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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE DIREITO

UMA COMPREENSÃO HERMENÊUTICA DAS TRANSFORMAÇÕES DO


DIREITO

GUILHERME PRATTI DOS SANTOS MAGIOLI

Mestrado Em Ciências Histórico-Jurídicas

Teoria do Direito

LISBOA

2018
GUILHERME PRATTI DOS SANTOS MAGIOLI

UMA COMPREENSÃO HERMENÊUTICA DAS TRANSFORMAÇÕES DO


DIREITO

Dissertação apresentada no curso de Mestrado Científico


em Teoria do Direito, da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, sob orientação do sr. Professor
Dr. António Pedro Barbas Homem.

LISBOA

2018
Dedico este trabalho à minha família que, em
minhas viagens para este além-mar, esteve
sempre presente em minhas longas ausências.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar


E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior


De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

O haver – Vinicius de Moraes


AGRADECIMENTOS

À minha mãe pelo suporte necessário em todos os meus passos, por ensinar-me a grandeza da
simplicidade e a importância do diálogo. Para além de um agradecimento, trata-se do
reconhecimento da fibra, sabedoria e integridade que constituem seu modo de ser e sua
capacidade de amar por igual a família e os afortunados que lograram à condição de amigos.

À Adalice Pratti, pela simplicidade e intensidade com que ama em pequenos gestos. Cada batida
de seu coração é uma lição de humildade.

A Izacheu Roberte, em memória, pois sua firme voz e amáveis palavras ainda ecoam em mim.

Ao meu querido amigo Gabriel Vasconcellos, por esses dez anos passados, presentes, vividos.
Foi em nossa incubadora de sonhos à rua Bernardim Ribeiro que, ainda antes do início de meu
percurso junto à FDUL, dentre tantas ideias que ainda hão de ser perseguidas, nasceu aquela
que veio dar corpo a esta tese. Sou grato pelos estímulos intelectuais, pelas boléias e pela
amizade em seu sentido mais nobre.

Às pessoas que Lisboa me permitiu conhecer: Francesca Cavagnero, por presentear-me não só
sua companhia, mas cada vez mais um pouco de si; Ruth Manus, por dar-me a honra de estar
próximo à sua aura leve, espontânea e, sobretudo, harmoniosa; Luiz Neto e Felipe Barbosa,
pelos momentos de aflição compartilhados durante este percurso; Claudio Magni, pela amizade
intercontinental e pelo incessante auxílio na aprendizagem da língua italiana.

Agradeço, ainda, a minha amiga Laís Zumach pelos infindáveis incentivos e por crer em um
potencial que espero, um dia, corresponder à altura.

Ao Senhor Professor Doutor Pedro Barbas Homem que, através das estimulantes lições de
Filosofia do Direito, fez brotar em mim a certeza de dedicar-me à vida acadêmica.

À Senhora Professora Doutora Miriam Afonso Brigas que, com a atenção que lhe é
característica, fez-me notar pontos inicialmente não considerados, mas que vieram a ser
fundamentais neste trabalho.

Agradeço à Senhora Professora Doutora Carla Faralli, pela oportunidade de usufruir da


estrutura da Universidade de Bologna e do fabuloso acervo bibliográfico do Centro
Interdipartimentale di Ricerca in Storia, Filosofia e Sociologia del Diritto e Informatica
Giuridica – CIRSFID.

À Senhora Professora Doutora Maria Paola Mittica pelo diálogo estabelecido em Itália.
RESUMO

Ao criticar o movimento Direito e Literatura (D&L) a partir de uma perspectiva a ele


interna, este trabalho defende que através desse mesmo movimento é possível se compreender
o desenrolar historial do direito. Para tanto, de início, é apresentada a Crítica Hermenêutica do
Direito como a matriz de racionalidade estruturante da investigação, dissecando o “método”
fenomenológico que a sustenta.

O desenvolvimento histórico do movimento D&L é em seguida introduzido, no


capítulo 3, e compreende a análise das experiências estadunidense, européia e brasileira,
passando pela apreciação das obras de maior impacto nas correntes denominadas “direito na,
direito como e direito da literatura”, como forma de distinguir os estudos já feitos daquele aqui
realizado. A proposta em questão tem por fundamentos i) a inserção dos textos de músicas no
conceito de literatura com que opera o movimento D&L, ii) bem como a viabilidade de se
confrontar a literatura de determinado local com o direito ali produzido, em um arco temporal
específico a ser analisado, em busca de se observar as transformações que o direito local sofreu.

O “método” fenomenológico-hermenêutico é que possibilita tanto a construção de uma


narrativa a respeito dessas transformações, quanto a identificação dos possíveis vetores de
racionalidade que surgem dali. Já no quarto capítulo, essa perspectiva de análise é então
transportada para o interior do movimento D&L e aplicada à experiência brasileira, no lapso
temporal que vai de 1964 a 2016, ou seja, passando pela transição entre a ditadura militar e a
democracia, confrontando o mundo jurídico com mundo literário (com especial foco às canções
surgidas no período mencionado) como forma de observar o desenrolar historial do princípio
constitucional da liberdade de expressão na tradição constitucional brasileira. A essa vertente
de análise, reservamos a denominação de “direito com literatura”, devendo ser, entretanto,
compreendida como “(compreensão do) direito com (auxílio da) literatura”.

PALAVRAS-CHAVE: Crítica Hermenêutica do Direito; movimento direito e literatura.


“método” fenomenológico; direito com música; narrativa das transformações do direito.
ABSTRACT

When critically analysing the Law & Literature movement (L&L), from an internal perspective,
the thesis hereby presented defends that through this so called movement it is possible to
comprehend the historical developments of law. And in order to do so, it begins by introducing
the Hermeneutics Criticism of Law as the philosophical paradigm that holds the coherence of
this investigation, by dissecting the phenomenological “method” that it’s based up on.

The histocial evolution of the L&L movement is presented on the third chapter, in which it’s
analyzed the north american, the european and the brazilian experiences and it’s also cautiosly
examined the books that have caused the major impacts on the development of its internal
theories – which are commonly refered to as “law in, law as and law of literatura” – as a way
to distinguish the existing studies of the one here sustained. This study is based on two major
arguments, which are also its propositions: i) the need to consider musical lyrics in the general
concept of literature with which the L&L movement operates its reasoning and ii) the viability
of confronting local literature with local law, throughout a specific period of time, as a way to
observe the transformations that the local law has been through.

It is the phenomenological “method” that allows the possibility to construct a narrative about
this transformations and also to identify the possible “vectors of rationality” that have emerged
from law’s developments. On the fourht chapter, this perspective of analysis it’s transported to
the interior of the L&L movement and then applied to the brazilian experience, from 1964 to
2016, hence passing from the transition of a military dictatorship to a democracy, confronting
the “world of law” with the “literary world” focusing on the observation of the historical
developments of the constitutional principle of freedom of speech in the brazilian constitutional
tradition. To this perspective we have reserve the classification of “law with literature” and it
should be, therefore, understood as “(the comprehension of) law with (“a little help from”)
literature.

KEYWORDS: Hermeneutics criticis of Law; law and literature movement; phenomenological


method; law with music lyrics; the narrative for law’s developments.
LISTA DE ABREVIATURAS

ACP – Ação Civil Pública

ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AI – Ato Institucional

AC – Ato Complementar

Art. – Artigo

ANC – Assembléia Nacional Constituinte

CFRB – Constituição da República Federativa do Brasil

CHD – Crítica Hermenêutica do Direito

CIDIL – Colóquio Internacional de Direito e Literatura

CIRSFID – Centro Interdipartimentale di Ricerca in Storia, Filosofia e Sociologia del Diritto e


Informatica Giuridica

COI – Comitê Olímpico Internacional

CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito

CPDOC – Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil

CRP – Constituição da República Portuguesa

D&L – Direito e Literatura

DL – Decreto-lei

EMC – Emenda Constitucional

L&L – Law and Literature

MPB – Música Popular Brasileira

MPF – Ministério Público Federal

RAP – Rythm and Poetry

RDL – Rede Brasileita de Direito e Literatura

SIDL – Società Italiana di Diritto e Letteratura

STF – Supremo Tribunal Federal


SUMÁRIO
NOTA DO AUTOR ............................................................................................................................. 10
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 11
2. A CAMINHO DE UMA FILOSOFIA DA CONSTITUCIONALIDADE ................................. 14
2.1. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO “MÉTODO” FENOMENOLÓGICO ................. 16
2.1.1 Sobre o conceito de mundo na fenomenologia Heideggeriana ............................................ 22
2.2. AS GRANDES LINHAS DE UMA HERMENÊUTICA JURÍDICO-FILOSÓFICA........ 25
2.2.1. Da diferença ontológica entre texto e norma ...................................................................... 26
2.2.2. Uma questão de princípio ................................................................................................... 33
3. HERMENÊUTICA JURÍDICA E LITERATURA...................................................................... 42
3.1. UM PANORAMA DO ESTUDO DIREITO E LITERATURA: NARRATIVAS QUE
HUMANIZAM O DIREITO(?) ..................................................................................................... 49
3.1.1. A experiênica estadunidense ............................................................................................... 50
3.1.2. A experiência européia........................................................................................................ 64
3.1.3 Direito e literatura em terras Brasileiras ............................................................................ 74
3.2. MÚSICA, LITERATURA E A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO .......... 77
3.3. O “ACESSO HERMENÊUTICO” E A OITIVA DA LINGUAGEM ................................. 87
3.4. A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO ......... 91
4. A IMBRICAÇÃO DIREITO E MÚSICA NA PRIVILEGIADA EXPERIÊNCIA
BRASILEIRA ...................................................................................................................................... 95
4.1. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM DIVISOR DE
ÁGUAS ............................................................................................................................................. 96
4.2. 1964 A 1988: CAMINHANDO E CANTANDO RUMO À DEMOCRACIA ................... 101
4.2.1. Prelúdio: de 13 a 31 de março de 1964 ............................................................................ 102
4.2.2. De 1º de abril de 1964 a outubro de 1988: um olhar pela fenda mais originária da
pesquisa e do conhecimento ........................................................................................................ 104
4.3. O “AMANHECER” DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ ....................................................... 158
4.4. OS VERSOS DESTA NARRATIVA: UMA CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA ........ 171
5. CONCLUSÕES SOBRE A NOVA PERSPECTIVA NA RELAÇÃO DIREITO E
LITERATURA .................................................................................................................................. 178
5.1 DA POSSIBILIDADE DE SE “CANTAR” AS TRANFORMAÇÕES DO DIREITO ..... 179
5.2 DO CONTRIBUTO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E À COMPREENSÃO DA
MATERIALIDADE PRINCIPIOLÓGICA CONSTITUCIONAL .......................................... 182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................ 185
OUTRAS REFERÊNCIAS............................................................................................................... 191
10

NOTA DO AUTOR

Se é certo dizer que livros são cartas (apenas mais longas) dirigidas a amigos, então,
ao escrever este trabalho em diálogo com poetas, filósofos, professores, compositores e juristas,
minha intenção não é outra senão explicitar tudo aquilo que compreendi a partir desta interação
“platónica”, proporcionada pelo lançar palavras ao futuro e a desconhecidos, como todos eles
fizeram e agora tenho a honra de também fazê-lo. Isto é, de tomar parte nesta cadeia dialogal
entre amigos no tempo.
O tema escolhido para tanto, como parece natural que o seja, reúne dois dos assuntos
que despertam de maior forma minha ainda embrionária jornada acadêmica: a Crítica
Hermenêutica do Direito (enraizada na hermenêutica filosófica gadameriana) e a imbricação
entre o Direito e a Literatura.
As possibilidades emancipadoras deste círculo virtuoso (de um lado a estruturação do
pensar calcado na hermenêutica filosófica; de outro, a “inovação” decorrente da união direito-
literatura) proporcionam uma nova compreensão do Direito como um todo, ao mesmo tempo
em que despertam a angústia intelectual por fazer ver, com maior clareza, o desvanecer das
certezas e respostas até então cridas.
11

1. INTRODUÇÃO

Dentre as várias perspectivas para se (re)pensar o Direito, aquela que o relaciona com
a Literatura apresenta uma já comprovada “humanização” do pensar-o-direito. Isto porque,
conforme observou Lenio Streck, faltam grandes narrativas no Direito, motivo pelo qual a
invasão deste pela literatura é capaz de colocar em xeque as “ficções da realidade” através da
exposição da “realidade das ficções”1.
Assim, aqueles que se debruçam sobre o estudo desta relação, podem lançar mão da
obra de Shakespeare para explicar, por exemplo, tópicos como os modelos de juiz (pela peça
“Medida por medida”); sobre cláusulas contratuais (pelo “Mercador de Veneza) e; sobre o
contrato de casamento (“A megera domada”). Inúmeras são as possibilidades, ante o poder das
metáforas, bem como as infinitas fontes literárias.
As vantagens desta imbricação são inegáveis. No entanto, ao submetê-la a um novo
olhar, é possível notar que as explicações metafóricas daí retiradas pode(ria)m ir além do atual
estado da arte. É possível tocar num ponto ainda não explorado nesta relação e que pode
enriquecer em muito as possibilidades de compreensão e explicação do Direito.
Por “ir além”, queremos apontar o deslocamento de explicações casuais, pontuais, a
respeito de institutos jurídicos variados com apoio da “literatura mundial clássica”, para a
explic(it)ação de um compreender do desenvolvimento (das transformações) do Direito, que já
se encontra desde sempre inserido na literatura (aqui compreendida também enquanto música)
local.
Dito de outra forma: pensamos ser possível uma compreensão hermenêutica do
desenrolar historial do Direito de determinada sociedade, em determinado recorte temporal, a
partir da literatura (repetimos, os textos das canções aí incluídos) à época produzida. Isto
porque, entre a vigência de determinado diploma legal e sua posterior alteração ou revogação
há um “interregno”, do qual podem vir a exsurgir determinados registros do que à época se
passou.
Estes “registros” podem vir em diferentes formas, como, por exemplo, músicas, livros,
relatos, teatros, notícias, e filmes, sendo que todas estas são capazes de levar à linguagem e nela
conservar a manifestação do ser2. Com isto, estando à disposição de “ouvi-lo” – ele, o ser –,

1
TRINDADE, André Karam, STRECK, Lenio Luiz (coordenadores). Direito e literatura: da realidade da ficção
à ficção da realidade. São Paulo. Atlas 2013. pp. 227-228.
2
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Trad. de Rubens Eduardo Frias. 2 ed. rev. São paulo.
Centauro. 2005. p. 9.
12

não parece irrazoável concluir sobre a possibilidade de se estar a escutar a linguagem e o que
se dizia quando se falava 3 sobre determinada coisa, isto é, sobre o objeto (direito) agora
observado. Ou seja: nos parece possível, em determinado período de tempo, observar um
instituto jurídico (um dispositivo constitucional, por exemplo) e investigar nas “conservações
da manifestação do ser” as condições de possibilidade para compreensão de seu
desenvolvimento no seio da história, da tradição – ou, ainda, de seu desenvolvimento no direito
local.
Dito de outra forma: há, num primeiro momento, determinado objeto jurídico provável
de ter sido descrito pela literatura (novamente, aqui também entendidos os textos de canções) e
que, posteriormente, tenha passado por modificações. Assim, poder-se-ia verificar sua
existência prévia (como no exemplo de um dispositivo constitucional); o que se foi falado sobre
ele na literatura e; finalmente, o que o mencionado objeto jurídico passou (ou não) a ser.
Em vista disso, parece cabível, através deste “procurar na linguagem”, a construção de
uma narrativa a respeito do que o objeto observado veio a ser, passando pelo que se falou sobre
ele enquanto ainda era o que já não é mais e, sobretudo, pela identificação de um vetor de
racionalidade que se tenha registrado nesta transformação.
Para ilustrar a reflexão acima levantada, lançamos mão do exemplo privilegiado do
princípio constitucional da liberdade de expressão, cuja previsão como direito fundamental está
contida na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Todavia, nem sempre foi
desta maneira, visto que a partir da ascensão dos militares ao poder em abril de 1964 e do ato
institucional nº 5 a livre manifestação do pensamento passou a sofrer fortes restrições. Eis então,
o lapso temporal a ser analisado nos moldes aqui propostos.
É neste ponto, especificamente, que a relação direito-literatura tem muito a se
beneficiar da relação sugerida entre direito-música (da forma aqui trabalhada). Sobremodo
quanto à questão levantada a respeito de “explicações casuais” a partir de clássicos da literatura,
bem como quanto às vantagens de se deslocar parte desta análise à concretude da literatura local
(música, em especial), conjugada com aspectos jurídico-políticos, em prol do desvelamento de
vetores de racionalidade que possam apontar “a direção” tomada pelo Direito em sua marcha
na temporalidade (em seu desenrolar historial).
Em suma, é aqui que a construção de narrativas, oriundas dos estudos de direito e
literatura, voltadas à humanização do compreender o direito pode se beneficiar em maior grau
pelo que se está a sustentar. Ou seja, a “realidade das ficções” pode, além de auxiliar à

3
A expressão é de Castanheira neves. Cfr: CASTANHEIRA NEVES, Antônio. Metodologia jurídica: problemas
fundamentais.Coimbra. Coimbra Editora. 1993. p. 89.
13

explicação do Direito, servir para compreensão das “ficções da realidade” do próprio Direito.
É dizer, a literatura é capaz de possibilitar o “acesso hermenêutico”4 à “dimensão interpretativa
do direito”5, na qual podem ser compreendidas suas próprias transformações.
Com base no exposto, o empreendimento teórico que se segue busca pensar as
possibilidades de se acrescer ao estudo direito-literatura a relação direito-música-literatura e a
consequência positiva daí originada é demonstrada através da observação da sociedade
brasileira nos períodos de 1964 a 1988 e 1988 a 2016. Com isto, lançam-se as bases de uma
nova perspectiva dentro do movimento Direito e Literatura, em busca de uma compreensão das
transformações do Direito. Por tais razões, o título desse trabalho poderia conter o subtítulo
“Hermenêutica jurídica, música e literatura”, mas, no entanto, optamos pela manutenção de
uma frase objetiva e sem interrupções.

4
LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência: análise de uma recepção. Lisboa. Fragmentos. 1990. p. 87.
5
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed.
rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2014., p. 398.
14

2. A CAMINHO DE UMA FILOSOFIA DA CONSTITUCIONALIDADE

Este estudo preocupa-se em realizar uma nova abordagem ao movimento que relaciona
direito e literatura, com foco na abertura de novos caminhos para a compreensão do fênomeno
que é o Direito. Em especial, quanto à compreensão de seu desenrolar historial.
Para tanto, agarra-se ao ferramental proporcionado pela Crítica Hermenêutica do
Direito (CHD), matriz teórica de cunho pós-positivista, cuja preocupação primeira é inserir o
pensar-o-direito no pensar filosófico, pois afirma que o Direito somente é pensado a partir de
paradigmas filosóficos. Isto importa na estruturação adequada do pensar pela (cons)ciência de
que ele não está à parte da filosofia.
Se faz, assim, filosofia no Direito, pois a CHD é construída a partir da imbricação de
aportes teóricos de autores diversos e tem seu tripé de sustentação assentado numa espécie de
antropofagia entre a fenomenologia hermenêutica Heideggeriana, a hermenêutica filosófica
Gadameriana e de contribuições advindas da teoria integrativa de Dworkin.
Seu tronco teórico a permite pensar o Direito enquanto produto de uma sociedade sempre
em movimento (refém da temporalidade e suas consequências), de forma que a tradição e a
consciência histórica tornam-se indissociáveis da interpretação e configuram – no paradigma
da intersubjetividade – grau de constrangimento epistemológico no tocante à construção dos
sentidos. Vale mencionar que reside aqui o cerne da batalha da CHD contra o solipsismo, o
voluntarismo e a discricionariedade judicial.
Este permitir-pensar-o-Direito acima afirmado não significa outra coisa além de que ela,
a CHD, é uma estruturação própria do pensar-o-Direito. Isto significa que não se “aplica” a
Crítica Hermenêutica do Direito a um problema ou caso concreto específico. Não se trata de
uma técnica de interpretação, pois. Assim agir, seria torná-la uma mera racionalidade
instrumental e trair sua sustentação filosófica. Ela é, portanto, uma ratio estruturante, um
standard de racionalidade6, a partir da qual o fênomeno jurídico pode ser pensado. É, assim,
sob esse aporte teórico que este trabalho desenvolve uma nova abordagem da relação direito-
literatura e analisa algumas das possíveis consequências daí oriundas.
Merece destaque, desde logo, que tal matriz teórica, enraizada no paradigma
fenomenológico hermenêutico, nos fornece a compreensão como uma totalidade ao trazer “a
linguagem como modo de acesso às coisas e ao mundo”7, pela consciência de que desde sempre

6
STEIN, Ernildo. Exercícios de fenomenologia. Ijuí: Unijuí. 2014. p. 161.
7
Idem. Novos caminhos para uma filosofia da constitucionalidade. In: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição
constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2014. p. 13.
15

já estamos inseridos numa relação de compreensão com estes. Esta relação, por sua vez, está
envolvida numa rede antecipadora de pré-compreensão que, no caso específico do proceder no
Direito, refere-se à pré-compreensão do sentido de presença da Constituição a guiar a atividade
de todos que operam com o Direito8. Consequência direta disto é o maior grau de autonomia
proporcionado à Constituição.
É justamente por isto, por este maior grau de autonomia, que o filósofo Brasileiro Ernildo
Stein afirma que a Crítica Hermenêutica do Direito acrescenta à dogmática jurídica uma
compreensão dilatada do que significa o acontecer da Constituição, fazendo-a irradiar sobre
todo o sistema jurídico – o que faz despontar a necessidade de se revisar tanto a teoria das fontes
quanto a teoria das normas no direito Brasileiro. Esse acréscimo representa, conforme
assinalado por Stein, novos caminhos para uma filosofia da constitucionalidade9.
Assumidos os riscos da simplificação neste breve adiantamento sobre algumas
características da CHD, passemos agora à explanação de sua sustentação filosófica, a fim de
lançar as bases para um maior detalhamento de como se dá o pensar por ela estruturado e
demonstrar sua importância para o êxito do proposto nos demais capítulos (como, por exemplo,
sua relação para com o vetor de racionalidade a ser procurado no desenrolar historial do
princípio da liberdade de expressão no Brasil). Em outras palavras, trata-se de fazer aquilo que
o crítico literário americano Harold Bloom denomina por desleitura, ou seja, o ato de leitura
capaz de realizar a desapropriação das influências que um texto tem em outro10. O que se busca,
desta forma, é apontar o enraizamento filosófico da própria CHD a partir da exposição do
paradigma fenomenológico hermenêutico.
Para tanto, é indispensável a realização de uma “justificação operatória”11 dos conceitos
filosóficos adiante utilizados, de forma a demonstrar a coerência interna no uso dos mesmos,
bem como para estabelecer um todo articulado operatoriamente que possibilite compreender a
coesão deste filosofar no direito. Este primeiro capítulo é, então, uma “prestação de contas
histórico-conceitual”12 dos temas fundamentais à Crítica Hermenêutica do Direito, a qual é,
conforme acima afirmado, o standard de racionalidade a sustentar este estudo.

8
STEIN, Novos caminhos..., op. cit., pp. 14-15.
9
Idem, pp. 09-17.
10
BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Trad. de Thelma Médici Nóbrega; Tradução do prefácio de Marcos
Santarrita. Rio de Janeiro. Imago editora. 2003. p. 23.
11
A expressão é de Ernildo Stein, cfr: STEIN, Ernildo. Mundo Vivido: das vicissitudes e dos usos de um conceito
da fenomenologia. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2004. p. 99.
12
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 2012. p. 100.
16

2.1. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO “MÉTODO” FENOMENOLÓGICO13

A escrita da palavra método entre aspas sinaliza o cuidado que se deve ter na
abordagem da fenomenologia, em especial no tocante àquela desenvolvida por Martin
Heidegger. O filósofo alemão, que foi aluno de E. Husserl, abalou o pensamento filosófico na
europa continental nos anos 20 e 30 do século passado com seminários e preleções inovadoras,
bem como com a publicação do tratado Ser e Tempo, obra na qual aponta a história do
esquecimento do ser e indica a necessidade de uma ontologia fundamental.
A importância de Heidegger para a (história da) filosofia já pôde ser, de certo modo,
experimentada ante a proliferação do debate em torno de seus escritos – hoje reunidos em cem
volumes na língua original. No entanto, estamos ainda no início do pensamento que pode ser
desenvolvido na era “pós-Heidegger”, pois a envergadura de sua obra é demasiadamente grave
para que se afiram, desde logo, todas as consequências que podem dali ser retiradas.
Parafraseando em certa medida o filósofo alemão Peter Sloterdjik, podemos indagar: quem teria
fôlego suficiente para imaginar uma época do mundo em que Heidegger será tão histórico como
Platão o era para Heidegger?14
Característica importante da escrita Heideggeriana é a cautela gramatical, bem como
a minuciosa atenção dada aos significados que o autor pretendia alcançar, de modo que palavras
de uso comum ganhassem significados específicos – por vezes de uso incomum – dentro da
filosofia por ele desenvolvida. Esta cautela conceitual há de guiar as explicações que se seguem
a respeito da fenomenologia no modo em que pensada pelo filósofo de Messkirch.
Ser e Tempo busca recolocar a questão sobre o sentido do ser no centro do pensar
filosófico e o faz tendo o tempo “como o horizonte possível de toda e qualquer compreensão
do ser”15. Este “recolocar” significa, em Heidegger, a revisão dessa questão fundamental da
filosofia com a concomitante atribuição de um novo fundamento. É possível contextualizar

13
As considerações adiantes realizadas a respeito da fenomenologia Heideggeriana serão restritas à apresentação
dos conceitos fundamentais para o paradigma de racionalidade que guia o desenvolvimento deste estudo. É
imperioso reforçar desde logo que a Crítica Hermenêutica do Direito (doravante trabalhada no item 2.2) tem suas
raízes no paradigma hermenêutico apresentado por Heidegger, motivo pelo qual este item 2.1 é uma introdução
aos pontos que sustentam a CHD e não uma apresentação sistemática do que foi introduzido por Heidegger no
debate filosófico no século passado. Os conceitos fundamentais ora apresentados serão retrabalhados no item 2.2,
já no interior da matriz teórica que guia essa investigação, de forma a se compreender sua transposição da filosofia
para o filosofar no e sobre o direito.
14
Sloterdjik indaga a respeito de Nietzsche e não de Heidegger. SLOTERDJIK, Peter. Regras para o parque
humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques.
São Paulo. Estação Liberdade. 2000. p. 46.
15
Heidegger, Martin. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Márcia de Sá Cavalcante. 10 ed.
Petrópolis. RJ. Vozes. Bragança Paulista. SP. Editora Universitária São Francisco. 2015. 2ª reimpressão.
Novembro/2016. p. 34.
17

historicamente a publicação de Ser e Tempo trazendo à colação a primeira oração do §1º da


obra, na qual o filósofo afirma que a questão por ele evocada (o sentido do ser) havia caído “no
esquecimento” no interior da metafísica16.
O tratado é dividido em duas partes, cada qual correspondente a uma tarefa específica
na (re)elaboração da questão do ser e ambas são divididas em três secções. Esta é a organização
da empreitada Heideggeriana: 1ª parte: A interpretação do Dasein17 pela temporalidade e a
explicação do tempo como horizonte transcendental da questão do ser; 1ª secção: Análise
preparatória dos fundamentos do ser-aí; 2ª secção: Dasein e temporalidade; 3ª secção: Tempo
e ser; 2ª parte: Linhas fundamentais de uma destruição fenomenológica da história da ontologia
seguindo-se o fio condutor da problemática da temporaneidade; 1ª secção: A doutrina kantiana
do esquematismo e do tempo como estágio preliminar da problemática da temporalidade; 2ª
secção: O fundamento ontológico do “cogito sum”, de Descartes, e a introdução da ontologia
medieval na problemática da “res cogitans”; 3 secção: O tratado de Aristóteles sobre o tempo
como critério de discriminação da base fenomenal e dos limites da antiga ontologia.
Não obstante a divisão acima detalhada, o tratado contém apenas as duas primeiras
secções da primeira parte e isto foi suficiente para introduzir no debate filosófico sua
fenomenologia hermenêutica na interrogação pelo sentido do ser. Trata-se, no entanto, da
introdução de uma dupla ontologia fundamental, pois Heidegger alerta que uma ontologia do
ser há de depender de uma ontologia do ser-aí, ou seja, uma ontologia do ente que se
compreende enquanto ser a operar previamente com um conceito de ser. Assim sendo, essa

16
Idem, ibidem, p. 37
17
Ante a mencionada cautela gramatical e atenção aos significados das palavras, na filosofia Heideggeriana a
palavra Dasein passa a indicar aquele ente que compreende o ser por compreender prévia e implícitamente o seu
próprio ser. Este uso específico da palavra Dasein não exprime o conceito de “existência” como outrora o fazia a
tradição metafísica e isto dificulta sua tradução. Em Itália e França, por exemplo, é comum encontrar as expressões
“esserci” e “être-là”, respectivamente. Já no português, se encontram comumente as expressões “ser-aí”, “pré-
sença” e “presença”. A edição de Ser e Tempo utilizada para este estudo traduz Dasein como “presença”,
entretanto, para evitar possíveis deslizes na compreensão do uso Heideggeriano desse conceito (já que a palavra
presença é também utilizada, em outro sentido, na descrição do ser pela metafísica tradicional) optamos por utilizar
ser-aí e Dasein apenas. Embora Marcia Sá Cavalcante, tradutora e revisora da edição em português aqui utilizada,
afirmar que a tradução de Dasein como ser-aí traz a “desvantagem absoluta” de conferir “localidades e
determinaçoes espaciais” ante a presença do termo “aí”, nos parece ser suficiente para evitar os deslizes
interpretativos temidos preservar a forma infinitiva de “ser” (sein) e interpretar “aí” (da) como aí-na-abertura-da-
experiência-originária que possibilita pensar o ser a partir da problemática da experiência da finitude do tempo.
Sobre a tradução de Dasein na edição Brasileira, cfr: SCHUBACK, Márcia de Sá Cavalcante. A perplexidade da
presença. In: HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 15-32 e 561-562. As traduções em italiano e francês por
vezes consultadas em comparação à brasileira são: Heidegger, Martin. Essere e tempo. Traduzione di Pietro Chiodi
condotta sull’undicesima edizione. Longanezi & Co. Milano. 1976. Já a tradução francesa, embora mencione être-
là como tradução aproximada de Dasein, optou por não traduzi-lo, mantendo-o na língua original. Cfr: Idem, Être
et temps. Traduction par Emmanuel Martineau. Édition numérique hors-commérce. 1985.
18

dupla ontologia é “condição de possibilidade de toda e qualquer ontologia”18 – eis o porquê


adjetivada como fundamental. Dentre todos os entes Heidegger volta sua análise para o único
que existe e que compreende o ser por já operar de antemão com a compreensão implícita de
seu próprio ser. Este ente-que-compreende-o-ser-por-compreender-o-seu-próprio-ser é o
homem19.
Isto significa que dentre todos os entes, o homem é aquele que existe e, conforme
afirma o filósofo, os demais subsistem20. É o homem, ainda, o único ente cujo modo de ser
pressupõe uma visualização preliminar do ser, pois seu próprio modo de ser implica a
possibilidade de questionar sobre o ser e seu sentido 21 . A este ente – e somente a este –
Heidegger reserva o conceito de Dasein22.
Dessa forma, a investigação sobre o sentido do ser, pensada através dessa (dupla)
ontologia fundamental, tem sua estrutura calcada no primado ontológico e no primado ôntico
da questão do ser. Em outras palavras: o primado ontológico caracteriza-se pela busca das
“condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e formam as ciências
ônticas”. Ou seja, as ciências que buscam pensar “os entes em suas entidades” 23 já operam de
antemão com uma compreensão do ser – é esta a compreensão que está em jogo na investigação
do filósofo. Já o primado ôntico, caracteriza-se pela compreensão que o ser-aí tem de si a partir
de sua existência, porque compreende a si em seu ser, ou seja, se compreende sendo24.
Em sendo o ser-aí se relaciona com os entes intramundanos (subsistentes) e isso
implica em ser-em-um-mundo. Logo, a compreensão do ser-aí sobre o ser implica na
compreensão de um conceito prévio de “mundo”, dentro do qual o ser dos entes com os quais
se relaciona torna-se passível de compreensão. Ou, nas palavras do filósofo alemão, a
compreensão de ser, própria do Dasein, “inclui, de maneira igualmente originária, a
compreensão de <<mundo>> e a compreensão do ser dos entes que se tornam acessíveis dentro
do mundo”25.

18
STEIN, Ernildo. Uma breve introdução à filosofia. 2 ed. Ijuí. Editora Unijuí. 2005, p. 89. Heidegger afirma que
a “questão do ser visa às condições de possibilidade das próprias ontologias que antecedem e fundam as ciências
ônticas.” Cfr: HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 47.
19
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 42-43.
20
Com Jean Grondin, podemos afirmar que a hermenêutica em Heidegger é a “hermenêutica da existência”, pois
retira o manto que encobre a ex-sistência do homem ao pensar o ser e dar-se conta de sua manifestação enquanto
ente que é. Cfr: GRONDIN, Jean. Hermenêutica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo. Parábola. 2012. pp. 9-15
e capítulos 3 e 5.
21
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 42-43.
22
Conforme esclarecimento feito à nota nº 17.
23
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 47.
24
Idem, ibidem, p. 48.
25
Ibidem, p. 49.
19

Em sua fenomenologia, portanto, Heidegger busca pensar como se dá o ser do ente e,


para tanto, deve pensar primeiro como se dá o ser do homem – que é o ente privilegiado que
proporciona o âmbito para se pensar o ser. Com apoio nas lições de Ernildo Stein, podemos
definir tal âmbito como “a abertura originária do ser-aí enquanto ser-no-mundo”, pois é
justamente no ser-aí que “se abre a possibilidade de qualquer encontro”26.
Como consequência dessa estrutura existencial, o ser-aí possui um “primado múltiplo”
em relação aos outros entes. Trata-se de um primado ontológico, ôntico e ôntico-ontológico,
pois: a) Dasein importa em um ente determinado pela sua existência; b) a qual é fruto da
compreensão da relação de seu ser para com o ser dos entes que não possuem seu modo de ser,
ou seja, dos entes que subsistem e; c) via de consequência, o ser-aí configura a “condição ôntico-
ontológica da possibilidade de todas as ontologias”27.
Na fenomenologia Heideggeriana, portanto, o ser-aí é o primado da investigação sobre
o ser. Se inquire o ser-aí sobre o ser, pois ele já o pressupôs ao compreender-se, ou seja, o ser-
aí opera com uma compreensão pré-ontológica de ser. Stein afirma que em Ser e Tempo, “a
pergunta pelo sentido do ser e a pergunta pela abertura do ser-aí coincidem”, de forma que “o
sentido do ser e a facticidade do ser-aí tornam-se inseparáveis como problemas”28.
Isso significa que a ontologia fundamental é realizada a partir de uma análise do modo
da existência do ser-aí, enquanto investigação do sentido do ser que tem como como horizonte
de problematização a distinção entre ser e ente, isto é, a diferença ontológica29. Não há abertura
para compreensão do ser fora dessa diferença, pois o ser é sempre o ser de um ente 30. E o ente
só é em seu ser. Trata-se, portanto, de uma analítica existencial do ser-aí.
Com isso, Stein afirma que Heidegger opera uma espécie de “encurtamento
hermenêutico”, excluindo de sua filosofia tudo o que não seja voltado à compreensão do modo
de ser do ser-aí, isto é, à existência do ser humano31.
A supramencionada lição de Stein esclarece a afirmação de Heidegger de que essa
analítica existencial “fica totalmente orientada para a tarefa que guia a elaboração da questão
do ser”, pois justamente por ter como horizonte de sua investigação a diferença ontológica, é
que então a pergunta sobre o sentido do ser tem “o tempo como horizonte de toda compreensão

26
STEIN, Uma breve introdução..., op. cit., p. 92, itálico no original.
27
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., pp. 49-57.
28
STEIN, Uma breve introdução..., op. cit., p. 93.
29
Idem, ibidem, p. 86.
30
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 44.
31
STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí. Unijuí. 2014. pp. 42-44.
20

e interpretação do ser”32. E esse tempo é conceituado a partir da temporalidade do ser do ser-


aí33, ou seja, do homem e seu tempo. Está ligada ao tempo humano. À finitude34.
Afirmar o tempo como horizonte da compreensão e interpretação do ser é afirmar que
o tempo é o horizonte de sentido do ser. E com a analítica do ser-aí como horizonte da
problematização da diferença ontológica, atinge-se o fio condutor da investigação
Heideggeriana pelo sentido do ser: ao dar conta de si, o homem compreende o ser e o mundo
em que está inserido e enquanto compreende estes, compreende também a si, configurando um
círculo hermenêutico (a palavra “círculo”, aqui, representa a circularidade da compreensão
neste compreender-a-si-enquanto-compreende-o-mundo; enquanto “hermenêutico” tem o
sentido originário do “ofício de interpretar”35).
Isto é, ser-no-mundo é uma constituição a priori do ser-aí, a determinar
existencialmente sua relação com o mundo que o constitui36, pois a compreensão pertence ao
ser do que se compreende, ou seja, do que compreende porque se compreende a si mesmo 37.
Dito de outra forma: o homem “é” porque compreende e esta compreensão ontológica é seu
modo de ser no mundo 38 . Nessa constituição da analítica existencial, a palavra “é” não é
utilizada apenas enquanto cópula (enquanto verbo copulativo), mas sim em uma dimensão
veritativa que ultrapassa a superfície puramente enunciativa.
Esta concepção pré-ontológica de ser antecipa a compreensão que o ser-aí tem de si e
do mundo em que está inserido. É esta, pois, a pré-compreensão apontada por Heidegger39 e
que caracteriza a estrutura ontológica do Dasein40, a qual se revela na temporalidade41.

32
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., pp. 54-55.
33
Idem, ibidem, p. 55.
34
STEIN, Uma breve introdução..., op. cit., p. 187.
35
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 77.
36
Sobre o conceito preliminar de mundo em Heidegger, cf: HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 98-106.
37
“En este sentido vale para todos los casos que el que comprende se comprende, se proyecta a sí mismo hacia
posibilidades de sí mismo.” GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. Vol 1. Tradujeron por Ana Agud
Aparicio y Rafael de Agapito. Salamanca. Ediciones Sígueme. 1996. p. 326.
38
STEIN, Uma breve introdução..., op. cit., p. 104. Stein ensina, ainda, que a analítica existencial descreve
fenomenologicamente os modos de ser do Dasein, visando um duplo objetivo, a saber, a compreensão da estrutura
compreensiva do Dasein e a aproximação da compreensão do ser. Isso só é possível, no entanto, pois o conceito
de ser é um projeto do ser-aí, o que significa que o homem necessita do ser para pensar os entes. Essa é a
caracterização do conceito do ser como operativo, pragmático e essencial à fenomenologia engendrada por
Heidegger. Não fosse por isso, o pensar-o-ser estaria ainda refém do encobrimento metafísico e necessitando de
um fundamento último. Cfr: STEIN, Ernildo; FANTON, Marcos. Pensar e errar: um ajuste com Heidegger.
Existência em Heidegger e Tugendhat. 2ª ed. Ijuí. Ed. Unijuí. 2015. p. 63.
39
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 202-209.
40
“É nesse sentido que Heidegger vai dizer que toda interpretação que se segue à compreensão precisa ter já
compreendido o que vai expor. É isso que se denomina de círculo da compreensão e interpretação.” STRECK,
Lenio Luiz. Diferença ontológica entre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo, op.cit., p.82. Sobre
compreensão e interpretação em Heidegger, cfr: HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., pp. 209-215.
41
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 57.
21

Este revelar-na-temporalidade está ligado ao modo de ser do ser-aí, que é sempre a


partir de seu passado que antecipa-lhe seus passos, de modo que sua compreensão do ser –
advinda da compreensão e interpretação de si – é herdada da tradição enquanto historicidade.
Historicidade essa que determina e constitui o ser-aí em sua fatualidade historiográfica42, a qual
se desenrola nas três dimensões da estrutura temporal do ser-aí: “ser-adiante-de-si (existência),
já-ser-em (faticidade), junto-das-coisas (decaída), ou seja, futuro, passado e presente”43. Eis o
tempo como horizonte da compreensão e interpretação do ser.
Essa descrição introdutiva do objeto temático da investigação Heideggeriana,
realizada até o momento, acabou também por sutilmente delinear seu método de investigação.
Todavia, a explicação do modo de proceder com que tal método opera em Ser e Tempo (e na
produção posterior do filósofo) há de depender do significado preliminar de fenomenologia
encontrado no §7º da obra em questão: “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mOstra,
tal como se mOstra a partir de si mesmo”44.
O que se mOstra, ao deixar e fazer ver por si e a partir de si mesmo é o ser dos entes,
cuja possibilidade de compreensão surge da abertura originária do ser-aí enquanto ser-no-
mundo. É dessa abertura proporcionada pela ontologia fundamental do ser-aí-no-mundo que se
torna possível deixar e fazer ver “aquilo que se mOstra em si mesmo”45 – eis o conceito formal
de fenômeno na fenomenologia Heideggeriana.
O fenômeno, portanto, que se mOstra em si mesmo e se permite ver e fazer ver a partir
de si mesmo, somente pode ser compreendido fenomenológicamente, ou seja, a partir da
demonstração e explicação que vai ao encontro daquilo que se deixa ver na abertura originária
possibilitada pela analítica existencial do ser-aí. É dizer, portanto, que a fenomenologia é a
ciência do ser dos entes, por possibilitar a abertura da compreensão que permite partir “para as
coisas elas mesmas” 46 no modo em que se manifestam. Afinal, trata-se de um método
fenomenológico que busca apreender o ente no seu ser.
Do mesmo modo em que, conforme lição já mencionada de Ernildo Stein, “a pergunta
pelo sentido do ser e a pergunta pela abertura do ser-aí coincidem” (o que assegura a
inseparabilidade da questão do sentido do ser “da facticidade do ser-aí” 47 ), ontologia e

42
Idem, ibidem, pp. 57-58.
43
STEIN, Pensar e errar..., op. cit., p. 56. STEIN, Mundo vivido..., op. cit., p. 148.
44
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 74.
45
Idem, ibidem, p. 70.
46
Idem, ibidem, p. 67.
47
Conforme nota de rodapé nº xxxxxx.
22

fenomenologia não são disciplinas separadas no seio da filosofia. São, segundo Heidegger, a
caracterização da própria filosofia em seu objeto e em seu modo de tratá-lo.
O filósofo vai ainda mais longe e passa a afirmar que a filosofia é, então, “uma
ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica da presença, a qual, enquanto
analítica da existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele
brota e para onde retorna”48. O item que se segue é justamente sobre esse lugar, no qual o
questionamento filosófico é capaz de ir e vir ao encontro dos fenômenos na abertura originária
proporcionada pela hermenêutica da factidade do ser-aí – ser esse que é no mundo.

2.1.1 Sobre o conceito de mundo na fenomenologia Heideggeriana49

Acima foi afirmado que a expressão “ser-no-mundo” está a indicar que o ser-aí tem
um modo de ser que, em sendo, já está a se relacionar com seu ser numa estrutura compreensiva.
Tal afirmativa demonstra que o ser-aí existe, o que nos serve, portanto, como um conceito
formal de existência. Demonstra, ainda que implicitamente, que o ser-no-mundo é uma
constituição necessária a priori do ser-aí, representando uma unidade dos conceitos ser-em e
ser-no-mundo, de forma que o em abarque tanto ser-em-um-mundo quanto ser-junto ao
mundo50.
Ser-em enquanto constituição ontológica do ser-aí é um existencial, razão pela qual
ser-em não contém dimensões espaciais apenas, pois em tem um significado que vai além de
um mero “estar dentro de algo”. Esse “em” importa no morar em e junto (em um mundo e junto
a um mundo, respectivamente), de forma que o ser-em pertence ao ente que é, que existe. Com
isso o filósofo afirma que o ser-em é a expressão formal e existencial do ser do ser-aí que possui
a “constituição essencial de ser-no-mundo”51.

48
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 78. Conforme afirmado na nota nº xxxxx, a tradução Brasileira utilizada
refere-se a Dasein como presença.No entanto, por motivo de cautela, optamos por ressaltar que onde lê-se
“presença” na citação ora em voga, leia-se “ser-aí”.
49
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., pp. 59-168. Não desconhecemos a origem do termo Lebenswelt, traduzido para
o português como “mundo vivido”, introduzido por Husserl à sua fenomenologia transcedental e posteriormente
criticado por Heidegger. Ocorre que a apresentação dos distintos modos de filosofar, bem como a distinção entre
os conceitos de Lebenswelt husserliano e de In-der-Welt-seins Heideggeriano, demandaria certamente um capítulo
de tese específico a respeito do tema. Todavia, tais explicações representariam um desvio no caminho teórico aqui
proposto, motivo pelo qual o item ora trabalhado apenas introduz o conceito preliminar de mundo em Heidegger,
em especial a partir da definição oferecida em Ser e Tempo, pois essencial à conexão do método fenomenológico
hermenêutico apresentado à Crítica Hermenêutica do Direito – trabalhada no item 2.2 e que serve de fio condutor
das considerações realizadas sobre o movimento Direito e Literatura nos capítulos posteriores.
50
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., pp. 98-100. Da mencionada “unidade” surge a possibilidade de se indagar
a respeito da estrutura ontológica do conceito de mundo em Heidegger, no entanto, por motivos de delimitação do
estudo aqui realizado, tal tema não deve ser desenvolvido. Nos contemos à apresentação do conceito preliminar
de mundo pelos motivos acima elencados.
51
Idem, ibidem, p. 100, itálico no original.
23

Em sendo o homem o ente privilegiado que compreende o ser por operar previamente
com a compreensão implícita de seu próprio ser, este mundo – no qual o ser-aí é em – já implica
desde sempre uma revelação do que o homem mesmo é. Ou ainda, uma revelação52 do que nós
somos enquanto seres que (se) compreendem (n)o mundo junto aos demais entes
intramundanos. Esta revelação, também permite ver, encontrar e conhecer esses “outros entes”
porque eles “conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um mundo”53. Este é o mundo
possível de ser conhecido através da abertura originária do ser-aí. Melhor dizendo: esse mundo
é a condição de possibilidade de todas as significações e significados, pois é justamente nele
que se articulam os fenômenos que podem ser compreendidos e conhecidos.
Ernildo Stein, atento à ruptura paradigmática causada por Heidegger na filosofia,
ensina que esse conceito de mundo “é fundamental no sentido em que aí está o reduto último
da nossa racionalidade; é ali que termina qualquer interrogação, porque para trás disso não há
como chegar”54. Não é possível ir para trás desse mundo, justamente porque é dali que o ser-
no-mundo faz brotar os sentidos pela concretude de sua existência. Dessa última afirmativa é
imperioso destacar a conceituação provisória de: i) mundo como aquilo de onde brota o sentido;
ii) ser-no-mundo como ente que, ao existir (falar, agir, interagir, pertencer), faz brotar sentidos
por toda a parte55.
Isso tudo significa que o ser-aí, o Dasein, não é apenas o homem enquanto ser humano
existente, mas sim a descrição da estrutura que justifica tanto o porque o homem pode ser
pensado quanto porque pode ser pensada a realidade. É a tentativa Heideggeriana de encontrar
a possibilidade de discursar sobre a razão e sobre a realidade a partir de uma ontologia –
adjetivada de fundamental por possibilitar tal empreitada56.
Isso somente é possível, pois Heidegger antecipa o conceito de mundo à relação do
homem com os entes intramundanos, proporcionando, portanto, o onde e o como os fênomenos
ocorrem, isto é, onde tal relação encontra sua condição de possibilidade. Seu fundamento. É
por isso que o filósofo pode afirmar que “o conhecer em si mesmo se funda num já-ser-junto-
ao-mundo”, no qual o ser do ser-aí se constitui de modo essencial, porque conhecer é um modo
de ser do ser-aí enquanto ser-no-mundo57. E esse modo de ser é ligado à compreensão. É um
modo de ser hermenêutico.

52
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., p. 69.
53
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 104.
54
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., p. 55.
55
Idem, ibidem, p. 55.
56
Idem, ibidem, pp. 134-135,
57
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 107-108.
24

Esse modo de ser, entretanto, atrelado à facticidade do ser-aí, constitui uma


hermenêutica da factidade como interpretação ontológica de si mesma. Isso o filósofo define
como “uma hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade” do ser-aí “como
condição ôntica de possibilidade da história fatual”58. Essa condição ôntica de possibilidade da
história fatual tem sua concretude enraizada no mundo em que o ser-aí é. E justamente porque
nos compreendemos hermeneuticamente a partir deste mundo é que podemos afirmar que o
conceito de mundo Heideggeriano já traz em si uma dimensão prática, pois é o “modo de ser e
a condição de possibilidade de ser da própria existência humana”59.
O que se tenta fazer ver aqui é que Heidegger pressupõe uma espécie de estrutura
antecipatória dos significados, que deve ser descoberta pela hermenêutica da facticidade – a
analítica existencial do Dasein – e que, por estar imersa na temporalidade, nas três dimensões
da estrutura temporal do ser-aí60, resta preservada a dimensão de um horizonte a ser ainda
sempre conquistado, seja em direção ao passado ou ao futuro61. A introdução do tempo como
horizonte de compreensão do ser, assegura o conceito de mundo como condição de
possibilidade. De mundo possível.
Esse mundo entendido como condição de possibilidade que não limita o horizonte de
compreensão à dimensão meramente empírica (ante sua inserção no horizonte da
temporalidade) permite Heidegger afirmar, ao fim do §7º de Ser e Tempo, que acima da
realidade está a possibilidade. E que a “compreensão da fenomenologia depende unicamente
de se apreendê-la como possibilidade”62.
É esse mundo como condição de possibilidade que fundamenta o pensar filosófico,
que busca ir para as coisas elas mesmas63, sempre a caminho da compreensão dos fenômenos
no sentido fenomenológico, ciente de que “atrás” dos fenômenos da fenomenologia não há
absolutamente nada 64 . E é nesse método fenomenológico que este trabalho se fundamenta.
Vejamos, pois, como é a transposição desse filosofar para o filosofar no direito.

58
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 78.
59
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., pp. 68 e 180.
60
Sobre ser-junto-das-coisa, já-ser-em e ser-adiante-de-si, respectivamente presente, passado e futuro, ver nota
nº 43.
61
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., pp. 168.
62
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 78.
63
Idem, ibidem, p. 74.
64
Ibidem, p. 75. Ver nota 54.
25

2.2. AS GRANDES LINHAS DE UMA HERMENÊUTICA JURÍDICO-FILOSÓFICA

Inicialmente denominada de Nova Crítica do Direito, a Crítica Hermenêutica do Direito


iniciou-se como a busca pelo ferramental necessário à interpretação do Direito fora do
paradigma em que inserida a hermenêutica jurídica tradicional, pois as práticas interpretativas
desta são ainda refratárias à viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida
contemporaneamente65. Com isto, a interpretação jurídica ainda tenderia a ocorrer numa relação
sujeito-objeto e não sujeito-sujeito, ou seja, fora do paradigma da intersubjetividade. Este estar-
fora-do-paradigma-da-intersubjetividade condiciona a hermenêutica tradicional a pensar a
linguagem como um terceiro elemento à parte da relação intérprete (sujeito) e Direito (objeto).
Em outras palavras, a linguagem é vista como mera transportadora dos sentidos
objetificados nos textos legais à consciência do intérprete que sobre eles se debruça. Esta
objetificação importa na crença de que os sentidos estão inseridos no texto e que cabe ao
intérprete extraí-los. Mais específicamente: quando o intérprete olha para o texto legal e o tem
como algo posto, algo dado (entregue à sua compreensão), cujo sentido será alcançado através
da interpretação que parte de si (intérprete), passa pela linguagem e, por fim, alcança e
compreende o objeto (aqui, o texto legal), há a objetificação dos sentidos como se estes fossem
imóveis, imutáveis e prescindissem da facticidade e historicidade.
No entanto, por vezes, sob o pretexto de superar essa objetificação de sentidos do texto
legal, sustentado pela linguagem que é tida como um instrumento de comunicação do
conhecimento, o intérprete passa a assenhorá-la, a apoderar-se da linguagem, de forma que os
sentidos não estão mais no texto em si, mas no que aquele diz que estes são66. É a consagração
do subjetivismo e voluntarismo.
Passa-se, então, da objetificação à atribuição de sentidos pelo intérprete a partir de si – e
isto decorre deste ter-a-linguagem como uma terceira coisa entre sujeito e objeto. Esta
polaridade entre objetivismo e subjetivismo é identificada no interior da CHD como paradigma
de dupla-face (ou paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência)67: primeiro a
objetificação, de origem na metafísica clássica; depois, o subjetivismo, o voluntarismo e a
discricionariedade, identificáveis na filosofia da consciência, também denominada de
metafísica moderna.

65
STRECK, , Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2014., p. 19, itálico do autor.
66
Idem, Hermenêutica jurídica..., op. cit., pp. 117-119.
67
Ibidem, pp. 85-95.
26

A CHD busca, assim, desconstruir este paradigma metafísico-objetificante que


possibilita o assujeitamento de sentidos, pois a maior consequência desta objetificação é que o
direito deixa de ser pensado em seu acontecer e passa a ser visto como uma mera racionalidade
instrumental a existir à parte da sociedade68, como que suspenso na temporalidade. A CHD
busca, então, pensá-lo em seu acontecer69 e assim o faz a partir da ontologia fundamental de
Martin Heidegger, continuada em certa maneira pela hermenêutica filosófica de Hans-Georg
Gadamer70. Este pensar-o-direito-em-seu-acontecer é a superação do mencionado paradigma
de dupla-face e representa, necessariamente, uma análise antimetafísica71 do Direito.

2.2.1. Da diferença ontológica entre texto e norma

Ao enfrentar o paradigma filosófico dominante, a CHD busca des-cobrir o acontecer do


Direito, uma vez ter sido este encoberto por aquele. Esse enfrentamento é realizado a partir da
imersão filósofica no paradigma hermenêutico (Heidegger) e pelo enfrentamento da questão
acontecimento do conhecimento (Gadamer)72.
A diferença entre este pensar-o-direito no interior da CHD em comparação ao paradigma
de dupla-face é, sem dúvidas, decorrente da função da linguagem nos respectivos paradigmas
filosóficos. Isto porque, neste último o pensar é dependente da filosofia da consciência e da
objetificação dos sentidos do texto, como se esses fossem provenientes de um “lugar virtual”,
ou de um “lugar fundamental”73. Ou seja, o texto traz seus sentidos em si mesmo e, desta forma,
basta que o intérprete lance mão da linguagem a si disponível (como que uma ferramenta) para
descrevê-los.

68
STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica e o acontecer (ereignen) da Constituição: a tarefa de uma crítica do
Direito. In: O direito. Lisboa. 2011. A. 133. Nº 3. pp. 581-613. STRECK, Jurisdição constitucional e decisão
jurídica, op. cit., pp. 270-274.
69
Idem. A hermenêutica e o acontecer (ereignen) da Constituição: a tarefa de uma crítica do Direito. In: O direito.
Lisboa. 2011. A. 133. Nº 3. pp. 581-613; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica, op.
cit., pp. 270-274.
70
Para um maior detalhamento da relação Heidegger-Gadamer na formação da CHD, cfr: STRECK, Lenio Luiz.
Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., capítulo 10.
71
Ibidem, p. 21.
72
O ponto de partida da construção teórica de Streck é, primordialmente, a tradição positivista que se segue ao
positivismo kelseniano, ou seja, as correntes teóricas que admitem discricionariedades interpretativas quando da
aplicação do Direito. No entanto, o autor não se preocupa em discutir eventuais inconsistências da teoria
kelseniana, mas sim em explorar e enfrentar o problema lançado por Kelsen, a saber, a ideia de discricionariedade
do intérprete ou do decisionismo presente na metáfora da “moldura da norma”. Já seu ponto de chegada, é o
caminho interpretativo que leve ao alcance daquilo que chama de resposta adequada – nem a única, nem a melhor,
mas sim a adequada à Constituição. Cfr: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica
e Teorias Discursivas. 5. ed. São Paulo. Editora Saraiva. 2014. p. 35, grifo nosso. Sobre inconsistências na obra
kelsenia, conferir: LAMEGO, José. A teoria pura do direito entre logicismo e voluntarismo. In: Estudos em
homenagem a Miguel Galvão Teles. Coimbra. 2012. pp. 129-142. Vol. 1. Idem., O que é a Teoria Pura do direito?
In: LAMEGO, José. Caminhos da filosofia do direito kantiana. Lisboa. AAFDL. 2014. pp. 99-112.
73
Ibidem, p. 19.
27

Dito de outra forma: O fundamento do texto, seu sentido, é buscado na subjetividade do


intérprete, à parte da historicidade e facticidade do Direito e do caso a ser decidido. Ou ainda:
O sujeito é condição de possibilidade do real74. Isto importa no sujeito que assujeita (toma para
si e dá a partir de si) os sentidos do objeto analisado. É este o assujeitamento do objeto que
caracteriza a acima mencionada relação sujeito-objeto.
Com isto, o interprete se depara com o texto (ente) e o pensa como texto em si mesmo,
cujo sentido (seu ser) está nele inserido e apto a ser extraído, sem indagar-se a respeito de sua
construção – de seu sentido – a par de sua historicidade e factidade. Há, portanto, o
encobrimento do sentido, do ser, do texto legal. Citando Heidegger, podemos afirmar que
enquanto esse modo de pensar representa o ente enquanto ente, refere-se, certamente, ao ser;
todavia, pensa, constantemente, apenas o ente como tal e precisamente não e jamais o ser como
tal. A “questão do ser” permanece sempre a questão do ente75.
Esta lição do filósofo alemão nos permite ver com clareza que o intérprete refém do
mencionado paradigma de dupla face se detém na objetificação da linguagem, de forma a pensá-
la enquanto objeto e não enquanto conservação da manifestação do ser, pois, afinal, a
linguagem é a casa do ser76. E isto representa o anteriormente mencionado esquecimento do
ser (sentido), porque pensado enquanto ente, ou seja, o texto é pensado enquanto texto-em-si-
mesmo, como um texto “dado” (entregue à consciência) e não como representação da
construção intersubjetiva do Direito da sociedade em movimento na temporalidade.
Em contrapartida, na CHD, os sentidos são construídos num a priori compartilhado,
logo, não estão contidos no texto-enquanto-texto-em-si-mesmo, nem na subjetividade do
intérprete que busca atribuir-lhe sentido a partir de si.
É este pensar-o-texto-enquanto-texto-em-si-mesmo, como se os sentidos nele
repousassem e pudessem ser daí retirados – sem maiores preocupações a respeito de sua
construção intersubjetivamente compartilhada, ou seja, de sua historicidade na tradição –, que
sustenta “o império da objetificação”77. Isto, em termos filosóficos, é o esquecimento do ser
(sentido), pois pensado como ente, como um texto “dado” à consciência e não como fruto da
mencionada construção intersubjetiva do direito.

