desvios de conduta'. Precedente. III - Conduta que, apesar de adequa­
da ao modelo legal do art. 304, do CP, não m erece resposta penal. Não é justo nem ju ríd ico responsabilizar
penalm ente o agente quando, nas circunstâncias, não lhe era exigível conduta diversa. IV — Recurso conhe"
cido, porém improvido". De modo similar, acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de M inas Gerais-
"Tóxico. Tráfico. Coação M oral Irresistível. Configuração. Caso Concreto. Sentença confirm ada. Diante do
quadro fático do caso, em que se mostra ré uma pobre m ulher, catadora de papéis e latinhas de cerveja, fliae
de dois filhos pequenos, moradora de casebre da periferia, refém do ex-am ásio e trafican te, que a obrigava®
guardar e com ercializar a droga, sob ameaça de tomar o filho, conform e provado nos autos, é de se confi*'-
mar a sentença de primeiro grau, que reconheceu a figura da coação irresistível em favor da acusada’ .
D ireito Pen al - Parte G eral

da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato


ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Compreende-se que assim seja, porque, se o direito penal, por meio da comi-
nação e da execução da pena, pretende, em caráter geral e especial, motivar seus
destinatários a não delinqüirem, segue-se que semelhante tarefa não pode ser per­
seguida por meio da punição de alienados mentais, porque, privados de discerni­
mento, são incapazes de tomar a norma jurídico-penal como referência para seus
comportamentos. Castigar alienados mentais seria enfim castigar inutilmente,
qualquer que seja o fim que se assinale à pena, em franca e aberta oposição ao prin­
cípio da proporcionalidade.
Mas a inimputabilidade não é exclusivamente determinada pela condição de
alienado mental, porque o Código adicionou a esse critério dito biológico outro de
natureza psicológica - o chamado critério biopsicológico: a incapacidade de, em
razão da doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado,
entender o caráter ilícito do fato. Por conseguinte, não basta que o agente seja men­
talmente enfermo; é preciso ainda que tal estado de perturbação da saúde mental o
prive de discernimento, não podendo, em conseqüência, distinguir entre o legal e o
ilegal. Todavia, há quem considere que entender o caráter ilícito do fato e poder atuar
conforme este entendimento é algo que “não admite uma resposta empírica”.30
É de convir ainda quanto à impropriedade da expressão “método biopsicoló­
gico”, porquanto em realidade nem o estado é biológico - se nalguns casos o fato
está biologicamente fundamentado - nem a capacidade é psicológica - mas uma
construção normativa, de sorte que se trata, mais exatamente, de um método psí-
quico-normativo ou psicológico-normativo: o psicológico se refere aos estados psí­
quicos capazes de comprometerem a capacidade de compreensão, enquanto o nor­
mativo diz respeito à capacidade, que não é um estado psíquico, mas uma atribui-
çâo.31 Além disso, muitos transtornos de consciência (v. g„ estado passional inten­
so, oligofrenia normal-psicológica, anomalia psíquica grave, que compreende todas
as psicopatias graves, as neuroses e as anomalias dos instintos) não se devem a
manifestações de deficiências corporais orgânicas (biológicas); tampouco a consta­
tação da capacidade de atuar de outro modo é um dado psicológico, mas essencial­
mente normativo.32
Por “doença mental”,33 expressão a ser tomada no sentido mais amplo, de
forma a compreender toda e qualquer alteração mórbida da saúde mental apta a
comprometer, total ou parcialmente, a capacidade de entendimento do seu porta­
dor, como esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, psicose alcoólica, paranóia,

30 K. S ch n eid er apud R o xin, D erecho penal, cit., p. 836.


Jakobs, D erecho penal, cit., p. 630.
32 R o xin, D erecho penal, c it., p. 823.
33 Segundo G oodw in, “nem os advogados nem os m édicos conseguiram desen volver, seja separada, seja co n ­
ju n ta m e n te, um a defin ição rígida de insanidade pela sim ples razão de que não existe n en h u m a” (apud
M estieri, Manual, cit., p. 169).
Paulo Queiroz

epilepsia, demência senil, paralisia progressiva, sífilis cerebral, arteriosclerose cere­


bral, histeria etc.,34 pouco importando a causa geradora de semelhante estado, se
natural ou tóxica (v. g„ uso de drogas lícitas ou ilícitas), por exemplo.
Já o desenvolvim ento m ental in com pleto referido no dispositivo não atinge,
em primeiro lugar, os menores de dezoito anos, já que o art. 27 os declara de forma
absoluta penalmente inimputáveis, independentemente do nível de maturidade
que alcancem. Restam, assim, todos aqueles que, por qualquer razão, não tenham
atingido, após completar dezoito anos, “desenvolvimento mental completo”, co­
mo, por exemplo, os silvícolas, os surdos-mudos, dentre outros, desde que nessa
condição não tenham de fato adquirido discernimento pleno. Vale dizer: a inim­
putabilidade de tais sujeitos deverá ser aferida caso a caso, conforme o grau maior
ou menor de maturidade e socialização. Repita-se: o Código adotou-método psí-
quico-normativo. >
Finalmente, o “desenvolvimento mental retardado” é o estado de pessoas por­
tadoras de algum distúrbio ou transtorno mental, privados, total ou parcialmente,
da capacidade de autodeterminação.
No caso de prática de crime definido na Lei de Droga (Lei n° 11.343/2006), se
a inimputabilidade decorrer do uso de droga ilícita, o agente ficará isento de pena,
podendo o juiz submetê-lo a tratamento médico adequado (art. 45); se semi-impu-
tável, reduzir-se-á a pena de um terço a dois terços (art. 46).

5.1.2. Efeito

O reconhecimento da alteração mórbida da saúde mental far-se-á por meio de


perícia médica, em que o perito diagnosticará a sanidade mental do autor e seu
nível de comprometimento à época do fato, cabendo ao juiz, analisando as conclu­
sões do laudo pericial, decidir quanto à capacidade de culpabilidade do sentencia­
do, podendo divergir da própria perícia, evidentemente, se dispuser de elementos
para tanto.
Reconhecida a inimputabilidade, que deverá ser contemporânea da prática do
crime, e não anterior ou posterior a ele, ao inimputável será aplicada medida de
segurança (CP, art. 97), obviamente que apenas quando não concorram em seu
favor causa de exclusão de tipicidade, de antijuridicidade e também de culpabilida­
de, segundo pensamos. Tampouco terá lugar a aplicação de medida de segurança se
o crime já tiver sido atingido por qualquer causa de extinção de punibilidade (CP.
art. 107, c/c o art. 96, parágrafo único), a exemplo da prescrição e da decadência.
Enfim, a imposição de medida de segurança exige, à semelhança da pena, em nome
do princípio da igualdade, a presença de todos os pressupostos da punibilidade (fato
típico, ilícito e culpável) com exceção da imputabilidade, unicamente.

34 M irabete, Aíanuai, cit., p. 211.


D ireito P en al - Parte G eral

5.1.3. Redução de pena no caso de imputabilidade diminuída


Verificando-se que o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou
de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era, ao tempo da ação ou
da omissão, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determi­
nar-se de acordo com esse entendimento (CP, art. 26, parágrafo único), o juiz pode­
rá optar (CP, art. 98), conforme seja mais recomendável ao caso, entre aplicar pena
ou medida de segurança (sistema vicariante), não podendo aplicar ambas cumula­
tivamente (sistema binário, abolido pela reforma de 1984). A imputabilidade ou
capacidade de culpabilidade diminuída não é, todavia, uma forma de “semi-impu-
tabilidade”, pois o sujeito é (ainda) capaz de compreender o caráter injusto do fato
e de atuar conforme essa compreensão.35 Na hipótese de optar pela aplicação da
pena, deverá reduzi-la de um a dois terços, obrigatoriamente.
Também no caso de superveniência de doença mental ao cometimento do
crime, o agente será submetido à medida de segurança.

5.2. Menoridade penal


Por expressa determinação constitucional, “são penalmente inimputáveis os
menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial” (CF, art. 228; CP, art.
27; Lei ng 8.069/90, art. 104). A legislação especial a que se refere o texto é a Lei ne
8.069/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Mais do que em qualquer outro lugar, evidencia-se no particular o caráter
essencialmente político do direito penal, capítulo que é da anatomia política,36 uma
vez que presentemente menores de dezoito anos (15, 16, 17) têm em geral, à seme­
lhança dos maiores (19, 20, 21), plena capacidade de discernir entre o lícito e o ilí­
cito, de sorte que, ao se adotar um tal critério objetivo de imputabilidade, mais do
que à maturidade do sujeito, atende-se a uma questão de conveniência político-cri­
minal. O decisivo não é, portanto, saber se o menor de dezoito anos é ou não capaz
de autodeterminação, mas se é socialmente útil e politicamente recomendável cas­
tigar penalmente antes dessa idade ou só a partir dela.
Ao estabelecer a maioridade penal somente a partir dos dezoito anos, o legis­
lador adotou critério puramente psíquico, pouco importando se o agente era “ao
tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (CP, art. 26). Convém
saber, exclusivamente, se, ao tempo do crime (ação ou omissão), e não ao tempo da
consumação (resultado) ou do julgamento, completara dezoito anos.
Tratando-se, assim, de presunção legal absoluta de inimputabilidade, não
interessa ademais se o autor adquiriu a maioridade civil na forma da lei (v. g., casa­
mento) ou se é superdotado, multi-reincidente etc.

35 R o xin, D erecho penal, c it., p. 839.


36 A expressão é de Foucault.
Paulo Queiroz

Se o autor for menor de dezoito anos à época do crime, responderá então por
ato infracional (ECA, art. 103) - conduta descrita como crime ou contravenção
ficando sujeito às medidas sócio-educativas previstas no art. 112 do ECA, cuja
forma mais dura (a internação) sujeita-se, dentre outros, aos princípios de excep-
cionalidade e brevidade, não podendo, em nenhuma hipótese, exceder a três anos,
sendo compulsória a liberação aos vinte e um anos de idade, conforme dispõe o
ECA, art. 121 e parágrafos.

5.3. Coação moral irresistível (CP, art. 22)

Embora por coação se deva entender o emprego de violência física (vis abso­
luta) ou m oral (vis compulsiva) para constranger alguém a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa, somente a coação moral irresistível constitui autêntica causa de
exclusão de culpabilidade, uma vez que quem atua sob coação física irresistível não
pratica sequer uma ação típica, seja por ausência de vontade, seja por não existir
relação causai entre o fato praticado e a atuação do coagido, que assim é mero ins­
trumento em mãos do autor da coação (autor mediato). Portanto, enquanto o coa­
gido físico pratica uma não-ação, isto é, um comportamento atípico, o coagido
moral comete fato típico, antijurídico, mas inculpável, em virtude da inexigibilida­
de de conduta diversa. Em ambos os casos, porém, o autor da coação responderá
pelo ato, pois, nos termos do art. 22, segunda parte, do Código Penal, só é punível
o autor da coação (autoria mediata). No caso de coação, física ou moral, resistível,
o fato será típico, ilícito e culpável, punível, enfim, mas com pena atenuada.
Na coação moral irresistível, exercitável por meio de intimidação grave, como
ameaça de revelar segredo ou de matar alguém, o coagido é efetivamente o autor
de uma ação típica e antijurídica, mas inculpável, uma vez que não atua livremen­
te, devendo, em conseqüência, responder pelo crime o autor da coação unicamen­
te, que também sofrerá a incidência da agravante prevista no art. 62, II, do Código.
De notar que ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas graves para
configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena, devendo tratar-se de
mal efetivamente grave e iminente, sendo indiferente que se dirija ao próprio coa­
gido ou a alguém de suas ligações afetivas.37
Naturalmente que a verificação da gravidade da coação e de sua resistibilida-
de há de ser feita concretamente, segundo a natureza e a importância dos interes­
ses em jogo, conforme o princípio da proporcionalidade, bem assim a capacidade
de resistência do coagido, em especial sua sensibilidade, não bastando tomar como
referência para tanto, ao contrário do que sustenta Hungria,38 o h o m o medius, sob
pena de se punir alguém com base e a partir de uma simples ficção, passando a pena

37 Cezar Bitencou rt, Manual, cit., p. 313.


38 Coinentáríos, cit., p. 258.
D ireito P en al - P arte Geral

a ter caráter puramente exemplificador, em prejuízo da dignidade da pessoa huma­


na, culpando um inculpável.
Necessariamente a coação irresistível exige três protagonistas: autor da coação
(coator), coagido (agente que sofre a coação) e vítima (terceiro que sofre as conse­
qüências da ação do coagido), uma vez que, se o coagido for a própria vítima, have­
rá, simplesmente, um crime contra esta, e se o coagido eventualmente opuser resis­
tência contra o coator, poderá ocorrer legítima defesa inclusive.
Damásio considera que, além de o coator responder pelo crime com a agra­
vante do art. 62, II, deverá também responder por constrangimento ilegal contra o
coagido (CP, art. 146), de sorte que, se, por exemplo, A, sob ameaça de morte, cons­
trange B a lesionar a integridade física de C, A responderá pelos crimes de lesão
corporal e constrangimento ilegal, em concurso formal (art. 70), com a incidência
da agravante referida.39 Mas semelhante interpretação não procede, porque impor­
ta bis in idem , devendo A, no exemplo dado, responder unicamente pelo crime de
lesão corporal com a agravante genérica do art. 62, II. Pela mesma razão, também
não pode incidir o art. l s, I, b, da Lei ne 9.455/97: constranger alguém com empre­
go de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental para
provocar ação ou omissão de natureza criminosa.
Tratando-se de coação resistível, seja física, seja moral, porque superável sem
sacrifícios extraordinários, haverá concurso de agentes (punível), podendo-se invo­
car em favor do coagido a atenuante do art. 65, III, c, primeira parte, do CP, exclu­
sivamente.
Por fim, em tese é possível que o coagido se encontre em uma situação de erro,
ocorrendo coação moral putativa.

5.4. Obediência hierárquica (CP, art. 22)

Também exclui a culpabilidade o estrito cum prim ento d e ordem não m an ifes­
tam ente ilegal d e superior hierárquico, entendendo-se por ordem hierárquica a
manifestação de vontade do titular de uma função estatal a um funcionário que lhe
é subordinado, para que realize determinada ação ou omissão.40 Somente haverá a
exclusão de culpabilidade quando o subordinado atuar rigorosamente dentro dos
limites da ordem determinada, pois do contrário responderá pelo excesso.
A natureza jurídica do instituto é ambígua, porque, embora a doutrina o tenha
como uma forma especial de erro de proibição,41 pois quem cumpre ordem hierár­
quica não manifestamente ilegal supõe praticar fato autorizado pela lei, carecendo,
assim, da consciência do injusto, não se pode ignorar que o subordinado em tais

39 Direito penal , c it., p. 490.


40 ,
Frederico M arques, Tratado cit., p. 309.
41 Em sentido co n trário , Jesch eck , para quem não se trata de um a v arian te do erro de proibição, m as de um a
causa de exculpação de caráter próprio ( Tratado, c it., p. 449).
Paulo Queiroz

casos encontra-se também no estrito cumprimento - putativo - de dever legal, uma


vez que imagina que, ao obedecer à ordem, está cumprindo seu dever legal de fun­
cionário subordinado. Assim, por exemplo, pode invocar a excludente de culpabi­
lidade o inexperiente policial que, a mando de Delegado de Polícia, realiza prisões
ilegais, como fora de flagrante (concurso de agentes). A obediência hierárquica,
para ensejar a excludente, exige o concurso dos seguintes requisitos: a) proceder de
autoridade competente; b) ter o subordinado atribuições para praticar o ato; c) não
ser a ordem manifestamente ilegal.
Cuidando-se de ordem manifestamente - claramente - ilegal, não haverá
exclusão de culpabilidade, uma vez que o seu executor atua com plena consciên­
cia do caráter ilícito do ato cuja execução se promove. Assim, não pode invocar a
estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal o policial que, a mando de
seu superior, pratica homicídio, extorsão, roubo etc., embora possa em tese invo­
car coação moral, se for o caso. Tratando-se de servidor militar, cumpre esclare­
cer que, embora não lhe seja dado questionar a legalidade da ordem, visto ter o
dever de obediência, podendo a desobediência configurar insubordinação (CPM,
art. 163) inclusive, não está ele obrigado a cumprir ordens manifestamente crimi­
nosas (art. 38, § 2Q).
Só a hierarquia decorrente de relação de direito público entre superior e infe­
rior pode ensejar a excludente prevista no art. 22, não se compreendendo aí a deri­
vada de relações privadas, como relações de trabalho, religiosas etc., que podem
isentar de culpa por motivo diverso: coação moral irresistível, inexigibilidade de
conduta diversa etc.
Reconhecida a inculpabilidade do subordinado, responderá pelo ato o supe­
rior hierárquico autor da ordem manifestamente ilegal (autoria mediata). , ;
Por fim, também aqui é possível que o inferior hierárquico se encontre numa
situação de erro, ocorrendo obediência hierárquica putativa.

5.5. Embriaguez

A embriaguez pode ser voluntária (dolosa ou culposa) ou involuntária (aci­


dental). No primeiro caso, o agente livremente se dispõe a ingerir bebida alcoólica
ou substância de efeitos análogos (drogas, em geral), vindo, em conseqüência, a se
intoxicar, perdendo, total ou parcialmente, a capacidade de discernimento. Diz-se
dolosa - ou voluntária, segundo o Código - quando o autor ingere a substância com
a intenção de embriagar-se; culposa, quando, sem pretender embriagar-se, chega a
tal estado por imoderação, imprudentemente.
Já na embriaguez involuntária, porque resultante de caso fortuito (v. g., des­
conhece que determinada substância produz embriaguez) ou força maior (v. g-, &
constrangido à embriaguez), o estado de inconsciência é imprevisível e inevitável,
por isso que inculpável, se completa.

A
D ireito Penal - Parte G eral

5.5.1. Embriaguez involuntária

De acordo com o Código, só a embriaguez involuntária (caso fortuito ou força


maior) conduz em princípio à inculpabilidade do agente, desde que completa.
Nesse sentido, dispõe o art. 28, § 1-, que “é isento de pena o agente que, por
embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato
ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Portanto, só há exclusão
da culpabilidade por embriaguez quando o autor, em razão da embriaguez (invo­
luntária e completa), ficar inteiramente privado da faculdade de discernir entre o
lícito e o ilícito.
Tratando-se, porém, de embriaguez involuntária incompleta, quando o autor
mantém certa capacidade de autodeterminação, a culpabilidade subsistirá, caben­
do exclusivamente a diminuição da pena de um a dois terços, conforme dispõe o
Código (art. 28, § 2e): “a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente,
por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior; não possuía, ao
tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

5.5.2. Embriaguez voluntária

Contrariamente, na hipótese de a embriaguez ser voluntária (dolosa ou culpo­


sa), ainda que completa, não haverá isenção de pena mesmo que ao tempo da ação
o agente estivesse inteiramente privado de discernimento, já que, segundo o
Código, não exclui a imputabilidade penal “a embriaguez, voluntária ou culposa,
pelo álcool ou substância de efeitos análogos” (art. 28, II).
Mas isso não quer dizer que sempre que o agente se embriagar dolosamente
responderá por crime doloso, nem que o imprudente sempre responderá por crime
culposo, pois em realidade responderá por crime doloso ou culposo, conforme
tenha agido com dolo ou culpa, podendo ocorrer, inclusive, como é comum (v. g.,
crimes de trânsito), de, embora embriagado dolosamente, praticar crime culposo,
bem como, embriagado culposamente, vir a cometer crime doloso.
Cumpre notar ainda que, na hipótese de imprevisibilidade e inevitabilidade
do fato, o autor não responderá penalmente, mesmo que se encontre em estado de
embriaguez voluntária (completa ou não), sob pena de responsabilização penal
objetiva, situação incompatível com o texto constitucional. Assim, por exemplo,
não responde penalmente o agente que vem a atropelar um pedestre imprudente
que avance o sinal vermelho, restando provada a inevitabilidade do acidente, ainda
que o condutor do veículo estivesse sóbrio. E que não existe nexo causai entre o
estado de embriaguez e o acidente provocado.
Enfim, o só fato de achar-se alguém embriagado não significa que responderá
necessariamente por crime, de sorte que o decisivo é verificar em cada caso se o
Paulo Queiroz

agente se houve com dolo ou culpa.42 Nada impede ademais que o autor possa invo­
car em seu favor, a depender da hipótese, a presença de uma causa de justificação
(legítima defesa, estado de necessidade etc.) ou causa excludente de culpabilidade
(coação moral irresistível, erro de proibição etc.). Em conclusão, o art. 28, II, do
Código, de conformidade com o princípio da culpabilidade, deve ter a seguinte
interpretação: a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade
penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por culpa depende, necessaria­
mente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo res­
pectivo no comportamento do autor.43
Sintetizando: a exclusão da culpabilidade por embriaguez somente ocorrerá na
hipótese de embriaguez involuntária completa; nos demais casos, inclusive embria­
guez involuntária incompleta, o fato será culpável, se previamente típico e ilícito.
Mas isso não significa que sempre que o agente se achar em estado de embriaguez
voluntária será necessariamente culpável, uma vez que poderá se valer de outras
causas excludentes de culpabilidade (erro de proibição inevitável, coação moral irre­
sistível etc.), além de excludentes de tipicidade e ilicitude, eventualmente.
Por último, cuidando-se de embriaguez preordenada - espécie de embriaguez
voluntária dolosa, em que tem plena aplicação a teoria actio libera in causa (ação
livre na causa) - , em que o agente propositadamente se coloca nessa situação para
cometer o delito, responderá, com maior força de razões, por crime doloso, inci­
dindo, além disso, a agravante prevista no art. 61, II, 1, do Código.
Finalmente, a embriaguez reconhecidamente patológica equipara-se à doença
mental, aplicando-se ao inimputável a norma do art. 26 do CP.

5.6. Emoção e paixão

Prevê o Código (art. 2 8 ,1) que não excluem a imputabilidade penal a emoção
e a paixão - amor, ódio, medo, prazer, cólera - , previsão, aliás, absolutamente des­
necessária, mesmo porque são inimagináveis crimes sem emoção ou paixão, maior
ou menor, mais ou menos reprovável.44 No entanto, a influência de violenta emo­

42 Convém evitar, assim, com o assinala M ir Puig, o equívoco consistente em pensar que o d elito com etido
sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariam ente (dolosam ente), ou
que a embriaguez culposa supõe que o delito que se com ete nesse estado haja podido p rev er-se e se deva
atribuir à imprudência. A em briaguez voluntária (não preordenada) pode dar lugar a um fato não só não
querido previam ente com o nem sequer previsto ou previsível; e, do m esmo modo, a em briaguez culposa
tam bém pode m otivar um fato imprevisível. Em suma: que o sujeito se tenh a em briagado volu ntariam en­
te ou por imprudência não significa que, se pratica delito em tal estado, haja querido o fato nem que este
era previsível, pois se pode querer ou prever a embriaguez sem qu erer nem ser previsível que se vai pro­
duzir a lesão de um bem juríd ico (Derecho penal, cit., p. 605).
43 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 225.
44 C ritica a disciplina do Código, entendendo que o legislador deveria ser mais sensível aos problem as que
podem derivar da em oção e da paixão, M estieri {Manual, cit., p. 178-179). Idem, Juarez C irino, para quem
“a em oção, com o gênero, e a paixão, com o espécie do gênero - ou seja, em oção extrem ada - são forças pri­
márias das ações humanas, determ inantes m enos ou mais inconscientes das ações individuais, cuja in ev i­
D ireito Penal - Parte G eral

ção provocada por ato injusto da vítima constitui circunstância atenuante (CP, art.
65, III, c, última parte). Nalguns crimes específicos (v. g., homicídio, lesão corpo­
ral) pode ainda ocorrer diminuição de pena, como no homicídio privilegiado (CP,
art. 121, § 1Q), sempre que for cometido sob o domínio de violenta emoção logo em
seguida à injusta provocação da vítima.
Emoção é a agitação de sentimento, abalo afetivo ou moral, turbação, como­
ção; paixão é sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão, gran­
de entusiasmo por alguma coisa.45 A doutrina as distingue dizendo que a emoção é
um estado afetivo de momentânea perturbação da personalidade, ao passo que a
paixão é uma emoção-sentimento, isto é, um processo afetivo duradouro.46
Eventualmente a emoção e a paixão poderão assumir caráter mórbido apto a
comprometer, total ou parcialmente, a capacidade de autodeterminação do autor,
hipótese em que incidirá o art. 26 do Código.

tável in fluên cia nos atos psíquicos e sociais do ser hum ano precisa ser com patibilizada com o princípio da
culpabilidade, em futuros projetos p o lítico-crim in ais brasileiro s” {A m oderna teoria , cit., p. 222).
45 Dicionário Houaiss, R io de Jan eiro: Ed. Objetiva/Instituto A n tô n io H ouaiss, 2 001.
46 Fragoso, Lições , cit., p. 202.
D ireito Penal - Parte G eral

Capítulo XII
Concurso de Crimes

O Código prevê três formas de concurso de crimes: concurso formal, material


e continuidade delitiva, situação que não se confunde com o chamado conflito apa­
rente de normas a que já nos referimos: aqui há vários crimes; lá, crime único.
Naturalmente que essa distinção entre unidade e pluralidade de crimes não pree-
xiste à interpretação, mas é dela resultado, motivo pelo qual a mesma situação ora
poderá ser entendida como unidade, ora como concurso de crimes. E tampouco há
incompatibilidade entre concurso aparente e concurso de crimes.

1. Concurso m aterial (ou real): pluralidade de ações e crim es

Ocorre o concurso material quando o agente, mediante mais de uma ação ou


omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, situação em que as penas são
aplicadas cumulativamente (art. 69). Na primeira hipótese, de prática de crimes
idênticos, fala-se de concurso homogêneo (v. g., vários furtos); na segunda, de con­
curso heterogêneo, porque diversos os crimes (v. g., furto e homicídio).
A expressão ação ou omissão deve ser tomada no sentido de conduta, de sorte
que, se o agente subtrai num mesmo ônibus bens de vários passageiros, pratica
uma única ação de subtrair, isto é, um único crime de furto, não existindo concur­
so de delitos.
Havendo concurso material, as penas dos vários crimes são somadas (critério
do cúmulo material), não podendo sua duração exceder a trinta anos (CP, art. 75).

2. Concurso form al (ou ideal): unidade de ação e pluralidade


de crim es

Já no concurso formal (CP, art. 70), menos freqüente, o agente pratica uma
única ação ou omissão (= uma única conduta), causando, no entanto, dois ou mais
crimes. Exemplo: A atira contra B, vindo a ofender, porém, B e C; ou, dirigindo
^prudentemente, vier a causar morte culposa de várias pessoas.
Reconhecido o concurso formal, aplica-se ao agente a mais grave das penas
cabíveis, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de
um sexto até a metade (critério da exasperação), devendo o respectivo aumento
variar conforme o número de vítimas. Assim, se, no exemplo dado, B morre e C
sofre lesões corporais, aplicar-se-á a pena do homicídio doloso, com aumento
(decorrente do concurso) que variará de um sexto até a metade. Vale dizer: dife­
Paulo Queiroz

14
rentemente do concurso material, no concurso formal as penas dos vários crimes
não são somadas, devendo ser aplicada uma única, mas com o aumento decorrente
do concurso.
É possível, porém, excepcionalmente, a aplicação ao concurso formal da regra
do concurso material. Tal ocorre quando os vários crimes, embora decorrentes de
uma ação única, resultam de desígnios autônomos (concurso formal imperfeito),
isto é, quando o agente quer praticar, mediante uma ação, os vários crimes, e não
um só, dolosamente. Assim, se, no exemplo antes referido, A agisse com dolo de
abater, com tiro de fuzil, ambas as vítimas, B e C . E o que dispõe o art. 70, final: “as
penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou a omissão é dolosa e
os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no
artigo anterior”.
Cumpre assinalar, por fim, que nalgumas hipóteses a aplicação da regra do
concurso formal poderá resultar numa apenação mais severa do que aquela que
seria cabível no concurso material (concurso material benéfico). Assim, se, confor­
me o exemplo antes referido, resultando homicídio (B) e lesão corporal leve (Q , se
aplicasse a pena do homicídio doloso (digamos 12 anos de reclusão) com aumento
de metade, chegar-se-ia a uma pena de dezoito anos de reclusão, ao passo que, se
se aplicasse a regra do concurso material, resultaria uma pena de treze anos, já que
a lesão leve (art. 129) é punida com pena máxima de um ano de detenção, situação
bem mais favorável ao agente, não obstante a aplicação cumulativa de penas.
É para evitar tal incoerência que o Código determina, em respeito ao princí­
pio da proporcionalidade, que a pena do concurso formal não poderá exceder àque­
la que seria cabível para o concurso material (art. 70, parágrafo único).

3. Crime continuado: pluralidade de ações e unidade de crim e

Diz o Código (art. 71) que quando o agente, mediante mais de uma ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo,
lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havi­
dos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se
idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto
a dois terços.
O chamado crime continuado constitui, assim, uma forma de concurso mate­
rial (o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes),
mas o legislador, por motivos de conveniência político-criminal, tratou como se
fosse concurso formal, isto é, como se constituísse um só crime, cuidando-se de
uma ficção legal (unidade jurídica de ação). Em síntese: o crime continuado tem a
natureza de concurso material, mas recebe tratamento de concurso formal.
Semelhante equiparação tem por objetivo assegurar a efetividade do princípio
da proporcionalidade, pois, reconhecido o concurso material puramente, o agente
poderia sofrer em muitos casos pena absolutamente incompatível com a lesividade
D ireito Penal - P arte Geral

dos crimes praticados. Assim, por exemplo, a empregada doméstica que praticasse,
em dias distintos, furtos sucessivos, poderia ser castigada com penas altíssimas, se
se mantivesse a autonomia de cada crime. E para evitar tais excessos que o Código
consagra o instituto da continuidade delitiva.
Ainda hoje muitas são as críticas que lhe são feitas. Assim, Jescheck assina­
la que se trata de uma concessão imprópria, propugnando, inclusive, por sua
abolição.1 Também Stratenwerth afirma que carece de todo fundamento legal,
constituindo, do ponto de vista político-crim inal, um fenômeno altamente pro­
blemático.2
No entanto, fato é que o instituto do crime continuado é uma realidade que
se impôs e se consolidou histórica e juridicamente. Apesar disso, força é convir que
os critérios para sua delimitação são ainda bastante vagos e incertos, sendo mui
larga a margem de discricionariedade para o seu reconhecimento.
Conforme se verá, atualmente a continuação delitiva é possível inclusive
quando se tratar de crimes violentos contra vítimas diversas, estando assim revoga­
da a Súmula 605 do STF, anterior à reforma da nova parte geral de 1984, que não a
admitia nos crimes contra a vida.3

3.1. Requisitos

Tratando-se de uma forma especialíssima de concurso material, só se pode


cogitar de crime continuado diante de várias condutas, e não de uma única, ainda
que composta de uma pluralidade de atos, como no exemplo já citado da subtração
de bens de passageiros de um ônibus. Também por isso não se deve confundi-lo
com o crime habitual (v. g , bando ou quadrilha), em que há uma só conduta com­
posta de vários atos, não constituindo nenhum deles, isoladamente, crime algum,
tampouco se há de confundir com o crime permanente (v. g., seqüestro), em que
há um único delito, mas cuja consumação se protrai no tempo enquanto se man­
tém a vítima privada de liberdade.
Naturalmente que não se pode equiparar à categoria de crime continuado a
simples reiteração de crimes, pois, para a sua configuração, os crimes praticados
devem guardar entre si uma relação de interdependência ou de necessária sucessão,
de modo a que os subseqüentes possam ser havidos realmente como continuação
do primeiro, cuidando-se, por conseguinte, de situação excepcional, a ser aprecia­
da com muita prudência. Tem-se reconhecido, por exemplo, continuação por parte
do empresário que se apropria, durante meses seguidos, de contribuição previden-
ciária descontada dos seus empregados (CP, art. 168-A).

1 Tratado, cit., p. 6 5 2 -653.


2 D erecho pen al , cit., p. 353.
3 Súm ula 6 0 5 : não se adm ite a continuidade delitiva nos crim es con tra vida.
Paulo Queiroz

Para o reconhecimento da continuidade delitiva é necessário que haja homo­


geneidade entre as várias infrações, homogeneidade que deve ser aferida segundo
as condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes. Os crité­
rios para apreciação da continuidade são, pois, de ordem objetiva (teoria objetiva),
mas dificilmente se poderá reconhecê-la sem atenção ao dolo do agente (teoria sub­
jetiva). Tais circunstâncias devem ser apreciadas conjuntamente, já que formam
um todo, não tendo qualquer delas, por si só, valor decisivo, seja para afirmar o
concurso, seja para infirmá-lo.
Exige-se, além disso, que os crimes cometidos sejam da “mesma espécie”. Por
crimes “da mesma espécie” não se devem considerar, porém, exclusivamente, os
mesmos crimes, isto é, descritos num mesmo tipo penal (só furto ou só-esteliona­
to), como pretende parte da doutrina, mas todos os delitos que atentem contra o
mesmo bem jurídico. Assim, por exemplo, em tese é possível o reconhecimento de
continuidade entre furto, roubo e extorsão (crimes contra o patrimônio); entre
estupro e atentado violento ao pudor (crimes contra a liberdade sexual), em razão
da semelhança entre eles.

3.2. Pena

Reconhecida a continuidade, aplicar-se-á, à semelhança do concurso formal,


uma só das penas, necessariamente a mais grave das penas cabíveis, aumentada de
um sexto a dois terços. Não poderia ser outra a solução legal, visto que na continua­
ção delitiva vários crimes formam um só, fictamente. E um concurso material tra­
tado com concurso formal, como vimos.

3.3. Crime continuado específico

O Código prevê ainda que nos crimes dolosos contra vítimas diferentes, come­
tidos com violência ou grave ameaça à pessoa, o juiz poderá, considerando a culpa­
bilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como
os motivos e circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo (CP, art. 71, parágrafo único).
Trata-se, portanto, de uma forma mais severa de apenação do crime continua­
do, visto atentar contra bens jurídicos especialmente importantes (vida, liberdade
etc.). Portanto, além dos requisitos gerais já referidos, a continuidade específica
reclama os seguintes: a) crimes dolosos, ficando excluídos, em conseqüência, os
culposos; b) contra vítimas diferentes; c) com violência ou grave ameaça à pessoa,
entendendo-se como tal a violência física contra a pessoa, não bastando a violência
contra a coisa; d) circunstâncias judiciais favoráveis.
Obviamente que todos os requisitos hão de estar presentes, sem exceção,
pois do contrário, isto é, ausente qualquer deles, a hipótese será a de não ocor­
D ireito Penal - Parte G eral

rência da continuidade ou de aplicação do capu t do art. 71, que a pune menos


severamente.

3.3.1. Pena

Reconhecida a continuidade específica, a pena será aumentada até o triplo,


atendendo ao disposto no art. 59, quanto à dosimetria da pena, não podendo exce­
der logicamente àquela que seria cabível na hipótese de concurso material. Por isso
a remissão - do art. 71 - ao parágrafo único do art. 70.
Terceira Parte

CONSEQÜÊNCIAS
JURÍDICO-PENAIS DO CRIME
D ireito Penal - Parte G eral

I. Da Pena

1. Conceito, fins e lim ites

Pena é a privação ou a restrição de um bem jurídico imposta por um órgão


jurisdicional a quem tenha praticado uma infração penal (crime ou contravenção).1
Constitui, portanto, a conseqüência principal do delito ou, mais exatamente, a con­
seqüência principal do fato punível, ou seja, um fato típico, ilícito, culpável e que
não tenha sido atingido por causa de extinção da punibilidade (prescrição, deca­
dência etc.).
Formalmente, e só formalmente, a pena se distingue de outras sanções não
penais (civil, administrativa), é dizer, quanto aos pressupostos, pois, diferente­
mente da sanção administrativa (demissão, suspensão, advertência), por exemplo,
a resposta penal pressupõe o cometimento de um fato definido como crime. É
também basicamente quanto aos pressupostos que a pena se distingue da medida
de segurança: aquela pressupõe imputabilidade; esta, inimputabilidade. Apesar
disso, e conforme se verá mais adiante, não é de todo exato dizer, como freqüen­
temente se diz, que a pena pressupõe culpabilidade; a medida de segurança, peri-
culosidade.
Pressupondo o cometimento de um mal ou algo que assim se supõe (o delito),
a pena constitui, em essência, uma retribuição, um castigo.2 Distinta é a finalidade
declarada, porém: prevenir, subsidiariamente, em caráter geral e especial, compor­
tamentos criminosos.
Pensar o sentido e os fins da pena é, portanto, pensar o sentido e os fins do
direito penal mesmo.3 A história das teorias da pena - disse Mauiach - é uma his­
tória universal do próprio direito penal;4 afinal, a pena constitui a resposta penal
por excelência.
Por isso, remete-se o leitor aos Capítulos II e III (primeira parte), quanto aos
fins e limites do direito penal, que são em última análise os limites e fins do pró­
prio Estado.

1 G arcía-P ab lo s, D erecho penal, cit., p. 64.


2 Assim con sid era a doucrina. Nesse sentid o, M aurach, para qu em a pena é um m al que se im põe ao d e lin ­
q ü en te, cu ja essência é a retribuição ( D erecho penal > c it., p. 85 e s.); G arcía-Pablos, que en ten d e a pena
com o um m al de natureza retributiva, e para qu em segue sen do válido o co n ceito de G rocio de que “poena
est m alus passionis, quod in flingitu r propter m alum actio n is” (D erech o p en a i, cit., p. 6 4 -6 5 ); Cobo/Vives,
que co n ceitu am a pena com o castigo co n sisten te na privação de um bem ju ríd ico {D erecho penal, c it., p.
7 2 3 ). Cum pre dizer, porém, com R o xin, que as in stitu içõ es juríd icas não têm um a “essên cia” in d ep en d en ­
te de seus fin s, senão que essa “essên cia” se determ in a m ed iante o fim que com ela se q u er alca n ça r
{D erecho penal, cit., p. 9 8 -99).
3 S ob re o assunto, Paulo Q ueiroz, F u n çõ es do direito penal, cit. Idem , G am il Fõppel, A função da pena, cit.
4 D erecho penal, cit., p. 86.
Paulo Queiroz

II. Pena de Prisão

1. Falência da pena de prisão?

A prisão enquanto pena, diferentemente da prisão como providência cautelar


destinada a assegurar a futura execução da sentença,5 antiqüíssima, remonta aos
séculos XVI e XVII. Hoje, como há mais ou menos dois séculos, continua sendo a
principal pena prevista nos Códigos Penais, de modo que é ainda hoje a espinha
dorsal dos sistemas penais contemporâneos.
Apesar da longevidade e larga utilização nos dias atuais, já há tempo tomou-
se um verdadeiro truísmo falar em falência da pena privativa da liberdade.6
Afirma-se mesmo que a reforma da prisão - e, pois, a crítica que se lhe faz - é mais
ou menos contemporânea da própria prisão.7
Ferrajoli, crítico contundente da pena de prisão, escreve a propósito que o cár­
cere é uma instituição ao mesmo tempo antiliberal, desigual, atípica, extralegal e
extrajudicial ao menos em parte, lesiva para a dignidade das pessoas, penosa e inu­
tilmente aflitiva, motivo pelo qual propõe sua abolição gradual, bem como a ime­
diata redução da pena máxima para dez anos de prisão,8 mesmo porque, além da
aflição corporal, a pena carcerária impõe uma aflição psicológica: a solidão, o iso­
lamento, a sujeição disciplinária, a perda da sociabilidade e da afetividade, que
resulta em perda também da própria identidade.9
Critica-a também, duramente, Fragoso, para quem, “como instituição total, a
pena necessariamente deforma a personalidade, ajustando-se à subcultura da pri­
são. A reunião coercitiva de pessoas do mesmo sexo num ambiente fechado, auto­
ritário, opressivo e violento, corrompe e avilta. Os internos são submetidos às leis
d e massa, ou seja, códigos dos presos, onde imperam a violência e a dominação de
uns sobre os outros. O homossexualismo, por vezes brutal, é inevitável. A delação
é punida com a morte. Conclui-se, assim, que o problema da prisão é a própria pri­
são, que apresenta um custo social demasiadamente elevado”.10
Argumenta-se ainda que educar para a liberdade em condições de não-liber-
dade não só é de difícil realização como constitui também uma utopia irrealizável

5 Não se deve confundir, obviam ente, a prisão enquanto pena, da prisão enquanto providência cau telar des­
tinada a assegurar a efetividade do processo (prisão em flagrante, prisão preventiva e tc.), pois a prim eira
constitui a própria execução da sentença penal condenatória transitada em julgado, ao passo que a segun­
da constitui um instrum ento processual penal destinado a assegurar-lhe a utilidade. D evo reconh ecer,
porém , que na prática as prisões cautelares têm -se convertid o em autênticas penas antecipadas, que per­
duram indefinidam ente.
6 Assim, G am il Foppel, A fu n ç ã o d a p e n a , cit.
7 Foucault, V igiar e p u n ir , cit., p. 209.
8 D e r e c h o y r a z ó n , cit., p. 413.
9 D e r e c h o y r a z ó n , cit., p. 412.
10 L iç õ e s , cit., p. 288.
D ireito P en al — P arte G eral

nas atuais condições de vida nas prisões.11 Por isso, o cárcere ordinariamente, longe
de reeducar ou ressocializar, em realidade, corrompe, embrutece, dessocializa.
Aliás, com alguma freqüência o agente continua a delinqüir mesmo preso.
Mas se de fato a pena privativa da liberdade faliu há tanto tempo - o que em
grande parte traduz a “falência” do próprio sistema penal - , como explicar sua
extraordinária longevidade?
M ichel Foucault tem uma explicação originalíssima para isso. Para ele, a
função real (oculta) da pena, ao contrário do que pregam os juristas, não é pro­
priamente combater a criminalidade, mas produzi-la. Por isso que, ao aparente­
mente fracassar, escreve Foucault, “a prisão não erra seu objetivo; ao contrário,
ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular
de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um
meio relativamente fechado, mas penetrável”, porque “ela contribui para estabe­
lecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e secreta­
mente útil - rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma
forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que
permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”.12 Por conseguinte,
se do ponto de vista das suas funções declaradas (oficiais) a pena é um fracasso
manifesto, do ponto de vista das funções ocultas a prisão é um grande sucesso, daí
a sua longevidade.

2. Limites do discurso “reform ista-liberal”

Portanto, não é sem razão que a prisão tem passado ao longo de sua existên­
cia por sucessivas reformas, merecendo destaque, presentemente, os institutos da
suspensão condicional do processo e da transação (Lei n5 9.099/95). Com o primei­
ro, permitiu-se que nos crimes de médio potencial ofensivo, isto é, punido pena
mínima não superior a um ano, o Ministério Público possa propor a suspensão do
processo por dois anos, findos os quais, havendo cumprimento regular das condi­
ções pelo denunciado, declarar-se-á extinta a punibilidade. No segundo caso,
admitiu-se a possibilidade de acordo entre as partes nos crimes de menor poten-

11 M unoz C onde, D e r e c h o p e n a l, cit., p. 124.


12 V ig iar e p u n ir , cit., p. 2 4 3 -2 4 4 . Lê-se, a propósito, no rom an ce R e s s u r r e iç ã o , de Tolstoi: “a o bjeção co ­
m um , de indagar o que se devia fazer com os ladrões e assassinos h á m uito tem po n ão tin h a para ele o m e­
n or sentid o. Com efeito, tal o bjeção teria um sentid o se os castigos tivessem dim inuído o núm ero de c ri­
m es ou corrigido os crim inosos; mas a exp eriên cia lh e provava que aco n tecia ju stam en te o con trário.
Depois de tantos séculos de encarniçada perseguição ao crim e, conseguiram os hom ens suprim i-lo ou,
m esm o, atenu á-lo? Longe de suprim ir, longe de atenuar, co n tribu íram ativ am en te para o desenvolver,
tan to depravando os prisioneiros pelas condenações, com o acrescen tan do à som a dos crim es dos con d e­
nados - crim es de ladrões e assassinos - os seus próprios crim es, os crim es desses crim in osos que são os
co n selh eiros do tribunal, procuradores, carrascos, juizes de in strução, policiais e co m itres” (T ecn o p rin t,
Cap. V I, III, p. 294).
Paulo Queiroz

314
ciai ofensivo, vale dizer, infração penal cuja pena máxima não exceda a dois anos.
Outra reforma importante foi introduzida pela Lei nQ9.714/98, que possibilitou a
aplicação de penas restritivas de direito a crimes cuja pena imposta não exceda a
quatro anos.
Ocorre que, apesar de tão importantes reformas, os cárceres só têm aumenta­
do seu contingente de presos. As reformas de hoje, como as de ontem, mero palia­
tivo para o problema da superlotação carcerária, são grandemente inócuas.
E por que o são?
Em primeiro lugar, porque a maioria esmagadora das prisões está composta de
presos não alcançados pelo processo despenalizador. Afinal, a maior parte dos in­
ternos está condenada por crimes patrimoniais: extorsão mediante seqüestro, latro­
cínio, roubo, furto, estelionato, condenados que ordinariamente não são beneficia­
dos pelas reformas, mesmo porque são com freqüência reincidentes. Outra parte
responde por crimes sexuais (estupro e atentado ao pudor), crimes contra vida
(homicídio), tráfico de drogas etc., em geral também excluídos das reformas.
Não bastasse isso, o surgimento da lei, em vez de contrair o sistema penal, fez
multiplicar uma infinidade de procedimentos sobre condutas insignificantes que
antes sequer chegavam aos juizes e tribunais.
Enfim, as medidas despenalizadoras têm uma clientela bastante específica e
restrita, pessoas que, antes mesmo das reformas surgidas a partir de 1995, já não
iam mesmo para as prisões, uma vez que eram contempladas com outros institu­
tos jurídico-penais (sursis, regime aberto, prisão domiciliar, comutação, indulto,
prescrição etc.). E se eventualmente passavam pela prisão, logo retomavam a
liberdade.
Outra razão - e mais importante - é que, apesar das reformas, continuamos a
insistir numa velha receita: o castigo (o sistema penal), isto é, mudamos a dose do
remédio, mas o remédio continua sendo rigorosamente o mesmo: o castigo. Dito de
outra forma: insistimos em buscar no sistema penal, seja tomando-o mais severo,
seja tomando-o mais brando, ao menos no que toca à pena, uma cura que ele, por
melhor que seja, não nos pode proporcionar, dadas as limitações estruturais de sua
atuação: seletividade (recruta sua clientela entre os miseráveis), conseqüencialida-
de (atua nas conseqüências, não nas causas dos problemas), excepcionalidade (atin­
ge um número reduzidíssimo de casos) etc.
È que em ambos os casos - maximizando ou minimizando o sistema de penas
- estamos a apostar numa intervenção não causai, mas conseqüencial, não etiológi-
ca, mas sintomatológica. Noutros termos: permanecemos dentro do círculo vicio­
so, que é histórico: crime/castigo, ainda quando suavizamos ou flexibilizamos o sis­
tema de penas, através do processo de despenalização. Significa dizer que não cas­
tigamos menos, castigamos melhor, isto é, aperfeiçoamos a forma de castigar; mas
insistimos apostando na filosofia do castigo, ou, para dizê-lo com Foucault, não se
pune menos, pune-se melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para
D ireito Penal - P arte Geral

punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no


corpo social o poder de punir.13
Como superar um tal círculo vicioso, de resultados tão pífios?
Em primeiro lugar, é preciso dar início a um radical processo de descrimina-
lização e não-criminalização, inclusive por meio da interpretação/aplicação crítica
do direito. Não se trata, porém, de descriminalizar condutas que o próprio tempo
já se encarregou de fazer letra morta, como seria a casa de prostituição, nem des­
criminalizar condutas sem dignidade penal, dada a mínima significação, como a
bigamia etc., mesmo porque descriminalizá-las significa tão-só decretar legalmen­
te uma descriminalização que já existe de fato.
Trata-se, ao contrário, de algo bem mais ambicioso: descriminalizar toda e
qualquer conduta cuja intervenção penal seja desnecessária ou inadequada, apesar
de eventualmente graves, a exemplo do aborto, do tráfico de drogas, dos crimes
ambientais etc., sobretudo porque no particular o sistema penal cria mais proble­
mas do que resolve, revelando-se criminógeno. Aliás, no que concerne ao chama­
do direito penal ambiental, razão assiste a Hassemer quando diz que “o direito
penal, considerando o seu papel no tocante à política ambiental, tem-se revelado
amplamente contraproducente. Se eu quisesse reformular esta mesma idéia de
maneira ainda mais radical, então diria: quando mais direito penal do ambiente,
menos proteção ambiental; quanto mais ampliarmos e agravarmos o direito penal
do ambiente, tanto mais estaremos a dar maus passos, pois que, a persistir nessa
senda, só viremos a produzir efeitos contrários aos pretendidos, ou seja, acabare­
mos contribuindo para inexorável diminuição da proteção efetiva do ambiente”,14
mesmo porque os grandes danos ao meio ambiente, como regra, são praticados com
o apoio ou com a conivência oficial, não configurando “atividades criminosas”, mas
“grandes empreendimentos”, de modo que o direito penal acaba por incidir, à
semelhança do que ocorre com a criminalidade tradicional, sobre situações absolu­
tamente secundárias, nas quais reina a total vulnerabilidade dos destinatários da
resposta penal, revelando-se discriminatória e arbitrariamente seletiva.
Será inútil, contudo, descriminalizar simplesmente, se se tolerar sem mais o
atual avanço do processo neocriminalizador, que demagógica e irracionalmente
tudo penaliza, de sorte que toda matéria tendente a criminalizar novos comporta­
mentos, que sem dúvida importa restrição de direitos, deveria necessariamente ser
objeto de lei complementar ao menos, até porque definir novos fatos como crimi­
nosos por meio de leis desnecessárias que enfraquecem e desacreditam as necessá-

!3 V ig iar e p u n i r , cit., p. 76.


