A INTEPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

© JUAREZ FREITAS

1ª edição, 05.1995; 2ª edição, 08.1998; 3ª edição, 09.2002;

4ª edição, 08.2004.

ISBN 978-85-392-0019-1

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Composição
PC Editorial Ltda.

Capa: Vânia Lúcia Amato

Arte: PC Editorial Ltda.

Impresso no Brasil Para

Printed in Brazil Márcia e
03.2010 Thomas
 SUMÁRIO

PREFÁCIO (3ª edição) PAULO BONAVIDES . 11

PREFÁCIO (1ª edição) EROS ROBERTO GRAU . 13

NOTA DO AUTOR À 5ª EDIÇÃO . 19

INTRODUÇÃO . 21

CAPÍTULO 1 - O SISTEMA JURÍDICO COMO REDE HIERARQUIZADA

DE PRiNCÍPIOS, REGRAS E VALORES
1.1 Esclarecimentos preliminares........ 27
1.2 A evolução do conceito de "sistema" 36
1.3 O sistema jurídico pensado como aberto e ordenável 50
1.4 Vantagens e insuficiências da conceituação de ordem axiológica ou
teleológica de princípios jurídicos gerais 55
1.5 Reconceituando o sistema jurídico 56
1.6 Princípios fundamentais, normas estritas (ou regras) e valores. Distinção
e vantagens do conceito proposto de "sistema jurídico" 58

CAPÍTULO 2 - A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA:

OU A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA É SISTEMÁTICA
OU NÃO É INTERPRETAÇÃO

2.1 Revendo a tarefa da interpretação jurídica ............................................... 65

2.2 Interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro: qualquer exegese
comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito 73
2.3 A interpretação tópico-sistemática como hierarquizadora e finalística em
face da natureza do ordenamento jurídico ..:............................................ 77
2.4 A interpretação literal como apenas uma fase da exegese tópico-siste-
mática ........................................................................................................ 81
2.5 Reconceituando a interpretação sistemática do Direito ........................... 82

CAPÍTULO 3 - CONCEITO, CLASSIFICAÇÃO E OS CRITÉRIOS

SISTEMÁTICOS PARA RESOLVER ANTINOMIAS JURÍDICAS
3.1 Para além da visão de antinomias entendidas apenas como conflitos entre
regras ........................................................................................................ 87
3.2 Todas as antinomias são de natureza axiológica ...................................... 90
8 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO SUMÁRIO 9

3.3 Reconceituando as antinomias jurídicas................................................... 94 CAPÍTULO 9 - ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO:

3.4 O caso exemplar das leis no tempo e a característica inegavelmente TODA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
jurídica dos critérios aptos a solver antinomias · 97 É INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
9.1 Ilustração prescritiva no Direito Constitucional....................................... 185
CAPÍTULO 4 - CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS 9.2 Preceitos para uma interpretação sistemática da Constituição
DE ANTINOMIAS JURÍDICAS 9.2.1 Primeiro Preceito: Numa adequada interpretação tópico-siste-
4.1 A relativização do critério cronológico 105 mática da Constituição os princípios fundamentais são a base e
o ápice do sistema 193
4.2 A relativização do critério de especialidade.............................................. 108
9.2.2 Segundo Preceito: As melhores interpretações são aquelas que
4.3 O peso decisivo do critério de hierarquização na antinomia entre os
sacrificam o mínimo para preservar o máximo de direitos fun-
critérios 111
damentais.................................................................................... 197
9.2.3 Terceiro Preceito: Toda exegese sistemática constitucional tem
CAPÍTULO 5 - O CONCEITO E A NATUREZA JURÍDICA o dever de garantir a maior tutela jurisdicional possíveL........... 199
DO PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA: 9.2.4 Quarto Preceito: Uma interpretação sistemática constitucional
INTERPRETAR É HIERARQUIZAR deve buscar a maior otimização possível do discurso normativo
5.1 A natureza de "metacritério" material-formal do princípio jurídico da relacionado aos obj etivos fundamentais da Carta...................... 200
hierarquização axiológica.......................................................................... 115 9.2.5 Quinto Preceito: Toda e qualquer exegese sistemática cons-
5.2 A universalidade do princípio e a teoria da norma geral exclusiva: sugestão titucional deve ser articulada a partir de uma fundamentação
de abordagem das lacunas como antinomias entre norma geral exclusiva (hierarquização) racional, objetiva e impessoal das premissas
eleitas.. 202
e norma geral inclusiva.............................................................................. 122
9.2.6 Sexto Preceito: Uma boa interpretação sistemática constitucio-
5.3 Hierarquização axiológica e concretização sistematizante....................... 126
nal é aquela que se sabe, desde sempre, coerente e aberta......... 204
9.2.7 Sétimo Preceito: As melhores interpretações constitucionais
CAPÍTULO 6 - O PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA sempre procuram zelar pela soberania da vitalidade do siste-
E A SUA RELAÇÃO COM A TEMÁTICA DA JUSTIÇA ma, sem desprezar o texto, mas indo além dele, como requer o
6.1 A interpretação sistemática em face das antinomias de avaliação............ 133 próprio texto constitucional 206
6.2 A necessária hierarquização dos princípios relacionados à justiça........... 136 9.2.8 Oitavo Preceito: As melhores leituras sistemáticas da Cons-
6.3 O "metacritério" jurídico da hierarquização e os princípios e regras de tituição visualizam os direitos fundamentais como totalidade
indissociável e, nessa medida, procuram restringir ao máximo
prioridade: o objetivo jurídico e sistemático da máxima justiça possível 142
as suas eventuais limitações, emprestando-lhes, sem omissão,
a tutela reconhecedora da eficácia direta e imediata.................. 209
CAPÍTULO 7 - ESSENCIAL IDENTIDADE 9.2.9 Nono Preceito: Na perspectiva tópico-sistemática, uma lúcida
DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO E DA TÓPICA: interpretação das normas fundamentais sempre colima promo-
SOLUÇÕES NO ÂMBITO DO SISTEMA ver a preservação dos princípios constitucionais, ainda quando
em colisão................................................................................... 214
7.1 A sempre virtualmente possível formação do sistema jurídico como
9.2.10 Décimo Preceito: Uma pertinente e adequada interpretação
unidade dinâmica entre ordem empírica e reflexão.................................. 149
sistemática só declara a inconstitucionalidade quando a afronta
7.2 A identidade essencial do pensamento sistemático e da Tópica: crítica a
ao sistema revelar-se manifesta e insanável............................... 220
unilateralismos... 154 9.3 Premissas e preceitos formulados............................................................. 223
7.3 Paralelo entre a aludida identidade essencial e a convergência viável
entre a hermenêutica filosófica e a crítica das ideologias......................... 163 CAPÍTULO 10 - A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
E A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA ENTRE DIREITO PÚBLICO
CAPÍTULO 8 - CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES E DIREITO PRIVADO E OUTRAS ILUSTRAÇÕES
PARA UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
10.1 Dialética entre Direito público e Direito privado...................................... 227
8.1 Pressupostos gerais de uma adequada interpretação sistemática. 173 10.2 Aprofundando: tábua de diferenças e semelhanças entre princípios e
8.2 Diretrizes de interpretação tópico-sistemática 178 regras 228
10 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

10.3 Breve ilustração no Direito Administrativo . 239

10.4 Conclusões . 268

SÍNTESE CONCLUSIVA . 273

BIBLIOGRAFIA . 291
PREFÁCIO
(3ª edição)

o Professor JUAREZ FREITAS, do Rio Grande do Sul, ocupa lugar

distintíssimo na galeria dos mais conhecidos juristas do País, mercê dos
contributos que tem dado às letras jurídicas, já no campo do Direito Pú-
blico, já na esfera da docência universitária, onde é Mestre reverenciado,
admirado e amigo de seus discípulos.
Ao redor dele gravita uma plêiade de jovens estudiosos do Direito
Administrativo e do Direito Constitucional, sobre os quais exercita JUA-
REZ o poderoso influxo de seu magistério vazado nas mais qualificadas e
idôneas direções do pensamento juspublicístico contemporâneo.
Depois de Rosah Russomano que foi, pela elegância e profundeza
de seu saber jurídico, uma das grandes expressões do constitucionalismo
brasileiro, a nova vocação meridional da Ciência do Direito e também
das Constituições, que desponta na terra gaúcha, é indubitavelmente o
Professor JUAREZ FREITAS, Consultor da Comissão de Estudos Constitu-
. cionais da Ordem dos Advogados do Brasil e Coordenador da Pós-Gra-
duação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.
Seu livro acerca d'A Interpretação Sistemática do Direito é o mais
vasto e profundo e bem concatenado já produzido sobre o tema por ju-
ristas brasileiros, sendo, ao meu ver, extremamente valioso pelos subsí-
dios que ministra também à compreensão hermenêutica da Constituição.
E assim o é, em virtude de ultrapassar, de todo, a dicotomia prevalecente
na década de 60, no tempo da polêmica de Forsthoff com os juristas da
Tópica, encabeçados simbólica e efetivamente por Viehweg, cuja obra
Topik und Jurisprudenz constituía o centro de renovação metodológica
no campo jurídico da Alemanha.
De uma parte, a metodologia dos que professavam a Tópica, e dou-
tra, a reflexão de Canaris, em linha oposta, que sustentava a concepção
sistêmica do Direito. Tudo isto porém ficou para trás porque na herme-
nêutica jurídica contemporânea a ideia de sistema e de unidade da Cons-
tituição já não entra em conflito, senão que se compadece com todas as
variantes tópicas e axiológicas, cujo ponto de convergência se cifra, por
12 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
derradeiro, na construção principiológica e ao mesmo passo concretista
do pensamento constitucional de nosso tempo.
Ao fazer a harmonia dessas direções que dantes pareciam colidir,
A Interpretação Sistemática do Direito contribui de maneira significati-
va e relevante para formar novos conceitos hermenêuticos que afastam
e revogam posições tidas até então por inarredavelmente antagônicas e
inconciliáveis.
Humanista de peso, JUAREZ FREITAS conserva suas considerações ju-
rídicas sempre inclinadas aos valores da Ética, da Justiça, da Moral e da
dignidade da pessoa humana. Direito, aliás, que não serve a esses valo-
res nem se assenta sobre tais princípios, não tem a dimensão da verdade
e da razão qual a entendemos.
Fez-se JUAREZ por igual, desde muito, estrênuo defensor da máxima
de que nos ordenamentos constitucionais da liberdade a lei injusta não é
lei. E não o é por ofensa insanável aos cânones que fundamentam o Es-
tado de Direito. A saber, por lesão à lei das leis, que é a Constituição. Ju-
rista deste quilate, apresenta ele agora por Malheiros Editores a terceira
edição desta obra clássica, de rigor científico, intitulada A Interpretação
Sistemática do Direito.
PAULü BüNAVIDES
PREFÁCIO
(1ª edição)
o texto do professor JUAREZ FREITAS nos permite incluí-lo no restrito
círculo dos estudiosos brasileiros do Direito. Pratica-se entre nós, em es-
cala razoável, até, o estudo da lei - estudo que prescinde de qualquer re-
flexão a respeito do quanto o pensamento jurídico produziu nas últimas
décadas; para os que tratam da lei é suficiente o conhecimento do direito
posto pelo Estado e de meia dúzia de autores estrangeiros pré-anos 60.
Breve consulta à bibliografia indicada nas publicações é ilustrativa.
Não basta, contudo, o conhecimento da doutrina atual a respeito do
fenômeno jurídico. É necessária, indispensável, a reflexão - hábito que
a chamada "pós-modernidade" vem tomando pouco comum. Pensador,
na verdade, é quem pratica a reflexão.
O livro de JUAREZ FREITAS sobre a interpretação sistemática do direi-
to é produto de reflexão. Reflexão crítica e inovadora, de sorte tal que a
sua leitura deixa marcas no leitor. O tratamento conferido ao tema, na re-
conceituação de antinomiajurídica à luz de princípios harmonizadores e
na construção do princípio da hierarquização axiológica como operador
deôntico - no quê a busca de uma teoria da justiça (mas não exclusi-
vamente à moda de Rawls) -, parte da recolocação da noção de sistema
jurídico, que JUAREZ sustenta deva expressar um Direito visto, ensinado
e aplicado como o lídimo sistema normativo do Estado Democrático.
A interpretação do direito, assim, há de ser sistemática, na medida
em que apenas e tão somente ela nos permitirá a realização do sistema
normativo do Estado Democrático.
Daí por que o livro de JUAREZ FREITAS é um texto do nosso tempo,
tempo que reclama a substituição da racionalidade formal pela raciona-
lidade material do direito, o que impõe refletirmos a respeito da inter-
pretação. Obra dos deuses, o novo texto sobre hermenêutica e interpre-
tação do direito havia de vir de outro gaúcho.
O texto informa aquela substituição, significando o suficiente as
observações do autor de que o núcleo do sistema é constituído por va-
14 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
lores e princípios (por princípios, diria eu); de que a validade formal
de um sistema jurídico dado, ou sua conformidade com as regras de
conhecimento, funda-se, em última instância, sobre valores (sobre prin-
cípios, diria eu); de que um sistema somente será racional (e, portanto,
sistema), se afinado com a própria racionalidade aberta que o produz.
A descrição, com Canaris, do sistema jurídico como uma ordem
axiológica ou teleológica de princípios nos permite avançar, no sentido
de reconquista da racionalidade que o Direito perdeu quando, convertido
exclusivamente em poiesis, deixou de ser visualizado como praxis.
Tenho sustentado podermos, no plano do abstrato, falar em certos
modelos de direito. Assim, de uma parte dizemos que o modelo de di-
reito conhecido e praticado no tempo em que vivemos é o direito formal
(modelo de direito formal); desde outra perspectiva, diremos que esse
modelo, conhecido e praticado em nosso tempo, é o direito moderno.
Nesse sentido, ao referirmos o direito formal aludimos a um modo
de aplicação de determinado direito positivo (isto é, às normas cria-
das pelo juiz que interpreta/aplica esse direito positivo). Nenhum direi-
to positivo é, em si, Direito formal. Como, no entanto, as normas são
"criadas" pelo intérprete autêntico (Kelsen), este toma o direito positivo
(sistema de disposições, de enunciados; de textos) que interpreta/aplica
e, a partir dele, produz direito formal. "Forma!", portanto, no sentido sob
o qual o vocábulo integra a expressão "direito formal", é um modo de
aplicação do direito; "formal" refere, aqui, uma teoria formal da inter-
pretação jurídica.
Quando aludimos ao direito moderno estamos a referir um modelo
de direito positivo, direito posto pelo Estado. "Direito moderno", aqui,
conota o direito (positivo) produzido pelo chamado "Estado moderno",
datado da Revolução Francesa. Objeto a partir e em tomo do qual os
juristas desenvolvem uma atividade técnica - e não política _, 1 seu re-
quisito único de validade repousa na representação popular (expressão
da volonté générale) associada à maioria legislativa. Os pressupostos
que fundamentam a sua legitimidade encontram-se na separação dos
poderes e na vinculação do juiz à lei?
Os "juristas" da lei - esses técnicos - buscam a compreensão do
direito moderno mediante a prática de uma teoria formal da interpre-
1. Giovanni Tarel1o, Storia della Cultura Giuridica Moderna, Bolonha: 11 Mu-
lino, 1991, pp. 15-18.
2. Franz Wieacker, História do Direito Privado Moderno, trad. de A. M. Bote-
lho Hespanha, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980, pp. 646-647.
PREFÁCIO (1ª edição) 15
tação jurídica. São intérpretes da vontade do legislador. Daí podermos
descrevê-lo como um sistema de normas primárias e secundárias que
regula o uso daforça com pretensão de monopólio, objetivando excluir
o seu uso privado (da força) nas relações sociais.
Sucede que desde a metade do século :xx o direito - enquanto di-
reito formal e enquanto direito moderno - passa por um processo que se
pode referir como de desestruturação. Aqui, note-se bem, estamos dian-
te de uma dupla desestruturação do direito - isto é, do direito formal e
do direito moderno.
Pelo lado do direito formal, a produção de justiça formal, abso-
lutamente amoral, resulta socialmente insatisfatória. A legitimidade do
exercício da função jurisdicional é questionada. A sociedade clama por
ética.
Pelo lado do direito moderno, sua universalidade e sua publici-
dade são diluídas. O direito, em suas duas faces, se desmancha no ar,
encontrando-se na deterioração do Estado, produtor do direito moderno
e seu aplicador como direito formal, a causa primordial da sua dupla
desestruturação.
O projeto de (re)construção de um direito que se possa veJ; ensi-
nar e aplicar como o lídimo sistema normativo do Estado Democrático
supõe a substituição da racionalidade formal do direito por outra, que,
segundo penso, repousa sobre os princípios. Neles, o conteúdo das for-
mas jurídicas.
O desafio com o qual nosso tempo afronta o verdadeiro jurista -
mas que, é óbvio, não perturba os estudiosos da lei - é, precisamente,
o da composição de equilíbrio entre conteúdo e forma. E aqui se toma
indispensável a consciência de que o direito porta em si a ambiguidade,
a ambivalência do pharmakon. 3 A partir do rompimento daquele equilí-
brio, o remédio se transforma em veneno.
O instrumento para a construção daquela situação de equilíbrio é a
interpretação sistemática, fundada nos princípios. O livro de JUAREZ é
texto do nosso tempo, distinto de tantos, tantos, que pretendem apenas
a repetição da literatura jurídica europeia até os anos 60 e fogem aos
desafios e à reflexão. Por isso o livro de JUAREZ ficará.
Isso não significa esteja eu absolutamente de acordo com o autor,
até porque, modestamente, partilho com ele o privilégio da reflexão.
3. Eligio Resta, La Certezza e la Speranza, Bari: Laterza, 1992, pp. 29 e ss.
16 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Assim, recuso a alusão a "valores, princípios e normas". De uma
parte porque os valores, penso, estão contidos nos princípios - o que me
dá força para afirmar que a racionalidade material do direito há de ser
encontrada no seu interior (do direito), e não fora dele.
Quanto à alusão a normas, não a regras, poderíamos concordar em
que nossa divergência é fundamentalmente semântica.
É que visualizo a interpretação do direito como atividade voltada ao
discernimento de enunciados semânticos veiculados por preceitos (dis-
posições, textos) - o intérprete desvencilha a norma do seu invólucro
(o texto); neste sentido, o intérprete "produz a norma". Atividade que
se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas, a
interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos das dis-
posições, meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas
disposições. 4 Por isso as normas resultam da interpretação e podemos
dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem - elas dizem o que
os intérpretes dizem que elas dizem. s A interpretação é um processo in-
telectivo através do qual, partindo-se de fórmulas linguisticas contidas
nos atos normativos (os textos, enunciados, preceitos, disposições), al-
cançamos a determinação do seu conteúdo normativo. O produto do ato
de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto
(preceito, disposição). 6
Por isso cumpre distinguirmos o texto (enunciado, disposição) e
a norma. Texto e norma não se identificam: o texto da norma é o sinal
linguistico; a norma é o que se revela, designa. Daí podermos susten-
tar, segundo Zagrebelsky,7 que o ato normativo, como ponto de ex-
pressão final de um poder normativo, concretiza-se em uma disposição
(texto ou enunciado). A interpretação é meio de expressão dos conteú-
dos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as
normas contidas nas disposições. Do quê diremos ser a interpretação
uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enun-
ciados) em normas. As normas, portanto, resultam da interpretação; e
o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de in-
4. V., por todos, Gustavo Zagrebelsky, Manuale di Diritto Costituzionale (ris-
tampa aggiornata), Turim: UTET, 1990, pp. 68 e ss.
5. Cf. Alicia E. C. Ruiz e Carlos María Cárcova, "Derecho y transición de-
mocrática", in Enrique E. Marí e outros, Materiales para una Teoría Crítica deI
Derecho, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991, p. 320.
6. Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra:
Almedina, p. 208.
7. Manuale ... , pp. 68-69.
PREFÁCIO (1ª edição) 17
terpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das disposições
(textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto
de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais.
Diz Canotilh0 8 que toda norma é significativa, mas o significado não
constitui um dado prévio - é o resultado da tarefa interpretativa. Vale
dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. Repito: as
normas (enquanto disposições, enunciados, textos) nada dizem; somen-
te passam a dizer algo quando efetivamente convertidas em normas
(isto é, quando - através e mediante a interpretação/aplicação - são
transformadas em normas). Isso, contudo - note-se bem -, não signifi-
ca que o intérprete, literalmente, crie a norma; o intérprete a expressa.
O produto da interpretação é a norma expressa como tal. Interpretamos
textos, note-se bem; a norma, não a interpretamos - ela é o resultado,
não o objeto, da interpretação. Mas ela (a norma) preexiste, potencial-
mente, no invólucro do texto, invólucro do enunciado. Vale dizer: a
norma encontra-se, em estado de potência, involucrada no enunciado
(texto ou disposição); o intérprete a desnuda. Neste sentido - isto é, no
sentido de desvencilhamento da norma de seu invólucro; no sentido de
fazê-la brotar do texto, do enunciado - é que afirmo que o intérprete
"produz a mesma".
Para o alinhamento dos limites dessa "produção", leia-se o livro de
JUAREZ.Insisto, porém, em chamar de regra o que o autor designa por
norma.
Um segundo ponto que desejo assinalar é referido não a um desa-
cordo com o que sustenta o autor, mas à precisão de um aspecto que me
parece extremamente importante. É que a alusão, no texto, a uma melhor
significação possível entre as várias possíveis não significa adesão, dele,
à concepção dworkniana da one right answer. Essa melhor significação,
no texto de JUAREZ, é aquela alcançada no campo da prudência, no sen-
tido aristotélico, que a interpretação é.
Tudo isso significa que temos muito a compartilhar, no plano da
reflexão, com o autor, além da alegria pela publicação do livro, que com-
partilhamos com o bom Álvaro Malheiros.
EROS ROBERTO GRAU
8. Direito Constitucional, 5ª ed., p. 215.
 INTRODUÇÃO

A interpretação sistemática do Direito tem por objeto a rede de prin-

cípios, regras e valores na condição de totalidade dialética, maior do que
o conjunto das regras jurídicas. Não é um meio adicional de interpreta-
ção, pois, de certo modo, compreende todos os métodos exegéticos.
A interpretação sistemática não apenas sucede: antecipa e é contem-
porânea do sistema. Empresta-lhe sensibilidade, razão e energia. Nesses
moldes, a legalidade, por exemplo, faz as vezes de valioso princípio,
mas somente experimenta sentido na relação com os demais princípios.
Pensar o Direito como um composto de regras seria subestimar a com-
plexidade do fenômeno jurídico. Com efeito, força assumir a dimensão
hierarquizadora e sistematizante da hermenêutica.
Aqui se defende a relevância de reformular o conceito de sistema
jurídico, dado que o seu conteúdo, por força da natureza valorativa,
transcende o esparsamente positivado. Para fazê-lo, na 5ª edição, com
refinamentos de forma e conteúdo, novas reflexões sobre hermenêutica
jurídica aparecem, inclusive ao explicitar melhor a referência aos objeti-
vos fundamentais da República (CF, art. 3º). No plano geral do trabalho,
entretanto, prefere-se manter a estrutura-mestra.
Assim no capítulo 1 ("O Sistema Jurídico como Rede Hierarquiza-
da de Princípios, Regras e Valores") aponta-se a evolução do conceito
de sistema. Depois de esmiuçar as vantagens e insuficiências da concei-
tuação de ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais,
apresenta-se a reconceituação de sistema jurídico, seguida do reexame
das distinções entre princípios fundamentais, regras e valores.
Ato contínuo, no capítulo 2 ("A Interpretação Tópico-Sistemática:
ou a Interpretação Jurídica É Sistemática ou Não É Interpretação") formu-
lam-se o conceito e a tarefa da interpretação sistemática. Sublinham-se os
motivos pelos quais a exegese de determinada norma implica interpretar
o sistema inteiro. De fato, cada exegese comete, consciente ou incons-
cientemente, a aplicação da totalidade do Direito. No mesmo diapasão,
desenvolve-se a noção de interpretação sistemática como hierarquiza-
dora, tida a interpretação literal como mera fase da exegese sistemática.
22 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Por certo, em face do conceito de sistema, mostra-se indispensável
rever as antinomias. Assim, no capítulo 3 ("Conceito, Classificação e os
Critérios Sistemáticos para Resolver Antinomias Jurídicas") apontam-se
as razões pelas quais se deve ir além da visão de antinomias como con-
flitos entre regras. Na prática, as antinomias aparecem, invariavelmente,
possuidoras de natureza axiológica. A natureza jurídica dos critérios ap-
tos a solver antinomias merece realce com o propósito de efetuar abor-
dagem mais rica das contradições (nem sempre nocivas).
Para que tudo resulte cristalino, opta-se no capítulo 4 ("Configura-
ções Hipotéticas de Antinomias Jurídicas") por uma forma mais gráfica
de apresentação das antinomias. Tudo para permitir enxergar, com niti-
dez, que toda e qualquer antinomia entre regras oculta a antinomia entre
princípios. Antinomia que, ao fim e ao cabo, é resolvida pela hierarqui-
zação do princípio preponderante. Cuida-se, por exemplo, do elucida-
tivo conflito entre súmula e lei. Destaca-se, ainda, a relativização dos
critérios cronológico e de especialidade, no intuito de desvendar o peso
decisivo do critério da hierarquização no enfrentamento da antinomia
entre os critérios.
Justamente por isso, percebe-se a importância do conceito do prin-
cípio da hierarquização. Dessa maneira, no capítulo 5 ("O Conceito e
a Natureza Jurídica do Princípio da Hierarquização Axiológica: Inter-
pretar é Hierarquizar") expõe-se a natureza de "metacritério" do prin-
cípio jurídico da hierarquização axiológica. Destaca-se a sua possível
universalidade e sugere-se a abordagem das lacunas como antinomias
entre norma geral exclusiva e norma geral inclusiva. Mais do que nun-
ca, nessa hipótese, a hierarquização axiológica desponta na sua feição
sistematizante.
No caminho de acentuar que a interpretação do Direito tem de ser
tópico-sistemática (em sentido mais profundo), revela-se, no capítulo
6 ("O Princípio da Hierarquização Axiológica e a sua Relação com a
Temática da Justiça"), como opera a interpretação tópico-sistemática pe-
rante as antinomias de avaliação. Independentemente do julgamento da
teoria em apreço, desvela-se a indispensável hierarquização dos princí-
pios relacionados à justiça. Portanto, o "metacritério" da hierarquização
posiciona o intérprete em face dos objetivos fundamentais do sistema e,
nessa medida, determina o enfrentamento jurídico do inescapável tema
da justiça.
No capítulo 7 ("Essencial Identidade do Pensamento Sistemático
e da Tópica: Soluções no Âmbito do Sistema") dá-se passo expressivo,
ao afirmar identidade essencial do pensamento sistemático e da Tópi-
INTRODUÇÃO 23
ca, rejeitados os unilateralismos. Tão ou mais relevante: sugere-se pa-
ralelo fecundo e promissor entre a identidade essencial do pensamento
tópico-sistemático e a convergência plausível, com ajustes mútuos, entre
a hermenêutica filosófica e a crítica das ideologias. Dessa identidade
emergem preceitos para uma pertinente e boa interpretação jurídica.
Com efeito, insofismável que o intérprete sistemático precisa exercer
conscientemente o papel maiêutico de revelador crítico do Direito ob-
jetivo. Certo de que, na prática, a hermenêutica constitui a juridicidade,
nos limites do sistema.
Dada a natureza tópico-sistemática da interpretação jurídica, o exe-
geta precisa sobrepassar as antinomias, na acepção ampliada. Por igual,
cumpre empenhar-se para que o seu labor se faça harmônico com os
princípios e objetivos fundamentais. Com racionalidade intersubjetiva
não propriamente no sentido da teoria do discurso, mas da conciliação
dessa abordagem com ~ gadameriana.
Ainda: é dever seu encontrar o melhor e mais equilibrado trata-
mento para as controvérsias, no sentido de superá-las com inteligência,
sensibilidade superior e explicitação consistente. Por fim, precisa, per-
manentemente, plasmar o Direito como sistema em evolução contínua.
Seguro de que, quando mais complexo o sistema for, mais carece da
exegese solidária com as elevadas diretrizes.
No capítulo 8 ("Consolidando Pressupostos e Diretrizes para uma
Adequada Interpretação Sistemática do Direito") é efetuada breve pausa
para rever e consolidar os pressupostos gerais de uma adequada inter-
pretação sistemática. São propostas diretrizes, desdobradas nos capítulos
ilustrativos. Com efeito, no capítulo 9 ("Ilustração Prescritiva no Direito
Público: Toda Interpretação Sistemática É Interpretação Constitucional")
é oferecida ilustração prescritiva no Direito Constitucional. Com idênti-
co desiderato, no capítulo 10 ("A Interpretação Sistemática e a Superação
da Dicotomia Rígida entre Direito Público e Direito Privado e Outras
Ilustrações") preconiza-se a superação dialética do corte rígido entre
Direito Público e Direito Privado. Além de realizar breve ilustração do
pensamento tópico-sistemático nas relações de Direito Administrativo.
Essa obra assume, portanto, a meditação sobre relevantes questões
de hermenêutica jurídica, com o intuito de esclarecer os motivos pelos
quais a exegese, sobremodo a de princípios, comete a aplicação do sis-
tema em sua totalidade.
Para facilitar a exposição, deliberadamente são tomadas como
idênticas as expressões "hermenêutica" e "interpretação", a despeito das
24 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO INTRODUÇÃO 25

possíveis distinções. Faz-se tal opção para realçar o liame umbilical da erigido o ordenamento. Deve, sim, antecipar de maneira responsável os
teoria com o agir interpretativo. Assim, a hermenêutica é considerada efeitos interpretativos, notadamente ao dar ânimo eficacial aos princí-
como processo dialético de sistematização do Direito, para os objetivos pios da prevenção e da precaução, sem temores nem passivismos.
do livro. Todo o trabalho está, em suma, endereçado a sustentar a necessi-
De outra parte, quando se acentua que a interpretação do Direito dade da excelência no processo da formação do intérprete para que este
tem de ser sistemática (OU não será interpretação), pretende-se dizer que bem hierarquize sistematicamente. Afinal, interpretar é hierarquizar.
as fases exegéticas (autêntica, histórica, entre outras) são apenas mo-
mentos da atividade hermenêutica. Múltiplas se apresentam as maneiras
de sistematizar, mas interpretar o Direito é, sempre e sempre, realizar a
sistematização daquilo que aparece como fragmentário.
A propósito, nisso exatamente radica a necessidade inextirpável e
sem exceção de interpretar os textos normativos. Interpretar não é cum-
prir um programa prévio, acriticamente. O legislador estabelece o Di-
reito originário, sobremodo como referencial. Contudo, o Direito é o
resultado vitalizante da exegese, mormente em sua feição jurisdicional.
Em outras palavras, deve o intérprete perscrutar soluções e garimpar
riquezas, especialmente as ocultas nas entrelinhas. O texto exige ir além
do texto.
Frise-se, por ora, que qualquer norma singular, na abordagem aqui
desenvolvida, apenas se esclarece na totalidade das regras, dos valores
e, sobretudo, dos princípios e objetivos fundamentais. Isolada ou fora
dessa luz sistemática, por maior clareza que aparente ter o seu enuncia-
do, faz-se obscura e ininteligível. Nesse quadro, interpretar é tarefa que
só se realiza bem quando se conexionam e se relacionam bem as regras
com as finalidades superiores do sistema.
Acentue-se, nessa "Introdução", que se tem plena ciência de que
sem liberdade não há boa interpretação. Mas a liberdade não deve sig-
nificar, sem motivação consistente, a supressão das demais liberdades,
inclusive daqueles que veicularam um tipo de vontade normativa que
não pode ser, sem mais, desconsiderada.
Saliente-se, ainda, que a adequada interpretação sistemática do Di-
reito é chamada a aperfeiçoar tecnicamente o sistema dado, não somen-
te a sintonizar com ele. O papel aperfeiçoador do intérprete decorre da
exigência de preservação do Direito. Seria demasiado abstracionismo
imaginar que, mormente em países praguejados por leis pouco republi-
canas, possa deixar o exegeta de afastar regras viciadas e de combater
omissões injustificáveis.
Nessa linha, ao interpretar qualquer comando principiológico, o
intérprete sistemático haverá de auscultar os fins para os quais restou
 CAPÍTULO 1
O SISTEMA JURÍDICO
COMO REDE HIERARQUIZADA
DE PRINCÍPIOS, REGRAS E VALORES

1.1 Esclarecimentos preliminares. 1.2 A evolução do conceito de "siste-

ma". 1.3 O sistema jurídico pensado como aberto e ordenável. 1.4 Van-
tagens e insuficiências da conceituação de ordem axiológica ou teleoló-
gica de priru:ípiosjurídicos gerais. 1.5 Reconceituando o sistemajurídi-
co. 1.6 Princípios fundamentais, normas estritas (ou regras) e valores.
Distinção e vantagens do conceito proposto de "sistema jurídico ".

1.1 Esclarecimentos preliminares

O primeiro grande desafio hermenêutico consiste em desenvolver,
ainda que de maneira aproximada, um esclarecedor conceito de sistema
jurídico, à base do qual se tome plausível iluminar o processo de inter-
pretação normativa, desvendando-o. De plano, quadra advertir que não
se adota aquela noção de sistema segundo a qual as normas guardam
entre si uma relação apenas de forma, destituída de conteúdo. Parece
ser esta uma quimera teórica, preambularmente refutável, porque impos-
sível estabelecer completa disparidade entre ser e dever-ser e também
porque o fenômeno jurídico não se deixa espartilhar em tais lindes, mor-
mente à vista de novas e complexas realidades. 1

1. Sobre complexidade, V., entre outras, a contribuição de Ilya Prigogine e Gre-

goire Nicolis in Exploring Complexity, New York: W. H. Freeman, 1989. Já sobre
a noção de sistema criticada no pórtico desta obra, v. Norberto Bobbio in Teoria
do Ordenamento Jurídico, São Paulo/Brasília: PólisfUnB, 1989, p. 72, e, ainda,
Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, 2ª ed., Milano: Comunità, 1972, pp. 79
e ss. Endossa-se, no particular, a crítica que o jurista italiano faz a este conceito de
sistema jurídico. Do mesmo autor V., ainda, Contributi ad un Dizionario Giuridico,
Torino: G. Giappichelli Editore, 1994, pp. 206 e ss. Acerca da vinculação entre ser
e dever-ser ou Direito e Moral, v. Robert Alexy in Begriffund Geltung des Rechts,
2ª ed., München: Verlag Karl Alber Freiburg, 1994, especialmente ao destacar que
28 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
É de esclarecer, ainda em sede preliminar, que não se elabora uma
noção de sistema a partir da vetusta distinção entre ordenamentos ju-
rídicos e morais ou hiperdimensionando a dicotomia entre elementos
formais e materiais. É que a forte conexão entre o Direito posto e as exi-
gências de ordem material, especialmente as relacionadas aos objetivos
fundamentais da República, afigura-se como algo positivamente insu-
primível. Com efeito, improdutivo se revela qualquer critério de sub-
sunção mecânica assim como o dogma da automática vinculatividade
das normas jurídicas (princípios ou regras), pois uma abordagem estrita
esbarra nas necessárias considerações acerca da mínima legitimidade e
da nuclear correção valorativa do ordenamento.
Observa-se na vivência diuturna, sobremaneira no campo decisó-
rio, uma constante superação da vontade do legislador por aquela que se
poderia denominar vontade axiológica do sistema, reconhecida somente
após a interação dialética entre ordenamento e intérprete. Consubstan-
cia-se insofismável ultrapassagem do paradigma da subsunção formal,
adotado, com sérias e fundas implicações o modelo da ponderação ou da
axiológica hierarquização tópico-sistemática.
Convém, portanto, atentar para os riscos de visões demasiado abs-
tratas ou excessivamente formalistas do sistema jurídico, eis que empre-
endem um corte deformador entre sujeito e objeto, fazendo deste último
uma miragem e daquele uma máquina supostamente inteligente e pro-
gramada para subjugar o campo distintivo do intérprete.
Semelhante postura, contrária a múltiplos e significativos avanços
da contemporânea Teoria Geral do Direito, representa insinuante tenta-
ção para a qual toda advertência mostra-se útil, pois se trata de compor-
tamento filosófico que pretende empobrecer, reduzir ou esterilizar o que
é, por natureza, fecundo e complexo e - o que é mais grave - revela-se
indiferente ao requisito empírico de uma boa teoria, a qual deve ser,
descritiva e prescritivamente, testável por seus variados e - frequentes
vezes - insatisfatórios efeitos no mundo da vida. 2
a pretensão de correção (Anspruch auf Richtigkeit) é elemento inerente a todo e
qualquer sistema jurídico.
2. Certamente sem realizar cortes ~ígidos nem desconhecer, por exemplo, ha-
bermasianas distinções entre o sistema e o mundo da vida (Lebenswelt). O assunto
será retomado, mas convém destacar, desde logo, que a racionalidade jurídica, assim
como proposta, não precisa nem deve ser a racionalidade instrumental em sentido
estrito. Deve ser intersubjetiva ou dialética. Trata-se de "racionalidade feita de ra-
cionalidades", no dizer sugestivo de Boaventura de Sousa Santos (in Um Discurso
sobre as Ciências, Porto: Afrontamento, 2001, p. 57).
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 29
Recorde-se, no ponto, Karl Larenz, em trecho no qual assume apro-
priado tom crítico: "Muitos juristas continuam a identificar a ideia de
sistema conceptual-abstrato. Ainda hoje poucos juristas, mesmo aqueles
que são defensores de uma 'jurisprudência de valoração' , são capazes de
se libertar do fascínio exercido pelo sistema conceptual-abstrato".3 Está
3. Methodenlehre der Rechtswissenschaft, Berlin/Heidelberg: Springer Verlag,
1983. Para facilitar a leitura e a ulterior consulta, referir-se-á Metodologia da Ciência
do Direito, na trad. de José Lamego, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
Nesta obra, ao enfocar a Jurisprudenz como Ciência do Direito, Larenz intenta mos-
trar a possibilidade e os modos específicos do pensamento jurídico, na circunstância
de orientado a valores. Por "Ciência do Direito" concebe "ciência dogmática", inclu-
sive a apreciação judicial de casos, refletindo, metodologicamente, sobre sua própria
atividade e buscando determinar sua especialidade. Larenz começa - não por acaso
- com Savigny, pois considera sua teoria como a primeira após o ocaso do Direito
NaturaI (Moderno), a sustentar que a Ciência do Direito tem de ser, "a um só tempo,
integralmente histórica e filosófica" ou sistemática no sentido classificatório e não-
dedutivo do termo. Savignyé mostrado na sua evolução do legalismo positivista até
a ideia de que a fonte originária do Direito não seria a lei, mas a comum convicção
jurídica do povo. Com efeito, para Savigny as regras só poderiam ser compreendi-
das pela "intuição do instituto jurídico" (p. 13), embora não mostre como se efetua
o trânsito para a forma abstrata da regra jurídica, aí residindo a causa da reduzida
eficácia prática de sua metodologia. Esta obra é uma útil introdução ao pensamento
de Savigny e à compreensão do seu método histórico de interpretação das regras
jurídicas e, em especial, da ideia de sistema "científico" que serviria de base involun-
tária à jurisprudência dos conceitos. Larenz, a propósito, trata da jurisprudência dos
conceitos do século XIX, principiando pela "genealogia dos conceitos" de Puchta,
que conclamou a "ciência jurídica do seu tempo a tomar o caminho de um sistema
lógico no estilo de conceitos" (p. 21), construído segundo regras da lógica formal.
Puchta é, assim, um representante da interpretação como processo lógico-dedutivo,
preparando terreno ao formalismo. A seguir, expõe o método histórico-natural de
Ihering, da chamada "primeira fase", antes de romper com a jurisprudência dos
conceitos. A Ciência sistemática do Direito seria a química jurídica que procuraria
corpos simples e sublimaria conceitos. Nesta toada, expõe o positivismo legal racio-
nalista de Windscheid (para quem a interpretação deveria determinar o sentido que
o legislador ligou às palavras por ele utilizadas), a teoria obj etivista da interpretação
(tal como exposta nos anos de 1885 e 1886 por Binding, Wach e Kohler), a qual vê
a racionalidade da lei já não apenas em seu sentido formal, mas também material,
vistos os princípios jurídicos agora com o sentido próximo do aqui esposado - vale
dizer, como máximas ordenadoras, não apenas sínteses conceituais abstratas. Ainda,
expõe o positivismo e seus efeitos metodológicos. De Bierling apresenta a teoria
psicológica do Direito, com o seu conceito de norma, vista como expressão de que-
rer que outrem lhe dê execução. Com percuciência, mostra a passagem de Ihering a
uma jurisprudência pragmática, quando se efetuou o deslocamento de eixo do pro-
blema do legislador - como pessoa - para a sociedade como grandeza determinante
e, por assim dizer, como verdadeiro ator, embora ainda crente no monopólio estatal
em matéria de criação do Direito. Certo que Ihering representou o ponto de partida
para a "jurisprudência dos interesses" de Heck, Sto11, Mu11er-Erzbach, entre tantos
30 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
claro, pois, que não se deve afastar a preocupação conceitual ou analíti-
ca, porém importa evitar exacerbá-la de modo a desprezar as instigantes
situações concretas relacionadas ao universo da aplicação normativa.
outros. Como bem observa Larenz, para Heck o único mister da Ciência dogmática
do Direito seria "facilitar a missão do juiz, de sorte a que a investigação tanto da lei
como das relações da vida prepare a decisão objetivamente adequada" (p. 57). O ob-
jetivo final da atividade do julgador seria a satisfação das necessidades e apetências
da vida. Por "apetências" Heck designa interesses, sendo que a jurisprudência dos
interesses tenta não perder de vista tal meta última em toda operação, isto é, em toda
a formação dos conceitos. O interesse é tanto objeto como critério de valoração,
como, ainda, fator causal. Até hoje à jurisprudência dos interesses corresponde um
sucesso invulgar, embora em escala mais reduzida. Larenz bem relata a passagem
ao voluntarismo do Movimento do Direito Livre de Ehrlich, Kantorowicz, Fuchs,
Isay. Os adeptos da Escola reclamavam, com exagero, o reconhecimento de que toda
decisão judicial é uma atividade criadora, dirigida pelo conhecimento.
Examina, ainda, a Teoria Pura do Direito de Kelsen, chamando a atenção para
o ponto a partir do qual empreende Kelsen a fundamentação da autonomia meto-
dológica da Ciência do Direito, isto é, a distinção entre juízos de ser e de dever-ser,
querendo libertar a ciência jurídica de tudo o que lhe fosse estranho. A deficiência
de dialeticidade de Kelsen é apontada, com acuidade, por Larenz. Narra, igualmente
em linhas gerais, o abandono do positivismo na Filosofia do Direito da primeira
metade do século XX, inicialmente mostrando a teoria de Stammler, traçando logo a
seguir o perfil do neokantismo e da teoria dos valores, com Rickert, Lask, Radbruch
e Sauer, para os quais a interpretação da norma jurídica teria de se orientar pela ideia
de Direito como princípio regulador (fiéis a Kant, neste ponto).
Expõe, em largos traços, o idealismo objetivo de Binder, que concebia a ideia
de Direito como postulado ético e como princípio fundamental - sentido a priori
- do Direito Positivo ou histórico. Esta "ideia de Direito" aproxima-se do conceito
geral concreto hegeliano, o que induziu Binder a substituir "ideia" pelo termo "con-
ceito". Ataca a opinião "de que a atividade do juiz na aplicação do Direito se esgota
numa subsunção mecânica" (p. 125). O ter-se atribuído esta natureza à subsunção
seria falta de consciência de que a lógica formal não é o único método, havendo tam-
bém uma lógica teleológica. Assim, segundo Binder a relação entre prática judicial
e norma judicial teria de ser pensada como dialética, na mesma linha de Schõnfeld,
para quem a investigação do Direito é necessariamente tão livre quanto vinculada, o
que significa que a tensão entre o geral e o particular, no caso concreto, é impossível
de suprimir. Também analisa a teoria fenomenológica do Direito, a crítica de Welzel,
além de realizar um exame atento da discussão metodológica que envolve a evolu-
ção da jurisprudência dos interesses para a jurisprudência de valoração (a qual, em
parte, é defendida neste livro), lembrando que a passagem para uma "jurisprudência
de valoração" só cobra seu pleno sentido quando conexionada na maior parte dos
autores com o reconhecimento de valores ou critérios de valoração "supralegais" ou
pré-positivos, subjacentes às normas legais e para cuja interpretação e complemen-
tação seria legítimo lançar mão, pelo menos, sob determinadas condições. Esser e
Kriele dão mostras - reconhece Larenz - de ter compreendido tal exigência. Já no
enfrentamento da delicada e sutil problemática dos critérios de valorações suprale-
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 31
gais, Larenz não enfrenta de modo satisfatório uma questão central desta obra, ou
seja, as chamadas "antinomias de segundo grau". O texto, sem dúvida, cresce ao
tematizar a busca da solução justa do caso concreto, especialmente ao estudar Esser,
para quem toda interpretação requer intervenção espiritual ativa, sendo que o resul-
tado é sempre algo de novo em face do texto legal. Estuda, é certo, Viehweg e a Tó-
pica, assim como a questão do sistema, notadamente em Engisch, Coing e Pawloski,
sem se furtar do resgate da discussão jusfilosófica relativa à justiça, especialmente
dialogando e expondo o pensamento de Perelman, com o seu conceito de "auditório
universal" e sua distinção imprecisa entre "politicamente justo" e "filosoficamente
justo", mas não extrai as várias e significativas consequências da identidade essen-
cial- aqui sustentada - da Tópica e do pensamento sistemático.
Larenz, de outra parte, ocupa-se de uma caracterização geral da jurisprudência,
dos modos de manifestação do Direito, da linguagem dos enunciados normativos da
jurisprudência como Ciência "compreensiva" (em Gadamer), do pensamento orien-
tado a valores no âmbito da aplicação do Direito e no da Dogmática Jurídica, sendo
oportuno destacar o exame que procede das teses de Luhmann. Mostra, ademais,
o erro de Kirchmann ao condenar as regulações legais na sua pura positividade e,
acertadalnente, sustenta a metodologia como autorreflexão hermenêutica da juris-
prudência. Ao discorrer sobre a doutrina da proposição jurídica, recorda o tema das
proposições incompletas aclaratórias, relativas e remissivas. Trabalha, ainda, a te-
mática da confluência de várias proposições jurídicas de regulações e o esquema
lógico da aplicação da lei, assim como o caráter meramente limitado da subsunção
e a derivação de consequência jurídica por intermédio da conclusão. Revela lucidez
ao tratar da conformação e apreciação jurídica da situação de fato, já como acon-
tecimento e como enunciado, bem assim da seleção das proposições jurídicas, das
apreciações requeridas e da irredutível margem de livre apreciação por parte do juiz,
reelaborando a distinção entre "questões de fato" e "questões de direito".
No ponto em que guarda mais implicações e afinidades com o objeto central
deste nosso trabalho Larenz versa sobre a função da interpretação normativa, sendo
que seu escopo - sustenta - só poderia ser o sentido normativo do que é agora juridi-
camente determinante, quer dizer, o sentido normativo da lei, sendo antes o resultado
de um processo de pensamento em que todos os momentos estão englobados, vale
dizer, tanto os "subjetivos" como os "objetivos" precisam estar presentes e nunca
chegariam a seu termo. Depois expõe, um a um, os principais critérios de interpre-
tação (o sentido literal, o contextual, a análise da intenção reguladora, fins e ideias
normativas do legislador histórico, os critérios teleológico-objetivos, o preceito da
interpretação conforme a Constituição e - o que avulta em importância - a inter-
-relação dos critérios interpretativos). Sobre a interpretação da Constituição propõe
acertadamente que cada juiz constitucional se liberte, tanto quanto possível, de sua
orientação política subjetiva, de simpatias para com determinados grupos políticos
ou de antipatias para com outros, procurando, ponderadamente, uma resolução des-
preconceituosa e "racional", não sem deixar de ver o Direito como uma continuidade
da interpretação. Enfoca bem, por igual, o problema das lacunas, mostrando, ainda,
como funciona a redução teleológica quando da integração de lacunas ocultas, e
expõe casos de correção teleologicamente fundamentada do texto legal. Constata
lacunas e tenta integrá-las, contestando Zitelmann. Menciona a solução da colisão
de princípios - que adiante se examinará com detença - e normas mediante a pon-
deração de bens. Reconhece, meritoriamente, o desenvolvimento do Direito para
além do plano legal e em superação da lei de acordo com as necessidades do mundo
 ----,--------
32 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Em contrapartida, força admitir, sem abstração do mundo real, a
imprescindibilidade ineliminável de consistência lógica do ordenamento
jurídico, de sorte a dele se procurar ter uma percepção conceitual har-
mônica no que tange à concatenação de princípios, normas estritas (ou
regras) e valores, fazendo-os ora complementares, ora mútua e parcial-
mente excludentes. Todavia, em todos os casos, pondo-os em consonân-
cia com as mutações históricas, ao lado de atentar para os imperativos
(deontológicos e axiológicos, nada obstante as conhecidas distinções) de
coerência e de unidade, que demandam ver resolvidas nefastas contra-
dições, bem como o abandono de fronteiras insustentáveis entre juízos
analíticos e sintéticos.
Assim, resta afastada, por ingênua, qualquer visão acentuadamen-
te normativista, pois a Ciência do Direito requer também e necessaria-
mente uma fundamentação racional no espaço da decisão ou da escolha
valorativa (sem embargo da atenção a ser devotada à imperatividade).4
Resultam prejudicadas, via de consequência, para os desideratos da
jurídico, conquanto lembre os necessários e lógicos limites deste desenvolvimento.
Ao expor seu conceito de sistema jurídico, parte do reconhecimento da tendência do
pensamento abstrato para o esvaziamento do sentido. Assim, após pensar a distin-
ção de Hegel entre concreto e abstrato, verifica ou constata a relevância do "tipo"
na Ciência do Direito e dos tipos jurídico-estruturais para a formação de sistemas
(série de tipos). O sistema seria sempre um sistema aberto, no sentido de que são
possíveis tanto mutações na espécie de jogo concertado de princípios, do seu alcance
e limitação recíproca, como também a descoberta de novos princípios. Destarte, a
sentença seria, de certo modo, inacabada e inacabável, porque aberta, com a ressalva
de que nem a argumentação lógico-formal e conceitual nem a argumentação "tópi-
ca" conduzem à descoberta, por si sós, do sistema jurídico nas suas peculiaridades
caracterizadoras e distintivas. Por isso, impõe-se, inclusive à base do pensar de La-
renz, cogitar da descoberta e da concretização dos princípios jurídicos, bem como
da formação de tipos e de conceitos determinados pela função, numa modalidade de
pensamento, a um só tempo, orientada a valores tópicos e dialeticamente apta a ser
sistemática. É o que se pretende ao formular o conceito de "sistema" a ser, em breve,
proposto neste capítulo.
4. Esta referência à palavra "escolha" não é gratuita: não se desconhece a dis-
tinção entre normas deontológicas e axiológicas, mas a escolha implica a superação
do devido, na busca do melhor. Há, aqui, uma consciente alusão à proaíresis aris-
totélica (Aristóteles in Ethica Nicomachea, Oxford: Oxford Classical Texts, 1988,
pp. 1.111b-1.115a), que, conectada à "prudência" (phrónesis), sempre "se meut
dans le domaine du contingent" (Pierre Aubenque in La Prudence chez Aristote,
Paris: Presses Universitaires de France, 1976, p. 65; sobre aproaíresis aristotélica v.,
também, René Antoine Gauthier e Jean Yves Jolif in L 'Éthique a Nicomaque - In-
troduction, Traduction et Commentaire, LouvainlParis: Publications Universitaires/
Béatrice-Nauwelaerts, 1970, pp. 189-206). Como sublinha C. Perelman, "c'est dans
un tel ensemble, parmi les theses admises par son auditoire, que l'orateur qui argu-
t tes que postulam sistemas fechados.
o SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 33
abordagem eleita, aquelas posições consoante as quais se deveria pensar
o sistema sob o enfoque de que as normas jurídicas seriam deriváveis
unicamente de postulados gerais - abordagem improcedente e desen-
contrada com os fatos. Neste passo adotam-se, sem reparos, as críticas
de Norberto Bobbio a semelhante acepção. 5 Com acuidade, entre nós,
Pontes de Miranda6 já alertava para os perigos da dedução, porquanto,
embora brilhantes na aparência, vários aforismos, preceitos e textos ju-
rídicos levam a deduções lógicas frisantemente imorais, donde se extrai
a falácia de intentar uma exegese ou compreensão exclusivamente de-
dutiva? ao lidar com princípios, regras e valores no mundo do Direito.
Pelo visto, resulta que não se deve pressupor um mundo jurídico
acabado fora do pensamento, tampouco pretender constituir ou formular
um conceito de sistema fechado à base de definições alheias ao mundo
dos valores materiais e históricos. O Direito Positivo é aberto, vale dizer,
a ideia de um suposto conjunto autossuficiente (sem variabilidade evo-
lutiva) de normas não apresenta a menor plausibilidade, seja no plano
teórico, seja no plano empírico. 8
Como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico
mostra-se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-se no intérprete, sen-
mente devra puiser ses prémisses: il devra inévitablement procéder à un choix" (in
L 'Empire Rhétorique, Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1997, p. 48).
5. Como assinala Norberto Bobbio, "ma il ragionamento deduttivo non esau-
risce tutto il discorso giuridico" (in Contributi... , ci1., p. 290).
6. No dizer de Pontes de Miranda, "não se há de exigir que o sistema jurídico
seja sistema lógico em que tudo resulte como consequência necessária e que a lógica
possa sempre levar à formulação de regras jurídicas por mera dedução, nem retire ao
juiz e até ao jurista a revelação de regras jurídicas, uma vez que não firam ao sistema
jurídico" (in Sistema de Ciência Positiva do Direito, 1. 11, Rio de Janeiro: Borsói,
1972, p. 248). Assinale-se o acerto de outra assertiva sua (desta feita in Comentários
à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 1. 111, São Paulo: Ed. RT, 1973,
p. 552): "Teremos o ensejo de ver que a subordinação é ao Direito, e não à lei, por
ser possível a lei contra o Direito. Aliás, já temos tratado largamente, desde 1922,
da insubsistência das leis intrinsecamente incompatíveis com princípios imanentes
à ordem jurídica. A formulação dos dois princípios - o da independência dos juízes
e o da subordinação dos juízes à lei - tem que ser o primeiro cuidado do legislador
constitucional, no tratar do Poder Judiciário".
7. Deve restar claro que não se descarta a dedução em lógica jurídica nem na
construção de um sistema merecedor do nome, razão pela qual acentuou-se a refu-
tação apenas ao exclusivismo de abordagens dedutivistas divorciadas da realidade.
8. Mais do que uma crítica à pretensão de teorias unificadas, nos moldes da
realizada por Laurence Tribe (in American Constitutional Law, 3ª ed., New York:
Foundation Press, 2000, p. 88), deve-se rejeitar a pretensão de teorias autossuficien-