74
STEIN, Uma breve introdução à filosofia, op. cit., p. 75.
75
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Trad. de Rubens Eduardo Frias. 2 ed. rev. São paulo.
Centauro. 2005, p. 35, grifo nosso.
76
Idem, ibidem, p. 8.
77
STEIN, Ernildo. “Novos caminhos para uma filosofia da constitucionalidade”. In: STRECK, Lenio Luiz.
Jurisdição constitucional e decisão jurídica. In: STRECK, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, op. cit.,
p. 11
28

É este esquecimento do ser, oriundo do objetivismo filosófico, que a CHD busca


desconstruir para, assim, trazer à tona o acontecer do Direito. Queremos demonstrar que a
CHD, cujo horizonte de problematização parte da ontologia fundamental Heideggeriana, busca
as condições de possibilidade de ruptura com o pensamento objetificador dominante na
dogmática jurídica78, pois o intérprete não está situado em posição privilegiada em relação ao
texto. Não está ele diante do mundo dos objetos, mas sim, inserido no mundo através da
linguagem e do discurso.
Essa desconstrução é possibilitada, em primeiro lugar, pelo reconhecimento de que a
linguagem é condição de possibilidade de acesso ao mundo, logo, o sujeito é dependente dela,
pois inserido em um mundo linguístico – constituído pela linguagem. Possível dizer, ainda, com
apoio em Streck, que “estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo)
na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. Este poder-dizer é
linguisticamente mediado, porque nossa capacidade de agir e de dizer-o-mundo é limitada e
capitaneada pela linguagem.” 79
Este mundo linguisticamente mediado configura a inserção do próprio homem neste
mundo de significados e significantes intersubjetivamente compartilhados, afinal, a linguagem
“nasce do ser e com o ser, que é o modo como o homem primeiro compreende a si e às coisas”80.
Dito de outra forma: o homem está desde sempre inserido no mundo pela linguagem, cujos
sentidos residem numa construção e num compartilhamento da ordem do a priori. Isto faz com
que a linguagem passe a ser o próprio ambiente que o direito habita81.
Desta forma, supera-se tanto o objetivismo quanto o subjetivismo82, afinal, os sentidos
não estão nem nos textos (ou coisas), nem na consciência assujeitadora do intérprete, mas sim
no mundo em que o homem está desde sempre inserido e a compartilhar com outros homens.
Eis o desenho do paradigma da intersubjetividade, sustentado na relação sujeito-sujeito.
Esta inserção do homem desde sempre num mundo-compartilhado-com-outros-homens
e mediado pela linguagem, o permite compreender a si enquanto inserido num mundo de
sentidos compartilhados e nisto reside seu dar-se conta de sua ex-sistência. Este dar-se-conta-
de-si-ao-compreender-o-mundo-em-que-se-insere é por Heidegger chamada de “a clareira do

78
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 22.
79
Idem, ibidem, pp.295-296
80
STEIN, Uma breve introdução à filosofia, 2 ed. Ijuí. Editora Unijuí. 2005, p. 55.
81
Idem, Novos caminhos para uma filosofia da constitucionalidade, op. cit., p. 16.
82
“[...] objetivista é a postura hermenêutico-interpretativa que organiza o seu processo de determinação do sentido
a partir de um aprisionamento do sujeito que conhece ao objeto que é conhecido; ao passo que subjetivista é a
postura hermenêutico-interpretativa que espelha o paradigma da filosofia da consciência, no interior do qual o
intérprete é o dono dos sentidos.” STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 144, itálicos no original.
29

ser” (Lichtung) e representa a exposição do homem à verdade do ser e o coloca diante do revelar
do ente83.
Segundo o filósofo alemão, esta exposição permite o homem compreender-se como ser
de um ente pelo des-cobrir da clareira do ser, ou seja, ele se vê enquanto um ente a manifestar-
se enquanto ente pelo descobrir de seu ser84 (Dasein, ser-aí). Se percebe, assim, inserido no
mundo linguístico pelo revelar de si mesmo. Eis a anteriormente citada diferença entre ser e
ente. Ser e ente não estão divididos ou separados, o que há entre eles é uma diferença que é
ontológica85. Ou, também, já nos termos da hermenêutica filosófica em que se funda a CHD: a
diferença (ontológica) entre texto (ente) e norma (sentido do texto)86.
No entanto, este perceber-se-inserido-no-mundo-pelo-revelar-de-si demonstra que o
homem compreende seu ser enquanto compreende o mundo e, todavia, compreende o mundo
enquanto compreende seu ser. Esta circularidade do compreender-a-si-enquanto-compreende-
o-mundo foi identificada por Heidegger como círculo hermenêutico que, ao lado da diferença
ontológica, configura o teorema fundamental da filosofia hermenêutica Heideggeriana87.
Este teorema fundamental, por sua vez, configura o modo de ser do homem no mundo,
pois antecipa-lhe a compreensão de si e do mundo – e esta antecipação faz parte de sua relação
com esse mundo que o constitui88. Este a priori antecipador é possível porque os significados
que constituem este mundo não estão sujeitos à subjetividade do homem. São, todavia, oriundos
da intersubjetividade deste mundo compartilhado. Eis o que Heidegger introduziu como a pré-
compreensão, que representa a estrutura ontológica do ser-aí-no-mundo, do Dasein89.
O pensar estruturado na matriz teórica aqui apresentada é impedido de afastar-se deste
teorema fundamental, uma vez ser impossível ao ser-aí desprender-se desta antecipação de
sentidos proveniente do mundo em que está desde sempre inserido. Em outras palavras: os
sentidos do mundo não dependem da consciência do ser-aí para existirem. Ele não dá nome e

83
HEIDEGGER, Cartas sobre o humanismo, op. cit., pp. 28-44. Ver nota nº 26.
84
Idem, ibidem, p. 34.
85
“O que ele [Heidegger] tem por meta com essa expressão é a diferença do ser em relação a todo ente.”
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. vol 1. Heidegger em retrospectiva. trad. Marco
António Casanova. 6ª ed. Petrópolis. Vozes. 2007. p. 92.
86
De maneira objetiva: O ser será sempre o ser de um ente, da mesma forma que a norma será sempre a norma de
um texto – não existindo, pois, separação (cisão) entre ambos, mas apenas a diferença ontológica que, como se
pode perceber, representa as possibilidades de poder-ser do ser-aí.
87
Ver nota nº 35.
88
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 284, grifo nosso.
89
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., pp. 204-211. É valiosa a lição de Streck: “Temos uma estrutura do nosso
modo de ser no mundo, que é a interpretação. Estamos condenados a interpretar. O horizonte do sentido nos é
dado pela compreensão que temos de algo. Compreender é um existencial, que é uma categoria pela qual o homem
se constitui. A faticidade, a possibilidade e a compreensão são alguns desses existenciais.” STRECK,
Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 277, destaque nosso.
30

nem altera os sentidos das coisas, pois esta antecipação intersubjetivamente compartilhada o
constrange a não fazê-lo por si só. Individualmente. Solipsísticamente.
Em sendo esta antecipação (pré-compreensão) possibilitadora da compreensão e a
compreensão sua condição de ser-no-mundo, o Dasein tem um modo-de-ser-compreensivo
imerso tanto na faticidade quanto na historicidade e na tradição, pois não há tábula rasa de
sentidos. Ou seja, os sentidos do mundo não são do agora, da imediaticidade da vida, mas sim
da existência em seu desenrolar historial. Esta afirmação busca apoio no ensinamento de Streck:
“Os sentidos são atribuíveis, a partir da faticidade em que está inserido o intérprete. Interpretar
é, pois, existência: e essa existência é concretude. Daí a necessidade da constante advertência:
hermenêutica não é filologia; não há interpretação independente de problemas concretos [...].”90
Este pensar filosófico, no interior da CHD, importa na busca pelo des-velamento da
norma do texto (o ser do ente), a partir da antecipação de sentido proporcionada pela linguagem
pública que constrange a sujetividade do intérprete. Este des-velar o ser-do-ente, o sentido-do-
texto, revela o que Heidegger chama de ser-em, isto é, a norma enquanto sentido do texto91. Isto
significa, que na CHD, a norma será sempre a norma de um texto. Não há norma sem texto,
nem texto sem norma. Não estão cindidos: o que há entre eles é uma diferença que é ontológica.
Para este des-velar o ser do ente, perseguido pela CHD, o Direito deve ser analisado
como um sistema íntegro e coerente, na e pela linguagem, ou seja, mergulhado neste horizonte
comum de mediação dos significados construídos intersubjetivamente. Nota-se aqui a
influência da teoria “law as integrity” de Dworkin92. Queremos dizer que o Direito pela CHD
estará sempre mergulhado na faticidade, tradição e historicidade. Ou ainda: “Não se interpreta,
assim, um texto (jurídico) desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido
que o intérprete tem (no caso que para o Direito mais interessa, da Constituição).”93
A CHD é, assim, a antítese de teses objetificadoras de sentidos e afetas à filosofia da
consciência, pois sua imersão na intersubjetividade, na faticidade e na historicidade lança-a em
direção à antecipação de sentidos advinda do teorema fundamental da analítica existencial
Heideggeriana94.
É dizer: pensa o Direito enquanto Direito produzido historialmente no desenvolvimento
da sociedade na temporalidade, cujos sentidos são buscados no a priori compartilhado

90
STRECK, Lenio Luiz. Diferença ontológica entre texto e norma: afastando o fantasma do relativismo. Lisboa.
2005. Sep. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Vol 46, nº 1, pp. 55-86. p. 66.
91
Idem, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 305.
92
Idem, Verdade e consenso, op. cit., p. 655; DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Oxford. Hart. 1998. em especial
capítulos quinto e sexto.
93
Idem, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 305.
94
Idem, Verdade e consenso, op. cit., p. 305.
31

intersubjetivamente, ou seja, busca os sentidos da “coisa mesma (Sache selbst), pois não se
pode esquecer que Direito é história, é tempo, é faticidade, e que, portanto, cada caso tem a sua
singularidade”. 95 Em assim sendo, os sentidos dos textos jurídicos não estão condicionados
àquilo que o intérprete quer que eles sejam, que signifiquem.
Deve, portanto, ouvir primeiro a linguagem para somente após dizer o direito. E isto
implica a não compreensão da linguagem enquanto mera condutora de sentidos à consciência
do sujeito-intérprete. Pelo contrário, seus significados já são antecipados pela intersubjetividade
e pela tradição, por esta linguagem pública (a priori compartilhada) que constrange a todos e
assim impede que se troquem os significados dos significantes – que se assujeite a linguagem.
Em suma, a Crítica Hermenêutica do Direito supera, ultrapassa, as limitações do pensar
metafísico dominante na dogmática jurídica (consubstanciado na relação sujeito-objeto), e
busca na analítica existencial Heideggeriana uma forma de des-cobrir, ou melhor, de des-velar
a clareira do ser no pensar do Direito. Assim, aproxima o Direito da sociedade, uma vez ser ele
fruto da movimentação desta na história – e isto representa a inserção da faticidade e da
historicidade em seu pensar-o-Direito.
E este pensar-o-Direito, tem (cons)ciência da impossibilidade de distanciamento do
denominado círculo hermenêutico, que ao compreender e explic(it)ar os sentidos, alimenta-se
da construção intersubjetiva destes pela (e na) linguagem e que possibilita o ser-aí dar-se conta
de sua inserção desde sempre no mundo, pois há sempre um sentido já compreendido que lhe é
antecipado. Em assim sendo, a CHD tem na diferença ontológica entre texto e norma a
possibilidade de explicar o sentido da dimensão do empírico96, do próprio acontecer do Direito.
Pelo fato da compreensão ser condição de ser no mundo, por antecipar os sentidos da
compreensão que o ser tem de si, como ser de um ente a manifestar-se enquanto ente que é, ou
seja, o ser compreende-se enquanto ser de um ente por estar condenado a interpretar (e a
interpretar-se). Com base nisto, podemos afirmar que a compreensão precede a interpretação,
pois ela é, sem dúvidas, um modo de ser97.
Logo, na CHD interpretar é aplicar. É interpretação aplicativa. A CHD, então, não lança
mão de métodos de interpretação ou cânones interpretativos, pela impossibilidade de existência

95
Idem, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 104, grifo no original.
96
Idem, Verdade e consenso, op. cit., p. 146
97
Idem, Lenio Luiz. Diferença ontológica entre texto e norma, op.cit., p. 67. HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit.,
p. 200.
32

destes no universo da viragem lingüística/ontológica. É applicatio no sentido que ensina


Gadamer98.
Consequentemente, quando o intérprete do direito busca o des-velamento da norma,
deparar-se-á com o ser-em99, ou seja, a norma como sentido do texto. Este sentido (norma do
texto) que há de, sempre, ser des-velado, não irá ex-surgir apartado do próprio sentido da
Constituição 100 que já tem o intérprete – ante a necessidade da compreensão estar sempre
conforme a Constituição. De maneira mais (a)profunda(da): Gadamer ensina que não é possível
reproduzir sentidos e isto torna o processo hermenêutico em produtor de sentidos101, ante a
fusão dos seguintes horizontes de sentido do jurista: sua pré-compreensão, que é sempre
antecipad(or)a de seu ser-no-mundo, com a pré-compreensão da tradição do Direito - o que
proporcionará o desvelar do ser do (daquele) ente (o texto jurídico e sua inserção no mundo)102.
É dizer, portanto, que a CHD busca pensar: o Direito enquanto Direito produzido e
regado pela faticidade e historicidade; a norma sempre enquanto norma de um texto e; o texto
sempre enquanto texto de uma norma. Não há objetificação e nem busca por sentidos na
consciência do sujeito que está a observar (diante d)o mundo dos objetos, já que a faticidade e
a historicidade propiciam a pré-compreensão (sempre antecipadora de sentidos) 103 . É
justamente este pensar o ser do ente, este des-velar de sentido, que há de permitir a norma do
texto vir à tona. É desta forma que a clareira lançada pela CHD faz com que o Direito enquanto
Direito (produzido historialmente pela sociedade em movimento) surja e aconteça104.

98
“A interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complementar à compreensão. Antes, compreender é
sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão.” GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e métodoI: traços fundamenais de uma hermenêutica filosófica. Trad. de Flávio Paulo Meurer;
rev. da trad. Enio Paulo Giachini. 6ª ed. Petrópolis. Vozes. 202. p.406.
99
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 305.
100
Idem, ibidem, p. 305.
101
“[...] a compreensão nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também e sempre produtivo.”
GADAMER, Verdade e método, op. cit., p. 392.
102
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., pp. 369-370. Esta pré-compreensão não é sinônima de
pré-conceitos, preconceitos e pré-juízos, como normalmente utilizados pelo senso comum. Ver: GADAMER,
Verdade e método, op. cit., pp. 354-385. Assim, não há que se falar sobre discricionariedade nesta atribuição de
sentidos, neste interpretar produtivo, pois como bem alerta Streck: “A applicatio evita a arbitrariedade na
atribuição de sentido, porque decorre da antecipação de sentido que é próprio da hermenêutica de cariz filosófico
que rompeu com o método.” STRECK, Lenio Luiz. Diferença ontológica entre texto e norma, op.cit., p. 61. A
respeito do caráter não relativista da hermenêutica, cfr: STRECK, Verdade e Consenso, op. cit., pp. 493-524.
103
Eis a relação do círculo hermenêutico na compreensão e explic(it)ação da diferença ontológica existente entre
o texto e norma.
104
Este surgir do Direito enquanto Direito dar-se-á em cada caso, pois pensado a partir da faticidade e
historicidade. “Não se pode esquecer que Direito é história, é tempo, é faticidade, e que, portanto, cada caso tem
a sua singularidade.” STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 104.
33

Esta busca pela coisa mesma105 é a busca por aquilo que no interior da CHD é chamado
de “resposta hermeneuticamente adequada à Constituição” – pois capaz de capilarizar a
Constituição e sua base principiológica, fazendo-a alcançar, iluminar pela abertura originária,
a norma do texto constitucional. Com isto, concluímos que é na norma que residirá o acontecer
do Direito, pois é ela capaz de demonstrar o des-velamento do ser da Constituição106. Ou nos
dizeres do fundador da CHD: “o acontecer constituinte (o acontecer que Constitui-a-ação!),
originário da Constituição”107.
Esta afirmativa é essencial para o desenvolvimento deste estudo e há de nos acompanhar
na posterior demonstração de que princípios constitucionais têm um conteúdo substantivo, o
qual pode ser descrito através de um vetor de racionalidade a apontar a direção de seu
desenvolvimento no seio da sociedade em que se desenvolve. No entanto, é preciso demonstrar
o papel dos princípios constitucionais na interpretação do direito.

2.2.2. Uma questão de princípio

Este resgate da faticidade, do acontecer do Direito dentro da sociedade, embora inovador


e revolucionário em relação às posturas positivistas, é condição necessária, indispensável, à
análise fenomenológica realizada pela Crítica Hermenêutica do Direito. Ou melhor: é a ela
inerente.
Assim, quando um texto jurídico é analisado sob ao manto da CHD não se indaga a
respeito de quais sentidos podem ser extraídos de forma pura, como se o texto carregasse
sentidos (imanentes) consigo. Pelo contrário, quando o pensar está calcado na CHD, o indagar
sobre o sentido de determinado texto está focado em des-cobrir o modo em que o sentido se dá
na concretude do mundo da vida108.

105
A respeito, a firme lição de Castanheira Neves: “Numa palavra, o importante e decisivo não está em saber o
que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas, o que queremos dizer com, ou que
significado têm, as expressões linguísticas (a linguagem) com que manifestamos e comunicamos esse dizer das
coisas.” CASTANHEIRA NEVES, Antônio. Metodologia jurídica: problemas fundamentais. Coimbra. Coimbra
editora. 1993, p. 89.
106
Novamente, Castanheira Neves ensina que: “O objecto da interpretação jurídica é, pois, a norma enquanto
norma, não o seu texto enquanto expressão da norma – não o objecto expressivamente significativo, mas o objecto
intencionalmente normativo-jurídico.” CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídica, op. cit., p. 144. A isto,
ou seja, à norma enquanto norma, o filósofo português atribui o termo locus da aplicação, do acontecer.
107
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 379, grifo do autor. A historicidade e a faticidade
presentes na produção do compreender é tida por Gadamer como uma possibilidade positiva: “Na verdade trata-
se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um
abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, em cuja luz nos é
mOstrada toda a tradição. Não será exagerado falarmos aqui de uma genuína produtividade do acontecer.”
GADAMER, Verdade e método, op. cit., p. 393.
108
STRECK, Diferença ontológica entre texto e norma, op. cit., p. 60.
34

Em síntese: o que a CHD está a perguntar é sobre como se dá a questão do ser (sua ex-
sistência) no horizonte que é proporcionado pela diferença ontológica; sobre como se d(ar)á “a
possibilidade do sentido da dimensão do empírico”109. Com esta indagação nos aproximamos,
ainda mais, do alcance da resposta adequada, pois é nesta “dimensão do empírico” que ocorre
o des-velar do sentido para o caso específico. Ou seja, o direito possui uma dimensão
interpretativa enraizada no mundo prático e essa é uma “ferramenta” essencial da CHD, pois é
aí que se dá a questão do sentido do ser110.
É aqui que ocorre o “ajuste ôntico”111 – a concretude da coisa mesma. Neste ponto,
merece destaque a (nova e) intrigante teoria da norma proposta pela CHD, na qual a norma é o
produto da interpretação de determinada regra que é sempre atravessada (iluminada) por um
princípio de base constitucional. Isto porque, os princípios não são meros suportes
argumentativos, são responsáveis por transportar “o mundo concreto”, o mundo prático, para
dentro do Direito. Assim, atrás de cada regra há um princípio instituidor112.
Esta especificidade da CHD é decorrente de sua compreensão acerca do que é e o que
representa o Estado Democrático de Direito113. A primeira característica que merece menção é
a institucionalização da moral pelo Direito, de forma que, assim como na teoria discursiva
habbermasia114, ambos são cooriginários.

109
Idem, Verdade e consenso, op. cit., p. 146.
110
Sobre essa dimensão prática no conceito de mundo da fenomenologia Heideggeriana, ver item 2.1.1.
111
Dizemos “ajuste” ôntico, pois é aqui (no ex-surgir do sentido da norma do texto) que “a possibilidade do sentido
da dimensão do empírico” (Streck) combina-se, cai certa, ajusta-se à realidade, à concretude. Enfim, ao caso
decidendo. A palavra “ajuste”, aqui, não importa num “ajustar” discricionário, convencional e nem em uma
aplicação subsuntiva. É a fusão de horizontes própria à hermenêutica filosófica e muito cara à Crítica Hermenêutica
do Direito.
112
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p. 325.
113
O Estado Democrático de Direito, no interior da CHD, é fruto da revolução copernicada ocorrida no direito
público após a segunda guerra mundial, momento em que o Direito ganhou elevado grau de autnomia. Cfr:
STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, op. cit., capítulos 1 e 2. Sobre o tema, Jorge Miranda, o jurista
português que identificou tal revolução, leciona: “Aquilo a que tenho chamado a revolução copernicana do direito
público – ou seja, a passagem de uma fase em que as normas constitucionais dependiam de interpositio legislatoris
a uma fase em que se aplicam (ou são susceptíveis de se aplicar) directamente nas situações da vida – não resultou
só de mudanças de regime político ou da idéia de Constituição. Resultou, sobretudo do aparecimento de uma
justiça constitucional, como tal estruturada e legitimada. [...] Sem a justiça constitucional o princípio da
constitucionalidade fica sem tradução prática”. Cfr: MIRANDA, Jorge. Apreciação da dissertação de
doutoramento de Rui Medeiros.In: Direito e Justiça. Lisboa. Universidade Católica. Vol. XIII, tomo 2. 1999. pp.
259-277. p. 262.
114
No que toca esta aproximação da CHD com a tese discursivo-procedimental habbermasiana, necessário
ressaltar a lição de Streck: “A institucionalização da moral no direito, a partir do direito gerado democraticamente
(Constituições compromissório-sociais), mostra a especificidade do Estado Democrático de Direito, isto é, ambas
as matrizes (teoria do discurso habermasiana e hermenêutica filosófica) somente se sustentam em sistemas
jurídicos que promove(ra)m essa institucionalização. O direito incorporou um conteúdo moral, passando a ter um
caráter de transformação da sociedade. Esse ideal de ‘vida boa’ deve ser compreendido como dirigido e pertencente
a toda a sociedade (esse é o sentido da moral), sendo a Constiuição o modo para alcançá-lo. Com desideratos
semelhantes, em Habermas o direito – a Constituição – garante abertura para que a justiça social venha a ser
construída ao longo do tempo – daí a ênfase em uma democracia procedimental; na hermenêutica – na leitura feita
no espaço destas reflexões – a aplicação da Constituição representa a concretização do conteúdo substancial e
35

E ela – a institucionalização – reflete a possibilidade de discussão dos comportamentos


sociais sob a legislação produzida no regime democrático115.
Em síntese: “o que ocorre é uma normatização (juridicização) nos limites do a priori da
faticidade a partir das condições de aplicação da moral pós-convencional, sendo, assim, também
um a priori jurídico (institucionalização das expectativas normativas)”.116
O segundo ponto a ser destacado é que essa institucionalização da moral se dá através
dos princípios constitucionais – ou, como Streck a eles se refere, “a materialidade
principiológico-constitucional”117. É esta “materialidade” que transporta o mundo prático para
dentro do Direito e atribui aos princípios constitucionais conteúdo deontológico – eis o resgate
do mundo prático118.
Acima referimos que isto importa na institucionalização das expectativas normativas,
da ordem de um a priori jurídico (Streck), pelo que nos resta afirmar, que a antecipação de
sentidos pela pré-compreensão, e alimentada pelo círculo hermenêutico na compreensão da
diferença ontológica entre texto e norma, ocorre com os princípios. Ou seja: qualquer regra só
é interpretada através da identificação do(s) princípio(s) (constitucional) que a perpassa. Nota-
se, portanto, que a relação regra-princípio, no interior da CHD, é sustentada também na
diferença ontológica entre ambos.
Explico: da mesma maneira que há uma diferença ontológica entre ser e ente, texto e
sentido do texto (ou seja, texto e norma), princípios e regras também estão aí abarcados. Sendo
os princípios constitucionais a institucionalização das expectativas normativas (advindas da
cooriginariedade e institucionalização direito-moral), do constituir da Constituição, eles servem
como um mecanismo de irrigação da Constituição na legislação infraconstitucional e não
podem (nem devem) ser pensados como se cindidos e/ou separados em absoluto das regras –

dirigente do texto; a hermenêutica não prescinde do procedimento, mas aposta na realização dos direitos
substantivos, que tem caráter cogente, de que decorre uma maior valorização da jurisdição constitucional.”
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., pp. 238-239. Sobre a complementaridade entre moral e direito no
pensamento de Jürgen Habermas, cfr: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade.
Volume I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Editora Tempos Brasileiros. 1997. pp. 139-
154. Idem. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Volume II. 2ª edição. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro. Editora Tempos Brasileiros. 2003. pp. 230-240.
115
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p. 237.
116
Idem, ibidem, p. 237, itálicos do autor. Segundo Habermas, a moral pós-convencional compreende a etapa do
desenvolvimento discursivo-procedimental em que o direito passa a estar voltado à sustentação do próprio direito
– de forma que as decisões morais são geradas já a partir do direito e balizada por princípios., cfr: HABERMAS,
Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. De Almeida. Rio de Janeiro. Tempos
Brasileiros. 1989. Capítulo 4, em especial pp. 152-158.
117
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p. 235.
118
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., pp. 308 e 462. Ressaltamos o cuidado na diferenciação de “mundo
prático” e “razão prática”. Esta não tem espaço com o aceite da viragem ontológico-linguística que reconcilia e
reaproxima teoria e prática.
36

se assim fosse, seria possível defender a possibilidade de extração pura de sentidos das regras
e de atribuir qualquer sentido aos princípios constitucionais (regressaríamos à problemática do
paradigma de dupla-face, pois)119.
A obtenção da normatividade do Direito, o sentido do texto jurídico, somente será
alcançada através da interpretação iluminada pelo princípio instituidor a antecipar sentidos
quando da applicatio. É por (e com) isso que Streck afirma que normas são “o produto de uma
dimensão deontológica própria do direito, já que ele se articula a partir de regras e
princípios”120. E não há dúvidas que isto consagra a faticidade e o acontecer do Direito no caso
concreto. É a busca pela coisa mesma. É concretude.
Esta busca pela coisa mesma é que é capaz de identificar a resposta correta. Correta,
pois adequada à Constituição e produzida para a singularidade do caso concreto. É neste sentido
que Streck afirma a ocorrência de um “fechamento interpretativo”121, a partir dos princípios
constitucionais, na busca pelo “modus operativo que deve ser seguido pelo intérprete, buscando,
assim, a coerência e a integridade do direito” 122 – nesta busca há na CHD um acentuado
prestígio da jurisdição constitucional123.
Essa intrincada relação regra-princípio que ocorre no interior da CHD tem o Direito
como um sistema de regas e princípios e é o que permite falar, em primeiro lugar, da existência
de respostas hermeneuticamente adequadas à Constituição. A análise fenomenológica que aqui
ocorre é capaz de des-cobrir a norma do texto, a partir do espraiamento principiológico que traz
em si a carga normativa da Constiuição 124 e, ao atravessar e iluminar o regramento
infraconstitucional, abre a clareira do acontecer da Constituição ao decidir o caso concreto.
Acima afirmamos, a partir da matriz teórica estabelecida por Heidegger e Gadamer, que
nosso modo-de-ser-no-mundo se dá pela compreensão, no interior da estrutura ontológica do

119
Cfr: STRECK, Diferença (ontológica) entre texto e norma, op. cit., pp. 60 e seguintes.
120
STRECK, Lenio Luiz. A revolução copernicana do direito e a preservação de sua autonomia diante do
panprincipiologismo. In: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jorge Miranda. Coimbra. 2012. Vol 6. pp. 253-270.
p. 265.
121
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p. 244.
122
Idem, Ibidem, p. 326. Destaca-se, ainda, a influência da tese dworkiana na construção da crítica hermenêutica
de Streck, em especial as teses Law as Interpretation e Law as Integrity, expostas respectivamente em:
DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Oxford. Clarendon Press. 1986; Idem, Law’s Empire. Oxford. Hart
Publishing. 1998. No entanto, Streck apresenta divergências em relação ao jusfilósofo norte americano como, por
exemplo, na impossibilidade de dividir casos entre casos fáceis (easy) e difíceis (hard). Sobre esta divergência,
ver: STRECK, Verdade e consenso, op. cit., capítulo 10.
123
Streck afirma que todo ato interpretativo é um ato de jurisdição constitucional. Cfr: STRECK, Verdade e
consenso, op. cit., p. 324.
124
Esta carga normativa diz respeito ao próprio modo do homem ser-no-mundo, como adverte Streck: “Os
princípios (constitucionais) possuem um profundo enraizamento ontológico (no sentido da fenomenologia
hermenêutica), porque essa perspectiva ontológica está voltada para o homem, para o modo de esse homem ser-
no-mundo, na faticidade. O fio condutor desses princípios é a diferença ontológica (ontologische Differenz).”
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p. 234.
37

Dasein (formada pelo círculo hermenêutico e pela diferença ontológica entre ser e ente), a qual
sempre possibilita uma antecipação de sentidos. Em outras palavras: nós compreendemos o
mundo, pois nele estamos desde-já-e-sempre inseridos, ou seja, estando-aí.
É isto que configura a compreensão circular de nosso modo-de-ser-no-mundo, pois o
homem compreende a si enquanto ser de um ente a se manifestar enquanto ente que é (e sempre
está) inserido no mundo, e, desta forma, compreende também o mundo em que está. Importa
dizer, portanto, que o ser-compreende-a-si-enquanto-compreende-o-mundo-em-que-se-insere.
Reafirmamos: esta diferença entre o ser e o ente, é a já apontada diferença ontológica.
Trazendo isto para a interpretação jurídica: a institucionalização do mundo prático no
Direito representa o inserir da concretude do “mundo da vida” (faticidade) nos textos jurídicos,
o que configura óbice ao pensamento objetificador que encara o texto como texto-em-si-mesmo,
apartado da realidade – como se possível extrair sentidos inerentes a ele. A principiologia
constitucional, portanto, é a condição de possibilidade de acesso ao ser do “ente” Constituição.
Isso significa que é a base principiológica que possibilita o resgate do acontecer da
Constituição. Com basi nisso, a CHD afirma que esta é a “era dos princípios”125.
Este possibilitar-o-resgate-do-acontecer-da-Constituição realizado pelos princípios,
implica num exercício de parametrização constitucional com as regras – já que não h(aver)á
regra sem um princípio constitucional instituidor –, de forma a capilarizar sua força normativa
e traduzir o caráter deôntico advindo da cooriginariedade entre moral e Direito (e respectiva
institucionalização daquela neste). A função dos princípios, então, é blindar o Direito de
qualquer interpretação que parta de um “lugar virtual” (Streck), já que trazem em si a carga
deôntica do texto constitucional que – não é demais repetir – deve atravessar cada uma das
regras do ordenamento jurídico.
Em outras palavras: a pergunta pelo ser do ente é capaz de trazer à tona o ser-em; a
norma como sentido do texto, cujo horizonte é limitado pela compreensão (do sentido) de e da
Constituição, pois o círculo hermenêutico desde sempre já a considera ao operar no horizonte
da diferença ontológica. E isto é – devemos insistir na repetição – concretude. Logo, o
interpretar não se atém ao texto, mas sim ao texto em sua faticidade e historicidade. Afinal,
como ensina Heidegger, ser é tempo126.

125
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 163.
126
É preciosa a lição de Heidegger quanto ao ser-em: “[...] significa uma constituição ontológica da pre-sença e é
um existencial [...]. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, ‘dentro de
outra’ porque, em sua origem, o ‘em’ não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie [...]. O
ser, entendido como inifito de ‘eu sou’, isto é, como existencial, significa morar junto a, ser familiar com... O ser-
em, pois, a expressão formal e existecial do ser da presença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo.”
HEIDEGGER, Ser e Tempo, op. cit., p. 100, grifo nosso
38

Esta inserção da faticidade, da existência, no interior da CHD é o reconhecimento da


finitude e da influência da temporalidade na atribuição de sentidos por parte do intérprete.
Streck afirma, inclusive, que os sentidos são atribuíveis a partir da faticidade em que está
inserido o intérprete 127 , pois, como já afirmado, o texto não carrega sentidos (imutáveis,
inerentes e imanentes) consigo no desenrolar do movimento do Direito e da sociedade.
Para tornar isso mais claro, trazemos à colação o que é o Direito, segundo a CHD:

Direito não é Moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito


interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que
as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos
princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham
DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador128.
Esta afirmação contém todas caracterísitcas até então expostas a respeito da matriz
teória ora trabalhada. Vejamos, atentamente:
I) “Direito é um conceito interpretativo...”: a análise fenomenológica do Direito, que
sustenta a CHD, tem na linguagem a condição de possibilidade do “acesso hermenêutico”129 ao
Direito (Lamego). Assim, as lições de Heidegger e Gadamer importam na compreensão do
fênomeno jurídico enquanto manifestação do ser, compreendido em sua finitude e desenrolar
historial, ou seja, não há Direito sem história pelo fato de ser esta – a história – que nos lega os
sentidos jurídicos construídos (e compartilhados) intersubjetivamente. E isto vem a comprovar
que o direito possui uma dimensão interpretativa130.
Dito de outra forma: não cabe interpretação tábula rasa do Direito, pois este representa
o caminhar da sociedade no tempo. Ademais, a influência de Dworkin garante a sustentação
íntegra e coerente deste conceito interpretativo e reforça a incompatibilidade com qualquer
interpretação rasa, teleológica, descompromissada ou fragmentária do sistema jurídico.
II) “...e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas...”: a CHD está arraigada no
paradigma do Estado Democrático de Direito, no princípio democrático e no constitucionalismo
surgido no segundo pós guerra. Aliás, ela somente é possível em um regime democrático, pois:
a) a cooriginariedade direito-moral, com a institucionalização desta naquele, é o que sustenta a
elevada autonomia do Direito e; b) uma teoria da decisão que busque espancar a
discricionariedade judicial e arbitrariedades interpretativas é, por assim dizer, uma necessidade
democrática. Com isto, o Direito é aquilo que emanam suas instituições (sustentadas na
separação de poderes) desde que estas respeitem o constituir da sociedade, o pacto constituinte,

127
STRECK, Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 39.
128
Idem, Verdade e consenso, op. cit., p, 238.
129
A expressão é de José Lamego e é abordada no terceiro capítulo, item 3.3.
130
STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit., p. 398.
39

a Constituição, a integridade e coerência do sistema de regras e princípios que a regula. Esta


afirmação guarda o equilíbrio entre os Poderes do Estado e o reconhecimento da autonomia do
Direito, porque, então, se percebe que o direito não é aquilo que os tribunais dizem que ele é e;
não é, tampouco, aquilo que a política quer que ele seja (ante o grau de autonomia conquistado
pelo direito a partir do segundo pós-guerra). O Direito não é, portanto, fruto de uma
“juristocracia” nem refém da política, muito menos moral ou sociologia.
Eis o porquê do Direito ser um conceito interpretativo emanado pelas instituições
políticas (em respeito, ressaltamos, à normatividade constitucional): não se pode dizer que
qualquer Direito é Direito 131 . O Legislador não tem irrestrita liberdade de conformação, o
Judiciário não está livre para “escolher” uma resposta dentre várias e o Executivo não tem um
cheque em branco para agir de qualquer forma: todos estão conectados e subordinados ao
constituir-a-ação do Estado, ou seja, submetidos à Constituição (pensada em seu acontecer,
como mecanismo transformador da sociedade e não apenas enquanto mero texto legal ou
formalidade).
III) “...sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas
leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA
constitucional...”: Novamente a influência do tronco teórico Heidegger-Gadamer-Dworkin.
Aqui se nota a possibilidade de encontrar respostas adequadas em Direito – e dentro do próprio
Direito – através do respeito à integridade e coerência do sistema. E, como anteriormente dito,
os princípios constitucionais, com a carga deôntica a eles atribuída, são os responsáveis por –
pela análise fenomenológica, des-velar o ser-em, ou seja, a norma do texto pelo atravessamento
da materialidade principiológico-constitucional (Streck) – espraiar a força normativa da
Constituição. Eis o “DNA” constitucional que há de ser encontrado naquilo que emana-o-que-
é-o-Direito: os atos das instituições jurídicas que compõe o Estado Democrático de Direito.
IV) “...e não na vontade individual do aplicador.”: Eis o ponto nodal, o ponto de
congruência, de todo o exposto sobre a Crítica Hermenêutica do Direito. Nesta afirmação
reside, mais precisamente, sua cruzada contra a discricionariedade judicial. E isto se deve ao
fato de, conforme se percebe de seu enraizamento filosófico, ser possível encontrar respostas
corretas em Direito – as quais, no interior da CHD recebem o nome de respostas
constitucionalmente adequadas. São adequadas, pois hermeneuticamente corretas. E são
hermeneuticamente corretas por abrirem a clareira do ser no Direito e deixarem o fênomeno do
acontecer da Constituição vir à tona. Ou seja: por deixarem o constituir-da-ação ”acontecer”.

131
STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit., p. 400.
40

E isto é possível, pois os sentidos dos textos jurídicos são construídos – e não podemos nos
furtar da repetição – intersubjetivamente.
Assim, a resposta correta pela CHD possibilitada dar-se-á em estrito alinhamento à
coerência e integridade do Direito e através da interpretação aplicativa que a sustenta. Esta
possibilidade de oferecer uma resposta hermeneuticamente adequada à Constitução, valoriza
sobremodo a justiça constitucional (pela irrigação do DNA constitucional através da base
principiológica) e o grau de autonomia conquistado pelo Direito nesta quadra da história (ante
a incompatibilidade e desnecessidade de utilizar argumentos metajurídicos ou subjetivos).
Esse detalhamento do conceito de Direito nos permite afirmar que: i) se essa resposta
adequada é decorrente de (ao menos) um princípio constitucional que atravessa e constitui uma
regra jurídica, resgatando, assim, o mundo prático e o ser do “ente Constituição”, de forma que
esta possa ser reconhecida na norma que ex-surge no caso decidendo, então, inevitavelmente,
estamos diante de uma espécie de “accountability” hermenêutica; ii) isto há de permitir apontar
uma resposta como equívoca e outra correta, afinal, “basta” aferir o DNA constitucional para
verificar o des-velar do ser-em; iii) os princípios constitucionais exercem a função de
“fechamento interpretativo” alhures anunciada, pois resgatam a faticidade e a tradição
constitucional, o que afasta a “vontade individual do aplicador” na concretização do Direito e;
iv) este afastar-a-vontade-individual, o subjetivismo, é compatível (e necessário) ao atual grau
de autonomia do Direito.
É essa função dos princípios jurídico-constitucionais de atravessamento de todo o
ordenamento jurídico (a resgatar o mundo prático), em busca do acontecer da Constituição pelo
desvelar do ser-em no horizonte da facticidade e tradição constitucional, que serve de pano de
fundo da análise feita no quarto capítulo.
Ou melhor, a investigação levada a cabo a respeito da liberdade de expressão trabalha
com a supramencionada função dos princípios constitucionais no Estado de Direito
democrático. Todavia, o esforço ali realizado não consiste em uma elocubração a respeito da
função do mencionado princípio constitucional na sociedade brasileira, mas sim num esforço
crítico de compreensão e reconstrução de seu desenrolar na democracia constitucional iniciada
em 1988.
É dizer: o estudo doravante realizado consiste numa tentativa de aprofundamento quanto
ao conteúdo substancial do princípio constitucional da liberdade de expressão. Tentativa essa
caracterizada pela exposição do desenrolar histórico desse instituto jurídico, a partir do
revolvimento do chão linguístico no qual esse movimento historial aconteceu.
41

Esse revolvimento importa em um ouvir a linguagem através de uma experiência com a


própria linguagem, permitindo o mostrar-se desse fenômeno – como que num caminhar em
direção às coisas mesmas, ou ainda, para o fênomeno (princípio) ele mesmo. É um estar a
caminho da compreensão dos fenômenos do direito (no sentido fenomenológico de fênomeno),
ante a ciência de que para “atrás” destes não há a possibilidade de compreensão, pois importaria
em um estar-fora-do-mundo para pensá-lo e falar sobre ele de um lugar absoluto.
É ainda através do ferramental proporcionado pelo pano de fundo aqui mencionado que
se desenrola o capítulo quinto, cujas preocupações dividem-se entre analisar os possíveis
impactos das afirmações do capítulo quatro tanto para a relação direito-literatura quanto para a
jurisdicão constitucional.
Trata-se, assim, de um pensar-o-direito estruturado no método fenomenológico
Heideggeriano, seguindo os trilhos da Crítica Hermenêutica do Direito. O como dessa
experiência encontra seu modo na imbricação entre direito, música132 e literatura. Vejamos,
pois, como há de se desenrolar esse filosofar no direito dentro da relação direito e literatura, em
busca de um modo de se observar o desenvolvimento do princípio da liberdade de expressão
no direito brasileiro.
Para tanto, faz-se necessário, introduzir o quadro evolutivo dos estudos realizados a
partir da relação entre direito e literatura, delimitando as perspectivas teóricas dali surgidas
para, então, apresentar aqueles que nos parecem ser os “ajustes” necessários e capazes de
introduzir novos resultados dentro desse âmbito de investigação do direito.

Conforme consta do capítulo 3, por “música” este trabalho refere-se às letras das músicas e não aos textos
132

musicais compreendidos enquanto partituras e tablaturas. Ver nota nº 371.


42

3. HERMENÊUTICA JURÍDICA E LITERATURA

The moment arrives when the law will act upon


life, will declare its final simplification and pass
on. What choices of argument has the lawyer, what
of explanation has the judge?
James Boyd White133

Temos aqui o objetivo de realizar uma pequena síntese a respeito da evolução dos
estudos da imbrição entre direito e literatura sem, todavia, a pretensão de exaurir o elenco de
pensadores que se debruça(ra)m sobre o tema. Serão apontados os marcos históricos que
sedimentaram as investigações e as fizeram amadurecer até chegarmos ao ponto em que nos
encontramos atualmente134, proporcionando assim o contexto da análise crítica que ora nos
propomos a desempenhar pelo método aprsentado no capítulo anterior, em busca de tornar claro
tanto o “como” quanto o “modo” da análise a ser realizada no próximo capítulo – isto é, da
investigação a respeito da evolução do princípio constitucional da liberdade de expressão
através da conjugação entre direito e literatura.
Para tanto, utilizaremos como guia nesse percurso a sistematização e divisão realizadas
por Arianna Sansone e Maria Paola Mittica, respectivamente135. Pois bem.
Sansone divide a relação Direito e Literatura em três períodos que atravessam o século
XX. O primeiro é denominado como o “ponto de partida” e compreende o início do século até
o fim da década de 30; o segundo, o “intermediário”, vai da década de 40 ao fim dos anos 70 e;
o último período, a partir dos anos 80, que sedimenta os estudos entre D&L nas Universidades
americanas e européias136.
O ponto de partida dos estudos em D&L foi, precisamente, em 1908 nos Estados
Unidos da América com a publicação do ensaio A list of legal novels, de John Wigmore137,

133
WHITE, James Boyd. The legal imagination. Studies in the Nature of Legal Thought and Expression. Little,
Brown and Company. BOston and Toronto. 1973. p. xxxiii.
134
No item 3.1, realizamos uma abordagem, digamos, “panorâmica” dos estudos atuais em D&L.
135
SANSONE, Arianna. Diritto e letteratura: una introduzione generale. Milano. Giuffrè. 2001. MITTICA, Maria
Paola. Cosa accade di là dall’oceano? Diritto e Letteratura in Europa. In: Anamorphosis – Revista Internacional
de Direito e Literatura. v, 1; n. 1, janeiro-junho/2015. pp. 3-36. MITTICA, Maria Paola; SANSONE, Arianna.
Diritto e Letteratura. Storia di una tradizione e stato dell’arte. In: Italian Society for Law and Literature. ISLL
Papers. Vol. 1. 2008. pp. 1-9.
136
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp. 1-71. André Karam Trindade e Roberta Gubert denominam esse
ultimo período como aquele em que ocorreu o “enraizamento epistemológico do estudo do Direito e Literatura no
interior dos departamentos universitários e dos centros de pequisa”. Cf. TRINDADE, André Karam; GUBERT,
Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In:
TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPPETI, Alfredo. Direito e literatura: reflexões
teóricas. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2008. pp. 11- 66, p. 24.
137
WIGMORE, John Henry. A list of Legal Novels. In: Illinois Law Review. Vol. II (1907-1908). Chicago.
Northwestern University Law Publishing Association. 1908.
43

seguido da publicação, em 1925, do livro Law and literature por Benjamin Cardozo138. Sansone
acrescenta que estas duas obras fundaram, respectivamente, as vertentes de estudo denominadas
por Law in Literature e Law as Literature 139 , ocupando-se aquela dos aspectos jurídicos
contidos na literatura e essa última da “qualidade literária do direito”, bem como da extensão
da aplicação dos métodos de análise e de interpretação utilizados na crítica literária ao
raciocínio jurídico e à teoria da interpretação jurídica140.
Isto porque, Wigmore realizou uma listagem de livros através dos quais os juristas
poderiam retirar lições úteis ao exercício da profissão, pois a literatura, conforme afirmou o
autor norte americano, é um catálogo dos personagens da vida e o advogado deve conhecer a
natureza humana, para tanto, deve socorrer-se da ficção141. Benjamin Cardozo, por sua vez,
analisou sentenças judiciais e as classificou em seis tipos, de acordo com os estilos literários
por ele identificados: “[…] the type magisterial or imperative; the type laconic or sententious;
the type conversational or homely; the type refined or artificial [...]; the type demonstrative or
persuasive; and finally the type tonsorial or agglutinative […].”142
Já em território europeu, Sansone afirma que o ponto de partida do D&L foi na Suíça
com os ensaios publicados por Hans Fehr nos anos de 1931 e 1936143, sendo ele o primeiro a
explorar esta relação em língua alemã e abordando as duas vertentes teóricas acima
mencionadas. Suas reflexões analisaram cronologicamente cerca de cento e cinquenta autores,
apontando os benefícios extraídos da literatura para o estudo do direito, passando por algumas
meditações quanto à obras cinematográficas144.
Já o aparecimento do D&L em Itália, segundo Sansone, se deu em 1936 a partir de
Antonio D’Amato, com a publicação de La letteratura e la vita del diritto145, embora Ferrucio
Pergolesi já tivesse publicado um ensaio denominado Il diritto nella letteratura146 na década
anterior, afirmando ser esse tema importante à história do direito, não apenas em aspectos

138
CARDOZO, Benjamin. Law and Literature. In: Law and Literature and other essays and addresses. Colorado.
Fred B. Rothman & Co. Littleton. 1986.
139
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 15. No português, direito na literatura e direito como literatura. No
italiano, diritto nella letteratura e diritto come letteratura.
140
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 4. Tradução livre do autor. No original: “[...]qualità letterarie del
diritto e l’estensione dell’applicazione dei metodi di analisi e di interpretazione, elaborati dalla critica letteraria,
all’analisi del ragionamento giuridico ed alla teoria dell’interpretazione giuridica.”
141
“For the novel – the true work of fiction – is a catalogue of life’s characters. And the lawyer must know human
nature. […] For this learning, then, he must go to fiction, which is the gallery of life’s portraits.” WIGMORE, John
H., A list of Legal Novels, op. cit., p. 579.
142
CARDOZO, Law and Literature, op. cit., p. 10.
143
São elas Das Recht in der Dichtung e Die Dichtung im Recht, respectivamente. Cfr. SANSONE, Diritto e
letteratura, op. cit., p. 9.
144
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp.10-11.
145
D’AMATO, Antonio. La letteratura e la vita del diritto. Milano. Ubezzi&Dones. 1936.
146
PERGOLESI, Ferrucio. Il diritto nella letteratura. Modena. Società tipografica modenese. 1927.
44

teóricos, mas sobretudo para explicar sua efetiva explicação na vida, como é entendido,
aplicado, avaliado e visto pela população147.
Sansone explica que o texto de D’Amato “fora precedido por escritos gerais sobre a
relação entre direito e literatura, os quais constituíam, todavia, escritos de menor
importância”148, entretanto, optou por referenciá-lo como o primeiro trabalho italiano de grande
significância em D&L, pois a obra de Pergolesi veio a ter um desdobramento essencial nas
décadas de 1940-50, sendo oportuno referir-se ao autor relacionando-o a este período149. Maria
Paola Mittica, por sua vez, assinala que o mencionado ensaio de Pergolesi foi apenas o primeiro
dentre vários, culminando em seu trabalho mais extenso, denominado Diritto e giustizia nella
letteratura moderna narrativa e teatrale150, ao passo que de autoria de D’Amato só se tem
ciência da obra datada de 1936151.
A obra de Pergolesi entre as décadas de 40 e 60 é tão significativa que Sansone atribui
a ele o aprofundamento do estudos europeus em D&L, ante o volume de escritos, do método e
da sistemática adotada 152 - sendo este o período intermediário. Sansone realizou um
levantamento de treze ensaios publicados por Pergolesi entre 1947 e 1960, todos sobre a relação
entre direito e literatura, passando, entretanto, por uma heterogeneidade de tópicos tão
abrangentes que vão de comentários quanto à certeza do direito, execução de sentenças, direito
de familia, sucessões, direito sindical, tipos/modelos de juízes, formação social do direito e
causas de impedimento de realização da justiça, sempre através da literatura antiga e daquela a
ele contemporânea com o intuito de descobrir como a literatura pode iluminar determinados
aspectos da história do direito153.
Nesta transição entre as década de 40 e 50, é publicada em 1949 na Espanha a obra
Derecho y Literatura, de autoria de Juan Ossorio Morales, analisando “à luz dos clássicos da
literatura castelhana, a práxis jurídica e social do Século de Ouro” 154 . Em 1950, Han Fehr
retorna com um novo ensaio levantando a possibilidade de se utilizar a literatura como fonte de

147
Idem, ibidem p. 7.
148
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp. 4 e 7. Tradução livre. No original: “[...]il saggio di D’Amato è
preceduto anche da scritti generali sui rapporti tra diritto e letteratura, che cOstituiscono pur tuttavia esperienze di
minor respiro [...].”
149
Idem, ibidem, pp.6-7.
150
PERGOLESI, Ferrucio. Diritto e giustizia nella letteratura moderna narrativa e teatrale. Bologna. Zuffi
editore. 1949.
151
MITTICA, Cosa accade..., op. cit., p. 10, nota 16.
152
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 18.
153
Idem, ibidem, pp. 21-22. Embora tais assuntos tenham sido retratados com maior extensão nas décadas de 1940,
50 e 60, Pergolesi já havia se manifestado a respeito das mesmas em seu ensaio datado de 1927. A título
exemplificativo, ressaltamos a problematização da justiça, levantada a partir de obras de Tolstói, Victor Hugo,
Sófocles e Cervantes; cfr: PERGOLESI, Il diritto nella letteratura, op. cit., pp. 38-46.
154
TRINDADE e GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p. 26.
45

aprendizagem e reconstrução da história do direito155. Após essa contribuição de Fehr, segundo


Sansone, a literatura alemã em D&L passou a se concentrar no estudo da representação dos
processos judiciais na literatura, bem como no exame de aspectos gerais do direito penal156.
Ainda em tal período, compreendido como intermediário entre o início dos estudos em
D&L e sua definitiva afirmação nas universidades americanas e européias, Sansone destaca
duas publicações ocorridas nos Estados Unidos da América, as quais levaram adiante as
propostas de estudo encabeçadas por Wigmore e Cardozo. São elas as obras Law in Action,
publicadas por Edmund Fuller em 1947, e The World of Law, por Ephraim London em 1960157.
O livro de Fuller é dividido em quatro partes e aborda questões quanto à liberdade,
moral, justiça e crimes, através da literatura, passando pelos evangelhos, Honoré de Balzac,
Cervantes, Melville e Carroll, para citar alguns158. London, por sua vez, separou sua obra em
dois volumes, denominados The Law in Literature e The Law as Literature, as quais abordavam
temas tocantes à justiça, como por exemplo, casos, julgamentos, atores processuais e reflexões
sobre o direito159.
Os dois volumes de London constituem uma antologia composta por excertos de textos
literários que retratam o direito na literatura, pelas narrativas literárias de Wilde, Pirandello,
Dickens e pelas reflexões de Camus a respeito da guilhotina; e o direito como literatura, a partir
do testemunho de Joana D’Arc em um de seus interrogatório perante a igreja e do discurso de
Emile Zola em seu julgamento por difamação160.
Deste momento em diante, em decorrência do aumento dos escritos e discussões a
respeito do tema, no transitar das décadas de 60 e 70161, iniciam-se as propostas de inserção do
estudo da relação D&L nas academias americanas.
É neste momento que, então, James Boyd White publica, em 1973, o livro The Legal
Imagination: Studies in the Nature of the Legal Thought and Expression, no qual aborda o
direito como um sistema cultural, cuja racionalidade é composta pela imaginação e pela
criatividade literária. Contribuiu, dessa forma, imensamente para a inclusão dos estudos entre

155
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 33.
156
Idem, ibidem, 33-34.
157
A autora ressalta, ainda, obras de menor impacto que precederam as aqui mencionadas. Cf: SANSONE, Diritto
e letteratura, op. cit., pp. 34-37.
158
Idem, ibidem, pp. 34-35.
159
Ibidem, p. 37.
160
LONDON, Ephraim. The World of Law. Volumes 1 e 2. Simon and Schuster. New York. 1960.
161
TRINDADE e GUBERT, Diritto e Letteratura, op. cit., p. 27.
46

Direito e Literatura na academia americana, naquilo que restou denominado como Law and
Literature Movement162.
A obra em questão não é propriamente sobre a relação D&L, mas estritamente sobre
o Direito e como estudá-lo através dos diversos usos da linguagem163. Trata-se de um curso
avançado de leitura e escrita, sobre como trabalham os juízes e advogados a partir do uso que
fazem das palavras enquanto operadores do Direito164. Ao longo de mais de novecentas páginas,
divididas em sete capítulos, White refere-se ao advogado como um “tipo especial de escritor”,
pois o ofício por esse exercido localiza-se entre o uso profissional, regrado e institucional, que
faz da linguagem e as demais atividades que exerce, salientando o autor que não há uma divisão
incomunicável entre esses dois âmbitos, ou seja, o profissional e o de sua formação pessoal165.
De forma que esta, segundo o autor, tem uma influência direta no exercício daquela.
White possui uma concepção bastante peculiar do direito como forma de retórica,
enquanto um complexo sistema de cultura compartilhada através de pensamentos e expressões,
que podem ser aprendidos, modificados, preservados, e que constituem um método de
integração166. Com isso, convida seu leitor a encarar o estudo do Direito não como o estudo de
uma ciência, mas sim como uma forma de arte, incentivando-o a exercitar a imaginação, como
mecanismo de estímulo à escrita através da reflexão crítica para, por fim, desenvolver voz e
estilo próprios no exercício profissional e/ou formação acadêmica167.
Para tanto, provoca reflexões através de excertos de fontes literárias diversas, como
textos de literatura, livros de filosofia, leis e julgamentos paradigmáticos. Ao fim de cada seção
de cada um dos capítulos propõe, ainda, exercícios de redação que estimulam o leitor a colocar-
se nas posições de advogado, parecerista, juiz e legislador, como forma de experimentar
alterações nas formas e técnicas de escrita, no desenvolvimento da retórica e na ordem

162
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp. 38-39; TRINDADE e GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p.
27.
163
WHITE, James Boyd. From Expectation to Experience: essays on Law and legal education. Ann Arbor. The
University of Michigan Press. 2000. pp. 73-76. É válido ressaltar que tal perspectiva já era clara em The Legal
Imagination, entretanto, as obras posteriores de James Boyd White reafirmam sempre que na relação D&L há
sempre a prevalência do caráter educador exercido pela literatura no estudo do direito e não uma
instrumentalização daquela por este. Tal perspectiva é abordada no próximo item, 3.1.
164
WHITE, The legal imagination, op. cit., p. xxxi.
165
Idem, ibidem pp. 3-7.
166
Ibidem, prefácio.
167
Ibidem, pp. xxxi-xxxv. É estimulante a seguinte passagem: “One of my purposes is to encourage the student to
make a life of his own in the law, to resist the pressures to conform to the expectations of others.” Idem, p. xxiii.
É digno de destaque que, em 1908, Benjamin Cardozo já se referia à magistratura e advocacia enquanto ofícios
cujas respectivas práticas assemelham-se a uma forma de arte: “He is expounding a science, or a body of truth
which he seeks to assimilate to a science, but in the process of exposition he is practicing an art.” CARDOZO,
Law and Literature, op. cit., p. 40.
47

cronológica das narrativas de aspectos ligados aos casos propostos. Ao fim da obra, recomenda
alguns livros que podem ajudar o estudante que pretende continuar os estudos por ele propostos.
Maria Paola Mittica afirma que essa contribuição de White serviu como a consagração
do Law and Literature como o movimento que visa a renovação do discurso político e jurídico
pelo estudo atento à realidade social e humana. Nos lembra, ainda, que James Boyd White é,
por formação, jurista e crítico literário168. O desenrolar do movimento D&L, até a etapa ora
trabalhada, aproximou a abordagem do sistema jurídico de uma dimensão ética literária169,
afinal, a literatura vinha sendo utilizada como forma de estímulo à formação humanística em
âmbito jurídico170.
É essa a lição que se pode observar dos três grandes trabalhos de Wigmore, Cardozo e
White, os quais, em seus respectivos modos, traçaram um caminho rumo à complementação da
formação do jurista. Wigmore, voltado a advogados; Cardozo, aos juízes e; White, preocupado
diretamente com os estudantes (que posteriormente viriam a ser também eles professores,
advogados, procuradores, juízes, enfim, juristas). Eis o motivo da escolha daquele excerto da
obra de James Boyd White como epígrafe introdutor deste capítulo. Afinal, White configura o
ponto de viragem no rumo dos estudos em D&L e sua obra é uma ode ao poder pedagógico e
emancipador que a literatura exerce sobre a formação cívica e jurídica.
Destacamos que, até então, a utilização da expressão Direito e Literatura se referia ao
relacionamento entre ambas áreas do conhecimento e não propriamente quanto à forma em que
este relacionamento se dava. Posteriormente, naquilo que restou denominado por Sansone como
“afirmação definitiva”, ou seja, no período após a década de 1980, é que foi possível ver mais
claramente o “enraizamento epistemológico” dos estudos em D&L e uma maior preocupação à
mencionada “forma” de abordagem, com a consequente distinção entre as, digamos, “vertentes
do movimento”: direito na literatura, direito como literatura e direito da literatura.