14 A preservação do am b ien te através do direito penal, R e v is ta d o IB C C r im , São Paulo, n. 22, p. 2 8 , 1999.
Em sentido co n trário , en ten d en d o que a posição de H assem er e discípulos é equivocada e de co rte m uito
tradicion al, Sch ü n em an n , para quem o direito penal tem , em realidade, um papel fundam ental a desem ­
p enhar na proteção ao m eio am bien te ( T e m a s a c tu a le s y p e r m a n e n t e s d e i d e r e c h o p e n a l d e s p u é s d e i m i lê ­
n io , M adrid: T ecn o s, 2 0 0 2 , p. 2 0 3 e s.).
Paulo Queiroz

rias (Montesquieu) não significa prevenir os crimes que delas possam resultar, mas
tão-somente criar outros novos (Beccaria).
Descriminalizar, segundo um modelo de direito penal mínimo, não é suficien­
te, todavia, haja vista que direito penal mínimo não é em si solução, mas parte da
solução, já que não significa menos violência nem mais proteção, inevitavelmente.
E preciso ir muito além de um simples projeto descriminalizador e despenali-
zador. Inicialmente, cumpre eficientizar e democratizar as instâncias primárias de
controle social, a começar pelos órgãos administrativos (eficientização e democra­
tização do controle administrativo). Por exemplo, a proteção do meio ambiente, do
Sistema Financeiro Nacional, bem como a proteção do cidadão contra os abusos
praticados por autoridades públicas (tortura, corrupção) dependem .menos do
Judiciário, do Ministério Público, da Polícia - órgãos de atuação cirúrgica - do que
de um IBAMA forte e minimamente aparelhado, de um Banco Central indepen­
dente e minimamente transparente, de ouvidorias e corregedorias minimamente
eficientes e, sobretudo, da democratização do acesso (e participação) do cidadão às
instâncias administrativas de controle. Reformas políticas e administrativas -
estruturais - são inadiáveis, portanto.
Paralelamente, é fundamental criar as condições mínimas para que os cida­
dãos possam realizar suas potencialidades, assegurando-lhes o acesso à saúde, à
escola, ao trabalho, assegurando-lhes a igualdade de oportunidades. Em conclusão,
o controle da criminalidade tem pouco a ver com o controle penal, é dizer, a efeti­
va proteção do cidadão tem pouco a ver com a “proteção penal”.
Porque, como assinala Baratta, a necessidade de segurança dos cidadãos não é
só uma necessidade de proteção da criminalidade e de processos de criminalização,
pois a segurança dos cidadãos corresponde também à necessidade de estar e sentir-
se garantidos no exercício de todos os seus próprios direitos: direito à vida, à liber­
dade, ao livre desenvolvimento da personalidade e das suas próprias capacidades;
direito de expressar-se, de comunicar-se, direito à qualidade de vida, assim o direi­
to de controlar e influir sobre as condições das quais depende, em concreto, a exis­
tência de cada um. Enfim, a relação existente entre garantismo negativo - limites
ao poder punitivo - e garantismo positivo - assegurar as condições de poder viver
condignamente (realização dos direitos sociais) - eqüivale à relação que existe
entre política de direito penal e política integral de proteção dos direitos.15

15 La política crim in al..., R evista, cit., p. 4 8 -4 9 . Benthan já assinalava a propósito que “um bom legislador
deve cuidar mais em prevenir os crim es do que um despicar a Justiça, m áxim a trivial no dia de h o je , mas
que não deve ficar em palavras, já que tem os a fortuna de viver debaixo de um G overno C onstitucional;
para que se não diga que as leis humanas não têm senão escravos, porque não têm senão suplícios. O s tira­
nos gostam de sangue, nem se podem sustentar senão pela força, u ltim a r a tio reg u m , um bom G overno e
imagem de um pai, que não m ortifica, nem desterra seus filhos, senão depois de esgotar todos os m eios de
os poder em endar. Facilitai os meios de cada um poder ganhar a sua vida, desterrai a ociosidade, e os deli­
tos serão menos, educai a m ocidade; na boa educação e na paz e felicidade das fam ílias estão as sem entes
da felicidade geral” (T e o r ia das p e n a s leg a is e tratad o d o s so fism a s p o lít ic o s , São Paulo: Edijur, 2 0 0 2 , p. 13).
D ireito P en al - Parte G eral

No fundo, portanto, o discurso “reformista-liberal” - descriminalização de


condutas insignificantes ou simples despenalização - e o discurso “reformista anti-
liberal” - mais crimes, mais penas etc. apesar de movidos por propósitos distin­
tos, são igualmente funcionais e úteis à preservação e à expansão do sistema penal.
Porque, se no primeiro caso o sistema diminui nalgumas áreas, no segundo ganha
fôlego e se expande para outras tantas. A dose do remédio é diferente, ou ministra­
da de forma diferente, mas o remédio permanece o mesmo.
Castigar criminosos é necessário, mas não é o mais importante, porque pro­
blemas estruturais demandam soluções também estruturais. E preciso enfim ver o
crime para além dos criminosos, pois a criminalidade é um problema sério demais
para ser enfrentado apenas com direito penal. Além disso, o crime não é uma praga
ou uma maldição, mas um problema humano e social, muito próximo e cuja exis­
tência inevitável devemos assumir com sensibilidade e solidariedade, em vez de
ignorá-lo ou de afastá-lo de nossas reflexões com solenes declarações de guerra.16

III. Individualização Judicial da Pena (sanção penal)

1. Significado e im portância

A individualização judicial da pena - conceito que se opõe à generalização, a


revelar que a sentença deve se ater tanto quanto possível ao caso concreto e evitar
argumentos que transcendam a análise do comportamento do indivíduo em julga­
mento, sob pena de lhe conferir caráter exemplificador, generalizador, e não indi-
vidualizador - é a fixação pelo juiz das conseqüências jurídicas (pena etc.) da infra­
ção penal punível (crime ou contravenção), conforme o grau de culpabilidade do
agente, aferida de acordo com as circunstâncias jurídico-penalmente relevantes.
Mas a individualização não compreende apenas, como o nome pode sugerir, a fixa­
ção da pena mesma, mas também o reconhecimento de causas de isenção de pena
(concessão de perdão e escusas absolutórias etc.), bem assim a aplicação de medi­
das de segurança e dos efeitos secundários da condenação.17 Individualizar a pena
significa assim tomar individual uma situação, algo ou alguém, isto é, particulari-
zar o que antes era geral, a evitar a estandardização.18
Junto com a apreciação da prova e a aplicação do preceito jurídico-penal aos
fatos provados, a individualização representa o ápice da atividade decisória, deven­
do o juiz, ao fazê-lo, livrar-se, tanto quanto possível, de preconceitos, simpatias e
emoções e orientar sua decisão por critérios objetivos de valoração.19

16 G arcía-Pablos de M olin a, A n tô n io. T ratad o de crim inología, to m o I/III, 2 a ed ición . V a len cia : T ira n t lo
blan ch , 1999, p. 28.
17 Jesch eck , T ratad o , cit., p. 785.
18 G u ilh erm e de Souza N ucci. In d iv id ualização da pena. S. Paulo: R T , 2 0 0 4 , p. 31.
19 Jesch eck , T ra ta d o , cit., p. 787.
Paulo Queiroz

Cumpre lembrar que a individualização, apesar de merecer tratamento cons­


titucional e penal autônomo, em verdade constitui uma dimensão (capital) do prin­
cípio da proporcionalidade (em sentido amplo), que, como vimos, tem hoje uma
tríplice dimensão: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
Não fossem os erros freqüentes na aplicação da pena e seria desnecessário
notar que a individualização da pena pressupõe, como é óbvio, uma condenação
por crime (e eventualmente por contravenção), que requer fato típico, ilícito e cul-
pável (conceito analítico de crime), significando dizer que tais pressupostos não
podem ser novamente considerados no momento da dosimetria da pena, sob pena
de ofensa ao princípio n e bis in idem, também ele um momento do princípio da
proporcionalidade.

1.1. Individualização da pena e pessoa jurídica

O art. 59, como de resto todo o Código, está estruturado para a responsabili­
dade penal da pessoa física, motivo pelo qual as circunstâncias judiciais e legais
nada têm a ver com a apenação da pessoa jurídica, uma vez que a culpabilidade, a
conduta social, a personalidade do agente, os motivos do crime etc. são incompatí­
veis com este tipo especial de imputação.
No entanto, a Lei de Crimes Ambientais (Lei nQ9.605/98, art. 6S), que previu
a responsabilidade da pessoa jurídica, estabelece alguns critérios para que tenha
lugar a individualização judicial da pena a ela imposta, tais como: a gravidade do
fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde públi­
ca e para o meio ambiente; os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da
legislação de interesse ambiental; e a situação econômica do infrator.
Nada diz, porém, quanto a aspectos fundamentais dessa individualização; ante a
omissão, a doutrina propõe que sejam adotados os mesmos princípios aplicáveis à pes­
soa física, aplicando-se o Código Penal subsidiariamente, sempre que compatíveis
com a pessoa jurídica. Assim, por exemplo, deve ser obedecido o método trifásico de
aplicação:20 o juiz fixará inicialmente uma pena-base; a seguir, uma pena provisória;
finalmente, uma pena definitiva. As circunstâncias atenuantes e atenuantes são em
princípio aquelas previstas nos arts. 14 e 15 da lei, quando compatíveis com a pessoa
jurídica. As causas de diminuição e aumento de pena são as previstas em lei e no
Código penal, desde que a legislação ambiental não disponha de forma contrária.

2. Individualização e garantismo

Para a individualização da pena (CF, art. 5«, XLVI; CP, arts. 59 e 68), uma das
mais importantes tarefas confiadas ao juiz criminal, é preciso não perder de vista os

20 Nesse sentido, Fernando Galvão. R e sp o n s a b ilid a d e p e n a l da p e ss o a ju ríd ica . Belo H orizonte: D el Rey, 2 003.
D ire ito Pen al - Parte G eral

princípios constitucionais que lhe devem orientar a atuação, especialmente os prin­


cípios da proporcionalidade, humanidade das penas, legalidade e ofensividade, a
fim de que a pena imposta seja a mais justa ou a menos injusta possível. Aliás, a
absolutização das exigências decorrentes do princípio da legalidade conduziria a lei
a determinar a pena exata a se impor,2! de maneira rígida e sem concessão alguma
ao arbítrio judicial, o que, no entanto, não é possível nem conveniente, em razão
das múltiplas variáveis que sempre envolvem cada infração penal.
Para tanto, o juiz há de pretender fazer justiça no caso concreto dentro dos
limites preestabelecidos em lei, sem a pretensão de fazer da decisão um exemplo
para outros possíveis infratores em nome da prevenção geral de futuros delitos
(positiva ou negativa), sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade.
Porque, como observam Cobo dei Rosai e Vives Antón, recorrer à prevenção geral
na fase de individualização da pena seria tomar o sentenciado como puro instru­
mento a serviço de outros, negando-lhe a qualidade de fim em si mesmo e atentan­
do, em conseqüência, contra a dignidade que se lhe reconhece constitucionalmen­
te.22 Por isso, quando o Código (art. 59) declara que o juiz aplicará a pena confor­
me seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, o termo
prevenção, tanto quanto reprovação, deve ser tomado no sentido de prevenção
individual/especial. E que, a não ser assim, o juiz não estará a individualizar a pena,
mas a “desindividualizar” ou generalizar.23
Apesar de a Constituição adotar no essencial um direito penal de garantias
(CF, art. 5e), o Código, que lhe é anterior, ao estabelecer as circunstâncias que
devem ser consideradas para a fixação da pena, ainda se utiliza de critérios que cla­
ramente se opõem ao Estado Constitucional de Direito, que, outorgando à liberda­
de uma proteção formal amplíssima, reconhece à pessoa humana o mais largo direi­
to à diferença (particularmente, art. 3° IV); sendo por isso compatível unicamente
com um direito penal do fato, segundo o qual o sujeito só pode ser responsabiliza­
do penalmente pelo que faz (crime comissivo) ou, excepcionalmente, pelo que
deixa de fazer (crimes omissivos), mas jamais pelo que é ou deixa de ser. Exemplo
disso, é dizer, desse resíduo de direito penal do autor, herança do positivismo cri-
minológico, é a referência aos maus antecedentes, à conduta social, à personalida­
de do agente e à própria reincidência como critério de fixação da pena.

21 Cobo/Vives, D e r e c h o p e n a l, c it., p. 8 3 3 .
22 Cobo/Vives, D e r e c h o p e n a l, cit., p. 8 4 1 . N o m esm o sen tid o, F errajo li, para quem , num sistem a garantis­
ta, a função ju d icial não pode ter outros fins que a ju stiça no caso co n cre to , de m odo qu e o ju iz não pode
perseguir finalidades de prevenção geral que fariam de cada um a de suas co n d en ações um a sen ten ça
exem plar (D e r e c h o y r a z ó n , c it., p. 4 0 6 ). D e m odo diverso, Jesch eck , T r a ta d o , cit., p. 791.
23 No m esm o sentido, Zugaldía Espinar, para quem , se prescin dirm os das co n cretas exig ências preventivas
especiais e operarm os apenas com critério s de prev en ção geral, o autor do crim e deixaria de ser um fim
em si m esm o para se co n v erter num m eio para o b te r efeito s sobre outros, o que im plicaria in stru m en ta ­
lizá-lo e violar a dignidade da pessoa h um ana, c it., p. 174/175.
Paulo Q ueiroz

No particular, tem razão Saio de Carvalho quando assinala que, apesar de os


termos referidos (maus antecedentes, reincidência etc.) servirem de pretexto
para maior quantificação da pena ou para dificultar ou impedir o exercício de
certos direitos, são eles incompatíveis com a perspectiva de um direito penal do
fato, uma vez que substituem a avaliação objetiva e cognoscitiva pelo julgamen­
to (moral) da interioridade da pessoa e de suas tendências, acabando-se por cas-
tigá-la não propriamente pelo que fez, mas pelo que é.24 E o Estado, conforme
escreve Ferrajoli, não tem o direito de forçar os cidadãos a não serem malvados,
mas só o de impedir que se danem entre si, razão pela qual tampouco tem o direi­
to de alterar (reeducar, redimir, recuperar, ressocializar ou outras idéias seme­
lhantes) a personalidade dos réus. E o cidadão, embora tenha o dever jurídico de
não cometer fatos delitivos, tem o direito de ser interiormente malvado e de
seguir sendo o que é.
Por isso que o juiz, cujo compromisso fundamental não é com o Código Penal
nem com as leis penais, mas com a Constituição do seu país, deve esforçar-se por
aplicar uma pena justa - ou minimamente injusta - e conforme os princípios cons­
titucionais.
Temos ainda que a individualização das medidas de segurança deve seguir o
mesmo procedimento para a individualização da pena, sobretudo por considerar­
mos que a sentença que as aplica têm caráter parcialmente condenatório, e não
simplesmente absolutório, devendo estar presentes todos os seus pressupostos, isto
é, fato típico, ilícito, culpável e punível.

2.1. Concurso de agentes e concurso de crimes

No caso de concurso de agentes (co-autoria ou participação), o juiz procede­


rá à individualização da pena para cada um dos réus, tomando em consideração as
múltiplas variáveis que os envolvem, não podendo proceder à aplicação em ataca­
do, é dizer, fixar pena única para todos os condenados, indistintamente, a pretex­
to de responderem pela mesma acusação com as mesmas circunstâncias, sob pena
de nulidade.
O mesmo se deve dizer quanto ao concurso de crimes, devendo o juiz pro­
mover a individualização (inicial) de cada pena/crime fundamentada e separada­
mente, como se não houvesse concurso, inclusive para verificação de eventual
prescrição, com base nas penas impostas. Com efeito, no caso de concurso mate­
rial, situação em que o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, comete
dois ou mais crimes, idênticos ou não (CP, art. 69), sendo as penas aplicadas
cumulativamente, o juiz deve proceder à individualização da pena em relação a

24 P en a e garan tias: um a leitura do garantism o de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lum en Juris, 200 1 ,
p. 154.
D ireito Penal - P arte G eral

cada delito. Havendo concurso formal, hipótese em que o autor, mediante uma
única ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes (CP, art. 70) e, não obstante,
responde por crime único, com aumento de um sexto até a metade, cumpre, por
igual, proceder inicialmente à aplicação da pena para cada crime objeto do con­
curso, até para apurar se a pena final resultante do concurso não excede àquela
que seria cabível para o concurso material, possibilidade que é legalmente veda­
da (art. 70, parágrafo único). Com maior razão, tal deverá ocorrer na hipótese de
concurso formal impróprio, resultante de desígnios autônomos, tratado que é
como concurso material.
Igual procedimento deve ser observado nos casos de crime continuado (CP,
art. 71) e, quando houver mais de um resultado lesivo, erro na execução (aberratio
ictus - art. 73) e resultado diverso do pretendido (art. 74).

2.2. Em endado e mutatio libelli

Decidindo pela condenação, o juiz dará a definição jurídica dos fatos, poden­
do divergir daquela pretendida pelo Ministério Público ou querelante. Assim,
poderá entender que houve estelionato, e não peculato; furto, e não roubo; difama­
ção, e não calúnia, e vice-versa. Em havendo simples erro na classificação jurídica,
não obstante a denúncia ou a queixa tenha narrado corretamente os fatos, o juiz
dará a definição jurídica exata (em en d a d o lib e lli - CPP, art. 383), uma vez que, de
acordo com a doutrina, o acusado se defende dos fatos articulados pela acusação e
não da capitulação jurídico-penal dada aos fatos. No entanto, verificando o juiz que
essa redefinição jurídica decorre de circunstância não contida, explícita ou impli­
citamente, na denúncia ou queixa, a exigir por isso a mudança dos termos da peti­
ção inicial (m utatio lib elli - CPP, art. 384), terá de previamente ouvir a acusação a
fim de aditá-la, e à defesa, para falar a respeito, de sorte a preservar o contraditó­
rio e a ampla defesa; podendo ser reaberta a instrução com novo interrogatório do
acusado inclusive.

2.3. Sistema acusatório e emendatio libelli

Parte da doutrina vem defendendo nos últimos anos a inconstitucionalidade da


emenda e mudança do libelo25 (CPP, arts. 383 e 38426), argumentando, fundamen­

25 Nesse sentid o: Fauzi Hassan C h ou kr ( C ó d ig o d e p r o c e s s o p e n a l: c o m e n t á r io s c o n s o lid a d o s e c r ít ic a ju r is ­


p r u d e n c ia l R io de Janeiro: L u m e n Ju ris, 2 0 0 5 ), A ram is N assif ( S e n t e n ç a p e n a l: o d e s v e n d a r d e T h em is.
Rio de Jan eiro: Editora L u m e n Ju ris, 2 0 0 5 ), en tre outros. C riticam en te sobre a m u ta tio li b e ll i, Eugênio
Pacelli. Curso de Processo Pen al. Belo H orizonte: D el R ey, 20 0 4 .
26 A rt. 3 8 3 . O ju iz, sem m od ificar a descrição do fato co n tid a na d en ú n cia ou queixa, poderá a trib u ir-lh e d e­
fin ição ju ríd ica diversa, ainda que, em con seqü ên cia, te n h a de aplicar pena m ais grave. A rt. 3 8 4 . E n ce r­
rada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova
existente nos autos de elem ento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o M inistério Pú­
Paulo Queiroz

322
talmente, que o juiz, ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denún­
cia, estaria fazendo as vezes de acusador, violando o sistema acusatório e, pois, agin­
do sem um mínimo de isenção. Isso significaria em termos práticos o seguinte: ou o
juiz absolve o réu ou o condena como o órgão da acusação quer e propõe.27
A crítica ao artigo 384 restou superada com a redação que lhe deu a Lei n»
11.719, de 20 junho de 2008, pois a partir de agora, se o Ministério Público não
fizer o aditamento na forma da lei, o juiz só poderá julgar nos termos da denúncia,
em respeito ao princípio acusatório.
O mesmo não ocorre, porém, quanto à em endatio libelli (CPP, art. 383), por
cujo meio o juiz corrige ou simplesmente diverge da classificação jurídico-penal
dada aos fatos articulados na denúncia.
Desde logo, porque, a pretexto de preservar o sistema acusatório, se está em
realidade negando o direito à divergência: o juiz, se condenar, só poderá fazê-lo nos
exatos termos da proposição ministerial (denúncia e/ou alegações finais), por mais
equivocada que seja a definição jurídico-penal proposta. Com efeito, de acordo com
esse entendimento, se o Ministério Público descrever, precisamente, um crime de
roubo e o capitular, por erro, má-fé ou convicção pessoal, como furto, o juiz só po­
derá condená-lo por furto, ainda que o caso seja a toda evidência de roubo. Tam­
bém o contrário está proibido: se narrar um furto e o capitular como roubo, não se
poderia condenar senão por roubo; se o juiz entender que o caso é de furto, embo­
ra capitulado como roubo, então, deverá absolver (!). Não há meio-termo. Ora, isso
não é outra coisa senão a violação pura e simples dos princípios da legalidade e pro­
porcionalidade: condenar por mais quando cabe o menos; condenar por menos
quando cabe o mais; e absolver por puro formalismo quem se sabe culpado.
Converte-se assim o processo num fim em si mesmo, fazendo prevalecer a forma
sobre a matéria, perdendo-se de vista o seu fim último: possibilitar uma decisão
minimamente justa.
Também por isso a tese é antidemocrática, visto que, ao fomentar uma
espécie de ditadura ministerial, dificulta ou impossibilita a existência de contro­

blico deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instau­
rado o processo em crim e de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralm ente.
27 Na verdade, a tese principal, de violação do sistema acusatório e com prom etim ento to ta l ou p arcial da
isenção, teria diversas outras im plicações, tais com o: 1) im possibilidade de prosseguir no processo do juiz
que decretou medida constritiva contra o réu (v. g ., busca e apreensão, prisões etc.); 2) im possibilidade de
o juiz d ecretar qualquer medida constritiva de ofício; 3) impossibilidade de o juiz proceder ao in terro ga­
tório e in quirição de testem unhas diretam ente, tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação
exclusivam ente; 4) impossibilidade de o juiz recorrer de oficio de certas decisões; 5) im possibilidade de o
juiz condenar quando o M inistério Público pedir a absolvição em alegações finais; 6) im possibilidade de
o juiz rejeitar pedidos de arquivam ento; mas se o fizer, não poderá atuar na eventual ação penal; 7 ) im pos­
sibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriorm ente anulado; 8) im possi­
bilidade de o juiz que recebeu a denúncia prosseguir na ação penal; 9)im possibilidade de o ju iz requisitar
inquérito de ofício; 10) impossibilidade de o M inistério Público recorrer nos casos em que pediu a absol­
vição por falta de interesse de agir; 11) etc.
D ireito Penal - Parte G eral

les dos eventuais erros e abusos, negando inclusive a divergência indispensável


às instituições que se pretendem democráticas. Afinal, o erro passa a ser prati­
camente incorrigível ou, ao menos, dificilmente corrigível, em virtude do
engessamento que implica.
E ao criar uma espécie de interpretação e x vi leg is (impositiva) parte-se de
algum modo do pressuposto de que o direito já está previamente dado, especial­
mente com a denúncia e a participação do órgão da acusação, quando, em ver­
dade, o crime é socialmente construído durante a ação penal inclusive, por meio
dos elementos de prova produzidos na instrução, de modo a provar a prática de
uma infração penal (típica, ilícita, culpável e punível) imputável objetiva e sub­
jetivamente aos seus autores. Nesse contexto, a sentença penal é a culminação
dos processos primários e secundários de criminalização (reação e interação
social), porque o crime não é só o que a lei classifica como tal, mas também o
que os promotores dizem, o que os advogados argumentam e o que os juizes
decidem. Enfim: não existem fenômenos jurídicos, mas apenas uma interpreta­
ção jurídica dos fenômenos, razão pela qual, por meio da interpretação judicial,
não se descobre um sentido ou um direito preexistente; antes, cria-se por meio
de um processo que não é meramente lógico-subsuntivo, e sim analógico, com­
plexo, conforme vimos.
Por isso não há violação ao sistema acusatório, nem necessariamente compro­
metimento da imparcialidade judicial - que pode ser disfarçada sob mil formas,
porque, na em endatio, o juiz simplesmente dá a sua própria interpretação aos fatos,
conforme é seu dever.
Finalmente, a pretexto de evitar que o juiz se converta em acusador, na ver­
dade, se converte o acusador em juiz, ditando a este como pode interpretar/jul­
gar/condenar, exatamente, apequenando o papel do magistrado. No fundo, se está
a transformar, portanto, o juiz numa espécie de ventríloquo a serviço do órgão da
acusação, por meio de uma divisão de funções excessivamente rígida, em que o
Ministério Público, além de dono da ação penal, passa a ser também senhor da
interpretação.
Não quer isso dizer, porém, que, no caso de em en d atio libelli, não possa o pro­
cesso ser eventualmente anulado, por ofensa ao contraditório e à ampla defesa, a
ser analisado caso a caso. E que haverá situações em que a emenda é de tal modo
radical ou surpreendente que a falta ou deficiência da defesa será inevitável, a jus­
tificar a anulação, especialmente em virtude da superprodução de leis penais, mui­
tas das quais desconhecidas, total ou parcialmente. Aqui, a anulação ocorrerá sem­
pre que houver manifesto prejuízo para a defesa.
Exatamente por isso, seria conveniente, nalguns casos especiais, que o juiz
abrisse às partes prazo para se manifestarem a respeito, possibilitanto ao órgão do
Ministério Público o aditamento da denúncia inclusive.
Paulo Queiroz

324
3. Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal?

Devendo o juiz fixar a pena com base nos limites legais previstos (máximo e
mínimo), convém questionar o seguinte: é lícito aplicar pena abaixo do mínimo
legal ainda quando não concorram causas de diminuição de pena ou circunstâncias
atenuantes?
De acordo com a doutrina e a jurisprudência, isso não é possível por afrontar
o princípio da legalidade das penas, mas tal objeção não procede; primeiro, porque
não há aí nenhuma violação ao princípio da legalidade;28 segundo, porque aplicar
a pena justa, não importando se no mínimo legal, aquém ou além dele, é uma exi­
gência de proporcionalidade;29 finalmente, porque o compromisso fundamental do
juiz garantista não é com a pena mínima, mas com a pena justa.30
Com efeito, o princípio da legalidade, como de resto todos os princípios penais,
constitui, como se vem de demonstrar, autêntica garantia política que existe e se jus­
tifica, histórica e constitucionalmente, para proteger o cidadão contra os excessos do
Estado e não para pretextar ações arbitrárias contra o réu. Por isso é que não há falar
de violação ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por
exemplo, pois não há aí ofensa ao caráter garantidor que o informa.
Aliás, é justamente em razão desse caráter garantista do princípio que o con­
trário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal.
Além disso, se o juiz pode o mais - absolver, em razão da insignificância da
ação, por exemplo - , pode o menos, evidentemente: aplicar pena aquém do
mínimo legal. Assim, se, v. g., não obstante a ínfima quantidade de droga e
outras circunstâncias (CP, art. 59), entender, na hipótese de tráfico, inaplicável
o princípio da insignificância, poderá fixar a pena em dois anos de prisão (abai­
xo do mínimo legal).
O que realmente importa é aplicar uma pena justa para o caso, proporcional
ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolvem, e fundamentadamente,
ainda que para tanto tenha de fixá-la aquém do mínimo legal; legítima é a fixação
de pena abaixo do mínimo legal, portanto. Entender o contrário é adotar postura
antigarantista.
Com maior força de razões, legítima será a aplicação da pena abaixo do míni­
mo legal se houver circunstâncias atenuantes em favor do condenado, como já

28 Este é o argumento principal, aliás, daqueles que, como Damásio (O juiz pode, em face das circunstâncias
atenuantes genéricas, fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato?, Boietim do IBCCrim, São Paulo, n.
73,2003), são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes reduzirem a pena abaixo do míni­
mo legal.
29 Não sem razão, tem-se proposto a abolição da pena mínima. Nesse sentido, Ferrajoli ( D erecho y razón ,
cit., p. 400), Edson 0 ’Dwyer (Se eu fosse juiz criminal, Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 86, jan. 2000)
e Saio de Carvalho (Pena e garantias, cit.).
30 No sentido do texto, Andrei Schmidt, O princípio da legalidade penal no estado dem ocrático de direito,
Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 301-307.
D ireito Penal - P arte Geral

reconheceu o (então) Ministro Cemicchiaro,31 contrariando a Súmula 231 do ST],


que ainda hoje dispõe: “a incidência de circunstância atenuante não pode conduzir
à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

4. Erros freqüentes na aplicação da pena

Talvez por ser a aplicação da pena tema ordinariamente relegado a plano


secundário, freqüentes são os erros quando da sua fixação, consistentes sobretudo
em revalorar elementos inerentes à estrutura do crime (tipicidade, ilicitude e cul­
pabilidade), tomando como circunstâncias judiciais os próprios pressupostos da
condenação, incorrendo-se em bis in idem .
Quanto à tipicidade, não é incomum que, ao dosar a pena o juiz, por meio de
diferentes recursos lingüísticos, tome como critério de aferição da culpa dados ou
circunstâncias que já fazem parte da própria figura típica. Assim, por exemplo, ao
condenar funcionário público por crime contra a administração pública (v. g.,
peculato, corrupção passiva), afirmar que “o réu praticou ação das mais reprová­
veis, visto que violou a confiança inerente ao exercício da função pública”, como
se o fato de ser servidor público já não tivesse orientado a decisão político-crimi-
nal do legislador de autonomizar/criminalizar tais condutas, punindo-as de forma
mais dura precisamente em razão dos deveres inerentes ao cargo/função.
Além disso, ao considerar os motivos do crime aptos a agravar a pena, fre­
qüentemente são tomadas em consideração motivações inerentes à própria infra­
ção penal e, pois, já valoradas por ocasião da tipificação, como, v. g., a “libido exa­
cerbada” ou a “falta de pudor” nos crimes sexuais; a “ganância”, a “ambição” ou o
“ganho fácil” nos crimes patrimoniais ou tráfico de droga; o desprezo à pessoa
humana nos crimes contra a vida etc. Também é comum elevar à condição de cir­
cunstância judicial aspectos jurídico-penalmente irrelevantes, ferindo o princípio
da legalidade, tais como: a não-confissão, o não-arrependimento, a fuga do distrito

31 STJ, 6a T., REsp 151.837/MG, rei. Min. Luiz Vicente Cem icchiaro, j. 28-5-1998. No mesmo sentido,
Carmen Silva de Moraes Barros: “Assim, adotados os princípios de individualização da pena e da culpabi­
lidade, não se pode mais falar em impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal - qualquer
vedação nesse sentido é inconstitucional. Assim não fosse, e a aplicação de pena poderia seguir critérios
exclusivamente matemáticos. No entanto, a análise do caso individual, em razão de sua complexidade e
diversidade, obsta a culpabilidade vinculada a limites mínimos. Portanto, cabe ao juiz, relevando as cir­
cunstâncias do caso concreto: grau de exposição do agente à criminalidade, suas condições pessoais, a si­
tuação particular em que levou a cabo a prática delitiva, forma de execução e conseqüências do crime,
comportamento da vítima, estabelecer a medida da pena compatível com a culpabilidade vista sob a ótica
do direito penal mínimo (A fixação da pena abaixo do mínimo legal: corolário do princípio da individua­
lização da pena e do princípio da culpabilidade, Revista do IBCCrim, ano 7, n. 26, abr./jun. 1999). De
modo similiar, João Batista Herkenhoff (Uma porta aberta para o hom em n o direito criminal, Rio de
Janeiro: Forense, 2001), que admitiu, em sentença condenatória por latrocínio, a aplicação da pena abai­
xo do mínimo legal, fazendo, inclusive, uma interessante comparação das penas mínimas do estupro com
morte (atualmente, 12 anos) com o latrocínio (atualmente, 20 anos).
Paulo Queiroz

da culpa, a inadequação da conduta etc. Por vezes, ao valorar negativamente as


conseqüências do crime, se recorre aos resultados próprios da conduta criminosa,
como em caso de homicídio dizer-se que “as conseqüências do crime foram dano­
sas, pois uma vida foi ceifada”, como se fosse possível homicídio consumado sem a
morte da vítima.
Erro freqüente também ocorre na avaliação da culpabilidade. Sinteticamente,
pode-se dizer que a culpabilidade é um juízo de reprovação sobre o autor do injus­
to penal em razão da possibilidade de se lhe exigir, concreta e razoavelmente, um
comportamento conforme o direito, de sorte que culpabilidade é exigibilidade,
inculpabilidade, inexigibilidade. Acontece que a culpabilidade tem uma dupla fun­
ção, pois tanto é requisito do fato punível quanto é critério de aferição da pena
justa. No primeiro caso, faz-se um juízo (qualitativo) de constatação (o réu é culpá­
vel, logo, o condeno); no segundo, um juízo (quantitativo) de aferição do grau de
culpa (que é mínima, média ou máxima). E se culpabilidade é exigibilidade e se há
diferentes graus de exigência (maior ou menor), não há problema algum em tomá-
la em conta novamente, não como pressuposto da condenação, mas como circuns­
tância judicial, de sorte que, quanto maior for a culpabilidade (maior exigibilida­
de), maior a pena cabível; quanto menor, menor o castigo. Trata-se, enfim, de con­
cretizar o princípio da proporcionalidade - que atravessa todo o ordenamento jurí­
dico - , segundo o qual de quem se pode exigir mais se deve castigar mais; de quem
se pode exigir menos se deve castigar menos.
Imagine-se, por exemplo, que A, B e C tomem parte num crime de extorsão
mediante seqüestro. A, arrependido, vem a facilitar a fuga da vítima dias depois,
enquanto B se limita a atender ligações telefônicas, observar a vítima e alimentá-
la, diferentemente de C, que tudo arquiteta, comanda a operação e trata a todos
com violência e subordinação. Parece evidente que, não obstante a culpabilidade
de todos (juízo de constatação, a ensejar a condenação), ela (a culpabilidade como
juízo de aferição, a ensejar penas distintas) não é a mesma para todos, uma vez que
o grau de reprovabilidade de A (que merece pena menor) não é o mesmo de B (que
merece pena intermediária), que não é o mesmo de C (que merece pena maior),
devendo o castigo ser distribuído desigualmente. Eventualmente as condutas de A
e B poderão ser consideradas inclusive como participação de m en or im portância, a
autorizar a redução da pena.
Essa maior ou menor reprovabilidade constitutiva da culpabilidade pode ser
aferida a partir de diferentes critérios: motivos, circunstâncias, conseqüências,
comportamento da vítima etc., razão pela qual ela compreende (também) todos
aqueles elementos que o legislador já houve por bem autonomizar. Se isso não tiver
ocorrido, a culpabilidade passa a ser um critério (subsidiário) de verificação daque­
les dados que podiam eventualmente ser previstos pelo legislador, mas não o foram,
reprovando para mais ou para menos a infração penal.
Pois bem, no particular o equívoco na aplicação da pena consiste em tomar
novamente em conta a culpabilidade, não como critério de aferição (juízo quanti­
D ireito Penal - Parte Geral

tativo), mas como pressuposto da condenação (juízo qualitativo). Não é infreqüen-


te, por exemplo, afirmar-se que “o réu é culpável, pois tinha plena consciência da
ilicitude do fato”, “sabia exatamente o que fazia”, ou, ainda, “agiu livremente”. Ora,
não fosse o réu culpável por quaisquer desses motivos e seria o caso de absolvê-lo
ou diminuir-lhe a pena, seja por erro de proibição (inevitável ou evitável), seja por
coação física ou moral (irresistível ou resistível). É que, conforme vimos, são ele­
mentos da culpabilidade: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e
exigibilidade de conduta diversa.
Por fim, é recorrente a valoração de circunstâncias próprias de um direito pró­
prio do autor, se bem que com algum apoio no Código, que prevê como circunstân­
cia judicial a “personalidade do agente”. No particular, não é raro assinalar que “o
réu tem personalidade agressiva”, “personalidade voltada para o crime” etc., esque­
cendo-se, primeiro, que nada disso autoriza a condenação de quem quer que seja,
razão pela qual tampouco pode justificar a majoração da pena, castigando-se pela via
indireta o que não o é pela via direta; segundo, porque, a permitir que o Estado possa
coagir os cidadãos a não serem agressivos, malvados etc., estar-se-ia a confundir
direito e moral, punindo o autor não exatamente pelo que fez, mas pelo que é.
Amiúde, procura-se ainda dar à sentença caráter exemplificador, pretendendo
emprestar-lhe efeitos universais, por vezes salvíficos, com fins de prevenção geral,
principalmente em casos de tráfico de drogas, em que se alude a expressões como: “o
tráfico é um mal que assola toda a humanidade e que precisa, por isso, ser exemplar­
mente punido, para que possamos dar um fim a isso”, aplicando-se, a partir de tal
argumento, penas altas em demasia, que não retratam o caso concreto e transcendem
o merecimento do autor, pois não se está a rigor a julgar o traficante, mas o tráfico.
Não há aí individualização da pena, mas “desindividualização”, generalização.

IV. M étodo de fixação da pena

Para a individualização da pena, o juiz, que o fará de forma motivada (CF, art.
93, IX), é dizer, declarando expressa, clara e objetivamente as razões de fato e de
direito que fundamentam sua decisão, deverá adotar um método trifásico de apli­
cação (CP, art. 68), que compreende, sucessivamente, e sob pena de nulidade do
julgado: a) a fixação da pena-base (art. 59, caput); b) a fixação da pena provisória;
c) a fixação da pena definitiva. Na primeira, será fixada a pena inicial com base nas
circunstâncias judiciais previstas no caput do art. 59. Na segunda, considerar-se-ão
as circunstâncias atenuantes e agravantes (CP, arts. 65 e 61). Na terceira, sopesar-
se-ão as causas de diminuição e de aumento de pena. Nesta última fase, o juiz fixa­
rá ainda o regime inicial de cumprimento da pena e a eventual substituição por
pena restritiva de direito.
Parece razoável que a decisão faça expressa referência ao método trifásico,
mas, se não o fizer, como é comum, tal não implicará nulidade alguma, desde que
da sua leitura se possa concluir claramente que o juiz o seguiu e respeitou.
Paulo Queiroz

Apesar disso, o procedimento de aplicação da pena compreende ao menos oito


etapas,32 a saber: 1) escolha da pena a ser aplicada quando houver cominação alter­
nativa de mais de uma; 2) análise das circunstâncias judiciais para fixação da pena-
base (CP, arts. 59 e 68); 3) análise das circunstâncias legais (agravantes e atenuantes
- art. 68, segunda parte; e arts. 61, 62 e 65), para fixação da pena provisória; 4) aná­
lise das causas de aumento e de diminuição de pena, previstas na parte geral e espe­
cial, para fixação da pena definitiva; 5) fixação do regime inicial de cumprimento da
pena (fechado, semi-aberto ou aberto); 6) substituição por pena restritiva de direi­
to, quando cabível; 7) concessão de sursis (CP, art. 77), quando cabível; 8) funda­
mentação dos efeitos da condenação referidos no art. 92 do Código.

1. Primeira fase: fixação da pena-base

Para a fixação da pena-base, o juiz tomará em consideração as diversas cir­


cunstâncias judiciais do art. 59 do Código, umas de caráter subjetivo, como a cul­
pabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do réu, os motivos do
crime; outras, de cunho objetivo: as circunstâncias e conseqüências do crime, bem
assim o comportamento da vítima, as quais tanto podem servir para agravar quan­
to para atenuar a pena inicial. Naturalmente que tais circunstâncias jamais poderão
servir para sopesar a pena mais de uma vez nas várias fases de fixação (ne bis in
idem). Nesse sentido dispõe a Súmula 241 do ST}: “A reincidência penal não pode
ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circuns­
tância judicial”. Naturalmente que, apesar de a súmula em questão se referir à rein­
cidência, ela é perfeitamente aplicável a toda e qualquer circunstância judicial ou
legal, agravante ou atenuante.

2. Segunda fase: fixação da pena provisória

2.1. Concurso de agravantes e atenuantes

No caso de só incidirem agravantes ou só atenuantes, o juiz em princípio as


aplicará cumulativamente. Em ambos os casos, o Código não estabeleceu qualquer
limite, seja para mais, seja para menos, mas uma coisa é certa: as agravantes jamais
poderão fazer a pena exceder ao máximo legal; mas as atenuantes podem justificar,
segundo pensamos, e contrariamente a doutrina e jurisprudência majoritárias, a
fixação de pena abaixo do mínimo legal. Quanto aos limites máximos da apenação,
alguns autores têm proposto, à falta de critério legal, que o percentual para mais ou
para menos não exceda o teto de um sexto da pena-base aplicada.33

32 Cf. Gilberto Ferreira, Aplicação da pena , Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 59-60.
33 Nesse sentido, Paganella Boschi, Penas e seus critérios, cit., p. 277-278.
D ireito Penal - Parte G eral

Se simultaneamente concorrerem agravantes e atenuantes, o Código determi­


na que a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias p rep o n ­
derantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do
crime, da personalidade do agente e da reincidência (CP, art. 67). Parte da doutri­
na e da jurisprudência admite inclusive que se declare a neutralização ou compen­
sação de uma ou mais agravantes ou de uma ou mais atenuantes.
No caso de crimes previstos na Lei de Drogas (Lei ns 11.343/2006), o juiz con­
siderará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código, que passa a ter
caráter subsidiário, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a per­
sonalidade e a conduta social do agente (art. 42).

2.2. Qualificadoras e agravantes

Sempre que uma mesma circunstância figurar como agravante genérica e tam­
bém qualificar o crime, prevalecerá como qualificadora. Assim, por exemplo, o moti­
vo fútil ou torpe que qualifica o homicídio (CP, art. 121, § 2S) e estabelece novos
parâmetros de pena e o toma crime hediondo (Lei ne 8.072/90). Pode acontecer, no
entanto, de um mesmo crime ser qualificado por mais de uma circunstância, a exem­
plo do próprio homicídio, que pode ser dupla ou triplamente qualificado, por moti­
vo fútil, torpe, meio cruel etc. Isso ocorrendo, parte da doutrina e da jurisprudência
considera perfeitamente possível e legítimo que as demais qualificadoras (remanes­
centes) possam ser utilizadas como circunstância agravante; isso somente no caso de
as qualificadoras também figurarem como circunstância agravante, como, no exem­
plo dado, o motivo futil ou torpe e o meio cruel (CP, art. 61, II, a e d).
No caso de as qualificadoras remanescentes não constituírem circunstâncias
agravantes, como ocorre com o furto qualificado (CP, art. 155, § 4e, I a IV), em que
o rompimento de obstáculo, a escalada, a destreza, o emprego de chave falsa etc.,
embora o qualifiquem, não fazem parte do rol das circunstâncias genéricas, alguns
autores entendem que tais dados podem ser considerados como circunstâncias judi­
ciais para efeito de fixação da pena-base.
Parece-nos, todavia, que ambas as formas de aproveitamento das qualificado­
ras ofendem o princípio da legalidade, em evidente prejuízo ao réu, mesmo porque,
de acordo com o art. 61, caput, do Código, as circunstâncias agravantes somente
incidem “quando não constituem ou qualificam o crime”, razão pela qual fora des­
sas hipóteses a incidência é ilegal.34

34 No sentido do texto, José Cirilo de Vargas, que escreve textualmente: “há certa orientação jurisprudencial
no sentido: havendo duas circunstâncias qualificadoras (como exemplo: motivo fútil e emboscada, no deli­
to de homicídio), uma será apreciada na fixação da pena-base e outra como agravante. O critério é ilegal
e demonstra escasso conhecimento do assunto. No primeiro caso, ou seja, na fixação da pena-base, é evi­
dente que se deve levar em conta o delito qualificado, com os limites de pena devidamente alterados para
mais. Quanto a considerar uma qualificadora como agravante, é ferir de morte o princípio contido na
segunda parte do art. 61: ‘quando não constituem ou qualificam o crim e’. Se qualificou, é óbvio que não
pode agravar” (Instituições de direito penal: parte geral, tomo II, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 62).
Paulo Queiroz Direito Penal - Pane Geral

Uma vez superada essa segunda fase, em que restou fixada a pena provisória: mo e as de diminuição reduzi-la aquém do mínimo legal confinado. Nesse sentido,
o juiz a seguir apreciará, quando houver, as causas de aumento e de diminuição (j£ Paganella Boschi, embora reconheça que as causas especiais de aumento ou dimi­
pena, previstas na Parte Geral e Especial do Código. n u ição diferem das agravantes e atenuantes sob a perspectiva meramente topográ­
fica, pois as primeiras estão espalhadas pelo Código, ao passo que as últimas apare­
3. Terceira fase: fixação da pena definitiva tJt; cem definidas só na Parte Geral, entende, acompanhando a doutrina, que as agra­
vantes não autorizam, à luz do sistema legal vigente, individualização da pena-base
3.1. Causas de aumento de pena e qualificadoras: distinção além dos limites definidos em abstrato, mas “tal restrição não se aplica às causas
e sp e c ia is de aumento”, uma vez que “a possibilidade de extrapolação da margem

Não há distinção ontológica entre qualifícadora e causa de aumento de pena;?.! su p e r io r cominada no tipo não ofende o princípio constitucional da legalidade (art.

tampouco há distinção essencial entre causa de diminuição de pena e atenuantes 5s, inc. XXXIX), pois decorre da funcionalidade do sistema adotado pelo nosso
genéricas, tanto que determinadas circunstâncias (v. g„ motivo torpe, motivo futiTpspg Código (art. 68 do CP )”.35
etc.) ora aparecem como qualifícadora, ora como causa de aumento; outras tantas X lS Um tal entendimento, porém, no que toca à possibilidade de fixação da pena
circunstâncias (v. g., motivo de relevante valor social ou moral), que ora figuramgajÉ além do máximo legal por força de causa de aumento, é claramente antígarantista,
como simples atenuante genérica, ora como causa de diminuição de pena. Seme-,J3jf devendo ser rechaçado. Sim, porque se o legislador cominou um máximo legal de
lhante tratamento, um tanto casuístico, atende a critério de conveniência política $ 3 pena (v. g., no furto, cuja pena varia de 1 a 4 anos de reclusão), em hipótese algu­
puramente. Com efeito, quando o legislador pretende reprimir mais duramente uma a S ma o juiz poderá estabelecer novos parâmetros legais máximos. Portanto, em nome
determinada circunstância, trata-a como qualifícadora; se não tão severamente^,"® da garantia constitucional da legalidade da pena, cumpre dar tratamento unitário a
como causa de aumento; se mais brando, como circunstância genérica agravante, w todas as situações: quer se trate de circunstância agravante, quer de causa de
No entanto, a distinção é relevante para efeito de aplicação da pena. Sim, por! aumento, a pena jamais poderá ser fixada além do máximo legal confinado. Mas o
que as qualificadoras, que implicam a fixação de novos limites - mínimo e máximo contrário não está vedado: tanto as circunstâncias atenuantes quanto as causas de
- de pena (v. g., o homicídio qualificado por motivo fútil - CP, art. 121, § 2Q, II — , ■ diminuição podem justificar a aplicação da pena aquém do mínimo.
cuja pena é de doze a trinta anos de reclusão, e não seis a vinte anos de reclusão),
devem ser levadas em conta já no momento mesmo da aplicação da pena-base (pri- ;' * 3.3. Concurso de causas de aumento e diminuição de pena: possibilidades
meira fase). Diferentemente, as causas de aumento ou de diminuição serão consi--?
deradas somente na terceira fase. 5*58 Nessa terceira fase, o juiz poderá deparar com as seguintes hipóteses: a) inci­
Naturalmente que a mesma circunstância não poderá ser tomada em contá de mais de uma causa de aumento de pena; b) incide mais de uma causa de dimi­
mais de uma vez na mesma sentença, sob pena de bis in idem . Assim, se a mesma nuição de pena; c) incide simultaneamente mais de uma causa de aumento e de
circunstância já figurar como qualifícadora, deverá ser ignorada como causa de
diminuição.
aumento ou agravante; se já figurar como causa de diminuição, deverá ser despre­ Pois bem, para as duas primeiras hipóteses, o Código prevê solução única: o
zada como atenuante genérica. No particular, vigora o seguinte princípio: as qua­ juiz pode limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, toda­
lificadoras prevalecem sobre as causas de aumento de pena, que prevalecem sobre via, a causa que mais aumente ou mais diminua (CP, art. 68 , parágrafo único).
as circunstâncias agravantes. As agravantes só têm aplicação, portanto, quando Significa dizer que, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, o legislador
não constituírem nem qualifícadora nem causa de aumento. O mesmo deve ser entendeu de, à vista da incidência simultânea de várias causas de aumento ou de
dito quanto às causas de diminuição de pena, que prevalecem sobre as circunstân- diminuição, privilegiar uma única - a que mais aumenta ou a que mais diminui -
cias atenuantes.
em prejuízo das demais, de modo a evitar que a consideração de múltiplas causas
de aumento ou de múltiplas causas de diminuição conduzisse o juiz a fixar uma
3.2. Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e pena desproporcional: alta demais no primeiro caso ou baixa demais no segundo,
diminuição
podendo chegar teoricamente à pena zero inclusive.

A doutrina considera que, diferentemente do que ocorre com c ir c u n s tâ n c ia s


agravantes e atenuantes, as causas de aumento podem elevar a pena além do máxi- 35 Penas e seus critérios, cit., p. 2 96.
Paulo Queiroz

Cumpre notar que, embora não exista previsão semelhante quanto às circuns­
tâncias agravantes, pensamos que nada impede que se lhe aplique a tais casos, pois
a razão político-criminal é a mesma, ou seja, havendo concurso de agravantes ou
atenuantes sobre um mesmo crime, seria razoável que o juiz preferisse uma, a mais
importante, em prejuízo das demais.
Discute-se se tal possibilidade constitui uma faculdade ou um dever do juiz.
Temos que, a despeito de opiniões em contrário, trata-se de um dever, e não de
simples faculdade. Outra questão relevante é a seguinte: o Código fala expressa­
mente de concurso de causas previstas só na parte especial. De acordo, portanto,
com a literalidade da norma, tal regra não se aplicaria aos casos de concurso entre
causas da Parte Especial e da Geral ou só da Parte Geral. Esse, aliás, é o entendi­
mento majoritário: se o concurso se der entre causas previstas só na Parte Geral ou
previstas na Parte Especial e na Geral, não cabe invocar a regra do art. 68, parágra­
fo único. No entanto, nenhuma razão de fato ou de direito justifica uma tal restri­
ção, nem um tal apego à letra da lei. Afinal, se se quer preservar o princípio da pro­
porcionalidade, deve-se admitir a irrelevância do lugar onde se acha localizado no
Código a causa de aumento ou de diminuição, devendo dar-se tratamento isonômi- ,
co a tais situações.
Finalmente, na terceira hipótese, em que ao mesmo tempo incidem causas de
aumento e de diminuição, a solução é diferente: o juiz apreciará sucessivamente
todas as causas presentes, de aumento e de diminuição, não podendo invocar a
regra do art. 68.

