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É possível conhecer o próprio passado?

Luiz Roberto Zanotti

O embate entre o que pode ser chamado de um paradigma pós-moderno em


contraposição a um paradigma moderno permeia todo o pensamento cientifico, cultural
e filosófico do inicio do Séc. XXI. É interessante notar este embate no que tange aos
estudos culturais na Antropologia, onde se por um lado, podemos classificar como
eminentemente “modernas”: a teoria Evolucionista, com sua visão etnocêntrica da
evolução da sociedade, o Funcionalismo, com a imagem corpóreo-funcional do
comportamento social, o Estruturalismo, desenvolvido por Levi Strauss, que apesar de
negar diretamente o Evolucionismo, acaba por admiti-lo de uma forma indireta no
artigo “Raça e Cultura” 1; e por outro lado o modelo “pós-moderno” interpretativo de
Geertz que em grande parte deriva do modelo do circulo hermenêutico de Dilthey.
O modelo de Geertz apresenta a necessidade de uma descrição (texto
etnográfico) densa do fenômeno para a compreensão dos meios semióticos, num
processo de saltar continuamente de uma visão da totalidade através das varias partes
que a compõe, para uma visão das partes através da totalidade, e vice versa, buscando
fazer com que uma seja explicação para a outra.
Um exemplo de aplicação deste método pode ser observado na famosa briga de
galos em Bali, onde Geertz demonstra que em certas instituições ou segmentos do
comportamento são típicos de uma cultura circundante. Assim são criadas áreas de

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onde comenta o falso evolucionismo como o fato de tentar suprimir as diferenças reconhecendo-as
plenamente como etapas para uma mesma meta, sendo estas unidades e identidades se realizariam
progressivamente, sendo que todos os povos têm sua própria grandeza, mas no final do artigo acaba por
super-valorizar a sociedade ocidental como mais cumulativa que as outras pelo fato de um maior
intercambio cultural.

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sinédoques nas quais partes são relacionadas ao todo, e através dos quais o todo- que
usualmente chamamos de cultura- é constituído.
Outro exemplo mostra a concepção do “eu” da sociedade javanesa, uma
sociedade que aparenta que passado e o futuro estão remotos, apesar de existir na aldeia
uma grande vitalidade intelectual. O ponto de partida para a sua análise filosófica estava
em dois conjuntos de conceitos contrastantes, o “dentro e fora” e o “refinado e vulgar”.
Estes dois conjuntos de conceitos davam a forma como os javaneses se viam a si
mesmos e aos outros (GEERTZ, p.91).
O conceito “dentro” (Batin) fala sobre a esfera dos sentimentos no homem e de
como o seu comportamento é observado, porém, diferentemente do conceito ocidental
de alma, esta “internalidade” não se dilui numa individualidade.O conceito de “fora”
(Lair) tem como referência o comportamento externo, como por exemplo, a língua
falada. A meta neste conceito é o comportamento do ser humano ser polido (Alus),
contrariamente ao conceito de indelicado (Kasar) que deveria ser evitado.Este
comportamento ideal deveria ser buscado nas duas esferas do eu, na interior através da
meditação e na exterior através da etiqueta que tem regras rígidas regularizando o
comportamento externo ao parecer sereno, etc.O resultado da aplicação destas regras na
pratica é uma concepção do “eu” como um sentimento meio sem gestos e de gestos
meio sem sentimentos.
Assim, não dá para compreender esta impressão de estagnação da sociedade
(experiência distante), sem que se interprete conceitos de “experiência próxima” como
Batin, Alus, etc. Para Geertz, podemos entender este processo como um jogo de
beisebol, onde para a compreensão do jogo, precisamos saber dos detalhes de seus
elementos, mas também como funciona em si este jogo que contém todos estes
elementos, dentro de um processo de interpretação e não de explicação.
De uma forma geral, podemos dizer que quase todas as teorias apresentadas
guardam entre si um objetivo geral de descobrir (desvelar, ou ainda explicar) a
“verdade” que se encontra numa essência que se esconde atrás de uma aparência. Geertz
ao fugir do padrão explicativo, desiste da busca pela essência das coisas; e ao interpretar
os galos balineses como reflexo da sociedade e vice-versa, ou a identidade javanesa
correlacionada com seus signos, se aproxima de uma abordagem pós-moderna. A crítica
principal à este modelo é o fato do mesmo não dar a “voz” às sociedades estudadas.
Para James Cliffort, o fato de ver a cultura como um conjunto de textos,
retratando as realidades de outros povos sem colocar a sua própria realidade em questão,