168
MITTICA, Cosa accade..., op. cit., p. 4, nota 3.
169
BUESCU, Helena; TRABUCO, Cláudia; RIBEIRO, Sónia [coordenadoras]. Direito e literatura: mundos em
diálogo. Coimbra. Almedina. 2010. p. 5; SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp. 77-79.
170
Devemos mencionar aquilo que foi observado por Maria Paola Mittica ao afirmar que enquanto a experiência
americana, até a década de 1970, era voltada para a formação jurídica sensibilizada ao compromisso político e
que, somente após, passou a preocupar-se com a interdisciplinariedade presente no estudo Direito e Literatura, a
experiência européia já partia desta perspectiva interdisciplinar para abordar problemas relacionados ao
fundamento do direito, da lei e da justiça, a origem dos ordenamentos jurídicos, relação direito e moral, origem
dos ordenamentos jurídicos e etc. Ou seja, os estudos europeus já buscavam o aprofundamento da reflexão jurídica
quanto a “relação entre o direito e o homem em suas diversas realidades”, persistindo a ideia de que a educação
para a cidadania – tão cara à experiência norte americana – não é um fim em si mesmo, mas uma consequência da
formação da pessoa cuja formação atravessa diversos mundos (o direito, a filosofia, a sociologia, a literatura, etc.).
Cfr: MITTICA, Cosa accade..., op. cit., p. 11. Na mesma linha de análise, cfr: SANSONE, Diritto e letteratura,
op. cit., p. 71.
48

A título exemplificativo, nos valemos de James Boyd White que, ao fim de seu The
Legal Imagination, ao recomendar alguns livros para que seus leitores pudessem continuar a
própria formação a partir dos estudos por ele propostos, observou que alguns escritores a ele
anteriores tentaram traçar conexões entre o direito e a literatura quase que sempre de maneira
superficial, embora de forma interessante. Para ilustrar tal afirmação, o autor refere-se às obras
de Ephraim London que, conforme apontamos acima, eram da década de 1960 e chamavam-se
Law as Literature e Law in Literature171.
Queremos dizer, portanto, que até a década de 70, o desenvolvimento dos estudos em
D&L, especialmente nos Estados Unidos, esteve majoritamente voltado ao melhoramento da
atuação de juízes e advogados, pelo cultivo da sensibilidade e do alargamento dos horizontes
de compreensão que o mundo literário pode proporcionar.
O foco maior até tal período, portanto, não era o caráter epistemológico do
envolvimento entre direito e literatura. Entretanto, isso passou a mudar a partir da década de
80, quando a abordagem de caráter metodológico e interdisciplinar tornou-se uma das
características mais fortes da experiência americana172, graças à realização de conferências,
simpósios, revistas jurídicas, monografias, livros e organizações acadêmicas que tomaram parte
nas diversas universidades americanas e européias173. Isso sem perder de vista, todavia, a matriz
originária de educar para uma convivência democrática e para o projeto de compreensão de
uma ética pública a guiar aqueles que admnistram a lei174.
Vejamos, portanto, como se desenrolou a relação Direito e Literatura após 1980,
realizando uma incursão em algumas das obras então surgidas e que foram capazes de fortalecer
o campo de estudo que ora nos empenhamos em compreender.

171
WHITE, The Legal Imagination, op. cit., bibliographical notes, p. 968. No original: “There are, in addition,
some writers who have attempted to draw connections between law and literature, almOst always in a superficial
(however entertaining) way. See E. London (ed.), Law as Literature and Law in Literature (1960)”. Tendo em
vista que à época não havia propriamente um campo de estudo sedimentado entre direito e literatura, o qual estava
ainda a se estruturar, a citação dessa passagem do texto de White pode fazê-la parecer como uma crítica, de certa
forma irônica, à obra de London. Ressaltamos, portanto, que tal noção deve ser pelo leitor rejeitada. Em 2010, ao
comentar sua obra When words lose their meaning, White lança um olhar retrospectivo ao momento de publicação
de The Legal Imagination e afirma que as obras de referência, naquele momento, eram o ensaio de B. Cardozo
“and a fine anthology by Ephraim London [1960], which drew the non canonical distinction between law in
literature and law as literature”. Cfr: WHITE, James Boyd. When Words Lose Their Meaning. In: Diritto e
Narrazioni: temi di diritto, letteratura e altre arti. Atti del secondo convegno nazionale della Italian Society for
Law and Literature a cura di M. Paola Mittica. Ledizioni. Milano. 2011. pp. 27-46. p. 28.
172
Tendo James Boyd White assumido papel de relevância também neste aspecto. Cfr: MITICA, Cosa accade...,
op. cit., pp. 4-5.
173
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 69.
174
MITTICA, Cosa accade..., op. cit., p. 8.
49

3.1. UM PANORAMA DO ESTUDO DIREITO E LITERATURA: NARRATIVAS


QUE HUMANIZAM O DIREITO(?)

Plutôt que d’opposer un droit, langage rationnel du


pouvoir, à une littérature, fantaisie divertissante
ridevable de critères exclusivement esthétiques [...],
il faut au contraire s’attacher à comprendre leur
commune inspiration.
François Ost175
Da década de 1980 em diante, o caráter interdisciplinar do Law and Literature
Movement tanto ganhou posição de destaque nos estudos americanos, quanto ganhou espaço no
território europeu, estando hoje presente em países como Portugal, Espanha, França, Itália,
Bélgica e Alemanha 176 . Tal movimento também já atingiu a América Latina, existindo em
Brasil, Argentina, Peru, Colômbia e Equador177.
Com essa maior difusão dos estudos em D&L, pela criação de determinados centros
de pesquisa e pelo crescimento de trabalhos publicados na área, tornou-se mais clara a linha
demarcatória que caracteriza as mencionadas vertentes do movimento, a saber, Law as
Literature e Law in Literature – a perspectiva mais próxima à dimensão ética literária da relação
entre direito e literatura.
Por motivos de organização textual, optamos por guiarmo-nos pela evolução da obra
de James Boyd White no que toca à experiência americana, uma vez ser esse um autor
complexo, com vasta produção bibliográfica e que não somente contribuiu para o crescimento
dos estudos em D&L na década de 1970, como também impulsionou e vem acompanhando o
desenrolar do movimento daí oriundo. Farão parte de nossa análise, ainda em território norte
americano, Martha Nussbaum e Richard Posner. No que toca à experiência européia, nos
conteremos em mencionar o seu espraiamento, sua afirmação definitiva, passando por Itália,
Portugal e Espanha. Na américa do sul, comentaremos seu desenvolvimento no Brasil.
Este “panorama”, digamos, descritivo, servirá também para contextualizar e delinear
a crítica adiante desenvolvida quanto ao movimento D&L. Vejamos, portanto, alguns dos
pensadores de maior destaque atualmente, contextualizando suas obras com as respectivas
linhas de pensamento.

175
OST, François. Raconter la Loi: Aux Sources de L’imaginaire Juridique. Odile Jacob. Paris. 2004. p. 19.
176
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., pp. 43-68; MITTICA, Cosa accade, op. cit., pp. 9-10; BUESCU;
TRABUCO e RIBEIRO, Direito e literatura, op. cit., p. 6.
177
TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do direito e literatura no Brasil: surgimento,
evolução e expansão. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura. v. 3. n. 1, janeiro-
junho/2017. pp. 225-257. p.228.
50

3.1.1. A experiênica estadunidense

Após a obra The Legal Imagination, na qual JB White tratou o estudo do direito como
uma forma de arte e lançou o caminho para que seus leitores buscassem o desenvolvimento de
um estilo próprio de escrita (seja para se pensar o direito, estudá-lo ou para exercer o ofício de
jurista, passando pelo engrandecimento da compreensão do direito através da abertura dos
horizontes pela literatura), o autor publicou o artigo Law as Language: Reading Law and
Reding Literature178, em 1982, com valiosas reflexões a respeito de seu peculiar modo de pensar
a interpretação em ambas áreas do conhecimento. Tal texto nos parece ser uma chave de leitura
fundamental para compreender suas contribuições posteriores sobre a relação entre direito e
literatura.
Isto porque, em conformidade à sua concepção do direito enquanto uma forma de
retórica 179 , White afirma categoricamente que a interpretação textual (jurídico ou literária)
possui um grau mínimo de objetividade, sendo possível, portanto, estabelecer e partilhar
compreensões a respeito do que o texto diz, do que não diz e sobre o que não restou claro180.
Esta objetividade, todavia, não significa que o sentido do texto possa ser exprimido em uma
frase ou em uma única palavra, exaurindo outras possibilidades interpretativas, afinal, se assim
fosse sua escrita não seria necessária e o escritor poderia deixar-nos sua mensagem diretamente,
poupando-nos do texto em si181.
Este grau mínimo de objetividade significativa necessita, segundo o pensador
estadunidense, de uma redefinição contextual para o momento em que a leitura ocorre, existindo
aqui uma atividade criativa e interativa entre o texto e o intérprete. No entanto, esta criatividade
está limitada por conceitos chaves na interpretação, como por exemplo, a “herança liguística”182

178
WHITE, James Boyd. Law as Language: Reading Law and Reading Literature. In: Texas Law Review. 60.
1982. pp. 415-445.
179
No mesmo sentido, Sansone afirma que o núcelo essencial do pensamento de James Boyd White divide-se entre
sua “peculiar concepção do direito, entendido como forma de retórica” e sua “concepção de texto e interpretação”,
sendo essa última o foco de nosso interesse para o desenvolvimento deste trabalho. Sobre o conceito de direito em
James Boyd White, conferir: SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., pp. 84-87.
180
Nas palavras do autor: “I believe that it is possible to read both legal and literary texts in such a way as to
establish confidently shared understandings of what they mean, what they do not mean, and what they are unclear
about; and in my view one may properly call the meanings so established objective, though not in a simple or
extreme sense.” Cfr: WHITE, Law as Language, op. cit., p. 419.
181
WHITE, Law as Language, op. cit., pp. 420-421.
182
White utiliza o termo “cultural heritage” para referir-se, no tocante à literatura, ao reconhecimento da
importância de determinado autores e no alargamento de horizontes através das obras literárias; no que toca ao
direito, o termo mencionado busca definir os conceitos e termos jurídicos herdados, legados pela tradição e que
constituem o desenvolvimento do direito na marcha histórica. Tendo em vista que o autor refere-se tanto ao direito
quanto à literatura como “linguagens”, cujo relacionamento engrandece a aprendizagem e a formação do leitor,
optamos por traduzir “cultural heritage” por “herança linguística” já que em seu pensamento a transmissão cultural
é pela linguagem, seja literária ou jurídica, escrita ou falada. Ademais, uma “comunidade interpretativa” é, por
51

legada à “comunidade interpretativa”, que a constringe a não abandonar os procedimentos já


estabelecidos por substitutos que temporariamente pareçam melhores, mais adequados ou
superiores.
Nos casos em que tal mudança deva ocorrer, no seio da mencionada atividade criativa
e interativa, a atitude a ser tomada será caracterizada pelo que o autor definiu como uma
“atividade de humildade cultural”183. De deixar-se guiar pelo que a própria linguagem (através
das “linguagens” do direito e da literatura) mOstra da transformação dos conceitos, termos e
institutos observados pelo intérprete184.
Sua ideia de estimular a reflexão crítica nos estudantes, visando o desenvolvimento de
uma voz própria nas funções de jurista, através de um estilo de leitura e escrita próprios,
presente em The Legal Imagination, é também consonante à sua concepção do direito como
forma de retórica. Por outro lado, seu conceito de interpretação, contido no artigo Law as
Language, configura, em nossa opinião, um guia metodológico tanto à educação crítica
proposta na obra de 1973 quanto como um aporte inicial que proporciona a compreensão do
“lugar da fala” das contribuições posteriores de White no âmbito do D&L.
Ao contrário de sua publicação de 1973, a qual não era sobre direito, mas sim sobre
como estudá-lo de forma a aperfeiçoar-se pessoal e profissionalmente, o livro When words lose
their meaning: Constitutions and Reconstitutions of Language, Character and Community, de
1984, é do início ao fim sobre Direito. E sobre literatura. E tem por objetivo mostrar que a
compreensão fiel dos textos pelos profissionais de ambas as áreas, necessita de atenção quanto

consequência óbvia, uma “comunidade linguística”, que fala, escreve, ouve e lê.Cfr: WHITE, Law as language,
op. cit., pp. 442-444.
183
No original: “In both cases, the attitude is one of cultural humility.” WHITE, Law as Language, op. cit., p. 443.
184
As abordagens de JB White quanto à linguagem, à “herança linguística”, ao confronto entre sentidos do passado
com a significância no presente, à “atividade de humildade cultural” traduzida como uma espécie de cuidado na
interpretação textual, nos parecem estar de certo modo consonantes ao tratamento dado por Gadamer à fusão de
horizontes do intérprete, no momento de sua applicatio. Isto ocorre, ainda, com a ideia exposta em The Legal
Imaination de que a formação pessoal do indivíduo exerce um peso sobre a atuação profissional do jurista, uma
vez que ambos os “mundos” (jurídico e literário) não estão cindidos. Temos por claro, entretanto, que a análise
empregada pelo professor americano é influenciada tanto pela filosofia analítica de Wittgenstein quanto pelos atos
da fala de JL Austin. Não obstante nossa análise do relacionamento entre D&L partir de um paradigma filosófico
distinto, a saber, a hermenêutica filosófica, que transportada ao direito deu origem à Crítica Hermenêutica do
Direito, nossas leituras de JB White deixam sempre a impressão de que uma abordagem de sua obra a partir da
filosofia continental, em específico do paradigma filosófico-hermenêutico (seguindo a tradição legada por
Heidegger e prosseguida por Gadamer), seria frutífera em fazer avançar o estudo das possibilidades de
compreensão do fênomeno “direito e literatura”. Por ser deveras extenso, não é possível trabalhar tal tema aqui,
motivo pelo qual o retomaremos num trabalho futuro. Sobre a influência do segundo WittgenStein e de JL Austin,
cfr: WHITE, James Boyd. When words lose their meaning: Constitutions and Reconstitutions of Language,
Character, and Community. The University of Chicago Press. Chicago and London. 1984. Bibliographical notes,
p. 291; WHITE, James Boyd. Justice as Translation: An Essay in Cultural and Legal Criticism. The University
of Chicago Press. Chicago and London. 1990. pp. xiv-xviii e pp. 271/272.
52

à cultura em que estes vivem, sendo esta a cultura que os formou e que eles, por seus respectivos
turnos, ajudam a formar185.
Para tanto, o autor explora a ligação entre direito e literatura com foco nas mutações
de sentidos na linguagem e no mundo, tentando compreender e explicar como as palavras
adquirem seus significados, os perdem e adquirem novos. Neste ínterim, White analisa tais
alterações tanto a nível do “indivíduo” quanto do “mundo”, afinal, quando a linguagem muda
de significado, o mundo também muda e nós somos parte do mundo186.
Passando por textos de filosofia, história, poesia, ficção e textos jurídicos, JB White
busca mostrar que esses não estão separados, cindidos ou absolutamente a parte uns dos outros,
mas que constituem uma unicidade, encontrando-se todos na linguagem187. Isto é possível, pois
White tem que um texto, seja ele um argumento, um poema, um texto histórico, filosófico188
ou doutrinário189, é a reconstituição da cultura, ou seja, estando ciente disso ou não, repudiando-
a ou apontando suas incoerências, um texto será sempre necessariamente cultural.
Concordando com aquilo que foi definido por Sansone como “núcleo essencial” do
pensamento de White, a saber, sua concepções quanto ao direito enquanto forma de retórica,
quanto ao que é um texto e a interpretação, com a definição de texto acima apontada, parece
que estamos a nos deparar com o tripé de sustentação das investigações do professor
estadunidense. Ressaltamos, todavia, que JB White define a retórica como um gênero de arte
do qual o direito é uma espécie. Tal idéia é elaborada num artigo publicado em 1985, cujo título
Law as Rethoric, Rethoric as Law: The Arts of Cultural and Communal Life expressa bem a
definição anteriormente mencionada190.

185
“I am suggesting that a full fidelity to the texts at the center of one’s professional life requires attention also to
the culture in which we live, which has formed us and which we form. The question, “What can these texts mean
to us?” is an essential part of reading them, and it can be answered only by knowing who we are.” WHITE, When
words lose..., 1984, op. cit., pp. xi-xii.
186
“[...] for at every stage the change is effected, knowingly or not, by the action of individual people, who at once
form and are formed by their language and the events of their world. When language changes meaning, the world
changes meaning, and we are part of the world.” WHITE, When words lose their meaning, op. cit., p. 4.
187
Idem, ibidem pp. 275-285. JB White afirma que a escrita de When Words Lose Their Meaning, atravessando
gêneros diversos de textos, o ajudou a ver todos estes como diferentes versões da mesma coisa – eis a “unicidade”
mencionada. Nas palavras do autor: “[...] I could see law, and philosophy, and history, and literature, with all their
obvious differences, really as different versions of the same thing.” WHITE, When Words Lose Their Meaning, In
Diritto e Narrazioni, op. cit., p. 32.
188
No original: “Since the text – whether it is an argument, a poem, or a work of history or philosophy – is always
a reconstituion of the culture, it is necessarily about the culture, whether it idealizes it, ironically repudiates it, or
elaborates its incoherences. The text is not a closed system but an artifact made by one mind and offered to another;
it recreates the materials of the world for use in the world”. Idem, ibidem, p. 280.
189
WHITE, James Boyd. Doctrine in a Vaccuum: Reflections of What a Law School Ought (And Ought not) To
Be. Journall of Legal Education 36. 1986. pp. 155-166. pp. 163-166.
190
WHITE, James Boyd. Law as Rethoric, Rethoric as Law: The Arts of Cultural and Communal Life. The
University of Chicago Review. Vol. 52, n. 3. 1985. pp. 684-702. p. 684.
53

Segundo o autor, a prática judiciária sempre opera narrativamente, entre atores com
papéis determinados (advogados, juízes, promotores, defensores, etc.) e uma audiência, de
forma que tal narrativa é construída numa justaposição entre a linguagem “ordinária” e a
linguagem “própria” (técnica) do direito, sendo esta necessariamente conhecida pelos atores
judiciários. Esta justaposição configura, para White, “um sistema interno de tradução capaz de
alcançar uma variedade de ouvintes”191.
As considerações a seguir sobre suas contribuição ao movimento D&L partem,
portanto, do “lugar da fala” estabelecido pelo autor nas obras até então mencionadas. Parece
seguro afirmar, neste ponto, que a relação entre direito e literatura para White configura uma
investigação a ser realizada na própria linguagem, com o intuito de conjugar “as linguagens” a
si disponíveis em busca de uma compreensão alargada da manifestação do fênomeno
investigado.
A narração do processo de compreensão, em White, configura a explicação do que foi
por ele compreendido. É exatamente isto que ele faz ao longo de When words lose their
meaning, pois ao conjugar interpretações de acontecimentos em obras literárias como, por
exemplo, a narrativa de Tucídides sobre a guerra entre Esparta e Atenas e o diálogo Górgias de
Platão, vai narrando seu processo/método de leitura e análise (desenvolvidos já na proposta de
The Legal Imagination) e abrindo os horizontes de compreensão tanto dessas quanto dos
fênomenos jurídicos e sociais ali presentes. O resultado disso é uma obra fundamental para se
estudar o movimento D&L, de forma tangencial à estrutura criada e mantida pelo “e” da
expressão “direito e literatura” 192 , atualmente dividida em três “categorias” – adiante
comentadas.
Isso porque, James Boyd White não escreve propriamente a partir do movimento D&L
como concebido, mas sim sobre direito e literatura. Queremos dizer que o professor americano
não escreve a partir do movimento D&L (na forma em que vem sendo categorizado desde a
obra de E. London), mas sim sobre a relação que é objeto deste movimento, a qual, de certa
maneira, parece não ser o tema majoritário nas publicações especificamente dirigidas a D&L.
Em When Words Lose Their Meaning, White busca mostrar o quão frutífera é a leitura
crítica por ele proposta, a qual, busca atenciosamente compreender as “linguagens” utilizadas

191
WHITE, Law as Rethoric, Rethoric as Law , op. cit., pp. 688-692.
192
White parece ter um problema com o termo “law and literature”: “I accordingly think that the now-popular
phrase law and literature is a bit misleading. Aside from the mystery brushed over with the word and, the word
literature is too narrow. It suggests a limitation to “high literature”, which itself raises at least two difficulties:
who is to determine what literature shall count as “high” ad what hidden (or not so hidden) political or social
agenda is embedded in that choice?” In: WHITE, From Expectation to Experience, op. cit., p. 59.
54

pela literatura e pelo direito, porque assim torna-se possível: i) refletir criticamente a respeito
da “própria linguagem” estudada (a linguagem técnico-jurídica, por exemplo) para; ii) discursar
sobre e a partir dela. Ou seja, estando em questão a linguagem técnico-jurídica – aquela
especificamente utilizada por juristas –, é responsabilidade dos operadores do direito o amplo
conhecimento dessa, para que tenham a possibilidade de compreendê-la, comunicar e refletir
criticamente a seu respeito.
É esse tipo de leitura crítica, seja no âmbito literário ou jurídico, que tem seu lugar na
comunidade interpretativa fundada pela “herança linguística”, cuja eventual “redefinição
contextual” dependerá da atividade criativa e interativa existente entre texto e intérprete, nos
moldes em que acima expostos. Esta atividade interpretativa (redefinição contextual) foi, na
década de 1990, abordada por White em Justice as Translation, retomando a ideia de tradução
lançada no artigo de 1985, Law as Rethoric, Rethoric as Law.
Merece destaque o fato de que, embora o termo “tradução” tenha sido apresentado por
White em 1985 e especificamente desenvolvido apenas em 1990, é possível perceber que o
pensador americano já flertava com tal conceito em When Words Lose Their Meaning193:

It has been my purpose to record not merely a method or a set of terms but an
activity of mind expressed in what I call a language. Such a language can be
learned only by immersion in its processes. One understands it not when one
can translate its terms into other equivalences but when one can do it oneself
– when, in WittgenStein’s phrase, one knows how to go on – as I hope the
reader has begun to do with the language at work in this text.
A palavra “traduzir” no trecho acima, no interior da obra de White, importa numa
espécie de arte do reconhecimento. Isto porque, o ato de tradução implica no reconhecimento,
em primeiro lugar, das diferentes linguagens (e línguas) existentes e isto coloca o tradutor num
ponto intermediário entre essas (seja entre idiomas ou no marco divisório entre a linguagem
jurídica e a coloquial, por exemplo) ou entre pessoas (ou povos). Este reconhecimento o permite
compreender de maneira mais ampla tanto as diferenças entre ambos, quanto a relação de si
para com a linguagem e como isto representa uma limitação. Isto é, o ato de tradução ocorre no
limite da linguagem. Ou, ainda, no limite das linguagens194.
Tendo em vista que para JB White, o texto é que cria a comunidade195, a tradução
significa, então, a tentativa de união entre dois mundos, entre diferentes modos de ser e ver o
mundo a si circundante. É a união de duas vozes através da explicação daquilo que as relaciona:

193
Idem, When Words Lose Their Meaning, op. cit., p. 276.
194
Idem, Justice as Translation, op. cit., p. 230.
195
“[...] for me it is the text that creates the community, rather than the other way around.” Cfr: WHITE, James
Boyd, Law as Language, op. cit., p. 417.
55

o sentido. Tradução e interpretação são, desta forma, quase que sinônimos. A diferença entre
ambas é que aquela se oferece como uma substituta do texto original. De toda forma, ambas
possuem uma relação de fidelidade para com esse196. A função do tradutor consiste, portanto,
em reconstruir o sentido que reside neste limite entre mundos. Dito de outra forma: entre os
mundos em diálogo197. A produção acadêmica de James Boyd White localiza-se, desde 1973,
neste liame entre mundos.
É desta interseção que surgem suas obras posteriores, The Edge of Meaning198 e Living
Speech – Resisting the Empire of Force199, publicadas respectivamente em 2001 e 2006, nas
quais White realiza novas experiências com a linguagem através do mundo literário em busca
de iluminar o mencionado “liame entre mundos”, trazendo a linguagem ao pensamento sobre a
própria linguagem200. Com isso, intenta conhecer melhor as possibilidades de compreensão
crítica do mundo, lançando luz sobre as estruturas de poder que delineam os contornos da
existência humana – atividade que se perpetua através das diversas formas de utilização das
diversas formas de linguagem201.
Sansone afirma que o percurso teórico de Boyd White representa uma perspectiva ética
do movimento D&L, acrescentando aqui, ainda, as contribuições da filósofa americana Martha
Nussbaum 202 , autora de vasta produção bibliográfica, dentre as quais destacamos Love’s
Knowledge, Poetic Justice: The Literary Imagination and Public Life, Cultivating Humanity:
A Classical Defense of Reform in Liberal Education e Not For Profit: Why Democracy Needs
the Humanities. Por ser filósofa e não jurista de formação, Nussbaum se avizinha do movimento
D&L a partir de aproximações entre filosofia (majoritariamente de estudos aristotélicos)203 e
literatura, abordando temas como a ideia de justiça, filosofia moral, amor, ética, humanização,
educação e justiça social.
Em seu Love’s Knowledge (1990), a autora revisita e expande seus artigos publicados
na década de 1980 – período de sedimentação dos estudos em D&L, ressaltamos –, defendendo
uma concepção de uma espécie de ética compreensiva, a qual elabora através do relacionamento
entre filosofia e literatura, especialmente em razão da riqueza literária na exposição de situações

196
Idem, Justice as Translation, op. cit., pp. 236-237 e pp. 257-269.
197
Expressão contida no título da obra de Buescu, Trabuco e Ribeiro, cfr: BUESCU, TRABUCO e RIBEIRO,
Direito e literatura: mundos em diálogo, op. cit..
198
WHITE, James Boyd. The Edge of Meaning. The University of Chicago Press. Chicago and London. 2001.
199
Idem, Living Speech – Resisting the Empire of Force. Princeton University Press. Princenton and Oxford. 2006.
200
WHITE, The edge of meaning, op. cit., p. 4. HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. In: MARTIN,
Heidegger. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 7ª ed. Editora Vozes,
Petrópolis/RJ. Editora Universitária São Francisco, Bragança Paulista. 2015. p. 210.
201
Idem, Living Speech, op. cit., pp. 1-12.
202
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 79.
203
Idem, ibidem, p. 100.
56

vividas e/ou possíveis de o serem. Em decorrência disto, a concepção ética de Nussbaum se dá


a partir de uma abordagem da filosofia moral que é tanto filosófica quanto literária204.
Com este aporte teórico, a autora americana passou, em 1994, a lecionar a disciplina
Law and Literature na faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Disciplina essa que
havia sido ali implementada por James Boyd White na primeira metade da década de 1970,
após a publicação de seu The Legal Imagination. Com seus alunos, Nussbaum abordou temas
como justiça social, questões de gênero, compaixão e piedade para apresentar a possibilidade
de compreensão do outro, do diferente a si, a partir das representações do ser humano contidas
em textos de diversos gêneros, como por exemplo, em Sófocles, Platão, Sêneca e Dickens205.
Após essa experiência universitária, no ano de 1995, Nussbaum publicou seu livro
mais voltado para a relação Direito e Literatura, Poetic Justice: The Literary Imagination and
Public Life, tendo o respaldo teórico da ética desenvolvida em Love’s Knowledge como chave
de leitura para demonstrar como o exercício, o culto, da imaginação literária pode render frutos
que farão florescer a justiça social206.
De sua rica produção intelectual, após o ano de 1995, destacamos os livros Cultivating
Humanity e Not For Profit, respectivamente de 1997 e 2010, nas quais Nussbaum afirma que o
objetivo de uma educação liberal é cultivar a humanidade, o que equivale a educar para o
exercício de uma cidadania global desenvolvida a partir das capacidades de ter um olhar crítico
quanto a si e quanto à cultura em que inserido, bem como de compreender a si enquanto ser
humano que relaciona-se com outros seres humanos numa relação de preocupação e empatia.
Tais obras representam um manifesto da preocupação da autora para com aquilo que
denominou como “a crise silenciosa que passa desapercebida como um câncer” e que “é danosa
ao futuro dos governos democráticos: uma crise global quanto à educação” 207 . Trata-se do
desprestigío lançado sobre disciplinas propedêuticas e humanísticas, ante uma maior gana
quanto à educação técnico-profissionalizante-científica. Not For Profit configura, deste modo,
uma ode à relação entre Literature and Arts, em prol de sua capacidade de cultivar a imaginação
e a humanidade através de um educar emancipador.

204
NUSSBAUM, Love’s Knowledge, op cit., p. ix.
205
Idem. Poetic Justice: The Literary Imagination and Public Life, trad. it. di Giovanna Bettini,, Il giudizio del
Poeta: Immaginazione letteraria e vita civile. Campi del Sapere/Feltrinelli. Milano. 1996. p. 14.
206
Nas palavras da autora: “[...] leggere romanzi non ci fornirà la chiave della giustizia sociale, ma puó essere un
modo per arrivare a un’idea di giustizia e alla sua applicazione nella società.” Idem, ibidem, p. 31.
207
Idem, Not For Profit, op. cit., pp. 1-2. No original: “[...] I mean a crisis that goes largely unnoticed, like a
cancer; a crisis that is likely to be, in the long run, far more damaging to the future of democratic self-government:
a world-wide crisis in education.”
57

Retornando ao livro Poetic Justice que, conforme dito, aproximou a autora ao


movimento D&L, nota-se que tal obra contém uma dedicatória a um professor da Universidade
de Chicago que foi responsável pela cadeira de Law and Literature na década de 80, após James
Boyd White e, contudo, antes de Nussbaum, mas que lhe serviu como fonte de diálogo e
inspiração. Trata-se de Richard Posner.
Com a publicação de seu primeiro artigo sobre o tema, em 1986, Posner assumiu uma
postura crítica em relação ao movimento e a seus protagonistas, expôs suas preocupações e
distanciamentos, bem como destacou as possíveis benesses de um relacionamento entre direito
e literatura. No entanto, desde o início de sua análise, destacou que tal “relacionamento” deve
ser elaborado de maneira cautelosa, mantendo-se sob observação, mas em separado, ambos os
campos do conhecimento. Pugnava, assim, por uma maior cautela metodológica no interior do
movimento D&L. Vejamos, então, como desenvolveram-se as contribuições do jurista
americano.
As críticas de Posner surgem naquilo que, com apoio em Sansone apontamos como
período de afirmação definitiva dos estudos em D&L, ou seja, após a década de 1980,
caraterizado pela inserção de disciplinas e eventos acadêmicos voltados ao tema nas
Universidades.
A respeito disso, ele afirma que foi somente após a publicação de The Legal
Imagination que surgiu um campo distinto e bem delimitado sobre direito e literatura, pois até
então os estudos nessa área não passavam de pequenos lembretes de que o direito é
frequentemente objeto da literatura e de que decisões judiciais possuem qualidades literárias208.
Queremos destacar, portanto, que o artigo ora analisado faz parte do primeiro contato do jurista
norte americano com este nosso campo de estudo, razão pela qual o consideramos crucial na
compreensão de seus escritos posteriores a respeito do tema.
No desenvolver de suas críticas, Posner analisa publicações encabeçadas por James
Boyd White, Richard Weisberg e Ronald Dworkin. Ressaltamos que, embora Weisberg e
Dworkin sejam também adiante mencionados, não é nosso objetivo analisar suas diferenças
para com Posner, nem mesmo realizar uma comparação do arraigamento filosófico desse para
com aquele exposto por nós no capítulo anterior e que guia nossas investigações. Nos contemos

208
POSNER, Richard A. Law and Literature: a Relation Reargued. In: Virginia Law Review, Vol. 72, No. 8
(Nov., 1986), pp. 1351-1392, p. 1352. No original: “[...] a distinct, self-conscious field of law and literature
emerged. Until then the field consisted of little more than reminders that law is a surprinsingly frequent subject of
literature and that judicial opinions [...] often have a literary character and quality”
58

à exposição de uma visão panorâmica do desenrolar do movimento D&L, como forma de


mantermo-nos fiéis aos objetivos de nossa pesquisa.
A atenção de Posner em seu artigo de 1986, Law and Literature: a Relation Reargued,
foi voltada a tópicos como direito na literatura (law in literature); interpretação de textos legais
a partir dos métodos da crítica literária e; a relação entre literatura e decisão judicial (judicial
opinion). Estes temas estão encadeados no raciocínio exposto pelo autor da seguinte forma:
textos literários não são a melhor fonte de conhecimento do direito209; o estudo da literatura
tem pouco a contribuir no que toca a interpretação da Constituição e dos Códigos, mas pode,
entretanto, ser útil no desenvolvimento das decisões judiciais210.
Isto porque, segundo Posner, o direito não é uma disciplina humanística (humanities),
conforme afirmara James Boyd White em 1973, mas sim uma técnica de governo211. Aliás,
Posner afirma que os escritos de JB White em D&L focam muito na literatura e pouco no
direito 212 , exceto, é claro, pelas afirmações de que a literatura promove a sensibilização
daqueles que laboram no direito. Ponto com o qual Posner concorda em determinado grau.
É justamente essa concordância com, digamos, o fruto da relação direito e literatura,
que pareceu impulsionar Posner na escrita do mencionado artigo, analisando tal relação sob
ângulo diverso e, certamente, com um maior distanciamento de seu objeto que White. Explico:
Posner concorda que a literatura possa beneficiar a atuação jurídica, pois a sensibilidade literária
é capaz de construir pontes em direção à retórica contida na decisão judicial213. Ocorre que, no
entanto, Posner não concordava plenamente com o modo em que White havia sustentado tal
relação. O artigo em questão demonstra a delimitação de sua concordância 214 para com o
estágio dos estudos em D&L à época.
Aprofundando ainda mais sua relação para com o movimento D&L, Posner publicou
em 1988 seu primeiro livro a respeito do tema: Law and Literature: A Misunderstood
Relation215, no qual retomou os argumentos expostos no ensaio de 1986, bem como abordou
novos tópicos em D&L. Seu livro é dividido em três capítulos, entre os quais, o primeiro é
responsável por analisar a abordagem literária sobre temas jurídicos, ou seja, o direito existente

209
No original: “There are better places to learn about law than novels”. POSNER, Law and Literature: a Relation
Reargued, op. cit., p. 1356.
210
POSNER, Law and Literature: a Relation Reargued, op. cit., p. 1351.
211
Idem, ibidem, p. 1392.
212
Ibidem, p. 1392. Tal crítica é extendida também a Weisberg. “[...] Weisberg and White devote so much more
attention to writers than to judges [...].” Idem, ibidem, p. 1386.
213
Ibidem, pp. 1376-1378.
214
Ibidem, p. 1391. Nas palavras do autor: “The claims I am making for literature as an aid to law are in the spirit
of Professor White's writings, but more limited.”
215
POSER, Richard A. Law and Literature: A Misunderstood Relation. Harvard University Press. Cambridge,
Massachusetts, and London, England. 1988.
59

na literatura; o segundo, lança luz sobre o direito como uma forma de literatura, investigando
as formas de interpretação dos códigos e constituições, bem como as qualidades literárias das
decisões judiciais; já no último, Posner analisa a regulação da literatura pelo direito, como por
exemplo, o suporte jurídico existente por trás da difamação, da obscenidade e dos direitos
autorais – esta vertente de análise ficou conhecida, posteriormente, como “direito da literatura”.
É digno de nota que as considerações de Posner a respeito do movimento D&L, em
1988, são guiadas por uma espécie de preocupação com o rápido desenvolvimento dos estudos
em tal campo. O autor questiona, dessa forma, o encantamento a que alguns estudiosos estariam
submetidos, a ponto de distorcer certos trabalhos literários, fazendo-os relevantes ao direito e
vice-versa216. Sua obra tenta submeter tais análises a uma crítica perfunctória que pugna por
maior consistência teórica nas investigações em D&L.
A preocupação de Posner quanto ao mau uso da literatura, pode ser bem percebido
naquilo que definiu como “tomar liberdades com os textos literários ou exagerar sobre as
implicações de teoria literária no direito”, pois isso “danificaria a literatura para colocá-la a
serviço do debate público”, ignorando que, por exemplo, a literatura do século XIX não fala a
respeito de problemas do século XX, mas sim “sobre os eternos problemas da condição
humana”217. Gostaríamos de mencionar, neste momento, que Posner parece ignorar o poder de
participação política de obras literárias em prol das características estéticas nelas contidas218, o
que torna sua limitada concordância para com JB White ainda mais limitada.
Law and Literature: a Misunderstood Relation deve ser, portanto, compreendida como
a continuação das ideias expostas em Law and Literature: A Relation Reargued, pois Posner
mantém-se coerente a seu posicionamento de que a literatura pode render frutos no direito, em
especial no que tange à decisão judicial219, pois aquela é capaz de alargar os conhecimentos dos
operadores do direito a respeito da condição humana 220 – influenciando, diretamente, sua
atuação jurídica.
Dizendo de outra forma: em sua obra de 1988, Posner posiciona-se favorável à
aplicação dos métodos literários ao estudo das decisões judiciais, bem como ao aprofundamento
das investigações a respeito da regulação da literatura pelo direito (law of literature), pois,

216
POSNER, Law and Literature, 1988, op. cit., pp. 13-14.
217
Idem, ibidem, pp. 356-357.
218
Por características estéticas, nos referimos ao impacto emotivo que certas obras literárias (como Shakespeare e
Kafka, por exemplo, analisados diversas vezes por Posner) exercem sobre o leitor. Posner chega a utilizar o
conceito de “aesthetic integrity” como representação dos valores (que podem ser aprendidos pela literatura e que
podem beneficiar um magistrado no exercício de seu ofício, como por exemplo, empatia, equilibrio, perpesctiva e
distanciamento. In: POSNER, Law an Literature, 1988, op. cit., p. 303.
219
POSNER, Law and Literature, 1986, op. cit., p. 1377.
220
Idem, Law and Literature, 1988, op. cit., p. 302.
60

segundo o autor, tais áreas são mais promissoras que aquelas em que se busca estudar a
aplicação dos métodos literários ao direito (na interpretação de códigos e constituições) ou de
métodos do direito na literatura221.
Ainda no ano de 1988, James Boyd White realizou uma recensão crítica a respeito do
livro de Posner, discordando radicalmente do posicionamento deste tanto quanto à função da
literatura quanto ao modo em que essa se relaciona com o direito. O título do artigo é What
Lawyers Can Learn From Literature222 e configura uma defesa do movimento D&L em relação
às acusações lançadas por Posner – tidas por White como reféns de aplicação do método
cientificista ao direito em detrimento do reconhecimento da dimensão humanística que este
comporta223.
O cerne da crítica de White é que falta a Posner uma visão mais filosófica a respeito
da linguagem e de seu papel na constituição de uma sociedade, decorrendo daí a cisão por ele
realizada entre direito e literatura, como se ambas existissem enquanto “campos” separados no
mundo224. Em suma, White demonstra que Posner atribui à literatura um papel inferior aquele
que ela merece e isso representa uma incompatibilidade teórica quase que inconciliável entre
ambos os autores, influenciando dessa forma, os limites das respectivas investigações teóricas.
Isso porque, White argumenta que a literatura tem como característica maior colocar-
nos numa posição crítica em relação a nossos hábitos e métodos, questionando-os com o intuito
de reformular criticamente os fundamentos que os sustentam. Já para Posner, continua White,
a literatura tem a função oposta, ou seja, de auxiliar os métodos cotidianamente empregados,
servindo ela de auxílio ao domínio técnico do direito 225 . Seria a literatura, dessa forma,
subserviente às análises realizadas no âmbito do direito, supostamente pela maior cientificidade
desse em relação àquela. As questões levantadas por White são verificáveis, em certa medida,
nas contribuições posteriores de Posner – embora alguns dos posicionamentos desse tenham
sido reestruturados.
Em 1990, Posner publica The Problems of Jurisprudence 226 , obra na qual busca
apresentar aquilo que denomina como pragmatic jurisprudence, em contraponto ao clássico

221
Idem, ibidem, p. 361.
222
WHITE, James Boyd. What Lawyers Can Learn From Literature? In: Harvard Law Review, Vol. 102, No. 8
(Jun., 1989), pp. 2014-2047.
223
Idem, ibidem, pp. 2017-2020.
224
Ibidem, p. 2029. Tal crítica pode ser melhor compreendida se aplicada ao subtítulo do livro de Posner, referente
à uma relação mal compreendida (a misunderstood relation). Esta “relação” seria aquela existente entre os dois
“campos” mencionados pelo jurista estadunidense.
225
Ibidem, pp. 2028-2030.
226
POSNER, Richard A. The Problems of Jurisprudence. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts,
and London, England. 1990.
61

debate entre direito natural versus direito positivo. Mencionamos tal livro não por sua qualidade
ou inovação teórica, mas sim pelo fato de Posner ter incluído aí, num livro sobre teoria do
direito, considerações a respeito do estudo D&L227 – considerações essas que não se distinguem
em nada do que havia dito o professor americano em 1988, mas que servem para demonstrar a
afirmação definitiva dos estudos em D&L nas universidades americanas.
Pela mesma razão acima exposta, não podemos nos furtar em mencionar que a partir
de 1995, com a publicação de Overcoming Law 228 – que pugna por uma teoria do direito
pragmática –, ao abordar a relação D&L, Posner se esforça em realizar abordagens voltadas ao
direito na literatura (law in literature) e à utilização da teoria literária no direito. Quanto a este
último objetivo, Posner busca apresentar o conceito de tradução, delimitando, todavia, suas
diferenças para com a concepção apresentada por White229.
Em 1998, Posner publicou a segunda edição de seu Law and Literature230 e revisitou
pontos da edição da década anterior, assim como acrescentou algumas novas considerações.
Chama atenção, entretanto, a observação que faz o autor sobre o fato de que a maioria dos
estudos em D&L nesse arco temporal tenham se concentrado sobre as obras de JB White e
Martha Nussbaum, ou seja, sobre aquela vertente mais concentrada numa dimensão ética
exsurgente do relacionamento entre direito e literatura231.
Vale mencionar, ainda, que por mais dissidente que Posner tenha se mostrado a
respeito desse relacionamento, sua idéia de aesthetic integrity – que reúne os conjuntos de
valores que podem encaminhar um magistrado a uma maior compreensão da condição humana
e, por via de consequência, decidir melhor seus casos – não o deixa afastar-se tanto assim desta
dimensão ética232.
Em 2009, publicou a terceira edição de seu Law and Literature, ampliando sua
abordagem a respeito da regulação da literatura pelo direito, do direito existente na literatura,
bem como das características literárias do direito, em especial às decisões judiciais. Posner
realiza essa tarefa a partir de uma longa análise das obras presentes no movimento D&L, em
um diálogo com os demais autores da área. Ressaltamos porém que ao fim da obra, que
assemelha-se a um tratado, o jurista americano, preocupado com o futuro do movimento D&L,

227
Idem, ibidem, pp. 393-403.
228
POSNER, Richard A. Overcoming Law. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts, and London,
England. 1995.
229
Idem, ibidem, pp. 492-497.
230
POSNER, Richard A. Law and Literature: Revised and Enlarged Edition. Harvard University Press.
Cambridge, England. 1998.
231
Idem, ibidem, p. 6.
232
POSNER, Law and Literature, 1988, op. cit., p. 303.
62

233
lança um manifesto com a intenção de estabelecer uma espécie de guia
pedagógico/metodológico àqueles que pretendem impulsionar o estudos em D&L.
Em tal manifesto Posner elenca (de maneira não exaustiva) algumas obras e excertos
que podem ser úteis à introdução de estudantes ao movimento234 e ressalta, ainda, que se deve
insistir no estudo das áreas que ele mesmo havia mostrado certa resistência anteriormente, como
por exemplo, na utilização de técnicas literárias no direito e na função, digamos, humanizadora
que a literatura pode exercer no mundo jurídico235. Acaba, no entanto, afirmando ao fim de seu
manifesto que esta suposta humanização que vale a pena ser ensinada deve ser abandonada se
realizada a partir de uma seleção literária desvinculada do direito, bem como se
ideologicamente escolhida e filtrada por moralismos236.
Não podemos deixar de mencionar a participação de Richard Weisberg no movimento
D&L, pois suas contribuições são marcadas por uma nítica ambição ética237, desenvolvida a
partir de noções de liberdade e igualdade voltadas à realização da justiça pelo direito, em
especial com a obra Poethics and Other Strategies of Law and Literature238. Foca o autor, ainda,
assim como JB White, na compreensão da linguagem e retórica utilizadas pelos juristas no
exercício do trabalho forense 239 e na imposição de limites à atividade interpretativa ante
determinado grau de objetividade dos textos240.
Para Weisberg, a literatura configura uma indispensável fonte de conhecimento do
direito – merece destaque, aqui, o tratamento oposto dado à literatura por Posner241 –, pois é

233
POSNER, Richard A. Law and Literature. Harvard University Press. Cambridge, Massachusetts, and London,
England. 3rd ed. 2009. pp. 545-550. Não podemos deixar de ressaltar que a inclusão de um “manifesto” no livro
de Posner, procurando estruturar o campo de estudo do movimento D&L, parece uma espécie de mensagem
direcionada a JB White que, no ano de 1987, havia realizado um colóquio intitulado “Law and Literature: No
Manifesto”, no qual buscou demonstrar que a relação D&L não é uma espécie de cânone literário rígido a ser
decifrado mediante um método fixo. Conforme: WHITE, James Boyd. Law and Literature: No Manifesto. In:
Mercer Law Review, volume 39. 1987-1988. pp. 739-752. Republicado em: WHITE, James Boyd. From
Expectation to Experience: essays on law and legal education. University of Michigan Press. Ann Arbor. 2000.
pp. 52-72.
234
Idem, ibidem, p. 547.
235
POSNER, Law and Literature, 2009, op. cit., p. 548. Ressaltamos que a mencionada “humanização”, na
experiência americana, desde a década de 70 é vista como um dos objetivos da relação D&L, ao passo que na
experiência européia, como ensinado por Maria Paola Mittica, é uma consequência do caráter interdisciplinar de
tais estudos. Ver nota nº 170.
236
No original: “And they need to give up on efforts to humanize the practice of law by immersing judges, lawyers,
and law students in literary works, unrelated to law, selected for ideological reasons and viewed through the prism
of moralistic literary criticism.” In: POSNER, Law and Literature, 2009, op. cit., p. 550.
237
TRINDADE; GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p. 34.
238
Outra obra de destaque do autor é The Failure of the World: The Lawyer as Protagonist in Modern Fiction.
New Haven. Yale University Press. 1989, na qual o uso ético da linguagem é amiúde analisado através de obras
clássicas da literatura, como, Camus, Kafka e DOstoievski.
239
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 88.
240
TRINDADE; GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p. 35.
241
Opondo-se a Posner, Weisberg afirma: “How long can we ignore, especially in light of Posner’s findings, the
obvious: literary art about law is richer, if not necessarily more improtant, than mOst other jurisprudential sources.”
63

capaz de abordar o fênomeno jurídico por ângulos normalmente ignorados ou pouco analisados
tradicionalmente, pois dizem respeito à cotidianidade do ofício judicial. Estes “ângulos”
representam quatro elementos encontrados na literatura e configuram, segundo o autor, a
literary jurisprudence242. São eles: i) como os juristas se comunicam através da linguagem
jurídica; ii) como se portam com os “outros”, ou seja, aqueles que estão fora da estrutura do
poder243; iii) como raciocinam e argumentam e; iv) como se sentem (em suas vidas privadas)244.
Weisberg procurou, ainda, estabelecer um diálogo com os dois grandes nomes do
movimento, White e Posner, dedicando-lhes itens específicos em sua obra Poethics and Other
Strategies of Law and Literature. No que toca a Posner, Weisberg respondeu alguns dos
argumentos contrários levantados em Law and Literature: A Relation Reargued e em Law and
Literature: A Misunderstood Relation, concluindo que possuem em comum o objetivo de
desenvolver uma maior compreensão dos valores tanto daqueles que julgam quanto daqueles
que serão julgados 245 - e isto é possível através da relação direito e literatura. Na ocasião,
Weisberg afirmou que este seria o foco do movimento D&L pelos próximos dez anos – previsão
confirmada, de certo modo, por Posner em 1998246.
White, Weisberg e Posner são considerados os principais protagonistas do Law and
Literature Movement e, embora discordem entre si quanto aos limites do movimento e quanto
às formas em que se dá a imbricação entre direito e literatura, o que tem consequências lógicas
nos resultados alcançados por cada um dos autores, é inegável que suas respectivas
contribuições marcaram época e atraíram (e continuam a atrair) novos estudiosos para este
campo promissor.
Por óbvio, os autores citados até então (White, Nussbaum, Posner e Weisberg) não
representam uma lista exaustiva daqueles que se destacaram nos estudos em D&L nos Estados
Unidos da América. A escolha pelos acima mencionados se deu por razões metodológicas, para
delinear o desenvolvimento histórico do movimento analisado, no que toca à experiência
americana, conectando-o do fim do período intermediário à rápida evolução a partir da década
de 1980.

In: WEISBERG, Richard. Poethics: And Other Strategies of Law and Literature. Columbia University Press. New
York. 1992. p. 189.
242
WEISBERG, Poethics, op. cit., p. 35.
243
A esses fora da estrutura do poder, Weisberg refere-se como “the nonpowerful” e “outsiders” em referência
àqueles que fogem à imagem do sujeito de direitos tradicional em uma sociedade, como por exemplo, o
protagonista Mersault em L’étranger de Albert Camus – que passa a ser visto como um misantropo por não chorar
no enterro da mãe. Sobre o tema: WEISBERG, Poethics, op. cit., p. 41.
244
Idem, ibidem, p. 35.
245
WEISBERG, Poethics and other strategies, op. cit., p. 213.
246
Ver nota nº 231.
64

Não poderíamos nos furtar em ao menos mencionar Robin West e Paul J. Heald, como
também inseridos na pesquisa a respeito da dimensão ética existente na relação D&L247. Stanley
Fish, Owen Fiss e Ronald Dworkin como aqueles voltados ao problema do ato interpretativo,
passando por temas como objetividade do texto, subjetividade do intérprete e coerência e
integridade do direito – tudo a partir da imbricação entre direito e literatura248.

3.1.2. A experiência européia

Diferentemente dos Estados Unidos da América, onde o período de “afirmação


definitiva” desenrolou-se não só pela inserção de disciplinas específicas no currículo acadêmico
e pela realização de congressos – mas, sobretudo, a partir de um intenso debate entre aqueles
que se debruçaram sobre o tema (White, Weisberg, e Posner são um bom exemplo) –, a
experiência européia foi marcada por contribuições individuais até os anos 2000249.

A) Itália

A respeito do tema, Sansone afirma que tal período teve início na Itália com
pensadores como Mario A. Cattaneo, Bruno Cavallone, Giorgio Ribuffa, Antonio Bevere e
Remo Danovi, os quais classificou como vozes independentes e autônomas250 e que foram de
fundamental importância na difusão dos estudos em direito e literatura no país europeu.
Ressaltamos que Sansone realizou seu doutorado em D&L, sob orientação de Mario A.
Cattaneo251.

247
Para um aproximação aos escritos dos mencionados autores, conferir: HEALD, Paul J. Law and Literature as
Ethical Discourse. In: HEALD, Paul J. (ed). Literature and Legal Problem Solving. Carolina Academic Press.
North Carolina. 1998. WEST, Robin. An Aesthetic Analysis of Modern Legal Theory. New York University Law
Review. 1985. Volume 60, number 2. pp. 145-211. WEST, Robin. Adjudication is not Iterpretation: Some
Reservations about the Law-as-Literature Movements. In: Tenesse Law Review. 1987. Volume 54. pp. 203-277.
West, Robin. Communities, Texts, and Law: Reflections on the Law and Literature Movement. In: Yale Journal of
Law and the Humanities. 1988. Vol. 1. pp. 129-156.
248
Para uma compreensão do pensamento exposto pelos autores mencionados, conferir: FISH, Stanley. Is There a
Text in This Class? The Authority of Interpretative Communities. Harvard University Press. Cambridge. 1980;
FISH, Stanley. Doing What Comes Naturally: Change, Rhetoric, and the Practice of Theory in Literrary and Legal
Studies. Clarendon. Oxford. 1989. FISS, Owen. Objectivity and Interpretation. In: Stanford Law Review. Vol 34,
no 4. April, 1982. pp. 739-763; FISS, Owen. The irony of Free Speech. Harvard University Press. Cambridge.
1998. Dworkin, por sua vez, merece um comentário a parte dos demais autores, pois sua teoria integrativa,
sustentada na coerência e integridade do direito, é explicada a partir da métafora do romance em cadeia (the chain
novel) – na qual juízes são comparados a escritores responsáveis pela elaboração de um capítulo de um romance,
de forma que o capítulo subsequente deva ser coerente ao capítulo anterior, não se podendo alterar o enredo de
maneira unilateral. Conferir: DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Harvard University Press. Cambridge,
Massachusetts, London, England. 1986. capítulos 2 e 7.
249
MITTICA, Cosa accade di là dall’oceano?, op. cit., pp. 10-11.
250
“Il rifiorire di voci, indipendenti ed autonome rispetto al dibattito americano[...].” SANSONE, Diritto e
Letteratura, op. cit., p. 44. Para uma introdução ao pensamento dos autores mencionados, ver: SANSONE, Diritto
e Letteratura, op. cit., pp. 43-50.
251
MITTICA, Cosa accade di là dall’oceano?, op. cit., p. 16.
65

Ainda sobre esse período de fortificação dos estudos em D&L na Itália, Sansone
destaca três ensaios surgidos na década de 1990 e que fizeram referência expressa ao Law and
Literature Movement, ou seja, ao debate já consolidado nos EUA252. Tratam-se de Fabrizio
Cosentino, que em seu Analisi giuridica della letteratura: l’esperienza italiana253, de 1993,
utiliza as “catalogações” de “direito como literatura”, “direito na literatura” e “direito da
literatura” para analisar os escritos italianos que à época haviam se debruçado sobre a relação
D&L254; Guido Alpa, que fez uma análise crítica sobre a experiência americana em seu ensaio
Law & Literature: un inventario di questioni, de 1997, focando sobre seu caráter
interdisciplinar e dedicando maior atenção à “vertente” do “direito como literatura”255; Adelmo
Cavalaglio, por sua vez, em seu Literatura v. Economics, ovvero Richard Posner e l’analisi
giusletteraria, de 1997, refletiu sobre aquilo que Richard Posner definiu como “análise
jusliterária”256.
No ano de 2001, Arianna Sansone publicou seu Diritto e Letteratura: un’introduzione
generale, obra de grande valia para uma compreensão sistematizada a respeito da evolução dos
estudos em D&L, cobrindo todo o seu desenvolvimento no transcorrer do século XX, tanto nos
EUA quanto na Europa. O último capítulo do livro contém uma lista, que representa uma
espécie de panorama, das perspectivas temáticas de pesquisa em D&L – a servir, ainda, como
um guia para pesquisas futuras. São elas: i) história e antropologia jurídica; ii) sociologia
jurídica; iii) filosofia política; iv) filosofia do direito, voltada à teoria da justiça e; v) filosofia
do direito, voltada à teoria geral do direito257.
Os estudos em direito e literatura, na primeira década do século XXI, passaram a
evoluir a passos largos não apenas na Itália, mas também em Bélgica, Espanha e Portugal, o
que pode ser comprovado, por exemplo, com a definição dada por Carla Faralli ao tema, em
sua obra do ano de 2002, La Filosofia del Diritto Contemporanea: i temi e le sfide258: uma
perspectiva emergente no estudo do fenômeno jurídico.
Maria Paola Mittica, por sua vez, publica em 2006 sua obra Raccontando il Possibile:
Eschilo e le narrazioni giuridiche 259 . Partindo da sociologia do direito e da antropologia

252
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., p. 50.
253
COSENTINO, Fabrizio. Analisi giuridica della letteratura: l’esperienza italiana. In: Quadrimestre, 3. 1993.
254
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., pp. 50-51.
255
Idem, ibidem, pp. 51-52;
256
Idem, ibidem, p. 52.
257
Sobre o tema: SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., pp. 111-138.
258
FARALLI, Carla. La Filosofia del Diritto Contemporaneo: i temi e le sfide. Editori Laterza. Roma. 2002. p.
59.
259
MITTICA, Maria Paola. Raccontando il Possibile: Eschilo e le narrazioni giuridiche. Dott. A. Giuffrè editora.
Milano. 2006.
66

jurídica, a autora utiliza do ferramental proporcionado pelas perspectivas tanto do direito como
quanto na literatura, aproximando-se daquilo que foi denominado por uma teoria da narração
jurídica260. Reconstrói, assim, o mundo cultural em que foi escrita a Orestéia para então expor
o processo de juridificação da polis e sua estabilização pela narrativa de Ésquilo261. Trata-se de
uma viagem no tempo capaz de proporcionar, em certa medida, o testemunhar da reconstrução
daquilo que foi o início dos ordenamentos jurídicos que hoje conhecemos e estudamos.
Para além das publicações em D&L, foi criado no ano de 2008 a Società Italiana di
Diritto e Letteratura (SIDL), vinculada ao Centro Interdipartimentale di ricerca in Storia,
Filosofia e Informatica del Diritto (CIRSFID) da Universidade de Bologna262, que promove
não apenas o estudo da relação direito e literatura, mas um maior aprofundamento da
imbricação conhecida como Law and the Humanities. Tal centro de pesquisa nasce como um
observatório privilegiado dos estudos sem D&L, alcançando mais de duzentos membros no
espaço de um ano263.
A partir daí, observa-se o aparecimento de obras coletivas especificamente sobre
D&L, bem como uma maior discussão a respeito do movimento em si e de suas limitações
metodológicas. Tais obras contém os textos apresentados nos congressos realizados pelo SIDL,
contendo participações de autores como James Boyd White, Jerome S. Bruner, Mario A.
Cattaneo, Maria Paola Mittica e Peter Habërle, para citar alguns. As três conferências
internacionais realizadas, até então, pela SIDL encontram-se publicadas nesse formato e contém
além dos autores ora mencionados, tantos outros igualmente influenciados pelo estudo Law and
the Humanities264.