34 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
do ele - o intérprete-positivador - quem, na multiplicidade cambiante e
enigmática da vida, outorga, por assim dizer, unidade ao ordenamento,
epistemológica e ontologicamente considerado.
Dessa maneira, para além da distinção entre "compreender" e
"explicar",9 imperioso tomar vívida, mais funda e, especialmente, práti-
ca a compreensão (necessariamente prescritiva) da totalidade (não-tota-
lizante) do Direito (mais do que das leis), sobretudo quando se assume
que o núcleo do sistema surge constituído de valores e de princípios
que transcendem o âmbito da lógica estrita, por ter o intérprete jurídi-
co, mesmo nos casos simples, que operar também com inferências não-
-dedutivas. 10
Segue daí que a adequação ao sistema acontece como atividade
marcada e predominantemente teleológica e de eleição crítica entre
critérios,ll inclusive ao se tratar da realização do diagnóstico e do en-
frentamento das incompatibilidades entre princípios e regras, já que se
é certo, v.g., que lei posterior - no geral das vezes - revoga a anterior,
quando com ela incompatível, não menos certo que tal incompatibili-
dade, por envolver aplicação de enunciados semânticos e teleológicos,
igualmente exige ser enfrentada à luz de imperativos mais altos a que as
normas presumidamente em colisão se destinam, a par da necessidade
de levar em conta as exigências prioritárias de harmonização dos prin-
cípios fundamentais.
Ao lado disso, urge sublinhar que não se esposa a concepção da Es-
cola Histórica, visão meramente indutivista, segundo a qual, classifica-
9. Acerca da superação dessa dicotomia metodológica entre "explicar" e "com-
preender", integrando tais atitudes numa concepção abrangente de leitura como re-
tomada do sentido, v. Paul Ricoeur in Interpretação e Ideologia, Rio de Janeiro:
Livraria Francisco Alves, p. 136. v., especialmente, Du Texte à I 'Action. Essais
d'Herméneutique, voI. 11, Paris: Seuil, 1986.
10. A respeito de lógica indutiva das ciências empíricas v. o provocante Newton
C. A. da Costa in Lógica Indutiva e Probabilidade, São Paulo: Hucitec/EDUSP,
1993, ressalvando o papel que a dedução e o raciocínio demonstrativo possuem nas
denominadas ciências empíricas e tendo presentes os paralogismos da vida práti-
ca. Assevera que tais ciências inexistiriam "se os cientistas procurassem empregar
unicamente formas válidas de inferência" (p. 22). É dizer, precisariam recorrer às
inferências não-dedutivas. A assertiva vale apenas em termos para o intérprete jurí-
dico. Embora, pois, a construção apresente dificuldades, estas não devem ser aqui
examinadas.
11. V. Valentin Petev, in "Quelle méthode?", Revue de la Recherche Juridi-
que, 1990, pp. 757-767; idem, "Une concepcion socio-axiologique du Droit", Revue
Française de la Théorie Juridique, 1989, pp. 69-72.
O SISTEMA mRíDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 35
toriamente, partir-se-ia do sistema, desde a norma menos complexa até
elaborar conceito amplo e generalíssimo, salvo se se tiver da indução um
sentido diferenciado que a aproxime da perspectiva tópico-sistemática
aqui abraçada. 12 A mesma observação serve para os representantes da
chamada teoria objetivista da interpretação, inarredáveis que se afigu-
ram os elementos subjetivos.1 3
É certo que a postura indutivista tem o mérito de realçar o papel
da experiência e dos fins objetivos na apreensão do fenômeno jurídico.
Contudo, peca por não ter suficientemente nítido que o raciocínio jurídi-
co apresenta fases múltiplas, indutivas e dedutivas. Todas comparecem
nas decisões judiciais, quase concomitantemente, como se a sentença
iniciasse de modo indutivo e, ao fim e ao cabo, terminasse de maneira
dedutiva. Assim, não pode haver vinculação pura, nem discricionarie-
dade completa, tampouco confiança cega no automatismo na aplicação
das normas jurídicas,14 sequer submissão passiva do intérprete à carga
genética do coletivo e datado legislador, já que o compromisso maior
12. V. Norberto Bobbio in Teoria... , cit., pp. 78-79, e in Contributi... , cit., pp.
291-293.
13. V., entre outros, Owen Fiss in "Objectivity and interpretation", Stanford
Law Review 34/739-763, 1982.
14. Richard Thaler e Cass Sunstein in Nudge, Rio de Janeiro, Campus, 2009,
com base em estudos psicológicos e de neurociência, descrevem dois tipos de ra-
ciocínio (o automático e o reflexivo) e esclarecem: "Uma maneira de pensar sobre
tudo isso é que o Sistema Automático é a sua reação instintiva, enquanto o Sistema
Reflexivo é seu pensamento consciente (...) muitas vezes cometemos erros porque
confiamos demais em nosso Sistema Automático" (p. 23). De outra parte, note-se
que para Hartmut Maurer (in Droit AdministratifAllemand, Paris: LGDJ, 1994) as
normas jurídicas (imperativas e redigidas, normalmente, de modo condicional) te-
riam dois elementos, vale dizer, as condições de aplicação (Tatbestand) e conse-
quênciajurídica (Rechtsfolge), sendo estas as fases de aplicação do Direito: pesquisa
e determinação da situação de fato, interpretação e determinação do conteúdo das
condições de fato, raciocínios por indução e determinação das consequências ju-
rídicas. Ora, o autor reconhece que tais fases estão ligadas entre si (pp. 124-125).
Por isso, preferível acentuar que a interpretação sistemática engloba reflexivamente
(para usar a noção aparentada com a de Sistema Reflexivo, nos moldes descritos por
Sunstein e Thaler) os quatro momentos. De passagem, mencione-se Klaus Günther
(in Der Sinn für Angemessenheit. Anwendungsdiskurse in Moral und Recht, Frank-
furt: Suhrkamp, 1988), que faz, a propósito de aplicação, uma distinção entre os
discursos de fundação e de aplicação, a qual não se adota, pois suscita dificuldades
hermenêuticas insuperáveis. Para um mapeamento de tais dificuldades, v. Alessan-
dro Pinzani in "Problemi di aplicazione nella teoria discorsiva della Morale e deI
Diritto", Ermeneutica e Applicazione, Annuario di Ermeneutica Giuridica, Padova:
CEDAM, 1996, p. 65.
 -.-----
36 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
encontra-se, aqui e hoje, no sistema e em seus apelos coercitivos de justa
e evolucionista consistência.
1.2 A evolução do conceito de "sistema"
Presentes tais esclarecimentos, e antes de oferecer nosso conceito
de "sistema jurídico" em harmonia com a racionalidade intersubjetiva,15
15. A propósito de uma visão ampliada da lógica jurídica e da categoria de
racionalidade intersubjetiva aplicada ao Direito, v. Juarez Freitas in A Substancial
Inconstitucionalidade da Lei Injusta, Petrópolis: Vozes/Edipucrs, 1989, pp. 29-34.
V., também, Jürgen Habermas in Der philosophische Diskurs der Moderne, Frank-
furt: Suhrkamp, 1985, especialmente o ensaio sobre razão comunicativa vs. razão
centrada no sujeito. Do mesmo autor, v. Theorie des Kommunikativen Handelns,
Frankfurt: Suhrkamp, 1987, e Faktizitiit und Geltung, Frankfurt: Suhrkamp, 1993,
devendo-se conferir, enfaticamente, a crítica procedimentalista feita ao formalismo
weberiano. Expondo a posição de Habermas, v. o apanhado de Sérgio Paulo Rouanet
(in As Razões do Iluminismo, São Paulo: Cia. das Letras, 1987, pp. 339-340), em tais
termos: "O modelo da relação sujeit%bjeto só permite pensar o aspecto cognitivo e
instrumental do processo comunicativo. Ora, todo ato comunicativo inclui dois ou-
tros aspectos: o normativo e o estético-expressivo. (oe.). A razão comunicativa adere
aos procedimentos pelos quais se debatem as pretensões de validade no campo da
verdade factual, da justiça normativa e da veracidade subjetiva. (oe.)".
Convém destacar, entretanto, que a ideia de racionalidade intersubjetiva não
encontra amparo e fundamentação apenas em Habermas. Trata-se de uma noção que,
por diferentes caminhos, fincou raízes em várias correntes de pensamento que, de
modo confluente, perceberam que nenhum pensamento se mostra possível sem uma
racionalidade mais abrangente que testemunhe a inderrogável presença dos outros
seres humanos. Na tradição hermenêutica, Hans-Georg Gadamer nunca se cansou
de repetir que, "graças à linguisticidade, toda interpretação contém uma possível
referência ao outro. Não existe fala que não envolva simultaneamente o que fala e
o seu interlocutor. E isso também vale para o processo hermenêutico" ("Dank der
Sprachlichkeit aller Auslegung ist gewiss in aller Auslegung der mõgliche Bezug auf
andere mit enthalten. Es kann kein Sprechen geben, das nicht den Sprechenden mit
dem Angesprochenen zusammenschliesst. Das gilt auch für den hermeneutischen
Vorgang" - in Wahrheit und Methode, Tübingen: J. C. B. Mohr, 1990, p. 401). Em
similar senda, neste aspecto, v. os trabalhos de Paul Ricoeur, entre os quais cum-
pre destacar Soi-Même Comme un Autre, Paris: Seuil, 1990. Também não se pode
esquecer que a crítica à razão solipsista e monológica está presente na tradição da
Filosofia da Linguagem quando, depois do giro pragmático, o Wittgenstein 11, por
assim dizer, sepultou a possibilidade de uma linguagem privada in Philosophical In-
vestigations, Oxford, Blackwell, 1999. Por fim, outro não é o ponto de vista daqueles
que realçam que "the general feature ofhuman life that I want to evoke is its funda-
mentally dialogical character. (oe.). The genesis ofthe human mind is in this sense not
'monological' , not something each accomplishes on his or her own, but dialogical",
como expressa Charles Taylor (in The Ethics ofAuthenticity, Cambridge: Harvard
University Press, 1999, p. 33).
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 37
brota do articulado uma tentativa de conciliação entre Dialética e Her-
menêutica. Impõe-se consignar, uma vez mais, que a noção procurada
contrasta com aquelas que não se mostram aptas a cumprir o papel pre-
cípuo de, na feliz dicção de Claus-Wilhelm Canaris, traduzir e realizar
a adequação valorativa (wertungsmiissige Folgerichtigkeit) e a unidade
interior da ordem jurídica (innere Einheit der Rechtsordnung).16
Portanto, quando se lê "racionalidade", em nossa abordagem, é de perceber
que não se fala em "racionalidade sistêmica", subjetiva e opressora, mas em "ra-
cionalidade comunicativa do sistema". Tal distinção - conquanto sutil - mostra-se
essencial para evitar mal-entendidos.
16. V. Claus-Wilhelm Canaris in Systemdenken und Systembegriffin der Juris-
prudenz, Berlin: Duncker & Humblot, 1983, p. 18. Para facilitar a consulta as pró-
ximas citações serão feitas com base na edição portuguesa: Pensamento Sistemático
e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, trad. de Menezes Cordeiro, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. Nesta obra principia por examinar a função
da ideia de sistema na Ciência do Direito, buscando clarificar o conceito geral ou
filosófico de sistema e a tarefa particular que ele pode desempenhar. Sustenta exis-
tirem duas características que emergiriam em todas as definições, quais sejam, a da
ordenação e a da unidade.
No que concerne à ordenação pretende expressar um estado de coisas intrín-
seco racionalmente apreensível, fundado na realidade, enquanto no concernente à
unidade permite reconduzir particularidades desconexas a "uns quantos princípios
fundamentais" (p. 13), devendo ser feita distinção, pois, entre dois prismas do sis-
tema - o "científico" e o "objetivo" -, sendo que a formação jurídica do sistema só
seria possível quando o seu objeto, o Direito, aparente tal "sistema objetivo", na
expressão eisleriana. Depois Canaris se indaga sobre o que se passa com a ordenação
interior e com a unidade de sentido do Direito, sustentando que adequação e unidade
pressupõem-se mutuamente, para asseverar que ambas são emanações e postulados
da própria ideia do Direito, dado que "a exigência de ordem resulta diretamente do
reconhecimento do postulado da justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente
de modo diferente, de acordo com a medida da sua diferença" (p. 15). Também a
unidade não é apenas um postulado lógico-jurídico, mas uma emanação do princípio
da igualdade e da tendência positiva generalizadora da justiça, "que exige a supera-
ção dos numerosos aspectos possivelmente relevantes no caso concreto, a favor de
poucos princípios, abstratos e gerais" (p. 20).
A ideia do sistema jurídico encontra fundamento, segundo Canaris, no prin-
cípio da justiça e das suas concretizações no princípio da igualdade e na tendência
para a generalização. Acentuando que o papel do conceito de sistema é o de traduzir
e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica, propõe que
sejam afastados todos os conceitos que não cumpram este papel. Aponta as limi-
tações do chamado "sistema externo", na terminologia de Heck, por não ser uma
ordenação internamente conectada, e deixa clara a necessidade de se superar esta
dicotomia com o sistema interno. Adequadamente considera impróprios os sistemas
de "puros" conceitos fundamentais como em Stammler, Kelsen ou N awiaski, que
buscam categorias puramente formais em toda ordem jurídica imaginável, enquanto,
no acertado entender de Canaris, a unidade valorativa é sempre de tipo material e
 ---............
38 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
historicamente determinada (como também se sustenta neste livro). Igualmente bem
critica o conceito de sistema lógico-formal, dominante na denominada "jurisprudên-
cia dos conceitos", a partir de um conceito de ciência elaborado segundo os ideais
positivistas ultrapassados neste aspecto, uma vez que "a unidade interna de sentido
do Direito, que opera para o erguer em sistema, não corresponde a uma derivação da
ideia de justiça de tipo lógico, mas antes de tipo valorativo ou axiológico" (p. 30).
Em termos, os valores escapam da lógica formal, embora não de outras modalidades
de lógica, segundo se cogita aqui. O próprio Canaris reconhece que há necessidade
de uma certa adequação lógico-formal, sob pena de não ser possível bem tratar os
temas das antinomias, somente que sustenta que tal não implica a unidade especifi-
camente jurídica de um ordenamento, dado seu caráter axiológico e teleológico. Dito
de outro modo, até para que se possa aspirar à cientificidade, é claro que deve haver
a busca de adequação dos raciocínios jurídicos, porém "os pensamentos jurídicos
verdadeiramente decisivos ocorrem fora do âmbito da lógica formal" (p. 32), de tal
sorte que a lógica somente assume o sentido de moldura, sendo que a "Hermenêutica
como doutrina do entendimento correto e os critérios para a objetivação dos valores
desempenham, aliás, em vez dele, o papel decisivo dentro do pensamento jurídico"
(p.33).
É por tal motivo que na subsunção somente a obtenção das premissas é deci-
siva; "a conclusão final surge, por assim dizer, de modo automático" (p. 33), meto-
dologicamente falando. O erro, se houver, repousará na escolha das premissas. De
outra parte, Canaris também refuta, com pertinência, o sistema axiomático-dedutivo
no sentido da logística, contrariando a opinião de Klug, até por serem inviáveis a
plenitude e a ausência de contradições, sobretudo entre valores e princípios, que não
se deixam evitar sem exceções, segundo Canaris (neste aspecto em ligeiro desalinho
com o que se propõe em nossa perspectiva, em que pese a haver acordo com a sua
crítica ao dogma da completude).
Não por acaso, tem o legislador utilizado "cláusulas gerais", a exigir adequada
valoração. Em tais cláusulas, mais evidentemente, "a concretização da valoração e a
formação das proposições jurídicas só podem operar perante o caso concreto ou em
face de grupos de casos considerados como típicos; semelhantes normas são, assim,
de antemão, de dogmatização inviável" (p. 44). Canaris vai ao ponto de considerar
inviável uma completude teleológica (que aqui denominamos de completabilidade,
a qual se sustenta, em nossa concepção, como possível).
De outra parte, como que do lado oposto, irrompe o conceito de sistema como
"conexão de problemas", na formatação de Max Salomon, que prefere reduzir o
objeto da Ciência do Direito tão só à formação do sistema dos problemas da legisla-
ção possível. Tem razão Canaris quando diz que o Direito "não é um somatório de
problemas, mas antes um somatório de solução de problemas" (p. 46). Ademais, um
sistema deste tipo seria uma contradição em si, por lhe faltarem unidade e conexão
interna. Aparentada com esta, existe a concepção de Fritz von Hippel como busca
da "conexão imanente de problemas" (p. 50), que. serviu de base às meditações de
Viehweg, sem oferecer "um projeto próprio de sistema" (p. 53), no sentido de cum-
prir a tarefa funcional que se exige deste. Outra concepção tida por Canaris como
inadequada é a do sistema como relações da vida e a sua ordem imanente. Sustenta,
acertadamente, que elas são o objeto do Direito. Assim, embora influenciem o sis-
tema, não se deve identificar esta ordem "com a conexão das normas jurídicas, pois
haveria aí um sociologismo alheio ao valor do Direito" (p. 55). Por último, refuta - e
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 39
Posto isto, neste paradigma renovado de racionalidade, no melhor
sentido dialógico do termo pós-newtoniano,1? emerge conceituação de
sistema que se mostra, a um só tempo, rigorosa e permeável, dado que,
diversamente do sustentado, v.g., pela Escola da Exegese,18 o sistema
jurídico não é, nem poderia ser, fechado. 19 Nunca foi uma superfície
bem - o conceito de Heck e da jurisprudência dos interesses de sistema de decisões
de conflitos, a partir da distinção já mencionada entre o sistema "interno" e o "exter-
no". Tudo visto, Canaris oferece bela contribuição para que se rume à elaboração do
conceito a ser aqui advogado de "sistema jurídico".
17. Sobre post-Newtonian legal paradigm, v. Laurence Tribe in "The curvature
of constitutional space: what lawyers can learn from Modem Physics", Harvard Law
Review 103/1-39. Observa, com lucidez: "Lawyers and judges have incorporated
post-Newtonian insights into some areas oflaw, but those insights still have a tenta-
tive foothold in the culture of accepted legal argument and analysis" (p. 23). Ainda:
"The paradigm-shift toward a mode of thought that stresses both the geometry of the
legallandscape and the int~!action between the legal observer and the phenomenon
observed thus has deep roots in existing practices and ways of thinking about law. It
also accounts for many of the most powerful and salutary insights of contemporary
legal analysis. We need not return to the more primitive and simplistic paradigm
in which the Universe is seen as an empty and apolitical space across whose vast
reaches legal actors hurl their thunderbolts offorce at distant and discrete objects".
18. Como bem assinala René David, nos diversos países da família romano-
germânica sabe-se que "the codes are only looked upon by jurists as a starting point,
not as the end" ("os códigos apenas representam, para os juristas, um ponto de parti-
da, não um resultado" - in Major Legal Systems in the Word Today, London: Stevens
& Sons, 1978, p. 118).
19. A origem da palavra "sistema" remonta aos estoicos. Há um conhecido
fragmento de Crisipo onde este se reporta ao todo do Universo como um sistema (v.
Stoicorum veterumfragmenta in ed. J. vonAmim, Leipzig, Teubner, 1903-1923, fr.
527). Sobre a ideia de sistema no estoicismo v., ainda, 1. Goldschmidt in Le Systeme
Stoicien et l'Idée du Temps, Paris: Librairie Philosophique 1. Vrin, 1953, pp. 60-67.
Todavia, útil registrar que passos iniciais no rumo do que se pode definir como uma
Teoria dos Sistemas foram dados por Ludwig von Bertalanffy (in Teoria Geral dos
Sistemas, Petrópolis: Vozes, 1973), que, de forma ambiciosa, buscou, ainda que sem
êxito pleno, "uma teoria não dos sistemas de um tipo mais ou menos especial mas
dos princípios universais aplicáveis aos sistemas em geral" (p. 55), já antecipando,
em certo sentido, a possibilidade de aplicação da teoria dos sistemas abertos aos
"sistemas materiais, psicológicos e sócio-culturais" (p. 50). Como para Bertalanffy
"(...) o problema fundamental hoje em dia é o da complexidade organizada" (p. 57),
o grande e principal propósito da Teoria Geral dos Sistemas seria o de promover
"integração nas várias ciências, naturais e sociais" (p. 62). Para os efeitos da pes-
quisa jurídica, o mérito de Bertalanffy está em haver dado impulso ao estudo das
características dos sistemas abertos. Entretanto, a partir dos trabalhos de Humberto
Maturana Romesín e Francisco J. Varela García (v. De Máquinas e Seres Vivos -
Autopoiese - A Organização do Vivo, Porto Alegre: Artes Médicas, 1997, e A Onto-
logia da Realidade, Belo Horizonte: UFMG, 1997) a Teoria dos Sistemas de Niklas
 ~
40 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
topológica de um só lado, à semelhança da famosa "garrafa de Klein".
E jamais o será, porque a validade do Direito como sistema - ou seja,
sua qualidade de ser obrigatório - não se explica, de maneira suficiente,
pela mera e simples referência a parâmetros formais.
Em outras palavras, a validade do sistema jurídico, ou a sua confor-
midade com eventuais regras de reconhecimento (Hart), funda-se, em
última instância, sobre valores. Inegável a concorrência de variados ele-
mentos axiológicos em todas as construções jurisprudenciais,2o justifi-
cada a multiplicidade como tendente ao reconhecimento do pluralismo,
inclusive teórico. 2I Sem maior dúvida, compreende-se o Direito, sob
certo aspecto, como interativo,22 pois sua cognição não comporta rígida
Luhmann (in Soziale Systeme - Grundrisse einer Allgemeinen Theorie, Frankfurt:
Suhrkamp, 1984) e de seus seguidores (v. Gunther Teubner in Recht ais autopoietis-
ches System, Frankfurt: Suhrkamp, 1989; Raffaele De Giorgi in Scienza dei Diritto e
Legittimazione, Lecce: Edizioni Pensa Multimedia, 1997, e in Direito, Democracia
e Risco, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998) encaminhou-se para uma
senda peculiar e distinta. Para um exame crítico do projeto de Luhmann V., entre
outros, Jürgen Habermas in Der philosophische Diskurs der Moderne, cit., 1988, pp.
426-445. Acerca das ideias de sistema e de suas aplicações ao pensamento jurídico
recomenda-se, ainda, a consulta a Mario G. Losano in Sistema e Struttura nel Dirit-
to, Torino: G. Giappichelli Editore, 1968, bem como a Archives de Philosophie du
Droit (Éditions Sirey), vol. 31, 1986, sob o título "Le systeme juridique".
20. V. Claus-WilheIm Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 22.
21. A propósito, sobre uma doutrina constitucional pluralista, v. Peter Hãberle
in "Jurisdição constitucional como força política", Justiça Constitucional, Belo Ho-
rizonte, Fórum, 2007, p. 65.
22. Ainda que em elaboração parcialmente distinta, v. Ronald Dworkin in Law s
Empire, Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 87: "Law is an interpretive
concept". Nesta obra, apesar de diferenças de argumentação em relação ao enfoque
aqui adotado, Dworkin propõe uma interpretação que mostre o interpretado em sua
melhor luz possível, sob a ótica da moral política. Seu objetivo foi o de defender uma
teoria particular sobre os fundamentos apropriados do Direito, concentrando-se na
decisão judicial. Destaca que a prática jurídica é argumentativa e entende precisar-
mos de uma teoria social como parte da doutrina jurídica. Examina casos famosos
em que constata a discordância sobre o sentido da lei, e não apenas sobre as ques-
tões de fato. Expõe as etapas da interpretação - pré-interpretativa, interpretativa e
pós-interpretativa -, preconizando equilíbrio entre a descrição pré-interpretativa de
uma prática social e a justificativa desta prática. Acredita, como nós, na "melhor"
interpretação, enxergando no voto de qualquer juiz, em si, uma peça de Filosofia do
Direito, de sorte que os juristas serão sempre filósofos, ainda que disso não tenham
consciência. Critica a interpretação econômica do Direito, o convencionalismo e o
pragmatismo jurídico (este por ser uma concepção cética que rejeita a existência de
pretensões genuínas e não-estratégicas). Propõe o Direito como integrity, expondo a
relação direta entre a integridade e autoridade moral do Direito, sendo que qualquer
concepção geral deveria guardar relações com setores da moral política. Ademais,
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 41
dicotomia entre sujeito e objeto. 23 Mais: a sua materialidade determina
a forma, prévia ou supervenientemente. E o sistema não se constrói do-
tado de estreitos e definitivos contornos, máxime porque o dogma da
completude não resiste à constatação de que as contradições e as lacunas
acompanham as normas, à feição de sombras irremovíveis.
Ora, assente que o sistema jurídico não apresenta fronteiras rígidas
entre o formal e o material, convém sublinhar que vários autores propi-
ciaram notáveis contribuições na senda da desmistificação estilística e
de fundo em matéria de conceito de Direito. Por estranho que pareça,
Hans Kelsen, em que pese adotar caminho po'sitivista incongruente, teve
o mérito de admitir que as normas jurídicas são molduras e que o intér-
prete é quem autenticamente delimita o conteúdo das mesmas. Mais:
a despeito de ter situado fora da ciência jurídica a decisão tomada por
considerações políticas,24 com acerto destacou a relativa indetermina-
ção, intencional ou não, do ato aplicativo do Direito, dado que até uma
uma concepção do Direito seria sempre uma interpretação sumária da prática jurídi-
ca na sua totalidade, Expõe, ainda, os modelos de comunidade - de fato, de regras e
de princípios -, criticando, ao mesmo tempo e de modo agudo, o passivismo e o ati-
vismo em matéria de interpretação judicial. Apenas em parte acolhe-se a observação
de que o Direito seria um conceito interpretativo, articulando-se uma fundamentação
distinta, como restará mais claro no capitulo seguinte.
23. Como salienta Karl-Otio Apel, "o observador que só descreve sem valo-
rar não pode, de modo algum, inserir-se cognitivamente na história" ("Der bloss
wertfrei beschreibenden Beobachter kann sich überhaupt nicht kognitiv in so etwas
wie Geschichte einschalten") (in Transformation der Philosophie, voI. I, Frankfurt:
Suhrkamp, 1989, p. 33). Saliente-se, de passagem, que o grande mérito de haver
aplicado criticamente a ideia de hermenêutica à autocompreensão das ciências do es-
pírito deve ser atribuído a Hans-Georg Gadamer. De acordo com Gadamer a preten-
são objetivista, que se encontra por trás da separação entre sujeito e objeto, constitui
uma deformação do problema hermenêutico original, que é o acordo dialógico com
os outros sobre a realidade do mundo exterior (in Die Universalitat des hermeneu-
tischen Problems. Hermeneutik 11, Tübingen: 1. C. B. Mohr, 1993, pp. 219-231).
24. Hans Kelsen in Reine Rechtslehre, Viena: Franz Deuticke Verlag, 1960.
Para facilitar, citar-se-á Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado, São
Paulo: Livraria Martins Fontes, 1985. Kelsen revela, de plano, que sua pretensão é
a de apresentar uma ciência jurídica, não uma política do Direito, almejando excluir
tudo o que não pertença ao seu objeto. Este é o princípio metodológico kelseniano
que implica apreender o objeto, apreendendo as normas "juridicamente", por assim
dizer, numa descrição alheia ao mundo dos valores, tidos como inexoravelmente
irracionais. Em outras palavras, acredita que o conhecimento de quem se ocupa do
Direito encontraria já, em seu específico material, uma autoexplicação jurídica que
tomaria a dianteira sobre as outras explicações desta fenomenologia. Tal conheci-
mento cingir-se-ia às normas possuidoras do caráter de atos jurídicos, dotadas de
sanção negativa, sendo esta a característica-mor das mesmas, concebido o Direito
 ~
42 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ordem rigorosamente minuciosa e detalhada, no campo das prescrições,
invariavelmente precisaria manter um número remanescente de determi-
como uma ordem normativa da conduta humana, distinta da Natur e da ciência da
Natureza, esta última supostamente operando com o datado princípio de causalidade.
Neste passo, sustenta que não seria do ser fático de um ato de vontade, porém
apenas de uma norma de dever-ser (Sol/en), que defluiria a validade da norma de
acordo com a qual o outro se deve conduzir em harmonia com o sentido do ato
de vontade. Distingue, ainda, vigência (que pertenceria à ordem do dever-ser) de
eficácia da norma (fato de ser efetivamente aplicada), sem necessária correspondên-
cia cronológica. Considera, conl efeito, que a conduta humana disciplinada por um
ordenamento normativo ou seria uma ação (determinada por este ordenamento), ou
sua omissão. Logo, uma norma não seria, em tal viés estruturalista, verdadeira ou
falsa, nem justa ou injusta, senão que apenas válida ou inválida. Os atos por meio dos
quais as normas jurídicas seriam produzidas, neste caso, mostrar-se-iam destituídos
de relevância sob a ótica do conhecimento jurídico, uma vez que determinados por
outras normas jurídicas.
A norma fundamental, garantidora do fundamento de validade destas normas,
não seria estatuída mediante um ato de vontade, porém pressuposta "juridicamente",
visto o Direito como ordem coativa de sanções imanentes e como consequência dos
pressupostos nele e por ele estabelecidos. Bem de ver o quanto Kelsen, metodolo-
gicamente, revela estar desinteressado com a questão das funções do Estado, sobre-
tudo as promocionais, forte na convicção equivocada de que a norma fundamental
representaria a base de uma ordem de coerção eficaz, independentemente de seu
conteúdo de justiça.
De outra parte, ao tratar da relação entre Recht und Moral, Kelsen define o
Direito como norma social, diferente da norma moral, por ser esta última de ordem
positiva, mas sem caráter coercitivo. Entende, por conseguinte, que uma distinção
entre Direito e Moral não poderia residir naquilo que as duas ordens sociais pres-
crevem ou proíbem, mas simplesmente no modo como o fazem. Assim, o Direito,
como norma social (objeto da específica e descritiva ciência jurídica), seria ordem
normativa a ligar à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, ao
passo que a Moral não estabeleceria sanções deste tipo, sequer levando em conta o
emprego da força física.
A marcante exigência estruturalista de seu método, ao impingir a separação
entre Direito e Moral, sublinhou que o Direito não seria necessariamente moral,
caindo num relativismo extremado. Aliás, embora admita valor caracterizado como
jurídico, a mesma postura metodológica o fez rejeitar a tese de que o Direito poderia
representar um "mínimo ético".
Ao versar sobre Recht und Wissenschaft diferencia proposições jurídicas, ou
seja,juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sen-
tido de uma ordem jurídica, advém certa consequência das normas, as quais seriam
mandamentos, permissões e atribuições de poder e de competência, emanados por
órgãos jurídicos. Não seriam, pois, enunciados. Nesse diapasão, diferencia a função
do conhecimento jurídico, que supõe conhecer "de fora" o Direito e descrevê-lo,
sem produzi-lo, a não ser num sentido gnosiológico kantiano. É dizer, a consciência
jurídica, como tal, nada prescreveria e os princípios lógicos poderiam incidir só in-
diretamente sobre as normas jurídicas.
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 43
Destarte, embora reconhecendo a genética ambivalência de Sol/en, diferencia,
rigidamente, o princípio da imputação (conexão entre o ilícito e a consequência do
ilícito, apresentando sua fórmula geral: "quando A é, B deve ser") em relação ao
princípio da causalidade, não obstante a analogia. Este último princípio seria tradu-
zido pela fórmula "se A é, B será", com ilimitadas séries causais. O dever-ser assu-
miria, pois, na proposição jurídica, um caráter meramente descritivo.
Distingue ciências sociais causais (tais como, supostamente, a Psicologia) das
normativas (tais como, não menos supostamente, o Direito), afirmando o caráter
hipotético das normas jurídicas, conquanto ressalvando as normas individuais. As-
sim, ao defender sua concepção do Direito como sistema de normas, querendo ver
o dever-ser na proposição jurídica designando mero significado de uma conexão
específica, demonstra uma tendência "não-ideológica" em sua teoria, sem elaborá-
la, no entanto, como uma crítica das ideologias, tal e qual se cogita, oportunamente,
empreender na Filosofia contemporânea.
Sob o prisma de uma suposta estática jurídica (Rechtsstatik), investiga as
sanções como atos de coerção que seriam estatuídos contra uma ação ou omissão
determinada pela ordem jurídica. Evidencia a crença de ter superado o dualismo
de Direito no sentido objetivo e subjetiyo, sustentando o conceito de pessoa como
personificação de um complexo de normas jurídicas, reduzindo o dever e o direito
subjetivo (em sentido técnico) à norma jurídica que, tão somente, ligaria uma sanção
a determinada conduta de um indivíduo, bem como ao tomar a execução de uma
sanção dependente de uma ação judicial a tal fim dirigida, vale dizer, reconduzindo o
Direito, em sentido subjetivo, ao Direito objetivo, numa proposta claramente restriti-
va do papel do cientista jurídico, assumida uma perspectiva organicista e objetivista,
segundo a qual este deveria ser o mais descritivo, colimando sobrepairar livre de
todo preconceito de valor ético-político.
A seguir, enfrentando o tema da dinâmica jurídica (Rechtsdynamic), aponta o
fundamento de validade de uma ordem normativa, designando-a de norma funda-
mental (die Grundnorm), a qual seria a fonte comum da validade de todas as normas
pertencentes à ordem normativa, constituindo a unidade de uma pluralidade, tendo,
como aludido, o caráter de pressuposta, isto é, não querida ou resultante de ato voli-
tivo, além do condão de oferecer unidade lógica à ordem jurídica. Salienta, aliás, que
a eficácia seria estabelecida na norma fundamental como pressuposto da validade,
algo que o levou a considerar que uma lei "inconstitucional" seria uma contradictio
in adjecto, assim como a asseverar que o princípio da legitimidade estaria como que
limitado pelo princípio da efetividade, já pondo a lume as enormes autolimitações
impostas pelo uso de sua metodologia.
Abordando o relacionamento conceitual entre Direito e Estado, propõe a su-
peração metodológico-crítica do dualismo Estado-Direito, reputando-o manipulação
impiedosa de uma das mais eficientes ideologias da legitimação. Coerente no seu
desiderato estruturalista, apresenta o Estado como o próprio Direito, personificação
que seria desta mesma ordem coercitiva. Compara este processo com o panteísmo
e discorda das tentativas de legitimação do Estado de Direito, considerando-as in-
frutíferas, eis que, na sua ótica, todo Estado seria um Estado de Direito, apenas por
configurar uma ordem jurídica, independentemente de qualquer juízo axiológico da
parte do cientista jurídico.
A propósito do Estado e do Direito Internacional sustenta ser impossível de-
cidir, cientificamente, por uma das concepções monistas neste campo, ou sej a, a
 ~
44 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ciência jurídica somente poderia verificar que um ou outro dos sistemas de referên-
cia teria que ser aceito à proporção em que se pretendesse definir a relação entre o
Direito Internacional e o Direito Estatal, não obstante admitir ideológico o próprio
conceito de soberania.
No derradeiro momento desta obra - e, certamente dos mais instigantes -, ao
enfocar a temática da interpretação jurídica, Kelsen preconiza uma interpretação
científica como pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas.
Diversamente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, não seria criação
jurídica. Rejeita o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, dado que,
a seu juízo, a interpretação jurídico-científica não poderia fazer outra coisa senão
desvendar as possíveis significações de uma norma jurídica, não podendo tomar
qualquer posição entre as possibilidades, por si mesmas, liberadas. De outra parte,
uma norma não admitiria uma só interpretação correta.
Eis, neste ponto, uma das suas mais influentes contribuições e, paradoxal-
mente, uma das mais sérias deficiências desta metodologia, especialmente quando
o intérprete ou o jurista se defrontam com a inescapável necessidade empírica de
hierarquizar decisões judiciais. Kelsen, ao diferenciar normas jurídicas e proposi-
ções jurídicas, propondo uma ciência jurídica normativa, embora não prescritiva,
apresenta-nos uma metodologia estrutural, pois quer descrever o "jurídico" especifi-
camente como tal, depurado das influências irracionais das ideologias e procurando
explicar o Direito segundo um paradigma clássico de ciência, na busca de suas leis
próprias, relações necessárias, análogas às da Natureza, em que pese às especifici-
dades respectivas.
Não é gratuita, contudo, a afirmação da analogia entre o princípio da imputa-
ção e o princípio da causalidade. Com efeito, trabalha com o princípio pensamental
da imputação, querendo compatibilizá-lo, de uma certa maneira, com o da causalida-
de. Também não é por acaso que pretende aplicar, indiretamente, princípios lógicos
(como o de não-contradição) às normas jurídicas, considerando que poderiam ser
aplicados às proposições, em que o dever-ser teria mera função de cópula de enun-
ciados, em relação aos quais, sempre segundo a sua concepção datada de ciência,
poderiam aquelas ser tidas como verdadeiras ou falsas.
De outra parte, seu estruturalismo especificamente jurídico é revelado, tam-
bém, ao considerar o homem livre como ponto principal da imputação, justamente
em função de se lhe poder imputar algo. Em outras palavras, busca mostrar que a li-
berdade não seria incompatível com a causalidade, em face da qual o Homem estaria
submetido na ordem da Natureza.
Ademais, Kelsen é estruturalista, ao não resolver o problema dos limites, vale
dizer, do ponto final ou inicial da ordem jurídica, introduzindo (para tangenciar a
dificuldade) a noção de norma fundamental, regra estruturante (autofundamentada),
segundo a qual seriam criadas as normas jurídicas e da qual derivaria o princípio
mesmo desta criação, assumindo caráter eminentemente formal.
Ainda como traço de seu positivismo, vê-se a sua procura quase obsessiva de
captar a estrutura subjacente ao Direito, que não pudesse ser confundida com seu
variável conteúdo. Neste ângulo, a estrutura seria o conteúdo mesmo apreendido
como organização lógica, é dizer, concebida como se fosse propriedade do mundo
do dever-ser. Em outros termos, Kelsen parte da premissa de que o observador po-
deria ser independente do fenômeno jurídico, "neutro" em relação a este, nele pro-
o SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 45
curando descrever nexos e relações formais e necessárias, nunca prescritivamente
consideradas.
Como corolário lógico desta proposta de fazer ciência jurídica, identificou Esta-
do e Direito, assim como pretendeu manter sua teoria livre de todos os elementos es-
tranhos, contaminadores do seu método específico de articular uma ciência, cujo iní-
cio, por assim dizer, seria o conhecimento objetivo do Direito, não o de sua formação.
Neste paradigma superado, Kelsen queria descrever o Direito tal qual seria, susten-
tando (em nítida retomada do dualismo) que à Política competiriam os juízos de valor,
atinentes a como o Direito deveria ser. Neste afã de colocar a ciência jurídica, prova-
velmente com as melhores intenções, no mesmo patamar de objetividade das demais
ciências de sua época, viu-se forçado a operar com um princípio próprio da norma
social e jurídica (o princípio da imputação), alijando o cientista do Direito do mundo
dos valores, uma vez que estes não permitiriam qualquer controle "racional", na atual
acepção intersubjetiva e dialógica de racionalidade, a qual, felizmente, já consegue se
afirmar, com alguma objetividade, diante do mundo dos valores jurídicos, sabendo-os
necessariamente integrantes do sistema jurídico e, pois, de seu estudo.
O estruturalista Kelsen tentou descrever, no ordenamento que seria o Direito,
uma estrutura (Struktur) peculiar, que permitisse explicar as partes num prisma total-
mente orgânico, almejando 'descrevê-lo, em si e por si, como autônomo em relação
à sua teleologia. Com efeito, por meio de sua teoria dinâmica, deliberadamente, não
quis dar um enfoque que incluísse dimensão também funcionalista, descurando de
considerar os fins pretendidos pelo ordenamento jurídico como tarefa de reflexão do
cientista do Direito, ao menos nesta condição.
Cumpre ressaltar, ainda, que este mesmo estruturalismo levou-o à redução do
Estado a um ordenamento jurídico, permitindo manifestar-se, com nitidez, o equí-
voco de sua ideia de que a estrutura característica do Direito residiria no modo pelo
qual as normas se uniriam umas às outras, graças à norma fundamental, e - o que
parece mais grave - conduziu-o a admitir como traço nuclear da ordem jurídica a
centralização das atividades de produção e aplicação do Direito, que pressuporia
a unicidade do sistema, somente possível por intermédio de uma noção exclusiva ou
predominantemente repressiva do Estado, congruente com a majoritária noção do
telos estatal reinante em fins do século passado.
Outra séria limitação de sua metodologia está em que seu "jurista científico"
não construiria Direito, somente produzindo-o gnosiologicamente, em sentido kan-
tiano, ao passo que, como hoje parece consensual, em parte por uma espécie de
ressurreição da Tópica aristotélica, o jurista interpreta e recria o Direito, conquanto
deva fazê-lo, sistematicamente, exercitando uma concepção dialógica de ciência,
sem jamais evadir-se de seu mister de rigor.
Deste modo, em que pese ao caráter invulgar de sua contribuição, que o faz
autor de meditação obrigatória, é seguro que, ao almejar a especificidade do Direito,
em sua dimensão de fenômeno social, mostrou-se insuficiente diante do desafio de
refletir sobre a normatividade jurídica em face das múltiplas e inovadoras funções-
não necessariamente repressivas - do Estado. Portanto, a tarefa de uma metodologia
jurídica está a exigir a superação dos positivismos, absorvendo-se tudo o que neles
houver de capaz de suscitar o enriquecimento de uma perspectiva dinâmica, que não
se oponha à identidade essencial entre a "ciência" e a "jurisprudência", o "ser" e o
"dever-ser" e, em última instância, o "funcional" e o "estrutural", compreendendo e
vivenciando o Direito, simultaneamente, como sistemático e aberto.
 -,.--
46 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
nações. 25 De outra parte, para acentuar a existência de "n" possibilidades
interpretativas, liberadas de modo inconsciente ou voluntariamente ofe-
recidas pelo sistema, foi ao exagerado ponto de asseverar que a inter-
pretação feita pelo órgão aplicador seria sempre autêntica,26 concebida
a interpretação jurídica como via cognoscitiva do sentido do objeto a
interpretar.
Theodor Viehweg,27 de sua vez, desponta como outro nome que
não deve ser olvidado, em face do meritório esforço de evidenciar que a
determinação do sistema jurídico nunca é completa. E o fez, resgatan-
do - não isento de críticas - a Tópica aristotélica, decifrando em parte a
natureza peculiar do Direito e mostrando que a jurisprudência deve ser
vista também como discussão de problemas.
No contexto de resgate do pensamento aristotélico não se pode es-
quecer de Chalm Perelman,28 embora não faça plena justiça à Tópica
do estagirita quando trata da dialética como uma lógica não do racio-
nal, mas somente do razoável. 29 De sua parte, para seguir nesta menção
panorâmica e ilustrativa de aportes valiosos, Josef Esser30 merece ser
recordado por suas contribuições ao estudo dos princípios gerais do Di-
reito, em especial sobre o tópico aequum et bonum, sustentando não ser
este um princípio jurídico moralizante de natureza própria, mas neces-
sária perspectiva de justiça social no interior do sistema. De extrema va-
lia, por igual, sua percepção da relevância dos princípios constitucionais
positivos e materiais para a criação jurisprudencial.31 Notáveis, ainda,
suas observações sobre as antinomias de princípios interpretativos e o
papel de monta que possuem na construção do Direito codificado e no
judge-made law. 32
25. Teoria Pura do Direito, cit., p. 364.
26. Idem, p. 368.
27. Topik und Jurisprudenz, München: C. H. Beck'sche, 1963. Sobre o pensa-
mento de Viehweg, V., entre outros, Eduardo García de Enterría in Reflexiones sobre
la Ley y los Principios Generales dei Derecho, Madrid: Civitas, 1986, pp. 55-83.
28. Trattato deU 'Argomentazione, Torino: Giulio Einaudi Editore, 1976;
L'Empire Rhétorique, cit., 1997; Logique Juridique, Paris: Éditions Dalloz-Sirey,
1979; Rhétoriques, Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles, 1989; e, ainda,
Éthique et Droit, Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles, 1990.
29. Sobre algumas inconsistências da interpretação de Perelman da Tópica aris-
totélica, v. Enrico Berti in Aristotele nel Novecento, Roma: Laterza & Figli, 1992.
30. V. Josef Esser in Grundsatz und Norm, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul
Siebeck), 1990, p. 65.
31. Idem, pp. 243-266.
32. Idem, pp. 141-182.
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 47
A propósito, na seara dos princípios, convém registrar, sempre a
título ilustrativo, as contribuições - altamente nuançadas entre si, é cer-
to - de Ronald Dworkin33 e de Robert Alexy34 acerca da distinção entre
princípios e regras. Já Walter Wilburg,35 ao referir o conceito de mobi-
33. V., por exemplo, Taking Rights Seriously, London: Gerald Duckworth &
Co., 1977, e Law s Empire, cit., 1986. V., ainda, Sovereign Virtue. The Theory and
Practice ofEquality, Cambridge: Harvard University Press, 2000, e Justice in Ro-
bes, Cambridge: Harvard University Press, 2006.
34. V. Theorie der juristischen Argumentation, Frankfurt: Suhrkamp, 1997;
Recht, Vernunft, Diskurs, Frankfurt: Suhrkamp, 1995; Begrifi... , cit., 1994 - obra na
qual, adotando uma postura constitucionalista moderada, afasta o legalismo estrita-
mente orientado pelas regras e defende a vinculação entre Direito e Moral; salienta
que a pretensão de correção (Anspruch aufRichtigkeit) de todo o sistema jurídico se-
ria o nexo entre ambas as perspectivas (pp. 62-63). Apresenta sua definição de Direi-
to (p. 201) como um sistema de normas, a saber, a totalidade de normas pertencentes
a uma Constituição eficaz no geral das vezes e que não sejam extremamente injustas,
assim como a totalidade das normas promulgadas de acordo com esta Constituição,
possuidoras de um mínimo de eficácia social ou de chance de tal eficácia e que não
sejam extremamente injustas (nicht extrem ungerecht) - sistema ao qual pertencem
os princípios e outros argumentos normativos (normativen Argumente) que apoiam
a aplicação do Direito e/ou hão de apoiá-la com o objetivo de satisfazer a referida
pretensão de correção. V., ainda, Theorie der Grundrechte, Frankfurt: Suhrkamp,
1994 (trad. brasileira: Teoria dos Direitos Fundamentais, trad. de Virgílio Afonso
da Silva, São Paulo: Malheiros Editores, 2009). Nesta obra Robert Alexy sustenta
não ser possível uma dogmática adequada dos direitos fundamentais sem uma teo-
ria dos princípios - no que há afinidade com a linha aqui esposada. Estabelece sua
conhecida distinção entre princípios e regras. Salienta sua diferença terminológica
com, por exemplo, Esser, sustentando que as normas podem ser regras ou princípios,
sendo estes normas que ordenam que algo seja realizado de modo ótimo (isto é, na
máxima medida possível), ao passo que as regras seriam normas que apenas pode-
riam ser cumpridas ou não, de modo que o conflito de regras ocorreria na dimensão
da validade. Já a colisão de princípios situar-se-ia mais além, ou seja, na dimensão
da hierarquia. Pensa-se, entretanto, que, na perspectiva tópico-sistemática aqui pre-
conizada, tudo se traduz em questão de peso ou de hierarquia, inclusive no campo
das regras. De qualquer sorte, bem sustenta Alexy o diferente caráter prima facie de
regras e de princípios, sendo os princípios algo mais do que os topoi, não se podendo
recorrer a eles arbitrariamente. Os princípios seriam sempre razões prima facie; as
regras, salvo se prescrita exceção, seriam razões definitivas. Apesar de algumas di-
ferenças no tocante à distinção entre regras e princípios, trata-se de abordagem, em
certa medida, confluente.
35. Diz, com razão, Claus-Wilhelm Canaris (in Pensamento Sistemático... , cit.,
p. 148): "Com esta limitação pode-se, no entanto, dizer que a ideia de um sistema
móvel, tal como foi desenvolvida por Wilburg, constitui um enriquecimento decisi-
vo do instrumentário quer legislativo, quer metodológico, devendo, por isso, incluir-
-se sem dúvida entre as 'descobertas' jurídicas significativas".
 --r--
48 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
lidade do sistema, requer menção. Karl Engisch36 precisa ser lembrado,
em especial por sua explanação sobre os conceitos jurídicos indetermi-
nados, não obstante sua ideia de indeterminação - residindo nos termos
jurídicos, não nos conceitos - permanecer problemática. Emil Lask,37
pela sistematização dinâmica dos valores e por seu empenho em conferir
feição peculiar ao valor jurídico, é outro registro que se impõe, mormen-
te pela influência exercida sobre juristas em nosso meio.
Como enfatizado, apenas com o escopo de servir como atestado
de uma guinada paradigmática do conceito de sistema jurídico é que
se refere tal nominata. No entanto, sob pena de grave omissão, convém
relembrar a contribuição de Karl Larenz, ao ter percebido a relevância
dos tipos jurídico-estruturais na formação do sistema, dimensionando-o
como uma série de tipos,38 bem como por destacar a função dos princí-
pios jurídicos, vistos como critérios teleológico-objetivos da interpreta-
ção em estreita conexão com o desenvolvimento judicia1. 39 Além disso,
caracterizou semelhante sistema como ensejador de um possível jogo
concertado de múltiplos e até contrastantes princípios de igual peso, as-
sumindo graus hierarquizáveis no plano da concretização. 4o Ensinando
que a missão do sistema jurídico está em tomar visível a conexão de
36. A respeito da indeterminação dos conceitos, v. Karl Engisch in Introdução
ao Pensamento Jurídico, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972, p. 188. V.
Eros Grau in Direito, Conceito e Normas Jurídicas, São Paulo: Ed. RT, 1988, p. 72
e O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores,
2002, pp. 196 e ss.
37. Observa Tércio Ferraz Jr. (in Conceito de Sistema no Direito: Uma Inves-
tigação Histórica a partir da Obra Jusjilosójica de Emil Lask, São Paulo: Ed. RT/
EDUSP, 1976, p. 174): "Alinhando-se na tradição jurídica de seu tempo, mas pro-
curando uma visão sintética e superadora, Lask acabou por descobrir no fenômeno
jurídico uma complexidade peculiar. Pela sua teoria do 'valer-para', constata ele a
mencionada correlação entre 'formas' válidas e o 'substrato' material amorfo'. Mas
a heterogeneidade irredutível entre ambos tem consequências para uma visão do
'sistema final', 'abarcante' do Direito. Sendo 'material' o princípio diferenciador
das 'formas', dá-se a constituição de diferentes esferas significativas, eventualmente
paralelas, mas assimétricas, donde a possibilidade de se falar em sistema (...), não
havendo, porém, uma 'forma' que seja capaz de atravessar todos os sistemas consti-
tutivamente e instaurar o sistema jurídico como um todo acabado". Nesta perspecti-
va, Lask renuncia à unidade, última e irredutível, em face da pluralidade assimétrica
entre as diferentes esferas. Nada obstante, reconhece que o sistema não é uma estru-
tura puramente diacrônica.
38. V. Karl Larenz, in Metodologia... , cit., pp. 561-577.
39. Idem, p. 577.
40. Idem, p. 592.
o SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 49
sentido inerente ao Direito como um todo dotado de coerência,41 notou,
com percuciência, que este só pode ser um sistema aberto, no sentido
de que são viáveis as mudanças também em face da sempre possível
(re)descoberta de outros princípios, que se sucedem, não raro de modo
diacrônico, no evolver histórico de transformações. 42
Nesta evolução, o sistema jurídico resta percebido, felizmente,
como inacabado e inacabável, donde se infere que todo intérprete pre-
cisa assumir a condição de permanente vivificador do sistema e de su-
perador das suas antinomias axiológicas. Com efeito, verifica-se, no
plano concreto, a continuidade de contradições valorativas, ao menos
de modo transitório, até dirimente ato legislativo e, sobremodo, solução
judicial integrativa, que solva determinada situação antinômica, pacifi-
cando o sistema, sem dele afastar a hipótese de reinstauração, noutras
circunstâncias, da aporia topicamente superada.
Apenas para encerrar este breve mapeamento, convém mencionar a
contribuição de teóricos'dotados de interesse maior no campo da aplica-
ção, endereçados às imposições de uma meditação centrada na pruden-
tia. 43 Há, de conseguinte, uma caminhada coletiva rumo ao rompimento
de antigas crenças do Círculo de Viena ou de dogmas dos positivismos
mais ou menos sofisticados. 44 A pouco e pouco, trilhas várias, aborda-
41. Idem, p. 593.
42. Idem, p. 592.
43. Gustavo Zagrebelski, há bom tempo, teceu crítica ao positivismo inercial
que insiste na confusão entre leis e direitos (in 11 Diritto Mite. Legge, Diritti, Giusti-
zia, Torino: Giulio Einaudi Editore, 1992), destacando que a nota distintiva do atual
Direito dos Estados Constitucionais radica na mitezza costituzionale e na constante
busca de concordância prática entre princípios. Enfatiza que essa mitezza deriva do
abandono daquilo que se poderia chamar de soberania de um único princípio domi-
nante, a partir do qual se deduziriam todas as execuções concretas. Defende uma
dogmática jurídica "fluida", que, mediante mútua relativização, acolhe os elementos
heterogêneos do Direito, de modo que o único conteúdo sólido da moderna ciên-
cia jurídica reside precisamente nessa pluralidade de valores e de princípios cuja
cognição, indispensável à convivência humana, não se constitui assunto de puro
pensamento. Do mesmo autor v., ainda, La Giustizia Costituzionale, Bologna: 11
Mulino, 1995.
44. Michel Troper e Christophe Grzegorczyk (in Le Positivisme Juridique, Pa-
ris: LGDJ, 1992) destacam a contribuição dos autores que denominam adeptos do
post-positivisme (pp. 25-29). Mais especificamente, Christophe Grzegorczyk (ob.
cit.) denomina de post-positivisme aquela corrente que reúne autores cujas referên-
cias epistemológicas "se trouvent dans la Philosophie du second Wittgenstein, chez
Popper, Kuhn e Lakatos - et donc dans les écrits qui ont succédé au positivisme
philosophique du Cercle de Vienne - d' ou le qualificatif qui leur a été appliqué par
Villa, et que nous reprenons à notre compte" (p. 64). Autores "pós-positivistas",
 ~
50 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
gens díspares em vários aspectos, conduzem a um paradigma novo, mais
complexo e promissor, que permite pensar o sistema jurídico em sua
abertura e vocacionado para a dialética unidade no plano dos princípios
fundamentais. 45
1.3 O sistema jurídico pensado como aberto e ordenável
Especialmente com a queda do império da razão típica do século
XIX e de parte do século XX - a razão monológica46 ou instrumental- e
nesta acepção, integram o avanço sugerido no texto. Sobre as diferentes concepções
de positivismo (método, ideologia e teoria geral) e suas correlatas noções de jusnatu-
ralismo, v. Norberto Bobbio in Giusnaturalismo e Postivismo Giuridico, cit., 1972.
45. Não se devem olvidar outras produtivas contribuições, tais como, por
exemplo, a de Aulis Aamio - em que pese a diferenças de abordagem (in Lo Racio-
nal como Razonable, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991) -, acen-
tuando que a fonte última de legitimidade reside, pois, no mundo da vida (p. 295).
A aceitabilidade racional é o princípio regulativo da comunidade jurídica. Observa
que toda razão usável como base justificatória da interpretação deve ser tida como
fonte do Direito (p. 123). Mérito maior, todavia, reside na sua percepção de que a
teoria dogmática jurídica é conjunto de conceitos e enunciados utilizados para siste-
matizar normas jurídicas (p. 190), além da acolhida parcial e relativizada de ideias
estimulantes de "auditório" de Perelman (pp. 279-284), concluindo que a dogmática
jurídica deveria intentar interpretações aptas a contar com o apoio da maioria de uma
comunidade jurídica que opera racionalmente (aceitabilidade racional, donde segue
a ideia de racional como razoável- p. 286). Destaca, ainda, que a teoria da interpre-
tação jurídica estaria baseada em dois pontos centrais: a exigência de racionalidade
e a exigência de aceitabilidade dos conteúdos (p. 290), havendo nisso confluência
(em parte) com o enfoque aqui adotado. V., também, Aulis Aamio, Robert Alexy e
Aleksander Peczenik in "The foundation of legal reasoning", Rechtstheorie, Berlin:
Duncker & Humblot, 1981.
Como outro exemplo, não excludente, mencione-se Friedrich Müller (in Ju-
ristische Methodik, Berlin: Duncker & Humblot, 1997, ou Métodos de Trabalho do
Direito Constitucional, São Paulo: Max Limonad, 2000), especialmente ao destacar
que a norma jurídica não está pronta nem substancialmente concluída, pois a con-
cretização não pode ser um processo meramente cognitivo, propondo distinguir a
forma, o programa e o âmbito da norma. Há outras contribuições relevantes, citadas
de modo não-exaustivo ao longo deste livro. A influência gadameriana, por exemplo,
será recorrente, conquanto não deva ser hiperdimensionada.
46. Como destacado, na crítica à razão monológica irmanaram-se várias tradi-
ções filosóficas. Mencione-se que Gadamer lembra que Platão já considerava como
um princípio de verdade que a palavra só encontra confirmação na recepção e na
aprovação pelo outro e que as conclusões desacompanhadas do pensamento do outro
perdem vigor argumentativo ("Er hatte darin ein Prinzip der Wahrheit gesehen dass
das Wort durch die Aufnahme im anderen und die Zustimmung des anderen seine
Bewãhrung findet und dass die Konsequenz des Denkens, die nicht zugleich ein Mit-
gehen des anderen mit den Gedanken des einen ist , ohne zwingende Kraft bliebe" -
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 51
com o advento dos paradigmas da complexidade, mais e mais convém
que o Direito seja visto como um sistema geneticamente aberto e, pois,
como potencialmente contraditório, normativa e axiologicamente. Neste
contexto, sem prejuízo do dever racional de efetuar uma ordenação sis-
temática mediante sinapses "desde dentro", tal complexidade, para além
das diferentes abordagens filosóficas, revela-se um dos pontos centrais
a serem considerados na formulação do conceito de sistema jurídico.
Como acentua Claus-Wilhelm Canaris, todos os conceitos que não
se mostram, de algum modo, capazes de exprimir adequação valorativa
e emprestar unidade interna à ordem jurídica têm-se mostrado, virtual-
mente, pouco ou nada úteis. 47 Com efeito, resulta sem maior sentido,
numa compreensão atualizada, uma série de concepções, a começar pela
de "sistema externo". Diz, acertadamente: "A este propósito não releva,
em primeiro lugar, o chamado sistema externo no sentido da conhecida
terminologia de Heck, que, no essencial, se reporta aos conceitos de or-
dem da lei; pois esta não visa, ou não visa em primeira linha, a descobrir
a unidade de sentido interior ao Direito, antes se destinando, na sua es-
trutura, a um agrupamento da matéria e à sua apresentação tão clara e
abrangente quanto possível" .48
Nítido que tal noção, ao se fazer exógena, cai num alheamento das
necessidades de coadunação do conceito de sistema jurídico com as ine-
limináveis tarefas de escolha axiológica e de tendencial unidade não-
-antinômica, no seio de uma ordem merecedora do nome. Ademais, a
dicotomia "interno" e "externo" supõe, paradoxalmente, um inaceitável
empobrecimento sistemático, eis que a ordenação dos conceitos e das
categorias jurídicas não pode acontecer, apenas, desde o exterior, como
se o conjunto de disposições fosse, em si mesmo, uma massa caótica de
in Die Unfiihigkeit zum Gespriich, voI. 2, Tübingen: 1. C. B. Mohr, 1993, p. 210). Tão
enfática quanto Gadamer, Hannah Arendt põe em realce que "a presença dos outros
que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e
de nós mesmos; (...)" (in A Condição Humana, Rio de Janeiro: Forense Universitá-
ria, 1989, p. 60). Chegando à conclusão idêntica, ChaYm Perelman sublinha que "le
pluralisme aiguise le sens critique. C'est grâce à l'intervention, toujours renouvelée
des autres, que l'on peut le mieux distinguer, jusqu'à nouvel ordre, le subj ectif de
l' objectif' (in L 'Empire Rhétorique, cit., p. 48). Ainda a propósito do tema, v. Jürgen
Habermas in Hermeneutik und Dialetik, Tübingen: J. C. B. Mohr, 1970, Theorie... ,
cit., 1987, e Faktizitiit... , cit., 1993; Karl-OttoApel in Transformation... , cit., 1973, e
Diskurs und Verantwortung, Frankfurt: Suhrkamp, 1990; e Robert Alexy in Theorie
der juristischen Argumentation, cit., 1997, e Recht... , cit., 1995.
47. Pensamento Sistemático... , cit., p. 25.
48. Idem, p. 26.
 ---,...--
52 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
prescrições. Em outras palavras, a abertura supõe a preexistência latente
de soluções admissíveis para as inevitáveis lacunas e antinomias (não
como completude, mas como completabibilidade, em nossa perspectiva
tópico-sistemática). Decerto, não se está pensando, neste passo, apenas
na abertura patrocinada pelas cláusulas gerais, senão que, sobretudo, na
abertura de natureza epistemológica, derivada da aludida indetermina-
ção, intencional ou não, dos enunciados semânticos em matéria jurídica.
Por idênticos fundamentos, revela-se imprópria a arcaica noção
de sistema de apriorísticos e "puros" conceitos formais - nada obstante
o reconhecimento de certa valia, em sua época -, assim como também
não se aceita o extremismo, igualmente nocivo, da liberação dos aprio-
rismos axiológicos acríticos, isto é, sem reflexão purificadora. No que
conceme à visão extremadamente formalista, de fato, não obedece ao
pressuposto necessário de que o alcance da unidade hierarquizada há de
ser, em todos os casos e em todas as configurações, revestido do caráter
concreto, requerida a utilização parcial de complementares expedientes
lógicos indutivos e empíricos.
Acerta, então, Canaris ao asseverar, a respeito de tais conceitos
formalistas: "Trata-se, neles, de categorias puramente formais, que sub-
jazem a qualquer ordem jurídica imaginável, ao passo que a unidade
valorativa é sempre de conteúdo material e só pode realizar-se numa
ordem jurídica historicamente determinada; sobre isso, porém, os siste-
mas de puros conceitos fundamentais, pela sua própria perspectivação,
não querem nem podem dizer nada".49 Na mesma senda crítica, não se
deve abonar a noção da jurisprudência dos conceitos, porque os valores
transcendem o âmbito da lógica formal, exprimindo-se teleologicamen-
te, ainda que de modo sistematizável, mas flagrantemente diverso do
pretendido por esta corrente.50
49. Idem, p. 27.
50. Idem, p. 31. Além de Claus-Wilhelm Canaris, sobre a matéria, V., entre ou-
tros, Luís Recaséns Siches, que, não obstante considerar como um pseudoproblema
o critério para eleger entre os métodos de interpretação, assevera: "Así resulta que
el uso limitado de la lógica deductiva tradicional y de la individualización de los
contenidos jurídicos está condicionado esencialmente por puntos de vista y por je-
rarquías de carácter estimativo o valorador" (in Introducción ai Estudio dei Derecho,
México: POITÚa, 1981, p. 249). Diferentemente, à primeira vista, de nosso enfoque,
Siches (in Nueva Filosofia de la Interpretación dei Derecho, México: POITÚa, 1980,
p. 291) sustenta que "el pensamiento jurídico debe ser siempre un pensamiento sobre
problemas y no aspirar nunca a un sistematismo, el cual es imposible en el mundo
deI Derecho". Não se confunda, porém, o pensamento tópico-sistemático com este
condenável "sistematismo".
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 53
Dado que a decisão jurídica transcende a esfera da lógica formal e
subsuntiva em termos dedutivos, verifica-se que o formalismo não abar-
ca o fenômeno jurídico, ao menos em toda complexidade e extensão.
Ademais, reiteram-se a dialeticidade como sinal inerente ao sistema ju-
rídico e a ideia de que, na elaboração dos silogismos de cunho dialético,
a eleição ou hierarquização das premissas ocupa o lugar de destaque,
diversamente do que sucede na atuação do raciocínio sob prisma lógico-
formal. Assim, só para figurar uma hipótese, a eleição da premissa de
que se deve tutelar, no caso, um princípio como cláusula pétrea precisa
conduzir, logicamente, à decretação da inconstitucionalidade da norma
que o violou.
A escolha determina a construção lógica. Eis a dialeticidade pre-
sente, justamente no momento-chave da hierarquização desta ou daque-
la assertiva como premissa maior ou premissa menor, sem desprezo à
importância do termo m~dio. O resto - a conclusão - sobrevém ou deve
sobrevir, por mero acréscimo, como implícita consequência da escolha
feita. Outra vez, de recordar Canaris quando assinala, com propriedade:
"Tudo conduz, pois, ao mesmo resultado: a descoberta e a afinação das
premissas constitui a tarefa jurídica decisiva, ao passo que, pelo contrá-
rio, a formulação de conclusões lógico-formais é de significado muito
menor; nelas nunca poderia ser incluído o terceiro grau da argumenta-
ção jurídica, isto é, a obtenção do Direito com o auxílio de princípios
jurídicos gerais, da natureza das coisas etc., onde o que se disse, vale,
naturalmente, em medida ainda maior".51
Em face disso, o silogismo jurídico deve ser reconhecido como dia-
lético, isto é, pertencente ao democrático e pluralista reino da persuasão,
não podendo pretender operar sem predicados acidentais nem dispensar
argumentações baseadas em premissas contraditórias, tampouco deixar
de conduzir a conclusões prováveis e hipotéticas. Nessa ordem de idei~s,
uma noção de "sistema axiomático-dedutivo" fica rejeitada, por se des-
cartar uma formação plena de axiomas (tomando a expressão no sentido
preponderante em Filosofia), pois assente a premissa de que as contradi-
ções axiológicas acontecem e a incompletude é fato incontroverso. Des-
ta maneira, a tentativa de "axiomatização" do sistema, embora desafio
estimulante, jamais poderá ser absoluta, por infirmar a natureza mesma
do multifacetado fenômeno jurídico. Em certo sentido, sem exagero na
afirmação, resta duvidosa a possibilidade de axiomas, em sentido forte,
na seara jurídica. Entretanto, ainda que se admita, forçoso excluir qual-
51. Pensamento Sistemático... , cit., p. 38.
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54 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
quer conceito de sistema que suponha viável uma arrogante pretensão de
jaez fixista 52 ou de imutabilidade avessa às variações naturais industria-
das pela evolução. 53
Ainda: é de afastar a concepção do sistema somente como conexão
de problemas, apesar de se reconhecer uma benéfica influência no sen-
tido de oferecer elasticidade à hermenêutica jurídica. Bem de ver que o
Direito não se deixa conceituar como simples conjunto de problemas,
razão pela qual tal posição se nos afigura, em si mesma, autofágica, já
que o sentido de unidade não pode resultar dos problemas, como tais,
sob pena de irracionalismo, que, a todo custo, deve ser, metodologica-
mente, evitado. 54
Também resulta vago, se não infrutífero aos objetivos traçados
para este trabalho, o modo de conceber o sistema como um conjunto
de "decisões de conflitos", assim como agasalhado pela chamada ju-
risprudência dos interesses. Falta para esta concepção uma teleológica
vinculação à coerência de sentido. A despeito disso, mister enaltecer
o significado que tal conceito teve ao referir o caráter teleológico do
sistema jurídico. 55
À vista, pois, dos conceitos aduzidos, percebe-se a indispensabili-
dade funcional, sobretudo para bem lidar com antinomias e lacunas, de
introduzir um conceito de sistema jurídico mais rico e esclarecedor. Nes-
se desiderato, importa não olvidar que uma das finalidades relevantes do
conceito de sistema consiste precipuamente em favorecer a solução de
incompatibilidades no plano mais alto dos princípios e valores.
Daí segue que um conceito aproximado do pretendido, embora ain-
da não aquele esposado neste trabalho, é o formulado por Claus-Wilhelm
Canaris que define o sistema jurídico como "uma ordem axiológica ou
52. Observa, a respeito, Canaris: "A confecção de um sistema axiomático-
dedutivo não é, assim, possível e contradiz a essência do Direito. Semelhante ten-
tativa decorre (...) da utopia de que, dentro de determinada ordem jurídica, todas as
decisões de valor necessárias se deixam formular definitivamente" (in Pensamento
Sistemático... , cit., pp. 44-45).
53. Para constatar o processo de mudança de ideias rumo a inferências que re-
sultaram na - hoje, cientificamente corroborada - teoria da seleção natural, v. Char-
les Darwin in Autobiografia, Rio de Janeiro, Contraponto, 2000.
54. Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 47.
55. Acerta, porém, Canaris: "Um 'sistema de decisões de conflitos' não diz pra-
ticamente nada sobre a unidade de sentido do Direito, ainda quando Heck também
acentue a necessidade de destacar as concordâncias e as diferenças de decisões de
conflitos" (in Pensamento Sistemático... , cit., p. 62).
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 55
teleológica de princípios gerais de Direito, na qual o elemento de ade-
quação valorativa se dirige mais à característica de ordem teleológica e
o da ordem interna à característica dos princípios gerais". 56
1.4 Vantagens e insuficiências da conceituação de ordem
axiológica ou teleológica de princípios jurídicos gerais
Tal formulação, que vê o sistema como ordem axiológica ou te-
leológica, a partir das ideias de adequação valorativa e de unidade, atri-
buindo aos princípios um sentido que ocorre numa combinação comple-
mentar ou de restrição recíproca, possui as seguintes principais virtudes:
a) salienta, no trato de temas como antinomias, a função do sistema
como a de traduzir coerência valorativa, impedindo abordagem mera-
mente formal;
b) evita a crença exacerbada na completude fechada e autossufi-
ciente do sistema, permitindo pensar a completude e a coerência como
processos abertos;
c) resguarda o papel da interpretação sistemática, pois tal abertura
não contradita (antes, pelo contrário) a exigência de ordem e de unidade
interna;
d) permite ver o papel decisivo da interpretação ponderada, em vir-
tude do manejo concertado de princípios no bojo do sistema jurídico,
afastado, entre outros, o mito da excessiva e imoderada autonomia do
texto.
Entretanto, em que pesem o reconhecimento e a proclamação des-
sas virtudes, ainda não se mostra um conceito inteiramente satisfatório,
mormente tendo em vista o aguilhão das antinomias jurídicas. Falta no
conceito de Canaris, sobretudo, (a) aludir à distinção entre princípios,
regras e valores; (b) incorporar a vinculação aos objetivos fundamentais
do Estado Democrático, assim como estabelecidos na Constituição, na
qual se encontram, expressa ou implicitamente, os princípios fundamen-
tais, os quais se diferenciam tecnicamente dos princípios gerais; (c) in-
troduzir o elemento de hierarquização material, topicamente produzida,
no círculo hermenêutico, não estabelecida a priori, assumido que não se
dá à Tópica papel apenas auxiliar.
Portanto, avançando a reflexão, útil ir além do conceito de sistema
jurídico como ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais, cer-
to como é que a Hermenêutica recomenda não só constituição mútua,
56. Pensamento Sistemático... , cit., pp. 77-78.
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56 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
mas a identidade essencial entre o pensamento tópico e o sistemático,
donde a conveniência de inserir no próprio conceito aquela que parece
ser, cada vez mais, a fonte mesma da unidade interior do Direito, ou seja,
a hierarquização de ordem principiológica e axiológica. Esta hierarqui-
zação faz as vezes de uma espécie de metacritério que permite arbitrar,
com transparência e sempre entre altemativas,57 a disputa entre princí-
pios, regras e valores no seio do Direito Positivo. Mister erigi-Ia, pois,
como núcleo do nosso conceito de sistema jurídico, até para explicitar a
englobante presença axiológica em todos os processos de racionalização
ou de produção multidimensional do fenômeno jurídico. 58
1.5 Reconceituando o sistemajurídico
Em tal linha, com atenção à imprescindível e irrenunciável meta de
formulação de um conceito harmônico com a racionalidade intersubjeti-
va e com a dialética circularidade hermenêutica,59 entende-se apropriado
conceituar o sistema jurídico como uma rede axiológica e hierarquizada
topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras)
e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando anti-
nomias em sentido lato,60 dar cumprimento aos objetivos justificadores
do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados,
expressa ou implicitamente, na Constituição.
57. Com a "exuberância combinatória da mente humana", na expressão suges-
tiva de Steven Pinker in Do que é Feito o Pensamento Humano, São Paulo: Cia. das
Letras, 2008, p. 491.
58. Esclareça-se, desde logo: não se trata de aderir a concepções axiológi-
cas que não mantenham uma vinculação forte à sistematicidade (v.g., a de Rudolf
Smend). A propósito, a posição tópico-sistemática não significa, ao interpretar, por
exemplo, os direitos fundamentais, uma escolha tópica entre as teorias enunciadas
por Emst-Wolfgang Bõchenfõrde (in Escritos sobre Derechos Fundamentales, Ba-
den-Baden: Nomos, 1993, pp.13-25) (a liberal, a institucional, a axiológica, a demo-
crático-funcional e a do Estado Social). A aplicação tópica orientada por uma teoria
sistemática consistente inclui elementos das teorias citadas, mas não admite uma
escolha aleatória nem qualquer decisionismo axiológico não-fundamentado. Nesta
linha, não se adota sem ressalvas a proposta de Richard Fallon Jr. (in "A construc-
tivist coherence theory of constitutional interpretation", 100 Harvard Law Review
1.189,1.209-30 (1987).
59. O tema da circularidade hermenêutica será tratado a seguir, no capítulo
versando sobre identidade essencial entre o pensamento sistemático e a Tópica, na
perspectiva advogada de conciliação entre a Hermenêutica e a Dialética.
60. As próprias lacunas são antinomias entre normas gerais inclusivas e a nor-
ma geral exclusiva, como restará insofismável no exame das configurações hipoté-
ticas.
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 57
Imperioso restar claro que, no ponto, esta abordagem se põe de
acordo, por exemplo, com a de Ronald Dworkin61 quando este propõe
distinção entre princípios e regras, ainda que em relação a estas não se
aplique uma lógica do tudo ou nada, como se espera evidenciar. Igual-
mente, considera-se como digna de apoio a ideia de Josef Esser,62 para
quem os princípios constitutivos de um ordenamento são a expressão de
uma determinada opção entre valores materiais e os princípios de cada
matéria, que acabam condicionando esta ou aquela construção do siste-
ma, cumprindo notar que a questão da efetividade de um princípio ape-
nas se resolve à vista da determinação de sua função na prática, função
esta que - convém aduzir - será condicionada inteiramente pela aplica-
ção do princípio da hierarquização axiológica, o qual será definido, para
os efeitos dessa abordagem, em capítulo próprio.
61. A propósito, v. Ronald Dworkin, in The Philosophy ojLaw, Oxford: Oxford
University Press, 1986, p. 44.,Ademais, Eros Grau salienta: "E que os princípios pos-
suem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso e da
importância. Assim, quando se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o
conflito deve levar em conta o peso relativo de cada um deles" (in A Ordem Econô-
mica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 7ª ed., São Paulo: Malheiros
Editores, 2002, p. 101). Registre-se, de passagem, semelhança entre norma estrita
com aquele conceito de "regra", mostrando-se de todo conveniente não maximizar
diferenças meramente terminológicas. Eis a razão pela qual, j á desde a 3ª edição,
preferiu-se adjetivar a norma como estrita quando aparecer com o sentido de regra.
Neste passo recorde-se Emilio Betti, nada obstante pronunciadas diferenças de
abordagem, ao recomendar que os princípios não sejam considerados somente sob o
ângulo dogmático, devendo ser vistos também como fundamento da ordem jurídica,
sob aspecto dinâmico, e, neste sentido, tendo uma função genética em relação às nor-
mas singulares. É o que se pode constatar na transcrição que se impõe: "In conclusio-
ne, i principi generali di Diritto sono da concepire non già come il risultato, ricavato
a posteriori, di un arido procedimento di successive astrazioni e generalizzazioni,
ma come somme valutazioni normative, principi e criteri di valutazione costituenti il
fondamento dell'ordine giuridico e aventi una funzione genetica rispetto alle singole
norme. Essi vanno considerati non solo sotto profilo dogmatico, quali criteri che
stanno alla base di soluzioni legislative, nella misura in cui il Diritto Positivo si e ad
essi informato, ma inoltre sotto un aspetto dinamico, quali esigenze di politica legis-
lativa, che non si esauriscono nelle soluzioni accolte, bensi sono da tenere presenti
sia come direttive e strumenti dell'interpretazione rispetto ai casi 'dubbi', sia come
indirizzi e orientamenti da proseguire nel progresso della legislazione" (in Teoria
Generale della Interpretazione, voI. 2, Milano: Dott. A. Giuffre Editore, 1995, pp.
851-852). Bem a propósito de Betti, desde que relativizados e retemperados os seus
cânones (mormente o primeiro e o quarto), parece possível, em alguma medida,
reconciliá-lo com Gadamer, como será retomado em capítulo próprio.
62. Na lição de Josef Esser (in Grundsatz... , cit., pp. 163-165), os princípios
construtivos do' ordenamento são j á a expressão de uma determinada opção entre
valores materiais e os princípios valorativos que condicionam esta construção.
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58 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Eis a inserção da hierarquização inovadora em relação ao concei-
to dantes examinado, além da ênfase à noção de "rede" apta a sugerir
operações de sinapses ou conexões neuronais, pois - em analogia com
o cérebro - a hermenêutica do sistema jurídico "funciona" por inteiro,
ainda quando se concentrem atividades nesta ou naquela parte. 63 Note-se
que, ao se inserir o elemento "hierarquia", está-se a pensar mais propria-
mente em hierarquização como algo em movimento, não como um dado
a priori; e ao se fazer expressa referência a princípios e objetivos funda-
mentais da Lei Maior quer-se tomar visível o meio mais adequado para
lidar com o aporético tema das antinomias jurídicas no sentido ampliado
a ser exposto no Capítulo 3.
1.6 Princípios fundamentais, normas estritas (ou regras) e valores.
Distinção e vantagens do conceito proposto de "sistemajurídico"
Por princípios fundamentais entendem-se, por ora, os critérios ou
as diretrizes basilares do sistema jurídico, que se traduzem como dis-
posições hierarquicamente superiores, do ponto de vista axiológico, às
normas estritas (regras) a despeito da aparência de mais genéricos e in-
determinados. São linhas mestras de acordo com as quais guiar-se-á o
intérprete quando se defrontar com as antinomias jurídicas.
De sorte que, consubstanciada a colisão, deve ser realizada uma
interpretação em conformidade com os princípios (dotados de funda-
mentalidade). A primazia da "fundamentalidade" faz com que - seja na
colisão de princípios, seja no conflito de regras -, um princípio, não uma
regra, venha a ser erigido como preponderante, como será visto. Jamais
haverá conflito entre regras que não se mostre solúvel à luz de princípios
fundamentais, apesar de este processo não se fazer translúcido para boa
parte dos observadores. 64
Tais princípios podem estar - utilizando-se, em parte, a classifica-
ção de Jerzy Wróblewski65 - expressa ou implicitamente positivados.
63. A analogia deve-se a reveladoras pesquisas sobre o cérebro, assim como as
realizadas, por exemplo, por Antônio Damasio (in O Erro de Descartes, São Paulo:
Cia. das Letras, 1997). v., ainda, Antônio Damásio in The Feeling ofwhat Happens:
Body and Emotion in the Making of Consciousness, New York: Harcourt Brace,
1999.
64. Esta última assertiva será embasada, especialmente no exame das configu-
rações hipotéticas de antinomias, no capítulo específico.
65. Para Jerzy Wróblewski (in "Principes du Droit", Dictionnaire Encyclo-
pédique de Théorie et de Sociologie du Droit, Paris: LGDJ, 1988, p. 317) haveria
múltiplos tipos de princípios. Acolhem-se de sua classificação, para os efeitos da
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 59
Nesta última categoria encontra-se, na órbita constitucional federal, o
princípio da proporcionalidade, sem cuja descoberta toma-se difícil ex-
plicar/compreender a aplicação do Direito, situada além da subsunção
tradicional típica dos que mantêm a dicotomia coisificadora entre sujeito
e objeto.
Impõe-se, ainda, esclarecimento do que sejam regras (normas
estritas) e valores, diferenciando-se estes e aquelas dos princípios.
Esclareça-se, outra vez, que não se opera a distinção apenas pela
"fundamentalidade"66 do princípio, mas a partir do reconhecimento de
uma diferença substancial de grau hierárquico (distinção mais de grau
hierárquico do que de "essência"). A própria Constituição cuida de esta-
belecer princípios fundamentais (embora de conteúdo não determinado
previamente de modo cabal), entre os quais avultando o da dignidade
humana e o da inviolabilidade dos direitos à liberdade, à igualdade e à
vida (aí abarcando todos os direitos fundamentais de defesa, de partici-
pação e os prestacionais positivos).
nossa exposição, o "principe positif du droit positif, à savoir soit une disposition
légale, soit une norme construite à partir des éléments contenus dans les disposi-
tions", e "principes implicites du Droit: c' est une regle traitée comme prémisse ou
conséquence des dispositions légales ou des normes". Fiel ao enfoque assumido, não
se adotam de sua tipologia as expressões principes extrasystémiques du Droit, tam-
pouco principe-non du Droit ou principe-construction du Droit. Ainda a propósito,
para o mesmo autor (in Constitución y Teoría General de la /nterpretación Jurídica,
Madrid: Civitas, 1988) a justificação relativizada da decisão interpretativa requereria
identificação dos fatores relevantes para o significado de uma regra, havendo dois
conjuntos de fatores: as diretivas interpretativas e as valorações (p. 63).
66. Útil recordar, ainda uma vez, Gustavo Zagrebelski (/1 Diritto Mite... , cit.,
pp. 148-150), expondo as principais diferenças entre regras e princípios: as regras
forneceriam "il critero delle nostre azioni", mas os princípios servem de "criteri per
prendere posizione di fronte a situazioni a priori indeterminate"; os princípios de-
terminariam atitudes favoráveis ou contrárias de adesão ou de repulsa, mas somente
as regras poderiam ser "osservate e apllicate meccanicamente e passivamente" - em
nossa perspectiva, numa pequena diferenciação, nem mesmo à regra pode aplicar-se
uma lógica subsuntiva clássica, inclusive porque, como será mostrado no capítulo
das configurações hipotéticas, a aplicação das regras nunca é somente uma aplicação
das regras: há necessariamente hierarquização concomitante e decisiva de princípios.
Assiste razão a Geraldo Ataliba (in República e Constituição, 2ª ed., 4ª tir.,
São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 33) ao anotar que mesmo no plano cons-
titucional existe "uma ordem que faz com que as regras tenham sua interpretação
e eficácia condicionadas pelos princípios", os quais se harmonizariam, em função
da hierarquia entre eles estabelecida. É de assinalar, ainda uma vez, que se identifi-
ca' aqui, "norma estrita" à "regra". Sobre "regra", v. Robert Alexy (in Theorie der
Grundrechte, cit., pp. 71-157; trad. brasileira: Teoria dos Direitos Fundamentais,
cit., pp. 85-179).
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60 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Então, devem as normas estritas ou regras ser entendidas como pre-
ceitos menos amplos e axiologicamente inferiores aos princípios. Exis-
tem justamente para harmonizar e dar concretude aos princípios funda-
mentais, não para debilitá-los ou deles subtrair a nuclear eficácia direta
e imediata. Tais regras, por isso, nunca devem ser aplicadas mecanica-
mente ou de modo passivo, mesmo porque a compreensão das regras
implica, em todos os casos, uma simultânea aplicação dos princípios em
conexão com as várias frações do ordenamento.
Quanto aos valores stricto sensu, em que pese o preâmbulo cons-
titucional mencionar expressamente "valores supremos", considerar-se-
-ão quase com o mesmo sentido de princípios, com a única diferença de
que os últimos, conquanto encarnações de valores e "justificadores" do
sistema, têm a forma mais concentrada de diretrizes, que falta àqueles,
ao menos em grau ou intensidade. 67
Deste modo, ainda que adiante devam ser esmiuçadas outras dis-
tinções entre princípios e regras, o exposto parece suficiente para grifar
que, sem que se adote a ideia de única interpretação correta, crê-se na
possibilidade de melhor compreender a rede de princípios, regras e va-
lores numa lógica que não é a do "tudo-ou-nada", mas que haverá de ser
dialética sempre, no campo dos princípios e no plano das regras, não se
constatando uma zona de vinculação pura sem espaço à ponderação ou
à hierarquização axiológica. Neste prisma, o conceito esposado serve
para elucidar:
a) a exigência teleológica e operacional do princípio hierárquico
axiológico (não mero postulado nem simples máxima) que confere sen-
tido unitário à vontade da Constituição, construída (mais do que desco-
berta) no inescapável círculo hermenêutico,68 numa gadameriana "fusão
de horizontes" que acontece tópica e sistematicamente;
67. Neste passo não se adota, na íntegra, a distinção de RobertAlexy (in Theo-
rie der Grundrechte, cit., p. 133; trad. brasileira: Teoria dos Direitos Fundamentais,
cit., p. 153): "Was im Wertermodell prima facie das beste ist, ist im Prinzipien-
modell prima facie gesollt, und was im Wertermodell definitiv das beste ist, ist
im Prinzipienmodell definitiv gesollt". No enfoque aqui enunciado, o melhor se
afigura devido, eis que se vê a hierarquização com característica eminentemente
axiológica, bem como a solução das antinomias mostra que (a) estas são, no fun-
do, axiológicas e (b) quando ocorrem entre regras ocultam invariavelmente uma
antinomia superior de princípios. O asseverado restará mais nítido no capítulo das
configurações hipotéticas.
68. Justamente em função de a vontade da Constituição ser construída no
círculo hermenêutico é que se justificam, interna e externamente, os vários modos
O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 61
b) a necessidade, sob o ângulo da coerência, de realizar uma am-
pliada e robustecida interpretação conforme a Constituição, justamente
para assegurar a aludida hierarquização - mais do que lógica, eminente-
mente teleológica -, observando-se que o diferenciador do sistema jurí-
dico radica no primado principiológico-valorativo;
c) a existência de princípios e objetivos em face dos quais - em caso
de incompatibilidades internas - devem as normas infraconstitucionais
guardar a função instrumental, tendo em vista a realização superior da
Constituição e a preponderância (nos últimos tempos, em afirmação in-
clusive na tradição francesa) dos direitos fundamentais em relação às
leis ou regras legais;
d) o Direito como sistema aberto e plural, embora com elementos
fixos (no sentido de considerados intangíveis topicamente pelo aplica-
dor), algo que permite melhor avaliar, V.g., o fenômeno histórico da po-
sitivação dos direitos fuI)damentais;69
e) a plausibilidade, embora com os limites do econômica e politica-
mente possível, de obtenção do Direito de modo alinhado com os princí-
pios fundamentais (vez por todas, dotados de eficácia),70 de sorte que a
omissão das providências necessárias ao resguardo desses fundamentos
deve ser prudentemente colmatada pelo intérprete, que não pode adiar
a salvaguarda atenta do Estado Constitucional e Democrático (com o
manejo moderado, por exemplo, do mandado de injunção);
f) a completabilidade, que não se confunde com a completude do
sistema jurídico, uma vez que se sublinha a dimensão tópica dos princí-
pios fundamentais;
g) a escolha hierarquizadora e a preservação da unidade como ta-
refa máxima do intérprete, especialmente ao lidar com as antinomias
(eminentemente axiológicas);
de controle de sistematicidade, como se verá no capítulo ilustrativo no Direito
Público.
69. A ideia de sistema aberto permite equacionar aquela antinomia que, de
acordo com Bernard Schwartz, é "the antinomy inherent in every system of law: the
law must be stable and yet it cannot stand still" (in A History ofthe Supreme Court,
New York/Oxford: Oxford University Press, 1993, p. 379).
70. Todos os princípios são destinados à eficácia, pois não há dúvida que
existe, para além das relações de administração, a vedação do descumprimento dos
objetivos fundamentais. V., a propósito, o meu livro O Controle dos Atos Adminis-
trativos e os Princípios Fundamentais, 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2009,
pp. 125-128.
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62 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO O SISTEMA JURÍDICO: REDE HIERARQUIZADA DE PRINCÍPIOS 63

h) a sugestão de uma melhor interpretação tópico-sistemática71 das antinomias e das lacunas pressupõe, à base do conceito esposado
dentre as "n" possibilidades interpretativas, isto é, aquela que souber de sistema jurídico, outra síntese, qual seja, aquela que deve ser em-
hierarquizar sistematicamente de modo o mais universalizável no en- preendedida entre as metodologias estruturais e funcionais. 75 Vale dizer,
frentamento das contradições ou incompatibilidades, contribuindo para a abordagem do Direito há de ser, metodologicamente, estruturalista e
o primado do respeito à hierarquia mais ética do que formal, numa in- funcionalista, a um só tempo. Impõe-se sobrepassar igualmente esta per-
telecção apta a promover a universalização de soluções sem quebra do sistente dicotomia se se quiser uma visão empiricamente adequada76 do
sistema. nosso objeto de interpretação.
O que é mais relevante: a par de tudo e ao mesmo tempo, no con- Recapitulando, ter-se-á bem presente, ao longo desta obra, o vitali-
ceito de sistema esposado enxerga-se a possibilidade epistemológica de zante conceito de sistema jurídico como uma rede axiológica e hierar-
uma síntese hermenêutica entre as visões da Tópica jurídica e a dos quizada topicamente de princípiosfundamentais, de normas estritas (ou
defensores do pensamento sistemático, aparente e só aparentemente regras) e de valores jurídicos cujafunção é a de, evitando ou superando
em contradição. 72 Aliás, como sensatamente reconhece Claus-Wilhelm antinomias em sentido amplo, dar cumprimento aos objetivos justifica-
Canaris,73 deve haver interpenetração e complementação mútua dos dores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstancia-
pensamentos sistemático e tópico, afastada uma alternativa rígida entre dos, expressa ou implicitamente, na Constituição.
ambos. Entretanto, diferentemente de Canaris, neste ponto, não se deve
ver a tópica apenas como complementar ou secundária.
Aqui urge dar um passo adiante e afirmar a natureza tópico-siste-
mática dos princípios que compõem o cerne da ordem jurídica. A propó-
sito, em capítulo específico reiterar-se-á não só o telos ou o ideal, mas a
realidade viva dessa identidade essencial, que dá ensejo à compreensão
tópico-sistemática74 do Direito Positivo e supera antigas e custosas con-
traposições.
Com ênfase, aconselhável observar que a perspectiva integradora
dos pensamentos tópico e sistemático quando do enfrentamento do tema

71. Embora polêmica, aceitável, de maneira temperada, a assertiva de Ronald

Dworkin: "An interpretation aims to show what is interpreted in the best light possi-
ble" (in Law s Empire, cit., p. 243).
75. No enfoque conceitual proposto ambas as metodologias serão utilizadas
72. Convém reiterar que foi exatamente essa aparente contradição entre os
como essencialmente idênticas e não-excludentes. A esse respeito, v. Juarez Freitas
pensamentos sistemático e tópico que impediu, por muito tempo, uma compreensão
in "Funcionalismo e estruturalismo: diálogo com o pensamento jurídico de Norberto
mais profunda, por exemplo, da Tópica de Aristóteles (in Topica, Oxford: Oxford
Bobbio", Revista da Ajuris 53/34-49, Porto Alegre: Ajuris, 1991. Ali está assinalado
Classical Texts, 1989). Há um respeitável grupo de intérpretes do corpus aristote-
(pp. 45-46): "Ao apontar a segunda dificuldade da análise funcional, Bobbio está
licum que ainda hoje insiste em estabelecer uma completa separação entre a lógica
certo ao criticar aqueles que, por exemplo, põem no mesmo plano funções do Di-
formal e a dialética, sem perceber que em Aristóteles ambas podem trabalhar em co-
reito, como a segurança e a resolução dos conflitos de interesses ou a organização
munhão. Nesse sentido, oportuno lembrar as palavras de Donald J. Allan quando as-
do poder político, pois há necessidade de estabelecer uma concatenação hierárquica
sinala que "la démonstration et le raisonnement dialectique ne sont pas sans rapports,
entre as funções, para não se confundir o problema da função do Direito numa de-
car ce demier peut aider, dit le Philosophe, à établir les 'prémisses de toute sciences';
terminada situação com o problema de dizer qual deve ser esta mesma função. No
(00')" (in Aristote - Le Philosophe, LouvainlParis: Éditions Nauwelaerts/Béatrice-
entanto, outra vez, tal risco não é afastado, como se a lógica da análise funcional,
-Nauwelaerts, 1962, p. 134). Em sintonia com Allan, v., também, J. D. G. Evans
como lógica da relação meio-fim, pudesse deixar de ter o seu necessário e inesca-
in Aristotle s Concept ofDialectic, Cambridge: Cambridge University Press, 1978.
pável poder prescritivo, aliás endossado, em outros textos, pelo próprio Bobbio".
73. Pensamento Sistemático... , cit., pp. 269-277.
76. Embora a dimensão pragmática não deva ser hiperinflacionada como em
74. No capítulo sobre identidade essencial entre Tópica e pensamento sistemá- determinadas abordagens. V., para exame isento, Richard Posner in Para Além do
tico mostrar-se-ão aspectos aprofundados do fenômeno aqui aludido. Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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CAPÍTULO 2
A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA:
OUA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA É SISTEMÁTICA
OU NÃO É INTERPRETAÇÃO

2.1 Revendo a tarefa da interpretação jurídica. 2.2 Interpretar uma

norma é interpretar o sistema inteiro: qualquer exegese comete, direta
ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito. 2.3 A inter-
pretação tópico-sistemática como hierarquizadora e finalística em face
da natureza dp ordenamento jurídico. 2.4 A interpretação literal como
apenas uma fase da exegese tópico-sistemática. 2.5 Reconceituando a
interpretação sistemática do Direito.

2.1 Revendo a tarefa da interpretação jurídica

Uma vez fixado o conceito-guia de sistema jurídico, o momento é
de estabelecer o de interpretação tópico-sistemática para dar conta da
hodierna complexidade das funções do Direito Positivo, sobremodo em
face dos desafios trazidos pela positivação do princípio da moralidade e
pela crise regulatória dos mercados financeiros, l apenas para exemplifi-
car. Mudanças que requerem contínua transformação de conteúdos e de
estilos interpretativos, com o propósito de ofertar uma melhor resposta
às exigências de legitimidade e de fundamentação. Nesse quadro, a evo-
lução se impõe na defesa somente da variação positiva e benéfica. Ao
mesmo tempo, o intérprete se afirma como histórico justamente ao não
aceitar, de modo acrítico, tal condicionamento. Por isso, a decisão do
intérprete há de ser, eminentemente, a resultante do diálogo construtivo
com o texto normativo e com a realidade em suas várias dimensões.
O intérprete tópico-sistemático lúcido deve assimilar que, para
além de unilateralismos e de simplificações reducionistas, é a visada

1. Sobre o tema do princípio constitucional da moralidade, v. Juarez Freitas in

O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, 4ª ed., cit., p.
87. Sobre a crise do mercado financeiro, v. o meu estudo "Novo modelo de direito da
regulação e desafios pós-crise global", Regulação, voI. 11, Fortaleza: ABAR-ARCE,
2009, pp. 15-34.