V. De como se procede ao cálculo da pena

Como vimos, o Código determina que, fixada a pena-base com a aplicação das
circunstâncias judiciais (art. 59), se passe a seguir à mensuração das circunstâncias
atenuantes e agravantes (pena provisória); e por último às causas de diminuição e
aumento de pena (pena definitiva). O Código estabelece uma ordem de preferên­
cia, portanto.
Em princípio, o cálculo será feito conforme o método sucessivo, vale dizer, a
operação seguinte tomará por base a anterior e assim sucessivamente. Ex.: fixada a-
pena-base em seis anos; incidindo uma agravante de um terço, resulta uma pena
provisória de oito anos; a seguir, em razão de uma causa de diminuição de pena de
metade, chega-se à pena de quatro anos; havendo uma causa de aumento de meta­
de, resulta uma pena de seis anos. Nota - embora o Código adote uma ordem de
preferência (primeiro as atenuantes, depois as agravantes; primeiro, as causas de
diminuição, depois as de aumento), sua inversão não implicaria nulidade da sen­
tença, porque irrelevante matematicamente. Assim, se a pena de oito anos fosse,
primeiro, aumentada para doze anos e depois diminuída de metade, resultaria ao
final na mesma pena: seis anos.
D ireito Penal - Parte Gera]

VI. Método para incidência das causas de aum ento e diminuição

A doutrina refere dois métodos de incidência de causas de aumento e de dimi­


nuição da pena: o método sucessivo (cumulado ou em cascata) e o isolado. De acor­
do com o primeiro, cada causa de aumento ou de diminuição deverá incidir sobre
a operação anteriormente realizada, de modo que a operação posterior incide sobre
a anterior, necessária e logicamente. Imagine-se, por exemplo, que incidam no caso
uma causa de aumento de 1/2 e outra de diminuição de 1/2. Assim, fixada a pena
provisória em 4 anos, a pena seria aumentada para 6 anos e depois diminuída para
3 anos. A operação seria a seguinte: 4 + 2 (= 1/2) = 6; 6 - 3 (= 1/2 de 6) = 3. Já segun­
do o método isolado, cada causa, diversamente do método sucessivo, deve incidir
diretamente sobre a pena provisória resultante da consideração das circunstâncias
judiciais e legais. Portanto, no exemplo dado, ter-se-ia a seguinte operação: a pena
de 4 anos seria aumentada para 6 anos (aumento de 2 anos, que corresponde a 1/2)
e diminuída para 4 anos (diminuição de dois anos, que corresponde a 1/2 da pena
provisória). A operação seria a seguinte: 4 + 2 = 6; 6 - 2 = 4.
No entanto, ocorrendo situação inversa, vale dizer, concurso de duas causas
de diminuição de 1/2, a aplicação do método isolado seria impraticável, pois resul­
taria numa pena 0; ei-lo: 4 - 2 (1/2) = 2; 2 - 2 (1/2) = 0. Conseqüentemente, haven­
do concurso de causas de diminuição, deve prevalecer o método sucessivo, neces­
sariamente.
A lei nada diz a respeito do método específico a ser adotado. Em geral, o méto­
do sucessivo, além de mais lógico, é, conforme se vê, mais favorável ao réu, deven­
do prevalecer, portanto.36 Cumpre notar, porém, que o método de aplicação suces­
siva, quando aplicado ao concurso de causas de aumento, é claramente desfavorá­
vel ao réu porque a segunda causa de aumento, ao incidir sobre a pena provisória
já aumentada pela primeira causa, implicará pena maior do que a que seria cabível
se, ao invés, incidissem ambas diretamente sobre a pena provisória. Imagine-se, por
exemplo, que, fixada a pena provisória em 4 anos, haja duas causas de aumento a
considerar, ambas de 1/2. Pois bem, com o primeiro aumento, é elevada para 6 anos
e com o segundo (sobre 6 anos) para 9 anos. Eis a operação: 4 + 2 (= 1/2) = 6; 6 + 3
(= 1/2 de 6) = 9. No entanto, se adotado o método isolado, ambos os aumentos inci­
diriam sobre a pena provisória de 4 anos, resultando numa pena final de 8 anos,
segundo a operação seguinte: 4 + 2 (= 1/2) = 6; 6 + 2 (= 1/2 de 4) = 8.
Também o método isolado poderá ser desfavorável em algumas situações,
como, por exemplo, incidirem uma causa de diminuição e outra de aumento, como
ocorre no furto tentado praticado durante o repouso noturno.37 Com efeito, defi­
nida a pena provisória em 3 anos, havendo uma redução de 2/3 e um aumento de

36 No sentido do texto, Fernando Galvão, Direito p en a l parte geral, Rio de Janeiro, Impetus, 2004, p. 616.
Idem, Gilberto Ferreira, cit., p. 156-162.
37 Cf. Fernando Galvão, idem, p. 618.
P a u lo Q u e ir o z

1/3, e aplicado o método sucessivo, obter-se-ia uma pena final de 1 ano e quatro
meses, conforme a operação seguinte: 3 - 2 (= 2/3) = 1; 1 + 4 meses (= 1/3 de 1 ano)
= 1 ano e quatro meses. )á a aplicação do método isolado ensejaria uma pena final
de 2 anos; a operação seria: 3 - 2 = 1; 1 + 1 (= 1/3 de 3) = 2.
Em conclusão:38 1) no concurso entre causas de aumento, o método sucessivo
prejudica o réu; 2) no concurso entre causas de diminuição, o método isolado é
impraticável (ilógico); 3) no concurso entre causas de aumento e de diminuição, o
critério isolado prejudica o réu. Por isso temos que, como regra, o método a ser
aplicado é o sucessivo; e só excepcionalmente o isolado, sempre que for mais favo­
rável ao réu.

VIL Circunstâncias judiciais em espécie

Introdução

As circunstâncias judiciais são dados ou fatos acidentais, objetivos ou subjeti­


vos, que, embora não façam parte da estrutura do crime, são importantes para a
verificação do grau maior ou menor de culpabilidade do agente, as quais devem ser
consideradas para efeito de aplicação da pena-base. Vejamo-las separadamente.
E todas as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal são
contemporâneas da prática do crime: motivos, conseqüências, circunstâncias, con­
duta social etc., razão pela qual dizem respeito à época da infração penal e não a ela
supervenientes, isto é, quando do julgamento da respectiva ação penal. Exatamente
por isso, os antecedentes (bons ou maus) a que se refere a lei são antecedentes ao
crime e não à sentença.39
Exceção a isso são as circunstâncias atenuantes inominadas de que cuida o art.
66 do Código, que dispõe: “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de circuns­
tância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamen­
te em lei”.

1. Culpabilidade

Como vimos, a aplicação da pena requer o cometimento de ilícito penal cul­


pável, de modo que a culpabilidade, ao lado da tipicidade e da ilicitude, constitui
um dos requisitos do conceito analítico de crime. Portanto, não é nesse sentido, de

38 Cf. Gilberto Ferreira, cit., p. 160.


39 No sentido do texto, Gilberto Ferreira: “somente os acontecimentos anteriores ao fato podem ser conside­
rados”. Aplicação da pena . Rio: Forense, 2004, p. 83. Fernando Capez. Curso de Direito P en al S. Paulo:
Saraiva, 2007, p. 440: “antecedentes são todos os fatos da vida pregressa do agente, bons ou maus, ou seja,
tudo o que ele fez antes da prática do crime”. Idem, Fragoso: “o juiz deve aqui considerar os anteceden­
tes, ou seja, o comportamento anterior do acusado”. Lições de direito penal, p. 322. Rio: Forense, 1994.
D ireito Penal - Parte G eral

pressuposto da punibilidade, que o Código faz referência à culpabilidade, mesmo


porque à falta dela não teria lugar a condenação, mas a absolvição.40
Por isso, afirma García-Pablos que o princípio de culpabilidade funciona
como limite do jus pu nien di não só quanto à determinação dos pressupostos da
pena, mas também quanto à sua individualização judicial, significando dizer que
não pode exceder ao que seja adequado e conforme a gravidade da culpa do autor,
por mais que seja necessária no caso concreto, por motivos de prevenção geral ou
especial, a aplicação de pena mais severa.41
Superada a análise da culpabilidade enquanto pressuposto da condenação
(juízo qualitativo de culpabilidade), o juiz agora a tomará em consideração para
efeito de aferição do grau de culpa do réu (juízo quantitativo), vale dizer, a consi­
derará para fixar uma reprimenda compatível com o grau (máximo, médio ou míni­
mo) de reprovabilidade. Há quem defenda42 que, para a aferição da culpabilidade,
há de ser considerada também a intensidade do dolo, apesar de este ter migrado
para a tipicidade com o advento da teoria final da ação. Mas isso não parece corre­
to, visto que, sendo o dolo requisito dos tipos dolosos, e, pois, pressuposto da pró­
pria condenação, considerá-lo para efeito de majorar ou atenuar a pena constitui
bis in idem , até porque freqüentemente a maior intensidade do dolo já figura como
agravante genérica, causa de aumento de pena ou qualificadora, como no homicí­
dio (CP, art. 121, § 2a), em que ela pode atender pelo nome de motivo fútil, torpe,
meio cruel etc. O mesmo deve ser dito da sua menor intensidade, que pode apare­
cer, no caso específico do homicídio, com a roupagem de motivo de relevante valor
moral ou social e semelhantes.
Portanto, a culpabilidade funciona como limite máximo de fixação da pena,
motivo pelo qual não é exato dizer, como faz Cezar Bitencourt, que ela, funcionan­
do como limite, impede que seja imposta uma pena “aquém ou além da medida pre­
vista pela própria idéia de culpabilidade”.43 É que, embora não se possa realmente
aplicar pena além da culpabilidade do réu, nada impede que a sanção seja imposta
aquém dela, uma vez que, como assinala Roxin, o princípio da culpabilidade, dita­
do em nome da dignidade humana, é um meio imprescindível para limitar o poder
penal estatal num Estado de Direito, motivo pelo qual é perfeitamente “admissível
aplicar uma pena inferior à culpa”.44

40 Com razão, portanto, Cezar Bitencourtao observar que constitui um equívoco, freqüentemente com eti­
do no cotidiano forense, quando, na dosagem da pena, afirma-se que “o agente agiu com culpabilidade,
pois tinha consciência da ilicitude do que fazia, pois nessa acepção a culpabilidade funciona como funda­
mento da pena, isto é, característica negativa da conduta proibida e que já deve ter sido objeto de análise
juntam ente com a tipicidade e a antijuridicidade, concluindo-se pela condenação e presume-se que esse
juízo tenha sido positivo, porque do contrário nem se teria chegado à condenação” ( Manual, cit., p. 551).
41 D erecho penal, cit., p. 286.
42 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 551.
43 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 551.
44 Problemas fundamentais, cit., p. 3 8 -3 9 .
P a u lo Q u e ir o z

336
Mas a culpabilidade é analisada não só aí, como também durante todo o pro­
cesso de individualização da pena, a exemplo do que ocorre quando do reconheci­
mento da participação de menor importância, do erro de proibição evitável, da
semi-imputabilidade etc.
Não é preciso dizer que na prática forense há freqüentes erros na aplicação da
pena quando se analisa a culpabilidade, como, por exemplo, afirmar-se que “o réu
é culpável, pois tinha plena consciência da ilicitude do fato”, “sabia exatamente o
que fazia”, ou, ainda, “agiu livremente”. Ora, não fosse o réu culpável por quaisquer
desses motivos e seria o caso de absolvê-lo ou diminuir-lhe a pena, seja por erro de
proibição (inevitável ou evitável), seja por coação física ou moral (irresistível ou
resistível), pois as excludentes de culpabilidade constituem pressupostos da conde­
nação (vide erros freqüentes na aplicação da pena).

2 . Antecedentes do réu

Antecedentes são fatos passados da conduta do condenado dignos de nota, e,


pois, merecedores de apreciação na sentença, seja para aprová-la, seja para repro­
vá-la. Por óbvio que fatos posteriores ou conseqüentes ao crime não podem ser
tidos como antecedentes, simplesmente porque não o são. E que os antecedentes a
que se refere a lei são os antecedentes ao crime e não à sentença.
Somente os episódios que, direta ou indiretamente, ou que de alguma forma
tenham relação com o fato, devem ser levados em consideração, seja porque
tenham influenciado, ainda que remotamente, a prática do crime, seja porque reve­
lam maior periculosidade do agente.45
Cumpre lembrar que a Constituição considera que ninguém será considerado
culpado senão após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5e,
LVII), motivo pelo qual inquéritos policiais e processos penais em curso ou arquiva­
dos, bem como condenações ainda em grau de recurso, não podem implicar maus
antecedentes, sob pena de violação ao princípio, pois do contrário será imposta uma
condenação reflexa, permitindo-se pela via indireta o que a lei proíbe diretamente,
conforme tem decidido o Supremo Tribunal Federal em julgados recentes.46
Apesar disso, há copiosa jurisprudência em sentido contrário, admitindo que
ações penais em curso podem ser consideradas como maus antecedentes.
Com maior força de razões, não podem ser considerados para esse efeito fatos
desabonadores e mesmo criminosos que não foram objeto de investigação policial.

45 G ilberto Ferreira, cit., p. 83 -8 4 .


46 Presunção constitucional de não-culpabilidade (cf, art. 5Q, LVH). Mera existência de inquéritos policiais
em curso (ou arquivados), ou de processos penais em andamento, ou de sentença condenatória ainda
suscetível de impugnação recursal. Ausência, em tais situações, de título penal condenatório irrecorrível.
Conseqüente impossibilidade de formulação, contra o réu, com base em episódios processuais ainda não
concluídos, de juízo de maus antecedentes. Pretendida cassação da ordem de "habeas corpus". Postulação
recursal inacolhível. Recurso extraordinário improvido (STF, RE nõ 464947, Rei. Min. Celso de Mello).
D ireito P en al - Parte G eral

É comum considerar como maus antecedentes a própria reincidência, desde


que tenha decorrido o prazo legal de cinco anos que a extingue. No entanto, essa
utilização da reincidência como maus antecedentes é ilegítima, porque se está
ainda a utilizá-la embora com nome diverso, em afronta ao princípio da legalidade
das penas. Ademais, se não se pode o mais (aumento pela reincidência), não se pode
o menos (aumento por maus antecedentes). Finalmente, a ser tolerada uma tal coisa
e se estará a perpetuar o possível aumento da pena.47 Também não podem ser
reconsideradas as circunstâncias que já foram tomadas em conta na própria senten­
ça (n e bis in idem).
Se assim é, que restaria a título de maus antecedentes? Unicamente, as conde­
nações com trânsito em julgado que, apesar disso, não importam reincidência na
forma da lei. E mais: é necessário que não incida nenhuma das hipóteses do art. 64
do Código, a saber: decurso do prazo de cinco anos, a contar da extinção da pena
pelo crime anterior,48 e condenação por crimes militares próprios e políticos, pois
não geram reincidência.
No caso de tráfico de droga, se o agente for primário, de bons. antecedentes e
não integrar organização criminosa, a pena é reduzida de 1/6 a 2/3.

3. Conduta social

A conduta social, que praticamente se confunde com os antecedentes, diz res­


peito às relações do acusado com a família e sua adaptação ao trabalho, ao estilo de
vida honesto ou desonesto.49 De acordo com Guilherme de Souza Nucci, o magis­
trado precisa conhecer a vida pessoal de quem está julgando, a fim de saber se
merece uma reprimenda maior ou menor, daí a importância das perguntas que
devem ser feitas ao acusado no interrogatório e às testemunhas durante a instru­
ção. Assim, por exemplo, um péssimo pai e marido violento, em caso de condena­
ção por lesões corporais graves, merece pena mais severa do que o pai temo e espo­
so dedicado.50
De todo modo, difícil é compatibilizar o exame da conduta social do apenado
com a perspectiva de um direito penal do fato, já que deve responder penalmente
pelo que faz e não pelo que é.
Para avaliar a conduta social do condenado, o juiz não poderá, por óbvio,
ignorar o contexto social em que está inserido e as possibilidades reais de se com­
portar na sociedade e interagir com o meio, sob pena de julgar não propriamente
um homem, mas um estereótipo.

47 No sentido do texto, Paganella Boschi, cit.


48 No mesmo sentido, Paganella Boschi, Penas e seus critérios de aplicação , Porto Alegre: Livraria do Advo­
gado Ed., 2000, p. 208.
49 Fragoso, Lições , cit., p. 322.
50 Individualização da pena, cit., p. 201.
Paulo Queiroz

4. Personalidade do réu

Mais difícil ainda será, como assinala Paganella Boschi, a avaliação da perso­
nalidade do réu, seja porque como regra o juiz não domina conteúdos de psicolo­
gia, antropologia ou psiquiatria, seja porque possui, como todo indivíduo, atributos
próprios de personalidade, por isso que a valoraçâo que se faz nas sentenças crimi­
nais é quase sempre precária, superficial, e não raro preconceituosa, limitada a afir­
mações genéricas do tipo “personalidade ajustada”, “desajustada”, “agressiva”,
impulsiva”, “boa”, “má”, que nada dizem tecnicamente.51
Já não bastassem tais dificuldades, aliada a sua irrelevância mesma, semelhan­
te avaliação é de todo ilegítima no contexto de um direito penal do fato, pois, além
de possibilitar ao julgador invadir arbitrariamente âmbito da liberdade onde não
lhe é lícito opinar (interioridade da pessoa), estabelece uma verdadeira porta aber­
ta para a perversão do princípio da culpabilidade pelo fato.52 Logo, e de acordo com
um direito penal garantista, são admissíveis apenas normas que proíbam e previ­
nam fatos, e não normas que proíbam ou desmoralizem identidades, apenas juízos
que acertem a prova de uma ação e não valorações sobre a personalidade do réu;
apenas tratamentos punitivos relacionados ao fato previsto como crime e resolvido
mediante provas e não tratamentos individualizados e modelados sobre a persona­
lidade do imputado ou recluso,53 em geral argumentos potestativos e, por isso, difi­
cilmente refutáveis.

5. Motivos do crime

Para a fixação da pena-base, o juiz deve também sopesar os motivos do crime,


isto é, as razões próximas e remotas que levaram o agente a praticar o delito. Nesse
sentido, são mais reprováveis, por exemplo, os crimes que tenham como motivação
a inveja, o ódio gratuito, a ambição desmedida, a lascívia etc. Contrariamente, são
menos censuráveis os crimes que tenham uma motivação nobre, como a defesa da
própria honra injustamente ofendida, a fé, o amor etc. Por certo que tais motivos
não deverão ser considerados como circunstâncias judiciais quando já fizerem parte
da definição do próprio tipo penal ou já constituírem circunstância atenuante,
agravante ou qualificadora (ne bis in idem).
Exatamente por isso não podem ser tomadas em consideração as motivações
inerentes à própria infração penal e, pois, já valoradas por ocasião da tipificação,
como, v. g., a “libido exacerbada” ou a “falta de pudor”, nos crimes sexuais; a
“ganância”, a “ambição” ou o “ganho fácil”, nos crimes patrimoniais ou tráfico de
droga; o desprezo à pessoa humana, nos crimes contra a vida etc.

51 Paganella Boschi, Penas, cit., p. 211.


52 Saio de Carvalho, Aplicação da pena e garantismo, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 51-52.
53 Ferrajoli apud Saio de Carvalho, Aplicação da pena, cit., p. 53.
D ireito Penal - Parte G eral

6. Circunstâncias e conseqüências do crim e

As circunstâncias são dados ou fatos (lugar, modo de execução etc.) que estão
em derredor do crime e que devem ser tomados em conta para efeito de individua­
lização da pena.
Já as conseqüências do crime são os efeitos principais e secundários decorren­
tes da infração cujo grau (maior ou menor) de lesividade (social e individual)
devem ser considerados, de modo a ensejar a aplicação de uma pena justa. Mas ao
contrário do que por vezes se afirma,54 tanto nos crimes dolosos quanto nos culpo­
sos tais conseqüências devem influir na dosagem da pena, mesmo porque a lei não
faz nenhuma distinção no particular.
Como assinala Paganella Boschi, as conseqüências do crime a que se refere o
art. 59 são evidentemente aquelas que se projetam para além do fato típico, por­
que, se assim não fosse, poderiam acarretar a quebra da regra do n e bis in idem ,
especialmente naqueles casos em que aparecem compondo a figura penal. Daí por
que é inviável na dosimetria da pena-base do homicídio valoraçâo negativa das
conseqüências, porque a morte da vítima é condição para que o tipo se realize; a
incapacidade para o trabalho não pode ser considerada como circunstância judi­
cial no crime de lesões corporais gravíssimas porque integra o tipo; no infanticí-
dio, o estar a vítima à mercê da ré é circunstância co-natural ao delito. Já o desam­
paro da prole e os inconvenientes dos reiterados tratamentos médicos para a cor­
reção ou eliminação da grave perturbação emocional da vítima podem ser perfei­
tamente considerados.55

7. Comportam ento da vítima

Também é relevante para a aplicação de uma pena justa saber sobre o compor­
tamento da vítima no desenrolar do episódio criminoso, vale dizer, a forma como
a conduta da vítima pôde favorecer ou motivar a atuação criminosa do agente.
Cumpre notar, porém, que o comportamento do ofendido deve ser apreciado de
modo amplo no contexto da censurabilidade do autor do crime, não só podendo
diminuir como aumentar eventualmente a pena.56 Claro que o comportamento que
aí se supõe não é aquele que enseja a invocação da legítima defesa, por exemplo,
nem o privilégio de alguns crimes (assim, o homicídio - CP, art. 121, § l e), mas
condutas que em nada afetam a tipicidade ou a ilicitude do fato.

54 Assim, Delmanto ( Código Penal com entado , 6. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002), para quem, tratando-
se de crimes culposos, as conseqüências não devem influir.
55 Das penas e seus critérios de aplicação , Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2002, p. 212.
56 Delmanto, Código Penal comentado, cit., p. 95.
P a u lo Q u e ir o z

340
VIII. Segunda fase: fixação da pena provisória

Fixada a pena-base com base nas circunstâncias judiciais do art. 59, o juiz pas­
sará à segunda fase (fixação da pena provisória), sopesando as circunstâncias legais
atenuantes (CP, art. 65) e agravantes (CP, arts. 61 e 62), as quais têm por fim limi­
tar a discricionariedade judicial, de modo a assegurar uma pena proporcional à
infração cometida. Tais circunstâncias constituem dados ou fatos acidentais que,
embora não modifiquem a tipificação da conduta, devem ser obrigatoriamente
considerados na fixação da pena.
Não incidem, porém, sempre que já figurem como causas de diminuição ou de
aumento de pena ou qualificadoras (ne bis in idem ). E que, constituindo^ circuns­
tâncias genéricas, devem ser desconsideradas quando o tipo penal especificá-las.
Assim, por exemplo, o motivo de relevante valor social ou moral, em relação ao
crime de homicídio, visto que já integra o tipo de homicídio privilegiado (art. 121,
§ l e); o motivo torpe ou fútil, quanto ao homicídio, porque já faz parte do homicí­
dio qualificado (art. 121, § 2e, I e II) etc.
Também por essa razão (ne bis in idem), jamais uma circunstância atenuante
ou agravante poderá ser valorada mais de uma vez.

IX. Circunstâncias agravantes em espécie

Introdução

As circunstâncias agravantes são dados ou fatos acidentais, objetivos ou sub­


jetivos, que, embora não façam parte da estrutura do crime, são importantes para a
verificação da maior culpabilidade do agente; e diferentemente das atenuantes o
rol das agravantes é taxativo, motivo pelo qual o juiz não pode admitir outras que
não constem da lei, sob pena de ofensa ao princípio da legalidade da pena. Além
disso, e à exceção da reincidência, todas são aplicáveis exclusivamente aos crimes
dolosos, pois o que se castiga em última análise é atuação qualificada do agente em
virtude das variáveis do caso concreto.

1. Reincidência

a) Significado e requisitos. Por força do princípio constitucional da presunção


de inocência (CF, art. 5Q, LVII: ninguém será culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória), só pode ser considerado reincidente quem cometer
novo crime depois de transitar em julgado sentença penal condenatória que o
tenha condenado por crime anterior (CP, art. 63). A reincidência requer assim o
concurso de dois requisitos: a) trânsito em julgado de sentença penal condenatória
por crime anterior; b) cometimento de novo crime. Portanto, pode ocorrer de o
D ireito Penal - Parte Geral

agente praticar diversos crimes sucessivamente e, apesar disso, ser considerado não
reincidente em todos os processos contra si instaurados. Exemplificando: se o agen­
te, depois da prisão em flagrante em delito, vem a confessar outros delitos cometi­
dos anteriormente, cuja autoria era até então ignorada, será primário nas várias
ações penais a que responder, uma vez que nenhum dos crimes foi praticado pos­
teriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Por isso que para a configuração da reincidência não basta o cometimento de
novo crime; é necessário que esse novo crime tenha sido cometido após transitar
em julgado a sentença que, no Brasil ou no estrangeiro, o tenha condenado por
crime anterior. Também não é suficiente que tenha havido uma sentença conde­
natória, se esta, ainda pendente de recurso, não passou em julgado. Ademais, é irre­
levante se o agente cumpriu ou não a condenação anterior que gerou a reincidên­
cia (reincidência ficta).
Não têm caráter condenatório e, pois, não induzem reincidência: a) a sentença
concessiva de perdão judicial (CP, art. 120); b) a sentença que aplica medida de segu­
rança (conforme doutrina majoritária); c) a decisão que aplica pena restritiva de
direito em transação penal (Lei 9.099/95, art. 76, § 4S); d) a decisão concessiva de sus­
pensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89); e) a decisão que homologa a
composição civil (Lei 9.099/95, art. 74). À exceção da prescrição da pretensão execu-
tória, o reconhecimento da prescrição (retroativa ou superveniente) afasta a reinci­
dência, uma vez que implica desconstituição da própria sentença condenatória.
Como a lei refere especificamente o cometimento de crim e anterior, segue-se
que contravenção an terior não gera reincidência. Entretanto, por força do que dis­
põe o art. 7e da Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei ne 3.688/41), haverá reinci­
dência quando o agente praticar uma contravenção depois de passar em julgado
sentença que o tenha condenado por outra contravenção (no Brasil) ou por qual­
quer crime (no Brasil ou no estrangeiro). Em conclusão, tem-se a seguinte e inex­
plicável situação: se o agente comete duas contravenções, há reincidência; se pra­
tica dois crimes, também; idem se for crime e contravenção. Todavia, se praticar
contravenção e crime, não haverá reincidência(?).
A reincidência produz diversos efeitos penais, de modo a restringir ou invia­
bilizar o exercício de certos direitos, tais como: a) figura como circunstância agra­
vante obrigatória; b) constitui circunstância preponderante quando houver concur­
so de agravantes e atenuantes; c) amplia os prazos de livramento condicional; d) im­
pede o livramento condicional quando houver reincidência específica em crime
hediondo ou afim; e) interrompe e aumenta o prazo da prescrição da pretensão exe-
cutória; f) impede a substituição da pena de prisão por restritiva de direito quando
houver reincidência específica etc.
A prova da reincidência deverá ser feita mediante certidão do cartório com­
petente, não bastando a simples exibição de folha de antecedentes, nem sempre
exata, nem sempre atualizada.
Paulo Queiroz

Há quem entenda que, se a reincidência decorrer de duas ou mais condena­


ções, o juiz poderá considerar uma delas como maus antecedentes para aplicação da
pena-base, e a outra como agravante, para fixação da pena provisória. Mas um tal
manuseio da reincidência ofende o princípio da legalidade e implica bis in idem,
uma vez que, embora com nome diverso, se estará ainda a elevar a pena com base
na mesma circunstância: a reincidência. Além disso, não se pode ignorar que a
reincidência é espécie do gênero maus antecedentes, sua máxima expressão, moti­
vo pelo qual não pode ensejar múltiplos aumentos, ora com o nome de maus ante­
cedentes, ora com o nome de reincidência.
b) Crimes que não geram reincidência. Nem todos os crimes geram reincidên­
cia, porém. O Código excepciona os crimes militares próprios e os crimes políticos
(art. 64, II). Crimes militares próprios são as infrações definidas exclusivamente no
Código Penal Militar, e que somente podem ser cometidas por militar (v. g., deser­
ção, abandono de posto, insubordinação etc.), e não o civil. Não se confundem, por­
tanto, com crimes militares impróprios, que podem ser praticados por qualquer
pessoa (militar ou civil).
Já os crimes políticos são as infrações penais contra a segurança interna e
externa do Estado, sendo puramente políticos os crimes que atentam exclusiva­
mente contra interesses políticos da nação (v. g., incitação ou propaganda subver­
siva) e relativamente políticos são os crimes que se referem a fatos puníveis segun­
do a lei penal comum, praticados com finalidade político-subversiva (v. g., roubo
ou seqüestro com fins políticos).57 Somente os primeiros - puramente políticos -
não geram reincidência.
Extinção da reincidência. Além disso, a reincidência não é perpétua, haja vista
que, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena anterior e a prática da
infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos, extin-
guir-se-ão todos os efeitos da reincidência, é dizer, o sentenciado volta à condição
de primário (CP, art. 64, II). Estando o réu no gozo de livramento condicional,
computar-se-á também, no prazo legal de cinco anos, tempo em que o condenado
esteve sob livramento, desde que não tenha havido revogação. Assim, se condena­
do a seis anos de prisão, após quatro anos, cumpriu o restante (dois anos) solto, em
virtude do livramento, os efeitos da reincidência extinguir-se-ão em três anos, a
contar da audiência admonitória, e não da sentença que declara extinta a pena, por
força do cumprimento das condições legais do benefício. O mesmo ocorrerá se esti­
ver em gozo de suspensão condicional da pena (sursis).
Como vimos, autores há que entendem que, retomando a condição de primá­
rio, em razão do decurso do prazo de cinco sem praticar novo delito, p o d e r - s e - á ,
não obstante, usar tal condenação como maus antecedentes. Também aqui, no en­
tanto, há clara ofensa ao princípio da legalidade, pois, se, com o decurso do prazo,

57 Fragoso, liç õ e s , cit., p. 330.


D ireito Penal - Parte Geral

cessa a reincidência, principal forma de maus antecedentes, ela não pode ser apro­
veitada para outros fins, frustrando a finalidade da lei, até porque o acessório (maus
antecedentes) deve seguir a sorte do principal (a reincidência). Mais: os maus ante­
cedentes acabariam assumindo caráter perpétuo.
d) Inconstitucionalidade da reincidência. Apesar de consagrada pela maioria
dos Códigos, a reincidência, que encerra uma presunção absoluta de maior perigo­
sidade do réu, é sem dúvida incompatível com os princípios penais, particularmen­
te com os princípios da proporcionalidade e da ofensividade.
Cumpre notar, inicialmente, que, com a relativização determinada pelo prin­
cípio da presunção legal de inocência, o instituto perdeu grandemente o seu senti­
do, uma vez que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso do que o não rein­
cidente. Afinal, o agente pode ser primário, não obstante ter praticado diversos
delitos, assim como pode ser reincidente, mas em crimes de menor potencial ofen­
sivo.58 É de reconhecer, portanto, que a reincidência já não constitui um sintoma
seguro de maior perigosidade, não se justificando, também por essa razão, sua exis­
tência. Por isso não é exato dizer que a reincidência é um sinal de periculosidade,
como a febre é sinal de infecção, como a putrefação é sinal de morte (Hungria).
Além disso, a reincidência não passa, como assinala Munoz Conde, de uma
pena tarifada, na medida em que ela atua como causa de agravamento da pena fun­
dada em fato diverso, gerador de culpabilidade e de responsabilidade próprias, de
modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência eqüivale à pena sem cul­
pabilidade, estranho ao fato e que importa dupla valoração da mesma causa, cons­
tituindo bis in idem .59
Por isso é que Cobo dei Rosai e Vives Antón propõem a abolição pura e sim­
ples do instituto, porque, além de incompatível com um direito penal da culpabi­
lidade pelo fato, está evidenciada sua total ineficácia.60

58 Sem razão, portanto, Mirabete, quando afirma que “a exacerbação da pena justifica-se plenamente para
aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir, demonstrando com sua conduta criminosa que a
sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidá-lo ou recuperá-lo. Há, inclusive, um
índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide” (Manual, cit., p. 301).
59 Apud Paganella Boschi, Penas, cit. No mesmo sentido, André Copetti, para quem, ao aumentar a pena do
delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência, em realidade se está punindo no­
vamente a situação já sentenciada (Direito penal, cit., p. 194). Idem, Saio de Carvalho ( Aplicação da pena,
cit.) e Lênio Streck ( Tribunal do Júri: símbolos e rituais, Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2001).
Com razão, Paganella Boschi assinala que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justifica­
da como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime,
insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, deve ser compreen­
dida, também, como expressão final do processo de perversão e de estigmatização do homem pela prisão
ou peJa absoluta falta d e políticas oficiais de amparo ao egresso, criadoras de novas oportunidades para a
harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho (Penas, cit., p. 269). Por isso, entende Juarez Cirino
que em verdade a reincidência ou deveria ser atenuante, quando houvesse o cumprimento da pena, em
virtude da dessocialização decorrente da experiência carcerária, ou deveria ser penalmente indiferente,
quando não tivesse havido o cumprimento da pena ( Direito penal , Rio de janeiro: Forense, 1985» p. 245).
60 D erecho penal, cit., p. 815. Escrevem os citados autores, textualmente: “a reincidência, pois, não nos deve
situar em outro Direito Penal. De um Direito Penai distinto ao da mera e única repressão por meio da
pena; de um Direito Penal preventivo e de medidas de segurança, que conhece e concede maior relevância
P a u lo Q u e ir o z

344
Mas se a reincidência for tolerada, como o é ordinariamente, temos que o
agravamento que dela decorrer jamais poderá implicar aumento igual ou superior,
mas sempre inferior à pena que fora imposta na sentença condenatória precedente
que a ensejou, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade, uma vez que
o acessório (agravante da reincidência) não pode exceder o principal (a pena
imposta). Assim, se o réu foi condenado anteriormente a uma pena de dois anos por
furto, não poderá a agravante acarretar na condenação (posterior) a seis anos por
tráfico aumento de metade (três anos) e assim fixar a pena definitiva em nove anos
de prisão. Idem se a condenação anterior fosse por lesão corporal a pena de um ano
parece evidente que, na nova condenação por latrocínio a vinte anos de prisão, não
poderia o aumento decorrente da reincidência ser de metade (dez anos), isto é, dez
vezes a pena precedente.
Cumpre dizer, por fim, que existem autores que propõem que a reincidên­
cia, em vez de ensejar o agravamento da pena, deve, ao contrário, justificar sua
atenuação. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos, para quem é necessário reco­
nhecer: a) se o novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema
formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal, o proces­
so de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria
induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuan­
tes, como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre
sujeitos criminalizados; b) se o novo crime é cometido após a simples formalida­
de do trânsito em julgado de condenação anterior, a reincidência ficta não indi­
ca qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância
agravante. Conclui, então, que, no caso de reincidência real (o condenado cum­
priu de fato a pena, passando pela experiência carcerária), deve ela ensejar a ate­
nuação da pena; na hipótese de reincidência ficta (o condenado não chegou a
cumprir pena alguma, por qualquer motivo, como fuga, por exemplo), tal cir­
cunstância é irrelevante, devendo ser ignorada.61

2. Motivo fútil ou torpe

O Código refere, como agravante genérica, o motivo fútil ou torpe. Torpe é


motivo que mais vivamente ofende a moral média ou o sentimento ético-social
comum. É o motivo abjeto, ignóbil, repugnante, que imprime ao crime um caráter
de extrema vileza ou imoralidade, a exemplo do fim de lucro ou cupidez, o prazer
do mal, o desenfreio da lascívia, a vaidade criminal, o despeito da imoralidade con­

não tanto ao delito, mas ao estado perigoso, entendido como pressuposto da aplicação daquelas. E dentro
deste marco, seguimos, apesar de tudo, propugnando o desaparecimento do instituto da reincidência , em
suas distintas manifestações, assim como em sua consideração como agravante da pena, pois está eviden­
ciada a sua total inoperatividade”.
61 Direito Penal, cit.
D ireito Penal - Parte Geral

trariada etc.62 É preciso, porém, não perder de vista que, para alguns crimes, tal
motivo pode simplesmente constituir um “estado normal” de quem se determina a
praticá-lo, e, em conseqüência, deve ser desprezado, sob pena de dupla valoraçâo
do fato (bis in idem ). Assim, não cabe tomar em conta a motivação lasciva para os
crimes sexuais, o motivo de lucro para os delitos contra o patrimônio (extorsão
mediante seqüestro, receptação, estelionato) etc.
Fútil é o motivo frívolo, insignificante, absolutamente desproporcionado, que
exprime total indiferença do sujeito para com o bem jurídico tutelado. Apesar isso,
não pode ser considerado fútil a simples falta de motivo, nem a só injustiça do
motivo. Assim, se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o
motivo fútil traduz egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até a
insensibilidade moral.63 Também aqui é preciso estar atento para a possibilidade de
ocorrência de bis in idem , já que o caráter fútil do crime pode já integrar a própria
tipificação, sendo inerente à sua estrutura.
Discute-se se o ciúme pode ser considerado motivo fútil. Parece-nos que,
sobretudo quando se tratar de ciúme havido entre casais, tal não pode ser tomado
à conta de fútil, especialmente em virtude da tradição moral cristã (que nos afeta a
todos) que atribui à fidelidade conjugal extraordinária relevância, e mais ainda
quando se tratar de ciúme fundado.
Finalmente, de acordo com a jurisprudência, o motivo fútil é em princípio
incompatível com a embriaguez.

3. Para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade


ou a vantagem de outro crim e

O crime é também agravado sempre que for praticado para facilitar ou asse­
gurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime. Na pri­
meira hipótese, o que agrava não é prática efetiva do crime, mas o fim de cometer
outro crime. Assim, por exemplo, o indivíduo que, ao tentar uma extorsão median­
te seqüestro, mata a pessoa que se interpõe para evitá-lo, não deixa de responder
por homicídio qualificado, ainda quando a seguir desista de consumar a extorsão
mediante seqüestro. Também nas outras hipóteses a agravante não depende da real
consecução do fim a que se propõe o agente. Na segunda e terceira hipóteses, o
escopo do agente é destruir a prova de outro crime ou evitar as conseqüências pro­
cessuais ou penais dele decorrentes (v. g., executanto testemunha do crime). Na
última hipótese, o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem,
patrimonial ou não, direta ou indireta, resultante de outro crime, não importando
em nenhuma desses casos se o agente atua em favor próprio ou de outrem.64

62 Hungria, Comentários, cit., v. 5, p. 163.


63 Hungria, cit., p. 164 Hungria, cit., p. 164.
64 Hungria, idem, p. 171.
Paulo Queiroz

Também aqui é discutível se não há bis in idem , haja vista que o agente pode­
rá também responder pelo crime que pretendeu facilitar, assegurar a execução, a
ocultação ou a impunidade.

4. Traição, emboscada, dissimulação ou qualquer recurso que


dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido

Também agravam a pena a traição, a emboscada, a dissimulação ou qualquer


outro recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa do ofendido. A traição
é o crime cometido mediante ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima, descui­
dada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso. Emboscada é a dissimula­
da espera da vítima em lugar por onde terá de passar; é a tocaia, enfim. Nela, o cri­
minoso, escondido, aguarda a passagem da vítima desprevenida, que fica à sua
mercê. Dissimulação é a ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de
surpresa. O criminoso age com falsas amostras de amizade ou de tal modo que a
vítima, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta
e indefesa.65 Finalmente, constitui agravante genérica o uso de qualquer recurso
que, à semelhança da traição, da emboscada e da dissimulação, dificulte ou torne
impossível a defesa da vítima, como o uso de algemas, imobilização, surpresa etc.
Em síntese, tais circunstâncias ocorrem quando o agente quebra deliberada­
mente o dever de lealdade e ataca pelas costas (traição); monta previamente uma
cilada ou tocaia para apanhar a vítima (emboscada); ou, sorrateiramente, dela se
aproxima, com ares de amigo, para colocar-se em vantagem (dissimulação); sendo
que em todas essas situações, em que o ofendido é colhido repentinamente, sem
condições de defesa eficaz, justifica-se a exasperação da pena porque o agente, que
tinha tempo para refletir e desistir do intento, optou por prosseguir.66

5. Emprego de veneno, explosivo etc.

O emprego de veneno, o fogo, o explosivo, a tortura ou outro meio insidioso


ou cruel e o meio de que poderia resultar perigo comum também agravarão a pena.
Veneno é toda substância que, introduzida no organismo, é capaz de, mediante
ação química ou biológica, lesar a saúde ou destruir a vida; explosivo é qualquer
corpo capaz de se transformar rapidamente em gás à temperatura elevada, a exem­
plo dos derivados da nitroglicerina (dinamite), da nitrobenzina (belite), do nitro-
cresol (cresolite), da nitronaftalina, do nitrotolueno etc.; a tortura é o suplício,
inflição de tormentos; meio insidioso é o meio dissimulado na sua influência malé­
fica; meio cruel é todo aquele que causa um sofrimento físico inútil ou mais grave

65 Hungria, cit., p. 168/169.


66 Paganella Boschi, Penas, cit., p. 273.
D ireito Penal - Parte Geral

do que o necessário e suficiente para a consumação do crime; meio de que possa


resultar perigo comum é o que, além de atingir a vítima escolhida, pode criar uma
situação de perigo extensivo a número indeterminado de pessoas.67

6. Embriaguez preordenada

Conforme vimos, a pena será igualmente agravada quando o crime resultar de


embriaguez preordenada (actio libera in causa), que ocorre quando o agente, fazen­
do uso de droga lícita ou ilícita, se coloca dolosamente nessa condição a fim de
delinqüir, seja para encorajar-se, seja para simular uma excludente da culpabilida­
de, seja por qualquer outro motivo; trata-se de uma espécie de embriaguez volun­
tária dolosa, portanto.
As demais formas de embriaguez - dolosa, culposa ou acidental - não têm
relevância no particular, isto é, para o fim de agravamento da pena.

7. Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge

A pena será também exasperada quando se tratar de crime praticado contra


ascendente, descendente, irmão ou cônjuge. A propósito, Paganella Boschi afirma
que “os deveres de auxílio mútuo, de fraternidade e de respeito, próprio de pessoas
que mantêm laços de parentesco próximo, justificam, moral e juridicamente, a mais
intensa reação do direito penal, quando são violados”.68 Mas isso não é de todo
exato, porque da relação de parentesco não decorre necessariamente o dever de
manter relações fraternais, pois não raro parentes próximos convivem e se relacio­
nam entre si como autênticos inimigos, de modo que não há aí motivo algum para
se auxiliarem mutuamente. Na verdade, a incidência ou não dessa agravante deve
ser avaliada concretamente, porque do contrário se estará conferindo caráter abso­
luto a uma presunção legal, além de confundir direito e moral.
Também não poderá incidir a agravante naquelas hipóteses que o crime for
praticado em represália a abusos sexuais ou semelhante por parte de parente pró­
ximo, até porque tais motivos podem eventualmente ensejar a invocação da legíti­
ma defesa inclusive.
Entende Ney Moura Teles, com razão, que, se é justa a agravação em face da
maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas, esti­
madas, não se pode aplicá-la se o crime é cometido contra cônjuge do qual o outro
já se encontrava separado, ainda que tão-somente de fato, porquanto entre eles já
não existiam relações cuja agressão autorizava a majoração da reprimenda.69 Mas

67 Hungria, Comentários , cit., p. 166-167.


68 Penas, cit., p. 277.
69 Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Atlas, 2006, p. 383.
P a u lo Q u e ir o z

ao contrário do que sustenta este autor tal rol não pode ser ampliado para incluir
outras pessoas com as quais o autor do crime tenha especial estima ou relação de
intimidade (concubina etc.), sob pena de violação ao princípio-garantia da legali­
dade da pena.70 Tampouco incidirá a agravante se o réu desconhecer o parentesco
por algum motivo, a evitar a responsabilidade penal objetiva.
Naturalmente que sempre que o parentesco já fizer parte da descrição legal do
tipo ou já o qualificar ou aumentar a pena não incidirá a agravante, como, v. g., lesão
corporal no âmbito doméstico (art. 129, § 9°), omissão de socorro (CP, art. 135),
bigamia (art. 235), abandono material (CP, art. 244), abandono intelectual (CP, art.
246) etc. Não é preciso dizer que a prova do parentesco deverá ser feita mediante
documento hábil, como certidão de casamento ou nascimento, conforme o caso.

8. Contra criança, maior de sessenta anos, enfermo e m ulher


grávida

O sentido da maior agravação do crime praticado contra criança (pessoa


menor de doze anos, conforme dispõe o ECA), maior de sessenta anos, enfermo ou
mulher grávida é precisamente a inferioridade e menor capacidade de resistêncià
destes em relação ao agente,71 de modo que todos esses casos partem da mesma pre­
sunção: a de que tais pessoas são mais vulneráveis e, portanto, não têm como esbo­
çar mínima reação. Mas, por se tratar de uma presunção, cumpre verificar se no
caso concreto há de fato essa maior vulnerabilidade, pois se não existir descaberá
sua incidência. Assim, não poderá incidir quando a vítima, apesar de se achar nes- <
sas hipóteses (v. g., maior de sessenta anos, em excelente estado físico, por ser exí;_
mio conhecedor de artes marciais), tiver inclusive em situação de igualdade ou^
superioridade física relativamente ao agente do crime. Tampouco poderá incidir se ,
o agente desconhecer esta condição da vítima (v. g., mulher grávida cujos sinais de
gravidez ainda não apareceram), sob pena de incorrer-se em r e s p o n s a b ilid a d e
penal objetiva. Por último, não cabe a agravante se não houver relação a lg u m a
(nexo causai) entre o fato praticado e essa especial condição da vítima, irrelevante -
que é para o caso, como, por exemplo, o furto do automóvel pertencente a tais pes-
soas. N o entanto, se se tratar de crime de roubo, praticado que é com violência ou
grave ameaça à pessoa, incidirá a agravante.

soas civilmente casadas, não sendo possível fazer interpretação analógica ou extensiva, por ser
partem. Entretanto, a agravante poderá incidir com fundamento na alínea f, se o delito foi com*
prevalecimento de relações domésticas ou de coabitação”. Aplicação da pena, cit., p. 240.
71 Paganella Boschi, Penas, cit., p. 279.
9. Abuso de poder ou violação inerente a cargo, ofício,
ministério ou profissão

Cargo é o posto criado por lei na estrutura da administração pública; função,


um conjunto de atribuições pertinentes ao serviço público, que pode ser exercida
também por quem não ocupe cargo; ministério, o exercício de atividade religiosa;
profissão, uma atividade especializada, legalmente regulamentada.72
Parte o legislador do pressuposto de que em tais casos maior é a reprovabili-
dade moral/social do crime cometido, em virtude da confiança inerente ao cargo,
ofício, ministério ou profissão que se exerce, mesmo porque em geral as suas víti­
mas (clientes, pacientes etc.) se acham em situação bem mais vulnerável, às vezes
de desamparo, em comparação com as vítimas comuns, freqüentemente sem poder
esboçar mínima reação. Assim, por exemplo, os crimes praticados por advogados
contra seus clientes, os abusos cometidos por profissionais de saúde (médicos, den­
tistas etc.) e autoridades religiosas (padres, pastores) contra pacientes e crentes, as
fraudes levadas a cabo por funcionários públicos etc.
Naturalmente que a agravante em questão não incidirá sempre que se tratar
da prática de delito em que o abuso de poder ou a violação do dever inerente ao
cargo, ministério, profissão etc. já integrar a própria figura típica (ne bis in idem).
Assim, não incide, ordinariamente, nos crimes de abuso de autoridade, peculato,
corrupção passiva, patrocínio infiel, entre outros, uma vez que a traição a um tal
dever é inerente à tipificação jurídico-penal da conduta.

10. Ofendido sob proteção de autoridade

Também agrava a pena a circunstância de a vítima do crime se achar sob a


proteção da autoridade (pessoa detida ou presa, testemunha sob proteção etc.), em
virtude de o autor do crime colher a vítima de surpresa, demonstrando, inclusive,
ousadia e maior periculosidade, a exemplo do arrebatamento de preso para execu­
ção. Note-se que autor do crime no caso é o particular, e não a autoridade pública
a quem se confiou a proteção, pois, se o for, o caso será de incidência da agravante
de abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo ou função.

Ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer


calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido

Também nessas hipóteses, em que a vítima se encontra em situação de maior


vulnerabilidade, manda o legislador que a pena seja agravada, em virtude de o

.^2 ~~~---------------------
G u ilh e r m e d e Souza Nucci, Individualização da pena, cit., p .2 5 5 / 7 .
Paulo Q ueiroz

-i jdade, valer-se de desgraça alheia


autor do crime, além de revelar especial insensibi ^ yídma de acidente automo-
para cometer crime (v. g., em vez de prestar s o c o
bilístico, aproveita para subtrair valores).
. . ^fn de relações domésticas,
12. Abuso de autoridade ou prevaiecim e11 .
• tj corn violência contra a
de coabitação ou de hospitalidade, ou
mulher na forma da lei específica
liar, tutela, curatela, organizações
Também nas relações privadas (poder aini ^ re]ação de autoridade, caso em
religiosas e civis, relações de trabalho) pode exis ^ ^ indevido por parte de quem
que, havendo abuso, isto é, uso ilegítimo, e x c e s s i . ^ dor considera que, em razão
a exerce, a pena será agravada. Também aqui o maj S grave censura, até porque
do poder que exercem, tais pessoas merecem um ^ era^ j (j a(j e_
em geral suas vítimas estão em situação de maio _gS domésticas, de coabitação
O mesmo ocorrerá se o agente se valer de re ^ meio famülarj eMre pais
ou de hospitalidade; domésticas são aquelas e x i s t ^ convivam em ambiente de
e filhos, irmãos, empregados domésticos e amigo mesm0 espaço físico e pressu.
família;73 coabitação significa a convivência em re\ações domésticas, sendo um
põe uma relação mais restrita e próxima do que ge reunidas para a vlda em
estado de fato em que duas ou mais pessoas ac^ ^ r a v a n t e que resulta de rela-
comum, no mesmo lugar, por qualquer tempo, . reSSo clandestino ou violento
ções de hospitalidade, que é i n c o m p a t í v e l com o ^ j^spedante, valendo-se dessa
em casa alheia,75 incidirá sempre que o hóspe e ^ houver. Finalmente, a pena
condição, praticar delito, quebrando a confiança q a mulher na forma da
será também agravada quando se tratar de v i o l e n ^ ^40/2006 .
lei específica, conforme redação dada pela Lei ne

13. Agravantes em concurso de pessoas


aso de concurso de pessoas, nem
Apesar de o Código se referir à agravante no algumas hipóteses constituem
todas as situações aí previstas o são realmente, ja q Ei-las-
autoria mediata e não concurso de agentes propr,a

„ „ racão ou dirige a atividade


13.1. Agente que promove, organiza a coope v
dos demais agentes
„ cnieito que promove, dirige a ati-
O legislador entendeu inicialmente que o J vale dlzet, a pessoa
vidade de outros agentes ou organiza a cooperaç^

384.
73 Ney Moura Teles. Direito Penal. Parte Geral. S.Paulo: Atlas,
74 Fernando Galvão. Direito Penal, p. 728.
75 Fernando Galvão, idem.
D ireito Penal - P arte Geral

que exerce função de liderança, o assim chamado autor intelectual, merece maior
censura, devendo sofrer pena agravada, afinal sua ação é essencial para o êxito da
empreitada criminosa, cabendo-lhe em geral definir como e quando se dará a ação
delituosa. Para que tenha lugar a agravante, é necessário que haja de fato comando
do agente relativamente à ação dos demais criminosos, porque do contrário, isto é,
se os co-réus decidirem praticar o crime sem que haja prevalência da decisão de uns
sobre os outros, a agravante em questão não incidirá. Enfim, a agravante só é cabí­
vel quando ficar claramente caracterizada a situação de liderança: promoção, dire­
ção ou organização para um agir criminoso.