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e como nem a experiência e muito menos a interpretação têm um caráter inocente, o
modelo acaba tendo um viés ideológico, o que significaria como muito bem mostra
Focault em Vigiar e Punir, uma tentativa de apreender a verdade, tornando-se
necessário conceber uma etnografia que envolva uma negociação construtiva
envolvendo os “outros” como sujeitos conscientes e politicamente significativos, que
são.
Desta forma paradigmas de experiência e interpretação estão sendo substituídos
por paradigmas discursivos de diálogo e polifonia, como a experiência bem sucedida
relatada no livro Piman shamanism and staying sickness onde o autor Donald Bahr
partilha a autoridade, tanto quanto possível, ao dar ao xamã a obrigação de fazer
interpretações e julgar o que é importante, fazendo as suas próprias interpretações em
separado, encenadas estas como interpretação das interpretações e fazendo com que as
enunciações individuais proferidas pelo xamã estejam visivelmente separadas das
generalizações culturais efetuadas por ele.
Outro exemplo de uma abordagem perspectivista pode ser encontrada no
trabalho de Viveiros de Castro, Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo
ameríndio, onde ele apresenta a idéia de um perspectivismo presente em populações
ameríndias, onde os animais são capazes de possuir um ponto de vista, fazendo com que
ocorra uma inversão na divisão entre Natureza e Cultura, que não pode mais ser vista
pelos moldes de Descartes, uma vez que não é mais a animalidade (base biológica) e
sim a condição humana, uma condição universal para os ameríndios, que passa ser a
base da Natureza.
Esse “perspectivismo” fica ainda mais pronunciado se buscarmos um exemplo
não em visões dentro da mesma disciplina, e sim na interdisciplinaridade, como na
diferença entre as leituras psicanalítica e histórica do conto 2 infantil Chapeuzinho
Vermelho. A abordagem psicanalítica privilegia os problemas pubertais de
Chapeuzinho (para os quais ainda não está preparada) e de sua relação libidinal com o
lobo, seja através do deslocamento da metáfora “vou te comer” do significante
“alimento” para o significante “sexo”, seja através do Complexo de Édipo (Electra)
onde o sujeito premedita a morte da mãe (vovó) para ficar com o pai (lobo), numa clara

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Encontram-se varias versões de Chapeuzinho Vermelho, entre elas uma versão contemporânea
Deu a louca no chapeuzinho que de uma forma interessante, mostra diversas perspectivas através de
quatro versões (ou visões) diferentes para a mesma “historia”.