B) Portugal

Já em Portugal265, os estudos em direito e literatura deram seus primeiros passos com


a tese de mestrado de Joana Aguiar e Silva, A Prática Judiciária entre Direito e Literatura266,

260
Idem, ibidem, pp. 7-48. Sobre o tema da narração jurídica, ainda em Itália, Alberto Vespaziano destaca-se com
sua obra COstituzione, Comparazione, Narrazione: saggi di diritto e letteratura, revisitando temas como
hermenêutica, justiça constitucional e tradução – a partir das lições de JB White. Ver: VESPAZIANI, Alberto.
COstituzione, Comparazione, Narrazione: Saggi di Diritto e Letteratura. G. Giappichelli Editore. Torino. 2012.
261
MITTICA, Raccontando il Possibile, op. cit., pp. 75ss.
262
Sítio eletrônico disponível em << http://www.cirsfid.unibo.it/>> Acessado em 06 de junho de 2018.
263
MITTICA, Cosa accade di là dall’oceano?, op. cit., pp. 21-22. Dentre seus membros correspondentes estão
Richard Posner, Martha Nussbaum e James Boyd White.
264
[A cura di] MITTICA, Maria Paola; FARALLI, Carla; MANGIAMMELI, Agata C.Amato. Arte e limite: la
misura del diritto. Aracne editrice. Roma. 2012. [A cura di] MITTICA, Maria Paola. Diritto e Narrazioni: Temi
di diritto, letteratur e altre arti. Ledizioni. Milano. 2011. [A cura di] MITTICA, Maria Paola; FARALLI, Carla.
Diritto e Letteratura: prospettive di ricerca. Aracne editrice. Roma. 2010.
265
266
AGUIAR E SILVA, Joana. A prática Judiciária entre Direito e Literatura. Almedina. Coimbra. 2001.
67

na qual a autora adentra a discussão do tema sob o ângulo da prática judiciária, refletindo a
respeito da linguagem do direito e de sua interpretação, da interpretação literária e sobre as
vantagens pragmáticas de um estudo integrado entre essas áreas.
No tocante à linguagem jurídica a autora lusófona aproxima-se dos ensinamentos de
James Boyd White, enquanto pensa o ato interpretativo a partir dos ensinamentos de Gadamer
e de sua hermenêutica filosófica, resultando numa obra que busca afastar a subjetividade e o
voluntarismo interpretativo da prática judiciária. Por tal razão, afirma que os estudos em direito
e literatura representam uma grande possibilidade didática, a qual deve ser estudada e incluída
nos currículos universitários, afinal, é comum que estudantes cheguem para o primeiro dia de
aula na Faculdade de Direito sem jamais ter tocado um código civil, mas são “raros aqueles que
aí chegam sem terem pelo menos folheado algumas das mais fundamentais obras da Literatura
universal”267.
No ano de 2008, em sua tese de doutoramento intitulada Para uma Teoria
Hermenêutica da Justiça. Repercussões Jusliterárias no Eixo Problemático das Fontes e da
Interpretação Jurídicas 268, Aguiar e Silva retoma a linha de pesquisa desenvolvida em seu
mestrado, perpassando agora por temas como tradução, narratividade, giro ontológico-
linguístico e hermenêutica.
A autora enfrenta tais assuntos em prol de uma compreensão hermenêutica e literária
do direito, no tocante à teoria das fontes e da interpretação jurídica. Ou seja, se em seu trabalho
anterior (2001) a autora havia pensado os problemas atinentes ao ato decisório judicial, agora
ela reflete sobre o suporte normativo a partir do qual aquele é possível. Dito de outra forma:
sobre as fontes do direito. E tudo isso a partir da relação direito e literatura.
Elegemos por analisar apenas as publicações de Joana Aguiar e Silva, pois foi ela quem
deu início aos estudos em D&L em Portugal, tomando parte no movimento propriamente dito.
Além disso, sua obra vem se desenvolvendo, conforme demonstrado, de maneira coerente e
concatenada. Entretanto, reconhecemos a existência de outras contribuições, as quais, todavia,
são ainda individuais e, de certa maneira, isoladas.
Para além da obra coletiva de Buescu, Trabuco e Ribeiro, devemos ressaltar a
participação de José Manuel Aroso Linhares e Paulo Ferreira da Cunha, esclarecendo, todavia,
seus diferentes modos de contribuição para a intersecção entre direito e literatura. Isso porque,
as publicações de Aroso Linhares são voltadas ao movimento D&L em si, expondo

267
Idem, ibidem, p. 131.
268
AGUIAR E SILVA, Joana. Para uma Teoria Hermenêutica da Justiça. Repercussões Jusliterárias no Eixo
Probablemático das Fontes e da Interpretação Jurídicas. Almedina. Coimbra. 2011.
68

aproximações com determinadas vertentes269, explorando novas possibilidades270 e analisando


amiúde a riqueza que o “cruzamento (crítico-reflexivamente assumido) das experiências do
direito e da literatura” possibilitam271.
Paulo Ferreira da Cunha, por sua vez, não publica especificamente sobre a relação
D&L, porém tem como característica de sua escrita as sempre presentes referências literárias
(das mais variadas), a partir das quais inicia, continua, retoma e conclui argumentos dos mais
variados272. Quando não as menciona, no entanto, seu próprio modo de explanar o objeto sob
análise é revestido de características de um texto literário, com a elaboração de imagens através
do uso de metáforas, por exemplo – aproximando-se daquilo que Sansone definiu como
característica principal da vertente “Law as literature”, ante a qualidade literária de suas
reflexões273.
A título exemplificativo, veja-se a análise feita pelo professor lusófono quanto à
Constituição brasileira de 1988:
A Constituição brasileira, a grande constituição
cidadã, é mais um dos espantosos milagres de que o
Brasil é capaz. Não é, evidentemente – tal coisa não
existe – uma constituição perfeita. Mas... é uma das
grandes sínteses do nosso tempo, com um pé no
futuro, e outro bem fincado na terra firme do
presente274.

Ainda no continente europeu, merecem destaques as experiências encontradas em


Bélgica e Espanha, em específico aquelas impulsionadas por François Ost e José Calvo
González, respectivamente.

269
AROSO LINHARES, José Manuel. Imaginação Literária e “Justiça Poética”. Um Discurso da “área
aberta”? In: Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra. 2009. Vol. LXXXV. pp. 111-149.
270
Idem. Direito e ópera: na ópera? Como ópera? (And...: In...? As...?). In: Boletim da Faculdade de Direito.
Coimbra. Vol. LXXXIX. 2013. pp. 455-467.
271
Idem. O Logos da Juridicidade sob o fogo cruzado do ethos e do pathos: da convergência com a literatura
(law as literature, literature as law) à analogia com uma poiêsis-technê de realização (law as musical and
dramatic performance). In: Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra. Vol. LXXX. 2004. Ppp. 59-135, p. 60.
272
Como nas obras: CUNHA, Paulo Ferreira da. O Tímpano das Virtudes: arte, ética e direito. Almedina.
Coimbra. 2004. Idem. O século de Antígona. Almedina. Coimbra. 2003. Idem. Memória, Método e Direito:
inciação à metodologia jurídica. Almedina. Coimbra. 2004.
273
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., p. 15.
274
CUNHA, Paulo Ferreira da. Constituição e Utopia. E o exemplo da constituição brasileira de 1988. In: Direito
e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes. Vol III. Universidade
Católica editora. Lisboa. 2011. pp. 167-184, p. 178.
69

C) Bélgica
275
François Ost publicou o livro Le Temps du Droit , em 1999, analisando
profundamente a intrínseca relação existente entre tempo e direito, através dos conceitos-chaves
“memória, perdão, promessa e requestionamento” que são, na verdade, categorias
demonstrativas da temporalização normativa do direito. Em outras palavras, representam o
tempo como instituição social portadora de sentidos.
Por tal razão, a obra em comento é dividida em quatro partes, cada qual a abordar um
dos conceitos acima. No capítulo inicial, Ost demonstra que o primeiro tempo instituído pelo
direito é a memória, possibilitando a conexão com o passado e a reconstrução (e consequente
compreensão) do sentidos interssubjetivamente compartilhados na sociedade. Pois, se assim
não fosse, haveria o risco de anomia ante a ausência de sólidas fundações sociais. Nas palavras
do autor, sem a memória seria como se a sociedade fundasse suas bases na areia276.
O perdão, por sua vez, representa a conexão necessária entre memória e a promessa
do futuro. Conexão-entre-memória-e-promessa-de-futuro não significa esquecimento daquilo
que a sociedade foi em prol do que busca vir a ser. Significa, entretanto, a descontinuação do
passado jurídico e seus respectivos vícios através de uma reconciliação localizada entre a
imprescritibilidade de determinados crimes, que mantém viva na memória os erros do passado,
e a anistia que tende a afastar dessa mesma memória os mencionados erros 277. Trata-se, dessa
forma, de encarar a verdade para exorcizar o passado; de perdoar, sem jamais esquecer278.
Com isso, Ost afirma que a sociedade, agora em período de transição reconciliatória,
se reestruturará pela promessa de um tempo futuro melhor a ser sustentado pelo universo
normativo279, conectando-a, assim, àquilo que busca vir a ser. Trata-se do que foi definido pelo
autor belga como a figura da “promessa” que configura a retemporalização de uma sociedade
em seu desenvolvimento temporal. Essa promessa de um por vir que a faça caminhar em direção
diversa daquela do tempo passsado deve ser criticamente questionada280 durante este caminhar
– o que demonstra a radicalidade do gesto emancipatório de sua ruptura para com o passado
exorcizado, mas não esquecido.

275
OST, François. Le Temps du Droit. Editions Odile Jacob. Paris. 1999.
276
“À defaut de telles fondations pointerait le risque d’anomie, comme si la société bâtissait sur le sable.” OST,
Le Temps du Droit, op. cit., p. 43.
277
O pano de fundo em tal capítulo, ao referir-se ao que aqui traduzimos como erros do passado, é exemplificado
por Ost a partir do fim do Aparthaid e do fim das ditaduras que assombraram a América Latina (o autor refere-se
à Argentina, Chile, Peru, Guatemala, Honduras e Salvador). Cfr: OST, Le Temps du Droit, op. cit., pp. 111-116.
278
“[...] oui, il serait possible de regarder la vérité en face et d’exorciser le passé; oui, on pourrait pardonner, sans
oublier pour autant.” OST, Le Temps du Droit, op. cit., p. 111.
279
Idem, ibidem, pp. 157-171.
280
Idem, ibidem, p. 255.
70

Memória e perdão, promessa e (re)questionamento são, portanto, componentes da


dialética que ocorre no desenrolar historial, pela descontinuidade para com o passado e a
conexão promissora com o futuro que se pretende. Estes quatro tempos (desconexão,
reconciliação, promessas instituídoras e requestionamentos conectivos), configuram aquilo que
Ost apontou como comunidade transtemporal, da qual são provenientes os direitos e deveres
que regulam questões como direito e justiça281.
Esse sintético comentário a respeito de Le Temps du Droit tem por objetivo afirmar
que tal obra não é sobre a relação D&L, mas sim uma obra de filosofia do direito. Ocorre, no
entanto, que toda a densa discussão realizada por Ost foi proposta a partir de incursões no
âmbito da literatura, como por exemplo, pelo mito de Kronos e pelo Livro do Desassossego, de
Fernando Pessoa.
Outra obra de Ost que merece menção é Raconter la Loi: Aux Sources de L’imaginaire
Juridique, na qual expõe aqueles que são os “textos fundadores do direito ocidental” ao mesmo
tempo em que constrói sua “teoria do direito narrado”, dialogando pontualmente com lições de
Hans-Georg Gadamer, George Steiner e, especialmente, Paul Ricoeur. Trata-se de um livro de
filosofia do direito imerso na relação dialética entre direito e literatura, trabalhada a partir de
mutações recíprocas e trocas implícitas entre ambas áreas do conhecimento282.
Se em Le Temps du Droit Ost não havia mencionado o Law and Literature Movement
e seu respectivo desenvolvimento, em Raconter la Loi ele não apenas menciona suas três
principais vertentes como afirma que o trabalho desenvolvido em tal obra é realizado a partir
do ferramental proporcionado pelo direito na literatura283. Importa dizer, assim, que Ost busca
a construção de uma narrativa a respeito da fundação/formação do direito a partir do direito
existente na literatura. Ou ainda: Ost narra o desenvolvimento do direito e suas instituições após
analisar a formação do mundo jurídico na e pela literatura, em um processo dialético capaz de
demonstrar tanto a capacidade do mundo literário em observar criticamente o direito instituído,
quanto de recriar a realidade (re)instituindo o direito284.
Ao longo de cinco capítulos Ost aborda temas como: i) a ideia de surgimento do
direito, a partir do encantamento para com textos míticos com aspectos de perfeição tanto

281
No original: “[...] c’est du sein d’une Humanité diachronique que se détache notre humanité singulière; c’est
au coeur d’une communauté transtemporelle que s’éprouvent nos droits et nos devoirs; c´’est à partir d’une
perspective intergénérationnelle que se pose la question du juste et du droit [...].” Idem, ibidem, p. 339.
282
No original: “En lieu et place d’un dialogue de sourds entre un droit codifié, institué, campé dans sa rationalité
et son effectivité et une littérature rebelle à toute convention, jalouse de sa fictionnalité et de sa liberé, c’est bien
plutôt d’emprunts récicproques et d’échanges implicites qu’il est question.” Idem, ibidm, p. 19.
283
Idem, ibidem, p. 40.
284
MITTICA, Maria Paola. Prima di tutto sono racconti: riflessioni a margine di un recente libro su Diritto e
Letteratura. Sociologia del Diritto, v. 1, 2003, pp. 183-192. p. 186.
71

formal quanto substancial285, indicando que o início de cada sociedade inicia uma nova etapa
jurídica a partir de textos fundadores; ii) o surgimento da figura do juiz e da justiça como
instituição do direito, através da Orestéia, de Ésquilo, obra na qual se apresenta o primeiro
tribunal à humanidade, em 458 a.c., fazendo prevalecer o direito sobre a vingança; iii) a figura
jurídica da consciência, a partir Antígona, de Sófocles, obra da qual explora tópicos como
objeção de consciência e desobediência civil, aporias jurídicas e paradoxos político – afinal,
Creonte ao manter o corpo de Polinice livre (desenterrado) e encarceirar Antígona, causou uma
reviravolta na ordem das coisas; iv) o surgimento dos direitos subjetivos/potestativos, através
do mito de Fausto e da história de Robson Crusoé e; v) por fim, pela incursão nas obras de F.
Kafka, Ost conclui que o possível fim do direito, pelo absurdo do autoristarismo e do horror,
pode indiciar, também, um possível recomeço286.
É digno de nota que o percurso de Raconter la Loi vai do surgimento da ideia de
direito, passa pelo fortalecimento de suas instituições e deságua no possível fim ou recomeço
do direito enquanto instituição social. Tendo em vista que nos capítulos três e quatro são
abordadas questões que dizem respeito à vida pública, permeada entre o direito e a moral e o
público e o privado, através de Antígona e Robson Crusoé, podemos afirmar que ambos os
capítulos tratam de ângulos diversos do mesmo assunto, a saber, a cooriginariedade entre
direito/moral e público/privado.
Em assim sendo, é possível notar que a construção de Raconter la Loi percorre os
quatro tempos do direito, como que se tal obra fosse composta numa medida de quatro tempos.
Em outras palavras: Ost reconstruiu e narrou o desenvolvimento do direito e suas instituições
em Raconter la Loi a partir da temporalização normativa do direito elaborada em Le Temps du
Droit.
Tais tempos foram abordados da seguinte forma: a) a memória, com os primórdios do
surgimento do direito; o perdão (que importa na descontinuação dos vícios do passado em prol
de um futuro diverso somente possível pela transição reconciliatória), a partir do fim da
vingança pela instituição do direito; c) a promessa, a retemporalização do direito, se deu nos
capítulos três e quatro, ou seja, com o choque da reviravolta causada por Creonte ao punir
Antígona, instituindo o período evolutivo do discurso entre direito e moral, bem como pela
aparição dos direitos subjetivos, em especial pela análise da colonização liberal levada a cabo

285
Idem, ibidem, p. 186.
286
Ibidem, p. 191.
72

por Robinson Crusoé 287 e; d) o requestionamento do caminho que tomaram as promessas


ocorridas na retemporalização, a partir da obra do profeta do totalitarismo288, Franz Kafka.
Ressaltamos, com isso, que François Ost encontrou uma via de meio entre o direito e
a literatura, possibilitando a ambos o encontro da inspiração em comum. Inspiração essa que o
permitiu elaborar sua teoria do direito narrado, vindo a superar a dogmática jurídica tradicional,
acostumada a pensar o direito como algo posto, que deva apenas ser analisado289.
A leitura das duas obras acima mencionadas, na forma em que aqui realizada, parece
permitir afirmar que Ost aponta, em determinado grau, uma espécie de cooriginariedade entre
direito e literatura. Tal possibilidade representa, por si só, a riqueza existente na imbricação
entre direito e literatura, motivo pelo qual optamos por iniciar este capítulo com uma citação
retirada de sua obra. Riqueza essa que foi também muito bem descrita por Maria Paola Mittica,
ao afirmar que os estudos em D&L representam “a fenda mais originária da pesquisa e do
conhecimento”290.

D) Espanha

Obra de complexidade e riqueza similares, agora já em Espanha, é a de José Calvo


González, que imerso há duas décadas na investigação sobre as benéficas imbricações entre
direito e literatura, vem desenvolvendo sua teoría narrativista del derecho291, cujo cerne reside
na coerência narrativa como mecanismo construtor de sentidos 292. Eis aqui a possibilidade de
conjugar a Crítica Hermenêutica do Direito e a Teoria Narrativista de Calvo González.
Conforme explicamos no capítulo anterior, a CHD é fundada a partir da hermenêutica
filosófica Gadameriana, a qual, por sua vez, é lançada a partir da fenomenologia hermenêutica
Heideggeriana. O narrativismo de González, por buscar expôr a construção dos sentidos,
aparenta estruturar-se (ainda que o autor não faça menção expressa) numa premissa da

287
MITTICA, Prima di tutto sono racconti, op. cit, p. 191.
288
Ibidem, p. 191.
289
Essa característica do pensamento de OST, inovador em relação à dogmática jurídica tradicional, é também
identificável em suas obras Dire le droit, faire justice (Bruxelles, Bruylant. 2007) e Traduire: défense et illustration
du multilinguisme (Fayard. Paris. 2009).
290
No original: “In fondo siamo nel solco più originario della ricerca e della conoscenza.” In: MITTICA, Cosa
accade di là dall’oceano?, op. cit., p. 32.
291
Professor catedrático de teoria e filosofia do direito na Universidad de Málaga e juiz do Tribunal Superior de
Andalucía. As ideias condensadas em Direito Curvo são fruto das pesquisas realizadas nas obras La justicia como
relato: ensayo de una semiorrativa sobre los jueces e Discurso de los hechos.
292
DA ROSA, Alexandre Morais; TRINDADE, André Karam. “Prefácio em curva”. In: CALVO GONZÁLEZ,
José. O Direito Curvo. trad. André Karam Trindade, Luis Rosenfield, Dino del Pino. Porto Alegre. Livraria do
Advogado Editora. 2013. p. 5
73

hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer: não existem as coisas exatas como elas
são293. Ou ainda: os sentidos não são dados ou objetificados.
A este respeito, Gadamer ensina que a “reflexão hermenêutica sobre as condições da
compreensão põe de manifesto que suas possibilidades se articulam em uma reflexão formulada
dentro da linguagem, que nunca começa do zero e não pode ser esgotada”294. Isto não significa
outra coisa senão que a linguagem já nos diz algo a respeito do que queremos dizer – é isto que
permite o mútuo entendimento em um diálogo. As palavras não são vazias de sentido, de forma
que a elas podemos atribuir qualquer significado, como o personagem Humpty Dumpty o faz
em Alice através do espelho295.
Com isso, partindo da premissa de que “direito é linguagem” e que “não existem as
coisas exatas como são”296, ou seja, que os sentidos não são simplesmente “dados”, a Teoria
Narrativista do Direito, configura uma espécie de crítica literária do direito a afirmar que este
possui “natureza e propriedades narrativas” e, portanto, é um “relato civilizatório” com
“coerência narrativa”297. Destacamos, assim, que não é apenas de coerência normativa que se
fala, mas também de coerência narrativa.
Segundo González, a coerência narrativa é um constructo discursivo capaz de construir
sentido, apto a proporcionar um critério de verdade oriundo do próprio “modelo discursivo de
uma história sobre a ação dos fatos (resultância) e acerca dos <<fatos em ação>>
(ocorrência)”298. Ou seja: é a construção do discurso (narrativa) que atua exclusivamente na
qualidade de critério de verossimilitude299.
A principal consequência daí retirada é que a atribuição de sentido ocorre no interior da
narrativa que resulta desde a ocorrência histórica da ação factual, e se desenvolve num processo
de explicar e compreender as premissas fáticas e os enunciados a elas relativos, através de uma

293
DA ROSA, Alexandre Morais; TRINDADE, André Karam. Prefácio em curva, op. cit., p. 4. Esclarecemos que,
pelo teorema fundamental da analítica existencial Heideggeriana, que demonstra ser o compreender um
existencial, Gadamer ensina que nós vivemos inseridos em tradições que configuram nosso próprio mundo.
“[N]unca o mundo do primeiro dia, mas algo que herdamos.” É este o mundo compartilhado na e pela linguagem
que já nos é antecipado pela pré-compreensão e que impede afirmações tábula rasa a respeito dos singnificados e
significantes. É esta tradição que nos lega os sentidos construídos e compartilhados intersubjetivamente.
Conforme: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Trad. Enio Paulo Giachini. Trad. nova rev. da trad.
Márcia Sá Cavalcante-Schuback. 2ª ed. Petrópolis Vozes. 2004. p. 568.
294
GADAMER, Verdade e Método, op. cit., p. 570.
295
Em uma conversa com Alice, Humpty Dumpty diz que quando utiliza uma palavra, ela significa exatamente o
que ele quer que ela signifique, nem mais, nem menos. Ele atribui às palavras o significado que lhe apetece, que
lhe convém. CARROLL, Lewis. Alice: Aventuras de Alice no País das Maravilhas & Através do Espelho.
Ilustrações originais John Tenniel. Introdução e notas Martin Gardner. Tradução Maria Luiza X. De A. Borges. 2ª
ed. com. e il. – Rio de Janeiro. Zahar. 2003. p. 177.
296
CALVO GONZÁLEZ, José. O Direito curvo. op, cit., p. 43.
297
Idem, Ibidem, p. 50.
298
Idem, Ibidem, p. 51, grifo nosso.
299
Idem, ibidem, p. 51, grifo nosso.
74

interação coerente300. Isto porque, conforme ensina o jurista espanhol, a atribuição de sentidos
a um enunciado fático, como narrativamente coerente, ocorre através da construção desses
sentidos. Ou seja, pela Teoria Narrativista “o sentido do relato de fatos não se localiza em um
topos prévio ou de partida, nem em lugar ulterior e de chegada; o sentido é a própria fábrica
narrativa do sentido, a construção da promessa de sentido”301.

3.1.3 Direito e literatura em terras brasileiras

No Brasil, o estudo Direito e Literatura tem como propulsor de destaque André Karam
Trindade, embora não tenha sido ele o primeiro a se debruçar sobre esta relação em terras
Brasileiras, certamente é um dos principais contribuidores para seu crescimento e divulgação.
No ano de 2008, coordenou juntamente a Roberta Magalhães Gubert e Alfredo Copetti
a publicação das obras Direito e literatura: reflexões teóricas e Direito e literatura: ensaios
críticos. Em 2010, o trio de professores organizou a publicação de outra obra coletiva,
denominada Direito e Literatura: discurso, imaginário, normatividade. Tais livros contém
participações de pesquisadores nacionais e estrangeiros de áreas diversas, dentre os quais vale
mencionar: a) Vicente de Paulo Barreto que, em 2006, ao organizar a obra Dicionário de
filosofia do direito, incluiu verbete próprio para “Direito e Literatura” 302 ; b) Carlos María
Cárcova; c) Eligio Resta; d) Joana Aguiar e Silva; e) José Calvo González; f) José Manuel
Aroso Linhares; g) Maria Paola Mittica e; h) Martha Nussbaum.
A importância das iniciativas de Karam Trindade não restringe-se apenas à divulgação
do D&L, mas especialmente por também configurar ponto de encontro dos trabalhos que eram
desenvolvidos de maneira isolada303 por professores em seus respectivos centros de pesquisa.
Isto porque, ele foi um dos membros fundadores da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL);
do programa televisivo Direito & Literatura, no ar há uma década sob apresentação de Lenio
Luiz Streck; do Colóquio Internacional de Direito e Literatura (CIDIL) e; da criação da Revista
Internacional de Direito e Literatura (Anamorphosis) 304 , que conta com publicações de
pesquisadores da área, como por exemplo, Maria Paola Mittica, Alberto Vespaziani, François
Ost, Joana Aguiar e Silva, José Calvo Gonzalez e Robert Cover.

300
Idem, ibidem, pp. 51-52.
301
Idem, idibdem, p. 52.
302
BARRETO, Vicente de Paulo [coordenador]. Dicionário de Filosofia do Direito. Editora Unisinos: São Paulo;
Editora Renovar: Rio de Janeiro. 2006.
303
TRINDADE, André Karam; BERNSTS, Luísa Giuliani. O estudo do direito e literatura no Brasil, op. cit., p.
237.
304
Endereço eletrônico <<http://www.rdl.org.br/pt/home>> Acessado em 06 de junho de 2018.
75

André Karam Trindade e Luísa Giuliani Bernsts publicaram, pela Anamorphosis,


artigo intitulado O Estudo do Direito e Literatura no Brasil: Surgimento, Evolução e
Expansão 305 , no qual apresentam o levantamento realizado a respeito dos primórdios do
desenvolvimento de estudos em D&L no Brasil, bem como sua evolução desde então.
Apresentaram, ainda, análise quantitativa dos artigos publicados sobre o tema em eventos do
Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI).
Trindade e Bernsts dividem os estudos em D&L no Brasil em três fases, cujo ponto de
partida deu-se na década de 50 do século passado, com publicações que buscavam explicar o
direito à luz de textos literários. Inauguraram tais estudos no Brasil Aloysio de Carvalho Filho,
José Gabriel Lemos Britto, Eitel Santiago de Brito Pereira e, com maior destaque ante o livre
trânsito entre filosofia, psicanálise, literatura e teoria do direito, Luis Alberto Warat306.
Da década de 1990 em diante, tem início a segunda fase dos estudos Brasileiros e
caracteriza-se pelo primeiro contato com as pesquisas realizadas no exterior307. Em tal fase, a
título exemplificativo, destacam-se os livros Direito e Literatura: anatomia de um desencanto
– desilusão jurídica em Monteiro Lobato, que havia sido a dissertação de mestrado de Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy – autor que mantém-se presente nas pesquisas e publicações em
D&L também atualmente 308 ; O Estudo do Direito Através da Literatura, de Luiz Carlos
Cancellier de Olivo; e a publicação em português da obra de F. Ost, Contar a Lei: as fontes do
imaginário jurídico, em 2005. A partir de tal período, já na terceira fase, surgiram grupos de
pesquisa e seminários a respeito do tema, proporcionando um significante aumento das
publicações na área.
Trindade e Bernsts salientam, ainda, que de 2007 a 2016 ocorreram dezoito eventos
sob o âmbito do supramencionado CONPEDI, contando com 339 artigos publicados no âmbito
da área Law and the Humanities, especificamente sobre as relações entre direito e arte,
literatura, cinema, culutra e música309. Entretanto, pela “inexpressiva quantidade de citações de
autores nacionais e internacionais sabidamente vinculados aos estudos e pesquisas em Direito
e Literatura”, pode-se afirmar que “há uma flagrante deficiência teórica” 310 nas pesquisas

305
TRINDADE e BERNSTS, O estudo do direito e literatura no Brasil, op. cit.
306
Idem, ibidem, pp. 229-233.
307
Trindade e Bernsts apontam que a vertente Law in Literature, na perspectiva de Benjamin Cardozo, foi
apresentada por Eliane Botelho Junqueira pela obra Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das leis, no
ano de 1998. Cfr: TRINDADE e BERNSTS, O estudo do direito e literatura no Brasil, op. cit. p. 234.
308
Posteriormente o autor publicou outras duas obras a respeito do tema: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes.
Direito & Literatura: Anatomia de um Desencanto – Desilusão Jurídia em Monteiro Lobato. Juruá Editora.
Curitiba. 2002; Idem. Direito e Literatura: ensaio de síntese teórica. Livraria do Advogado. Porto Alegre. 2008;
Idem. Direito, Literatura e Cinema: Inventário de Possibilidades. Quartier Latin. São Paulo. 2011.
309
TRINDADE e BERNSTS, O estudo do direito e literatura no Brasil, op. cit. pp. 241-243
310
Idem, ibidem, pp. 244 e 245/246.
76

publicadas em terras Brasileiras – muitas das quais não apresentam nem mesmo referencial
teórico311.
Este quadro de ausências de preocupações metodológicas pode ser compreendido se
levada em consideração a recente “aparição” do movimento direito e literatura nos estudos
Brasileiros, especialmente quando comparado com o tempo de maturação dos estudos nos
Estados Unidos e na Europa (cuja “definição afirmativa” ocorreu ainda na déacada de 1980, ou
seja, antes ainda do contato Brasileiro com tais obras). De toda forma, os estudos Brasileiros
concentram-se sobre as três principais “vertentes” do Law and Literature Movement e são
realizados, em sua maioria, por pesquisadores da área do direito.
Existem, todavia, contribuições realizadas por pessoas inseridas no âmbito literário,
tendo como maior exemplo, Antonio Cândido, sociólogo e literato que, no ano de 1988,
publicou artigo intitulado Direito à Literatura, afirmando que é através do contato com a cultura
em todos os seus níveis (folclore, lenda, mitos, “até as formas mais complexas e difíceis da
produção escrita das grandes civilizações” 312 ) que ocorre o processo de humanização do
indivíduo, pela aquisição do saber e exercício da reflexão, da boa disposição para com o
próximo, cultivo do humor, senso da beleza e percepção da complexidade do mundo e dos seres
e afinamento das emoções313.
Antonio Candido apontou a relação umbilical existente entre (acesso à) literatura e
direitos humanos, ao afirmar que “a literatura corresponde a uma necessidade universal que
deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade”. E, assim sendo, manter parcela da
sociedade privada da possibilidade de acesso a este “bem humanizador” equivale a mutilar a
humanidade ali presente314.
O pensador Brasileiro tinha como pano de fundo em sua análise a grande desigualdade
social existente no Brasil, que empurra certa parte da população para uma espécie de
subcidadania315. Com isso, o autor defendeu que a luta por direitos humanos deve, para além
de garantir os “bens incompressíveis” 316 que garantem a “sobrevivência física em níveis
decentes”, como por exemplo, saúde, alimentação, moradia, vestuário, instrução, etc., devem

311
TRINDADE e BERNSTS, O estudo do direito e literatura no Brasil, op. cit. pp. 238-246.
312
CANDIDO, Antonio. O Direito à Literatua: In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 5ª edição. Ed. Ouro
sobre Azul. Rio de Janeiro. 2011. pp. 171-193, p. 176.
313
Idem, ibidem, p. 182.
314
Idem, ibidem, p. 188.
315
A expressão “subcidadania” é utilizada pelo sociólogo Brasileiro Jessé Souza, cfr: SOUZA, Jesse. A construção
social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Editora UFMG. Belo Horizonte.
2003. O tema é sumariamente desenvolvido no item 4.4.
316
Antonio Candido utiliza-se da distinção entre “bens compressíveis” e “bens incompressíveis”. Pertencem à
primeira categoria, por exemplo, “os cosméticos, os enfeites, as roupas supérfluas”. Ver: CANDIDO, O Direito à
Literatura, op. cit., p. 175.
77

também ser garantidos o direito à crença, opinião, ao lazer, à arte e à literatura 317. Esse acesso
à arte e à literatura, segundo o A. Candido, importa em proporcionar à maior quantidade de
pessoas o contato com todos os níveis da cultura – da popular à erudita.
Apesar do “Direito à Literatura” não pertencer aos âmbitos das pesquisas normalmente
realizadas na área do “Direito e Literatura”, não poderíamos nos furtar em mencioná-la, pois
sua tese central, a saber, a humanização pela literatura, segue na mesma linha das afirmações
realizadas pelos estudiosos do Law and Literature Movement. No entanto, Antônio Cândido vai
ainda mais adiante, pois afirma que a literatura não apenas humaniza o indivíduo, mas, sim, que
é uma necessidade contigente à humanidade que este carrega em si. Eis a razão pela qual pugna
que dentro daquilo que se denomina na área jurídica como direitos fundamentais, deve-se
entender também o direito à literatura.

3.2. MÚSICA, LITERATURA E A DIMENSÃO INTERPRETATIVA DO DIREITO

la filosofia sembra che si occupi solo della verità,


ma forse dice solo fantasie, e la letteratura sembra
che si occupi solo di fantasie, ma forse dice la
verità.
A. Tabucchi318
Foram mencionados até então os três modos de articulação da relação entre direito e
literatura, a saber, direito na literatura, direito como literatura e direito da literatura. Embora
em D&L existam pontos controversos e atritos teóricos entre os autores que se debruçam sobre
o tema, tais discordâncias são majoritariamente a respeito do movimento em si e de
determinadas motodologias propostas. Veja-se, por exemplo, na experiência americana, os
comentários acima feitos a respeito das críticas de Richard Posner a Richard Weisberg e a JB
White319. Parece haver, todavia, certa concordância ou aceitação a respeito do significado por
detrás de cada uma das mencionadas articulações em D&L.
O “direito da literatura”, ou como prefere Posner “a regulação da literatura pelo
direito”, embora inserido no termo “direito e literatura” não é exatamente uma vertente
vinculada ao Law and Literature movement, pois resume-se a investigações no âmbito
normativo apenas, como a legislação a respeito dos direitos do autor, de crimes cometidos
através dos meios de comunicação, difamação, crimes contra a honra e regulamentações

317
Idem, ibidem, p. 176.
318
TABUCCHI, Antonio. Sostiene Pereira. Una testimonianza. Feltrinelli editore.Milano. 1994. p. 30
319
Posner refere-se às vertentes do movimento “direito na”, “direito como” e “direito da” também como “literary
texts as legal texts”, “legal texts as literary texts” e “the regulation of literatyre by law”, respetivamente. Ver:
POSNER, Law and Literature, 2009, 3 ed, op. cit., pp. 21, 273, passim.
78

administrativas a respeito da literatura320. Trata-se, portanto, de uma aproximação transversal321


ao Law and Literature movement, razão pela qual não estará no foco das considerações adiante
realizadas.
Já a vertente denominada “direito na literatura” tem sua atenção voltada para o estudo
do direito a partir da literatura, pela identificação de determinadas situações jurídicas, como por
exemplo, processos judiciais, transações comerciais, mudanças na forma de governo, exposição
da situação social de determinados grupos e classes, etc. São infinitas as possibilidades e formas
que o mundo literário dispõe para retratar o mundo jurídico322. Dito de outra forma: busca-se,
na literatura, as possibilidades para uma melhor compreensão do direito positivado.
Essa busca-na-literatura ocorre, pois a ela é atribuída a capacidade de orientar visões
de mundo, de definir formas e modos de viver, bem como de explicitar valores coletivos e de
remeter o leitor às possibilidades da existência, “ao interno dos mundos possíveis”323, fazendo-
o enxergar situações que talvez jamais viesse a conhecer e/ou imaginar. Diante de tal quadro de
possibilidades, Sansone afirma que isso faz reforçar o respeito às diferenças entre os homens,
nutrindo e fazendo evoluir o sentimento de empatia no leitor324, razão pela qual a vertente ora
analisada é bastante conexa aos estudos encabeçados por JB White e M. Nussbaum, a saber,
Law and Literature as ethical discourse325.
Já aquela denominada “direito como literatura”, por sua vez, foca majoritariamente no
papel da retórica utilizada pelos operadores do direito; na elaboração da forma narrativa tanto
dos fatos numa peça judicial quanto pela capacidade de representar a voz de determinadas
minorias sociais na busca por direitos e; sobre o tema da interpretação do direito326. Ocorre,
aqui, a tentativa de aplicação dos métodos de interpretação da crítica literária ao direito, bem
como a comparação entre ambas áreas do saber.
O exemplo comumente utilizado para explicar o direito como literatura é a metáfora
do romance em cadeia, que configura o cerne da teoria integrativa de Dworkin. O jusfilósofo
estadunidense afirma que o direito é uma obra coletiva, na qual cabe aos juízes a escrita de
sucessivos capítulos a partir da interpretação dos capítulos anteriores, de forma a manter a

320
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., pp.76-77; TRINDADE, GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p.
49.
321
OST, Raconter la Loi, op. cit., p. 41; TRINDADE, GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p. 49.
322
Essa distinção entre “mundos” se dá, aqui, apenas por questões de cunho explicativo, para manter cindido o
que é normativo e o que é literário; com o mesmo intuito é que se utiliza, doravante, as expressões textos literários
e textos jurídicos
323
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., p. 142.
324
Idem, ibidem, pp. 78 e 142.
325
Ibidem, p. 79; TRINDADE e GUBERT, Direito e literatura, op. cit., p. 54.
326
SANSONE, Diritto e Letteratura, op. cit., pp. 79-83; TRINDADE e GUBERT, Direito e literatura, op. cit.,
pp. 54-60; OST, Raconter la Loi, op. cit., pp. 42-45.
79

coerência e integridade da história que está sendo escrita. Ressaltamos que essa história-que-
está-sendo-escrita é a representação do próprio direito em desenvolvimento no seio da
sociedade. Dworkin busca demonstrar que juízes possuem uma dupla tarefa: reinterpretar e
contribuir para a evolução do direito327.
É possível perceber que a chain novel metaphor comporta em si os três pontos centrais
da vertente do direito como literatura, uma vez que interpretação, retórica e narrativa fazem
parte da atividade desempenhada pelos juízes na manutenção da coerência e integridade do
romance que vem sendo escrito. Tal metáfora apresenta, ainda, a idéia da temporalidade e da
temporalização da prática judiciária, afinal, a leitura dos capítulos até então escritos deve ser
capaz de demonstrar a compreensão e aplicação do direito (Constituição, códigos, etc.) no
decorrer das gerações328 em que esteve vigente.
Assim, com um olhar atento sobre o direito como literatura é possível perceber que há
uma conexão dessa “vertente” para com aquela que pensa o direito na literatura, a qual, por seu
turno, busca as possibilidades para melhor compreender o direito posto. Mesmo que se adote
uma postura mais restrita a respeito da percepção do direito na literatura, como o faz Richard
Posner por exemplo, ainda é possível perceber a existência da mencionada conexão.
Isto porque, até mesmo um crítico como Posner reconhece que o aprofundamento na
literatura pode fornecer ferramentas necessárias à elaboração de melhores decisões judiciais –
seja pela aesthetic integrity, pelo engrandecimento da retórica ou pela humanização do
indivíduo. Buscamos afirmar, com isso, que há uma integração entre ambas as vertentes, de
modo que os frutos das pesquisas na área resultam da sobreposição das respectivas
possibilidades e perspectivas teóricas. Isto porque nos parecere claro que ambas as vertentes
buscam a problematização do direito pela literatura. Ou ainda: procuram pensar o direito a
partir da literatura.
Exemplos dessa interseção entre direito como e direito na literatura são as obras de
François Ost e Maria Paola Mittica, ainda que ambos afirmem adotar preferencialmente uma
ou outra postura a respeito da relação D&L. Conforme anteriormente afirmado, Ost elabora sua
teoria do direito narrado ao contar o desenvolvimento do direito a partir do direito encontrado
na literatura. Em outras palavras: o jurista belga contribui para o “direito como literatura” ao
expandir as possibilidades do estudo do “direito na literatura”.

327
É clarificadora a seguinte lição do pensador norte-americano: “In this enterprise a group of novelists writes a
novel seriatim; each novelist in the chain interprets the chapter he has been given in order to write a new chapter,
which is then added to what the next novelist receives, and so on.” In: DWORKIN, Law’s Empire, op. cit., p. 229.
328
Por gerações, fazemos menção à “comunidade transtemporal” mencioanda por François Ost. Ver nota nº 281.
80

O mesmo pode ser afirmado sobre a contribuição de Mittica nas áreas de sociologia e
antropologia jurídicas que, ao reconstruir o universo grego a partir da literatura em
Raccontando il Possibile, reafirmou a possibilidade de se pensar o direito enquanto literatura329.
Com apoio das contribuições acima mencionadas, podemos afirmar que a literatura
oferece um material vivo, próximo à realidade e que serve como fonte de conhecimento da
história do direito330, ao contrário do que disse Posner em 1986 – sobre a literatura não estar
dentre as melhores fontes para conhecimento do direito331. Dessa forma, com Pergolesi, Mittica
e Ost (e em certa medida contra Posner), afirmamos ser a literatura uma excelente fonte de
conhecimento – tanto do direito, quanto de sua história.
Todavia, não é objetivo desse estudo elencar todas as formas que dispõe a literatura
para retratar o direito, nem tampouco definir suas funções no seio de uma sociedade. O é,
entretanto, defender que através dela é possível compreender melhor o desenvolvimento do
direito positivado.
Se os autores mencionados nos capítulos anteriores nos serviram como um guia do
desenvolvimento e evolução do movimento em D&L, agora nos servem também como linha
demarcatória da diferença entre o que ora propomos e o que já foi e vem sendo feito nessa área
de estudo. O que se busca apresentar é a possibilidade de narrar o desenvolvimento do direito
através da relação D&L. Equivale a dizer que intentamos propor um ângulo diverso para se
pensar esta frutífera relação. Para tanto, nos parece necessário implementar algumas distinções
para com o método comumente utilizado nos estudos da área. Pois bem.
Os “ajustes” que propomos dizem respeito a um requestionamento quanto ao que se
compreende pelos conceitos de “direito” e de “literatura” no interior do movimento, bem como
quanto ao modo de utilização e sobrepujamento de ambos. Isto porque, nos referimos ao direito
enquanto direito local e literatura enquanto literatura local, o que nos permite pensar o estudo
do Direito e Literatura como a relação entre “Direito local e Literatura local”.
O acréscimo do adjetivo local aos conceitos de D&L reduz em muito a bagagem
literária à nossa disposição, ao mesmo tempo em que particulariza sobremaneira o que há em
Direito a ser analisado. Essa restrição do conteúdo literário e do direito a guiar nossa análise,

329
Nas palavras da autora italiana: “La nostra maggiore acquisizione alla fine di questo lavoro viene perciò dal
fatto che, potendo osservare l’Oresetea come un’opera che interviene in modo diretto nei processi di
giuridificazione [...], si possa assumere il diritto come un racconto letterario, che trae la propria realtà come unica,
universale ed esclusiva solo dal fatto di raccontarsi come tale”. MITTICA, Raccontando il possibile, op. cit., p.
164.
330
PERGOLESI, Diritto e Giustizia, op. cit., 13-14.
331
“There are better places to learn about law than novels”. POSNER, Law and Literature, 1986, op. cit., p. 1356.
Ver nota nº 209.
81

parece implicar na possibilidade de um campo maior de observação da intrínseca relação entre


esses dois mundos, pois abre uma fenda que expõe ainda mais claramente as transformações do
mundo jurídico e os respectivos registros disso no mundo literário.
Dessa forma, para além de se realizar uma análise abstrata de determinados institutos
jurídicos como, por exemplo, a criação do primeiro tribunal, o aparecimento da objeção de
consciência, dos direitos subjetivos ou sobre as misérias do processo penal, através de obras
literárias transtemporais e de caráter, digamos, universal/genérico, pensamos ser possível a
utilização da literatura de determinado país para se compreender o desenvolvimento do próprio
direito local. Se isso for possível, por via de consequência, será também possível a construção
de uma narrativa coerente sobre o mencionado desenvolvimento332.
Com “para além”, queremos apontar o deslocamento de explicações casuais, pontuais,
a respeito de institutos jurídicos variados com apoio da “literatura mundial clássica”, para a
explic(it)ação de um compreender do desenvolvimento (das transformações) do Direito, que já
se encontra desde sempre inserida na literatura local. Afinal, Direito é linguagem. E (a)
literatura (o é) também.
Dito de outra forma: pensamos ser possível uma compreensão hermenêutica do
desenrolar historial do Direito de determinada sociedade, em determinado recorte temporal, a
partir da literatura então produzida. Isto porque, entre a vigência de determinado diploma legal
e sua posterior alteração ou revogação há um “interregno”, do qual podem vir a exsurgir
determinados registros do que à época se passou.
Estes “registros” podem vir em diferentes formas, como, por exemplo, músicas, livros,
relatos, notícias e filmes, sendo que todas estas são capazes de levar à linguagem e nela
conservar a manifestação do ser333. Com isto, estando à disposição de “ouvi-lo” – ele, o ser –,
não parece irrazoável concluir sobre a possibilidade de se estar a escutar a linguagem e o que
se dizia quando se falava334 sobre determinada coisa. Trata-se de uma investigação na própria
linguagem.
Ressaltamos, dessa forma, que o conceito de literatura doravante utilizado abrange as
formas de “registro” acima mencionadas, com especial atenção às letras de musicas – muitas

332
Por desenvolvimento, não pretendemos de maneira alguma acrescentar a priori um determinado juízo de valor
a respeito das transformações do direito, como se desenvolvimento e evolução fossem sinônimos de uma mudança
positiva.
333
HEIDEGGER, Martin. Cartas sobre o humanismo. Trad. de Rubens Eduardo Frias. 2 ed. rev. São paulo.
Centauro. 2005
334
CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídica: problemas fundamentais, op. cit., p. 89.
82

vezes detentores de uma riqueza poética deslumbrante –, pois períodos históricos conturbados
são bastante férteis no que toca a aparição de canções de protestos.
Nos parece possível, assim, em determinado período de tempo, observar um instituto
jurídico (um dispositivo constitucional, por exemplo) e investigar nas “conservações da
manifestação do ser” as condições de possibilidade para compreensão de seu desenvolvimento
no seio da história, da tradição, do direito local.
Dito de outra forma: consideremos, num primeiro momento, determinado objeto
jurídico provável de ter sido descrito pela literatura (novamente, aqui também entendidas as
letras musicais) e que, posteriormente, tenha passado por modificações. Assim, poder-se-ia
verificar sua existência prévia (como no exemplo do dispositivo constitucional); o que se foi
falado sobre ele na literatura e; por fim, o que tal objeto jurídico passou (ou não) a ser.
Em vista disso, parece cabível, através deste “procurar na linguagem”, a construção de
uma narrativa a respeito do que o objeto observado veio a ser, passando pelo que se falou sobre
este enquanto ainda era o que já não é mais e, sobretudo, pela identificação de um vetor de
racionalidade que se tenha registrado nesta transformação. E isso importa na elaboração de uma
explicação a respeito do direito (de determinado local) com auxílio da literatura (do respectivo
local)
Para ilustrar a reflexão acima levantada, lançamos mão de um exemplo capaz de
demonstrar o poder da literatura (incluindo-se aí as letras de música) de registrar criticamente
o direito instituído e de recriar a realidade reconstituindo-o335. Para tanto, utilizaremos um fado
português, um livro italiano ambientado em Lisboa durante o Estado Novo, a atual Constituição
da República Portuguesa e a anteiror, de 1933, e o atual Código de Processo Penal português.
A cantora portuguesa Amália Rodrigues (1920-1999), em seu disco Amália de 1962336,
apresentou a canção Abandono, composta pelo poeta português David de Jesus Mourão Ferreira
(1927-1996) e musicada por Alain Oulman (1928-1990). Tal canção ficou popularmente
conhecida como fado de Peniche, pois é uma referência direta ao forte/prisão situado em
Peniche e que à época da ditadura salazarista abrigava presos políticos, oposicionistas ao regime
autoritário implementado pelo Estado Novo.
Abandono contém versos que denunciam o autoritarismo e representam o sofrimento
daqueles que viram entes queridos serem presos por oposição à forma de governo de então.
Nosso foco é, portanto, voltado aos versos direcionados à exposição das agruras causadas pelo
mencionado autoritarismo. Vejamos:

335
MITTICA, Prima di tutto sono racconti, op. cit, p. 186.
336
Esse álbum ficou também conhecido como Busto, por conter uma fotografia do busto de Amália.
83

Por teu livre pensamento


Foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar[...]
Levaram-te a meio da noite
A treva a tudo cobria
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia
Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
Embora fosse assegurado o livre pensamento, como direito e garantia individual na
Constituição da República Portuguesa de 1933337, havia também a previsão de regulação de seu
exercício por leis especiais, visando “impedir preventiva ou repressivamente a perversão da
opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos
cidadãos” 338 . No mesmo dia em que entrou em vigor essa Constituição, passou a vigorar
também o Decreto-Lei nº 22.469 que instituiu a censura aos meios de comunicação e as
comissões de censura339. Com base nisto, oposicionistas ao governo eram perseguidos pela
polícia, presos e exilados ou, por vezes, torturados e mortos.
Certamente tais diplomas legais não são diretamente mencionados na letra da canção
Abandono, mas no entanto fazem parte da constituição (queremos dizer, das ações constituídas)
do Estado português à época em que seu texto foi escrito por Mourão Ferreira. Em outras
palavras: o texto de Mourão Ferreira foi escrito a partir do mundo vivido pelo poeta, contendo,
portanto, como pano de fundo a constituição jurídica da sociedade naquele momento.
Sociedade na qual a manifestação do pensamento livre somente era possível se
autorizada pelo Estado (através de suas comissões de censura), caso contrário, seria considerada
contra os interesses desse mesmo Estado e aquele que se expressou contra o status quo
declarado opositor, subversivo e/ou perigoso à segurança nacional.
No entanto, essa explicação dá conta apenas da consequência à época gerada pela
manifestação do livre pensamento, a saber, a prisão daqueles que se declararam contra o
governo. Consequência essa, exposta logo ao segundo verso de Abandono: “Por teu livre
pensamento/ Foram-te longe encerrar”. O modo em que essa consequência se deu é denunciada

337
A redação do nº 4 do artigo 8º da Constituição portuguesa de 1933 assegura “A liberdade de expressão do
pensamento sob qualquer forma”.
338
Parágrafo 2, do art. 8º, da Constituição portuguesa de 1933.
339
Decreto-lei publicado no Diário do Governo nº 83, de 11 de abril de 1933, de entrada em vigor imediata.
84

no verso “Levaram-te a meio da noite”. Retira-se daqui não apenas um referimento ao período
noturno em si, como seria o caso se houvesse sido dito “levaram-te durante a noite”, mas sim
uma tentativa de expor que a apreensão do indivíduo se deu já numa hora avançada do período
noturno.
Tal ideia é ainda reforçada pelo sentimento de indignação e repulsa imprimido pela
repetição desse “avançado período noturno” nos versos posteriores. O externar dessa não
aceitação da prisão noturna dá-se com “Levaram-te a meio da noite/A treva a tudo cobria/Foi
de noite, numa noite/De todas a mais sombria/Foi de noite, foi de noite”.
Outro exemplo, ainda mais esclarecedor, sobre as prisões “no meio da noite”, típicas de
regimes autoritários, é encontrado em Sostiene Pereira: una testimonianza, de autoria de
Antonio Tabucchi. A história é ambientada em Lisboa, no verão de 1938 e conta a história do
doutor Pereira, um viúvo de vida pacata, sem qualquer envolvimento político e responsável pela
página cultural semanal do jornal da tarde Lisboa, que contrata o jovem Monteiro Rossi para
ajudá-lo como colaborador externo na redação, atribuindo-lhe a tarefa de escrita antecipada de
obituários de pessoas públicas.
Monteiro Rossi, por sua vez, envolvido em movimentos opositores ao governo
salazarista, escreve obituários recheados de comentários políticos, os quais Pereira se recusa a
publicar para abster-se de atribuir teor político à página de sua responsabilidade no Lisboa.
Evitando assim problemas com as comissões de censura. Embora não publique os textos do
jovem, Pereira paga Monteiro Rossi após cada obituário entregue.
Com o desenrolar da história e da relação entre ambos, o perigoso caos da rotina do
rapaz começa a circundar a vida de Pereira até que se chega ao ponto em que, ao fugir da polícia
política na região do Alentejo, o jovem escapa para Lisboa e pede abrigo na casa de Pereira.
Na noite seguinte, após o jantar, batem à porta três indivíduos que se identificam como
da polícia política, mas não estão em uniformes e se recusam a apresentar documentos oficiais.
Mediante o uso da força e de eventuais ameaças, adentram à casa de Pereira com o pretexto de
conversar com o jovem (que sabem estar ali escondido), para recolher algumas informações e
fornecer-lhe uma lição de patriotismo. Monteiro Rossi é ali espancado até a morte. E, assim
como em Abandono, restou apenas o silêncio em seu lugar.
Os cenários acima mencionados demonstram a invasão da privacidade do lar e a
ausência de garantias constitucionais como liberdade de expressão, manifestação do
pensamento e devido processo legal. Representam, ainda, situações que se repetiram no
território português de 1933 até 1974. Ano em que no dia 25 de abril ocorreu a Revolução dos
Cravos que coroou a resistência do povo português ao derrubar o regime fascista e instaurar ali
85

o Estado de Direito democrático, enraizado nos direitos fundamentais dos cidadãos e nos
princípios basilares da democracia, com o objetivo de construir um país mais livre, mais justo
e mais fraterno340.
É imperioso ressaltar que no dia da Revolução uma canção serviu de senha para
convocar a população às ruas. Trata-se de Grândola, Vila Morena, de autoria de José Manuel
Cerqueira Afonso dos Santos (popularmente conhecido como Zeca Afonso), que exalta o
espírito de fraternidade encontrado pelo compositor na vila de Grândola, localizada no Distrito
de Setúbal, na região do Alantejo, em Portugal.
Após o 25 de abril de 1974, formou-se a Assembléia Constituinte que, em 2 de abril de
1976, aprovou e decretou a atual Constituição da República Portuguesa, assegurando direitos
como a inviolabilidade da vida humana e vedação da pena de morte 341; vedação à tortura342;
liberdade de expressão e informação, sendo que o exercício de ambos “não pode ser impedido
ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”343; a liberdade de imprensa344; direito à
liberdade e à segurança345 e inviolabilidade do domicílio346. A privação da liberdade, seja antes
ou depois da formação judicial da culpa, passa a encontrar limitações claras no texto
constitucional.
Sobre o tema, destacamos que as revistas e buscas realizadas em domicílios passaram a
ter a exigência de uma ordem ou autorização da autoridade judiciária competente347, devendo
o respectivo despacho ser entregue a quem de direito antes do início dos trabalhos 348 e, salvo
em raras exceções previstas em rol taxativo, buscas e revistas em casas habitadas somente
podem ser realizadas das 7 às 21 horas, sob pena de nulidade349. Isso significa que no Estado
de Direito democrático instaurado em Portugal não se aceita mais que alguém seja levado no
meio da noite por conta do livre pensamento. Em outras palavras: a Constituição portuguesa de
1976 não permite mais que aquela noite, de todas a mais sombria, venha a se repetir.
A análise ora feita demonstra que de 1933 a 1976 o direito português viu florescer
direitos e garantias constitucionais, bem como que nesse intervalo temporal a literatura
conservou a manifestação do ser, levando-a à linguagem, de modo que décadas mais tarde

340
Preâmbulo da Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP/76).
341
Números 1 e 2 do artigo 25 da CRP/76
342
Número 2 do artigo 26 da CRP/76.
343
Números 1 e 2, do artigo 27 da CRP/76.
344
Número 1 do artigo 28 da CRP/76.
345
Artigo 27 da CRP/76.
346
Artigo 34 da CRP/76.
347
Número 3, do artigo 174 do Código de Processo Penal português (Decreto-Lei nº 78/87).
348
Artigos 175 e 176, ambos do Código de Processo Penal português.
349
Número 1, do artigo 177 do Código de Processo Penal português.
86

tornou-se possível reconstruir e reinstituir as tranformações engendradas no direito local. Isso


a partir da conjugação do direito a priori posto, da literatura produzida sob sua égide e do direito
posteriormente produzido350.
É neste ponto, especificamente, que a relação direito-literatura tem muito a se beneficiar
da relação sugerida entre direito-música-literatura na forma aqui trabalhada. Sobremodo quanto
à questão levantada a respeito de “explicações casuais” a partir de clássicos da literatura, bem
como quanto às vantagens de se deslocar parte desta análise à concretude da literatura local,
conjugada com aspectos jurídico-políticos, em prol do desvelamento de vetores de
racionalidade que possam apontar “a direção” tomada pelo Direito em sua marcha na
temporalidade. Em seu desenrolar historial.
Como visto, no caso português essa “direção” do Direito teve como norte o
enraizamento dos direitos fundamentais dos cidadãos e do fortalecimento dos princípios
basilares da democracia, em busca da construção de um país mais livre, mais justo e mais
fraterno.
Em suma, é aqui que a construção de narrativas, oriundas dos estudos de direito e
literatura, voltadas à humanização do compreender o direito pode se beneficiar em maior grau
do que se está a sustentar. Ou seja, a “realidade das ficções” pode, além de auxiliar à explicação
do Direito, servir para compreensão das “ficções da realidade” do próprio Direito. É dizer, a
literatura é capaz de possibilitar o “acesso hermenêutico” 351 à “dimensão interpretativa do
direito”352, na qual podem ser compreendidas suas próprias transformações.
Com base no exposto, o edifício teórico aqui proposto busca pensar as possibilidades de
se acrescer ao estudo direito-literatura a relação direito-música-literatura, delineando uma
espécie de método, mas não como uma metodologia estruturalista capaz de fornecer um passo-
a-passo para compreensão do direito, mas sim no sentido de demonstrar a possibilidade de se
empreender um processo compreensivo que consiga abarcar a dimensão interpretativa existente
no diálogo entre mundos.
Essa dimensão interpretativa nos parece restar demonstrada pela explicitação do
compreendido na fusão de horizontes353, cuja dimensão veritativa é encontrada no confronto
dos textos no arco temporal analisado – que, no caso do exemplo desenvolvido, foi de 1933 a

350
Seria ainda possível realizar uma análise de tais mudanças empregando os quatro tempos apresentados por Ost.
Todavia, nossa intenção, neste momento, é apenas apresentar as possibilidades do método aqui proposto e o
desempenho de tal análise fugiria da exemplificação levada à cabo.
351
A expressão é de José Lamego, cfr: LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência: análise de uma recepção.
Lisboa. Fragmentos. 1990. p. 87.
352
STRECK, Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit., p. 398.
353
No sentido de fusão de horizontes da applicatio Gadameriana.
87

1987354. Este mergulhar na linguagem que se encontra à nossa disposição (direito, música,
literatura) configura, ao fim, uma espécie de investigação na própria linguagem a respeito do
conceito-objeto que se busca compreender.