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 ~
66 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
de conjunto que torna cognoscível o Direito em sua riqueza valorativa
(o todo é maior do que as partes e deve ser, também, melhor), de sorte
a transcender a antiga e inconsistente técnica de decompor em elemen-
2
tos simples, porque o pensamento apto a dar conta da complexidade
mostra-se dialético em todas as suas etapas.
Por isso, não se deve descurar da elaboração de uma nova maneira
de compreender o sistemajurídico, que ultrapasse, de um lado, os pas-
sivismos e os emotivismos 3 e, de outro, que estimule, numa era de in-
determinações exacerbadas, a vinculação do intérprete menos ao texto
legislado fugaz e episódico, 4 mais aos princípios e objetivos fundamen-
tais do ordenamento, assim como destacado no capítulo antecedente.
É dizer, de acordo com as diretrizes legítimas que devem ser contem-
pladas com primazia pelo positivador derradeiro - o intérprete, na sua
2. Convém referir, entre outros, Edgard Morin: "O paradigma da complexidade
pode ser enunciado não menos simplesmente que o da simplificação: este impõe
separar e reduzir, aquele une enquanto distingue" (in "Da necessidade de um pen-
samento complexo", Para Navegar no Século XXI, Porto Alegre: Edipucrs/Sulina,
1999, pp. 34-35). V. o mesmo Morin, por exemplo, in Ciência com Consciência,
7ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, notadamente ao afirmar a razão como
evolutiva (p. 167).
3. Sobre emotivismo, v. Alasdair MacIntyre in After Virtue, a Study in Moral
Theory, 2ª ed., London: Duckvorth, 1985. De outra parte, a aludida nova maneira de
compreender o Direito remete ao tema da incerteza. V., a propósito, W. Heinseberg
(in Physics and Beyond, London: Allen and Unwin, 1971), bem como o citado Ilya
Prigogine (Ilya Prigogine e Gregoire Nicolis in Exploring Complexity, cit., 1989),
sem prejuízo de várias contribuições que vêm promovendo uma autêntica alteração
de paradigma.
4. Reconheça-se, porém, a inescapabilidade de um moderado originalismo
textuaL Reconhece-o Laurence Tribe (in American Constitutional Law, cit., p. 51),
sublinhando a diferença entre original meaning e original expectation (p. 53) e pro-
clamando o texto da Constituição como "one of many possible 'sources' of Fun-
damental Law" (p. 35). Ainda: "The text of the Constitution is not just words but
also spaces, often gaps arranged in telling ways, not simply ambiguities around the
edges - spaces which, it may truly be said, structures fiH and whose patterns struc-
tures define" (p. 47). Depois de destacar os modos de interpretação (text, structure,
history, ethos e doctrine) (pp. 31-89), aponta, em parte, os limites do originalismo.
De Laurence Tribe e Michael Dorf, v. especialmente a noção de constitutional con-
versation (in On Reading the Constitution, Cambridge: Harvard University Press,
1991). Sobre Tribe, v. Enrique Alonso García in La Interpretación de la Constitu-
ción, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984, pp. 317 e ss. Convém,
ainda, noutro enfoque, ter presente Stanley Fish, influenciado pela reception theory,
ao assinalar que o texto é "the structure of meanings that is obvious and inescapable
from the perspective ofwhatever interpretive assumptions happen to be in force" (in
Is There a Text in This Class?, Cambridge: Harvard University Press, 1980, p. vii).
~
A INTERPRETAÇÃO TáPICO-SISTEMÁTICA 67
interação prudente e comedida com o ordenamento e com as reivindica-
ções do caso. 5 Com efeito, uma interpretação sistemática madura afasta,
entre outras, as falácias da dis-integration e da hyper-integration,6 sem
sucumbir a niilismo de qualquer espécie.
A esse propósito, imperativo reexaminar a própria tarefa hermenêu-
tica, sob o prisma de alcançar o irrenunciável e prioritário melhor signi-
ficado a partir de uma dada escolha axiológica, lidando com princípios,
normas em sentido estrito (ou regras) e valores, devidamente hierarqui-
záveis e nunca inteiramente hierarquizados de modo prévio. Tudo com
a presumível observância das demandas concomitantes de segurança e
de justiça. 7
Mais: a interpretação sistemática tem de levar em consideração a
abertura do sistema, entendida de modo similar àquele esposado por
Claus-Wilhelm Canaris - a saber, como incompletude do conhecimento
científico e como modificabilidade da própria ordem jurídica. Uma e
outra modalidades de abertura são características inafastáveis do Direi-
5. Indispensável admitir que os juízos valorativos não pertencem a uma só
classe e, é claro, as interpretações podem ter diversos propósitos, sob pena de mere-
cimento da crítica de Andrei Marmor (endereçada a Ronald Dworkin) (in Interpre-
tation and Legal Theory, Oxford: Clarendon Press, 1992). Todavia, tal admissão não
põe por terra a chamada tradição hermenêutica, uma vez que não acarreta afirmar a
inexistência de hierarquia possível entre as várias hierarquizações: o critério da uni-
versalização, sem o formalismo kantiano, pode ser acolhido com devidas cautelas,
complementando a fundamentação do Direito. Em sentido diverso, v. E. D. Hirsch,
acreditando na intenção do autor independentemente do leitor, apesar de reconhecer:
"We, not our texts, are the makers of the meanings we understand" (in Validity in
Interpretation, New Haven: Yale University Press, 1967, p. 76).
6. Dizem bem Laurence Tribe e Michael Dorf: "When we say reading by 'dis-
integration', we mean approaching the Constitution in ways that ignore the salient
fact that its parts are linked into a whole - that it is a Constitution, and not merely an
unconnected bunch of separate clauses and provisions with separate histories, that
must be interpreted. When we say reading by 'hyper-integration', we mean approa-
ching the Constitution in ways that ignore the no less important fact that the whole
contains distinct parts - parts that were, in some instances, added at widely separated
points in American history; parts that were favored and opposed by greatly disparate
groups; parts that reflect quite distinct, and often radically incompatible premises"
(in On Reading... , cit., p. 20).
7. Não pode ser justo o que faz perecer o mundo, mas entre duas concepções,
a saber, the rule oflaw as certainty e the rule oflaw as justice, não há como deixar
de optar pela segunda, até pela incoerência da primeira, assim como exposta por
Luc Tremblay (in The Rule ofLaw, Justice and Interpretation, Montreal: McGill-
-Queen's University Press, 1997, pp. 149-183). A propósito, ainda, o tema da justiça
merecerá capítulo próprio, somente com o escopo de mostrar um caso particular de
antinomia, não para fornecer uma teoria sistemática da justiça.
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68 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
to, e nada autoriza crer que, em razão de semelhante natureza, possa ser
inviabilizada a formação do sistema, senão que, longe de inviabilizá-Ia,
justamente ela é que toma viável a determinação a partir da realidade. 8
Tal abertura, além disso, deve ser traduzida como possibilidade
de modificações restauradoras do sistema objetivado, não apenas em
função das alterações legislativas, mas por intermédio da interpretação
como fonte material de notável valia. A aceitação dessa característica de
abertura não implica acolhimento acrítico e dispersivo da categoria
de mobilidade do sistema ou de partes do sistema.
Ora, se se entender por mobilidade a impossível configuração de
prescrições totalizantes, além da posição de igualdade básica ou po-
tencial no peso da maior parte dos princípios,9 forçosamente deve-se
admiti-la. No entanto, exceção deve ser feita, ao menos, em relação ao
próprio "metacritério" da hierarquização axiológica, a ser exposto em
capítulo específico, em sua branda universalidade, uma vez que, inevi-
tavelmente, a interpretação jurídica hierarquiza e, desse jeito, confere
firmeza evolutiva a cada uma das partes do sistema. Tal "metacritério"
determina a maior ou a menor mobilidade das partes e a eventual in-
tangibilidade de um dado ponto, topicamente considerado e de modo
consistentemente sistemático.
Além disso, a cada passo tomam-se pretéritas as posturas daque-
les que presumiam irrelevante o relacionamento da exegese às funções
sociais e morais do Direito,lO já pela incorporação contínua de novas
8. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 109.
9. Canaris, idem, p. 127. Explica: "A 'mobilidade' do sistema é, muitas vezes,
confundida com a sua 'abertura'. Esta utilização linguística seria em si inteiramente
possível (...) mas não se recomenda; o termo foi fixado por Wilburg com outro sen-
tido (...)". Canaris expõe bem a posição de Wilburg, dizendo que o sistema móvel
ocuparia uma posição intermediária entre a previsão rígida e a cláusula geral (p.
143), externando juízo bastante favorável à contribuição dada. Em nossa abordagem,
mister considerar que a rigidez do sistema existe como fruto do próprio manejo do
metacritério hierarquizador, sendo que se admitem partes imóveis, potencialmente a
depender da escolha sistemática. Parece, pois, que a dicotomia tem escasso sentido
l?rático, já que a necessidade de hierarquização é maior ou menor, mas onipresente.
É como se a rigidez do sistema dependesse muito - embora não exclusivamente - da
constante interpretação hierarquizadora.
10. Como observa Pietro Perlingeri: "11 Diritto non ha tanto la funzione di
fotografare I' esistente (...) il Diritto piuttosto e forza promozionale che si propone la
trasformazione della realtà secondo le indicazioni che prevalgono in sede politica.
(...) la norma e strumento serio di trasformazione anche delle strutture economiche"
(in "Fonti normative e interpretazione", II Diritto Privato Futuro, Napoli: Edizioni
Scientifiche Italiane, 1993, p. 82).
~
A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 69
valorações,l1 já pela abertura mencionada, já por não se apresentar o sis-
tema como objeto inteiramente autônomo,12 enfim por não se confundir
com o texto, embora certamente este o integre.
A interpretação sistel!lática envolve, existencial e consciencialmen-
te, o sujeito que interpreta e "lê" o sistema. Não lhe permite ser apenas
um descobridor ou revelador de significados. Quer que atue como espé-
cie de conformador prescritivo e partícipe responsável e estruturador do
objeto. Daí segue a inviabilidade comprovada da separação extremada
entre sujeito e objeto,13 conquanto ainda a preconizem correntes supos-
11. Justifica-se uma nova Hermenêutica, como bem o propõe Paulo Bonavides
(in Teoria Constitucional da Democracia Participativa, 3ª ed., São Paulo: Malheiros
Editores, 2008).
12. Por isso não se exacerba a autonomia do objeto, conquanto necessário re-
cordar que Emilio Betti (in Teoria Generale della lnterpretazione, 2ª ed., Milano:
Dott. A. Giuffre Editore, 1990), depois de explicitar o seu primeiro cânone - "se
le forme rappresentative chê costituiscono l'oggetto dell'interpretazione, sono es-
senzialmente oggettivazioni di una spiritualità che vi si e calata, e chiaro che esse
debbono essere intese secondo quello spirito che in esse si e oggettivato" (p. 305)
-, propõe um segundo cânone que o relativiza: "il criterio, cioe, di ricavare dai sin-
goli elementi il senso deI tutto, e d'intendere l'elemento singolo in funzione deI
tutto di cui e parte integrante" (p. 309). Além disso, introduziu o cânone da attualità
dell 'intendere, pelo qual o intérprete é chamado a refazer, em si, o processo genético
(p. 314), aceitando a subjetividade inafastável, cuidando de afastar "propri pregiu-
dizi e abiti mentali ostacolanti" (p. 318). O quarto cânone, apenas para recapitular,
é o da adeguazione dell 'intendere ou da retta corrispondenza o consonanza erme-
neutica (p. 319). Este quarto cânone, reescrito à luz do contemporâneo conceito
de adequação (vinculado à proporcionalidade) e sem a preocupação excessiva de
afinidade do espírito do intérprete com o espírito do outro (ecos do primeiro cânone),
bem como retirando da transposição o excesso de preocupação com o passado (no
terceiro cânone) e, finalmente, preservando, na íntegra, o segundo e deixando vir-
tualmente de lado o primeiro, toma possível aproximar Betti de Gadamer em nossa
perspectiva tópico-sistemática. Registre-se, a propósito, que há os que entendem (v.
Ricardo Guastini, in Dalle Fonti alle Norme, Torino: G. Giappichelli Editore, 1992,
p. 109) que as normas não preexistiriam à interpretação, sendo delas resultado. Aqui
se afirma a preexistência do objeto, porém altamente relativizada, porque o signi-
ficado será sempre aperfeiçoado como resultante da interação do intérprete com o
objeto.
13. V. Richard Palmer (in Hermenêutica, Lisboa: Edições 70, 1986), ao efe-
tuar a sua crítica à concepção "tecnológica" da interpretação, pois esta promove a
irrelevância que lamenta: o diálogo - e não a dissecação - abre o universo da obra
(p. 18). Postula a "compreensão humanística: uma obra não é um objeto (p. 21),
mas encontro histórico que apela à experiência pessoal de quem está no mundo,
porque - influência de Heidegger - existir seria interpretar. Em trilha similar, v.
Emildo Stein (in Compreensão e Finitude, Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 259), acen-
tuando que o caráter circular da compreensão é obra do próprio ser, donde o seu
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70 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
tamente "realistas", as quais, sem o querer, engendram reducionismos
insustentáveis.
Essa alteração paradigmática (derivada do círculo hermenêutico)
mostra-se ainda mais cogente quando se percebe o desenvolvimento das
funções promocionais do Direito, que exigem o reexame do conceito de
norma jurídica, imbricado com o sugerido conceito de sistema. Nesse
particular, necessário acolher a descrição das normas dotadas de sanções
negativas e positivas, bem como promover o alargamento da mediação
jurídico-sistemática como efetivadora e apta a - presentes pressupostos
excepcionais - impor prestações positivas independentemente do reco-
nhecimento infraconstitucional de direitos fundamentais (especialmente
se se tratar do núcleo essencial dos direitos de segunda "geração").14
Alargamento comedido e prudente, capaz de sintonizar a expansão dos
caráter inevitável. Sobre Martin Heidegger, como teórico da compreensão temporal
como revelação ontológica (além do modelo sujeit%bjeto e vendo a interpretação
como o processo pelo qual o ser se revela, jamais a captação sem pressupostos de
algo dado), v. especialmente Sein und Zeit, 1967. Voltando a R. Palmer (in Her-
menêutica, cit.): expõe várias acepções de Hermenêutica, a saber, como ciência de
interpretação (princípios de uma exegese adequada de textos), como as que seguem:
a) teoria de exegese bíblica (pp. 44-48); b) metodologia filológica geral (p. 49);
teoria secular de interpretação ou conjunto de regras gerais de exegese filológica (p.
49); ciência da compreensão linguística (Schleiermacher): ciência que descreve as
condições da compreensão (p. 50); c) base metodológica dos Geisteswissenschaften
(Dilthey) (pp. 50-51); d) fenomenologia da existência e da compreensão existencial
(Heidegger e Gadamer); e e) sistemas de interpretação de símbolos e mitos (ênfase
cultural) (Ricoeur): processo de decifração e de revelação do significado mais ocul-
to (pp. 52-53). Em nossa ótica, a interpretação sistemática está presente em cada
uma delas e em todas. De sua vez, cumpre mencionar Michael Moore, ao distinguir
quatro modelos de interpretação: "the communicative model, where necessarily one
seeks authorial intention if one is interpreting anything; the metaphysical dualist
model according to which objectively true interpretations are just there to be disco-
vered in the special class of phenomena we call meaningful; the conventionalist or
sociological model, according to which interpretation occurs whenever interpreti-
ve communities arise, developing concepts and practices of interpretation; and my
own modeI, what I call the modest interpretivist modeI. On this last model inter-
pretation is an activity people do when they have some good reason to treat some
phenomenon as a syntactically individuated text, valid interpretations of which will
give them new, Intentionality-dependent reasons for belief or for action" (in "Inter-
preting interpretation", in Andrei Marmor (org.), Law and Interpretation, Essays
on Legal Philosophy, Paris: L'Harmattan, 2001, p. 21). Em nossa perspectiva, a
adequada assimilação do círculo hermenêutico resolve bem os impasses dos vários
modelos, especialmente quando se percebe e assume a essencial identidade entre os
pensamentos tópico e sistemático.
14. O tema será desenvolvido no derradeiro capítulo.
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A INTERPRETAÇÃO TáPICO-SISTEMÁTICA 71
direitos fundamentais com a gradativa revisão do sistema de fontes, no
seio do modelo romanístico. Com efeito, todo intérprete tópico-siste-
mático, na condição de positivador 15 derradeiro, culmina o aperfeiçoa-
mento do Direito Positivo e, em razão disso, não presta vassalagem às
normas em sentido estrito, nem aceita -subalterno - horrendas omissões
impeditivas da tutela inadiável do aludido núcleo essencial dos direitos
nas suas múltiplas facetas.
Nesse diapasão, toda interpretação jurídica (englobando os tradi-
cionais métodos de interpretação - v.g., literal, histórico, teleológico,
sociológico) emerge como um só processo tópico e sistemático, que
toma imperiosos a viabilização do equilíbrio entre teorias normativas
e seus efeitos, o reconhecimento da impossibilidade do enquadramento
ou método único e a busca de soluções respeitadoras do ordenamento na
sua fecunda dimensão axiológica e do seu caráter histórico não-linear,
compreendido como prqjeto holístico, potencialmente coerente 16 e per-
meável a evolutivas mutações.
Logo, sem comungar com qualquer escravidão mental - não abo-
lida pelo originalismo extremado, nem pelo textualismo radical _,17 o
intérprete sistemático consciente guarda vínculo com a excelência da
efetividade do discurso ético-jurídico. Deve fazê-lo, entretanto, naquilo
que este possui de eticamente superior, prioritário, relevante e universa-
lizável, conferindo-lhe, simultaneamente, a devida eficácia (no sentido
15. Sobre positividade não há como deixar de referir, embora em sentido de
condição para uma moderna sociedade, Niklas Luhmann, in "Positivitat des Rechts
aIs Voraussetzung einer modernen Gesellschaft", Ausdifferenzierung des Rechts,
Frankfurt: Suhrkamp, 1981,pp. 113-153.
16. Mesmo sem se cogitar de coerência e de consistência no mesmo sentido
do consequentialist argument de Neil MacCormick, está certo ao assinalar que
as decisões têm que fazer sentido no mundo e também no contexto do sistema
legal (in Legal Reasoning and Legal Theory, Oxford: Clarendon Press, 1978, p.
103). O pragmatismo (de Charles Pierce, John Dewey - entre outros, inclusive
Richard Posner) tem o mérito de realçar a dimensão empírica, mas não deve ser
exacerbado.
17. Em sentido algo distinto, Jules Coleman e Brian Leiter defendem uma ob-
jetividade modesta ("Determinacy, objectivity, and authority", in Andrei Marmor
(org.), Law and Interpretation, Essays in Legal Philosophy, Oxford: Clarendon Pa-
perbacks, 1997, p. 256). Para a visão originalista mais extremada, v. Robert Bork,
"The original understanding", in Susan Brison e Walter Sinnot-Annstrong (orgs.),
Contemporary Perspectives on Constitutionallnterpretation, Boulder: Westview
Press, 1993. A crítica a este tipo de originalismo será retomada no capítulo ilustrati-
vo no Direito Público.
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72 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
dantes assumido de vedação do descumprimento dos objetivos funda-
mentais da República), com os desdobramentos coerentes. 18
Nessa ótica, deve formular lídima mediação aperfeiçoadora ao
tentar construir decisões sincrônicas com o sistema e com a socieda-
de, sem adotar soluções contra legem, em que pese exercer atividade
assumidamente positivadora (para além da deslocada polêmica sobre a
eventual criação ou "acréscimo" de Direito por essa via). Adota, quando
necessário, e com parcimônia, a técnica da exegese corretiva, tendo pre-
sente que a técnica do pensamento tópico não difere essencialmente da
técnica da formação sistemática. 19 Ambas são exteriorizações do poder
de hierarquização e da mesma tarefa de proteção, mais do que da norma
isolada, da sistematicidade.
O intérprete tópico-sistemático precisa, pois, ao concretizar o Direi-
to, preservar a sua unidade substancial e formal 2o e sobrepassar contra-
dições nefastas, tudo sem descurar daquele potencial de transformação
que se nutre da fecundidade das boas antinomias (um dos temas do se-
guinte capítulo). Ademais, cônscio de que os princípios nunca devem ser
eliminados mutuamente, ainda quando em colisão ou em contradição.
Mais importante: ciente de que toda resolução de antinomias de regras
ou normas estritas oculta campo de expressivas possibilidades principio-
lógicas, não apenas jogos de palavras.
Numa adequada interpretação sistemática, sem que se perpetue -
como advertido no capítulo sobre o conceito de sistema - o injustificável
corte entre compreender e explicar,21 os princípios e objetivos funda-
18. Acerca de coerência, numa ambiciosa visão geral, apesar de não se concor-
dar com todas as suas premissas, v. E. Wilson in Consiliense, New York: Random
House, 1999.
19. O tema da identidade essencial entre pensamento sistemático e Tópica será
objeto, dada a sua relevância, de capítulo específico do presente livro.
20. "La Constitución es un todo en el que cada precepto adquiere valor y senti-
do en función deI conjunto" (STC espanhol 101/1983, 18 de novembro).
21. Dilthey, entendendo a Hermenêutica na condição de fundamento das Geis-
teswissenschaften, destaca que o pensamento não pode ir além da experiência da
vida (Erlebnis), o que o faz defender uma relação sistemática entre vida, expressão
e compreensão. Infelizmente, apesar da bela intuição, separa compreensão (seara
humanística) e explicação (ciências da Natureza) sem ultrapassar a suposta obje-
tividade reducionista no campo das ciências. Nada obstante, Dilthey operava com
a ideia de círculo hermenêutico, entendendo o sentido compreendido exatamente
na interação do todo e das partes. Seja como for, seu aporte é de útil conhecimento
para o cultivador criterioso da Hermenêutica. V., entre outras obras de W. Dilthey
in Hermeneutics and the Study of History, Princeton: Princeton University Press,
1996, 4 vols.
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A INTERPRETAÇÃO TáPICO-SISTEMÁTICA 73
mentais passam a ser vistos como altos pontos de convergência no bojo
do Direito Positivo. De sorte que a diferenciação entre as várias esferas
(públicas e privadas), mais do que pelos interesses em jogo ou em ra-
zão dos sujeitos, deve ser efetuada pela dominância desses princípios e,
portanto, dos objetivos da República. Convém notar, a propósito, que
as distinções entre o Direito Público e o Direito Privado, na perspectiva
tópico-sistemática, despontam como funcionais e, de conseguinte, rela-
tivas ao grau da preponderância do plexo de princípios, mais do que das
regras. 22 Importa, ainda, sublinhar que nas relações jurídicas se observa-
rá a predominância de tais ou quais princípios ainda quando regidas, à
primeira vista, por regras.
Nesse horizonte, em toda relação jurídica, constata-se o dever de
incidência preponderante, direta ou indiretamente, de um bloco de prin-
cípios, motivo pelo qual qualquer compartimento do sistema desvela-se
ou se fixa, por assim dizer, desde o plano superior. Uma visão sistemática
bem sucedida (complexa e não-unilateral) veda, desse modo, qualquer
relação jurídica que implique o exercício das liberdades em detrimento
da preservação de tais diretrizes devidamente relativizadas entre si.
2.2 Interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro:
qualquer exegese comete, direta ou obliquamente,
uma aplicação da totalidade do Direito
Assentes tais pressupostos, convém assinalar que todas as frações
do sistema guardam23 conexão entre si. Daí resulta que qualquer exegese
comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios, de regras
e de valores componentes da totalidade do Direito.
Retido esse aspecto, registre-se que cada preceito deve ser visto
como parte viva do todo, eis que apenas no exame de conjunto tende a
ser melhor equacionado qualquer caso problemático, quando se almeja
a bem-fundamentada hierarquização tópica dos princípios proeminen-
tes. 24 Com efeito, ao hierarquizar prudencialmente princípios, regras e
22. Sem que, por exemplo, seja preciso invocar a teoria dos dois níveis (Zweis-
tufentheorie), tema a ser retomado no derradeiro capítulo.
23. Pense-se, nesta linha, em Martin Kriele, ao procurar o "interesse mais fun-
damental" (in Theorie der Rechtsgewinnung, Berlin: Duncker & Humblot, 1976).
24. Para Gustavo Zagrebelski (in 11 Diritto Mite ... , cit., 1992) o caráter práti-
co da interpretação implica tensão entre lei e realidade. Tomar exclusivamente em
consideração os casos daria lugar a uma pura e simples "casuística" (excesso de
concreção), mas tomar em consideração exclusivamente o ordenamento conduziria
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74 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
valores, a interpretação tópico-sistemática opera escalonando-os, reno-
vando - se necessário - os seus significados. Quando configurada an-
tinomia lesiva ou para evitá-la, os princípios devem ocupar o lugar das
diretrizes harmonizadoras25 ou solucionadoras, na base e no ápice do
sistema, vale dizer, fundamento e cúpula do sistema.
Inegável que, por não haver hierarquia a priori que interdite ou
dispense interpretação superveniente,26 o sistema requer constante e
contínua reelaboração, donde segue que a hierarquização não pode ser
confundida com mero elemento ou método interpretativo. Na expres-
são de Riccardo Guastini, uma "hierarquia axiológica é uma relação de
valor criada (já não pelo próprio Direito, como a hierarquia das fontes),
mas pelo juiz constitucional, mediante um juízo de valor comparativo
(...)".27 Bem por isso, nesse livro, sustenta-se que a exegese sistemática
necessita abarcar todos os métodos úteis, no intuito de harmonizá-los
a uma ciência teorética (excesso de abstração). Neste prisma, a interpretação seria a
busca da norma adequada tanto ao caso como ao ordenamento, estando o intérprete
a serviço (em atividade mediadora) de ambos. Há, portanto, manifesta afinidade
com a nossa perspectiva tópico-sistemática. Nesta ótica, a compreensão do processo
mental que toma possível tal escolha reside na Dialética, aqui aceita, neste ponto
específico, com Platão, quando, na voz do estrangeiro, sintetiza o labor de quem
pratica a ciência dialética: "Aquele que assim é capaz discerne, em olhar penetrante,
uma forma única desdobrada em todos os sentidos, através de uma pluralidade de
formas, das quais cada uma permanece distinta; e mais: uma pluralidade de formas
diferentes umas das outras envolvidas exteriormente por uma forma única reparti-
da através de pluralidade de todos e ligada à unidade; finalmente, numerou formas
inteiramente isoladas e separadas; e assim sabe discernir, gêneros por gêneros, as
associações que para cada um deles são possíveis" (in Diálogos, São Paulo: Abril
Cultural, 1983, p. 176).
25. Registre-se posição distinta de Larry Alexander e Ken Kress ("Against
legal principIes", in Andrei Marmor (org.), Law and Interpretation, Essays in Legal
Philosophy, Oxford: Clarendon Paperbacks, 1997). A despeito de suas argumenta-
ções, os princípios, devidamente interpretados, não parecem afastáveis, porque, uma
a uma, todas as objeções apontadas parecem suplantáveis pelo intérprete sistemáti-
co, nos termos aventados nesta obra.
26. O a priori existe no sentido de pré-compreensão, mas não suprime a in-
determinação garantidora da liberdade do intérprete para hierarquizar, sob pena de
não compreender. Sobre a superação desta dicotomia entre a priori e a posteriori,
v. Boaventura de Sousa Santos, examinando o paradigma emergente: "O Direito,
que reduziu a complexidade da vida à secura da Dogmática, redescobre o mundo
filosófico e sociológico na busca da prudência perdida" (in Um Discurso sobre as
Ciências, cit., p. 46). E, adiante (p. 53): "No paradigma emergente, o caráter autobio-
gráfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido".
27. "Teoria e ideologia da interpretação constitucional", Revista Interesse PÚ-
blico 401250, Belo Horizonte, Fórum, 2006.
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A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 75
na prática, 28 de sorte a resguardar e a manter congruência interna, em
meio à multiplicidade axiológica, na construção e na reconstrução do
Direito.
Em outras palavras, não se deve considerar a interpretação tópico-
-sistemática29 como simples elemento da interpretação jurídica. É a in-
28. Tem razão, ao menos em relação à denominada interpretação judicial,
Gustavo Zagrebelski: "L'interpretazione giuridica e attività eminentemente prati-
ca, nel senso che e giustificata e condizionata da casi pratici ed e finalizzata alla
loro risoluzione" (in La Giustizia Costituzionale, cit., pp. 39-40). Bem por isso,
assinala, tendo presente o círculo hermenêutico: "L'interpretazione giudiziale puà
allora essere definita la ricerca della norma regolatrice adeguata sia aI caso che aI
Diritto" (p. 41). Destaca a pluralidade de métodos como condição para uma ri-
cerca aperta adequada ao caso (p. 48). Mas adverte, com propriedade: "Un punto
deve egualmente essere considerato con la massima cura: il carattere sistematico
deI Diritto (daI quale nasce la possibilità di procedere attraverso sue progressive
'dogmatizzazioni' (...).11 caso dunque preme sul Diritto in vista di una regola, ma
di una regola giustificata si~tematicamente" (p. 50). Após realçar o caráter aberto
da Constituição, formula seus "cânones" (pp. 54-61). Ei-los: a) "la decisione dei
casi costituzionali non deve pregiudicare la libertà deI processo politico e la piu
ampia partecipazione ad esso"; b) "la Corte deve pronunciarsi sui casi, evitando
che le sue pronunce assumano il valore supplementare di legittimazione o, peggio,
de legittimazione in astratto di forze e indirizzi politici"; "e vietata la sistematizza-
zione rigida dei valori e dei principi costituzionale"; c) "1' interpretazione della
Costituzione come mezzo per promuovere il valore della Costituzione come inte-
ro"; d) "1'esigenza di decisioni fondate su regole, per quanto ricostruite con tutta
la libertà di cui una giurisdizione costituzionale non pua non disporre". De outro
lado, saliente-se que o próprio "isomorfismo" somente se revela como tal nos atos
concretos de comunicação, isto é, pragmaticamente. Sobre o tema, v. Eros Grau in
La Doppia Destrutturazione dei Diritto, Milano: Edizioni Unicopli, 1996, p. 56.
Propõe, de modo estimulante, Carlos Roberto Cirne Lima (in "Analítica do Dever-
-Ser", Nós e o Absoluto, São Paulo: UFC/Edições Loyola, 2001, p. 29) um sistema
parcialmente a priori e parcialmente a posteriori, tentando construir um sistema
dialético, usando a linguagem e os meios conceituais do método analítico.
29. V., como justa homenagem à contribuição que propiciou, Carlos Maxi-
miliano in Hermenêutica e Aplicação do Direito Rio de Janeiro: Forense, 1984.
Embora pensando a interpretação sistemática como um elemento da hermenêutica
jurídica, adverte judiciosamente no sentido de que para determinar o sentido e
o alcance das expressões do Direito não se mostra suficiente conhecer as regras
aplicáveis. "Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao es-
tudo, em um encadeamento lógico (...). Descobertos os métodos de interpretação,
examinados em separado, um por um; nada resultaria de orgânico, de construtor, se
os não enfeixássemos em um todo lógico, em um complexo harmônico. À análise
suceda a síntese. Intervenha a Hermenêutica, a fim de proceder à sistematização
dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do
Direito" (p. 5). Percebe que a tarefa do intérprete reside na operação mental de sub-
jetivar a regra objetiva (p. 14), além da rigidez ilusória das palavras, em que pese
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76 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
terpretação tópico-sistemática, entendida em profundidade, o processo
hermenêutico por excelência,30 de tal maneira que ou se compreendem
os enunciados prescritivos no plexo dos demais enunciados, ou não se
logra compreendê-los sem perdas substanciais. Nessa medida, mister
afirmar, com os devidos temperamentos, que a interpretação jurídica é
sistemática ou não é interpretação.
Ainda nesse contexto, importa compreender o Direito como totali-
dade vivificada na aludida interação circular e dialética com o intérprete.
Mais do que a valorização desse ou daquele comando singularmente
considerado, urge destacar a promoção da integralidade dos princípios,
das regras e dos valores, na condição de solidários e entrelaçados. As-
sim, por exemplo, o princípio da legalidade merece o status de um dos
irrenunciáveis princípios fundamentais, mas a fixação do seu alcance
somente se viabiliza na leitura combinada com princípios de idêntico
relevo, tais como os princípios da eficácia, da moralidade ou da legiti-
midade. 3 !
Interpreta-se sistematicamente um objeto parcial sem que se trans-
forme a parte numa micrototalidade despótica e insulada, é dizer, sem
desvinculá-la da abordagem intersubjetiva. Vai daí a inferência que, bem
assimilada, altera profundamente o modo de enxergar e de praticar a me-
diação exegética: interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro,
pois qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação
da totalidade do Direito, para além de sua dimensão textual.
a acreditar não no melhor, mas no único pensamento apropriado como jurídico (p.
16). Observa, com acuidade, o desacerto da máxima in claris nonfit interpretatio,
pois todas as normas, mesmo as claras, precisam ser interpretadas. É de transcre-
ver, por oportuna, sua observação a respeito: "Os domínios da Hermenêutica se
não estendem só aos textos defeituosos; jamais se limitam ao invólucro verbal" (p.
35). Verdade que, depois de analisar disposições legislativas sobre a interpretação
e qualidades de hermeneuta, assim como a dita interpretação autêntica e doutrinaI
e conquanto afirme a interpretação como uma só (p. 87), passa a analisar os pro-
cessos de interpretação e aparentemente reduz o sentido do processo sistemático à
comparação do dispositivo sujeito a exegese com outros do mesmo repositório ou
de leis diversas, mas referentes ao idêntico objeto (p. 128). Nada obstante, percebe
que cada preceito é membro de um todo. E assinala: "Força é, também, afinal pôr
tudo em relação com os princípios gerais, o conjunto do sistema em vigor" (p.
130).
30. V. Aulis Aamio in Lo Racional como Razonable, cit., p. 190, observando
que toda interpretação jurídica é formulada no marco de uma certa sistematização.
31. O tema será retomado no capítulo da ilustração na seara do Direito Pú-
blico.
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A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 77
2.3 A interpretação tópico-sistemática como hierarquizadora
e finalística em face da natureza do ordenamento jurídico
A par disso, entende-se que a consideração de todos os fatores for-
mais não deve reduzir a importância crucial do fator teleológico-siste-
mático (com o peso decisivo do conjunto sintético de objetivos funda-
mentais da República) como determinante maior da interpretação, ainda
mais quando, nas múltiplas searas (processuais e materiais), robustece-
se a convicção da instrumentalidade do Direito. Este nasce, afinal, para
que sejam aperfeiçoadas as emanações justificáveis dos princípios e dos
valores, emanações aptas a conferir efetividade à convivência "civili-
zada" (por mais desgastada que esteja a palavra). Claro: num determi-
nado ambiente histórico, sempre sujeito a correções contínuas no seio
da variabilidade. No mais das vezes, com o diminuto passar do tempo,
o conteúdo dessas concretizações difere sobremaneira daquele conce-
bido ou idealizado pelos legisladores. Ora, é esta condição inarredável
de variabilidade32 evolutiva que empresta à interpretação (por certo, se
bem efetuada) a sua elevada dignidade e, assim, a capacidade de dis-
solver ilusionismos e falácias. Nessa medida, irretorquível que, apesar
da importância dos trabalhos preparatórios, releva é alcançar, por assim
dizer, a vontade do sistema em interação hígida com a dos intérpretes.
De mais a mais, a vontade do sistema excede a própria voluntas legis,
razão pela qual se demanda o discernimento crítico e autocrítico dos
exegetas a respeito da qualidade de suas compreensões, arraigadas ou
de superficie.
O texto legislado, por assim dizer, chega à compreensão condi-
cionado pela aplicação, no sentido descrito por Gadamer. 33 Em nosso
32. Por analogia, a respeito do conceito de variabilidade (superador da ideia
de imutabilidade das espécies), v. Charles Darwin in The Origin ofSpecies, 6ª ed.,
London: JoOO Murray, 1876, pp. 5-47. Na presente edição, ao se referir à variabili-
dade evolutiva, corrobora-se tal abordagem, amplamente confirmada pela ciência.
33. Refira-se, outra vez, a abordagem de Hans-Georg Gadamer in Verdade e
Método, vaI. 1, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 446: "O modelo da hermenêutica
jurídica mostrou-se, pois, efetivamente fecundo (...). Assim, fica claro o sentido da
aplicação que já está de antemão em toda forma de compreensão. A aplicação não
é o emprego posterior de algo universal, compreendido primeiro em si mesmo, e
depois aplicado a um caso concreto. É, antes, a verdadeira compreensão do próprio
universal que todo texto representa para nós" (pp. 446-447). Quer dizer, a aplicação
"determina desde o princípio e no seu todo" o fenômeno da compreensão (p. 426).
Ainda: o "conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso
jurídico concreto não são dois atos separados, mas um processo unitário" (p. 315).
Nesse aspecto, "compreender é sempre também aplicar" (p. 408). Ao se dar conta
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78 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
enfoque, bem assimilada, sob certos aspectos, a aplicação chega antes
e depois. É que o subconjunto das compreensões antecipadas e aplica-
tivas, goste-se ou não, integra o conjunto das compreensões atuais do
sistema jurídico. Em outro dizer, a natureza instrumental da aplicação
concita o intérprete a dialogar com as complexas programações fina-
listas do sistema, preferencialmente de maneira que nenhuma leitura
desproporcional resulte desse diálogo.
Os meios e os fins somente são justificáveis uns pelos outros. Por
isso, ao interpretar e aplicar determinada norma individual não há como
deixar de considerá-la sistemática, ou não. Contudo, tal julgamento não
deve ser a erupção de um decisionismo usurpador das competências.
Ao intérprete incumbe - convém frisar - conferir sistematicidade às
normas, vale dizer, harmonizá-las, formal e substancialmente, na ga-
rantia da salutar e democrática coexistência das liberdades e igualda-
des, no presente em que ocorre a evolução hermenêutica.
Esse controle de sistematicidade requer, em qualquer caso, que se
verifique se a norma está em rota de conflito ou contradição (formal ou
material) com o todo sistemático, ou com alguma parte significativa.
Pressupõe, porém, mais profundamente, recolher da hipotética norma,
não raro, o dever-ser que ela precisaria expressar para resguardá-la
como pertencente ao sistema. Nesse sentido, resulta impossível tentar
compor fronteiras rígidas no que tange à tarefa do aplicador, conquanto
admitidas as especificidades das distintas funções estatais, assim as de
cunho legislativo (de inovação positiva e, por exceção, concretas) e as
de ordem jurisdicional (só por exceção positivas).
Pelo exposto, imperativo não tratar o intérprete como reagente
passivo ao sistema posto, cuidando de prepará-lo para o árduo, penoso
e nem sempre bem-efetuado exercício de vigilância contínua quanto à
desses fenômenos relacionados à aplicação e à inafastabilidade das pré-compreen-
sões, Gadamer critica, com acerto, a "ingenuidade do objetivismo histórico, a saber,
a admissão de que nós podemos fazer caso omisso de nós mesmos" (p. 396). Ade-
mais, a "redução hermenêutica à opinião do autor é tão inadequada quanto a redução
à intenção dos agentes, no caso dos acontecimentos históricos" (p. 487). Reconhece,
no entanto, "a alteridade do texto" (p. 358) e realça que a "compreensão só alcança
sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não
forem arbitrárias" (p. 356). Não deixa de ver, pois, "a necessidade de corrigir a au-
tocompreensão que se exerce constantemente na compreensão" (p. 354), mas realça
que "todo compreender é sempre algo mais que a mera reprodução de uma opinião
alheia" (p. 489). Não por acaso, entre a hermenêutica e a dogmática jurídica, conclui
que a "hermenêutica detém a primazia" (p. 433).
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A INTERPRETAÇÃO TáPICO-SISTEMÁTICA 79
proporcionalidade de suas ponderações axiológicas. O intérprete sis-
tematiza - embora não inove, em regra, no sentido equivalente ao da
produção legislativa -, justamente por não se render ao pretenso abso-
lutismo das prescrições normativas. Ao fazê-lo, traça limites à própria
missão (atuação ou inércia) do legislador, o qual não está livre, sequer
com o "poder constituinte", para introduzir antinomias (por ação ou
por omissão), que imponham riscos e danos aos elementosfundantes do
sistemajurídico.
Tal atitude sensata e racional- no sentido avançado do termo, ex-
plicitado no capítulo anterior - em nada se confunde com a discriciona-
riedade pura advogada por muitos,34 nem com o arbítrio que se arrima
em argumentações falaciosa e vícios psicológicos. A interpretação faz
escolhas, sim, elege soluções, mas nunca indiferentemente, pois embo-
ra não exista "a" interpretação correta, segue o intérprete vinculado ao
dever indeclinável de ençontrar soluções sistematicamente melhores, ao
menos como serena pretensão.
Assim, o intérprete sistemático tem a tarefa de completar o trabalho
do legislador, atento às exigências situadas além das abordagens lógicas
estritas. Atua, em regra, como legislador negativo e "administrador ne-
gativo", embora o sistema possa requerer que, configurada inequívoca
omissão dos demais Poderes, positive o Direito, por exceção, isto é, com
força prestacional positiva.
Acresce que a realização da conformação teleológica, fundada so-
bretudo em apreciações de valor, encontra-se intimamente associada à
noção de que, respeitadas diferenças periféricas entre os múltiplos ra-
mos, todo processo hermenêutico afigura-se sistemático e sistematizan-
te, inclusive porque necessita, lucidamente, cumprir a função de conferir
variabilidade positiva e propícia à consecução das metas e dos objetivos
fundamentais da República.
34. A rigor, somente existe discricionariedade vinculada aos princípios e, pois,
ao sistema. Este tema cuidei de aprofundar em capítulo específico da obra Estudos de
Direito Administrativo, 2ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 1997. Melhor ainda: v.
o meu livro O Controle dos Atos Administrativos... , cit., no Capo 6, intitulado "Con-
trole Sistemático dos Atos Administrativos Discricionários e Vinculados, A Discri-
cionariedade Legítima e o Aprofundamento Não-Invasivo da Sindicabilidade" (pp.
360-396). Em matéria de interpretação, observa Owen Fiss: "Is neither a wholly
discretionary nor a wholly mechanical activity. It is a dynamic interaction between
reader and text, and meaning the product of that interaction. It is an activity that
affords a proper recognition of both the subjective and objective dimensions of hu-
man experience" (in "Objectivity and interpretation", Stanford Law Review 34/739).
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80 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Ora, em tal perspectiva, bem de ver que o processo hermenêutico
significa, concreta e complexamente, bem mais do que a comparação de
dispositivos entre si ou uma espécie de visão indutiva dos casos especí-
ficos para os princípios fundamentais. Na linha do asseverado, já não é
pouco sublinhar que cada preceito se articula com o todo,35 todavia insu-
ficiente fazê-lo sem o simultâneo reconhecimento de que, ainda quando
se cuide de examinar, em aparência, uma norma isolada, esta só poderá
ser bem compreendida na relação mútua com as demais.
Não por acaso, Karl Larenz, ao discorrer sobre a missão da interpre-
tação, aborda, em primeiro lugar, o escopo da exegese como o sentido
normativo do que é agora juridicamente determinante,36 quer dizer, o
sentido como resultado de um processo de pensamento em que todos os
momentos estão englobados, tanto os "subjetivos" como os "objetivos".
Ambos hão de estar presentes e nunca chegam a seu termo. Com efeito,
se se analisam, em sua abordagem, os principais critérios de interpreta-
ção (o sentido literal, o contextual, a análise da intenção reguladora, fins
e ideias normativas do legislador histórico, os critérios ditos teleológico-
objetivos, o preceito da interpretação conforme a Constituição e - o que
avulta em importância - a imbricação dos critérios interpretativos),3?
ter-se-á que admitir aforça sistematizante presente em cada um deles,
motivo primacial para que, na prática, o consórcio de critérios seja a
tônica do fazer interpretativo.
Com acerto e perspicácia, observa Larenz: "O peso em cada caso
dos diferentes critérios depende, não em último lugar, do caso concre-
to. (...). Podem surgir resultados contraditórios, sobretudo quando, de-
vido ao decurso do tempo, a uma mudança da situação normativa ou
dos princípios jurídicos outrora determinantes, deixa de aparecer como
plausível a interpretação originária, orientada ao fim do legislador his-
35. Gustavo Zagrebelski, ainda que com acordos semânticos algo diversos,
conceitua a interpretação jurídica como "la ricerca nell'ordinamento giuridico della
regola adeguata aI farto da regolare" (in Manuale di Diritto Costituzionale, Torino:
UTET, 1987, p. 69). Aqui se diz: qualquer interpretação de princípio, regra ou valor
necessariamente hierarquiza no e a partir do sistema.
36. V. Karl Larenz in Metodologia da Ciência do Direito, cit., pp. 380-418.
Naturalmente, a assertiva implica também integração plena entre o pensar crítico
e o conhecer. Sobre o ponto, v. Celso Lafer in A Reconstrução dos Direitos Huma-
nos. Um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt, São Paulo: Cia. das Letras,
1988, pp. 88-89.
37. V. Karl Larenz in Metodologia... , cit., p. 414. Sobre a insuficiência dos
cânones de interpretação - especialmente os de Larenz, Savigny e Wolff-, v. Robert
Alexy in Theorie der juristischen Argumentation, cit., 2ª ed., 1990.
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A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 81
tórico ou às idéias normativas dos autores da lei".38 No entanto, importa
pôr em realce que se realiza uma escolha tópica de preponderância de
um ou mais dos critérios hermenêuticos. Entretanto, fazê-lo significa
utilizar, ao menos implicitamente, os demais critérios. Daí se admitir a
implicação recíproca dos vários métodos, não obstante hierarquizáveis
topicamente.
Relevante aduzir que - diversamente, no ponto, de Claus-Wilhelm
Canaris39 - não se restringe o papel da interpretação sistemática ao de
meio auxiliar metodológico, tendo em conta os motivos pelos quais se
mostrou imprescindível ampliar o conceito de sistema jurídico. Para a
perspectiva adotada, a interpretação tópico-sistemática acontece, em
todas as hipóteses, nem sempre explicitamente, como hierarquizadora,
utilizada a expressão em plena consonância com o reformulado conceito
de sistema. Por isso, não somente a interpretação extensiva, senão que
toda e qualquer interpretação deve ser vista, funcionalmente, como sis-
temática e, em razão disso, hierarquizadora.
2.4 A interpretação literal como apenas uma fase
da exegese tópico-sistemática
A chamada interpretação literal surge, apenas, como uma das fa-
ses (a primeira, cronologicamente) da interpretação sistemática, sendo
que uma das mais relevantes modalidades se dá na chamada interpre-
tação conforme a Constituição (die Vérfassungskonforme Auslegung),
expressão aguda da procura de unidade da ordem jurídica, como par-
cialmente o entreviu Norbert Achterberg. 40 A esse propósito, posiciona-
va-se no sentido de que, em seus pontos fundamentais, encontra-se a
38. Metodologia... , cit., pp. 417-418.
39. Pensamento Sistemático... , cit., p. 157.
40. Allgemeines Verwaltungsrechts, Heidelberg: C. F. Müller Juristicher Ver-
lag, 1982. Não por acaso, já Santo Agostinho assinalava: "Littera occidit (...)" ("A
letra mata") (in Confessiones, VI, 4, 6, Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1954, p. 280). A propósito, afirma Roberto Vemengo: "La opción que el intérprete
efectúe a favor o en desmedro de algunas de las sustituciones léxicas autorizadas por
la estructura sintáctica profunda y los rasgos segmentales y sus regIas de restricción
selectiva, se efectuará por ciertas motivaciones subjetivas (...). Entre las interpreta-
ciones posibles, la escogida lo será en mérito a una actitud psicológica valorativa deI
intérprete. Pero lo cierto es que cuando el intérprete se siente severamente ligado aI
tenor literal de la ley, por parecerle ésta acaso clara indubitablemente, las motivacio-
nes que seguramente actúan en la tarea concreta de interpretación son ciertas leyes
psicológicas relativas a las asociaciones verbales" (in La Interpretación Literal de la
Ley y sus Problemas, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1971, pp. 98-99).
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82 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
interpretação conforme a Constituição com a interpretação sistemática,
dado que ambos os métodos têm em vista a manutenção da ausência de
contradição no interior do sistema. Contudo, fazia distinção com a qual
não se comunga: a interpretação sistemática diria respeito à hierarquia
legal das normas de igual nível, ao passo que a interpretação conforme
a Constituição concemiria às relações verticais entre as normas infra ou
intraconstitucionais.
Não é de se aceitar tal distinção, em que pese a louvável intuição de
uma intersecção entre as modalidades interpretativas. 41 Sucede mais do
que uma simples intersecção: a interpretação conforme a Constituição
nada mais é do que uma das facetas da interpretação sistemática.
Ainda quando se prescreva, em determinadas matérias, que o intér-
prete permaneça jungido à literalidade, semelhante prescrição precisa
ser interpretada sistematicamente, de molde a fazer com que a prescri-
ção se relativize pela subordinação inteligente aos direitos e a princípios
fundamentais do sistema, sem se deixar de, criticamente, contemplar o
significado restrito captado no momento literal. É que, em suma, a in-
terpretação literal nada mais é do que simples fase da exegese tópico-
-sistemática. 42
2.5 Reconceituando a interpretação sistemática do Direito
Assumida tal ótica mais elucidativa, a interpretação sistemática
deve ser entendida como uma operação que consiste em atribuir, topi-
camente, a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios,
às normas estritas (ou regras) e aos valores jurídicos, hierarquizáveis
num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias em
sentido amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação.
Frise-se que a ampliação do conceito de interpretação sistemática,
ora promovida, apresenta-se simétrica àquela praticada em relação ao
conceito de sistema jurídico. Em outras palavras, a interpretação tópi-
co-sistemática faz-se compatível com as presentes funções do Direito.
É, além disso, muito mais do que a descoberta de sentido ou do alcance
dos comandos legais. Trata-se do desvendar do alcance sistemático de
cada princípio, regra ou valor, no desiderato da resolução eficiente e
eficaz dos conflitos individuais e coletivos.
41. Allgemeines Verwaltungsrechts, cit., p. 247.
42. O tema será retomado no capítulo da ilustração da interpretação tópico-
-sistemática.
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A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 83
Dito de outro modo, verdadeiramente a interpretação sistemática,
compreendida em novas e realistas bases, é a que se realiza em conso-
nância com aquela rede hierarquizável, máxime na Constituição, tecida
de princípios, regras e valores considerados dialeticamente e em con-
junto na interação com o intérprete, positivador derradeiro.
Assim, ao se aplicar uma norma, desde que com acuidade apura-
da, percebe-se aplicado e (re)construído o sistema inteiro, desassistindo
razão aos que tentam fazer concentrar, por exemplo, direitos fundamen-
tais num dado ponto normativo, eis que, à luz da melhor hermenêutica,
encontram-se disseminados no sistema inteiro. Ainda: a vetusta distin-
ção entre interpretação direta e indireta, perante o fenômeno jurídico,
faz-se sobrepassada inclusive pelo fato de que, mais do que descobrir
diretamente a vontade da lei, o exegeta compreende, na atualidade, o que
representa tal manifestação volitiva, encontrando seu significado "no"
e "para" o sistema jurídico. A vontade do sistema surge como síntese
circular43 e dialética, pelo menos, de duas vontades: a do intérprete e a
vontade subjacente ao objeto de interpretação.
Assumido o conceito assim alargado, resulta plausível que a posi-
ção crítica e a posição hermenêutica sejam vistas como complementa-
res, não como antitéticas. 44 Ademais, tal conceito de interpretação sis-
temática oferece as mesmas vantagens daquela formulação de sistema
jurídico, além das que seguem:
a) orienta toda e qualquer interpretação (do texto, da história e dos
valores),45 no intuito de vencer antinomias em sentido amplo (inclusive
43. Sobre circularidade hermenêutica tratar-se-á em capítulo sobre a identidade
essencial entre o pensamento tópico e o pensamento sistemático. Por ora, ainda que
em abordagem distinta, justo recordar Schleiermacher, proclamando uma herme-
nêutica da compreensão, na qual o texto apenas alcança significado no evento de
sua compreensão, numa situação pertencente a uma relação circular de diálogo. Não
se adere, entretanto, à ideia de reconstrução como volver a experimentar processos
mentais do autor. De qualquer modo, valioso lê-lo in Hermeneutik, Heidelberg: Carl
Winter, Universitãtsverlag, 1959.
44. V. Juarez Freitas in A Substancial Inconstitucionalidade da Lei Injusta, cit.,
p. 48. Ali se diz: "Para a hermenêutica jurídica, do estudo comparativo entre Gada-
mer e Habermas, devem resultar assimiladas as idéias de que a compreensão deve
ser entendida sempre como aplicação e pré-compreensão, como vimos em Gadamer;
a seu turno, a crítica das ideologias revela-nos o que há de espúrio no tradicional,
além de salientar, convenientemente, a dialética que há entre teoria e práxis, ainda
desprezada, ou, melhor, não bem compreendida".
45. V. Juarez Freitas in A Substancial Inconstitucionalidade... , cit., pp. 55-56.
Nesta obra esclareço o conceito de Hermenêutica, ao dizer: "O hermeneuta jurídico
não pode, assim, desconhecer a radicalização ontológica da Hermenêutica, ainda que
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84 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO A INTERPRETAÇÃO TÓPICO-SISTEMÁTICA 85

as de valoração), para o plano superiormente principiológico e auten- f) permite ver que a maneira adequada de compreender o Direito
ticamente mais apto a resolver conflitos de modo eficiente, eficaz e em Positivo, a par e além da técnica de pensar a partir de problemas - ou
tempo útil; seja, uma ars inveniendi -, consiste numa verdadeira obra de sistema-
b) evidencia que há hierarquia possível (não inteiramente a priori) tização dos múltiplos métodos, eis que o mister do intérprete consiste
entre os princípios, avultando os que servem de fundamento da Consti- em integrar - para além das distinções e de autonomias setoriais - a
tuição, impondo-se ver, desde logo, que toda interpretação sistemática totalidade sistemática, transcendendo a abordagem unidimensional e
é, de certo modo, interpretação constitucional,46 subordinada qualquer solipsista, que se revela pobre na cognição das variações evolutivas do
regra aos direitos fundamentais e aos princípios superiores; sistema jurídico;
c) aviva a noção de que os valores elevados à condição de supre- g) reforça a ideia de que a interpretação não deve ocupar jamais
mos por força normativa da Constituição têm de servir como critério um papel secundário ou subserviente, dado que a interpretação tópico-
de permanente avaliação, imantando a aplicação judicial e fundamen- -sistemática, bem compreendida, é método não inteiramente exterior ao
tando-a,47 conscientemente; objeto de sua apreensão. Somente assim será capaz de engendrar a vi-
são realmente aberta e transdogmática do Direito, plena e maduramente
d) permite aplicação mais elástica das normas, seja por adaptá-las
receptiva aos apelos da vida em seus chamados de evolução ética e de
à modificação dos próprios valores, seja por contribuirpara eliminar as
justo movimento.
chamadas "quebras sistemáticas", geradoras de nulidades das normas
contrárias ao sistema;48 Com efeito, semelhante operação, que consiste em pretender atri-
buir a melhor significação sistemática, dentre várias possíveis, a con-
e) conduz à constatação de que a lógica jurídica há de ser neces-
teúdos jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, revela que o ob-
sariamente dialética, diversamente do sustentado pelo normativismo
jeto da interpretação não é mera coisa destacável do intérprete, tampou-
fragmentário, porque são vastas e, não raro, contraditórias as possibi-
co o resultado cego de forças ou fluxos automáticos. Ao interpretar o
lidades hermenêuticas conferidas ao intérprete/aplicador, já que a hie-
"objetivamente" dado, o exegeta realiza a sistematização e, ao fazê-lo,
rarquização axiológica nunca será somentejurídica, nem poderia sê-lo,
transcende inevitavelmente o objeto em si, porque só na transcendência
por mais que se force a vetusta distinção entre exegese como ciência e
o imanente jurídico experimenta sentido maior e melhor.
criação do Direito como arte: na vida real, a interpretação opera como
"descoberta "/construção intersubjetiva da própria sistematicidade dos Alicerçando-se a abordagem em mais este conceito-guia, é dizer,
princípios, das regras e dos valores, topicamente hierarquizáveis; vendo-se a interpretação sistemática como operação tópica que con-
siste em atribuir determinada e preferencial significação, dentre várias
se devam retificar vários de seus aspectos. Inquestionável é o mérito gadameriano, possíveis, aos princípios, às regras e aos valores jurídicos, hierarqui-
para quem compreender é aplicar, no sentido de sobrepassar o 'cientificismo' teórico zando-os num todo aberto, convém desenvolver o capítulo endereçado à
e prático, deixando para trás o conceito de racionalidade minguada, instrumental e reavaliação das antinomias jurídicas e dos valores associados.
opressiva. A Hermenêutica, nesta perspectiva, abandona, mediante reflexão, o tra-
dicional esquema 'sujeit%bjeto', já não aceitando que as partes processuais sejam
manipuladas como res, uma vez que todos somos sujeitos do processo dialético cha-
mado Direito".
46. O tema será desenvolvido no capítulo de ilustração da interpretação siste-
mática no Direito Público.
47. Juarez Freitas inA Substancial Inconstitucionalidade , cit., p. 70.
48. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático , cit., pp. 234-235.
Observa, com pertinência: "Ainda quando uma formação plena do sistema permane-
ça inalcançável essa discrepância entre o ideal de um sistema e a sua realização não
implica nada de decisivo contra o significado do sistema para a Ciência do Direito.
Pelo contrário, resultou (...) um aspecto no qual a formação do sistema é de relevân-
cia prática: através da possibilidade de nulidade de normas contrárias ao sistema".

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CAPÍTULO 3
CONCEITO, CLASSIFICAÇÃO
E OS CRITÉRIOS SISTEMÁTICOS
PARA RESOLVER ANTINOMIAS JURÍDICAS

3.1 Para além da visão de antinomias entendidas apenas como conflitos

entre regras. 3.2 Todas as antinomias são de natureza axiológica. 3.3
Reconceituando as antinomias jurídicas. 3.4 O caso exemplar das leis
no tempo e a característica inegavelmente jurídica dos critérios aptos
a solver antinQmias.

3.1 Para além da visão de antinomias

entendidas apenas como conflitos entre regras
Um dos mais inquietantes desafios para o intérprete sistemático,
mormente em face do pluralismo axiológico, l conceme às antinomias,
tidas como inaceitáveis2 desde antes de Justiniano. 3 Com efeito, ao lon-

1. V. losef Esser in Grundsatz und Norm, cit., pp. 80 e ss.

2. Sobre as antinomias em geral, v. Robert Heiss in Logik des Widerspruchs.
Eine Untersuchung zur Methode der Philosophie und zur Gültigkeit der formalen
Logik, Berlin/Leipzig: Walter De Gruyter, 1932; Arend Kulenkampff in Antinomie
und Dialektik. Zur Funktion des Widerspruchs in der Philosophie, Stuttgart: Metz-
ler, 1970; E. Steneius in Das Problem der logischen Antinomien, Helsinkin, 1949;
Günther Patzig in Widerspruch in Handbuch philosophischer Grundbegriffe, voI. 6,
München: Kasel Verlag, 1973; Dieter Wandschneider in Grundzüge einer Theorie
der Dialektik. Rekonstruktion und Revision dialektischer Kategorienentwicklung in
Hegels 'Wissenschaft der Logik', Stuttgart: Klett-Cotta, 1995; e Vittorio Hasle in
Hegels System, Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1998. Sobre antinomias no Direito,
V., ainda, P. Foriers in Les Antinomies en Droit, Bruxelles: Émile Bruylant, 1965, e
L. Silance in Quelques Exemples d'Antinomies et Essai de Claressement, Bruxelles:
Émile Bruylant, 1965.
3. "Nulla itaque in omnibus praedicti codicis membris antinomia (sic enim à
vetustate graeco vocabulo nuncupatur) aliquem sibi locum vindicet; sed sit una con-
cordia, una consequentia, adversario nullo constituto" ("Nous ne voulons pas, par con-
séquent, qu' il se trouve, dans aucune partie de votre recueil, aucune antinomie (c'est
le nom que les Grecs ont donné à la contrariété des lois); notre intention est qu'il y