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alusão á possibilidade dela voltar a um comportamento baseado no princípio do prazer,
após tê-lo abandonado em favor do princípio da realidade.
Uma visão completamente diversa pode ser encontrada no historiador Robert
Darnton, para quem a visão psicanalista a partir de detalhes que não apareciam no conto
original, nos conduz para um universo mental que nunca existiu, ou pelo menos, não
existia antes do advento da psicanálise. Numa abordagem histórica, a mensagem do
conto é simples: “não ande perambulando fora da vila, porque ambos, a vida e os
estranhos são cruéis”. Apesar da relativização que Silva Leite vai buscar, entre outros
argumentos, a presença do “imaginário” animal, tanto numa consciência civilizada
como na mentalidade primitiva, a verdade é que ambas as abordagens, assim como nos
exemplos de correntes antropológicas, também acreditam numa verdade una e absoluta.
Mas, se até o momento discutimos as diferentes perspectivas de representação da
realidade dentro de um pensamento moderno (essência e aparência), o que dizer quando
nos defrontamos com um tema como do Holocausto, que na visão de Hilgrubber é um
evento não representável na linguagem; que para George Stainer, é algo que está além
do discurso e da razão; ou ainda, para Alice e A.R. Eckhardt que não encontram
argumentos para relatar o evento, pois para eles não há como dizer o indizível.
Na tentativa de colocar um pouco de clareza nesta nevoa representativa, Hayden
White, argumenta que os textos escritos podem representar tanto a verdade quanto a
farsa, pois a representação da história se estabelece através da distinção entre o fato e a
ficção, sendo que o primeiro está ligado ao referente real (histórico) e à ficção se
enquadra o referente imaginado. No entanto como separar o referente o real da ficção?
Podemos considerar os romances autobiográficos Se isto é um homem?, de Primo Levi e
A noite de Elie Wiesel, como exemplos de referentes histórico e ficcional? Pois, se Levi
narra o cotidiano dos campos de concentração nazistas apresentando questionamentos e
reflexões sobre a condição humana, tais como a dignidade para se manter vivo, a
distinção entre o bem e o mal, o preconceito, entre outros; Wiesel traz a crise
existencial de alguém que se encontra entre a morte e a obrigação moral com a
sobrevivência do pai.
Assim, dentro dessas narrativas poderíamos, usando os conceitos de Hayden
sobre história e ficção, caracterizar Levi, pelo seu relato objetivo dos fatos, sem uma
mitificação (Benjamin) como exemplo de uma referencia histórica, enquanto Wiesel,
com a sua vivencia subjetiva e existencial estaria mais próxima de uma ficção com
elementos que não correspondem aos fatos, a partir de referentes imaginados.Mas a

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discussão entre testemunha e ficção pode ser vista numa perspectiva muito mais
complexa que Paul Ricouer trata em sua obra-síntese, La mémoire, l'histoire, l'oubli,
onde procura enquadrar conceitualmente as relações problemáticas que entrelaçam a
história, a memória e a justiça, através de uma interrogação sobre a memória dos
testemunhos (os sobreviventes do holocausto), em relação à história dos historiadores.
Acontece que as pretensões destes últimos, muitas vezes, se rivalizam com os
interesses dos primeiros, sobretudo quando se trata de condenar os "excessos" da
memória. Entre o dever de fidelidade e as exigências da verdade histórica, Ricoeur
defende uma política da "justa memória" (e portanto, na minha visão, ideologia, e
novamente temos que lembrar Focault). Isso implica a idéia imperativa de um "dever de
memória" e de uma "dívida" em relação às vítimas da história, sem deixar de renegar à
história sua autonomia e sua "função corretiva de verdade".
Os deslocamentos do passado sobre o futuro explicam, muitas vezes, os
problemas ligados à transmissão da memória. Visando a um tempo futuro, a memória se
conserva no tempo contra o próprio tempo (o esquecimento e o apagamento). Cabe,
pois, à história, pela sua dimensão crítica, guardar os rastros da "dívida", dívida essa que
diz respeito às vítimas da História. "Se não se deve esquecer, é, também e sobretudo, em
razão da necessidade de se honrar as vítimas da violência histórica. É nesse sentido, que
se pode falar de memória ameaçada". Nessa perspectiva, a história crítica tem por papel
se opor, não só aos preconceitos da memória coletiva, mas também aos preconceitos da
história oficial, cuja função consiste na própria transmissão dessa memória.
Assim, mais do que um simples objeto da história, a memória parece ser, dentro
dessa nova perspectiva de análise, uma de suas "matrizes". Segundo Paul Ricoeur, ela
permanece, em última instância, a única guardiã de algo que "efetivamente ocorreu no
tempo", evitando se tornar um objeto de manipulações, muito freqüente no que diz
respeito à ordem política e ideológica, com a memória (individual e coletiva) passando a
integrar o "território do historiador". Inspirando-se em análises psicanalíticas (sobre o
"recalque", o "luto") e filosóficas (sobre o tempo, o silêncio, etc.), o historiador do
presente desempenha, nesse trabalho de resgate da memória, uma função de mediador, à
imagem de um analista. Procurando adequar os relatos de memórias individuais à
veracidade histórica, ele elabora uma reflexão sobre a própria temporalidade. Em outras
palavras, cabe-lhe a tarefa da apreensão da relação do presente da memória (de um
acontecimento) e do passado histórico (desse acontecimento), em função da concepção de
um futuro desse passado. "O trabalho da história se entende como uma projeção, do nível