3.3. O “ACESSO HERMENÊUTICO” E A OITIVA DA LINGUAGEM

Parece essencial realizar uma nova espécie de justificação operatória do uso dos
conceitos de “acesso hermenêutico” e “oitiva da linguagem” acima utilizados, pois são eles
essenciais aos capítulos que se seguem.
A expressão “acesso hermenêutico” é de autoria do professor português José Lamego
que, em sua dissertação de mestrado em ciências jurídicas, apresentada na Faculdade de Direito
de Lisboa no ano de 1987, fez uma recensão crítica das formas de “recepção” das doutrinas da
“Hermenêutica filosófica” no pensamento de autores variados da teoria do direito. Em seu
trabalho, Lamego analisou, ainda, os distintos “níveis filosóficos” da mencionada recepção,
destacando Ronald Dworkin e Arthur Kaufmann como seus maiores “receptores”355 – cada qual
a seu modo.
A análise das consequências da recepção da hermenêutica filosófica, na teoria do
direito, foi realizada a partir daquilo que Lamego definiu como “fractura que [...] se opera
mediante a <<viragem ontológica>>, devida a HEIDEGGER e GADAMER, e a equiparação,
nessa linha, por GADAMER, da Hermenêutica à filosofia prática e ao modelo aristotélico do
exercício da phronesis.” Tal fractura liberta a dogmática jurídica do conceito de verdade como
correspondência, lançando-a em direção à compreensão dessa “em termos hermenêuticos,
como <<desocultação>> (aletheia)”356.
A atenção de Lamego estava voltada, dessa forma, a recensear as abordagens teóricas
que acompanharam ou não essa viragem ontológica e, consequentemente, se superaram ou não
as implicações de adoção de um método fixo (enquanto metodologia a ser estritamente seguida,
como um passo-a-passo). Com isso, portanto, o professor lusitano examinou minuciosamente
essa “viragem hermenêutica” na teoria do direito, tanto no nível das metodologias esboçadas
quanto no nível filosófico dos modos de “recepção”357.
É necessário ressaltar que o modelo de racionalidade a guiar o trabalho aqui realizado,
a saber, a Crítica Hermenêutica do Direito, que apenas tomou forma a partir de 1999 com a

354
Pois esse foi o ano de entrada em vigor do Código de Processo Penal português.
355
LAMEGO, Hermenêutica e jurisprudência, op. cit., pp. 89, 91, 98, 105 e 111.
356
Idem, ibidem, pp. 90-91.
357
Ibidem, p. 98.
88

publicação da primeira edição de Hermenêutica jurídica e(m) crise, tem suporte também – para
além do já exposto no capítulo anterior – nas lições de José Lamego358.
Embora à época da publicação de Hermenêutica e Jurisprudência: análises de uma
recepção, obra a partir da qual operamos com o conceito de “acesso hermenêutico”, a Crítica
Hermenêutica do Direito ainda não existisse, a definição dada pelo professor lusitano a uma
hermenêutica jurídica calcada no legado deixado por Heidegger e Gadamer parece descrever
em termos precisos o que, uma década após a publicação de sua tese de mestrado, veio a ser a
CHD. Veja-se:
Para uma Hermenêutica assente em pressuposições existenciais-ontológicas,
a atitute <<interpretativa>> ou <<compreensiva>> terá que ver não com
questões de <<subjectividade>> ou <<objectividade>> do sentido de algo que
é <<dado>> ao intérprete, mas de um <<agir mediador>> que elabore e
potencie as possibilidades projectadas no <<compreender>>, identificado
este, na expressão de HEIDEGGER, com o <<ser de tal poder-ser>>.359

O excerto acima parece referir-se, com uma inegável antecedência, à tentativa da CHD
em abrir uma clareira no pensar-o-direito, a partir da superação daquilo que foi identificado
como o “paradigma de dupla-face” 360 dominante na dogmática jurídica. Essa clareira,
entretanto, somente é possível pelo acesso hermenêutico a que Lamego se refere.
Por “oitiva da linguagem”, no entanto, aqui se faz referência aos ensinamentos do
Heidegger tardio, em especial daquilo exposto no ciclo de palestras ministradas por na década
de 1950, as quais foram posteriormente reunidas e publicadas no Brasil sob o título de A
caminho da linguagem361.
Na exposição intitulada A linguagem, realizada em outubro de 1950 na cidade de
Bühlerhöhe, em Alemanha, o filósofo afirma: “A linguagem é: linguagem. A linguagem fala.
Caindo no abismo dessa frase, não nos precipitamos todavia num nada. Caímos para o alto.
Essa altura entreabre uma profundidade” 362.
O espaço entreaberto na afirmação de que a linguagem fala é preenchido por
Heidegger através da análise do poema Uma tarde de inverno, de autoria de Georg Trakl. Isto
é, o filósofo busca falar sobre a fala da linguagem, procurando na poética do poema o próprio
falar da linguagem. Isto porque, o pensador alemão sabe que o poeta, ao “poetizar”, imagina

358
STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito.
Livraria do Advogado. Porto Alegre. 1999. p. 155 ss.
359
LAMEGO, Hermenêutica e jurisprudência, op. cit., p. 91.
360
Ver capítulo 2, nota 67.
361
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 7ª ed. Ed.
Vozes, Petrópolis/RJ. Ed. Universitária São Francisco, Bragança Paulista. 2015.
362
HEIDEGGER, Martin. A linguagem. In: HEIDEGGER, A caminho da linguagem, op. cit., pp. 7-26, p. 10.
89

algo que poderia existir realmente e, ao concretizar este “poetizar” pela escrita, representa numa
imagem o que foi imaginado. Ciente disso, Heidegger afirma que é “a imaginação poética que
se exprime na fala do poema”, a qual “nomeia uma tarde de inverno”363.
Isto significa que a fala do poema nomeia! A fala do poema, que é a concretização do
poetizar do poeta, é capaz de nomear o imaginado por ele. Este nomear, por sua vez, importa
em evocar o imaginado que poderia existir. Ou seja, nomear não importa em atribuir uma
palavra, um nome, aos objetos conhecidos e representáveis, mas sim em evocar para a palavra
aquilo que se fala.
Esse abismo entreaberto pela fala da linguagem, aproxima o que se evoca pelo nomear.
Essa evocação para a palavra, entretanto, traz para a proximidade aquilo que até então não havia
sido convocado para vigorar aqui e deixar de ser ausência. No entanto, alerta o filósofo que esse
“vigorar aqui” não se basta no como de uma localização espacial, como algo que existe em
determinado recinto, mas, sim, numa vigência que se abriga na ausência, pois vem até nós
através de uma “evocação nomeadora” que a retira de seu abrigo ausente 364. Categoricamente
afirma Heidegger: “A evocação convida as coisas de maneira que estas possam, como coisas,
concernir aos homens”, pois ao nomear, “as coisas nomeadas são evocadas em seu fazer-se
coisa”365.
Conforme visto no item 2.1.1, a analítica da existência possibilita lançar o pensamento
filosófico na profundidade do lugar de onde ele – o pensamento – brota e para onde retorna,
onde é capa de ir e vir ao encontro dos fenômenos na abertura originária. Eis o local onde as
coisas nomeadas se manifestam pelo seu fazer-se coisa.
Esse local é o conceito de mundo Heideggeriano, que opera como condição de
possibilidade para o pensamento filosófico permanecer a caminho da compreensão dos
fenômenos em sentido fenomenológico. Este pensar mantém-se ciente de que “atrás” dos
fenômenos da fenomenologia não há nada366. Ou melhor: não há, para trás desse âmbito em que
se manifestam os fênomenos da fenomenologia, “coisas” a serem nomeadas pela evocação
nomeadora para, asssim, fazer-se coisa.
Nesse conceito de mundo, portanto, está implícito algo que vai além do simples
somatório de objetos, de entes existentes e subsistentes. Está aí inserida, nesse mundo, uma
espécie de “recorte de materiais que são trabalhados historicamente”, cujas “construções

363
HEIDEGGER, A linguagem, op. cit., pp. 14-15.
364
Idem ibidem, p. 16.
365
Idem, ibidem, pp. 16-17.
366
Ver nota nº 54.
90

pressupõem um a priori, uma condição de possibilidade, uma dimensão de transcendentalidade


que não é a própria delas, das construções, mas que é o universo onde elas se fundamentam”367.
Dessa forma, a afirmativa de que se busca um acesso hermenêutico à dimensão
interpretativa do direito, pela oitiva da linguagem, importa na compreensão da inafastabilidade
do sentido de mundo como condição de possibilidade que não limita o horizonte de
compreensão à dimensão meramente empírica, por ter o tempo como o horizonte de toda e
qualquer compreensão do ser. Essa ciência quanto à inserção desde sempre no mundo, é a
garantia de que a explic(it)ação do compreendido neste trabalho caminha nos trilhos, nas
sendas, da linguagem.
A expressão “da linguagem” nos remete à concretude do desenrolar da existência na
temporalidade. Isto é, o desenvolver do princípio constitucional doravante analisado (liberdade
de expressão). É uma referência à compreensão do ex-surgir da “coisa mesma”, alcançada pela
oitiva da linguagem e da “nomeação” do ser na temporalidade.
É dessa forma, portanto, que o conceito de mundo Heideggeriano, exposto no item
2.1.1 está na base da construção teórica aqui proposta: ele é a sustentação da dimensão
intepretativa do direito. Dimensão essa que, com apoio em Lamego e na CHD, se busca adentrar
através de um “acesso hermenêutico”.
Embora pareça óbvio, não podemos nos furtar de afirmar que essa oitiva da linguagem
será explicada através...da própria linguagem. Afinal, nós falamos “a partir da linguagem” e
isso “só nos é possível porque já sempre pertencemos à linguagem. O que é que nela escutamos?
Escutamos a fala da linguagem”368.
Em assim sendo, os conceitos aqui esclarecidos, aliados ao método delineado ao longo
do segundo capítulo, correspondem às ferramentas necessárias para uma experiência com a
linguagem, em busca da compreensão do desenrolar historial do direito. Tal experiência,
aparentemente, há de configuar uma experiência a caminho da linguagem pública que é o
direito.
Espera-se, assim, que essa tentativa de compreender o desenrolar historial das
transformações do direito, tendo como objeto investigado o princípio constitucional da
liberdade de expressão, através de um acesso hermenêutico à dimensão interpretativa do direito,
em busca da oitiva da linguagem, proporcione aquilo que Heidegger definiu como “trazer a

367
STEIN, Mundo vivido..., op. cit., p. 163.
368
HEIDEGGER, Martin. O caminho para a linguagem. In: HEIDEGGER, A caminho da linguagem, op. cit., pp.
192-216, p. 203.
91

linguagem como linguagem para a linguagem”369. Dessa forma, a narrativa deste experimento
há de ser uma narrativa sobre as transformações do direito.

3.4. A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA DAS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO

L’obiettivo è di elaborare una prospettiva che


consenta di osservare le manifestazioni della
giuridicità a partire principalmente della cultura.
M. Paola Mittica370

A síntese contida no item 3.1 serviu para demonstrar os pontos altos do período de
evolução dos estudos em D&L, passando pelo início da experiência americana, em 1908; pelo
aprofudamento dos estudos europeu entre as décadas de 1940 e 1960; pela afirmação definitiva
dos estudos na área na década de 1980; pelos anos 2000 e pelas contribuições mais atuais.
Nesse percurso nota-se que a interdisciplinariedade ganha cada vez mais espaço dentro
do movimento D&L, embora tal característica tenha estado sempre presente nos estudos
europeus. Com isso, não nos parece coincidência o fato de que as maiores contribuições
voltadas à possibilidade de narrar o Direito, através de metodologias bem delineadas e análises
de impressionante envergadura, sejam desenvolvidas no velho continente (como, por exemplo,
os casos de Espanha, Bélgica e Itália).
Os comentários realizados a respeito das obras citadas tinham por objetivo a
demarcação dos tipos de experiências realizadas em D&L, como forma de expôr as publicações
que contribuíram para o desenvolvimento dos estudos na área. Com isso, foi possível perceber
que, além da auto-evidente riqueza das possibilidades de fazer relacionar o direito com a
literatura, o movimento D&L mantém o foco, desde seu surgimento, tanto no enriquecimento
da retórica dos operadores do direito quanto na possibilidade de se observar certas
características literárias no direito. De Wigmore e Cardozo, passando por JB White e Posner a
Dworkin, González, Ost e Mittica, os estudos em D&L continuam a se expandir – seja entre
países ou na densidade teórica das obras que vem surgindo.
Já os comentários realizados no item 3.2, por sua vez, tinham o intuito de demonstrar
que, para além de explicações a respeito de institutos e conceitos jurídicos em abstrato,
realizadas através da utilização da literatura global, existe tanto a possibilidade de se reduzir o
foco de abrangência das explicações, de forma a retira-lo da abstratatização de explicações
pontuais em direito e lançar uma luz sobre o direito local, quanto de se substituir a literatura

369
HEIDEGGER, O caminho para a linguagem, op. cit., p. 192.
370
MITTICA, Raccontando il possibile, op. cit., p. 164.
92

“clássica” por aquela produzida na (ou a respeito da) sociedade cujo direito se quer
compreender.
Esta possibilidade não se resume à vertente denominada como direito como literatura,
pois não se afirma ser o direito estritamente literário, e difere-se do direito na literatura tanto
pelo tipo de literatura que se propõe, quanto pelo tipo de resultado obtido: aquela, a literatura
de caráter global para explicações pontuais sobre aspectos/institutos jurídicos, seja do direito
local ou em abstrato; nossa proposta, a literatura local para a construção de uma narrativa a
respeito das transformações do direito local.
Tendo em vista que a forma de análise proposta é feita colocando lado a lado o direito
local com a literatura local, parece razoável denominá-la – ainda que temporariamente – de
“direito com literatura”. Isto porque, trata-se da possibilidade de discutir assuntos jurídicos a
partir da literatura que não trata diretamente dos aspectos legais que regulam as relações
humanas, embora seja produzida tendo-os como pano de fundo. Em outras palavras, o direito
local pode estar ali, mas sem ser explícitamente mencionado.
Aqui, no “direito com”, seria maior o poder das explicações metafóricas, pois
necessária a “abstratização” do texto literário para a posterior conexão com o instituto ou
fenômeno jurídico cujo desenvolvimento se almeja explicar. Já na relação “direito na”, há a
elaboração de cenários jurídicos, rituais e consequências, os quais são benéficos para a
compreensão e aprendizagem do direio. E no “direito como”, por sua vez, o próprio evoluir do
direito é, por excelência, literatura – veja-se, por exemplo, a integridade e coerência, o romance
em cadeia e a compreensão do direito como relato civilizatório.
O esforço aqui proposto é, portanto, o de escutar a fala da linguagem pela relação
direito com literatura, pois pensamos ser possível identificar, assim, pontos congruentes capazes
de auxiliar na construção de uma narrativa coerente a respeito da evolução do direito de
determinada sociedade, em determinado período de tempo. Esta proposta, divide-se, até o
momento, nas seguintes etapas:

i) inclusão da música (suas letras) no conceito de literatura;


ii) identificação de um instituto jurídico local (princípio constitucional da liberdade de
expressão) a ser observado em determinado lapso temporal (1964-2016);
iii) revolvimento do chão linguístico do objeto investigado – o que foi falado quando
sobre ele se falava –, em busca da compreensão de seu desenrolar historial. Para tanto,
parece indispensável o confrontamento de certos “tipos de discurso”, como por
exemplo, o literário e o jurídico (a produção legislativa da época estudada), de modo
93

se observar o que aquele – o discurso literário – manifestava a respeito deste último e,


no caso de posterior alteração desse – do discurso jurídico –, buscar se conhecer o
sentido desta alteração;
iv) descrever esta observação sobre o desenrolar do direito: tratar-se-á da explic(it)ação
do compreendido, que há de culminar na construção da narrativa sobre a história do
desenvolvimento do direito. Ou seja, sobre o que se compreendeu do desenrolar dessa
história através do confronto entre direito e literatura.

A inserção das letras de música no conceito de literatura371 aqui trabalhado se dá por


duas razões bem específicas. A primeira, pois são, geralmente, textos cantados. Logo, são
textos. E, por óbvio, são linguagem. A segunda, porque diferentes gêneros musicais abordam
temas similares de maneiras diversas e isso representa uma rica fonte para conhecimento de
determinados aspectos da sociedade (e do direito) em que são produzidas. Ademais, as
denominadas “canções de protesto” configuram o testemunho, o discurso do que se passou
(enquanto se passava) em determinado local. Ou seja, são oriundas dos protestos ocorridos no
tempo presente (na vigência dos efeitos daquilo contra o que se protestava) de suas respectivas
épocas de escrita.
Através das canções de protesto se pode compreender o contexto das modificações
ocorridas no Direito. Contexto esse, geralmente contado por aqueles que não faziam parte da
estrutura do poder que instituiu/manteve aquilo que se tornou motivo de protesto372, ou seja,
aqueles que não tinham voz. E a imbricação direito-música-literatura nos permite, com o
benefício da distância temporal, olhar o que o Direito de hoje um dia foi, ao mesmo tempo em
que nos traz a mensagem de que as dificuldades para se entender o passado não podem nos
fazer esquecer das dificuldades do passado373.
Nos permite, ainda, pensar o Direito com o auxílio da literatura que, por sua vez, ao
descrever as possibilidades da existência narrando o direito, acaba por nos lançar ao pensamento
sobre o próprio Direito e seu passado. Em assim sendo, quando afirmamos que é possível narrar
o desenvolvimento do direito através da relação “direito com literatura”, estamos apenas
dizendo que isso ocorre com o auxílio da literatura, razão pela qual nossa proposta deve ser

371
No prosseguir desse trabalho, quando em referência ao conteúdo dos textos das canções como um todo,
utilizaremos o conceito – provisório e apenas por motivos de organização metodológica e textual – de “literatura
musical”.
372
Lembramos, aqui, da definição de “the nonpowerful” por Weisber. Ver nota nº 243.
373
“If the texts we have studied reminds us of the difficulties involved in constructing histories, they also remind
us that the strugles to understand the past should not lead us to forget the strugles in the past.” THOMAS, Brook.
Cross-Examination of Law and Literature: Cooper, Hawthorne, Stowe and Melville. Cambridge University Press.
Cambridge. 1987. p. 255.
94

compreendida como a possibilidade de se contar o direito (e sua história) com (auxílio d)a
literatura.
Isso significa, portanto, que os textos literários do passado chegam ao nosso presente
trazendo pequenos relatos sobre o mundo jurídico da época em que foram escritos. Para
compreendermos o desenrolar do direito, portanto, basta que levemos tais relatos e o direito a
sério374. Trata-se, então, ao fim e ao cabo, da possibilidade de construção de uma narrativa
obtida ao observar a manifestação da juridicidade 375 a partir da linguagem – tanto literária
quanto jurídica.

374
MITTICA, Cosa accade..., op. cit., p. 32.
375
Idem, Raccontando il possibile, op. cit., p. 164.
95

4. A IMBRICAÇÃO DIREITO E MÚSICA NA PRIVILEGIADA EXPERIÊNCIA


BRASILEIRA

A partir de agora, através da relação direito-música-literatura, buscamos construir uma


narrativa a respeito do desenvolvimento do que veio a ser o princípio constitucional da liberdade
de expressão no direito Brasileiro. Para tanto, utilizamos a literatura musical376 ali produzida
no interregno de 1964 a 2016, bem como determinados eventos que marcaram o mencionado
período, para uma tentativa de compreensão do desenvolvimento do Direito.
Os textos doravante analisados (jurídicos e literários) são apresentados,
majoritariamente, em ordem cronológica de forma a se realizar um paralelo, uma espécie de
acareação, entre mudanças no Direito e seus respectivos “registros” músico-literários. Se busca
construir, assim, uma narrativa sobre o desenvolvimento do Direito, a partir do confronto entre
o que acontecia no mundo jurídico e o que se falava a respeito no mundo literário377. Se intenta,
ainda, identificar nessa narrativa um vetor de racionalidade que guie a direção desse
desenvolvimento, ou seja, que aponte a direção tomada pelo Direito em sua marcha historial378.
Todavia, antes de adentramos à análise aqui proposta, faz-se necessário um
esclarecimento a respeito do arco temporal em que a evolução do Direito Brasileiro há de ser
observada. Isto porque, por razões metodológicas, o dividimos em dois períodos: de 1964 a
1988 e de 1988-2016, isto é, ditadura militar e período democrático, respectivamente.
O ano de 1988 foi quando entrou em vigor a Constituição da República Federativa do
Brasil (CRFB), a qual instituiu o Estado de Direito democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, tendo a liberdade, o bem-estar e a igualdade, dentre
outros, como valores supremos379. A Constituição de 1988 é, portanto, um divisor de águas na
história recente do direito Brasileiro, pois representa a ruptura para com o modelo de Estado
ditatorial outrora existente, motivo pelo qual optamos por iniciar nossa análise a partir da
contextualização de sua promulgação.

376
Conforme nota nº 371.
377
eis aqui o que acima denominamos como observação da manifestação da juridicidade a partir da linguagem
378
Isto é, o sentido das mudanças e transformações pelas quais passou o direito analisado.
379
Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil.
96

4.1. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: UM DIVISOR


DE ÁGUAS

Promulgada em cinco de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do


Brasil (doravante CRFB) foi o marco oficial do término da ditadura militar, iniciada em abril
de 1964 e caracterizada pela intensa restrição a direitos, garantias e liberdades indivuais. Diz-
se, aqui, “marco oficial”, pois o regime militar já não possuía a força de outrora, o que culminou
na eleição de Tancredo Neves ao cargo de presidente da república em 15 de janeiro de 1985.
Por motivos de saúde, o primeiro presidente civil eleito desde 1964 não pode ser empossado ao
cargo, razão pela qual o vice-presidente, José Sarney tomou posse em seu lugar em 15 de março
de 1985.
Sendo o primeiro civil a exercer a função de presidente em duas décadas, José Sarney,
convocou a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) através do envio da mensagem
presidencial número 330, em 28 de junho de 1985, ao Congresso Nacional. Em tal documento,
Sarney convocou o povo Brasileiro a “organizar-se pacificamente em regime de liberdade e
justiça”, na busca unida pela “lei fundamental que a todos proporcione os bens necessários à
vida digna, vivida em paz e liberdade”. Afirmou, ainda, que seria pela obra da Assembléia
Nacional Constituinte que o país reencontraria “a plenitude de suas instituições democráticas”,
pois a Constituição é “o caminho do “Estado de Direito”380.
Redigida pela Assembléia Nacional Constituinte, formada por 559 parlamentares
eleitos em novembro de 1986, a CRFB foi fruto de intensa participação popular ao longo de
seus vinte meses de elaboração381. Os trabalhos tiveram início em 01 de fevereiro de 1987 e fim
em 22 de setembro de 1988382. No dia 03 de fevereiro, ao tomar posse como presidente da ANC,
Ulysses Guimarães afirmou, perante o Congresso Nacional: “Ecoam nesta sala as
reivindicações das ruas. A nação quer mudar, a nação deve mudar, a nação vai mudar”383.
Essas reinvidicações das ruas por uma mudança da nação foram asseguradas pelo
regimento interno da ANC, aprovado em 19 de março de 1987, que garantiu às Assembléias
Legislativas, às Câmaras de Vereadores, aos Tribunais e às entidades representativas de

380
BRASIL. Mensagem presidencial, de 28 de junho de 1985. Brasília, DF, grifo no original. Documento
disponível: <<https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/emenda.pdf>>. Acessado em 06 de junho
de 2018.
381
Idem, Assembléia Nacional Constituinte (1987). O processo histórico da elaboração do texto constitucional:
mapas demonstrativos. 3 volumes. Trabalho realizado por Dilsson Emilio Brusco e Ernane Valter Ribeiro. Brasília:
Câmara dos Deputados. Coordenação de publicações. 1993. v. 1, pp. 21-24.
382
Idem, ibidem, pp. 21-24.
383
Idem. Ulysses Guimarães: seleção de discursos. Seleção de textos, introdução e comentários de Luiz
Gutemberg. 2 ed. Série perfir parlamentares, n. 66. Brasília, DF: Câmara dos Deputados. Edições Câmara. 2012,
p. 402.
97

segmentos da sociedade a faculdade de apresentar sugestões de matérias constitucionais384. Tais


sugestões ficaram conhecidas como “emendas populares”, das quais, 122 foram aprovadas pela
ANC, após terem sido colhidas 12 milhões de assinaturas385.
Outro fator a respeito da participação popular que merece ser destacado, por
representar a comunicação entre os Constituintes e a população, foi a criação pelo Congresso
Nacional do Jornal da Constituinte, periódico que circulou semanalmente entre junho de 1987
e outubro do ano seguinte386.
Elegemos por mencionar, aqui, as edições de números 4 e 16. A primeira, contém uma
carta do presidente da ANC, Ulysses Guimarães, datada de 28 de junho de 1987, e dirigida à
população Brasileira, com a seguinte mensagem:

Queremos uma Constituição andarilha. Que não fique estacionada em Brasília


ou depositada nas estantes. Uma Constituição que pertença à sua casa, como
a mobília e demais utensílios. [...] Com a Constituição não se consegue tudo,
mas sem a Constituição não se consegue nada. Porque acabou a Democracia.
E sem a Democracia você não vale nada: não pode falar, não pode protestar,
pode ser preso, torturado ou morto, sua mulher ou sua filha serem estupradas.
E nada acontecer aos facínoras. [...] A Constituição está andando. Vai chegar
a (sic) sua casa. Como amiga, não como intrusa. Participe dessa caminhada
histórica. Todos juntos. A Constituição será de todos, todos têm que
colaborar”387.
Já a décima sexta edição, por sua vez, pinta o quadro de como seu deu essa
colaboração:

País novo e heterogêneo, o Brasil, após os solavancos totalitários que lhe


atrasaram a marcha para o futuro, realiza, este ano, uma façanha incrível: fez
o chamamento aos cidadãos de todo o seu território para que viessem discutir,
debater os seus assuntos da guerra, da paz e do cotidiano. Esta Assembléia

384
Vide, art. 13, §11 do Regimento interno da ANC. Cfr: BRASIL, Assembléia nacional constituinte. Regimento
Interno, resolução nº 2 de 1987. Disponível em: <<http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/regimento-interno-da-
assembleia-nacional/resolucao-2-1987>> Acessado em 06 de junho de 2018.
385
Idem. Panorama da Constituinte. Disponível em: <<http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-
1988/panorama-da-constituinte>> Acessado em 06 de junho de 2018. Em interessante comentário sobre o tema, o
vice-presidente hoje em exercício da presidência, Michel Temer, à apresentação do livro Audiências Públicas na
Assembleia Nacional Constituinte: a Sociedade na Tribuna, disse: “Aquele momento foi etapa rica da vida política
Brasileira. As audiências despertaram especial atenção, tanto pela diversidade de participantes e setores
representados como pelas centenas de propostas e inúmeras polêmicas surgidas. Era a sociedade se fazendo ouvir
e abordando os temas que a mobilizavam na transição entre o regime do arbítrio e a normalidade democrática.”
BRASIL. Audiências Públicas na Assembleia Nacional Constituinte: a Sociedade na Tribuna. Organizado por
Ana Luiza Backes, Débora Bithiah de Azevedo e José Cordeiro de Araújo. Brasília, DF. Edições Câmara. 2009.
p. 13.
386
Todas as edições podem ser encontradas no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados.
<<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-
cidada/publicacoes/Jornal%20da%20Constituinte>> Acessado em 06 de junho de 2018.
387
BRASIL. Jornal da Constituinte. Órgão oficial de divulgação da Assembléia Nacional Constituinte. Brasília,
DF. 22 a 28 de junho de 1987, nº 4, p. 1, grifo nosso.
98

Nacional Constituinte poderá até não escrever a melhor Carta que o País já
teve. Mas, uma característica ela terá: será o documento-verdade, resultante
da feliz idéia de reunir os cidadãos para debater os seus próprios problemas.
Trabalhadores, índios, negros, empresários, proprietários, professores,
domésticas e menores abandonados acorreram ao chamamento. Os erros e
falhas ficarão por conta da novidade do exercício388.
Em assim sendo, o texto original da CRFB, aprovado pela ANC em 22 de setembro de
1987, reflete bem o diálogo havido entre os Constituintes e a população e corresponde à uma
viragem, digamos, “copernicana”, na história brasileira. Isso porque, após o longo período de
arbítrio sob comando de militares, com supressão da cidadania – período esse precedido por
um curto lapso democrático (1945-1964) que foi um interregno entre o regime militar e outro
período ditatorial, o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) –, a população Brasileira
conquistava novamente a democracia.
A CRFB, instauradora dessa democracia conquistada lentamente, é o “estatuto do
homem, da liberdade e da democracia”389. Do homem, pois conferiu aos cidadãos Brasileiros à
condição de legisladores, pelo exercício da democracia diretamente, consagrando uma
república representativa e participativa390; da liberdade, pois em seu artigo 5º trouxe um extenso
rol de direitos, deveres e garantidas fundamentais, contando sua redação original com 77
incisos391 e; da democracia, pois logo em seu artigo primeiro afirma, categoricamente, que a
República Federativa do Brasil “constitui-se em Estado Democrático de Direito”, formada pela
“união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal”, com os poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário “independentes e harmônicos entre si”392, sendo que todo poder emana
do povo.
Dividida em nove títulos mais disposições transitórias, a CRFB foi organizada da
seguinte forma: Título I: princípios fundamentais – artigos 1 a 4; Título II: direitos e garantias
fundamentais, artigos 5 a 17; Título III: organização do estado – artigos 18 a 43; Título IV:
organização dos poderes; 44 a 135; Título V: defesa do Estado e das instituições democráticas
– artigos 136 a 144; Título VI: tributação e orçamento – artigos 145 a 169; Título VII: ordem

388
Idem. Jornal da Constituinte. Órgão oficial de divulgação da Assembléia Nacional Constituinte. Brasília, DF.
14 a 20 de setembro de 1987, nº 16, p. 8.
389
Discurso proferido por Ulysses Guimarães quando da promulgação da CRFB. Cfr: BRASIL. Ulysses
Guimarães: seleção de discursos, op. cit., p. 448.
390
O parágrafo único do art. 1º da CRFB assevera que todo o poder “emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. São formas de exercício direto do poder a
iniciativa popular de leis, a ação popular (art. 5º, LXXIII), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI), a ação civil
pública (art. 129, III da CRFB e lei 7.347/85), o mandado de segurança individual e coletivo (art. 5º, LXIX e LXX)
e a possibilidade de peticionar livremente ao poder público independentemente do pagamento de taxas (art. 5º
XXXIV), para recebimento de informações e fiscalização dos atos deste.
391
O 78º inciso foi acrescido através da emenda constitucional nº 45/2004.
392
Art. 2º da CRFB.
99

econômica e financeira – artigos 170 a 192; Título VIII: ordem social – artigos 193 a 232; Título
IX: disposições constitucionais gerais – artigos 233 a 250393.
Imperioso ressaltar que, como o objeto que nos dispusemos a analisar é o princípio394
da liberdade de expressão em seu desenrolar historial, e que o mesmo encontra-se repetidas
vezes ao longo do artigo 5º da CRFB, ou seja, no Título II, a respeito dos direitos e garantias
fundamentais, as considerações realizadas nos próximos itens deste capítulo 4 orbitarão,
primordialmente, o texto constitucional contido no referido título – sendo certo que comentários
necessários a respeito de outros dispositivos constitucionais hão de ser também realizados.
O mencionado Tìtulo II é dividido em cinco capítulos: i) direitos e deveres individuais
e coletivos; ii) direitos sociais; iii) nacionalidade; iv) direitos politicos e; v) partidos políticos.
O caput do artigo 5º, que dá início ao primeiro dos cinco capítulos, afirma que “todos são iguais
perante a lei sem distinção de qualquer natureza”, sendo invioláveis o “direito à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade”. Em sua maioria, encontram-se aqui as garantias
constitucionais contra o arbítrio do Estado, as quais, configuram cláusulas pétrea por força
normativa do artigo 60, §4º, IV da CRFB, que veta emendas constitucionais que pretendam
abolir os direitos e garantias individuais do texto constitucional.
Dessa forma, por consequência das características acima expostas (da participação
popular no processo constituinte às garantias do cidadão e da cidadania previstas na CRFB), o
presidente da ANC, quando da promulgação, disse alvissareiramente que não bastou à
Constituição proteger o homem, “defendê-lo contra os abusos originários do Estado e de outras

393
O artigo 233 foi revogado pela emenda constitucional nº 28/2000.
394
Por motivos de cautela, é indispensável realizar, aqui, um alerta. No capítulo 2, foi feita uma “prestação de
contas histórico-conceitual” (Gadamer), uma espécie de “justificação operatória” (Stein) para assegurar o uso
coerente dos conceitos filosóficos enraizados no paradigma fenomenológico hermenêutico – os quais foram
transportados à teoria do direito pela Crítica Hermenêutica do Direito. Dessa forma, conforme apresentado no item
2.2, o conceito de princípio aqui utilizado leva em conta a função dos princípios jurídico-constitucionais de
atravessamento do ordenamento jurídico, resgatando o mundo prático, em busca do acontecer da Constituição (foi
afirmado, no item 2.2.2, que isso importa no desvelar do ser-em – do sentido do texto) no horizonte da factidade
e da tradição constitucional. Com isso, foi afirmado que é através dos princípios constitucionais que ocorre a
antecipação dos sentidos pela pré-compreensão, a qual alimenta o círculo hermenêutico na fusão de horizontes e
na compreensão da diferença ontológica entre texto e norma. Ou seja, qualquer regra somente é em seu princípio
constitucional instituidor. Do mesmo modo, os princípios apenas são através das regras que eles mesmos instituem.
Eis a relação regra-princípio sustentada pela CHD e que guia a análise aqui desempenhada. Dessa forma, a menção
a incisos contidos no artigo 5º da CRFB, como por exemplo, o inciso IV, que assegura que “é livre a manifestação
do pensamento, sendo vedado o anonimato”, deve ser compreendida dentro desta relação regra-princípio. Ou seja,
a regra constitucional contida no art. 5º, IV da Constituição estampa o princípio da liberdade de expressão, o qual,
por sua vez, sustenta a mencionada regra. Assim ocorre também, a título exemplificativo, com o incisos IX,
também do art. 5º , que assegura ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”. Em outras palavras: é o princípio constitucional da
liberdade de expressão que subjaz às regras constitucionais ora mencionadas.
100

procedências”, pois ela o introduziu “no Estado, fazendo-o credor de direitos e serviços,
cobrados inclusive com o mandado de injunção”395.
Sedimentou, ainda, a definição da Carta apresentada à nação como “a Constituição
Coragem, a Constituição Cidadã”396. Já próximo ao fim de seu discurso, Ulysses Guimarães
bradou retumbantemente:

Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita, seria irreformável. Ela


própria, com humildade e realismo, admite ser emendada [...]. Não é a
Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda
que de lamparina, na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os
caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. [...] Foi a sociedade, mobilizada nos
colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança,
derrotou o Estado usurpador. [...] A nação quer mudar. A nação deve mudar.
A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade
política da sociedade rumo à mudança.”397.
Já promulgada, a Constituição Cidadã sepultou, portanto, o período de regime militar,
autoritário e opressivo, a que fora submetido o país desde 1964. É o marco transitório entre
ditadura e democracia.
Retomando os ensinamentos de F. Ost, podemos dizer que se o tempo é, de fato, uma
instituição social portadora de sentidos (como demonstrado no capítulo anterior), a
promulgação da CRFB é o marco inicial do tempo do Estado Democrático de Direito no Brasil,
representando por si só, a memória possibilitadora da conexão para com o passado (o qual se
deve sempre reconstruir para compreender os sentidos ali interssubjetivamente
compartilhados), evitando-se, assim, o risco de anomia por ausência de um sólido firmamento
social398.
Essa conexão para com o passado, noutro giro, importa na conexão-entre-memória-
e-promessa-de-futuro399, que importa no descontinuar do passado jurídico (ditadura militar) e
seus respectivos vícios em prol da reconciliação e anistia400, que tende a afastar dessa mesma

395
Discurso proferido por Ulysses Guimarães quando da promulgação da CRFB. Cfr: BRASIL. Ulysses
Guimarães: seleção de discursos, op. cit., p. 446.
396
Idem, ibidem, p. 450.
397
Idem, ibidem, pp. 453-455.
398
Ver nota nº 276.
399
Ver nota nº 277.
400
A respeio do tema, embora não seja objeto deste trabalho, João Batista Figueiredo, último general de exército
a exercer a presidência do Brasil, promulgou em 28 de agosto de 1979 a lei nº 6.683, popularmente conhecida
como “Lei da Anistia”. Em seu artigo 1º, concede anistia a todos quantos, de 02 de setembro de 1961 a 15 de
agosto de 1979, “cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos
políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indirtea, de fundações vinculadas ao poder público,
aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais,
punidos com fundamento em Atos institucionais e Complementares”. Posteriormente, a lei da anistia sofreu
alterações oriundas da lei nº 10.559 de novembro de 2002.
101

memória os vícios de até então 401 . Trata-se, como já afirmado, de encarar a verdade para
exorcizar o passado; de perdoar, sem jamais esquecer402.
A sociedade Brasileira, em 1988, estava, portanto, passando por aquilo que Ost definiu
em sua obra como “período de transição reconciliatória”, ilustrado pela reestruturação e pela
promessa de um tempo futuro melhor a ser sustentado pelo novo universo normativo 403 .
Registrou-se ali, no fruto da Assembléia Nacional Constituinte, a busca daquilo que a sociedade
Brasileira buscava vir a ser. É a figura da promessa, acima definida como possibilitadora “da
retemporalização de uma sociedade em seu desenvolvimento temporal”.
E é justamente essa promessa do “por vir”, que a impulsiona na marcha histórica em
direção diversa daquela que a levou até ali e que deve ser sempre “criticamente questionada”404.
Eis a possibilidade de reformar esse gesto emancipatório radical de fratura para com o passado
então exorcizado, mas não esquecido405 – o que o filósofo belga chamou de requestionamento.

4.2. 1964 A 1988: CAMINHANDO E CANTANDO RUMO À DEMOCRACIA

Expostos o contexto da promulgação do texto constitucional de 1988 e seu


enquadramento na temporalização do direito, em acordo com aquilo que foi exposto no item
3.2, ressaltamos que a análise que segue se insere na dialética compreensiva do desenrolar
historial do direito, tendo como pano de fundo da exposição os quatro tempos que, segundo F.
Ost, guiam a comunidade transtemporal, na compreensão da proveniência de seus direitos.
406
Realiza-se, aqui, a exposição da perspectiva intergeracional , possibilitada pelo
distanciamento temporal.

401
À nota de nº 277 do capítulo anterior, explicamos que o tema da reconciliação e anistia foi analisado por OST,
sob o signo de “erros do passado”, citando as ditaduras ocorridas na América Latina sem, contudo, mencionar o
caso Brasileiro. Fazemo aqui, portanto, um adendo às observações de Ost, incluindo também a ditadura Brasileira
no tipo de análise lançada pelo autor belg em Le Temps du Droit.
402
Ver nota nº 278. Sobre “encarar a verdade para exorcizar o passado”, imprescindível ressaltar a lei nº 12.528
de 18 de novembro de 2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), ligada à Casa Civil da Presidência
da República, a qual tinha a finalidade de “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos
praticadas no período” de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, “a fim de efetivar o direito à memória
e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. O lema da CNV é, justamente, Verdade, Memória e
Reconciliação. Seus trabalhos encerraram-se em 10 de dezembro de 2014, com a entrega do relatório final. Merece
destaque, ainda, que tal Comissão foi criada pela então presidente da república, Dilma Roussef, que em sua
juventude militou no movimento armado Comando de Libertação Nacional (COLINA), tendo sido presa e
torturada pelo regime militar. O relatório entregue pela CNV pode ser encontrado no sítio eletrônico
<<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/>> Acessado em 06 de junho de 2018.
403
Idem, ibidem, pp. 157-171.
404
Idem, ibidem, p. 255.
405
Faz-se referência aqui, à possibilidade de emendas constitucionais garantidas pela CRFB.
406
No original Ost usa a expressão “c´’est à partir d’une perspective intergénérationnelle que se pose la question
du juste et du droit [...]”.OST, Le Temps du Droit, op. cit., p. 339.
102

Trata-se da tentativa de, através da imbricação direito-musica-literatura compreender


pelo que o atual o princípio constitucional da liberdade de expressão passou (antes da CRFB),
em busca da narrativa que ilumine seu desenrolar historial e possibilite o compreender do que
é hoje, perpassando, necessariamente, pelo que foi (e que talvez já não seja mais). Em outras
palavras, busca-se compreender seu desenrolar no horizonte da factidade e da tradição
constitucional Brasileiras. Lançamo-nos, a partir de agora, na tentativa de encontro com o
mencionado princípio mesmo (a coisa mesma).
É, portanto, o esforço de compreensão da conexão-entre-memória-e-promessa-de-
futuro (que descontinuou o passado viciado e lançou a sociedade brasileira em seu caminhar
rumo à mudança), deixando-nos guiar pela manifestação da juridicidade da liberdade de
expressão no arco temporal observado.

4.2.1. Prelúdio: de 13 a 31 de março de 1964

Em 13 de março de 1964, o então presidente do Brasil, João Goulart, discursou no


centro do Rio de Janeiro a respeito da implementação das “reformas de base”, propostas de
reformas fiscal, bancária, urbana, administrativa, eleitoral, agrária e universitária que
compunham o cerne de seu governo. Na ocasião, Jango, como era popularmente conhecido,
anunciava tais reformas como metas a serem implementadas pelo governo a partir de então 407.
É de se ressaltar que a organização do comício teve apoio da União Nacional dos Estudantes
(UNE), movimento estudantil que havia sido criado em 1938 e era o ponto de encontro de
agremiações estudantis politicamente engajadas.
Em sua fala, Jango explicou quais eram as diretrizes de seu governo na busca da paz
social através da justiça social, em um país tão profundamente desigual como o Brasil.
Ressaltou, todavia, com bastante rigor e notável preocupação, o incômodo que tais diretrizes
causavam em setores conservadores e antidemocráticos:

Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios,
mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança
no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do
presente. Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha
de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou
perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu
presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e
lideranças populares deste país. Chegou-se a proclamar, até, que esta

407
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Volume 1. Brasília. CNV, 2014. p. 97. Para maiores
informações a respeito do conteúdo das reformas então propostas, conferir: Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Disponível em:
<<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/As_reformas_de_base>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
103

concentração seria um ato atentatório ao regime democrático [...]. Desgraçada


a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas. Democracia para
esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que
eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus
anseios e sufocado nas suas reinvindicações. A democracia que eles desejam
impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou
seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou
representam. A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com
a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e
internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares [...].Não
há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo;
não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do
povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas
reinvindicações. [...]Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus
sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo [...].
Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra
tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos
a paz social pela justiça social. [...] Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca,
dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz
contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o
exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância408.
Todas as propostas ali apresentadas, foram enviadas no dia 15 subsequente ao
Congresso Nacional, pugnando que todas as diretrizes para as reformas de base fossem
submetidas à consulta popular, “mediante o voto de todos os Brasileiros maiores de 18 anos”409.
O evento do dia 13 ficou conhecido como “o comício das reformas” e as
reestruturações ali propostas encontraram grande resistência junto aos setores conservadores
mencionados por Jango, os quais responderam com diversos protestos pelo país a partir de 19
de março daquele ano. Tais protestos, ganharam o nome de Marcha da Família com Deus pela
Liberdade e tinham o suposto intuito de salvar a democracia Brasileira da propagação do
comunismo410.
É nesse contexto, de reformas que visavam equalizar “os contrastes mais agudos” da
sociedade Brasileira, “de natureza estrutural” 411 , com resistência de determinados setores
consevadores e reacionários que, em 31 de março de 1964, o exército Brasileiro iniciou o

408
GOULART, João. Discurso no comício das reformas de base, em 13 de maio de 1964. Transcrição integral em
<<http://www.institutojoaogoulart.org.br/conteudo.php?id=31>> Acessado em 06 de junho de 2018.
409
Idem. Mensagem ao Congresso Nacional na abertura da sessão legislativa de 1964, p. LVIII. Disponível
em<<http://www.institutojoaogoulart.org.br/upload/conteudos/120128180216_joao_goulart_mensagem_ao_co.p
df>> Acessado em 06 de junho de 2018.
410
BRASIL, Relatório da Comissão Nacional da Verdade, vol. 1, op. cit., p. 97. Conferir, também, Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Disponível em:
<<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/AConjunturaRadicalizacao/A_marcha_da_familia_com_D
eus>> Acessado em 06 de junho de 2018. No sítio eletrônico do Congresso Nacional Brasileiro, há a estimativa
de que cerca de que duzentas mil pessoas compareceram ao “comício das reformas” e que quintas mil estiveram
presentes às “marchas da família”. Disponível em <<http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/golpe-de-1964>> acessado em 06 de
junho de 2018.
411
Idem. Mensagem ao Congresso Nacional na abertura da sessão legislativa de 1964, op. cit., p. VI.
104

movimento que culminou com a tomada do controle político para si e instaurou o regime militar
que durou por 21 anos.

4.2.2. De 1º de abril de 1964 a outubro de 1988: um olhar pela fenda mais originária
da pesquisa e do conhecimento

Em primeiro de abril de 1964, o então presidente João Goulart viajou de Brasília para
a cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, com o intuito de reunir-se com aliados para
discutir a melhor maneira de resistir à tentativa de golpe militar iniciada no dia anterior. No
entanto, na madrugada do dia seguinte, às três e quarenta e cinco da manhã, o Congresso
Nacional Brasileiro, em tumultada sessão declarou a vacância do cargo de presidente, sob a
alegação de que Goulart havia fugido do país412.
Naquele momento, o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli foi
empossado no exercício da presidência da república. Sua função, todavia, era meramente
simbólica, uma vez que a junta militar formada pelos general Artur da Costa e Silva, vice-
almirante Augusto Rademaker Grünewald e tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de
Melo, representantes do exército, marinha e aeronáutica, respectivamente, é que detinha o poder
político naquele momento.
A referida junta, em 9 de abril, editou o ato institucional (AI) nº 1, concretizando
oficialmente a tomada do poder através de emendas à Constituição de 1946, dentre as quais se
destacam a convocação de eleições indiretas para 11 de abril (art. 2º), suspensão por seis meses
“das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade” de servidores públicos
de todas as esferas (art. 7º) e atribuição à junta militar do poder de suspender direitos políticos,
pelo prazo de dez anos, e de cassar mandatos legislativos – não estando tais atos sujeitos à
apreciação judicial (art. 10).
Em uma espécie de preâmbulo413, o ato institucional em questão afirmava que o Brasil
havia sofrido uma “autêntica revolução” engendrada por um “movimento civil e militar” que
acabava de “abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro”, traduzindo-se, ali, o
“interesse e a vontade da Nação”. Dessa forma, a “revolução vitoriosa” se investia “no exercício
do Poder Constituinte”, legitimando-se por si mesma. Afirmava, ainda, que constituía-se o novo

412
Íntegra da sessão disponível em <<https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2013/11/audio>> acessada em
06 de junho de 2018. É importante ressaltar que em 21 de novembro de 2013 o Congresso Nacional decidiu por
anular a sessão que cassou João Goulart, reconhecendo que o mesmo ainda se encontrava em território nacional
nos dias 1 e 2 de abril de 1964. Por via de consequência, foi devolvido, simbolicamente, o cargo de presidente à
memória de Jango. Sessão disponível em
<<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/11/21/congresso-anula-sessao-que-afastou-jango-e-abriu-
caminho-para-o-golpe-de-1964>> acessado em 06 de junho de 2018.
413
Disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm>> acessado em 06 de junho de 2018.
105

governo pela destituição do governo anterior e que a mencionada revolução passaria a editar
todas as normas jurídicas sem, contudo, limitar-se à “normatividade anterior à sua vitória”.
Ainda em tal preâmbulo, a junta militar, agora intitulada de “Comando Supremo da
Revolução”, afirmava que os “processos constitucionais não funcionaram para destituir o
governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País”, cabendo à revolução ditar as
próprias normas que lhe assegurassem na missão de “tomar as urgentes medidas destinadas a
drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo
como nas suas dependências administrativas”. Por tais razões, ainda que mantido o Congresso
Nacional o mencionado Comando Supremo afirmou que a revolução não procurava “legitimar-
se através do Congresso”, mas, sim, que este – o Congresso – recebia sua legitimidade do
referido ato institucional.
Instituído o golpe de Estado e o arbítrio e suspensas as garantias da Constituição de
1946, entre os dias 10 e 13 de abril foram promulgados sete “atos do comando supremo da
revolução”414, os quais transferiram 146 oficiais das três Forças Armadas para a reserva; cassou
os mandatos de 40 membros do Congresso Nacional e os direitos políticos de 167 pessoas. Nos
meses seguintes, aproximadamente três mil e quinhentas pessoas, incluídos aí congressistas e
parlamentares estaduais de todo o país tiveram seus direitos políticos cassados415.
Na eleição convocada no art. 1 do ato institucional nº 1, foi eleito o único candidato à
presidência da república, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco416, que assumiu o
cargo em 15 de abril daquele ano. Conforme mencionado no item 4.1, da eleição de Castello
Branco até a eleição de Tancredo Neves, em 1985, apenas os militares exerceriam a presidência
do Brasil.
Em 13 de junho de 1964, por iniciativa do marechal Castello Branco, cricou o órgão
da presidência conhecido como Serviço Nacional de Informação (SNI), por força da lei
4.341/64417, que entrou imediatamente em vigor e tinha por função os “assuntos atinentes à

414
Íntegra dos atos disponívels para consulta no seguinte sítio eletrônico
<<http://www2.camara.leg.br/busca/?o=relevance&v=legislacao&colecao=S&conteudolegin=Ato+do+Comand
o+Supremo+da+Revolu%C3%A7%C3%A3o&numero=&ano=>> acessado em 06 de junho de 2018.
415
Levantamento realizado pelo Congresso Nacional. Disponível em <<http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/golpe-de-1964>> acessado em 06 de
junho de 2018.
416
Conforme Diário do Congresso Nacional, publicado em 12 de abril de 1964.
417
Disponível em <<http://linker.lexml.gov.br/linker/processa?urn=urn:lex:br:federal:lei:1964-06-
13;4341&url=http%3A%2F%2Fwww2.camara.gov.br%2Flegin%2Ffed%2Flei%2F1960-1969%2Flei-4341-13-
junho-1964-376645-publicacaooriginal-1-pl.html&exec>> Acessado em 06 de junho de 2018. O Serviço Nacional
de Informação esteve em funcionamento durante todo o regime militar. Foi extinto apenas no governo de Fernando
Collor de Mello, em 1990, já no período democrático.
106

Segurança Nacional”418 (art. 1º). O SNI tinha a finalidade de “superintender e coordenar, em


todo o território nacional, as atividades de informação e contra informação” (art. 2º); “proceder,
no mais alto nível, a coleta, avaliação e integração das informações, em proveito das decisões
do Presidente da República” (art. 3º, alínea “b”); sua organização era centralizada no Distrito
Federal e espalha pelo resto dos Estados através de suas agências regionais (art. 4º).
Tratava-se, portanto, da criação de um órgão ligado à presidência da república, voltado
à coletar informações que pudessem embasar os atos futuros do chefe do executivo, o qual era
o representante da “revolução de 64”, a qual, por sua vez, legitimava-se a si mesma e conferia
legitimidade ao Congresso Nacional. As informações coletadas estavam isentas de “quaisquer
prescrições” que determinassem “a publicação ou divulgação de sua organização,
funcionamento” e quadro funcional (art. 4ª, §2º).
Em 27 de outubro daquele ano, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei de
iniciativa do Poder Executivo que regulamentava representação estudantil em todo o território
nacional. Tratava-se da lei nº 4.464, sancionada por Castello Branco em 09 de novembro de
1964 que, em seu art. 22, extinguiu a União Nacional dos Estudantes. Uma clara represália do
governo militar contra as atividades estudantis organizadas.
A respeito da votação da mencionada lei, vale destacar a fala do então senador Josaphat
Marinho que alertou para o agravemento do regime militar então instalado, organizado “de
maneira a atentar contra a Constituição da República” e contra “as tradições democráticas do
País”. O senador foi categórico ao afirmar que a lei em questão, se aprovada, representaria “um
suplício para os universitários Brasileiros”, pois atentatório contra as “tradições de liberdade,
de fraternidade, além de ser um grave insulto às gloriosas tradições dos estudantes Brasileiros
do passado, do presente e do futuro”, representando, “outrossim, o aniquilamento da cultura”419.
O mencionado “suplício” a que se referia o senador mencionado encontrava-se no art.
14 da lei aprovada, que vedava “aos órgão de representação estudantil qualquer ação,
manifestação ou propaganda de carácter político-partidário, bem como incitar, promover ou
apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares”. Não obstante, todos os movimentos
estudantis passaram a ser submetidos ao Diretório Nacional dos Estudantes, com sede no
Distrito Federal, o qual era submetido a controle pelo Ministério da Educação e Cultura.
Embora extinta a União Nacional dos Estudantes, proibida a atuação política dos
movimentos estudantis e as greves, a UNE continuou a atuar na clandestinidade e a organizar

418
Deve-se mencionar que a Lei de Segurança Nacional à época em vigor havia sido criada no curto período
democrático que precedeu o golpe de 1964. Tratava-se da lei nº 1.802 de 05 de janeiro de 1953.
419
BRASIL, Diário do Congresso Nacional Brasileiro, de 28 de outubro de 1964, pp. 849 e 850.
107

protestos e greves estudantis pelo Brasil. Tais movimentos foram sempre suprimidos pelas
forças policiais com o uso da violência.
O novo agravamento do regime militar veio também por ato de Castello Branco,
exatamente um ano após a aprovação da lei 4.464/64. Trata-se do Ato institucional nº 2,
outorgado em 27 de outubro de 1965 420 , que assim como o seu precedente, continha uma
mensagem “à nação”, a qual reafirmava que o objetivo da “revolução” era de erradicar a
situação que afundava o país “na corrupção e na subversão”.
Ainda no preâmbulo do AI-2, Castello Branco afirmou: “A revolução está viva e não
retrocede. Tem promovido reformas e vai continuar a empreendê-las, insistindo patrioticamente
em seus propósitos de recuperação econômica, financeira, política e moral do Brasil.” Os
opositores ao regime militar foram referidos como “agitadores de vários matizes” que
“ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta
[...] procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático.” Em assim
sendo, já que “[d]emocracia supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em
licença para contrariar a própria vocação política da Nação”.
Foi, portanto, em busca de “tranqüilidade para o trabalho em prol do desenvolvimento
econômico e do bem-estar do povo” que, através do referido Ato institucional, foi decretada
que a eleição para presidente e vice-presidente não se daria mais por voto direto em todo o país,
mas de forma indireta pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional (art. 9); tais
eleições seriam limitadas a dois candidatos apenas (art. 9º, §3º); a decretação e prorrogação do
estado de sítio poderia ser decrata pelo presidente para “prevenir ou reprimir a subversão da
ordem interna” (art. 13); suspensão das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade,
inamovibilidade e estabilidade, bem como de exercício em funções por tempo certo, podendo
os titulares de quaisquer cargos ser demitidos, removidos ou dispensados, caso se
demonstrassem incompatíveis com os objetivos da revolução (art. 14); as limitações previstas
na Constituição de 1946, no tocante aos direitos políticos não se aplicariam mais ao presidente,
que poderia suspender direitos políticos de quaisquer cidadãos por 10 anos, bem como cassar
mandatos políticos (art. 15).
Além dos excessos acima delineados, o AI-2, em seu art. 18, extingiu todos os partidos
políticos então existentes e atribuiu ao presidente a possibilidade de edição de ato
complementar, tanto durante quanto fora do estado de sítio, para decretação de recesso no
Congresso Nacional, nas Assembléias Legislativas estaduais e nas Câmaras de Vereadores dos

420
Disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-02-65.htm>> acessado em 06 de junho de 2018.
108

municípios (art. 31). Em seu artigo 26, o AI-2 convocou eleições indiretas para presidente, as
quais deveriam ocorrer até, no máximo, o dia 03 de outubro do ano seguinte – data na qual foi
eleito o marechal Arthur da Costa e Silva. O Ato institucional em questão previa a própria
vigência até 15 de março de 1967.
Já é possível perceber, que de abril de 1964 a outubro de 1965 houve um
encrudescimento do regime militar, em especial quanto à participação política nos destinos do
país, seja pelo banimento dos movimentos estudantis de cunho político-partidário, pela vedação
à greve, pela possibilidade de cassação sumária de mandatos políticos ou suspensão de direitos.
É imprescindível destacar, antes de aprofundarmo-nos nos eventos subsequentes do regime
ditatorial Brasileiro, que a mencionada participação política somente pode(ria) ser exercida
através das liberdades de manifestação, de associação e reunião.
Dessa forma, ainda que possa não parecer, os atos institucionais até então analisados,
bem com o lei 4.464/64, têm como pano de fundo a restrição do direito à liberdade – embora,
nesse momento, a liberdade de expressão ainda não houvesse sofrido restrição explícita do
ponto de vista jurídico. Primeiro baniu-se as associaçoes estudantis e, em seguida, os partidos
políticos, sendo que manifestações em vias públicas eram também reprimidas mediante força
policial421. Tais fatos, por si só, configuram grave repressão às liberdades e garantias individuais
e coletivas.
No entanto, embora o Serviço Nacional de Informação estivesse ativo e operante e as
restrições às liberdades se alargando, de setembro a outubro de 1966 ocorreu o Festival de
Música Popular Brasileira, transmitido pelo canal Record de televisão. Apareceram ali jovens
que viriam a marcar uma geração e que se tornariam referências culturais no Brasil e no exterior,
como por exemplo, Elis Regina, Geraldo Vandré, Nara Leão, Jair Rodrigues, Elza Soares,
Roberto Carlos e Chico Buarque de Hollanda.
Uma das canções vencedoras do Festival, a canção “A banda”, de autoria do jovem
Chico Buarque de Hollanda e cantada tanto por ele quanto por Nara Leão, merece ser neste
momento destacada, por apresentar-se como um possível indício de que, à época, o
“aniquilamento da cultura” e o atentado à liberdade da juventude, anunciado pelo senador
Josaphat Marinho apresentavam seus respectivos embriões. A canção acabou por servir,

421
Vale ressaltar que, embora na ilegalidade, a União Nacional dos Estudantes escolheu o dia 22 de setembro
como o “Dia Nacional de Luta Contra a Ditadura” e organizou grande protesto na Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na ocasião, estima-se que a polícia agrediu aproximadamente
seiscentos estudantes. Cfr: BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Volume 2. Brasília. CNV,
2014. p. 264-265.
109

também, como um testemunho do que viria a ser uma característica de Chico Buarque enquanto
músico: a observação crítica da sociedade Brasileira.
A referida canção descreve o passar de uma banda que, em sua marcha, fazia com que
seus espectadores se encantassem e tudo se enfeitasse. O que chama atenção no texto é que o
passar da banda rompe o sofrido estado emocional das pessoas da cidade, enchendo-as de
alegria. Alegria essa, cuja duração equivaleu ao tempo da marcha da banda, pois após seu fim
tudo regressou como era antes. Isto é, regressou o sofrimento. Destacam-se os seguintes
versos422:

Estava à toa na vida


O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor
[...]
A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor
Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
A canção demonstra que o sentimento presente constantemente na cidade é a dor, da
qual a “gente sofrida” se despede para ver a banda passar cantando coisas de amor. Durante a
marcha da banda a cidade se enfeita, no entanto, porém, subitamente após a banda passar, todas
as coisas retornam aos seus respectivos lugares. Inclusive, a dor – que retoma lugar central na
vida cotidiana das pessoas.
Não se trata de uma denúncia explícita de uma situação em particular, nem mesmo,
objetivamente, de uma espécie de literatura de testemunho. Todavia, a mensagem que a canção
passa é que a banda que marcha, ou seja, uma reunião de pessoas a ocupar o espaço público e
se espalhando na avenida e insistindo em cantar coisas de amor, foi o suficiente para alegrar a

422
Disponível em << http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=abanda_66.htm>> Acessado
em 06 de junho de 2018.
110

vida das pessoas da cidade que, após a marcha, retornaram cada qual para o seu canto com
dor423.
É imprescindível ressaltar o duplo sentido contido nos dois primeiros versos da última
estrofe (E cada qual no seu canto/ Em cada canto uma dor), pois a palavra canto adquire tanto
sentido como substantivo masculino de um “local”, um ângulo, quanto do “ato de cantar”. Dito
de outra forma: o duplo sentido aqui referido é tanto do regresso ao canto, ângulo, quanto ao
canto enquanto ato da fala. Em ambos os casos, a dor está presente.
Ainda em 1966, a cantora Nara Leão lançou seu álbum “Manhã de liberdade”,
contendo sua interpretação de “A banda” de Chico Buarque, bem como sua interpretação da
poesia de Thiago Mello424 “Faz escuro mas eu canto”.