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88 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
go da história, a circunstância de haver prescrições incompatíveis4 tem
sido percebida como agressiva à medula do sistema jurídico, porquanto
este necessita afugentar más incompatibilidades para se alicerçar com
mínima racionalidade, fazendo-se concretamente dotado de pressuposta
harmonia. 5
regne une conformité et un ordre qui n'éprouvent aucune contradiction") (inLes Dou-
ze Livres du Code de I'Empereur Justinien, voI. 8, trad. de Pascal Alexandre Tissot,
Darmstadt, Scientia VerlagAalen, Livro I, Título XVII, § 8,1979, pp. 141-142).
4. Ao se falar em antinomias, necessário ter presente a distinção entre juízos
contraditórios e juízos contrários, algo que será retomado enfaticamente no final
deste capítulo. Pois bem, a partir dos juízos gerais (a) "todos os S são P" (universal
positivo), (e) "nenhum S é P" (universal negativo). (i) "alguns S são P" (particu-
lar positivo) e (o) "alguns S não são P" (particular negativo), verifica-se que há
dois tipos de oposição. Quando se nega um enunciado do tipo (a) tem-se, então, um
enunciado do tipo (o), algo semelhante ocorre entre (e) e (i). É por isso que se pode
dizer que (a) e (o), assim como (e) e (i), encontram-se em uma relação contraditória
(antiphasis), isto é, que (a) e (o) ou (e) e (i) se contradizem, de modo que não podem
ser, ambos, ao mesmo tempo, verdadeiros. Mas as coisas não ficam por aqui: (a) e (e)
também estão em oposição. Todavia, trata-se, neste caso, de um conflito mais fraco,
pois se cogita de juízos contrários: (a) e (e) se contradizem, mas (e) não se configura
uma pura e simples negação de (a), mas, sim, tão só, uma hipótese particular da
negação de (a). A rigor, (a) e (e) não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiros; con-
tudo, ambos podem, ao mesmo tempo, ser falsos, sendo verdadeiro, de conseguinte,
um terceiro juízo. Sobre essa disjunção entre os juízos contraditórios e os juízos
contrários, v. Emst Tugendhat e Ursula Wolf in Logisch-semantische Propadeutik,
Stuttgart: Philipp Reclam, 1983, Capítulo 5, bem como Carlos Roberto Cime Lima
in Dialética para Principiantes, Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
5. Como observou Hegel, as contradições, quando não rompem com a univer-
salização e não conduzem à completa entropia, apresentam a boa e salutar virtude da
fecundidade. Em outras palavras, as contradições têm o mérito de fluidificar o pen-
samento, abolindo conceitos fixos e determinados. De fato, quando se contempla o
sistema jurídico a partir de suas frequentes contradições ou oposições (quer formais,
quer materiais), percebe-se, desde logo, que a mais adequada percepção do Direito
representa uma tarefa infinita que, a passo e passo, avança só por aproximações e por
repetidas exegeses. Mas isso não quer dizer (como o próprio Hegel sublinhara) que
tudo sempre culmine em um adverso mundo de antinomias insolúveis, que, nesta
medida, dariam salvo-conduto à irresponsabilidade do arbítrio subjetivista. Embora
as características do movimento e da mudança - graças em parte às contradições e
oposições - sejam atributos indissociáveis do sistema jurídico, não se deve esquecer
do poder reconciliador da razão. Uma razão que, embora não pareça capaz de sín-
teses absolutas - como alguns chegaram a imaginar -, nem por isso se deixa trans-
formar em simplória negação de si ou irracionalidade. Assim, uma das mais nobres
missões da Hermenêutica está em ser a guardiã da conciliação racional, converten-
do, pelo caminho universalizável e hierarquizador da exegese tópico-sistemática, o
conflito em força renovadora e reunificadora. Sobre uma possível leitura renovada e
crítica da dialética hegeliana como tendo compromisso com a abertura e a liberdade,
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 89
Antes de sugerir um conceito ampliado de antinomias, impõe-se
percorrer a contribuição de alguns autores à labiríntica matéria,6 reco-
meçando, ilustrativamente, por Hans Kelsen. Ao tratar dos conflitos de
normas, sustenta que: "Existe um conflito entre duas normas, se o que
uma fixa como devido é incompatível com aquilo que a outra estabelece
como devido e, portanto, o cumprimento ou aplicação de uma norma
envolve, necessariamente ou possivelmente, a violação da outra".7
Assim concebido, o conflito poderia ser bilateral (quando a apli-
cação de cada uma das normas implicar violação mútua) ou unilateral
(quando somente o cumprimento ou aplicação de uma das duas acarretar
violação). Ainda segundo Kelsen, o conflito poderia ser total ou parcial.
Este quando os conteúdos dos comandos normativos conflitassem ape-
nas em parte, ao passo que aquele se daria quando uma norma impusesse
o que a outra, totalmente, proibisse. 8
Sustenta que tal conflito (necessário ou apenas possível) pressupõe
que ambos os enunciados sejam verdadeiros, assim como a validade de
ambas as normas em litígio. Defende, também, que um conflito de nor-
mas não seria contradição lógica alguma, já que poderia ser soluciona-
do, por exemplo, por intermédio de derrogação - expediente meramente
normativo, sem juízos de veracidade ou falsidade, isto é, sem que se
fizesse necessária a aplicação de um princípio de relação entre juízos. 9
Saliente-se que, sob tal ótica ou perspectiva conceitual, remanes-
cem alguns traços positivos e outros francamente insatisfatórios para o
enfoque tópico-sistemático aqui esposado. Ei-Ios, em grandes linhas:
v., entre outros: Emst Bloch in Subjekt-Objekt, Frankfurt: Suhrkamp, 1990; Roger
Garaudy in Dieu est Mort - Étude sur Hegel, Paris: PUF, 1962; P. J. Labarriere in
Structures et Mouvement Dialectique dans la Phénoménologie de I'Esprit de Hegel,
Paris: Aubier, 1985; e G. Jarczyk in Systeme et Liberté dans la Logique de Hegel,
Paris: Aubier, 1980. Ainda a propósito da racionalidade, v. Edgar Morin in Ciência
com Consciência, cit., p. 164.
6. Neste ponto específico, é de recordar Étienne de Condillac: "Avancemos len-
tamente, examinemos cuidadosamente todos os lugares por onde passamos e os co-
nheçamos tão bem que estejamos em condição de voltar sobre nossos passos" (Con-
dillac, Helvétius, Degérando in Tratado dos Sistemas, São Paulo: Abril, 1984, p. 11).
7. V. Hans Kelsen in Allgemeine Theorie der Normen, Viena: Manzsche Verlag
und Universitãtsbuchhandlung, 1979. Para facilitar a consulta, as próximas citações
serão feitas de conformidade com a edição portuguesa: Teoria Geral das Normas,
trad. de J. Florentino Duarte, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1986, p.
157.
8. Kelsen in Teoria Geral. .. , cit., p. 157.
9. Idem, p. 159.
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90 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
a) inegável que os conflitos sucedem entre normas, sem que, con-
tudo, deva a abordagem ficar adstrita a este tipo de incompatibilidade,
porque se faz imperioso compreender as antinomias, por igual e desta-
cadamente, no plano axiológico;IO
b) certo que, pela própria natureza das regras ou normas estritas
(como dos valores e dos princípios), está-se diante de enunciados se-
mânticos de dever-ser; logo, a incompatibilidade, assumindo caráter te-
leológico, tem que ser resolvida por meio da exegese hierarquizadora ou
de eventual resposta legislativa de cunho revogatório ou derrogatório;
c) é pertinente a classificação em conflitos entre normas como par-
ciais ou totais, ou ainda como unilaterais ou bilaterais, porém não dá
conta do conflito bilateral de normas estritas e princípios, como se verá
no capítulo das configurações hipotéticas: acentue-se, entretanto, que a
afirmação de conflitos normativos, necessários ou possíveis, guarda se-
melhança com o que se chamará de antinomias possíveis ou instauradas.
3.2 Todas as antinomias são de natureza axiológica
Ato contínuo, deve-se passar, ainda que de modo sucinto, ao exame
do que Canaris denomina de "quebras no sistema", II a saber, contradi-
ções de valores e de princípios, considerando que a colisão seria apenas
forma particular de contradições valorativas. Com efeito, antes de enun-
ciar seu conceito de antinomias, cuida de circunscrevê-lo, distinguindo
estas contradições das meras diferenças valorativas, além de apartá-las
dos limites imanentes de um princípio. Expressa-se, a propósito: "As-
sim, por exemplo, seria incorreto falar de uma 'contradição' entre o prin-
cípio da autonomia privada e a regra do respeito pelos bons costumes
(...). Pois, como qualquer liberdade, a verdadeira liberdade inclui uma
ligação ética e não é arbítrio" .12
Esforça-se, ainda, por contrastar as aludidas contradições (designa-
damente principiológicas e axiológicas) da mera combinação de princí-
piOS.I 3 Postula a sutil e relevante diferença entre contradição e oposição,
entendendo que "pertence à essência dos princípios gerais do Direito
10. Como ressalta C. Perelman, "a antinomia jamais é puramente formal, pois
toda compreensão de uma regra jurídica implica sua interpretação" (in Ética e Di-
reito, cit., p. 644).
11. Pensamento Sistemático... , cit., p. 200.
12. Idem, p. 202.
13. Idem, p. 204.
-~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 91
que eles entrem, com frequência, em conflito entre si, sempre que, toma-
dos em cada um, apontem soluções opostas".I4
Para Canaris, à diferença da opinião de Engisch,I5 não se deveria
considerar este compromisso entre princípios do sistema jurídico como
uma contradição, senão que como oposição. Argumenta, em linhas
gerais,I6 que uma contradição é sempre um desacordo interno que não
deveria existir e, de conseguinte, precisaria ser eliminado, enquanto as
oposições não deveriam ser suprimidas, por constituírem a própria es-
sência da ordem matizada por relativizações recíprocas, que mantém
os princípios entre si razoavelmente ajustados, até porque semelhante
ajuste deve comportar, em vez de supressão, uma via intermédia por
meio da qual sua oponibilidade possa ser superada num compromisso,
em sentido mais largo. I7
Nestes moldes, a oposição resultaria superada e, simultaneamente,
mantida no sistema. Diversamente, a contradição reclamaria, em todos
os casos, a supressão completa. Para a contradição de princípios, ou
o que denomina de verdadeiras contradições, reserva o significado de
"contradições de valores que perturbam a adequação interior e a unidade
da ordem jurídica e sua harmonia e que, por isso, devem basicamente ser
evitadas ou eliminadas".I8
Pois bem, se se identificarem as antinomias jurídicas tão somente
com as contradições, assim delimitadas conceitualmente, verificar-se-á,
outra vez, o delineamento de traços assimiláveis, a par de aspectos que
não merecem plena acolhida. Ei-Ios:
a) acerta Canaris por enfatizar que a tônica das contradições jurí-
dicas indesejáveis reside, justamente, no plano dos valores e dos princí-
pios, sem cuidar, neste passo, apenas dos conflitos entre regras;
b) oferece um conceito de antinomias que se coaduna com o de
sistema jurídico, elaborando, contudo, distinção entre contradição e opo-
14. Idem, p. 205. A propósito, adverte Francis Bacon: "For to conclude upon
an enumeration of particulars, without instance contradictory, is no conclusion, but
a conjecture" ("Chegar a uma conclusão partindo do particular sem ter em conta o
contraditório não é propriamente uma conclusão, mas uma conjectura") (in Advan-
cement ofLearning, vol. 30, Chicago: Great Books of the Westem WorldlEncyclo-
paedia Britannica, 1952, p. 57).
15. Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 205.
16. Idem, pp. 205-206.
17. Idem, p. 206.
18. Idem, p. 206.
 r
92 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
sição nem sempre pertinente, ao menos na senda de uma interpretação
tópico-sistemática, que tem de recorrer a um princípio superior - não
necessariamente intermediário - para solucionar o que se poderia a pos-
teriori denominar antinomia aparente;
c) bem salienta a necessidade de que se evitem ou suprimam estas
incompatibilidades, porque perturbam vitais funções do sistema, relati-
vas à adequação interna indispensável aos misteres superiores de síntese
valorativa.
No caminho da reformulação do conceito de antinomias jurídicas,
noutro ângulo, consigne-se que Norberto Bobbio trabalha com uma no-
ção de sistema como equivalência à validade do princípio que exclui
a incompatibilidade de suas partes simples,19 caracterizando tal noção
como intolerância às antinomias. Para esclarecer como as concebe, re-
corre às figuras da qualificação normativa - o obrigatório, o proibido, o
permitido positivo e o permitido negativ020 - para, em seguida, estabe-
lecer como normas incompatíveis aquelas que não puderem ser ambas
verdadeiras, arrolando os casos de incompatibilidades: "1) entre uma
norma que ordena fazer algo e uma norma que proíbe fazê-lo (contra-
riedade); 2) entre uma norma que ordena fazer e uma que permite não
fazer (contraditoriedade); 3) entre uma norma que proíbe fazer e uma
que permite fazer (contraditoriedade)".21
Após ilustrar tais casos, acrescenta que para ser c<Jnfigurada uma
antinomia jurídica são também presumidas duas imprescindíveis condi-
ções, quais sejam: ambas as normas devem pertencer ao mesmo sistema
e as duas normas - em colisão - devem ter o mesmo âmbito de vali-
dade. 22 Quanto à primeira das condições, reconhece que nada impede
que o sistema resulte da relação de um ordenamento com outro mais
geral, sem cogitar de uma hierarquização de vários planos no mesmo
sistema. 23 No que concerne à segunda das condições, explicita que não
constituem antinomias jurídicas as normas descoincidentes, no que tan-
ge à validade temporal, espacial, pessoal e material.24
19. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 80, e Contributi ad un Dizionario
Giuridico, cit., pp. 361-365.
20. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 82.
21. Idem, p. 85.
22. Idem, p. 87.
23. Idem, ibidem.
24. Idem, p. 88.
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 93
Com tais observações, sustenta que não se devem confundir essas
antinomias com as de avaliação (na verdade, injustiças25 ), que ocorre-
riam, por exemplo, quando uma norma punisse um delito menor com
pena mais pesada do que a infligida a quem cometeu delito mais grave. 26
Descarta, reputando-as impróprias, as antinomias que se caracteri-
zam por contraposição de valores (como os valores da justiça e ordem,
ou o da liberdade e o da segurança). Em outros termos, entende Bobbio
que estas antinomias de valores ou de princípios não seriam antinomias
jurídicas propriamente ditas, embora pudessem render ensejo a normas
incompatíveis. Assim, sustenta a antinomia jurídica como "aquela si-
tuação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao
mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade. 27
Esta conceituação apresenta alguma afinidade com a de nosso enfo-
que, mas guarda severas diferenças de fundo em razão do prisma axioló-
gico e teleológico da abordagem tópico-sistemática. Com efeito:
a) acerta Bobbio ao sugerir que as relações de incompatibilidade
compreendem as de contrariedade;
b) revela-se correto na descrição das implicações de incompatibi-
lidade, valendo-se, no entanto, de incompletas figuras de qualificação
normativa;
c) mostra-se preciso ao explicitar a condição necessária à ocorrên-
cia de antinomias, como a pertença ao mesmo ordenamento e ao mesmo
âmbito de validade temporal, espacial, pessoal e material;
d) restringe exageradamente seu conceito, algo que talvez explique
as suas dificuldades de conciliação das metodologias estrutural e funcio-
nal, expungindo, por impróprias, as mais importantes antinomias, quais
sejam, as que envolvem princípios e valores, isto é, as antinomias pro-
priamente teleológicas, cumprindo notar que, em certa medida, todas o
são, uma vez que as prescrições jurídicas jamais se revestem de conteúdo
apenas lógico-formal, senão que carregam genética tendência a fins;
e) o significado de antinomias jurídicas, nos limitados e adstritos
moldes de Bobbio, não revela o motivo pelo qual o sistema não as tole-
ra28 - motivo que se encontra, antes de mais, na desarmonia axiológica
25. O tema será desenvolvido no Capítulo 6.
26. Bobbio in Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 90.
27. Idem, p. 88.
28. A este respeito, convém recordar Perelman e Olbrechts-Tyteca: "L'assertion,
au sein d'un même systeme, d'une proposition et de sa négation, en rendant manifes-
te une contradiction qu'il contient, rend le systeme incohérent, et par là inutilisable.
 ----r-
94 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
e principiológica que proporcionam, pondo em risco a funcionalidade
do sistema, por esvaziá-lo de seus fins mais relevantes ou "objetivos
fundamentais" (CF, art. 3º). Na realidade, as antinomias existem, sim,
nas hipóteses descritas por Bobbio, mas - aqui exsurge nítida diferença
de abordagem - somente porque aí sucedem simultâneas contradições
de valores ou de princípios.
3.3 Reconceituando as antinomias jurídicas
Realizadas tais ilustrações, cumpre sublinhar que as antinomias
jurídicas, em sentido tópico-sistemático, reclamam ser pensadas, con-
comitantemente, como contradições lógicas e axiológicas. Com efeito,
o sistema jurídico, assim como se o definiu, está a exigir, ao lado ou à
diferença dos significados expostos, uma noção mais rica e complexa
do que aquela que o vê, por exemplo, como simples aparato destinado à
exclusão de incompatibilidades formais entre as normas.
Dessa maneira, para nossos efeitos, conceituam-se as antinomias
jurídicas como incompatibilidades possíveis ou instauradas entre re-
gras, valores ou princípios jurídicos, pertencentes validamente ao mes-
mo sistema jurídico, 29 tendo de ser vencidas para a preservação da uni-
dade e da coerência do sistema positivo e para que se alcance a máxima
efetividade da pluralista teleologia constitucional.
Conceito exposto, convém grifar que o mal maior trazido pelas anti-
nomias jurídicas radica na insegurança quanto à racionalidade estrutural
e intersubjetiva do sistema, motivo pelo qual se cuida de estabelecer cri-
térios, tácitos ou não, para dar solução às incompatibilidades. Alargando
a classificação de Alf Ross,30 sem prejuízo da antinomia total-parcial e
da antinomia parcial-parcial, a antinomia total-total é a que se dá quando
a incompatibilidade ocorre entre normas estritas, princípios e valores,
que, ao menos potencialmente, estão situados, uns em relação aos ou-
tros, no mesmo plano. Decerto, tal conflito sucede só aparentemente e
num primeiro momento de observação, uma vez que sempre haverá uma
Mettre à jour l'incohérence d'un ensemble de propositions, c'est l'exposer à une
condamnation sans appel, obliger celui qui ne veut pas être qualifié d'absurde à re-
noncer au moins à certains éléments du systeme" (in Traité de I 'Argumentation. La
Nouvelle Rhétorique, Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles, 1983, p. 262).
29. A rigor, tal aspecto didático da pertença válida ao mesmo sistema é que se
afina com o conceito de Bobbio, examinado há pouco. No entanto, o conceito de
validade, por certo, não é idêntico.
30. V. Bobbio in Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., pp. 88-89.
-~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 95
determinada predominância principiológica, como se verá no exame das
configurações hipotéticas.
De passagem, convém remarcar que as antinomias nocivas devem
ser desfeitas, almejando-se a hierarquização segundo critérios múltiplos
e imbricados, de tal sorte que uma norma deve ceder diante de outra ou
de um princípio ou de um valor, conforme o caso. 31
Em tal medida, somente quando não se procede à hierarquização é
que os princípios, os valores e as regras poderão situar-se em posição de
aberto conflito, admitida, num segundo momento, a técnica de convertê-
lo em "aparente" ou em tomá-lo como "real", especialmente quando se
tratar de conflito entre os critérios mesmos para solvê-lo.
Ora bem, recorde-se que a hermenêutica jurídica tem-se valido (na
doutrina assim como na jurisprudência), empiricamente e com exube-
rância, de critérios que visam a escoimar do ordenamento as antinomias,
de sorte que, a rigor, crit~rios não faltam. Tais critérios, desde há muito
conhecidos, incorporaram-se ao inconsciente do intérprete maduro, fa-
zendo as vezes, não raro, de uma segunda natureza. Convém arrolá-los,
a começar pelo critério da lex posterior,32 qual seja, o que estabelece que
a norma posterior, em rota de conflito, há de preponderar sobre a ante-
rior, consoante o assim chamado critério cronológico, que pressupõe o
acolhimento da moderna ideia de progresso. 33
31. "Ao intérprete há de, certamente, exigir-se que tenha em conta os dife-
rentes critérios de interpretação e que fundamente as razões por que considera aqui
algum como determinante" - observou Karl Larenz (in Metodologia da Ciência do
Direito, cit., p. 418). Conforme também acentua Savigny: "Mais que doit-on faire
si l'antinomie, d'ailleurs incontestable, résiste à toute espece de conciliation? 11 ne
nous reste plus qu' à adopter le texte le plus en harmonie avec les principes généraux
de la législation (...)" (in Traité de Droit Romain, voI. XLV, Paris: Librairie de Firmin
Didot Freres, 1855, p. 276).
32. Tendo em mira o princípio da lex posterior, Perelman chega ao ponto de
afirmar que, "se uma lei permite o que a lei anterior proíbe, ou vice-versa, não dire-
mos que estamos diante de uma antinomia, mas diremos, mesmo que isto não esteja
expresso, que a lei anterior foi tacitamente revogada" (in Logique Juridique, cit., n.
27).
33. Acerca do critério cronológico, convém ter presente que "tempos houve
em que se conferia preferência ao Direito anterior sobre o posterior, porque o Direito
antigo era o bom Direito" (Karl Engish in Introdução ao Pensamento Jurídico, cit.,
p. 256). Nesse sentido é a manifestação de caráter histórico de Bernhard Rehfeldt
in Einführung um die Rechtswissenschaft, Berlin: Walter De Gruyter, 1962, pp. 24
e ss. Para uma pesquisa mais aprofundada sobre as origens e o desenvolvimento do
critério cronológico, v. Paul Roubier in Le Droit Transitoire (Conflits des Lois dans
le Temps), Paris: Dalloz/Sirey, 1960, pp. 30-145.
 -r-
96 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Força mencionar que Kelsen inverteu a fórmula, em alguns casos,
do aludido critério, sustentando preferível enunciá-lo como lex prior
derogat posteriori, porquanto os princípios de derrogação, "se não são
expressamente fixados, ou presumidos como implícitos, permanecem
insolúveis os conflitos de norma, que a Ciência do Direito é tampouco
competente - acaso pela interpretação - para solucionar existentes con-
flitos de normas".34
Contra esta asserção dir-se-á, tão só, que milita numa região estreita
de operadores lógicos duros e formais (não-deônticos), não obstante ine-
quívoco o mérito de pôr em destaque que este critério é marcadamente
problemático,35 como, aliás, s~o todos os critérios jurídicos, mesmo os
mais elevados e formalmente nobres que vedam a permanência de con-
tradições no sistema.
Assim sucede pela congênita e inata constituição dialética do "de-
ver-ser" característico de todas as prescrições do tipo jurídico - fato in-
contestável, para cuja importância raros são os que atentam de modo
profundo -, apesar de se aplicar, por analogia, o princípio de não-contra-
dição no que diz respeito aos enunciados, que proíbem, concomitante-
mente, predicar e não predicar, sem prejuízo da lógica dialética. 36 Dessa
forma, oportuna a problematização do princípio lex posterior derogat
legi priori, até porque, como o confirma a experiência, mostra-se ra-
zoável supor um conflito entre normas gerais, em que ambas as normas
resultam sem validade ou em que cada uma se apresente de manutenção
igualmente razoável e ambas tenham validade. 37
Discutível - e mais à frente será contestada - é a crença de que o
aplicador do Direito apenas poderia decidir-se, num ato subjetivo de
vontade, pela aplicação de uma ou de outra das normas jurídicas gerais,
permanecendo o conflito. Na realidade, entende-se o conflito dissipável,
frequentes vezes, pela conciliação de opostos, por intermédio de um prin-
cípio harmonizador ou superador da antinomia (hierarquização axioló-
gica), sem que se coloque em risco a estabilidade do sistema. Seja como
34. Teoria Geral das Normas, cit., p. 163.
35. Kelsen in Teoria Geral das Normas, cit., p. 162. Como salienta Karl En-
gisch, esse e outros critérios "não são uma evidência lógica", de sorte que "a sua
fundamentação poderá mesmo, por vezes, topar com dificuldades de ordem teórica"
(in Introdução... , cit., p. 256).
36. Sobre dialética e o princípio de não-contradição, como visto na nota 4
deste capítulo, remete-se à abordagem de Carlos R. V. Cime Lima in Dialética para
Principiantes, cit., 1996.
37. V. Hans Kelsen in Teoria Geral das Normas, cit., p. 268.
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 97
for, frise-se, por ora, que o critério cronológico é muito mais fraco do
que aparenta, tendendo a ser vencido no eventual conflito entre critérios.
3.4 O caso exemplar das leis no tempo e a característica
inegavelmente jurídica dos critérios aptos a solver antinomias
Ainda a respeito do critério cronológico, urge tecer considerações
envolvendo, especificamente, os conflitos de leis no tempo, já que evi-
dente a conexão temática. No chamado Direito Transitório ou Intertem-
poral o problema central consiste em determinar, à vista da pluralidade
de princípios, valores e regras que disputam, por assim dizer, uma dada
relação jurídica, qual o enunciado normativo incidente, parcial ou total-
mente, no caso sub judice.
Na solução desses conflitos, aponta-se o critério da irretroativida-
de, de cunho eminentemente ético-político, que almeja dar segurança
às relações jurídicas antes (quando bem aplicado) por um fundamento
de preservação de interesse público do que de privilégios individuais. 38
Claro que o critério da irretroatividade, como todos os outros, não
goza de absolutidade, porque, embora normalmente não se admita a
retroação, necessárias e impositivas se fazem as exceções, como nos
casos de norma abolicionista, de lei penal mais benigna ou de leis ditas
interpretativas, ainda que, a rigor, estas últimas não retroajam e, como
todas, também precisam ser interpretadas, mormente em sistema de ju-
risdição única. 39
38. A garantia da irretroatividade das leis sempre andou entrelaçada à noção
de Estado de Direito. Quase todas as Constituições e sistemas jurídicos, que se es-
tendem para além das revoluções libertárias do século XVIII, reconhecem, contra o
arbítrio do legislador, a importância desse direito fundamental. É por causa da antiga
uniformidade da tradição da irretroatividade que se diz que quando uma norma é
criada, e pretende regular uma relação jurídica constituída sob o amparo da legisla-
ção precedente, tal disposição, ao ab-rogar ou derrogar a lei anterior (lex posterior
derogat legi priori), deve, no geral das vezes, ter eficácia tão somente para o futuro.
É que a lei nova, ao se deparar com situações jurídicas formalizadas segundo os
ditames da antiga legislação, não pode, ex abrupto, submetê-las a seu horizonte nor-
mativo sem levar em conta os limites constitucionais do direito adquirido, da coisa
julgada e do ato jurídico perfeito. Significa dizer que a lei mais recente não pode
projetar seus efeitos para o passado, alcançando situações jurídicas definitivamente
consolidadas sob o manto da lei anterior. Em linha de princípio, cada relação jurídica
nasce e, ato contínuo, cristaliza os seus efeitos de conformidade com a lei vigente
ao tempo da sua constituição. Eis, em síntese, o que a doutrina chama de "princípio
constitucional da irretroatividade das leis".
39. Acerca das leis interpretativas e das teorias sobre a retroatividade ou não
das mesmas, v. Paul Roubier in Le Droit Transitoire... , cit., pp. 245-248.
 r
98 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Em razão justamente do critério da irretroatividade, houve quem
sustentasse que poderia ser assimilado à diretriz do respeito aos direi-
tos adquiridos, vistos como dotados de intangibilidade,40 sob uma ótica
subjetivista, elaborando distinção entre direito adquirido, meras expec-
tativas de direito e as faculdades, de tal sorte que não se estaria diante
de retroação quando a lei alcançasse somente expectativas e faculda-
des. É de registrar que críticas foram empreendidas contra tais posições
subjetivistas,41 vendo a retroatividade caracterizada somente quando a
lei nova atingisse situações jurídicas concretas. 42
Todavia, dentro do que parece ser a doutrina objetivista mais elabo-
rada, que distingue efeito imediato e efeito retroativo das leis,43 figura,
com pronunciado destaque, a que trabalha com a noção de situação jurí-
dica, na lição de Paul Roubier, nestes termos: "Toutes les lois sont faites,
en effet, pour déterminer un certain nombre de situations juridiques pas-
sées, présentes ou futures que se résume leur action dans les temps".44
Sem deixar de recomendar o exame da doutrina chamada clássica
do direito adquirido,45 com Paul Roubier, para o que importa a este ca-
40. V. Paul Roubier in Le Droit Transitoire... , cit., p. 109. A propósito do tema
das leis interpretativas, ainda na senda de evidenciar o caráter, por assim dizer, nor-
mativo (material ou formalmente) da interpretação sistemática, oportuno reiterar
que evidentemente estão as mesmas sujeitas a apreciação (e, pois, interpretação) e
controle do Poder Judiciário. É que se impõe a interpretação de toda lei, inclusive da
assim denominada autêntica, nada obstante sua excepcionalidade.
41. Cf. Paul Roubier in Le Droit Transitoire... , cit., p. 171.
42. Idem, p. 386.
43. Como se disse, ao longo dos últimos séculos, essa doutrina da não-retro
-atividade das leis foi acolhida por quase todos os sistemas jurídicos. Todavia, mais
recentemente surgiu uma distinção muito sugestiva e sutil entre efeito retroativo e
efeito imediato da lei. Enquanto o efeito retroativo projeta-se em direção ao passa-
do (jacta praeterita), o efeito imediato volta-se apenas para o presente (jacta pen-
dentia). Vale dizer: se a lei pretendesse atingir realidades já perfectibilizadas, seria
retroativa; se buscasse alvejar tão somente situações em curso, seria não-retroativa.
De acordo com Paul Roubier: "La base fondamentale de la science des conflits de
lois dans le temps c' est la distinction de I'effet rétroactif et I'effet immédiat de la loi.
Cela parait une donnée tres simple: l'effet rétroactif, c'est l'application dans le pas-
sé; l'effet immédiat, l'application dans le présent" (in Le Droit Transitoire , cit., p.
177). Além disso, Roubier chama a atenção para a circunstância de que "( ), l'effet
immédiat de la loi constitue le Droit Commun", razão pela qual "nous verrons qu'en
principe, une loi nouvelle doit recevoir aussitôt application, même dans les situations
en cours, à partir dujour de son entrée en vigueur" (p. 179).
44. Le Droit Transitoire... , cit., p. 181.
45. Paul Roubier, idem, p. 112.
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 99
pítulo, culmina-se na conclusão de que a lei nova não prevalece quando
importa ofensa ao princípio da proteção dos direitos adquiridos.
O que há, neste caso exemplar, são princípios paralelos exigindo
uma sistemática combinação não-ilimitada, no seio da qual o intérprete
tópico-sistemático decide se a lei anterior deve ou não sobreviver vali-
damente, admitindo-se, está claro, exceções ao princípio da irretroativi-
dade, mais propriamente uma inocultável relativização em lugar de in-
firmação. Bem por isso, admite-se que os direitos adquiridos não devem
ser atingidos pela nova lei, até por disposição expressa e constitucional,
sem contradizer o que se vem afirmando.
De conseguinte, na solução dos conflitos das leis no tempo adotam-
se princípios gerais e abstratos ou o critério ratione materiae, com mais
ou menos ênfase objetivista, mas sempre convindo distinguir efeitos re-
troativos e efeitos imediatos como meio de conciliação de princípios.
Neste quadro, a lei nova, pelo critério cronológico, precisa preponderar,
todavia não deve retroagir, salvo em algumas exceções se e quando prin-
cípio superior o determinar, assim como se consubstancia no pacífico
mandamento de que a lei penal posterior apenas pode retroagir para be-
neficiar o réu.
Dispensável examinar, aqui, os atos jurídicos perfeitos assim como
a coisa julgada ou a decisão de que não caiba mais recursos (sem aden-
trar a polêmica de saber se somente a coisa julgada dita absoluta é que
estaria protegida contra a lei nova), já que consensualmente emergem,
de forma nítida, outras tantas relativizações ao aludido princípio da ir-
retroatividade.
Cumpre, portanto, aduzir breve conclusão sobre conflito de leis
no tempo. Examinado o critério da irretroatividade, merece reservas e
temperamentos, para que se coíbam exageros e excessos cometidos, os
quais não podem prevalecer contra a Constituição em face da necessária
subordinação do critério cronológico ao hierárquico em sua dimensão
axiológica, mais do que forma1. 46
A par do critério cronológico (e do seu associado, por assim dizer,
princípio da irretroatividade), doutrina consolidada indica o critério da
lex superior, isto é, o que determina prevalecer, em caso de colisão, a
norma hierarquicamente superior, segundo o velho brocardo lex supe-
rior derogat inferior, que permite solucionar conflitos entre normas e
princípios de diferentes escalões, sendo certo que a antinomia se instau-
46. Aqui, importante registro se impõe: não há direitos adquiridos contra a
Constituição, mas há direitos adquiridos na Constituição.
 r
100 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ra mesmo quando o comando inferior, em face da hierarquia das fon-
tes, haure seu fundamento de validade no comando mais alto. Ademais,
mencione-se o critério da lex specialis,47 ou da especialidade, qual seja,
o que manda fazer preponderar a lei especial sobre a lei geral, de acordo
com a máxima lex specialis derogat generali,48 por exigência da equida-
de presumida na especialização. À evidência, tal presunção será relativa
e problemático também precisa ser considerado este critério de remoção
de incompatibilidades. 49
Com efeito, os critérios referidos - entre outros 50 -, conhecidos de
todo intérprete, atormentado que tenha sido pela persistência de uma an-
47. De acordo com a melhor doutrina, as normas podem ser gerais ou es-
peciais. Na dicção clássica de Francesco Ferrara, "il Diritto puó avere una sfera
d' applicazione generale a tutti i rapporti o limitata ad un campo circoscritto di essi.
L'uno e Diritto generale, l'altro Diritto speciale. Accanto aI Diritto generale si svi-
luppa per particolari rapporti della vita o per certe classi di persone o cose un ius
proprium, un Diritto piu confacente ed adatto alle peculiari esigenze dei rapporti,
che assume una particolare fisionomia ed uno spirito indipendente, in confronto aI
Diritto generale, da cui s'e distaccato. 11 Diritto speciale non e un'eccezione, ma
una specificazione, uno sviluppo, un complemento deI Diritto generale, come un
rampollo rigoglioso daI tronco. 11 Diritto speciale e un sistema autonomo di principi
elaboratosi per un particolare atteggiamento di certi rapporti" (in Trattato di Diritto
Civile Italiano, Roma: Athenaeum, 1921, n. 17, p. 83).
48. Quanto à prevalência da lei especial (lex specialis) sobre a lei geral (lex
generalis), esta diretiva já era acatada no Direito Romano do Baixo Império. Paul
Krueger relata que o Código de Justiniano foi publicado no dia 7 de abril de 529 e
teve força de lei a partir de 16 de abril. Desde esse momento foi proibido servir-se
dos antigos Códigos e das Novelas, resguardando força de lei apenas às Pragmatica,
que, com status de leis especiais, continham concessões de privilégios (in Histoire
des Sources du Droit Romain, Paris: Thorin & Fils Éditeurs, 1894, p. 432).
49. É por isso que o citado Francesco Ferrara pondera: "(...) ma se ad una legge
speciale segue una generale, e dubbio se la nuova regola tolleri piu le deviazioni ed
eccezioni della prima, oppure voglia mantenerle, coordinandole aI nuovo principio.
La soluzione dipenderà caso per caso dall'indagine deI nesso fra i due ordini di
norme e deI fondamento della nuova disposizione" (in Trattato... , cit., pp. 253-254).
50. Para lidar com disposições contraditórias, segundo Carlos Maximiliano,
deve inspirar-se o intérprete em alguns preceitos, como, por exemplo: "Apure o in-
térprete se é possível considerar um texto como afirmador de princípio, regra geral;
o outro, como dispositivo de exceção; o que estritamente não cabe neste, deixa-se
para o domínio daquele" (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, cit., p. 135). De
outra parte, ao meditar sobre o tema, assim se expressou Hamilton: "The interpreta-
tion of the laws is the proper and peculiar province of the Courts. A Constitution is,
in fact, and must be regarded by the judges, as a fundamentallaw. It therefore be-
longs to them to ascertain its meaning, as well as the meaning of any particular act
proceeding from the legislative body. Ifthere should happen to be an irreconcilable
variance between the two, that which has the superior obligation and validity ought,
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 101
tinomia que desponte como uma oposição não conciliada ou como uma
má contradição, solvem (particularmente, o metacritério da hierarquiza-
ção axiológica) tanto as contradições entre regras como as que envolvem
diretamente princípios ou valores.
À diferença, pois, do sustentado por Bobbio,51 estes critérios ine-
gavelmente jurídicos, conquanto transcendam a esfera jurídica, numa
adequada interpretação tópico-sistemática, são suficientes para resolver
as contradições, mesmo as que sucedem entre normas contemporâneas e
do mesmo escalão formal.
Neste compasso, deve-se, por oportuno, lembrar, como premis-
sa associada, que por interpretação sistemática, na ótica preconizada,
entende-se a operação que consiste em atribuir, hierarquicamente, a
melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às regras
ou normas estritas e aos valores jurídicos, fixando-lhes o alcance e su-
perando antinomias em sentido amplo, tendo em vista solucionar casos
de conflito (objetiva ou ;úbjetivamente considerados).
Na linha tópico-sistemática proposta, portanto, para vencer as
antinomias (sempre, de algum modo, solúveis juridicamente) que
ocorrem ou podem ocorrer entre normas do mesmo escalão formal e
coevas, o critério hierárquico axiológico, nos termos dos preliminares
conceitos de sistema jurídico e de interpretação sistemática, apresenta-
se tipicamente capaz de oferecer, em todos os casos, uma solução mi-
nimamente adequada, desde que, no bojo do sistema, haja uma básica
razoabilidade.
of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought to be preferred
to the statute, the intention of the people to the intention of their agents. (...). It
not uncommonly happens that there are two statutes existing at one time, clashing
in whole or in part with each other, and neither of them containing any repealing
clause or expression. In such a case it is the province of the Courts to liquidate and
fix their meaning and operation. So far as they can, by any fair construction, be re-
conciled to each other, reason and law conspire to dictate that this should be done;
where this is impracticable, it becomes a matter of necessity give effect to one in
exclusion of the other. The rules which has obtained in the Courts for determining
their relative validity is, that the last in order of time shall be preferred to the first.
But this is a mere rule of construction, not derived from any positive law, but from
the nature and reason ofthing" (in The Federalist 78/231, Great Books ofthe Wes-
tem World/Encyclopaedia Britannica, 1952).
51. Ao refletir sobre o conflito entre o critério hierárquico e o de especia-
lidade, Norberto Bobbio chega à conclusão de que não existe uma "regra geral
consolidada" (in Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 109), assertiva da qual
dissente o nosso enfoque.
 ~
102 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Neste ponto não se esposa a classificação de Bobbio,52 que estabe-
lece uma discriminação entre antinomias solúveis e insolúveis. Tampou-
co, justamente pela natureza do enfoque, haveria sentido em se propor,
para desfazer estes nós górdios, o recurso a diferenças de formas entre
os mandamentos normativos - ora imperativos, ora proibitivos, ora per-
missivos -, como se as normas permissivas, por exemplo, fossem neces-
sariamente mais propícias, devendo, só por isso, preponderar. Ora, nem
sempre é assim, como o evidencia a farta experiência jurisprudencial.
Dessa maneira, o melhor caminho, em tais e em todas as situações,
está no metacritério da hierarquização tópico-sistemática - mais axio-
lógica do que formal - das normas ou disposições antinômicas, ainda
quando se esteja diante de conflitos entre os próprios critérios encarre-
gados de desfazê-los. Dito de outro modo, o critério da hierarquização é
o que supera, na prática, as antinomias, ainda quando se tenha a ilusão
de que outro critério o tenha feito.
Logo, a propósito dos conflitos ou antinomias de segundo grau, é
de fixar que existe um critério constante e jurídico para a resolução das
mais complexas incompatibilidades. Não assim se posiciona Bobbio.
Propõe, desafiadoramente, que não se resolveria juridicamente a se-
guinte questão: "Coloquemos o caso em que duas normas se encontrem
numa relação tal que sejam aplicáveis dois critérios, mas que a aplicação
de um critério dê uma solução oposta à aplicação do outro".53
Aqui se verifica quão valioso é desfrutar de uma noção mais larga
de sistema, configurando-o como totalidade de princípios, valores e re-
gras, hierarquizáveis entre si, sem cuja prevalência tópica inviabiliza-se
a resolução da problemática envolvendo a colisão de normas do mesmo
patamar formal. Observe-se, também, que o critério hierárquico axio-
lógico deve preponderar sobre a regra da especialidade, sob pena de se
perder a ideia de que os princípios estão situados no topo do ordena-
mento jurídico e que as normas de vários escalões devem a eles restar
harmonicamente subordinadas.
52. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 105.
53. Idem, p. 106. Calha trazer a lume a lição de Pascal: "On ne peut faire une
bonne physionomie qu' en accordant toutes nos contrariétés et ne suffit pas de sui-
vre une suite de qualités accordantes sans accorder les contraires; pour entendre le
sens d'un auteur il faut accorder tous les passages contraires. Ainsi pour entendre
l'Écriture il faut avoir un sens dans lequel tous les passages contraires s'accordent;
il ne suffit pas d' en avoir un qui convienne à plusieurs passages même contraires.
Tout auteur a un sens auquel tous les passages contraires s'accordent ou il n' a point
de sens de tout. (...). llfaut donc en chercher un qui accorde toutes les contrariétés"
(in Oeuvres Completes, Paris: Éditions Seuil, 1963, p. 533).
~
ANTINOMIAS JURÍDICAS 103
A solução, mesmo para as assim chamadas antinomias de segundo
grau (aquelas que se processam entre os próprios critérios usuais - cro-
nológico, hierárquico e de especialidade), há de fazer preponderar o cri-
tério hierárquico-axiológico, admitindo-se, sem vacilações, uma mais
ampla visão de hierarquia, a ponto de escalonar princípios, valores e
regras no seio da própria Constituição,54 no escopo de solucionar as
contrariedades nefastas, mesmo as que, excepcionalmente, ocorrem em
processos objetivos e sem partes contrapostas.
Certo está que nem sempre as antinomias no Direito aparentam
consubstanciar um mal, não se lhes negando a produtividade. 55 Fazem-
se indesejáveis na medida em que ameaçam pôr em colapso o sistema,
convertendo sua natureza plural em entropia. A coerência, que veda a
autocontradição de seus comandos, neste passo em harmonia plena com
Bobbio, embora não seja, em si mesma, condição de validade, o é de
pertinência sistemática, mais atinente à teleologia do que à efetividade
do Direito postO. 56 Entretanto, não se devem confundir as antinomias,
más e nocivas, que precisam e devem, sem tardar, ser dissolvidas, com
eventuais tensões relativizadoras. São estas que, afinal, põem o Direito
54. Tal hierarquização, porém, como se verá na oitava das configurações hi-
potéticas, não significa que inexistam normas constitucionais inconstitucionais. Ao
revés, contanto que sejam assim consideradas apenas as normas derivadas, claro que
em último caso.
55. V. Thomas Kesselring in Die Produktivitat der Antinomie, Frankfurt:
Suhrkamp, 1984, especialmente nas suas minuciosas interpretações de textos he-
gelianos, pp. 250-277. Do mesmo autor v., ainda, Entwicklung und Widerspruch:
ein Vergleich zwischen Piagets genetischer Erkenntnistheorie und Hegels Dialektik,
Frankfurt: Suhrkamp, 1981. Embora alguns se deixem levar ou pela "decepção ló-
gica" (logischer Entrüstung) ou pela "euforia especulativa" (spekulativer Begeiste-
rung), o certo é que quando se fala em antinomias ou contradições "não se pode des-
denhar a oferta do pensamento dialético" ("so wird sie das Angebot des Dialektis-
chen Denkens nicht verschmãhen dürfen"): v. Hans-Georg Gadamer in Gesammelte
Werke, Tübingen: 1. C. B. Mohr, 1987, p. V. A bem do rigor, e sempre guardadas as
perspectivas de universalização e de fundamentação, "a contradição, que era prova
de nulidade para os antigos, converteu-se em algo positivo para a Filosofia moderna"
("00" wird für die neuere Philosophie der Widerspruch, der für das antike Denken
der Aufweis der Nichtigkeit war, zu etwas Positivem") (Hans-Georg Gadamer in
Gesammelte Werke, cit., p. 13).
56. Neste aspecto, em sintonia com Norberto Bobbio (in Teoria do Ordena-
mento Jurídico, cit., p. 113), para quem a coerência não é condição de validade, mas
sempre condição para a justiça do ordenamento. De outra parte, registre-se, a coe-
rência é exigência inafastável para que bem se realizem a escolha axiológica e a uni-
dade hierarquizada das regras, dos princípios e dos valores jurídicos. Dar coerência
ao objeto da interpretação, mais do que nele simplesmente descobri-la, é atividade
inerente à essência do processo de interpretação tópico-sistemática.
 ---r-
104 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

em marcha de permanente adaptação evolutiva, no encalço presumido

de mais certeza e de justiça material- valores, estes, que se completam e
que, na prática, jamais deveriam ser vistos como inconciliáveis.
Assim, no exame da temática dos critérios, urge reter que quando
houver conflito aberto e insanável entre uma lei superior geral e uma
norma especial inferior deve vencer o critério hierárquico-axiológico. CAPÍTULO 4
Esta prevalência afirma-se mesmo que, numa impressão de superfície,
CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS
prepondere a norma especial inferior, já que, em derradeira instância, a
hierarquização formal cede à substancial. DE ANTINOMIAS JURÍDICAS
Em nome desta última - a hierarquização axiológica - é que se
pode, sem exotismo, cogitar de uma norma especial inferior capaz de 4.1 A relativização do critério cronológico. 4.2 A relativização do crité-
rio de especialidade. 4.3 O peso decisivo do critério de hierarquização
revogar uma lei superior geral, invocando a preponderância do próprio
na antinomia entre os critérios.
critério hierárquico-axiológico, no lidar com as mais complexas antino-
mias jurídicas.
À vista do exposto, convém gizar que por antinomias jurídicas 4.1 A relativização do"critério cronológico
entendem-se incompatibilidades possíveis ou instauradas entre regras,
valores ou princípios jurídicos, pertencentes validamente ao mesmo sis- Cuidar-se-á de estabelecer neste capítulo uma série de configura-
tema jurídico, tendo de ser vencidas para a preservação da unidade e ções hipotéticas, almejando propiciar uma visão nítida do processo de
da coerência sistemática e para que se alcance a efetividade máxima da resolução das antinomias. Com tal desiderato, até mesmo em homena-
pluralista teleologia constitucional. gem à habitualidade com que se vê o critério cronológico despontando
como determinante, cumpre configurar, numa primeira hipótese antinô-
mica, precisamente o conflito entre norma estrita ou regra anterior e nor-
ma estrita ou regra posterior:

NA x NP
(NORMA ANTERIOR) . (NORMA POSTERIOR)

Pois bem, de um modo geral, os sistemas jurídicos contemporâneos, 1

expressa ou implicitamente, dizem que deve preponderar NP, numa es-
pécie de autorreferência que permite resolver esta antinomia. Entretanto,
como será visto sobretudo a partir da segunda hipótese, se NP colidir
com PS (PRINCÍPIO SUPERIOR) ou com NAS (NORMA ANTERIOR SUPERIOR),
a incompatibilidade deverá ser resolvida a favor de NAS ou o critério
cronológico será ultrapassado em prol do PS.
Nesta primeira configuração hipotética convém notar que uma nor-
ma pertencente ao sistema ou um princípio nele implícito hierarquiza o
posterior como tendo primazia em relação ao anterior. Por conseguin-
te, resulta nítido que o critério de hierarquização é que desponta como

1. No caso brasileiro, V.g., pela regra contida no art. 2º da Lei de Introdução ao

Código Civil. Ainda a propósito, recorde-se tópico específico do Capítulo 3.

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106 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
preponderante, determinando a aplicação do critério cronológico, nos
termos expostos.
Esta configuração, bem pensada, permite antever que o critério cro-
nológico jamais prevalecerá quando confrontado com os demais crité-
rios, e, ainda que se tenha a impressão de ser ele o decisivo, ocultamente
verificar-se-á o predomínio de um PS, nunca preponderando o critério
cronológico por suas próprias forças, dado que pronunciadamente frágil
para resolver as antinomias.
Associada à matizável ideia de que o novo seria melhor do que o
antigo, a suposta vantagem da lei nova só experimenta sentido se o in-
térprete, no diálogo com o sistema, hierarquizá-la como superior, formal
e substancialmente. Ora, mesmo uma emenda constitucional, revestida
de superioridade primafacie, pode ser declarada em litígio contra princí-
pios "pétreos" assim hierarquizados, originária ou supervenientemente,
já que os ordenamentos exigem o combate à incompatibilidade de toda e
qualquer norma com o núcleo do sistema. 2
Nada obstante, a melhor doutrina critica a revisão constitucional
demasiado frequente, por se mostrar tendencialmente em desarmonia
com princípios e comandos situados no topo do sistema, os quais re-
querem e supõem estabilidade. De qualquer sorte, o fato de uma norma
ser cronologicamente posterior não implica a autorização de arrasar o
antigo, nem de colocá-lo abaixo, sob impulsos impensados ou pelo sim-
ples desdém à cultura de uma dada época. Neste contexto, como enfati-
zado no Capítulo 2, mostra-se necessário resguardar a confiabilidade e
a segurança das relações e, ao mesmo tempo, conceber o sistema como
razoavelmente aberto ao irromper de formas e conteúdos cambiantes.
Mais: o primeiro estado antinômico esconde uma antinomia de se-
gundo grau (aquela que se dá entre os próprios critérios). A rigor, sempre
aparece este tipo de antinomia complexa, ainda que de modo implícito.
Com efeito, uma antinomia desta natureza mais será desvendada em to-
das as configurações hipotéticas.
Em suma, a primeira configuração faz ver a relatividade extrema do
critério cronológico, embora um sistema eficiente e eficaz deva ser per-
meável ao novo, sem prejuízo de manter seus eixos centrais contínuos
na descontinuidade, ou seja, sem que se admita instaurar o novo como
fator de caótica ruptura ou de perecimento. Por isso, revelam-se mais
aptos a perdurar os sistemas que mantêm a possibilidade de absorção
de elementos contrários, respeitada a confiança nas regras consolidadas,
2. Por seu significado histórico e inusitado, v. ADI 939-7-DF.
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CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS DE ANTINOMIAS JURÍDICAS 107
submetidas a processos de adequação permanente. Tal adequação será
melhor efetuada se o Direito Positivo for considerado, antes de tudo,
como rede de princípios, na qual o critério cronológico, em que pese sua
inestimável e irretorquível valia, figura apenas como um dos princípios
estruturalmente fundadores do ordenamento.
Numa segunda hipótese, que evidencia ainda mais o fenômeno da
preponderância do critério hierárquico, convém examinar a antinomia
que se dá quando do confronto entre:
PS (PRINCÍPIO SUPERIOR) x NPI (NORMA POSTERIOR INFERIOR) =
NAS (NORMA ANTERIOR SUPERIOR)
É de se reiterar que na hipótese aventada prepondera NAS, por
conta da hierarquização ditada por PS. Logo, a antinomia resulta, como
sempre, superada pelo critério de hierarquização, pelo qual o intérprete,
axiologicamente, elege, ,num dado contexto, o comando normativo ou
principiológico que deve ser visto como superior e, tão somente em ra-
zão disso, como proeminente no jogo antinômico.
Desenvolvendo a hipótese, desvenda-se a solução desta antinomia
por uma interpretação sistemática, tal e qual se a conceituou. Tome-se,
e.g., uma NP ou lei nova que viole o PS da irretroatividade, consoante
o qual a NP não deve alcançar as situações pretéritas, definitivamente
consolidadas sob a égide da lei antiga. Ora, ditame inconcusso, embora
passível de elasticidade hermenêutica,3 tal princípio tem sido posto no
bojo da Constituição. Então, é de se concluir pela preponderância do
PS em relação à lei nova, salvo relativização ditada por outro PS. Mais
uma vez, a hierarquização se desvela, na configuração efetuada, como
critério decisivo para a solução do conflito.
Outro caso extremamente elucidativ04 e algo desafiador do senso
comum é o da antinomia entre súmula e determinada NP. Tome-se, com
inspiração na realidade brasileira, o conflito entre uma medida provi-
sória (com força de lei) e uma determinada súmula (espécie de regra
não-legislada com força nunca tão vinculante a ponto de impedir o in-
dependente controle de sistematicidade). Se vingasse o automatismo a
resposta para tal antinomia entre regras andaria no sentido de que, no
sistema romanístico, a antinomia deveria ser solvida contra a súmula.
No entanto, o automatismo da resposta espelharia, no paradigma her-
3. Foi o enfatizado, com mais vagar, no capítulo anterior.
4. Retomado no Capítulo da ilustração no campo da interpretação constitu-
cional.
 r
108 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
menêutico adotado, uma incompreensão do processo de interpretação
sistemática, mesmo se cogitando de modelo romanístico, caracterizado
pela norma legislada como fonte formal primeira.
Com efeito, a resposta de que a regra, a priori, deveria prevalecer
provaria assimilação insuficiente de como se efetua a superação de qual-
quer antinomia entre regras: sempre resolvemos antinomias desta na-
tureza hierarquizando como superior um determinado princípio. Nisso
reside a diferença funcional mais significativa entre princípios e regras.
Eis, igualmente, a diferença de fundo entre constitucionalismo (domina-
do por princípios) e legalismo (dominado por regras), sendo aquele, por
definição, superior a este. Assim, se a medida provisória contrariar, por
hipótese, o princípio da justa indenização, então, a súmula preponderará.
Na realidade, o princípio da justa indenização - não a súmula - é que
resolverá a antinomia, ao ser reputado superior pelo intérprete tópico-
-sistemático.
4.2 A relativização do critério de especialidade
Numa terceira hipótese deve-se configurar o conflito, assaz co-
mum, envolvendo:
NG x NE
(NORMA GERAL) (NORMA ESPECIAL)
Em semelhante configuração hipotética, o sistema privilegia ou,
melhor, permite hierarquizar a especialidade como superior, no mais das
vezes. Portanto, prepondera NE sobre NG, no que houver de antinâmi-
co. s Contudo, prepondera apenas se assim se hierarquizar.
Tal assertiva resta mais clara quando se elabora uma quarta hipóte-
se, na qual o conflito se verifica entre:
NE x PS
(NORMA ESPECIAL) (PRINCÍPIO SUPERIOR)
Nesta situação, em que a NE, parcial ou totalmente, colide com PS,
há de preponderar o PS. É o que, incontestavelmente, constata-se, por
exemplo, se uma NE afrontar o PS da proteção ao ato jurídico perfeito,
também erigido, em nosso caso, à alçada constitucional.
5. V. Natalino Irti in L 'Etá della Decodificazione, 4ª ed., Milano: Dott. A. Giuf-
fre Editore, 1999, sobretudo o Capítulo 11, pp. 53-100.
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CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS DE ANTINOMIAS JURÍDICAS 109
Numa quinta hipótese é de ser pensada a colisão acontecendo entre:
NAE x NPG
(NORMA ANTERIOR ESPECIAL) (NORMA POSTERIOR GERAL)
Mister observar, nesta situação, um choque entre os critérios de es-
pecialidade e cronológico, gerando uma antinomia de segundo grau (a
qual se dá entre os critérios para solvê-las). O critério de hierarquiza-
ção é que resolve esta antinomia complexa. Na prática, o intérprete do
sistema tem hierarquizado, em geral, o critério de especialidade como
superior, porque se entende, como Francesco Ferrara, que o Direito es-
pecial "e un sistema autonomo di principi elaboratosi per un particolare
atteggiamento di certi rapporti";6 mas uma eventual coordenação entre
os princípios reclama o exame comparativo entre as normas, até porque
inviável a construção de uma solução unívoca para qualquer antinomia.
Deste modo, especialmente perante uma antinomia entre os critérios,
melhor se verifica ,a presença do princípio hierarquizador e, por força
deste, da interpretação tópico-sistemática.
Numa sexta configuração hipotética urge cogitar da antinomia que
acontece quando há incompatibilidade entre:
NAE x PS
(NORMA ANTERIOR ESPECIAL) (PRINCÍPIO SUPERIOR)
Em semelhante contexto, PS, por sua condição hierárquica, prepon-
dera e, obliquamente, faz com que, não prevalecendo uma NAE, resulte
dominando uma NPG. Logo, o que está efetivamente resolvendo a an-
tinomia, outra vez e sempre, é o princípio da hierarquização, que exige
ver respeitado o primado do PS.
Avançando, uma sétima hipótese precisa ser cogitada. É a resultante
do conflito entre:
NS x NI
(NORMA SUPERIOR) (NORMA INFERIOR)
6. Trattato di Diritto Civile Italiano, cit., p. 83. Acerca da necessidade de se
deixar uma abertura ao caso concreto para dirimir esta antinomia, v. a mesma obra,
pp. 253-254. Mais especificamente sobre a ideia de que o Direito especial não segue
uma uniforme dedução de um esquema lógico, mas deriva das relações da vida, v.
Otto von Gierke in Deutsches Privatrecht, München/Leipzig: Verlag von Duncker
& Humblot, 1936, p. 44.
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110 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Por tudo, claro que o sistema indisputavelmente faz preponderar a
NS, sendo inadmissível logicamente pensar em superioridade que não se
imponha, em caso de incompatibilidade. Assim, importa sobrepassá-Ia e
construir uma oitava hipótese, desdobrada em duas situações. É a confi-
guração das antinomias que ocorrem entre:
NS x PS
(NORMA SUPERIOR) (PRINCÍPIO SUPERIOR)
ou
PS x PS
(PRINCÍPIO SUPERIOR) (PRINCÍPIO SUPERIOR)
Bem de ver que nesta oitava hipótese, pelos mesmos fundamentos,
em ambas as situações a antinomia deve ser tida como completamente
indesejável. Quando se a formula observa-se que não se dá à hierarqui-
zação o tratamento devido. De fato, apenas uma interpretação hierarqui-
zadora tem o condão de dissolver, inteiramente, uma antinomia desta
natureza.
Veja-se: no momento em que se formula a colisão percebe-se sua
plena inconsistência: não deve haver, ao menos em grau idêntico, coli-
são de superioridade com superioridade, a não ser que uma norma estri-
ta ou princípio esteja, no caso concreto, sendo considerado como mais
elevado e fundamental. Ora, se assim estiver sendo reputado, deixará de
haver, em sentido próprio, superioridade num dos polos do conflito, e a
questão terá seu deslinde pela simples aplicação do princípio da hierar-
quização.
Desta maneira, indispensável reconhecer que, invariavelmente,
sem exclusão desta oitava hipótese, a solução pressupõe recurso a um
PS mais elevado do que os princípios ou regras em colisão. Digno de no-
tar que é exatamente por tal motivo que, numa interpretação sistemática
bem empreendida, não resulta impossível admitir a existência (certa-
mente lastimável) de normas constitucionais derivadas que se afigurem
inconstitucionais, por mais intrigante que a questão possa parecer à pri-
meira vista, 7 em virtude de contradição no âmbito da Lei Fundamental,
7. V., com diferença de enfoque, Otto Bachof in Normas Constitucionais In-
constitucionais?, Coimbra: Atlántida Editora, 1977, p. 92. O autor admite a incons-
titucionalidade de norma constitucional por violação a Direito supralegal, não sendo
exatamente esta a orientação adotada, ao menos em relação à Constituição Brasileira
e em nossa abordagem, pelos motivos expostos, que serão, em maior medida, reto-
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CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS DE ANTINOMIAS JURÍDICAS 111
uma vez que só aparentemente as normas constitucionais possuem grau
idêntico, 8 ao menos se compreendido o Direito numa visão que transcen-
da o formalismo e assuma a sua dialética vitalidade. 9 Não há, contudo,
a menor necessidade de se invocar Direito suprapositivo para fazê-lo.
Inaceitável, pelas razões espostas, a declaração de inconstitucionalidade
de normas constitucionais originárias.
A possibilidade remanesce, pois, quando da colisão de uma norma
estrita ou regra constitucional derivada com um princípio fundamental
intangível. Novamente a hierarquização indica a preponderância do prin-
cípio e, desde que manifesta, a inconstitucionalidade da norma derivada.
4.3 o peso decisivo do critério de hierarquização
na antinomia entre os critérios
Convém figurar hipótese em que o conflito ocorre entre:
NSG x NIE
(NORMA SUPERIOR GERAL) (NORMA INFERIOR ESPECIAL)
Neste quadro, embora haja alguma vacilação na doutrina, não ne-
cessariamente prevalecerá a NSG. Certo que, no geral das vezes, a nor-
mados no capítulo da ilustração da interpretação sistemática no Direito Público. So-
bre Bachof, v. Luís Roberto Barroso in Interpretação e Aplicação da Constituição,
4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 200-204. Recomendável, a propósito do tema,
o estudo de Gilmar Ferreira Mendes in Controle da Constitucionalidade: Aspectos
Jurídicos e Políticos, São Paulo: Saraiva, 1990, pp. 95-105, especialmente sobre o
controle do poder de reforma e cláusulas pétreas. Saliente-se que, em observância da
perspectiva aqui adotada, apenas em último caso se deveria decretar uma tal incons-
titucionalidade, mas inegavelmente se deve admitir a existência ou a possibilidade
de inconstitucionalidade de normas constitucionais, justamente porque o intérprete
constrói uma hierarquia tópica a partir da Lei Fundamental. Todavia, urge evitar
a declaração de inconstitucionalidade de norma constitucional originária, pois sig-
nifica desprezar o argumento baseado na útil distinção técnica acerca da natureza
dúplice do poder constituinte.
8. É certo que se considera a hierarquia mais do ponto de vista substancial ou
axiológico, consoante o qual sempre há hierarquização possível, em face da comple-
tabilidade potencial do sistema jurídico, tal como já se o definiu.
9. Neste passo, tem razão Francesco Ferrara (in Interpretação e Aplicação das
Leis, Coimbra: Arménio Amado Editor, 1978, p. 137) quando assinala: "Ora, isto
pressupõe que o intérprete não deve limitar-se a simples operações lógicas, mas
tem de efetuar complexas apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal.
E daqui a dificuldade da interpretação, que não é simples arte linguística ou palestra
de exercitações lógicas, mas ciência da vida e metódica do Direito".
 ."..
112 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ma especial cederá, como se viu e sublinhou na configuração da quarta
hipótese.
Todavia, em coerência com a linha expositiva, útil mencionar a cor-
relacionada antinomia entre:
NSG (NORMA SUPERIOR GERAL) x PS (PRINCÍPIO SUPERIOR)
x NIE (NORMA INFERIOR ESPECIAL)
Nesta décima configuração hipotética, sim, poderá prevalecer -
pelo domínio constante do PS - a NIE, obliquamente. Tal norma somen-
te haverá de se impor se o princípio da hierarquização determinar sua
preservação, em face da preponderância de PS, num paradoxo que seria
insolúvel se não se aceitasse que, em última instância, decide, expressa
ou implicitamente, o princípio da hierarquização, que não é apenas for-
mal, mas eminentemente axiológico.
Ao se examinar esta derradeira configuração hipotética vê-se am-
plamente desnudada a atuação do critério de hierarquização axiológica,
tendo o peso decisivo em relação aos critérios usuais para vencer anti-
nomias, inclusive quando da ocorrência simultânea de incompatibilida-
des, sobrepassando a própria hierarquiaformal.
Com efeito, nas várias configurações, mesmo nas antinomias de
primeiro grau, sucedem dois fenômenos de marcada significação, quais
sejam: a oculta tensão entre os próprios critérios (a antinomia de segun-
do grau está, invariavelmente, presente) e, de outra parte, a solução da
antinomia sempre brota por força do patrocínio claro e insofismável do
critério de hierarquização, que faz o papel de metacritério para o apli-
cador do Direito, estando para este, concretamente, como uma espécie
de constante em meio à variedade das soluções e dos métodos utilizados
para a superação das antinomias jurídicas (abarcando as lacunas, que
nada mais são do que antinomias entre norma geral inclusiva e norma
geral exclusiva).
Consideradas as hipóteses em conjunto, embora tais configurações
não sejam exaustivas, percebe-se que servem principalmente para:
a) corroborar as afirmações efetuadas no que conceme à vantagem
de se utilizar um conceito alargado de interpretação sistemática, que
inclua o princípio da hierarquização axiológica (não apenas formal),
princípio que se mostra necessário, em todos os casos, para vencer as
antinomias;
b) tomar cristalino que não se está operando com o conceito de an-
tinomia lógico-formal, conquanto na oitava hipótese se poderia cogitar
~
CONFIGURAÇÕES HIPOTÉTICAS DE ANTINOMIAS JURÍDICAS 113
de certa similitude com o fenômeno da autocontradição; mas, como se
notou, o que efetivamente sucedeu naquela configuração hipotética foi a
utilização de recurso a um determinado grau superior, vale dizer, recurso
a um princípio apto a solver o litígio entre os princípios colidentes;
c) evidenciar que tampouco se está operando com o conceito de
antinomia de cunho estritamente semântico, sem embargo do interesse
que este tipo de abordagem possa ter, noutro contexto, para o estudo do
princípio da hierarquização axiológica;
d) revelar que, até em razão do âmbito, nem toda contradição ou
mesmo oposição pode ser considerada uma antinomia jurídica, no sen-
tido aqui descrito;
e) tomar claro que a antinomia, tal e qual se a definiu, guarda rela-
ção de semelhança - não de identidade - com os conflitos pragmáticos,
com a reiteração das ressalvas de que inexiste ausência de critérios jurí-
dicos, uma vez que inv~riavelmente prepondera o princípio da hierar-
quização axiológica, mesmo no conflito entre princípios, sendo que, lon-
ge de contestá-la, robustece esta posição o fato de eventualmente uma
lei especial preponderar, à primeira vista, sobre uma norma superior,
embora, na realidade, ocorra a primazia tópica de um dado comando
principiológico;
f) reforçar a constatação de que a classificação entre antinomias
solúveis e insolúveis é algo falaciosa: as antinomias são "reais" quando
a hierarquização as supera pela preponderância, parcial ou total, de um
princípio hierarquizado como superior, podendo até tomá-las, em deter-
minadas circunstâncias e num segundo momento, "aparentes";
g) evidenciar que nas soluções das antinomias de primeiro grau
sempre subjaz a resolução de uma antinomia de grau superior, justa-
mente pela inafastável presença do momento hierarquizador de feições
axiológicas;
h) concluir, igualmente, pela invalidade (ao menos em parte) da
classificação quanto a antinomias próprias ou impróprias,lO pois mes-
mo perante incompatibilidade por razões formais, permanentemente e
sem exceção conhecida, haverá, na instauração da incompatibilidade,
materialidade, dado que, ocultamente ou não, atuar-se-á sob o manto de
um princípio axiológico-jurídico, chamado a resolver - prevenindo ou
remediando - a colisão incômoda ou nociva.
10. Na dita antinomia imprópria o conflito existiria sem se tomar uma antino-
mia jurídica. Ora, na realidade, ocorre, sim, embora se resolva pelo manejo oculto
do metacritério hierarquizador.
 ~

114 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

Nestes moldes, as configurações hipotéticas abrem caminho para

o exame mais detido do princípio da hierarquização axiológica, cuja
descrição será objeto do seguinte capítulo, preparando terreno para as
sugestões prescritivas quanto ao exercício adequado da interpretação
sistemática.
CAPÍTULO 5
O CONCEITO E A NATUREZA JURÍDICA
DO PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA:
INTERPRETAR É HIERARQUIZAR

5.1 A natureza de "metacritério" material-formal do princípio jurídico

da hierarquização axiológica. 5.2 A universalidade do princípio e a teo-
ria da norma geral exclusiva: sugestão de abordagem das lacunas como
antinomias entre norma geral exclusiva e norma geral inclusiva. 5.3
Hierarquização axiológica e concretização sistematizante.

5.1 A natureza de "metacritério" material-formal

do princípio jurídico da hierarquização axiológica
O princípio da hierarquização axiológica é uma espécie de operador
deântico, por meio do qual o intérprete sistemático, formal e material-
mente, constitui, por último, o sistema jurídico. Em face de sua natureza
de "metaprincípio", 1 aspira à universalização sem se contradizer, e se
formula, expressa ou implicitamente, de modo o mais formal possível,
distinguindo aspectos e escalonando princípios, assim como normas es-
tritas (na acepção de regras) e valores. Entretanto, à diferença do imagi-
nado por equivocadas leituras que viram hipertrofia de formalismo nesta
abordagem, deve restar claro que, numa perspectiva dialética, jamais o
formal será apenas formal. Outro erro que se afasta: tampouco se cai, no
extremo oposto, ou seja, no extremismo relativista, ou melhor, niilista
(dois erros que decididamente não se comete). Intenta-se, pois, no ado-
tado paradigma hermenêutico-dialético, ver no princípio da hierarqui-
zação - não numa hierarquia dada -.a diretriz formal-material decisiva
para a solução prática dos conflitos. Vale dizer, trata-se de dever-ser que
veda as contradições nefastas.

1. Sem exagero de hipertrofiar o sentido de metacritério, convém ter presente,

no ponto, a peculiaridade da postura aqui adotada, especialmente à vista do capítulo
sobre identidade essencial do pensamento tópico e da compreensão sistemática.