13.2. Agente que coage ou induz outrem à execução material do crime

A pena também será agravante em relação ao agente que, para a execução


material do crime, tiver usado de coação, física ou moral, resistível ou irresistível.
Naturalmente que o coagido, no caso de coação física ou moral irresistível, será
absolvido; no primeiro caso, por ausência de ação (fato atípico); no segundo caso,
por ausência de culpabilidade. Se resistível a coação, seja física, seja moral (co-auto­
ria), o coagido será punido, mas fará jus à atenuante a que já nos referimos. No
entanto, o autor da coação, além de responder pelo crime cometido por meio do
coagido, responderá por esta agravante, de exercer coação sobre alguém. Se se
entender eventualmente que a coação constitui por si só crime autônomo, v. g.,
constrangimento ilegal, a agravante não poderá ser aplicada (ne bis in idem ), moti­
vo pelo qual a sua incidência pressupõe a não configuração, pela coação, de crime
autônomo. E certo ainda que a agravante não poderá ser aplicada se a coação,
embora exercida sobre o coagido, não tiver nenhuma influência sobre sua decisão
de tomar parte no crime.76
Também responderá pela agravante o agente que induzir, isto é, instigar, per­
suadir, incitar o agente a praticar o delito, desde que o induzido não queira ou não
tenha pensado em praticá-lo ou, ainda, não esteja decidido/determinado a tanto,
uma vez que se já tiver claramente formada a sua intenção de levar adiante uma
empreitada criminosa a agravante não incidirá. E que não existe aí indução jurídi-
co-penalmente relevante, ao menos para esse efeito específico.

13.3. Agente que instiga ou determina a cometer o crime alguém


sujeito à sua autoridade ou não punível em virtude de condição
ou qualidade pessoal

Também aqui o Código quer apenar mais gravemente pessoas que exerçam
algum tipo de influência importante sobre o autor, co-autor ou partícipe do crime,

76 Fernando Galvão. Direito Penal. Parte Geral. Rio: Im petus, 20 0 4 , p. 743.


Paulo Queiroz

instigando-o de algum modo, isto é, estimulando-o, motivando-o a tanto. A


expressão autoridade aí empregada deve ser entendida em sentido amplo, para
alcançar toda e qualquer pessoa que tenha de fato algum tipo de poder sobre a
outra, tais como os pais em relação aos filhos, tutores em relação aos tutelados,
professores em relação aos alunos etc. Também incidirá a agravante quando o
instigador se valer, para cometer o delito, de pessoa não punível em razão de sua
condição ou qualidade pessoal: menores, alienados mentais e incapazes de um
modo geral.

13.4. Paga ou promessa de recompensa

Por fim, a pena será agravada sempre que o crime for motivado pelo pagamen­
to ou promessa de recompensa, ainda que não cumprida, hipóteses que já consti­
tuem motivo torpe, inclusive. Para que tenha lugar a agravante, não é preciso que
a vantagem prometida seja necessariamente patrimonial, podendo consistir em
outros meios, como promessa de emprego, favores sexuais etc. No entanto, o assun­
to é controvertido, havendo quem entenda, como Fragoso, que a promessa de
recompensa deve ter caráter econômico obrigatoriamente.77
Discute-se se a agravante é também aplicável ao mandante. Temos que de fato
só o executor deva responder por ela, uma vez que a lei quis atingir diretamente o
sujeito que, não tendo motivo algum para cometer o delito, nele intervém por
dinheiro, aceitando-o, ou até se dedicando, profissionalmente ou não, à atividade
criminosa. Aliás, quanto ao mandante, é irrelevante, do ponto de vista da censura-
bilidade da conduta, se ele comete o crime pessoalmente ou se vale de terceiro para
tanto, já que a culpabilidade é a mesma em ambos os casos, em nada se alterando.
Além disso, em geral, o mandante atua com motivação diversa do executor, poden­
do inclusive agir por motivo de relevante valor social ou moral. Como assinala
Fragoso, a qualificação do crime mercenário se justifica pela ausência de razões pes­
soais por parte do executor e pelo motivo torpe que o leva ao delito, algo que não
ocorre, em princípio, com o mandante, que busca a impunidade e a segurança, ser­
vindo-se de um terceiro.78 Desnecessário dizer que mandatos gratuitos não ense­
jam a incidência da agravante.
Naturalmente que a agravante não incidirá quando a vantagem econômica ou
de outra natureza for inerente ao tipo legal de crime {ne bis in idem). Assim, por
exemplo, não tem aplicação nos crimes patrimoniais, apropriação ou desvio de
dinheiro público (peculato), corrupção, tráfico de entorpecentes etc.

77 Lições de direito pena1, parte especial, v .l, Rio: Forense, 11. ed., 1995, p. 40.
78 Lições de direito penal, parte especial, v. 1. Rio: Forense, 11. ed., 1995, p. 40.
D ireito Penal - P arte G eral

X. Circunstâncias atenuantes em espécie

Introdução

As circunstâncias atenuantes são dados ou fatos acidentais, objetivos ou sub­


jetivos, que, embora não façam parte da estrutura do crime, são importantes para a
verificação da menor culpabilidade do agente; e, diferentemente das agravantes, o
rol das atenuantes não é taxativo, mas meramente exemplificativo, motivo pelo
qual o juiz pode admitir outras, anteriores ou posteriores ao delito, ainda que não
constem da lei expressamente (circunstâncias inominadas).

1. Idade do agente

A primeira atenuante a que se refere o Código é a circunstância de ser o agen­


te menor de vinte e um anos na data do fato ou maior de setenta anos na data da
sentença, por entender o legislador, no primeiro caso, que em razão da imaturida­
de menor é o grau de reprovabilidade da conduta, não importando a capacidade
civil; no segundo, por julgar, por motivos de eqüidade, que a lei deve ser menos
severa no que respeita aos idosos. Em ambos os casos, a prova da atenuante será
feita por meio de certidão de nascimento/casamento ou documento idôneo, confor­
me dispõe, inclusive, a Súmula 74 do STJ: “para efeitos penais, o reconhecimento
da menoridade do réu requer prova por documento hábil”.
Evidentemente, tanto a redução da maioridade civil para dezoito anos como a
definição de idoso como pessoa de sessenta anos não têm qualquer repercussão jurí-
dico-penal no particular.
Conforme se verá mais adiante, ambas as situações também têm repercussão
quanto ao prazo de prescrição, que são reduzidos de metade (CP, art. 115).

2. Desconhecimento da lei

A previsão do desconhecimento da lei como atenuante genérica já não faz


sentido algum, pois ou bem se trata de algo juridicamente irrelevante, uma vez que
a ignorância da lei é em princípio inescusável (CP, art. 21), ou bem é algo sério e a
ser tomado em conta, razão pela qual será o caso de exclusão da culpabilidade por
erro de proibição inevitável ou de redução da pena por erro evitável. Na verdade,
a norma em causa é, como diz Juarez Cirino dos Santos, um remanescente esclero-
sado do sistema causai do Código Penal de 1940, ainda fundado na dicotomia entre
erro de fato/erro de direito e regido pelo princípio ignorantia legis nem inem excu-
sa t se o erro de direito é irrelevante, então o desconhecimento é atenuante;79
devendo ser abolido, portanto.

79 Teoria da pena, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2 0 05, p. 133.


Paulo Queiroz

354
3. Motivo de relevante valor social ou moral

A motivação do crime implicará a atenuação da pena sempre que for impor­


tante, digno de consideração, que em razão disso importe menor grau de reprova-
bilidade. Motivo de relevante valor moral diz respeito a interesse particular do
agente; motivo de relevante valor social refere-se a interesse público, coletivo. É
que, embora possa parecer uma contradição, crimes há que podem ser cometidos
por um motivo não reprovável ou até nobre, como registrar, como próprio, filho
alheio, para protegê-lo, fato constitutivo de crime (CP, art. 242). Apesar de crimi­
noso o fato, a pena deve ser atenuada em razão do motivo de relevante valor moral
ou social. Eventualmente o motivo de relevante valor moral ou social poderá cons­
tituir causa de diminuição de pena, como ocorre no homicídio e lesões corporais
(CP, art. 121, § 1B, e art. 129, § 4S), hipótese em que a atenuante ficará prejudicada.

4. Evitação das conseqüências ou reparação do dano

Também atenua a pena o fato de o agente ter procurado por sua livre e espon­
tânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as
conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano. A eficiência a que se
refere a lei tem a ver com o esforço feito pelo agente para minorar as conseqüên­
cias e não quanto ao resultado lesivo da sua ação. Já a reparação do dano, que ora
figura como causa de extinção da punibilidade (v. g„ peculato culposo - CP, art.
312, § 3q, I a parte), ora como causa de redução de pena (arrependimento posterior
- art. 16), funciona como simples atenuante, desde que ocorra até o julgamento da
ação penal. Ambos os institutos têm aplicação subsidiária, uma vez que somente
incidirão quando não for o caso de invocação dos institutos principais, como a
desistência voluntária ou arrependimento eficaz, quando então sequer haverá
crime tentado (CP, art. 15), respondendo o agente somente pelos atos já praticados.
Também não serão aplicados nos casos em que já funcionarem como causa de redu­
ção de pena ou de extinção de punibilidade (v. g., arrependimento posterior).

5. Coação resistivel, cumprimento de ordem hierárquica etc.

A coação irresistível e o cumprimento de ordem hierárquica superior não ma­


nifestamente ilegal (art. 22) constituem causas de exclusão da culpabilidade, moti­
vo pelo qual conduzem à absolvição pura e simples do réu. Mas tratando-se de coa­
ção resistível ou de cumprimento de ordem hierárquica manifestamente ilegal, em
ambos os casos a pena será atenuada em razão disso, relativamente ao agente que
sofre a coação ou cumpre a ordem, pois o autor da coação (coator) e o superior hie­
rárquico que manda cumprir a ordem (mandante) sofrerão a pena legalmente pre­
vista, com incidência de agravante inclusive.
D ire ito P en al - Parte Geral

Por igual, a pena será mais branda quando o autor do crime tiver sido injus­
tamente provocado pela vítima ou, mais exatamente, quando o delito for cometido
sob a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima. Even­
tualmente a violenta emoção provocada por ato injusto da vítima poderá constituir
causa de diminuição de pena, como ocorre no homicídio e lesões corporais (CP, art.
121, § l 9, e art. 129, § 4<*).

6. Confissão espontânea

A confissão, para autorizar a atenuação em causa, não precisa decorrer neces­


sariamente de arrependimento, devendo ser reconhecida mesmo quando o agente,
ao confessá-la, pretenda apenas beneficiar-se da atenuante; portanto, basta que se
trate de confissão feita sem nenhum tipo de constrangimento, daí porque dificil­
mente será compatível com a prisão em flagrante, por exemplo. Mais: a se exigir,
como querem alguns autores, que se trate de “um reclamo de consciência moral,
em que a confissão da prática delitiva seja desprovida de outra causa que não a
satisfação íntima de lealdade consigo mesmo e em relação aos outros”,80 estar-se-ia
a confundir direito e moral, além de condicionar o reconhecimento da atenuante
a uma prova dificílima senão impossível. Também não se requer que a autoria seja
ignorada, sendo suficiente que, comparecendo perante a autoridade competente
(policial ou judicial), o agente confesse o delito sob apuração.
Mas confessar a “autoria do crime” não significa necessariamente confessar
um fato típico, ilícito e culpável, e sim confessar-lhe a materialidade e autoria. As­
sim, por exemplo, se o agente, embora confessando a prática do fato e sua autoria,
alega uma excludente de ilicitude ou culpabilidade (v. g., legítima defesa ou erro de
proibição), parece justo reconhecer em seu favor a atenuante, se vier a ser conde­
nado. Mas esse é um assunto controvertido.
Não parece razoável igualmente reconhecer a atenuante, sobretudo se ocor­
rida na fase policial, sem o crivo do contraditório e ampla defesa, se em juízo o réu
vier a se retratar, retirando ou negando a confissão antes feita. Mas o Supremo
Tribunal Federal decidiu recentemente em sentido contrário, alegando que a con­
fissão extrajudicial (policial) serviu de base para a condenação, reconhecendo a
atenuante.81
Finalmente, não se confunde a confissão espontânea com a delação premiada
ou colaboração espontânea do agente prevista nalgumas leis, a exemplo da Lei
9.034/95 (art. 6Q), situação em que o autor da infração penal não só a confessa, como
também denuncia os seus comparsas, fazendo jus à redução da pena ou à extinção
da punibilidade, conforme previsão na respectiva lei.

80 Fernando Galvão, Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, 2004, p. 763, citando Pedro Vergara.
81 HC 91654/PR, rei. Min. Carlos Britto, 8.4.2008.
Paulo Queiroz

356
7. Influência de multidão em tumulto, se não o provocou

Por entender que a influência de multidão em tumulto implica menor grau de


censurabilidade da conduta, o Código a eleva à condição de circunstância atenuan­
te. E que sob a influência de multidão em tumulto o agente é em geral mais pro­
penso a fazer coisas que jamais faria não fosse aquele estado em que viu envolvido,
como participar de dano a bens públicos, briga entre grupos rivais, tomar parte em
linchamento de autor de crime etc., havendo menor grau de culpabilidade. Na­
turalmente que o próprio sujeito que organizou ou provocou o tumulto não fará jus
à atenuante.
Fixada a pena definitiva, ao juiz caberá especificar o regime prisional a que
ficará sujeito o condenado, fundamentadamente.

XI. Regimes prisionais

1. Progressão e regressão de regime

O Código adotou um sistema progressivo de execução em três regimes prisio­


nais: fechado, semi-aberto e aberto, cuja individualização judicial deverá estar con­
forme a culpabilidade do autor. O cumprimento em regime fechado dar-se-á em
presídio de segurança máxima ou média (penitenciária); o semi-aberto, em colônia
agrícola ou industrial; e o aberto, em casa de albergado ou em estabelecimento ade­
quado (CP, art. 33, § 1Q) e em prisão domiciliar (LEP, art. 117).
Portanto, o juiz, ao decretar a condenação, necessariamente fixará o regime
inicial de cumprimento da pena: fechado, semi-aberto ou aberto, devendo tomar
em consideração as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código. No caso de con­
denação à pena superior a oito anos, o regime inicial de cumprimento será o fecha­
do; se superior a quatro e não exceder a oito anos, não sendo o condenado reinci­
dente, o regime poderá ser o semi-aberto; se igual ou inferior a quatro anos, pode­
rá ser o regime aberto. E ainda admissível a adoção do regime semi-aberto aos rein­
cidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos, se favoráveis as cir­
cunstâncias judiciais (Súmula 269 do STJ). Cumpre também notar que a pena de
reclusão pode ser cumprida em quaisquer dos regimes; a detenção só no semi-aber­
to ou aberto, salvo necessidade de transferência para o regime fechado (regressão).
Já a prisão simples decorrente de sentença condenatória por contravenção só pode
ser cumprida nos regimes semi-aberto ou aberto, sendo vedado o regime fechado
(LCP, art. 6q).
Ademais, a gravidade do crime não autoriza por si só a fixação de regime mais
gravoso, conforme dispõe a Súmula 718 do STF: “A opinião do julgador sobre a gra­
vidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de
D ireito Penal - Parte Geral

regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”, pois do contrá­
rio haveria ofensa ao princípio da individualização.
O Código prevê ainda que, tratando-se de condenado por crime contra a
administração pública, a progressão de regime de cumprimento da pena ficará con­
dicionada à reparação do dano causado ou à devolução do produto ilícito pratica­
do, salvo impossibilidade de fazê-lo.
No regime fechado, o condenado será submetido, no início do cumprimento
da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução,
ficando sujeito a trabalho durante o período diurno internamente, de acordo com
suas aptidões, e a isolamento durante o repouso noturno. O trabalho externo é
admissível em serviços ou obras públicas. Já no regime semi-aberto, o condenado
ficará sujeito a trabalho interno durante o período diurno, sendo admitido o traba­
lho externo, bem como freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de ins­
trução de segundo grau ou superior. Finalmente, no regime aberto, baseado na
autodisciplina e senso de responsabilidade, o condenado deverá, fora do estabele­
cimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade
autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.
Excepcionalmente o cumprimento do regime aberto (LEP, art. 117) poderá dar-se
em residência particular (prisão domiciliar) quando se tratar de: a) condenado
maior de setenta anos; b) condenado acometido de doença grave; c) condenada
com filho menor ou deficiente físico ou mental; d) condenada gestante. Como se
vê, a prisão domiciliar constitui um modo especial de cumprimento do regime
aberto. Apesar disso, alguns autores propõem que, mesmo quando se tratar de con­
denação a regime fechado ou semi-aberto, seria razoável que o condenado também
fizesse jus ao beneficio, se se encontrar nessas mesmas condições.82
A progressão para regime mais brando de execução, conseqüência natural da
determinação da pena e admitida como forma de possibilitar a reinserção gradual
do preso à comunidade, exige o cumprimento de ao menos um sexto da pena no
regime anterior e comportamento prisional satisfatório (LEP, art. 112). Para tanto,
o juiz, que decidirá fundamentadamente, ouvirá previamente o Ministério Público
e o defensor. Tratando-se de nova progressão, o cálculo deverá ser feito com base
no restante da pena e não com base no total da pena aplicada.
Tratando-se de condenação por crime hediondo e assemelhados, o condena­
do poderá progredir depois de cumprir 2/5 da pena, se primário, e 3/5, se reinci­
dente, conforme redação dada pela Lei ne 11.464/2007. A nova lei, apesar de ser
mais favorável se comparada à Lei ns 8.072/90, somente é aplicável às infrações
penais ocorridas a partir da sua entrada em vigor (irretroativa), em virtude da
declaração de inconstitucionalidade da não progressão pelo STF, a qual, embora
proferida em caráter incidental, há de produzir efeito erga om nes, conforme tem

82 Nesse sentido, Alberto Silva Franco. Crime hediondos, cit.


P a u lo Q u e ir o z

decido aquela corte em casos recentes. Em conseqüência, os crimes anteriores ao


advento da nova lei, além de admitirem a progressão, serão regidos pelo C ó d ig o
Penal, porque mais favorável relativamente ao limite mínimo de progressão.
Já não mais se exige para a progressão exame criminológico, mas autores há
que entendem que o juiz poderá, sempre que julgar necessário, requisitá-lo, de
sorte a decidir mais precisamente.
Em princípio, só é possível a progressão do regime fechado para o semi-aber­
to, e deste para o aberto, de modo que a experiência no regime intermediário é
necessária. Ocorrendo demora em ser concedida a progressão ou não havendo
(eventualmente) vaga no regime semi-aberto, é justo deferir a progressão para o
regime aberto diretamente, ainda que em caráter provisório, haja vista que o preso
não pode ser prejudicado nem onerado por fato estranho à sua vontade, isto é, que
decorra de negligência dos órgãos encarregados da execução da pena.83
Diferentemente, a regressão para regime mais rigoroso, que terá lugar quan­
do o condenado praticar crime doloso, falta grave ou sobrevier nova condenação
que torne incabível o regime, segundo dispõe a Lei de Execução Penal (art. 118),
poderá dar-se diretamente do regime aberto para o fechado. Assim também pensa
a doutrina. Nesse sentido, Cezar Bitencourt: “isso quer dizer que o condenado não ;
poderá passar direto do regime fechado para o regime aberto, sem passar obrigato- ;
riamente pelo regime semi-aberto. O inverso não é verdadeiro, porém, ou seja, o
condenado que não se adequar ao regime aberto poderá regredir, diretamente, para
o regime fechado, sem passar necessariamente pelo regime semi-aberto”.84
Mas semelhante interpretação é claramente antigarantista, por atentar contra
a liberdade do preso e os princípios da proporcionalidade e legalidade das penas.
Realmente a se resguardar os princípios constitucionais, a regressão do regime L
aberto deve ser necessariamente para o regime semi-aberto de execução, exceto,
como é óbvio, quando sobrevier nova condenação a regime fechado de execução.
Fora dessa hipótese deverá o preso regredir para o regime semi-aberto, não poden­
do dar-se a regressão direta para o fechado.

1.1. Regime disciplinar diferenciado

Além dos regimes fechado, semi-aberto e aberto, há agora o regime discipli­


nar diferenciado (LEP, art. 52), fechadíssimo, espécie de prisão no interior da pri­
são, aplicável àquele que se achar preso provisória ou definitivamente, sempre que:
a) cometer crime doloso que ocasione subversão da ordem ou disciplina internas;
b) apresentar alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da
sociedade; c) houver fundada suspeita de envolvimento ou participação, a q u a l q u e r

83 De modo similar, Silva Franco e outros, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, cit., 1. 1, v. 1, p. 544. ;
84 Manual, cit., p. 429.
D ireito Penal - Parte Geral

título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. O RDD tem as seguintes


características: a) duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de
repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto
da pena aplicada; b) recolhimento em cela individual; c) visitas semanais de duas
pessoas, sem contar crianças, com duração de duas horas; d) o preso terá direito à
saída da cela por duas horas diárias para banho de sol. Para decretá-lo, o juiz com­
petente, que deverá previamente ouvir o Ministério Público e a defesa, tomará em
conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as conseqüências do fato, bem
como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão.
Como já o assinalamos, trata-se de pena cruel e degradante, que atenta contra
a dignidade da pessoa humana, logo, inconstitucional, além de não ter finalidade
educativa alguma, que assim frustra os fins a que se propõe a Lei de Execução Penal
(art. l s), por vedar em caráter quase absoluto todo e qualquer contato com o mundo
exterior e interior, inclusive, bem como impedir o exercício de direitos básicos pre­
vistos na LEP, como o direito ao lazer, praticar atividades desportivas etc. Não bas­
tasse isso, a circunstância de o preso apresentar “alto risco para a ordem e seguran­
ça do estabelecimento penal ou da sociedade” constitui a razão mesma da privação
da liberdade em presídio de segurança máxima ou média (normalmente); então
submetê-lo a novas restrições no seu interior constitui manifesto bis in idem , pró­
prio de um direito penal do inimigo (do autor), castigando-o duplamente pelo
crime já objeto da prisão cautelar ou definitiva. Ademais, se determinado preso for
realmente capaz de representar alto risco para a segurança do estabelecimento pri­
sional, não será com um tal castigo que se resolverá o problema, que a rigor a ele
não pode ser imputado, mas à própria administração, que deverá encontrar meios
de resolver eventuais conflitos legalmente e sem abusos. E como falar de “alto risco
para a sociedade” se o réu já se encontra encarcerado?
O mesmo se deve dizer da “fundada suspeita de envolvimento ou participação
em organizações criminosas ou quadrilha ou bando”. No mais, a lei ofende os prin­
cípios da legalidade e presunção de inocência, entre outros.85

2. Progressão nos crimes hediondos

Dispõe a Lei ns 8.072/90 (art. 2e, § l e) que o cumprimento da pena por crime
hediondo ou assemelhado (tráfico de drogas, tortura etc.) dar-se-á integralmente
em regime fechado de execução, estando assim vedada a possibilidade de progres­
são para regime mais brando de execução. Incoerentemente, porém, admitiu-se a
possibilidade de o preso obter livramento condicional após cumprir mais de dois
terços da pena e desde que não seja reincidente específico nesse tipo de infração
(CP, art. 83, V). Atualmente a Lei de Drogas (Lei n® 11.343/2006) veda expressa-

85 No sentido do texto, Juarez Cirino dos Santos, Teorias da pen a , p. 76-77.


Paulo Queiroz

360
mente a anistia, a graça, o indulto, o sursis, a conversão da pena de prisão em pena
restritiva de direito etc.
Ocorre que lei posterior - Lei nQ9.455/97 - , que tratou da tortura, crime asse­
melhado a hediondo, passou a admitir a progressão. Por isso, já se entendeu que to­
dos os crimes hediondos e afins, e não apenas o crime de tortura, passaram a admi­
tir a progressão,86 embora o regime inicial deva ser o fechado. Nesse sentido, Silva
Franco, que já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade da não-progressão,
afirma que não há razão lógica para justificar a aplicação do regime progressivo aos
condenados por tortura e que negue, ao mesmo tempo, igual sistema prisional aos
condenados por crimes hediondos ou tráfico ilícito de entorpecentes.87
O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 698, decidiu que “não se
estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de
execução da pena aplicada ao crime de tortura”; mas recentemente o mesmo STF
acabou por declarar a inconstitucionalidade da referida vedação.
Atualmente, como vimos, a Lei ne 11.464/2007 prevê que o condenado pode­
rá progredir quando tiver cumprido 2/5 da pena, se primário, e 3/5, se reincidente. -

2.1. Constitucionalidade da proibição de progressão dos crimes


hediondos

Mas ainda se discute se a proibição de progredir nos crimes hediondos é ou não


constitucional. Alberto Silva Franco, partidário da inconstitucionalidade, escreve,
textualmente que “o § l e do art. 2e da Lei ns 8.072/90 poderia, sem dúvida, criar cri-,
térios de mensuração diversos para a progressividade do regime prisional, isto é, esta- ' ‘
belecer prazos diferentes dos que já constam na legislação ordinária a fim de que o ’
apenado passasse de um regime prisional para outro. Nesse caso, estaria o legislador ; ”
ordinário fazendo uso correto da prerrogativa que lhe foi dada pelo legislador cons­
tituinte. Não poderia jamais, sem ofensa à Constituição, suprimir a própria progres­
sividade do sistema prisional, nem eliminar o enfoque ressocializador ínsito na pena
privativa da liberdade. Porque, então, estaria - como em verdade o fez - atacando o
centro vital, a essência, o núcleo dos princípios constitucionais da legalidade, da indi­
vidualização e da humanidade da pena. E isso lhe era inteiramente defeso”.88

86 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt (Código Penal comentado, cit., p. 431), para quem, a partir da ed i-.
ção da Lei n9 9.455/97, deve-se reconhecer a aplicabilidade do sistema progressivo aos crimes hediondos -
e afins, sem restrições, inclusive retroativamente. Idem, Delmanto (Código Penal comentado, cit.). Con­
trariamente, Guilherme de Souza Nucci, que, socorrendo-se de diversos julgados, entende que o fato de a
Lei nQ9.455/97 ter alterado o regime de cumprimento da pena para os delitos de tortura não pode afetar
os demais crimes previstos em outra lei (Lei n0 8.072/90) (Código Penal com entado , cit., p. 180-181).
87 O regime progressivo em face das Leis ne 8.072/90 e 9.455/97, Boletim do IBCCrim, n. 58, edição especial
de setembro de 1997.
88 Crimes hediondos, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 231-232.
D ireito Penal - Parte Geral

Recentemente o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do HC


82.959-7/SP, decidiu que a vedação à progressão de regime é inconstitucional. Em seu
voto, o Min. Carlos Ayres Britto entendeu que o art. 2Q, § 1Q, da Lei de Crimes He­
diondos fere o princípio da individualização da pena, que deve ser concebido como
um aspecto da preservação da dignidade humana. De acordo com o ministro, a indi­
vidualização da pena não se exaure com a cominação da reprimenda e, para se con­
cretizar, “há de haver um gradativo abrandamento dos rigores da execução penal”.
Temos que, embora a opção político-criminal do legislador não tenha sido das
mais felizes, inconstitucionalidade alguma há no particular. E que a própria
Constituição, que houve por bem criar essa categoria de crimes (art. 5®, XLIII),
limitou-se a dizer tão-só que a “lei regulará a individualização da pena” (CF, art. 5B,
XLVI), elencando a seguir as penas permitidas e proibidas, além de prever que o
cumprimento da pena se dará em estabelecimentos distintos e assegurar certos
direitos ao preso; omissa que foi, portanto, quanto aos elementos essenciais da indi­
vidualização, competia ao legislador ordinário fazê-lo.
Assim, no estrito cumprimento dessa competência constitucional, em tese o
legislador poderia: a) limitar a pena de prisão para determinados crimes, só os mais
graves; só os hediondos, por exemplo; b) estabelecer novos limites máximos e míni­
mos de pena; c) abolir a pena mínima; d) suprimir a distinção entre reclusão, deten­
ção e prisão simples, unificando-os sob o nome de pena de prisão; e) fixar em 10
anos o limite máximo de pena (proposta de Ferrajoli); f) abolir a progressão/regres­
são de regime, estabelecendo regime único de cumprimento, acabando com a no­
menclatura fechado, semi-aberto e aberto (Ferrajoli); g) estabelecer novos parâme­
tros/critérios para a individualização da pena, reformulando por inteiro o disposto
no art. 59 do Código Penal; h) estabelecer novos critérios para o livramento condi­
cional, remição, comutação de pena etc.; i) abolir alguns desses institutos; j) etc.
E a razão é simples: a grande maioria dos institutos jurídico-penais relacionados
à individualização e à execução da pena não tem natureza constitucional, mas infra-
constitucional, tanto que quase todos precedem às Constituições e sobrevivem às
mudanças constitucionais. Sobre a progressão/regressão de regime, por exemplo, não
há uma única palavra do constituinte a respeito. Decidir, pois, pela inconstituciona­
lidade da proibição de progressão em crime hediondo é dar status constitucional a
normas e instituto infraconstitucionais, numa clara subversão da hierarquia das leis.
Não bastasse isso, a progressão de regime não constitui o único nem o mais
relevante aspecto da individualização da pena, típica matéria infraconstitucional,
que compreende, dentre outras coisas, a decisão sobre condenar oü absolver, apli­
car pena ou medida de segurança, dosar a pena, substituir a pena de prisão por res­
tritiva de direito etc. Além disso, a vedação não é absoluta, já que pode o condena­
do por crime hediondo fazer jus ao livramento condicional após cumprir mais de
2/3 da pena, exceto se reincidente específico em crime dessa natureza.
Não obstante isso, temos que no caso concreto ao juiz é dado, senhor que é da
individualização, e tendo em conta as múltiplas variáveis que o envolvem, reco­
Paulo Queiroz

362
nhecer em favor do réu a progressão de regime, sempre que as circunstâncias (judi­
ciais e legais) lhe forem favoráveis. É que a só gravidade abstrata do crime, embo­
ra necessária, não é suficiente para justificar o cumprimento integral da pena em
regime fechado. Além disso, nem toda ofensa ao princípio da proporcionalidade
implica violação à Constituição, necessariamente.
Mas, como vimos, semelhante discussão restou grandemente superada com a
recente decisão do STF (HC 82.959) que declarou a inconstitucionalidade da proi­
bição de progressão de regime nos crimes hediondos previstos na Lei nB 8.072/90.

3. Execução provisória da sentença

Como regra, a execução penal só deverá ter lugar após transitar em julgado a
sentença condenatória, sob pena de violação ao princípio da presunção legal de
inocência (CF, art. 5Q, LVII; LEP, art. 105; CPP, art. 675), vale dizer, só depois de
exauridos todos os recursos legalmente admitidos é lícito fazer expedir mandado de
prisão contra o réu para cumprimento da pena imposta, vindo ele a gozar eventual­
mente dos direitos inerentes à execução, como a progressão de regime,89 livramen­
to condicional, remição da pena, indulto etc., sempre que tiver atendidos os requi­
sitos legais para tanto.
A doutrina e a jurisprudência têm admitido, porém, a execução provisória em
favor do condenado preso provisoriamente (prisão em flagrante, prisão preventiva
etc.), sempre que houver trânsito em julgado para a acusação, mas pender ainda de
julgamento recurso da defesa,90 admissão absolutamente legítima, uma vez que em
nada ofende o princípio em causa, instituído que é histórica e constitucionalmente
em favor do indivíduo. Assim, se o réu, condenado à pena de seis anos de prisão, já
se achar preso há três anos, não seria justo que, tendo a sentença passado em julgado
para o Ministério Público, que se conformara com a decisão por lhe parecer razoável,
fosse prejudicado pela demora na apreciação de recurso que ele mesmo interpôs e lhe
fosse negado, por exemplo, o direito ao livramento condicional, embora já tivesse
cumprido mais de metade da pena, quando lhe bastava cumprir mais de um terço.
Ademais, havendo exclusivamente recurso da defesa, não há a possibilidade legal de
reforma da decisão em seu desfavor (reform atio in pejus). Não seria razoável, enfim,

89 Nesse sentido a Súmula 716 do STF dispõe que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena
ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sen­
tença condenatória”. Para esse fim, é irrelevante a circunstância de o réu achar-se eventualmente em pri­
são especial, conforme dispõe a Súmula 717 do STF: “não impede a progressão de regime de execução da
pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontra r em prisão especial”.
90 Nesse sentido, a Súmula 716 do STF: “admite-se a progressão de regime de cumprimento de pena ou a apli­
cação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença con­
denatória”. Também assim, a Súmula 717: “não impede a progressão de regime de execução de pena, fixa­
da na sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”.
D ireito Penal - P arte Geral

que o réu condenado provisoriamente não pudesse fazer jus a benefícios (livramen­
to condicional etc.) que são reconhecidos ao condenado definitivo.
A jurisprudência tem ido inclusive além, para a admitir em prejuízo do réu
solto, quando pender de julgamento recurso especial ou extraordinário, por não
terem efeito suspensivo (Súmula 267 do STJ91).92 Assim, o réu que sempre esteve
em liberdade e ainda aguarde o julgamento de seu recurso especial (STJ) ou ex­
traordinário (STF), que poderá considerá-lo inocente, pode ter contra si expedido
mandado de prisão provisório. Mas uma tal possibilidade - execução provisória
contra o réu que aguardava o julgamento em liberdade - ofende o princípio da pre­
sunção legal de inocência, logo inconstitucional, por isso que estando livre o sen­
tenciado a expedição de mandado de prisão deverá necessariamente aguardar o
trânsito em julgado da sentença condenatória, salvo se for justificável cautelarmen-
te, hipótese que reclama fundamentação expressa/idônea.

91 Dispõe a Súmula 267 do STJ: “a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condena­
tória não obsta a expedição de mandado de prisão”. No entanto, há precedente recente do próprio STJ,
contestando a referida súmula. Assim, Habeas Corpus n. 25.310, de 2-2-2005, da 6a Turma, rei. Min. Paulo
Medina, cuja ementa está assim redigida: “Penal e processo penal. Habeas Corpus. Condenação. Recurso
especial e extraordinário. Efeito suspensivo. Inexistência. Cumprimento provisório de pena restritiva de
direito. Ilegalidade. Inconstitucionalidade. Ordem concedida”. Também assim, precedente do STF: HC n.
84.741/RS, 3a Turma, rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 7-12-2004, m. v., DJU, 18-2-2005, p. 29, n. 412.
92 Recentem ente o STF, no HC N* 91.232-0/PE, Relator MINISTRO EROS GRAU decidiu:
“HC. Inconstitucionalidade da chamada “execução antecipada da pena. Art. 5e, LVÍ1, da Constituição do
Brasil.
1. O art. 637 do CPP estabelece que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arra-
zoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da
sentença.” A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em
julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5°, inciso LVII,
que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
2. Daí a conclusão de que os preceitos veiculados pela Lei ns 7210/84, além de adequados à ordem consti­
tucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.
3. Disso resulta que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a
título cautelar.
4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restritivo. Engloba todas as fases processuais, inclu­
sive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recur­
so de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pre­
tensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.
5. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas pode­
ria ser justificada em nome da conveniência dos magistrados - não do processo penal. A prestigiar-se o
princípio constitucional, dizem, os tribunais (leia-se STJ e STF) serão inundados por recursos especiais e
extraordinários, e subsequentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que
poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou
mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a m elhor operacionalidade de funcionamento do
STF não pode ser lograda a esse preço.
6. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se
transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação
constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em
quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plena­
mente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.
Ordem concedida.
Paulo Queiroz

De acordo com o que se vem decidindo, portanto, seria possível a execução


provisória da sentença, desde que: a) houvesse sentença condenatória; b) tivesse
essa sentença transitado em julgado para a acusação; c) houvesse a defesa interpos­
to recurso sem efeito suspensivo.
Entretanto, não se tem permitido a execução nem mesmo em favor do preso
provisório quando houver recurso da acusação. Pensamos, no entanto, ser perfei­
tamente cabível a execução provisória ainda quando isso ocorra, sempre que o réu
estiver preso provisoriamente e o recurso não persiga aumento de pena, quando, v. g
insurgir-se apenas contra a parte da sentença que haja absolvido, em caso de con­
curso de agentes, um dos co-réus, ou quando só objetive a absolvição ou atenuação
da pena do condenado. Dito de outro modo: até no caso de a sentença condenató­
ria pender de recurso da acusação, será de todo legítima a execução provisória,
desde que o recurso que se haja interposto não almeje a majoração da sanção, uma
vez que a sua interposição não é incompatível com a execução provisória.93
Todavia, isso só poderá ser tolerado quando estiver preso o condenado, pois do con­
trário deverá permanecer livre enquanto não passar em julgado a sentença, afinal
numa perspectiva garantista a execução provisória somente é admissível em seu
favor, nunca em seu prejuízo.
Mas mesmo na presença de recurso da acusação que objetive majorar a pena,
temos ser possível, excepcionalmente, a execução provisória, quando se verificar
que o eventual provimento do recurso não tiver qualquer repercussão sobre o
direito que se pretende ver reconhecido (direito à progressão, ao livramento con­
dicional etc.). Assim, por exemplo, se o Ministério Público recorrer para obter a
aplicação de uma causa de aumento de pena de um terço sobre uma condenação dè .
seis anos, caso em que a aumentaria para oito anos, tal circunstância em nada afe­
tará o direito à obtenção de livramento condicional se o réu, primário e sem ante­
cedentes criminais, já houver cumprido mais de metade da pena, quando lhe bas­
tava o cumprimento de mais de um terço (CP, art. 83, I). Sim, porque ainda que
provido o recurso da acusação e aumentada a pena para oito anos, o sentenciado já
teria atingido mais de 1/3 dessa nova pena, fazendo jus, portanto, ao livramento
condicional. Numa palavra: somente o recurso que possa alterar a situação do sen­
tenciado, prejudicando o reconhecimento do direito que postula especificamente,
pode ter o condão de inviabilizar a execução provisória, não o impedindo aquele
que em nada modifique tal situação.
Resumo de tudo: pensamos que a execução provisória deverá ser admitida
sempre em favor do réu preso, jamais contra elè, quando: a) houver trânsito em jul­
gado da sentença para a acusação, mas pender de julgamento recurso da defesa; ou,
havendo recurso da acusação, b) este visar a melhora da situação do réu; ou ainda
c) o recurso da acusação objetivar a majoração da pena, mas o seu possível resulta­

93 No sentido do texto, Sídio Rosa de Mesquita Júnior, Execução criminal, São Paulo, Atlas, 2005.
D ireito Penal - P arte G eral

do não tiver qualquer repercussão sobre o direito especificamente postulado pelo


condenado na execução. Contrariamente, em hipótese alguma a execução provisó­
ria deverá ser admitida em prejuízo do acusado (v. g., se aguardava o julgamento
solto). Semelhante tratamento preserva a um tempo os princípios da presunção
legal de inocência e isonomia, conferindo aos condenados provisórios os benefícios
já assegurados àqueles definitivamente sentenciados.
Admitida a execução provisória da sentença (LEP, art. 2Q, parágrafo único),
sempre em favor do condenado, não em seu desfavor, sob pena de violação ao prin­
cípio da presunção legal de inocência, fará ele jus a todos os direitos previstos na
Lei de Execução Penal, desde que atenda aos requisitos legais específicos: progres­
são de regime, remição, livramento condicional etc. Naturalmente que se no curso
da execução sobrevier acórdão que, provendo o recurso, absolva o acusado, será ele
imediatamente posto em liberdade.

XII. Detração

1. Conceito e cabimento

Apesar do princípio constitucional do estado de inocência (ninguém será con­


siderado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória - CF,
art. 5q, LVII), pode acontecer de o réu ficar provisoriamente preso ou internado em
Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) enquanto aguarda o julgamento. Isso
ocorrendo, o juiz obrigatoriamente abaterá da pena aplicada esse período de prisão
ou internação provisória. Assim, se o réu esteve preso por dois anos em razão de
prisão preventiva e vem a ser condenado a cinco anos, só terá de cumprir o restan­
te (três anos).
Essa operação matemática, determinada pelos princípios de legalidade e propor­
cionalidade, recebe em Direito Penal o nome de detração. Dela cuida o art. 42 do
Código: “computam-se, na pena privativa da liberdade e na medida de segurança, o
tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e
o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior”.
Não obstante a lei faça referência à pena privativa da liberdade, dando a
entender que somente incide nessa modalidade de pena, em verdade, a detração
deve ser também aplicada às penas restritivas de direito. Por isso que se o agente
ficou preso em flagrante por dois meses e vem a ser condenado a prestação de ser­
viço à comunidade por doze meses, terá de prestar serviços por dez meses apenas.
Não fosse assim, dar-se-ia uma inversão do princípio da proporcionalidade: penas
mais brandas teriam um tratamento mais rigoroso, é dizer, condenados em tese
mais perigosos teriam um tratamento mais suave. Também por esse motivo é de se
admitir a detração inclusive quando houver aplicação de pena de multa, substitu­
tiva ou autonomamente, para reduzir a quantidade de dias-multa.
Paulo Queiroz

Ao utilizar a expressão prisão provisória, o Código quer referir todas as formas


de prisão cautelar admitidas processualmente: prisão em flagrante, temporária, pre­
ventiva, prisão em razão de pronúncia, prisão decorrente de sentença condenató­
ria recomvel etc., bem como prisão ocorrida no estrangeiro e prisão administrati­
va nos casos em que a lei a admite. Apesar de a lei não referir a prisão civil, é de se
admitir a detração também aí, sempre que o agente for recolhido à prisão por des-
cumprimento de pensão alimentícia (CF, art. 5S, LXVII) e responder à ação penal
pelo respectivo crime (v. g., abandono material, apropriação indébita).
Por fim, tem-se entendido que a detração deve ser levada em conta inclusive
para efeito de prescrição, abatendo-se do total da pena cominada ou aplicada na
sentença o período de prisão que esteve preso.94 Mas esse é um tema controverti­
do tanto na doutrina quanto na jurisprudência.

2. Conexão processual

Em passado recente se discutiu muito sobre a necessidade de conexão entre os


processos para ter lugar a detração. Mas semelhante discussão ficou em boa parte
superada com a Lei de Execução Penal, que admitiu a detração “no mesmo proces­
so ou em processos distintos” (art. 111), de modo que ela é cabível independente­
mente da existência de nexo processual.95
Sobrevindo condenação nos vários processos, procede-se à unificação das
penas impostas e à detração cabível. Na hipótese de absolvição ou decretação da
extinção da punibilidade em processo no qual esteve o réu preso provisoriamente,
e condenação noutro, questiona-se se seria possível a detração.
Mirabete informava que “numa posição liberal tem-se admitido tanto na dou­
trina como na jurisprudência a detração por prisão ocorrida em outro processo, de
que o crime pelo qual o sentenciado cumpre pena tenha sido praticado anterior­
mente à prisão, pois seria uma hipótese de fungibilidade da prisão”. Considera, no
entanto, que “evidentemente não se pode admitir a contagem do tempo de recolhi­
mento quando o crime é praticado posteriormente a ele. Admitir-se outro entendi­
mento conduziria a estabelecer uma espécie de ‘conta corrente’ com o criminoso”.96
Em verdade, nada impede que se mantenha essa conta corrente com o crimi­
noso, pois ao se lhe decretar a absolvição ou ser extinta a punibilidade, não se está
propriamente diante de um delinqüente, mas diante de um não delinqüente a
quem se impôs uma prisão ilegal, o qual deve ser de alguma forma compensado,
mesmo porque dispõe a Constituição Federal que “o Estado indenizará o condena­
do por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sen­

94 Nesse sentido, Fernando Galvão. Direito Penal, p. 524.


95 No mesmo sentido, Delmanto, Código Penal comentado, cit. Contra, Damásio, Direito penal, cit.
96 ManuaL cit., p . 264-265.
D ireito Penal - Parte Gera)

tença” (art. 5e, LXXV).97 E certamente a detração é a forma mais adequada e pron­
ta de se lhe atenuar, ao menos em parte, o ilegal constrangimento.
Por isso que a detração deve ocorrer em qualquer hipótese, pouco importan­
do se há ou não conexão processual, se houve absolvição ou se sua admissão impli­
ca estabelecer uma conta corrente com o sentenciado.

XIII. Direitos e deveres do condenado

Conforme vimos, a Constituição Federal confere à liberdade uma proteção for­


mal amplíssima, razão pela qual toda e qualquer constrição no particular só é legíti­
ma quando absolutamente necessária para proteção da segurança dos cidadãos, isto
é, sempre que o seu mau uso implicar violação grave a bem jurídico alheio.
Naturalmente que também o cidadão condenado criminalmente não poderá ter
sua liberdade restringida além do necessário à execução regular da própria pena, nos
termos da sentença penal condenatória, motivo pelo qual só são toleráveis limitações
compatíveis com os princípios que regem o direito, o processo e a execução penal, sob
pena de se converter o preso, sujeito de direito que é, em simples objeto da execução.
Portanto, quando se diz que é assegurado aos presos o respeito à integridade
física e moral (CF, art. 5S, XLIX), em verdade se está a proclamar mais amplamen­
te que o “preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade,
impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral” (CP,
art. 38). Significa dizer que o condenado deve ser respeitado como pessoa humana
e, por isso, mantém todos os direitos individuais e sociais não atingidos pela con­
denação, como se estivesse em liberdade.
Por isso que o rol dos direitos previstos na Lei de Execução Penal (arts. 10 a 27
e 41) não é taxativo, mas meramente exemplificativo. Também por isso, parece-nos
injustificável a restrição constitucional do art. 15, III, da Constituição, que determi­
na a suspensão ou perda dos direitos políticos no caso de condenação criminal tran­
sitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos, pois freqüentemente tal restrição
nada tem a ver com o crime praticado. Em realidade, tal limitação só deveria ter lugar
quando houvesse nexo entre o exercício de atividade política (v. g., o exercício do
cargo de Governador, Deputado, Prefeito, Vereador) e o crime objeto da condenação
(corrupção, peculato etc.). Mas mesmo em tais hipóteses a limitação dos direitos polí­
ticos deveria atingir apenas o direito de ser votado, mas não o direito de votar.
Dos deveres do preso, trata a Lei de Execução Penal nos arts. 38 e 39, 44 a 52.
Releva notar que, por ser a Lei de Execução Penal (1984) anterior à Constitui­
ção (1988), muitas das suas disposições ou não foram recepcionadas ou são em parte
incompatíveis com o texto constitucional, devendo ser atualizada quando da sua
interpretação/aplicação.

97 Recentemente decidiu o STF de modo contrário: HC 93979/RS. Rei. Min. Carmen Lúcia, 22.04.2008.
Paulo Queiroz

Parece-nos incompatível com a legalidade constitucional, por exemplo, o dever


de execução de trabalho (LEP, art. 39, V), em virtude do que dispõe o art. 5a, XIII, da
CF: “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”, razão pela qual,
sendo o trabalho não um dever, mas um direito, que a ninguém pode ser imposto,
mas livremente exercido, segue-se que nem mesmo ao preso poderá sê-lo. Em con­
seqüência, também não podem subsistir as exigências legais que constam dos arts. 83,
III, e 36, § l e, primeira parte, ambos do CP, bem como aquela do art. 114,1, da LEP.98
Mas há outros tantos exemplos de violação à legalidade constitucional: a perda
dos dias remidos por falta grave ofende a intangibilidade da coisa julgada (CF, art.
59, XXXVI);99 a admissão da execução provisória da sentença em desfavor do con­
denado, o princípio da presunção de inocência;l°° o pagamento de salário inferior
ao mínimo, a previsão do art. 70, IV, da CF; o dever de indenizar a vítima na exe­
cução, a vedação de prisões por dívida (CF, art. LXVII); a ausência de defesa técni­
ca por advogado na execução, a norma do art. 133 da CF.
Aliás, tantas são as violações ao princípio da legalidade que se pode dizer, com
Andrei Schmidt, que no particular foi adotada uma espécie de legalidade atenuada,
onde a elasticidade e a indeterminação das faltas dísciplinares, por exemplo, fazem
com que o sistema de definição da desviação fundamente-se numa epistemologia
antigarantista, de sancionamento quia peccatum , e não quia prohibitu m .m Porque
de fato há uma infinidade de disposições na lei de tal modo vagas que acabam por
dissolver a pretensão de certeza inerente ao princípio da legalidade, por cujo meio
se pretende proteger o mais débil (o condenado) contra reações arbitrárias por
parte do mais forte (o Estado). Assim, por exemplo, constitui falta grave o incitar
ou participar d e m ovim ento para subverter a ordem ou a disciplina (LEP, art. 50,
I), razão pela qual já se reconheceu como casos de falta grave, a impedir o gozo de
certos direitos: greve de fome em protesto contra a morosidade da justiça, recusar-
se a cortar o cabelo, apresentar sinais de embriaguez etc.102
Como exemplo de violação ao princípio da proporcionalidade, pode-se citar O
art. 49, parágrafo único, da LEP, que equipara a tentativa de falta à falta consuma­
da. Afinal, se a prática de um crime sujeita o infrator, como regra, à pena do crime

98 Art. 36, § 1», do CP - O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüen­
tar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos
dias de folga”. Art. 83, III: O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa
de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que (...) III - comprovado comportamento satisfatório
durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à
própria subsistência mediante trabalho honesto. Art. 1 1 4 ,1, da LEP: Somente poderá ingressar no regime
aberto o condenado que: I - estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente.
99 Nesse sentido, Luiz Antônui Bogo Chies. Prisão - Tempo, Trabalho e Remição: Reflexões Motivadas pela
Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP. Crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
100 Nesse sentido, Alexandre Wunderlich. Muito além do bem e do mal: Considerações sobre a Execução
Penal Antecipada. Critica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
101 Andrei Schmidt. A crise da legalidade na execução penal. Crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002 p. 66.
102 Andrei Schmidt, idem, p. 64-65.
D ireito P en al - Parte G eral

consumado com redução de 1/3 a 2/3 (CP, art. 14, II), o mesmo deve ocorrer rela­
tivamente às faltas disciplinares.
Também não é infreqüente ocorrer de o condenado que praticou falta grave
sofrer a incidência de múltiplas punições disciplinares indiretas, como, por exem­
plo, após decretada a regressão de regime, ser-lhe negado o direito a livramento con­
dicional e, sucessivamente, pela mesma falta, o direito a indulto, comutação de pena,
perda dos dias remidos etc., em flagrante bis in idem , ofensivo à Constituição, pois,
a se tomar a sério os princípios constitucionais, uma única pena disciplinar deverá
ser-lhe aplicada. O mesmo ocorre quando se nega ao condenado o direito ao livra­
mento condicional em virtude de possuir maus antecedentes, os quais já foram
tomados em conta na sentença penal condenatória, razão pela qual considerá-los
novamente, na fase de execução, constitui dupla valoraçâo da mesma circunstância.
Exemplo de violação ao princípio da pessoalidade reside no dever do preso de
se opor a movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou
à disciplina, situação em que a lei está a lhe imputar um insólito dever de garante,
como se autoridade fosse e pudesse ele agir sem riscos pessoais, hipótese em que o
condenado acaba por responder por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro.
Ademais, e conforme assinala Andrei Schmidt, ao estabelecer um dever de “condu­
ta oposta”, está o legislador, a bem da verdade, proibindo a própria inércia do preso
em relação a desvios verificados no estabelecimento prisional, ao mesmo tempo em
que o simples fato de não estar ele participando do movimento de “subversão à
ordem e à disciplina” já constitui um seu mérito. l°3
Por fim, todos os deveres previstos no art. 39 da LEP que não impliquem lesão
concreta a bem jurídico alheio (v. g., higiene pessoal) são de todo ilegítimos, uma
vez que dizem respeito exclusivamente à pessoa do próprio condenado.