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da economia das pulsões ao nível do trabalho intelectual dessa dupla tarefa que consiste
na lembrança e no esquecimento", afirma Paul Ricoeur.
Varias dificuldades são encontradas tais como: situações de recalques (governo
Vichy durante a ocupação alemã), à negação dos momentos mais traumáticos do passado,
sintoma de patologias coletivas ou individuais da memória e que se traduzem não pelo
esquecimento, mas pelo silêncio (genocídio dos judeus).
No entanto, este modelo, parece não se prestar, ao que Tzvetan Todorov, em seu
livro Os abusos da memória, chama de "feridas coletivas", feridas constituídas através de
atos violentos como o que aconteceu no genocídio indígena que se seguiu à descoberta da
América. Nesse ponto parece imprescindível mostrar a visada de Miguel Taussig, que
apesar de não ser uma testemunha ou não ter tido o relato pessoal de nenhuma delas, seja
devido á distancia temporal, seja porque as “testemunhas” foram dizimadas, busca retratar
o “espaço do terror” que se estabeleceu na invasão dos seringueiros (“caucheiros”) em
Putamayo através do livro Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem. Ainda no
prefacio do livro, Taussig deixa claro para quem busca no livro uma “memória” do
genocídio que o livro se fia em muito pouca coisa e deixa ainda menos coisas em seu
lugar:
estes temas se comunicam na política da obscuridade epistemológica e na ficção
do real, na criação dos índios, no papel desempenhado pelo mito e pela magia
em relação à violência colonial, bem como em relação à cura e no modo como
ela pode mobilizar o terror a fim de subverter essa violência, não através de
catarses celestiais, mas fazendo com que o poder se enrede em sua própria
desordem3.

Taussig, seguindo os passos de Walter Benjamin, toma o propósito de liberar a


enorme energia da história confinada no “era uma vez” da narrativa histórica clássica:
“(...) a história que mostrava as coisas como ela “realmente foi” revelou-se o narcótico
mais forte do nosso século. Assim Taussig vai utilizar uma técnica narrativa advinda da
subjetividade de outros autores (Jacobo Timmerman, Joseph Conrad, Hardenburg, entre
outros) numa forma polifônica da busca da interpretação da realidade, de uma
experiência fragmentada, de uma etnografia que faz a ponte entre a Antropologia e a
Literatura, e vai , num movimento pendular entre dois campos não excludentes, fazer a