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116 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Em outras palavras, é critério dialeticamente voltado à subsunção
dos demais critérios utilizados pelo intérprete sistemático. Eis ponto ne-
vrálgico a assimilar: faz as vezes de imperativo principiológico que im-
prime unidade sistemática aos fins jurídicos. Não implica adesão acríti-
ca à abordagem kantiana, embora pareça correto asseverar que somente
um "ser racional" possui a capacidade de agir segundo a representação
das leis, isto é, segundo princípios, pois apenas ele tem uma vontade,
que outra coisa não é senão a razão prática. Ora, a representação de um
princípio objetivo e obrigatório para um ato de vontade nada mais é do
que um mandamento da razão, cuja fórmula se denomina imperativo,
o qual sempre se exprime, hipotética ou categoricamente, pelo verbo
"dever" .2
Neste prisma, reiterando-se, para evitar a perpetuação de mal-enten-
didos, a inexistência de qualquer adesão a formalismo abstrato ou vazio,
possível enunciar proposta conceitual de princípio da hierarquização
axiológica, em tais termos: cuida-se, por assim dizer, de "metacritério"
que indica, inclusive em face de antinomias no plano dos critérios, a
prevalência do princípio axiologicamente superior, mesmo no conflito
específico entre regras, visando-se a impedir a autocontradição do sis-
tema e resguardando a unidade sintética de seus múltiplos comandos.
Unidade, esta, que se realiza, em definitivo, na atuação dos intérpretes.
De tal maneira formulado, o princípio da hierarquização axiológica
- pressuposta a superação da ideia de hierarquia meramente formal e do
apriorism0 3 - faz desaparecer, notadamente no que tange às antinomias
de segundo grau, dúvida maior quanto ao que sucede quando da solu-
ção dos conflitos entre os critérios. Com efeito, a antinomia de segundo
grau, presente mesmo nas antinomias mais simples, mostra-se solucio-
nável pela utilização do "metacritério" hierárquico axiológico. Assim:
CRITÉRIO CRONOLÓGICO x CRITÉRIO HIERÁRQUICO
ou
CRITÉRIO DE ESPECIALIDADE x CRITÉRIO HIERÁRQUICO
= (PS) "METACRITÉRIO" HIERÁRQUICO AxIOLÓGICO
2. Convém referir o conceito kantiano de princípio objetivo, que se assimila -
sem tomá-lo, contudo, em estrito formalismo (v. Werkausgabe, voI. VII, Frankfurt:
Suhrkamp, 1989, p. 37).
3. Para uma abordagem sobre a invevitabilidade do conteúdo axiológico do
Direito e crítica do apriorismo, v. Miguel Reale, in Filosofia do Direito, voI. 2, São
Paulo: Saraiva, 1978, pp. 347-357.
....
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 117
Por idênticos motivos, o conflito de segundo grau entre o critério
cronológico e o critério de especialidade resolve-se pelo princípio da
hierarquização axiológica. Graficamente:
CRITÉRIO CRONOLÓGICO x CRITÉRIO DE ESPECIALIDADE
= (PS) "METACRITÉRIO" HIERÁRQUICO AxIOLÓGICO
Portanto, o princípio da hierarquização axiológica contém - em si e
no intérprete - o fundamento dos demais critérios ou princípios superio-
res, ou seja, sustenta-se que, guardadas distinções e acautelando contra
simplificações, funciona analogamente como o princípio dos juízos sin-
téticos, somente que no campo jurídico.4 Em outras palavras, encontra
correspondência com a "categórica" necessidade de coerência e, por via
de extensão, com princípios que supõem a aspiração (não a garantia) da
universalização hierarquizada das prescrições jurídicas.
A nota distintiva reside em que, por sua natureza, este imperativo
representa uma conciliação a priori e a posteriori,5 eis que o fenômeno
jurídico apenas se perfaz historicamente, variando a qualidade e o tipo
de hierarquização, conquanto a necessidade de escolher valores prepon-
derantes seja traço "atemporal" do fazer jurídico pautado pela racionali-
dade dialética e intersubjetiva.
Inescapavelmente, alcança-se a compreensão deste princípio num
determinado horizonte,6 isto é, num âmbito de visão que abrange e com-
preende todo o visível num dado momento. Assim, não se nega que tal
hierarquização resulte de pressões e de circunstâncias históricas, ainda
mais que os conteúdos normativos se desprendem, por assim dizer, das
4. V. Kant in Werkausgabe, voI. VII, cit., p. 125. Com efeito, o imperativo que
declara a hierarquização necessária por si, independentemente de qualquer intenção
carregada de conteúdo, vale como espécie análoga de princípio prático apodítico, à
semelhança do que se dá com o imperativo categórico, diferenciando-se, nessa me-
dida, dos princípios meramente problemáticos ou tópicos, tais quais os imperativos
hipotéticos de destreza e mesmo os de prudência.
5. Apenas para recapitular: o tema foi enfaticamente abordado no Capítulo 2.
6. A propósito de horizonte, Hans-Georg Gadamer (in Wahrheit und Methode,
cit., 1990) afirma que a hermenêutica jurídica recorda por si mesma o autêntico
procedimento das ciências do espírito, eis que quando o juiz intenta buscar a ade-
quação da lei às necessidades do presente tem a manifesta intenção de resolver uma
questão prática, o que não quer dizer que o faça de um modo arbitrário, mas tão só
que compreender e interpretar implicam conhecer e reconhecer um sentido vigente,
mediando a ideiajurídica da lei com o presente. Trata-se, na visão gadameriana, de
evidente mediação jurídica, distinta daquela do historiador, que possuiria apenas a
tarefa de elucidar o significado histórico da lei.
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118 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
fontes originárias, e o aplicador não se comporta como observador do
passado, precisando descobrir o significado do comando, mediando-o
criticamente com as exigências do presente.
Todavia, embora a subjetividade e, de conseguinte, a relatividade
sejam elementos jamais afastáveis por inteiro, a interpretação invaria-
velmente hierarquiza em todos os tempos e sistemas. É possível - na
própria e necessária hierarquização - cogitar, com moderação e modés-
tia, de ter encontrado uma marca teleológica comum a Direitos de múl-
tiplas épocas e povos.
Deve haver, ainda, consciência de que a função precípua da hierar-
quização se identifica com a do pensamento sistemático, vale dizer, a de
traduzir e desenvolver a axiológica unidade do Direito, diferenciando-se,
em termos funcionais, de outros princípios, dado que o "metacritério",
em assimetria com os descritos por Claus-Wilhelm Canaris, tem de valer
sem exceção. 7 É o próprio princípio da hierarquização que estabelece,
7. Pensamento Sistemático... , cit., p. 25. De outra parte, na mesma obra, es-
clarece que quem nega a possibilidade de um sistema teleológico nega, por igual, a
viabilidade de captar, racionalmente, a adequação do pensamento teleológico. Em
outras palavras, o sistema nada mais seria, segundo Canaris, do que a captação ra-
cional da adequação de conexões de valorações jurídicas (pp. 70-71). É este um
razoável ponto de partida (tomado de Binder). Canaris, ao caracterizar o sistema
como ordem teleológica, embora num caminho acertado para dar conta da função
de adequação axiológica, não oferece resposta plenamente satisfatória à questão dos
"elementos constitutivos nos quais se tomem perceptivas a unidade interna e a ade-
quação da ordem jurídica" (p. 76). Para tanto, a despeito de não desvendar o papel
sistematizante e unificador do princípio da hierarquização axiológica, tal e qual se
expõe neste capítulo, teve o mérito inequívoco de intuir a necessidade de atentar para
a característica da unidade, com a imprescindível "recondução da multiplicidade do
singular a alguns poucos princípios constitutivos" (p. 76). Na descoberta do sistema
em sua dimensão teleológica, propugna pelo avanço até os valores fundamentais
mais profundos, portanto até os princípios gerais de uma ordem jurídica. Herme-
neuticamente, "trata-se, assim, de apurar, por detrás da lei e da ratio legis, a ratio
juris determinante" (p. 77). Neste quadro, o sistema deixa-se definir, na perspectiva
de Canaris, como se viu e, em parte, já se criticou no Capítulo 1, como ordem axio-
lógica ou teleológica de princípios gerais de Direito, com vantagens perante outras
concepções de sistema - tais como as que veem o Direito como aglutinação de nor-
mas, conceitos, institutos ou valores -, mas com insuficiências nítidas em relação
ao conceito aqui esposado, que abarca, mais claramente, a presença das regras e
dos valores como condição necessária para o tratamento apropriado das antinomias
principiológicas, axiológicas e normativas estritas.
Convém mencionar que, ao tecer considerações acerca dos elementos que jul-
ga constitutivos dos princípios - sem dizer que o verdadeiramente unificante é o
princípio da hierarquização axiológica -, Canaris desce à pormenorizada análise do
~
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 119
por si e para o intérprete, que deve preponderar em caso de oposição
ou colisão de princípios, assumindo, ao mesmo tempo, a característi-
ca de exclusão. Ademais, não ostenta seu significado funcional apenas
modo pelo qual os princípios acatam e exercem a função sistematizadora. Examina
quatro características dos princípios jurídicos gerais, sem, no entanto, explicá-las em
seus porquês mais profundos, justamente por não labutar com o princípio de hierar-
quia como "metacritério". Observem-se tais características. A primeira delas seria a
de que os princípios não valem sem exceção e - ponto importante - "podem entrar
em oposição ou em contradição entre si. Esta característica não precisa de explica-
ção, é para os juristas um fenômeno seguro o de que, às decisões fundamentais da
ordemjurídica, subjazem muitas exceções e de que os princípios singulares não pou-
cas vezes levam a decisões contrárias. Pense-se apenas nas exceções sofridas pelo
princípio da liberdade de forma dos contratos obrigacionais, pelo da consensualida-
de da procuração, pela possibilidade de representação nos negócios jurídicos (...).
Entre a mera exceção e o princípio contrário existe, naturalmente, uma passagem
fluida; deve verificar-se, quanto a isso, se o valor que requer a limitação possui uma
generalidade e categoria bastantes para, por seu turno, valer como princípio consti-
tutivo do sistema". Canaris não esclarece, como se fez no capítulo das configurações
hipotéticas, que o princípio da hierarquização é que, em instância última, diz sobre
se deve preponderar, por exemplo, o princípio da legalidade ou se, por exceção,
em respeito a outro princípio hierarquizado como mais importante - qual sej a, o da
confiança -, deve-se evitar, em situações excepcionais, a injusta anulação de um ato
administrativo, desde que presente a boa-fé do administrado. Em outras palavras,
note-se que o princípio da hierarquização axiológica não se reveste da primeira das
características mencionadas por Canaris, isto é, a de que os princípios não valem
sem exceção, dado que é preciso excepcionar, logicamente, a própria característica,
se se quiser ser coerente na sua extensão, admitindo-se, por conseguinte, um prin-
cípio que não comporta exceção, o qual só pode ser, pelos motivos que se postula,
o princípio da hierarquização axiológica, que, mais e mais, revela a sua natureza
especial ao se estudar a transcendência - em razão da abertura - do sistema jurídico.
Some-se a isso o fato de que, em linha de princípio, a hierarquização afigura-se uma
exigência da própria racionalidade jurídica, razão pela qual, no mister de captação
racional do sentido e do alcance dos conteúdos jurídicos, sem exceção, mostra-se
inevitável o momento hierarquizador. Assim, em que pese a valer, à primeira vista,
a característica inicial apontada, deve ter sua abrangência restrita aos princípios na
sua generalidade, ou seja, não deve valer, como supunha Canaris, para todos os prin-
cípios, embora extensivamente aplicando-se tal característica para todas as normas
estritas e para todos os valores.
Quanto à segunda das características apontadas por Canaris acerca dos princí-
pios, deve-se dizer, em linhas gerais, o mesmo. Assinala ele: "Os princípios não têm
pretensão de exclusividade. Isto significa que uma mesma consequência jurídica,
característica de um determinado princípio, também pode ser conectada com outro
princípio" (p. 90).
Ora, data venia, é condição mesma para a cientificidade jurídica que se
parta do pressuposto de que é possível uma construção rigorosa, incorporan-
do a noção de que algum princípio deve ter a pretensão de exclusividade, ainda
 -r-
A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
120
numa combinação de complementação e restrição recíprocas, em que
pese a necessitar de princípios e de subprincípios, bem como de regras
que não absoluta. Tal princípio somente poderá ser aquele que determina a primazia
axiológica, ainda que o conteúdo desta esteja sujeito à mutabilidade histórica. Mais:
existe um "metacritério" que reúne o poder de fixar como "pétrea" ou exclusiva esta
ou aquela dimensão principiológica, normativa e valorativa.
No que toca à terceira das características - ou seja, a de que os princípios osten-
tam seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição re-
cíprocas -, convém permitir que Canaris a esclareça melhor, em tais termos: "Junto
de uma tal complementação surge a limitação recíproca. Isso já foi acima indiciado,
a propósito da discussão do primeiro critério. Assim, o princípio da autodetermina-
ção na nossa ordem jurídica só se deixa apreciar plenamente quando se incluem, na
ponderação, os princípios contrapostos e limitativos e o âmbito de aplicação que lhe
seja destinado, portanto, por exemplo, quando se atuem as previsões de contratar, da
proteção no despedimento ou de legítima, de modo útil para a autonomia privada.
Por outras palavras: o entendimento de um princípio é sempre, ao mesmo tempo, o
dos seus limites. A combinação mútua dos princípios conduz, no entanto, a certas
dificuldades na formação do sistema. Designadamente, surgem aspectos diferencia-
dos consoante se descrevam os diversos lugares onde um princípio de Direito tem
significado jurídico ou se elabore como atua ele num determinado local. (...). Eles
atuam, pois, complementarmente um perante o outro, para utilizar um termo que é
também empregado no domínio da teorização das ciências naturais".
Aqui cabe o comentário: o sentido próprio não é dado necessariamente numa
combinação de complementação e restrição recíprocas, porque, radicalizando-se
esta característica, inexistiria rigorosamente o princípio em si e por si. Ora, é jus-
tamente com uma natureza assim que se surpreende, em si e por si, operando o
princípio da hierarquização axiológica, que pode ordenar - e via de regra o faz - esta
complementação ou restrição recíproca assim como, em termos especulativos, pode
determinar que um princípio qualquer, numa certa medida, tenha sua validade inata-
cada por tal complementação.
Pois bem. A última das características imputadas por Canaris aos princípios
gerais é a de que estes "necessitam, para a sua realização, da concretização por
meio de subprincípios e de valorações hermenêuticas e de valorações singulares
com conteúdo material próprio" (p. 96). Minudencia a caracterização nestes ter-
mos: "O Direito Civil vigente conhece, como tais, apenas o princípio da culpa,
o princípio do risco e - em todo caso segundo uma opinião difundida, ainda que
incorreta - o princípio da causalidade, cabendo efetuar uma escolha entre eles. Mas,
com isso, o processo de concretização não ficou, contudo, ainda, concluído. Feita,
por exemplo, uma escolha a favor do princípio da culpa, surge, de seguida, a ques-
tão das formas de culpa; determinadas estas, mais pormenorizadamente, como dolo
e negligência, cabe ainda esclarecer o que se deve entender com isso; de novo são
necessários valores autônomos, por exemplo, a propósito do tratamento dos erros
sobre a proibição (...). Mostra-se, assim, amplamente, que as consequências jurí-
dicas quase nunca se deixam retirar, de forma imediata, da mera combinação dos
diferentes princípios constitutivos do sistema, mas antes que, nos diversos graus
de concretização, surgem sempre novos pontos de vista valorativos autônomos.
~
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 121
e valores, os quais conformam o objeto material da dialética atuação do
intérprete. 8
Em regra, não se pode reconhecer a estes a categoria de elementos constitutivos do
sistema, por causa da sua estreita generalidade e do seu peso ético-jurídico normal-
mente fraco: eles não são constituintes da unidade de sentido do âmbito jurídico
(...)" (pp. 97-99).
Mister assinalar a concordância apenas com esta última característica, a úni-
ca que parece aceitável sem reparos dentre as que compõem o rol apresentado por
Canaris. É que, de fato, todos os princípios - inclusive aquele que se denomina, em
nossa perspectiva, de princípio de hierarquização axiológica - somente se concreti-
zam através de subprincípios e de valorações singulares com conteúdo material. Tais
subprincípios, em que pese à aludida estreiteza de generalidade, sob certo aspecto,
também são responsáveis pela unidade de sentido do âmbito jurídico em geral - es-
pecialmente os subprincípios hermenêuticos, que merecerão um tratamento porme-
norizado em capítulo próprio.
Quanto às diferenças dos princípios gerais do Direito em face dos axiomas,
Canaris, ao tratar do assunto, 1}ada mais faz do que regressar à questão do sistema
axiomático-dedutivo, já considerado como incapaz de cumprir as funções inerentes
a um conceito de sistema jurídico. Seja como for, anda bem ao dizer que os axio-
mas exigem uma vigência sem exceções. Dessa maneira, admitir, na formação do
axioma, todas as exceções que surgissem seria uma axiomatização aparente (p. 101),
convindo notar que os princípios não se confundem com tais axiomas, justamente
porque pode haver contradições entre si bem como porque - a partir dos axiomas
- todos os teoremas se devem "deixar deduzir, com a utilização exclusiva das leis
da lógica formal e sem a intromissão de novos pontos de vista materiais, enquanto,
como foi mostrado, para a concretização dos princípios gerais do Direito são sempre
necessárias, nos diversos graus, novas valorações parciais autônomas" (p. 102).
A despeito das observações feitas às características apontadas por Canaris, é
de sublinhar que, pela reconhecida e inegável natureza tópica, inclusive do princípio
de hierarquização axiológica, mesmo este, por natureza, jamais se confunde com um
axioma, embora possua função sistematizante e unificadora. É que a hierarquização
somente se faz necessidade universal porque inafastáveis as contradições entre prin-
cípios, algo que contraria, de certo modo, o postulado axiomático-dedutivo de uma
total ausência de contradições, como se não lidássemos com predicados acidentais.
Para melhor entender a natureza do princípio da hierarquização axiológica,
indispensável precisar que se trata de princípio que oferece, numa construção ri-
gorosa' a ratio juris para além da mera aglutinação de princípios que se mesclam
com as normas estritas, ou ainda, em grau diverso, que se impregnam dos valores,
recordando, neste passo, que uma compreensão diferente seria demasiado fragmen-
tária, assim como o seria a de mero sistema de conceitos ou de institutos, ou ainda
de normas. Tal princípio da hierarquização axiológica, conseguintemente, de modo
distinto e diverso dos demais, não ocupa o "ponto intermédio entre o valor, por um
lado, e o conceito, por outro" (p. 87), eis que atua como que determinando (no e pelo
intérprete) o próprio conteúdo da valoração.
8. Esta atuação dialética dentro e fora do sistema lembra os célebres versos de
Walt Whitman, in Song ofMyself. "Looking with side-curved head curious what will
come next, both in and out of the game and watching and wondering at it".
 ---,..--
122 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
5.2 A universalidade do princípio e a teoria da norma geral
exclusiva: sugestão de abordagem das lacunas
como antinomias entre norma geral exclusiva
e norma geral inclusiva
A compreensão da universalidade do princípio da hierarquização
axiológica apresenta surpreendente denominador comum com a teoria
da norma geral exclusiva, a qual pode ser resumida neste dizer: "Todos
os comportamentos não compreendidos na norma particular são regula-
dos por uma norma geral exclusiva, isto é, pela regra que exclui (por isso
é exclusiva) todos os comportamentos (por isso geral) que não sejam
aqueles previstos pela norma particular". 9
A saber, todo comportamento não regulado expressamente por nor-
mas jurídicas estaria sob a égide de normas (não menos jurídicas) gerais
e exclusivas, subentendida e implícita uma norma fundamental geral e
negativa. A par, portanto, das normas particulares inclusivas, haveria,
em todos os sistemas, uma norma geral que excluiria qualquer restri-
ção jurídica para os casos não particularmente regrados. Esta engenhosa
construção doutrinária teve o propósito, ao tratar das lacunas jurídicas,
de superar a crítica ao dogma da completude, sem escorregar para teo-
rias como a do espaço jurídico vazio,10 nem abrigar a crença cega dos
que afirmavam o aludido dogma, acriticamente.
A falha desta sofisticada concepção reside numa manifesta im-
previsão quanto ao surgimento de normas gerais inclusivas, algo que,
entretanto, não a faz, só por isso, completamente errada ou não-apro-
veitável. Observa Bobbio: "Chamamos de 'norma geral inclusiva' uma
norma (...) segundo a qual, no caso de lacuna, o juiz deve recorrer às
normas que regulam casos parecidos ou matérias análogas. Enquanto
a norma geral exclusiva é aquela norma que regula todos os casos não
compreendidos na norma particular, mas os regula de maneira oposta,
a característica da norma geral inclusiva é a de regular os casos não
compreendidos na norma particular, mas semelhantes a eles, de manei-
ra idêntica".ll
Pois bem, a teoria passa a ser, com um imprescindível acréscimo,
perfeitamente assimilável para tratar das lacunas, compreendendo-se
que estas ocorrem não por falta de normas expressas, mas pela aparente
falta de um critério para optar ora pela norma geral inclusiva, ora pela
9. V. Norberto Bobbio in Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 133.
10. Idem, p. 127.
11. Idem, p. 135.
-~
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 123
norma geral exclusiva. 12 Justamente neste ponto confluem os eixos de
abordagem (lacunas são também antinomias) e se nota que a técnica de
enfrentamento das antinomias serve para lidar sistematicamente com os
casos de omissões ou lacunas.
Ressalvando-se que não se pretende, por ora, inventariar todas as
possibilidades do tratamento comum, é de grifar que a releitura da teoria
da norma geral exclusiva apresenta-se extremamente útil à melhor com-
preensão do funcionamento do princípio da hierarquização axiológica.
Com efeito, um sistema13 que, na omissão da lei, disponha que deve o
intérprete recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do
Direito, além de veicular uma típica norma geral inclusiva, determina
que se realize, positivamente, a hierarquização axiológica para resolver
esta lacuna. A decisão, porém, entre situar-se ou não o caso concreto
como suscetível de enquadramento neste dispositivo há de ser concre-
tizada por meio de uma compreensão previamente levada a termo pelo
intérprete.
Força reconhecer que inexiste falta de critério jurídico, senão que se
evidencia o recurso ao "metacritério" repleto de juridicidade e integrante
do Direito, à semelhança da norma geral exclusiva, que funciona e opera
como norma negativa e geral que veda todas as contradições e ordena
se proceda à completabilidade, inclusive quando da antinomia entre a
norma geral inclusiva e a norma geral exclusiva.
Dito de outro modo:
NOO Nm
(NORMA GERAL EXCLUSIVA) x (NORMA GERAL INCLUSIVA)
= (PS) "METACRITÉRIO" DA HIERARQUIZAÇÃO AxIOLÓGICA
12. Idem, p. 137.
13. No caso do sistema brasileiro, V., por exemplo, o art. 4º da Lei de Introdu-
ção ao Código Civil e o art. 5º, § 2º da Constituição, nestes termos: "Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte". Exemplo de norma geral inclusiva no sistema ame-
ricano é a Emenda IX. Assiste inteira razão a Esser quando percebe que os princí-
pios não desempenham papel subsidiário, mas decisivo: "(...). Todos los principios
tienden a la formación de un sistema y a un esquema de jerarquización lógica (...)"
(in Principio y Norma en la Elaboración Jurisprudencial deI Derecho Privado, Bar-
celona: Bosch, 1961, p. 10). E, ainda: "Los principios son el punto de partida deI
razonamiento jurídico: no como simples instrumentos deI pensamiento heurístico,
sino como expresión primaria de una decisión valorativa de carácter positivo, que es
esto que confiere su legitimación a la regIa que debe ser aplicada" (p. 252).
 ~
124 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
o "metacritério" da hierarquização axiológica aparece, aqui, sob a
feição explícita de norma mais abarcante e poderosa, jurídica e teleolo-
gicamente, do que a norma geral exclusiva, por ser princípio superior,
pensado de tal maneira a evitar, entre os vários planos, uma contradição
ou exigindo que o sistema seja dotado de prescrições que aspirem à uni-
versalização não-contraditória.
Exsurge, de modo límpido, como derivação do princípio superior
da hierarquização axiológica, que não deve haver ausência de respos-
ta sistêmica em/ace das lacunas, exatamente porque se hierarquizou,
como pressuposto do sistema, que a completabilidade é elemento a
ser preservado para a garantia de outro valor fundamental, qual seja,
a coerência capaz de oferecer, para todas as ocasiões, um comando
que evite a falta de critérios decisórios, impedindo a instauração da
irracionalidade arbitrária. Completabilidade, e não completude, pois
a integração 14 não deve ser vista nos ingênuos moldes antigos. Há,
portanto, no sistema jurídico uma convivência entre autointegração
e heterointegração, ou ainda, entre abertura e unidade, ordem e con-
tingência.
Outro ponto que merece ser sublinhado, prudentemente, é o de que
não se nega o fato de persistirem lacunas, assim como, de resto, não pa-
rece haver dúvidas quanto à ocorrência das antinomias, mas se pretende
vencer o dualismo dos enfoques habitualmente dados aos problemas,
asseverando-se que o "metacritério" da hierarquização axiológica, in-
clusiva e exclusivamente, veda a incoerência e a incompletabilidade de
modo concomitante e desde patamar ou escalão juridicamente superior.
Em outra formulação, dir-se-á:
14. Afirmando a existência de algo irredutível astatisticalformulations (p. 82),
Ilya Prigogine, com boa dose de razão, preconiza uma revisão do conceito mesmo
de integração (in "Time, dynamics and chaos. Integrating Poincaré's non-integrable
systems", in The New Science, Lanham: University Press ofAmerica, 1993, pp. 55-
83). Na mesma obra, Heinz-Otto Peitegen bem critica, ao mesmo tempo, a estrita
causalidade e os limites do princípio da incerteza de Heinseberg (in "The causality
principIe deterministic", pp. 35-43). A matéria tem interesse, por exemplo, ao se
tratar do princípio da precaução em Direito Ambiental e no Direito Administrativo.
De passagem, os princípios da precaução e da prevenção devem integrar a tábua dos
princípios constitucionais administrativistas, nos termos propostos nos meu livros:
O Controle dos Atos Administrativos... , cit., e Discricionariedade Administrativa e
o Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 2ª ed., São Paulo: Malheiros
Editores, 2009.
....
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 125
PS
("METACRITÉRIO" DA HIERARQUIZAÇÃO AxIOLÓGICA)
x
INCOMPLETABILIDADE x NGE = PS
x
NGI
Daqui seguem expressivas contribuições para a inteligência do pro-
cesso de interpretação sistemática, especialmente as que seguem:
a) o decisivo para o intérprete sistemático, ao lidar com as antino-
mias e com as lacunas que se traduzem como antinomias, consiste em
saber hierarquizar axiologicamente;
b) num sistema de mínima razoabilidade sempre se apresenta viável
hierarquizar, encontrando"solução para eventuais litígios em planos cada
vez mais altos do ordenamento, no intuito de afugentar, nos limites da
própria razoabilidade, as respostas arbitrárias e as omissões irresponsá-
veis, tidas como antitéticas à coerência sistemática, pois suscitam auto-
contradições que corrompem o sistema;
c) nenhum campo do Direito deve ser vislumbrado ou compreen-
dido de maneira isolada, mas invariavelmente de modo sistemático, de
sorte a, em espiral, vislumbrar-se o sistema na sua unidade teleológica,
indo além da tópica individualizadora ou particularista e desenvolvendo
a capacidade de vencer as antinomias em sentido amplo (abarcando as
lacunas) numa hierarquização generalizadora;
d) para o intérprete sistemático importa, sobretudo, compreender os
fins valorativos do Direito e descobrir, na atualidade, quais devem ser os
valores hierarquizados pelo "metaprincípio" como superiores. De fato, a
desatenção aos componentes axiológicos do sistema, nos termos concei-
tuados no Capítulo 1, implica ofensa não apenas a específico e inclusivo
mandamento, senão que ao complexo inteiro de comandos;
e) a existência de uma zona indeterminada entre o regulamenta-
do e o não-regulamentado não configura - diversamente do sustentado
por Bobbio 15 - ausência de condições jurídicas para decidir, dado que
o princípio da hierarquização axiológica reveste-se também de cunho
eminentemente jurídico;
15. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 139.
 ~
126 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
f) O fato de haver um "metacritério" jurídico para decidir entre a
norma geral inclusiva e a norma geral exclusiva, quando presente si-
tuação antinômica, não significa que o sistema seja completo, em face
da pacífica constatação da ocorrência de lacunas: este tipo particular
de situação antinômica converte em tons claros a perspectiva de que
o "metacritério" haure seu conteúdo existencial e empírico na exigên-
cia de racionalidade (interna ao sistema) na realização de escolhas (que
transcendem o sistema dado, mas não devem infirmá-Io), donde segue a
característica da completabilidade;
g) infere-se, ainda, que há, em face da antinomia especial das la-
cunas, várias soluções, em vez de carência; mais: esta variedade de
opções está na gênese de todas as antinomias, mesmo entre as normas
que visam a superar as lacunas, não significando falta de critério jurídi-
co para decidir qual norma deve ser aplicada, já que, invariavelmente,
viabilizado o tratamento tópico das erupções tidas como não-sistemá-
ticas. 16
Em suma, a lacuna nada mais é do que uma espécie de antinomia
entre norma geral exclusiva e norma geral inclusiva, havendo solução
jurídica de completabilidade por meio do processo sistemático de hie-
rarquização. Neste diapasão, entende-se, em profundidade, que inter-
pretar o Direito na sua exuberância axiológica e "pluralista" consiste
em hierarquizar, preferencialmente executando a exegese racionalmente
dialógica e consciente dos mais eminentes compromissos (nos termos
do art. 3º da CF).
5.3 Hierarquização axiológica e concretização sistematizante
No exercício da hierarquização axiológica, o intérprete sistemático
opera com outros princípios e subprincípios condicionados ao "metacri-
tério" avaliativo, muito especialmente para enfrentar as antinomias jurí-
dicas, no sentido adotado. Neste ponto cumpre emprestar atenção, ainda
que de passagem, à abordagem de Konrad Hesse, que teve o mérito de
superar até a teoria objetiva da interpretação, mostrando que, apenas de
modo relativo, a meta colimada pela Hermenêutica poderia consistir no
desvelar de uma vontade, objetiva ou subjetiva, além de compreender
que os distintos métodos de interpretação, tomados isoladamente, ofere-
cem orientação insuficiente e assaz incompleta. Trata-se, pois, de aliada
crítica às tradicionais regras interpretativas, mormente por deixar claro
.
16. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 241.
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 127
que a prisão a tais regras trairia desconhecimento da estrutura íntima da
exegese, sempre vinculada ao objeto e ao problema. 17
17. Konrad Hesse in Grundzüg des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland, Heidelberg: C. F. Müller Juristischer Verlag, 1978. No texto, para faci-
litar, as referências serão de Escritos de Derecho Constitucional, Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1983 (pp. 35-42). Em breve síntese, Hesse sustenta que a
interpretação constitucional, no sentido estrito (diverso daquele amplo de Auslegung,
com o qual se deve operar quando se fala em interpretação sistemática), resultaria
necessária e problemática, mormente diante de uma controvérsia constitucional a ser
dirimida de forma concludente, mas nem toda realização de normas constitucionais
seria "interpretação", apesar de admitir que, no curso da interpretação constitucio-
nal, a Constituição resulta sempre "atualizada" (p. 36), algo que na prática equivale
à interpretação tópico-sistemática no sentido aqui proposto. Para Hesse, de qualquer
maneira, não estaríamos ante uma interpretação, ainda que de "atualização", quan-
do, por exemplo, as disposições constitucionais fossem terminantes, por mais que
também note um ato de interpretação ou compreensão, supostamente de estrutura
simples. Para a seara constitucional, no acertado entender de Hesse, sobrelevaria a
interpretação em face do caráter aberto e amplo da Constituição, sobretudo quanto
maior for a vinculação desta exegese não apenas para o cidadão, senão também para
os restantes órgãos do Estado. Por evidente, a ideia que legitima esta vinculação -
ou seja, a submissão de todo o poder do Estado à Constituição - somente poderá
fazer-se efetiva se as decisões judiciais expressarem o conteúdo da Constituição. Em
outras palavras, Hesse admite terem os juízes constitucionais a competência para
fixar este conteúdo, mas nem por isso deixa de assinalar que a meta da interpretação
é a de encontrar o resultado constitucionalmente correto (p. 37), por meio de um
procedimento racional e controlável e da fundamentação deste resultado de modo
igualmente racional e controlável (gerando, deste modo, certeza e previsibilidade ju-
rídicas, sem cair num decisionismo irracionalista). Pondera que tal escopo longe está
de ser alcançado, tanto em amplos setores positivistas acríticos da doutrina científica
como ainda por meio de recurso não menos acrítico a "valores", todos conduzindo
à crescente insegurança. Claro está que a solução não lhe parece residir numa volta
às tradicionais regras de interpretação. A propósito destas, denuncia que perseguem
somente e de modo imperfeito, no mais das vezes, revelar a vontade objetiva nor-
mativa ou a vontade subjetiva do legislador mediante vários critérios contextuais
ou de descoberta da ratio e do telos da norma, feita abstração do problema concreto
a resolver, como se interpretar consistisse na mera execução de uma vontade pre-
existente, a qual poderia, com certeza objetiva, ser alcançada mediante o uso dos
aludidos métodos e com total independência da aporia ou do problema a resolver.
A semelhante desiderato - observa - serviriam a interpretação gramatical, a
sistemática, a teleológica e a histórica, no curso das quais estes elementos de inter-
pretação se apoiariam mutuamente. Entretanto, bem de ver o quanto de problemático
tem esta concepção, eis que apenas relativamente a interpretação pode consistir na
descoberta de uma "vontade", objetiva ou subjetiva, preexistente ao sistema jurídi-
co. Na realidade, explica Hesse, não se pode persistir nesta crença que se apoia no
dogma da vontade elaborado pela pandectística do século XIX e que parece ignorar
que a Constituição não contém um critério inequívoco, nada adiantando recursos
semânticos como o da obediência reflexiva do intérprete (p. 39). Identificar como
"objetivo" da interpretação constitucional a descoberta da prévia vontade objetiva da
 ~
128 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Destaca - em que pese a não alargar o conceito de interpretação
sistemática - que sempre se termina por ter que decidir qual dos métodos
Constituição ou do constituinte equivale a pretender dar cumprimento a algo que não
preexiste realmente, e, portanto, a equivocar-se desde o ponto de partida a respeito
da problemática da interpretação constitucional. Hesse vai ao ponto de asseverar
que a interpretação, embora possa ser traduzida como execução, nunca deveria sê-lo
como subsunção, uma vez que seu "objetivo" (p. 40) não existiria em realidade. Ade-
mais, nota que nem os distintos "métodos" isoladamente (neste passo em harmonia
com Karl Larenz, por exemplo) oferecem orientação segura o bastante, mesmo a
interpretação sistemática - que toma em sentido menos amplo do que o nosso - pode
ser manejada de diversas maneiras, assim como a interpretação teleológica, que seria
uma espécie de "carta branca". Por outro lado, como considera que tampouco é clara
a relação dos distintos métodos entre si (p. 40), diz que resta por decidir qual deles
seguir em cada caso, ou a qual dos mesmos deve ser dada preferência, em particular
quando conduzem a resultados diferentes, sem dar o passo lógico de introduzir e
pensar - na sua feição jurídica - no metacritério da hierarquização axiológica, com
toda a gama de consequências aqui sugeridas como vitais à reflexão sobre os novos
paradigmas da hermenêutica jurídica.
Fora de maior dúvida, porém, Hesse acerta ao diagnosticar que as regras tra-
dicionais de interpretação (p. 42) - que o Tribunal Constitucional Federal expressa-
mente reconhece - somente oferecem uma explicação parcial acerca do modo como
o Tribunal constrói suas decisões. Por conseguinte, a pretensão restritiva de cingir
a interpretação jurídica a regras tradicionais supõe em boa medida desconhecer a
estrutura interna e os condicionamentos do processo interpretativo, porque somente
de forma imperfeita é capaz de resolver a tarefa de uma interpretação segundo prin-
cípios seguros, ou, melhor, segundo, em nosso linguajar, um manejo racionalmente
fundamentado da hierarquização axiológica. Dito de outro modo, Hesse percebe que
a práxis judicial está orientada rumo a uma interpretação vinculada ao objeto e ao
problema. Assim, clama - como aqui se faz por outra via - para que o intérprete es-
teja consciente da própria conduta, não postulando um procedimento de formação do
juízo impossível de respeitar, senão atendendo às condições reais, às possibilidades e
aos limites da interpretação constitucional, entendida como concretização (Konkre-
tisierung), é dizer, incorporação da "realidade" de cuja ordenação se trata (pp. 43-
47). Neste sentido, a interpretação constitucional teria caráter "criativo": o conteúdo
da norma interpretada somente resta completo ao ser interpretada. Esclarece que
a concretização pressupõe a compreensão do conteúdo da norma a concretizar, a
qual não cabe desvincular nem da pré-compreensão gadameriana do intérprete, nem
do problema concreto a resolver, por intermédio de uma Tópica orientada, cabendo
aos princípios de interpretação constitucional a missão de orientar e de causar o
processo de relação, coordenação e valoração dos pontos de vista ou considerações
que devem levar à solução do problema, aparecendo em primeiro lugar o princípio
da unidade da Constituição, que deve evitar limitações unilaterais. Trata-se de um
procedimento tópico vinculado à norma. Diz Hesse que este procedimento tópico
vinculado ao problema concreto deverá estar sempre guiado pela norma, tendo as
máximas possibilidades de chegar a resultados sólidos, racionalmente explicáveis
e controláveis (p. 51). Ainda sobre concretização, v., em prisma aporético, Helmut
Coing in Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 5ª ed., Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pp. 202-205.
~
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 129
se deve seguir em cada caso, ou a qual deve ser dada a preferência, apon-
tando os limites das tradicionais regras que enxergavam na interpretação
sistemática tão só um método de conexão formal, peculiarmente distinto
dos métodos de interpretação gramatical, teleológica ou histórica. 18 Tem
razão ao observar que o intérprete não pode captar o conteúdo da norma
desde um ponto quase arquimédico situado fora da existência histórica.
A compreensão do conteúdo normativo emerge da pré-compreensão que
permite uma ideia do conjunto e também um primeiro projeto necessita-
do de comprovação. Em outras palavras, tais métodos, se estreitamente
considerados, não se mostram aptos a esclarecer o modo pelo qual o juiz
constrói suas decisões. 19
Tendo presente esta evidência e querendo sobrepujar a ótica tradi-
cional, embora tomando a interpretação constitucional em sentido ainda
restrito, acerta Hesse ao referir a concretização (Konkretisierung) como
nota caracterizadora e nuclear da interpretação. Para operar tal concreti-
zação, seguindo o paradig~a hermenêutico de Hans-Georg Gadamer,2o
considera pressupostas a compreensão do conteúdo normativo, assim
como a pré-compreensão do intérprete, vinculada aos problemas con-
cretos, razão pela qual sustenta, com propriedade, não haver método
autônomo de interpretação, dado que o processo de concretização é de-
terminado pelo objeto da própria exegese - no caso, a Constituição ou o
sistema jurídico na sua totalidade.
18. Sobre método, José Joaquim Gomes Canotilho (in Direito Constitucional
e Teoria da Constituição, Coimbra: Livraria Almedina, pp. 1.084-1.085) apresenta
os métodos de interpretação constitucional como sendo: o hermenêutico clássico
(vinculando-o a Ernst Forsthoff), o tópico (associando-o a Theodor Viehweg), o
hermenêutico-concretizador (vinculando-o a Konrad Hesse), o científico-espiritual
ou sociológico (lembrando Rudolf Smend) e o normativo-estruturante (associado
a Friedrich Müller). Registro feito e assimilação parcial realizada de cada um dos
métodos, cumpre remarcar que a interpretação tópico-sistemática apresenta afinida-
des com boa parte dos mesmos, contudo supera a rigidez da opção por qualquer um,
considerado a priori. Ainda para ilustrar, v. William Harris 11 in The Interpretahle
Constitution, Baltimore/London: The Johns Hopkins University Press, 1999, que
propõe partiaI styles ofinterpretation (p. 144), a saber: immanent positivism (Hugo
Black, para exemplificar), immanent structuralism (por exemplo, Justice Story),
transcendent positivism (por exemplo, Marshall, com sua doutrina de implied po-
wers), transcendent structuralism (para ilustrar, Justice Bushrod Washington). En-
tretanto, reconhece que: "In their method of interpretation, the greatest decisions
would orchestrate alI four partial styles" (p. 162).
19. Konrad Hesse in Escritos... , p. 42.
20. Konrad Hesse, idem, p. 47.
 r
130 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Ademais, acentua a polaridade entre abertura e precisão e admite,
escudado pelo conhecimento empírico, a Tópica orientada e limitada
pela norma como a via pela qual, por inventio, os pontos de vista jurí-
dicos são submetidos ao universo de argumentações quando se trata de
aplicar o Direito ao caso concreto. Assim, adota procedimento tópico
e vinculado, porém não elucida a essencial identidade do pensamento
tópico-sitemático. Contudo, Hesse21 aponta determinados princípios de
interpretação constitucional aos quais atribui a missão de orientar o pro-
cesso de relação, coordenação e valoração dos pontos de vista ou consi-
derações que deveriam levar à solução do problema.
Sem desvendar o princípio da hierarquização axiológica, mencio-
na, entretanto, princípio ao qual este se encontra intimamente associado.
Trata-se do princípio da unidade da Constituição. É certo que se deveria
alargá-lo e dizer princípio sine qua non do sistema jurídico, por defini-
ção, já que a unidade construída dialeticamente afigura-se característica
imprescindível de qualquer sistema. Ao meditar sobre tal princípio, bem
assinala que a relação e a interdependência existentes entre os distintos
elementos da Constituição levam a não se contemplar apenas a norma,
esta ou aquela, isoladamente, senão o conjunto no qual se encontra si-
tuada. De outra parte, vê que todas as normas precisam ser interpretadas
de maneira a escoimar contradições, procurando a solução em consonân-
cia com as decisões básicas da Constituição, entendida como ordem ju-
rídica fundamental da comunidade, evitando-se a limitação unilateral. 22
Ora, este princípio da unidade tem capital importância no tratamento
a ser dado às antinomias e lacunas, eis que dotada de força jurídica a
vedação que dele se infere às incongruências e às omissões no seio do
sistema, não se negando às tensões inevitáveis uma harmonizadora in-
terpretação sistemática. Além deste princípio, encontram-se outros ine-
gavelmente associados ao princípio maior da hierarquização axiológica,
entre os quais o da concordância prática, que também se deve conside-
rar, neste passo, como tendo força vinculativa.
Sugere Hesse, com pertinência, que os bens jurídicos constitucio-
nalmente protegidos deveriam ser coordenados de tal sorte que todos
conservassem sua entidade, superadas as antinomias mediante uma
ponderação de acordo com a proporcionalidade, entendida esta como
relação entre magnitudes variáveis - concretamente aquela que melhor
responde à tarefa de otimização, não uma relação entre um objetivo
constante e um ou mais meios variáveis. Na condição de critério orien-
21. Idem, p. 48.
22. Idem, pp. 48-49.
~
PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA 131
tador, indicaria o rumo e determinaria o procedimento no qual se deve
buscar uma solução constitucional. 23 Outro princípio digno de nota, ape-
nas para ilustrar, seria o da valoração da relevância dos pontos de vista
ou o critério da eficácia integradora, que reclama sejam preferidos os
pontos de vista que mantenham a unidade e, portanto, a ausência de an-
tinomia, inclusive como exigência da busca, em sede de concretização,
da maior racionalidade possível. Vinculado a este, ou dele como que
descendendo, reencontra-se o princípio da proporcionalidade, integrante
do sistema do Direito Positivo, sustentáculo mesmo da harmonia entre
os seus elementos. Observa, ainda, que a ideia expressa por meio do
princípio da interpretação conforme a Constituição somente em parte
coincidiria com a de observância da ordem de valores constitucionais,
eis que o princípio fundaria suas raízes na aludida ideia de unidade do
ordenamento jurídico. Ao se pronunciar o julgador, controlaria a concre-
tização da Constituição levada a efeito pelo legislador. 24
Forçoso referir, por último, em seu enfoque, o princípio da força
normativa da Constituição, útil à compreensão da eficácia mesma dos
princípios, dado que são hierarquizados como devendo, de modo efe-
tivo, preponderar no caso concreto. Descreve-o, salientando que, uma
vez se pretenda ver a Constituição atualizada, mister dar preferência, na
solução das antinomias, aos pontos de vista que auxiliem a Constituição
a obter máxima carga eficacial. 25
Pois bem, examinados tais princípios propostos por Hesse, neces-
sário reiterar que todos fazem as vezes de possíveis instrumentos, cuja
23. Idem, pp. 49-50.
24. Idem, pp. 48-51. Não se nega, por outro lado, a hierarquização material
entre os comandos constitucionais, sendo que, por outro lado, o entendimento de
tal princípio afasta, por inteiro, as aspirações originalistas dos que buscam uma mo-
nolítica e unívoca original intent, exatamente em razão da maleabilidade ínsita ao
processo de interpretar, sem que se deixe de reconhecer parcela de acerto, conco-
mitantemente, nas teorias subjetivistas e objetivistas de interpretação. Pertinente,
contudo, a crítica aos que, justamente por recusarem o manejo da proporcionalidade,
se acorrentam a supostas vontades primitivas do legislador histórico, como se es-
tas fossem captáveis com neutralidade e como se o sistema jurídico não restasse,
desde o princípio, viável, sobremodo por conter cláusulas abertas à densificação (e
consequente mutação) histórica. A propósito, mais especificamente, do princípio da
interpretação conforme a Constituição, v. Konrad Hesse in Escritos... , p. 54.
25. Hesse in Escritos... , pp. 51-52; eA Força Normativa da Constituição, Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991, pp. 20-23, articulando os pressupostos
que permitem à Constituição desenvolver de forma ótima a sua força normativa.
O tema será retomado no capítulo ilustrativo, quando se tratar de interpretação sis-
temática da Constituição.
 r
132 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
concretização jurídica, no mundo empírico, depende vitalmente do ma-
nejo justificado do "metacritério" da hierarquização axiológica, nota do-
minante de qualquer processo de compreensão e de aplicação do siste-
ma, que sobrepassa, em muito, a mera revelação volitiva da norma ou do
legislador original. Em outras palavras, é de observar, sobremodo, que:
a) existe paralelo entre a concretização, tal como a concebe Hesse,
e o que se denomina como hierarquização axiológica, com a diferença
de, a partir do conceito aqui esposado, resultar evidenciado o processo
da escolha entre os múltiplos métodos, no fazer empírico e sistemático
da hierarquização, isto é, o processo sistematizante da concretização;
b) para operar tal hierarquização, e para tomá-la justificada no seu
agir, é da maior importância a subsistência permanente da polaridade
entre abertura e precisão;
c) entre outros, os princípios ou subprincípios hermenêuticos da
unidade, da concordância prática, da proporcionalidade, da valoração da
relevância dos pontos de vista, da eficácia integradora e da força norma-
tiva da Constituição, sobre serem inegavelmente jurídicos, ainda que de
modo implícito, merecem visão destacada, porém se encontram imbri-
cados e exigem, na aplicação, apelo ao princípio da hierarquização axio-
lógica, entendido, dialeticamente, sob determinado aspecto, como "me-
taprincípio" unificador e capaz de suscitar uma concretização adequada.
Recapitulando, e em síntese, o princípio da hierarquização axioló-
gica desempenha consistente papel unificador e sistematizante. Trata-se
de indispensável "metacritério" que ordena - em face também de an-
tinomias no plano dos critérios - a prevalência, no caso concreto, do
princípio axiologicamente superior, mesmo no conflito (à primeira vista)
apenas de regras, viabilizando uma exegese capaz de evitar a autocon-
tradição, bem como resguardando a unidade sintética dos múltiplos co-
mandos. Culmina por ser, ainda que reflexamente, orientador da exegese
rumo à totalidade dos objetivos fundamentais republicanos.
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CAPÍTULO 6
o PRINCÍPIO DA HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA
E A SUA RELAÇÃO COMA TEMÁTICA DA JUSTIÇA
6.1 A interpretação sistemática em face das antinomias de avaliação.
6.2 A necessária hierarquização dos princípios relacionados à justiça.
6.3 O "metacritério" jurídico da hierarquização e os princípios e re-
gras de prioridade: o objetivo jurídico e sistemático da máxima justiça
possível.
6.1 A interpretação sistemática em face das antinomias de avaliação
Questão relevante para uma teoria tópico-sistemática da interpreta-
ção jurídica diz com a antinomia que Bobbio 1 denomina de avaliação,
a qual se configura quando da ocorrência de uma injustiça. Associadas
a esta acepção - que o eminente jurista italiano prefere, à diferença do
que aqui se sustenta, não considerar como antinomia própria - estariam
aquelas contradições denominadas axiológicas e teleológicas, que teriam
lugar quando se verificasse uma oposição entre a norma que prescreve
o meio e a norma que prescreve o fim. Note-se que ambas, entretanto,
à luz da nossa conceituação, configuram antinomias caracteristicamente
jurídicas.
De plano, convém observar que há restrições formais e concretas
para a solução sistemática das antinomias de avaliação, mas um sistema
jurídico será tanto melhor quanto mais possuir efetiva aptidão para solu-
cioná-las e, ao mesmo tempo, gerar menor probabilidade de instauração.
Os demarcadores objetivos residem, antes de mais, na intangibilidade do
princípio de harmonia e independência dos Poderes, isto é, no dever de o
intérprete/aplicador velar pela sistematicidade do Direito, já que o subje-
tivismo desenraizado faz perecer a ideia mesma de Estado Democrático
(minimamente justo, por definição).
1. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., pp. 90-91.
 "......
134 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Assim, nas fronteiras do sistema e no exercício adequado do "me-
tacritério" da hierarquização axiológica, parece cristalino que a justiça
se apresenta como um dos elementos juridicamente essenciais à legi-
timidade e à continuidade do Direito Positivo. 2 Deve, pois, a interpre-
tação tópico-sistemática, à base substancial do sistema objetivo, visar
à suplantação das antinomias de avaliação (ou injustiças), sem que o
exegeta se sobreponha autoritariamente ao sistema, pressuposta a alu-
dida razoabilidade mínima do Estado Democrático e cuidando para não
esposar qualquer noção demasiado unilateral ou simplesmente emotiva
de justiça.
Entre limites, e a partir disso - como esclarecido ao se formular
a antinomia em sentido amplo e ao se realçar sua dimensão axiológica
-, a incompatibilidade jurídica passa a ser vista também no sentido de
descompasso entre o que a ordem originariamente estabelece e o que
contemporaneamente deveria estabelecer (isto é, entre o Direito posto
e o Direito que seria justo e compatível). Antinomia e injustiça são, sob
este prisma, espécies de conflito e de inadequação sistemática.
Eis a razão pela qual no presente capítulo impõe-se tratar a interpre-
tação sistemática em sua relação com o problema da injustiça entendida
como uma das antinomias que o sistema precisa solver, observadas as
diferentes competências e funções. Canaris adverte, a propósito, que "o
sistema, como conjunto de todos os valores fundamentais constitutivos
para uma ordem jurídica, comporta a justiça material, tal como esta se
desenvolve e representa na ordem jurídica; com razão caracterizou, por
isso, Coing o sistema como a tentativa de comportar o conjunto da justi-
ça com referência a uma determinada forma de vida social num conjunto
2. Tem razão Aulis Aarnio (in Lo Racional como Razonable, cit., p. 290) ao
salientar que a teoria da interpretação jurídica está baseada em dois pontos centrais,
a saber, a exigência de racionalidade e a de aceitabilidade dos conteúdos, sendo a
expectativa de justiça conecta com esta última exigência. A esse respeito, entre nós,
v., ainda, Miguel Reale, no sentido de que "o processo hermenêutico, muito em-
bora adquira maior raio de ação, inclusive pelo reconhecimento da criatividade do
intérprete nos casos de lacunas no sistema, tem a balizá-lo a estrutura ou o contexto
das normas in actu. Por mais que a interpretação possa tirar partido da elasticidade
normativa, preenchendo os vazios inevitáveis do sistema, deve ela sempre manter
compatibilidade lógica e ética com o ordenamento jurídico positivo, excluída a pos-
sibilidade, V.g., de recusar-se eficácia a uma regra de Direito Positivo a pretexto
de colisão com ditames de uma justiça natural ou de uma pesquisa sociológica"
(in Estudos de Filosofia e Ciência do Direito, São Paulo: Saraiva, 1978, p. 80). v.,
ainda, Gustavo Zagrebelski in li Diritto Mite... , cit., p. 129, sobre o significado da
constitucionalização do princípio da justiça.
~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA JUSTIÇA 135
de princípios racionais". 3 Mais do que isso, todavia, impende destacar
que, no plano democrático, apresenta-se inaceitável uma esfera de juri-
dicidade tão frágil e autorreferente que não dê conta, de algum modo,
da justiça (material e processual) vista como fundamento jurídico do
sistema, sem cuja preservação o ordenamento não reúne os elementos
mínimos de consistência para se articular como tal.
Por ora, suficiente assinalar que a justiça se evidencia, dessa manei-
ra, como princípio jurídico inerente ao sistema, convindo registrar que
não se pretende, neste livro, apresentar uma abrangente posição crítica
sobre as teorias contemporâneas da justiça. 4 Importa somente, para os
3. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 190. V. Helmut
Coing in Elementos Fundamentais... , cit., p. 293: "Nunca se pode renunciar à voz
viva e pessoal da justiça realizada diante do caso concreto". Mais: "O objetivo da in-
terpretação jurídica é entender os princípios (...) como princípios da ordem jurídica,
portanto, da ordem justa e apropriada da convivência humana" (p. 330). Sobre fins
da formação do Direito, v., especialmente, pp. 186-230.
4. Uma das obras que devem ser examinadas, a propósito, é a de Ronald
Dworkin in Sovereign Virtue... , cit., com especial ênfase para a Segunda Parte (pp.
307-473). V., noutra linha: Bruce Ackerman in Social Justice in the Liberal Sta-
te, New Haven: Vale University Press, 1980; e, ainda, Michael Walzer in Spheres
of Justice: a Defense of Pluralism and Equality, New York: Basic Books, 1983;
bem como Robert Nozick in Anarchy, State and Utopia, 1974; Jeremy Waldron in
"Does law promise justice?", Georgia State University Law Review 17/759; e Bruce
Ackerman in La Justicia Social en el Estado Liberal, 1993, começando sua teoria
liberal com uma tecnologia da justiça perfeita (p. 55). De sua vez, escrevendo sobre
justiça, Otfried Hõffe deixa claro que da transitoriedade histórica das avaliações de-
corre a perpetuidade da própria justiça política: "No Ocidente, porém, desde a Alta
Idade Média, põe-se em ação um processo de diferenciação social que se acelera ao
longo da Modernidade. As situações sociais, outrora relativamente homogêneas e
estáveis, são dissolvidas e cedem sob muitos aspectos a uma sociedade pluralista e
dinâmica. Nela a positivação da justiça converte-se em um processo inacabado. Já
que as formas de justiça concreta a serem positivadas não se acham prontas em lugar
nenhum, a entidade do Direito e do Estado, a saber, as manifestações do Direito têm
a tarefa de sempre de novo encontrar as formas. Nessa tarefa, pode-se falar de novas
estratégias de justiça política, contudo, aqui, não mais de estratégias de positivação,
mas de avaliação" ("Im Abendland ist jedoch seit dem spãten Mittelalter ein so-
zialer Differenzierungsprozess in Gang gekommen, der sich im Laufe der Neuzeit
beschleunigt. Die ehemals relativ homogenen und stabilen Gesellschaftverhãltnisse
werden aufgelõst und weichen einer in mehrfacher Hinsicht pluralistischen und dy-
namischen Gesellschaft. In ihr wird die Positivierung der Gerechtigkeit zu einem
unabgeschlossenen Prozess. Da die zu positivierenden Gestalten konkreter Gerechti-
gkeit nirgendwo fertig vorliegen, hat das Rechts - und Staatswesen, namentlich die
Rechtsprechung, die Aufgabe, die Gestalten immer wieder neu herauszufinden. Bei
dieser Aufgabe kann man wieder von Strategien politischer Gerechtigkeit sprechen,
jetzt aber nicht mehr von Positivierung -, sonder von Beurteilungsstrategien" - in
 r
136 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
objetivos deste capítulo, mostrar como opera, via hierarquização axioló-
gica, o enfrentamento das denominadas antinomias de avaliação.
6.2 A necessária hierarquização dos princípios
relacionados à justiça
Vem a calhar a eleição de uma teoria ilustrativa de justiça, recaindo
a escolha sobre a elegante construção de John Rawls,5 que permite bem
refletir sobre a relação dos princípios associados à justiça com o princí-
pio da hierarquização axiológica, vendo-se este último como superador
tendencial das antinomias, nos quadros e referenciais do sistema, com as
suas inevitáveis pré-hierarquizações.
Desde logo, mister que não pairem dúvidas de que a incursão em
tal matéria cingir-se-á apenas ao estritamente necessário para iluminar
o tema central do livro, ou seja, a interpretação sistemática. Em outras
palavras, não se trata, em momento algum, de aderir aos nada incon-
troversos marcos teóricos de Rawls. 6 Cuida-se de mera ilustração do
funcionamento do princípio da hierarquização axiológica, cuja força
originária tem de ser pressuposta por diferentes concepções e sistemas.
Vale dizer, outras tradições filosóficas 7 poderiam perfeitamente ter sido
Politische Gerechtigkeit - Grundlegung einer kritischen Philosophie von Recht und
Staat, Frankfurt: Suhrkamp, 1987, pp. 474-475).
5. A Theory ofJustice, Cambridge: Harvard University Press, 1981. Do mesmo
autor V., ainda, e especialmente: Political Liberalism, New York: Columbia Univer-
sity Press, 1993, e The Law of Peoples, Massachusetts: Harvard University Press,
1999.
6. Há aceso debate em tomo da Teoria da Justiça de Rawls. Uma das mais
conhecidas polêmicas foi a travada entre Rawls e Habermas - polêmica, essa, que
pode ser conferida in Débat sur la Justice Politique, trad. de Catherine Audard e
Rainer Rochiltz, Paris: Les Éditions du Cerf, 1997, obra na qual foram reunidos
os principais textos que demarcaram as confluências e as dissonâncias entre esses
dois autores. A propósito de ponderáveis críticas à posição de Rawls V., entre ou-
tros: Otfried Hõffe in Ethik und Politik, Frankfurt: Suhrkamp, 1979, pp. 160-194;
Ernst Tugendhat in Probleme der Ethik, Stuttgart: Reclam, 1984; Ronald Dworkin
in Foundations ofLiberal Equality, Salt Lake City: University ofUtah Press, 1990;
e Alasdair Maclntyre in After Virtue... , cit., 1985.
7. A escolha poderia ter sido, por exemplo, Platão ou Aristóteles. Convém lem-
brar que para os antigos a própria vida era considerada em termos finalísticos (v.
Giovanni Reale in Saggezza Antica, Milano: Raffaello Cortina Editore, 1995; e Wer-
ner Jaeger in Paidéia - A Formação do Homem Grego, São Paulo: Martins Fontes,
1979). Na Paidéia dos clássicos eram os fins que conferiam sentido à ação, motivo
pelo qual soavam absurdos os gestos destituídos de escopo e órfàos de "um ideal de
~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA mSTIçA 137
cultura" que atuasse "como princípio formativo" (Werner Jaeger, p. 8). Ocorre que,
sob vários aspectos, a finalidade não era senão um outro modo de falar em hierarquia
e, de conseguinte, em tábua de valores. Em Platão encontra-se já no diálogo "Filebo"
(in Oeuvres Completes, 66 a 6 - 66 c 4, Paris: Pléiade, 1950, pp. 632-634), algo que
se poderia definir como uma lídima tábua de valores. Seja como for, a importância
da ideia de hierarquia/hierarquização fica bastante nítida no exato instante em que o
filósofo desvela a estrutura teleológica da conduta humana. Ora, na Ética em geral
como no Direito em particular a noção de telos sempre fez binômio com a de hierar-
quia (quer formal, quer material). Com efeito, uma das dimensões mais indissociá-
veis de telos é a dimensão da verticalidade, uma vez que, invariavelmente, qualquer
meta ou fim representa, em certo sentido, um anelo na senda de algo culminante. No
Gorgias Platão faz Sócrates ponderar: "L'uomo virtuoso che paria in funzione deI
piu alto bene, quello che dice non lo dirà certo a caso, ma tenendo l'occhio fisso a
qualcosa, (...)". E, dando continuidade ao raciocínio, põe em realce a relevância de
uma escala finalística como veículo sem o qual não se logra, no plano da conduta,
coerência, harmonia, tampouco proporção: "Guarda, se vuoi, i pittori, gli architetti,
i costruttori di navi, qualsivoglia altro artefice ti piaccia, ciascuno pone i pezzi deI
proprio lavoro in un dato ordine, e fa si che ogni parte si adatti e si armonizzi con
l'atra, fino ache risulti un tutto perfettamente proporzionato e ordinato" (in Gorgia,
503d-504a, Roma: G. Laterza & Figli, 1997, pp. 139-141). Nesta linha, v. Giovanni
Reale in Per una nuova Interpretazione di Platone, Milano: Vita e Pensiero, 1997.
Em Aristóteles, por sua vez, o horizonte da hierarquização axiológica é, talvez, ainda
mais palpável. Além da perspectiva teleológica, que, à semelhança de Platão, ani-
ma todo a reflexão aristotélica (relação teloslágathon) sobre a Ética e a Política (v.
Ethica Nicomachea, cit., 1.194a, p. 1), há, ainda, no seio da sua definição de justiça
como igualdade, outra circunstância que põe de manifesto o trabalho ordenador do
princípio da hierarquização axiológica. Na Ética a Nicômaco, no Capítulo II do Li-
vro V, Aristóteles indica, desde logo, as duas espécies de justiça particular das quais
irá cuidar nos capítulos subsequentes: a justiça distributiva (dianemetikon díkaion) e
a justiça retificadora (diorthotikon díkaion). Referindo-se à justiça distributiva, Aris-
tóteles registra que, "se [os sujeitos] não são iguais, não receberão coisas iguais".
E acrescenta: "Mas isso é fonte de disputas e de queixas, ou quando iguais têm e
recebem partes desiguais, ou quando desiguais têm e recebem partes iguais. Isso,
aliás, é evidente pelo fato de que as distribuições devem ser feitas de acordo com
o mérito" (1.131a 22-27, p. 94). Assim, em Aristóteles o critério da igualdade que
assegura a justiça do ato distributivo é, sem dúvida, o mérito. Todavia, o problema é
que, se, de um lado, "todos admitem que a distribuição justa deve concordar com o
mérito", de outro, "nem todos especificam a mesma espécie de mérito; os democra-
tas o identificam com a condição de homem livre, os partidários da oligarquia com a
riqueza (ou a nobreza de nascimento) e os partidários da aristocracia com a excelên-
cia" (1.131a 26-29, p. 94; sobre a justiça distributiva v. Terence Irwin in Aristotle 's
First PrincipIes, Oxford: Clarendon Press, 1995, pp. 427-428). Em outras palavras,
tudo, ao fim e ao cabo, deságua e tem de ser resolvido em uma flagrante hierarquiza-
ção axiológica. Em suma: para além das peculiaridades e dos contrastes filosóficos,
"hierarquizar" é mesmo um verbo conjugado pelas mais diferentes tradições de pen-
samento. No mundo da Política, que, para Aristóteles, é também o mundo da Ética
e do Direito, tudo começa e termina, enfim, com uma hierarquização axiológica.
 ~
138 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
as escolhidas, sem que o desfecho, ao que tudo indica, resultasse al-
terado: a recorrente e ubíqua presença do dever de efetuar a hierar-
quização axiológica. 8 Aqui, portanto, a questão radicará em saber se a
solução para as antinomias que constituem injustiça, em função da con-
tingência/necessidade do princípio da hierarquização, logra encontrar,
a exemplo das demais antinomias, abrigo no seio do sistema jurídico,
ou se residiria fora dele. Antecipe-se que tal resposta será ofertada, sob
a luz da escolhida teoria da justiça, reconhecendo-se juridicamente viá-
vel a solução, mais ou menos satisfatória, das chamadas antinomias de
avaliação.
Passa-se, com esta importante ressalva, a recordar que para Rawls,
em seu neocontratualismo, a teoria da justiça deveria ser elaborada tendo
como sujeito fundamental a estrutura básica da sociedade,9 de modo que
esta só estaria em ordem quando, efetivamente, regulada por um concei-
to público de justiça,10 o qual deveria ser visto como propiciador de um
padrão e, ao mesmo tempo, como parte de um ideal social. Com efeito,
uma de suas maiores contribuições consistiu em apresentar um conceito
de justiça tendente a generalizar e a conduzir a um patamar de mais alta
abstração a teoria do contrato social. Esclarece e precisa: "Meu objetivo
é apresentar um conceito de justiça que generalize e leve a um nível
mais alto de abstração a difundida teoria do contrato social, tal como se
encontra formulado por Locke, Rousseau e Kant. Para chegarmos a tan-
to, não devemos considerar o contrato original como um contrato para
entrar numa sociedade particular, ou para iniciar uma forma particular
de governo. Melhor seria que a ideia principal fosse que os princípios
de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do acordo
original. Estes princípios são os que pessoas livres e racionais, reunidas
pelos mesmos interesses, adotariam inicialmente quando todos estives-
sem numa posição de igualdade, para definir os termos fundamentais
da associação que estariam fazendo. Estes princípios irão regular todos
8. Útil reiterar que "toda conduta (= agir) confronta-se com uma escolha, e
qualquer escolha, direta ou indiretamente, com uma hierarquização axiológica. Não
há como se pôr aquém ou além dessa férrea lógica recursiva sem, logo aí, incorrer
em uma escolha e, por conseguinte, em uma implícita hierarquização axiológica.
Continuamente se hierarquiza, ainda quando, na aparência, não se hierarquize pro-
priamente" (v. Alexandre Pasqualini in Hermenêutica e Sistema Jurídico, Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 1999, p. 113).
9 . A Theory ofJustice, cit., p. 7.
10. Idem, p. 10.
-~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA JUSTIÇA 139
os futuros entendimentos; iriam especificar os gêneros de cooperação
social que poderiam vir a ser incluídos no governo".11
Considera precípua a tarefa de determinar quais princípios pode-
riam ser hierarquizados ou escolhidos numa suposta posição original.
Assim, logo depois de justificar, com alguma vulnerabilidade, a ado-
ção desta original position 12 como status quo inicial garantidor de que o
acordo fundamental contemplaria ajustice as fairness, conecta a teoria
da justiça à da escolha racional e assume, de modo transparente, que a
posição original seria puramente hipotética. 13 Assinala, tendo em mente
seu desiderato de partida: "Um conceito de justiça não pode ser deduzi-
do de premissas que se expliquem por elas mesmas, ou ainda deduzido
de condições a respeito de princípios (...) a justificativa de um conceito
de justiça é uma questão de mútua defesa de várias considerações, tudo
se agregando numa visão coerente".14
Nesta perspectiva, ~, feitos vários contrastes, culmina por formular
os dois princípios de justiça: "Primeiro princípio - Cada pessoa tem de
ter um igual direito ao mais extensivo sistema total de básicas liberda-
des iguais, compatíveis com um similar sistema de liberdade para todos.
Segundo princípio - As desigualdades sociais e econômicas têm de ser
ajustadas de maneira que sejam tanto (a) para o maior benefício dos
menos privilegiados, consistente com o princípio justo de poupança, e
(b) ligadas a cargos e posições abertos a todos",15 sob condições de justa
igualdade de oportunidade.
Como se percebe, no esquema formulado, o segundo princípio seria
aplicável à distribuição de rendas e de bens, ao passo que o primeiro
requereria que determinadas regras definidoras das liberdades básicas
11. Idem, p. 11. No texto cita-se, para facilitar, Uma Teoria da Justiça, trad. de
Vamireh Chacon, Brasília: UnB, 1981, p. 33.
12. Idem, p. 17.
13. Idem, p. 21.
14. Idem, p. 21 ("A conception ofjustice cannot be deduced from self-evident
premises or conditions on principIes; instead, its justification is a matter of the mu-
tual support of many considerations, of everything fitting together into one coherent
view"). No texto utilizou-se a tradução, ob. cit., p. 40.
15. Idem, p. 302 ("First principIe - Each person is to have an equal right to the
most extensive total system of equal basic liberties compatible with a similar system
ofliberty for alI. Second principIe - Social and economic inequalities are to be arran-
ged so that they are both (a) to the greatest benefit ofthe least advantaged, consistent
with the just savings principIe, and (b) attached to offices and positions open to all
under conditions of fair equality of opportunity"). No corpo do texto utilizou-se a
tradução,pp.232-233.
 T""'"
140 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
fossem aplicáveis a todos igualmente, querendo expressar uma tendency
to equality;I6 e, mais importante para a nossa abordagem, sustenta que,
uma vez obtida uma completa concepção destes princípios superiores
de justiça, se poderia simplesmente esquecer a concepção da posição
original e aplicá-los, devidamente hierarquizados. I?
Rawls admite, em parte, as dificuldades da sua noção de véu da
ignorância, implícita na ética kantiana. I8 Presume, apesar disso, a atitu-
de racional das partes na posição original, reputando racional uma pes-
soa que tiver um conjunto coerente de preferências entre as opções que
lhes são abertas, embora com pressupostos especiais. I9 Expõe, ainda,
fundamentos para os dois princípios da justiça, entendendo que ambos,
reconhecidos publicamente, emprestariam maior chance de efetividade
à cooperação social e ao autorrespeito, e para ilustrar o conteúdo de tais
princípios descreve uma estrutura básica que os satisfaria, a saber, as
instituições da democracia constituciona1. 20 Propõe que, na elaboração
de uma Constituição justa, os dois princípios definiriam um independent
standard do resultado almejado,2I assumindo a indeterminação da teoria
da justiça, sem julgá-la, neste ponto, um defeito, eis que sua construção
pretenderia, tão só, definir melhor o alcance do conceito de justiça. 22
A respeito da relação entre justiça política e Constituição, deixa
claro que: "Primeiro, a Constituição tem de ser um justo procedimento
satisfazendo os requisitos da liberdade igual; e, segundo, tem de ser for-
malizada de tal maneira que, de todos os ajustes viáveis, seja o único,
mais provável que qualquer outro, a resultar num justo e efetivo sistema
de legislação. Ajustiça da Constituição tem de ser afirmada (...) à luz do
que as circunstâncias permitirem, sendo feitas estas observações a partir
do ponto de vista da convenção constitucional".23
16. Idem, p. 100.
17. Idem, p. 116.
18. Idem, p. 140.
19. Idem, p. 143.
20. Idem, p. 195.
21. Idem, p. 198.
22. Útil lembrar a distinção que também Rawls faz entre concept e conceptions
(in A Theory ofJustice, cit., pp. 5-6). Ainda sobre esta distinção, V., entre outros, Neil
MacCormick in Legal Reasoning and Legal Theory, p. 73: "I follow John Rawls in
distinguishing between specific conceptions of justice and the concept of justice.
The difference is that the concept ofjustice is abstract and formal; (...)".
23. Rawls in A Theory ofJustice, cit., p. 221 ("First, the Constitution is to be
a just procedure satisfying the requirements of equal liberty; and second, it is to be
~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA mSTIçA 141
Deste modo, prescreve que o sistema precisaria agir para subscre-
ver "the equal rights of participation",24 observando que os efeitos das
injustiças - antinomias entre o Direito posto e o Direito tal qual deveria
ser - seriam graves e duradouros no sistema político. Elucida, ademais,
o sentido da prioridade da liberdade, fazendo notar que, à base da sua
concepção formal de justiça, a regular e imparcial administração das
regras públicas transformar-se-ia em Estado de Direito quando aplicada
ao sistema lega1. 25 Mais: depois de discutir com o Intuicionismo e outras
correntes, inclui a regra da prioridade da justiça sobre a eficiência e o
bem-estar, expondo sua concepção geral: "Todos os bens sociais primá-
rios - liberdade e oportunidade, renda e riqueza e as bases do autorres-
peito - têm de ser distribuídos igualmente, a menos que uma desigual
distribuição de alguns ou de todos os bens se mostrar mais vantajosa
para os menos favorecidos".26
Escolhidos tais parâmetros, Rawls afirma inexistir, a rigor, antino-
mia entre liberdade e razão ou entre objetividade e autonomia,2? consi-
derando essencial que a prioridade da liberdade seja firmemente mantida
e que as partes sejam levadas a adotar uma espécie de hierarquização
(serial ordering)28 dos dois princípios, aí se desenhando a sua ideia de
que, numa sociedade bem-estruturada, a distribuição de meios dar-se-ia
de acordo com a justiça processual pura.
Finalmente, para os objetivos relacionados à interpretação do Direi-
to Positivo, convém destacar sua proposição de que se deveria ver o nos-
so lugar na sociedade sob todos os pontos de vista temporais, alcançando
aquele tipo de pensar e de sentir que pessoas racionais poderiam adotar
no mundo. Assim agindo, todas as perspectivas individuais endereçar-
-se-iam aos regulative principies, os quais poderiam ser afirmados por
todos. 29
framed so that all the feasible just arrangements, it is the one more likely than any
other to result in a just and effective system of legislation"). No texto utilizou-se a
tradução, p. 177.
24. Idem, p. 224.
25. Idem, p. 249.
26. Idem, p. 303 ("All social primary goods -liberty and opportunity, income
and wealth, and the bases of self-respect - are to be distributed equally unless an
unequal distribution of any or all of these goods is to be advantage of the least favo-
red"). No texto utilizou-se a tradução, p. 233.
27. Idem, p. 516.
28. Idem, p. 545.
29. Idem, p. 587.
 .,.,-
142 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Resistindo à tentação de esmiuçar, criticamente, os pontos arro-
lados, urge passar ao exame da antinomia de avaliação no seio desta
ilustrativa teoria. Enfatizando: trata-se de simples exercício que poderia
ser realizado - e já o foi noutros momentos - com variadas teorias da
justiça, encontrando-se coincidência parcial quanto à operação axioló-
gica de fundo.
6.3 O "metacritério"jurídico da hierarquização
e os princípios e regras de prioridade:
o objetivo jurídico e sistemático da máxima justiça possível
Feito este breve apanhado da teoria da justiça de Rawls, sem aco-
lhê-la por inteiro, reitera-se não haver pretensão de elaborar uma parale-
la teoria da justiça,30 tampouco investigar, aqui, a problemática analogia
entre social institutions e systems ofthought. 31 É o momento de respon-
der, de modo afirmativo, à questão acerca da ocorrência de antinomias
teleológicas em conflitos de normas com princípios hierarquizados ou
escolhidos como superiores, tais como, por exemplo, os dois propostos
acerca da justiça.
Impõe-se sublinhar que o princípio da hierarquização axiológica
é que oferece, tópico-sistematicamente, a resposta à eventual situação
antinômica entre esta ou aquela regra de prioridade. Em outras palavras,
bem de ver que entre os Princípios Superiores (PS-I e PS-2) de Rawls,
a rigor, apenas se resolveria a antinomia se houver uma hierarquização
patrocinada pelo intérprete, acolhendo ou não as regras de prioridade.
Necessário observar que tais regras implicam o uso empírico ou o exer-
cício do princípio da hierarquização axiológica. Na linguagem de Rawls,
serialordering. Ora, como se anteviu na oitava configuração hipotética,
no Capítulo 4:
PS-l + Regra de Prioridade da Liberdade
("THE PRIORITY OF LIBERTY")
x de - por força do respeito aos requisitos da racionalidade intersubjeti-
PS-2 + Regra de Prioridade da Justiça sobre a Eficiência e o Bem-Estar
("THE PRIORITY OF JUSTICE EFFICIENCY AND WELFARE")
= (PS) "METACRITÉRIO" DE HIERARQUIZAÇÃO AxIOLÓGICA
30. Recorde-se o citado Otfried Hõffe in Politische Gerechtigkeit... , cit., 1987.
31. John Rawls in A Theory ofJustice, cit., p. 3: "Justice is the first virtue of
social institutions, as truth is of systems ofthought".
~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA JUSTIÇA 143
Está claro que - sem aderir ao dualismo kantiano de Rawls, até
por algumas críticas infundadas às teorias teleológicas - nos Estados
Democráticos, expressa ou implicitamente, princípios de justiça (assu-
mindo o conteúdo desta teoria ou de outras) devem estar sempre po-
sitivados na seara jurídica, independentemente de escolhas pressupos-
tas, ou não, numa hipotética posição original, dado que a justiça básica
aparece como requisito de racionalidade de qualquer sistema merecedor
do nome, motivo pelo qual impõe-se sobrepassar, juridicamente, toda e
qualquer antinomia de avaliação.
A racionalidade dialética não aceita coexistir com sistema jurídico
que não tenha compromisso fundamental com a justiça. Neste sentido,
indispensável perceber a insofismável conexão da teoria da justiça com
a da escolha racional, sem que se sucumba a relativismos céticos32 ou
excessivamente pragmáticos daqueles que acentuam exclusivamente o
caráter problemático da decisão interpretativa. A hierarquização axio-
lógica, realizada com racionalidade intersubjetiva, traduz-se como vital
condição para o movimento do Direito, eis que o mesmo não subsiste se
o intérprete estiver descompromissado com um ideal legítimo e funda-
mentável de justiça (admitidos, é claro, ideais rivais).
Neste passo, merece elogio a meta de Rawls no sentido de pro-
ceder à hierarquização de molde a avaliar os sistemas constitucionais,
atemporalmente, sendo digno de nota ter ele percebido a inexistência de
antinomia (de antinomia insolúvel, preferir-se-ia dizer) entre a liberdade
e as exigências racionais da objetividade, porque a hierarquização dos
princípios é construída como liberdade e como obediência aos requisi-
tos da racionalidade. Por outra parte, inegável a afinidade pontual da
construção aqui sustentada - voltada, predominantemente, ao exame do
Direito posto - com sua ideia de que a prioridade da liberdade impele os
agentes a adotar uma hierarquização dos princípios, bem como a aspirar
ao encontro de determinados princípios reguladores.
Na ótica tópico-sistemática, analogamente, assume-se a necessida-
va e da liberdade - de considerar que a hierarquização axiológica dos
princípios é, em todos os tempos, a atitude definidora dos resultados da
aplicação do Direito, inclusive. ao cuidar das antinomias de avaliação.
Mais: todas as antinomias são, de algum modo, antinomias de avalia-
32. Para exemplificar o ceticismo que se afigura inaceitável na perspectiva
tópico-sistemática, v. "Constitutional skepticism", de Robin West in Contemporary
Perspectives on Constitutionallnterpretation, pp. 234-258.
 ......
144 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ção, dado que o conteúdo antinômico é material e, portanto, dotado de
carga axiológica, implicando um desvendar do sistema no campo mais
alto dos princípios.
Alem disso, convém aduzir que em Rawls uma antinomia que se
traduza como incompatibilidade entre o Direito posto de modo originá-
rio e o Direito tal qual deveria ser contemporaneamente - tendo em vista
sua concepção geral - somente se tomaria solúvel pela adoção de um
"metacritério"33 que decidiria priorizar uma dada solução ou aguardar
outra de lege ferenda. Em tudo, imperioso observar - nítida e sem véu
- a atuação permanente, em qualquer caso, de um processo que define,
também "desde dentro",34 esta ou aquela prioridade, sem jamais perder a
condição de princípio que pertence e ultrapassa o sistema. Merece, ainda
que noutra perspectiva, por arguta e perspicaz, ser trazida a observação
de Canaris ao acentuar que "a solução adequada ao sistema é, na dúvi-
da, vinculativa, de lege lata, e é fundamentalmente de reconhecer como
justa, no domínio de uma determinada ordem positiva; pontos de vista
de justiça material contrários ao sistema só podem aspirar à primazia
perante argumentos do sistema quando existem as especiais pressuposi-
ções nas quais é admissível uma complementação do Direito legislado
com base em critérios extrajurídico-positivos".35
Corroborando tal assertiva, sublinhem-se as limitações ínsitas ao
sistema, embora se constate que, em boa hora, nele radica a possibili-
dade de aperfeiçoamento contínuo, em face de sua abertura teleológica
ditada pela própria preponderância inelutável do critério da hierarquiza-
ção. Deste modo - reiterando inocorrer pretensão de expor uma paralela
teoria da justiça36 -, resulta decisivo, para a melhor aplicação do princí-
pio da hierarquização axiológica, compreender que, em face do conflito
entre regras de prioridade, imanentes ou externas, o intérprete precisa se
mostrar capaz de juridicamente vencer - sem cair na falácia de uma he-
terointegração que não seja, em alguma medida, autointegração - o con-
flito eventualmente existente entre o Direito posto ou vigente e o Direito
tal como deveria ser, notadamente num Estado Democrático, guiado por
33. De cunho jurídico, numa interpretação sistemática entendida nos termos
do Capítulo 2.
34. Sem a mesma ênfase ao di dentro do 3º Cânone de Emilio Betti (in Teo-
ria Generale della Interpretazione, cit., 2ª ed., 1990, p. 314). Sobre tais cânones
retomar-se-á no final deste livro.
35. Pensamento Sistemático... , cit., p. 198.
36. Sobre a indispensabilidade de uma teoria da justiça que evite subjetivismos
arbitrários, v. Helmut Coing in Elementos Fundamentais... , cit., p. 348.
~
HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA JUSTIÇA 145
uma racional concepção tendente a soluções equitativas e hierarquizan-
do a justiça como um dos valores supremos, ao qual cumpre efetivar, ao
máximo, no círculo dialógico da interpretação.
Com efeito, o princípio superior da "justiça", em que pese a sua
indeterminação, inclusive quando desponta sob a forma genérica e open-
-ended de "justiça social", não pode mais ser ignorado, uma vez que
central e garantidor da racionalidade "interna" e da abertura do sistema,
sobremodo na esfera constitucional. A propósito, na pertinente obser-
vação de Mauro Cappel1etti, a "norma constitucional, sendo também
norma positiva, traz em si uma reaproximação do Direito à Justiça. (...).
Refletindo as características da norma constitucional, para cuja atuação
concreta ela deve velar, a justiça constitucional, (...) confiada a um 'ór-
gão soberano', composto de juízes independentes e imparciais, voltados
para a humanização daquele Absoluto, para a concretização daqueles
supremos valores que, encerrados e cristalizados nas fórmulas da Cons-
tituição, seriam fria e estática irrealidade. A justiça constitucional ex-
pressa, em síntese, a própria vida, a realidade dinâmica, o vir a ser das
'Leis Fundamentais"'.3?
É dizer, numa interpretação sistemática não há espaço para as fran-
jas brumosas e movediças da retórica, em face da referida presunção
de racionalidade do legislado/interpretado. Deflui daí que não se deve
tergiversar: as normas atinentes à justiça não são apelos duvidosos, sen-
do, no núcleo essencial, dotadas de eficácia direta e imediata. Por isso,
convém reter que:
a) uma adequada hierarquização axiológica deve ser capaz de ven-
cer antinomias entre princípios e regras de prioridade, sempre pressu-
posto, como integrante do sistema democrático, um conceito razoável
de justiça;
b) o conceito de princípio da hierarquização axiológica difere da
concepção de justiça de Rawls, em parte por esta última ser mais empi-
ricamente condicionada; mas o cotejo é extremamente útil para sulcar
que não se consideram as denominadas antinomias de avaliação como
inteiramente despidas de equacionamento jurídico - como sustentava
Bobbio38 -, ainda que se afirme o propósito moderado de uma máxima
37. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Compara-
do, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1984, p. 130. Quanto ao relativismo,
é de se lembrar que, ao se extremar, anula-se a si próprio, conforme bem pondera
Hans Welzel (in Introducción a la Filosofia dei Derecho, Madrid: Aguilar, 1977, p.
265).
38. Teoria do Ordenamento Jurídico, cit., p. 109.
 .,...
146 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO HIERARQUIZAÇÃO AXIOLÓGICA E TEMÁTICA DA JUSTIÇA 147

justiça possível. A moderação se explica, uma vez que a luta por um
ideal plausível de justiça não implica ceder ao arbítrio subjetivista, tam-
pouco à irracionalidade autoritária.
Pelo visto, a gravidade do conflito entre valores fundamentais, a
saber, o respeito à ordem (exigência de racionalidade) e o acatamento
à justiça (o respeito à liberdade, em sentido de Rawls), tem resposta
que, seguramente, haverá de ser jurídica, qualquer que seja. A injustiça
(antinomia das mais nocivas), entendida como uma colisão de ato ou
norma com regras de prioridade erigidas por um sistema democrático,
representa uma má contradição, porque põe em risco a estrutura-mestra
do sistema. Inserida, de conseguinte, na disputa entre os princípios e
regras da prioridade, a hierarquização axiológica (tópica e sistematica-
mente) como que ordena, inclusive diante de antinomias entre critérios
ou regras de prioridade atinentes à justiça, a prevalência do princípio
axiologicamente superior, ou da norma hierarquicamente superior, pro-
cessando uma exegese sempre avaliadora, não fazendo sentido conside-
rar irrelevante para o Direito um dos seus mais nobres princípios. Deste
modo, o princípio dajustiça, independentemente do seu conteúdo mate-
rial, passa a ser visto como irrenunciavelmente jurídico.
Cumpre recordar, não obstante a decisiva importância da subjeti-
vidade para a formação objetiva, que a extensão da interpretação siste-
mática não deve ser maior do que a do próprio sistema. Vale dizer, são
os princípios em conjunto - sem absolutização de qualquer deles - que
asseguram abertura e, ao mesmo tempo, limites à construção do Direi-
to. Logo, os princípios relacionados à justiça devem ser matizados pela
presença de outros princípios igualmente relevantes para a manutenção
do jogo dialético entre objetividade e subjetividade. 39 O sistema jurídi-
co - mais claramente se vê - é, sobretudo, um complexo de princípios
positivados, cujo conteúdo, no caso dos princípios fundamentais, entre
os quais o da "justiça", como que transcende o conteúdo das regras
Desta posição extrai-se a consequência de que os princípios, sem
exceção, integram (em duplo sentido) o Direito Positivo. Em outras pa-
lavras, apesar de algumas correntes negarem a transcendência a princí-
pios gerais e os diferenciarem dos princípios positivados, ao fim e ao
cabo não inviabilizam a conclusão de que estes e aqueles integram o Di-
reito Positivo, desde que assumida a noção de sistema aberto, nos mol-
des expressos no Capítulo 1. Assim, havendo antinomias em acepção
larga, abrangendo as de avaliação, importa notar que, invariavelmente,
se recorrerá, expressa ou tacitamente, à aplicação hierarquizadora no in-
tuito de afastar as contradições lesivas ao sistema.
Generalizando, e resumindo este ponto: a interpretação sistemática
realiza sempre hierarquização axiológica, de sorte a fazer preponderar,
inclusiva e exclusivament~, ora a regra superior, ora, em caso de anti-
nomia pendente, o princípio superior. Recorre-se, em todas as hipóteses,
expressa ou ocultamente, ao princípio da hierarquização, até mesmo ao
lidar com princípios e regras de prioridade, tendo em vista as exigências
teleológicas do sistema, que reclama - para além de relativismos niilis-
tas - solução das controvérsias, de maneira a concretizar a máxima jus-
tiça possível em face da dialética e saudável coexistência dos princípios
e objetivos fundamentais.

39. Neste passo, em sintonia com o sentido apeliano da relação dialética entre
reflexão e práxis, como bem expõe Manfredo Araújo: "A dialética existencialista
da subjetividade parte do caso-limite de uma dialética subjetiva e absolutiza a de-
cisão sobre possibilidades, convertendo-a num fim em si mesmo irracional diante
do jogar-se abstrato da historicidade da situação enquanto tal. Por outro lado, no
materialismo histórico-dogmático, a dialética objetiva absorve a prática subjetiva.
Para Apel, ambas as posições não passam de totalizações de casos-limite da Dialé-
tica, formas decadentes de uma Dialética aquém do idealismo e do materialismo,
do subjetivismo e do objetivismo. Dialética (...) tem de captar a tensão entre seus
dois elementos básicos: a reflexão voltada para o mundo e o engajamento prático
material no mundo" (in Para Além da Fragmentação, São Paulo: Loyola, 2002, p.
88). V., ainda, Karl-Otto Apel in Transformation der Philosophie, cit., 1989, voI.
11, p. 157.

-~
.".

CAPÍTULO 7
ESSENCIAL IDENTIDADE
DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO E DA TÓPICA:
SOLUÇÕES NO ÂMBITO DO SISTEMA

7.1 A sempre virtualmente possível formação do sistema jurídico como

unidade dinâmica entre ordem empírica e reflexão. 7.2 A identidade es-
sencial do pensamento sistemático e da Tópica: crítica a unilateralis-
mos. 7.3 Paralelo entre a aludida identidade essencial e a convergência
viável entre a h~rmenêutica filosófica e a crítica das ideologias.

7.1 A sempre virtualmente possívelformação do sistema jurídico

como unidade dinâmica entre ordem empírica e reflexão
A aprofundada compreensão do "metacritério" universalizante da
hierarquização axiológica, como elemento inarredável da interpretação
sistemática, faz perceber a multiplicidade de soluções como nota ca-
racterística do Direito Positivo.! Neste quadro de "pluralismo", convém
cuidar da problemática obrigatoriedade, ou não, das normas hierarquiza-
das como, teleologicamente, antagônicas ao sistema vigente.
Proceder-se-á ao tratamento do tema retomando o fio condutor da
tensão tópico-sistemática entre práxis e reflexão,2 isto é, tendo em mente
que as contradições axiológicas representam, na melhor das hipóteses,
uma ameaça de violação ao princípio da unidade,3 cumprindo ao intér-

1. Fenômeno de multiplicidade que não deve ser visto, consoante enfatizado no

Capítulo 3, necessariamente como um mal. Na feliz observação de Laurence Tribe e
Michael Dorf, "the undeniably plural and intemally divided nature of the Constitu-
tion is not a sad reality; it may well be among the Constitution's greatest strengths"
(in On Reading the Constitution, Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 25).
2. Outra vez em parcial sintonia com Apel (in Transformation der Philosophie,
vol. I, cit., pp. 9-27), mantendo forte, entretanto, a ideia de circularidade hermenêu-
tica, nos moldes do frisado no início desta obra.
3. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 217. Ao exa-
minar a problemática da vinculação das normas contrárias ao sistema, quis Canaris
tratar da ligação do legislador com o pensamento sistemático.