XIV. Remição
Pelo instituto da remição (LEP, arts. 126 a 129), aplicável a todos os crimes,
hediondos inclusive, o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi-
aberto tem direito a remir (abater, resgatar) parte do tempo de execução da pena,
à razão de um dia de pena por três dias de trabalho (externo ou interno), sendo que
o preso impossibilitado por acidente de prosseguir na atividade continuará a bene­
ficiar-se. Apesar de a lei se referir ao condenado, também o preso provisório que
exerça atividade laborativa (LEP, art. 31, parágrafo único; e CP, art. 2°, parágrafo
único) tem direito ao benefício. A remição é, portanto, uma forma de abreviar a
pena e facilitar a reinserção social do condenado, constituindo um direito seu.104
Mas não há abatimento do total da pena porque o tempo remido é em realidade
contado como de efetiva execução da pena privativa da liberdade.105

103 Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal, in Crítica à Execução Penal, Lumen Juris, Rio, 2002, p. 287.
104 Gamil Fõppel, Remição versus fuga, Boletim do IBCCrim, ano 9, n. 102.
105 Mirabete, Execução penal, São Paulo: Atlas, 2000, p. 426.
Paulo Queiroz

Alguns autores entendem que, em razão de o trabalho constituir um dever e


um direito do apenado, a remição há de ser reconhecida mesmo quando o preso
não exercer atividade laborativa alguma, se tal decorrer de deficiência do presídio
onde cumpre a pena, pois não seria razoável que fosse prejudicado pela inércia ou
desídia do próprio Estado.106
O tempo remido, que deve assim ser considerado como tempo de pena priva­
tiva da liberdade cumprida pelo condenado, e não simplesmente abatido do total
da sanção, e que é aplicável a todos os crimes, inclusive hediondos, será computa­
do para efeito de progressão de regime (LEP, art. 111), de livramento condicional,
indulto etc. (art. 128).
Na hipótese de vir a ser punido por falta grave (LEP, arts. 50 a 52), o condenado
perderá, segundo dispõe a Lei de Execução Penal (art. 127), o direito ao tempo remido,
começando o novo período a partir da data da infração disciplinar. Mas quão grave
pena é francamente inconstitucional por importar bis in idem, e, pois, lesivo ao princí­
pio da proporcionalidade. Além disso, se é um direito do sentenciado, uma vez decla­
rado na sentença, o tempo remido se incorpora ao seu patrimônio jurídico, passando a
constituir direito adquirido e intangível (CF, art. 5° XXXVI).107 Contrariamente a isso,
o STF editou a súmula vinculante 9, com o seguinte teor: “O disposto no artigo 127 da
Lei n9 7.210/1984 (lei de execução penal) foi recebido pela ordem constitucional
vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58.”
Além da remição decorrente do trabalho, a doutrina e a jurisprudência vêm per­
mitindo que também haja remição por estudo, sob o argumento de que este, tanto
quanto aquele, desempenha um papel importante na reintegração social do preso,
razão pela qual deve produzir idênticos efeitos108 (analogia in bonam partem).
Quanto ao tempo que deve ser descontado, tem-se sugerido que, para cada dezoito
horas de aula efetivamente assistida, haveria remição de um dia de pena, proceden-
do-se à comprovação e ao cômputo respectivo na forma utilizada também para a
remição pelo trabalho prestado.109 No sentido de reconhecer a remição por estudo,
dispõe a Súmula 341 do STJ: a freqüência a curso de ensino formal é causa de remi­
ção de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto.

XV. Limite máximo da pena de prisão

1. Significado e justificação

Em conformidade com o princípio constitucional proibitivo de penas perpé­


tuas (CF, art. 5S, XLVII, b), o Código prevê que o cumprimento da pena privativa

106 Nesse sentido, Mirabete, Rogério Greco e Fernando Galvão; em sentido contrário, Cezar Bitencourt.
107 Gamil FÕppel, Remição..., Boletim, cit. Em sentido contrário, Mirabete, Execução penal, cit., p. 437.
108 Nesse sentido, Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos, cit.
109 Carlos Vico Manas e outros, apud Alberto Silva Franco, idem.
D ireito Penal - Parte Geral

da liberdade não poderá ser superior a trinta anos,110 devendo, na hipótese de con­
denação a penas privativas da liberdade cuja soma exceda a esse limite, proceder-
se à unificação para atendê-lo (§ l s).
De acordo com a Exposição de Motivos d o Código Penal (item 61), a adoção
desse limite objetivou alimentar no condenado “a esperança de liberdade e a aceita­
ção da disciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal”. Mas em
realidade o legislador ao fazê-lo atende a uma exigência político-criminal, coerente
com a relatividade dos fins da pena e com o princípio da proporcionalidade, enten­
dendo que toda pena que exceder a esse limite é absolutamente desnecessária e con­
trária à idéia de prevenção geral e especial —subsidiárias - de futuros delitos.
Pode-se assim dizer que pena perpétua é toda pena que ultrapasse trinta anos.
Tratando-se de contravenção, a duração máxima da pena de prisão simples não
poderá ser superior a cinco anos (LCP, art. 10).
Mas isso não impede que eventualmente o condenado possa cumprir pena
superior a trinta anos, pois tal poderá acontecer desde que ele venha a cometer
novo crime durante a execução da pena, posteriormente à unificação.
Apesar de se referir à pena, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunida­
de de decidir que o limite de trinta anos é também aplicável às medidas de segu­
rança, contrariamente ao Código Penal, que prevê a indeterminação do prazo
máximo da sanção.

2. Alcance

Ainda hoje a doutrina e a jurisprudência divergem sobre se tal limite deve ser­
vir de parâmetro para a concessão de “benefícios” legais, como o livramento con­
dicional, o indulto, a progressão de regime, a remição etc. Para uns,111 deve ser
considerada a pena efetivamente aplicada; para outros, a pena unificada em trinta
anos. De acordo com a primeira posição, se o réu primário foi condenado a cento e
vinte anos, só poderia ter direito a livramento condicional depois de cumprir no
mínimo mais de quarenta anos, isto é, mais de um terço da pena. Já para a segunda

110 No sentido de que a pena de prisão não deve exceder a dez anos, Ferrajoli (D erecho y razón, cit.). Con­
forme informa Saio de Carvalho, o limite máximo da pena de prisão na França, Bélgica, Suíça, Noruega,
Luxemburgo e Grécia é de vinte anos; Dinamarca e Islândia, dezesseis anos; Alemanha, Hungria e Polônia,
quinze anos; Finlândia, doze anos; Suécia, dez anos (Pena, cit., p. 208).
111 Nesse sentido, Damásio, Cezar Bitencourt, Rogério Greco, entre outros. No sentido contrário, dentre
outros, Mirabete, Delmanto, e Alberto Silva Franco et al., que escrevem textualmente: “Não há, assim,
cogitar de dois parâmetros autônomos: um para estabelecer o máximo de tempo de duração das penas pri­
vativas de liberdade (pena unificada) e outro para o cálculo do prazo dos benefícios legais (total de penas
não unificadas). Se o intento do legislador fosse o de exclusivamente fixar o limite máximo de cumpri­
mento das penas privativas da liberdade, constituiria um verdadeiro contra-senso unificar penas privati­
vas da liberdade para um só fim e, ao mesmo tempo, manter uma dualidade de penas para os demais fins.
‘Unificar’, como observa Julio Fabbrini Mirabete, ‘quer dizer transformar várias penas em uma só”’
(Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, cit., v. 1, t. 1).
1 Paulo Queiroz

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I *;•

posição, o sentenciado teria de cumprir mais de um terço de trinta anos, isto é, mais”
de dez anos.
O primeiro entendimento, embora ainda amplamente defendido e inclusive'
prestigiado pela Súmula 7151 12 do Supremo Tribunal Federal, é claramente antiga-
rantista e criticável por várias razões.
Em primeiro lugar, porque, a se considerar que, para efeito de livramento
condicional, por exemplo, seja tomado em conta o tempo de pena aplicado, estar-
se-ia submetendo o condenado a cumprir, pela via indireta, pena superior a trinta
anos, inclusive por ser o livramento condicional um modo legal de cumprimento
de pena. Enfim, sujeitar-se-á o réu a cumprir indiretamente o que é vedado pela via
direta, em afronta ao princípio da legalidade das penas.
Em segundo lugar, porque, ao contrário do que afirma Rogério Greco,U3 ao
adotar tal postura não se ofende o princípio da isonomia, pois ao estabelecer o limi­
te máximo de trinta anos o legislador igualou todos que se encontrem nessa situa­
ção, pouco importando se condenados a trinta, sessenta ou noventa anos, devendo
todos, sem exceção e indistintamente, cumprir tão-só o máximo de trinta anos;
razão pela qual o argumento em verdade se volta contra a própria previsão legal da
unificação em trinta anos.
Em terceiro lugar, porque a lei não faz qualquer ressalva no particular, de
sorte que, ao ser desprezado o limite de trinta anos, faz-se analogia in m alam par­
tem, violando-se, também por esse motivo, o princípio da legalidade. Finalmente,
a prevalecer um tal entendimento, inviabilizar-se-ia a individualização na execu­
ção da pena, visto que nenhuma utilidade teria, v. g„ o trabalho para efeito de
remição, tampouco a excelência do comportamento para efeito de progressão, rela­
tivamente ao condenado à pena muito alta. O mesmo deve ser dito do livramento
condicional, pois a se exigir que o cálculo seja feito com base na pena aplicada fica­
rá impossibilitada a sua concessão em muitos casos. A solução, aliás, é de tal modo
absurda que, se sentenciado a cento e vinte anos, o condenado teria de cumprir, na
melhor das hipóteses, tempo superior à pena unificada (quarenta anos).
Releva notar, finalmente, que, com a recente decisão do STF declarando a
inconstitucionalidade da não progressão em crimes hediondos, é possível que a
Súmula 715 venha a ser questionada e eventualmente revista, já que em muitos
casos sua adoção acaba por impedir a progressão, o livramento condicional etc.

112 Diz a Súmula 715 o seguinte: “a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento,
determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considera da para a concessão de outros benefícios, como
o livramento condicional ou regime mais favorável de execução”.
113 Curso, cit., p. 689. Assinala este autor, textualmente: "A nosso ver, entendemos que a razão se encontra
com a nossa Corte Maior. (...) se adotássemos a unificação como regra geral para todos os cálculos, além
de ser o teto máximo de cumprimento da pena, estaríamos ofendendo o princípio da isonomia, que deter­
mina, simplificadamente, que os iguais sejam tratados igualmente, bem como que os desiguais tenham tra­
tamento desigual. Não podemos comparar aquele condenado a duzentos e cinqüenta anos de reclusão com
aquele que praticou um número bem menor de crimes e fora condenado a trinta anos".
D ireito Penal - P arte Gera)

No que tange à condenação por certos crimes hediondos ou assemelhados


cu)a pena ultrapasse o limite de trinta anos, nos termos do art. 99 da Lei
8 072/90, que prevê aumento de metade da pena se a vítima estiver em quais­
quer das hipóteses do art. 224 do CP (menor de catorze anos, alienada mental,
não pode oferecer resistência), “respeitado o limite de 30 (trinta anos)”, alguns
autores entendem que, diferentemente dos demais crimes, é esse limite de trin­
ta anos, e não o total da pena, que deverá servir de parâmetro para o cálculo dos
benefícios.114 Mas se essa interpretação estiver correta quanto aos crimes mais
severamente punidos pela legislação penal brasileira, idêntica leitura haverá de
ser feita também quanto aos demais crimes, por força dos princípios da isonomia
e proporcionalidade.

3. Superveniência de nova condenação

Iniciado o cumprimento da pena unificada em trinta anos, poderão ocor­


rer duas hipóteses: a) superveniência de nova condenação por crim e an terio r
à unificação; b) superveniência de nova condenação por crim e p o s te r io r à uni­
ficação.
Pois bem, somente na segunda hipótese, de cometimento de n ov o crim e
durante a execução, isto é, por fato posterior ao início do cumprimento da pena, na
qual o sentenciado revela a juízo do legislador maior perigosidade e por isso deve
merecer tratamento mais severo, haverá nova unificação de pena, desprezando-se
o período de tempo já cumprido, conforme dispõe o art. 75, § 2a, do CP: “sobrevin­
do condenação por fa to p osterio r ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova
unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido”. Fazer
uma nova unificação significa somar a nova pena àquela que restava por cumprir,
e se o total exceder eventualmente ao limite de trinta anos o réu voltará a cumprir
esse limite reunificado. Não é preciso dizer que a desconsideração nessa nova uni­
ficação da pena já efetivamente cumprida visa evitar bis in idem , isto é, que o réu
cumpra uma segunda vez a mesma pena.
Assim, por exemplo, se o réu condenado a cem anos de prisão, cuja pena fora
unificada em trinta anos, vem a sofrer nova condenação a mais cinco anos, depois
de cumprir vinte anos, deverá cumprir quinze anos, pena que resulta da soma da
nova pena (cinco anos) com a pena que restava por cumprir (dez anos).
Por fim, cuidando-se de nova condenação por crim e an terior à unificação, não
terá qualquer repercussão, mantendo-se sem mais a unificação realizada, mesmo
porque já ao tempo da unificação em trinta anos tal condenação seria absolutamen­
te irrelevante.

114 Nesse sentido, M irabete e Capez, cit.


Paulo Queiroz

XVI. Penas Restritivas de Direitos

1. Introdução

Sob a rubrica de penas restritivas de direitos, o Código (art. 43) em verdade


trata de penas pecuniárias (multa substitutiva, prestação pecuniária, perda de bens
e valores), restritivas da liberdade (recolhimento domiciliar, limitação de final de
semana e prestação de serviço à comunidade) e restritivas de direito propriamente
(interdição temporária de direitos).115 O elenco de penas restritivas é taxativo, não
podendo o juiz inventá-las arbitrariamente, isto é, sem que a lei as preveja.
Todavia, além das penas previstas no Código, há na legislação extravagante diver­
sas outras penas com caráter não privativo da liberdade.
Ao adotá-las, o legislador pretendeu reservar a pena privativa da liberdade
para as situações consideradas a seu juízo absolutamente necessárias e, pois, não
passíveis de substituição por pena mais adequada. As penas restritivas de direito
são, assim, autênticas penas alternativas, porque têm a finalidade de substituir a
pena de prisão, espinha dorsal do sistema penal brasileiro. Exatamente por isso, tais
penas não podem ser aplicadas cumulativamente com as penas privativas da liber­
dade. Apesar disso, há exemplos na legislação especial de aplicação cumulativa de
pena restritiva de direito e prisão (v. g„ art. 292 do Código de Trânsito).
A substituição normalmente ocorrerá no momento da prolação da sentença
condenatória, pelo juiz ou pelo tribunal em grau de recurso, sendo que a autorida­
de judiciária competente necessariamente aplicará uma pena privativa da liberda­
de, substituindo-a a seguir quando cabível.
Mas a substituição é também possível durante a execução da pena (LEP, art.
180), exigindo-se o concurso dos seguintes requisitos: a) que a pena privativa da liber­
dade não seja superior a dois anos; b) que o condenado esteja em regime aberto de
execução; c) que tenha cumprido pelo menos um quarto da pena; d) que os antece­
dentes e a personalidade do condenando indiquem a substituição. No entanto, por ser
anterior à Lei 9.714/97, que modificou o Código no particular, tal possibilidade há de
ser revista para ampliar as hipóteses de substituição no curso da execução penal.
Atendidos os requisitos legais para a aplicação da pena restritiva, o sentencia­
do fará jus à substituição, devendo o juiz decidir a respeito sempre que o condenar
por crime culposo ou impuser pena privativa da liberdade não superior a quatro
anos por crime doloso, seja no sentido de conceder, seja no sentido de negar a subs­
tituição. Para tanto, é irrelevante prévia manifestação de interesse ou consenti­
mento do réu.
Tratando-se de condenação à pena de prisão igual ou inferior a um ano, a
substituição pode ser feita por uma pena de multa ou por uma pena restritiva de

115 Cezar Bitencou rt, Código Penal comentado, cit., p. 159.


D ireito Penal - P arte G eral

direito; se superior a um ano, a pena privativa da liberdade poderá ser substituída


por duas penas restritivas de direito ou por uma restritiva e uma de multa, cumu­
lativamente, conforme seja mais adequado.
A pena restritiva de direito deverá ter a mesma duração da pena de prisão
substituída, ressalvado o disposto no art. 46, § 4g (CP, art. 55), que prevê a possibi­
lidade de prestação de serviço à comunidade por prazo inferior à pena de prisão
imposta. E evidente que o prazo da pena restritiva de direito jamais poderá exce­
der àquele da pena de prisão substituída.
Releva notar que há exemplos na legislação especial de vedação total ou par­
cial de penas restritivas de direito. Nesse sentido, Lei nfi 11.340/2006 (violência
doméstica e familiar) e Lei nQ11.343/2006 (Lei de Drogas).
Por fim, nenhuma das penas restritivas de direito, notadamente as pecuniárias
e a perda de bens e valores, são passíveis de se estenderem aos herdeiros do conde­
nado, sob pena de violação ao princípio da responsabilidade penal subjetiva, que
não permite que a sanção penal possa atingir pessoa diversa do delinqüente (CF,
art. XLV). Mas o tema é controvertido.

2. Requisitos para a substituição

A substituição da pena privativa da liberdade por penas restritivas requer o


concurso simultâneo dos seguintes requisitos, conforme dispõe o art. 44 do Código:
1) que a pena aplicada não seja superior a quatro anos; 2) que não se trate de crime
cometido com violência ou grave ameaça à pessoa; 3) que o réu não seja reinciden­
te em crime doloso; 4) que circunstâncias judiciais sejam favoráveis, isto é, que a
culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do condenado, os
motivos e circunstâncias indiquem a substituição como suficiente. Em se tratando
de concurso formal, material ou continuado de crimes, a substituição terá em conta
o total das penas aplicadas.
a) L im ite d e quatro anos. Inicialmente a lei exige que a pena aplicada, e não a
pena cominada, não exceda a quatro anos. Tratando-se de crime culposo, caberá a
substituição ainda quando a pena ultrapasse esse limite, situação de difícil ocorrên­
cia, embora possível, pois em geral tais delitos são punidos com pena inferior a qua­
tro anos. Se houver concurso de crimes (formal, material, crime continuado), con-
siderar-se-á para esse efeito o total das penas aplicadas e não cada pena isoladamen­
te imposta.
No caso de concurso material de crimes, se houver aplicação de mais de uma
pena restritiva de direito, o condenado cumprirá simultaneamente as penas que
forem compatíveis entre si e sucessivamente as demais (CP, art. 69, §2fi).
b) C rim e p ra tica d o sem v iolên cia ou g rav e am eaça à pessoa. Todavia, não
se admitirá a substituição quando se tratar de condenação por crime praticado
com violência ou grave ameaça à pessoa, a exemplo do roubo, da extorsão
mediante seqüestro, do homicídio, do estupro com violência real etc. Tratando-
Paulo Queiroz

se de violência contra a coisa, v. g., furto com rompimento de obstáculo, bem


como de violência ficta ou presumida (CP, art. 224), lícita será a substituição.116
Desnecessário dizer que crimes culposos, apesar de eventualmente violentos,
não estão sujeitos à vedação, seja porque a violência não é intencional, seja por­
que a lei admitiu a substituição ainda quando a pena exceda ao limite de qua­
tro anos.
Há quem entenda que todos aqueles crimes praticados por meio não violento
estariam excluídos da vedação legal, a exemplo do homicídio cometido com empre­
go de veneno, roubo com uso de narcótico etc., pois não seriam delitos cometidos
com violência ou grave ameaça à pessoa, i 17 Pela mesma razão, a vedação não com­
preenderia as infrações penais em que a grave ameça ou a violência não fossem
meio para cometimento do ilícito, mas constitutivas do próprio crime (v. g., lesão
corporal e ameaça).
Luiz Flávio Gomes observa ainda que a rigidez do critério em questão pode
dar margem à injustiça, pois crimes como o constrangimento ilegal e a ameaça, que
em virtude da pena cominada permitem as soluções consensuais da Lei dos Juizados
Especiais Criminais (Lei ns 9.099/95), não admitiriam a substituição. Por isso, pro­
põe interpretar o dispositivo sistematicamente para admitir a substituição em tais
casos, apesar da violência ou grave ameaça à pessoa,118 o mesmo devendo ocorrer
quanto à lesão corporal leve (CP, art. 129, caput).
Não há obstáculo legal algum à substituição quando a condenação versar
sobre crime hediondo e afim, desde que não se trate de crime praticado com vio­
lência ou grave ameaça à pessoa, a exemplo da falsificação de remédios. Entender
o contrário é adotar postura claramente antigarantista, por afronta ao princípio
da legalidade (analogia in malam partem ), que não admite interpretação para
agravar a situação do sentenciado sem lei que a ampare.119 No particular, é irre­
levante o argumento de que, de acordo com a Lei nQ8.072/90, o cumprimento da
pena se dará em regime fechado integral,120 mesmo porque na hipótese se discu­
te questão distinta e prévia à execução da sentença, que é a própria individuali­
zação judicial da sanção penal e a possibilidade de substituição da pena de prisão
por pena restritiva.
Daí haver o Supremo Tribunal Federa admitido a possibilidade de o réu con­
denado por tráfico ilícito de droga (crime equiparado a hediondo) fazer jus à subs­
tituição da pena de prisão por pena restritiva de direito, por se tratar de crime pra­

116 De modo diverso, Cezar Bitencourt, Código Penal comentado , cit., p. 168.
117 Nesse sentido, Mirabete, cit.
118 Penas e medidas alternativas à prisão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 115. Em sentido contra­
rio, Cezar Bitencourt, Código Penal comentado, cit., p. 169.
119 No sentido do texto, entre outros, Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas alternativas, cit.; Damásio de Jesus,
Penas alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999; Cezar Bitencourt, Código Penal comentado, cit.; Guilherme
de Souza Nucci, Código Penal comentado , cit.
120 Nesse sentido, de entender inadmissível a substituição, Mirabete, Manual, cit., 2001, p. 278.
D ireito Penal - Parte Geral

ticado sem violência ou grave ameaça à pessoa,121 hipótese que dificilmente se


repetirá, uma vez que a nova Lei de Droga proíbe expressamente a substituição da
pena de prisão por pena restritiva de direito. De todo modo, com a decisão profe­
rida pelo STF no HC nB 82.959, decretando a inconstitucionalidade da vedação
legal de não progredir nos crimes hediondos e assemelhados, cai por terra um dos
principais argumentos contra a possibilidade de substituição da pena de prisão por
pena restritiva de direito.
c) R eincidência em crim e doloso. O Código em princípio não admite a subs­
tituição quando o condenado for reincidente em crime doloso. Referindo-se à rein­
cidência em crim e d oloso, admite-se a aplicação ao reincidente sempre que um dos
crimes - objeto da condenação anterior ou posterior ou ambos os crimes - for cul­
poso. Também não obsta a substituição a circunstância de o réu reincidir em con­
travenção. Portanto, o só fato de ser reincidente não impede a aplicação de pena
restritiva, só o impedindo a reincidência em crime doloso.
Mas mesmo essa vedação não tem caráter absoluto, pois o § 3e do art. 44 abre
uma exceção ao dispor que, “se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar
a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja social­
mente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática
do mesmo crime”.
A substituição é, pois, possível mesmo havendo reincidência em crime doloso
desde que socialmente recomendável. Na verdade, o legislador, atento ao fato de que
a reincidência já não é um sintoma seguro de maior perigosidade do sentenciado,
achou mais prudente deixar que o juiz decidisse a respeito, fundamentadamente. Quis,
ademais, resguardar o princípio da proporcionalidade, porque não faria sentido que o
juiz, diante de uma condenação anterior à pena de multa, por exemplo, negasse ao
sentenciado a substituição pelo só fato de ser reincidente em crime doloso.
Não obstante isso, o Código pretendeu vedá-la em caráter absoluto quando o
sentenciado for reincidente no mesmo crime (reincidência específica), quer dizer, no
mesmo tipo penal. Mas também essa vedação não pode ser tomada em termos abso­
lutos, se se quiser interpretá-la conforme os princípios penais, incompatíveis com
presunções absolutas de maior perigosidade, próprias de um direito penal do autor.
Finalmente, a reincidência cessará sempre que tiver decorrido o prazo legal de
cinco anos (prazo depurador) entre a extinção da punibilidade e a nova infração
penal, de modo a admitir a substituição.

121 HC 84.928-8/Minas Gerais, rei. Min. Cezar Peluso, I a Turma, v. de 27-9-2005, que tem a seguinte em en­
ta: “SENTENÇA PENAL. Condenação. Tráfico de entorpecente. Crime hediondo. Pena privativa de liber­
dade. Substituição por restritiva de direitos. Admissibilidade. Previsão legal de cumprimento em regime
integralmente fechado. Irrelevância. Distinção entre aplicação e cumprimento de pena. HC deferido para
restabelecimento da sentença de primeiro grau. Interpretação dos arts. 12 e 44 do CP, e das Leis ncs
6.368/76; 8.072/90 e 9.714/98. Precedentes. A previsão legal de regime integralmente fechado, em caso de
crime hediondo, para cumprimento de pena privativa da liberdade, não impede seja esta substituída por
restritiva de direitos”.
Paulo Queiroz

d) Circunstâncias judiciais favoráveis. Por fim, a culpabilidade, os anteceden-


tes, a conduta social e personalidade do condenado, bem como os motivos e as cir­
cunstâncias do crime devem ser favoráveis ao sentenciado e, pois, indicar a substi­
tuição, de modo a admitir a substituição. Na verdade, as circunstâncias são exata­
mente as mesmas do art. 59 do CP, à exceção do comportamento da vítima e das
conseqüências do crime.

2.1. Vedação de pena restritiva de direito na nova lei de droga

A nova lei de drogas (Lei nQ11.343/2006), diferentemente da lei anterior (Lei


nQ6.368/76), proibiu, expressa e terminantemente, quanto ao crime de tráfico e
equiparados, a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito, além de
considerá-los inafiançáveis e insusceptíveis de sursis, graça, indulto etc.122 (art. 44).
Quanto ao crime de tráfico (art. 33), a vedação seria desnecessária, em virtu­
de da severidade da pena mínima cominada, não fosse a possibilidade de aplicação
de pena inferior a cinco de reclusão, admitida na forma do § 4Qdo referido artigo.
Quanto aos crimes dos arts. 34 a 37 (exceção feita ao financiamento do tráfico pre­
visto no art. 36, que comina pena mínima de oito anos de reclusão) equiparados ao
tráfico, cuja pena mínima é, respectivamente, de três e dois anos de reclusão, não
haveria em princípio obstáculo à substituição, se a pena aplicada não excedesse a
quatro anos (CP, art. 4 4 ,1).
Presume-se que semelhante vedação pretendeu realmente inviabilizar juris­
prudência do Supremo Tribunal Federal que se consolidava no sentido de admitir,
na vigência da lei revogada, a possibilidade de substituição da pena de prisão por
pena restritiva de direito.
Que o legislador ordinário podia estabelecer novos parâmetros de pena, bem
como vedar a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito, parece
fora de dúvida. Com efeito, se podia o mais (criminalizar/descriminalizar, penali-
zar/despenalizar), podia o menos: proibir a admissão de pena não privativa da liber­
dade para os crimes mais gravemente punidos, em especial, o tráfico, por se tratar
de crime assemelhado a hediondo, se bem que os argumentos utilizados pelo STF
para declarar a inconstitucionalidade da não progressão em crimes hediondos pare­
cem valer também aqui.

122 Sídio Rosa de Mesquita Júnior entende, no entanto, que a lei não proíbe a substituição, mas a conversão,
a cargo do juiz da execução. Textualmente: “a Lei ne 11.343/2006 não proíbe a substituição da pena priva­
tiva de liberdade por restritiva de direito. Por isso, ela só se volta ao juiz da Execução, não atingindo o Juiz
criminal, Este, no momento da sentença, não encontrará obstáculo legal ao impor a norma de conteúdo
material, isso em face do aspecto garantista da norma criminal”. Comentários à lei antidrogas. S. Paulo:
Atlas, 2007, p. 79. Parece evidente, porém, que o legislador utilizou a expressão conversão no sentido de
substituição.
D ireito P en al - Parte G eral

Mas isso não impede que o juiz, senhor que é da individualização da pena, de
dar à nova lei interpretação conforme a Constituição, tomando como parâmetro a
legislação infraconstitucional inclusive, especialmente o Código Penal.
Com efeito, não parece razoável que sentenciados por crimes de tráfico e simi­
lar não tenham direito à substituição, enquanto outros condenados por delitos tão
ou mais graves (v. g., peculato, concussão, corrupção passiva, crime contra o siste­
ma financeiro) possam fazer jus ao benefício. Note-se, aliás, que o condenado por
este e outros crimes (de dano, e não de simples perigo, como é o tráfico), a exem­
plo do homicídio culposo, tem em tese direito à substituição, apesar de se tratar de
crime contra a vida, e, pois, mais grave, desde que a pena não seja superior a qua­
tro anos, diversamente do condenado por tráfico à mesma pena ou à pena inferior
a quatro anos, que não faria jus ao beneficio. Ora, é evidente que semelhante tra­
tamento ofende o princípio da isonomia, sobretudo porque o critério de aferição da
maior gravidade do crime (desvalor de ação e resultado) e, portanto, da condena­
ção, é essencialmente formal: objetivamente, a pena cominada ou imposta; subjeti­
vamente, a existência ou não de antecedentes.
Logo, não faz sentido, por exemplo, que duas pessoas, igualmente primárias e
sem antecedentes, que cometam crime sem violência ou grave ameaça à pessoa,
sofram a mesma pena (digamos, dois anos de prisão), mas tenham tratamento sen­
sivelmente desigual: uma fará jus à substituição, e a outra não, só por ser tráfico de
droga o seu crime e, pois, existir vedação legal no particular. Note-se que o crime
do beneficiado pela substituição poderá ser eventualmente hediondo inclusive (v. g.,
falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais), a demonstrar,
ainda mais contundentemente, a violação ao sistema de valores e princípios cons­
titucionais.
Portanto, não parece justo ou razoável, nem conforme os princípios de pro­
porcionalidade, individualização da pena e isonomia, que o juiz, ao condenar o réu
por crime de tráfico à pena não superior a quatro anos, não possa substituí-la em
virtude da só vedação legal, mesmo porque a missão do juiz já não é mais, como no
velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu signifi­
cado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição
(Ferrajoli). O juiz não é a boca que pronuncia as palavras da lei, como pretendeu
Montesquieu.
Parece-nos enfim que, apesar da vedação legal do art. 44 e 33, § 4S, final, ao
juiz é dado substituir, fundamentadamente, a pena de prisão por pena restritiva de
direito, desde que as circunstâncias judiciais sejam favoráveis ao réu e a substitui­
ção seja socialmente recomendável, nos termos da lei e do Código Penal (art. 44),
por ser a legislação penal fundamental.
O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, de outras legislações que prevêem
vedações semelhantes.
Paulo Queiroz

3. Conversão em pena privativa da liberdade

Na hipótese de o condenado deixar de cumprir a pena restritiva de direito


injustificadamente, o juiz a converterá em pena de prisão (CP, art. 44, § 4e). Para
tanto, deverá previamente oportunizar a defesa ao sentenciado, para decidir em
seguida pela conversão, pois só o descumprimento injustificado autoriza a imposi­
ção de semelhante castigo. A finalidade da conversão é garantir o êxito das penas
alternativas, preventivamente, com a ameaça da pena privativa da liberdade, e,
repressivamente, com a efetiva imposição no caso concreto.123
Também sobrevindo nova condenação transitada em julgado à pena privativa
da liberdade por outro crime, o juiz da execução fará a conversão, podendo deixar de
aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior (§ 4a).
Para esse efeito, é irrelevante se se trata de crime anterior ou posterior à substituição.
Quer dizer que a conversão em pena de prisão só ocorrerá em ultima ratio,
isto é, quando sobrevier condenação com trânsito em julgado por outro crime, e
não contravenção, que não puder ser cumprida simultaneamente com a pena que
vinha sendo executada. Assim, por exemplo, a superveniência de nova condenação
à pena a ser cumprida em regime aberto de execução é perfeitamente compatível
com o cumprimento da pena restritiva de direito. Aliás, mesmo a execução de pena
em regime fechado ou semi-aberto é compatível com algumas penas, como a multa,
a prestação pecuniária e a perda de bens. A conversão em pena de prisão só ocor­
rerá quando for inevitável; absolutamente necessária, portanto.
Além dessas causas de conversão, aplicável a todas as substituições possíveis,
alguns autores124 referem ainda o que chamam de causas especiais de conversão,
relativas a determinadas penas restritivas: não comparecer à entidade para prestar
serviço à comunidade; recusar-se a exercer a atividade determinada pelo juiz, para
a pena de limitação de final de semana etc. Mas todas essas hipóteses nada têm de
especiais: são apenas as formas possíveis de descumprimento das condições impos­
tas na sentença condenatória.
Releva notar que nem todas as penas são passíveis de conversão. As penas de
prestação pecuniária e a perda de bens e valores, em face de sua natureza pecuniá­
ria, a exemplo da pena de multa, não podem ser convertidas em pena de prisão pela
falta de pagamento, porque a conversão implicaria violação ao princípio constitu­
cional que veda a prisão por dívida (CF, art. 5B, LXVII).125
Sempre que ocorrer a conversão, o juiz obrigatoriamente deduzirá o tempo
cumprido da pena restritiva de direitos (art. 44, § 4e), de modo que na hipótese de

123 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 485.


124 Assim, Cezar Bitencourt, cit.
125 No mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes e Cezar Bitencourt.
D ire ito Penal - Parte Geral

ter cumprido quatro meses de uma pena de dez meses o sentenciado precisará cum­
prir o restante apenas: seis meses.
Desnecessário dizer que qualquer período de pena eventualmente cumprido
deverá ser deduzido no caso de conversão, mas, na melhor das hipóteses, o réu terá
de cumprir no mínimo trinta dias de prisão, ainda que faltassem apenas alguns dias
para o integral cumprimento da pena restritiva. E que a lei prevê expressamente
que no cálculo da pena a ser deduzida deverá ser “respeitado o saldo mínimo de 30
(tinta dias) de detenção ou reclusão”. Parece evidente, porém, que essa ressalva,
que visaria desestimular o descumprimento injustificado nos últimos dias da subs­
tituição,126 constitui manifesto bis in idem , já que o sentenciado terá de cumprir
pena além da que efetivamente restava.

4. Penas restritivas de direito em espécie

4.1. Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas

A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas - somente apli­


cável às condenações superiores a seis meses de prisão127 - consiste na atribuição
de tarefas gratuitas ao condenado a serem prestadas em entidades assistenciais, hos­
pitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas
comunitários ou estatais (CP, art. 46, §§ l e e 2S), os quais devem ser credenciados
ou convencionados (LEP, art. 1 4 9 ,1), incumbindo-lhes encaminhar ao juiz da exe­
cução relatório mensal das atividades do condenado e comunicar eventuais faltas
(LEP, art. 150).
Não, é, pois, possível a prestação de serviço numa entidade privada que não
cumpra nenhum programa comunitário, porque nesse caso haveria apropriação
indevida de mão-de-obra, não sendo igualmente cabível que unidade militar possa
ser destinatária de tais prestações.128
Para a fixação de tais atividades, o juiz terá em conta (conforme o princípio da
proporcionalidade) as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de
uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jor­
nada normal de trabalho (§ 3e), até porque do contrário a pena poderia frustrar o
fim a que se propõe, de reinserção social do sentenciado fora do ambiente carcerá­
rio. De acordo com a LEP (art. 149, § 1Q), o trabalho terá a duração de oito horas

126 Cezar Bitencourt, cit., p. 507.


127 Não se admite, assim, em absoluto, que penas inferiores a este limite possam ser substituídas por presta­
ção de serviços. Quis o legislador, assim, segundo observa Luiz Flávio Gomes, destinar essa sanção para
penas mais elevadas, certamente por considerar que sanção até esse limite só justifica, em princípio, a
imposição da multa substitutiva {Penas e medidas aJtemarivas, cit., p. 150).
128 Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas alternativas, cit., p. 151.
Paulo Queiroz

semanais e será realizado aos sábados, domingos e feriados ou mesmo em dias úteis,
desde que compatíveis com a jornada normal de trabalho.
Como o Código não diz com precisão quais os serviços que podem e devem ser
prestados, o juiz tem grande margem de discricionariedade para determiná-los.
Para tanto, em respeito ao princípio da humanidade das penas, não poderão ser
atribuídas atividades vexatórias, humilhantes, cruéis, degradantes ou de qualquer
modo lesivas à dignidade da pessoa humana (CF, arts. l s, III, e 5Q, XLVII).
Finalmente, é possível o cumprimento da pena superior a um ano em tempo
menor (art. 46, § 4e), mas nunca inferior à metade da quantidade da pena substituí­
da, de modo que réu condenado a dois anos de prisão poderá prestar serviços
durante um ano. Semelhante possibilidade atende ao Enunciado 11.2 das Regras de
Tóquio: “deve ser prevista a interrupção antecipada da medida, caso o delinqüente
tenha reagido favoravelmente a ela”.
Apesar de aplicada pelo juiz quando da prolação da sentença penal condena­
tória, competirá ao juiz da execução: a) designar a entidade credenciada para a
prestação do serviço; b) determinar a intimação do condenado quanto à entidade,
dias e horário em que deverá cumprir a pena; c) alterar a execução da pena, a fim
de ajustar às modificações ocorridas na jornada de trabalho (LEP, art. 149, § 2e).

4.2. Interdição tem porária de direitos

a) Generalidades. As interdições temporárias de direitos impõem ao condena­


do uma obrigação de não fazer, tendo finalidade marcadamente, mas não exclusi­
vamente, preventivo-especial: evitar a reincidência. Tais penas, diferentemente das
demais (gerais), são específicas, pois não são aplicáveis a todo e qualquer crime, mas
a alguns em particular.
Tais penas não devem ser confundidas com os efeitos da condenação (CP, art.
92), primeiro, porque aquelas, ao contrário destas, não implicam a perda de direi­
tos, mas a só interdição temporária; segundo, porque estas últimas não são propria­
mente penas (em sentido estrito), mas conseqüências reflexas (não-penais) da con­
denação. Por fim, a interdição, em razão da autonomia do direito penal, é aplicá­
vel independentemente da sanção cabível no âmbito civil ou administrativo, moti­
vo pelo qual a atuação disciplinar dos órgãos administrativos competentes é perfei­
tamente compatível com a intervenção jurídico-penal, não havendo bis in idem no
particular, dada a diversidade de fundamento da punição.
Quatro são as penas de interdição temporária de direitos (CP, art. 47): a) proi­
bição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato
eletivo; b) proibição do exercício de profissão, atividade ou oficio que dependam de
habilitação especial, de licença ou autorização do poder público; c) suspensão de
autorização ou de habilitação para dirigir veículo; d) proibição de freqüentar deter­
minados lugares.
D ireito Penal - Parte G eral

b) Primeira interdição. A interdição do exercício de cargo, função ou ativida­


de pública, cujos conceitos constam do art. 327 do Código, importa a incapacidade,
e não a perda, do exercício de tais funções durante determinado período de tempo,
findo o qual o apenado as retomará normalmente, exceto se também houver afas­
tamento da função no âmbito administrativo.
Trata-se de uma pena específica, haja vista que só é aplicável aos crimes come­
tidos no exercício de cargo, função ou atividade, sempre que houver violação dos
deveres que lhe são inerentes (art. 56), ou seja, a sua aplicação exige nexo entre o
crime cometido e o exercício da atividade que se proíbe temporariamente; é pois
indispensável que o delito praticado esteja diretamente relacionado com o mau uso
do direito interditado.129 Fora dessa hipótese, é incabível.
Mas isso não quer dizer que a infração deva necessariamente constituir crime
contra a Administração Pública (corrupção, peculato, prevaricação), bastando que
seu cometimento tenha relação direta ou indireta com o exercício funcional.
Quanto à interdição temporária do exercício de mandato eletivo, Delmanto
entende que o dispositivo é inconstitucional, pois os parlamentares só podem ser
impedidos de exercer mandato eletivo na forma da Constituição.130 Convém lem­
brar que a condenação criminal transitada em julgado acarreta a suspensão dos
direitos políticos enquanto durarem seus efeitos (CF, art. 15, III).
Cientificada da interdição judicial decretada, a autoridade administrativa
superior deverá, vinte e quatro horas depois, baixar ato administrativo, a partir do
qual a execução terá início (LEP, art. 154, § 1B).
c) Segunda interdição. A proibição temporária do exercício de profissão, ati­
vidade ou oficio que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização
do poder público, atinge toda e qualquer atividade profissional que exija, para seu
exercício, especial habilitação do Estado (médico, advogado, dentista) ou autoriza­
ção (despachante etc.). Também aqui, tratando-se de pena específica, é indispensá­
vel a existência de nexo entre a atividade que se proíbe e o crime que se comete,
exigindo-se violação dos deveres inerentes à função (art. 56).
Assim, pode ser aplicada para o autor dos crimes de violação de segredo (mé­
dicos, advogados), de fraude processual e patrocínio infiel (advogados), de omissão
de socorro e aborto (médicos, enfermeiros), de desabamento culposo (engenhei­
ros), de maus-tratos (professores), de falsidade de atestado (médicos) ou de qual­
quer crime, ainda que não próprio, desde que haja violação dos deveres inerentes a
profissão ou atividade cujo exercício dependa de habilitação ou autorização.131

J29 Jescheck apud Cezar Bitencourt, M anual cit., p. 474.


130 Código Penal com entado, cit., p. 96. De modo similar, Luiz Flávio Gomes, para quem o juiz não pode proi­
bir deputados federais e senadores de exercício do mandato (Penas e medidas alternativas, cit., p. 156).
131 Mirabete, Manual, cit., p. 273.
Paulo Queiroz

Se eventualmente o condenado exercer múltiplas profissões, atividades ou ofí­


cios, a pena cingir-se-á àquela que tiver relação concreta com a infração penal
cometida, isto é, àquela em cujo exercício se deu o abuso.
d) Terceira interdição. A suspensão de autorização ou de habilitação para diri­
gir veículo - que não deve ser confundida com a inabilitação para dirigir veículo do
art. 92, III, do CP - é uma pena somente aplicável aos crimes culposos de trânsito
(CP, art. 57), restrição, aliás, injustificável, já que é possível o cometimento de crime
de trânsito com dolo eventual, por exemplo, a recomendar com maior força de razões
a aplicação dessa pena, sobretudo quando não couber a incidência do art. 92, III.
No entanto, tal pena dificilmente será aplicada, diante do art. 292 do Código
de Trânsito (Lei n9 9.503/97), que prevê para os delitos de trânsito: “a süspensão ou
a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor
pode ser imposta como penalidade principal, isolada ou cumulativamente com
outras penalidades”. Luiz Flávio Gomes entende inclusive que a parte do art. 47, II,
que fala em “suspensão da habilitação” resultou afetada pelo Código de Trânsito,
estando derrogada.132
e) Quarta interdição. Finalmente, o juiz poderá proibir o condenado de fre­
qüentar determinados lugares, pena que tem a finalidade precípua de evitar a
reincidência. Naturalmente que haverá de existir adequação entre o crime que
se cometeu e a proibição de freqüência que se impõe, pois do contrário a pena
será inteiramente arbitrária (princípio da proporcionalidade). Além disso, o juiz
deverá fixar precisamente quais os lugares que não poderão ser freqüentados
pelo sentenciado.
Entende Cezar Bitencourt, que a critica duramente, que essa proibição pres­
supõe que o lugar determinado exerceu ou possa exercer alguma influência crimi-
nógena sobre o infrator, motivo pelo qual não será qualquer lugar em que a infra­
ção foi cometida que poderá ser objeto dessa sanção proibitiva, sendo fundamental
que esse local não tenha sido meramente acidental na ocorrência do delito.133

4.3. Limitação de final de semana

A limitação de final de semana - uma espécie de prisão de fim de semana, uma


vez que o condenado fica privado da liberdade durante a sua execução134 - consis­
te na obrigação de permanecer aos sábados e domingos, preferencialmente, por
cinco horas diárias (num total de 10 horas de pena), em casa de albergado ou em
outro estabelecimento adequado (CP, art. 48; LEP, art. 152), sendo que durante a
permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuí­

132 Penas e medidas alternativas, cit., p. 158.


133 Manual, cit., p. 479.
134 Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas alternativas, cit., p. 159.
D ireito Penal - Parte Geral

das atividades educativas. Na prática, tal pena tem-se revelado um grande fracasso,
porque poucos foram os Estados que se dignaram a criar as tais casas de albergado,
impossibilitando a sua execução grandemente.
Compete ao juiz da execução determinar a intimação do condenado, infor-
mando-o do local, dias e horário em que deverá cumprir a pena, que terá início
a partir da data do primeiro comparecimento (LEP, art. 151), devendo o estabe­
lecimento designado encaminhar relatório mensal sobre o cumprimento da pena
(art. 153).

4.4. Perda de bens e valores

O Código prevê ainda a perda de bens e valores pertencentes ao condenado,


perda que se dará não em favor da vítima, mas em favor do Fundo Penitenciário
Nacional, dispondo que o valor terá como teto máximo o montante do prejuízo
causado ou do provento obtido pelo agente ou terceiro, em conseqüência da práti­
ca do crime (CP, art. 45, § 3S).
Mas uma tal pena ou é inconstitucional, por importar confisco não autoriza­
do constitucionalmente, ou é desnecessária.135
Inconstitucional, porque o confisco somente é tolerável, tal como já o prevê
o art. 91 do Código, relativamente aos instrumentos do crime (instrum entas sce-
leris) e produtos do crime (produtas scelerís) ou do proveito obtido com ele, de
sorte que o perdimento de bens referido no art. 5S, XLV e XLVI, da Constituição
Federal, há de ser assim entendido, restritivamente, para só incidir sobre bens ili­
citamente adquiridos.
Além disso, caso se considere, como faz Luiz Flávio Gomes, que a perda cons­
titui uma antecipação da reparação dos danos, força é convir que essa civilização do
direito penal é de todo indevida, uma vez que semelhante reparação há de ser feita
em favor das vítimas do crime, não em favor do Fundo Penitenciário Nacional.
Mais: se constitui uma indenização já prevista civilmente, ainda que contemplan­
do destinatários diversos, haverá bis in idem em prejuízo do condenado, violando
o princípio da proporcionalidade.
Cumpre também dizer que os eventuais prejuízos causados à vítima serão
objeto de reparação no juízo cível, que se valerá da sentença penal condenatória
como título executivo para tanto.
Finalmente, se se entender, como aqui entendemos, que o perdimento só
compreende os bens e valores ilicitamente obtidos com a infração penal, concluir-
se-á pela sua absoluta desnecessidade, pois tal já constitui um efeito da condenação
(CP, art. 91).

135 No mesmo sentido, Régis Prado, Curso, cit., p. 485. Contrariamente, Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas
alternativas, cit.
Paulo Queiroz

4.5. Prestação pecuniária

A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus


dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importân­
cia fixada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos e
sessenta salários mínimos (CP, art. 45, § l e), havendo quem questione a constitu-
cionalidade da fixação, não em dias-multa, mas em salário mínimo.136
Trata-se, como se vê, de mais uma típica sanção civil transportada acritica-
mente para o direito penal - civilização do direito penal - e que em realidade tem
caráter de multa reparatória,137 tanto que o valor pago deverá ser “deduzido do
montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os
beneficiários”.
Por isso é que, cuidando-se de autêntica multa reparatória, e apesar de
fazer parte do rol das penas restritivas de direito, não se pode tolerar que, dian­
te do seu descumprimento, tenha lugar a conversão em pena de prisão, pois do
contrário se violaria o princípio constitucional proibitivo de prisão por dívida
(CF, art. 5fi).
Preferencialmente, a prestação pecuniária deverá ser feita em favor da vítima
do crime ou de seus dependentes. Mas excepcionalmente, seja porque não houve
dano a reparar, seja porque não houve vítima direta ou imediata, o montante da
condenação será destinado a entidades pública ou privada com destinação social.
Como assinala Cezar Bitencourt, a excepcionalidade dessa possível destinação
secundária prende-se ao caráter indenizatório que a referida sanção traz em sua
finalidade.138
Convém notar que a pena de prestação pecuniária está expressamente vedada
para os crimes previstos na Lei nB 11.340/2006 (violência doméstica).

4.5.1. Substituição por prestação de outra natureza

O Código prevê ainda que, se houver concordância do beneficiário, a pena de


prestação pecuniária poderá ser substituída por prestação de outra natureza (art.
45, § 2g), pena que tem sido duramente criticada por violar o princípio da certeza
e determinação das penas139 (legalidade).
Semelhante substituição está condicionada à prévia aceitação e concordância
do beneficiário, isto é, a vitima, seus dependentes ou instituição beneficiada, sendo
descabida sempre que houver recusa.