3
Extraído do livro Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem de Michael Taussig, pág. 15.

6
mediação com o terror através, não da sua própria ficção e sim, utilizando a ficção dos
outros na forma de alegorias.
Essa dificuldade do autor em dar conta ou descrever um fato em que ele não foi
testemunha, faz com que o tema não seja a verdade do ser, mas o ser social da verdade,
o que significa que a importância não se encontra na verificação se os fatos são reais, e
sim, na sua interpretação e representação.Desta forma, o texto do espaço da morte não
exige uma desmistificação ou remistificação, e sim uma poética bastante diversa onde o
texto se converte em vozes, a escritura se converte em sujeito, que deve ser escutado
mas do que lido, carne viva que deve ser valorada como a presença da palavra como o
princípio da unidade, mas para os indivíduos que lutam contra a opacidade da história, a
palavra primordial se encontra fragmentada em seus diferentes textos, que exigem assim
uma escrupulosa decodificação para que possa ressoar o discurso vivificante do autor.
Porem, se alguém duvida da eficácia do trabalho de Taussig, podemos lembrar
Sterne, (STERNE apud EAGLETON, 1988, p.40), que pergunta qual é o milagre
cartesiano que pode fazer com que as letras escritas sobre folhas brancas possam se
converter em portadoras de significado, como passar do livro ao texto, sem esperar que
a materialidade da língua e o artifício dos recursos estéticos não afetem a efetiva
presença do autor perante os seus leitores.
Além disso, a abordagem antropológica pós-moderna de Taussig, conforme
George Marcus4, vai romper com o espaço físico, com os limites de uma floresta
constituindo um espaço virtual “Espaço da morte (ou terror)”, buscando, ao invés de
uma fronteira física ou política, uma fronteira que poderíamos chamar de fronteira ética.
“O desafio colocado à etnografia modernista está justamente em conseguir captar a
formação de identidades especificas através de todas as suas migrações e dispersões”.
Desta forma, a problematização da perspectiva proposta em Xamanismo é feita a
partir de uma etnografia compreendida como voz, e numa polifonia, em que a narrativa
de Taussig mostra que a verdade, e se é que ela existe, não está contida nem no sujeito e
nem no objeto, e tal qual o barroco alegórico, se encontra na mediação dialética. Ao
incorporar esta relação dialógica e tornar viável a exposição destas vozes por meio de
narrativas que se estabeleceram entre o observador e o observado, vários pensamentos
tiveram a oportunidade de serem re-significados.

4
MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: Requisitos para etnografias sobre a
modernidade no final do século XX ao nível mundial. São Paulo: Revista de Antropologia, 1991

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Esta frágil barreira entre a realidade e a ficção talvez seja a característica mais
marcante da pós-modernidade, e neste sentido Clifford Geertz coloca-se uma questão e
responde: “O que faz um etnógrafo?Escreve”. Partindo desta simples constatação pode-
se abrir toda uma questão orientada para uma reconfiguração de todo um quadro do
pensamento social, pois conforme Reynoso5, agora as investigações filosóficas parecem
ser criticas literárias, como Sartre escrevendo sobre Flaubert, as discussões cientificas se
assemelham a fragmentos de belas letras (Lewis Thomas), fantasias barrocas se
apresentam como observações empíricas inexpressivas(Borges, Lezama), histórias que
consistem de equações e tabelas ou ainda testemunhos jurídicos(Fogel e Engerman),
documentos que parecem confissões verdadeiras (Mailer), parábolas que passam por
etnografias (Castaneda), tratados teóricos expostos como recordações de viagem(Leví-
Strauss), argumentos ideológicos apresentados como investigações
historiográficas(Edward Said), e assim por diante.
No entanto, seja a pós-modernidade o ofuscamento ou não entre a realidade e a
ficção, seja um salto adiante como pretendem alguns, ou uma fuga para o passado
como querem outros, uma nova vanguarda ou uma regressão ao arcaico, a verdade é que
apesar deste termo ser tão indefinido, ele acaba por refletir um estado de espírito
“Zeigeist” de uma época, e é importante o suficiente para estar no centro do debate
atual, com Lyotard, mostrando um novo cenário constituído de micronarrativas, em
contrapartida ao abandono das narrativas centralizadoras pelas ciências, já Friedric
Jameson correlaciona a emergência de novas características formais na cultura com a
emergência de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica”, enumerando
as principais características formais e estilísticas e identificadoras da cultura pós-
moderna.
Rouanet, apesar da sua resistência em afirmar o paradigma (ou Zeitgeist) aponta
diferenças da pós-modernidade nas estruturas do cotidiano (a maquina substituída pela
informação, o contato pessoa a pessoa pelo vídeo, uma grande nebulosa de jogos de
linguagem (Lyotard)), na economia (produção de serviços ao invés de bens físicos (o
pós-moderno abarca o moderno, coexistem)), no Estado (devolução ao privado de uma
parte de suas atribuições), no saber (A ciência moderna e suas narrativas legitimadoras
dão lugar a enunciados que se argumentáveis e verificáveis são legitimados), na moral
5
REYNOSO, C. (ed)- “El surgimento de la antropologia posmoderna”, 2003, Gedisa, Madrid