~
 ~
150 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
prete apreciá-las e vencê-las, se for o caso, com a Dialética, superior-
mente concebida.
Exponha-se, em primeiro lugar, na metodologia tradicional, a tenta-
tiva de responder à questão formulada por meio das lacunas de colisão,
as quais se configurariam quando a lei, à determinada previsão asso-
ciaria consequências jurídicas contraditórias e esta contradição não se
deixaria resolver com recurso à interpretação, desaparecendo ambas as
disposições normativas. 4
Desde logo, bem de ver que não há, à luz dos conceitos aqui
esposados, 5 diferença essencial entre conflitos normativos e antinomias
valorativas, uma vez que as normas também são prescrições axiológicas.
Reiterando: é especial e marcadamente por esse motivo que apenas em
parte são aceitáveis as distinções entre espécies de contradição no seio
da ordem jurídica, assim como empreendidas por Karl Engisch,6 que
discriminava contradições técnicas, normativas, valorativas, teleológi-
cas e de princípios.
Na realidade, como visto, todas as antinomias são axiológicas, e,
portanto, sem diferenciações de cunho essencial, conquanto mereça per-
durar a distinção entre antinomias principiológicas, mais concretas do
que as antinomias puramente axiológicas e menos, à primeira vista, do
que as normativas que envolvem regras, a despeito da mencionada supe-
rioridade, por definição, em relação a estas.
Não se deve, contudo, considerar que apenas nos casos de con-
tradições entre normas estritas o aplicador realizaria uma hierarqui-
zação de molde a, no limite, negar obediência a pelo menos uma das
normas, uma vez que tal ocorre, não raro, em conflitos outros, ainda
que sempre inviável, na melhor técnica, eliminar princípios ou valores.
Com efeito, é de entender que todas as antinomias comportam possível
solução com base no primado (sem quebra ou supressão) de qualquer
um dos polos da contradição, impedindo o surgimento ou a continui-
dade da lacuna de colisão. A rigor, neste sentido específico, não se
opera com uma lógica do tudo-ou-nada, em nenhum dos casos, o que
explica, até certo ponto, as modulações de efeitos nas declarações de
inconstitucionalidade.
4. Canaris, idem, p. 218.
5. Como enfatizado no Capítulo 3, as antinomias, entendidas em sentido am-
plo, abarcam as lacunas (antinomias entre norma geral inclusiva e norma geral ex-
clusiva).
6. Introdução ao Pensamento Jurídico, cit., pp. 254-261.
.....
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 151
Ademais, verifica-se que a solução para tais làcunas sucede com o
auxílio, expresso ou tácito, dos princípios. Vale dizer, as contradições
entre regras não devem ser tratadas de modo inteiramente diverso, pois
são violações, em graus variáveis, a princípios consagrados no sistema
da Constituição. Neste passo, observa Canaris, de modo algo coinciden-
te, que "as normas contrárias ao sistema podem, por causa da contradi-
ção de valores nelas incluída, atentar contra o princípio constitucional da
igualdade e, por isso, seriam nulas". 7
Não quer dizer que toda e qualquer norma contrária ao sistema seja
inteiramente nula, ou deva ser declarada como tal. Existem antinomias
que violam parcialmente a proibição de autocontradição. Comum que
a irregularidade trazida por uma antinomia não seja considerada como
efetivo e grave distúrbio para o Direito vigente. 8 A convalidação, pre-
sentes os pressupostos, deverá ser eleita como a solução. Nesta medida,
assiste razão a Canaris ao dizer que há "casos nos quais uma quebra no
sistema não representa uma violação da proibição de arbítrio. Não se
duvide da vinculabilidade da norma contrária ao sistema".9
Todavia, as antinomias - que jamais se confundem com meras di-
ferenciações ou combinações de princípios - constituem, no geral das
vezes, uma hostilização grave a princípios superiores, de maneira que
precisam ser expungidas. Crucial notar que o intérprete, por meio do
prudencial "metacritério" da hierarquização axiológica, dirá se se cris-
talizou, ou não, a autocontradição nociva, eventualmente optando por
declarar a nulidade (parcial ou total) da norma antinômica. Esta situação
põe de manifesto o funcionamento tópico-sistemático do princípio da
hierarquização axiológica, assim como se o formulou.
À vista disso, razoável admitir uma contradição que se isole no sis-
tema axiológico ou teleológico, contudo - nisso havendo significativa
diferença de abordagem em relação a Canaris 10 - deve ser aceita como
7. Pensamento Sistemático... , cit., p. 225. O próprio Canaris esclarece que não
quer isto dizer que cada norma contrária ao sistema deva, sem mais, ser nula (p.
226), até em face da multiplicidade de escopos que animam o legislador.
8. Canaris in Pensamento Sistemático... , cit., p. 237.
9. Idem, p. 229.
10. Idem, pp. 234-235. Sobre a abertura, convém salientar que, com razão para
Canaris, esta ocorre em dois planos interligados: no plano do "sistema científico" e
quanto ao "sistema objetivo". No que conceme ao primeiro a abertura significa "a
incompletude e a provisoriedade do conhecimento científico" (p. 106). Neste sen-
tido, sempre poderá haver reelaborações sucessivas, de tal sorte que "nunca pode
ser tarefa do sistema o fixar a ciência ou, até, o desenvolvimento do Direito num
determinado estado, mas antes, apenas, o exprimir o quadro geral de todos os re-
 ~
152 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
sempre virtualmente possível a formação do sistema no ponto antinômi-
co residual, pois do contrário os restantes domínios resultariam, irreme-
diavelmente, turbados ou ameaçados.
Desse modo, em razão da abertura do sistema e de haurir ele o seu
conteúdo a partir de si, revela-se potencialmente alcançável a formação
dialética de coerência,l1 e somente esta possibilidade garante o signi-
conhecimentos do tempo, o garantir a sua concatenação e, em especial, o facilitar
a determinação dos efeitos reflexos que uma modificação (do conhecimento ou do
objeto), num determinado ponto, tenha noutro, por força da regra anterior" (p. 106).
Canaris, porém, parece não extrair relevantes efeitos da abertura, no segundo
aspecto, que diz com o próprio objeto da chamada ciência jurídica, isto é, o Direito
objetivamente considerado, conquanto reconheça a "modificabilidade dos valores
fundamentais da ordem jurídica" (p. 107), mesmo quando esta repouse na ideia de
codificação. Diz: "Hoje, princípios novos e diferentes dos existentes ainda há pou-
cas décadas podem ter validade e ser constitutivos para o sistema" (p. 107). Apesar
disso, percebe que ambas as modalidades de abertura "são essencialmente próprias
do sistema jurídico e nada seria mais errado do que utilizar a abertura do sistema
como objeção contra o significado da formação do sistema na Ciência do Direito
ou, até, caracterizar um sistema aberto como uma contradição em si" (p. 109). Mais:
nota que a abertura do sistema objetivo reside na própria essência de historicidade
do objeto da jurisprudência, bem como que a mesma resulta da admissibilidade da
interpretação criativa (pp. 112-113). Ademais, acolhe a ideia de que, "para além da
lei e do costume, também podem conduzir a alterações de sistema objetivo aqueles
princípios gerais do Direito que representam emanações da ideia de Direito e da
natureza das coisas" (p. 121).
Apesar e a despeito de dar mostras de intuir o fenômeno, o máximo que admite
é a interpenetração e a múltipla complementação dos pensamentos sistemático e tó-
pico, deixando de ver que, em razão mesmo da abertura do objeto da jurisprudência,
a interpretação é tópico-sistemática. Em face do exposto, a abertura do sistema ju-
rídico força o reconhecimento da imperatividade de um pensamento que se traduza,
ao mesmo tempo, como sistemático e tópico, pensamento só alcançável por um total
abandono dos resquícios da Escola da Exegese e do sistema axiomático-dedutivo,
bem como da ideia de que os direitos apenas seriam defensáveis quando reconheci-
dos em leis infraconstitucionais.
11. Sobre coerência, sustenta Carlos Roberto Velho Cirne Lima: "O desen-
volvimento do homem em liberdade chama-se História. Também a História, como
a sociedade e o Estado, constitui-se de um momento necessário e de um momento
contingente. Necessário na História é tudo que acontece de acordo com as leis e que,
portanto, não pode ocorrer de outra maneira - a primeira forma da sociedade - e o que
não deve ocorrer de outra maneira - a segunda forma de necessidade. Exatamente esta
segunda forma de necessidade é característica específica do Homem e de sua Histó-
ria. História é, assim, sempre um julgamento em que julgamos ética e moralmente o
passado, o presente e o futuro. Fatos, uma vez ocorridos, não podem ser desfeitos.
Mas (...) perfeitamente, transformar os fatos, dando-lhes outro sentido, de sorte que
possam ser inseridos no contexto do quadro da razão, da história de vida e, finalmen-
te, no mosaico geral de sentido do mundo. Um erro cometido, uma vez reconhecido
~
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 153
ficado do sistema para a Ciência do Direito, entendida como o estudo
concernente à elaboração estrutural e às funções do sistema jurídico,
considerado como objeto historicamente posto em constante mutação
(objeto prescritivo), isto é, em sua variabilidade evolutiva.
Justamente, portanto, em face da alternativa de se declarar, ou não,
a nulidade das normas contrárias ao sistema é que irrompe, límpida, a
valia da interpretação tópico-sistemática,12 sendo esta declaração uma
de suas precípuas funções. Daí, segundo se estima, resultam remarcáveis
consequências. Em suma:
a) é a hierarquização axiológica - atividade típica de interpretação
sistemática - que decide manter ou não as normas que se ponham, em
maior ou menor grau, em rota de colisão com o sistema; ao mesmo tempo,
a consciência desse processo mostra-se reveladora das imensas - embora
finitas - possibilidades e soluções no interior do Direito, o qual é rede de
princípios, regras e valores,,,,cumprindo determinar seu conteúdo atual a
partir de dentro, mas em atuação reflexiva (crítica, portanto) que, forçosa-
mente, implica a transcendência do originalmente pretendido, ao observar
a Constituição com racionalidade, nos moldes aqui compreendidos;
como tal, pode - mas isto não é um 'ser necessário', um Müssen, mas um dever-ser,
um Sollen - transformar-se em conhecimento e virtude. Filosofia da História é, assim,
sempre Filosofia em intenção pragmática, como Kant queria, e não o cálculo mais ou
menos exato de eventos que necessariamente irão acontecer (...). O julgamento da
História, tanto da minha vida como da História Universal, faz-se segundo critérios,
os quais, em última análise, se reduzem a um critério primeiro e último: o critério da
coerência universal, que não é nada mais nada menos que o princípio da contradição
a ser evitada. É bom e está certo o que está em coerência consigo mesmo, com o
meio ambiente mais imediato e também com a totalidade do processo do Universo
(...). O que não está conforme à coerência universal é uma contradição que precisa
ser trabalhada e superada. Onde a contradição não é superada, engendram-se formas
fugazes de ser, distorções de alma e de espírito, doenças, conflitos sociais, guerras e,
finalmente, a morte do indivíduo enquanto universal concreto" (in Sobre a Contradi-
ção, Porto Alegre: Edipucrs, 1993, p. 121). Como se vê, necessidade e contingência
estão interligadas nesta visão em que a teleologia não é necessitante, senão que aberta
à liberdade e à supervisão, por assim dizer, de uma racionalidade intersubjetiva que
sabe discernir entre antinomias que devem ou não ser superadas para a preservação
sadia do sistema em sua abertura e, simultaneamente, em sua unidade.
Em enfoque diverso, mas algo confluente no específico, v. Niklas Luhmann
in "Por que uma teoria dos sistemas", in Dialética e Liberdade, Petrópolis: Vozes/
UFRS, 1993, p. 439.
12. Entre nós, para exemplificar um exercício estimulante de pensamento tópi-
co-sistemático, v. Paulo Caliendo in Três Modos de pensar a Tributação. Elementos
para uma Teoria Sistemática do Direito Tributário, Porto Alegre, Livraria do Advo-
gado, 2009, pp. 260 e ss.
 ~
154 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
b) mostra-se sempre possível obter a coerência em ordens democrá-
ticas, donde segue que as lacunas de colisão não remanescem, ao menos
indefinidamente, no seio do sistema, sem que essa incompatibilidade
deixe, de algum modo, de ser passível de resolução tópico-sistemática;
c) declarar a nulidade de uma norma contrária ao sistema nada mais
é do que, por intermédio do "metacritério" hierarquizador, vencer uma
antinomia, não pela conformação ou adaptação, mas pelo afastamento
da norma estrita, quando esta se mostrar rigorosamente em litígio com as
demandas de coerência do sistema, num horizonte intersubjetivo entre
ordem empírica e reflexão hermenêutica.
7.2 A identidade essencial do pensamento sistemático e da Tópica:
crítica a unilateralismos
Se é certo que a interpretação sistemática tem por objeto o Direito
como totalidade aberta, elegendo critérios e, sobretudo, hierarquizando
sentidos, igualmente certo que tal interpretação não é, nem deve ser,
inteiramente livre, tampouco inteiramente presa às deliberações ou von-
tades distintas das do intérprete. Trata-se da inextirpável intersubjetivi-
dade no exercício aplicativo dos pensamentos sistemático e tópico, ao
mesmo tempo.
Sistemático porque atuante o "metacritério" racionalizador da hie-
rarquização, que tende a propiciar fundamentação ao processo de com-
preensão para além da dicotomia ortodoxa de sujeito e de objeto. Tópico
porque a interpretação acontece como processo empírico e aporético,
sendo que o sistema somente ganha contornos definitivos por força da
intervenção do intérprete na decisão eletiva entre os sentidos necessaria-
mente múltiplos.
Nessa linha de pensar, a interpretação sistemática aparece como
identidade essencial - mais do que mera interpenetração - dos pensa-
mentos sistemático e tópico. Observa Canaris: "Assim, também quando
à Tópica seja conferida a primazia, não se toma a sistemática totalmente
sem sentido. (...) a Tópica nada mais é aqui do que um meio auxiliar,
tratando-se então de substituir o mais depressa possível os inseguros
tópicos por claras valorações, isto é, determinar sistematicamente a
resolução" .13 Diverge-se em parte, uma vez que a Tópica não é ape-
13. Pensamento Sistemático... , p. 273. Concede, a propósito, que também na
concretização de cláusulas gerais carecidas de preenchimento com valorações, nas
quais a Tópica "é mais de que um mero auxiliar, surge uma tendência clara para
a sistematização. Não só as cláusulas gerais se devem interpretar sempre à luz da
~
r"'"
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 155
nas meio útil e ancilar na condição de ontologicamente complementar, 14
sobretudo em face de cláusulas gerais carentes de preenchimento com
valorações, exprimindo a polarização de valores elevados. Com efeito,
dada a abertura do sistema jurídico, decorrente da inexistência de deli-
mitação rígida e axiomática dos seus conteúdos, brota a feição dialética
das proposições jurídicas, notadamente daquelas que assumem a condi-
ção de princípios gerais.
Ao tratar da Tópica, considerava Aristóteles I5 como dialético o ra-
ciocínio construído a partir de coisas plausíveis, ou seja, as que parecem
ordem jurídica global, portanto sobre o pano de fundo do sistema (...) como, ainda,
e sobretudo, se verifica que a sua concretização ocorre, largamente, através da for-
mação de tipos, isto é, em parte, através da formação clara de previsões normativas,
pressionando-se, com isso, no sentido da determinação sistemática. Pense-se, por
exemplo, no 242 BGB, no trabalho de sistematização efetuado pela jurisprudência
e pela doutrina" (p. 274). Mais: embora não fale de um pensamento tópico-sistemá-
tico, como se sustenta nesta obra, admite que "o âmbito virado, em primeira linha,
para o pensamento sistemático não se conserva totalmente livre das influências da
Tópica (...). Também num aperfeiçoamento praeter legem do Direito, que se oriente
pelo sistema, e em especial na concretização de princípios jurídicos gerais extrale-
gais - tal como também a propósito de modificações provocadas -, os meros tópi-
cos desempenham, pelo menos nos estádios iniciais do desenvolvimento, um papel
considerável; pode-se até, de certa forma, atribuir estrutura tópica ao nascimento de
novos princípios jurídicos" (p. 276).
14. Observa Hans-Georg Gadamer: "(...) hat Hegel wirklich aIs erster die Tiefe
der platonischen Dialektik erfasst" (in Hegel und die antike Dialektik. Gesammelte
Werke, vol. 3, Tübingen: 1. C. B. Mohr, 1987, p. 5) - e, por essa razão, um dos pri-
meiros a criticar a degradação da Dialética à condição de mero meio auxiliar ("... die
Degradation der Dialektik zu einem blossen vorbereitenden Hilfsmittel. ..") (p. 5).
15. Topica et Sophistici Elenchi, cit. Diz: "Nosso tratado se propõe encontrar
um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões
geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos ca-
pazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos
cause embaraços" (100a 18-23, p. 1). Adiante, elucidaAristóteles: "Uma proposição
dialética consiste em perguntar alguma coisa que é admitida por todos os homens,
pela maioria deles ou pelos filósofos, isto é, ou por todos, ou pela maioria, ou pelos
mais eminentes, contanto que não seja contrária à opinião geral. (...). As proposições
dialéticas fprótasis dialektikel também incluem opiniões que são semelhantes às ge-
ralmente aceitas; e também proposições que contradizem os contrários das opiniões
que se consideram geralmente aceitas, assim como todas as opiniões que estão em
harmonia com as artes acreditadas. Assim, supondo-se que seja opinião geral que o
conhecimento dos contrários é o mesmo, é provável que também pudesse passar por
uma opinião geral que a percepção dos contrários é a mesma; (...). Do mesmo modo,
também as opiniões que contradizem os contrários das opiniões gerais passarão por
opiniões gerais; porque, se é opinião geral que se deve fazer bem aos amigos, será
também opinião geral que não se deve fazer nada que os prejudique. (...) esta é tam-
 ~
156 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
bem a todos, ou à maioria, ou aos sábios, e, entre estes últimos, a todos,
ou à maioria, ou aos mais conhecidos e reputados. É mais que isso: o
"metacritério" efetua escolhas ou rejeições quando trata de, topicamen-
te, realizar a função individualizadora do sistema. Quer dizer, observada,
em profundidade, a ordem jurídica sob tal prisma, tende a desaparecer
a oposição entre o adequado entendimento dos comandos e o compor-
tamento pertinente em razão deles, embora se mantenham e ressalvem
as especificidades entre as tarefas da legislação e as da jurisprudência.
A técnica do pensamento problemático não se diferencia, no núcleo, da
técnica de formação sistemática, ambas instrumentais do mesmo poder
de hierarquizar, racionalmente, entre várias possibilidades de sentido.
Por isso, não se deve acolher, na esfera operacional, determinado tipo
de pensamento que recusa como problemas aparentes as questões não
ordenáveis no sistema. 16
De fato, a identidade essencial apresenta-se epistemologicamente
necessária, inclusive para que melhor se decifrem os liames entre a Her-
menêutica que busca a sistematização e o objeto que se evidencia sob o
signo da mudança de sentido. Além disso, qualquer enfoque unilateral
que hiperdimensione a Tópica ou que a tome por preponderante peca
pela incompreensão do pensamento jurídico, sempre tópico-sistemático,
mercê da sua natureza de articulação complexa em que o material e o
formal estão entrelaçados. Dito de outro modo, qualquer unilateralismo
falha ao não considerar que, apenas sistematicamente hierarquizados,
os problemas dialéticos tomam-se suscetíveis de equacionamento. Su-
peram-se, apenas, as aporias, por intermédio da interpretação tópico-
sistemática.
Nesse aspecto, seria exagero, de todo inaceitável, sustentar que a
estrutura medular do sistema só poderia ser determinada pelos proble-
bém a opinião contraditória à opinião geral: a contrária seria que se devesse fazer
bem aos inimigos. (...). É evidente que todas as proposições que se harmonizem com
as artes são proposições dialéticas" (104a 5-35, pp. 10-11).
16. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , p. 247. Neste pon-
to, ainda que em enfoque diverso, concorda-se com a assertiva de Bertrand Russel:
"A Epistemologia inclui tanto elementos lógicos quanto psicológicos. Logicamente,
temos que considerar a relação inferencial (geralmente não a de dedução estrita)
entre proposições básicas e aquelas que acreditamos por causa delas; e também as
relações lógicas que geralmente subsistem entre diferentes proposições básicas,
impelindo-as, se aceitamos certos princípios gerais, para se ajustarem a um sistema
que, como um todo, reforça a probabilidade de cada um dos seus componentes; e
também o caráter lógico das proposições básicas" (in Significado e Verdade, Rio de
Janeiro: Zahar, 1978, p. 19).
~
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 157
mas. Neste sentido, em linha de princípio, a interpretação sistemática
(com os seus imperativos de sincronização) não lida, como supunha
Viehweg,17 com uma pluralidade indefinida de sistemas, cuja relação
recíproca não seria estritamente comprovável. Ao contrário, exatamente
a sua dinâmica vocação para a unidade é que toma pensável a solução
satisfatória das antinomias.
Em contrapartida, cumpre notar que Theodor Viehweg acerta ao
propor que a tarefa da interpretação consiste em criar uma concordância
que se faça até certo ponto aceitável 18 como fundamento da coincidentia
oppositorum. Também não há como negar que a eleição de prevalência
de um princípio ou de outro conserva um resíduo tópico em toda cons-
trução sistemática. 19 Todavia, ao se operar a hierarquização axiológica,
17. Topica e Giurisprudenza, cit., p. 102.
18. Idem, p. 103.
19. Idem, p. 107. Ademais/o mencionado autor esclarece que:
"Ma se poi e esatto che la Topica e la tecnica deI pensare problematico, alIora
la giurisprudenza, in quanto tecnica che serve una aporia, deve nei punti essenziali
essere conforme alIa Topica. Conseguentemente si deve poter cogliere nelIa Topica
quale sia la struttura spettante alIa giurisprudenza.
"Cerchiamo di fare cio e poniamo conformemente tre esigenze: 1. La struttura
totale delIa giurisprudenza puo esser determinata solamente daI problema. 2. Gli ele-
menti particolari delIa giurisprudenza, i suoi concetti e le sue proposizioni, dovreb-
bero restare legati aI problema in modo specifico e potrebbero percio essere intesi
solamente partendo daI problema. 3. I concetti e le proposizioni della giurisprudenza
potrebbero percio essere assunti solamente in una implicazione che resti collegata
con il problema. Deve essere evitata una implicazione di tipo diverso" (p. 113).
Exemplificou Canaris estes três pontos com extratos da doutrina civilista, nas
obras de Fritz von Hippel, JosefEsser e Walter Wilburg. Como se afirma nesta obra,
em diferença com Theodor Viehweg, não são tão duvidosas as conexões entre pen-
samento sistemático e problemático, desde que não se exagere a significação da
proposição de que a estrutura global da Ciência do Direito deva ser condicionada
pelo problema.
De salientar, por acréscimo, a propósito da Tópica, a observação de Jürgen
Habermas no sentido de que "os problemas têm sempre algo de objetivo: somos con-
frontados com problemas que vêm ao nosso encontro. Estes mesmo problemas têm
uma força definidora de situação [eine situationsdefinierende Kraft] e requerem, por
assim dizer, nosso espírito segundo a própria lógica deles. Não obstante, se a cada
instante seguissem sua própria lógica, que não teria nenhum contato com a lógica
do problema seguinte, toda nova espécie de problema puxaria nosso espírito numa
outra direção. A razão prática, que encontrasse sua unidade no ponto cego de uma
tal faculdade de julgar reativa, permaneceria uma formação [Gebilde] opaca, apenas
explicável fenomenologicamente. A unidade da razão prática pode fazer-se valer, de
maneira inequívoca, apenas no contexto interno daquelas formas comunicativas, nas
quais as condições de formação racional da vontade coletiva tomam figura objetiva"
 ~
158 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
nada há de específico na Tópica que possa opor, de modo irremediável,
o pensamento problemático ao pensamento sistemático.
Adverte Canaris que "também o pensador de problemas não deixará
totalmente fora de atenção o sistema, sob cujo pano de fundo só, em re-
gra, se pode formular claramente e resolver, por fim, o problema (...)".20
Justamente por isso, equivocado o posicionamento exacerbadamente
voltado para a Tópica, mormente se conectado à Retórica não-revisada,
dado que toma implausível uma hierarquização concatenada, uma vez
que as premissas são determinadas, também, pelo Direito objetivamente
estabelecido,21 sob pena de entropia que avizinharia semelhante concep-
ção àquela defendida - e contestada, nos seus excessos -, pela herme-
nêutica do Direito livre, cuja filosofia tende a transformar o julgador em
artífice de um impossível sistema atomizado e subjetivo, negação pura
e corrosiva da ideia de Direito como barreira contra o arbítrio unilateral.
Este unilateralismo da vontade aparece como antagônico ao Direito
e à racionalidade dialética, além de inviabilizar a coexistência das li-
berdades. Logo, impõe-se aderir à crítica que desvela a insuficiência da
Tópica perante o problema da validade e da adstringibilidade jurídicas,22
convindo, no entanto, até em homenagem à indispensável releitura aris-
totélica, distinguir Retórica e Dialética. Um tópico, no momento aplica-
tivo, não passa de proposta decisória ou de hierarquização para vencer
as antinomias, à luz do sistema objetivo, impondo-se, neste aspecto, re-
conhecer que o tópico (v.g., o critério cronológico) requer um critério
complementar e superior para ensejar a escolha entre diversos pontos
de vista. 23
O pensamento jurídico, porém, não apenas necessita da comple-
mentação do pensamento aporético, senão que marcha para além da
diferenciação da Tópica e do pensamento sistemático, identificando-os
concretamente, sem recorrer, naquela perspectiva de Kant,24 à Tópica
transcendental, doutrina que distinguiria a que capacidade cognoscitiva
pertencem os conceitos. Ou seja, o discurso jurídico, ainda que pre-
(in "Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática", Dialética e Liberdade,
Petrópolis: Vozes/UFRS, 1993, pp. 303-304).
20. Pensamento Sistemático... , p. 250.
21. Canaris, idem, p. 256.
22. Idem, pp. 256-257.
23. Idem, pp. 259-260.
24. V. Immanuel Kant in Fundamentação da Metafisica dos Costumes, São
Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 162.
~
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 159
nhe de possibilidades, somente se faz discurso coerente e racional pelo
exercício prudente do "metacritério" hierarquizador e, pois, sistemati-
zador. Tal sistematização, por assim dizer, ético-jurídica com aspiração
à universalidade,25 é claro, encontra-se aberta à variabilidade evolutiva,
o que não suprime - ao revés, confirma - a sua natureza sistemáti-
ca, ditada pela atuação do referido princípio como traço insuprimível
e constante.
Com efeito, os que não absorvem a Tópica como identificada es-
sencialmente ao pensamento sistemático criam, sem querer, uma dife-
rença de fundo inexistente, erro cometido pelos que veem o pensamento
sistemático como incapaz de considerar as questões como problemáti-
cas, como se a construção do sistema pudesse prescindir da dimensão
aporética de raciocínios fortemente impregnados de empiria. 26 Por ou-
tra parte, o reconhecimento de uma racionalidade intersubjetiva deve-
ria implicar a aceitação de um vetor sistematizante em todo raciocínio
digno do nome. Somente haverá razoabilidade e justificativa (interna e
externa)27 se, ultrapassando o aporético, o pensamento for capaz de en-
gendrar o sentido da totalidade normativa em sintonia crescente com as
exigências da racionalidade, nos moldes aqui defendidos.
Assim, afirmando-se, mais do que a mera possibilidade de comple-
mentação, uma identidade nuclear do pensamento sistemático e do pen-
samento tópic.o, bem mais promissor desponta o tratamento do delicado
tema da relação entre os princípios integrantes de um "todo aberto" e
sua efetividade, entendida esta, basicamente, como aptidão para cumprir
fins que transcendem o sistema e, de certo modo, antecedem-no, sem
25. A propósito, Thadeu Weber in Ética e Filosofia Política: Hegel e o For-
malismo Kantiano, 2ª ed., Porto Alegre, Edipucrs, 2009, após concluir, com acerto,
por uma "certa complementaridade entre Kant e Hegel", assinala à mesma p. 169:
"Contra Hegel certamente vale o argumento, segundo o qual os princípios morais
não podem ser apenas a expressão de uma determinada cultura ou uma determinada
época, mas devem ter validade universal (...)".
26. Bem observa Tércio Ferraz Júnior que os discursos decisórios ou hetero-
lógicos repousam "em questões aporéticas, diante das quais qualquer opção é ponto
de partida que pode ser ensinado (...), mas não pode eliminar outras possibilidades,
repousando sua força justamente na sua capacidade de sustentar-se no confronto
com outras possibilidades. (...). Importante é fixar que, embora condicionalmente
aporética, a racionalidade do discurso dogmático está ligada às regras que a própria
situação comunicativa estabelece" (in Teoria da Norma Jurídica, pp. 167-168).
27. Sobre a distinção entre justificação interna e externa, para ilustrar, v. Robert
Alexy in Teoria da Argumentação Jurídica, São Paulo: Landy Editora, 2005, pp.
217-273.
160 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
I ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO
esquecer o princípio da segurança jurídica, na sensata relativização com
os demais princípios. 28
Mister notar que, compreendido o sistema em sua dimensão pro-
blemática, faz-se impostergável uma intensa mudança paradigmática da
interpretação do Direito Positivo, no rumo de uma hierarquização con-
ducente à efetividade, encarada como um dos mais relevantes princípios,
que supõe a aceitação da independência relativa dos direitos fundamen-
tais em face do reconhecimento pelas leis, bem como da superioridade
normativa direta da Constituição e, ainda, da "interpretação conforme"
a emergir noutro patamar, isto é, como interpretação conformadora e,
pois, efetivadora.
Certamente sem excluir parcimoniosas reformas legislativas, que
suscitem o melhor funcionamento da estrutura subjacente à prestação
da tutela jurisdicional, é no plano da compreensão dos princípios funda-
mentais que se deve situar a mais densa e profunda das transformações
para um novo enquadramento da efetividade tópico-sistemática.
Perante as antinomias axiológicas, a fortiori, resulta evidenciado
que se tem de sobrepassar o sentido comum da eficácia e aquele outro
estritamente formal. Com efeito, a eficácia formal do sistema, stricto
sensu, pode ser traduzida como qualidade de produzir efeitos jurídicos;
ao passo que a eficácia social precisa ser vista como qualidade de o
Direito ser observado na condição de sistema aberto, revelando aptidão
para obter condutas em consonância com os comandos prescritivos, su-
perando, ao máximo, as antinomias de avaliação que minam a aceitabi-
lidade e o acatamento do ordenamento, de modo efetivo. Assim, deve-se
procurar a eficácia social como aptidão para produzir a concretização
dos princípios superiores no plano da realidade, cumprindo que, na ótica
tópico-sistemática, a eficácia signifique, como visto, a vedação do des-
cumprimento dos objetivos fundamentais da República.
Neste prisma, meditando sobre a aplicação dos princípios, observa-
se que estes possuem a aptidão operacional ou genética de facilitar a
aproximação entre o "dever-ser" normativo e o "ser" da realidade empí-
rica, especialmente em face do flagrante descompasso entre as esferas.
Como alerta Konrad Hesse, deve-se perceber que a realização da Cons-
tituição não é algo que se possa dar por suposto, ou seja, a efetividade
ou eficácia social não alcança a Constituição pelo só fato de esta existir,
sendo que sua força vital se baseia na capacidade de conexão com as for-
ças espontâneas e tendências latentes da época, bem como sua aptidão
28. V. Juarez Freitas in O Controle dos Atos Administrativos... , cit., p. 99.
T
161
para desenvolver e coordenar tais forças. Diz: "Constituição e realidade
não podem restar isoladas uma da outra. O mesmo se diga a respeito do
processo de realização".29
Precisamente nesse processo que surge, para o intérprete, a tarefa
de identificar os princípios e objetivos superiores, almejando sua con-
cretização. Dessa maneira, a interpretação tópico-sistemática tem de ser
feita em conformidade com os princípios e objetivos fundamentais, eis
que dotados de eficácia jurídica, não apenas do ponto de vista formal.
Com efeito, qualquer exacerbado fascínio pela abstração vendaria os
olhos para a solar evidência de que os princípios longe estão da "con-
cretização real". Há um veemente déficit de sistematicidade que precisa
ser combatido, porque do contrário o sistema corre perigo, fragilizado
pelo formalismo excessivo ou omissivo, que se contenta com precárias
enunciações indiferentes à imprescindibilidade da gradativa consecução
dos desideratos maiores como único meio de resguardar e de promover
a consistência do ordenamento. 3ü
Nessa ordem de ideias, sustenta-se a postura consoante a qual os
intérpretes/aplicadores devem atuar na convicção de que, nos limites da
ordem vigente, não se devem furtar da reelaboração de um todo norma-
tivo coerente e aberto. Tendo em vista o cumprimento de tal dever, de-
senredam-se de concepções excessivamente distanciadas do adequado e
efetivo embasamento axiológico. Imprescindível no ponto, como propu-
nha Karl Engisch,31 alargar os horizontes, almejando alcançar verdadeira
e abrangente compreensão sistemática, sem temer que esta compreensão
conduza à posição histórico-cultural no exercício da subsunção da lei
ao caso. De outra parte, recordando Karl Larenz,32 deve-se admitir, uma
vez por todas, que a ponderação de consequências afigura-se irrenunciá-
29. Konrad Hesse in Grundzuge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland, cit., p. 18 ("Unter dem Aspekt der Bedingungen der Verwirklichung
von Verfassungsrecht kõnnen Verfassung und Wirklichkeit also nicht voneinander
isoliert werden").
30. Convém, de passagem, trazer à colação a advertência de Miguel Reale no
sentido de que o Direito deve ser concebido "como atualização crescente de justiça,
dos valores todos cuja realização possibilite a afirmação de cada homem" (in Filoso-
fia do Direito, cit., voI. 2, p. 696), sendo que realizar o Direito é "utilizar os valores
de convivência, não deste ou daquele indivíduo, não deste ou daquele grupo, mas da
comunidade concebida de maneira concreta, ou seja, como unidade de ordem que
possui valor próprio, sem ofensa ou esquecimento dos valores peculiares às formas
de vida dos indivíduos e dos grupos" (p. 697).
31. Introdução... , cit., p. 122.
32. Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 460.
 ----,r
162 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
vel, sendo o motivo precípuo de a eficácia ser assimilada como categoria
ou elemento nevrálgico para a interpretação tópico-sistemática. 33
Não por acaso, Hans Kelsen, apesar de sua equivocada tentativa de
abstrair a ciência jurídica de todas as "impurezas" empíricas, reconhe-
ceu, sobremodo na Teoria Geral das Normas,34 a eficácia como condi-
ção de validade, oferecendo conforto à posição de que, urgente e densa-
mente, se tem de levar a cabo, a par de reformas textuais, uma alteração
de postura exegética, no sentido de prestar contributo significativo para
a efetivação do Direito como todo sistemático, designadamente de seus
princípios superiores, que vinculam o legislador e o aplicador. Em outras
palavras, não se deve aceitar que os objetivos fundamentais, os princí-
pios e os fundamentos do sistema sejam confundidos com simples dis-
posições neutralizadas e destituídas da vinculatividade direta e imediata.
Decididamente, cumpre pugnar, nos limites do sistema e semjamais
atentar contra ele, pela completa superação da teoria que vê as normas
programáticas como despidas de maior significado jurídico, esposando-
-se, ao contrário, uma visão material do dever normativo-concretizador,
não apenas dever de órgãos legiferantes, mas dos aplicadores, que ja-
mais deveriam abdicar desta função ou deste telos de dar vida ao Estado
Democrático. 35
Claro que não se quer o reino de autoritarismo dos intérpretes, mas
se postula um sistema cuja força anímica deve brotar, também e irrenun-
ciavelmente, do círculo tópico-sistemático da compreensão, unindo en-
gajamento e reflexão crítica. O Direito, a não ser assim, já não funciona
como um instrumento "racional", no sentido explicitado, de consecução
dos fins dignificadores e civilizatórios. Assumindo a identidade essen-
cial da Tópica e do pensamento sistemático, no entanto, pode-se colabo-
rar, decisivamente, para que o ser e o dever-ser tendam à aproximação,
sendo esta provavelmente a missão maior de uma salutar e madura in-
terpretação sistemática.
Do visto, convém destacar que:
a) detecta-se um conteúdo tópico em toda hierarquização, em espe-
cial quando faltam valorações jurídicas, porém a Tópica não serve ape-
nas como meio auxiliar, eis que se apresenta - à diferença do proposto
33. Esclareça-se que tal preocupação não implica adesão acrítica ao pragma-
tismo. Sobre o tema, v. Richard Posner in The Problems ofJurisprudence, p. 460.
34. P. 178.
35. Sobre o poder de o intérprete dar vida à Constituição e ao sistema inteiro,
v. o derradeiro capítulo deste livro.
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 163
por Canaris - como característica do raciocínio sistematizador, que ad-
vém da circularidade hermenêutica e da abertura cognoscitiva inerente
ao diálogo do intérprete com o sistema objetivo;
b) respeitadas as possibilidades não meramente residuais da Tópica
na interpretação sistemática, enxerga-se uma grande insuficiência das
visões unilaterais, sobretudo em função de não darem conta da unidade
dialeticamente considerada do pensamento tópico-sistemático, que pre-
cisa suplantar, não apenas incorporar, o estritamente problemático;
c) justamente por inexistir alternativa rígida entre o pensamento tó-
pico e o sistemático, o ato de combater antinomias axiológicas desvela
uma vocação integradora no pensamento sistemático.
Posto isto, o modelo para dar conta da referida identificação essen-
cial vem a ser o da dialética tensão entre abertura e unidade que expunge
antinomias, pressupondo que o positivado e o transcendente conteúdo
principiológico sejam impliGada e reciprocamente constitutivos. Toda
interpretação jurídica que deixar de ser tópico-sistemática perderá a
conexão com a realidade - compreendida fora do dogmatismo deduti-
vista-axiomático. Tal perspectiva dialética, por mais realista e prática,
deve nortear e presidir a subsunção do Direito como sistema, sem que
se afirme o nexo jurídico como apenas positivado, eis que a lógica for-
mal ou "sistêmica" e a argumentação material ou sistemática, no senti-
do proposto, imbricam-se. A compreensão operacional da interpretação
sistemática induz a acolhida da vertente hermenêutica que se impõe às
pesquisas de modo dedutivista-axiomático, sem sucumbir a fundamen-
tações exclusivamente aporéticas.
7.3 Paralelo entre a aludida identidade essencial e a convergência
viável entre a hermenêutica filosófica e a crítica das ideologias
Assumir o pensamento sistemático e a Tópica como facetas indis-
sociáveis favorece um enfoque conciliador entre a hermenêutica filosó-
fica e a crítica das ideologias. Com efeito, na seara jurídica desdobra-se
a polêmica entre Habermas e Gadamer. 36 Este último alveja a compreen-
são no círculo hermenêutico. 3?
36. V. Hans-Georg Gadamer in Wahrheit und Methode, cit., 1990. Diz, a pro-
pósito da hermenêutica jurídica (p. 334), que: "O caso da hermenêutica jurídica não
é, em verdade, um caso especial, mas está capacitado para devolver à hermenêutica
histórica todo o alcance de seus problemas e reproduzir a velha unidade do proble-
ma hermenêutico, na qual o jurista e o teólogo se encontram com o filólogo" ("Der
Fall der juristischen Hermeneutik ist also in Wahrheit kein Sonderfall, sondem er ist
.
! .
 ~
A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
164
geeignet, der historischen Hermeneutik ihre volle Problemweite wiederzugeben und
damit die alte Einheit des hermeneutischen Problems wiederherzustellen, in der sich
der Jurist und der Theologe mit dem Philologen begegnet").
37. Como resta incontroverso, Gadamer e seu Wahrheit und Methode não exis-
tiriam para a Filosofia sem Heidegger e seu Sein und Zeit. Antes de Gadamer, foi
Heidegger quem transformou a fenomenologia transcendental de Husserl em uma
fenomenologia hermenêutica (v. Otto Põggeler in Heidegger und die hermeneutis-
che Philosophie, Freiburg/München: Alber, 1983). Verdade que Husserl costuma-
va afirmar que "a fenomenologia somos eu e Heidegger, e mais ninguém" ("Die
Phãnomenologie, das sind ich und Heidegger, sonst niemand"). Todavia, travando
contato com a Hermenêutica, primeiro em seus estudos de Teologia, e tempos de-
pois em suas leituras de Dilthey (este último leitor de Schleiermacher), Heidegger,
ao contrário de Husserl, fez uma hermenêutica da faticidade, mostrando que, de
certa forma, o sentido que se revela em qualquer interpretação já a precede, atu-
ando, por assim dizer, como seu pressuposto ou condição de possibilidade. Ten-
do em vista que o sentido já integra e adere ao "ser-aí" (Dasein), o que se nota é
que o intérprete desde sempre carrega o sentido que busca, explicitando, assim, o
movimento circular da compreensão hermenêutica. Em outras palavras, partindo da
"pré-estrutura" (Vorstruktur) existencial do "ser-aí" (Dasein), Heidegger chama esse
fenômeno de "círculo hermenêutico", na justa medida em que "a interpretação de
algo enquanto algo funda-se, essencialmente, em uma posição prévia, visão prévia
e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isen-
ta de pressuposições" ("die Auslegung von Etwas wird wesenhaft durch Vorhabe,
Vorsicht und Vorgriff fundiert. Auslegung ist nie ein voraussetzungsloses Erfassen
eines Vorgegebenen" - Sein und Zeit, Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1963, p.
150). Heidegger, entretanto, antecipando-se à clássica crítica dos lógicos, apressa-
se em negar a esse círculo o diagnóstico de um circulus vitiosus (p. 152), alertando
para a circunstância de que "tomar esse círculo por um vício, buscar caminhos para
evitá-lo, ou mesmo 'experimentá-lo' como imperfeição inevitável, equivale a um
mal-entendido fundamental acerca do que é compreensão" ("... in diesem Zirkel ein
vitiosum sehen und nach Wegen Ausschau halten, ihn zu vermeiden, ja ihn auch nur
aIs invermeidliche Unvollkommenheit 'empfinden', heisst das Verstehen von Grund
aus missverstehen" - p. 153). Foram manifestações como essas que, mais tarde,
auxiliaram Gadamer no idêntico esforço de descrever o círculo hermenêutico, afas-
tando a ideia de que se trataria de um "círculo metodológico", dotado de "natureza
formal" iformaler Natur - Wahrheit und Methode, cit., 1990, p. 298). Para Gadamer,
em confluência com Heidegger, o círculo "não é nem subjetivo, nem objetivo" ("er
ist weder subjektiv noch objektiv" - p. 298), mas, antes, cuida-se de um círculo que,
forjado na "pré-compreensão" (Vorverstandnis), antecede e viabiliza tudo quanto
possa ser considerado, em uma dada situação, como subjetivo ou objetivo. Sobre o
tema, v., entre outros: Hans-Georg Gadamer in Wahrheit und Methode, cit., 1990;
Jean Grondin in Einführung in die philosophische Hermeneutik, Darmstadt: Wis-
senschaftliche Buchgesellschaft, 1991; Emst Tugendhat in Selbstbewusstsein und
Selbstbestimmung, Frankfurt: Suhrkamp, 1991, e "The fusion of horizonts", Times
Literary Supplement, 19.5.1978, p. 565; Paul Ricoeur inDu Texte à l'Action. Essais
d'Herméneutique 11, cit., 1986, La Métaphore Vive, Paris: Seuil, 1975, e Temps et
Récit, Paris: Seuil, 1983-1985; Otto Põggeler in Der Denkweg Martin Heidegger,
München: Günther Neske Pfullingen Verlag, 1963; e Richard Palmer in Hermenêu-
tica, 1986.
1
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 165
Em tal visada, o ato de compreender traria como pressuposta uma
pré-compreensão, circunstância pela qual adamer sustenta a universa-
lidade da Hermenêutica, porque a descoberta da pré-estrutura subja-
cente38 implicaria uma abertura traduzida pela relação entre o conjunto
das proposições com o conjunto das posições veiculadas pelo outro ou
pelo texto. Assim, a pré-compreensão ou o preconceito seria apenas um
juízo estabelecido em fase anterior aos momentos objetivamente deter-
minantes. É certo que Gadamer exagera na proposta de reabilitação da
autoridade e da tradição, mas resulta bem orientada a sua afirmação de
que a autoridade das pessoas encontra seu fundamento último num ato
de reconhecimento e de conhecimento, não de submissão, sendo esta a
única autoridade a tomar como legítima e raciona1. 39
A ideia de situação hermenêutica conduziu-o ao aludido conceito
de horizonte, o qual seria o campo de visão que encerraria todo o visível
num determinado ponto, reconhecendo horizontes não ditos de sentido.
Deste modo, "ganhar um horizonte" seria aprender a ver mais além do
que está perto, integrando-o num todo maior. 4o Gadamer logra relativo
êxito em recuperar o problema hermenêutico fundamental, qual seja, o
38. Hans-Georg Gadamer in Wahrheit und Methode, cit., 1990, pp. 270 e ss.
39. A importância do texto pede a palavra: "Se há preconceitos justificados
e que podem ser produtivos para o conhecimento, o problema da autoridade volta,
então, a nos confrontar. (...). Mas a autoridade das pessoas não tem seu fundamento
último em um ato de submissão e de abdicação da razão, mas em um ato de reco-
nhecimento e de conhecimento - reconhecimento mesmo de que o outro encontra-se
acima de nós em juízo e perspectiva e que, por isso, seu juízo precede, tem primazia
em relação ao nosso próprio" ("Wenn es auch berechtigte und für die Erkenntnis
produktive Vorurteile gibt, kehrt das Problem der Autoritãt für uns wieder. ... Die
Autoritãt von Personen hat aber ihren letzten Grund nicht in einem Akte der Unter-
werfung und der Abdikation der Vemunft, sondem in einem Akt der Anerkennung
und der Erkenntnis - der Erkenntnis nãmlich, dass der andere einem an Urteil und
Einsicht überlegen ist und dass daher sein Urteil vorgeht, d. h. vor dem eigenen
Urteil den Vorrang hat" - Wahrheit und Methode, cit., 1990, p. 284). Todavia, Ga-
damer, para evitar leituras desgarradas, cuida de acrescentar: "(...) autoridade não
se outorga, adquire-se" ("... Autoritãt nicht eigentlich verliehen, sondem erworben
wird..." - p. 284).
40. Como salienta Gadamer, "ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender
a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão
que, precisamente, para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões
mais corretos" ("Horizont gewinnen meint immer, dass man über das Nahe undAll-
zunahe hinaussehen lemt, nicht um von ihm wegzusehen, sondem um es in einem
grõsseren Ganzen und in richtigeren Masse besser zu sehen" - Wahrheit und Metho-
de, cit., 1990, p. 310). Aliás, Heidegger já notara que os elementos constitutivos de
um texto sempre eram assimilados com base em um sentido prévio.
166 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
I ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO
da aplicação do texto à situação atual do intérprete, indo ao ponto de
asseverar, no tocante à hermenêutica jurídica, não estar tão distanciada
da hermenêutica espiritual-científica. 41 Apesar desse mérito, sucumbe,
em parte, à ideia de mera subsunção sentencial,42 quiçá por não ter per-
cebido, com toda a amplitude, que a interpretação jurídica, pensada nos
termos aqui descritos, mostra-se apta, seja para a colmatação das lacu-
nas, seja para fazer frente à necessidade de dirimir outros conflitos entre
regras ou princípios.
Antes do cotejo com Habermas, não há como deixar de registrar,
de passagem, a crítica de Betti43 ao projeto gadameriano do significa-
do, além de considerar injustificável a demasiada ênfase à ontologia da
compreensão. Na realidade, com alguns ajustes na formulação dos câ-
nones de Betti,44 as duas posições operam apenas em diferentes aspectos
do mesmo problema hermenêutico,45 apesar de não se ignorar o risco
dos excessos de pretensão objetivista da interpretação jurídica,46 algo
sublinhado em nosso capítulo de ilustração do pensamento sistemático.
De sua vez, Habermas,47 em aparente contraposição à hermenêutica
filosófica gadameriana, propõe a universalidade do método dialético, ao
entender que o poder adquire permanência somente pela não-violência,
proclamand048 que a consciência hermenêutica destrói a autocompre-
ensão objetivista das tradicionais ciências do espírito. Admite: "Para
a interpretação [Deutung] de hermenêutica profunda não há nenhuma
41. Wahrheit und Methode, cit., 1990, p. 330: "Se isso é assim, então a dis-
tância entre a hermenêutica espiritual-científica e a hermenêutica jurídica não é tão
grande como em geral se costuma supor" ("Wenn das so ist, dann ist der Abstand der
geisteswissenschaftlichen Hermeneutik von der juristischen Hermeneutik nicht so
gross, wie man im alIgemeinen annimmt").
42. Idem, p. 335.
43. Die Hermeneutik ais allgemeine Methodik der Geisteswissenschaften, Tü-
bingen: J. C. B. Mohr, 1962.
44. Entre os mencionados cânones de Betti, apenas o da autonomia do objeto é
que não combina, por inteiro, com a nossa abordagem; mas os outros, com pequenas
alterações, especialmente o segundo e o terceiro, são confluentes. V. o capítulo da
ilustração no campo do Direito Público, quando o tema será retomado.
45. V. Richard Palmer in Hermenêutica, p. 68.
46. V. Emilio Betti in Teoria Generale della Interpretazione, cit., 1995, voI. 2,
pp. 801-802.
47. Der Universalitat der Hermeneutik (Zur Logik der Sozialwissenschaften),
FrankfUrt: Suhrkamp, 1982,pp.337-338.
48. Idem, p. 337: "Das hermeneutische Bewusstsein zerstõrt das objektivistis-
che Selbstverstandnis der traditionelIen Geisteswissenschaften".
167
confirmação fora da autorreflexão que sucede no diálogo, realizada por
todos os participantes interessados. (...). Talvez sob as atuais circuns-
tâncias seja mais urgente apontar para os limites da falsa pretensão de
universalidade da crítica do que para os da pretensão da universalidade
da Hermenêutica".49 Realça, no entanto, sua diferença básica com Ga-
damer, ao salientar que este não teria percebido que, na dimensão do
evento da tradição, precisa ser pensado como já mediado aquilo que,
segundo a diferença ontológica, não seria capaz de uma mediação, vale
dizer, as estruturas linguísticas e as condições empíricas.50
Ora bem, como agudamente diagnosticou Bubner,51 Habermas e
Gadamer representam dois polos da mesma reflexão, de maneira que a
Crítica e a Hermenêutica devem ser vistas como mutuamente constitu-
tivas, nunca antagônicas. Assim, mutatis mutandis, outro tanto se pode
cogitar a respeito da identidade essencial do pensamento sistemático e
do pensamento tópico, porque, sem desconhecer a radicalização ontoló-
gica da interpretação tópico-sistemática, inegável que uma abordagem
mais rica acontece numa (re)construção capaz de absorver as possibili-
dades da compreensão superadora de objetivismos e de aporias.
O "metacritério" de hierarquização axiológica apresenta-se como
um resultado vivo da necessidade de fazer preponderar tanto o logos crí-
tico como o logos tradicional, de molde a encontrar a melhor universa-
lização sistemática no caso concreto, vale dizer, topicamente. Claro que
a assunção desse critério somente se apresenta factível quando se vê que
o processo de compreensão requer participação na práxis comunicativa,
sem neutralidade axiológica, dado que o próprio anelo de universali-
zação, a despeito de objetivo, pressupõe a subjetivação do intérprete,52
marcadamente ao lidar com as antinomias jurídicas.
49. Idem, p. 336: "Für die tiefenhermeneutische Deutung gibt es keine Bestati-
gung ausser der im Dialog gelingenden, volIzogenen Selbstreflexion alIer Beteilig-
ten. (...). VielIeicht ist es unter den gegenwartigen Umstanden dringlicher geboten,
auf Grenzen des falschen Universalitatsanspruchs der Kritik aIs auf die des Univer-
salitatanspruchs der Hermeneutik hinzuweisen".
50. Jürgen Habermas in "Sobre verdade e método de Gadamer", Dialética e
Hermenêutica, Porto Alegre: LPM, 1987, p. 24.
51. "Philosophie ist ihre Zeit, in Gedanken erfasst", Hermeneutik und Dialetik,
voI. I, Tübingen: 1. C. B. Mohr, 1970, pp. 317-342.
52. Faz tempo, Carlos Maximiliano (in Hermenêutica e Aplicação do Direito,
cit.) assinalou que o intérprete realiza a tarefa de "subjetivar a regra objetiva" (p.
14), podendo a lei "ser mais sábia do que o legislador" (p. 22), mas cumprindo ao
exegeta, "acima de tudo, desconfiar de si" (p. 104). E recomenda: "Faça-se justiça,
168 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Do exposto, parece esclarecedora e sugestiva a analogia entre a
conciliação da hermenêutica filosófica e a crítica das ideologias com a
identificação entre os pensamentos sistemático e tópico. Esta analogia
serve ao propósito de fundo desta obra, a saber, o de reformular os con-
ceitos de sistema jurídico e de interpretação sistemática, evoluindo, sob
vários aspectos, em relação a Canaris. Para este, seria pressuposto da
praticabilidade do pensamento sistemático uma estrutura caracteristica-
mente dotada de ordem e de unidade,53 desenvolvida, funcionalmente,
numa abertura que não contraditaria a aplicabilidade desse pensamento,
nem negaria que o argumento sistemático representa forma especial de
fundamentação teleológica, que aspira à mais alta categoria entre os cri-
térios hermenêuticos. 54
O próprio Canaris - sem as inferências que aqui se procuram fixar,
e em que pese considerar a Tópica como simples passo para a determina-
ção sistemática - anda na boa senda de que a oposição não é excludente.
Contudo, não avança para asseverar que a dimensão tópica ou proble-
mática faz-se uma presença inafastável em toda construção sistemática,
especialmente ao se tratar de antinomias entre os princípios, abertos e
finalísticos por definição.55
Assim, a essencial identidade do pensamento sistemático e da Tópi-
ca, bem assimilada, oferece fundadas razões para reiterar que o Direito
não pode ser somente forma, sob pena de perecer com ela. O intérprete
não deve cerrar os olhos à imposição de hierarquizar axiologicamente,
pois seu trabalho precisa ser traduzido como harmonização dos múlti-
plos conteúdos da vontade jurídica, ciente de que nunca haverá intersec-
ção plena entre o sistema aberto e o positivado, sobremodo por não se
conceber a exegese como estaticamente realizável.
Nessa trilha, não se deve hipertrofiar o traço de limitação das or-
dens axiológicas, no tocante às possibilidades de correspondência e de
porém do modo mais humano possível, de sorte que o mundo progrida, e jamais
pereça" (p. 169).
53. V. Claus-Wilhelm Canaris in Pensamento Sistemático... , p. 279.
54. Idem, pp. 281-287.
55. Fora de dúvida, a propósito, afigura-se este como um dos motivos que
nos levam a concluir que todas as contradições deveriam ser equacionadas, mesmo
aquelas entre normas estritas ou valores, também como conflitos principiológicos,
no escopo de, sobretudo no campo da assim chamada Ciência do Direito, melhor se
desincumbir o intérprete da tarefa tópico-sistemática, uma vez que, em cada caso,
hierarquizar adequadamente os princípios afigura-se como a mais elevada missão de
uma exegese que se queira efetivamente sistemática.
.~
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 169
sintonia com as mais altas aspirações de Estados Democráticos, convin-
do ressaltar que inexistem condutas irrelevantes à luz do Direito Posi-
tivo. Afinal, o Direito não pode ser separado, por inteiro, da esfera de
exigências tópicas, sendo, como é, um sistema que visa a ordená-las. Por
esse motivo, a lógica formal jamais será suficientemente sistemática,
nada obstante o mérito de uma meta purificadora da linguagem.
Com efeito, a lógica dos raciocínios jurídicos não se circunscreve
à mera adequação, em nenhuma área. Quando se discutem as contem-
porâneas funções da norma jurídica, inegável que, independentemente
da simpatia maior por esta ou por aquela escola, a interpretação guar-
dará margem de temperamento, inclusive porque não se cogita de sub-
sunção pura e simples de uma ideia ou de uma premissa monolítica.
Como sublinhado, a lógica jurídica não configura apenas uma técnica
do pensamento aporético ou problemático. Justamente em sua dimensão
também tópica, o pensamento sistemático apresenta o condão de vencer
o cômodo vício reducionista, em nada eficaz para dar legitimidade às
decisões judiciais.
O intérprete, sem esquecer do sistema, nem decidir contrariamente
a seus comandos superiores, deve argumentar, numa scala de observân-
cia dos objetivos fundamentais da República, compenetrado de que vi-
sões estritas de cunho normativista restam antijurídicas, porque a inter-
pretação não ocupa jamais um papel secundário, numa sistematicidade
racionalmente fundamentada.
A interpretação jurídica não é exterior ao próprio objeto, motivo
pelo qual se tem como insustentável a jurisprudência dos conceitos, for-
mal e fria. Dito em outros termos, numa adequada visão sistemática, o
positivado e a vida são reciprocamente constitutivos, havendo que se
rejeitar o pôr entre parênteses dos fatos e da concreção axiológica. Rei-
tere-se: a lógica formal e a lógica material estão imbricadas no próprio
ato de argumentação valorativa, de modo que se deve asseverar, como
se fez noutro momento: importa ao intérprete que a razão dialética, ao
superar a relação sujeito-objeto, esteja vinculada, para valer, à aplicação
normativa dos princípios transdogmáticos presentes no topo da esfera
legal, a saber, na Constituição. 56
56. V. Juarez Freitas in A Substancial Inconstitucionalidade da Lei Injusta, cit.,
pp. 51-58. À luz dessa visão tópico-sistemática resulta mais inteligível o modo de
solver o tema das antinomias.
De outra parte, assiste razão a Canaris (in Die Feststellung von Lücken im Ge-
setz, Berlin: Duncker & Humblot, 1964) quando assinala que ali onde o Direito em
vigor não exige uma regulamentação não existiria lacuna, mas, quando muito, um
 ~
170 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
erro de caráter tipicamente político, somente havendo esta como imperfeição da lei
no quadro do sentido possível de suas palavras e do direito habitual, medida segundo
a escala da ordem jurídica global em vigor. Certamente, por ordem em vigor, vai-se,
neste caso, além da teleologia imanente aos comandos normativos e inclusive dos
princípios e valores jurídicos gerais para alcançar a compreensão total do âmbito da
decisão jurídica praeter legem (pp. 197-198).
A constatação de lacunas na classificação de Canaris obedece várias etapas.
A constatação mais simples de uma lacuna é, numa tradução inicial, "aquela decor-
rente das disposições do Direito Positivo - seja a partir de uma norma, seja a partir
da interação de várias regras. A isso pertencem principalmente as 'lacunas abertas
da norma', às quais é de todo impossível aplicar uma determinação legal, sem a
complementação das mesmas, mas também uma série de 'lacunas de regulamen-
tação', especialmente na falta de regras no âmbito de um processo legal, falta de
uma sanção numa lex perfecta ou as 'lacunas de colisão' lógica e teleológica. Como
característica comum, foi salientado que, nesse caso, o juiz sempre se vê defrontado
com a escolha entre a recusa de decidir e a complementação da lei; portanto no final
é a proibição da recusa que obriga, nestes casos, ao aperfeiçoamento jurídico" (pp.
198-199).
Uma segunda etapa, em termos de constatação de lacuna, diz com as disposi-
ções subjacentes à avaliação isolada da lei. Estas "são significativas, especialmente
em ligação com as disposições de igualdade - positiva e negativa. Neste contexto,
ficou evidenciado que a delimitação da lacuna e do erro muitas vezes só pode ser
executada com o auxílio do termo de analogia ou de um argumentum a fortiori e
que estes - na literatura e na jurisdição - somente podem ser vistos no âmbito dos
processos de preenchimento da lacuna mencionados, portanto também como meios
de constatação de lacunas. O mesmo é válido para a redução teleológica, a qual pode
ter como consequência tanto a complementação de uma norma para determinados
casos especiais, por meio do acréscimo de uma regra de exceção (lacunas ocultas de
regulamentação), bem como a restrição de uma regra à área total de sua aplicação
(lacunas ocultas de norma). No primeiro caso, a disposição de igualdade negativa
exige o aperfeiçoamento jurídico; no segundo, a ratio legis demanda uma regra,
imediata à sua restrição, já que seu teor é tratado muito amplamente frente a seu
sentido. Se, pelo contrário, o teor de uma regra for muito limitado para sua área
global de aplicação - e não só para um grupo de casos juridicamente semelhantes - a
ratio legis demanda sua ampliação; aqui se pode falar em expansão teleológica, a
qual também deve ser reconhecida como meio de constatação da lacuna" (p. 199).
Por igual, no que conceme aos princípios jurídicos gerais e valores jurídicos, podem
ser um critério na constatação da lacuna (pp. 199-200), sendo descartada a dife-
renciação de Zitelmann entre lacunas verdadeiras e falsas, embora possam existir
as conscientes e as inconscientes e a diferenciação própria consoante o critério da
constatação, daí resultando as lacunas dispositivas e de recusa judiciária, a par das
teleológicas e as mencionadas de princípio e de valor. Constatação e preenchimento,
aliás, que não são necessariamente dois processos separados, sobretudo no caso das
lacunas teleológicas (p. 201). Diz Canaris: "No caso das lacunas de princípio e de
valor, a constatação e o preenchimento da lacuna não deixam de ser dois processos
separados, que se encontram, entretanto, íntima e estritamente relacionados: o prin-
cípio familiar à constatação da lacuna também indica a via do preenchimento, mas
ainda necessita da 'concretização'. Esta se dá por meio da classificação dogmática
no sistema do Direito em vigor e por meio de um ajustamento com as disposições e
~
ESSENCIAL IDENTIDADE DO PENSAMENTO SISTEMÁTICO 171
Releva atravessar a consciência passiva e aética diante das leis, per-
cebendo-se o fenômeno jurídico dialeticamente, no bom sentido.
A todas as luzes pelas quais se examine a identidade essencial do
pensamento sistemático e da Tópica, a mais relevante conclusão resi-
de em que convivem variadas soluções no bojo do sistema jurídico e
a partir dele devem ser procuradas, numa perspectiva que, certamente,
não afasta a necessidade de aprimoramentos de lege ferenda. Mas de-
senganadamente conduz à visão de que o Direito Positivo é, antes de
tudo, um sistema aberto e completável topicamente, com todas as sérias
consequências que daí advêm, inclusive para a colmatação de lacunas e
para a justificação das decisões tomadas.
Mister reiterar que, respeitadas as possibilidades não meramente
residuais da Tópica, na interpretação sistemática - especialmente no
combate às antinomias em sentido lato - constata-se a cabal insuficiên-
cia das visões unilaterais, sobretudo em função de não darem conta da
unidade dinamicamente considerada do pensamento jurídico. Por tudo,
justamente por inexistir uma exclusão rígida entre o pensamento tópico
e o sistemático, toda e qualquer modalidade de interpretação tópico-sis-
temática bem-sucedida denota uma vocação integradora.
valorizações isoladas da lei. Na medida em que a analogia encontra aplicação aqui,
ela preenche uma 'função normatizadora': muitas vezes é ela que, dentre as várias
soluções possíveis a partir do princípio, decide a favor de uma solução em especial"
(p. 202). Na ótica aqui advogada, somente uma visão tópico-sistemática, que inclua
o aludido princípio da hierarquização axiológica como "metacritério", revela-se ca-
paz de explicar o funcionamento da analogia no caso em tela.
Quanto aos limites do preenchimento da lacuna e da decisão praeter legem, no
/' dizer de Canaris, resultariam ou da impossibilidade nos casos sobretudo de lacunas
de recusa, ou da vedação em face da proibição da analogia necessária. No caso, to-
davia, das lacunas teleológicas, em compasso com o aqui sustentado, reconhece que
a hipótese de não serem preenchíveis é impensável, devido à unidade da constatação
e do preenchimento das lacunas. (p. 202). No caso das lacunas de princípio e de
valor, admite a possibilidade teórica de surgirem lacunas não-preenchíveis, quando
não puderem ser encontradas as determinações técnico-jurídicas necessárias à con-
cretização (p. 203), ao passo que uma visão tópico-sistemática faz ver que também
aqui a impossibilidade inexiste em face do princípio da hierarquização axiológica,
razão pela qual, sequer excetuando os casos da impropriamente denominada lacuna
de recusa, pensa-se que todas as lacunas são colmatáveis no bojo do sistema.
......,c

8 CAPÍTULO

CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES

PARA UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO
SISTEMÁTICA DO DIREITO

8.1 Pressupostos gerais de uma adequada interpretação sistemática. 8.2

Diretrizes de interpretação tópico-sistemática.

8.1 Pressupostos gerais de uma adequada interpretação sistemática

Antes de passar ao momento ilustrativo - tema dos próximos capí-
tulos -, parece conveniente consolidar os pressupostos e as diretrizes de
uma adequada interpretação sistemática. Com efeito, no modelo propos-
to para dar conta da mútua constituição entre o pensamento sistemático e
a Tópica constatou-se a dialética tensão entre abertura e unidade tenden-
te a expungir as antinomias e a colmatar lacunas (modalidades especiais
de antinomias).
Levando em consideração tal constituição mútua, o intérprete siste-
mático deve fazer as vezes de catalisador dos melhores princípios, obje-
tivos e valores num dado contexto. Orientado por urna apropriada visão
sistemática e sem hiperbolismo, há de prevenir ou remediar as antino-
mias axiológicas. Estará atento à emergência das funções normativas
contemporâneas, no escopo de oferecer, nos limites da ordem vigente, as
soluções mais compatíveis, sem excluir ou usurpar o papel do legislador.
Deve assumir a crença no Direito de um modo não-ingênuo, mas
compenetrado de que o sistema é o melhor caminho para urna convivên-
cia ordenada, fecunda e equitativa. Ainda que perceba que os problemas,
não raro, situados estejam no próprio sistema - mais do que nos exege-
tas ou aplicadores -, há de ter corno irrefutável o caráter conformador/
constitutivo característico do trabalho exegético, sentindo-se relevante
e crucial para a melhor ou para a pior concretização. Nesse sentido, o
intérprete precisa ser menos passivo do que o exegeta obliterado por
paradigmas tradicionais que se pretendem impor, despoticamente, ao

~
 '~
174 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
julgador: paradigmas que insistem na identificação entre direitos e leis,
como se os preceitos fundamentais não desfrutassem, no núcleo essen-
cial, da eficácia imediata.
Ademais, o intérprete tópico-sistemático deve aprender a minimi-
zar os riscos de uma atitude desencorajada e simplesmente reativa, lenta
e "burocrática", na acepção nefasta do termo. Sob o estímulo da com-
preensão do sistema como uma rede interativa em lugar de codificação
cerrada, há de assimilar a capital importância de não se restringir a méto-
dos isolados de interpretação, já que o plexo de objetivos fundamentais
do Direito é que deve presidir o processo da compreensão sináptica dos
dispositivos, inclusive das normas mais singelas.
Mister, portanto, que a articulação/renovação do sistema seja efe-
tuada, respeitados limites, com atenção aos efeitos do processo herme-
nêutico dialético-positivador, pois os objetivos fundamentais não podem
ser desconsiderados quando, sem prejuízo da inafastável fundamenta-
ção, buscam-se meios mais eficientes e eficazes para administrar a pres-
tação da reconciliadora justiça, sistematicamente orientada.
Indispensável, ainda, acentuar que os princípios e as regras (para
reiterar distinção-chave neste livro) como que competem entre si, hie-
rarquizando-se uns em face de outras, sempre teleologicamente, numa
espécie de variabilidade evolutiva. Redefinida, a partir daí, a missão do
intérprete, força empregar as suas melhores energias para promover a
perfectibilização do sistema - nunca inteiramente concluída - como ver-
dadeiramente endereçada à formação de um todo coerente e unitário.
Deve - o intérprete sistemático - reconhecer que, além da boa in-
tervenção volitiva, a irrenunciável melhor exegese depende de uma fo-
calizadora e acertada orientação finalística, já que imperativo não abdi-
car jamais de uma perspectiva solidária do conjunto dos princípios, das
regras e dos valores. Os integrantes do sistema hão de ser vistos como
interdependentes e hierarquizáveis, com a maior qualidade possível,
consoante a inevitável utilização do referido "metacritério" da hierar-
quização axiológica na circularidade hermenêutica.
É certo que uma qualificada interpretação sistemática não resolve
todas as perplexidades, porém se evidencia como o melhor modo de
enfrentá-las. O intérprete estrutura, convém reiterar, uma cena de nor-
mas estritas, princípios e valores como que disputando a primazia ou
a prevalência. Tal deve fazê-lo reconhecer nitidamente o quanto há de
inovador e ativo (sem cair em protagonismo abusivo) na hierarquização
pertinente, não raro silenciosa, mas nem por isso menos perceptível.
~
CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES 175
o sistema, em sua abertura, não prospera senão no intérprete em
sua idêntica abertura e vocação para positivar, em definitivo, o Direito.
Ao se tomar algo impessoal, perante a autonomia parcial do texto, sem
hipóstase e na realidade, o intérprete, no ato de compreender o estatuí-
do em determinado contexto evolutivo, dele, paradoxalmente, liberta-se
para auxiliá-lo.
Desvenda-se, assim, o sistema, em larga medida, na mesma pers-
pectiva dos que o veem como produto interpretativo. Com efeito, afu-
gentando arbitrariedades e preferências de cunho subjetivo não-univer-
salizável, é o intérprete que alcança transcender, inclusive no campo dos
efeitos inicialmente pretendidos, o Direito dado. Em outras palavras, um
sistema somente será racional (e, portanto, sistema) se afinado com a
racionalidade aberta que o produz e o engendra (vitalizado, por assim
dizer, na circularidade com o intérprete). No entanto, a logicidade dialé-
tica da constituição do sis~ema sucumbe toda vez que o exegeta resolve
substituí-la por seus desejos egocêntricos, ou, o que dá no mesmo, por
seus caprichos.
Só em termos, pois, deve-se asseverar que o sistema existe pela
decisão do intérprete. Incontestável, contudo, que a ele compete, em vez
de deixá-lo entregue à dormência, encaminhá-lo à expansão aperfei-
çoadora, assim como emprestar-lhe fundamento evolutivo em lugar de
inviabilizar os pressupostos necessários para a sua continuidade trans-
formadora.
Consolidadas essas ideias, o intérprete - quando bem assimila o
processo da exegese sistemática - enxerga na racionalidade uma espécie
de libertação do fragmentarismo, isto é, percebe que deve preferir so-
luções integradoras no bojo do sistema, gerando Direito e não violação
dele. Partilha do reconhecimento das diretrizes válidas para um qualifi-
cado processo que há de se fazer respeitador dos limites e deveres insti-
tucionais de produção da juridicidade, por intermédio da compreensão
aplicadora.
Não por acaso, buscará uma exegese em consonância com tais di-
retrizes, resolvendo - se possível, prevenindo - as aporias desde uma
lógica dialética, marcada pela aludida tendência de conjugar a vocação
atualizadora e evolutiva com a função antecipatória, definindo qual ha-
verá de ser o princípio decisivo, no caso, tendo em vista a articulação
suscitada pela visão sistemática do Direito.
Tem o consciente intérprete sistemático a missão maior de pautar as
suas escolhas por fundamentações formais e qualitativas que, não raro,
 ~
176 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
devem elasticamente, para honrar o sistema, tomar em consideração
aquilo que ele não conseguiu prever, indo ao cerne da sua "vontade" ou
da sua racionalidade interna (em sentido distinto, está claro, do cogito
cartesiano).
Pelo visto, uma de suas primaciais metas reside em se libertar das
algemas arcaicas, notadamente aquelas relacionadas às funções antigas
do Direito, entendendo-as como focos irradiantes no manejo da hierar-
quização. A mentalidade certa, em lugar da aplicação cega e subservien-
te, passa a ser a da observância crítica das funções presentes e dos obje-
tivos fundamentais da República. Por suposto, no sistema precisam ser
buscadas, sem escapismo, as soluções, em vez de se transferir a equação
das aporias para remotas ou incertas fontes.
Assim, incentivado pela preferência por soluções que não sejam
apenas ad hoc, o intérprete sistemático deve cogitar da universalização
tópico-sistemática (isto é, hermenêutica e dialética), ciente de que cada
escolha sua deve traduzir uma espécie de máxima a ser expandida sem
se contradizer, sob pena de colocar em perigo a unidade sistemática.
Deve perceber que as mudanças, autorizadas expressa ou implicitamente
pelo ordenamento, mostram-se inelutáveis à proporção que se ampliam
os horizontes originalmente vislumbrados pelo legislador, por mais que
este tenha sido capaz de antever situações.
O intérprete sistemático lúcido, nesse passo, deixa de lado as ma-
neiras obsoletas de cumprir a sua tarefa e, desde uma nova compreensão
epistemológica, percebe que a hierarquização somente experimenta sen-
tido quando visa a corresponder a diretrizes ético-jurídicas superiores e
impessoais. O reconhecimento do sistema normativo como subordinado
a princípios e objetivos fundamentais amplia o cuidado de uma interpre-
tação bem encetada, isto é, sem arbitrariedade. Permite, ainda, conferir
ao sistema a estabilidade necessária para que sejam absorvidas as trans-
formações, pois em clima de completa insegurança, como é cediço, a
resistência ao novo aufere intensidade.
Superando as contraposições inevitáveis dos valores jurídicos, o in-
térprete sistemático deve ser aquele que hierarquiza sem restar jungido
às hierarquias dadas, no diálogo maduro com os textos normativos e
os casos. Não lhe cabe impor-se o sistema, mas erguê-lo mediante hie-
rarquizações crescentes para a outorga de maior eficácia "orgânica" ao
todo.
De outra parte, justamente nessa trajetória contínua, cumpre notar
que a preocupação excessiva com resultados pode inviabilizar os pró-
~
CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES 177
prios resultados. No entanto, nunca deve desistir de estratégias que sus-
citem resultados sintonizados com as finalidades requeridas pelo caso e
pelo sistema objetivo, assim como se encontram consubstanciadas, ex-
pressa ou implicitamente, na Constituição.
Ciente de que essa atividade há de ser eminentemente racional -
recordando que se considera, nessa altura, assimilado o novo paradig-
ma de racionalidade -, o intérprete sistemático precisa contribuir para o
reforço da ideia de que, para além das antinomias em sentido amplo, a
proporcional aplicação dos comandos legais requer a constante preser-
vação da totalidade constitucional (mais do que legal).
Deve, nesse horizonte, conferir alma ao sistema e, mais do que re-
lação de pertença, experimentar interação dialógica com o plexo nor-
mativo. Relação que se mostra, ao menos em termos especulativos, apta
a introduzir aprimoramentos formais e substanciais, bem como - entre
limites e por intermédio da~'inevitável tarefa de escolha axiológica - pro-
duzir desempenho que permite conquistar, mediante subsunção de índo-
le substancial, a legitimação (mais do que mera adesão), característica
de qualquer sistema que timbre por ser efetivamente coerente.
Além disso, deve o intérprete sistemático operar as mais altas de-
terminações, ainda quando pareça cuidar de temas triviais ou autoevi-
dentes, sem romper o clima de segurança e de previsibilidade razoável
quanto às decisões a serem tomadas.
Deve evitar o mórbido sobrepeso dos instintos, que reduzem a siste-
maticidade a seus patamares mais baixos e insatisfatórios. Logo, no jul-
gamento que deriva da compreensão "holística" e complexa do Direito,
resulta valorizado e determinante o seu trabalho racional, visto não mais
como atuação secundária. Trata-se da tarefa de emprestar confiabilidade
e concatenação ao ordenamento, conferindo nexo a múltiplos princípios
e vinculando decisões a propósitos elevados. Com efeito, o intérprete
sistemático deve integrar todos os métodos hermenêuticos, nunca olvi-
dando das perversões que um eventual desvio falacioso pode causar (por
ação ou omissão).
Convém sublinhar, neste capítulo de consolidação: o intérprete sis-
temático não há de admitir o subjetivismo soberbo, embora saiba que do
seu desempenho depende - não inteiramente, sem dúvida - a qualidade
final do sistema, avaliando-o na persecução do Direito como o aludido
instrumento de promoção da convivência sadia das liberdades e igual-
dades.
 ~
178 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Nesse sentido, administra a exegese com os olhos voltados para
seus destinatários, porque os Estados Democráticos apenas existem
para as pessoas, possuidoras de direitos de natureza intangível. Por isso,
sente-se eticamente responsável, em maior ou menor escala, pelos efei-
tos concretos da sua decisão. Sem arbitrariedade na escolha simultânea
de premissas e de resultados, precisa cuidar para que a hierarquização
ocorra de maneira que viabilize a máxima justiça possível e, concomi-
tantemente, assuma a clássica lição de que nada existe de integralmente
desnecessário nos textos normativos.
Imbuído de tal espírito, já não deve ficar surpreso com as imensas
possibilidades entreabertas. Em síntese, o intérprete sistemático deve
oferecer conteúdo real, por um ato relativamente livre, ao Direito posto,
observadas as suas dilatadas fronteiras. Partilha da ciência de que o qua-
lificado intérprete há de se fazer respeitador dos objetivos fundamentais,
sem pretender substituir a sociedade, nem negar a preservação dos direi-
tos minoritários.
Assentadas tais ideias, e firmes os pressupostos, o intérprete sis-
temático - quando bem entende o processo intrínseco da hermenêutica
jurídica - enxerga na racionalidade uma espécie de dever de encontrar
as soluções mais integradoras e justas no cerne do sistema, gerando Di-
reito, e não violação dele.
8.2 Diretrizes de interpretação tópico-sistemática
Do exposto, desde que efetivamente compreendido o Direito em
novas e avançadas bases, inclusive no que tange às fontes - em face da
aludida identidade essencial do pensamento sistemático e da Tópica, não
mera justaposição de enfoques -, brotam daí valiosas e úteis diretrizes
ou prescrições para uma interpretação tópico-sistemática.
Eis, em suma, os preceitos (derivados dos pressupostos) que con-
vém fixar para o exercício de uma adequada interpretação em todos os
ramos do sistema objetivo:
(I) Deve o intérprete sistemático, conquanto em atividade funcio-
nalmente distinta da do legislador, exercer conscientemente o papel mai-
êutico de extrair o melhor da elasticidade do Direito Objetivo, certo de
que, na prática, a subjetividade aparece como momento inextirpável e
configurador da objetividade, e vice-versa.
Mormente o intérprete constitucional (especialmente o juiz, como
será visto no capítulo seguinte) deve fazer as vezes de sistematizador, ou
~
CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES 179
seja, daquele que concretiza, sincronizando. Dito de outro modo, seja
no sistema romanístico-continental, seja na common law, o aplicador é
quem positiva por último o Direito, culminado, em instância última, a
decifração criativa do conteúdo dos princípios, das regras e dos valores.
Nessa medida, interpretar é sistematizar, algo que bem revela a
jurisprudência como fonte material mais relevante do Direito Positivo,
uma vez que abarca as demais fases e precisa ser redimensionada, no
âmbito da teoria dogmática, em função dessa primazia.
(lI) Deve o intérprete sistemático saber garantir a coexistência, ao
máximo, dos valores, dos princípios e das regras em conflito, hierar-
quizando de sorte a obter a maior concordância sistemática possíve e
pautando a sua visão pelos vetores mais altos e nobres do ordenamento,
isto é, pelos princípios e objetivos fundamentais. Tudo na certeza de
que interpretar é bem hierarquizar, estabelecendo o menor sacrifício
possível em face das exigências de proporcionalidade, que não estatui
só adequação meio-fim, mas proíbe que um valor ou princípio se im-
ponha às expensas da supressão de outro. Somente as regras, quando
antinômicas, é que, parcial ou totalmente, podem se excluir, mesmo que
também aqui não se constate simples lógica formal de disjunção ou do
"tudo-ou-nada".
A hierarquização axiológica, bem realizada, é a que salvaguarda e
enaltece a totalidade dos objetivos e dos princípios (sobretudo os sensí-
veis ou intangíveis), assim como deve fazê-los, sem exceção, preponde-
rantes em relação às regras, jamais pensado o Direito como inteiramente
subordinado ao disposto nas normas estritas, mas como dimanante das
diretrizes supremas.
Com efeito, quando - como visto no capítulo das configurações hi-
potéticas! - da aplicação desse ou daquele critério para vencer conflitos,
dá-se por suposto o exame prévio de adequação das normas em litígio
com os princípios e objetivos fundamentais, razão pela qual a mais sin-
gela antinomia esconde um conflito de segundo grau, cuja solução, ao
fim e ao cabo, faz onipresente a aplicação do critério da hierarquização
axiológica.
(11/) Deve o intérprete sistemático sobrepassar, inteligentemente, as
antinomias - no sentido ampliado aqui propost0 2 -, sendo sua tarefa vi-
tal, na relação viva com o texto, resguardar o binômio segurança/justiça,
o qual não pode ser convertido em oposição, sob pena de perda da legíti-
1. Recorde-se, sobretudo, o Capítulo 4.
2. Recorde-se, especialmente, o Capítulo 3.
 ~
180 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
ma sistematicidade, isto é, a que merece adesão social voluntária. Nesse
sentido, deve o intérprete sistemático unificar a tessitura, não raro, caóti-
ca do ordenamento jurídico, hiperinflacionado de notas provisórias e as-
sumir a intransferível tarefa de, sem usurpar poderes, exercitar uma am-
plíssima sindicância no que tange à sistematicidade dos atos normativos.
A rigor, todas as condutas omissivas e comissivas devem ser passíveis
de controle jurisdicional, sem que se invoque a excessiva indetermina-
ção normativa para deixar de fazê-lo, inclusive porque a indeterminação,
como visto, está presente em qualquer texto. Ao determinar o conteúdo
do Direito posto, nem que seja por exclusão, deve o intérprete preservar
a máxima sistematicidade possível, sem perder de vista, racionalmente,
o "bem de todos" (CF, art. 3º).
(IV) Deve o intérprete sistemático, situado com isenção no tocante
às partes habitualmente contrapostas, empenhar-se para que o labor exe-
gético se faça garantidor dos objetivos e direitos fundamentais, tendo
claro que a sua vinculação é para com o Direito (mais do que lei, embora
também lei). De fato, a legalidade faz as vezes de somente um princípio
entre outros, assim como, por exemplo, o princípio da moralidade, erigi-
do, em boa hora, como juridicamente autônomo e vinculante.
Eis o motivo pelo qual a fundamentação/justificação necessária
deve radicar no todo e não nesta ou naquela parte, em si considerada.
Nessa ordem de considerações, convém ter nítido que interpretar éfun-
damentar, teleologicamente, no sistema, sobretudo para que este ganhe
fôlego a partir de uma visão enriquecida quanto à pluralidade das suas
vigas-mestras, para além das estreitezas unilaterais que colocam em ris-
co a própria manutenção da estrutura positiva.
Como enfatizado, tem o consciente intérprete sistemático a preocu-
pação maior de pautar as suas escolhas por fundamentações formais e
qualitativas que devem plasticamente repensar as fundamentações pre-
existentes. Portanto, uma das primaciais metas suas reside em se libertar
do arcaico mito da servidão à regra.
(V) Deve o intérprete sistemático explicitar as premissas eleitas na
construção dos silogismos não-formais da sua exegese, purificando-as
sob o prisma crítico da racionalidade intersubjetiva, no intuito de alcan-
çar discernimento axiológico acentuado, não-arbitrário e livre na garan-
tia da coexistência das demais liberdades.
Quanto maior a explicitação dos motivos sistemáticos (e da pré-
-compreensão em sentido gadameriano), que presidem esta ou aquela
escolha de princípios, regras ou valores, tanto melhor, tendencialmente,
~
CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES 181
para que se tome persuasiva e convincente a fundamentação axiológica
eleita.
(VI) Deve o intérprete sistemático perceber o caráter problemático
do evento hermenêutico, sabendo que precisa construir o sistema a partir
de uma visão dedutiva de suporte indutivo, quer dizer, de modo que o
caminho aos princípios e o caminho para as regras sejam essencialmente
o mesmo.
Convém recordar: o raciocínio jurídico apresenta fases múltiplas,
quer indutivas, quer dedutivas, ambas comparecendo na decisão final.
Em outras palavras, sem embargo dos méritos do método analítico em
outras searas do conhecimento, o intérprete jurídico, imunizado contra
a tentação do formalismo abstrato ou do logicismo formal, -reconhece
que interpretar implica sintetizar o Direito numa perspectiva dialógica
e aberta.
(VII) Deve o intérprete sistemático, assimilada a evolução do con-
ceito de sistema como rede, manter desperta a relação mutuamente vi-
talizante do seu espírito com o complexo de enunciados, lutando contra
toda espécie de subjetivismos excessivos e almejando ser o operador,
por excelência, das chamadas mutações normativas, ao preservar as par-
tes imóveis e ao operar, com desembaraço, o movimento do Direito.
Semelhante tarefa somente será cumprida de modo plausível, con-
vém reiterar, se o intérprete não se concentrar apenas no exame das re-
gras (inferiores aos princípios fundamentais, por definição), tampouco
pensar por intermédio de meras justaposições normativas, já que a inter-
pretação sistemática não é somente um elemento, entre outros, da Her-
menêutica, nem um simples somatório, mas a junção concreta e atuali-
zadora, ou seja, a interpretação por excelência.
Superado qualquer originalismo extremado,3 urge perceber que a
intenção do legislador, justamente porque de difícil aferição, mostra-se
secundária, mas não irrelevante. Entretanto, mais do que a voluntas le-
gis, importa fazer valer a vontade do sistema em seus aspectos superio-
res, na dialética interação com a vontade justificada do intérprete.
(VIII) Deve o intérprete sistemático realizar o exame da íntegra dos
fatos coletados e efetuar, a partir daí, um diagnóstico seguro, para, a
seguir, no bojo do sistema, encontrar o melhor e mais conciliatório tra-
tamento para as controvérsias, no sentido de superá-las e, ao mesmo
tempo, de conservar a sistematicidade. "Interpretar" supõe bem diag-
. 3. Crítica ao originalismo extremado será feita, ~m mais vigor, no capítulo
segUInte. \
 ~
182 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
nosticar, avaliar os bens que estão em jogo, ponderar sobre possíveis
resultados, e, então, eleger soluções, rentes aos fatos, sem alguns con-
sequencialismos divorciados da condição vinculante dos comandos fun-
damentais.
(IX) Deve o intérprete sistemático, à base do sistema objetivo, ser
o grande artífice das mutações do ordenamento, lutando para bem rela-
cionar vontades e corrigir defasagens, no tempo ou no espaço, dos dis-
positivos que se mostrarem distantes e excludentes, tudo fazendo para
que o espírito atual e melhor prevaleça, apesar da letra. Se vitoriosa essa
ótica, o Estatuto Maior, coração jurídico-institucional, não resultará sub-
metido a processos invasivos de reformas confusas, não raro, causadoras
de retrocessos no tocante a direitos fundamentais (retrocessos vedados,
desde sempre, em qualquer interpretação racional, no sentido apropriado
do termo).
(X) Deve o intérprete sistemático salvaguardar a essência pluralista
da ideia de Direito como resultado do pensamento, simultaneamente,
sistemático e tópico, no equilíbrio confluente entre generalização e a
particularização. Assim, acolherá a possibilidade da constante evolução,
certo de que, quanto mais complexo o sistema for, tanto mais carece-
rá de melhoramentos para cumprir suas eminentes funções axiológicas
adaptativas.
Desse modo, conferir estabilidade ao sistema, longe de mantê-lo
inerte e irresponsável perante os danos causados por ação ou omissão,
consiste em modificá-lo. Emprestar-lhe uma exegese renovadora e, por
assim dizer, legitimadora. Bem interpretar é aperfeiçoar, ciente de que
tal tarefa de aprimoramento contínuo resulta de implícita delegação do
ordenamento, fazendo a todos corresponsável, sob determinados aspec-
tos, pelo êxito, maior ou menor, da positivação e da eficácia social.
A interpretação sistemática deve realizar julgamentos desembara-
çados, ao máximo, dos impedimentos às mudanças positivas da cultura
jurídica. Força, para tanto, estar aberto às novas argumentações, desde
que acrescentem algo, não o atraso típico dos que desistem e se entregam
aos reclamos da inoperância desidiosa ou descuidada. A compreensão,
aplicação e a interpretação são partes do mesmo fenômeno, como des-
crito na abordagem gadameriana, mas é preciso acrescentar ou explicitar
a hierarquização dos valores, com o devido sopesamento e a reavaliação
constante. Uma avaliação boa ontem pode ser má hoje, axiologicamen-
te. Uma solução boa hoje pode ser ótima amanhã. Em tudo, é preciso
cuidar para que os impactos das decisões do intérprete sejam para me-
lhor. Nunca se deve subestimar, porém, o risco do retrocesso, inimigo à
_~
CONSOLIDANDO PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES 183
espreita, utilizando as fraquezas humanas para debilitar as mais nobres
consciências. É mister, ainda, cuidar para que não se confunda abertura
para apreender e assimilar o novo, com a assimilação acrítica e frouxa
do argumento novo, não raro, apenas novidadeiro e de todo desembasa-
do da teleologia superior do sistema. Fenômeno comum na adesão pre-
cipitada a teses modistas, inoculadas às vezes por motivos subalternos
inconfessáveis. Quer dizer, é indispensável (a) ter a capacidade cogni-
tiva, em sentido amplo, de alcançar ideias mais avançadas, tudo com o
desiderato de estar à altura dos objetivos ético-jurídicos superiores do
Estado Constitucional, que se resumem na fórmula de o tempo inteiro,
honestamente, pensar no "bem de todos"; (b) não confundir avanço com
leniência ou adesão ao fácil, ao indolente, ao mercenarismo e (c) zelar
para que sejam verificados os impactos psicossociais (mais do que eco-
nômicos) das decisões tomadas a partir desta ou daquela interpretação.
Mais do que umfeedback, força ter a coragem de retificar rumos e rotas,
sempre que necessário, ainda que isso ponha o intérprete-decisor, face a
face, com o desconforto dos seus próprios equívocos de avaliação, por
exemplo, ao não antever efeitos colaterais indesejáveis de sua exegese.
Numa frase: a interpretação sistemática do Direito não é tarefa para dé-
beis de caráter, que temam reconhecer os deveres inerentes à perfectibi-
lidade e à supressão dos vícios no processo da compreensão.
Uma boa interpretação tópico-sistemática deve compatibilizar, com
equilíbrio, as finalidades superiores do ordenamento jurídico (objetivos
fundamentais do Estado Constitucional) com as possibilidades evoluti-
vas contemporâneas. Não pode ficar aquém destas, nem deitar semen-
tes em solo ainda não fértil, sem embargo do empenho em prepará-lo.
Portanto, a intencionalidade do intérprete não pode estar voltada para
a hipostasia do equilíbrio estático, isto é, para o culto sem sentido da
ordem pela ordem ou do conservantismo ilógico, tampouco se empolgar
com o mudancismo frenético e jacobino, que acaba resultando no terror.
O vetor evolutivo, por assim dizer, é aquele que promove o senso moral
superior, a solidariedade inteligente e a autoconsciência crítica. Eis as-
pectos cruciais para o desenvolvimento, em espiral, das melhores solu-
ções hermenêuticas, resultantes da consciência ético-jurídica que intenta
propiciar evolução sem causar danos injustos, em lugar das imposições
primitivas territoriais dos "coronéis" do pensamento. Tudo isso é condi-
ção para a evolução consistente do sistema jurídico. '\
Tais diretrizes, manifestamente relacionadas entre si, exsurgem da
intelecção quanto à índole do sistema jurídico e da "descoberta" do ca-
ráter tópico-sistemático de toda e qualquer interpretação. Em outro di-
 ~
184 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
zer, derivam da reconceituação da interpretação sistemática, nos termos
propostos.
Trata-se de diretrizes a serem concretizadas pelo aplicador cons-
ciente, nos vários ramos do Direito Objetivo, ou seja, endereçadas in-
distintamente às esferas de aplicação do Direito Público e do Direito
Privado. Representam, se aplicadas com rigor, garantias de que o objeto
da exegese será tratado à vista das suas reais e complexas características
e desde uma abordagem epistemológica voltada para a consecução das
finalidades coincidentes com a teleologia superior do Estado Democrá-
tico, no incontornável - e nada retórico - dever de favorecer o "bem de
todos" (CF, art. 3º).
No capítulo que segue ilustrar-se-á o processo da interpretação sis-
temática da Constituição, independentemente das diferenças metodo-
lógicas circunstanciais. O exame desse processo encaminhar-se-á, so-
bremodo, para estimular a observância das diretrizes aqui sugeridas, ali
desdobradas em preceitos específicos. Ao depois, haverá, no Capítulo
10, mais um conjunto de breves ilustrações e, na síntese conclusiva, se-
rão retomados, um a um, os pontos nevrálgicos do trabalho.
9.1 Ilustração prescritiva no Direito Constitucional
vista como uma rede axiológica de princípios, de regras e de valores
~
CAPÍTULO 9
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO:
TODA INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
É INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
9.1 Ilustração prescritiva no Direito Constitucional. 9.2 Preceitos para
uma interpretação sistemática da Constituição: 9.2.1 Primeiro Precei-
to: Numa adequada interpretação tópico-sistemática da Constituição
os princípios fundamentais são a base e o ápice do sistema - 9.2.2 Se-
gundo Preceito:.As melhores interpretações são aquelas que sacrificam
o mínimo para preservar o máximo de direitos fundamentais - 9.2.3
Terceiro Preceito: Toda exegese sistemática constitucional tem o dever
de garantir a maior tutela jurisdicional possível- 9.2.4 Quarto Precei-
to: Uma interpretação sistemática constitucional deve buscar a maior
otimização possível do discurso normativo relacionado aos objetivos
fundamentais da Carta - 9.2.5 Quinto Preceito: Toda e qualquer exege-
se sistemática constitucional deve ser articulada a partir de uma funda-
mentação (hierarquização) racional, objetiva e impessoal das premissas
eleitas - 9.2.6 Sexto Preceito: Uma boa interpretação sistemática cons-
titucional é aquela que se sabe, desde sempre, coerente e aberta - 9.2. 7
Sétimo Preceito: As melhores interpretações constitucionais sempre
procuram zelar pela soberania da vitalidade do sistema, sem desprezar
o texto, mas indo além dele, como requer o próprio texto constitucional
- 9.2.8 Oitavo Preceito: As melhores leituras sistemáticas da Constitui-
ção visualizam os direitos fundamentais como totalidade indissociável
e, nessa medida, procuram restringir ao máximo as suas eventuais li-
mitações, emprestando-lhes, sem omissão, a tutela reconhecedora da
eficácia direta e imediata - 9.2.9 Nono Preceito: Na perspectiva tópico-
-sistemática, uma lúcida interpretação das normas fundamentais sem-
pre colima promover a preservação dos princípios constitucionais,
ainda quando em colisão - 9.2.10 Décimo Preceito: Uma pertinente e
adequada interpretação sistemática só declara a inconstitucionalidade
quando a afronta ao sistema revelar-se manifesta e insanável. 9.3 Pre-
missas e preceitos formulados.
-~
Aplicando os conceitos formulados à Constituição, esta passa a ser