Faz escuro, mas eu canto por que amanhã


vai chegar.
Vem ver comigo companheiro, vai ser lindo, a cor do
mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar,
porque amanhã vai chegar.
Já é madrugada vem o sol quero alegria.
Que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado defendendo o
coração.
vem comigo multidão, trabalhar pela alegria.
Que amanhã é outro dia, que amanhã é outro dia.
Pelos vinte e um anos da ditadura militar a escuridão foi relacionada ao tempo presente
do regime autoritário e o “amanhã” ao futuro, ao por vir, a iluminar as trevas no Brasil
instauradas. Nesse período, Nara Leão e tantos outros cantores e compositores Brasileiros
cantaram no escuro, esperançosos por esse “amanhã”.
Retornando ao encrudescimento do regime militar, após o referido Festival de Música,
em 07 de dezembro de 1966, o marechal Castello Branco publicou o Ato institucional nº 4,
convocando o Congresso Nacional a votar o projeto de Constituição por ele apresentado. Em
seu artigo 9º, entretanto, previa que o presidente em exercício poderia emitir “Atos

423
É interesante notar que Chico Buarque em 1969, já durante seu exílio em Itália, lançou o álbum “Chico Buarque
de Hollanda na Itália” com a versão em italiano da canção. As adaptações ao texto, realizadas pelo próprio
compositor, conservam o sentido da canção em português, mas acrescentam, todavia as seguinte frases: In ogni
cuore la speranza spuntò/ Quando la banda passò/ Cantando cose d'amor (em tradução livre: Em cada coração a
esperança brotou/ Quando a banda passou/ Cantando coisas de amor). Em outras palavras, o compositor atribuiu
à banda o poder de fazer despontar a esperança nos corações daqueles que, no Brasil de 1966, tiveram o privilégio
de ver uma banda cantar coisas de amor em alguma avenida.
424
Escritor Brasileiro que no ano anterior havia publicado o livro de poemas intitulado “Faz escuro mas eu canto:
porque a manhã vai chegar”. Cfr: MELLO, Thiago. Faz escuro mas eu canto: porque a manhã vai chegar. Editora
Civilização Brasileira. 1ª edição. 1965.
111

Complementares, bem como decretos-lei sobre matéria de segurança nacional” e “expedir


decretos com força de lei sobre matéria administrativa e financeira” (art. 9º e §§).
O referido projeto foi enviado ao Congresso no dia 12 e no mês seguinte, em 24 de
janeiro de 1967, a nova Constituição foi promulgada pelo Congresso Nacional. A Constituição
de 1967 entraria em vigor apenas em 15 de março seguinte425. Na mesma data, passaria ao
exercício da presidência o marechal Arthur da Costa e Silva e terminaria o prazo de vigência
do AI-2, restando seus efeitos conservados no texto consitucional.
Entretanto, no interregno entre a promulgação e vigência da nova Constituição, ainda
sob o governo Castello Branco, foi promulgada a lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, que
passaria a regular “a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”426. A referida
lei somente entrou em vigor a partir do dia 14 de março, à véspera da vigência da nova
Constituição.
Diferentemente dos atos até então praticados, a lei 5.250/67 mencionava diretamente
a possibilidade de censura, crimes cometidos pela manifestação do pensamento, bem como a
previsão de recolhimento pela autoridade policial de materiais, revistas e folhetins que não
respeitassem as regras impostas pelo referido diploma legal.
Embora afirmasse ser “livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento
e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura,
respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer” (art. 1º). Tal previsão não
era aplicável a espetáculos e diversões públicas, os quais estavam “sujeitos à censura, na forma
da lei”, embora tal lei não se aplicasse “na vigência do estado de sítio”, ocasião na qual o
governo poderia exercer a censura diretamente sobre os jornais ou periódicos “e emprêsas de
radiodifusão e agências noticiosas” (art. 1º, § 2º).
Vedava, ainda, a publicação e circulação de livros, panfletos, jornais e periódicos não
registrados no Registro Civil das Pessoas Jurídicas (caso em que esses seriam considerados
clandestinos), bem como se considerados atentatórios à moral e aos bons costumes (artigos 2 e
17). Merece destaque, todavia, que a possibilidade de censura era somente após a publicação
dos escritos (não havendo, portanto, ainda, a possibilidade de censura prévia).

425
BRASIL, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Constituição
de 1967.. Disponível em <<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/constituicao-de-1967>>
acessado em 06 de junho de 2018.
426
Idem, Lei nº 5.250 de 09 de fevereiro de 1967, popularmente conhecida como “Lei de imprensa”. Disponível
em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5250.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
112

Em 28 de fevereiro, utilizando da prerrogativa de expedir decretos com força de lei,


conferida a si mesmo pelo art. 9, §2º do AI-4, Castello Branco expediu o decreto-lei nº 228/67427
dificultando a representação estudantil em território Brasileiro. O referido decreto revogou a lei
4.464/64 que regulava o tema até então, extinguiu todos os órgãos estudantis em âmbito
estadual e restringui, ainda mais, os temas que poderiam ser debatidos em assembléias. A lei
revoga proibia a abordagem de temas político-partidários e da greve, enquanto o novo decreto
vedava “qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidiário, racial ou
religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares”
(artigos 11 e 18).
Ainda com base nos poderes a si conferidos pelos Atos institucionais 2 e 4, Castello
Branco expediu o decreto-lei n° 314, em 13 de março daquele ano, instituindo a doutrina da
segurança nacional, cuja vigência foi prevista para o dia 15 daquele mês.
Popularmente conhecida como Lei de Segurança Nacional428, o decreto ora sob análise
representa uma nova etapa do endurescimento do regime atentatório contra liberdades e
garantias ao exercício da cidadania. Os conceitos-chave para compreensão do rigoroso decreto-
lei estão contidos em seus artigos iniciais, que expõem que a expressão segurança nacional
significa “a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos
como externos”, compreendendo tal conceito todas as medidas necessárias para tanto,
“inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou
subversiva), conforme redação dos artigos 2 e 3 do DL 314/67.
Guerra psicológica adversa é definida pelo mencionado decreto como “o emprêgo da
propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e
militar”, cuja finaldade fosse de “influenciar ou provocar opiniões emoções, atitudes e
comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos
objetivovs nacionais” (art. 3º, §2º). Já guerra revolucionária, por sua vez, era o conflito interno
“inspirado em uma ideologia” que “visa à conquista subversiva do poder pelo contrôle
progessivo da Nação” (art. 3º, §3º).
Denota-se, a partir da descrição inicial de tais conceitos, que o que se visava punir, por
afronta à segurança nacional, era, além do combate armado, por obséquio, a propagação de
ideias contrárias às do regime militar. Em decorrência disso, punia-se a distribuição de

427
BRASIL, Decreto-lei nº 228 de 28 de fevereiro de 1967. Íntegra disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0228.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
428
Idem, Decreto-lei nº 314 de 14 de março de 1967. Lei de Segurança nacional. Íntegra disponível em
<<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-314-13-marco-1967-366980-
publicacaooriginal-1-pe.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
113

materiais, sob qualquer forma, “para a infiltração de doutrinas ou idéias incompatíveis com a
Constituição” (art. 11), atos esses considerados como aptos a “provocar guerra revolucionária
ou subersiva” (art. 23). Digno de nota, ainda, que todos os crimes previstos no decreto ora sob
análise eram inafiançáveis (art. 55).
Entretanto, não eram apenas atos individuais de caráter ideológico que eram passíveis
de punição por atentar contra à segurança nacional, um vez que a greve (art. 32) e a
manifestação pública de apoio à medidas que visassem fugir à repressão de liberdades também
o eram consideradas como tentativa de subversão da ordem político-social (art. 33, I). Tais
crimes tinham penas variáves de um a seis anos de reclusão, as quais seriam aumentadas da
metade se cometidos “por meio de imprensa, panfletos, ou escritos de qualquer natureza,
radiodifusão ou televisão” (art. 33, parágrafo único).
A realização de comícios, nas formas de “reunião pública, desfile ou passeata”, eram
considerados como propaganda subversiva que importava em ameaça e atentado à segurança
nacional, conforme previsto no art. 38 do DL 314/67. Não obstante a isso, a tentativa de
reorganizar qualquer dos partidos políticos ou associações que haviam extintas pelo AI-2,
também era considerada crime contra a segurança nacional (art. 36).
Equivale a dizer, portanto, que a reunião, pública ou privada, de pessoas unidas por
ideais contrários ao regime militar, apenas pela manifestação das insatisfações com os rumos
do país, era considerada atentatória contra a segurança nacional, motivo pelo qual a força
repressiva era sempre utilizada – como nos inúmeros casos de violência contra estudantes
dentro de faculdades429.
A Constituição de 1967, por sua vez, além a concentração de poderes no chefe do
Executivo e, por via de consequência, da exarcebação de competências da União, não
acrescentou grandes alterações às restrições que já haviam sido impostas às liberdades
individuais, como por exemplo, de associação e de manifestação do pensamento. Tratou-se, na
verdade, do mecanismo jurídico, um aspecto formal, de institucionalização dos Atos
institucionais, Atos Complementares e decretos-lei até então promulgados pelo regime militar.
Significa dizer, portanto, que a Constitução de 1967 foi a forma encontrada para solidificação
do regime autoritário através da unificação dos atos até então exaurados e revogação das
disposições anteriores ao golpe de 31 de março de 1964.
Entretanto, merecem destaque a expressa previsão no texto constitucional da
competência da Polícia Federal, sob comando da Poder Executivo, em promover a censura de

429
BRASIL. Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Volume 2. Brasília. CNV, 2014. p. 275-288.
114

diversões públicas (art. 8, VII, alíena “d’); a garantia de ser livre a manifestação de pensamento,
de convicção política ou filosófica sem sujeição à censura, exceto quanto ao espetáculos
públicos e à publicação de livros, jornais e periódicos considerados como incentivadores da
subversão da ordem (art. 150, §8º); a previsão de decretação de estado de sítio pelo presidente
em exercício, ocasião na qual as garantias constitucionais seriam suspensas e restaria autorizada
a busca e apreensão em domicílio, a suspensão da liberdade de reunião e de associação e a
censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas (art. 152,
§2º, alíneas “c”, “d” e “e”).
É imprescindível ressaltar, que a garantia constitucional de livre manifestação do
pensamento, da liberdade de convicção política ou filosófica deve ser interpretada em
conformidade às restrições impostas pelo decreto-lei 314/67, cuja vigência coincide com a da
própria Constituição. Ou seja, tais manifestações não poderiam ser de caráter “subversivo”,
logo, contra o regime militar. Merece destaque, ainda, que com exceção das diversões públicas
e do período de estado de sítio, o caráter da censura até então imposta era repressivo e não
preventivo. Importa dizer, assim, que não se tratava de censura prévia.
Entre setembro e outubro de 1967 ocorreu outro Festival de Musica Popular Brasileira,
do qual duas canções merecem destaque por, novamente, conterem elementos que podem
elucidar o contexto que aqui se buscou reconstruir através da exposição do direito positivo que
vinha suprimindo às liberdades indivuais e coletivas. Ambas foram apresentadas na etapa final
do festival, em 21 de outubro.
A primeira delas é a canção “Alegria, alegria”, de autoria de Caetano Veloso, que
retrata elementos presentes no cotidiano de então. Em versos simples, com o ritmo inspirado na
canção “A banda” de Chico Buarque, o sujeito lírico narra um passeio pela rua e faz uma
observação quanto às manchetes do jornal “O Sol”. É indispensável ressaltar que embora o eu
lírico faça referência “ao sol de quase dezembro”, certamente a canção foi escrita após o dia 21
de setembro de 1967, uma vez que a primeira edição do jornal referido foi lançada nessa data430.

Caminhando contra o vento


Sem lenço e sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes
Espaçonaves, guerrilhas
Em cardinales bonitas

430
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Informações sobre o
Jornal “O Sol”. Disponível em << http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/sol-o>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
115

Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia
Eu vou
[...]
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome, sem telefone
No coração do Brasil
[...]
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não, por que não?
Encontra-se na letra da música a informação do que se falava à época. Através da
descrição das notícias veiculadas pelo jornal “O Sol”, se percebe que a edição que inspirou
Caetano se repartia em crimes, guerrilhas, caras de presidentes, bombas e elementos da cultura
pop de então, como a atriz francesa Brigitte Bardot e a atriz italiana Claudia Cardinale, ambas
de grande sucesso à época.
O que chama atenção, seguindo a linha de raciocínio da exposição do endurecimento
da legislação de 1964 a 1967, é que o sujeito lírico que caminha continuamente contra o vento,
“sem lenço e sem documento”, o que à época correspondia a um ato de rebeldia, comum à
mocidade (Caetano à época havia 25 anos), está a caminhar “sem livros e sem fuzil”. Ou seja,
sem tomar propriamente um partido quanto à situação de extremos vivida pela sua sociedade.
Afinal, ter um livro às mãos à época poderia ser um ato de subversão e, conforme visto
na Constituição daquele ano e na Lei de Segurança Nacional, os estudantes da época eram
perseguidos pelo regime. Em assim sendo, o sujeito lírico reafirma sua caminhada sem lenço e
sem documento/ Nada no bolso ou nas mãos/ Eu quero seguir vivendo, amor.
Importa dizer: o eu lírico quer seguir vivendo. Livre. Essa ideia é enfatizada com a
explícita referência ao livro Les Mots, uma espécie de autobiografia de Jean-Paul Sartre – o
filósofo existencialista que tanto valorizava a liberdade individual. No livro em questão, Sartre
afirma que sua loucura o protegeu contra as seduções da “elite” e, justamente por optar “não ter
nada nos bolsos ou nas mãos”, o filósofo se manteve são e salvo através do próprio trabalho.
116

Eis que então, “sem equipamentos e sem ferramentas”, apenas com seu ofício intelectual, Sartre
afirma que se salvou por inteiro431.
A situação narrada pelo eu lírico, portanto, mOstra que a opção pela liberdade da
juventude, para garantir que continuaria vivendo, foi não escolher nem os livros e nem o fuzil432.
A outra canção a ser destacada é de autoria de Chico Buarque e, por sua vez, se chama
“Roda-viva” e narra a história do fim de determinadas coisas como, por exemplo, dos planos
feitos, da movimentação e da música em grupo na rua. Ressalta-se que as coisas feitas pelo eu
lírico são sempre desfeitas por aquilo a que chama de “roda-viva”. Veja-se:

Tem dias que a gente se sente


Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
[...]
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
[...]
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Nota-se, no texto, que a tal “roda-viva” bloqueia o desejo do eu-lírico de controlar o
próprio destino, impede o cultivo da mais bela rosa e carrega o violão para impedir a roda de
samba e a dança da mulata. A “roda-viva” representa, portanto, aquilo que é mais forte do que
o sujeto lírico, uma vez ser capaz de atrapalhar todos os seus planos.

431
No original: “Ce que j'aime en ma folie, c'est qu'elle m'a protégé, du premier jour, contre les séductions de «
l'élite »: jamais je ne me suis cru l'heureux propriétaire d'un « talent »: ma seule affaire était de me sauver — rien
dans les mains, rien dans les poches — par le travail et la foi. Du coup ma pure option ne m'élevait au-dessus de
personne: sans équipement, sans outillage je me suis mis tout entier à l'œuvre pour me sauver tout entier”.
SARTRE, Jean-Paul. Les Mots.Gallimard. Paris. pp. 217-218
432
Caetano entregou-se a seu ofício intelectual e, conforme o desenrolar de sua carreira demonstra, se salvou e
continuou vivendo. Livre.
117

É interessante observar a concatenação entre o primeiro e último parágrafo


selecionados, pois os quatro primeiros versos introduzem o sentimento de desolação, de
anomia, que paira sobre o eu-poético, o qual, por sua vez, fala na primeira pessoa do plural (a
gente, nós), expressando um número indeterminado de pessoas que compartilham desse
sentimento. Já os quatro versos subsequentes, indicam que tal sentimento existe porque o grupo
indicado não possui voz-ativa e não manda no próprio destino.
Ressaltamos que, à época, conforme vem sendo demonstrado, as eleições para
presidente eram realizadas pelo voto indireto do Congresso Nacional apenas, sem qualquer tipo
de influência da população. Ademais, a ausência de voz ativa é facilmente visualizada na
legislação até então exposta, ante a criminalização da exposição de ideias e ideais contrários ao
regime então vigente. É, aliás, essa criminalização e repressão (que no momento tem seu auge
na Lei de Segurança Nacional) que é exposta no último parágrafo selecionado com a informação
de que a roda de samba acabou – destaca-se, por imprescindível, que uma roda de samba é uma
manifestação cultural. Significa dizer, desse modo, que o eu-poético não tem voz-ativa e não
pode se reunir em grupo em público.
É curioso ver que no Festival de Música Popular Brasileira anterior Chico Buarque
havia apresentado a canção cuja narrativa descrevia a felicidade das pessoas em ver uma banda
passar pela avenida cantando coisas de amor, ao passo que, desta vez, o tema de sua canção foi
justamente a tristeza de pessoas que não podem ir para rua cantar, por não terem voz ativa. Se
em “A banda”, a dor sentida rotineiramente era causada pela ausência do canto nas ruas, agora
a sensação de anomia é causada pela roda-viva que impede a voz ativa, não permite ao eu-lírico
tomar conta de seu destino e o impede de tocar a viola na rua.
É esse o motivo da dor na canção “Roda-viva”. Por fim, essa dor vivida que é
inteligentemente exposta no texto encontra-se já, desde sempre, exposta no título da canção,
pois “roda-viva” tem como anagrama “a-viva-dor” – servindo esse como uma coerente chave
de leitura da canção em voga.
Essa “viva dor” continuou a assombrar a população Brasileira, através das graves
violações dos direitos humanos433, engendradas pelos órgãos de repressão política do Estado
Brasileiro. Um dos pontos de agravamento de tais violações ocorreu em 28 de março de 1968,
durante um protesto estudantil por melhores condições para o restaurante “Calabouço”, no

433
A lista dos métodos e práticas utilizados nas mencionadas graves violações encontra-se sistemáticamente
organizada no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em especial na “parte III”, do Volume I.
118

centro do Rio de Janeiro. Na ocasião, a polícia agrediu vários estudantes e assassinou o jovem
Edson Luís de Lima Souto, à época com 18 anos, com um tiro no peito434.
No dia seguinte, o enterro do jovem foi acompanhado por aproximadamente cinquenta
mil pessoas e desencadeou protestos por todo o país. No dia 26 de junho, a União Nacional dos
Estudantes, ainda na ilegalidade, organizou a maior manifestação daquele ano, que reuniu
aproximadamente cem mil pessoas no centro do Rio de Janeiro e ficou popularmente conhecida
como A passeata dos cem mil – tendo sido acompanhada/controlada por aproximadamente dez
mil militares 435 . Dentre os intelectuais e artistas que se inspiraram na manifestação, o
compositor Geraldo Vandré parece ter retirado dali inspiração suficiente para escrever a canção
que viria a apresentar no Festival Internacional da Canção, em setembro daquele ano.
Trata-se da canção “Pra não dizer que não falei das flores”, popularmente conhecida
como “Caminhando”, que tornou-se uma espécie de hino de resistência contra o regime militar
e, por conta disso, fez com que Geraldo Vandré deixasse o Brasil por motivos de perseguição
política. É importante ressaltar que a repressão já se encontrava em níveis altíssimos e o texto
da canção, convocando a população a resistir (através do amor e civilidade) configura, na
história Brasileira, o registro da importância da Música Popular na luta em prol da democracia.

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
O texto é bastante direto em seu objetivo convocatório, pois o eu-lírico inicia sua
narrativa afirmando a igualdade entre todos, opressores e oprimidos, engajados e não engajados
políticamente: Somos todos iguais/ Braços dados ou não. Seu discurso possui marcas do
coletivo (“somos” e “vamos”) e, após cada estrofe, é entoado o refrão 436, caracterizado pelo

434
BRASIL, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Protesto de
28 de abril de 1968. Disponível em <<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/uniao-
nacional-dos-estudantes-une>> Acessado em 06 de junho de 2018.
435
Idem, Relatório final da CNV, Volume II, texto 9, p. 400.
436
Nas citações posteriores, por motivos de organizaçao textual, o refrão foi substituído pelo sinal “[...]”.
119

convite à tomada de posição: Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a
hora/ Não espera acontecer.

Pelos campos há fome


Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão
[...]
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão
“Indecisos cordões”, que marcham pelas ruas e acreditam nas flores vencendo o
canhão (ou seja, as armas), é uma menção direta às manifestações pacíficas ocorridas naqueles
anos (tanto no Brasil qunto na Europa), quando flores eram seguradas no alto como forma de
repúdio à violência empregada pelo Estado. O registro dessa violência se dá nos versos que
denunciam a presença de soldados de armas na mão.

Nas escolas, nas ruas


Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não

Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição
[...]
Nos versos Nas escolas, nas ruas/ Campos, construções/ Somos todos soldados/
Armados ou não, no entanto, não é feita uma referência aos militares através da palavra
“soldado”. Vandré refere-se à população em geral, que se encontra nas escolas, nas ruas (em
indecisos cordões), nos campos (onde há fome em grandes plantações) e nas construções, e,
120

como se percebe na estrofe posterior, é com A certeza na frente/ E a história na mão, que o
compositor lança a convocação para que todos juntos, com as flores agora no chão, caminhando
e cantando, aprendam e ensinem uma nova lição ao Brasil daquele momento.
Ainda naquele festival, Caetano Veloso apresentou a canção “É proibido proibir”,
fortalecendo o movimento cultural conhecido como “Tropicália”, que possuía dentre suas
caracterísitas o diálogo com a cultura pop de massa, à época advinda dos Estados Unidos e
Europa (como, por exemplo, às referências à coca-cola, Bridgitte Bardot e Claudia Cardinale
na canção “Alegria, alegria”).
Em assim sendo, “É proibido proibir” traz para aquele momento Brasileiro uma das
frases ordem dos estudantes franceses que protestavam por melhoras no sistema educacional
em maio de 1968 (il est interdit d’interdire). Apesar de ser a “Tropicália” um movimento com
preocupações mais estéticas que políticas, o texto da canção de Caetano, no contexto repressivo
daqueles anos, configura uma clara afronta, através da arte, ao regime imposto.
Da canção, fazemos menção apenas ao refrão de cunho político, objetivo e, em certo
modo, agressivo, no qual Caetano repete exaustivamente: E eu digo sim/ E eu digo não ao não/
E eu digo:/ É! -- proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/ É proibido proibir/
É proibido proibir...
Ainda no ano de 1968, o músico Taiguara, até então tido como um cantor romântico,
lança a canção “Hoje”. Escrita como uma carta de amor cuja destinatária é a liberdade, à época
tão suprimida e tão desejada pela juventude que tomava às ruas, Taiguara ressalta o desespero,
o medo presente, os protestos, os “homens de aço” e o perigo à espreita.

Hoje
Trago em meu corpo as marcas do meu tempo
Meu desespero, a vida num momento
A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo
[...]
Hoje
Homens sem medo aportam no futuro
Eu tenho medo acordo e te procuro
Meu quarto escuro é inerte como a morte
O desespero é a marca do tempo de Taiguara. Desespero esse caracterizado pela fossa,
pela fome, flor e pelo fim do mundo, objetos que remontam bem à dinâmica da estrutura à
época. Corpos jogados em covas (fossa), as flores nos protestos (como também descreveu
Geraldo Vandré) e a fome (nos campos, como também disse Vadré) são a fórmula do fim do
mundo que vivia Taiguara.
121

Hoje
Homens de aço esperam da ciência
Eu desespero e abraço a tua ausência
Que é o que me resta, vivo em minha sorte
Sorte
Eu não queria a juventude assim perdida
Eu não queria andar morrendo pela vida
Eu não queria amar assim como eu te amei
A contraposição espero/desespero e ciência/ausência expõe a incompatibilidade entre
o plano dos “homens de aço” e o sentimento do compositor. É imprescindível ressaltar que, na
canção, a palavra desespero não é empregada enquanto substantivo masculino, mas sim
enquanto presente do indicativo do verbo desesperar. Taiguara se desesperava diante da
esperança dos homens de ferro e sem medo, os quais à época “aportavam no futuro”. Diante
desse quadro, Taiguara descreve a juventude que se encontrava perdida e que, em seu caminhar,
morria pela vida (como no triste exemplo do jovem Edson Luís de Lima Souto).
Trata-se da descrição aos olhos daquele que viria a ser o cantor mais censurado pelo
regime militar Brasileiro, do fim das liberdades no Brasil de 1968. Liberdade que, entretanto,
estava presente no próprio nome do poeta, pois “Taiguara” na língua dos índios tupi-guaranis
significa “livre”437.
Ainda em 1968, entre outubro e dezembro, Caetano Veloso e Gilberto Gil,
compuseram a canção “Divino, maravilhoso” que ficou famosa pela interpretação de Gal Costa,
em 09 de dezembro daquele, no IV Festival de Música Popular Brasileira. Há de ser salientado
que, em 21 de novembro, o marechal Arthur da Costa e Silva promulgou a lei nº 5.536/68438,
que versava sobre a censura de espetáculos teatrais e cinematográficos e criava o Conselho
Superior de Censura (com vacatio legis de sessenta dias a partir daquela data).
A mencionada lei, mantinha a política de “tolerância zero” quanto aos espetáculos
considerados atentatórios à segurança nacional, às religiões e à cordialidade, bem como que
incentivasse “a luta de classes” (art. 2º). É importante ressaltar que, diferentemente das formas
de censura anteriores, a referida lei criava, em relação aos mencionados espetáculos, a censura
prévia, estabelecendo o processo de apreciação desses ao “Serviço de Censura de Diversões
Públicas da Polícia Federal” , com a possibilidade de, em caso de não concordância, apresentar-
se um recuros dirigido ao Conselho Superior de Censura (artigos 8 e 9).

437
Disponível em <<http://www.taiguara.art.br/cupuacu.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
438
BRASIL, Lei nº 5.536 de 21 de novembro de 1969, Censura de espetáculos teatrais e cinematográficos e cria o
Conselhor Superior de Censura. Disponível em <<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-5536-
21-novembro-1968-357799-publicacaooriginal-1-pl.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
122

A canção de Caetano e Gil, na voz de Gal Costa, foi ao ar na final do mencionado


Festival de Música Popular e, de forma ainda mais explítica que as canções até então
mencionadas, chamava atenção aos perigos iminentes alertando, no refrão, que à época tudo
era perigoso.

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção para a estrofe e pro refrão
Pro palavrão, para a palavra de ordem
Essa espécie de refrão, em certa dose irônico (Tudo é perigoso/ Tudo é divino
maravilhoso), precedeu aquele que veio a ser o golpe mais duro empregado pela ditadura militar
contra a cidadania, as liberdades e contra a democracia. O Ato institucional nº 5, promulgado
pelo marechal Costa e Silva em 13 de dezembro, isto é, apenas quatro dias após Caetano e Gil,
pela voz de Gal Costa, alertarem que a palavra de ordem era “atenção” e que era preciso estar
atento e forte.
Assim como os Atos institucionais anteriores, esse também tem um preâmbulo439 que,
entretanto, não contém mais o endereçamento “à nação”. Contém, todavia, considerações a
respeito dos fundamentos da “Revolução Brasileira de 31 de março de 1964”, a saber, baseada
na “liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às
ideologias contrárias às tradições” do povo Brasileiro, bem como “na luta contra a corrupção”.
O referido preâmbulo, então, afirma que diante dos “atos nitidamente subversivos,
oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais”, os quais comprovavam “que os
instrumentos jurídicos que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa” não
estavam sendo respeitados, se tornara “imperiosa a adoção de medidas” para impedir a
frustração dos “ideais superiores da Revolução”, bem como para preservar o Brasil dos
“processos subversivos e de guerra revolucionária”.
Em assim sendo, o AI-5 autorizou o presidente da República decretar o recesso do
Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, mediante Ato
complementar, sendo que durante tal período o Poder Executivo estaria autorizado a legislar
em todas as matérias (art. 2º, §1º); a suspender direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo
prazo de dez anos, bem como cassar mandatos eletivos em todas as esferas, sem as limitações

439
BRASIL, Ato institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
123

impostas pela Constituição de 1967 (artigos 4, 5 e 6 do AI-5) e; a decretar o estado de sítio,


cujo prazo seria definido por ele mesmo.
Por fim, o AI-5 suspendeu a garantia constitucional de habeas corpus, nos casos de
crimes políticos e crimes contra a segurança nacional e excluiu da apreciação judicial os atos
praticados com fundamento nesse Ato institucional. No mesmo dias, foi promulgado o Ato
complementar nº 38/68440 que decretou o recesso do Congresso Nacional.
No dia seguinte, o Jornal do Brasil 441 encontrou um modo de escapar à censura e
publicou na margem superior esquerda, no local destinado à previsão do tempo, o singelo, mas
importante protesto: “Tempo negro. Temperatura Sufocante. O ar está irrespirável. O país está
sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas Laranjeiras”. Abaixo,
a manchete destacava “Govêrno baixa Ato institucional e coloca Congresso em recesso por
tempo ilimitado”. Inciava-se então o período que ficou conhecido pelo imaginário popular, ante
tamanha austeridade, por “anos de chumbo”.
Ainda no mês de dezembro, na manhã do dia 27, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram
convidados a prestar depoimento no Rio de Janeiro e, todavia, mantidos em cárcere até o dia
19 de fevereiro de 1969 – por ato atentário à dignidade da bandeira nacional. Após, viriam a
ser mantidos em regime de confinamento até julho na cidade de Salvador.
É possível perceber que o ano de 1968 foi, até então, o ano de maior resistência contra
o regime militar que vinha se endurecendo e que, entretanto, diante “tamanha subversão”,
respondeu às manifestações das ruas (greves, protestos e canções) com uma rigidez ainda maior
– conforme se viu do mencionado AI-5 e da mencionada lei de censura de espetáculos (lei nº
5.536/68).
Todavia, em 26 de fevereiro de 1969 o marechal Costa e Silva, no exercício dos
poderes que o AI-5 lhe conferia, promulgou o decreto-lei nº 477/69, que configurou mais uma
etapa na supressão das liberdades da cidadania. Popularmente conhecido como o “AI-5 das
Universidades”, o mencionado decreto-lei estabelecia infrações disciplinares praticadas por
professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público e
privados.
É explítico o caráter atentatório à liberdade de pensamento, de manifestação, de
reunião e de cátedra, uma vez que tornava-se infração disciplinar (art. 1º), dentre outras, praticar

440
BRASIL, Ato complementar nº 38 de 13 de dezembro de 1968, que decretou o recesso do Congresso Nacional.
Disponível em << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ACP/acp-38-68.htm>> Acessado em 06 de junho de
2018.
441
Jornal do Brasil, sábado, 14 de dezembro de 1968, Ano LXXVIII – Nº 213, Rio de Janeiro.
124

“atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não


autorizados, ou dêle fazer parte” e de usar “dependência ou recinto escolar para fins de
subversão ou para praticar ato contrário à moral ou à ordem pública”. Infrações essas punidas
com demissão ou dispensa, em sendo o “infrator” membro do corpo docente e desligamento
(expulsão) para os alunos (art. 1º, §1º), mediante processo sumário a ser concluído no prazo de
vinte dias (art. 2º).
A censura se extendeu, assim, para dentro das salas de aula, uma vez que tanto
professores quanto alunos passaram a ser vigiados para apuração de possíveis envolvimentos
em “movimentos subversivos”442.
Retornando à censura em âmbito cultural, após a soltura em fevereiro de 1969 e o
período de confinamento subsequente, já no mês de julho, Caetano e Gilberto Gil partiram para
o exílio em Londres. No entanto, no mês seguinte à partida, foi lançado o album “Gilberto Gil”,
cuja canção de maior destaque se chama “Aquele abraço”443 – cujo texto fora escrito durante a
viagem de avião do Rio de janeiro para a Bahia, em fevereiro de 69.
Na canção, Gilberto Gil saudou a cidade do Rio de Janeiro através daqueles que são
os símbolos característicos da cidade, como por exemplo, a escola de samba “portela”, o bairro
Realengo e o mês de fevereiro (característico do carnaval). É importante destacar que a
saudação feita por Gil, naquele momento, foi marcada pela duplicidade do reencontro e da
despedida, afinal, acabava de sair da prisão e forçadamento deixava a cidade em um avião da
Força Aérea Brasileira.
Destacam-se, portanto, a primeira estrofe que apresenta o tom saudoso do compositor,
ao rever a cidade e afirmar O Rio de Janeiro continua lindo/ O Rio de Janeiro continua sendo,
ou seja, apesar do terror sofrido de dezembro a fevereiro, Gil canta que o Rio de Janeiro
continuava sendo o Rio de Janeiro, isto é, lindo; os três primeiros versos da penúltima estrofe,
em que o cantor apresenta o tom de partida ao dizer Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/
A Bahia já me deu régua e compasso/ Quem sabe de mim sou eu – aquele abraço!; e, por fim,
a despedida tanto da cidade tida como linda quanto do povo Brasileiro nos últimos dois versos:
Alô, Rio de Janeiro – aquele abraço!/ Todo o povo Brasileiro – aquele abraço!. Ambos, Gil e
Caetano, somente retornariam ao Brasil em 1972.

442
O filósofo Brasileiro Ernildo Stein, cujos ensinamentos iluminam a incursão filosófica realizada no primeiro
capítulo deste estudo, foi um dos professores à época expulsos da cátedra e que perdeu seus direitos políticos.
Conforme entrevista dada a Lenio Luiz Streck, no programa Brasileiro “Direito e Literatura”, a partir do sétimo
minuto. Disponível em << https://www.youtube.com/watch?v=hQqcYwzpXO0>> Acessado em 06 de junho de
2018.
443
Íntegra do texto disponível em << http://www.gilbertogil.com.br/sec_musica_2017.php?>> Acessado em 06
de junho de 2018.
125

Ainda no mês de agosto, no dia 26, o marechal Arthur da Costa e Silva apresentou
sintomas de trombse cerebral e precisou de cuidados médicos imediatos444. Quando seu quadro
de saúde piorou, tendo em vista que o Congresso Nacional estava em recesso desde 14 de
dezembro de 1968, por força do Ato complementar nº 38, o exercício da presidência da
república ficou a cargo dos comandates das Forças Armadas que, em 31 de agosto, decretaram
o Ato institucional nº 12445. Formava-se assim, a “segunda junta militar” ou “junta governativa
provisória de 1969”, composta pelo general Aurélio de Lira Tavares, Almirante Augusto
Rademaker e Brigadeiro Márcio Melo, representantes do exército, marinha e aeronáutica,
respectivamente.
A junta militar continuou o endurecimento do regime e acrescentou ao ordenamento
jurídico Brasileiro o banimento “do território nacional o Brasileiro que, comprovadamente, se
tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional”, bem como a pena de morte e
a prisão perpétua “nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou
subversiva nos termos”, através dos atos institucionais 13 e 14, respectivamente446.
Com base na previsão de tais penas a referida junta promulgou uma nova Lei de
Segurança Nacional, através do decreto-lei 898, de 29 de setembro de 1969. Essa foi a Lei de
Segurança Nacional a mais rígida até então, punindo, por exemplo, a incitação “à subversão da
ordem político-social, a desobediência coletiva às leis e a paralisação de serviços públicos” com
pena de reclusão de dez a vinte anos (art. 39, I, II e V).
Em 14 de outubro foi editado o ato institucional nº 16447, que convocou o Congresso
Nacional para a realização de eleições para o cargo de presidente da república para o dia 25
daquele mês, ante o deterioramento da saúde do marechal Costa e Silva. Na ocasião, foi eleito
presidente o general Emilio Garrastazu Medici, que tomou posse no dia 30 seguinte. No entanto,
entre a reabertura do Congresso Nacional e a eleição em questão, a junta militar decretou uma
emenda constiticional, conhecida como EMC nº1/69, que incorporou os atos institucionais
números 5, 13 e 14 à Constituição de 1967 e criou, praticamente, uma nova Constituição.

444
Cfr: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Disponível em
<<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/atos-institucionais>> Acessado em 06 de junho
de 2018.
445
BRASIL, Ato institucional nº 12, de 31 de agosto de 1969. Disponível em
<<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-12-31-agosto-1969-363943-
publicacaooriginal-1-pe.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
446
Idem, Ato institucional nº 13, de 05 de setembro de 1969. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-13-69.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018. Brasil, Ato
institucional nº 14, de 05 de setembro de 1969. Disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-14-
69.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
447
Idem, Ato institucional nº 16, de 14 de outubro de 1969. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-16-69.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
126

Merece destaque, ainda, a alteração sofrida no artigo 150, §8º da Constituição de 1967,
que regulava os direitos e garantias individuais. Conforme anteriormente mencionado, a
redação do artigo em questão era:

É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a


prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos
de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos
que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros,
jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém,
tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos
de raça ou de classe.
A parte final do dispositivo citado, que previa não ser tolerada a propaganda de guerra,
de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe foi emendada e acrescida da
intolerância às “publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes” –
todavia, o diploma legal agora passou a ser o artigo 153, §8º, uma vez que, conforme dito, a
mencionada emenda importou em uma nova Constituição. Tratava-se, portanto, de mais uma
forma de suprimir a liberdade de manifestação do pensamento.
O agora artigo 153, §8º veio a ser regulado pelo decreto-lei nº 1.077, de 26 de janeiro
de 1970448, o qual, conforme consta de sua exposição de motivos, visava “proteger a instituição
da família” e preservar seus “valôres éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade”;
pois revistas faziam “publicações obscenas” e canais de televisão estavam a executar
“programas contrários à moral e aos bons costumes”; publicações essas que “estimula[va]m a
licença, insinuam o amor livre e ameaça[v]am destruir os valores morais da sociedade
Brasileira”, pois faziam parte de “um plano subversivo” atentatório à “segurança nacional”
É com base nisso que o DL 1.077/70 institui a censura prévia em relação a livros e
periódicos, diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio
e televisão, não tolerando mais “publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons
costumes” (artigos 1º e 7º), cabendo ao Conselho Superior de Censura, o Departamento de
Polícia Federal e ao Ministério da Justiça a fiscalização.
Todavia, o referido decreto-lei previa ainda a possibilidade de proibição de divulgação,
bem como de busca e apreensão para incineração dos materiais considerados ofensivos à moral
e aos bons costumes (artigos 3 e 5). Isto é, não estava sendo instituída apenas a censura prévia,
mas também a possibilidade de controle das publicações já existentes.

448
BRASIL, Decreto-lei nº 1.077/70, de 26 de janeiro de 1970. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1077.htm>> Acessado em 06 de junho de
2018.
127

Instituída estava, então, a censura prévia a todos os meios de comunicação, a


espetáculos e diversões públicas, livros e músicas. Havia, ainda, a patrulha ideológica no
interior das Universidade, tanto para professores quanto para alunos. Os movimentos sindicais,
estudantis e partidos políticos haviam sido criminalizados (no caso dos dois primeiros) e exintos
(no caso dos partidos políticos). Manifestações causadas por insatisfações políticas e greve
eram consideradas atentatórias à segurança nacional.
Importa dizer que as liberdades de manifestação do pensamento e de associação,
fundamentais ao exercício da cidadania, da participação política e da formação das convicções
políticas e filosóficas estavam, não apenas sob repressão, mas sobretudo sob supressão por parte
do Estado ditatorial instaurado no Brasil.
Não obstante o quadro opressivo acima descrito, em seu retorno do período de auto-
exílio em Itália, ainda no ano de 1970, Chico Buarque gravou a canção “Apesar de você” e a
submeteu ao Departamento de Censura da Polícia Federal que, para surpresa de todos, aprovou
o texto e liberou a gravação. No entanto, após a divulgação e o sucesso da canção, a mesma foi
censurada, proibida sua execução pública proibida e todos os exemplares ainda em venda foram
apreendidos449, tendo sido novamente liberada apenas no período de abertura democrática – já
em 1978.
Em afronta direta ao regime, à censura, à repressão da expontaneidade e à supressão
da manifestação do pensamento, o texto da canção tem como destinatário este quadro obscuro
que obnubilava a vida no Brasil à época. Ao mesmo tempo, “Apesar de você” passava à
população Brasileira uma mensagem de esperança, de que dias melhores viriam. Essa ideia de
dias melhores é retratada como o “amanhã”, o qual veio somente a partir de 1985, conforme
dito no item 4.1.

Hoje você é quem manda


Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão

449
Conforme informação do próprio autor em seu site pessoal. Disponível em
<<http://www.chicobuarque.com.br/texto/artigos/mestre.asp?pg=artigo_jb06_0604.htm>> Acessado em 06 de
junho de 2018.
128

As duas primeiras estrofes tem por destinatário certo o governo brasileiro – e não a
figura daquele no exercício da presidência à època, o general Emilio Garrastazu Medici –,afinal,
conforme visto até agora, o regime instaurado era comandado por militares e não apenas por
aquele que ocupava o cargo alto do executivo federal. Em assim sendo, deve-se entender como
destinatário não um general, mas sim, a “generalidade” da cadeia de comando do regime
ditatorial da época.
O quadro repressivo é descrito pela “escuridão” em que o povo (“a minha gente”) se
encontrava, falando de lado e olhando para o chão, ou seja, falando às escondidas em
decorrência da patrulha ideológica constante e dos perigos da violência sistematicamente
empregada.
Toda a opressão sofrida encontra-se na descrição da ausência de liberdade e de diálogo,
causadas pela decretação de regras e restrições oriundas seja da figura de um ditador ou de uma
junta de ditadores que, como se viu até o momento, todos porta-vozes do comando da
“revolução vitoriosa” de 1964. Eram, portanto, os porta-vozes da supramencionada
“generalidade”. Eis o sentido dos três primeiros versos da primera estrofe: Hoje você é quem
manda/ Falou, tá falado/ Não tem discussão, não. Em outras palavras: o eu-lírico, ao referir-se
a um sujeito específico (“você”), tem por destinatário a integralidade do regime militar.
Em seu desafio ao poder ali constituído, o sujeito poético lança não um desafio ou uma
ameaça, mas sim sua previsão de que a escuridão instituída não poderia durar para sempre e
que, mais cedo ou mais tarde, mas com certeza no amanhã, as pessoas (“a minha gente”, nas
palavras do eu-lírico) seriam novamente iluminadas pela luz da liberdade.

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
129

Note-se que aquele que fala na canção demonstra, nos termos em que Geraldo Vandré
havia cantado em 1968, ter “a certeza na frente e a história na mão” por saber que nenhum
regime ditatorial não se sustenta ad eternum. É justamente por essa certeza que ele afirma, à
terceira estrofe, Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia e, não obstante, afirma ainda que
ao esvaziamento do poder ditatorial, não se poderia mais proibir o canto que anuncia o raiar de
um novo dia.
Em seguida, na quarta estrofe, o sujeito lírico reafirma o motivo do sofrimento – tanto
seu quanto o de sua gente – como sendo Todo esse amor reprimido/ Esse grito contido/ Este
samba no escuro. “Esse grito contido”, conforme se percebe, não é apenas daquele que expõe
o texto (tanto o poeta quanto o eu-lírico), mas sim de toda a gente em nome da qual ele fala.
Expõe-se, assim, duas “generalidades”: aquela a partir da qual se fala, ou seja, do lado que sofre
a opressão, e aquela para a qual se fala, isto é, o lado que oprime e que na canção é enunciado
como “você”.

Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Das contraposições expostas nas estrofes acima, percebe-se que as consequências
desse amanhã que há de vir (o jardim que vai florescer, o dia raiar sem pedir licença, a manhã
que vai renascer e esbanjar poesia, o céu que vai clarear impunemente, o coro que vai cantar)
não são apenas indesejadas pelo destinatário da canção, mas são justamente reprimidas por ele.
130

Destaca-se, ainda, que todas as consequência do por vir fazem alusão à luz (o jardim
para florescer, o amanhã, o céu claro) o que reforça a idei de escuridão exposta à segunda
estrofe. As outras consequências (a poesia esbanjada e o coro a cantar), entretanto, remontam à
opressão instituída pelo AI-5, pelo DL 477/69 (conhecido como AI-5 das Universidades), pelas
Leis de Segurança Nacional e demais instrumentos do regime ditatorial.
Importa dizer: escuridão, repressão e opressão são o tripé de sustentação do tempo
presente do sujeito-lírico. Essa era a composição do mundo por ele então vivido. E é justamente
essa escuridão que vem a ser, de várias formas, o mote de várias das canções surgidas na década
de 1970. Isto porque, se de 1964 a 1968 o regime militar estava ainda no período de
encrudescimento, conforme visto, pode-se afirmar que de dezembro de 1968 a janeiro de 1970
(AI-5, DL 477/69, DL 898/69, DL 1.077/70) caracterizou-se o ponto de viragem desse tal
encrudescimento, cujas consequências seriam sentidas, portanto, ainda em maior escala, dali
para frente.
A legislação de repressão acima mencionada permaneceu em vigor até meados da
década de 80, tendo parte revogada pela Lei da Anistia e parte não recepcionada pela
Constituição de 1988. No entanto, manteve-se vigente durante grande parte da década de 1970,
razão pela qual, a literatura doravante esmiuçada deve ser compreendida nesse contexto
autoritário.
E é exatamente em decorrência disso que as canções surgidas na década de 1970
apresentam um tom mais direto, mais desafiador, em relação ao regime militar. Seus textos
apresentam-se tanto como uma denúncia das circunstâncias em que se encontrava a sociedade
Brasileira, quanto como um canto de resistência às causas de tais circunstâncias (como por
exemplo, a censura, a repressão, a opressão e a violência institucional), sendo comum encontrar
referências ao medo, à noite, à escuridão de um lado para fazer referência ao tempo presente à
época e, do outro, referências ao canto, ao caminhar, ao futuro, ao amanhã e à luz como
referências ao futuro que se esperançava.
No tocante à mencionada resistência, no ano de 1971, Chico Buarque em seu álbum
Construção, lançou as canções “Cordão”450 e “Deus lhe pague” com críticas diretas à ditadura.
Na primeira canção, o compositor reafirma sua posição política contrária à repressão da
liberdade de manifestação do pensamento, afirmando Ninguém vai me segurar/ Ninguém há de

450
Texto disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=cordao_71.htm>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
131

me fechar/ As portas do coração/ Ninguém/ Ninguém vai me sujeitar/ A trancar no peito a


minha paixão. Essa paixão é definida logo na estrofe seguinte, como sendo o canto:

Eu não
Eu não vou desesperar
Eu não vou renunciar
Fugir
Ninguém
Ninguém vai me acorrentar
Enquanto eu puder cantar
Enquanto eu puder sorrir
Nesse primeiro álbum lançado após seu retorno da Itália, o compositor afirma estar
disposto a não se calar, a não se sujeitar ao fechamento de seu peito e a não inibir a paixão de
cantar. Em outras palavras, retomando o que havia dito em “Roda viva”, o compositor coloca
outra vez em cena a vontade de “voz ativa”, de “seu destino cuidar”.
E não é só. O eu lírico vai além ao afirmar que “a noite da solidão” não irá fazê-lo
sofrer, pois aqueles que se encontram na mesma situação que ele, isto é, que se recusam ao
fechamento forçado do peito, irão se juntar a ele para formar “o imenso cordão”.

Ninguém
Ninguém vai me ver sofrer
Ninguém vai me surpreender
Na noite da solidão
Pois quem
Tiver nada pra perder
Vai formar comigo o imenso cordão
E então
Quero ver o vendaval
Quero ver o carnaval
Sair
Esse imenso cordão, por sua vez, há de formar o “vendaval”, ou seja, a agitação, a
desordem ao quadro em que se encontravam. Sendo esse quadro a situação de silenciamento,
de repressão, de absoluto controle, o que o sujeito poético implica é a união daqueles que se
recusavam a viver sob tais circunstâncias para, enfim, formar o vendaval necessário, a
subversão necessária a permitir o “carnaval”, para sair às ruas cantando as respectivas paixões.
Já em “Deus lhe pague”451, através do recurso retórico da ironia, o compositor provoca
essa situação de controle extremo por parte da ditadura ao agradecer – novamente, não a um
sujeito específico, mas à “generalidade” que compunha os mecanismos de controle do regime

451
Texto disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=deuslhep_71.htm>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
132

militar – a autorização em realizar atividades triviais, como por exemplo, respirar, comerm,
chorar e dormir.

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
[...]
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
[...]
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

No entanto, as críticas não se resumem apenas às atividades ditas triviais, comuns, mas
como pode se perceber na segunda estrofe acima mencionada, o sujeito poético afirma que
“mais um dia”, importa numa agonia a ser suportada. Isto é, seus dias eram agoniantes, com os
dentes a ranger, sendo que o único alívio que se podia sentir era através do “grito demente”.
Por fim, a mencionada “paz derradeira”, capaz de a todos redimir, é a forma mais
irônica de se questionar os meios utilizados pela opressão instituída para se alcançar a paz (vide
os preâmbulos dos Atos institucionais mencionados). Por tudo isso (pela autorização para sorrir,
respirar e existir, bem como pela paz advinda do silêncio), é que o eu poético, em tom irônico,
agradece ao destinatário de sua mensagem (a referida “generalidade” causadora de tudo isso)
com a frase popular “Deus lhe pague”. É um agradecimento irônico, cujo sentido é o de “que
Deus lhe retribua”. Ou ainda: “que Deus lhe retribua” por essa agonia.
Nota-se que há uma coerência nas composições de Chico Buarque, através da relação
dor/silêncio/opressão/hoje e grito/canto/esperança/amanhã. Embora tal coerência seja
particularmente visível nas canções compostas por Chico Buarque, conforme dito
anteriormente, a utilização desses conceitos estão também presentes em obras de outros
compositores, sempre dentro do âmbito significativo até então exposto.
É esse, por exemplo, o caso da canção “Nada será como antes”, de autoria de Milton
Nascimento e Ronaldo Bastos e lançamento em 1972, cujo eu-lírico encontra-se exilado (assim
como tantos à época), mas nutre, todavia, esperanças no futuro. Os dois primeiros versos
anunciam que ele já havia partido, mas nutre o desejo de uma dia rever seu interlocutor: Eu já
estou com o pé nessa estrada/ Qualquer dia a gente se vê.
133

Em seguida, o sujeito expõe sua esperança de um amanhã novo e que não permita a
repetição do passado escuro. Veja-se: Sei que nada será como antes amanhã/ Que notícias me
dão dos amigos?/ Que notícias me dão de você?/ Sei que nada será como está, amanhã ou
depois de amanhã/ Resistindo na boca da noite um gOsto de sol. Eu eu-poético da canção possui
a esperança de que o tempo presente vivido não se repetirá “amanã ou depois de amanhã”. Essa
esperança é reforçada pela afirmativa de que resiste “na boca da noite”, ou seja, no meio da
escuridão, um “gosto de sol”, de luz.
Essa escuridão, cujo auge restou conhecido como “anos de chumbo”, foi caracterizada
por assassinatos, execuções sumárias, torturas, desaparecimentos forçados, repressão a
movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos e pela censura. Se a morte do estudante Edson
Luís foi o ponto que marcou a violência em 1968, o AI-5 promulgado naquele ano é o marco
inicial desse período mais sombrio, desses “anos de chumbo” que deram forma à “boca da
noite”. À escuridão.
O ano anterior à gravação de “Nada será como antes”, 1971, por exemplo, teve como
marco dessa violência as mortes de Rubens Paiva e Stuart Angel Jones. O primeiro, era um ex-
deputado federal cujo mandato fora cassado em 1964, por força do artigo 10 do AI-1, que
concedia à junta militar poderes para tanto. Rubens Paiva foi preso em 20 de janeiro de 1971,
torturado e morto em 48 horas sob poder dos militares. Seu corpo desapareceu e a versão oficial
do exército Brasileiro é de que Rubens Paiva foi resgatado por companheiros subversivos452. Já
Angel Stuart Jones, era militante do movimento armado “Movimento Revolucionário 8 de
outubro” (MR-8), foi preso em 14 de maio daquele ano e também morto dentro de 48 horas sob
tortura – seu corpo não foi encontrado453.
Rubens Paiva foi tantas vezes lembrado em discursos de políticos da oposição, tendo
sido ainda mencionado pelo presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses
Guimarães na cerimônia de promulgação da Constituição de 1988 que, ao falar da participação
popular em seu processo de elaboração, disse: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os fascínoras
que o mataram” 454 . Ainda, em 1989, num discurso enquanto candidato à presidência da
república, Ulysses disse que Rubens Paiva era a “evocação imortal do nojo à ditadura e aos
ditadores”455.

452
BRASIL, Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Capítulo 12, pp. 562- 570. Íntegra do documento
disponível em <<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo12/Capitulo%2012.pdf>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
453
Idem, ibidem, pp. 571-576.
454
BRASIL. Ulysses Guimarães: seleção de discursos, op. cit., p. 455.
455
Idem, ibidem, p. 457.
134

Já Stuart Angel, por sua vez, teve seu processo de prisão e tortura registrados por outro
integrante do MR-8, Alex Polari – também preso e torturado pelos militares, tendo sobrevivido
por nove anos na prisão. Em 1978, ainda durante sua prisão, Polari publicou o livro “Inventário
de cicatrizes”456, com poesias escritas durante seu período no cárcere. Destacamos dali, trechos
daquela intitulada como “Canção para ‘Paulo’ (A Stuart Angel)” – Paulo era o codinome de
Stuart.

Eles costuraram tua boca


com o silêncio
e trespassaram teu corpo
com uma corrente.
Eles te arrastaram em um carro
e te encheram de gases,
eles cobriram teus gritos
com chacotas.
[...]
Um sentido totalmente diferente de existir
se descobre ali,
naquela sala.
Um sentido totalmente diferente de morrer
se morre ali,
naquela vala.
Eles queimaram nossa carne com os fios
e ligaram nosso destino à mesma eletricidade.
Igualmente vimos nossos rostos invertidos
e eu testemunhei quando levaram teu corpo
envolto em um tapete.
Então houve o percurso sem volta
houve a chuva que não molhou
a noite que não era escura
o tempo que não era tempo
o amor que não era mais amor
a coisa que não era mais coisa nenhuma.
Entregue a perplexidades como estas,
meus cabelos foram se embranquecendo
e os dias foram se passando.
Stuart havia sido amarrado ao parachoque de um veículo e arrastado pelo pátio, tendo
seu corpo esfolado e, não obstante a inalação dos gases que saíam do tubo de escape durante
seu arrastamento, quando o veículo parava, obrigavam Stuart a colocar a boca diretamente no
escapamento para aumentar ainda mais sua intoxicação. Esse é o cenário descrito nos versos
iniciais da poesia de Polari (Eles te arrastaram em um carro/ e te encheram de gases).
As mortes acima mencionadas servem como contextualização daquilo que era descrito
nas canções da época como o período escuro, a (boca da) noite, o perigo a que estavam sujeitos
todos aqueles contrários à ditadura militar. Merece destaque, ainda, o fato de que morreram

456
POLARI, Alex. Inventário de cicatrizes. Editora Teatro Ruth. 1978.
135

tanto aqueles ligados a movimento revolucionários armados (como Stuart Angel) quanto
aqueles sem envolvimento algum (como Rubens Paiva, por exemplo)457.
Retomando o percurso dos anos de chumbo, que aqui nos dispomos a descrever através
da relação direito-musica, ainda no ano de 1972, Chico Buarque gravou a canção “Quando o
carnaval chegar”, retomando a ideia lançada em 1971 na canção “Cordão” de que um imenso
cordão a cantar iria ocasionar o “vendaval” necessário para subverter a ordem das coisas (a
censura) e permitir o “carnaval” passar. “Carnaval” possuía o duplo sentido tanto da festa
característica do mês de fevereiro no Brasil, quanto o sentido simbólico da liberdade de cantar
na rua sem o medo de represálias.
Em “Quando o carnaval chegar”, em uma espécie de diálogo com a própria obra, Chico
Buarque constrói um sujeito-poético que demonstra ter paciência para fazer aquilo que em seu
presente é proibido quando o carnaval chegar.

Quem me vê sempre parado,


Distante garante que eu não sei sambar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tô só vendo, sabendo,
Sentindo, escutando e não posso falar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
[...]
Eu vejo a barra do dia surgindo,
Pedindo pra gente cantar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
Eu tenho tanta alegria, adiada,
Abafada, quem dera gritar...
Tô me guardando pra quando o carnaval chegar
[...]
Digno de nota a permanência, desde 1966, das descrições a respeito da vontade
reprimida de falar, dizer, gritar e da alegria contida – descrições essas que não se resumem
apenas às letras do compositor ora analisado. Percebe-se, ainda, a menção ao novo dia que deve
surgir (Eu vejo a barra do dia surgindo) e com isso trazer consigo o carnaval, para cantar e

457
Destacamos, ainda, que a mãe de Stuart Angel, Zuleika Angel (popularmente conhecida como Zuzu Angel),
jamais cessou sua busca pelo corpo do filho e denunciava pela mídia, nacional e internacional, sua angústia em
saber que o filho fora morto sob tortura e não poder enterrá-lo. Zuzu Angel morreu em um acidente de trânsito na
cidade do Rio de Janeiro em 1976, sob condições suspeitas e, posteriormente, através da Comissão Nacional da
Verdade, foi considerada como um atentado político. As provas do monitoramento e críticas internas da ditadura
sobre Zuzu Angel estão descritas e catalogadas no capítulo 13 (pp. 653-657) do Relatório Final da CNV.
Imprescindível ressaltar que após a morte de Zuzu Angel, Chico Buarque, que era seu amigo pessoal, lançou a
canção “Angélica” em homenagem a ela. Da canção, destacamos os seguinte versos: “Quem é essa mulher/ Que
canta sempre esse estribilho/ Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar/[...] Quem é essa mulher/
Que canta sempre o mesmo arranjo/ Só queria agasalhar meu anjo/ E deixar seu corpo descansar”. Íntegra da
canção disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=angelica_77.htm>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
136

gritar toda a alegria adiada ou, ainda, conforme referido pelo autor em “Apesar de você”, Esse
grito contido/ Esse samba no escuro458.
Esse “não posso falar” mencionado na canção é uma menção expressa à censura prévia
que assombrava o país à época e que, muitas vezes, exigia alterações em letras de músicas,
livros e peças de teatro, mediante o Departamento de Censura, como condição para liberação
do conteúdo. A respeito do tema, os compositores Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro
afirmaram, também em 1972, que tal situação configurava um pesadelo justamente numa
canção intitulada “Pesadelo”. Veja-se:

Quando o muro separa uma ponte une


Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta
E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

Você corta um verso, eu escrevo outro


Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco
Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí

O muro caiu, olha a ponte


Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã, olha aí
Conforme se percebe, a canção é formada numa relação dialética entre antônimos
(muro/ponte, separa/une, agarra/solta, vai/volta, prender/escapar, vivo/morto, velho/moço)
numa relação de causa e efeito entre esses. Note-se que o discurso do eu-lírico é uma mensagem
em tom desafiador para o seu destinatário (Você vem me agarra, alguém vem me solta/[...] E
se a força é tua ela um dia é nossa).
Os dois primeiros versos da segunda estrofe falam abertamente sobre a censura prévia,
a prisão pela manifestação do pensamento e a consequência “morte”. No entanto, o terceiro
verso afirma De repente olha eu de novo, indicando que aquele que morreu não continua morto,
mas continua Perturbando a paz, exigindo o troco. Trata-se da criatividade do compositor,
presa e morta pelo censor. No entanto, aquele se mantém vivo e ativo pela própria criatividade,
pelo desejo de falar, escrevendo novos versos para substituir aqueles que foram cortados,

458
Essa intertextualidade através de referências ao escuro, na MPB, perpassa todo período da ditadura militar
137

mortos. No caso da canção ora em voga, a voz poética, o eu-lírico é um compositor mandando
uma mensagem ao seu censor459.
Em janeiro de 1973 o cantor Luiz Gonzaga Jr., popularmente conhecido como
Gonzaguinha, ao invés de enviar uma mensagem ao censor, como em “Pesadelo”, enviou
diretamente uma mensagem ao seus pares, ou seja, às pessoas submetidas também à censura e
à opressão à época vigente, com sua sua canção “Comportamento geral”. A mensagem, todavia,
não era em tom esperançoso como aquelas até então enviadas (“Pra não dizer que não falei das
flores” e “Cordão”, por exemplo), mas sim como uma crítica, um desafio, com a presença de
um certo rancor.