8
(Passagem da moral moderna derivada de princípios universais e subordinado a vida
pulsional à razão, para uma moral que coloca ênfase sobre os valores da vida e da
espontaneidade), na arte ( enquanto o moderno usava a parodia (norma lingüística),
esgotada a capacidade de criação o artista pós-moderno volta-se para o passado e
recorre ao pastiche ( não padronizado, imitação pela imitação) de obras anteriores), na
literatura ( com a predominância das formas lúdicas, disjuntivas, abertas, processuais,
anárquicas enquanto o modernismo enfatiza o desígnio, a conjunção, o fechamento, o
objeto).
Nesse sentido da literatura pós-moderna, Rouanet apresenta Borges como um
autor paradigmático da nova época. Em seu Pierre Ménard, Autor do Quixote, ele
imagina um poeta francês que se propõe escrever o Quixote: não parafraseá-lo ou
comentá-lo, mas escrevê-lo. Segundo Borges, o projeto foi concluído com êxito, e
submete à apreciação do leitor um trecho do livro, na versão de Ménard, confrontando-o
com o trecho correspondente, na versão de Cervantes, e tomando o cuidado de dizer que
a primeira versão é “quase infinitamente mais rica” que a de Cervantes. Ora, os dois
textos são absolutamente idênticos. Se o segundo texto é mais rico, é porque é a
mímesis rigorosa do primeiro e nesse sentido supõe um grau maior de reflexividade e
intencionalidade. É a originalidade dos epígonos. Toda obra de literatura é sempre
citação, intertextualidade infinita. Na literatura, todos tradutores e anotadores de textos
já existentes.
Além disso, Merquior defende a tese do primado da forma alegórica na literatura
pós-moderna, mas acha que ele já existia no próprio modernismo. Apenas, são duas
variedades de alegorias. A alegoria moderna era metafórica e surreal, a pós-moderna é
metonímica e hiper-real. As alegorias kafkianas e surrealistas são metafóricas, donde o
seu caráter enigmático; as alegorias de Borges ou de Beckett não têm esse cará ter, o
que poderia fundar uma distinção entre o fantástico de Kafka e o de Borges.
Para Blanchot, um filósofo pós-estruturalista6, em Borges, as palavras “truque e
falsificação” afirmam que a dignidade da literatura está não na existência de um grande
autor e sim na existência de uma grande literatura, o que de uma certa forma coaduna
com a tese da morte do autor, que Compagnon apresenta através de Barthes em O
demônio da teoria, que traz a linguagem para o centro da cena, com o autor cedendo
lugar a escritura, passando a ser um ser de papel (ele não pré-existe à sua enunciação).