186 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
de ordem suprema, cuja função precípua é a de, evitando ou superando
antinomias axiológicas, dar cumprimento aos objetivos fundamentais do
Estado Democrático, entendidos de maneira dominantemente substan-
cial.! A sistemática interpretação da Lei Fundamental supõe, assim, uma
consideração unitária e aberta que reconheça as suas disposições sob o
prisma dos nada inócuos princípios e objetivos superiores. Há, como
afirmado, eficácia direta e imediata, no núcleo, de todos os princípios,
direitos e objetivos fundamentais.
Sobem de ponto princípios tais como o da dignidade, condiciona-
dores do sistema, máxime da Constituição, cume do Direito Positivo
que enfeixa o plexo total das disposições normativas na relação circu-
lar com o intérprete. Não resta dúvida, porém, que todos os comandos
normativos precisam guardar a maior conformação possível com o sis-
tema (mais do que com as regras, não contra as regras), uma vez que
minimizá-lo ou contrariá-lo representa uma atitude francamente hostil
à racionalidade jurídica. Note-se: qualquer inconstitucionalidade formal
ou material é, antes de mais nada, grave e inaceitável violação à siste-
maticidade da Constituição na sua característica (sem caráter exclusivo)
estrutura principialista,2 ainda quando pareça afrontar tão somente de-
terminadas regras.
Nesse contexto, bem se vê a necessidade de transcendência de fal-
sas dicotomias (por exemplo, interpretivists versus noninterpretivists3)
se se quiser apreender, em profundidade, no mundo dos fatos, a atuação
1. A propósito, Ronald Dworkin (in A Matter ofPrincipIe, Cambridge: Harvard
University Press, 1985), ao tratar do fundamento político do Direito, mostra que há
duas grandes concepções sobre Estado de Direito, uma centrada restritamente no
texto legal e outra, em harmonia com a postura tópico-sistemática, centrada nos
direitos, sendo que, nesta segunda acepção, a justiça substantiva integra, de modo
complexo, o ideal do Estado de Direito e implica negar que o texto jurídico seja a
fonte exclusiva do Direito.
2. Pertinente esclarecer: a interpretação constitucional apresenta-se diferen-
ciada mais pela peculiaridade do texto constitucional do que propriamente pelos
critérios hermenêuticos. Nesse ponto, supera-se o textualismo de Antonin Scalia (A
Matter of Interpretation, Princeton: Princeton University Press, 1997), por razões
que serão apontadas neste capítulo. Para uma complementar crítica às posições de
Scalia, v. Laurece Tribe e Michael Dorf in On Reading the Constitution, cit., pp. 98-
104. Outro ponto: a estrutura principialista está aberta à emergência de princípios,
tais como o da precaução. Sobre novos princípios, v. Jacques Chevallier in O Estado
Pós-Moderno, Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 41.
3. Com razão Ronald Dworkin, neste passo: "An interpretation aims to show
what is interpreted in the best light possible" (in Law s Empire, 1997, p. 243), algo
que implica ir além destas falaciosas dicotomias.
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 187
do intérprete constitucional. Na devida perspectiva tópico-sistemática,
o ir além da interpretação semântica revela-se, forçosamente, como ul-
trapassagem da exegese das regras textuais. Ir além do texto passa a ser
uma condição obrigatória para ler a atmosfera4 na qual o texto se en-
contra. Contudo, não significa manipulá-lo (com sofisma ou violência),
tampouco desconsiderá-lo. Representa, apenas, não se render à autono-
mia exacerbada do objeto.
Para tanto, crucial que o intérprete abandone qualquer reducionis-
mo conducente à dicotomia rígida entre sujeito e objeto da exegese,5
não descurando da "pré-interpretação" textual,6 nem do exame crítico
e autocrítico da qualidade ético-jurídica das suas condicionantes pré-
-compreensões, as quais não podem usurpar as razões da Constituição e
nunca se confundem com secundárias "razões de Estado".
A fala da Constituição apenas se toma plenamente significativa no
diálogo, a saber, na interação com o intérprett1, motivo pelo qual não
deve ser vista jamais como mero objeto de adálise, mas, antes, como
significado participativo, a partir do texto, mas com propósito superior.
Por isso, a Carta Fundamental não se confunde com o texto, embora este
a integre: a sua compreensão sistemática sucede quando se processa a
4. Sobre o texto normativo, trata-se de reader sguide, na expressão de Lauren-
ce Tribe e Michael Dorf(in On Reading... , p. 97).
5. Na mesma senda, Gustavo Zagrebelski (La Giustizia Costituzionale, cit.,
p. 52) rechaça o discurso sobre método de interpretação conduzido por meio da
análise dos métodos, destacando o caráter aberto da Constituição, "vietata la siste-
matizzazione rigida dei valori e dei principi costituzionali" (p. 55), promovendo-os
"come intero" (p. 56), não sendo aplicação formal do Direito ao caso (p. 60). De sua
vez, de maneira didática, Richard Palmer (in Hermenêutica, cit., p. 21) destaca que
uma obra não é objeto, mas encontro histórico que apela à experiência pessoal de
quem está no mundo. Método e objeto não são separáveis, pois "um objeto não tem
sentido fora de uma relação com alguém" (p. 34). Para além do "realismo", situa-se
o problema hermenêutico (p. 36). Bem por isso, "definições de Hermenêutica uní-
vocas e restritivas podem servir para fins delimitados, mas devemos ter o cuidado de
não tomá-las absolutas" (p. 76). Inspirado em Heidegger, vê a Hermenêutica como
teoria da revelação ontológica, além do modelo sujeit%bjeto (p. 141), donde segue
a necessidade permanente do diálogo criativo com o texto (p. 154). Inspirado em
Gadamer, destaca, de maneira apropriada, que a verdadeira tarefa da Hermenêutica
é a integração, não a reconstrução (p. 190).
6. Esta etapa interpretativa não pode ser vista como separada do processo total
da interpretação. A distinção é feita, por exemplo, por Ronald Dworkin (in Law s
Empire, cit., 1997, p. 53), ressaltando a interpretação construtiva como tendo etapas
I (stages), quais sejam, a pré-interpretativa, a interpretativa e a pós-interpretativa (p.
66), mas propõe: "Interpretation of a social practice seeks equilibrium between the
1
justification ofthe practice and its postinterpretative requirements" (p. 424).
 --,.-
188 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
referida interação circular, sem a crença em simples objetivação do es-
pírito dos constituintes. 7
Ao mesmo tempo, a adequada postura tópico-sistemática corta os
grilhões das falácias associadas aos normativismos estritos,8 porque
descortinar a interpretação em planos mais elevados implica o resolu-
to abandono daquelas abordagens inabilitadas para absorver o dever de
promoção dos aspectos favoráveis à mencionada variabilidade evoluti-
va do sistema. Hierarquizar princípios, regras e valores constitucionais
sem permitir a quebra de qualquer princípio ou objetivo fundamental,
eis a tônica da boa interpretação sistemática. O exegeta, mais do que
descobrir uma imaginária e hipotética intenção de origem, encontra-se
desafiado, topicamente, a hierarquizar, inclusive naquele momento em
que a sua leitura está prestes a se converter numa espécie de positivação
final da normatividade. Cumpre-lhe oferecer condições objetivas para a
permanente formação do sistema axiológico-constitucional, sem fixis-
mo contrário à natureza. Confirma-se, no exercício dessa interpretação,
7. Embora não se exacerbe a autonomia do objeto, justo reprisar que Emilio
Betti (in Teoria Generale deUa lnterpretazione, 2ª ed., 1990), depois de explici-
tar seu primeiro cânone ("se le forme rappresentative che costituiscono l'oggetto
dell'inter-pretazione sono essenzialmente oggettivazioni di una spiritualità che vi si
e calata, e chiaro che esse debbono essere intese secondo quello spirito che in esse
si e oggettivato" - p. 305), propõe um segundo cânone que o relativiza: "il criterio,
cioe, di ricavare dai singoli elementi il senso deI tutto, e d'intendere l'elemento sin-
golo in funzione deI tutto di cui e parte integrante" (p. 309). Além disso, introduziu o
cânone da attualità deU'intendere, pelo qual o intérprete é chamado a refazer, em si,
o processo genético (p. 314), aceitando a subjetividade inafastável (como sustentado
em capítulos anteriores deste livro), cuidando de afastar "propri pregiudizi e abiti
mentali ostacolanti" (p. 318). O quarto cânone, apenas para recapitular, é o da ade-
guazione deU 'intendere ou da retta corrispondenza o consononza ermeneutica (p.
319). Com este quarto cânone, reescrito à luz do atual conceito de adequação (vin-
culado à proporcionalidade) e sem a preocupação excessiva de afinidade do espírito
do intérprete com o espírito do outro (ecos do primeiro cânone), bem como retiran-
do da transposição o excesso de preocupação com o passado (no terceiro cânone)
e, finalmente, preservando, na íntegra, o segundo e deixando, em parte, de lado o
primeiro, que acentua excessivamente a autonomia do objeto, mostra-se possível
aproximar Betti de seu "adversário" Gadamer e, ainda mais, da nossa perspectiva
tópico-sistemática.
8. Note-se que mesmo em França, onde o controle de constitucionalidade não
implica anulação, mas censura total ou parcial da lei, antes da sua promulgação,
verificam-se sinais de avanço, a partir de famosa decisão do Conselho Constititucio-
nal, em 1971, baseada em princípios fundamentais. V. Louis Favoreu e LOlc Philip
in Les Grandes Décisions du Consei! Constitutionnel, Paris: Presses Universitaires
de France, 1996, pp. 244-245. v., ainda, Gustavo Zagrebelski in 11 Diritto Mite... ,
1
cit., pp. 57-96.
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 189
o Direito Positivo como o fruto contínuo da hierarquização axiológica,
nos moldes aqui propostos.
Não se esposam, como restou claro em capítulos anteriores, as pos-
turas exclusivamente historicistas (tampouco do relativismo niilista).
Mister, no entanto, uma vez mais, aclarar o papel constitutivo e central
do intérprete, especialmente do intérprete-juiz, na geração da identidade
e na decifração dos direitos e de suas mutações. Em suma, qualquer sis-
tema é, ele também, resultante direto do trabalho hermenêutico.
Observe-se que, justamente por isso, o sistema constitucional pode,
sem alteração legislativa, experimentar progressos ou retrocessos no
cadinho da superação das lacunas (no sentido amplo aqui defendido).
Esse processo, habitualmente oculto, toma parte no cerne do controle
de constitucionalidade, entendido, antes de tudo, como a guarda da sis-
tematicidade. Postura que não permite "reescrever" a Carta para destruí-
la, mas que determina "reescrevê-la", interpretativamente, sempre que
necessário para salvá-la ou"'preservá-Ia no cumprimento das suas incum-
bências maiores. Da Carta Maior ninguém deve ser senhor, nem servo,
mas fiador da "soberania" constitucional e da subordinação das regras
ao sistema. 9
Nessa ilustração do processo sistemático da Constituição, convém
retomar a escolha de determinadas premissas conformadoras do presen-
te livro. Útil perceber, em plena harmonia com a ideia de que a interpre-
tação é sempre sistemática, que todo juiz, no sistema brasileiro, atua,
de certo modo, como juiz constitucional, já que cada magistrado, ainda
na primeira instância, reveste-se da dignidade de intérprete da Carta.
Ressalte-se que, se não mantida a via difusa, restaria a interpretação jurí-
dica, em nosso meio, desavinda com a imprescindível independência da
Magistratura e com a consolidação da ambiência de, preferencialmente,
voluntário acatamento cultural da Lei Maior.
Outro imperativo aspecto a reiterar é o de que, também em termos
de interpretação constitucional, merece plena acolhida a tendência sofis-
ticada e fecunda de síntese entre duas vertentes que, por muito tempo,
foram rotuladas como inconciliavelmente contrapostas. Trata-se da de-
9. A propósito, recorde-se Gustavo Zagrebelski (in 11 Diritto Mite... , cit., p.
213): "C'e oggi certamente una grande responsabilità dei giudici nella vita deI Di-
ritto, sconosciuta negli ordinamenti dello Stato di Diritto legislativo. Ma i giudici
i
non sono i padroni deI Diritto nello stesso senso in cui illegislatore lo era nel secolo
scorso. Essi sono piu propriamente i garanti della complessità strutturale deI Diritto
i nello Stato Costituzionale, cioe della necessaria, mite coesistenza di legge, diritti e
giustizia".
 T
190 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
fendida conciliação (identidade essencial) do pensamento sistemático e
da Tópica. lo
A cada passo, sobretudo do exame das interpretações melhor equa-
cionadas da Carta, emergem novos argumentos para robustecer a pers-
pectiva de que a interpretaçãojurídica éprocesso tópico-sistemático, do
qual pode resultar uma solução de equilíbrio, por assim dizer, entre for-
malidade e substancialidade, um meio-termo (mesótes aristotélico, que
não surge exatamente como meio aritmético), evitadas as soluções uni-
laterais também no deslinde das matérias de indagação constitucional.
De fato, toda vez que sucede qualquer excesso de acentuação pola-
rizante, verificam-se inúmeros malefícios. Nessa ótica, não se deve, sob
pretexto algum, hipertrofiar o formalismo (em que pese ser este um dos
aspectos básicos da juridicidade), a ponto de deixar de lado as legítimas
e inafastáveis preocupações materiais. Também porque, em larga medi-
da, não há como fugir de certo empirismo (consequencialista, até certo
ponto, contudo racionalmente fundado) na construção e reconstrução
dos sentidos do texto constitucional.
A seguinte observação impositiva, em homenagem ao propósito de
ilustração, consiste em lembrar que as normas estritas ou regras não
ostentam o mesmo relevo finalístico dos comandos fundamentais (em-
bora menos vagas do que os princípios gerais). É que os princípios,
objetivos e direitos fundamentais, segundo o prisma terminológico aqui
proposto,l1 são superiores às regras (não se trata somente de distinção
semântica, tema que refoge ao presente livro), conquanto não se deva
postular o sistema constituído apenas de princípios,12 erro comparável,
com sinal trocado, ao de pretender um ordenamento, por exemplo, que
opere tão só com regras primárias e secundárias. 13 A cimentação da sis-
tematicidade constitucional ocorre por força dos comandos fundantes e
fundados do ordenamento jurídico.
10. Tema desenvolvido no Capítulo 7 deste livro.
11. Não se ignoram outras meritórias abordagens, no tocante à teoria dos prin-
cípios. A propósito, v. Virgílio Afonso da Silva in Direitos Fundamentais: Conteúdo
Essencial, Restrições e Eficácia, São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
12. Bem observou Norberto Bobbio: "La crescente importanza che si viene
riconoscendo ai principi generali nella legislazione e nella giurisprudenza deriva daI
riconoscimento della loro funzione insieme propellente e delimitante aI vertice di un
sistema: la quale non esclude peraltro la funzione unificante in campo piu stretta-
mente dottrinale" (in Contributi... , cit., p. 279).
13. É a conhecida proposta de abordagem apenas baseada em regras primárias
e secundárias de Herbert Hart in The Concept of Law, Oxford: Clarendon Press,
1994.
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 191
Outro aspecto preliminar é o de que, desmistificado o fazer interpre-
tativo nas várias áreas do Direito, tudo parece confirmar que, a despeito
de diferenças setoriais, a interpretação jurídica afigura-se como proces-
so, no seio do qual as lacunas são tratáveis como antinomias especiais
e o princípio da hierarquização axiológica assume onipresente função
determinante e decisiva, fenômeno de dificil refutação e verificável, com
particular nitidez, na exegese constitucional.
Registros efetuados, urge passar à ilustrativa sugestão de catálogo
não-exauriente de preceitos de interpretação tópico-sistemática da Cons-
tituição, especialmente tendo em conta a realidade brasileira e os precei-
tos gerais arrolados no capítulo anterior. Não custa reiterar: qualificado
jurista é aquele que, acima de tudo, sabe eleger diretrizes e hierarquizar
princípios, notadamente os que compõem a tábua dos critérios aptos a
incrementar o trabalho da aplicação sistemática do Direito, num dado
horizonte axiológico. 14
Vai daí a valia de efetuar semelhante proposta de catálogo de pre-
ceitos ou critérios que são ou deveriam ser prioritários no âmbito da
exegese constitucional, levando em consideração, de modo premente, os
progressos no campo da doutrina geral da Hermenêutica. Mais do que
nunca, força reiterar que, no desvelamento dessas diretrizes, impende
combater a concepção anacrônica de Carta Maior como se se tratasse de
conjunto normativo em relação ao qual o exegeta seria capaz de inferir
validamente soluções de modo dedutivo. 15
14. Sobreleva, pois, destacar o acerto da lição de Paulo Bonavides, ao dissertar
sobre o sistema constitucional, em tais precisos termos: "A interpretação de todas
as normas constitucionais vem portanto regida basicamente pelo critério valorativo
extraído da natureza mesma do sistema. Faz-se assim suspeita ou falha toda análise
interpretativa de normas constitucionais tomadas insuladamente, à margem do amplo
contexto que deriva do sistema constitucional. De modo que nenhuma liberdade ou
direito, nenhuma norma de organização ou construção do Estado, será idônea fora
dos cânones da interpretação sistemática, única apta a iluminar a regra constitucional
em todas as suas possíveis dimensões de sentido para exprimir-lhe corretamente o
alcance e grau de eficácia" (in Curso de Direito Constitucional, 25ª ed., São Paulo:
Malheiros Editores, 2010, p. 131). Diz mais: adverte para os riscos dos subjetivis-
mos, com extrema propriedade, assinalando para os riscos do enfraquecimento da
juridicidade (pp. 434-435). Ofertou belo capítulo sobre a interpretação dos direitos
fundamentais. Sobre o assunto, v. a referencial obra de Ingo Sarlet in A Eficácia dos
Direitos Fundamentais, 10ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. V., ainda,
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Bonet in Her-
menêutica Constitucional e Direitos Fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
15. Seguramente, como enfatizado, não se adota tampouco a visão indutivista,
pura e simplesmente, bem criticada por K. Popper (in A Lógica da Pesquisa Cientí-
 T
192 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Seja no plano teórico, seja no plano fático,I6 não faz sentido, se é
que algum dia o fez, imaginar que o intérprete constitucional - e, numa
certa medida, todo intérprete o é - possa lograr êxito operando com mo-
delos de subsunção lógico-formal (algo que, a rigor, não ocorre sequer
ao lidar com as regras) ou na embriaguez dos automatismos comissivos
e omissivos. Ora, o processo interpretativo também consiste em esco-
lher as premissas ou pistas ao longo da jornada de compreensão/decisão,
processo jamais formalizável na íntegra e que nunca deve experimentar
cortes rígidos, sob pena de abordagens, na melhor das hipóteses, infiéis
ao mundo real. Assim, sem maior significado a velha polêmica sobre
"descobrir" ou "inovar", pois ambos os momentos necessariamente
ocorrem. Como visto, os argumentos jurídicos, por melhores que sejam,
não gozam da definitividade.
Recorde-se a lição judiciosa e inatacável, no ponto, de Hans-Georg
Gadamer: "A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em
cada caso, isto é, em sua aplicação. (...). Na ideia de uma ordem jurídica
supõe-se o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades
imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do todo" .17
Com efeito, os silogismos jurídicos são dialéticos e a operação her-
menêutica é eminentemente circular. I8 Em sintonia, nesse passo, com
o enfocado por Claus-Wilhelm Canaris,I9 importa, em sede de decisão
jurídica, a qualidade da eleição das premissas. Dito de outro modo, o
vetusto e insatisfatório modelo dos silogismos formais deveria estar
fica, São Paulo: Cultrix, 1998, p. 29), alertando para as incoerências criticadas por
Hume. Curioso notar que Popper admite, com sinceridade, ao formular suas propos-
tas, que foi guiado por juízos de valor (p. 39), mas sua crítica, no ponto específico,
merece ser mantida.
16. Com propriedade, diz Gustavo Zagrebelski: "Ogni interpretazione (...)
procede dalla prefigurazione o dalla nuova prefigurazione di casi" (in La Giustizia
Costituzionale, cit., p. 40). Não por acaso, sustenta: '''L'interpretazione giudiziale
puà allora essere definita la ricerca della norma regolatrice adeguata sia aI caso che
aI Diritto" (p. 41).
17. Wahrheit und Methode, cit., 1965, p. 312 ("DieAufgabe desAuslegens ist
die Konkretisierung des Gesetzes imjeweiligen Fall, also die Aufgabe der Applika-
tion. Die Leistung produktive Rechterganzung, die damit geschieht, ist gewiss dem
Richter vorbehalten, der aber genauso unter dem Gesetz steht wie jedes andere Glied
der Rechtsgemeinschaft. In der Idee einer rechtlichen Ordnung liegt, dass das Urteil
des Richters nicht einer unvorhersehbaren Willkür entspringt, sondem der gerechten
Erwagung des Ganzen").
18. Sobre o círculo hermenêutico, convém recordar, entre outros, Karl Larenz
in Methodenlehre der Rechtswissenschaft, cit., 1963, p. 189.
19. Systemdenken und Systembegriff... , cit., 1983.
I
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVANO DIREITO PÚBLICO 193
completamente ultrapassado também em matéria de interpretação cons-
titucional. No entanto, persistem tenazes os esforços no intuito de pra-
ticá-lo, nada obstante a sua completa impraticabilidade. Esta, aliás, é a
sua maior refutação.
9.2 Preceitos para uma interpretação sistemática da Constituição
9.2.1 Primeiro Preceito: Numa adequada interpretação tópico-
-sistemática da Constituição os princípios fundamentais
são a base e o ápice do sistema
Cumpre superar, vez por todas, a visão estreita e asfixiante oriunda
da Escola da Exegese, com suas sequelas teóricas (mais ou menos sofis-
ticadas e dissimuladas). Para tanto, mencione-se o ilustrativo preceito de
interpretação constitucional sistemática, que recomenda: na hierarqui-
zação prudencial dos princípios e objetivos fundamentais e das normas
estritas (no sentido de regras), deve-se fazer com que os princípios e
objetivos fundamentais ocupem o lugar de destaque, ao mesmo tempo
situando-os na base e no ápice do sistema, vale dizer, tomando-os, na
prática, como fundamento e cúpula do ordenamento.
Uma vez que inexiste hipótese de hierarquização inexigível (in-
terpretar revela-se, sempre e sempre, uma atividade hierarquizadora),
indispensável reconhecer que tal inafastabilidade converte o critério
hierárquico-axiológico em diretriz constantemente superior aos demais
critérios (cronológico e de especialidade). Necessário assumir os con-
sectários dessa onipresença hierarquizante, especialmente ao se tratar do
fenômeno da colisão dos princípios e, de resto, das denominadas antino-
mias de segundo grau.
Além disso, importa destacar que a interpretação constitucional,
justamente por lidar com a Carta Maior, haverá de ser, sob certo aspecto,
principiológica, isto é, marcada por uma hierarquização de princípios
(sem prejuízo das regras), que será melhor fundamentada se conferir
ao sistema coerência e abertura. É no cume principiológico do Direito
Positivo que se enfeixa o plexo das prescrições geradoras da normativi-
dade. Dito de outro modo, conscientemente, a interpretação constitucio-
nal aparece pautada e dirigida, em termos, pelos objetivos, princípios e
direitos fundamentais, os quais, se e quando ordenados inteligentemente
pelo intérprete, podem imprimir densidade e consistência evolutiva ao
Direito nos seus vários ramos.
Hierarquizar é, pois, a chave da interpretação constitucional. Ao se
hierarquizarem os princípios e as regras constitucionais, mais evidente-
 ~
194 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
mente transparece o infungível papel do intérprete de positivador que
dá vida ao ordenamento, sem se converter em legislador positivo (ao
menos no geral das vezes). Ultrapassa-se, desse modo, a polêmica, sem
maior sentido dialético, entre objetivismo e subjetivismo, assumida uma
postura menos dada a simplificações impensadas ou irrefletidas, em face
da complexidade - devidamente assimilada - do Direito. 2o
Preferível afirmar que o intérprete constitucional, de certo jeito,
positiva o sistema, derradeiramente. Fora de dúvida, o juiz (não o legis-
lador) é quem culmina o processo de positivação aperfeiçoadora. Eis o
motivo pelo qual, como salientado em capítulos antecedentes, a jurispru-
dência, mesmo no sistema romanístico, deve ser reconhecida e procla-
mada, no mínimo, como a fonte material mais significativa, mormente
ao se aceitar a vinculação, forte ou débil, de qualquer interpretação. 21
Retome-se, para elucidar, o conflito entre uma lei e uma súmula
jurisprudencial. Se prevalecesse o automatismo condenável, a resposta
para tal antinomia entre regras seria que, no sistema romanístico (a lei
20. Neste passo, registre-se a confluência com Edgar Morin: "O pensamento
complexo não é o contrário do pensamento simplificador, mas integra este; como
diria Hegel, ele opera a união da simplicidade e da complexidade e, no metassiste-
ma constituído, faz aparecer a sua própria simplicidade. O paradigma da comple-
xidade pode ser enunciado não menos simplesmente que o da simplificação: este
impõe separar e reduzir, aquele une enquanto distingue" (in "Da necessidade de um
pensamento complexo", Para Navegar no Século XXI, cit., p. 38). Convém, ainda,
recordar Eduardo Garcia de Enterría (in Reflexiones sobre la Ley y los Principios
Generales dei Derecho, cit., 1984), que consolida observações basilares: (a) "Con-
cretamente, el Derecho no pude ya considerarse como la voluntad deI Estado, pues
implicaría dejar fuera todo el sistema de fuentes formalmente subsidiarias llamadas
a aplicarse justamente en la hipótesis de una ausencia o de una deficiencia de esa
voluntad" (p. 19), pois, de fato, a estatalidade total do Direito seria o fim de sua
abertura genética; (b) em confluência com o aqui sustentado, a eleição do critério
interpretativo é um prius lógico para poder abordar a compreensão de um texto (p.
23); (c) os princípios gerais são os únicos instrumentos para dar sentido às insti-
tuições, dominando inteiramente as operações mentais de interpretação (p. 24); (d)
os princípios passam a ser vistos como expressão de uma justiça material, porém
especificada tecnicamente em função dos problemas jurídicos concretos, assumida,
desse modo, uma concepção substancialista do Direito (pp. 30-31 ); (e) "la ciencia
jurídica no tiene otra misión que la de desvelar y descubrir, a través de conexiones de
sentido cada vez más profundas y ricas, mediante la construcción de instituciones y
la integración respectiva de todas ellas en un conjunto, los principios generales sobre
los que se articula y debe, por consiguiente, expresarse el orden jurídico" (p. 34).
21. Com propriedade, José Manuel Sérvulo Correia, ao examinar o princípio
da legalidade no Direito Francês, acentua, em relação ao Direito Administrativo, a
sua natureza eminentemente judicial (in Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativos, Coimbra: Livraria Almedina, 1987, pp. 71-75).
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 195
como fonte dominante), a antinomia haveria de ser, inescapavelmente,
solvida contra a súmula. Contudo, o automatismo converte-se em fon-
te de graves equívocos e afasta uma compreensão sistemática realista
do modelo tradicionalmente caracterizado pela lei como fonte primeira.
A resposta de que a lei ou medida provisória com força de lei, a priori,
deve prevalecer demonstra assimilação inadequada de como se reali-
za, no campo fenomenológico, a superação de qualquer antinomia entre
regras: sempre são solvidas as antinomias dessa natureza mediante a
hierarquização - como superior - de um princípio ou uma série de prin-
cípios. Aqui a diferença funcional que importa pôr em relevo entre prin-
cípios e regras. Eis a diferença de patamar entre constitucionalismo (do-
minado por princípios e objetivos fundamentais) e legalismo (dominado
por regras), sendo aquele, por definição, superior a este. Acrescente-se
que o constitucionalismo jamais se opõe à democracia, bem entendida,
eis que nasce com ela. A decisão eventualmente protetora de minorias,
embora contramajoritária na aparência, pode estar perfeitamente em
consonância com a maioria que constituiu a Carta como ordem de prin-
cípios e objetivos fundamentais. Por essa razão de fundo, afirma-se que,
entre princípios e regras, devem preponderar os princípios, até como
homenagem à segurançajurídica. 22
Assim, no exemplo citado, se a lei colidir com o princípio da justa
indenização, então a súmula, no caso, deve preponderar. Na realidade da
aplicação do Direito, como mostrado claramente no capítulo das con-
figurações hipotéticas, o princípio hierarquizado, tópica e sistematica-
mente, prepondera e, de conseguinte, resolve as antinomias de primeiro
e de segundo graus.
Se a tarefa suprema do intérprete constitucional reside, pois, em
hierarquizar coerentemente princípios, normas estritas e valores, resulta
límpido que a mutação constitucional, operada por meio da dominância
cambiante desse ou daquele valor ou princípio, faz-se imprescindível à
higidez do sistema, sem que prescrições que estabeleçam hierarquias a
priori devam impedir o trabalho da reflexão propícia à decisão melhor
fundamentada, topicamente. Desse modo, não se admite um intérprete
constitucional passivo ou timorato, pois tal orientação mecanicista situa-
se em desacordo pleno com as reclamações do sistema real. Certo, toda-
22. Sobre o tema das decisões contramajoritárias, entre outros, v. Bruce Acker-
man in "The Storss Lectures: discovering the Constitution", Yale Law Journal
93/1.013, 1.046. Para uma distinção entre judicial review e Democracia, v. a abor-
dagem de Bruce Ackerman in We the People, voI. 1: "Foundations", Cambridge:
Harvard University Press, 1991.
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196 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
via, que a hierarquização não deve ocorrer nos moldes de uma aplicação
subjetivista unilatera1. 23 Há limites formais e substanciais para que se dê
vida à ordem jurídica, sendo um desses limites o que deflui do dever de
realizar, com a máxima cautela, a "interpretação conforme" - algo que
será enfatizado adiante.
Ao salientar a dimensão hierarquizadora e principiológica, adota-
se, então, uma postura "constitucionalista" vigorosa em lugar da "le-
galista estrita" do primado das regras Isto é, a hierarquização revela-se
mais significativa do que a subsunção das regras para o intérprete cons-
titucional. A Constituição, assim, como estatuto jurídico, é plenamente
assimilada em sua imperatividade material. Nessa linha, não surpreende
que numa ação direta de inconstitucionalidade, ocasionalmente, a limi-
nar venha ter efeitos ex tunc, e, por igual, não repugna que, presentes
motivos racionais, a declaração definitiva da inconstitucionalidade nem
sempre opere efeitos ex tunc. Não seria certo, portanto, conferir necessa-
riamente efeitos ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, como se
cogitou no modelo kelseniano de controle concentrado da constituciona-
lidade (o modelo do legislador negativo).
Claro que se espera moderação, proporcionalidade e justo come-
dimento no trilhar das veredas abertas pela plasticidade no tocante à
fixação de efeitos, mas essa flexibilidade apresenta-se como natural de-
corrência de o intérprete, inclusive na modulação, atuar como o positiva-
dor derradeiro do Direito. Dessa maneira, a interpretação pode evitar o
mal maior da não-declaração de inconstitucionalidade pela preocupação
fundada no que concerne aos efeitos nocivos de eventual declaração ir-
restrita e imponderada. O "dar vida" reivindica, continuadamente, sem
rendição a pragmatismos subalternos, a superação de aparentes parado-
xos. Nisso, como em tudo, o melhor é prevenir a ocorrência (ou man-
tença) da inconstitucionalidade, no intuito de alcançar o justo equilíbrio
sistemático. 24
23. Útil avivarmos, no ponto, as palavras de Emilio Betti: "Una ricerca libera,
cioe discrezionale, deI Diritto da applicare oltrepassa l'ufficio dell'interprete e rien-
tra nella competenza dellegislatore. La corrente che va sotto il nome de freie Rechts-
findung, rappresenta non già una corretta accentuazione deI momento teleologico
nell'interpretazione ma piuttosto (...) una deviazione da evitare" (in Interpretazione
della Legge e degli Atti Giuridici, Milano: Dott. A. Giuffre Editore, 1971, p. 288).
24. Indispensável, quando se pensa em equilíbrio, ter em mente as desafiadoras
observações de Ilya Prigogine, especialmente ao propor uma nova coerência cien-
tífica, trilhando um caminho no qual as leis fundamentais exprimem possibilidades
(Ilya Prigogine e 1. Stengers in The End of Certainty, Time, Chaos and the New
Laws ofNature, New York: The Free Press, 1997; e Ilya Prigogine e G. Nicolis in
...
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 197
Para concluir a breve apreciação do primeiro preceito proposto, à
guisa de ilustração da interpretação tópico-sistemática da Constituição,
cumpre pôr em realce que bem interpretar qualquer dispositivo da Carta
(ou em face dela) implica colocá-lo, plasticamente, em conexão com a
totalidade axiológica dos objetivos fundamentais do sistema, por meio
da ponderada hierarquização de princípios, de regras e de valores, de
sorte a obter a máxima justiça possível,25 substancialmente necessária
para que a Constituição viva e a todos permita viver de modo satisfatório
e digno.
9.2.2 Segundo Preceito: As melhores interpretações são aquelas
que sacrificam o mínimo para preservar o máximo
de direitos fundamentais
O próximo preceito, em plena harmonia com os arrolados no capí-
tulo anterior, consiste em·, adotar uma visão proporcional da Carta, não
entendida a proporcionalidade apenas como adequação meio/fim. Pro-
porcionalidade significa, sobremodo, sacrificar o mínimo para preser-
var o máximo de direitos fundamentais. 26 Esta parece ser uma fórmula
suficientemente esclarecedora para o preceito, visto como algo mais do
que a simples vedação de excessos, ou seja, também como vedação de
omissões inaceitáveis e antijurídicas.
Em nenhuma circunstância um direito de estatura constitucional
deve suprimir, por inteiro, outro direito da mesma estatura. Recorde-se
que Peter Badura,27 reconhecendo a vertente administrativista do princí-
Exploring Complexity, cit., 1989; e, ainda e sobretudo, Ilya Prigogine e G. Nicolis
in Self-Organization in Non-Equilibrium Systems: From Dissipative Structures to
Order through Fluctuations, New York: J. Wiley & Sons, 1977).
25. Sobre o tema, convém enfatizar que a interpretação jurídica, como visto
no Capítulo 5, consiste, no fundo, em hierarquizar para vencer antinomias de avalia-
ção, coexistindo o princípio jurídico da justiça com os demais princípios do sistema.
A propósito, sobre o compromisso da teoria da hermenêutica jurídica com a reali-
zação de uma ordem justa, v. Vicente Barreto in "Da interpretação à hermenêutica
constitucional", Direito & Justiça 23/320, Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
26. Abarcando as várias acepções do termo "direitos" (por exemplo: liberty-
-right, claim-right, power-right e immunity-right), v. o clássico Wesley Hohfeld in
Fundamental Legal Concepts as Applied in Judicial Reasoning, New Haven: Yale
University Press, 1919. Sobre o tema, v. Jeremy Waldron in Theories ofRights, New
York: Oxford University Press, 1984, pp. 6-10. A propósito de encontrar o máximo
de preservação dos direitos, citem-se os arts. 53 e 54 da Carta dos Direitos Funda-
mentais da União Europeia.
27. Staatsrechts, München: Verlag Franz Vahlen, 1985, pp. 125 e ss.
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198 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
pio da proporcionalidade (não mera postulação abstrata), originalmente
ligado ao exercício do poder de polícia administrativa, deu-se conta da
sua transformação em limite geral à intervenção do Poder Executivo.
Indo além, é de se entender que a assertiva deve valer para todos os Po-
deres, pois bem anota Paulo Bonavides:
"Admitir a interpretação de que o legislador pode a seu livre alve-
drio legislar sem limites seria pôr abaixo todo o edifício jurídico e ig-
norar, por inteiro, a eficácia e majestade dos princípios constitucionais.
A Constituição estaria despedaçada pelo arbítrio do legislador.
"O princípio da proporcionalidade é, por conseguinte, Direito Posi-
tivo em nosso ordenamento constitucional. Embora não haja sido ainda
formulado como 'norma jurídica global', flui do espírito que anima em
toda sua extensão e profundidade o § 2º do art. 5º, o qual abrange a
parte não-escrita ou não-expressa dos direitos e garantias da Constitui-
ção, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da
natureza do regime, da essência impostergável do Estado de Direito e
dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade da
Constituição. "28
Claro que não se deve absolutizar tal princípio, mas, em sua tríplice
dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estri-
to), urge tê-lo como meta no momento da hierarquização, especialmente
observada a pertinência responsável dos juízos prévios e das avaliações
consequenciais. Convém cuidar, ainda, para, com base no mencionado
princípio, não sucumbir à tentação das soluções abstratas, peremptórias
ou apriorísticas, colidentes com a própria filosofia da proporção, dado
que não há lugar jurídico, no bojo de sistema aberto e unitário, para
imoderadas ou cabais assertivas. O princípio da proporcionalidade, vin-
culativo em relação a todos os atos judiciais ou administrativos (não
apenas os discricionários) e perante as leis (princípio da reserva da lei
proporcional), deve ser hierarquizado com o escopo de restringir abuso
ou omissão de qualquer espécie. Dessa maneira, não faz sentido invocá-
10 esgrimindo com mais abusos ou inoperâncias. Indubitável, apesar da
frequência do erro, que não se devem combater desproporcionalidades
com outras maiores.
Com efeito, o princípio da proporcionalidade quer dizer finalística
e essencialmente o seguinte: fazer concordar os valores e princípios jurí-
dicos e, quando um tiver que preponderar sobre outro, mister salvaguar-
dar, justificadamente, o que restou relativizado, preservados, no íntimo,
28. Curso... , 25ª ed., cit., p. 436.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 199
os valores em colisão. Mormente em sede constitucional, fácil constatar
a diuturna presença de antinomias desse jaez. Bem por isso, a Constitui-
ção elaborada em meio às tensões sociais e políticas não terá, nos seus
aparentes antagonismos, necessariamente um defeito, antes talvez uma
virtude evolutiva, qual seja, a de incorporar contradições que desafiam
permanentemente o intérprete a encontrar soluções proporcionalmente
melhores.
Faz-se, de conseguinte, merecedora de encômios a Carta que abriga
valores ou princípios, à primeira vista, contraditórios. Quer parecer que
uma Constituição democrática forçosamente haverá de apresentar diale-
ticidade, sob pena de não encarnar, de modo legítimo e em permanente
legitimação, os multifacéticos anseios alojados no corpo e no espírito da
sociedade. Tudo isso suscita ou impõe o permanente labor interpretativo
de compatibilização e de "dação de vida" organizada e proporcional às
prescrições fragmentárias. 29 Outra vez, verifica-se que a tarefa exegética
requer permanente conquista de equilíbrio dialético, pressuposto o self-
-restraint do intérprete constitucional e assegurado o devido processo
legal em sentido substancial,3o sem excessos nem omissões.
9.2.3 Terceiro Preceito: Toda exegese sistemática constitucional
tem o dever de garantir a maior tutela jurisdicional possível
Oportuno aduzir, como terceira diretriz ilustrativa em matéria de
interpretação constitucional sistemática, que o intérprete precisa con-
siderar, ampliativamente, o inafastável poder-dever de prestar a tutela
jurisdicional, de sorte a garantir, ao máximo, o acesso legítimo à sua
prestação. Em outras palavras, trata-se de extrair os maiores e melhores
efeitos da adoção, entre nós, da cláusula pétrea da jurisdição única, don-
de segue a intangibilidade do disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição
Federal. Tal "monopólio" do exercício da jurisdição (em sentido espe-
cífico) não comporta flexibilização ablativa. Se ameaçado ou violado o
núcleo desse direito fundamental, estar-se-á perante clara e insofismável
ofensa aos incisos III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição. São os
juízes que determinam, em instância definitiva, qual o conteúdo, por
exemplo, dos direitos e garantias individuais que não podem sequer ten-
der a ser abolidos por emenda constitucional. Vem daí o indispensável
cuidado, por exemplo, no uso da ferramenta da repercussão geral para
29. Ainda sobre proporcionalidade, por seu significado histórico, útil trazer à
colação o julgado pelo STF na Repr. 1.077/1984 (RTJ 112/34).
30. ADI 1.753-DF.
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200 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
não transformá-la em negativa de acesso. Mais: ao intérprete-juiz, ao
exercer a tutela jurisdicional típica, incumbe dizer, por exemplo, se de-
terminado ato interna corporis de fato o é, sem esquecer que não existe,
em tese e de modo apriorístico, um ato exclusivamente político. A rigor,
não existe ato jurídico absolutamente insindicável.
De outra parte, se se apresenta seguro que o intérprete lúcido viabi-
liza a flexibilidade do sistema, não se mostra menos seguro que o sistema
precisa de partes cuja estabilidade mínima seja preservada. Eis um moti-
vo forte para que a inafastabilidade do acesso ao Judiciário seja encareci-
damente resguardada como princípio fundante e intangível em nosso sis-
tema. Fora desses moldes a Carta corre o risco de perecer, afetada em sua
medula. Cumpre ao Poder Judiciário exercer, sem evasão, a jurisdição em
sentido próprio,31 tanto em processos subjetivos como, concentradamen-
te, em processos objetivos. Mas sem negar o amplo e irrenunciável direi-
to de acesso à tutela jurisdicional como espécie de contrapartida lógica,
devendo ser proclamado esse vetor decisivo no processo de interpretação
constitucional: na dúvida, prefira-se a exegese que amplia o acesso ao
Poder Judiciário, por mais congestionado que se encontre. Sem embargo
de providências inteligentes para desafogá-lo, sobretudo endereçadas a
coibir as manobras recursais protelatórias e a assumir como verdadeira-
mente precípuas as tarefas de controle da constitucionalidade. 32
9.2.4 Quarto Preceito: Uma interpretação sistemática constitucional
deve buscar a maior otimização possível do discurso normativo
relacionado aos objetivos fundamentais da Carta
A próxima diretriz ilustrativa de interpretação constitucional siste-
mática indica que o intérprete deve guardar vínculo com a excelência ou
otimização máxima da efetividade do discurso normativo relacionado
aos objetivos fundamentais da Constituição (no caso brasileiro, os arro-
lados no art. 3º). Sob a égide desse preceito eminentemente integrador,
resulta que, pairando dúvida sobre se uma norma apresenta eficácia ple-
na, ou não, é de preferir a concretização endereçada à plenitude dos ob-
jetivos fundamentais, vendo-se a imperatividade como padrão. 33 Nessa
31. Sem preconceito contra outras acepções de jurisdição, essencial manter o
sentido próprio como modo de preservar o controle derradeiro previsto no referido
art. 5º, XXXv, da Constituição Federal.
32. V. Clemerson Cleve in A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no
Direito Brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2000, p. 409.
33. Como observou Jorge Miranda, "a uma norma fundamental tem de ser atri-
buído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso con-
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 201
senda, devem-se evitar, entre as alternativas, aquelas inviabilizadoras de
qualquer eficácia imediata. Do contrário cometer-se-ia o erro de admitir
norma (inclusive princípio que também é norma) sem eficácia alguma.
Nada mais contrário e lesivo à interpretação sistemática, pois todos os
princípios, direitos e objetivos fundamentais gozam de aplicabilidade
direta e imediata.
Sem dúvida, casos há em que se constata inegável carência omis-
siva da lei regulamentadora. Todavia, em face disso, cabe ao intérprete
ter presente o imperativo da otimização dos objetivos fundamentais da
República. Defrontado, pois, com situação inercial dessa natureza, deci-
dirá sobre a quem atribuir a inconstitucional omissão regulamentadora e,
sopesando tudo, provavelmente não aplicará sanções ao titular do direito
não-regulamentado por tentar exercê-lo e, em determinadas circunstân-
cias, colmatará a lacuna, ao menos transitoriamente.
Se tudo que se encontra na Carta deve ser visto como tendente à
eficácia, o intérprete constitucional sistemático reconhece, por assim di-
zer, a presença digital da eficácia (isto é, a vocação natural para o cum-
primento dos objetivos fundamentais da Carta), notadamente ao cuidar
de dispositivos tidos como não-autoaplicáveis. Em nosso ordenamento,
lícito asseverar que algum efeito sempre será irradiado dos preceitos
constitucionais em diálogo com o intérprete, que não os vê como objetos
inertes. Oportuna, nesse contexto, a recordação de Konrad Hesse: "Dado
que a Constituição pretende ver-se atualizada e uma vez que as possibili-
dades e os condicionamentos históricos dessa atualização modificam-se,
será preciso, na solução dos problemas, dar preferência àqueles pontos
de vista que, sob as circunstâncias de cada caso, auxiliem as normas
constitucionais a obter a máxima eficácia".34
ferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação"
(in "Direitos fundamentais e interpretação constitucional", RTRF-4ª Região 30/2).
34. Grundzüge des Verfassungsrechts... , cit., p. 30 ("die Verfassung aktualisiert
werden wil1, die geschichtlichen Mõglichkeiten und Bedingungen dieser Aktualisie-
rung sich aber wandeln, ist bei der Lõsung verfassungsrechtlicher Probleme denje-
nigen Gesichtspunkten der Vorzug geben, die unter der jeweiligen Voraussetzungen
den Normen der Verfassung zu optimaler Wirkungskraft verhelfen"). Convém re-
cordar, entre outros, os princípios da unidade, da concordância prática e da correção
funcional, que seriam os princípios de interpretação, segundo Hesse, influenciado
por Smend no tocante à eficácia integradora (idem, pp. 51-52). V., ainda, para fa-
cilitar, Konrad Hesse in A Força Normativa da Constituição, cit., 1991, articulan-
do os pressupostos que permitem à Constituição desenvolver de forma ótima a sua
força normativa. Depois de anotar a relativização dos princípios, sem desvendar o
"metacritério", Hesse faz questão de reiterar o imperativo respeito que se deve ter à
vontade da Constituição (da qual depende a intensidade normativa), recordando que
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202 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Em idêntica angulação, os princípios programáticos não devem ser
lidos como se fossem apelos de uma retórica vazia, frívola ou supérflua,
porém como dotados de força eficacial, apesar de sua função algo pro-
jetiva. Nada há nos comandos da Lei Maior que não deva repercutir na
totalidade do sistema jurídico e, mais do que isso, na vida real. 35 Dessa
maneira, na dúvida, prefira-se, em lugar da leitura estéril, a exegese ju-
risdicional endereçada à plenitude vinculante dos princípios e objetivos
fundamentais da Constituição, é dizer, com o reconhecimento de que os
comandos de imperatividade (apenas relativamente) à espera de regula-
mentação não deixam de vincular, desde logo, o aplicador.
9.2.5 Quinto Preceito: Toda e qualquer exegese sistemática
constitucional deve ser articulada a partir de uma
fundamentação (hierarquização) racional, objetiva
e impessoal das premissas eleitas
Outra diretriz ilustrativa de interpretação tópico-sistemática da
Constituição é a de que o intérprete deve buscarfundamentação (hierar-
quização) racional, objetiva e impessoal para todas as suas decisões no
a estabilidade constitui condição fundamental de eficácia da Carta. Depois, sublinha
que a interpretação tem "significado decisivo para a consolidação e preservação da
força normativa constitucional. A interpretação está submetida ao princípio da ótima
concretização da norma" (p. 22). Destaca, acertadamente, que "esse princípio não
pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela cons-
trução conceitual. Se o Direito, e, sobretudo, a Constituição, tem a sua eficácia con-
dicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação
faça dela tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as
com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela
que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido [SinnJ da proposição nor-
mativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação" (pp. 22-
23). E arremata, acentuando a dimensão teleológica de todo ato hermenêutico: "A fi-
nalidade [TelosJ de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa
não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança de situação. Se o sentido
de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional
afigura-se inevitável. Do contrário ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e rea-
lidade com a supressão do próprio Direito. Uma interpretação construtiva é sempre
possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na interpretação
construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e,
por conseguinte, de sua estabilidade" (p. 23). Esta orientação forte pode ser endossa-
da, conquanto se deva ressaltar que faltou a constatação do princípio que se impõe,
em caso de antinomias, diante dos demais princípios, normas e valores.
35. Nessa perspectiva, v. também, em gratificante confluência, a contribuição
de Alexandre Pasqualini in Hermenêutica e Sistema Jurídico, cit., a partir de exce-
lente dissertação de Mestrado, que tive a honra de orientar.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PúBLICO 203
incessante diálogo com o sistema, sem adotar jamais soluções "contra
legem". Em outro modo de dizer, deve lutar, com denodo, contra todo
subjetivismo redutor da "juridicidade" do sistema constitucional. Com
efeito, uma das mais altas funções da interpretação tópico-sistemática
consiste no combate ao arbítrio irracionalista. Certo, não se pode erra-
dicar a salutar dose de subjetividade, porque a liberdade, felizmente, é
traço inextirpável no ato pluralista36 de decidir e de julgar, dado que não
se opera, como enfatizado, com silogismos lógico-formais, sem prejuí-
zo da permanente crítica aos próprios condicionamentos. Vai daí que
deve ser afastado qualquer decisionismo movido sob o influxo deletério
das paixões, não raro associadas a motivações subalternas ou menores.
Apenas assim edificar-se-á um sistema constitucional acatável argumen-
tativamente, para recordar, nesse ponto, Chaim Perelman, preocupado
com a responsabilidade ética dos decisores judiciais e com o raciocínio
adequado quando se trata de raciocinar dialeticamente sobre justiça. 37
Mormente em sede de controle da constitucionalidade, tal considera-
ção, que visa a harmonizar o sistema posto e as cobranças inerentes à
racionalidade dialética,38 revela-se indescartável, importando sublinhar
que o intérprete sistemático precisa cortar vínculos e anelos não univer-
salizáveis.
Tipifica-se como não-sistemática e violadora do Direito a exegese
que se pautar por motivos, ocultos ou não, que não possam, de maneira
sadia, ser generalizados numa sociedade livre e de iguais em dignidade.
Nesse quadro, por exemplo, a decisão contra legem representa equívo-
co estratégico, porque perante determinada lei injusta e aberrante não
se deve decidir contrariando-a, mas suprimi-la pela declaração de sua
inconstitucionalidade, já que agride o sistema e a sua mantença não
pode ser generalizada de modo defensável por mentes lúcidas. A von-
tade racional e sistematizadora é, na sua abertura para a busca do "bem
36. Para o Tribunal Constitucional Espanhol, "la Constitución es un marco de
coincidencias suficientemente amplio" (STC 11/1981, 8 de abril).
37. Convém recordar a lição de Perelman: "Se o Direito Natural forneceu uma
técnica secular no Ocidente Medieval para limitar o exercício do poder de forma que
ela seja digno de um monarca cristão, se a ideia de um Direito racional pode cumprir
a mesma função nos séculos XVII e XVIII, esse mesmo papel é cumprido, nas so-
ciedades democráticas contemporâneas, por juízes que compreendem seu papel, que
é o de conciliar o respeito pelo Direito com o respeito pela equidade e pela justiça,
de eliminar-lhe as consequências desarrazoadas, portanto inaceitáveis" (in Ética e
Direito, cit., p. 457).
38. V. também J. Habermas in Theorie des kommunikativen Handelns, cit.,
1985, vols. I e 11.
 ........
204 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
de todos" (CF, art. 3º), uma alavanca dialógica do intérprete que aplica
as normas constitucionais. É por isso que a fidelidade maior há de se
verificar no zelo impessoal pela preservação dos princípios e objetivos
fundamentais que mantenham o sistema em processo de legitimação
racional.
9.2.6 Sexto Preceito: Uma boa interpretação sistemática
constitucional é aquela que se sabe, desde sempre,
coerente e aberta
Na continuidade da exposição ilustrativa desse rol de vetores de
interpretação tópico-sistemática da Constituição, cumpre, agora, men-
cionar a diretriz segundo a qual uma boa interpretação também é aquela
que, desde sempre, sabe-sejuridicamente aberta e coerente. O intérprete
constitucional- antes de tudo, intérprete jurídico - não deve desconhecer
a abertura dialógica do sistema (nas suas várias dimensões), já que é por
intermédio dela (abertura) que assume a condição de grande e preferen-
cial motor das mutações constitucionais, como tem sucedido em países
com modelos distintos de controle da constitucionalidade. 39 Então, para
preservar a abertura, a elasticidade, o equilíbrio e a coerência, o intérpre-
te constitucional deve, de modo precípuo, realizar, ousadamente, quando
for o caso, as mutações indispensáveis em virtude do aproveitamento da
flexibilidade potencial da Carta. Se se permite a imagem, a Constituição
é o coração jurídico do país. Sendo assim, quanto menos intervenções
invasivas houver (salvo as imperiosas), tanto melhor para o coração ins-
titucional. De fato, parece inquestionável que cada reforma textual pode,
ao menos em ambientes instáveis em matéria de instituições, funcionar
como um processo agressivo. De sorte que se mostra preferível, quando
viável, deixar que o intérprete atue como atualizador e reformador, por
excelência, do texto constitucional, dele extraindo ricas e extraordiná-
39. Bem observa Alessandro Pizzorusso: "Mentre negli Stati Uniti iljudicial
review oflegislation nasce dall'idea giusnaturalistica dell'esistenza di un complesso
di diritti fondamentali inalienabili e intangibili per illegislatore, in Europa la Verfas-
sungsgerichtsbarkeit si presenta come un'estensione agli atti legislativi di quel con-
trollo di legalità che già era stato introdotto per gli atti amministrativi, in applicazio-
ne deI principio deI Rechtsstaat" (in La Costituzione Ferita, Roma: Editori Laterza,
1999, pp. 31-32). A propósito, v. também L. Favoreu in Les Cours Constitutionneles,
cit. No Estado Constitucional de Direito prepondera a dupla subordinação às leis e à
Constituição. Em relação aos juízes europeus, v. Manuel Aragón Reyes in Estudios
de Derecho Constitucional, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constituciona-
les, 1998, pp. 163-167.
~-
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 205
rias possibilidades decorrentes da indeterminação, voluntária ou não, de
conceitos e institutos.
Reitere-se: as atualizações efetuadas pelo intérprete cioso de sua
tarefa devem ser encaradas como prioritárias, sobretudo quando se re-
conhece que o juiz atua como culminador, para o caso, do processo
de positivação evolutiva. Vai daí que deve ser confiado ao intérprete,
primacialmente, o papel de realizador das pontuais mudanças de nossa
Constituição. Efeito altamente vantajoso dessa postura encontra-se no
ganho sensível de previsibilidade, além do erguimento de pacificado-
ra barreira à erosão constitucional, degradação nociva que não se con-
funde com a mudança patrocinada por, não raro, inadiáveis mudanças
textuais.
Em paralelo, a ideia de revisão da Carta merece entendimento res-
tritivo. Doravante, no caso brasileiro, parece haver tão somente ensejo
para o poder derivado de emenda, nos limites do art. 60 da Constituição
Federal, ao lado das "mutações constitucionais" realizadas parcimonio-
samente pela via interpretativa, ambas as vias respeitando e fazendo
respeitar os princípios sensíveis, asseguradores dos direitos e garantias
fundamentais.
Essa prescrição surge como decorrência do preceito de que, ao hie-
rarquizar, precisa-se conferir, ao mesmo tempo, abertura e consistência
à ordem constitucional. Com efeito, não há país, para prosseguir na ima-
gem, que suporte trabalhar, permanentemente, com o peito aberto, don-
de segue que se deve suplantar a nefasta tendência de trivialização das
emendas e da simultânea desconfiança com relação ao coeficiente trans-
formador da exegese. É lícito supor que o surto desmedido de mudanças
legislativas encontre paradeiro (em parte) por meio da atuação rigorosa
do intérprete tópico-sistemático, no exercício indeclinável do mister de
dar vida e justiça atualizadora ao Estatuto Maior. Revela-se essencial,
quiçá mais do que em qualquer outro momento da nossa história, promo-
ver a função evolutiva na interpretação da Carta. Todavia, para fazê-lo, é
,preciso conferir uma certa solidez ao trêmulo edifício jurídico, no ata de
promover a alastrada e consuetudinária respeitabilidade à Constituição
no seu âmago, voltado à afirmação da dignidade,40 do interesse público
genuíno e, enfim, das normas de justa convivência.
40. Acerca da correlação entre dignidade humana e interesse público, v. meu
O Controle dos Atos Administrativos... , cit., pp. 54-60. Sobre o conceito de dignida-
de humana, v. Ingo Sarlet in Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamen-
tais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
 ......
206 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
9.2.7 Sétimo Preceito: As melhores interpretações constitucionais
sempre procuram zelar pela soberania da vitalidade
do sistema, sem desprezar o texto, mas indo além dele,
como requer o próprio texto constitucional
O próximo preceito ilustrativo de interpretação constitucional siste-
mática, intimamente associado ao anterior, dispõe que, sem desprezo da
intenção do constituinte originário ou derivado, importa zelar pela so-
berania da vitalidade do sistema constitucional em sua inteireza, adota-
da, quando necessário e com extrema parcimônia, a técnica da exegese
corretiva, sem incorrer na amputação afoita.
Mais do que a voluntas legislatoris ou mesmo a voluntas legis,
impende ressaltar e fazer visível o espírito democrático e inclusivo da
Constituição. A intenção subjetiva e textual do legislador constituinte
histórico tem o seu peso, mas é rigorosamente secundária. 41 Nesse con-
texto, por exemplo, ainda que inexista norma constitucional originária
inconstitucional, imprescindível a ousadia de corrigir o texto originá-
rio hermeneuticamente no intuito de preservar a vontade harmônica do
sistema em seu desiderato teleologicamente superior. 42 Dessa maneira,
quando, por exemplo, no art. 243, a Constituição diz "expropriadas",
parece mais compatível com o sistema constitucional reconhecer que a
expressão combina com o sentido de "confiscadas", numa exegese mo-
deradamente corretiva. Não é difícil sustentar tal intelecção se lido o dis-
positivo na íntegra e, sobretudo, conjugado com os demais comandos,
notadamente com o art. 5º, XXIV, da Constituição Federal.
Portanto, para além da intenção aparente (subjetiva ou objetiva) da
norma, mostra-se imperativa a defesa da vitalidade do sistema constitu-
cional que exsurge da convergência insuprimível entre texto e intérprete
(cognitiva e volitivamente considerados), interação tipicamente dialéti-
ca.
Todavia, não se deve descurar a intenção histórica do constituinte, a
despeito de ser vontade coletiva e confusa, não raro de difícil averigua-
ção exata. Recordem-se os elucidativos exemplos de debates hermenêu-
ticos que se travaram, entre nós, a respeito da partícula "e" (Seria disjun-
tiva? Seria aditiva?) e acerca da bizarra função de um "ponto-e-vírgula",
sempre envolvendo a reforma previdenciária. Em ambas as hipóteses
41. No Estado Democrático o "governo da Constituição" não pode ser o "go-
verno dos homens" que a promulgaram.
42. v., noutro contexo, Edward C. Black in Handbook on the Construction and
Interpretation ofthe Laws, St. Paul: West Publishing, 1896, pp. 48-104.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 207
a consulta aos trabalhos preparatórios tomou-se ferramenta útil, apesar
de despontar, antes de mais, como força auxiliar de argumentação. De
qualquer sorte, casos há em que as supostas intenções originais simples-
mente não podem ser menosprezadas. 43
Certo que, no geral das vezes, a ambiguidade ou a indeterminação
exacerbada são "dolosas", de sorte que a pesquisa da vontade histórica
(jamais unívoca) resulta, em si, insuficiente. Logo, urge ter presentes as
epistemológicas fraquezas do "originalismo" extremado e das premissas
associadas ao interpretativismo estrito. No limite, estão presas a mitos
napoleônicos de intérpretes servos da legalidade e da ideia ultrapassada
de que os direitos existiriam apenas quando reconhecidos pelas leis.
Entre outras falhas, o originalismo exacerbado - por exemplo, de
Robert Bork - crê que, onde o Direito resolvesse parar, aí o juiz precisa-
ria parar, ou seja, parte do pressuposto equivocado de que o sistema, em
algum momento, poderia encontrar-se em pleno repouso. 44 Ora bem, o
Direito está em incessante" movimento ou em continuada variabilidade
evolutiva, e deve ser interpretado à vista dessa evidência.
Além disso, posturas como a do textualism045 tomam-se insatisfa-
tórias diante das exigências prioritárias do sistema constitucional, que
implicam transcendência em relação ao texto. O textualismo de Scalia,
por exemplo, merece reparos centrais (a) por não assumir a circularidade
hermenêutica, com a dialética tensão entre sujeito e objeto, e (b) por não
conseguir, em razão disso, dar conta de ordens constitucionais que deter-
43. A propósito, embora não se adote postura originalista estrita, vale conferir
a articulada defesa do originalismo feita por Keith Whittington in Constitutionalln-
terpretation, Kansas: University Press of Kansas, 1999, especialmente pp. 77-109.
44. O equívoco é cometido, por exemplo, por Robert Bork: "Where the law
stops, the legislator may move on to create more; but where the law stops, the judges
must stop" (in "Originalism", cit., pp. 56-57). O erro crucial, neste caso, está em não
perceber o Direito sempre em movimento. Insiste, ademais, na "neutral defmition of
the principIe derived from the historie Constitution", algo que esconde opções nada
neutras do autor, ao reproduzir posições do passado. Na perspectiva tópico-sistemá-
tica - à diferença da esposada por Bork - as considerações axiológicas não podem
ser descartadas e implicam assumir postura atualizadora. A hierarquização é atuali-
zadora. O equívoco de pressupostos o conduz a criticar, de maneira juridicamente
insustentável, a decisão da Suprema Corte no célebre caso "Shelley vs. Kramer". Por
tudo, não parece ter bem equacionado o vetusto "dilema madisoniano".
45. Tem-se em mente, aqui, o textualismo sustentado por Antonin Scalia (in
A Matter oflnterpretation, cit., p. 23). Salienta que o seu textualimo "should not be
confused with so-called strict constructionism, a degraded form of textualism that
brings the whole Philosophy into disrepute. I am not a strict constructionist, and no
one ought to be - though better that, I suppose, than a nontextualist".
 .....
208 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
minam ir além do texto (veja-se o que dispõe a Emenda IX à Constitui-
ção Norte-Americana: "The enumeration in the Constitution, of certain
rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the
people" - autêntica norma geral inclusiva, assim como se verifica, no
sistema brasileiro, no art. 5º, § 2º, da CF.
O textualismo, embora possua o mérito de realçar que o objeto tex-
tual não deve ser desprezado, deixa de observar, sem justificativa plau-
sível, exigências constitucionais e hermenêuticas de transcendência
decorrente do próprio texto. Por isso, não raro, mostra-se claramente
não-textualista, numa contradição flagrante entre teoria e práxis.
Apenas para ilustrar, tome-se a crítica que Scalia faz à decisão da
Suprema Corte no caso "Maryland vs. Craig".46 Revela menos a apre-
goada fidelidade ao texto da Emenda VI do que o apego unilateral ao
sentido histórico (incorrendo justamente no interpretativismo estrito que
diz repudiar), tal a primazia que empresta a um direito (no caso, o do de-
fendant) sem compatibilizá-lo sistematicamente com outro direito fun-
damental (no caso, o da menina, suposta vítima e testemunha). Não faz
maior sentido negar, por apego ao texto, a notável evolução em matéria
de proteção dos direitos do menor de 1791 aos nossos dias. Tal "apego"
até poderia ser endossado, argumentativamente, se tivesse havido retro-
cesso na matéria. Ainda assim, argumento dessa natureza não seria pro-
priamente textualista, mas fruto da preferência por determinado prisma
de avaliação axiológica.
Assim, conquanto sustente não querer praticar o interpretativismo
estrito, Scalia não atende a superiores imposições axiológicas atualiza-
doras, estatuídas pelo próprio texto normativo. Não há nada na Consti-
tuição que impeça julgamentos "morais" ou axiológicos. Ao contrário.
O constituinte determina apreciações prudenciais e axiológicas, que
forçosamente estarão situadas no plano da pré-compreensão e do além-
-textual. A propósito, a posição de Scalia a respeito do caso "Church
of the Holly Trinity vs. United States,,47 igualmente revela uma opção
tendente ao estrito, por ele criticado.
Bem de ver que a circularidade hermenêutica não se coaduna com
o primado exagerado do objeto-texto. A interpretação tópico-sistemática
não permite a imposição passiva da imaginária vontade do texto ao intér-
prete. A recíproca é verdadeira. Não se deve assumir postura tirânica que
desconsidere o texto. Em suma: o exame crítico do textualismo revela
46. Scalia in A Matter ofInterpretation, cit., pp. 42-43.
47. Idem, pp. 18-20.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 209
quão indispensável ultrapassar o paradigma antigo e datado da relação
tradicional sujeit%bjeto, sobremodo porque contrário às evidências
empíricas.
9.2.8 Oitavo Preceito: As melhores leituras sistemáticas
da Constituição visualizam os direitos fundamentais
como totalidade indissociável e, nessa medida,
procuram restringir ao máximo as suas eventuais limitações,
emprestando-lhes, sem omissão,
a tutela reconhecedora da eficácia direta e imediata
O próximo preceito ilustrativo de exegese sistemática constitucional
orienta: os direitos fundamentais não devem ser apreendidos separada
ou localizadamente, como se estivessem todos encartados no art. 5º da
Constituição Federal (no caso brasileiro). De outra parte, devem ser inter-
pretadas restritivamente as limitações, pois, a rigor, o que há é um regi-
me unitário dos direitos fundamentais das várias "gerações". Daí segue
que, no âmago, todos os direitos têm eficácia direta e imediata e recla-
mam crescente acatamento, na luta contra ações ou inércias involutivas.
De fato, uma vez reconhecido qualquer direito fundamental, a sua
ablação e a sua inviabilização mostram-se inconstitucionais. Ainda: por
força da cláusula presente em autêntica norma geral inclusiva48 prevista
no § 2º do art. 5º,49 integrados estão, de modo implícito, a nosso elenco
de direitos fundamentais os consagrados pela Declaração Universal dos
Direitos do Homem. 5o Nessa ordem de considerações, todo aplicador
precisa assumir que a exegese tem o condão de atuar como enérgico
anteparo contra o descumprimento de preceito fundamental,51 razão pela
48. Útil observar que não se adere ao positivismo inclusivo, proposto por Jules
Coleman in The Practice ofPrincipIe: In Defense ofa Pragmatist Approach to Legal
Theory, Oxford: Oxford University, 2001 (em contraposição ao exclusive positivism
de Joseph Raz). Observe-se que não parece consistente o seu apelo ao convenciona-
lismo. Contudo, a rigor, nem parece ser propriamente positivista o autor, contradição
bem apontada por Ronald Dworkin (in Harvard Law Review 115/1.655-1.687).
49. "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (...)." Note-se que outra
Constituição democrática que não contenha uma cláusula expressa de abertura tam-
bém pode ser interpretada de modo sistemático, não se restringindo o alcance das
garantias, justamente pelo manejo de princípios e regras constitucionais, a partir do
reconhecimento da inerência da abertura do sistema.
50. Frise-se que há expressa vinculação na Carta da Espanha (art. 10.2).
51. V., a propósito do processo e julgamento da arguição de descumprimento
de preceito fundamental, a Lei 9.882/1999, merecendo especial atenção os arts. 4i!,
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210 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
qual deve ser evitado qualquer resultado interpretativo que reduza ou
debilite a máxima eficácia possível dos direitos fundamentais. 52
Mister que a exegese sistemática promova e concretize os princí-
pios, direitos e objetivos fundamentais entrelaçadamente, sem ampliar
as restrições excepcionais previstas no sistema. Mais do que in dubio pro
libertate, princípio significativo nas relações do cidadão perante o Poder
Público, faz-se irretorquível o mandamento segundo o qual, em favor da
dignidade, não deve haver dúvida. Todos os princípios constitucionais
devem ser respeitados ao máximo e de modo digno, sem se render o in-
térprete às seduções de privilegiar uma só das "gerações" dos direitos
fundamentais, qualquer que seja. 53
Além disso, inaceitável optar, aleatoriamente, por uma das prin-
cipais teorias de interpretação dos direitos fundamentais, ao menos na
perspectiva tópico-sistemática que não se pauta por pragmatismos ra-
dicais, despreocupados com vigorosas exigências de fundamentação.
Ao dizer isso, reafirma-se que não se adere às concepções unilaterais
e reducionistas, por mais tentadoras que se apresentem. Por exemplo,
inaceitável qualquer teoria axiológica que não guarde forte vinculação
com a sistematicidade. Com efeito, a posição hermenêutica tópico-sis-
temática acerca dos direitos fundamentais determina, topicamente, o
critério que faz preponderar esse ou aquele direito, na construção da
unidade axiológica do sistema, naturalmente destituído de rígida hierar-
quia a priori. O intérprete deve alcançar uma teoria hermenêutica abar-
cante, complexa, não-unilateral, não-unidimensional. Numa palavra:
sistemática. Significa que, ao se interpretarem os direitos fundamentais,
não se deve optar por uma só das teorias arroladas por Emst-Wolfgang
Bõchenfõrde. 54 Tais teorias supõem, sopesadamente, uma combinação
tópico-sistemática, inconfundível com ecletismo. Devem ser, pois, re-
visitadas, sem medo da formulação de uma teoria dialeticamente equi-
librada. É que a aplicação tópico-sistemática dos direitos fundamentais
inclui, necessariamente, elementos, à primeira vista, contraditórios das
múltiplas teorias e - reitere-se - não se coaduna com a escolha arbi-
5º, 10 e 11. v., no contexto mais amplo, Gilmar Ferreira Mendes in Jurisdição Cons-
titucional, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007.
52. Sobre o tema, v. Ingo Sarlet inA Eficácia... , cit.
53. Por mais tentador que seja, convém não absolutizar os princípios, convindo
trazer a lume as palavras de Laurence Tribe e Michael Dorf: "To attribute any uni-
tary mission to the Constitution 'as a whole' is to cross the line between reading the
document and writing one ofyour own" (in On Reading the Constitution, cit., p. 26).
54. Escritos sobre Derechos Fundamentales, cit., pp.13-25.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 211
trária ou excludente, tampouco com o decisionismo axiológico despido
de fundamentação. Aquele que oferece ensejo à crítica extremada dos
que temem apreciações valorativas no plano jurídico. Superada, desse
modo, a erronia de qualquer teoria fixista (contraposta à aludida va-
riabilidade evolutiva do sistema), os direitos fundamentais devem ser
aplicados à base daquela compreensão tópico-sistemática que agasalha
a tensão entre liberdade, igualdade 55 e princípios de idêntica estatura,
todos numa relativização ou compatibilização. Sem praticar os desvios
da não-razoabilidade. 56 A Constituição é objeto complexo e plural, a ser
compreendido no círculo hermenêutico, sem que se admitam os vícios
da dis-integration e da hyperintegration, as duas grandes falácias inter-
pretativas (no fundo, uma SÓ).57 Deve-se evitar toda e qualquer visão
exacerbadamente limitadora e unidimensional, tais como as que preten-
dem deduzir os direitos fundamentais de um só dos direitos. Em suma:
deve-se concentrar a energia na maximização ou otimização da eficácia
da totalidade dos direitos fundamentais, sem preferências excludentes.
Outro aspecto a sublinhar: princípios, objetivos e direitos funda-
mentais, de algum modo, são independentes do reconhecimento infra-
constitucional. Nessa medida, útil sobrepassar as posturas interpretati-
vas abstratas ou atadas ao mito do meramente programático (como se
os objetivos fundamentais da Constituição, por exemplo, não gerassem
deveres fundamentais). Assim, os direitos prestacionais, ao menos no
núcleo, também devem ser respeitados de maneira direta. Não se ig-
nora a oportuna advertência dos que temem o protagonismo desmedi-
do do Poder Judiciário, mas inegável que o juiz precisa exercer, sem
usurpação, o poder-dever de adaptar e de vivificar os direitos numa so-
ciedade democrática e livre, até para resguardar a própria participação
social. Em síntese: numa perspectiva tópico-sistemática, para além do
55. Cumpre recordar, a respeito, José Murilo de Carvalho, ao assinar em Cida-
dania no Brasil. O longo Caminho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.
229: "A desigualdade é a escravidão de hoje (...)".
56. V. a abordagem clássica de Joseph Tussman e Jacobus Tebroeck in "The
equal protection ofthe laws", CaliforniaLaw Review XXXVII/341 e ss., n. 3 (1949),
com a doutrina da classificação razoável, criticadas as soluções over-inclusive e un-
der-inclusive. Acerca da cláusula equal protection, v. também a suspect classifica-
tion, exposta por Fernando Rey in El Derecho Fundamental a No Ser Discriminado
por Razón de Sexo, Madrid: McGraw-Hill, 1995, pp. 53-54. v., ainda, JoOO Ely in
"The constitutionality ofreverse discrimination", University o/Chicago Law Review
41/723-735 (1974).
57. Apontadas por Laurence Tribe e Michael Dorf in On Reading the Consti-
tution, cit., pp. 19-30.
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212 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
textualismo e da retórica, o núcleo basilar dos direitos fundamentais
não pode deixar de ser respeitado, não apenas pelo legislador, mas pelo
intérprete-juiz, sobremodo em sistema de jurisdição única. Daí a inser-
ção fecunda, por exemplo, do direito fundamental à boa administração
pública, que permite renovar, por inteiro, a sindicabilidade das condutas
administrativas. 58
Finalisticamente, a lei deve ser vista como instrumento para incre-
mentar, confortar e densificar os direitos fundamentais, ou seja, viabi-
lizar os seus avanços, por exemplo, em termos de políticas públicas. 59
Não para adiar prestações inadiáveis (v.g., o direito de receber prestação
de assistência médica). A reserva legal não deve, em hipótese alguma,
servir de escudo para a imperdoável omissão inconstitucional. Argu-
mento significativo a favor dessa proposição: a omissão regulamentado-
ra ou restritiva não pode ser imputada ao titular do direito fundamental,
mas aos Poderes Públicos. O intérprete judicial, portanto, não tem o di-
reito de se omitir no combate tópico-sistemático à omissão injustificá-
vel, porque, no referido sistema de jurisdição única, controla, por último,
as omissões inconstitucionais (sem menosprezar os riscos inerentes a
certo protagonismo). Como visto, o titular não deve receber sanções
em decorrência de uma omissão que não é sua, salvo as decorrentes do
eventual desrespeito a outros direitos fundamentais.
Mais do que nunca, os princípios, objetivos e direitos fundamentais
devem iluminar todas as searas do Direito, condição para que se evite
a perpetuação de ordem insuportavelmente assimétrica. Para tanto, im-
põe-se acentuada mudança de mentalidade que extraia consequências,
ainda mais fundas, do princípio da constitucionalidade (autônomo em
face do princípio da legalidade). A omissão passa a ser tão violadora
dos direitos fundamentais como os abusos e os excessos. Viola, igual-
mente, o princípio da proporcionalidade, como assinalado. De sorte que
toda interpretação deve estar em linha de conformidade com as exigên-
cias da totalidade dos direitos fundamentais, consorciados sempre com
deveres. A gravidade da omissão, nessa matéria, determina a profunda
58. V. Juarez Freitas in Discricionariedade Administrativa... , 2ª ed., cit., 2009.
59. Sobre o tema das polítcas públicas, para ilustrar: Marcelo Figueiredo in
"O controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário no Brasil- uma visão geral",
Interesse Público 44, Belo Horizonte: Fórum, 2007, pp. 27-66; Eduardo Fernan-
do Appio in O Controle Judicial das Políticas Públicas no Brasil, Curitiba: Juruá,
2005. Têmis Limberger in "O dogma da discricionariedade administrativa: a tensão
instaurada entre os poderes Judiciário e Executivo devido às políticas públicas de
saúde no Brasil", Interesse Público 57, Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 77-98.
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ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 213
reelaboração de institutos tais como o da responsabilidade extracontra-
tual do Estado. 6o
Para além de formalismos extremados e excludentes, deve-se tor-
nar efetivo o plexo dialeticamente unitário dos direitos fundamentais, de
modo que, na dúvida, cumpre dar preferência à interpretação que outor-
gue a máxima positividade a favor do "bem de todos" (CF, art. 3º). Em
outras palavras, a interpretação deve ser de molde a levar às melhores
consequências a "fundamentalidade " dos direitos, princípios e objeti-
vos maiores, assim como a presença dos direitos fundamentais em qual-
quer relação jurídica. Quer dizer: os direitos fundamentais (inclusive
os sociais) reclamam, nos limites do economicamente possível (sem os
exageros de determinadas interpretações econômicas nem o excesso dos
ímpetos conducentes a oscilações caóticas), que as regras sejam lidas se-
gundo o telos da efetividade sistemática. Não se admite, nesse momento
do século XXI, o subterfúgio ou o pretexto da subsunção mecânica e
irrefletida. Inegável, pois, o espaço para a ponderação suscitadora da
gradativa ampliação eficacial dos direitos, à luz de cuja preocupação
hermenêutica afasta-se, inclusive no plano das regras, a aplicação pura e
simples de uma lógica do tudo ou do nada. De sua vez, a ideia de reserva
do possível (Vorbehalt des Moglichen, no dizer do Tribunal Constitu-
cional Alemão, ao tratar de vagas nas Universidades) deve ser encarada
com parcimônia. Cumpre, sim, nutrir reservas à reserva do possível.
Nesse sentido, não é exagero cobrar, em relação à íntegra dos direitos
fundamentais, o imediato desenvolvimento daquele mínimo de realiza-
ção. Assertiva que inclui, por exemplo, os princípios da eficiência e da
eficácia, tão relevantes para a concretização do direito fundamental à
boa administração pública.
Por todo o articulado, é claro que o catálogo dos direitos funda-
mentais não é exaustivo, por força da norma geral inclusiva prevista no
texto de nossa Constituição (algo similar ao que existe, por exemplo, nas
Constituições de Portugal, dos EUA, entre outras), vigorando o dever de
realizar uma interpretação em sintonia com a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, em que pese não haver dispositivo expresso (como
o previsto no art. 16 da Constituição Portuguesa). Mais: não há lacuna,
em sede de direitos fundamentais, que não se resolva vencendo uma
antinomia entre norma geral exclusiva e a citada norma geral inclusiva.
60. Sobre o tema da necessária revisão do instituto da responsabilidade do
Estado, v. meu livro O Controle dos Atos Administrativos... , 4ª ed., cit., 2009, p. 130.
Sobre a relação entre responsabilidade do Estado e proporcionalidade, v. meu livro
Discricionariedade Administrativa... , 2ª ed., cit., 2009, Capo IV.
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214 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Sem prejuízo de dimensão topicamente imprescritível e em que
pese se entender que os direitos fundamentais transcendem, de algum
modo, o estatal reconcebido, parece correto afirmar que, a rigor, inexiste
direito fundamental dotado da apriorística primazia cabal e solitária,
dada a intersubjetividade dos direitos, de maneira que sequer a digni-
dade pode ser vista como absoluta, uma vez que o respeito à dignida-
de supõe proteção isonômica de todas as dignidades. Assim é que se
deve interpretar a totalidade dos direitos fundamentais, no seio de nossa
Constituição, isto é, de maneira proporcional, como o resultado da mú-
tua e salutar relativização. Não enfraquece, mas, ao contrário, fortalece
a totalidade dos princípios, objetivos e direitos fundamentais o fato de
serem reciprocamente complementares.
Eis, em síntese, as proposições interpretativas que desdobram o oi-
tavo preceito tópico-sistemático da Constituição.
9.2.9 Nono Preceito: Na perspectiva tópico-sistemática,
uma lúcida interpretação das normas fundamentais
sempre colima promover a preservação
dos princípios constitucionais, ainda quando em colisão
Nesse enfoque, outro vetor importante da interpretação sistemática
da Constituição diz que os princípios fundamentais jamais devem ser
eliminados mutuamente, ainda quando em colisão, à diferença do que
pode acontecer, em último caso, com as regras jurídicas de inconstitu-
cionalidade declarável. A rigor, também estas não devem ser interpreta-
das necessariamente numa lógica de supressão ou de desaparecimento
puro e simples, embora, exatamente em função de serem inferiores na
hierarquia axiológica, quando instaurada uma grave antinomia, determi-
nado princípio substancial pode exigir a tópica eliminação (expressa ou
tácita) de uma das regras ou, ainda, a sua modulação. A antinomia de
regras oculta sempre uma antinomia de princípios, sendo esta uma das
centrais ideias desse trabalho. Como dito, a lógica da superação das an-
tinomias ocorre com fulcro em algo mais do que a diferenciação de lin-
guagem. Precisa ser operada igualmente em relação às regras, na linha
do exposto, de modo que a técnica das distinções e a da hierarquização
há de preponderar sobre a da mera supressão. Nesse aspecto, diferenças
qualitativas e de fundo entre princípios e regras, embora remanesçam,
resultam bem menores do que o imaginado à primeira vista. 61
61. Robert Alexy opta por um modelo combinado de princípios e regras (esta-
belecendo o diferente caráter primafacie - Theorie der Grundrechte, cit., pp. 87-88;
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVANO DIREITO PÚBLICO 215
Na prática, ainda que inconscientemente, opera-se uma hierarqui-
zação axiológica, em homenagem a determinado princípio ou conjunto
de princípios. O que pode fazer com que uma regra ceda lugar à outra,
mediante a afirmação tópica da natureza superior de determinados co-
mandos principiológicos em relação às regras em colisão, mais do que
a ablação de uma pela outra, embora também aqui a visada sistemática
exija esgotar as possibilidades da exegese conformadora. De sua vez, a
essência (com certa liberdade ao empregar esse termo) dos princípios e
objetivos fundamentais tem de ser mantida intacta, dada a posição ne-
vrálgica que ocupam no sistema, diretrizes supremas que são. Por assim
dizer, neuronais. Ostentam a essencialidade vital dos pilares insuprimí-
veis, sob pena de periclitar o "organismo" constitucional. Assim, por
exemplo, o princípio da legalidade não deve resultar quebrado em face
da autonomia jurídica concedida ao princípio da moralidade, mas, ao
contrário, restar fortalecido e amplificado. Sem prejuízo - bem pensa-
das as coisas - da obrigatoriedade da convalidação do ato irregular, em
determinados momentos, para o resguardo do próprio princípio da mo-
ralidade.
A propósito, na Constituição, a moralidade não deve ser vista como
residente num espaço inteiramente suprapositivo,62 conquanto a raciona-
lidade do Direito impulsione o intérprete para além do Direito Positivo
e, por assim dizer, imprima o "devir" de todo ordenamento. Forçoso,
trad. brasileira: Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., pp. 103-104), bem como por
destacar, na Koliisionsgesetz, a conexão das relações de precedência condicionadas
(p. 83). Faltou notar a colisão oculta de princípios em todos os conflitos de regras,
extraindo as consequências em sua teoria dos princípios. A distinção entre regras e
princípios apresenta-se, na realidade, como enfatizado em nosso Capítulo 1, mais
de grau hierárquico do que de essência, mesmo porque o intérprete é quem imprime
o derradeiro significado normativo a ambos (princípios e regras) na circularidade
hermenêutica.
62. Supera-se, desse modo, especialmente reconhecendo a natureza axiológica
de todo e qualquer princípio ou regra de Direito, a polêmica sobre certo tipo de
positivismo que afirma que Direito e Moralidade são inconciliáveis conceitualmen-
te. Pense-se no mencionado Joseph Raz (in The Authority ofLaw: Essays on Law
and Morality, Oxford: Clarendon, 1979, p. 47), quando sustenta que o conteúdo do
Direito pode ser determinado sem qualquer referência a argumentos morais. Bem
certo que o soft positivism, por exemplo, de Herbert Hart, reconhece que "the mIe of
recognition may incorporate as criteria of legal validity conformity with moral prin-
cipIes or substantive values" (in The Concept ofLaw, Oxford/New York: Clarendon
Press, 1980, p. 250). Seja como for, a natureza axiológica de todo o sistema jurídico
afasta ambas as modalidades de positivismo, especialmente a do hard positivism,
pois não se trata de mera e excepcional incorporação de princípio, mas percepção de
um princípio que revela a natureza geral do Direito.
 T
216 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
nesse sentido, que os intérpretes articulem e alicercem conscientemente
os argumentos das suas decisões com uma fundamentação vinculante
que (a) transcenda os limites do Direito posto e (b) qualificadamente
também seja, sob certo aspecto, mora1. 63 De mais a mais, tudo acontece
63. Acerca da vinculação entre Direito e Moral, v. Ronald Dworkin in
Freedom S Law, the Moral Reading ofthe American Constitution, Cambridge: Har-
vard University Press, 1996. v., também, Robert Alexy in Begriff und Geltung des
Rechts, cit., 1992, pp. 15-17. Cumpre, ainda que de passagem, neste capítulo ilustra-
tivo, retomar o tema das relações entre Direito e Moral, especialmente tendo em
conta o entrelaçamento entre tais esferas promovido pelos discursos constitucionais
contemporâneos. As repercussões da positivação jurídica do princípio da moralidade
têm forçado uma revisão do conceito mesmo de sistema jurídico, bem como susci-
tam a necessidade de superação de fronteiras outrora aparentemente rígidas a separar
as esferas. A questão decisiva de saber como é possível a legitimidade por intermé-
dio da legalidade importa indagar, no fundo, acerca da vinculação entre Direito e
Moral. Alexy, a propósito, divide os juristas entre os que afirmam e os que negam tal
vinculação. Alinha-se, está claro, entre os que aceitam e proclamam o liame, isto é,
a mútua influência entre o jurídico e o moral. De sua vez, Jürgen Habermas sustenta
a ideia de que a "legalidade tem que extrair sua legitimidade de uma racionalidade
procedimental com teor moral" (in "Direito e Moral", Direito e Democracia: entre
Facticidade e Validade, vol. 11, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 194).
A cada passo mais, indispensável assimilar que argumentações morais são acolhidas
ou abrigadas institucionalmente pelo Direito, fenômeno que sobe de ponto a partir da
mencionada positivação constitucional do princípio da moralidade, inserido como
juridicamente autônomo na Carta Brasileira, com especial destaque e de modo ex-
presso nos arts. 5º e 37, algo que deve ser interpretado como afirmação de um para-
digma diferenciado de sistema. Com efeito, em nosso sistema constitucional não
mais é adequado, por exemplo, afirmar que o Poder Público deve apenas agir em
estrita conformidade com a lei. A subordinação dos atos estatais deve ser ao Direito,
mais do que apenas à lei, ou seja, o princípio da legalidade passou a figurar como
princípio entre princípios, sendo que, em alguns casos, a própria Administração PÚ-
blica deve fazer, de certo jeito, uma espécie de controle de constitucionalidade (sem
prejuízo do controle jurisdicional derradeiro). Neste quadro, bem de ver que, entre
os demais princípios cogentes, avulta o princípio da moralidade indo além de uma
derivação do princípio do devido processo legal, embora tomado este em sentido
substancial. Assim, (a) ainda que uma ação do agente público não cause qualquer
dano material ao Erário, nem enriquecimento ilícito, mesmo assim a violação pura e
simples do princípio da moralidade já pode ser suficiente para configurar a improbi-
dade administrativa do art. 37, § 4º, da Carta e do art. 11 da Lei 8.429/1992, havendo,
neste caso, improbidade por violação a princípio. Mais: (b) configura-se o dever de
recusa, pelo agente público, de cumprir ordem superior manifestamente ilegal, por-
que a legalidade, a pouco e pouco, começa a ser entendida como princípio relativi-
zado por outros princípios constitucionais. Absorveu-se, pois, no sistema constitu-
cional brasileiro a lição dramática da experiência do Tribunal de Nuremberg, a partir
da qual tomou-se inaceitável a hipertrofia do princípio da legalidade. Em tal contex-
to, tem razão Habermas ao criticar Weber por ter este restado preso ao formalismo
supostamente racional do Direito Liberal e, em razão disso, por ter sustentado que
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 217
como se um princípio, ao se relativizar, enriquecesse e tomasse mais
demandas por justiça material, introduzidas no meio jurídico, destroçariam a "racio-
nalidade formal", claro que se referindo à racionalidade entendida na estreita acep-
ção. Diversamente do sustentado por Weber, neste ponto, percebe-se que sem esta
materialização ou visão substancialista do Direito em sua interpretação e em sua
aplicação faz-se impossível compreender as características do sistema jurídico con-
temporâneo. Felizmente, o Direito não é mais visto, ao menos em teorias avançadas,
como um conjunto fechado de normas ou de regras, nem estas devem ser reputadas
as partes mais nobres do sistema. Em outras palavras, a inserção de preocupações
com moralidade e com justiça material no âmbito do Direito Positivo, longe de des-
truí-lo, revela-se condição sine qua non para a sustentação democraticamente funda-
mentável do próprio Estado, nada obstante as dificuldades trazidas pela ambivalên-
cia do Direito atual, devido à suposta "dupla base de sua validade" (Habermas), an-
corada tanto na fundamentação como na normatização. Induvidoso, desde logo, que
a autonomia deste Direito não tem sentido em si mesma, convindo salientar que só
há Direito verdadeiramente autônomo se servir para promover o processo justo (no
tocante a meios e resultados). Na vida prática, a interpretação ponderada, construtiva
e sistemática do Direito habita o cerne do Direito formal, guiada por uma visão que
nunca será moralmente neutra. Claro que, se se nega a neutralidade, não se abre mão
do propósito da imparcialidade. Em que pese à importância do princípio da seguran-
ça jurídica, as qualidades formais do Direito apontadas por Weber mostram-se deci-
didamente incapazes, como observou Habermas, para dar conta da "eficácia legiti-
madora" da legalidade. Para além de falácias formalistas, mister notar que a raciona-
lidade jurídica tem mais a ver com a razão prática de Kant, em lugar da
racionalidade científica no sentido de outrora. Desta maneira, andou bem Habermas
ao asseverar que os limites entre o Direito e a Moral não podem ser estabelecidos
unicamente com os conceitos "formal" e "material". Dito de outro modo: a legitimi-
dade da legalidade resulta mesmo de uma "relação interna entre o Direito e a Moral".
De outra parte, no exame da legitimidade da produção do Direito (útil sublinhar, para
vários efeitos, que o intérprete é, na perspectiva tópico-sistemática, o positivador
derradeiro do sistema jurídico), sobretudo ao se constatar a dicotomia entre normas
primárias e secundárias (Hart), toma-se imprescindível investigar os discursos jurí-
dicos no espaço que transcende a "completude" preconizada pela Escola da Exegese
ou, mais sofisticadamente, pela teoria da norma geral exclusiva, nos termos exami-
nados em capítulo específico deste livro. Imprescindível recordar, entre outras, a
técnica triunfante de escalonar o sistema jurídico em princípios. Como percebeu
Habermas: "O Direito Constitucional revela que muitos desses princípios possuem
uma dupla natureza: moral e jurídica. Os princípios morais do Direito Natural trans-
formaram-se em Direito Positivo nos modernos Estados Constitucionais" (p. 203),
donde segue a inafastável permeabilidade ou porosidade do jurídico em face de ar-
gumentações eminentemente morais. Indo, entretanto, além de Habermas, neste
ponto, observa-se que a dupla natureza apontada não diz respeito a vários, mas a
todos os princípios jurídicos, sem exceção. De todo modo, não é pouco agasalhar
semelhante ideia de que "a legitimidade da legalidade resulta do entrelaçamento
entre processos jurídicos e uma argumentação moral". Apesar disso, impõe-se regis-
trar que ainda se ouve, com reiteração, o argumento inaceitável de que nem tudo o
que é lícito é honesto. Não se podem resolver dilemas jurídicos recorrendo à suposta
separação rígida, que, como visto, não se coaduna nem com os discursos constitucio-
 --r
218 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
denso o significado dos outros, em função da natureza tópico-sistemá-
tica do ordenamento. Trata-se, concomitantemente, de movimento de
contenção e de expansão do sistema jurídico.
Reitere-se: os princípios jamais devem ser quebrados, sob pena de
perecer o sistema. As regras não conseguem, sozinhas, erigir qualquer
sistema. São os princípios fundamentais que desempenham o papel de
vitalizadores estruturais do sistema,64 de sorte que imperioso nuançá-
nais democráticos, nem com as mais avançadas teorias da interpretação jurídica que
preconizam uma compreensão do Direito a ser aplicado à luz de paradigmas diver-
sos. Não devem ser ignorados tampouco os fenômenos complexos relacionados à
erosão e à instabilidade do Direito Positivo, mormente em países assolados pela hi-
perinflação normativa e pela imprevisibilidade das decisões judiciais. Não é errado
dizer, com Habermas, que, "com velocidade crescente, o Direito Positivo detona
seus próprios fundamentos de validade". Contudo, a restauração ou a instauração da
credibilidade ou da legitimidade não podem ser buscadas em qualquer abordagem
extremadamente formalista, como advertido no capítulo inicial deste livro, embora
também não seja o caso de aderir ao ativismo extremado. O que se mostra relevante
é grifar que inexiste Direito que não deva ser "limitado a partir de considerações de
princípio", algo que Habermas enfatiza ao examinar as decisões de controle abstrato
do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Importa, igualmente, destacar seu acer-
to quando, diferentemente de Weber, entende que o Direito não pode mais ser cons-
truído como possuindo uma racionalidade isenta da Moral e, a rigor, jamais se dei-
xou erguer deste modo. Assinala: "Um poder exercido nas formas do Direito Positi-
vo deve a sua legitimidade a um conteúdo moral implícito nas qualidades formais do
Direito" (p. 214). Entretanto, não há espaço para julgar aqui as teorias procedimen-
talistas da justiça de Rawls, Kohlberg ou Apel, além da do próprio Habermas, vendo
a argumentação moral como um processo adequado para a formação racional da
vontade e da busca cooperativa da verdade, admitindo tão só a coerção do melhor
argumento. Por igual, não cabe adentrar o exame do conceito restrito de moral, ao
qual, na ótica de Habermas, deve corresponder uma modesta autocompreensão da
teoria da Moral. Impende destacar que, sem que se neguem especificidades e dife-
renças entre os mutuamente controláveis Direito e Moral, resulta claro que, a essa
altura, mostra-se equivocado negar que o Direito reclama uma fundamentação tam-
bém moral. Sobre o tema, v., ainda, Alessandro Pinzani in "Problemi di applicazione
nella teoria discorsiva della Morale e deI Diritto", Ermeneutica e Applicazione...,
cit., pp. 55-7l.
64. Bem por isso, não parece que a diferença entre princípios e regras pos-
sa mesmo ser apenas de nível de linguagem, a despeito do mérito de abordagens
inspiradas em Bertrand Russel. Sobre o tema, v. também Lon Fuller in The Mora-
lity ofLaw, New Haven: Yale University Press, 1969, p. 39, acerca dos princípios
que constituem uma internai morality do Direito, embora não sendo de todo injusta
a crítica de Hart (in "Book review of the morality of law", Harvard Law Review
78/1.285, 1965) no sentido de que Fuller, a rigor, confunde moralidade e eficácia,
equívoco que não se comete em nossa abordagem. No mínimo, porém, Fuller amplia
a noção de legalidade. Convém lembrar, no ponto, Ronald Dworkin: "If we treat
principIes as law we must reject the positivists' first tenet, that the law of a commu-
-L
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 219
-los,já que não devem ser confundidos com as regras ou normas estritas,
estas - apenas estas - declaráveis inconstitucionais, normalmente com a
pronúncia de nulidade.
Nesse prisma, de passagem, conveniente e elucidativo trazer a lume
a polêmica em tomo do princípio da estabilidade no serviço público.
O exame atento da matéria revela que há, pelo menos, duas interpre-
tações dos arts. 41 e 169 da Constituição Federal, desde o advento da
Reforma Administrativa. Ora, à luz do formulado, parece irrenunciável
almejar a interpretação mais satisfatoriamente universalizável. Se se
quiser dizer de outro modo, almeja-se aquela interpretação que apresen-
te de modo coerente o objeto em consideração.
Pois bem, uma interpretação, certamente não a melhor, redundaria
na quebra irremediável do princípio da estabilidade e, por esse motivo,
deve ser evitada, sobretudo por não realizar a devida sinapse entre os
dispositivos citados. Outra, usistematicamente com maior aptidão a pre-
servar as diretrizes supremas, afigura-se mais coerente e respeitadora do
princípio da estabilidade, sem descurar da observância imperiosa dos
comandos da emenda constitucional. Com efeito, o § 1º do art. 41 fez
constar que o agente detentor dessa garantia individual, de forte conteú-
do social, somente perderá o cargo nas três hipóteses ali arroladas. No
entanto, o art. 169 introduziu "nova" modalidade (§ 4º). Será verdadei-
ramente nova? A melhor resposta, sistematicamente, parece andar no
sentido de que, na realidade, o inciso II do § 1º do art. 41 comporta a
hipótese em tela, ao referir o processo administrativo em que se assegura
a ampla defesa. E, o que é mais: extinto o cargo (vedada, nesta hipótese,
a criação de outro, bem como emprego ou função com atribuições iguais
ou assemelhadas, nos termos do referido § 6º do art. 169), o servidor fará
jus à indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de
serviço (§ 5º do art. 169). Entretanto, como gizado, o § 3º do art. 41, em
sua nova dicção, assegura que, havendo extinção do cargo ou declara-
da sua desnecessidade, o estável deverá ficar em disponibilidade, com
remuneração proporcional ao tempo de serviço, até seu aproveitamento
em outro cargo. Donde segue uma antinomia perfeitamente solúvel se
enfrentada por meio de hierarquização axiológica que demonstre firme
apreço à incolumidade dos princípios em jogo.
Em face disso, não deveria ser lida como, necessariamente, inde-
nização não voluntária ou compulsória a prevista no art. 169, § 5º, em
nity is distinguished from other social standards by some test in the form of a master
rule" (in Taking Rights Seriously, cit., p. 44).