Você deve notar que não tem mais tutu


e dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
e dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
e dizer: tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
e esquecer que está desempregado
Você merece, você merece
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé
Se acabarem com o teu Carnaval?
A primeira estrofe é dirigida, como que uma espécie de prelúdio, aos concidadãos que
se encontravam nas situações descritas, isto é, sem “tutu” (dinheiro), sem comida à mesa
(lutando pela “xepa” da feira), sem alegria e sem emprego, mas, todavia, também sem a
possibilidade de expressar a insatisfação com as condições de vida naquele momento. A essas
pessoas, a mensagem contida na canção, no refrão à segunda estrofe, é: Você merece, você
merece/ Tudo vai bem, tudo legal/ Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé/ Se acabarem com o teu
Carnaval?.
O tom rancoroso, anteriormente mencionado, é exposto na repetição da frase “você
merece” e na expressão “seu Zé”, possuindo essa o duplo sentido de referir-se tanto a um sujeito
anônimo – embora generalizado –, uma vez que “Zé” é o apelido de José e esse é um nome
muito comum no Brasil; quanto ao sentido de uma ofensa, pois “Zé” no Brasil pode ser utilizado

459
Um dos compositores da canção, Paulo César Pinheiro, afirmou em uma entrevista em 2004 que para “burlar”
a censura, a canção foi enviada ao Departamento de Censura junto a um bloco de letras do cantor romântico
Agnaldo Timóteo no ano de 1972, motivo pelo qual o texto recebeu o “carimbo de aprovado” sem maiores
suspeitas. Cfr: Entrevista com Paulo Cesar Pinheiro, Disponível em
<<http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/126/entrevistados/paulo_cesar_pinheiro_2004.htm>> Acessado em 06
de junho de 2018.
138

como sinônimo de “parvo”460. Em assim sendo, os dois últimos versos do refrão servem também
como um alerta aos concidadãos que dividiam as contigências da vida da época, podendo ser
compreendidos como “Cerveja, samba e amanhã, seu parvo/ Se acabarem com o teu carnaval?”,
como que numa provocação para o abandono do sentimento de desalento criticado na primeira
estrofe.
Já a terceira estrofe, embora ainda direcionada ao mesmo alvo, traz a explicação do
porquê do desalento que impede a manifestação da revolta para com a difícil situação vivida
naquele período.

Você deve aprender a baixar a cabeça


E dizer sempre: "Muito obrigado"
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado
Deve pois só fazer pelo bem da Nação
Tudo aquilo que for ordenado
Pra ganhar um Fuscão no juízo final
E diploma de bem comportado
A explicação dada pelo compositor é que a impossibilidade de se discordar das
contigências que a cidadania estava submetida, se dão por conta da proibição da utilização de
palavras outras além de “muito obrigado”. Proibição essa em referência direta ao regime
opressor que vem sendo até então descrito e que, conforme já exposto, condicionava a vida à
não insurgência contra de si e controlava o que se era permitido dizer. Esse controle sobre o
que se podia ou não dizer, importava num verdadeiro “cale-se” à população.
E é justamente esse “cale-se” que Chico Buarque e Gilberto Gil descrevem através da
cacofonia contida na canção, também do ano de 1973, de título “Cálice”461. Em clara referência
à passagem do Evagelho de Lucas (22: 39-44) em que Jesus em oração suplica “Pai, afasta de
mim esse cálice”, momentos antes de ser preso.

Pai, afasta de mim esse cálice


Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

460
Para além desses dois possíveis significados, não podemos nos furtar de mencionar a aparente intertextual de
Gonzaguinha para com o poema “E agora, José”, de autoria de Carlos Drummond de Andrade, no qual o poeta
carioca se utiliza do “José” para falar a um sujeito anônimo, embora coletivo. É de se ressaltar, ainda, que o poema
em questão fora escrito publicado também sob uma ditadura – à época, o Estado Novo de Getúlio Vargas.
461
Íntegra disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=calice_73.htm>>
Acessado em 05 de junho de 2018.
139

De que me vale ser filho da santa


Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
A canção é iniciada com os versos do refrão, Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho
tinto de sangue, em que o som da palavra “cálice” faz às vezes do imperativo do verbo calar,
“cale-se”. A súplica emitida pelo sujeito poético, endereçada à mencionada figura paterna, tem
como objeto, portanto, a ausência da possibilidade de manifestação do pensamento. Essa
impossibilidade de falar é reforçada no terceiro verso da segunda estrofe, com a afirmação de
que Mesmo calada a aboca, resta o peito, isto é, embora a mensagem não seja emitida (falada)
ela continua ali presa ao peito em forma de sentimento. O eu-lírico continua seu discurso:

Como é difícil acordar calado


Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
[...]
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
O desejo de pertencer a Outra realidade menos morta e com menos mentira e menos
força bruta é justificado, logo após a repetição da súplica, nos dois primeiros versos da estrofe
seguinte, nos quais o eu-lírico se lamenta de Como é difícil acordar calado, ante seu sofrimento
na “calada da noite”.

Após a enunciação desse sofrimento, o qual não é escutado e que não pode ser
mencionado pela ausência da liberdade de expressão, o eu-lírico denuncia que tem a palavra
presa na garganta e que embora também o peito seja calado, silenciado, a mensagem que ele é
impedido de dizer e de sentir ainda permanece em sua cabeça (cuca)462. Note-se que o terceiro
verso da segunda estrofe (Mesmo calada a boca, resta o peito) e o quinto verso da quarta estrofe
(Mesmo calado o peito, resta a cuca) complementam o lamento do sujeito lírico quanto à
repressão que está submetido.
Isto porque ele primeiro afirma que por sua boca estar calada e por suas palavras
estarem presas na garganta, o sentimento está contido, suprimido, em seu peito (calado, mudo,

462
“Cuca” é um modo informal de, no Brasil, se falar “cabeça”. No entanto, no folclore Brasileiro existe ainda a
figura da “Cuca”, uma espécie de bruxa que aterroriza as crianças. A interpretação da canção aqui empreendida
leva em consideração apenas o sinônimo da palavra “cabeça”, pois o segundo significado da palavra não se
apresenta coerente para com o texto escrito por Chico Buarque e Gilberto Gil.
140

silente). Em seguida, afirma que mesmo assim, mesmo com seus sentimentos sendo suprimidos
(calado o peito) a ele resta sua cabeça com suas ideias, as quais não podem ser impedidas de
surgir fazendo com que, novamente, o peito fique amargurado pela impossibilidade de
expressar-se. É justamente um maior espaço para suas ideias (e não aquelas que lhe são
impostas) que o sujeito poético suplica na última estrofe.

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Os quatro versos centrais da estrofe acima resumem o desejo de liberdade do eu-lírico
em inventar seu próprio pecado e morrer do próprio veneno (versos 3 e 4), de se livrar das
amarras a ele impostas (versos 5 e 6). A inversão de “cabeças” nos versos cinco e seis, com a
liberação de uma da outra, indica ser essa a mensagem transmitida pelo sujeito-poético: para
além da liberdade de manifestação, ele deseja ser livre para expor e gritar aquilo que pensa. E
o afastamento do “cale-se” é a condição de possibilidade para que o eu-lírico seja livre.
Objetivamente: o sujeito lírico quer a liberdade de se expressar. Pois, internamente, no reino de
seus pensamentos (em sua “cuca”) a censura não o alcançava.
Em decorrência do texto e da mensagem nele contida, “Cálice” foi censurada em 1973,
sendo incluída apenas no álbum “Chico Buarque”, de novembro de 1978, um mês após a
revogação do ato institucional nº 5. A canção “Apesar de você” também consta nesse álbum.
O compositor Taiguara, por sua vez, naquele ano, teve onze das doze canções do álbum
que pretendia lançar vetadas pelo Departamento de Censura, motivo pelo qual optou por
abandonar o Brasil e ir viver em Londres (a canção aprovada se chamava “Que as crianças
cantem livres”). No ano de 1974, enviou quarenta e quatro canções para avaliação da censura e
todas foram vetadas 463. Em 1975, enviou de Londres para o Departamento de Censura um
álbum em inglês, Let the children hear the music, que também foi censurado. Em 1976, o álbum
“Imyra, Tayra, Ipy – Taiguara” foi confiscado 72 horas após o lançamento464. Ante tamanha
perseguição, Taiguara manteve-se fora do Brasil até que um civil passasse a exercer a

463
BRASIL, Memórias da ditadura: Taiguara. Disponível em
<<http://memoriasdaditadura.org.br/artistas/taiguara/index.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
464
Taiguara, A censura. Disponível em << http://www.taiguara.art.br/a_censura.html>> Acessado em 06 de junho
de 2018.
141

presidência do país e retornou ao Brasil apenas em 1986, com o concerto intitulado “13
outubros”465.
Chico Buarque, ciente de que a censura estava atenta aos textos de suas canções, em
1974, lançou o disco “Sinal fechado” interpretando canções de outros compositores. A única
canção escrita por ele nesse álbum se chama “Acorda Amor” e foi enviada ao Departamento de
Censura sob o pseudônimo de “Julinho da Adelaide”, tendo sido aceita sem qualquer
necessidade de alteração. Imprescindível ressaltar a coerência entre o título do álbum e o fato
de que a única canção escrita por Chico tenha sido apresentada como de autoria de outra pessoa.
Dito de outra forma: o sinal estava “fechado” para ele.
Em “Acorda amor”466, o eu-lírico se acorda desesperado após um pesadelo, no qual a
polícia vinha buscá-lo “numa muito escuta viatura”, e tenta acordar o seu amor para descrever
o modo em que isso ocorria. No entanto, percebe que a polícia estava realmente a subir as
escadas de seu prédio para prendê-lo e, então, desespera-se ainda mais e faz o seguinte discurso
de despedida:

Se eu demorar uns meses


Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer
O motivo do desespero do sujeito poético é o de ir preso e não retornar para casa,
motivo pelo qual aconselha a seu amor a esquecê-lo, caso não reapareça após um ano.
Ressaltamos que, em sendo domingo o dia da semana reservado à missa na igreja, “a roupa de
domingo” importa, neste caso e contexto, a roupa de velório, já que o eu-lírico encontra-se
desesperado com a possibilidade de ser preso e não mais voltar (como acontecia rotineiramente
àquela época, conforme os tristes exemplos de Stuart Angel e Rubens Paiva).
Conforme previsto no artigo 5º do AI-16, que havia convocado a última eleição para
presidência, o mandato do general Medici, eleito em 1969, terminaria em 15 de março de 1974,
data em que assumiu o exercício da presidência o general Ernesto Geisel (eleito pelo voto
indireto do Congresso Nacional em janeiro daquele ano). Seu discurso de posse, curto e
objetivo, ressaltou que a Revolução de 64 estava prestes à completar “um decênio criador” e
que o “projeto nacional de grandeza para a Pátria, alicerçado no binômio indissolúvel do

465
Tendo em vista que as canções censuradas só foram conhecidas anos mais tarde, com o retorno do cantor ao
Brasil, a canção “Que as crianças cantem livres”, bem como sua versão em inglês “Let the children hear the music”
serão analisadas e contextualizadas apenas quando dos comentários a respeito do ano de 1986.
466
Disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/construcao/mestre.asp?pg=acorda_74.htm>> Acessado em
06 de junho de 2018.
142

desenvolvimento e da segurança”, empolgava e estimulavam a “alma popular” para as


realizações “cada vez mais admiráveis” que estavam por vir, “mesmo que à custa de sacrifícios
maiores que se façam acaso mister”467.
Em discurso proferido ao partido governista, em 28 de agosto de 1974, Geisel
explicou o referido “binômio indissolúvel do desenvolvimento e da segurança” como sendo a
missão do governo “de promover para toda a nação, em cada etapa, o máximo de
desenvolvimento possível – econômico, social e também político – com o mínimo de segurança
indispensável”. Assegurou, ainda, que isso se daria através de um processo de “lenta, gradativa
e segura distensão”468 do governo militar.
No entanto, a opressão se mantinha intacta e, no ano de 1975, o jornalista Vladimir
Herzog foi morto sob tortura em São Paulo. Sua morte tornou-se, como tantas outras, o símbolo
dos sujos porões da ditadura militar, que tentou forjar uma situação de suicídio. Na manhã do
dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog apresentou-se ao exército em São Paulo, após
prévia intimação, para esclarecimentos quanto à sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro.
Horas depois, após sessão de tortura, Herzog foi assassinado469.
Merece destaque, ainda, que Herzog não fazia parte de qualquer movimento armado e
que sua militância política era limitada à sua filiação ao mencionado partido comunista. No
entanto, por ser diretor do canal “Tv Cultura”, do Estado de São Paulo, os órgãos de
monitoramento e repressão do regime militar o viam como um subversivo perigoso. Veja-se, a
título exemplificativo, tanto da mentalidade paranóica dos encarregados pela repressão quanto
pelo grau de controle sobre a vida e sobre as liberdades da população, a nota emitida a respeito
de Herzog pelo Centro de Inteligência e Segurança da Aeronáutica (CISA), naquele ano:

A contratação, há cerca de um mês, pela Rádio Tv Cultura do jornalista


Vladimir Herzog para a direção de seu departamento de jornalismo
caracterizou a reabertura de um processo de infiltração de esquerda naquele
veículo de comunicação subsidiado pelo governo do estado470.

Denota-se da situação acima descrita, que os crimes de Herzog eram sua convicção
política à esquerda, sua filiação partidária e seu trabalho ligado à mídia. Em outras palavras,
seus crimes podem ser caracterizados como oriundos de três esferas da liberdade: a de

467
Cfr: Discurso de posse de Ernesto Geisel como presidente. In: BEZERRA BONFIM, João Bossco. Palavra de
presidente: os discursos presidenciais de posse, de Deodoro a Lula. LGE editora. Brasília, DF. 2008. p. 301.
468
GEISEL, Ernesto. Discursos. Volume I. Assessoria de imprensa e relações públicas da presidência da república.
Brasília. 1975. p. 124.
469
Brasil, Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Capítulo 11, pp. 443-484. Disponível em
<<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo11/Capitulo%2011.pdf>> Acessado em 06
de junho de 2018.
470
Idem, ibiem, p. 474.
143

autodeterminação (convicção política), a de associação (ao partido comunista) e de


manifestação do pensamento através de seu ofício enquanto jornalista.
Retomando à literatura musical da época, em 1976, Chico Buarque lançou o álbum
“Meus caros amigos”, contendo a canção “Meu caro amigo”, escrita em julho de 1975 e
endereçada ao dramaturgo Brasileiro Augusto Boal, que se encontrava no exílio desde 1970 e
àquela época estava a viver em Portugal.
Tratava-se de uma carta escrita, musicada e gravada em uma fita que, através de um
“portador”, foi levada à casa de Boal em Lisboa. Nela, Chico se desculpa por não fazer uma
visita ao amigo e diz que quer lhe contar sobre a situação do Brasil:

Meu caro amigo, me perdoe, por favor


Se eu não lhe faço uma visita
Mas como agora apareceu um portador
Mando notícias nessa fita
Aqui na terra tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta
Após mencionar trivialidades do cotidiano Brasileiro (futebol, samba, chuva e sol)
Chico afirma que seu objetivo era descrever ao amigo as dificuldades do país à época, conforme
se depreende do último verso da estrofe acima. Note-se o duplo sentido na palavra “choro”, que
representa tanto o gênero de música popular Brasileira (mais conhecido como “chorinho”), mas
que também é sinônimo de “pranto”. Após denunciar o “choro” e afirmar que a situação no
Brasil continuava difícil, Chico Buarque detalha ao amigo o que vinha lhe acontecendo.

É pirueta pra cavar o ganha-pão


Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro
E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro
Ninguém segura esse rojão
[...]
Meu caro amigo, eu bem queria lhe escrever
Mas o correio andou arisco
Se me permitem, vou tentar lhe remeter
Notícias frescas nesse disco
Os versos acima são as denúncias de Chico a Boal quanto à censura. Pirueta para
cavar o ganha-pão é justamente o que o compositor Brasileiro vinha fazendo desde 1966 (com
ano da canção “A banda”), demonstrando uma criatividade que conseguia escapar, pelo menos
temporariamente, dos filtros do Departamento de Censura. Exemplos dessas piruetas são as
ironias, os sarcamos e os jogos de linguagem utilizado em suas canções como forma de “tirar
144

sarro” daqueles que o censuravam, bem como do “correio arisco”, ou seja, que não respeitava
o sigilo das correspondências.
Ainda naquele ano, 1976, o cantor e compositor Belchior lançou o disco
“Alucinação”, obra repleta de referências relevantes ao mundo vivido pelo autor, dentre as quais
ressaltamos aquelas de caráter estético no tocante à efervescêncica cultural da época; de
interlocução para com outros compositores; e as menções (subliminares e explícitas) à situação
jurídico-política de então. As observações que se seguem são focadas nesse último aspecto do
álbum em questão.
“Alucinação” contém dez canções, das quais três merecem aqui destaque. A primeira
música, que inicia a obra, se chama “Apenas um rapaz latino-americano” e apresenta um eu-
lírico pensativo, que afirma recordar-se de uma antiga cançao de rádio/ em que um antigo
compositor bahiano lhe dizia que tudo é divino/ tudo é maravilhoso. Trata-se, de uma menção
direta à canção “Divino, maravilhoso” anteriormente mencionada.
Após mencionar o mote da canção que se recordava, o sujeito poético afirma
categoricamente: E eu não tenho um amigo sequer/ Que ainda acredite nisso não/ Tudo muda!/
E com toda razão. Embora a mensagem que esteja sendo passada pareça uma espécie de crítica,
de uma insatisfação, para com o movimento estético e cultural representado pela canção
referenciada, logo em seguida o sujeito poético muda o tom de suas afirmativas e passa a
explicar o porquê seus amigos não mais acreditam que tudo é divino, maravilhoso.

Eu sou apenas um rapaz


Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior
Mas sei
Que tudo é proibido
Aliás, eu queria dizer
Que tudo é permitido
Até beijar você
No escuro do cinema
Quando ninguém nos vê
Após ressaltar sua falta de dinheiro e de parentes importantes, o sujeito poético é
categórico ao afirmar que mesmo com sua origem humilde, ele sabe que tudo é proibido. No
entanto, logo em seguida, se desconcerta diante da perigosa verdade dita e retifica seu discurso:
Aliás, eu queria dizer/ Que tudo é permitido. Conforme dito anteriormente, a canção “Divino,
maravilhoso” tem um tom irônico e, num primeiro momento, o sujeito lírico de “Apenas um
145

rapaz latino-americano) não se utiliza dessa figura retórica em seu discurso e nega
veementemente a frase na canção do “antigo compositor bahiano”.
Em outras palavras: em um primeiro momento, o eu-lírico não leva em conta a ironia
na canção de 1968 e responde de forma contrária (a canção de 1968 diz que tudo é divino e
maravilhoso/ o eu-lírico nega, dizendo que tudo é proibido), mas logo em seguida “entra no
jogo” do antigo compositor bahiano e, então, também ele, afirma de forma irônica: Aliás, eu
queria dizer/ Que tudo é permitido. Em seguida, o sujeito poético faz um desabafo:

Não me peça que eu lhe faça


Uma canção como se deve
Correta, branca, suave
Muito limpa, muito leve
Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém
O eu-lírico expõe de maneira franca sua insatisfação em ter que fazer – o que à época
era “oficialmente” esperado dos compositores – uma canção, branca, suave, limpa e leve, isto
é, asséptica. Por isso sua canção é composta por palavras e, conforme ainda o assevera, palavras
são navalhas. Ou seja, as palavras por ele utilizadas são precisas e lascerantes, feitas para abrir
um sulco no destino em que são lançadas. No caso da canção ora analisada, as palavras abrem
uma fenda originária que permite um acesso (hermenêutico) à dimensão do que ali acontecia.
Quer dizer, a menção à canção “Divino, maravilhoso” com a cuidadosa ironia em
afirmar que tudo é proibido para, logo após, dizer o oposto, é a mensagem de alerta escondida
em seu discurso. Essa mensagem é des-coberta, é des-velada, justamente pelo corte entreaberto
pela precisão das palavras. Como que através de um olhar que busca prender a atenção do
interlocutor a voz poética fala em alto tom: Mas não se preocupe, meu amigo/ Com os horrores
que eu lhe digo/ Isso é somente uma canção/ A vida realmente é diferente/ Quer dizer/ Ao vivo
é muito pior.
O sujeito poético afirma que a vida é muito pior do que a situação que ele está a
descrever. Ou seja, ao vivo, a vida é pior do que apenas não ter liberdade por ser tudo proibido,
afinal, ele ironizou o fato de se ter que dizer que “tudo é divino, tudo é maravilhoso” e que
“tudo é permitido”. Em seguida, percebe-se que por não poder fazer “uma canção como se
deve” o compositor atiçou a ira de alguém. Veja-se:

E eu sou apenas um rapaz


Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Por favor
Não saque a arma no Saloon
146

Eu sou apenas o cantor


Mas se depois de cantar
Você ainda quiser me atirar
Mate-me logo!
À tarde, às três
Que à noite
Tenho um compromisso
E não posso faltar
Por causa de vocês
Quando esse alguém, irado, aparece com arma na mão, o eu-lírico o alerta: Eu sou
apenas o cantor[!]. Assevera, ainda, que mesmo sabendo que ele é apenas o cantor, se esse
alguém armado ainda quiser matá-lo, que então o faça, pois ele é apenas o cantor. Restando o
compositor e suas “canções-navalhas” inteiros, com outros compromissos a cumprir, bem como
novos sujeitos poéticos a cantar que tudo é proibido. Ou melhor, que tudo é permitido.
Por fim, já entregue ao seu destino de ser “apenas o cantor”, o eu-lírico entrega sua
mensagem de forma clara: Eu sou apenas um rapaz/ Latino-americano/ Sem dinheiro no banco/
Sem parentes importantes/ E vindo do interior/ Mas sei que nada é divino/ Nada, nada é
maravilhoso/ Nada, nada é secreto/ Nada, nada é misterioso, não. De forma objetiva: a
mensagem do sujeito poético é, justamente, que tudo é proibido, nada é maravilhoso e isso não
é nem secreto e nem misterioso.
Essa ideia de que há proibição nos ares do Brasil de 1976, está também presente em
sua canção “Como nosso pais”, a qual tem o eu-lírico discursando perante seu amor, contando-
lhe as coisas que lhe aconteceram. Seu discurso é marcado por uma certa dose de realismo
literário, como que numa tentativa de reconstrução da realidade narrada e isso é bem
caracterizado na estrofe de abertura: “Não quero lhe falar/ Meu grande amor/ Das coisas que
aprendi nos discos/ Quero lhe contar como eu vivi/ E tudo que aconteceu comigo”. Continua a
voz poética:

Viver é melhor que sonhar


Eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto é menor
Do que a vida de qualquer pessoa

Por isso cuidado meu bem


Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está
Fechado pra nós, que somos jovens

Dos dois últimos versos da primeira estrofe em destaque ressaltamos a comparação


entre “canto” e “vida”, fornecendo a ideia de que por determinados cantos a vida de qualquer
pessoa podia sofrer perigo. E então, o eu-lírico lança seu alerta dizendo: “Por isso cuidado meu
147

bem” (com o perigo em decorrência do canto), “Há perigo na esquina”. A menção a “eles”,
importa naqueles que fazem atenção ao canto e, dependendo de seu conteúdo, representavam o
perigo ao eu-lírico e à juventude. Para além desse perigo à espreita, há algo a mais a perturbar
e magoar o sujeito lírico:

Minha dor é perceber


Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como os nossos pais
A afirmação de que a juventude do eu-lírico ainda era a mesma e vivia como seus pais
é uma referência a um período específico da história Brasileira. Note-se, por exemplo, que
Belchior e os jovens de sua época, aqueles com quem dialogou em canções, Chico Buarque,
Milton Nascimento, Gilberto Gil e Caetano Veloso, para citar apenas esses, nasceram todos na
década de 1940 (a juventude a que se refere o eu-lírico, portanto, havia a média de 30 anos).
Por motivos óbvios, os pais dessa juventude eram – eles mesmos – jovens no período
compreendido entre 1930 e 1945, época conhecida na história Brasileira como “a era Vargas”.
Esses quinze anos da história do Brasil viram o estadista Getúlio Vargas assumir o
exercício da presidência em um governo provisório – e com apoio dos militares da época –, de
1930 a 1934, bem como tornar-se um ditador autoritário que legislava por decretos durante os
anos de 1937 a 1945. Nesse período, Vargas impôs uma nova Constituição, interferiu
diretamente no Congresso Nacional e institui a repressão, a qual também valeu-se da tortura,
das mortes e desaparecimentos forçados.
Tudo isso sob o mesmo princípio que o golpe de 1964 viria a afirmar décadas depois:
preservação das aspirações do povo Brasileiro, da paz política e social; da proteção de
perturbações e desordem da luta de classes, dos conflitos ideológicos e de seu desenvolvimento
natural; para espancamento da “infiltração comunista” que exigia remédios de caráter radical e
permanente, mas que, todavia, o Estado e as instituições de então não dispunham dos meios
necessários para tanto. São essas, em apertada síntese, as justificativas contidas no preâmbulo
da Constituição de 1937 471 , outorgada por Getúlio Vargas e que havia dado início a outro
período de autoritarismo no Brasil.
Retornando à canção “Como nossos pais”. O motivo da dor expressa pelo sujeito
poético é essa: independentemente de tudo o que haviam feito, ele e sua juventude ainda viviam

471
BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgado em 10 de novembro de 1937. Íntegra do
texto disponível em <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm>> Acessado em 06
de junho de 2018.
148

como os seus pais. Isto é, sob um regime ditatorial, opressor e violento. Assim como seus pais,
a juventude mencionada pelo eu-lírico, também vivia sob censura, com o perigo na esquina.
É diante desse quadro, que a voz poética da canção “Não leve flores”, também
integrante do álbum “Alucinação” afirma:

Tenho falado à minha garota


Meu bem, difícil é saber o que acontecerá
Mas eu agradeço ao tempo
O inimigo eu já conheço
Sei seu nome, sei seu rosto, residência e endereço
A voz resiste. A fala insiste: Você me ouvirá
A voz resiste a fala insiste: Quem viver verá
Uma voz que insistiu e resistiu durante a “boca da noite” foi a de Clarice Herzog, viúva
do jornalista Vladimir Herzog, assassinado 25 de outubro de 1975. Em 19 de abril de 1976,
Clarice e os dois filhos do casal apresentaram a “ação declaratória”, número 136/76, perante a
justiça federal do Estado de São Paulo, pugnando pela declaração da responsabilidade do Estado
Brasileiro “pela prisão arbitrária tortura e morte” de Vladimir Herzog. Questionava, ainda, a
versão oficial fornecida pelo exército, de que Herzog havia se suicidado com um pano ao redor
do pescoço472.
É importante lembrar que nesse período estavam ainda em vigor o altamente repressivo
AI-5 e o decreto-lei 898/69, isto é, por força do primeiro a ação constitucional do habeas corpus
estava suspensa, a censura continuava forte, as garantias da magistratura estavam suspensas e,
por força do segundo instituto jurídico mencionado, qualquer ato considerado contrário ou
prejudicial ao governo Brasileiro poderia ser considerado como atentatório à segurança
nacional.
O “caso Herzog”, como ficou conhecido, teve sua sentença exarada em 27 de outubro
de 1978, três anos após o assassinato do jornalista. No entanto, naquele mês de outubro dois
acontecimentos merecem destaque: primeiro, a eleição indireta do general João Figueiredo no
dia 15 (com posse realizada apenas em 15 de março de 1979); segundo, no dia 13 daquele mês
foi promulgada a emenda constitucional número 11 (Emc 11)473, que visava restaurar partes da
normalidade democrática no território Brasileiro, como por exemplo, garantias e prerrogativas
de parlamentares e magistrados contra o arbítrio dos militares e, sobretudo, a revogação de

472
Instituto Vladimir Herzog, O caso Herzog, Disponível em <<http://vladimirherzog.org/casoherzog/>>
Acessado em 06 de junho de 2018.
473
BRASIL, Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc11-78.htm>> Acessado
em 06 de junho de 2018.
149

todos os atos institucionais. No entanto, a emenda constitucional mencionada somente viria a


entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 1979.
Isso quer dizer que o mês de outubro de 1975 representou uma dupla vitória para a
cidadania Brasileira: pela sinalização de que se caminhava para o fim da censura e de grande
parte do autoritarismo, bem como pela responsabilização do Estado pelos maus-tratos que
levaram o jornalista Vladimir Herzog a óbito, através da corajosa sentença exarada pelo juiz
federal Márcio José de Moraes que, ante o período de vacatio legis da “emc 11”, estava ainda
sujeito às consequências do arbítrio da ditadura militar.
Retornando a 1978: foi promulgada a nova lei de segurança nacional (lei nº 6620, de
17 de dezembro de 1978) que embora mantivesse os crimes de “guerra psicológica e adversa”,
excluía a pena de morte e estabelecia penalidades mais brandas que a sua anterior, que havia
sido instituída pelo decreto-lei 898/69.
No ano seguinte, já durante o governo do general Figueiredo e com a emenda
constitucional nº 11 em vigor, a cantora Elis Regina lançou seu álbum “Essa mulher”, em junho,
contendo a canção “O bêbado e a equilibrista”, de autoria dos composiores João Bosco e Aldir
Blanc. O sucesso da canção se deu não apenas pelo talento da intérprete, mas sobretudo pelo
seu texto e pelos comentários políticos nele contidos. Veja-se a riqueza poética (e política) da
canção:

Caía a tarde feito um viaduto


E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

Conforme já mencionado, as canções daquela década costumavam se referir à ditadura


como o período noturno, tarde, escuridão, etc, pelo que o primeiro verso pode ganhar duplo
significado: a tarde, enquanto período do dia ou enquanto referência ao gover militar. No
entanto, a queda do viaduto ali contida é uma referência ao viaduto Paulo de Frontin, que
desabou em 1971 na cidade do Rio de Janeiro474, e o bêbado trajando luto é uma referência ao
famoso personagem "The tramp”, de Charles Chaplin (no Brasil, esse personagem ficou
conhecido como “Carlitos”)475.

474
Acervo do jornal “O Globo”, Em novembro de 1971, viaduto Paulo Frontin desabou matando 29 pessoas, 2013.
Disponível em <<http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/em-novembro-de-1971-elevado-paulo-de-frontin-
desabou-matando-29-pessoas-10808571>> Acessado em 06 de junho de 2018.
475
A associação com o personagem de Chaplin é explicada por Aldir Blanc, um dos compositores da canção, que
afirmou que a ideia inicial era escrever uma canção em homenagem ao ato norte americano. Cfr: FALCÃO,
150

A lua, por sua vez, como satélite que é, não possui luz própria e somente nos é possível
vê-la à noite, pois ela reflete a luz do sol. O brilho da lua é a luz do sol. Os compositores,
portanto, escreveram uma metáfora comparando a “luz” da lua – que vem do sol – com a dona
de um bordel, cujo lucro vem de suas “estrelas frias”. A segunda estrofe traz uma informação
útil para decifrar o “enigma” de quem é a “lua” ali mencionada.

E nuvens lá no mata-borrão do céu


Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
[...]
As nuvens no “mata-borrão” “chupavam manchas” torturadas. “Mata-borrão” é uma
espécie de papel com um alto poder de absorção, normalmente utilizado para retirar excessos
de óleo e tinta, no entanto, na estrofe destacada, é utilizado como utensílio para limpar (chupar)
manchas (de sangue) oriundas da tortura. Conforme mencionado nos casos Stuart Angel,
Rubens Paiva e Vladimir Herzog, a ditadura forjava os motivos e as causas das mortes por ela
causadas. Parece, portanto, que as “nuvens” são uma referência aos militares em contato direto
com as torturas e com a passar o “mata-borrão” nas “manchas” deixadas.
Em assim sendo, se “nuvens” é uma referência aos militares encarregados da tortura,
parece correto dizer que o signo “lua”refere-se ao regime militar como um todo e que “estrelas
frias” eram os generais que a sustentavam – é digno de nota, ainda, que estrelas são os símbolos
do generalato nas Forças Armadas Brasileiras. Dessa forma, a mensagem passada é a de que o
regime militar se sustentava no “brilho de aluguel” conseguido por suas estrelas frias.
É possível reafirmar a ideia acima exposta a partir de uma digressão para o mês de
abril de 1977, ainda no governo do general Ernesto Geisel. Em primeiro de abril, Geisel havia
decretado o ato complementar nº 102 que, através dos poderes concedidos pelo AI-5,
determinou férias no Congresso Nacional, bem como emendou a Constituição à época vigente
(tratava-se da Constituição de 1967, todavia, com a redação que lhe havia sido conferida pela
emenda constitucional nº 1 de 1969), alterando a forma de eleição do presidente para o voto
indireto do Congresso Nacional (a previsão era de um colégio eleitoral formado por
congressistas e representantes dos Estados).
As medidas implementadas por Geisel entraram para a história Brasileira como “o
pacote de medidas de abril” e foi essencial para garantir a maioria governista nos Estados e no

Anderson. Portal EBC, O bêbado e a equilibrista: em 1979, Elis Regine deu voz ao hino da anistia, disponível em
<<http://www.ebc.com.br/cultura/2014/08/o-bebado-e-a-equilibrista-em-1979-elis-regina-deu-voz-ao-hino-da-
anistia>> Acessado em 06 de junho de 2018.
151

Congresso Nacional476. Retornando ao texto de “O bêbado e a Equilibrista”, parece ser possível


a interpretação aqui atribuída ao regime militar enquanto “lua” e os responsáveis por seu
governo como “cada estrela fria”, afinal, o “pacote de abril” parece ter servido como “um brilho
de aluguel”. Continua a canção:

O bêbado com chapéu-coco


Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil!
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
A estrofe acima está repleta de referências políticas, vejamos: i) no primeiro verso,
“irmão do Henfil”, conforme explicado por Aldir Blanc 477 , é uma menção ao sociólogo
Brasileiro Hebert José de Souza, que à época estava exilado no México; ii) o segundo e terceiro
versos, diz respeito a todos que partiram (fugiram) para o exílio, em decorrência da perseguição
política; iii) o quarto verso, traz passagens do hino nacional Brasileiro (“Dos filhos deste solo
és mãe gentil/ Pátria amada/ Brasil”) e; iv) “Clarisses”, é uma generalização da situação da
viúva de Vladimir Herzog, ou seja, é a nomeação de todas aquelas mulheres que choraram a
morte de um ente querido.
Após afirmar que a ditadura estava a depender de um “brilho de aluguel”, de manobras
circunstanciais de suas “estrelas frias’”; que pessoas morriam torturadas às escondidas; que
pessoas foram exiladas; que chorava tanto o Brasil, quanto as “Marias e Clarisses”, a canção
vai adiante e afirma:

Mas sei que uma dor assim pungente


Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista

476
CPDOC, Os pacotes de abril de 1977, cfr: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), Disponível em <<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/PacoteAbril>> Acessado
em 06 de junho de 2018.
477
FALCÃO, O bêbado e a equilibrista: em 1979, Elis Regine deu voz ao hino da anistia, op. cit.
152

Tem que continuar


A canção passa a mensagem de enfraquecimento da ditadura militar, enquanto
denuncia seus excessos e atrocidades, enuncia o sofrimento ali existente e termina com uma
mensagem de esperança àqueles que experimentaram a mencionada “dor assim pungente”.
Mensagem essa consistente na fé de que, embora a esperança esteja “na corda bamba”, ela sabe
que tem que continuar. Pelo seu contéudo e mensagem, a música “O bêbado e a equilibrista”
ficou conhecida como “o hino da anistia”.
Meses após o lançamento do álbum que contém a canção acima analisada, em 28 de
agosto, foi promulgada a lei nº 6.683/79 que concedia anistia aos envolvidos nos crimes
políticos do período militar, revogava todas as disposições contrárias e que entrou em vigor
naquela data. Isso significa que o sinal estava aberto para que os exilados retornassem para casa,
que os partidos políticos jogados à clandestinidade poderiam se reorganizar e que os indivíduos
que haviam perdido os direitos políticos, agora poderiam se eleger e votar. Este acontecimento
é um marco na abertura política que viria a acarretar, em janeiro de 1985, na eleição de Tancredo
Neves à condição de primeiro civil eleito para o cargo de presidente desde 1964. É um marco
dos tempos finais da ditadura militar.
É nesse contexto que o compositor Gonzaguinha lança a canção “A fábrica de sonhos”,
no ano de 1981, que, como em um grito antecipatório do fim da opressão, inicia com a
afirmação: A fábrica de sonhos acabou!. E, utilizando-se dos recursos do discurso irônico, o
compositor ataca o início da ditadura ao celebrar, antecipadamente, o seu fim: Coitada daquela
gente que acreditou/ Marchando, por minha família, pedindo a Deus/ Vai ter que rezar
novamente ao São Salvador/ Pois a redentora prece, pariu Mateus/ Mateus a muitos matou e
manteve a dor.
O autor menciona com desprezo a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que
apoiou o início da ditadura militar em março de 1964. Afirma que as “preces” ali feitas deram
causa à morte de muitos e que, então, as pessoas que haviam participado da referida marcha
deveria “rezar novamente ao São Salvador”. É interessante, ainda, o adjetivo de “redentora”
dado à “prece”, pois essa expressão era utilizada irônicamente pelo escritor Stanislaw Ponte
Preta, pseudônimo do jornalista Sérgio Porto, autor da trilogia “FEBEAPA – Festival de
Besteiras que Asssolam o País”, livro de crônicas políticas escritas e publicadas de 1966 a
1968478.

478
Na crônica “O Festival de Besteira”, publicada em 1966, Stanislaw diz: “É difícil ao historiador precisar o dia
em que o Festival de Besteira começou a assolar o País. Pouco depois da ‘redentora’, cocorocas de diversas classes
sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem ‘otoridades’, sentindo a oportunidade de aparecer, já que
153

Ainda em 1981, Chico Buarque lança a canção “Alô, liberdade”479, que compunha a
trilha sonora do filme “Os saltibamcos trapalhões”. A canção é um saludo à liberdade e à alegria
e passar a ideia de que ambas retornavam após um longo período de ausência, e que para
celebrar tal retorno “uma banda”, repleta de instrumentos, iria sair para tocar na rua.

Hoje a banda sairá


Alô, liberdade
levante, lava o rOsto
Fica em pé
Como é, liberdade ...
Vou ter que requentar
O teu café
Bom dia, alegria
A minha companhia
Vai cantar
Em doce harmonia
Pra te alegrar
Note-se que Chico Buarque já havia escrito sobre uma banda, que se espalhou em por
uma avenida enquanto cantava coisas de amor, na canção “A banda” no ano de 1966. Dessa
vez, a banda sairá para cantar e celebrar a chegada da liberdade e da felicidade. Note-se que a
canção diz que a banda “sairá”, mas não diz para onde, assim como não informa que tipo de
música irá tocar. Essa informação, todavia, é dada já no ano de 1984, com a canção “Vai
passar”, de autoria de Chico Buarque e Francis Hime.
Os primeiros meses do ano de 1984 foram marcados pelas manifestações em
reinvidicação da volta dos votos diretos para presidente, que deram força ao movimento
chamado “diretas já”480 e imbuíram a população com esperanças de ver o fim do regime militar
que já durava duas décadas. Tendo sido escrita nesse período inicial do ano de 1984 e lançada
ainda no primeiro semestre do ano, a canção inicia anunciando que vai passar pela avenida um
samba popular.

Vai passar
Nessa avenida um samba
popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade

a ‘redentora’, entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo [...] iniciaram essa feia prática, advindo daí
cada besteira que eu vou te contar”. PONTE PRETA, Stanislaw. Febeapá 1, 2 e 3: festival de besteira que assola
o país. Rio de Janeiro, RJ. Ed. Agir. 2006. p. 21.
479
Íntegra da canção disponível em <<http://www.chicobuarque.com.br/letras/aloliber_81.htm>> Acessado em 06
de junho de 2018.
480
CPDOC, Diretas já, cfr: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC),
Disponível em <<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/diretas-ja>> Acessado em 06 de
junho de 2018.
154

Essa noite vai


Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram
sambas imortais
Que aqui sangraram pelos
nossos pés
Que aqui sambaram
nossos ancestrais
Em 1966, em “A banda”, Chico deu a ideia de que a banda que “estava a passar” e em
“Alô, liberdade”, já em 1981, que ela voltaria a passar (Hoje a banda sairá). No entanto, em
1984, com as reivindicações pela democracia, Chico não só afirma que agora a banda “vai
passar”, quanto dá o contexto em que o fará, mencionando, inclusive, as consequências
suportadas pela população nos anos de repressão, os quais são definidos como “página infeliz
da nossa história”, bem como afirmando qual será o conteúdo do canto. Veja-se:

Num tempo
Página infeliz da nossa
história
Passagem desbotada na
memória
Das nossas novas
gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão
distraída
Sem perceber que era
subtraída
Em tenebrosas
transações
E então continua: Seus filhos/ Erravam cegos pelo continente/ Levavam pedras feito
penitentes/ Erguendo estranhas catedrais/ E um dia, afinal/ Tinham direito a uma alegria
fugaz/ Uma ofegante epidemia/ Que se chamava carnaval. Retorna, portanto, a utilização do
carnaval como indicador das liberdades perdidas: manifestação do pensamento, reunião pacífica,
ocupação do espaço público, etc. Essa ideia é complementada na estrofe seguinte, quando o sujeito-
poético afirma, em certo ar de surpresa, o que está para acontecer.

Meu Deus, vem olhar


Vem ver de perto uma
cidade a cantar
A evolução da liberdade
Até o dia clarear
Eis, então, que o sujeito lírico afirma que a cidade vai cantar A evolução da liberdade/
Até o dia clarear. Liberdade, dia, sol, amanhã e amanhecer. Eis as métaforas utilizadas pela
literatura musical Brasileira durante os vinte anos de regime militar. Conforme já mencionado
155

no item 4.1, em janeiro de 1985, pelo voto indireto do Congresso Nacional, foi eleito o primeiro
presidente civil desde 1964. Com a posse de José Sarney, em 15 de março daquele ano,
aproximava-se, ainda mais, o encerramento daquela “página infeliz” da história recente
Brasileira – que seria oficialmente “virada” com a promulgação da Constituição da República
em 5 de outubro de 1988.
Um marco desse período de transição entre ditadura militar e regime democrático, foi
o retorno do cantor Taiguara, que passara treze anos no exílio, iniciado em outubro de 1973
após onze vetos a doze canções do álbum que havia submetido ao Departamento de Censura
naquele mês. A única canção que havia sido aprovada, mas que foi posteriormente censurada,
chamava-se “Que as crianças cantem livres” e Taiguara voltou a tocá-la no show que marcou
sua volta para casa, intitulado “Treze outubros”.
No entanto, a versão em inglês “Let the children hear the music”, cujo album fora
censurado integralmente em 1975, representa uma boa chave de leitura do texto original em
português, razão pela qual há de ser considerada primeiro. Nela, Taiguara expõe a angústia que
vivia durante seu exílio em Londres e, aproveitando-se da métrica e do sentido da canção em
português, complementa o sentido da canção original. Esse “complemento” pode ser visto já
no título de ambas: em português, “Que as crianças cantem livres”, enquanto a versão em inglês
é “Deixe(m) que as crianças escutem a(s) música(s)”.
A versão escrita no exílio tem um tom autobiográfico, justamente o de quem está longe
nutrindo o anseio pelo retorno. Todavia, para além do que a língua portuguesa define como
saudade, o texto da canção introduz como seu mote o desiderar uma mudança. Isto é, o
compositor demonstra que nutria o desejo de retornar, não para o Brasil que havia deixado ao
exilar-se, mas, sim, para o Brasil que gOstaria de ver nascer. Ademais, por ser escrita em inglês
e na forma de uma narrativa em primeira pessoa, a canção configura, ainda, uma espécie de
denúncia do que se passava no Brasil da época. Veja-se:

Where I was born there is a felling that surrounds you


A secret fear that lives inside of everyone
People single of love and you would think we´re happy
But in our hearts we hide a cloud that shades the sun481
Percebe-se que os dois primeiros versos são uma denúncia do medo que vivia dentro
de todos. Medo esse, adjetivado de “secreto” porque não podia ser expressado. E por não poder
ser denunciado explícitamente é que as pessoas encontravam modos diversos de fazê-lo, como

481
Em tradução livre: Onde eu nasci há um sentimento que nos cerca/ Um medo secreto que vive dentro de todos/
As pessas cantam sobre o amor e você pode achar que somos felizes/ Mas em nosso corações há uma nuvem que
ofusca o sol.
156

por exemplo, Chico Buarque na canção “Apesar de você”, que simulava a separação de um
casal para expôr o regime militar. Adiante, afirma Taiguara:

My troubled mind kept on searching for the answers


But now our sky was dark and the clouds said go away
So I left home is search of truth and understanding
I found a world which gave me strength to fight alone
It wasn´t long before I found what I was missing482
Taiguara também faz uso das metáforas à época utilizada sobre o regime militar,
escuridão, nuvens, noite, medo e dor. A frase “as nuvens disseram vá embora” é uma referência
direta à opressão que o forçou a sair de casa (ressaltamos que em 1979, conforme mencionado,
em “O bêbado e a equilibrista” as “nuvens” também são utilizadas em referência aos militares).
O tom autobiográfico torna-se mais forte na estrofe seguinte, na qual ele toma um
posicionamento a respeito daquilo que faltava em sua sociedade à época em que partiu.

My people´s freedom, that´s what I must take back home


So sing out loud and let the children hear the music
Unlock their doors let in the sun and dry their tears
The past is sad, the present doubtful, but the future
Must tell the truth and plant the seeds
And we´ll be free
Não apenas menciona diretamente a ausência de liberdade, como afirma o compositor
que se deveria continuar cantando para que as crianças escutassem, pois isso representaria a
abertura necessária para que fossem iluminadas pelo sol. Então, a canção que fora enviada do
exílio para lançamento no Brasil, mas todavia censurada, terminava com a mensagem de
esperança que incentivava a luta pela liberdade e pela verdade, comparando o canto para as
crianças com o plantar das sementes da liberdade.
É nesse contexto, de que as crianças seriam as sementes da liberdade, que a canção
“Let the children hear the music” se insere. Quer dizer: deveria-se cantar às crianças a
necessidade de iluminar o amanhã, do raiar do dia naquele contexto de escuridão do regime
militar, de plantar e nutrir a liberdade. Dessa forma, treze anos após deixar o Brasil, Taiguara
retorna, em 1986 – já com um civil no exercício da presidência da república –, e realiza o
mencionado concerto “Treze outubros”483.

482
Em tradução livre: Minha mente inquieta procurava por respostas/ Mas nosso céu estava escuro e as nuvens
disseram vá embora/ Então saí de casa em busca de verdade e compreensão/ Encontrei um mundo que meu deu
forças para lutar sozinho/ E não tardei a encontrar o que me faltava.
483
MILLARCH, Aramis. Taiguara, enfim, de volta. Texto publicado em 12 de junho de 1987 no jornal “O Estado
do Paraná”, Caderno Almanaque, p. 15. Disponível em << https://www.millarch.org/artigo/taiguara-enfim-de-
volta>> Acessado em 06 de junho de 2018.
157

Conforme afirmado neste capítulo 4, em junho de 1985, o então presidente José Sarney
enviara a mencionada “Mensagem presidencial nº 330” ao Congresso Nacional, convocando a
Assembléia Nacional Constituinte, que viria a ser eleita em novembro de 1986. Logo, o show
de Taiguara ocorreu à véspera das eleições que definira o Congresso constituinte. Pelas
circunstâncias políticas em que ocorreu o concerto, o texto da canção “Que as crianças cantem
livres” foi, ali, um prelúdio do que se esperava da Constituição de 1988. Veja-se:

O tempo passa e atravessa as avenidas


E o fruto cresce, pesa e enverga o velho pé
E o vento forte quebra as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é
Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro que é fatal
A estrofe inicial enuncia que o que é novo um dia chega e toma o lugar do velho. Note-
que o “fruto cresce” e faz o que era rígido ceder; que o vento, o sopro, o grito, conseguem
quebrar as barreiras impostas, no caso, representadas pelas “telhas e vidraças”. No passar desses
vinte e um anos de ditadura militar, o que cresceu foi o coro de resistência que, conforme
proposto ao início deste estudo, é observado aqui a partir daquilo que restou denominado no
capítulo anterior como “literatura musical”484.
A segunda estrofe, por sua vez, indaga uma causa oculta para o que falta (mulher), faz
mal (calor), sufoca (gravata) e que é fatal (falta de dinheiro), indicando que o eu-lírico
sutilmente discorda da origem, das causas, dos problemas de seu interlocutor. No entanto, não
esclarece qual seria a suposta origem desses males. Neste momento, é imprescindível
mencionar que essa versão fora escrita em 1973 e que deve ser compreendida em um diálogo
com sua versão em inglês, de 1975, que complementa a indagação aqui mencionada.
Os versos “It wasn´t long before I found what I was missing/ My people´s freedom,
that´s what I must take back home”, possibilitam compreender que é a “liberdade do seu povo”
que fazia falta, ou seja, era a ausência e liberdade do seu povo que fazia mal, que sufocava e
que era fatal. As composições dialogam entre si.
Retornando à canção em português e ao concerto de outubro de 1986, após a referida
indagação, Taiguara prossegue com uma mensagem de esperança que, naquele momento que
antecedia a formação do Congresso Constituinte, encaixava-se com perfeição aos versos da
estrofe que segue. O fogo brando que fundiu o ferro duro e o asfalto transformado em jardim

484
Ver nota nº 371.
158

pela esperança estavam para ser coroados com a feitura de uma nova Constituição, a
concretização do sonho democrático. Tratava-se do “sol nascente” que avermelhava “o céu
escuro”. Estava para amanhecer no coração do Brasil.

Vê como um fogo brando funde um ferro duro


Vê como o asfalto é teu jardim se você crê
Que há sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver
Por fim, a canção encerra com votos de esperança de um amanhã livre para o canto
das crianças, um canto sem barreiras, sem telhas, sem vidraças e sem muros.

E que as crianças cantem livres sobre os muros


E ensinem sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou o amanhecer...

4.3. O “AMANHECER” DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

Conforme afirmado no item 4.1, a Constituição da República Federativa do Brasil foi


promulgada em 5 de outubro de 1988 e contém, em seu Título II, que versa sobre os direitos e
garantis fundamentais que se divide em cinco capítulos temáticos: i) dos direitos e deveres
individuais e coletivos, compreendido pelo artigo 5º; ii) dos direitos sociais, do art. 6º ao 11º;
iii) da nacionalidade, artigos 12 e 13; iv) dos direitos politicos, artigo 14 a 16 e; v) dos partidos
políticos, artigo 17.
Imprescindível ressaltar, todavia, que logo em seu preâmbulo a Constituição de 1988
afirma: “Nós representantes do povo Brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte
para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, o bem-estar, o desevolvimento, a igualdade e a justiça”, os quais
passam a ser considerados, a partir daquele momento, “como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, coma solução pacífica das controvérsias”.
Note-se, portanto, que após vinte e um anos de autoritarismo por parte do Estado,
caracterizada pela supressão dos direitos políticos, cassação de mandatos parlamentares,
patrulha ideológica e condicionamento do exercício da cidadania e das liberdades que dela se
originam, o Constituinte originário Brasileiro faz um prelúdio ao texto constitucional
enaltecendo os direitos e garantias outrora sonegados e que, naquele momento, passavam a ser
consagrados como “valores supremos” da sociedade que visava o descontinuar seu passado
jurídico opressor.
159

Essa “descontinuação” é ainda reforçada na parte inicial do texto constitucional, no


“Título I” que versa sobre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. O
artigo primeiro da Carta Polícia Brasileira afirma que o Estado Democrático de Direito tem
como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa huamana, os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. É facilmente perceptível que tanto o
preâmbulo quanto o primeiro dispositivo da CRFB trazem à lembrança os erros do passado que
não podem (e nem devem) ser esquecidos – no termo calcado por F. Ost, trata-se do conceito-
chave memória, que é uma de suas quatro categorias demonstrativas da temporalização
normativa do direito.
Essa é a já referida conexão-entre-memória-e-promessa-de-futuro485. Essa promessa,
por exemplo, no tocante aos direitos e garantias fundamentais, encontra-se majoritariamente no
“Título II” do texto constitucional, cujos dispositivos são imunes às propostas de emenda que
os pretendam abolir (por força do art. 60, §4º da CRFB), pois alçados à condição de “cláusulas
pétras” por força do próprio texto constitucional, como forma de garantir que, na expressão
criada por Chico Buarque, aquela “página infeliz” da história Brasileira não torne a se repetir.
É dizer: a Constituição de 1988 traz logo em seus dezessete artigos iniciais a proteção
do indivíduo e da cidadania. E isso, em comparação às Constituições Brasileiras anteriores, é
um afirmação categórica de que a cidadania passou a ocupar um lugar central não só no Direito
Brasileiro, mas, sobretudo, na formação do Estado que ali se instituía486.
Tem-se, portanto, uma inversão na ordem das coisas, a qual, parece representar
claramente – quando confrontada ao obscuro passado das décadas de autoritarismo no Brasil –
a força simbólica da normatividade constitucional no tocante aos direitos e garantias individuais
e coletivos na República Federativa do Brasil. Isto é, o cidadão e seus direitos e garantias
individuais, essenciais ao exercício da cidadania, a partir de 5 de outubro de 1988, passaram a
ocupar um lugar à frente do Estado e sua organização. Objetivamente: na República Federativa
do Brasil, o cidadão vem antes do Estado.
É isso a que nos referimos no item 4.1 como uma “viragem copernicana” representada
pela Constituição de 1988. O cidadão é alçado à condição de titular de direitos frente ao Estado,
como afirmado pelo presidente da ANC, Ulysses Guimarães, em seu discurso de promulgação,
pela força simbólica da organização da normatividade constitucional, que incluiu a cidadania

485
Ver nota nº 277.
486
Veja-se, a título exemplificativo, que a organização das demais Constituições do período republicano Brasileiro
traziam sempre a organização do Estado à frente dos direitos do homem: i) 1967, a cidadania somente aparece a
partir do artigo 140 (com a emenda constitucional nº1 de 1969, apenas no art. 145; ii) 1946, a partir do artigo 129;
iii) 1937, a partir do artigo 115; iv) 1934, a partir do artigo 106 e; v) 1981, a partir do artigo 72.
160

como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Eis o porquê dos três primeiros
títulos da CRFB serem divididos em: “dos princípios fundamentais”, “dos direitos e deveres
individuais e coletivos” e “da organização dos estados”, respectivamente.
No tocante às liberdades que haviam sido fortemente suprimidas na ditadura militar,
como, por exemplo, a liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de consciência, de
crença, de convicção política e filosófica, de atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, liberdade de reunião e de associação, passam a ser respaldadas pelo texto
constitucional (art. 5º da CRFB) com o mencionado caráter de cláusula pétra. Outras garantias
que haviam sido suprimidas, como o habeas corpus e a inafastabilidade da jurisdição, também
são encontradas nos incisos do artigo 5º.
Outra conquista presente na Constituição Cidadã são os direitos sociais, constantes do
artigo 6º, cuja redação original era: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos
desamparados”. O mencionado artigo sofreu três emendas nos anos de 2000, 2010 e 2015, que
lhe acresceram os direitos à moradia, alimentação e transporte, nessa ordem.
Retomando a imbricação direito-musica-literatura como fio condutor do esforço para
compreender a evolução do princípio constitucional da liberdade de expressão, numa tentativa
de observá-lo através do desenrolar da manifestação de sua juridicidade, nota-se que a
Constituição de 1988 possibilitou uma espécie de evolução também no discurso oriundo da
própria liberdade de manifestação do pensamento. Pois bem.
Ainda no ano de 1988, o compositor Gonzaguinha lançou o álbum “Corações
marginais”, do qual destacamos a canção “É!”. Ressaltamos que aquele ano foi o “divisor de
águas” na história Brasileira recente, pois, conforme já afirmado, viu ser plantada a semente da
democracia, cujo processo de feitura contou com ampla participação popular e restou conhecida
como “Constituição Cidadã”.
Na canção ora em destaque, esse sentimento do nascer da possibilidade de exercício
da cidadania é cantado, expondo o amanhecer da democracia e o tipo de vida que que se
esperava a partir daquele momento. O sujeito poético na canção expõe suas expectativas quanto
ao por vir nos versos A gente quer é ter muita saúde/ A gente quer viver a liberdade/ A gente
quer viver felicidade. Em seguida, grita a voz poética:

É!
A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
161

A gente quer viver uma nação...