136 Cezar Bitencourt, cit.


137 Nesse sentido, Cezar Bitencourt, Manual, cit.
138 Manual, cit., p. 460.
139 Assim, Cezar Bitencourt, Manual, cit.
D ireito Pen al - Parte G eral

4.6. Multa substitutiva

Ainda que não haja previsão legal expressa, isolada, alternativa ou cumulati­
vamente, o juiz também poderá substituir a pena de prisão por pena de multa sem­
pre que a condenação for igual ou inferior a l(um) ano; se superior a 1 (um) ano, a
pena privativa da liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direito
e multa ou por duas restritivas de direito (CP, art. 44, § 2Q). Aqui a pena de multa
seguirá os princípios e regras que lhe são próprios, dos quais se tratará a seguir. O
art. 60, § 2S, está revogado.

XV II. Pena de Multa

1. Significado e crítica

A terceira modalidade de pena adotada pelo Código é a multa, que consiste no


pagamento ao Fundo Penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em
dias-multa (CP, art. 49).
Trata-se em realidade de um tipo de pena tão criticável quanto a própria pri­
são, que na prática tem se revelado grandemente inócua, haja vista que a maior
parte dos condenados é formada por miseráveis que ordinariamente não dispõem
de recursos para pagá-la. De mais a mais, a pena de multa é em geral fixada em
valores tão irrisórios que a sanção não cumpre qualquer finalidade preventiva.
Não bastasse isso, a Lei nQ10.522/2002, art. 20,140 ao prever o arquivamento
das execuções fiscais de débitos de valor consolidado igual ou inferior a R$
10.000,00 (dez mil reais), não obstante excepcione a multa penal, veio demonstrar,
ainda mais claramente, quão inúteis são as penas de multa decorrentes de senten­
ça penal condenatória, pois dificilmente excederão a esse teto, razão pela qual não
poderão ser objeto de execução forçada.
Não é necessário dizer que, embora a lei, que é federal, se refira à execução
fiscal da Fazenda Nacional, tem ela de ser aplicada a todos os Estados da Federação
e Distrito Federal, em respeito ao princípio federativo, à competência da União
para legislar sobre matéria penal e também ao princípio da isonomia.
Não sem razão, Ferrajoli propõe a abolição pura e simples de toda sorte de
penas pecuniárias, por ser impessoal, podendo ser paga por qualquer pessoa, e por
ser desigual, incidindo de maneira diversamente aflitiva segundo o patrimônio,
sendo fonte de intoleráveis discriminações.141 Mas a abolição deve ocorrer princi­

140 Dispõe o art. 20, textualmente: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do
Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da
União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou
inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (Redação dada pela Lei n. 11.033, de 2004)".
141 D erecho y râzón , cit., p. 416.
Paulo Queiroz

palmente porque a pena pecuniária é incompatível com um modelo de direito


penal mínimo142 e regido pelos princípios de proporcionalidade e subsidiariedade,
pois a Justiça Penal, com o caráter inevitavelmente desonroso de suas intervenções,
não pode ser incomodada e sobretudo não pode incomodar os cidadãos por fatos de
mínima importância, como são os crimes punidos com multa unicamente.143
Tem razão Ferrajoli, portanto, quando conclui que: ou a pena pecuniária é
considerada suficiente e nesse caso a infração deverá ser descriminalizada para
constituir ilícito administrativo; ou é insuficiente, devendo ser substituída por
pena mais severa ou, quando cominada alternativa ou cumuladamente, ser simples­
mente abolida.144

2. Individualização da pena: limites máximo e mínimo

Como pena que é, a multa deve ser também objeto de individualização


judicial, de acordo com as circunstâncias judiciais, legais e causas de aumento e
diminuição de pena. Além disso, o juiz inicialmente fixará a quantidade de dias-
multa; a seguir, estabelecerá o valor de cada dia multa.145
O limite mínimo da pena de multa é de dez dias-multa, sendo o máximo em
princípio de trezentos e sessenta dias-multa, valor que será atualizado quando da
execução pelos índices de correção monetária (art. 49, § 2S). Mas esse quantum
máximo poderá ser aumentado até o triplo, se o juiz considerar que é ineficaz em
virtude da situação econômica do réu, embora aplicada no máximo (art. 60, § l e).
Fixada a pena pecuniária em dias-multa, a seguir o juiz determinará o valor de
cada dia-multa. Porém, esse valor não poderá ser inferior a um trigésimo do maior
salário mínimo mensal vigente à época do fato, nem superior a cinco vezes esse
salário (art. 49, § l e).
Para a aplicação da pena de multa, que deverá atender, como dissemos, aos
critérios legais de individualização, o juiz tomará em consideração principalmente
a situação econômica do réu (art. 60). A aplicação se realizará assim em duas fases:
na primeira, o juiz fixará, com base nas circunstâncias do art. 59 e 68, a quantida­
de de dias-multa; na segunda, estabelecerá com base principalmente - mas não
exclusivamente, pois também importa a ofensividade da conduta —na situação eco­
nômica do réu.
Convém notar que a legislação especial não raro prevê parâmetros diversos
para a fixação da pena de multa. Assim, por exemplo, a Lei n9 11.343/2006 (Lei de

142 Como assinala Ferrajoli, se quisermos ser coerentes com um modelo de direito penal mínimo, que proíba
unicamente infrações graves, nenhuma pena pecuniária pode ser considerada suficiente para sancioná-las
de modo adequado, mesmo porque, ao sancionar condutas irrelevantes jurídico-penalmente, tal pena só
contribui para a inflação penal (D erecho y razón, cit., p. 417).
143 Ferrajoli, Derecho penal, cit., p. 417.
144 Derecho penal, cit., p. 417. Em sentido similar, André Copetti, Direito penal, cit.
145 No sentido do texto, Rogério Greco, Direito Penal, cit.
D ireito P en al - Parte G eral

Droga) comina multa de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa


para o crime de tráfico (art. 33), podendo ser aumentada até o décuplo quando hou­
ver concurso de pessoas e a situação econômica do acusado o justificar.
Também é certo que há leis que a vedam expressamente (v. g., Lei nB
11.340/2006).
Discute-se a possibilidade de aplicação cumulativa de pena de multa: uma como
pena substitutiva de pena privativa da liberdade e outra como pena autônoma. A
Súmula 171 do STJ prevê que, “cominadas cumulativamente, em lei especial, penas
privativas de liberdade e pecuniária, é defesa a substituição da prisão por multa”.

3. Pagam ento e execução da m ulta

A multa deverá ser paga dentro de dez dias depois de transitada em julgado a sen­
tença, podendo o pagamento ser parcelado, a requerimento do condenado (art. 50).
Se não houver pagamento da multa, não poderá, como no passado, ser conver­
tida em pena privativa da liberdade, mesmo porque isso importaria prisão por dívi­
da (CF, art. 5Q, LXVII). Nesse caso, a multa será convertida em dívida de valor, apli-
cando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública
(atualmente, Lei ne 6.830/80), inclusive no que concerne às causas interruptivas e
suspensivas da prescrição. Por isso que a execução da pena de multa convertida em
dívida de valor competirá não ao Ministério Público, mas à Fazenda Pública, esta­
dual ou federal (a depender de qual órgão jurisdicional provenha a sentença), e o
respectivo processo deve ser encaminhado às varas especializadas da Fazenda
Pública, não mais às varas de execução penal.146147

XV III. Medidas de Segurança

1. Conceito e pressupostos

O Direito Penal responde às infrações de que cuida por meio de penas e medi­
das de segurança. As penas, que constituem a resposta penal por excelência, estão
destinadas aos imputáveis, isto é, às pessoas com capacidade de discernimento e auto­
determinação; com capacidade de culpabilidade, enfim. Já as medidas de segurança
destinam-se aos maiores de dezoito anos declarados inimputáveis por não serem
capazes de compreenderem o caráter ilícito do fato em virtude de doença mental ou
de desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP, art. 26, caput).148

146 Rômulo Moreira, Direito processual penal. Rio de faneiro: Forense, 2003, p. 109-116.
Í47 Em sentido contrário, Rogério Greco, cit.
148 O Código Penal de 1940 adotava o sistema duplo binário e, pois, admitia a aplicação de ambas as sanções;
a reforma de 1984 aboliu, no entanto, este sistema, adotando o vicariante, negando a possibilidade de apli­
cação cumulativa ou sucessiva de pena e medida de segurança.
Paulo Queiroz

Tratando-se de semi-imputável, é dizer, indivíduo não inteiramente imputá-


vel, com capacidade diminuída de entendimento, por força de perturbação da
saúde mental ou similar (CP, art. 26, parágrafo único), o juiz poderá, segundo seja
mais conveniente e socialmente recomendável, aplicar-lhe pena ou medida de
segurança (sistema vicariante); todavia, não poderá aplicá-las cumulativamente
(sistema duplo binário).
As medidas de segurança são, portanto, sanções penais destinadas aos autores
de um injusto penal punível, embora não culpável em razão da inimputabilidade
do agente. Ou seja, tais medidas, para serem aplicadas, exigem o concurso simultâ­
neo de todos os requisitos e pressupostos do crime, com exceção da imputabilida­
de do autor, unicamente.149
Em homenagem aos princípios e garantias constitucionais, em especial o prin­
cípio da igualdade, em nenhuma hipótese será cabível a medida se na mesma situa­
ção não couber a aplicação da pena por qualquer motivo. Assim, por exemplo, se o
fato for atípico (v. g., ausência de nexo causai ou de culpa) ou lícito (v. g., pratica­
do em legítima defesa ou em estado de necessidade) ou não culpável (v. g., come­
tido sob coação moral irresistível, erro de proibição inevitável, embriaguez invo­
luntária completa) ou se tiver sido atingido por causa de extinção da punibilidade
(prescrição, decadência etc.).
Por conseguinte, todos os pressupostos jurídico-penais exigidos para a impo­
sição de uma pena hão de igualmente valer para as medidas de segurança, com
exceção apenas da imputabilidade, pois, se assim não for, conferir-se-á ao inimpu­
tável um tratamento injusto, desigual e ofensivo aos princípios penais, os quais
devem ser aplicados com maior força de razões a tais pessoas, dado o maior grau
de vulnerabilidade em que normalmente se encontram (a lei penal como a lei do
mais débil).
Por conseqüência, a afirmação - corrente na doutrina - de que a pena pressu­
põe culpabilidade enquanto a medida de segurança pressupõe perigosidade não é
de todo exata. Por isso Figueiredo Dias afirma que o fundamento da aplicação da
medida de segurança criminal não é a perigosidade do agente, mas apenas aquela
revelada através da prática pelo agente de um fato ilícito típico.150
Mas exagera quando assinala, também de acordo com a doutrina, que a dife­
rença essencial entre a pena e a medida de segurança reside “na circunstância de
ser pressuposto irrenunciável da aplicação de qualquer pena a estrita observância
do prin cípio da culpabilidade, princípio que não exerce papel de nenhuma espécie
no âmbito das medidas de segurança”.151

149 Em termos semelhantes, Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya. Introdução ao Dirito Penal.
Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
150 Questões fundamentais , cit., p. 145.
151 Figueiredo Dias, Questões fundamentais, cit., p. 155.
D ireito Penal - P arte G eral

Com efeito, se, à exceção da imputabilidade, todos os pressupostos da puni-


bilidade são exigidos para a aplicação da medida de segurança, inclusive a ausên­
cia de causas de exculpação, força é convir que a idéia de culpabilidade não lhe é
absolutamente estranha, visto que também em relação ao inimputável deve ser
verificado se lhe era exigível, concreta e razoavelmente, uma conduta conforme o
direito (culpabilidade). Não sendo o agente culpável, embora inimputável, em vir­
tude, por exemplo, de coação moral irresistível, medida de segurança alguma lhe
poderá ser aplicada.
Mas isso não é o que diz a doutrina, pois mesmo um autor de formação críti­
ca como Juarez Cirino dos Santos entende que, se o inimputável, em razão de doen­
ça mental ou perturbação da saúde mental, é incapaz de entender o caráter ilícito
do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, tampouco poderá ter
conhecimento da proibição ou de poder determinar-se pelo conhecimento da proi­
bição, razão pela qual não pode, logicamente, invocar erro de proibição. Pela
mesma razão, não poderia alegar qualquer outra excludente de culpabilidade, pois
a inexigibilidade de conduta diversa pressuporia a exigibilidade de conduta confor­
me o direito, o que não é possível em se tratando de inimputável.152
Não estamos de acordo com isso. Em primeiro lugar, porque, como demons­
tra Quintero Olivares,153 uma rígida separação entre inimputáveis e imputáveis
constitui uma ficção desacreditada pela psiquiatria mais recente e pela própria rea­
lidade; segundo, porque alienação mental e inimputabilidade não são equivalentes,
havendo diversos graus de inimputabilidade conforme a respectiva causa; terceiro,
porque a loucura e, pois, a inimputabilidade são socialmente construídas, variando
no tempo e no espaço os comportamentos assim etiquetados, tanto que os laudos
psiquiátricos não raro se contradizem, razão pela qual se poderia dizer, à maneira
de Nietzsche, que a rigor não existem fenômenos psiquiátricos, mas apenas uma
interpretação psiquiátrica dos fenômenos;154 quarto, porque, ainda que assim não

152 Direito Penal, cit., p. 643.


153 Locos y Culpables. Pamplona: Aranzadi editorial, 1999. Como assinala Quintero, de acordo com um con­
ceito atual de enfermidade mental, não é possível afirmar que uma de suas características seja a impossi­
bilidade de poder distinguir entre o bem e o mal, entre o permitido e o proibido, motivo pelo qual um
indivíduo clinicamente enfermo mental pode ter uma capacidade intelectual suficiente para atingir a
compreensão que os juristas consideram necessária para o conhecim ento da ilicitude, cit., p. 103/104. O
referido autor propõe um sistema unitário de apuração da responsabilidade penal, unidade que significa­
rá tanto um processo uno, com todas as garantias penais e processuais inerentes ao devido.processo legal,
inclusive no que toca à individualização da sanção penal, quanto à reação preventiva-repressiva, em cuja
execução é necessário adotar os meios adequados para a separação e classificação dos condenados de acor­
do com a sua saúde mental, cit., p. 161.
154 De acordo com Thomas Szasz, estritam ente falando, a doença ou a enfermidade só podem afetar o corpo,
motivo pelo qual não pode haver nenhuma doença mental. A doença mental é uma metáfora, pois as men­
tes podem estar doentes apenas no sentido em que as brincadeiras estão doentes ou as economias estão
doentes. O mito da doença mental. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 234. Ainda conforme o autor, “o que
denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com relação às supers­
tições e práticas das caças às bruxas, segundo a interpretação dos propagandistas da Psiquiatria contempo­
Paulo Queiroz

fosse, o inimputável poderia alegar excludentes de culpabilidade sempre que se


achasse numa situação em que o imputável pudesse fazê-lo, por força do princípio
da isonomia inclusive; quinto, porque tal entendimento implicaria tratar o inimpu­
tável não como sujeito de direito (como é comum, aliás), mas como objeto da inter­
venção jurídico-penal. Imagine-se, por exemplo, que A e B , ambos residentes na
zona rural dos confins do Brasil, estando a pescar ou caçar num domingo, como é
comum naquela região, sejam presos por porte ilegal de arma e crime ambiental. A,
plenamente imputável, é absolvido invocando erro de proibição inevitável; mas B,
inimputável, apesar de se encontrar na mesma situação, seria submetido à medida
de segurança, implicando grave restrição à liberdade do agente.
Além do mais, sempre que o agente atua amparado por uma excludente de
culpabilidade, a medida de segurança já não se justifica finalisticamente, isto é,
quer do ponto de vista da prevenção geral, quer do ponto de vista da prevenção
especial, pois o inculpável não representa assim perigo algum para a sociedade.
Ora, parece claro que se A pode alegar erro de proibição, B, mais vulnerável,
poderá fazê-lo com maior força de razões, ainda que por analogia, sob pena de se
consagrar uma rematada injustiça, mesmo porque não oferece em princípio
nenhum perigo.
E infundada a censura ao art. 383, quanto às demais excludentes de culpabilida­
de, perfeitamente possíveis. Enfim; o inimputável pode invocar excludentes de cul­
pabilidade pelas mesmas razões que poderia invocar excludentes de tipicidade (v. g.,
ausência de dolo) e de ilicitude (v. g., legítima defesa), até porque a tipicidade, a ili­
citude ou a culpabilidade não preexistem à interpretação, mas são dela resultado.
Talvez se pergunte: se a culpabilidade é requisito do crime, e não simples pres­
suposto da pena, o alienado mental e o menor de dezoito anos cometeriam crime,
se são inculpáveis?
Ora, se o conceito analítico de crime é um desdobramento do conceito formal,
segue-se que o menor não comete crim e, mas ato infracional, conforme consta da
própria lei (Lei n« 8.069/90); logo, não está sujeito à pena, mas à medida sócio-edu-
cativa, que consistirá em internação nos casos mais graves. Já o alienado mental
comete crime, sim, desde que a conduta por ele praticada seja típica, ilícita e cul­
pável, porque se for atípica ou lícita ou inculpável por qualquer motivo que não a
própria inimputabilidade (v. g., coação moral irresistível ou erro de proibição)
nenhuma sanção poderá sofrer. Se, diversamente do imputável, ele não fica sujeito
à pena, mas à medida de segurança, é porque a imposição de uma pena (em senti­

rânea, nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espírito científico do


Iluminismo, tal como pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria Institucional é
uma continuação da Inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social. O vocabulário se
ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão pseudocientífico que parodia os conceitos
da ciência. O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época: é um movimento social pseu-
doliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade”. A fabricação da loucura. Um estudo compa­
rativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 56.
D ire ito Penal - Parte G eral

do estrito) seria um castigo inútil. Mais: a distinção entre pena e medida de segu­
rança é puramente formal; materialmente, a medida de segurança pode ser mais
lesiva à liberdade inclusive.
Além dos pressupostos ordinários de punibilidade, a aplicação da medida de
segurança exige a comprovação, mediante perícia, da perigosidade do agente, que
é presumida quando se tratar de inimputável (art. 26) e real, quando se tratar de
semi-imputável (art. 26, parágrafo único).
A perícia médica será realizada ao final do prazo mínimo fixado e deverá ser
repetida anualmente ou a qualquer tempo, se assim determinar o juiz da execução
(art. 97, § 2e).
Apesar de a lei prever a possibilidade de se poder aplicar a medida de seguran­
ça também ao contraventor inimputável (LCP, art. 13), parece-nos que tal é, em prin­
cípio, incompatível com o requisito da periculosidade necessária à sua aplicação.155
O mesmo pode ser dito quanto aos delitos culposos e de menor potencial ofensivo.

1.1. A Lei de Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial

A lei de reforma psiquiátrica (Lei ns 10.216/2001), expressamente aplicável às


medidas de segurança, que as chama de internação compulsória (arts. 6Q, III, e 9Q),
trouxe importantes modificações, a exigir uma releitura do Código Penal e da Lei
de Execução Penal, havendo inclusive quem defenda a derrogação da LEP no par­
ticular e de parte do Código.156 Eis as mais importantes:
1. Finalidade preventiva especial. A lei considera como fin alidade p erm an en ­
te do tratamento a reinserção social do paciente em seu meio (art. 4a, § l e), refor­
çando assim a finalidade - já prevista na LEP - preventiva individual das medidas
de segurança. Portanto, toda e qualquer disposição que tiver subjacente a idéia de
castigo restará revogada.
2. Excepcionalidade da medida de segurança detentiva (internação). Exata­
mente por isso, a internação só poderá acontecer quando for absolutamente neces­
sária, isto é, quando o tratamento ambulatorial não for comprovadamente o mais
adequado. É que, de acordo com lei, a internação só é indicada quando os recursos
ex-hospitalares se mostrarem insuficientes, devendo ser priorizados os meios de

155 Haroldo Caetano defende que a nova parte geral (Lei nQ7.209/84) revogou o art. 13 da LCP, pois ela só
refere a aplicação de medida de segurança para as infrações (crimes) punidas com reclusão e detenção,
motivo pelo qual estaria vedada nas contravenções, punidas que são com prisão simples (Execução Penal,
cit., p. 297). Ocorre, porém, que o CP só define crimes, os quais, de acordo com o seu conceito legal, são
punidos com reclusão ou detenção; não faria sentido, portanto, que também fizesse referência às contra­
venções e à prisão simples, objeto que é de lei especial. Não há falar, assim, de violação ao princípio da
legalidade, ao menos com base em semelhante argumento. Além disso, em princípio a lei especial (LCP)
prevalece sobre a lei geral (CP) e não o contrário: lex specialis derogat legi generali.
156 Assim, Paulo Jacobina. Direito Penal da Loucura: Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica. Boletim
dos Procuradores da República, n® 70, ano V I, maio/2006. O autor também defende a inconstitucionali­
dade das medidas de segurança.
Paulo Queiroz

tratamento menos invasivos possíveis (arts. 45 e 2a, parágrafo único, VIII). Por isso
que, independentemente da gravidade da infração penal cometida, preferir-se-á o
tratamento menos lesivo à liberdade do paciente, razão pela qual, independente­
mente da pena cominada (se reclusão ou detenção), o tratamento ambulatorial
(extra-hospitalar) passa a ser a regra, e o ambulatorial, a exceção, apesar de o Códi­
go dispor em sentido diverso.157 Também por isso é vedada a internação de pacien­
tes em instituições com características asilares (art. 4a, § 3e).
3. Revogação dos prazos mínimos da medida de segurança. Parece certo tam­
bém que a fixação de prazos mínimos restou revogada, pois são incompatíveis com
o princípio da utilidade terapêutica do internamento (art. 4®, § 1°) ou com o prin­
cípio da desintemação progressiva dos pacientes cronificados (art. 59). Além disso,
a presunção de periculosidade do inimputável e o seu tratamento em função do tipo
de delito que cometeu (se punido com reclusão ou detenção), baseado em prazos
fixos e rígidos, são incompatíveis com as normas sanitárias que visam à reinserção
social do paciente.158
4. Alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. No caso de paciente há
longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave depen­
dência institucional, decorrente de quadro clínico ou de ausência de suporte social,
será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assis­
tida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente (art. 5e).
5. O paciente tem direito ao melhor tratamento do sistema de saúde, de acor­
do com as suas necessidades, garantindo-se-lhe, entre outras coisas, livre acesso aos
meios de comunicação disponíveis (art. 2Q, parágrafo único).

2. Finalidade

As medidas de segurança, como sanção penal que são, têm, à semelhança das
penas, uma finalidade exclusivamente preventiva e sobretudo preventiva especial,
visto que por meio delas pretende-se evitar que o inimputável que tenha cometido
um injusto penal volte a repeti-lo.159 Sua finalidade principal é evitar a reincidên­
cia, portanto.
Secundariamente, as medidas de segurança têm uma finalidade de prevenção
geral negativa, no sentido de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias con­
tra o inimputável, haja vista que por meio delas não apenas se previnem atos de
vingança por parte de particulares (v. g., “linchamento” do inimputável que tenha
cometido homicídio), como também se evitam reações abusivas do próprio Estado,
que poderia, por exemplo, por meio de uma intervenção puramente “administrati­

157 No sentido do texto, Haroldo Caetano. Execução Penal. Porto Alegre: Magister editora, 2006, p. 295.
158 No sentido do texto, Paulo Jacobina, cit.
159 No mesmo sentido, Roxin, para quem pena e medida de segurança não se diferenciam quanto ao fim, mas
quanto à limitação, exclusivamente (D erecho penal, cit., p. 105).
D ireito Penal - Parte G era!

vo-curativa”, interná-los indefinidamente, ainda quando não tivessem cometido


um injusto punível ou mesmo sem se lhes garantir os meios e recursos inerentes ao
devido processo legal (contraditório, ampla defesa etc).
Mas tais medidas não perseguem a prevenção geral (negativa) de futuros deli­
tos, nem tampouco a prevenção geral positiva,!60 mesmo porque, como assinala
Roxin, os inimputáveis quando infringem a lei não defraudam nenhuma expectativa,
a consciência social não se comove e ninguém resulta motivado a imitá-lo, porque a
vigência da norma aos olhos da opinião pública não é alterada com tais fatos.16!

3. Prazos máximo e mínimo

O Código estabelece que o tempo mínimo das medidas de segurança é de um


a três anos, período em que o inimputável será submetido a tratamento e terá ava­
liada a sua perigosidade, sendo que a sentença fixará o prazo mínimo exato, neces­
sariamente. Mas isso somente se se entender que não houve a revogação dos pra­
zos pela Lei de Reforma Psiquiátrica, conforme sustentamos.
Mas que fazer se antes de transcorrer o prazo mínimo restar clara a sua des­
necessidade em virtude de cessação da perigosidade do agente? E evidente que
nesse caso a medida de segurança perde sua razão de ser, parecendo-nos que o
constrangimento deva cessar prontamente, em homenagem aos princípios da
humanidade das penas e proporcionalidade, especialmente.
Aliás, e conforme observa Roxin, a medida de segurança sequer pode ser
imposta ou mantida se não guardar proporção com a infração penal cometida, razão
pela qual os danos e perigos que partem do autor devem ser suportados pela socie­
dade, apesar do interesse preventivo em evitá-los quando forem menores que a pri­
vação da liberdade que a medida de segurança encerra.162 Difícil é legitimar, por
exemplo, a aplicação de medida de segurança quando o inimputável responder por
crime culposo ou contravenção, sobretudo se não tiver antecedentes nesse sentido.
Quanto à duração máxima, dispõe que “a internação, ou tratamento ambula-
torial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for averiguada,
mediante perícia médica, a cessação de periculosidade” (art. 97, § l e), de modo que
sua duração máxima é indeterminada, diversamente de outros Códigos que pre­
vêem prazo máximo de duração.

160 Em sentido contrário, entendendo que a medida de segurança tem finalidade preventiva geral positiva,
Figueiredo Dias ( Questões fundamentais , cit.) e Eduardo Reale Ferrari ( M edidas de segurança e direito
penal no Estado Democrático de Direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001). No sentido, porém, de
entender que nenhuma teoria é capaz de justificar, suficientemente, as medidas de segurança, as quais pre­
tenderiam “legitimar o ilegitimável”, Gamil Fbppel (A função da pen a, cit.).
161 D erecho penal, cit., p. 811.
162 Assim, o Código espanhol (art. 101) prevê que o internamento não poderá exceder ao tempo que de pena
que seria cabível se fosse imputável o sujeito, devendo o juiz ou tribunal fixar na sentença esse limite
máximo.
Paulo Queiroz

396
Mas uma tal indeterminação do prazo máximo é francamente inconstitucio­
nal, visto ofender os princípios da proporcionalidade, da não-perpetuação da pena
e da igualdade. Com efeito, não é razoável, por exemplo, que alguém que respon­
da por lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), cuja pena máxima é um ano de
detenção, possa ficar sujeito à medida de segurança superior a esse prazo, indefini­
da ou desproporcionalmente. Também se viola o princípio da não-perpetuação das
penas, haja vista que, embora as medidas de segurança não sejam penas em sentido
estrito (formalmente), não se pode ignorar que constituem um gravíssimo cons­
trangimento à liberdade de quem as suporta. Por último, ao fixar penas determina­
das, apesar de eventualmente persistir a periculosidade do réu imputável, e mesmo
a probabilidade de reincidência, o Código, ao dispor diferentemente quanto às
medidas de segurança, fere o princípio da igualdade, pois dispensa ao réü inimpu­
tável tratamento injustificadamente diferenciado: os imputáveis perigosos e não
perigosos, ao final da pena, serão postos em liberdade; os inimputáveis, ao contrá­
rio, e a pretexto de não ter cessado a perigosidade, permanecerão em tratamento
indefinidamente, privados da liberdade, não raro.
No particular, tem razão Ferrajoli quando assinala que a duração indetermi­
nada das medidas de segurança traduz uma espécie de segregação da vida dos inter­
nados em hospitais psiquiátricos, cárceres-hospitais ou hospitais-cárceres, por cujo
meio se consuma uma dupla violência institucional - cárcere e manicômio.163
Por todas essas razões, e em nome dos princípios de igualdade e proporciona­
lidade e não perpetuação das penas, as medidas de segurança não podem, nem
devem, exceder ao tempo de pena que seria cabível na mesma hipótese, sendo
mesmo recomendável que o juiz proceda à individualização da pena, substituindo-
a a seguir pela medida de segurança pelo mesmo prazo, conforme tem decidido o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Cumpre dizer ainda que tais ponderações são também aplicáveis ao tempo
mínimo da medida de segurança, e não só ao tempo máximo, porque não faz sen­
tido, por exemplo, que o agente inimputável que tenha cometido um crime (ou
contravenção) punido com pena de seis meses de prisão tenha fixada a duração da
medida em um ano (prazo mínimo).
No caso de superveniência de alienação mental no curso da execução de pena
(CP, art. 41; LEP, art. 183), o réu será tratado em local apropriado e, se recuperar a
saúde mental, voltará a cumprir a pena regularmente. No entanto, se não o recu­
perar, a pena será substituída por medida de segurança pelo tempo de pena que res­
tava por cumprir. E que, a não ser assim, estar-se-ia a violar o princípio da legali­
dade da pena, já que o réu fora condenado a uma pena por tempo determinado,
bem como o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto que se estaria a

163 Derecho y razón, cit., p. 782.


D ireito P en al - P arte Geral

modificá-la em prejuízo do réu, que foi julgado e condenado a uma pena certa e por
tempo determinado.
Cumpre notar, finalmente, que há precedente do STF no sentido de que o
prazo máximo da medida de segurança não poderá exceder ao limite de trinta
anos.164

4. Penas e medidas de segurança se distinguem realmente?

A doutrina costuma distinguir penas e medidas de segurança recorrendo aos


seguintes critérios:165 1) a pena pressupõe culpabilidade; as medidas de segurança,
periculosidade, por isso “a ausência de culpabilidade não impede a aplicação de
medida de segurança, pois ela é substituída pelo juízo de periculosidade”;166 também
por isso a culpabilidade seria pressuposto da pena, e não requisito do crime, uma vez
que para a aplicação da medida de segurança bastariam a tipicidade e a ilicitude da
conduta; 2) as penas têm natureza retributiva-preventiva; as medidas de segurança
são preventivas; 3) as penas são proporcionais à gravidade da infração; a proporcio­
nalidade das medidas de segurança fundamenta-se na periculosidade do sujeito;
4) as penas são por tempo determinado; as medidas de segurança, indeterminado;
5) as penas são aplicáveis aos imputáveis; as medidas de segurança, aos inimputáveis.
Não é isso correto, porém.
Desde logo não é exato dizer que, quanto aos inimputáveis, o juízo de culpa­
bilidade é substituído pelo juízo de periculosidade. Sim, porque em favor do inim­
putável também militam, além das excludentes de tipicidade e ilicitude, todas as
causas de exclusão de culpabilidade, bem como causas extintivas de punibilidade
(prescrição, decadência etc.), conforme prevê o art. 96, parágrafo único, do Código
Penal. Ora, se isso é certo, segue-se que a só periculosidade não é bastante para
ensejar a aplicação de medida de segurança, pois hão de concorrer todos os pressu­
postos da punibilidade, já que são inadmissíveis medidas pré-delituais. Se, no

164 HC ne 84219/SP, l 8 Turma, Rei. Ministro Marco Aurélio, julgado em 16/08/2005, publicado no DJ em
23/09/2005, p. 16.
165 Conforme Damásio de Jesus, Direito p en a l v. 1 São Paulo, Saraiva, 2003, p. 545. Idem, Flávio Augusto
Monteiro de Barros, para quem “a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segu­
rança, pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade. Poder-se-ia obtemperar que esse
tratamento díspar viola o princípio da isonomia. Ledo engano, pois a ausência de imputabilidade tom a
inadmissível o questionamento da culpabilidade”, Direito pen al - parte geral, v. 1 São Paulo, Saraiva,
2003, p. 479. De modo similar, Cezar Roberto Bitencourt, Tratado d e direito penal, São Paulo, Saraiva,
2004, p. 681. A despeito disso, Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe “práti­
ca de fato típico punível”, pois “é indispensável que o sujeito tenha praticado um ilícito típico. Assim, dei­
xará de existir esse primeiro requisito se houver, por exemplo, excludentes de criminalidade, excludente
de culpabilidade (erro de proibição invencível, coação moral irresistível e obediência a ordem hierárqui­
ca, embriaguez completa fortuita ou por força maior) - com exceção da inimputabilidade ou ainda se
não houver prova do crime ou da autoria etc. Resumindo: a presença de excludentes de criminalidade ou
de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança” (p. 682).
166 Damásio, cit., p. 545.
Paulo Queiroz

entanto, os inimputáveis ficam sujeitos não à pena, mas à medida de segurança, é


porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade (necessidade/adequa­
ção), pois sentido algum faria enclausurá-los numa penitenciária.
Afinal, se o juiz constatar que o réu inimputável agiu sob coação moral irre­
sistível, obedeceu à ordem não manifestamente ilegal, incorreu em erro de proibi­
ção inevitável, encontrava-se em estado de embriaguez involuntária completa etc.,
hipóteses perfeitamente possíveis, será de todo ilegal a aplicação de medida de
segurança, impondo-se a absolvição pura e simples (CPP, art. 386, III e V), visto
que se nas mesmas circunstâncias se puder invocá-las em favor do imputável o
mesmo deverá ocorrer, com maior força de razões, quanto ao inimputável, por­
quanto num sistema democrático de direito as garantias devem ser proporcionais
ao grau de vulnerabilidade de quem delas necessitam (os mais débeis). Mais: se
inimputável tiver atuado numa situação clara de exclusão de culpabilidade, que não
a própria inimputabilidade, não haverá perigo algum capaz de justificar a aplicação
da medida de segurança.
Tampouco cabe dizer que as penas têm natureza retributivo-preventiva e as
medidas de segurança têm natureza só preventiva. Primeiro, porque, pelo que já se
disse, tanto as penas quanto as medidas de segurança pressupõem fato típico, ilíci­
to, culpável e punível, de modo que desse ponto de vista também as medidas de
segurança constituem uma retribuição a uma infração penal punível. Segundo, por­
que no essencial as medidas de segurança perseguem os mesmos fins assinalados à
pena: prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias contra o criminoso inimpu­
tável (prevenção geral negativa) e evitar a reiteração de crimes167 (prevenção espe­
cial). Finalidade da intervenção jurídico-penal é em ambos os casos a proteção sub­
sidiária de bens jurídicos relevantes.
No que tange à indeterminação do prazo máximo das medidas de segurança,
herança do positivismo criminológico, cabe redargüir que, em homenagem aos
princípios da igualdade, proporcionalidade e não-perpetuação das penas, não se
justifica numa perspectiva garantista que tais sanções, diferentemente das penas,
possam durar indefinidamente, enquanto “não for averiguada, mediante perícia
médica, a cessação da periculosidade” (CP, art. 97, § l s), razão pela qual jamais
deverão exceder ao tempo de pena que seria cabível na espécie. Ademais, devem

167 Como assinala Fragoso, a propósito (ainda) da medida de segurança aplicável ao imputável, “pena e medi­
da de segurança têm o mesmo fundamento. Ambos servem à proteção de bens jurídicos e se destinam a
prevenir a prática de crimes. Na execução, ambas tendem à reintrodução do agente na sociedade, sem que
venha a cometer novos crimes. É certo que a pena, em sua natureza jurídica, é, em essência, retributiva,
porque é perda de bens jurídicos imposta ao transgressor. Mas a medida de segurança detentiva para impu-
táveis, que o condenado recebe e sofre como uma pena, também é perda de bens jurídicos, tendo nature­
za aflitiva, por vezes, mais grave do que a pena”, Lições de direito pen al Rio de Janeiro, Forense, 1994, p.
387. Também no sentido de que a medida de segurança persegue fins de prevenção geral (positiva) e espe­
cial, Figueiredo Dias, Questões fundamentais do direito penal revisitadas, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1999. Para uma crítica à prevenção (geral ou especial), no que toca à medidas de segurança,
Gamil Fõppel, A função da pena na visão de Claus Roxin , Rio de Janeiro, Forense, 2004.
D ireito Penal - Parte G eral

ser minimamente aflitivas para o criminoso inimputável, pois encerram dupla vio­
lência: hospital e cárcere.
Cumpre notar ainda que, se, analiticamente, crime é, conforme a perspectiva
aqui adotada, fato típico, ilícito e culpável, segue-se que, faltando a culpabilidade,
em razão de o réu se achar numa situação de exclusão da culpabilidade, faltará o
crime, motivo pelo qual também por essa razão não se justificaria a aplicação de
uma medida de segurança.
Assim, diferença ontológica nenhuma há entre penas e medidas de seguran­
ça, pois ambas perseguem os mesmos fins e reclamam o concurso de idênticos pres­
supostos de punibilidade: fato típico, ilícito, culpável e punível. A distinção reside,
portanto, unicamente nas conseqüências: os imputáveis estão sujeitos à pena; os
inimputáveis, à medida de segurança, atendendo-se a critério de pura conveniên­
cia político-criminal ou de adequação. Mais: as medidas de segurança requerem
ainda o requisito da periculosidade por parte do agente. Desnecessário dizer que
todas as garantias processuais (contraditório, ampla defesa, devido processo legal
etc.) militam em favor do inimputável.
Não sem razão o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo relator
Amilton Bueno de Carvalho, tem, nos casos de inimputabilidade, procedido (inicial­
mente) à individualização da pena, como se o réu fosse imputável, para só em segui­
da a substituir pela medida de segurança cujo prazo máximo é aquele da pena fixa­
da, sem prejuízo de ser liberado antes, quando verificada a cessação da periculosida­
de, estabelecendo, ainda, o limite máximo de um ano para a sua averiguação.168

4.1. Natureza jurídica da sentença

Discute-se a natureza jurídica da sentença que impõe medida de segurança: se


absolutória ou condenatória. A doutrina e a jurisprudência majoritárias, com base

168 “PROCESSUAL PENAL. MEDIDA DE SEGURANÇA. PRAZO INDETERMINADO. INCONSTITUCIO-


NALIDADE. PROIBIÇÃO DE PENAS PERPÉTUAS OU DE OUTRO MODO ABUSIVAS. NECESSIDA­
DE DE READEQUAÇÃO DOS LIMITES MÁXIMO E MÍNIMO.
- É inconstitucional a indeterminação de limite máximo, bem como abusivo, prolongado e excessivo o
prazo mínimo para a verificação da cessação da periculosidade do agente, previstos no art. 97, do Código
Penal, à imposição de Medidas de Segurança.
- A Constituição Federal veda expressamente a imposição de sanção penal que possa assumir caráter per­
pétuo ou que possa ser, de qualquer forma, abusiva (art. 5C, XLVII e alíneas) - assim, ancorada nos prin­
cípios fundamentais (freios liber tários ao poder punitivo estatal) impõe a maior aproximação isonômica
possível entre a punição de imputáveis e inimputáveis que cometem delitos.
- A dignidade da pessoa humana, isonomia e mitigação da dupla violência punitiva - dos delitos e das penas
arbitrárias (no dizer de Ferrajoli) - restam, então, aqui contempladas da seguinte forma: fixação do limite
máximo pelo total da pena estabelecida em cada caso concreto (igualmente ao que se dá com imputáveis),
bem como, a fixação do prazo mínimo para a verificação da cessação da periculo sidade em 1 ano (como
não há dogma sobre a cura de um distúrbio mental, melhor que se a comece a investigar no menor tempo
possível), devendo, cessada a enfermidade mental, ser o apenado posto em liberdade a qualquer tempo.
- À unanimidade deram parcial provimento ao apelo” (AC 70010817724, 5a Câmara Criminal, Comarca
de Cachoeira do Sul, Jorge Eloy Nascimento Barbosa, apelante e M inistério Público apelado).
f
Paulo Queiroz

400;
no Código de Processo Penal inclusive (CPP, art. 386, V), entendem que a decisão
é absolutória imprópria, sob o argumento de que a medida de segurança não é pena
e nem pressupõe culpabilidade. A tese minoritária seria em princípio mais correta,
segundo pensamos.169 Primeiro, porque, conforme já assinalamos, a imposição de
medida de segurança requer o concurso de todos os pressupostos da condenação
(fato típico, ilícito e culpável); segundo, porque na prática constitui uma interven­
ção jurídico-penal por vezes bem mais séria e lesiva à liberdade de quem a sofre do
que a própria pena; terceiro, porque a não admissão do caráter condenatório da
sentença lhe é de todo desfavorável, inclusive para efeito de prescrição. Final­
mente, a sentença penal constitui um título executório que permitirá ao Estado
executar coativãmente a medida curativa, restringindo a liberdade do indivíduo na
forma da Lei n? 7.210/84.
Apesar disso, temos que a natureza da sentença concessiva da medida de segu­
rança tem caráter misto: a um tempo condenatório e absolutório. A sentença é
absolutória porque não impõe a aplicação de pena em sentido estrito (formal), mas
medida de segurança (internação ou tratamento), além de ser assim tratada legal­
mente (CPP, art. 386, V, e parágrafo único, III), não gerando reincidência etc.; é
condenatória por exigir todos os pressupostos jurídico-penais da condenação
(crime punível) etc.

5. Espécies

Duas são as medidas de segurança previstas no Código: internação e tratamento


ambulatorial (art. 96). A primeira, cumprida nos atuais Hospitais de Custódia e Trata­
mento psiquiátrico (HCT) ou, à falta, em estabelecimento adequado, e que importa
privação da liberdade do paciente, destina-se aos crimes mais graves, punidos com
reclusão; a segunda, cujo tratamento ocorrerá nos mesmos locais, dirige-se aos delitos
menos graves, punidos com detenção. O elenco das medidas de segurança é, pois, bas­
tante limitado, diversamente do Código espanhol, por exemplo, que prevê um exten­
so número de medidas privativas e não privativas da liberdade (art. 96).
Como se vê, a medida prioriza o resultado do crime em detrimento dos dis­
túrbios mentais diagnosticados pelos peritos, sendo que a modalidade de terapia
decorre mais do desvalor do resultado do que do grau de perigosidade do agente, o
que é um contra-senso. Portanto, não é o médico que sugere a internação ou o tra­
tamento ambulatorial, de acordo com as necessidades do agente, mas a lei que
preestabelece a medida.170

169 Nesse sentido, José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal. Vol. III. Campinas:
Bookseller, 1997. p. p. 42-43; Eduardo Reale Ferrari, Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado
Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 210; e Antônio Rodrigues Porto,
Prescrição Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 95, entre outros.
170 SMANIOTO, Edson Alfredo Martins. Da Medida de Segurança. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
n. 06. 2001.
D ireito Penal - Parte G eral

Releva notar que, apesar de existirem precedentes tolerando a custódia do


interno em cadeias públicas, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça vem deci­
dir que configura constrangimento ilegal a prisão do inimputável em regime fecha­
do pela ausência de vaga em estabelecimento adequado para o cumprimento da
medida de segurança,17! devendo o juiz da execução, à falta de estabelecimento
adequado, substituir a internação por tratamento ambulatorial. Note-se ainda que
a internação passou a ser medida excepcional a partir da reforma psiquiátrica.

5.1. Conversão regressiva e progressiva

A LEP (art. 184) prevê a possibilidade de conversão de tratamento ambulato­


rial em internação se o agente revelar incompatibilidade com a medida, caso em
que o prazo mínimo será de um ano; não prevê o contrário, porém (conversão pro­
gressiva); conversão da internação em tratamento ambulatorial. Mas tal é perfeita­
mente possível, seja porque a finalidade declarada da medida é a recuperação do
sentenciado, seja porque não há proibição alguma no particular.172

6. Extinção

A medida de segurança decretada será extinta somente quando for averigua­


da mediante perícia a cessação da periculosidade (art. 97).
Antes, porém, o agente será desintemado ou liberado condicionalmente du­
rante o prazo de um ano. Se, ao final desse período, não praticar fato indicativo de
persistência da periculosidade, decretar-se-á a extinção da medida, definitivamen­
te. Caso contrário, isto é, se, durante esse prazo de provação ou “liberdade condi­
cional”, vier a cometer fato indicativo de perigosidade, será restabelecida a situa­
ção anterior (reintemação ou tratamento ambulatorial).
Cumpre reiterar que quando no curso da execução da pena privativa da liber­
dade sobrevier doença mental ou perturbação da saúde mental, o juiz, de ofício ou a
requerimento do Ministério Público ou da autoridade administrativa, poderá deter­
minar a substituição da pena por medida de segurança (CP, art. 41; LEP, art. 183),
hipótese em que o prazo não deverá exceder ao tempo de pena que restava por cum­

171 EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNA­


ÇÃO. FALTA DE VAGA EM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO.
I - Sendo aplicada ao paciente a medida de segurança de internação, constitui constrangimento ilegal sua
manutenção em prisão comum, ainda que o motivo seja a alegada inexistência de vaga para o cumprimen­
to da medida aplicada.
II - A manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança de interna­
ção é de responsabilidade do Estado, não podendo o paciente ser penalizado pela insuficiência de vagas.
Habeas corpus concedido (STJ, HC n.B 31902. DJ 01/07/2004. Rei. Min. Félix Fischer). No mesmo sentido:
STJ, RHC n® 13346/SP e; HC n. 22916/MG.
172 No sentido do texto, Haroldo Caetano. Execução penal. Porto Alegre: Magister editora, 2006, p. 303.
Paulo Queiroz

prir. É que, a não ser assim, estar-se-ia a violar o princípio da legalidade da pena, já
que o réu foi condenado a uma pena por tempo determinado, bem como o princípio
da intangibilidade da coisa julgada, visto que se estaria a modificá-la em prejuízo do
réu, que foi julgado e condenado a uma pena certa e por tempo determinado.

XIX. Suspensão condicional da execução da pena - sursis

O sursis, modo especial que é de cumprimento da sanção penal, consiste na


suspensão da execução da pena de prisão durante certo período de tempo sob deter­
minadas condições, findo o qual se terá por cumprida a pena, se regularmente
observadas as exigências impostas. Trata-se, portanto, de mais uma alternativa à
pena privativa da liberdade, razão pela qual não terá lugar sempre que a sentença
condenar o réu à pena de natureza diversa: restritiva de direito, multa etc.
Diferentemente do livramento condicional, que pressupõe o cumprimento de
parte da pena (no mínimo mais de um terço), o sursis precede necessariamente à
execução penal, sobrestando o cumprimento da pena privativa da liberdade pelo
prazo legal (período de prova) de dois a quatro anos ou, excepcionalmente, pelo
prazo de quatro a seis anos.
No passado, a suspensão condicional gozou de grande prestígio, mas nos dias
atuais, em razão das reformas penais mais recentes, sobretudo a ampliação dos casos
de admissão de penas alternativas, a introdução dos institutos da suspensão condicio­
nal do processo e da transação penal (Lei ns 9.099/95), as possibilidades reais de sua
aplicação são mínimas, uma vez que freqüentemente sua incidência ficará prejudica­
da pela prévia adoção daqueles substitutivos penais, de maior alcance inclusive.
Como regra, para fazer jus ao sursis, o sentenciado deverá atender simultanea­
mente aos seguintes requisitos: a) ser condenado à pena de prisão não superior a
dois anos; b) não ser reincidente em crime doloso; c) militar em seu favor as cir­
cunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal. A substituição da pena de prisão
por restritiva de direito obsta o sursis evidentemente, não se tratando de mais um
requisito, mas de um seu pressuposto.
Cuidando-se de réu reincidente em crime culposo ou em crime doloso e cul­
poso (ou vice-versa), em tese ele terá direito à suspensão, uma vez que somente a
reincidência em crime doloso o impede. Aliás, mesmo o reincidente em crime dolo­
so fará jus ao sursis se a condenação anterior for a pena de multa (CP, art. 77, § l e).
Ademais, a lei não exclui a possibilidade de aplicação aos chamados crimes hedion­
dos ou assemelhados, razão pela qual sua aplicação é perfeitamente possível, desde
que o condenado atenda aos requisitos legais específicos, conforme já reconhecido
pelo Supremo Tribunal Federal, inclusive.173 Exceção a isso é a nova Lei de Droga
que o proibiu de forma expressa, relativamente ao tráfico e crimes análogos.

173 Sobre o assunto, Alberto Silva Franco, Crimes hediondos , São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.
D ire ito Penal - Parte Geral

A doutrina refere as modalidades seguintes de sursis: a) sursis comum; b) sur­


sis especial; c) sursis etário; d) sursis por motivo de saúde. Ordinariamente, deferi­
do o sursis (sursis comum), o condenado prestará no primeiro ano serviço à comu­
nidade ou sofrerá a limitação de final de semana, a critério do juiz. No entanto, se
houver reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e forem inteiramente
favoráveis as circunstâncias judiciais, o juiz poderá (sursis especial) substituir as
exigências antes referidas pelas seguintes, aplicadas cumulativamente: a) proibição
de freqüentar determinados lugares; b) proibição de ausentar-se da comarca onde
reside sem autorização do juiz; c) comparecimento pessoal e obrigatório em juízo,
mensalmente, para informar e justificar suas atividades.
Tratando-se de réu maior de setenta anos (sursis etário) condenado à pena não
superior a quatro anos, a execução da pena privativa da liberdade poderá ser sus­
pensa por quatro a seis anos (CP, art. 77, § 2Ç). O mesmo ocorrerá quando, inde­
pendentemente da idade, razões de saúde justificarem a concessão da suspensão
(sursis por motivo da saúde).
No caso de condenação por contravenção penal (LCP, art. 11), a suspensão da
pena de prisão simples será por tempo não inferior a 1 (um) ano nem superior a 3
(três) anos.
Além das condições legalmente previstas (condições legais), a sentença pode­
rá (condições judiciais) especificar outras, desde que adequadas ao caso e à situação
pessoal do condenado (princípio da proporcionalidade).
A suspensão será necessariamente revogada (revogação obrigatória) sempre
que o réu: a) for condenado irrecorrivelmente por crime doloso; b) descumprir a
pena de prestação de serviço à comunidade ou limitação de fim de semana que lhe
foi imposta; c) não reparar o dano sem motivo justificado.
A lei também refere como causa revocatória obrigatória a circunstância de o
condenado frustrar, embora solvente, a execução da pena de multa. No entanto, tal
dispositivo ofende o princípio proibitivo de prisão por dívida. Além disso, já não
existe mais a possibilidade legal de o descumprimento da multa converter-se em
prisão, uma vez que, transitada em julgado a sentença, a multa será considerada
dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da
Fazenda Pública (CP, art. 51).
Nos demais casos, como superveniência de condenação irrecorrível por crime
culposo ou por contravenção, descumprimento das condições judiciais etc., a revo­
gação ficará a critério do juiz (revogação facultativa). No entanto, somente a con­
denação à pena privativa da liberdade ou à restritiva de direito implicará a revoga­
ção facultativa, motivo pelo qual a condenação à pena de multa não tem o condão
de revogar o sursis, nem obrigatória, nem facultativamente (CP, art. 81, § l e).
Releva notar que, quando facultativa a revogação, o juiz poderá, em vez de
decretá-la, prorrogar o período de prova até o máximo, se este não tiver sido o fixa­
do (CP, art. 81, § 3q).
Paulo Queiroz

404
Se eventualmente o condenado estiver respondendo a outro processo por
crime ou contravenção praticado antes ou durante o sursis, o juiz não poderá decre­
tar a revogação, em razão do princípio da presunção de inocência. Apesar disso, o
prazo da suspensão ficará prorrogado até o julgamento definitivo do processo que
ensejar a prorrogação (CP, art. 81, § 2S).
Cumpridas regularmente as condições da suspensão, a pena será extinta.