6
No livro Borges: Uma poética da leitura de Emir R. Monegal

9
Para Compagnon, a morte do autor assinala a passagem do estruturalismo sistemático
para o desconstrutor (pós-moderno).
Uma outra característica pós-moderna Quixote de Menárd, de acordo com
Linda Hutcheon, em Poética do Pós-modernismo, está na utilização (e abuso),
estabelecimento e desestabilização da parodia, que redefinida numa poética Pós-
Moderna significa a repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da
diferença no próprio âmago da semelhança. Para ela Jameson prefere usar o conceito de
pastiche, por ainda atrelar a figura da paródia como uma imitação ridicularizadora, fato
que aparentemente não acontece no “Quixote” de Borges. O formalismo paródico (mais
auto-reflexivo) de Borges revela que a arte como discurso se vincula aos âmbitos
político e social, enquanto o formalismo auto-consciente do Modernismo fez a arte se
isolar do contexto social
Ainda, dentro da discussão da Pós-Modernidade, Hutcheon afirma que ela (a
Pós-Modernidade) não nega totalmente o modernismo, o que faz é dar a ele uma
interpretação livre, o examina criticamente (glorias e erros). O que se para Tom Wolfe
demonstra o fracasso na ruptura entre essas duas “poéticas”, para Portoghesi é um
carinhoso dialogo com o pai.
Outro ramo da arte de difícil reconhecimento da Pós-Modernidade é a
dramaturgia. Pelo fato dela envolver acontecimentos aqui e agora, através de um ator
representando uma personagem, parede que a noção dualista de aparência-essência é
intransponível. No entanto, mais uma vez, apesar do teatro pós-dramático 7 se designar
como um teatro que se vê impelido a operar além do drama, isso não quer dizer a
negação absoluta deste. Este “após” significa que o drama continua a existir como
estrutura (expectativa do grande público), num ordenamento centrado no logos, sendo
que os membros ou ramos do organismo dramático (embora morto) encontram-se ainda
presentes e constituem espaço de uma lembrança em irrupção. O teatro pós-drama
mostra algo possível além desse horizonte, mas supõe a presença, a readmissão e a
continuidade das velhas formas estéticas. A arte se desenvolve estabelecendo relações
com as formas anteriores num nível estabelecido de consciência e tipo específico.
O novo teatro vai se libertar principalmente do ordenamento centrado em logos e
privilegiar a presença de atores individuais, que não aparecem como meros portadores
de uma intenção exterior a eles e sim através de uma lógica corporal própria, dinâmica

7
Lehmann (Hans Thies) em O teatro Pós-dramático, por razões de método, prefere usar o termo pós-
dramático ao invés de pós-moderno, limitando assim o horizonte de sua pesquisa.

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energética do corpo, que Hans Ulrich Gumbrecht em Production of Presence apresenta
como o conceito de presença, o sentido de trazer para diante de nós, um objeto no
espaço, ou ainda, a relação com todos os processos que a presença dos objetos tem no
corpo humano. Este conceito é apresentado inicialmente como uma crítica ao excessivo
racionalismo (logos) da Modernidade, que esqueceu que os objetos (“coisas do mundo”)
podem ser mais que uma simples atribuição de um significado metafísico 8, e que o
impacto destas coisas podem ir além da razão, perpassando todo o nosso corpo físico.
Esta “ditadura” do significado pela razão tem sido a prática básica das “humanidades”,
sem levar em conta que a experiência estética oscila entre os efeitos “presentes” e os
efeitos de “significação”.
Enfim, podemos dizer, de acordo com Connor9, que o Pós-Moderno, está
baseado na sua paixão pela paródia (no sentido de Hutcheon), pela multiplicação e
colagem “sem relevo” de estilos, em oposição à profunda” estética expressiva do estilo
autêntico que caracteriza o modernismo, e o seu afastamento da idéia da personalidade
unificada em favor da experiência “esquizóide” da perda do eu no tempo indiferenciado,
que surge nos rastros de um modernismo cujas técnicas e cujos heróis iconoclastas
foram confortavelmente institucionalizados por museus e universidades; a circulação ou
pastiche de múltiplos estilos nas formas culturais pós-modernas mimetiza a atual
tendência da vida social contemporânea para a fragmentação de normas lingüísticas,
com “cada grupo passando a falar a curiosa língua particular própria, com cada
profissão desenvolvendo seu código ou dialeto privado e, por fim, cada indivíduo
tornando-se uma espécie de ilha lingüística separado de todos os demais.
Pode-se finalmente concluir que o pastiche esquizóide da cultura pós-moderna é
o apagamento do sentido de história. O nosso sistema social contemporâneo perdeu a
capacidade de conhecer o próprio passado, tendo começado a viver num “presente
perpétuo” sem profundidade, sem definição e sem identidade segura.

8
No sentido aristotélico de além (meta) da física (matéria), fazendo com que este termo, conforme o autor,
se relacione ao que perdemos do mundo.
9
Cultura Pós-Moderna, Steven Connor.

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