Iniciado o período democrático baseado na Constituição instituídora do respeito, do
pleno direito, da liberdade e da possibilidade de “ser um cidadão”, surge um movimento musical
que antes se encontrava restrito às periferias e metrôs da cidade de São Paulo. Trata-se do
surgimento de pequenos grupos de RAP e Hip-Hop que, a partir de 1988, foi dando forma ao
movimento musical que hoje se encontra alastrado por todo o Brasil.
As expectativas do eu-poético da canção “É!” encontram-se inseridas na Constituição
Brasileira de 1988 e passam a ser a tônica das letras das canções de RAP que surgem de 1988
em diante. Há aqui um interessante fato a ser ressaltando antes de uma demonstração quanto à
“literatura musical” dos novos estilos musicais ora mencionados.
É possível notar que de 1964 a 1988, o texto das canções da Música Popular Brasileira
(MPB) acompanharam as alterações sofridas na sociedade nesse arco de tempo. Isto é, o início
do regime militar, seu endurecimento, a criação da censura de obras e espetáculos, da censura
prévia à imprensa e à toda e qualquer atividade cultural, da extinção dos partidos políticos,
criminalização da greve e manifestações em vias públicas, perseguição a movimentos
estudantis, torturas, mortes e desaparecimentos forçados, todos esses acontecimentos foram
registrados, textualmente, pela MPB
É imperioso destacar que em sendo a liberdade de expressão suprimida com o uso da
violência institucionalizada à época da ditadura militar, tornava-se difícil a denúncia dos
horrores que então aconteciam.
Todavia, é interessante notar que embora as canções daquele período fizessem usos de
jogos de linguagem, trocadilhos, cacofonias e ironias, era justamente através da manifestação
do pensamento que se protestava, reinvidicava, pelos direitos que eram sonegados – dentre os
quais, a própria liberdade de manifestação. Os compositores do período inseriam em seus textos
a exteriorização da angústia causada pelos problemas gerados pelas políticas do Estado
autoritário. Eis o porquê as canções que marcaram tal período, pelo caráter denunciatório e
resistente (à época dito como “subversivo”), serem conhecidas popularmente como “canções
de protesto”.
E é justamente essa angústia-gerada-pelo-Estado-autoritário que passa a ser
exteriorizada nas canções surgidas a partir de 1988, pelo movimento do Rap e do Hip-Hop. E
se o autoritarismo dos militares acabou oficialmente com a Constituição Cidadã não foram
todas as formas de arbítrio que terminaram, pois, conforme demonstram as letras das canções
de RAP, elas continuam presentes nas favelas e periferias Brasileiras.
162

A angústia cantada nas canções de RAP, de 1988 aos dias de hoje, se concentra sobre
as violações de direitos e garantias constitucionais por parte das polícias, bem como sobre as
feridas ainda abertas na sociedade Brasileira, decorrentes de sua profunda desigualdade de
natureza estrutural. Doravante são ressaltados os principais desdobramentos desse
cambiamento do discurso musical reinvidicatório por direitos (da MPB ao RAP), ocorrido após
a Constituição de 1988 (ou seja, após a conquista do direito fundamental à liberdade de
expressão independetemente de censura).
É necessária uma digressão a respeito de uma das faces desse contraste agudo presente
no Brasil, a qual é definida pelo sociólogo Brasileiro Jessé Souza pelo conceito de
“subcidadania”, introduzido em sua obra A construção social da subcidadania: para uma
sociologia política da modernidade periférica.
Jessé Souza, em sua investigação sobre países periféricos, de modernidade tardia,
demonstra que o processo de modernização no Brasil teve como consequência uma profunda e
estrutural desigualdade que relegou uma camada da população – já historicamente ignorada –
às condições de marginalidade e subcidadania. Essa subcidadania, por sua vez, é sustentada
pela naturalização das desigualdades487, a qual reforça “reais conflitos sociais que causam dor,
sofrimento e humilhação cotidiana para dezenas de milhões de Brasileiros”, os quais tornam-se
“literalmente invisíveis”488.
Na leitura de Souza, os subcidadãos formam uma classe social de desprivilegiados e
invisíveis – “a ralé” –, embora tenham sua geografia bem delimitada nas cidades Brasileiras
pelas periferias e favelas. Em assim sendo, na medida em que o RAP nasce e se desenvolve,
majoritariamente, a partir da periferia, as denúncias contidas nas letras musicais retratam essa
estrutura de desigualdades. Dito de outra forma: o RAP concentra, em grande parte, o canto que
contém a denúncia e o protesto no que toca às condições a que estão submetidos os subcidadãos
Brasileiros.
Veja-se, a título exemplificativo, que ainda em 1988 foi lançada a primeira coletânea
de RAP e Hip-Hop no Brasil, intitulada de “Consciência Black, vol. 1”, da qual merece destaque
a canção “Pânico na zona sul”, do grupo intitulado “Racionais Mc’s”, oriundo da zona sul da
cidade de São Paulo e que denuncia os grupos de extermínio que atuavam na área durante as
décadas de 70 e 80.

Então quando o dia escurece


Só quem é de lá sabe o que acontece

487
SOUZA, A construção social da subcidadania, op. cit., p. 17.
488
Idem, Ralé Brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte, Editora UFMG. 2009. p. 17
163

Ao que me parece prevalece a ignorância


E nós estamos sós
Ninguém quer ouvir a nossa voz
Cheia de razões calibres em punho
Dificilmente um testemunho vai aparecer
E pode crer a verdade se omite
Pois quem garante o meu dia seguinte?
A primeira estrofe chama atenção, ainda que de forma velada, para o medo que existia
na zona sul de São Paulo, ante a atuação dos mencionados grupos no período noturno, bem
como o pavor dedenunciar formalmente as ocorrências pelo medo de represálias (“quem garante
o meu dia seguinte?). Tais grupos eram formados por policiais e faziam rondas noturnas pela
cidade cometendo homicídios e torturas de “marginais” e “esquerdistas”489. A estrofe seguinte
já menciona tanto a existência de tais grupos, seus atos e um suposto envolvimento da polícia
para com isso.

Justiceiros são chamados por eles mesmos


Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra sequer vontade
De resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente
E por que ajudariam se eles os julgam deliquentes
E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na Zona Sul.
É de importante valor simbólico o lançamento de uma canção com linguagem clara e
objetiva e que retrate a grave violência vivida pela população da zona sul paulista, exatamente
no ano que representa o fim do regime militar. O refrão, inclusive, anuncia: “Pânico na zona
sul/ Pânico!”. Em seguida, é mencionado o transitar de regimes (a indicar a descontinuação do
passado em prol da reconciliação e anistia, conforme ensinamentos de F. Ost):

Você acha que o problema acabou?


Pelo contrário ele apenas começou
Não perceberam que agora se tornaram iguais
Se inverteram e também são marginais, mas...
Terão que ser perseguidos e esclarecidos
Tudo e todos até o último indivíduo

Se o “problema” mencionado no primeiro verso é referente aos grupos de extermínio


que atuavam à época, ou seja, durante a ditadura militar, logo, a palavra “agora” é referente ao

489
O policial Sergio Fleury, cujo destaque na ditadura militar se deu pelas mortes de Carlos Marighella e Carlos
Lamarca – ambos integrantes da luta armada contra a ditadura militar –, é o grande exemplo de atuação dos
esquadrões da morte. Ele era acusado de integrar grupos de extermínio no Estado de São Paulo e ao “Esquadrão
da morte” no Rio de Janeiro. Sobre o tema, conferir: Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC), Sobre Sergio Fernando Paranhos Fleury. Disponível em:
<<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/sergio-fernando-paranhos-fleury>> Acessado
em 06 de junho de 2018.
164

período democrático, no qual tal comportamento é inaceitável e deve ser severamente punido.
Sobre o tema, em seu artigo 5º, XLIV, a Constituição promulgada naquele ano é categórica:
“constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares,
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
É imprescindível ressaltar que tanto o conteúdo da canção ora mencionada quanto a
época em que foi lançada enquadram-se no “período de transição reconciliatória” (F. Ost),
cantado a partir do mundo vivido pelos “subcidadãos” (J. Souza) que, a partir daquele momento,
passavam a gozar da liberdade de expressão como um direito fundamental. Liberdade essa que
passaria a ser utilizada para denunciar mazelas sociais dali em diante.
No ano seguinte à promulgação da Constituição Cidadã, Fernando Collor de Mello foi
eleito Presidente da República nas primeiras eleições diretas para o cargo no período
democrático. Sua posse ocorreu no dia 15 de março de 1990, mesmo dia em que publicou a
medida provisória nº 168/90, posteriormente convertida na lei nº 8.024 de 12 de abril de 1990490,
denominada de “Plano Collor I” e que importava numa reforma monetária e numa tentativa de
conter a inflação da época.
Dentre as medidas então criadas estavam a nova moeda corrente nacional, denominada
“cruzeiro” (art. 1º) e o “bloqueio” de todos os ativos financeiros, os quais foram
automaticamente convertidos em depósitos à ordem do Banco Central, pelo período de dezoito
meses (artigos 5 a 9). Essa última medida importou em uma espécie de congelamento dos
investimentos em poupança e superiores ao rígido limite estabelecido no plano. Na prática, os
investimentos em poupança foram confiscados.
Os dois anos seguintes do governo Collor de Mello foram marcados pela instabilidade
financeira e por crescentes denúncias de casos de corrupção, que culminaram com seu
impeachment em dezembro de 1992. Nesse contexto, em setembro de 1992, um jovem
estudante de comunicação social, chamado Gabriel Contino, lançou sua primeira canção
intitulada “Tô feliz (matei o presidente)”, na qual narra sua versão fictícia de homicídio do
presidente.
A canção inicia com os versos “Todo mundo bateu palma quando o corpo caiu/ Eu
acabava de matar o presidente do Brasil”, segue com a menção de alguns dos casos de corrupção
em que o presidente estava envolvido e acaba por descrever como foi a celebração do autor do
crime junto a população que o apoiava: “Tava bonito demais/ Alegria e tudo em paz/ E ninguém
vai bloquear nosso dinheiro nunca mais”.

490
BRASIL, Lei nº 8.024, de 12 de abril de 1990, Instituiu o “Plano Collor I”. Disponível em
<<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8024.htm>> Acessado em 06 de junho de 2018.
165

No caso da música ora mencionada, dois pontos merecem destaque: primeiro, a canção
retrata uma ficção (assassinato do presidente e posterior celebração junto à população) e uma
situação real (bloqueio do dinheiro da população) e, em segundo lugar, poucos dias depois de
seu lançamento a canção teve sua execução suspensa nas rádios Brasileiras. O jornal “O Globo”,
em sua edição do dia 16 de setembro de 1992 noticiou o fato com o título “Rap contra Collor é
suspenso da rádio” e, ao longo da notícia, se lê que tal suspensão fora motivada por “pressão
conjunta da Radiobrás [Empresa Brasileira de Comunicação] e do Ministro da Justiça, Célio
Borja, a execução da música foi suspensa”491.
Embora não configurada juridicamente a censura, nos termos em que ocorria no
regime militar, a suspensão da execução da canção por motivos de “pressão” do Ministro da
Justiça merece ser destacada, pois representa uma espécie de ataque à liberdade de manifestação
artística ocorrida ainda no período inicial da democracia Brasileira. No ano seguinte, Gabriel
Contino lançou seu primeiro álbum, cujo título “Gabriel, o pensador” passaria a ser seu nome
artístico.
O álbum mencionado contém a canção que havia sido “censurada” (“Hoje tô feliz”) e
outras duas que merecem destaque, pois são capazes de iluminar o esforço aqui realizado em
observar a manifestação da juridicidade do princípio da liberdade de expressão no “amanhecer”
da Constituição Brasileira de 1988. Tratam-se das canções “Abalando” e “Lavagem cerebral”.
“Abalando” é a canção inicial do álbum em questão e aborda o ataque sofrido pela
canção lançada no interior. Ainda nos versos iniciais, o pensador diz:

Não eu não consegui acreditar nisso


Mas não vamos esquecer e nem permanecer omissos
Num caso que diz respeito ao direito de um cidadão
De carregar no peito a sua liberdade de expressão
Liberdade de expressão aqui?
Não existe!
Eu fiz "Hoje eu tô feliz" e fiquei triste
Nota-se que a liberdade de expressão passa a ser mencionada já como um direito do
cidadão e a suposta censura sofrida no ano anterior é retratada com revolta. Situação que não
seria possível durante o regime militar, ao menos não sem a utilização de figuras e jogos de
linguagem, pois, como visto, os compositores da década de 1970 não podiam utilizar de uma
linguagem clara e objetiva, pois deveriam submeter suas canções ao Departamente de Censura
da Polícia Federal.

491
Edição disponível em <<http://acervo.oglobo.globo.com/>> Acessado em 06 de junho de 2018.
166

A canção “Lavagem cerebral”, por sua vez, aborda dois temas que tornaram-se os
principais no movimento do RAP e Hip-Hop, o racismo e a desigualdade social. Daquele ano
em diante,tais assuntos passaram a ser expostos por diversos cantores, a partir das próprias
visões de mundo, proporcionadas pelo próprio lugar no mundo. O resultado dessas múltiplas
abordagens sobre o tema é de uma riqueza facilmente perceptível.
Veja-se, por exemplo, que Gabriel, o pensador, critica diretamente o racismo, com
uma linguagem clara, objetiva e forte. Os versos iniciais já demonstram a tônica da mensagem
a ser passada: Racismo, preconceito e discriminação em geral/ É uma burrice coletiva sem
explicação. Segue o cantor:

Não se importe com a origem ou a cor do seu semelhante


O quê que importa se ele é nordestino e você não?
O quê que importa se ele é preto e você é branco?
Aliás branco no Brasil é difícil, porque no Brasil somos todos mestiços
Se você discorda então olhe pra trás
Olhe a nossa história
Os nossos ancestrais
O Brasil colonial não era igual a Portugal
A raiz do meu país era multirracial
Tinha índio, branco, amarelo, preto
Nascemos da mistura então por que o preconceito?
Barrigas cresceram
O tempo passou...
Nasceram os Brasileiros cada um com a sua cor
Uns com a pele clara outros mais escura
Mas todos viemos da mesma mistura
Então presta atenção nessa sua babaquice
Pois como eu já disse racismo é burrice
Dê a ignorância um ponto final
Faça uma lavagem cerebral
O que se vê no excerto acima, e na grande maioria de canções de RAP que contém um
caráter confrontante às desigualdade sociais encontradas no Brasil, é, objetivamente, a
utilização da liberdade de expressão garantida pela Constituição de 1988 na luta por outros
direitos.
É imperioso ressaltar que na ditadura militar, por não se ter a possibilidade de
manifestação do pensamento, as reinvidicações não eram feitas da forma acima demonstrada:
em linguagem clara e direta. Se durante o período autoritário, as reinvidicações dos direitos
sonegados tornavam-se difíceis ante a repressão do próprio ato de manifestar-se, no período
democrático, esse “manifestar-se” passa a ser um direito “carregado no peito” e se torna o
alicerce das reinvidicações pela redução das desigualdades sociais.
Tantos outros artistas passaram a abordar tais desigualdade sociais a partir do
movimento RAP e Hip-Hop, dentre os quais podemos mencionar, na ordem cronológica de
167

aparecimento no cenário musical Brasileiro, em lista não exaustiva, Racionais Mc’s, Gabriel, o
pensador, Realidade cruel, Facção Central, Thayde, RZO, Planet Hemp, MV Bill, A-286,
Sabotage, Trilha Sonora do Gueto, Quinto andar, Possemente Zulu, Rappin’ Hood, Criolo,
Emicida, Riccon Sapiência, entre tantos outros.
Entretanto, esse direito à liberdade de manifestação (intelectual, política, artística,
etc), mesmo no período democrático, de quando em vez é posto à prova por tentativas de
repressão, por motivos variados (preconceito, ignorância ou estratégia política), mas sempre
travestidos de caráter técnico-jurídico embora repleto de autoristarismos. Esse suposto
tecnicismo, por vezes, é arbitrário por ser oriundo de uma compreensão rasa sobre os direitos
fundamentais, a qual tem suas raízes numa pobre pré-compreensão do sentido de (presença da)
Constiuição – por ser desprovida da dimensão da historicidade do sentido no seio da tradição
constitucional492.
Veja-se, por exemplo, o caso do grupo de RAP “Facção central” que desde a primeira
canção lançada, no ano de 1993493, faz denúncias em rimas a respeito das mazelas vividas
cotidianamente pela camada mais pobre da população Brasileira e, por tal razão, tem como
temas centrais de toda a sua obra a violência policial, a miséria, o preconceito, o descaso e o
abandono das classes sociais pobres, bem como o cotidiano de parcela dessa camada social
oprimida que se insere no mundo da criminalidade.
O grupo mencionado tem como característica principal a narrativa de um cotidiano
violento, através de uma linguagem crua e sem eufemismos que descreve situações de
miserabilidade e violência extremas. As canções contém textos em sua maioria longos, com
estribilhos curtos, e configuram verdadeiras crônicas da vida comum nas periferias de São
Paulo. Outra característica de seus álbuns é a articulação/organização interna das canções, de
forma que cada álbum seja organizado como um livro, com apresentação, desenvolvimento e
conclusão.
O terceiro álbum do grupo, “Versos sangrentos”, lançado em 1998, por exemplo, inicia
e termina com preces: a primeira direcionada a Deus e a segunda a um amigo, à época,
recentemente morto. Quanto ao seu “desenvolvimento”, marcado por canções que narram
explícitamente os pormernores da violência da maior cidade do Brasil, merecem destaque as
canções, intituladas de “A minha voz está no ar” e “Isso aqui é uma guerra”.

492
Sobre a pré-compreensão do sentido de Constituição, ver nota nº 93.
493
A primeira canção lançada pelo grupo, na coletânea “Movimento RAP, vol. 2”, chama-se “A cor” e retrata o
racismo e o preconceito de classes no Brasil.
168

“A minha voz está no ar” é a segunda faixa do álbum mencionado, precedida por uma
oração que pede proteção a Deus, e explica quais são as inspirações, os objetos e objetivos das
canções feitas pelo grupo – tais explicações configuram, inclusive, seu mote de existência.
Nos primeiros versos, narrados em primeira pessoa, um dos integrantes do grupo,
afirma: “Eu rimo o ladrão que mata o playboy/ O viciado que toma tiro do gambé do goe494/ O
detento que corta o pescoço do refém [...]/ Canto do corpo que bóia decomposto no rio[...]/ O
meu assunto é favela, farinha, detenção [...]/ Facção é uma gota de sangue em cada depoimento/
Infelizmente é rap violento”. Expostos quais são os objetos das músicas, é ressaltado o objetivo
da própria existência do grupo:

É isso que eu tento evitar com meu verso


Que defende quem não pode se defender
Que tá do lado de quem assalta pro filho comer
Não aceno bandeira, não colo adesivo
Não tenho partido, odeio político
A única campanha que eu faço é pro ensino
E pro meu povo se manter vivo [...]
Quero minha voz dando luz pro presidiário
Denunciando a podridão do sistema carcerário
Tirando a molecada da farinha
Não quero seu filho na mesa do legista
É com base nesses pressupostos, de cantar a condição de exclusão vivida pela camada
periférica da sociedade Brasileira, como forma de conscientização através da denúncia, que o
grupo Facção Central produz suas músicas. A canção “Isso aqui é uma guerra”, por exemplo, é
narrada em primeira pessoa, por um eu-lírico que comete crimes pela cidade de São Paulo
enquanto reflete sobre sua condição de miserabilidade, sem condições mínimas para sobreviver.
Formada por versos que descrevem cruamente a violência cotidiana do Brasil, a canção
configura uma espécie de depoimento a respeito das origens dos atos cometidos pela voz
poética. O verso inicial já deixa claro qual o “tom” dos versos que vem em seguida: “É uma
guerra onde só sobrevive quem atira [...]/ Se eu quero roupa, comida, alguém tem que sangrar
[...]/ A fome virou ódio e alguém tem que chorar”. Dentre os demais, destacam-se os seguintes
“versos sangrentos”:

Aqui é outro Brasileiro transformado em monstro


Semi-analfabeto, armado e perigoso
Querendo sua corrente de ouro
Atacando seu pulso, atacando seu bolso
[...]
É a lei da natureza, quem tem fome mata

494
“Gambé” é uma gíria, nas periferias Brasileiras, que se refere aos policiais. “GOE”, por sua vez, é a sigla dos
grupos de operações especiais das polícias no Brasil.
169

Na selva é o animal, na rua é empresário inconsequente


[...]
Quer seu filho indo pra escola e não voltando morto?
Então meta a mão no cofre e ajude nosso povo
Ou veja sua mulher agonizando até morrer
Por que alguém precisava comer
Isso aqui é uma guerra
No ano de 2000, o videoclipe da canção acima teve sua execução proibida, através de
uma medida cautelar, com expedição de mandado de busca e apreensão da fita original da
gravação na sede do canal de televisão MTV. A ordem foi expedida após representação do
Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (GAECO), do Ministério Público
do Estado de São Paulo, que considerou a música como apologia aos crimes de roubo e
latrocínio, bem como ao racismo495.
Nota-se, nesse caso, que, diferentemente da pressão política sofrida pela canção “Hoje
tô feliz” de Gabriel, o pensador, a exibição do videoclipe do grupo Facção Central foi alvo de
censura no período democrático, através do Poder Judiciário. Ressalta-se, aqui, ainda, que as
considerações lançadas pelo Ministério Público estadual desconsideram qualquer possibilidade
de assimilação da manifestação cultural do grupo como arte, ignorando, até mesmo, a distinção
entre escritor e eu-lírico, razão pela qual instituiu inquérito policial para investigação de seus
integrantes496.
Outro exemplo que diz respeito ao direito fundamental de liberdade de manifestação
em confronto ao crime de “apologia”, é o exemplo das manifestações popularmente conhecidas
como “Marchas da maconha”, que reinvidicam a descriminalização da erva cannabis sativa.
Tais manifestação cOstumavam ser reprimidas pelas polícias estaduais e consideradas como
apologia ao uso de drogas, motivo pelo qual, a Procuradoria-Geral da República ajuizou, em
julho de 2009, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 187, junto
ao Supremo Tribunal Federal Brasileiro para um posicionamento a respeito do tema.

495
LEITE, Fabiana. Justiça veta vídeo de RAP do grupo Facção Central. Jornal folha de São Paulo, 29 de junho
de 2000. Disponível em <<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u1598.shtml?>> Acessado em 06
de junho de 2018. A apologia é definida pelo Código Penal Brasileiro, em seu artigo 287, como “fazer,
publicamene, apologia de fato criminoso ou de autor de crime” e é punido com detenção, de três a seis meses, ou
multa.
496
O videoclipe censurado de “Isso aqui é uma guerra” encontra-se disponível no link
<<https://www.youtube.com/watch?v=dXbpOiEHQhA>> Acessado em 06 de junho de 2018. Em resposta à
censura sofrida, em 2001, o grupo de RAP lançou o álbum “A marcha fúnebre prossegue”, com a canção “A guerra
não vai acabar”, cujos versos iniciais retomam o assunto: “Aí promotor, o pesadelo voltou/ Censurou o clipe, mas
a guerra não acabou/ Ainda tem defunto a cada 13 minutos/ Na cidade entre as 15 mais violentas do mundo[...]/
Eu não preciso estimular o latrocínio/ Nem o sequestro relâmpago de um empresário rico/ O Brasil não dá escola,
mas dá metralhadora/ O Brasil não dá comida, mas põe crack na rua toda/ Não vem me colocar de bode expiatório”.
Ainda mais provocatório é o refrão, direcionado ao promotor responsável pela representação que causou a censura:
“Pode me censurar, me prender, me matar/ Não é assim, promotor, que a guerra vai acabar”.
170

A ação em questão, pugnava que a corte constitucional desse uma interpretação


conforme à Constituição ao artigo 287 do Código Penal (apologia de crime), “de forma a excluir
qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de
qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações em eventos
públicos”497.
Por unanimidade, em 15 de junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal julgou
procedente a ADPF, considerando a “Marcha da maconha” uma manifestação legítima,
sustentada a partir “de duas liberdades individuais revestidas de caráter fundamental: o direito
de reunião e o direito à livre expressão do pensamento”498.
Ainda em respeito à supressão da liberdade de manifestação no período democrático,
a realização das Olimpíadas mundiais no Brasil trouxe à tona memórias do período ditatorial
que se pensava ter sido deixado para trás. Os jogos olímpicos foram realizados durante o mês
de agosto de 2016 e, em tal período, a então presidente Dilma Roussef encontrava-se afastada
do cargo em decorrência da abertura do processo de impedimento (sob alegação de crimes de
responsabilidade fiscal). Desde o afastamento de Dilma Roussef, seu vice-presidente, Michel
Temer, passou a ocupar a cadeira da presidênica.
Nesse contexto de instabilidade política, durante a realização dos jogos olímpicos,
manifestantes que portavam cartazes com os dizeres “Fora, Temer” eram retirados e expulsos
à força pelos policiais presentes, por suposta ilegalidade de manifestações políticas no espaço
dos estádios esportivos499. A alegação do Comitê Olímpico Internacional (COI), em defesa da
vedação de manifestações políticas nos estádios, se baseava em uma duvidosa interpretação da
lei nº 13.248/2016, popularmente conhecida como “Lei das Olímpiadas”. Interpretação essa,
sem dúvidas, de baixa densidade constitucional.
A referida lei, em seu artigo 28 versava sobre condições para acesso e permanência
nos locais dos jogos, dentre as quais, destacam-se: i) não portar ou ostentar cartazes, bandeiras,
símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que
estimulem outras formas de discriminação (inciso IV) e ii) não utilizar bandeiras para outros
fins que não o da manifestação festiva e amigável (inciso X). Em seu parágrafo primeiro, é

497
Brasil, Supremo Tribunal Federal, Acórdão do julgamento da ADPF 187/09, p. 5. Disponível em
<<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=187&classe=ADPF&origem=AP&
recurso=0&tipoJulgamento=M>> Acessado em 06 de junho de 2018.
498
Idem, ibidem, p. 61.
499
G1, Rio 2016 diz que não vai tolerar cartazes de protestos políticos. Disponível em <<http://g1.globo.com/rio-
de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/08/rio-2016-diz-que-nao-vai-tolerar-cartazes-de-protestos-
politicos.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
171

“ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de


expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”.
O Comitê Olímpico Internacional, de alguma forma, compreendeu que – não obstante
a garantia contida no parágrafo primeiro supracitado – detinha o poder de vetar manifestações
políticas de qualquer teor mediante o uso da força. O porta-voz do COI, afirmou à época:
“manifestações políticas, religiosas e comerciais não autorizadas não são permitidas nas arenas. A
lei olímpica estabelece essas definições, esse conceito de ‘arena limpa’”500.
Em razão da violação da garantia constitucional da liberdade de expressão, o
Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP), perante a justiça
federal do Rio de Janeiro, em agosto de 2016, afirmando que a retirada de torcedores dos
estádios pelo simples fato de portarem cartazes contra o presidente em exercício configura uma
conduta “extremamente autoritária, ilegal e inconstitucional” 501 . Em assim sendo, o MPF
conseguiu uma medida liminar que passou a impedir a repressão às manifestações pacíficas de
cunho político nos estádios, bem como a impedir a retirada dos indivíduos que assim se
manifestassem502.
O caso acima destaca-se entre os demais exemplos de constrição do direito à livre
manifestação mencionados por dois motivos de forte valor simbólico: i) pela distância temporal
em relação à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil; ii) pela forma
em que a mencionada constrição foi afastada. Isto é, vinte e oito anos após a Constituição
Cidadã, a liberdade de expressão necessita de uma espécie de salvo conduto judicical (medida
liminar em ação civil pública) para evitar sua repressão.

4.4. OS VERSOS DESTA NARRATIVA: UMA CONSTRUÇÃO HERMENÊUTICA

A observação da manifestação da juridicidade do princípio da liberdade de expressão


acima feita, tem por pano de fundo a matriz de racionalidade exposta no capítulo inicial desse
trabalho. Já o modo em que essa observação foi realizada, tem sua sustentação na crítica lançada
quando da análise da evolução do movimento Direito e Literatura.

500
Idem, ibidem.
501
Ministério Público Federal, Ação civil pública: manifestação política Rio 2016. Disponível em
<<http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/acp-manifestacao-politica-rio-2016>> Acessado em 06
de junho de 2018. p. 7.
502
G1, Liminar veta repressão a protestos e expulsão de manifestantes na Rio 2016. Disponível em
<<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/08/protestos-nos-jogos-2016-nao-podem-
ser-reprimidos-decide-justica-federal.html>> Acessado em 06 de junho de 2018.
172

Dos aportes filosóficos da Crítica Hermenêutica do Direito, operamos com a


compreensão dos princípios constitucionais como responsáveis por espraiar a materialidade
constitucional por todo o ordenamento jurídico. A partir do paradigma fenomenológico-
hermenêutico, pela diferença ontológica e pelo círculo hermenêutico, garante-se a abertura da
referida dimensão interpretativa, na qual é possível investigar a evolução do conteúdo da
materialidade principiológica no horizonte da facticidade e historicidade da tradição
constitucional.
Isso significa dizer que o princípio da liberdade de expressão que subjaz às regras
constitucionais previstas no artigo 5º da CRFB pode ser compreendido a partir do horizonte da
temporalidade, com base na relação regra-princípio exposta no item 2.2. Ou, em termos
Heideggerianos, implica na necessidadede ser ter o tempo como o horizonte de toda e qualquer
compreensão do ser503 (de seu sentido).
No terceiro capítulo foram analisadas obras de relevância no interior do movimento
D&L, dentre as quais destacamos aqui James Boyd White, Ferrucio Pergolesi, François Ost,
Maria Paola Mittica e Calvo Gonzalez. Pergolesi, identificou ainda na década de 1920, que a
literatura é uma ferramenta a ser utilizada para conhecimento da história do direito; JB White,
por sua vez, vem chamando a atenção desde a década de 70 para as possibilidades críticas
fornecidas pela literatura em prol do enriquecimento da compreensão do mundo jurídico;
François Ost e Maria Paola Mittica, por seus respectivos turnos, impulsionam a teoria do direito
narrado, pela compreensão do tempo como instituição social e pela possibilidade de se
reconstruir o universo jurídico de determinada época, respectivamente; Calvo Gonzalez, por
fim, com sua teoria narrativista do direito, introduz o conceito de direito como “relato
civilizatório” perpassado por uma “coerência narrativa”, a qual fornece um critério de
verossimilitude sobre a construção dos sentidos do próprio direito em desenvolvimento.
A observação do desenrolar desse sentido, foi delineada por aquilo que denominamos
preliminarmente de “direito com literatura” (que se constitui em uma antropofagia, uma espécie
de deglutinação, das obras dos autores acima mencionados), isto é, do esforço de compreensão
do direito com o auxílio da literatura que, nos moldes da explicação realizada no item 3.4,
configura uma espécie de acareação entre o direito local e a literatura local, em busca da
identificação de convergências que possibilitem a construção de uma narrativa sobre a evolução
do direito (em um arco temporal específico).

503
Ver nota nº 15.
173

Essa identificação, por sua vez, é fruto de um processo dialético surgido do olhar
crítico lançado pelo mundo literário sobre o direito à sua época instituído, que permite, com
apoio nos ensinamentos de Maria Paola Mittica, recriar a realidade reinstituindo o direito504.
Buscamos ressaltar, assim, que os capítulos anteriores proporcionaram o ferramental necessário
à análise levada à cabo nos itens 4.2.2 e 4.3, nos quais seguimos o princípio da liberdade de
expressão como fio condutor da observação das mudanças no direito Brasileiro, de 1964 a 2016
– mudanças essas registradas pela literatura aqui esmiúçada.
Pôde ser observado, dessa forma, que a ditadura militar Brasileira passou por um
processo de endurescimento em seus quatro primeiros anos, tolhendo sistematicamente as
liberdades individuais, dentre as quais destacamos a possibilidade de reunião e associação em
público, bem como a liberdade de manifestação do pensamento. Foi implementada a censura
repressiva e a perseguição por motivos ideológicos e políticos, a extinção dos partidos políticos
e a repressão a sindicatos e associações estudantis. Não obstante, a partir de 1968, a legislação
oriunda do autoritarismo militar instituiu a censura prévia e tornou mais gravosa a lei de
segurança nacional (com instituição da pena de morte e banimento do território nacional).
Tanto esse “endurecimento” quanto o período que a ele se seguiu, puderam ser
observados através da literatura (com foco nas canções na ordem em que apareceram) e pôde
se perceber que os compositores do período utilizavam-se das palavras, da criatividade e das
figuras de linguagem como forma de resistência.
Em assim sendo, no item 4.2.2 fomos descrevendo o endurescimento jurídico do
regime ditatorial ao mesmo tempo em que indicávamos como isso era percebido pela literatura
da época. Com o desenvolver dessa acareação entre os mundos jurídico e literário, pudemos
perceber também determinadas características das respectivas linguagens. A título
exemplificativo, podemos afirmar que enquanto os ditadores utilizavam-se de conceitos como
“guerra subversiva ou psicológica”, “subversão” e “comunismo” para justificar os próximos
atos do regime, os compositores desenvolveram os conceitos de “noite”, “escuro”, “sol”,
“amanhã” e “amanhecer” para descrever o período então vivido e aquele que viria após o fim
do poder dos militares, bem como para reinvidicar os direitos que à época haviam sido
suprimidos.
Para ilustrar a afirmação acima, destacamos o preâmbulo do AI-1, ainda em 1964, que
justifica as suspensões de garantias constitucionais e o próprio golpe de Estado na necessidade
de se enfrentar o suposto “bolsão comunista” que “deliberadamente se dispunha a bolchevizar

504
MITTICA, Prima di tutto sono racconti, op. cit., p. 186.
174

o País”. Da outra parte, por exemplo, em 1965, Thiado de Mello publico o livro Faz escuro mas
eu canto: porque a manhã vai chegar, cuja poesia do mesmo nome foi musicada por Nara Leão
em 1966.
Conforme o regime militar foi se embrutecendo, foram surgindo canções com uma
dimensão mais coletiva, com uma espécie de caráter convocatório e com eu-lírico na primeira
pessoa do plural (a gente, nós) a falar em nome de seus pares. É o caso, por exemplo, das
canções Pra não dizer que não falei das flores (1968), Divino, maravilhoso (1968) e Cordão
(1971).
A partir da década de 1970, no entanto, quando a censura já atuava com consistência,
tanto preventiva quanto repressivamente, as canções começaram a denunciar as dificuldades de
manifestação do pensamento e de reunião, como em Apesar de você (censurada em 1970),
Pesadelo (1972), Comportamento geral (1973) e Apenas um rapaz latino-americano (1976).
Já no período da abertura democrática, a partir da revogação do AI-5 em outubro de 1978, nota-
se que os textos musicais começam a anunciar o que estava por vir, o fim do autoritarismo,
como nas canções O bêbado e a equilibrista (1979), A fábrica de sonhos (1981), Alô, liberdade
(1981), Vai passar (1984) e Que as crianças cantem livres (1986).
Ainda através desse processo de investigação na linguagem, a respeito do que se dizia
sobre o princípio da liberdade de expressão, foi possível perceber que após a promulgação da
Constituição de 1988, as canções que passaram a surgir – já imersas no direito fundamental à
livre manifestação do pensamento – através do movimento RAP, denuncia(va)m a desigualdade
estrutural da sociedade Brasileira.
Cabe ressaltar que a liberdade de expressão tornou-se a normalidade democrática e as
tentativas de constrição, as exceções (aqui mencionadas nos casos do grupo Facção central, da
marcha da maconha e dos protestos durante as Olímpiadas no Rio de Janeiro). Nota-se, dessa
forma, que o princípio da liberdade de expressão subjacente às regras constitucionais, traz em
si, em seu desenrolar historial nas últimas cinco décadas da sociedade Brasileira, uma dimensão
política de inserção dos cidadãos na participação da vida pública.
Na ditadura militar, a supressão da liberdade de expressão, gerou manifestações
(registrados na literatura analisada) que reinvindicavam sua volta; na democracia, é justamente
o princípio jurídico-constitucional da liberdade de expressão/manifestação que, como
fundamento do gênero musical RAP, serve de palco e microfone para reinvidicar atenção aos
problemas de determinada parcela da sociedade – majoritariamente, aquela parcela nas
condições de, conforme ensinado por Jessé Souza, subcidadania.
175

A mencionada dimensão política é o vetor de racionalidade a impulsionar o


desenvolvimento do princípio da liberdade de expressão no desenrolar historial do direito. Na
ditadura, essa dimensão era ilustrada pelas manifestações por voz ativa, por uma participação
ainda que mínima nos destinos do país – ante a insegurança jurídica e repressão vividas. Já na
democracia, essa dimensão política, conforme o estudo feito no item 4.3, toma forma a partir
das canções de RAP que reinvidicam condições mínimas de vida e denunciam mazelas
cotidianas das periferias Brasileiras, bem como das manifestações já engajadas politicamente
na tomada de posições quanto a aspectos da vida pública (como nos casos da marcha da
maconha e dos cartazes nos jogos olímpicos). É dizer: no período democrático é o uso dessa
“voz ativa” que sustenta as mencionadas reinvidicações.
Com isso, de 1964 a 2016, o que se tem é a continuidade de um discurso protestante,
aqui analisado através de músicas, uma vez que a liberdade cantada/reivindicada pela MPB
abriu caminho para outras manifestações e reivindicações, que, a partir do período democrático
são encontradas – no âmbito musical – majoritariamente no RAP. Isso quer dizer que o
afastamento do outrora mencionado “cálice de vinho tinto de sangue” (Chico Buarque e
Gilberto Gil, na canção Cálice), possibilitou o nascimento, fortalecimento e libertação da(s)
voz(es) da periferia com suas implacáveis críticas ao establishment Brasileiro, chamando
atenção à ausência de necessidades básicas para a sobrevivência humana.
A autenticidade desta interpretação reside na conexão realizada entre as manifestações
culturais pela música, em momentos de tensão da história Brasileira, e as respectivas
modificações ocorridas no direito. Conjugando, assim, os mundos do direito e da literatura.
Dessa conjugação foi possível perceber como as manifestações/alterações no mundo
político-jurídico (regime político, cerceamento de direitos, atos institucionais, leis de segurança
nacional, instituição da censura, etc) tiveram efeitos sobre a sociedade e como tudo foi
registrado pela literatura (aqui trabalhada em canções da MPB ao RAP, da ditadura militar à
democracia).
As alterações no mundo jurídico-político Brasileiro em abril de 1964, despertaram
formas de resistência que reinvidicavam as liberdades reprimidas, a saber, de livre manifestação
do pensamento, de associação e de convicção política e filosófica – tais liberdades, no mundo
jurídico, são conhecidas como direitos fundamentais de primeira dimensão505. Com o advento

505
Adotamos a expressão “dimensão” em referência aos direitos fundamentais em espécie, em concordância à
cátedra de Ingo Wolfgang Sarlet: “[...] aludiu-se, entre nós, de forma notadamente irônica, ao que se chama de
‘fantasia das chamadas gerações de direitos’, que, além da imprecisão terminológica já consignada, conduz ao
entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, não se encontrando
em permanente processo de expansão, acumulação e fortalecimento. Ressalte-se, todavia, que a discordância
176

das transformações buscadas ao longo de duas décadas, iniciava-se uma nova era no Brasil,
pelo advento da Constituição Cidadã de 1988.
No entanto, essa “nova era” é, ela mesma, uma nova alteração no mundo jurídico-
político e trouxe consigo também novas manifestações/reações/consequências na sociedade.
Dentre todas, foi destacado o surgimento do RAP que, fazendo as vezes da MPB na época da
ditadura, reinvidica direitos – que agora passam a ser, por exemplo, direito à alimentação,
moradia, saúde, ensino e saneamento básico – que compreendem direitos fundamentais de
segunda dimensão, conhecidos como direitos sociais506.
O que procuramos demonstrar, aqui, é que a repressão durante o regime militar
despertou uma resistência na sociedade que, com as consequentes reinvidicações conquistou
seu “novo constituir”, seu “amanhecer”, o qual, por sua vez, abriu caminho para o surgimento
do RAP (que nasce já atrelado ao direito fundamental à liberdade de expressão), o qual traz um
outro discurso, também reinvidicativo, mas agora por direitos fundamentais de segunda
dimensão.
Posto dessa forma, parece corretor afirmar que a sociedade Brasileira, ao menos no
que tange aos discursos reinvidicativos por direitos fundamentais, traçou um caminho que
demonstra o desenrolar de uma cadeia de eventos bem delineados e que dizem respeito à
(re)construção da história de seu direito, de seu “relato civilizatório”, conforme ensina Calvo
Gonzalez.
Ou, para utilizar da expressão de Dworkin no tocante à jurisprudência, tais eventos
fazem parte de um “romance em cadeia” e representam alguns dos capítulos do “relato
civiliatório” Brasileiro. Assim, não parece desrazoável afirmar que, no período analisado
(1964-2016), foi possível notar uma evolução no discurso reinvidicativo por direitos
fundamentais.
O esforço teórico-reconstrutivo aqui realizado, de escutar a fala da linguagem através
da proposta do direito com literatura, é que fundamenta essa análise e que permitiu a afirmação

reside essencialmente na esfera terminológica, havendo, em princípio, consenso no que diz com o conteúdo das
respectivas dimensões e ‘gerações’ de direito”. Cfr: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos
Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ª edição. Porto Alegre.
Livraria do Advogado. 2012. Formato ebook. p. 31.
506
No Brasil, o constituinte incluiu tanto os direitos fundamentais quanto os sociais sob o Tìtulo II da CRFB (Dos
direitos e garantias individuais), motivo pelo qual nos filiamos à doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet que afirma que
“direitos sociais são (na Constituição Federal de 1988) direitos fundamentais”. Cfr: SARLET, Ingo Wolfgang. Os
Direitos Fundamentais sociasi na Constituição Federal de 1988: Resistências à sua eficácia e efetividade. In:
VIEIRA, José Ribas (Organizador). 20 anos da Constituição Cidadã de 1988: efetivação ou impasse institucional?
Editora Forense. Rio de Janeiro. 2008. pp. 291-318, p. 293. Em território português, Jorge Reis Novais é quem
sustenta posição similar. Cfr: NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais
enquanto Direitos fundamentais. Wolters Kluwer Portugal/Coimbra Editora. Coimbra. 2010.
177

acima sobre evolução discursiva no tocante à direitos fundamentais. Essa afirmação, por sua
vez, é oriunda daquilo que no item 3.4 foi chamado de “revolvimento do chão linguístico do
objeto investigado” e empregado como tentativa de compreender o desenvolvimento histórico
do princípio constitucional da liberdade de expressão. A explic(it)ação do que foi a partir daí
compreendido, conforme feito nos parágrafos anteriores, configura justamente a narrativa sobre
o desenrolar historial do direito em movimento.
O mencionado escutar-a-fala-da-linguagem, por sua vez, é a experiência feita com a
linguagem, pela conjugação dos mundos em diálogo (direito e literatura locais), que possibilitou
o acesso hermenêutico à dimenção interpretativa do direito e pela fusão de horizontes a partir
dos cambiamentos no mundo jurídico com os registros no mundo literário – tema abordado no
item 2.2.
Nesse processo histórico-compreensivo é que foi identificado que o princípio da
liberdade de expressão, que subjaz as regras constitucionais que norteiam a inserção dos
cidadãos na vida pública (a ter voz ativa), possui uma dimensão política que põe em foco o
exercício da cidadania, colocando-a na posição de poder falar e fazer-se ver perante o Estado
(como nos casos apresentados no item 4.3, por exemplo). Essa dimensão política é que nos
parece razoável ter como um vetor de racionalidade a guiar o mencionado princípio em sua
marcha na história do direito Brasileiro.
178

5. CONCLUSÕES SOBRE A NOVA PERSPECTIVA NA RELAÇÃO DIREITO E


LITERATURA

A leitura realizada no capítulo anterior foi capaz de identificar no princípio


constitucional da liberdade de expressão uma dimensão política (caracterizada por colocar o
cidadão na posição de poder dizer algo perante o Estado), que foi observada em seu desenrolar
a partir do golpe de Estado de 1964, passando pela Constituição de 1988 e em confronto a
alguns dos fatos que marcaram o período democrático até o ano de 2016.
Esse poder-dizer-algo-perante-o-Estado, para além das possibilidades de se peticionar
ao poder público e de participar ativamente através das garantias constitucionais de acesso à
justiça, importa também na proteção da cidadania em suas manifestações políticas contrárias
ao status quo e às direções tomadas pelos Poderes do Estado. É dizer que a livre manifestação
do pensamento, ainda que crítica em relação à ordem social ou aos rumos e diretrizes traçados
pelo Estado, deve ser analisada a partir desse viés que vem impulsionando a marcha do princípio
da liberdade de expressão na tradição brasileira.
A mencionada dimensão política, representa uma das faces do desenvolvimento
histórico do princípio constitucional em voga e não se está a sustentar aqui uma espécie de
entificação do sentido do texto constitucional de 1988, nem mesmo uma tentativa de fixar a
priori, contrafactualmente, respostas a casos futuros que envolvam a liberdade de expressão.
Isto é, a investigação realizada foi o esforço empreendido na compreensão do
desenrolar historial de um princípio constitucional, que obteve como resultado mediato a
identificação de um vetor de racionalidade registrado nesse desenrolar. Um vetor de
racionalidade entre outros possíveis, salientamos.
Afinal, pelo paradigma filosófico que sustenta a nossa pesquisa, a Crítica
Hermenêutica do Direito, podemos afirmar que a definição de algo – por exemplo, do princípio
da liberdade de expressão – passa pela consciência de que a conjugação do verbo ser, na terceira
pessoa do singular do presente do indicativo (é), traz em si uma dimensão veritativa, que
transcende a superfície puramente enunciativa. De forma que a possibilidade de compreensão
dos fênomenos jurídicos, parafraseando Heidegger, depende unicamente de apreendê-los como
possibilidade507.
Isso significa que foi desvelada uma das faces, dentre aquelas possíveis de o serem, do
desenrolar da tradição constitucional a respeito do princípio da liberdade de expressão. Retira-

507
HEIDEGGER, Ser e tempo, op. cit., p. 78. Nesse trabalho, ver nota nº 62.
179

se, dessa afirmativa, o reconhecimento da impossibilidade de apreensão integral, totalizante e


apriorística, sobre o conteúdo substancial do mencionado princípio, isto é, de objetificá-lo de
maneira a deixá-lo suspenso na temporalidade. É esse o sentido da lição de Gadamer, exposta
no item 3.2, de que as possibilidadades da reflexão hermenêutica “se articulam em uma reflexão
formulada dentro da linguagem, que nunca começa do zero e não pode ser esgotada”508.
As conclusões que se seguem, são a respeito das possibilidades abertas pela “reflexão
formulada dentro da linguagem” e exposta no capítulo anterior. Buscamos levantar, doravante,
possíveis contribuições para as duas áreas, ou melhor, para os dois mundos, que confluíram na
análise realizada no arco temporal de cinco décadas do direito brasileiro. Isto é, possíveis
contribuições para novos resultados em Direito e Literatura, bem como para a concreção da
Crítica Hermenêutica do Dreito.

5.1 DA POSSIBILIDADE DE SE “CANTAR” AS TRANFORMAÇÕES DO DIREITO

Conforme demonstrado no terceiro capítulo, os estudos que relacionam direito e


literatura tiveram seu ponto de partida em 1908 e evoluíram sobremaneira entre as décadas de
1940 e 1970. A partir dos anos oitenta, conforme ensina Sansone, tais estudos tiveram sua
afirmação definitiva nas universidade americanas e européias 509 ou, ainda, nas palavras de
Karam Trindade e Roberta Gubert, esse foi o período em que ocorreu o “enraízamento
epistemológico” do movimento D&L510.
Nesses 110 anos de evolução, causado por aproximações e distanciamentos teóricos,
os estudos transitaram entre o foco das possíveis melhoras na atuação de advogados e
magistrados, como por exemplo nas obras dos norte americanos John Wigmore e Benjamin
Cardozo; pela relação entre literatura e conhecimento da história do direito (com Ferrucio
Pergolesi, em Itália); pelo vasto levantamento do tratamento dado pela literatura ao direito nas
obras de Edmund Fuller e Ephraim London (ambos também norte americanos); e pela obra The
Legal Imagination, de James Boyd White, que exerceu um papel fundamental na maturação
desse âmbito de investigação causando-lhe uma espécie de “viragem” epistemológica.
Isso porque os estudos estadunidenses vinham sendo marcados por uma abordagem
voltada à formação humanística dos juristas, motivo pelo qual The Legal Imagination pode ser
considerado como o auge desse tipo de abordagem. O livro em questão é organizado como um

508
GADAMER, Verdade e Método, op. cit., p. 570.
509
SANSONE, Diritto e letteratura, op. cit., p. 1-71.
510
TRINDADE e GUBERT, Direito e literatura: aproximações e perspectivas..., op. cit., p. 24.
180

tratado que busca o aperfeiçoamento profissional de juízes e advogados, chamando-lhes a


atenção para as diferentes linguagens (do direito e da literatura) e provocando-os a descobrir e
exercitar novas formas de expressão. E isso, como salientou Maria Paola Mittica, configurou
uma renovação do discurso jurídico e político aproximando-o da realidade511.
As obras de Wigmore, Cardozo, Fuller e London contém uma lista sugestiva de livros
capazes de auxiliar o leitor em estudos futuros, o que corrobora o caráter de instrumentalização
da literatura para utilização no direito – ideia que norteou as primeiras obras surgidas, com
exceção de The Legal Imagination que, embora também contenha uma lista de sugestões,
configurou, para além desse uso instrumental da literatura, um curso de leitura e escrita voltado
ao engrandescimento do poder de reflexão, através da formação cívica e jurídica apoiada nos
benefícios da imersão no mundo literário.
A partir de então, surgiram obras que se destacaram tanto pela atenção aos aspectos
epistemológicos quanto pelas leituras originárias, inovadoras, realizadas com apoio da
literatura, cujos resultados configuram contribuições indispensáveis à ciência jurídica.
Embora o tema tenha sido abordado no item 3.2, é indispensável mencionar, a título
exemplificativo, Richard Posner como representante da referida “atenção aos aspectos
epistemológicos”, pois o autor mantém um distanciamento cético em relação ao movimento
D&L desde seu primeiro artigo sobre o tema (Law and Literature: a relation reargued, de
1986), tornando-se um de seus maiores críticos e, não paradoxalmente, um grande contribuidor
dos estudos na área.
No que toca às contribuições inovadoras (que, por óbvio, não excluem os necessários
cuidados epistemológicos), a partir do relacionamento entre direito e literatura, gostaríamos de
destacar, dentre todas, as obras de François Ost. Isso porque, em Le Tempos du Droit o autor
belga introduziu, partindo de provocações lançadas com base na literatura, o conceito de tempo
como “instituição social” portadora dos sentidos do direito da comunidade (política)
transtemporal.
Essa noção de tempo, dividido em categorias normativas, está presente como pano de
fundo de sua obra Raconter la Loi: Aux Sources de L’imaginaire Juridique, na qual o jusfilósofo
desenvolve sua teoria do direito narrado ao reconstruir, através de uma investigação literária,
temas como o surgimento do direito como instituição que prevalece sobre a vingança, o
aparecimento da consciência enquanto figura de interesse do direito e o surgimento dos direitos
subjetivos, por exemplo.

511
MITTICA, Cosa accade, op. cit., pp. 4-5.
181

Essas são, essencialmente, as duas correntes que dominam os resultados do movimento


D&L confluindo as “vertentes” alhures mencionadas como direito na, da e direito como
literatura. Isto é, o modo de conjugação entre direito e literatura vem se dando através das
vertentes “na” e “como” e os respectivos resultados flutuam entre aqueles acima mencionados:
ou importam em uma espécie de “humanização” dos operadores do direito (pelo
engrandencimento da retórica e pelo confronto com situações diversas proporcionadas pela
literatura512) ou resultam em uma explicação a respeito de determinados institutos jurídicos.
No entanto, essa “conjugação” se dá, majoritariamente, através de explicações em
certo modo abastratas a respeito de institutos jurídicos variados, tendo por base a literatura
mundial considerada “clássica”. Assim sendo, do mesmo modo que as análises de Ost, Mittica
e Calvo Gonzalez nos serviram como alerta para a possibilidade de se narrar o desenvolvimento
do direito, elas nos servem também por fazer despertar a consciência de que é possível ir além
e realizar uma espécie de “encurtamento hermenêutico” 513 para observação de um direito
específico através de um tipo de literatura específica – deixando de lado, portanto, as narrativas
sobre institutos jurídicos em abstrato, em prol do foco no processo teórico-reconstrutivo da
factidade, da tradição jurídico-constitucional, de determinada sociedade, a partir da conjugação
de seu próprio direito com sua própria literatura.
É dizer, ao invés de se narrar o nascimento de institutos jurídicos variados ao longo da
história de desenvolvimento do direito em si, o que nos propomos a fazer com os mencionados
“ajustes” propostos no item 3.2 é reduzir o possível quadro de análise a um Direito específico
(entenda-se, ordenamento jurídico), num recorte temporal específico, a partir de um tipo
específico de literatura, com base na delimitação de uma matriz de racionalidade que estruture
a investigação e que sustente a articulação do ferramental necessário à coerência da descrição
dos resultados da pesquisa. Eis o sentido do mencionado “encurtamento hermenêutico” acima
mencionado.
Significa, portanto, a tentativa de renovar o discurso do movimento Direito e Literatura
aproximando-o à facticidade e à historicidade das tradições constitucionais. Isto é, importa em
transportá-lo à dimensão interpretativa do direito na busca pela narrativa do desenrolar historial
dos institutos jurídicos que dali emergem. Ou ainda: é a tentativa de se lançar ao caminho que
permita compreender as transformações do Direito, através de uma experiência com a
linguagem que surge no dialogar entre os mundos literário e jurídico.

512
Ressaltamos aquilo que Posner definiu como “aesthetic integrity”. Ver nota nº 218.
513
Sobre o encurtamento hermenêutico provocado por Heidegger na filosofia, remetemos o leitor ao item 2.1
desse trabalho. Em específico, ver a nota nº 31.
182

É importante ressaltar, ainda, que não se busca formular uma crítica ao movimento
D&L no sentido de superá-lo, pois equivocado ou insuficiente. De modo algum. Trata-se apenas
de um esforço em tomar parte no desenvolvimento desse próprio movimento, propondo uma
nova perspectiva de análise do frutífero relacionamento entre direito e literatura – os quais,
aqui, conforme defendido no terceiro capítulo, devem ser compreendidos como direito local e
literatura local.
E, conforme sustentado anteriormente, a inserção dos textos musicais no conceito de
literatura tem muito a acrescentar à imbricação D&L, motivo pelo qual a análise do capítulo 4
foi baseada, majoritariamente, na conjugação do direito posto com canções surgidas nos
períodos observados. Buscou-se, dessa forma, pôr em prática o que fora afirmado no item 3.3.
Em assim sendo, nos parece possível afirmar, em diálogo com Calvo Gonzalez e sua
Teoria Narrativista del Derecho, François Ost e sua teoria do direito narrado e Maria Paola
Mittica com sua obra Raccontando il Possibile (os quais, cada qual a seu modo, empreenderam
esforços em contar/narrar o Direito), que a nossa proposta visa a possibilidade de se permitir
“cantar” o desenvolvimento do direito através do que foi denominado como direito com
literatura. É nosso empenho para, através de um filosofar no direito, estimular as investigações
em D&L para uma possível vertente que se aproxime de uma espécie de realismo literário no
direito.

5.2 DO CONTRIBUTO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E À COMPREENSÃO


DA MATERIALIDADE PRINCIPIOLÓGICA CONSTITUCIONAL

O percurso realizado nessa experiência com a linguagem, proporcionada pelo diálogo


que nos dispusemos a “ouvir” entre os mundos jurídico e literário, parece possibilitar ainda
algumas considerações a respeito de um possível contributo à jurisdição constitucional. Para
tanto, faz-se necessário retomar o conceito de Direito sustentado pela Crítica Hermenêutica do
Direito. Pois bem.
Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas
instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram,
necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos
regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na
vontade individual do aplicador514.

514
STRECK, Verdade e consenso, op. cit., p, 238. Neste trabalho, nota nº 128.
183

Diferentemente da sucinta explicação sobre tal conceito a seu tempo realizada (no item
2.2), agora pretendemos inverter a ordem da frase em destaque com o intuito de encaminhar
nossas considerações para a função dos princípios jurídico-constitucionais no momento
decisório. Podemos dizer, portanto, que i) para escapar às arbitrariedades oriundas da vontade
individual do aplicador, ii) as questões relativas ao direito devem encontrar suas respostas,
necessariamente, nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes
que tenham DNA constitucional, iii) afinal, o direito é um conceito interpretativo emanado
pelas instituições jurídicas.
Nossas conclusões tem por foco o item ii acima destacado, em específico, no tocante
aos princípios constitucionais, pois, conforme a intrigante relação regra-princípio estruturada
pela CHD, toda regra (em sentido amplo) há de ter por trás de si um princípio instituidor que a
perpassa e que, ao fazê-lo, traz em si e consigo a materialidade da Constituição. Isso significa,
portanto, que as leis, os regulamentos e os precedentes terão sempre (em conformidade ao
paradigma fenomenológico-hermenêutico que funda a CHD) uma espécie de “lastro”
principiológico que os conecta diretamente à Constituição – é a esse “lastro” que Streck se
refere como “DNA constitucional”.
Essa relação regra-princípio, que sustenta a teoria da norma proposta pela Crítica
Hermenêutica do Direito, é que nos permite afirmar que normas são sempre o produto desse
espraiamento da base principiológica da Constituição pelo ordenamento jurídico como um todo.
Isto é, não há de haver regra sem princípio, do mesmo modo que não há de haver
princípio sem regra. Em assim sendo, o confronto entre as pré-compreensões do intérprete
(quanto ao sentido de e da Constituição, dos princípios e regras sub judice) com o horizonte da
facticidade e historicidade do Direito, no momento aplicativo, é a condição necessária ao des-
velamento da norma a ser aplicada a determinado caso. É dizer: a norma somente há de exsurgir
no momento da applicatio. Isto é, na fusão de horizontes perante determinado caso concreto.
Aqui nos parece clara a confluência entre o que foi proposto no capítulo 3, nos itens
3.3 e 3.4, e aplicado no capítulo 4, com a investigação a respeito do princípio da liberdade de
expressão na tradição constitucional brasileira, no período de 1964 a 2016. Isto porque, se a
tese central da Crítica Hermenêutica do Direito, em sua exploração hermenêutica da construção
do Direito, é a abertura de uma clareira que permita a busca do acontecer do Direito, o esforço
empreendido neste trabalho representa nossa tentativa de enveredar por um dos caminhos
abertos nessa clareira: a investigação da materialidade principiológico-constitucional.
A experiência realizada no liame entre mundos (direito e literatura), foi o modo
encontrado para tanto e que permitiu observar, ainda que apenas através de uma fenda
184

entreaberta na complexidão da dimensão interpretativa do direito, as transformações que


compõem a miscelânea da tradição constitucional brasileira no tocante à liberdade de
expressão515.
No entanto, ainda que esse observar-pela-fenda nos tenha permitido formular
considerações a respeito de apenas uma das possíveis faces do desenvolvimento do objeto
investigado, esse resultado já nos parece salutar, pois capaz de clarear caminhos na jurisdição
constitucional. Afinal, se cada regra tem por trás de si um princípio jurídico instituidor, que
transporta a materialidade constitucional em si; se o momento aplicativo do direito é decorrente
de um processo hermenêutico-compreensivo, a respeito da história institucional do direito
perante um caso concreto; logo, o caminho percorrido no capítulo quatro representa uma
contribuição a esse processo hermenêutico-compreensivo.
Isso porque, o resultado obtido não é um discurso contrafático pronto a ser aplicado a
qualquer caso que envolva a liberdade de expressão. Ele – o resultado – parece, entretanto,
transcender essa hipótese aplicativa, sendo sua relevância não a narrativa a respeito da evolução
do princípio da liberdade de expressão, mas sim o caminho apresentado como possibilitador da
construção de uma narrativa a respeito das transformações do direito. Paradoxalmente, o
resultado “narrativa” é, com efeito, apenas a demonstração da plausibilidade do “método”
hermenêutico-reconstrutivo aplicado a um princípio constitucional.
E isto representa, ainda que minimamente, um contributo à jurisdição constitucional.
Afinal, se a norma do caso exsurge de uma regra jurídica que é atravessada por um princípio
constitucional instituidor, o qual transporta o mundo prático para o momento aplicativo, logo,
toda decisão jurídica é um ato de jurisdição constitucional. E assim o sendo, o proposto nesse
trabalho – uma compreensão hermenêutica das transformações do direito – se insere no âmbito
propedêutico de aplicação do direito.

515
Em outro trabalho, também sustentado na matriz teórica aqui exposta e na imbricação direito e literatura,
tivemos a oportunidade de analisar um caso paradigmático decidido pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro
(STF). Dizemos paradigmático, pois demonstra o errôneo posicionamento – ainda que circunstancial – do STF no
tocante ao princípio constitucional da presunção de inocência. Tecemos nossas críticas lhanas ao equivocado
julgado que manipulou a amplitude do referido princípio, ao ignorar até mesmo os limites semânticos do texto
constitucional, em artigo chamado O palimpsesto da presunção de inocência no Supremo Tribunal Federal
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