XX. Livramento condicional

1. Conceito e requisitos

O livramento condicional, instrumento jurídico-penal de suma importância


prática, é a concessão pelo poder jurisdicional da liberdade antecipada ao condena­
do, condicionada a determinadas exigências durante o restante da pena que deve­
ria cumprir preso.174
Trata-se de mais um instituto que possibilita ao sentenciado reintegrar-se,
gradual e condicionalmente, à vida em liberdade e que constitui um direito seu,
desde que atendidos os requisitos legais para tanto.175 Apesar disso, não há neces­
sidade de o réu progredir previamente para só então fazer jus ao livamento, poden­
do obtê-lo inclusive diretamente do regime fechado, sem passar pelos regimes
semi-aberto e aberto.
A concessão do livramento condicional, que por óbvio pressupõe a execução
de pena privativa da liberdade e não a execução de qualquer pena, requer o con­
curso dos seguintes requisitos (CP, art. 83): 1) condenação igual ou superior a dois
anos; 2) cumprimento de parte da pena, mínimo de um um terço e máximo de dois
terços; 3) não ser o condenado reincidente específico em crime hediondo ou asseme­
lhado; 4) ter o condenado reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo; 5) cons­
tatação das condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a
delinqüir, tratando-se de crime doloso com violência ou grave ameaça à pessoa;
6) comportamento satisfatório durante a execução da pena, bom desempenho no
trabalho que lhe for atribuído e aptidão para prover a própria subsistência.
Conforme dispõe o art. 132, §§ l e e 2e, da LEP, deferido o pedido, o juiz espe­
cificará as condições a que fica subordinado o livramento, sendo obrigatórias as
seguintes (condições obrigatórias): a) obter ocupação lícita dentro de prazo razoá­
vel, se for apto para o trabalho; b) comunicar periodicamente ao juiz sua ocupação;

174 Magalhães Noronha, Direito penal, cit., p. 307.


175 Nesse sentido, Hungria: “o livramento condicional é, em relação ao condenado, inquestionavelmente um
direito: direito ao benefício, à recompensa da liberdade antecipada. Ao cometer o crime no regime de uma
lei penal que concede o livramento, surge para o réu a obrigação de sofrer a pena que lhe venha a ser
imposta, mas também, simultaneamente, o direito de, ao fim de certo tempo, e dadas as condições prefi­
xadas em lei, obter que lhe seja dispensado o efetivo cumprimento do restante da pena” (apud Magalhães
Noronha, Direito penal, cit.). No mesmo sentido, Delmanto, Código Penal comentado, cit.
D ireito P en al - Parte G eral

c) não mudar de residência sem prévia autorização do Juízo da Execução. Poderão


ser ainda impostas (condições facultativas): a) não mudar de residência sem comu­
nicação ao juiz competente; b) recolher-se à habitação em hora fixada; c) não fre­
qüentar determinados lugares.
Desnecessário dizer que o prazo do livramento corresponderá ao tempo de
pena que restava por cumprir, de modo que, se, por exemplo, o réu vem a ser con­
denado a doze anos de reclusão, obtendo-o depois de seis anos, ficará em período
de provação pelos seis anos restantes.
O instituto é também aplicável às contravenções penais (LCP, art. 11).
Para deferi-lo, o juiz, que decidirá de modo fundamentado, ouvirá previa­
mente o Ministério Público e o defensor do interessando; já não mais se exige pare­
cer do Conselho Penitenciário nem Exame Criminológico para tanto.

1.1. Pena igual ou superior a dois anos

A lei prevê inicialmente que somente as condenações iguais ou superiores a


dois anos possam ser objeto de livramento condicional. Conseqüentemente, as con­
denações inferiores a dois anos, as quais em geral já serão alcançadas por outros ins­
titutos, a exemplo da suspensão condicional do processo e da substituição por penas
restritivas de direito, ficam excluídas do livramento condicional. Nesse sentido
também se posiciona a doutrina, entendendo que se a pena ainda que somada não
atingir o mínimo de dois anos e que não puder beneficiar-se com penas restritivas
de direito, tampouco poderá valer-se do livramento condicional, devendo ser cum­
prida integralmente.176
Mas semelhante exclusão é inteiramente despropositada e ofensiva ao princí­
pio da proporcionalidade, afinal crimes mais graves terão tratamento mais brando
do que crimes menos graves numa clara inversão de valores; tal limite, claramente
inconstitucional, há de ser ignorado, portanto. E d e leg e feren da deve ser abolido.

1.2. Cumprimento de parte da pena

O condenado não reincidente em crime doloso e que tiver bons antecedentes


deverá cumprir mais de um terço da pena, de modo que, por exemplo, condenado
a seis anos de prisão, deverá ter cumprido mais de dois anos, ficando o restante do
período sob liberdade condicional. Para tanto, considerar-se-á como tempo de
cumprimento o período de detração (CP, art. 42) e de remição (LEP, art. 128).
Portanto, sendo primário ou mesmo reincidente em crim e culposo, bastará
cumprir mais de um terço da pena; o mesmo ocorrerá se praticar crime doloso e

176 C ezar B iten cou rt, Código Penal comentado, cit., p. 279.
Paulo Queiroz

culposo ou vice-versa. Se for reincidente em crime doloso, terá de cumprir mais de


metade da pena (art. 83, II).
Pode ocorrer de o condenado ser primário, mas de maus antecedentes, haven­
do omissão da lei no particular. E diante da omissão, doutrina e jurisprudência têm
entendido majoritariamente que para obter o livramento o condenado deverá cum­
prir mais de metade da pena, ou seja, equipara-se, por meio dessa interpretação, o
primário de maus antecedentes ao reincidente.
Tal interpretação, porém, claramente antigarantista, por violar o princípio da
legalidade em prejuízo do sentenciado, não pode prevalecer, visto que se está a
fazer in casu analogia in malam partem , quando deveria ter lugar analogia in
bonam partem , de sorte que o condenado não reincidente de maus antecedentes
deve cumprir mais de um terço da pena e não mais da metade.
Além disso, (re)tomar em consideração quando do livramento os maus ante­
cedentes já considerados na sentença condenatória importa manifesto bis in idem .
Não bastasse isso, o que se deve entender por maus antecedentes, se a Cons­
tituição Federal dispõe que ninguém será considerado culpado senão após o trânsi­
to em julgado de sentença penal condenatória (art. 5e, LVII)? Em primeiro lugar,
inquéritos, processos e condenações em grau de recurso não o podem, sob pena de
violação ao princípio em questão. E com maior força de razões fatos desabonado-
res ou eventualmente criminosos da vida do condenado que nem sequer foram
objeto de investigação policial. Tampouco cabe tomar como maus antecedentes a
reincidência já expirada pelo decurso do prazo de cinco anos.
Que restaria, então? Unicamente, conforme vimos, a existência de outra con­
denação penal que não importe reincidência.
Cuidando-se de reincidente em crime doloso, não importando se de bons ou
maus antecedentes, o condenado terá de cumprir mais de metade da pena (art. 83, II).
Tratando-se de crimes hediondos ou assemelhados a estes (Lei ne 8.072/90), o
condenado deverá cumprir mais de dois terços da pena (art. 83, V).
Por fim, havendo unificação da penas em trinta anos, o cálculo para efeito de
livramento deverá ser feito com base na pena aplicada e não com base na unifica­
da em trinta anos, conforme dispõe a Súmula 715 do Supremo Tribunal Federal.
Mas não é esse o entendimento que aqui defendemos, conforme já tivemos ocasião
de referir.

1.3. Reincidência específica em crime hediondo

Não tem direito ao livramento o reincidente específico em crime hediondo ou


afim.
A reincidência específica, que logicamente pressupõe a reincidência geral
(CP, art. 63), verifica-se quando o agente comete novo crime hediondo ou asseme­
lhado depois de transitar em julgado sentença que, no País ou no estrangeiro, o
tenha condenado por crime hediondo anterior.
D ireito Penal - Parte Geral

Para tanto, parece-nos que não há necessidade de que os crimes sejam idênti­
cos (dois estupros qualificados, dois latrocínios); é suficiente que ambos os delitos
sejam hediondos ou equiparados (v. g ., um latrocínio e um homicídio qualificado).
Mas o assunto é controvertido. Alberto Silva Franco entende que só se pode falar
de reincidência específica em crime hediondo quando houver reincidência no
mesmo tipo penal hediondo (v. g., dois latrocínios) ou ao menos entre tipos seme­
lhantes (v. g., latrocínio e extorsão qualificada pela morte), pois fora dessas hipóte­
ses não existirá a alegada reincidência específica e, portanto, em tese é cabível a
concessão do livramento.177
Naturalmente que se um dos crimes tiver sido praticado antes da entrada em
vigor da lei que o equiparou à condição de hediondo (Lei nQ8.072/90), não haverá
reincidência específica, pois do contrário a lei retroagiria em prejuízo do réu, vio­
lando-se os princípios da legalidade e irretroatividade. Assim, por exemplo, se o
agente for condenado por dois crimes de homicídio qualificado, mas um deles tiver
sido cometido antes da vigência da Lei ns 8.930/94, que incluiu esse crime no rol dos
previstos como hediondos, poderá fazer jus ao livramento após o cumprimento de
mais de dois terços da pena em relação ao crime hediondo e mais de um terço, quan­
to ao crime não hediondo, se primário; ou mais de metade, se já era reincidente.

1.4. Reparação do dano

Também constitui requisito para o livramento a reparação do dano causado


pela infração, salvo impossibilidade de fazê-lo (art. 83, IV). Mas isso não constitui
um óbice sério à sua concessão, haja vista que os condenados são em geral miserá­
veis que nem sequer puderam constituir e pagar advogado para fazer sua defesa, de
modo que ordinariamente incide o “salvo impossibilidade de fazê-lo” a que se refe­
re o dispositivo.

1.5. Presunção de não-reincidência

Nos crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa (homicídio,


extorsão mediante seqüestro, roubo etc.), a concessão da liberdade ficará na depen­
dência de uma prognose no sentido de que o condenado não voltará a delinqüir,
requisito próprio de um direito penal do autor, que na prática tem dado azo a toda
sorte de arbitrariedade, pela simples razão de que nenhum ser humano pode razoa­
velmente fazer a respeito de quem quer que seja um tal juízo de valor com um
mínimo de segurança.

177 Crimes hediondos, cit., p. 200/201. No m esm o sentido, Rogério G reco, cit.
P a u lo Q u e ir o z

Há quem entenda que tal exigência não é aplicável ao roubo impróprio (CP,
art. 157) nem ao homicídio com emprego de veneno, ao argumento de que em
ambos os casos não haveria emprego de violência.178

1.6. Comportamento satisfatório etc.

Por fim, o preso deverá ter um comportamento compatível com a concessão


da liberdade, não tendo cometido, durante a execução, faltas graves, praticado
outros crimes etc., se bem que o beneficiário não pode sofrer múltiplas punições
pela mesma falta (ne bis in idem). Além do mais, o comportamento satisfatório
deve ser analisado sobretudo a partir dos últimos meses de cumprimento. Também
se exige aptidão para trabalhar e bom desempenho no trabalho atribuído.'

2. Revogação do livramento

Pode ocorrer de o liberado vir a descumpir, injustificadamente, quaisquer das


condições do livramento ou a sofrer nova condenação criminal irrecorrível, ense­
jando a revogação e o conseqüente retomo à prisão.
O Código prevê causas de revogação obrigatória e facultativa. No primeiro
caso, a revogação ocorrerá automaticamente; no segundo, ficará a critério do juiz
revogá-lo ou não, fundamentadamente.

2.1. Revogação obrigatória

A revogação obrigatória ocorrerá sempre que sobrevier condenação irrecorrl-


vel à pena privativa da liberdade por crime cometido antes ou durante o livramen­
to (CP, art. 86). Para tanto, dever-se-á previamente assegurar ao liberado a possi­
bilidade justificação.
A revogação, portanto, em virtude do princípio da presunção de inocência,
somente poderá ocorrer se sobrevier condenação com trânsito em julgado, de modo
que o só fato de cometer novo crime ou de sofrer nova condenação (pendente de
recurso) não justifica a revogação. O cometimento de outro delito autoriza, unica­
mente, a suspensão do livramento, cuja revogação ficará dependendo da decisão
final (LEP, art. 145).
Além disso, é indispensável que se trate de condenação à pena privativa da
liberdade, razão pela qual havendo aplicação de pena restritiva de direito ou pecu­
niária ainda assim subsistirá o livramento, uma vez que perfeitamente compatível
com a nova condenação imposta (princípio da proporcionalidade). Finalmente, a
condenação deve ser pelo cometimento de crime e não de contravenção.

178 Assim, M irabete, cit.


D ireito Penal - P arte G eral

YT~
2.2. Revogação facultativa

A revogação poderá também ocorrer quando sobrevier nova condenação irre-


corrível por crime ou contravenção à pena que não seja privativa da liberdade ou
se o liberado injustificadamente descumprir qualquer das condições constantes da
decisão concessiva do livramento. A revogação só acontecerá em ultima ratio,
quando inevitável.

2.3. Efeitos da revogação

Para verificação dos efeitos da revogação, é preciso distinguir três hipóteses:


1) condenação irrecorrível por infração (crime ou contravenção) praticada antes do
livramento; 2) condenação irrecorrível por infração praticada durante o livramen­
to; 3) descumprimento das condições impostas.
Na primeira hipótese, como a revogação do livramento decorreu de “fato
alheio” à vontade do condenado - superveniência de nova condenação por infra­
ção penal anterior ao benefício —, os efeitos da revogação são mais brandos, quais
sejam: a) o condenado terá direito a novo livramento mesmo em relação à pena que
estava cumprindo, desde que, somadas a condenação atual e a anterior, o condena­
do atenda ao requisito temporal; b) o tempo em que esteve solto será considerado
como de efetivo cumprimento da pena.179
Na segunda situação, por se julgar que o liberado, ao cometer novo crime
durante o período de provação, demonstra que em verdade não fazia jus ao livra­
mento, confere-se-lhe o mais severo dos tratamentos, a saber: a) não poderá obter
novo livramento em relação à mesma pena, permitindo-se, porém, que obtenha o
benefício quanto à nova condenação; b) não se computa o p eríod o de tempo em
que esteve em liberdade condicional, tendo de cumprir a pena integralmente (LEP,
art. 142).
No caso de descumprimento das condições impostas na sentença, havendo
uma única pena a ser cumprida, o condenado terá, à semelhança da hipótese ante­
rior, de cumpri-la integralmente, não podendo obter novo livramento, bem como
não será computado o período em que esteve solto.
Mas tais efeitos podem e devem ser revistos em face dos princípios penais,
especialmente o princípio n e bis in idem , pois não parece razoável que, decretada
nova condenação, seja desconsiderado todo o período de regular cumprimento das

179 Art. 141 da LEP: se a revogação for motivada por infração penal anterior à vigência do livramento, com-
putar-se-á como tempo de cumprimento da pena o período de prova, sendo permitida, para a concessão
de novo livramento, a soma do tempo das duas penas; art. 142: no caso de revogação por outro motivo,
não se computará na pena o tempo em que esteve solto o liberado, e tampouco se concederá, em relação
à mesma pena, novo livramento.
Paulo Queiroz

410
condições do livramento, não raro longos e árduos anos de cumprimento, acaban­
do por conduzir o condenado a cumprir a mesma pena uma segunda vez.

3. Extinção da pena

Cumpridas as condições do livramento regularmente, o juiz declarará a extin­


ção da pena (CP, art. 90). No entanto, não poderá fazê-lo enquanto não passar em
julgado a sentença em processo a que responde o liberado, por crime cometido na
vigência do livramento (CP, art. 89). Nada impede, portanto, fora dessa hipótese -
crime cometido na vigência do livramento - a decretação da extinção da pena.
Com efeito, se eventualmente o condenado responder à ação penal por crime
cometido durante o livramento, o juiz não poderá declarar extinta a pena, pois, se
sobrevier nova condenação, o beneficio será revogado, perdendo o liberando, como
vimos, o período de pena já cumprido. O mesmo não ocorrerá - perda do tempo cum­
prido e prorrogação - , porém, se se tratar de crime cometido antes do livramento.
Portanto, a prorrogação do livramento só acontecerá se ao final do período de
prova o réu ainda responder a uma ação penal por crime praticado no curso do
benefício, razão pela qual, se disser respeito a crime anterior, dever-se-á decretar a
extinção da pena sem mais. Como a lei refere apenas processo, a simples existência
de inquérito policial não impedirá o juiz de decretar a extinção da pena tão logo
expire o período de prova. Pela mesma razão, processo por contravenção não tem
o condão de fazer prorrogar o livramento, pois a lei alude a crime, tão-só.

XXI. Da Ação Penal

1. Conceito e legitimidade de agir

A ação penal, inerente ao devido processo legal, é o direito de, à vista do


cometimento de uma infração penal (crime ou contravenção), provocar a tutela
jurisdicional-penal do Estado a fim de obter uma sentença penal condenatória ou
absolutóriaJSO
A ação penal pode ser pública ou privada, distinção que atende a critério de
conveniência político-criminal.
No primeiro caso, a ação - que se materializa por meio de uma petição inicial
chamada denúncia, a qual conterá a exposição circunstanciada do fato criminoso, a
qualificação do acusado, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de tes­
temunhas (CPP, art. 41) - compete ao Ministério Público (CF, art. 129, I), federal
ou estadual, conforme se trate de crime de competência da justiça federal ou esta­

180 Sobre o assunto, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, cit., e Aury Lopes Júnior, Direito Processual
e sua conformidade constitucional. Rio: Lum en Juris, 2008.

Ji
D ire ito Penal - Parte G eral

dual. No segundo caso, cuja petição recebe o nome técnico de queixa, a legitimida­
de para deflagrar a ação toca ao próprio ofendido ou ao seu representante legal.
E também possível na hipótese de cabimento de ação pública, diante da inér­
cia do titular da ação, a propositura de ação privada subsidiária, a qual é admitida
com a finalidade de suprir a omissão injustificada do Ministério Público (CF, art.
5°, LIX; CP, art. 100, § 3®).

2. Ação penal pública

A ação pública subdivide-se em pública incondicionada e pública condiciona­


da. A primeira independe do implemento de qualquer condição, vale dizer, a ini­
ciativa de apuração do crime pela autoridade competente e o ajuizamento da
denúncia devem ocorrer independentemente - e mesmo contrariamente - do inte­
resse das paites direta ou indiretamente afetadas pelo crime (autor, vítima etc.).
Também por isso a autoridade policial deverá proceder à apuração do fato pronta­
mente, de ofício (CPP, art. 5a, I).
Já na segunda hipótese, de ação pública condicionada, a investigação da infra­
ção penal pela autoridade policial e a propositura da ação penal pelo Ministério
Público dependem do implemento de uma condição indispensável: a iniciativa do
ofendido ou de seu representante legal, que deverá manifestar claramente seu inte­
resse em ver apurado o fato e processado o seu autor por meio de uma representa­
ção ou requisição do Ministro da Justiça.
Se eventualmente o ofendido for incapaz e não dispuser de representante
legal, o juz nomeará curador especial para representá-lo. O mesmo ocorrerá se hou­
ver conflito entre o interesse do incapaz e seu representante legal. Já as pessoas
jurídicas serão representadas por quem o respectivo estatuto designar e, à falta, por
seus diretores ou sócio-gerentes.
Como regra, a ação penal é pública incondicionada, isto é, sempre que o tipo
penal nada disser a respeito da legitimidade da ação, tratar-se-á de crime dessa
natureza (art. 100, § 1Q). Quando se tratar de ação pública condicionada, o Código
faz expressa menção, referindo a necessidade de representação do ofendido ou de
requisição do Ministro da Justiça. Assim, por exemplo, o art. 147 (crime de amea­
ça), ao dispor (parágrafo único) que “somente se procede mediante representação”.
Por igual, quando for o caso de ação penal privada, o Código dirá expressamente
que somente se procederá mediante queixa (v. g., crimes contra a honra).

2.1. Princípios que a regem

A ação penal pública, em virtude do interesse coletivo predominante que a


rege, é obrigatória. Significa dizer que não é dado ao seu titular - o Ministério
Público - decidir sobre a conveniência, oportunidade etc., da ação, devendo inten­
tá-la sempre que dispuser de prova da materialidade e autoria de crime. Natural­
Paulo Queiroz

mente que, à falta de tais elementos de prova que amparem a acusação, deverá pro­
por o arquivamento do procedimento (inquérito, representação etc.) ou requerer
novas diligências quando necessário. Caber-lhe-á também requerer a transação
penal quando se tratar de crime de menor potencial ofensivo (pena máxima não
superior a dois anos de prisão) ou a suspensão condicional do processo nos crimes
de médio potencial ofensivo (pena mínima não superior a um ano), nos casos em
que couber (Lei ne 9.099/95).
Conseqüentemente, a ação penal é também indisponível, haja vista que o seu
titular não pode propor acordos, sugerir perdão etc., exceto nos casos legalmente
admitidos. Por igual, não poderá desistir da ação que tenha iniciado ou do recurso
que haja interposto.
Finalmente, a ação penal é indivisível, já que deve ser proposta contra todos
os autores conhecidos, não se lhe permitindo escolher uns em prejuízo de outros,
sempre que dispuser de prova da participação de todos. Mas a indivisibilidade da
ação penal pública é controvertida, havendo precedentes, do STF inclusive, admi­
tindo a sua divisibilidade.18!

2.2. Irretratabilidade da representação

A representação, como condição de procedibilidade da ação penal pública


condicionada, pode ser objeto de retratação do ofendido, que venha a se arrepen­
der ou dela desistir. Antes de oferecida a denúncia pelo Ministério Público, a retra­
tação é perfeitamente possível.
Mas, uma vez oferecida a denúncia pelo Ministério Público, a representação
torna-se irretratável (CP, art. 102). O oferecimento pelo titular da ação, que não se
confunde com o despacho judicial de recebimento da denúncia, dá-se com a sua
formalização perante o juiz competente.
Referindo-se o Código somente à representação, a doutrina diverge sobre a
possibilidade de retratação da requisição do Ministro da Justiça.182
Não se pode ignorar, contudo, que à semelhança da representação a requisi­
ção constitui condição de procedibilidade da ação penal pública condicionada e
cujos fundamentos e fins são os mesmos. Por isso, é de convir que, apesar de a lei
se referir à representação, a retratação deve também alcançar a requisição do
Ministro da Justiça.
Convém assinalar que a representação, que pode ser oral ou escrita e que não
exige formalidades especiais, pode ser feita à autoridade policial, ao Ministério
Público ou ao próprio juiz. Se feita oralmente, reduzir-se-á a termo.

181 Sobre o tema, Humberto Fernandes. Princípios constitucionais do processo penal brasileiro. Brasília:
Brasília Jurídica, 2006.
182 Admitindo a retratação da requisição, Delmanto, Código Penal comentado, cit.; contrariamente, Cezar
Bitencourt, Código Penal comentado, cit.
D ireito Penal - P arte Geral

3. Ação penal privada

O direito de propor a ação penal privada é exclusivo do próprio ofendido ou


do seu representante legal, que se fará representar por meio de advogado. A Súmula
714 do STF estabeleceu ainda que “é concorrente a legitimidade do ofendido,
mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofen­
dido, para a ação penal por crime contra a honra do servidor público em razão do
exercício de suas funções”.
Na ação penal privada, diferentemente da ação penal pública, vigora o princí­
pio da disponibilidade, de modo que ao seu titular é dado a qualquer tempo renun­
ciar, perdoar, desistir da queixa etc.
Também é regida pelo princípio da indivisibilidade, devendo o querelante
intentar a ação contra todos os autores conhecidos, não podendo preferir uns a
outros.

3.1. Renúncia do ofendido

Em razão da disponibilidade da ação penal privada, o ofendido pode renun­


ciar ao direito de queixa, expressa ou tacitamente, ensejando a extinção da punibi-
lidade (CP, arts. 104 e 107, V).
A renúncia, que pode ocorrer antes de proposta a ação penal, pois depois dela
ocorrerá o perdão, pode ser expressa ou tácita. A renúncia expressa constará de
declaração assinada pelo ofendido, seu representante legal ou procurador com
poderes especiais (CPP, art. 50). A tácita ocorrerá quando houver prática de ato
manifestamente incompatível com a vontade de exercer o direito de queixa, não se
considerando como tal o fato de o ofendido receber a indenização do dano causa­
do pelo crime (CP, art. 104, parágrafo único, e CPP, art. 57). Exemplo disso é o
casamento do autor do crime com a vítima, que, embora não constitua mais uma
causa expressa de extinção de punibilidade, pode traduzir uma forma de renúncia
tácita nos crimes de ação penal privada.
A renúncia, em razão da indivisibilidade da ação penal privada, se comu­
nica no caso de concurso de agentes a todos os co-autores e partícipes (CPP,
art. 49).

3.2. Perdão do ofendido

O perdão - que poderá ocorrer até o trânsito em julgado da sentença conde­


natória (CP, art. 106, § 2°) - é a desistência do direito de prosseguir a ação penal
privada já iniciada, ensejando a extinção da punibilidade (CP, arts. 105 e 107, V).
A semelhança da renúncia, o perdão poderá ser tácito ou expresso. Também
aqui o perdão concedido a um dos partícipes a todos aproveita.
P a u lo Q u e ir o z

Sendo um ato bilateral, diferentemente da renúncia (unilateral), o perdão não


produz efeito se o querelado o recusar (CP, art. 106, III).
De notar que no caso de existir mais de um ofendido/querelante o perdão con­
cedido por um não prejudica o direito dos outros.

4. Ação penal privada subsidiária

A ação penal privada subsidiária (CF, art. 5S, LIX) tem por finalidade suprir
eventual inércia do titular da ação penal pública (Ministério Público), que, embo­
ra dispondo de elementos de prova para oferecer denúncia, deixa de fazê-lo no
prazo legal (CP, art. 100, § 3B). Reconhece-se, assim, ao ofendido ou a quem o
represente (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) o direito de ofeíecer quei­
xa, de sorte a suprir a omissão ministerial.
Não implica, porém, inércia do Ministério Público e, em conseqüência, não se
admitirá a ação privada subsidiária o requerimento de novas diligências ou o pedi­
do de arquivamento do inquérito.
Releva notar que a ação penal subsidiária, que é originariamente pública,
não se converte em ação privada, preservando a sua natureza pública e, por essa
razão, o querelante não pode dela desistir, renunciar, perdoar ou ensejar a
perempção,183 razão pela qual o Ministério Público pode aditar a queixa, ofere­
cer denúncia substitutiva, requerer diligências, produzir provas, recorrer e a
qualquer momento retomar o prosseguimento da ação, se houver negligência do
querelante (CPP, art. 29).

5. Decadência do direito de queixa e de representação

Nos crimes de ação penal privada e de ação pública condicionada, o ofendido


dispõe do prazo de seis meses para oferecer a queixa ou exercer o direito de repre­
sentação, a contar do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, de sorte que
decairá desse direito (CP, art. 103) se não o fizer tempestivamente. Trata-se de
prazo penal (CP, art. 10), motivo pelo qual se inclui o dia do começo no seu côm-
puto. Prazo diverso - três meses - prevê a Lei de Imprensa (Lei nfi 5.250/67), con­
tados da data da publicação ou transmissão da notícia.
Quanto à ação penal privada subsidiária da pública, o prazo de seis meses
conta-se do dia em que se esgota o prazo para o Ministério Público oferecer a
denúncia (CPP, arts. 38 e 46).
Também aqui o Código fala de decadência do direito de representação, omi-
tindo-se quanto à requisição, motivo pelo qual a doutrina e a jurisprudência enten­
dem que a decadência não atinge a requisição.

183 Cezar Biten cou rt, Manual, cit., p. 690.


D ire ito Penal - Parte Geral

No entanto, o que se disse a respeito da retratação é perfeitamente válido para


a decadência, de modo a admiti-la também quanto à requisição.

XXII. Causas de extinção de punibilidade

1. Introdução

Como vimos, o crime analiticamente se compõe de um fato típico, ilícito e cul­


pável. A punibilidade, portanto, não é uma nota essencial do conceito de crime, mas
sua conseqüência jurídica. A punibilidade é, assim, a possibilidade de se aplicar uma
sanção penal (pena ou medida de segurança) ao autor de um injusto penal culpável.
Mas, quando criminoso o fato, não se segue necessariamente a aplicação de
uma pena, haja vista que pode o direito de punir ser atingido por uma causa de
extinção de punibilidade, fazendo desaparecer a punição in concreto.
Cumpre notar que, embora a expressão “extinção de punibilidade” possa suge­
rir que tal somente é aplicável aos casos passíveis de pena, as causas de que trata o
Código Penal são também aplicáveis às situações passíveis de medida de segurança
em razão de inimputabilidade decorrente de doença mental ou perturbação da
saúde mental do autor (CP, art. 26). Com efeito, não é possível a aplicação de medi­
da de segurança se a infração penal já tiver sido atingida por uma causa de extin­
ção de punibilidade. No particular, o Código é expresso ao dispor que, “extinta a
punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido
imposta” (art. 96, parágrafo único). Não fosse assim e se violariam os princípios de
igualdade e proporcionalidade.
As causas de extinção de punibilidade não se confundem com certas causas
especiais de isenção de pena previstas na Parte Especial do Código, conhecidas
como escusas absolutórias, que, embora produzam os mesmos efeitos, são concedi­
das em caráter personalíssimo e somente aplicáveis a determinados crimes, a exem­
plo do crime de furto praticado em prejuízo do cônjuge, ascendente ou descenden­
te (CP, art. 181).
Das causas de extinção da punibilidade, cuida o art. 107 do Código. Mas tal
elenco não é taxativo, pois outras existem no próprio Código e na legislação extra­
vagante, a exemplo do ressarcimento no peculato culposo (CP, art. 312, § 3e, l 3
parte) e do recolhimento do tributo devido nos crimes contra a ordem tributária
(Lei n9 8.137/90).
É de lembrar, com Fragoso, que no rol das causas extintivas de punibilidade
previstas no Código figuram também situações que extinguem não a pena, mas o
próprio crime, como ocorre com a anistia, que faz desaparecer o delito, e a a b o lid o
críminis, que faz o agente retomar a condição de primário.184

184 Lições, cit., p. 399.


P a u lo Q u e ir o z

Por fim, dispõe o art. 108 do Código que “a extinção da punibilidade de crime
que é pressuposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não
se estende a este. Nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não
impede, quanto aos outros, a agravação da pena resultante da conexão”, disposição
que tem as seguintes implicações: a) a extinção da punibilidade de crime que é
pressuposto de outro não se estende a este. Essa norma é aplicável aos crimes aces­
sórios cuja configuração pressupõe um outro, principal (assim, a receptação em
relação ao furto), sendo que a extinção da punibilidade do principal (no caso, o
furto) não se comunica ao acessório (no caso, a receptação); b) a extinção da puni­
bilidade de crime que é elemento de outro não se estende a este. Essa norma é apli­
cável aos crimes complexos (assim, a extorsão mediante seqüestro), caso em que a
extinção da punibilidade do seqüestro (já contido na extorsão - CP, art. 148) não se
estende à extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159); c) a extinção da punibilidade
de crime que é circunstância agravante ou qualificadora de outro não se estende a
este. Essa norma é também aplicável aos crimes complexos, como, v. g., ao furto
qualificado pela destruição de obstáculo (CP, art. 155, § 4e, I, l 5 parte), em que a
extinção da punibilidade do dano (CP, art. 163) que qualifica o furto não o atinge;
d) nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto
aos outros, a agravação da pena resultante da conexão, v. g., o agente que, para estu­
prar uma mulher, mata pessoa que testemunha o crime terá a pena do homicídio
qualificada pela conexão (CP, art. 121, § 2e, V), ainda que venha a ocorrer a extin­
ção da punibilidade do estupro por qualquer motivo (prescrição, decadência etc.).185

2. Causas de extinção em espécie

2.1. Morte do agente

A primeira causa de extinção de punibilidade tratada no Código é a morte do


agente (CP, art. 107, I), conforme o princípio m ors solvit om inia (a morte tudo
apaga), sendo que a extinção atinge toda e qualquer pena cominada ou eventual­
mente aplicada (privativa de liberdade, restritiva de direito, multa etc.). O critério
para dizer-se morto alguém é dado pela Lei 9.434/97 (art. 3S): morte encefálica.
Dá-se, assim, efetividade ao preceito constitucional de que nenhuma pena
passará da pessoa do condenado (CF, art. 5e, XLV), princípio consagrado, entre nós,
desde a expedição do Aviso de 28 de agosto de 1822, por cujo meio o Príncipe D.
Pedro determinou que os juizes criminais deveriam guiar-se pelas bases da
Constituição portuguesa de 1821, em especial o art. 12, que, revogando boa parte
do Livro V das Ordenações Filipinas, vigente à época, dispunha textualmente:
“nenhuma lei, e muito menos a lei penal, será estabelecida sem absoluta necessida­

185 Damásio de Jesus, Direito penal, cit., p. 681.


D ireito P en al - Parte G eral

de. Toda pena deve ser proporcionada ao delito, e nenhuma pena deve passar da
pessoa do delinqüente”.
A prova da morte é feita por meio da certidão de óbito (CPP, art. 62) ou por
outros meios idôneos.
Arquivada a ação penal, prosseguirá a ação civil que se propuser com o fim de
reparar o dano, dada a autonomia das instâncias civil e penal.
Quanto ao aquivamento de inquérito ou ação penal com base em certidão de
óbito que se constatou falsa posteriormente, nada impede que o inquérito/ação
penal retome seu curso normal, desde que ainda não tenha havido extinção da
punibilidade por um outro motivo legal (v. g., prescrição). Mas esse assunto é um
tanto controvertido, havendo posionamento em sentido contrário.
A declaração de ausência por juízo cível não eqüivale à morte e, pois, não
implica extinção da punibilidade. No entanto, a morte presumida reconhecida por
sentença (CC, art. 7S, I e II)186 tem status de morte legal, com expedição de certi­
dão de óbito inclusive, motivo pelo qual é de se lhe emprestar o efeito extintivo da
punibilidade.187 Se eventualmente o morto presumido ressurgir, a ação então pros­
seguirá, se já não estiver atingida por outra causa extintiva de punibilidade, uma
vez que a presunção legal não é absoluta (juris tantum), admitindo prova em sen­
tido contrário.

2.2. Anistia, graça e indulto

Anistia, graça e indulto constituem modos de manifestação de indulgência do


Estado em favor de autor de crime. Distinguem-se pela competência, alcance e
motivação.
A anistia - normalmente concedida em crime político e que poderá ocorrer
antes ou depois da sentença penal passada em julgado - é de atribuição do Con­
gresso Nacional, sujeita à sanção do Presidente da República (CF, art. 48, VIII).
Já a graça - também conhecida como indulto individual - e o indulto, de com­
petência privativa do Presidente da República (CF, art. 84, XII), geralmente conce­
didos a quem se acha no cumprimento de pena, embora extingam a punibilidade,
mantêm inalterados os demais efeitos da condenação (reincidência etc.), diferente­
mente da anistia, que faz cessar todos os efeitos penais.
Releva notar que o Presidente da República poderá delegar a concessão de
indulto e a comutação de penas aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da
República ou ao Advogado-Geral da União (CF, art. 84, parágrafo único).

186 Eis o que dispõe o art. 7° do CC: Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se
for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em
campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo
único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas
as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.
187 Em sentido contrário, Ney Moura Teles, Manual de Direito Penal, cit.
Na prática, os decretos de indulto (anualmente editados) já prevêem os casos
que comportariam a graça, mas a doutrina os distingue dizendo que a graça é indi­
vidual e solicitada, enquanto o indulto é coletivo e espontâneo.
Em princípio, todos os crimes são passíveis de anistia, graça e indulto. Mas a
Constituição Federal fez uma ressalva para declarar insusceptíveis de anistia e graça os
crimes hediondos e assemelhados (CF, art. 5S, XLIII). Nesse sentido também dispõe a
Lei nQ9.455/97, que proíbe a graça e a anistia para os condenados por crime de tortu­
ra. Já a Lei n9 8.072/90, art. 2® (Lei de Crimes Hediondos), foi além da Constituição e
referiu também o indulto, a cujo respeito o texto constitucional fora omisso, motivo
pelo qual a doutrina diverge sobre a constitucionalidade desta lei no particular.
Alberto Silva Franco, defensor da posição minoritária, entende que se a
Constituição Federal incluiu a concessão de indulto e a comutação de perías entre as
atribuições privativas do Presidente da República (CF, art. 84, XII) e se ele próprio
não excepcionou o exercício dessa competência, não poderia fazê-lo o legislador
ordinário, motivo pelo qual o inciso I do art. 2a da Lei 8.072/90 é inconstitucional.188
Discute-se também sobre a aplicabilidade do indulto às penas restritivas de
direito. Saio de Carvalho entende que tal possibilidade é perfeitamente possível, seja
porque as penas restritivas são substitutivas das penas privativas da liberdade, seja
porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade, pois, se as penas mais gra­
ves admitem o indulto, as menos graves hão de também admitir com maior razão.189
Finalmente, não se confunde o indulto, causa de extinção de pena, com a
comutação de pena, que consiste na só redução da pena, quando incabível o indul­
to e o condenado atender às condições legais para comutar. Numa palavra: se o
indulto extingue a punibilidade, a comutação apenas a atenua.

2.3. Perempção

A perempção é a perda do direito de fazer prosseguir a ação penal de iniciati­


va privada em razão da inércia do seu titular, de sorte que constitui uma pena
imposta ao querelante que se desinteresse pela causa ou a abandone. Nos termos do
Código de Processo Penal (art. 60), considerar-se-á perempta a ação nos seguintes
casos: a) quando, iniciada esta, o querelante deixar de promover o andamento do
processo durante trinta dias seguidos; b) quando, falecendo o querelante, ou sobre­
vindo sua incapacidade, não comparecer em juízo, para prosseguir no processo,
dentro do prazo de sessenta dias, qualquer das pessoas a quem couber fazê-lo; c)
quando o querelante deixar de comparecer sem motivo justificado a qualquer ato
do processo a que deva estar presente ou deixar de formular o pedido de condena­
ção nas alegações finais; d) quando, sendo o querelante pessoa jurídica, esta se
extinguir sem deixar sucessor.

188 Crimes hediondos. S. Paulo: RT, 2005, 5. ed„ p. 171.


189 O indulto e as penas restritivas de direito. Boletim do IBCCrim, n. 142. São Paulo, set. 2004.
D ireito Pen al - P arte G eral

Mas isso não ocorrerá quando se tratar de ação penal privada subsidiária, visto
que no caso de negligência do querelante o Ministério Público poderá retomar a
ação como parte principal (CPP, art. 29). Portanto, descabe a perempção sempre
que se tratar de crime de ação pública ainda que eventualmente instaurada por pro­
vocação do ofendido (ação penal privada subsidiária).

2.4. Retratação

A retratação consiste no direito de desdizer-se, de retirar algo que se disse;


trata-se de ato unilateral que por isso não depende de aceitação do ofendido. Não
se exige espontaneidade, tampouco importam as razões que a motivaram, bastando
que seja voluntária, podendo ocorrer em geral até a sentença. Ela é cabível nos
casos de calúnia e difamação (CP, art. 143), falso testemunho e falsa perícia (CP,
art. 342, § 3Q), nos crimes contra a honra praticados por meio de imprensa (Lei ns
5.250/67, art. 26), entre outros.

2.5. Perdão judicial

O perdão judicial, que não deve ser confundido com o perdão do ofendido, é a
possibilidade conferida ao juiz de deixar de aplicar a pena ao réu em determinadas
e especiais circunstâncias taxativamente previstas em lei. Trata-se, obviamente, de
uma circunstância de caráter pessoal, que por isso não se comunica aos eventuais co-
autores ou partícipes do crime. São passíveis de perdão judicial: homicídio e lesão
corporal culposos, quando as conseqüências da infração atingirem o próprio agente
de forma tão grave que a sanção se tome desnecessária (CP, arts. 121, § 5S, e 129, § 8B);
injúria na forma do art. 141, § 1Q, I e II; receptação culposa (art. 180, § 5Q) etc.
Discute-se se o perdão seria aplicável aos crimes de trânsito; é que o artigo que
o previa expressamente foi vetado ao argumento de que o Código Penal já o fazia. Se
assim é, mesmo não havendo previsão legal expressa no Código de Trânsito, é de se
admitir, à falta de vedação nesse sentido, que também os crimes de trânsito possam
admiti-lo, mesmo porque remete (art. 291) às disposições do CP. Enfim, não é o caso
de incidência do princípio da especialidade (lex specialis derrogat legi generali) sim­
plesmente porque a lei especial (Código de Trânsito) não dispôs de modo diverso.
Muito se discutiu no passado sobre a natureza da sentença concessiva do per­
dão - se condenatória ou absolutória. Hoje prevalece o entendimento de que se
trata de sentença absolutória.190 O Código (art. 120) dispõe a propósito que “a sen­
tença que conceder perdão judicial não será considerada para efeito de reincidên­
cia”. Como conseqüência, o acusado não é considerado condenado, a sentença não
implicará reincidência, seu nome não será incluído entre os culpados, não respon­

190 C ontra: D am ásio, Direito penal, cit.


derá pelas custas do processo e os danos poderão ser-lhe cobrados no cível, mas tão-
só pela via ordinária que os arts. 66 e 67 do CPP prevêem.191 Também nesse senti­
do dispõe a Súmula 18 do STJ: “a sentença concessiva do perdão judicial é declara-
tória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório”.

2.6. Abolido criminis e outras

Também constitui causa extintiva a retroatividade da lei que não mais consi­
dera o fato como criminoso (abolitio criminis). Sobre o assunto, ver Capítulo IV,
Primeira Parte, sobre a Lei Penal no Tempo.
Finalmente extinguem a punibilidade a decadência e, nos de crimes de ação
penal privada, a renúncia ao direito de queixa e o perdão, conforme vimos.

2.7. Prescrição

2.7.1. Conceito e fundamento

A prescrição penal é a extinção do direito de punir em virtude do decurso do


prazo legal para o exercício da ação penal ou para promover a execução da senten­
ça penal condenatória. No primeiro caso, haverá prescrição da pretensão punitiva
ou prescrição da ação; no segundo, prescrição da pretensão executória ou prescri­
ção da condenação.
Trata-se da causa mais importante de extinção da punibilidade, uma vez que
é a mais freqüente, podendo atingir tanto a pretensão punitiva quanto a pretensão
executória. Não poderia ser diferente - a extraordinária freqüência da prescrição
haja vista que, diante da superprodução de leis penais a que assistimos presente­
mente - um verdadeiro caos legislativo, aliada à tradicional lentidão do sistema
penal, não poderia o Estado pretender ter o controle de coisa alguma, tudo a con­
correr para o descrédito dos órgãos e agentes incumbidos da repressão penal. A
prescrição é prova de que, contrariamente ao provérbio, a justiça tarda e falha.
Cuidando-se de matéria de ordem pública, a prescrição deve ser decretada
independentemente de provocação do interessado - de ofício, portanto - e a qual­
quer tempo, constituindo questão prejudicial ao conhecimento do mérito da causa,
razão pela qual eventual recurso da defesa não terá seguimento se a prescrição for
previamente reconhecida, por falta de interesse de agir.
Como regra, vigora o princípio da prescritibilidade de todos os crimes, de
ação pública ou privada, hediondos ou não. Mas a Constituição Federal previu
uma exceção ao declarar imprescritíveis: a prática do racismo e a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático

191 D elm anto, Código Penal com entado , cit., p. 209.


D ireito Penal - Parte Geral

(art. 5®, XLII e XLIV), exceção injustificável, uma vez que crimes tão ou mais gra­
ves são passíveis de prescrição (latrocínio, homicídio, estupro etc.). Discute-se se a
lei ordinária poderia ou não ampliar esse rol de crimes imprescritíveis, parecendo-
nos que sim, por entendermos que se trata de típica matéria infraconstitucional,
além de existir, na legislação infraconstitucional, infrações bem mais graves.
Apesar de consagrada histórica e constitucionalmente, autores importantes a
ela se opuseram, como Beccaria, para quem, tratando-se de “crimes atrozes cuja
memória subsiste por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados,
não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao cas­
tigo pela fuga. Não é, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis: é
mister fixar um tempo após o qual o acusado, bastante punido pelo exílio voluntá­
rio, possa reaparecer sem recear novos castigos”.192
Sobre o fundamento do instituto, há muita divergência.193 Mas é erro disso­
ciá-lo dos fins cometidos do direito penal, uma vez que sua justificação tem cará­
ter nitidamente político-criminal. É que, como disse Carrara, a prescrição constitui
um modo político de extinção da ação.194 Com efeito, ao estabelecer determinado
prazo para o exercício da ação penal ou para a execução da pena, o Estado julga,
segundo critério de política criminal, que, excedido aquele período de tempo, a
pena tomar-se-á desnecessária, por não mais servir à prevenção geral e especial de
comportamentos criminosos. Daí dizer Manzini que “se o poder de punir se justi­
fica exclusivamente pelo critério da necessidade, todo o exercício do poder repres­
sivo será injustificado quando não pareça necessário”.195

2.7.2. Espécies de prescrição

Duas são as espécies de prescrição: prescrição da pretensão punitiva (ou da


ação) e prescrição da pretensão executória (ou da condenação). A primeira ocorre
antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória; a segunda, após o
trânsito em julgado.
No primeiro caso, a prescrição será regulada pelo máximo da pena cominada
ao crime, conforme parâmetro do art. 109 do CP, que estabelece prazos proporcio­
nais à gravidade da infração. Assim, por exemplo, a lesão corporal leve (CP, art.
109, caput), cuja pena máxima é de um ano de detenção, prescreverá em quatro
anos; o furto simples (CP, art. 155, caput), cuja pena máxima é de quatro anos de
reclusão, prescreverá em oito anos; o homicídio simples (CP, art. 121, caput), cuja
pena máxima é de vinte anos, prescreverá em vinte anos etc. No segundo caso

192 Dos delitos e das penas, cit., § X III, p. 77.


193 Sobre o assunto, veja-se Da prescrição penal, de Antônio Rodrigues Porto, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1983.
194 Apud Rodrigues Porto, Da prescrição penal, cit., p. 8.
195 Tratado d e derecho penal, trad. Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires: Ediar, 1950, v. 5, p. 147.
Paulo Queiroz

(prescrição da condenação), a prescrição regular-se-á pela pena aplicada na senten­


ça, não mais importando a pena cominada.
O motivo a autorizar semelhante distinção para a verificação da prescrição é
simples: no primeiro caso, o Estado, por não saber qual a pena “justa” a ser aplica­
da ao réu, optou, ante a incerteza, por tomar como referência o máximo da pena
aplicável à espécie. No segundo caso, já se sabendo qual a pena “justa”, cujo quan-
tum não é mais modificável, não faria sentido insistir em regular a prescrição com
base no máximo da pena cominada; estando plenamente justificado o abandono
daquele critério inicialmente adotado.
Exemplificando: se A pratica, em 20 de maio de 2005, crime de violação de
correspondência (CP, art. 151), vindo o inquérito a ser concluído somente em 20
de junho de 2007, o Ministério Público, em vez de oferecer denúncia, terá de
requerer o arquivamento do inquérito, em face da prescrição, que é de dois anos,
uma vez que a pena máxima cominada ao crime é inferior a um ano, isto é, seis
meses de detenção. Na mesma hipótese, ocorreria prescrição da condenação se, não
tendo havido prescrição da ação, fosse o réu condenado a quatro meses de prisão,
vindo a se iniciar, por qualquer razão (fuga, desleixo etc.), a execução da pena
somente três anos após o trânsito em julgado da sentença.
Cumpre dizer que a prescrição da pretensão punitiva compreende, além da
prescrição antes referida, que poderíamos chamar ordinária, a prescrição - extraor­
dinária - retroativa e superveniente, a qual, diferentemente da primeira, é regula­
da com base no mesmo critério da prescrição da pretensão executória: a pena apli­
cada, e não a pena cominada. Em ambos os casos só se poderá cogitar de prescrição
(retroativa ou superveniente) quando houver trânsito em julgado da sentença para
a acusação ou se o eventual provimento do recurso da acusação não tiver qualquer
repercussão sobre o prazo prescricional. Exemplo: se o Ministério Público, incon­
formado com uma sentença condenatória a um ano de reclusão, apelar da senten­
ça para obter um aumento de até o dobro da pena (2 anos de reclusão), o provimen­
to desse recurso não modificará em nada o prazo prescricional, que continuará
sendo de quatro anos (CP, art. 109, V).
Note-se que todas essas modalidades de prescrição - retroativa, supervenien­
te e prescrição da pretensão executória - são formas residuais de prescrição, vale
dizer, somente serão apreciadas e decretadas caso já não tenha ocorrido a prescri­
ção da pretensão punitiva (ordinária). Portanto, entre essas modalidades de pres­
crição há relação de sucessão e prejudicialidade, uma vez que a prescrição extraor­
dinária pressupõe a não ocorrência da prescrição ordinária; a prescrição da preten­
são executória pressupõe a não verificação das demais. Não obstante, é possível que,
diante de desatenção das partes ou do juiz, todas elas venham a ocorrer num
mesmo processo.
Importante: tramita no Congresso Nacional projeto de lei que pretende abo­
lir a prescrição retroativa e superveniente. Uma vez aprovado, a lei terá efeito irre-
troativo, por ser mais severa.
D ireito Penal - Parte G eral

2.7.3. Prazos

Os prazos prescricionais variam conforme a pena de prisão cominada ao crime.


Seu prazo mínimo é, em princípio, de dois anos, e o máximo, de vinte anos. Estão
previstos no art. 109, que fixa os seguintes prazos: 1) vinte anos, se o máximo da
pena é superior a doze; 2) dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos
e não excede a doze; 3) doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e
não excede a oito; 4) oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não
excede a quatro; 5) quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo
superior, não excede a dois; 6) dois anos, se o máximo da pena é inferior a um ano.
Tratando-se de pena de multa, é preciso distinguir. No caso de ser a única
pena cominada ou a única pena aplicada, a multa prescreverá no prazo de dois anos
(CP, art. 114, I). Mas se a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou
cumulativamente aplicada com pena privativa da liberdade, prescreverá no mesmo
prazo desta última (CP, art. 114, II), até porque as penas mais leves prescrevem com
as mais graves (CP, art. 118). Não faz sentido algum, porém, que na hipótese de ser
a multa alternativamente cominada prescreva ela, como manda o Código, no prazo
da pena de prisão. É que num tal caso, não havendo a possibilidade de o juiz apli­
cá-la cumulativamente com a pena de prisão, mais razoável seria que prescrevesse
também no prazo de dois anos, analogamente àquela hipótese de a multa ser a
única pena cominada.
Há quem entenda196 que, por força da nova redação do art. 51 do Código,
dada pela Lei ns 9.714/98, prevendo que, transitada em julgado a sentença con­
denatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-lhe a legislação
relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, o prazo de prescrição da pretensão
executória da pena de multa passou a ser de cinco anos. Temos, porém, que a só
conversão da multa em dívida de valor não lhe retira o caráter penal, motivo pelo
qual o prazo prescricional permanece rigorosamente o mesmo (dois anos). A não
ser assim, violar-se-iam os princípios da legalidade da pena e intangibilidade da
coisa julgada.
O mesmo ocorrerá na hipótese de aplicação de pena restritiva de direito: a
prescrição dar-se-á no prazo da pena privativa da liberdade substituída.
Os prazos prescricionais serão reduzidos de metade sempre que o agente for,
ao tempo do crime, menor de vinte e um anos. O mesmo ocorrerá se, à época da
sentença, for maior de setenta anos (CP, art. 115). O termo sentença deve com­
preender também, além das decisões condenatórias de primeiro grau, o acórdão
condenatório proferido em ação penal originária ou em grau de apelação interpos­
ta pelo órgão da acusação. Evidentemente a redução da maioridade civil para dezoi­

196 Fernando Capez. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Saraiva, 2006, p. 580. No mesmo sentido, Cezar
Bitencourt. Tratado d e direito penal. S. Paulo: Saraiva, 2007, 11. ed., p. 731.
Paulo Queiroz

to anos e a definição de idoso como pessoa de sessenta anos não têm qualquer
repercussão jurídico-penal no particular.197
Quanto às contravenções, a prescrição, à falta de previsão legal expressa, seguè
os mesmos critérios e prazos do Código Penal (CP, art. 12).
No que tange às medidas sócio-educativas, a Lei ns 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente) nada previu a respeito da prescrição. Mas a Súmula 338
do ST) dispõe que lhe são aplicáveis as normas do Código, inclusive quanto aos pra­
zos mínimos e máximos.

2.7.3.1. Prescrição da Medida de Segurança

No que tange à prescrição das medidas de segurança, o Código não prevê norma
específica, razão pela qual os prazos são em princípio os mesmos previstos para á
prescrição da pena, adotados os mesmos critérios. Enfim, a prescrição seria regulada
com base na pena máxima cominada. Entretanto, há quem entenda que a prescrição
da medida de segurança, por ser em tese uma sanção penal mais branda, deve ser
regulada não com base na pena máxima cominada, mas na pena mínima.198 O mesmo
ocorrerá quanto à prescrição da pretensão executória, exceto se o juiz eventualmen­
te proceder à prévia individualização da pena e a substituir pela medida de seguran­
ça, caso em que o prazo prescricional seria regulado com base na pena substituída.
Quanto a saber se a sentença que a impõe interrompe ou não o prazo de pres­
crição, tudo depende da natureza jurídica conferida à decisão. De fato, se se enten­
der, conforme a doutrina e jurisprudência majoritárias, que a aludida sentença é
absolutória imprópria, é evidente que não há interrupção. Ao contrário, caso se
tenha a decisão como condenatória ou misto, conforme entendemos, o prazo inter­
romperá com a sua publicação.
Por fim, no caso de conversão da pena de prisão em medida de segurança, em
razão de superveniência de doença mental, a prescrição será regulada com base na
pena aplicada na sentença condenatória, porque, a não ser assim, se violaria o prin­
cípio da intangibilidade da coisa julgada.

2.7.4. Causas de aumento e de diminuição de pena

À exceção do aumento decorrente de concurso de crimes, material, formal e


crime continuado, as causas de aumento e de diminuição de pena devem ser con­
sideradas para efeito de prescrição.

197 No sentido do texto, STF, HC n» 89969, decisão de 13/03/2007, Min. Marco Aurélio.
198 Nesse sentido, Sídio Rosa de Mesquita Júnior. Prescrição Penal. 3. ed. S. Paulo: Atlas, 2003, p. 135/136.
Também assim, Capez, que invoca precedente do STJ. Direito Penal. Parte Geral. S Paulo: Saraiva, 2006,
p. 574.
D ireito Penal - P arte G eral

Se houver causas de aumento de pena, é preciso distinguir: quando se tratar


j e limite fixo (v. g., aumento de metade), a prescrição regular-se-á pelo máximo da
pena cominada ao crime com o aumento decorrente da incidência da causa de
aumento; quando se tratar de limite variável (v. g„ aumento de 1/3 a 2/3), a pres­
crição regular-se-á pelo máximo da pena cominada ao crime acrescentado do
aumento máximo previsto (no caso, 2/3).
Tratando-se de causa de diminuição de pena, dar-se-á o contrário, isto é, aba-
ter-se-á do máximo da pena cominada ao crime o mínimo previsto de diminuição.
Assim, na hipótese de crime tentado (CP, art. 14, II, parágrafo único), em que se
prevê diminuição de um terço a dois terços de pena, reduzir-se-á da pena máxima
o mínimo de um terço. Se se cuidar de limite fixo, não há dificuldade, uma vez que
será diminuído esse quantum.
Como se vê, prevalece sempre o prazo máximo de prescrição possível, regula­
do que é segundo o critério da mais alta pena cabível.
Já as circunstâncias judiciais (CP, art. 59) e legais (agravantes e atenuantes) são
irrelevantes para efeito de prescrição da pretensão punitiva (ordinária), uma vez que
já é regulada com base na pena máxima cominada, a qual não pode ser majorada para
além do máximo, ainda que presentes tais circunstâncias. No entanto, no caso de
prescrição extraordinária ou executória, que são reguladas com base na pena aplica­
da, deve ser tomada em conta a pena definitiva, e não a pena-base ou provisória, e,
portanto, já agora as circunstâncias judiciais e legal contam para esse fim.

2.7.5. Reincidência

Em se verificando que o sentenciado é reincidente, o prazo de prescrição


aumentará de um terço, relativamente à infração em que tal for reconhecido, mas
esse aumento só é aplicável à prescrição da pretensão executória. Nesse sentido,
dispõe Súmula 220 do STJ: “a reincidência não influi no prazo da prescrição da pre­
tensão punitiva”. Nos demais casos - prescrição retroativa e superveniente - não
incidirá o aumento, haja vista que tais modalidades de prescrição, ao atingirem a
pretensão punitiva, desconstituem a própria sentença.
Além de aumentar o prazo, a reincidência também interrompe a prescrição,
figurando entre as causas de interrupção da prescrição da pretensão executória (CP,
art. 117, VI).

2.7.6. Concurso de crimes

Havendo concurso de crimes - formal, material ou continuidade delitiva as


penas não serão somadas para efeito de prescrição, de modo que cada crime pres­
creverá isoladamente (CP, art. 119). Vale dizer, ao regular o instituto da prescrição,
o Código desprezou a disciplina do concurso de crimes. Poder-se-ia mesmo dizer:
para efeito de prescrição, não existe concurso de crimes. Assim, se o agente come­
Paulo Queiroz

teu em concurso material crimes de homicídio e ocultação de cadáver, não serão


somadas as penas dos vários delitos, devendo-se verificar a prescrição de cada um
deles conforme o máximo da pena cominada ou aplicada.
Quanto à continuidade delitiva, a Súmula 497 do STF dispõe que, “quando se
tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença,
não se computando o acréscimo decorrente da continuidade delitiva”. O mesmo se
deve dizer do aumento decorrente do concurso formal.

2.7.7. Prescrição (ordinária) da pretensão punitiva

A prescrição da pretensão punitiva ocorre antes do trânsito em julgado da sen­


tença penal condenatória, tendo como parâmetro o máximo da pena cominada, já
que não se sabe qual pena será aplicada à situação. Nesse caso, será contada da data
do fato à data do despacho de recebimento da denúncia ou queixa, ato judicial que
interrompe o curso da prescrição. Também poderá ocorrer entre o dia desse despa­
cho e a publicação da sentença penal condenatória, próxima causa a interromper o
curso do prazo.
Exemplificando a segunda hipótese (já que exemplo da primeira foi anterior­
mente referido): o Ministério Público oferece, em 20 de outubro de 2000, denún­
cia contra A, por crime de ameaça (CP, art. 147), cometido em 10 de setembro de
2000, dentro do prazo legal, já que a prescrição só ocorreria em dois anos. Recebida
a denúncia em 22 de outubro de 2000, a instrução processual e demais atos vêm a
encerrar-se em 20 de outubro de 2002, indo os autos ao juiz para julgamento, em
25 de outubro de 2002. Se assim for, o juiz, em vez de condenar ou absolver o réu,
deverá decretar a prescrição, haja vista que, entre a data do despacho de recebi­
mento da denúncia (22.10.2000) e o dia em que deveria julgar a ação, decorreu
tempo superior ao prazo prescricional, que é de dois anos.

2.7.8. Prescrição (extraordinária) retroativa e superveniente

O Código admite que a prescrição da pretensão punitiva seja regulada não com
base na pena máxima cominada, mas com base na pena aplicada, ou seja, pode ser
adotado, excepcionalmente, o mesmo critério válido para a prescrição da pretensão
executória. Tal possibilidade somente é possível quando já houver uma sentença
penal condenatória que tenha transitado em julgado para a acusação, ainda que dela
a defesa tenha recorrido. Aliás, mesmo havendo recurso da acusação visando a
aumentar a pena, também será possível decretá-la se o eventual provimento do
recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o prazo prescricional.
Exemplo: se o Ministério Público, inconformado com uma sentença condenatória a
um ano de reclusão, apelar da sentença para obter um aumento de até o dobro da
pena (dois anos de prisão), o provimento desse recurso não modificará em nada o
prazo prescricional, que continuará sendo de quatro anos (CP, art. 109, V).
D ireito Penal - Parte G eral

Essa prescrição - extraordinária - pode ser contada retroativamente à senten­


ça (prescrição retroativa) e supervenientemente a esta (prescrição superveniente
ou subseqüente). Em ambos os casos, tal é admitido por já se conhecer a pena
“justa”, e este ser em verdade o critério que deveria desde o princípio regular a
prescrição, desprezando-se o máximo da pena cominada.
À semelhança da prescrição da condenação, a prescrição da ação pressupõe a
impossibilidade de reforma da sentença em prejuízo do réu, vale dizer, exige-se o
trânsito em julgado para a acusação, não importando se houve ou não o trânsito em
julgado para a defesa, que poderá ter recorrido eventualmente. E que na hipótese de
provimento ou de não provimento do recurso da defesa a pena jamais poderá ser ma-
jorada em prejuízo do réu (reform atio in pejus), aumentando o prazo prescricional.
Exemplificando: A é condenado, em 15 de outubro de 2002, pelo crime de
lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), cometido em 10 de maio de 2000, com
denúncia recebida em 12 de agosto de 2000, a onze meses de detenção, interpon­
do, a defesa, apelação, tendo transitado em julgado a sentença para o Ministério
Público, que a considerou justa, mesmo porque a pena máxima é de um ano de
detenção. Ora, em tal caso, embora não tenha ocorrido prescrição (ordinária) da
ação, que se daria em quatro anos, houve prescrição (extraordinária) retroativa,
uma vez que entre a data do despacho de recebimento da denúncia e a publicação
da sentença transcorreram mais de dois anos, que é o prazo prescricional com base
na pena concreta (11 meses).
Pois bem, nesse caso o tribunal deverá julgar prejudicado o recurso de apela­
ção interposto pelo réu, decretando a prescrição com base na pena in con creto pre­
viamente.
Na mesma hipótese, ocorreria prescrição superveniente se, tendo sido publi­
cada a sentença em 15 de outubro de 2000, com trânsito em julgado para a acusa­
ção logo a seguir - não ocorrendo, portanto, prescrição retroativa - , o tribunal vies­
se a se reunir para julgar a apelação somente em 20 de dezembro de 2002. Em tal
caso, deveria decretar a prescrição entre a data da publicação da sentença e aquele
dia. Enfim, a prescrição retroativa, como o próprio nome diz, retroage à data da
sentença - conta-se para trás; a superveniente sobrevêm à sentença - conta-se para
frente, adotando-se os mesmos critérios (pena em concreto, trânsito em julgado da
sentença para a acusação etc.).
Conforme vimos, ambas as formas de prescrição serão, ao que tudo indica,
abolidas proximamente.

2.7.9. Prescrição retroativa antecipada

Discute-se se seria possível a decretação da prescrição antes mesmo de sua


ocorrência, mas diante da probabilidade de sua ocorrência. Imagine-se a seguinte
situação: o Ministério Público recebe em setembro de 2002 um inquérito policial
relatado, dando conta do cometimento de um crime de estelionato (CP, art. 171,
Paulo Queiroz

caput) ocorrido em dezembro de 1992, cuja prescrição ocorreria em dezembro de


2004 (CP, art. 109, IV). Note-se que, mesmo admitindo a hipótese - improvável -
de o juiz aplicar uma pena de quatro anos de prisão (quatro vezes superior ao míni­
mo), não obstante ser o réu primário, sem antecedentes criminais etc., ainda assim
haverá a prescrição com base na pena concreta (prescrição retroativa). Então, inda­
ga-se o seguinte: diante da provável pena a ser aplicada e da provável ocorrência da
prescrição, não seria razoável que o juiz a reconhecesse previamente, evitando-se
um processo que se sabe de antemão inútil?
Contra semelhante possibilidade, tem-se argumentado falta de previsão legal,
violação ao princípio do estado de inocência, fundamentação em dado aleatório,
possibilidade de mudança do libelo etc. Nesse sentido, posicionam-se a, doutrina e
a jurisprudência majoritárias.
Mas sem razão porque, em primeiro lugar, o fato de não existir previsão legal
- argumento próprio de quem confunde a lei com o direito e supõe um sistema jurí­
dico hermético e sem lacunas - não impede que se reconheça, por analogia (analo­
gia in bonam partem ), tal possibilidade, desde que compatível com as garantias ine­
rentes ao direito e processo penal. Em segundo lugar, porque, interessando a pres­
crição (pouco importando se antecipada ou não) ao próprio agente, não há falar de
violação à garantia da presunção legal de inocência, que é instituída em favor do
indivíduo e não do Estado, a quem não interessa, ao menos em tese, o reconheci­
mento da prescrição. Em terceiro lugar, porque o juiz, ao reconhecê-la, deverá
fazê-lo motivadamente, valendo-se de fatos, dados e circunstâncias que dão como
certa a inevitabilidade da prescrição; não se baseando em dado aleatório.
Finalmente, porque a possibilidade de mudança do libelo é aplicável a toda e qual­
quer modalidade de prescrição. Além disso, se houver fundada dúvida ou incerte­
za quanto à definição jurídica dos fatos constantes da denúncia ou da queixa,
devem as partes e o juiz diligenciar no sentido de esclarecê-lo previamente, para a
seguir decidir a seu respeito com segurança.
Portanto, razoável é decretar a prescrição antecipadamente quando inevitável,
uma vez que em tais casos o titular da ação carece de interesse de agir, haja vista que,
conforme o princípio da proporcionalidade, a intervenção penal, como ultima ratio
do controle social formal, somente deve ter lugar em casos de absoluta necessidade
para segurança dos cidadãos, o que não se verifica em semelhante contexto, por se
estar diante de uma persecução penal natimorta, inteiramente inútil.199
A prescrição retroativa antecipada - ou simplesmente prescrição antecipada
ou em perspectiva - consiste, assim, no reconhecimento da prescrição antes do ofe­
recimento da denúncia ou da queixa e, no curso do processo, anteriormente à pro-
lação da sentença, sob o argumento de que eventual pena a ser aplicada em caso de

199 No sentido do texto, dentre outros, Celso Delmanto, Código Penal com entado , cit. Idem, Paula Machado,
Prescrição penai - Prescrição Âincionalista, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; Lozano Jr., Prescrição
Penal , Saraiva, 2002; Eugênio Pacelli, Curso de processo pen al Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
D ireito Penal - P arte G eral

condenação ensejaria, inevitavelmente, ou com grande margem de probabilidade,


a prescrição retroativa da pretensão punitiva.200
Naturalmente que o juiz deverá apreciá-la com muita prudência, considerando,
ao decretá-la, as múltiplas variáveis que a envolvem, de modo a que somente tenha
lugar diante de uma grande probabilidade. Daí não ser recomendável, como às vezes
se faz, a adoção da pena mínima cominada à infração como critério para regulá-la.

2.7.10. Termo inicial da prescrição

O termo inicial da prescrição varia conforme se trate de prescrição da preten­


são punitiva ou de prescrição da pretensão executória.

2.7.11. Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva

A prescrição começa a correr do dia em que o crime se consumou. O Código,


diferentemente da disciplina conferida ao tempo do crime (art. 4e), quando se fi­
liou à teoria da ação, adotou no particular a teoria do resultado, segundo a qual,
para efeito de prescrição, não importa o momento da ação, mas o momento do
resultado. Assim, por exemplo, se A desfere golpes de faca contra B, que falece
meses após, é a partir da morte (consumação) que terá início o prazo prescricional.
Tratando-se de crimes materiais, a consumação dá-se com a produção do resul­
tado; formais e de mera conduta, com a realização da atividade, visto que é irrele­
vante o resultado naturalístico para efeito de consumação; omissivos impróprios,
com o advento do resultado; omissivo próprio, com a abstenção da conduta legal­
mente exigida; permanentes e habituais, com a cessação da permanência ou da habi-
tualidade. Nesse sentido, de considerar que o prazo da prescrição, no crime habitual,
inicia-se da data da última das ações que constituem o fato típico, HC 87.987/RS, do
STF, rei. Min. Sepúlveda Pertence, 9.5.2006.
Cuidando-se de continuação delitiva (art. 71), a extinção da punibilidade inci­
dirá sobre a pena de cada um dos crimes, isoladamente (art. 119).
Na hipótese de tentativa, a prescrição se iniciará, à semelhança dos crimes
habituais e permanentes, a partir da cessação da última atividade criminosa.
Por fim, nos crimes de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamen­
to de registro civil, a prescrição começará da data em que o fato se tomou conhecido.

2.7.12. Termo inicial da prescrição da pretensão executória

a) Trânsito em julgado da sentença para a acusação. A prescrição da pretensão


executória, pressupondo a irrecorribilidade da condenação, logicamente tem como

2 0 0 Lozano Jr., Prescrição penal, São Paulo: Saraiva, 20 0 2 , p. 181.


P a u lo Q u e ir o z

430
termo inicial principal o dia em que transita em julgado a sentença penal condena­
tória (CP, art. 112).
Para tanto, não se exige o trânsito em julgado da sentença para ambas as par­
tes (autor e réu), bastando que tenha havido o trânsito em julgado para a acusação,
uma vez que a partir de então não mais há possibilidade de reforma da sentença
para aumentar a pena ou o prazo prescricional. Conseqüentemente, o dia do trân­
sito em julgado para a defesa é irrelevante para efeito de prescrição.
b) Revogação d e livram ento condicional. No caso de o condenado se achar no
gozo de livramento condicional, poderá eventualmente ocorrer a revogação, vol­
tando o liberado à prisão. Isso ocorrendo, a prescrição começará a correr do dia da
sentença que revogou o benefício.
c) Dia d e interrupção da execução. A execução da pena poderá sei interrom­
pida por duas razões: fuga do condenado ou internação em hospital psiquiátrico
(CP, art. 41).
No primeiro caso, a prescrição correrá a partir da data da evasão do condenado.
E mais importante: será regulada não com base na pena imposta na sentença, mas
com fundamento na pena que restava por cumprir (art. 113), de sorte que se conde­
nado a seis anos de prisão vem a empreender fuga após o cumprimento de quatro
anos, a prescrição será calculada com base no tempo restante de pena: dois anos. Há
inclusive quem entenda que a detração deve ser considerada para esse efeito.201
No segundo caso, de internação em hospital psiquiátrico, em virtude da super­
veniência de doença mental ou perturbação da saúde mental no curso da execução,
o tempo de internamento será computado na pena.

2.7.13. Causas impeditivas ou suspensivas da prescrição

Causas há que impedem ou suspendem a prescrição, de modo que com o seu


advento o prazo de prescrição não corre, ficando suspenso e na dependência daque­
la causa que a determina. Nesse caso, e diferentemente do que ocorre com as cau­
sas interruptivas da prescrição, o tempo transcorrido antes da suspensão será con­
tado para efeito de verificação da extinção da punibilidade.
Assim, antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre (CP,
art. 116): a) enquanto não resolvida em outro processo questão de que dependa o
reconhecimento da existência do crime; b) enquanto o agente cumpre pena no
estrangeiro.
Na primeira hipótese, o Código cuida das chamadas questões prejudiciais pre­
vistas nos arts. 92 a 94 do Código de Processo Penal.
Na segunda hipótese, se o agente estiver cumprindo pena no exterior, aguar-
dar-se-á o seu cumprimento, período em que o prazo prescricional não fluirá.

201 Assim, Delm anto, Código Penal comentado, cit.


D ireito Penal - Parte Geral

Diversas outras causas de suspensão do prazo prescricional estão previstas fora


do Código. Assim, a suspensão condicional do processo (Lei nQ9.099/95, art. 89, § 6Q),
a citação por edital do réu que não constitui advogado (CPP, art. 366), a inclusão
no REFIS (Lei nQ9.964/2000, art. 15) etc.

2.7.14. Causas interruptivas da prescrição

Já as causas interruptivas da prescrição, como o nome diz, simplesmente inter­


rompem o prazo prescricional, fazendo começar um novo prazo a partir da causa
interruptiva, desprezando-se o tempo anteriormente transcorrido. Vejamos cada
uma separadamente (CP, art. 117).
a) D espacho d e recebim en to da denúncia ou da queixa. O primeiro ato a inter­
romper a prescrição é o despacho de recebimento da denúncia ou da queixa, que não
pode ser confundido com o mero oferecimento da denúncia ou da queixa.
Obviamente não a interrompe o despacho que a rejeitar na forma da lei (CPP, art. 43).
Quanto a eventual aditamento da denúncia ou da queixa, o entendimento
doutrinário e jurisprudencial em geral é no seguinte sentido: 1) o despacho de rece­
bimento de aditamento não interrompe a prescrição quando supre omissão refe­
rente ao mesmo fato ou altera a capitulação legal deste, ainda quando possibilite a
aplicação de pena mais grave; 2) se o aditamento se referir a fato novo, a interrup­
ção limitar-se-á a este; 3) tratando-se de aditamento para inclusão de co-réu, não
haverá interrupção do prazo prescricional para este, se a situação é absolutamente
igual à do primeiro e não lhe é atribuível a maior demora pela sua inclusão.202
Não estamos de acordo com semelhante casuísmo. Temos que em verdade
todas essas situações devem ter tratamento unitário. Com efeito, o despacho de rece­
bimento da denúncia ou da queixa só pode produzir efeitos exclusivamente quanto
aos réus efetivamente denunciados e em relação aos quais a peça acusatória foi rece­
bida, motivo pelo qual quanto aos não denunciados ou denunciados, mas beneficia­
dos pela rejeição parcial, não pode haver interrupção da prescrição, porque contra
tais pessoas a ação penal não chegou a ser instaurada. Enfim: o processo só pode pro­
duzir efeito relativamente a quem é nele parte, não podendo atingir estranhos a ele,
assim reconhecido mediante despacho de recebimento da peça acusatória.
Exatamente por isso o recebimento de eventual aditamento da denúncia ou da
queixa - a exigir também tratamento unitário - haverá de interromper o prazo
prescricional sempre, por encerrar a formalização de uma nova acusação, pouco
importando se noticia fatos distintos, se capitula outros crimes ou se inclui novos
réus. A interrupção diz respeito ao objeto do aditamento (fato, capitulação, pessoa)
unicamente. Numa palavra: o despacho de recebimento e/ou aditamento da denún­
cia/queixa devem ter o mesmo tratamento, pois implicam a admissão formal de

2 0 2 D elm an to, Código Penai comentado, c it., p. 209.


Paulo Queiroz

uma acusação, mas exclusivamente quanto a quem a tiver contra si admitida, como
é lógico.
A interrupção ocorrerá com a publicação da decisão em cartório.
b) Decisão de pronúncia. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri (cri­
mes dolosos contra a vida), interrompe o prazo prescricional a decisão que pronun­
cia o réu, submetendo-o a julgamento perante aquele Tribunal, em virtude de
prova da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria (CPP, art. 408).
Contrariamente, o despacho de impronúncia do réu, de absolvição sumária ou de
desclassificação são irrelevantes para esse fim. Na hipótese de o Tribunal do Júri
desclassificar o crime, incide a Súmula 191 do STJ: “a pronúncia é causa interrup-
tiva da prescrição, ainda que o Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime”.
Por igual a decisão do Tribunal que confirma a decisão de pronúncia também
a interromperá.
Sentença ou acórdão condenatórios recorríveis. Interrompe a prescrição a
sentença que condena o réu, a contar da publicação. A contrario sensu, não produz
o mesmo efeito a sentença que o absolver, ainda que aplicando medida de seguran­
ça, caso se trate de inimputável ou semi-imputável. Na hipótese de condenação por
um crime e absolvição por outro, a interrupção limitar-se-á ao delito objeto da con­
denação; idem se, havendo concurso de agentes, ocorrer condenação de uns e
absolvição de outros, devendo a interrupção alcançar somente os condenados.
Também não a interrompe a sentença concessiva de perdão judicial, visto ter cará­
ter absolutório; havendo mais de um réu, a sentença somente interromperá a pres­
crição quanto aos condenados, não atingindo os co-réus absolvidos. A interrupção
ocorrerá com a publicação da sentença em cartório (CPP, art. 389).
Nas mesmas circunstâncias interromperá a prescrição o acórdão do tribunal
que condenar o réu absolvido em primeiro grau ou confirmar a sentença condena­
tória a quo. De acordo com o art. 117, IV, do Código Penal, interrompe a prescri­
ção a sentença condenatória recorrível. Apesar de o Código se omitir quanto ao
acórdão condenatório, a doutrina majoritária entendia que também este interrom­
pe a prescrição em duas hipóteses: a) condenação pelo tribunal em ação penal ori­
ginária; b) condenação em grau de recurso, reformando sentença absolutória. E
que, não obstante o nome (acórdão), a decisão do tribunal equilaveria a um autên­
tica sentença condenatória.
No entanto, distinguia-se este acórdão condenatório daquele que confirmava
a sentença condenatória de primeiro grau; dizia-se então que este acórdão confir-
matório da condenação não interrompia a prescrição. A interpretação fundava-se
em dois argumentos básicos: a) quando o Código quis referir a decisão confirmató-
ria como causa interruptiva, fê-lo expressamente, a exemplo da decisão confirma-
tória da pronúncia (inciso III); b) não se pode considerar como “sentença condena­
tória recorrível” acórdão confirmatório de sentença condenatória recorrível, por
serem atos judiciais distintos: o primeiro é pressuposto do segundo inclusive. Do
contrário, haveria analogia in m alam partem , em prejuízo do acusado.
D ireito P en al - P arte G eral

Exatamente por isso a prescrição era, por esta e outras razões, bastante fre­
qüente, já que novos recursos eram interpostos contra o acórdão confirmatório da
sentença condenatória recorrível, por vezes meramente procrastinatórios, a ense­
jar a decretação de prescrição tendo por termo inicial a sentença condenatória de
primeiro grau.
A Lei n9 11.596/07 foi editada justamente com a finalidade de dar efeito inter-
ruptivo também ao acórdão confirmatório da sentença penal recorrível, conforme
consta expressamente da justificação do Projeto n9 401/2003,203 suprindo a omissão
do Código, dispondo que a prescrição é interrompida “pela publicação da sentença
ou acórdão condenatório recorríveis”.
Apesar disso, alguns autores204 vêm defendendo a idéia de que a omissão per­
siste: o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível não interrompe
a prescrição. Dizem que a lei se limitou a dispor sobre tema já pacificado na juris­
prudência: o acórdão que, provendo recurso da acusação, condenar o réu, inter­
rompe a prescrição; idem, acórdão que condenar em ação penal originária.
O equívoco é manifesto. Primeiro, porque esta lei não faz distinção entre acór­
dão condenatório e confirmatório da sentença condenatória, distinção que é própria
da decisão de pronúncia, por outras razões; no particular a distinção é arbitrária,
portanto. Segundo, porque o acórdão que confirma a sentença condenatória a subs­
titui. Terceiro, porque este acórdão é tão condenatório quanto qualquer outro.
Quarto, porque a distinção implicaria conferir a este acórdão efeito próprio de
absolvição. Quinto, porque não faria sentido algum que o acórdão que condena pela
primeira vez interrompesse o prazo prescricional e o seguinte não. Finalmente, se
os argumentos no sentido de distinguir acórdão condenatório e confirmatório
faziam sentido antes da reforma, já agora não o fazem mais. A interpretação parte
de um panorama legislativo - e, pois, doutrinário e jurisprudencial - superado.
Note-se ainda que, rigorosamente falando, não existe “acórdão confirmatório
de condenação”, seja porque em tese o tribunal reexamina a prova, os fundamen­
tos fáticos e jurídicos da decisão impugnada, seja porque não raro procede à revi­
são da pena, altera a capitulação jurídica dos fatos ou absolve total ou parcialmen­
te alguns dos réus. Também por isso o assim chamado acórdão confirmatório é em
verdade um acórdão condenatório, formal e materialmente.

203 Diz a justificação (Senador Magno Malta) que “sabemos que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça,
tem prevalecido o entendimento de que o acórdão confirmatório da condenação de primeira instância não
é causa interruptiva da prescrição, justamente por conta da ausência de expressão previsão legal. A presen­
te proposição, nesse sentido, contribuirá paia dirimir os conflitos de interpretação, consolidando a posição,
mais razoável, de que o acórdão confirmatório da sentença recorrível também interrompe a prescrição”.
204 Nesse sentido, Fábio Machado Delmanto e outros. Lei n» 11596: Alterações ao art. 117 do Código Penal.
Boletim do IBCCrim. S. Paulo: Ano 15, n° 182 - Janeiro/2008, p. 7. Idem, Robson Antônio Galvão da Silva
e Daniel Laufer. Prescrição: alteração trazida pela Lei n« 11.596/2007. Boletim do IBCCrim n« 183 -
Fevereiro de 2008.
Pauio Queiroz

434
É evidente que a lei poderia ser mais explícita, consignando, por exemplo, que
interromperá a prescrição “a sentença, o acórdão condenatório ou confirmatório da
condenação”, mas tal referência seria absolutamente desnecessária, por tudo que já
se disse, muito especialmente: acórdão confirmatório de condenação é acórdão con­
denatório, e não absolutório ou similar, a pressupor e exigir, assim, tratamento uno.
Por isso que doravante todo e qualquer acórdão que encerrar uma condena­
ção, seja em ação penal originária, seja em grau de recurso, sempre interromperá a
prescrição.205
d) In ício ou continuação d o cum prim ento da pena. Cuidando-se de prescrição
da pretensão executória, a interrupção ocorrerá com o início do cumprimento da
pena ou, no caso de fuga ou suspensão da execução, com a sua continuação.
e) Reincidência. Também a reincidência interrompe a prescrição da pretensão
executiva, exclusivamente, não se aplicando à prescrição da pretensão punitiva em
qualquer de suas formas (ordinária, retroativa, superveniente). Quanto aos réus
reincidentes, portanto, além da própria sentença penal condenatória que implica a
reincidência, o trânsito em julgado dessa nova sentença passará a interromper o
prazo prescricional, já que não basta o simples cometimento de novo crime após o
trânsito em julgado, em razão do princípio da presunção de inocência.
A reincidência, como se pode notar, pode produzir dois distintos efeitos:
importa aumento do prazo prescricional (art. 110) e interrupção do prazo da pres­
crição da pretensão executória.

XXIII. Dos efeitos da condenação

1. Significado

Além de seu efeito principal, que é submeter o condenado à execução força­


da da pena imposta, e seus efeitos secundários (reincidência, interrupção e aumen-

205 Nesse sentido, decidiu o STF: A Lei 11.596/2007, ao alterar a redação do inciso IV do art. 117 do CP (“Art.
117 - O curso da prescrição interrompe-se: ... IV - pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios
recorríveis;”), apenas confirmara pacífico posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que
o acórdão condenatório reveste-se de eficácia interruptiva da prescrição penal. Com base nesse entendi­
mento, a Turma indeferiu habeas corpus em que pleiteada a declaração de extinção da punibilidade do
paciente que, inicialmente condenado por abuso de autoridade (Lei 4.898/65, art. 4®, a), tivera sua senten­
ça reformada, pelo tribunal de justiça local, para a prática do crime de extorsão, sendo este acórdão anula­
do pelo STJ no tocante à causa especial de aumento de pena. Inicialmente, aduziu-se ser juridicamente rele­
vante a existência de dois lapsos temporais, a saber: a) entre a data do recebimento da denúncia e a senten­
ça condenatória e b) entre esta última e o acórdão que reformara em definitivo a condenação, já que o acór­
dão que modifica substancialmente decisão monocrática representa novo julgamento e assume, assim, cará­
ter de marco interruptivo da prescrição. Tendo em conta a pena máxima cominada em abstrato para o deli­
to de extorsão simples ou a sanção concretamente aplicada, constatou-se que, no caso, a prescrição não se
materializara. O Min. Marco Aurélio ressaltou em seu voto que a mencionada Lei 11.596/2007 inserira mais
um fator de interrupção, pouco importando a existência de sentença condenatória anterior, sendo bastan­
te que o acórdão, ao confirmar essa sentença, também, por isso mesmo, mostre-se condenatório. HC
92340/SC, rei. Min. Ricardo Lewandowski, 18.3.2008 (HC-92340).
D ireito P en al - Parte G eral

to do prazo de prescrição, revogação do livramento condicional etc.), a sentença


penal condenatória produz outras conseqüências não penais (civis, administrati­
vas), chamadas efeitos genéricos e específicos da condenação (CP, arts. 91 e 92).
Muitos deles constam de leis especiais, que dispõem diversamente, a exemplo da
Lei n° 11.343/2006 (nova Lei de Drogas), motivo pelo qual o rol dos possíveis efei­
tos extrapenais da condenação não é taxativo.
Os primeiros - efeitos genéricos - incidem sobre todos os casos e independem
de especificação na sentença, tratando-se de um seu efeito automático. Já os segun­
dos - efeitos específicos - devem ser expressamente declarados na sentença (art. 92,
parágrafo único) e só ocorrem nalguns casos particulares.

2. Efeitos genéricos

2.1. Dever de indenizar

O primeiro e mais importante dos efeitos genéricos da sentença é a obrigação


de indenizar o dano causado pelo crime (art. 91, I), constituindo a sentença penal
título executivo judicial (CPC, art. 584, II).
E que, apesar da autonomia das instâncias civil e penal, por já existir uma sen­
tença penal condenatória declarando a presença de todos os pressupostos da puni­
bilidade da conduta, não faria sentido exigir, para efeito de indenização, que a víti­
ma ou seu representante legal tivesse de iniciar todo o processo de conhecimento,
a evitar sentenças contraditórias inclusive. Atualmente o juiz criminal pode inclu­
sive fixar desde logo o valor mínimo para reparação dos danos causados pela in­
fração (CPP, art. 387, IV).
Transitada em julgado a sentença penal, promover-se-á no juízo cível unica­
mente a liquidação (CPC, art. 603), por ser um título judicial em parte incompleto
(CPP, art. 63), a fim de apurar o quantum a ser indenizado, ficando assim prejudi­
cada toda discussão sobre a prova da materialidade, autoria e ilicitude do fato.
Releva notar que a sentença condenatória só pode ser executada no juízo cível
contra quem foi réu na ação penal, pois, para acionar o responsável civil que nela
não tenha figurado como acusado, será necessária a ação cível específica, servindo
a condenação penal como elemento de prova e não como título executivo.206 No
caso de crimes de imprensa, a Súmula 221 do STJ prevê que “são civilmente res­
ponsáveis pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa,
tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.
Como a lei menciona a sentença penal condenatória, fica por conseqüência
excluída toda e qualquer decisão que tenha caráter absolutório, a exemplo da que
reconhece excludentes de ilicitude ou de culpabilidade. Também não fazem coisa

2 0 6 Cezar Biten cou rt, Manual, c it., p. 664.


Paulo Queiroz

julgada no cível, por não terem natureza condenatória: a) a sentença que concede
perdão judicial (Súmula 18 do STJ); b) a sentença que reconhece a prescrição da
pretensão punitiva (ordinária e extraordinária), de modo que só a prescrição da
pretensão executória não impede a execução no cível; c) a sentença que homologa
a composição e a transação penal (Lei 9.099/95).
Quanto à sentença que declara a inimputabilidade do agente por doença men­
tal ou desenvolvimento incompleto ou retardado (CP, art. 26), a doutrina majori­
tária entende que não faz coisa julgada no cível por se tratar de decisão absolutó­
ria, exceção feita à hipótese do parágrafo único do art. 26 (semi-imputabilidade),
ainda que a pena seja substituída por medida de segurança.
Temos, porém, que a sentença que aplica a medida de segurança há de pres­
supor todos os requisitos do crime (fato típico, ilícito e culpável), motivo pelo qual
há de também fazer coisa julgada. Logo, a sentença tem natureza mista: é a um
tempo condenatória e absolutória, porque assim trata o Código de Processo.
Se o condenado for absolvido eventualmente em revisão criminal, hipótese em
que a sentença será desconstituída, perderá o caráter de título executivo judicial.
Conforme vimos, quando aplicada pena de prestação pecuniária (CP, arts. 43,
I, e 45, § le), o valor pago será deduzido do montante da eventual condenação em
ação de reparação civil ou em execução de sentença penal condenatória, se coinci­
dentes os beneficiários. A mesma dedução deve ser feita quando o juiz criminal
houver fixado valor mínimo da indenização.

2.2. Confisco em favor da União dos instrumentos e produtos do crime

Outro efeito automático decorrente da condenação é a perda em favor da


União, ressalvado o direito do ofendido ou terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos
do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou
detenção constituam fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou
valor que constitua proveito obtido pelo agente com a prática do fato criminoso (art.
91, II, a e b). Como a lei fala de condenação por crime, ficariam excluídas as contra­
venções, mas há posicionamento em sentido contrário com base no art. 1Qda LCP.
A primeira hipótese compreende as instrumenta sceleris, que são os objetos
utilizados pelo agente no cometimento do crime (revólver, faca, moeda falsa etc.).
Todavia, nem todos os instrumentos são passíveis de confisco. Com efeito, a lei
exige que sejam coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constituam
fato ilícito. Assim, o automóvel ou a aeronave eventualmente utilizados no roubo,
no contrabando ou descaminho etc. não podem ser confiscados por esse motivo,
pois não são coisas de fabricação, porte ou uso ilícitos.
A segunda hipótese compreende as coisas adquiridas diretamente com o
crime, assim como toda e qualquer vantagem dele resultante, como bens móveis ou
imóveis adquiridos com contrabando ou descaminho, extorsão mediante seqüestro
D ireito Penal - Parte Geral

etc. Já agora, diferentemente da hipótese anterior, são confiscáveis automóveis,


aeronaves etc. que tenham sido adquiridos com o produto do crime.
Já o tráfico ilícito de drogas tem tratamento constitucional/legal específico e
particularmente drástico, uma vez que a Constituição Federal (art. 243) previu ex­
pressamente a expropriação (confisco) de glebas utilizadas para cultura de plantas
psicotrópicas, bem como de todo e qualquer bem de valor econômico apreendido
em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e droga afins. Mas tal confisco
só pode ocorrer segundo os princípios que a própria Constituição consagra, nota-
damente os princípios do devido processo legal e proporcionalidade.
Desnecessário dizer que o confisco não se confunde com a simples apreensão
dos bens, que é seu pressuposto. Além do mais, a apreensão poderá compreender
não só os bens confiscáveis, mas todos os objetos que tiverem relação com o crime
e não podem ser restituídos quando interessarem ao processo (CPP, art. 118).
Cumpre notar, por fim, que o Decreto ne 5.687/2006, que promulga a conven­
ção das Nações Unidas contra a corrupção, prevê (art. 31) embargo preventivo,
apreensão e confisco: a) do produto de delito qualificado de acordo com a aludida
convenção ou de bens cujo valor corresponda ao de tal produto; b) dos bens, equi­
pamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados utilizados na prática de
delitos qualificados conforme a convenção.

3. Efeitos específicos

Os chamados efeitos específicos da condenação, diferentemente dos efeitos


genéricos, não sendo automáticos, devem ser declarados na sentença expressa e
fundamentadamente (art. 92, parágrafo único). São específicos porque somente
podem ser aplicados a determinadas infrações e desde que haja nexo entre o crime
que se comete e o efeito que se impõe.

3.1. Perda de cargo, função pública ou mandato eletivo

A aplicação de tal efeito requer o concurso de dois requisitos: a) aplicação de


pena de prisão igual ou superior a um ano; b) abuso de poder ou violação de dever
para com a Administração Pública.
Tal possibilidade não se confunde com a pena similar de interdição temporá­
ria de direitos por duas razões: primeiro, porque tecnicamente pena não é, mas um
efeito reflexo da condenação; segundo, porque aqui há a perda de cargo, função
pública ou mandato eletivo, enquanto lá há a só interdição temporária.
De notar que não é possível a aplicação simultânea de ambas - pena e efeito da
condenação pois isso implicaria bis in idem . Aliás, dá-se uma impossibilidade lógi­
ca, visto que, decretada a perda, frustra-se a possibilidade de interdição temporária
conseqüentemente. Também por isso é questionável a necessidade de previsão de
tais efeitos da condenação, dado o caráter subsidiário da intervenção jurídico-penal.
Paulo Queiroz

Nos crimes comuns, em que não há relação com a Administração Pública,


idêntico efeito poderá ser emprestado à sentença condenatória, desde que seja
imposta pena superior a quatro anos.
Convém lembrar que a Constituição Federal (CF, art. 15, III, e 55, VI) prevê que
a condenação criminal transitada em julgado implicará a perda ou suspensão de direi­
tos políticos enquanto durarem seus efeitos. Exatamente por isso a Súmula 9 do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) dispõe que “a suspensão dos direitos políticos decor­
rentes de condenação criminal transitada em julgado cessa com o cumprimento ou a
extinção da pena, independendo de reabilitação ou prova de reparação dos danos”.

3.2. Incapacidade para o exercício do poder familiar, tutela ou çuratela

Constitui também efeito específico da condenação a incapacidade para o exer­


cício do poder familiar, tutela ou curatela, sempre que se trate de crime doloso
punido com pena de reclusão praticado contra filho, tutelado ou curatelado.
Para decretá-lo, não se exige, ao menos em princípio, abuso ou violação dos
deveres inerentes a tais múnus, pois a lei presume iurís et de iure a incompatibili­
dade quando o agente for condenado por crime doloso ao qual se imponha pena de
reclusão.
Devendo tal efeito ser expressamente declarado, a sentença deverá justificar
sua necessidade/adequação fundamentadamente.
Também o Código Civil (art. 1.637, parágrafo único) prevê a suspensão do
exercício do poder familiar ao pai ou mãe condenados por sentença irrecorrível, em
virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão. Naturalmente que tal sus­
pensão não se dará automaticamente, mas somente nos casos em que houver cone­
xão entre a infração penal praticada e o exercício do poder familiar (princípio da
adequação), como abusos sexuais (assédio sexual, estupro, atentado violento ao
pudor) ou materiais (abandono material, maus-tratos, lesões corporais) contra os
filhos, pois sentido algum faria decretar a suspensão em casos de condenação por
crimes que nenhuma relação guardem com o exercício do poder familiar (sonega­
ção fiscal, crime eleitoral etc.).

3.3. Inabilitação para dirigir veículo

Por fim, poder-se-á decretar a inabilitação para dirigir veículo quando utili­
zado como meio para a prática de crime doloso. Conseqüentemente no caso de
crime culposo, caberá a só aplicação da pena restritiva de direito similar.

XXIV. Reabilitação

A reabilitação é a suspensão, por decisão judicial, de alguns efeitos da conde­


nação em favor do condenado que apresenta comportamento social satisfatório
D ire ito P e n al - Parte G eral

posteriormente à extinção da pena. Para tanto, não há necessidade de o sentencia­


do cumprir efetivamente a pena aplicada na sentença, bastando que tenha sido
declarada extinta por qualquer motivo: prescrição da pretensão executória, anistia,
graça, indulto etc. Não cabe, porém, sempre que houver absolvição ou prescrição
da pretensão punitiva, inclusive retroativa e superveniente, um vez que em tais
casos ocorre desconstituição da própria condenação,207 afinal o réu inocente não
tem do que se reabilitar.
De acordo com o art. 93 do Código Penal, a reabilitação alcança quaisquer
penas aplicadas em sentença definitiva, assegurando ao condenado o sigilo dos
registros sobre seu processo e condenação, razão pela qual alguns autores chegam
a afirmar que a reabilitação é “a recuperação, pelo condenado, de seu status quo
anterior à condenação”.208
Mas isso não é exato, pois nem a reabilitação alcança quaisquer penas, nem
implica volta do condenado à situação anterior. Com efeito, atualmente a reabili­
tação atinge exclusivamente os efeitos extrapenais específicos da condenação,
como perda de cargo, função pública, mandato eletivo, bem como incapacidade
para exercício do poder familiar e inabilitação para dirigir veículo (CP, art. 9 2 ,1, II
e III). E em nenhum desses casos o reabilitado terá direito à reintegração na situa­
ção anterior, pois não voltará a exercer o cargo ou a função pública que antes exer­
cia, podendo assumir o mesmo cargo ou função somente se aprovado em novo con­
curso púbico ou semelhante. Por conseguinte, somente a reabilitação para dirigir
veículo ocorrerá de forma irrestrita.
Quanto ao sigilo dos registros sobre o processo e condenação do sentenciado,
é de notar que esse efeito já decorre automaticamente do cumprimento da senten­
ça penal condenatória, conforme dispõe o art. 202 da Lei de Execução Penal: “cum­
prida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida atestados ou certidões for­
necidas por autoridade policial ou p o r auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou
referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração
penal ou outros casos expressos em lei”. Previsão legal similar já constava inclusi­
ve do art. 709, § 2®, do Código de Processo Penal. Desnecessário dizer que o sigilo
em questão não vale para as autoridades judiciárias.
Apesar disso, Fernando Galvão considera que o sigilo previsto na LEP (mais
restrito) só atinge as condenações, enquanto o sigilo decorrente da reabilitação
(mais amplo) abrange também processos que resultaram em absolvição por insu­
ficiência de prova, inquéritos arquivados etc., motivo pelo qual no particular o
instituto é útil, principalmente para afastar o uso de tais registros como maus ante­
cedentes.209

207 Em sentido diverso, Fernando Galvão, que entende cabível para aqueles que responderam a inquérito ou
a processo posteriormente arquivados inclusive. D ireito Penal. Parte Geral. Rio: Impetus, 2004, p. 866.
208 Ney Moura Teles, cit., p. 462.
209 Direito Penal, cit., p. 870-871.
Paulo Queiroz

440
O argumento não procede, porém. Primeiro, porque a reabilitação tem por
finalidade suspender, exclusivamente, alguns efeitos específicos da condenação,
não se aplicando aos casos de absolvição etc., uma vez que o inocente, ou pessoa
que se presume como tal, nada tem do que se reabilitar, nem teria interesse de
agir para tanto; segundo, porque se pudéssemos dar à reabilitação interpretação
tão ampla, o mesmo poderia também ocorrer quanto ao art. 202 da LEP, que no
essencial tem a mesma redação; terceiro, ainda que comum na prática forense, o
uso de processos ou inquéritos arquivados como maus antecedentes ofende o
princípio da presunção de inocência. E pretender reabilitar inocentes é um abso­
luto contra-senso.
Nenhum outro efeito pode resultar da sentença concessiva da reabilitação: o
condenado reabilitado continua reincidente para todos os efeitos legais; tem o
dever legal de indenizar eventuais vítimas do crime; subsiste o confisco decretado
na sentença condenatória etc.
Parece-nos, portanto, que a reabilitação, tal como se encontra hoje disciplina­
da, é grandemente inútil, a justificar a sua abolição pura e simples ou a sua total
reformulação, porque incapaz de efetivamente reabilitar o condenado. É também
evidente que não se pode falar de recuperação do status quo ante decorrente da rea­
bilitação, até porque tal seria impossível, jurídica-socialmente.
A reabilitação só poderá ser requerida depois de decorrido o prazo de dois
anos do dia em que foi cumprida ou extinta a pena por qualquer modo, computan­
do-se, para esse efeito, o período de prova da suspensão condicional da pena ou do
livramento condicional, se não ocorrer revogação. Além disso, o requerente deve­
rá atender aos seguintes requisitos: a) ter domiciliado no País nesse prazo de dois
anos; b) ter demonstrado bom comportamento público e privado durante esse
período; c) ter reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo.
Deferida a reabilitação, poderá ser revogada, de oficio ou a requerimento do
Ministério Público, se o reabilitado for condenado, como reincidente, por decisão
definitiva, à pena que não seja de multa. Portanto, a revogação só ocorrerá se a
nova condenação for a pena de prisão (ainda que eventualmente substituída por
pena restritiva de direito) e dentro do prazo legal de cinco anos, porque, se expira­
do esse prazo, cessará a reincidência. Também se a nova condenação não implicar
reincidência, por não ser a hipótese de prática de novo crime após o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória ou for por crime militar ou político pró­
prio, a reabilitação subsistirá. Se revogada a reabilitação, o condenado votará à
situação anterior à sentença concessiva.
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aplicação da pena abaixo do mínimo legal mesmo
quando não existam atenuantes em favor do
condenado. Interessante ainda a forma como cuida
da execução provisória da sentença e, em especial,
o que escreve sobre os efeitos da reforma
psiquiátrica sobre a legislação penal em vigor,
bem como sobre os pressupostos jurídico-penais
das medidas de segurança, que devem ter
tratamento semelhante à pena.
Trata-se, enfim, de obra crítica e
atualíssima, que rompe com a costumeira
m esm ice dos manuais e cuja leitura é
absolutamente indispensável.

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