220 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
sintonia com o § 3º do art. 41 da Constituição Federal. Ainda: num sinal
de fundo respeito à vontade do sistema constitucional (na sua inteire-
za), parece plausível oferecer ao servidor estável a opção de aceitar a
indenização ou a disponibilidade remunerada proporcional, se se tratar
de aplicação do § 4º do art. 169, por se tratar de uma circunstância
extrema.
A exegese proposta, trazida como ilustração do cuidado que se deve
ter com a guarda substancial dos princípios, além de mais consentânea
com os reclamos da dignidade conjugada à eficiência e à eficácia, e sem
que estas sacrifiquem aquela, também redunda praticamente em obe-
diência tendencial aos limites da lei complementar (art. 169, caput), haja
vista a proporcionalidade da remuneração, a qual, por si só, acarretaria
significativa redução do comprometimento das despesas públicas com
pessoal ativo e inativo. Eis, pois, apenas um exercício, ao que tudo indi-
ca, de observância adequada do preceito em tela.
9.2.10 Décimo Preceito: Uma pertinente e adequada
interpretação sistemática só declara a inconstitucionalidade
quando a afronta ao sistema revelar-se manifesta e insanável
Cumpre sublinhar que o rol dos preceitos específicos de interpre-
tação tópico-sistemática da Constituição não é, nem pretende ser, exau-
riente. Poder-se-ia cogitar do preceito da continuidade, de extraordiná-
ria importância na reflexão sobre as esferas do público e do privado.
Todavia, imperioso aludir, ainda que com brevidade, a relevante dever
interpretativo, qual seja, o de realizar, nos limites do sistema, a diligente
interpretação conforme. 65
65. Anota Eduardo García de Enterría "La interpretación de una norma confor-
me a la Constitución es, pues, 'acomodar' su contenido a los principios y preceptos
de la Constitución" (in Problemas dei Derecho Público ai Comienzo de Siglo, Ma-
drid: Civitas, 2001, p. 121). Entre nós, v. Luís Roberto Barroso in Interpretação e
Aplicação da Constituição, cit., 2001. Diz, de seu turno, Paulo Bonavides (in Teoria
Constitucional da Democracia Participativa, 3ª ed., cit., 2008), depois de considerar
o método de interpretação conforme, "talvez, o mais idôneo na hermenêutica das
Constituições" (p. 256): "O método significa, na essência (...), que nenhuma lei será
declarada inconstitucional quando comportar uma interpretação 'em harmonia com
a Constituição' e, ao ser assim interpretada, conservar seu sentido ou significado"
(p. 258). Mais: "Outra coisa não é a interpretação conforme a Constituição senão
um postulado de Hermenêutica que embarga a contradição axiológica no interior
dos corpos constitucionais mantendo e afiançando e amparando a unidade jurídica
do sistema constitucional" (p. 259). Para um sentido ampliado de interpretação con-
forme, v. também José Carlos Vieira de Andrade in Os Direitos Fundamentais na
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 221
Parece que a interpretação sistemática da Constituição encontra
nesse ponto uma das suas culminâncias. A este preceito interpretativo
encontram-se vinculadas, normalmente, de modo indissolúvel, a presun-
ção de constitucionalidade e a técnica segundo a qual deve o juiz de-
clarar a inconstitucionalidade apenas quando rigorosamente manifesta
a antijuridicidade omissiva ou comissiva. O mais deveria ser objeto de
conserto interpretativo à base da multiplicidade amplíssima de alternati-
vas oferecidas pela Carta. De acordo com tal critério, em primeira e cos-
tumeira acepção, o exegeta somente poderia declarar a inconstituciona-
lidade (material ou formal) quando frisante e patentemente configurada,
sem se deixar mover por motivações estranhas ao Direito.
Não se trata de aderir - muito pelo contrário - a hirtos conservado-
rismos. Quando configurada a inconstitucionalidade, nada se lucra em
tardar a supressão da norma viciada, ainda que, de forma excepcional e
no exercício do controle concentrado, possam ser restringidos os efeitos
dessa declaração de inconstifucionalidade ou até ser decidido que ela só
deve ter eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento.
O presente dever interpretativo (mormente pela rejeição do legalismo
estrito) reclama, no entanto, o contínuo entrelaçamento de princípios,
notadamente em face das exigências dimanantes do princípio (máxima
para outros) da proporcionalidade. 66 Quadra referir, por apreço ao rigor,
que a prescrição em pauta não se confunde, apesar das semelhanças, com
a estratégia da declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução
do texto. A par disso, há possível acepção mais alta de "interpretação
conforme",67 que se pode entender, com moderação, como interpretação
conformadora, isto é, com o dever de realizar uma leitura das normas
no pleno e ativo resguardo da rede de princípios, objetivos, regras e va-
lores. Ambos os sentidos podem ser complementares numa perspectiva
tópico-sistemática.
Constituição Portuguesa de 1976, 2ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2001, p. 201,
entendido como princípio da prevalência ou da integração hierárquico-normativa e
não apenas como princípio de limitação do controle da constitucionalidade.
66. Robert Alexy (in Theorie der Grundrechte, cit., p. 100; trad. brasileira:
Teoria dos Direitos Fundamentais, cit., pp. 116-117), apesar de propugnar diferença
terminológica aqui não adotada, bem destaca a conexão entre a teoria dos princípios
e a máxima da proporcionalidade, tomando como regras (Regeis) as três máximas
parciais.
67 . Sobre o tema, vide as questões levantadas por Anderson Vichinkeski Tei-
xeira in "Considerações sobre a Súmula Vinculante n. 10: transformação definitiva
II da interpretação conforme à Constituição em técnica decisória?", Interesse Público
I
57, Belo Horizonte: Fórum, 2009, pp. 99-114.
I
I
~
 ------,r
222 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Decerto, os preceitos sumariamente arrolados o foram com o âni-
mo exortativo, pois figuram entre os que mais devem ser difundidos e
meditados em nosso meio, assumida a postura de que, sob determinado
aspecto, toda interpretação deve ser tópico-sistemática, abrangente dos
vários métodos hermenêuticos. Ao se mostrar sistemática, toda exegese
jurídica há de ser, também, interpretação constitucional, uma vez que
a Carta não apenas integra o sistema, mas serve de complexo estatuto
fundador, por assim dizer, da ordem jurídica. A par disso, não há como
deixar de ser um pouco "iluminista" ao lidar com o Direito. Afigura-se
oportuna a ideia de que o esclarecimento representa uma fonte preciosa
e irrenunciável de evolução. Nessa medida, quando se interioriza a cons-
ciência de tais preceitos, só por isso o intérprete já se habilita a, mais
qualificadamente, extrair do sistema as suas mais benfazejas possibili-
dades e, o que é mais, a dar-lhe vida, e vida plena.
Nessa linha, a Constituição merece encontrar no intérprete tópico-
-sistemático a defesa imunológica indispensável à viabilização de sua
saudável longevidade. Mais: induvidoso que a Carta legítima e demo-
crática demanda aperfeiçoamentos a serem promovidos por intermédio
da interpretação, a qual deveria, com presteza, assumir o compromisso
simultâneo e transparente de preservar e de transformar. Esta é a melhor
e mais justificada atitude hermenêutica, tendo por fim proteger a unida-
de formal e substancial dos comandos constitucionais.
A vida ou a sobrevida da Carta dependem, pois, de todos os in-
térpretes (está claro, sem o extremismo de determinadas correntes que
extrapolam e esquecem os deveres de não-usurpação funcional). Como
sublinhado, dos juízes, entretanto, dependem, em larga medida, o futuro
e a eficácia do texto constitucional e, por implicação direta, do sistema
democrático.
Importa destacar, por ora, para os propósitos ilustrativos, que a in-
terpretação constitucional, sistematicamente orientada, haverá de ser, de
modo pronunciado, principiológica e marcada por uma hierarquização
axiológica nada arbitrária (a arbitrariedade, por definição, contraria o
sistema jurídico em suas mencionadas características), hierarquização
que será tanto mais legítima quanto mais apta a legar coerência e abertu-
ra, em afinidade com as justas e legítimas aspirações.
Nesse passo, concitando o leitor a relembrar os preceitos gerais vin-
culados ao "metacritério" de hierarquização axiológica, cumpre sulcar,
ainda uma vez, que toda interpretação sistemática há de ser, de algum
modo, interpretação constitucional, dado que na Constituição encon-
tram-se hierarquizados ou hieraquizáveis os princípios que servem de
~
1"""1'
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 223
fundamento à racionalidade do ordenamento jurídico. Ainda que tal fun-
damentação culmine no processo da positivação evolutiva, ou seja, na
afinação da escolha hierarquizadora dos princípios prima facie igual-
mente fundamentais. Interpretar sistematicamente consiste em hierar-
quizar de maneira, ao mesmo tempo, livre e não-arbitrária. Deve o in-
térprete constitucional, com autocrítica contínua, efetuar a interpretação
sistemática, que evite a ruptura da rede axiológica, sendo esta a razão
superior do próprio controle de constitucionalidade, exercido difusa ou
concentradamente.
Em síntese, na seara da interpretação constitucional, a interpretação
tópico-sistemática sempre hierarquiza princípios, regras e valores ("me-
tacritério" hierárquico-axiológico), ao estabelecê-los como prioritários,
ou seja, ao escaloná-los topicamente, quando em antinomia ou para evi-
tá-la. A tarefa primeira do intérprete constitucional está em moldar ou re-
construir o catálogo aprimorado de princípios e objetivos fundamentais,
no intuito de bem cumprir a função sistematizadora inerente ao processo
interpretativo. Democraticamente incorporadas as mutações benéficas. 68
9.3 Premissas e preceitos formulados
Nessa ilustração, portanto, de uma proposta de interpretação sis-
temática da Lei Fundamental, urge grifar as premissas e os preceitos
formulados. Ei-Ios:
a) Todo intérprete sistemático é, de certo modo, intérprete consti-
tucional, afigurando-se irrenunciável preservar, ao máximo, a coexis-
tência pacífica e harmoniosa entre os controles difuso e concentrado de
constitucionalidade. Tais controles nada mais significam do que técnicas
de guarda da sistematicidade, fenômeno especialmente nítido no pro-
cesso objetivo de controle. Além disso, cumpre ver que a jurisdição,
superada a visão antiga, aqui se desvela manifestamente em sua feição
constitucional,69 a qual nada mais é do que o exercício fiscalizador da
conformidade sistemática dos múltiplos comandos. Tudo está a eviden-
ciar que, com nitidez, a interpretação é sistemática - no sentido aqui
conceituado -, ou não é interpretação, muito especialmente no que con-
cerne à exegese constitucional.
68. Pense-se, por exemplo, na incorporação do princípio da participação po-
pular em matéria orçamentária. Vide meu "Controle social do orçamento público",
Interesse Público 11, cit., 2001.
69. Sobre o tema, v. Lênio Luiz Streck in Jurisdição Constitucional e Herme-
nêutica, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
 I
224 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
b) A interpretação constitucional é processo tópico-sistemático, de
maneira que resulta impositivo, no exame dos casos, alcançar uma so-
lução de equilíbrio entre o formal e o substancial, evitadas as soluções
unilaterais e respeitada a Constituição em sua abertura dialógica e em
seu caráter histórico não-linear. 7o Com efeito, a tarefa primeira do intér-
prete consiste em refinar o catálogo de princípios, regras e valores, apri-
morando-o constantemente para fazê-lo, no quadro evolutivo, cumprir
a função sistematizadora intrínseca ao processo. Embora reconhecendo
tratar-se - a reelaboração mesma - de projeto permeável às mutações
axiológicas.
c) Na hierarquização dos princípios constitucionais, a interpretação
sistemática opera com o "metacritério" hierárquico-axiológico, ao esca-
lonar normas, quando configurada antinomia ou para evitá-la. Os princí-
pios e objetivos fundamentais, por definição (no acordo semântico aqui
assumido), ocupam o lugar de destaque, situados, ao mesmo tempo, na
base e no ápice do sistema, isto é, fundamento e cúpula do ordenamento.
d) O intérprete constitucional deve ser o guardião, por excelência,
de uma visão proporcional dos elementos constitutivos da Lei Funda-
mental, não entendida a proporcionalidade apenas como adequação
meio/fim. Proporcionalidade significa, sobremodo, que se está obriga-
do a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos. Acarreta
vedação de excessos e omissões.
e) O intérprete constitucional precisa considerar, ampliativamente,
o inafastável poder-dever de prestação da tutela jurisdicional, de modo
a facilitar, ao máximo, o acesso legítimo do jurisdicionado. Em outras
palavras, trata-se de extrair os efeitos mais fundos da adoção, entre nós,
do intangível princípio da ampla sindicabilidade judicial.
f) O intérprete constitucional deve guardar vínculo com a excelên-
cia ou otimização da efetividade dos objetivos fundamentais da Carta,
conferindo-lhe, assim, a devida coerência interna.
g) O intérprete constitucional deve alcançar fundamentação obje-
tiva para as decisões sincrônicas com o sistema, sem adotar soluções
contra legem, em que pese exercer atividade cônscia e assumidamente
positivadora (independentemente da polêmica sobre a eventual criação
de Direito por essa via). Reconhece que a técnica do pensamento tópico
70. Com razão Gustavo Zagrebelski: "11 pensiero giuridico sistematico e dog-
matico, per essere compatibile con il pensiero problematico o casistico, non deve
assumere posizioni rigide che comportino la pietrificazione" (in La Giustizia Costi-
tuzionale, p. 51).
~
ILUSTRAÇÃO PRESCRITIVA NO DIREITO PÚBLICO 225
não difere essencialmente da técnica de formação sistemática, ambas
facetas do mesmo poder de hierarquização axiológica e de defesa, mais
do que da lei, do sistema jurídico.
h) O intérprete constitucional deve honrar a preservação simultâ-
nea das características vitais e complexas (para além do paradigma da
disjunção)71 de qualquer sistema democrático digno do nome, vale dizer,
a abertura e a coerência, as quais implicam o dever de zelar pela perma-
nência "na" e "da" mudança.
71. Neste passo tem-se em mente a observação de Edgar Morin: "la réforme
de pensée, c'est celle qui permet d'intégrer ces modes de reliance. J'appelle cela
pensée complexe (...) c'est celle qui surmonte la confusion, l'embarras et la diffi-
culté de penser à l'aide d'opérateurs et à l'aide d'une pensée organisatrice: sépara-
trice et reliante (...). Les conditions favorables, ce sont les deux grandes révolutions
du siecle. La premiere, bien avancée mais encore loin d' être achevée, est celle qui
a commencé au début du siecle avec la Physique Quantique, et qui a entierement
bouleversé notre notion du réel, abolissant totalement la conception purement mé-
caniste de l'Univers (...). La deuxieme révolution, qui en est à ses débuts, s'est
manifestée dans certaines sciences que I'on peut appeler les sciences systémiques,
ou nous voyons effectivement se créer des approches complexes, polydisciplinai-
res, comme dans les sciences de la Terre, de I'Écologie ou de la Cosmologie. En
Écologie, l'écologue est comme le chef d'orchestre qui prend en compte les désé-
quilibres, les régulations, les déreglements des écosystemes, et qui fait appel aux
compétences spécifiques du zoologiste, du botaniste, du biologiste, du physicien,
du géologue etc. L'objet systémique n'est pas un objet découpé à la tronçonneuse
de disciplines devenues schizoYdes. Dans I' ancienne conception, il n 'y a aucun
dialogue possible entre des sciences qui éliminent l'idée de Nature, de Cosmos,
l'idée d'Homme. A partir de la pensée complexe, nous retrouvons la possibilité
de parler de l'Être Humain, de la Nature et du Cosmos, nous pouvons rétablir la
reliance entre les deux cultures, dialoguer, nous situer dans l'Univers ou le local et
le global sont reliés. Ces deux révolutions encore inachevées I'une et I' autre, mais
en cours, représentent donc les conditions favorables de la réforme de pensée. Les
conditions défavorables relevent des structures mentales, des structures institution-
nelles, et du paradigme de disjonction et de réduction qui fonctionne à I'intérieur
des esprits, même quand ceux-ci sont arrivés à des conceptions qui ont dépassé
et la disjonction et la réduction. Nous voyons par exemple chez un René Thom la
croyance déterministe subsister alors que toute sa pensée a su aller au-delà. Nous
sommes de nouveau dans la boucle des causalités: la réforme de pensée nécessite
une réforme des institutions qui nécessite elle-même une réforme de pensée. 11
s'agit de transformer ce cercle vicieux en circuit productif. La condition est que
puisse apparaltre quelque part une déviance fructueuse qui permette d' essaimer et
de devenir une tendance" (Communication au Congres Intemational "Quelle Uni-
versité pour Demain? Vers une Évolution Transdisciplinaire de l'Université", Mo-
tivation 24, 1997). Do mesmo autor, v., também, além das obras referidas, Science
avec Conscience, Paris: Fayard, 1982, e Introduction à la Pensée Complexe, Paris:
EST Éditeurs, 1990.
 ~

226 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO

i) O intérprete constitucional deve acatar a "soberania" da vitalida-

de do sistema constitucional no presente, adotando, quando necessário
e com parcimônia, a técnica da exegese corretiva, sem usurpar funções.
j) O intérprete constitucional precisa ter clareza de que os direitos
fundamentais não devem ser apreendidos separada ou localizadamente,
reconhecida, além disso, a eficácia direta, no núcleo, dos direitos de to- 10 CAPÍTULO
das as "gerações" e a emergência de direitos, tais como o direito funda-
mental à boa administração pública. A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA
k) O intérprete constitucional, ciente de que os princípios consti-
E A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA
tucionais jamais devem ser eliminados mutuamente, ainda quando em ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO
colisão ou em contradição, cuida de conciliá-los. Lembra que toda re- E OUTRAS ILUSTRAÇÕES
solução de antinomias de regras oculta uma solução axiologicamente
superior no campo dos princípios fundamentais.
10.1 Dialética entre Direito público e Direito privado. 10.2 Aprofundan-
/) O intérprete constitucional somente declara a inconstitucionalida- do: tábua de diferenças e semelhanças entre princípios e regras. 10.3
de (material ou formal) quando frisante e manifestamente configurada, Breve ilustração no Direito Administrativo. 10.4 Conclusões.
pois é seu dever preservar a unidade dialética (substancial e formal) do
sistema jurídico. Sobrepassa apenas as contradições nefastas, no intento
de resguardar o potencial de justa consistência do Direito Positivo. 10.1 Dialética entre Direito público e Direito privado

Sempre com o ânimo de refletir sobre possíveis efeitos da inter-

pretação tópico-sistemática, devidamente assimilada em sua condição
dialética, l convém aduzir que tal exercício conduz à transcendência da
dicotomia rígida entre o Direito público e o Direito privado. Dicoto-
mia (se e quando entendida estritamente) que, na perspectiva adotada,
não apresenta maior consistência em face da superação das abordagens
unilaterais e em virtude da compreensão de que o sistema jurídico é um
só. Compreensão facilitada, sobremaneira, pelo fenômeno inegável da
constitucionalização do Direito.

1. Retomada a dialética, legada por Platão (in "Visão de conjunto", A Re-

pública, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, p. 537, "c") e mesmo por
Aristóteles, sem considerá-la, na obra deste último, como inferior à analítica, como
supunha Sir David Ross (in Aristóteles, London: Methuen, 1956, p. 67). Nessa li-
nha, entre outros, v. Otfried Hõffe ao afirmar que "dialética e apodíctica não são
dois métodos regionais em mútua exclusão, (...) eles não são dois estritos métodos
separados, mas, antes, dois diferentes aspectos de um mesmo processo de pensamen-
to" ("Dialektik und Apodeiktik sind nicht zwei sich wechselseitig ausschliessende
Regionalmethodiken, (...). Es sind zunachst überhaupt nicht zwei strikt zu trennen-
de Methoden, sondem eher zwei verschiedene Aspekte eines zusammenhangenden
Denkprozesses" - in Ethik und Politik, cit., 1970, p. 64). Na visão que se esposa, o
sistema apenas tem sentido dialeticamente, daí se falar em pensamento sistemático e
tópico, ao mesmo tempo, abandonado qualquer dedutivismo estrito.

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 .............

228 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 229

Nesse panorama, o Direito privado e o Direito público - nada obs- PRINCÍPIOS E REGRAS - DISTINÇÕES:
tante persistirem diferenças funcionais, que não podem ser esmaecidas
por inteiro, - precisam ambos encontrar os seus fundamentos no bojo da Princípios Regras
Constituição. Uma vez que, a rigor, implícita ou explicitamente, qual-
quer seara deve ser redimensionada como campo nobre de incidência • são diretrizes normativas axiologi- • são prescrições ou normas estritas,
camente superiores - fonte máxima destinadas a propiciar concreção
e de concretização dos princípios e das regras constitucionais. Por isso,
para o intérprete e das quais sempre eficacial aos princípios, objetivos e
toda interpretação sistemática é também interpretação constitucional.
emanam, mediadas ou não pelo le- direitos fundamentais
De fato, distinções rígidas e ossificadas, repetidas outrora com na- gislador, determinadas regras
turalidade, soam, nos dias que correm, artifícios falaciosos e datados.
Na prática, as tradicionais distinções entre o Direito público e o Direito • voltam-se para o futuro, mas, quan- • tendem, de plano, para o futuro,
do originários e intangíveis, tendem mas podem retroagir beneficamente
privado somente se afiguram metabolizáveis quando situadas, modesta-
à vinculação em todos os tempos (desde que sem violação a princípios
mente, no plano funcional e, ainda assim, desde que não se desconside-
fundamentais)
rem as áreas da necessária intersecção (ex.: normas de ordem pública
regentes das relações de consumo). Não continuam juridicamente auto- • são fundamentais e fundantes • são instrumentais e condicionadas à
rizadas, por exemplo, as falsas prerrogativas que se transmudam em pri- preservação e/ou afirmação máxima
vilégios, cujo exercício deixa de resguardar ou de restabelecer, conforme dos princípios e objetivos funda-
o caso, a proporcionalidade nas relações jurídicas. Vale dizer, ressalvado mentais em rede
o exercício apropriado das prerrogativas como poderes-deveres, a dife- • ostentam, em seu núcleo, potencial • visam a dar máxima e crescente efi-
rença entre os mundos do público e do privado não radica numa eventual de eficácia direta e imediata cácia à rede de princípios e de valo-
subordinação, tampouco se deixa explicar satisfatoriamente pela teoria res supremos
dos interesses em causa. 2
• relativizam-se mutuamente, consti- • relativizam-se mutuamente, contu-
A diferença sutil há de melhor ser encontrada, precisamente, no pla- tuindo-se na interação do podem ser reconfiguradas mo-
no dos princípios fundamentais. dulatoriamente ou suprimidas para
preservar a relatividade e a mútua
10.2 Aprofundando: tábua de diferenças e semelhanças constituição dos princípios
entre princípios e regras • não admitem subsunção dedutiva • embora também não admitam sub-
estrita (o silogismo é dialético) sunção dedutiva estrita, podem ser
No exame da regência das relações jurídicas, públicas ou privadas, o suprimidas como efeito do silogis-
que se verifica é o predomínio tópico de determinados princípios funda- mo dialético
mentais. Assim, no prisma dialético, cumpre estabelecer a tábua de seme-
lhanças e distinções entre princípios e regras, a começar pelas distinções: • não devem ser lidos segundo a lógi- • a rigor, não são compreensíveis se-
ca do "tudo ou do nada", pois todos gundo a lógica do "tudo ou nada",
devem ser preservados inexistindo espaço residual para a
2. V. Hartmut Maurer in Droit AdministratifAllemand, cit., pp. 45 e ss., sobre
teorias como as da importância da regra, da tradição, da soberania, da gestão e da aplicação automática e acrítica da
competência, além das difundidas teorias dos interesses em causa, da subordinação regra ao caso. Contudo, a eventual
e dos titulares ou sujeitos de direito. Esta última, sem excluir as demais, é das mais supressão ou modulação dos efeitos
interessantes, porém incapaz de, por si, explicar a atuação com base em regras de da norma estrita é justificável para a
Direito privado por sujeitos de Direito público. Por isso, a explicação para a dife- preservação (unidade, abertura e efi-
rença funcional deve estar calcada na dominância dos princípios fundamentais, algo cácia) dos princípios: não por acaso,
que explica melhor uma série de fenômenos, tais como o domínio de princípios de admite-se, por exemplo, a declara-
Direito público em contratos regidos por regras de Direito privado quando, num dos
ção de regra ainda constitucional
polos, figura pessoa jurídica integrante da Administração Pública.

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230 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Princípios
• toda antinomia é resolvida pela hie-
rarquização axiológica (atividade
que se identifica com a ponderação)
• formam a unidade da qual emerge a
dialética circular hermenêutica
• não são contingentes plenamente
• conferem e asseguram, sobretudo,
complexidade ao sistema
• devem ser pensados numa teoria
tópico-sistemática
• requerem uma visão constituciona-
lista em oposição ao fragmentário
legalismo estrito
• determinam e pressupõem coerência
• são indeterminados, em certa medi-
da, mas determináveis
PRINCÍPIOS E REGRAS - SEMELHANÇAS:
• são interpretados3 tópica e sistematicamente, à luz, ao mesmo tempo, do sis-
tema e do caso aporético
3. Entre os vários indicativos de que, tampouco no plano das regras, aplica-se
a "lógica do tudo ou do nada" (em que pese a tendência quase atávica de se pensar
~
Regras
• a antinomia entre regras oculta uma
antinomia entre princípios, portanto
também se resolve, bem observadas
as coisas, pela hierarquização axio-
lógica
• são múltiplas prescrições que diale-
ticamente precisam ser encadeadas
na unidade dos princípios
• não são necessárias plenamente (ina-
ceitável a vinculação automática da
escola da exegese), nem plenamente
contingentes (inaceitável a discri-
cionariedade desvinculada dos prin-
cípios)
• conferem e asseguram, sobretudo,
efetividade ao sistema
• devem ser concatenadas e aplicadas
à luz de uma visão sistemática dos
princípios fundamentais
• devem servir à Constituição e a seus
princípios e objetivos fundamentais
• devem ser vistas (e eventualmente
recusadas) à luz da coerência com o
sistema
• são indeterminadas, mas determiná-
veis, mas, ao serem determinadas,
precisam servir à evolução harmôni-
ca dos princípios e objetivos funda-
mentais
-~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 231
• recebem aperfeiçoamento normativo pelo intérprete/aplicador, positivador
derradeiro do sistema
• quando se contradizem, não necessariamente se contrariam
• estão no plano do dever-ser e reclamam hierarquização
• combinam-se no intérprete (círculo hermenêutico)
• exigem ser compreendidos numa relação interativa e intersubjetiva (para
além do corte rígido entre sujeito e objeto)
• requerem uma visão complexa, dialética, não-unidimensional
• são compreendidos em transformação (suplantado o originalismo imoderado)
• demandam o equilíbrio dialético e a preferência racional pela variabilidade
evolutiva benéfica
Constatada, portanto, uma antinomia entre normas de Direito pú-
blico e de Direito privado, tudo tende a se dissipar se houver acertada
hierarquização do bloco de princípios aplicáveis topicamente. Ou seja,
recorre-se ao plano mais alto para sobrepujar a eventual antinomia, que
se equaciona também no campo pragmático. Naturalmente, reconheci-
da a superioridade dos princípios fundamentais, por definição, em re-
lação às regras. Logo, não se negam as especificidades estabelecidas
pela própria Constituição, nem a utilidade metodológica das classifica-
ções flexíveis dos ramos jurídicos, tampouco o significado de princípios
como o da subsidiariedade. Contudo ,força praticar a fecunda refutação
do uso cego das dicotomias fixistas e perceber a dialética público-parti-
cular como nota característica do Direito Democrático. Esse movimen-
to em espiral pode ocorrer, sadiamente, numa espécie de contradiçã04
positiva e favorável à abertura, à evolução e à unidade do sistema pela
sinergia entre as esferas do indivíduo e do Estado. Entretanto, não se
pode negligenciar o risco da nada sistemática contrariedade autofágica e
devoradora do público e/ou do privado. Contrariedade terrível e insana,
dado que implica o sacrifício ruinoso de progressos duramente efetuados
no âmbito dos princípios e objetivos fundamentais, que se resumem na
diretriz segundo a qual cumpre respeitar, nas esferas pública e privada,
a dignidade e o genuíno bem de todos. Por tais motivos, não se pode
assim, como se reflete em parcela da doutrina), citem-se apenas dois: a possibilidade
de manipulação ou modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e
as hipóteses de declaração de regra "ainda constitucional".
4. Recorde-se a distinção entre contradição de contrariedade, como a faz Car-
los Cime Lima: "Quando Hegel fala de contradição, ele não quer dizer o que os
/ lógicos chamam de contradição, e sim aquilo que desde Aristóteles é chamado de
contrariedade", in "A Herança de Platão", Luiz Rhoden (org.), Dialética, Caos e
Complexidade, São Leopoldo: Unisinos, 2004, p. 69.
 ............
232 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
anuir passivamente com qualquer contrariedade destruidora, mormente
quando se percebe o aludido risco de involução.
Assim, claro que, na perspectiva tópico-sistemática, os avanços em
termos de princípios da moralidade, da transparência e da imparciali-
dade (chaves para a racionalidade jurídica, em lugar dos motivos ca-
prichosos, extravagantes ou subalternos) não podem ser ameaçados ou
perdidos à conta da suposta eficiência de regras calculistas e desumanas.
Inclusive porque a eficiência é, também, um princípio de Direito públi-
co. Princípio que deve ser reciprocamente concebido e acatado no co-
tejo com os demais, inclusive a eficácia, no sentido de determinação do
cumprimento dos objetivos fundamentais da República. Não se admite
que nada sirva, por "realismo" político acomodatício, como pretexto à
quebra das vigas mestras da sistematicidade. Eficiência e eficácia devem
andar lado a lado.
É com a ótica centrada nessa interação entre o Direito público e o
Direito privado - rejeitada a destruidora usurpação de um pelo outro -,
que devem ser agasalhadas as premissas formuladas no presente capítulo.
Com efeito, a visão tópico-sistemática, além de superar os unilate-
ralismos, assume a não-identificação automática e simplista do interes-
se público com o do Estado como aparato. Mais: quando se efetua, com
acuidade, a superação da rigidez na fixação de lindes entre o Direito
público e o Direito privado, encontra-se a transcendência do corte su-
postamente incomunicável entre Direito e Moral, eis que insuprimíveis
as vinculações: probidade é uma exigência principiológica em ambas
as esferas. 5
Frise-se que, se se quiser contribuir para a interação sistemática en-
tre Direito público e Direito privado,6 a própria afirmação das relações
jurídicas imantadas pelos princípios, direitos e objetivos fundamentais
haverá de reconfigurar o peso das regras, sobretudo para se retirar do sis-
tema bom número de regras inconstitucionais, impregnadas de impulsos
particularistas não-universalizáveis.
Não menos certo que, a essa altura, revela-se sem propósito desco-
nhecer, na raiz, o Direito público como aquele que deve cumprir, a par
5. Merece menção J. Habermas in Faldizitat und Geltung, cit., ao examinar os
paradigmas do Direito, por entender que uma ordem jurídica apenas se mostra legíti-
ma se capaz de garantir as cooriginárias autonomias privada e cidadã.
6. A propósito, na seara privatista, convém, para ilustrar, a reflexão importante
de Luiz Edson Fachin in Teoria Crítica do Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p. 278. V. o mesmo autor in Questões do Direito Civil Brasileiro Contemporâ-
neo, Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
-~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 233
de outras, a função de barreira contra o esmagamento da consciência
individual. Afastado todo e qualquer extremismo antidialético, não se
admitem oportunidades para ablações reducionistas que inviabilizam a
realização axiológica pluralista do Direito como sistema.
À vista disso, para ilustrar, observa-se que as parcerias entre o pú-
blico e o privado7 hão de ser entendidas como benfazejas, desde que
prepondere autêntica e proba sinergia das pessoas privadas com o setor
estatal e desde que não aconteça, na prática, uma assistemática supres-
são de esfera em obséquio da outra. Não se deve ignorar, mormente após
a crise financeira internacional de 2008, que erraram, com resultados
desastrosos, os que pensaram que as forças privadas, sem boa e forte re-
gulação, poderiam assumir substitutivamente as funções do Estado De-
mocrático. Ora, restou dolorosamente insofismável que, sem prejuízo da
cautela em relação aos impactos das decisões estatais, a boa regulação é
cogente. E a iniciativa privada não deve pretender substituir a esfera pró-
pria do Poder Público, que, por sua vez, deve subsidiá-la sem sucumbir
à cooptação dos interesses particularistas.
Em idêntica ótica, a denominada "terceirização" também não pre-
cisa ser vituperada como um mal, desde que não sirva para burlar prin-
cípios constitucionais, tais como o da impessoalidade e o da moralida-
de administrativa, conquistas irrenunciáveis. Importa saber se, por esse
meio, obtém-se, ou não, a efetiva coincidência da vontade do particular
com os incontornáveis imperativos do genuíno bem de todos, isto é, se
se alcança a compatibilidade sistemática. Por certo, bem de notar que
se as providências do Poder Público se destinarem a finalidades me-
nores (tais como o favorecimento espúrio), então não se promoverá a
adequada interação sistemática entre o público e o privado. Quer dizer,
serão ilegítimas e impugnáveis no nascedouro. O exame da matéria, em
cada caso, ocorrerá, ao fim e ao cabo, no campo tópico-sistemático da
hierarquização.
Por igual e na mesma sintonia, a delegação da execução indireta da
prestação de serviços públicos (concessões, permissões e autorizações)
pode funcionar, por assim dizer, como expressivo mecanismo da dialé-
tica do público e do privado, desde que se obtenha serviço público ou
universal mais efetivo do que o seria prestado pela forma direta e desde
que não se queira subtrair o titular da prestação de serviços essenciais
(a saber, o Poder Público) dos inelimináveis deveres correspondentes.
Imperativo, sempre e sempre, não olvidar a necessidade de máxima con-
7. Como também as parcerias ou consórcios na esfera pública.
 ~.
234 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
cretização do princípio da intervenção essencial do Estado, que supera
o falso dilema do Estado máximo e do Estado mínimo. Tal princípio
exige o Estado cumpridor das suas indeclináveis funções. Os serviços
públicos, assim entendidos os essenciais para a reàlização dos objeti-
vos do Estado Democrático, são de titularidade do Poder Público (com
as exceções constitucionais), sem impedir as delegações executórias a
terceiros. Mais uma razão para que a Carta seja lida com o "telos" não
propriamente de redução do Estado, muito menos do seu esfacelamento,
mas da concentração qualificada em suas atividades essenciais. Estatola-
tria à parte, qualquer tentativa de renúncia a deveres traduzir-se-á como
substancial inconstitucionalidade.
Nessa linha, o Estado pode e, em muitos casos, deve prestar o ser-
viço público por meio de terceiros. Todavia, ao fazê-lo, ao lado de outras
considerações, precisa zelar para que prepondere o regime de proteção
do consumidor de serviços públicos, até porque são normas de ordem
pública as que regem as relações de consumo. O que aflora da leitura tó-
pico-sistemática é a categoria una (na diversidade) dos serviços públicos,
independentemente de a contraprestação existir ou não, assim como de
quem quer que seja o executor. De outra parte, imperativo que o Estado
dedique as suas melhores atenções hieraquizadoras às prioridades reais,
pois incontestável, acima das querelas ideológicas, o paradoxal fenôme-
no do Estado em demasia em determinadas áreas e deficiente noutras.
De sorte que todo cuidado haverá de ser pouco para evitar o eclipse das
prioridades decorrentes dos objetivos fundamentais da República. Rea-
firme-se: não se trata de Estado máximo contraposto a Estado mínimo,
senão que de Estado proporcional e sistematicamente equilibrado. Bem
lapidado, o princípio da intervenção essencial e proporcional do Estado
enseja a superação de falsos dilemas. Evita os costumeiros erros tanto
daqueles que preferem negar radicalmente qualquer participação ativa da
sociedade como dos que enxergam o Poder Público como mal irremediá-
vel e apostam no desmantelamento puro e simples do aparato estatal. Há
setores em que o Estado atua de modo pífio e lacunoso. Em contraparti-
da, áreas há nas quais, a rigor, o Estado, na condição de aparato, jamais
deveria ter adentrado, pois não se coadunam com as suas atribuições
e debilitam a credibilidade indispensável à consecução de suas infun-
gíveis responsabilidades. Com efeito, a interpretação tópico-sistemática
não aponta para tais extremos, até porque o problema maior do Estado
contemporâneo, mais ou menos universalizado, não reside numa questão
de magnitude ou porte, mas, acima de tudo, na qualidade do estabeleci-
mento e da execução das prioridades, isto é, da hierarquização.
-~
I
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 235
Certamente, ainda viceja enorme confusão entre o Estado como
aparato e o Estado como instituição que visa a realizar fins nobres em
comum. Esta última noção, todavia, é a que precisa ser, imediata e pro-
fundamente, vivificada pelo intérprete. Semelhante enfoque sistemático
não afasta o inarredável caráter contingente do serviço público. Ao real-
çar materialmente a essencialidade, quer-se pensar o Estado sem rendi-
ção a influxos de crônicos egotismos. É por isso que se mostra impres-
cindível assumir a premissa de que serviços públicos há que persistem
indelegáveis. Por uma série de motivos: ou por falta de interesse dos
particulares na prestação (inviabilidade circunstancial ou fática), ou por
exigirem a estatalidade na prestação adequada (inviabilidade funcional)
ou porque a transferência da execução a particulares mostra-se descoin-
cidente com o genuíno interesse público (inconveniência). Dessa manei-
ra, os serviços públicos (que se entendem como atividades essenciais,
nos termos do sistema normativo, prestadas diretamente pelo Poder
Público ou mediante delegação executória lato sensu, sob regência dos
princípios de Direito público), nem sempre poderão ser executados por
terceiros e, ainda quando o forem, tal prestação não restará inteiramente
desvinculada da regência publicista.
A seu turno, a flexibilização da gestão pública, na perspectiva da
interação positiva entre o público e o privado, não deve operar, no ho-
rizonte sistemático, como algo alheio aos princípios superiores do Di-
reito público, sob pena de se marchar não para o Direito privado, mas
para a arbitrariedade incompatível com a salutar constitucionalização
do Direito privado. Semelhante atitude não encontra amparo no sistema
(a despeito da redação do art. 173 da CF, nos termos da EC 19/1998).
Corre-se o risco não propriamente de evasão para o Direito privado, mas
da sonegação do Direito público. Urge sobrepassar, com firmeza, a sone-
gação dos princípios de Direito público, inclusive por reconhecer, como
acentuou Walter Leisner, 8 a unidade dos interesses públicos, acima da
unidade da entidade estatal.
Para fazer frente a questões desse jaez, convém não esquecer a pri-
mazia tópico-sistemática da Constituição. Assim, mais do que simples
ponto de confluência, a visão constitucionalista crítica é de grande valia
para a superação da dicotomia rígida público-privado. Vez por todas,
o respeito ao bem de todos impõe-se, ao mesmo tempo, na esfera das
relações entre indivíduos e Estado e nas relações dos indivíduos entre si.
8. In Der Abwãgungsstaat. Verhãltnismãssigkeit ais Gerechtigkeit?, Berlin:
Duncker & Humblot, 1977, p. 140.
 ~
236 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Mais: tal reconhecimento produz a unidade sistemática superior
das normas do Direito público e do Direito privado e atravessa, sob de-
terminados aspectos, as suas fronteiras. Útil abraçar essa perspectiva,
para além das limitações setoriais ou corporativas. Na complexidade da
vida e na busca da cimentação elevada, manter o liame, com profundida-
de e não de modo trivial, com os fios condutores do sistema, os objetivos
fundamentais (CF, art. 3º).
Tome-se, outra vez para ilustrar, o regime de bens. Parece que tive-
ram boa intuição, a seu tempo, os que concluíram que a distinção entre
os regimes de bens públicos e privados estabelecia-se mais como ques-
tão de grau de publicização. 9 Hoje, em nosso sistema constitucional, o
meio ambiente é considerado bem de uso comum do povo e a água é
tratada como bem público. Como se observa, o fenômeno da constitu-
cionalização faz impositiva nova abordagem paradigmática.
No concernente aos contratos, também se verifica mutação. Não
mais se aceita a autonomia contratual de outrora, sobremodo pela clara
subordinação de todos os contratos (públicos e privados) a princípios
tais como o da probidade. 10 Nesse quadro, no contexto dos contratos de
direito público, evoluiu-se para que a exceção de não-adimplemento se
tomasse manejável por ambos os polos do liame contratual. Já a revoga-
ção da licitação - além de exigir rigorosa, clara e congruente fundamen-
tação - apenas pode ocorrer por fatos supervenientes. Por sua vez, as
garantias do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo
encontram-se disseminadas no sistema. II Falta muito, está claro, em ter-
mos de observância dos princípios fundamentais, mas já se deram pas-
sos no rumo de coibir patológicas e crônicas contrariedades ao sistema.
Permanecendo na área, impõe-se observar a aparente antinomia
presente na Lei de Licitações: as contratações administrativas seguem
o regime de Direito público, aplicando-se-Ihes, supletivamente, os prin-
cípios de Direito privado. Mas o legislador também fala em contratos
regidos predominantemente por normas de Direito privado. Ora bem, a
regência, nessas hipóteses, se se quiser uma interação benéfica entre o
público e o privado, não pode deixar de residir no campo mais alto dos
9. V., a propósito, René Chapus in Droit Administratif General, 1. 2, Paris:
Montchrestien, 1999, p. 361.
10. A respeito, v. Antonio Junqueira de Azevedo: "O contrato, qualquer contra-
to, tem importância para toda sociedade e essa asserção, por força da Constituição,
faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro" in "Princípios do novo direito
contratual e desregulamentação do mercado", RT750/116 (1998).
11. V. o meu livro O Controle dos Atos Administrativos... , cit., Capo 1.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 237
princípios predominantemente de Direito público. Assim, quando o con-
trato for regido por regras de Direito privado, sendo um dos partícipes a
Administração Pública, sistematicamente deverá ser hierarquizada a re-
gência abarcante, qual seja, a dos princípios de Direito público. A distin-
ção sutil - graficamente exposta no início desse capítulo -, entre regras
e princípios colabora, decisivamente, para solver tal antinomia e manter
a preconizada dialética salutar.
Outro aspecto da implicação mútua das esferas do público e do
privado vê-se confirmado na expansão do chamado controle social dos
atos, contratos e procedimentos do Poder Público. Acentua-se, embora
timidamente, o peso dos princípios da publicidade ou da transparência
e o da participação popular em matéria de controle. Enfim, já se evolui
para uma intensificação do controle social, que, ao menos em tese, reduz
imensamente as distâncias entre o público e o privado.
Cumpre registrar, de o~tra parte, que, tanto na esfera pública como
na privada, a liberdade não pode mais ser aceita fora das exigências
do respeito à Constituição. Seja nas relações entre indivíduos, seja nas
relações com o Poder Público, somente existe, por assim dizer, liber-
dade constitucionalmente vinculada. Acertados aqueles como Georges
Vedel,I2 que se deram conta de que jamais existe puro poder discricioná-
rio ou pura vinculação. Perspicazes, também, Hans Julius Wolff e Otto
Bachof,I3 quando assinalaram que cada abstrata ou concreta criação de
direito se situa entre os polos da inteira liberdade e da rigorosa vincula-
ção, sem que estas extremas possibilidades jamais se realizem.
Na perspectiva tópico-sistemática, os Direitos público e priva-
do são, em Estados Democráticos, antídotos contra a arbitrariedade.
Assim, na seara pública, os atos administrativos discricionários devem
guardar afinidade com o sistema, já pela exigência de motivação, já
porque o Poder Judiciário deve fazer as vezes do que se pode designar
de "administrador negativo". Não há vício insindicável. Nem adianta
fugir para as palavras. Ou isso ou o sistema comportaria uma zona in-
terditada à incidência de princípios, direitos e objetivos fundamentais.
Nessa medida, inaceitável toda e qualquer inércia omissiva em nome da
insindicabilidade, sem prejuízo da interdependência dos poderes. Em
contrapartida, superados os automatismos falaciosos dos que acredita-
vam (nem sempre ingenuamente) na subsunção acrítica das normas ao
caso concreto, pode-se dizer que também não existe vinculação cabal,
12. Droit Administratif, Paris: Presses Universitaires, 1973, pp. 318-319.
13. Verwaltungsrecht, München: C. H. Beck'sche, 1974, p. 186.
 .......
238 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
supressiva da liberdade crítica em face das normas objetivas (seja no
Direito público, seja no Direito privado). Progride-se, responsável e vi-
gorosamente, ao se ousar reconhecer tais características da compreensão
- sem mitos - do sistema jurídico. O que não se aceita é, em nome da
liberdade, o intérprete mancomunar-se com o vício.
Ainda sobre o fenômeno da constitucionalização, impende acres-
centar, por extremamente oportuno: em vários dos seus dispositivos, a
Carta insta a operar a dialética positiva entre as esferas do público e do
privado, sem erradicar diferenças que proclama e ressalva. Lembre-se o
art. 174. Este e outros dispositivos constitucionais indicam o caminho
da interação dialética entre indivíduo e Poder Público. Então, cada in-
térprete passa a ser guardião, nas relações privadas e nas relações com o
aparato estatal, da dignidade dos princípios que servem de base comum
para o Direito público e para o Direito privado. Avulta, pois, a noção
de que o intérprete sistemático deve encarnar a condição de protetor
dos princípios constitucionais e lutar contra arbitrariedades e despro-
porcionalidades, seja no campo privado, seja no campo das relações
públicas. Essa postura é o melhor remédio para curar os graves déficits
de força vinculante dos objetivos fundamentais da República.
Gize-se que a regência de Direito público, entendida sob o prisma
tópico-sistemático, não se apresenta antípoda do regime de Direito pri-
vado, porque o sistema jurídico é um só. O que significa, por exemplo,
que o chamado "Direito Privado Administrativo" não deve ser encarado,
distorcidamente, como oblíquo acento da estatização ou, o que seria erro
simétrico, como sonegação do plexo específico dos princípios publicis-
tas regentes das relações de administração, quando o Estado explorar,
por exceção, atividade econômica.
Não custa sublinhar que as relações de administração (mais de Es-
tado do que de governo) deverão estar sempre regidas por princípios de
Direito público, até nas situações em que incidam predominantemente
regras de Direito privado. Contudo, esse convívio de princípios e de
regras demanda compreensão dialética, como enfatizado. Apenas será
harmonioso se, na prática, ocorrer a positiva interação que pressupõe
a permanente e axiológica hierarquização dos princípios em relação às
regras e a afirmação da unidade evolutiva.
Pelo exposto, eis algumas conclusões a respeito da necessária e sis-
temática interação positiva entre as esferas do público e do privado:
a) Numa adequada interpretação tópico-sistemática, os princípios
fundamentais devem ser entendidos como expressivos pontos de conver-
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RíGIDA 239
gência entre as esferas do Direito público e do Direito privado, compre-
endido o sistema como totalidade multifacetada. De sorte que a distin-
ção, mais do que pelos interesses em jogo ou em razão dos sujeitos, há
de ser efetuada pela dominância dos princípios.
b) Em toda relação jurídica haverá sempre a incidência, direta ou
indireta, de prescrições constitucionais, algo que corrobora a linha de
que toda interpretação sistemática precisa ser conscientemente inter-
pretação constitucional.
c) Uma visão sistemática (complexa e não-unilateral) do princípio
do interesse público faz com que a sua invocação não deva quebrar ou-
tros princípios, notadamente o da dignidade, vedada qualquer relação de
administração que implique o exercício das liberdades e propriedades
em detrimento da preservação das diretrizes superiores devidamente re-
lativizadas.
d) O interesse público, não deve ser confundido com o do aparato
estatal, assim como não parece acertado vê-lo a priori como necessaria-
mente descoincidente com esta ou aquela vontade particular, inclusive
a governamental.
e) Conquanto as distinções entre o Direito público e o Direito pri-
vado sejam eminentemente funcionais, ou melhor, de preponderância
de determinado plexo de princípios, importa ressaltar que a relação da
Administração Pública será sempre uma relação na qual se impõe a
observância predominante dos princípios publicistas, ainda quando re-
gida, à primeira vista, por regras de Direito privado.
f) A defesa do bem de todos ou do interesse público genuíno deve
transcender as fronteiras entre os ramos do ordenamento jurídico no
seio de construção teórica e prática mais larga, que não se coaduna
com subjugações ou despotismos egotistas nem com inviáveis modelos
estáticos.
g) Mostra-se francamente irrenunciável a vasta gama de conquis-
tas na seara do Direito público, assim no plano da moralidade ou da
impessoalidade, de sorte que não se deve jamais colocar entre parênteses
tais progressos, que merecem ser incorporados, em definitivo, ao nosso
patrimônio hermenêutico.
10.3 Breve ilustração no Direito Administrativo
No exame emblemático do subsistema do Direito Administrativo
- visto como rede axiológica e hierarquizável de princípios, regras e va-
 .......,.
240 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
lores regentes das relações internas e externas da Administração Pública
- constata-se, uma vez mais, a possibilidade epistemológica de síntese
da tópica e do pensamento sistemático, aparente e só aparentemente em
contraposição. Com efeito, numa adequada compreensão, desponta o re-
conhecimento dessa identidade essencial como traço comum em todos
os ramos do Direito, inclusive na esfera administrativista, não obstante
as peculiaridades que conduzem ao primado de determinados princípios.
Dito de outra maneira, uma consciente interpretação tópico-siste-
mática do Direito Administrativo jamais poderá ser isolacionista ou hi-
pertrofiar esta ou aquela diretriz, destituída da necessária conexão com
a inteireza do sistema, em sua vocação teleológica. Toda exegese há de
ser sistemática e hierarquizadora. Assim, a legislação infraconstitucional
em matéria administrativa há de ser lida sob o prisma dos princípios
fundamentais, nunca o contrário, se se quiser a instauração efetiva do
respeito ao princípio da constitucionalidade no âmbito do Direito Ad-
ministrativo.
Interpreta-se, aqui e em todos os pontos, qualquer norma singu-
lar com o escopo de, ao aplicá-la, aplicar o sistema inteiro. A plena
compenetração do acerto dessa máxima auxilia no propósito de ver des-
tacada a relevância da preparação do intérprete para propiciar a evolu-
ção sistemática do Direito, nos seus múltiplos ramos e comandos, só
aparentemente esparsos ou sem íntimo vínculo. Tendo presente a tare-
fa da exegese tópico-sistemática, observa-se que as frações do sistema
administrativista guardam (ou precisam guardar) conexão com o todo.
Daí resulta que qualquer aplicação de preceitos comete, direta ou indi-
retamente, a incidência do todo sistemático como pressuposto de sua
adequação. Nesse sentido, convém reconhecer que a interpretação tópi-
co-sistemática não pode jamais ser confundida com mero elemento ou
método interpretativo, pois, à evidência, independentemente das dispu-
tas terminológicas, integra múltiplos critérios. Só quando se realiza, com
inteligência, sensibilidade e explicitude, a concatenação hierárquica de
princípios, de regras e de valores é que se determina apropriadamente o
conteúdo dos dispositivos endereçados à Administração Pública, assim
como a imprescindível harmonização dos comandos, de molde a res-
guardar a unidade dialética do conjunto.
Ainda: é de frisar, nessa ilustração, que se opera, no enfrentamento
das questões envolvendo relações de administração, a inevitável escolha
por um dos critérios hermenêuticos para solucionar tensões antinômicas.
Ao fazê-lo, entretanto, evocam-se, ao menos de modo implícito, todos
os demais critérios. Vai daí o acerto em se operar, cada vez mais, no
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 241
campo empírico e no dogmático,14 a rede categorial sob a angulação da
mútua influência dos critérios, hierarquizados topicamente de maneira a
manter o Direito Administrativo como sistema dotado de unidade evo-
lutiva, seja na pauta aplicativa, seja no campo teorético, ultrapassadas as
tentações do tipo axiomático-dedutivo.
Nesse horizonte, a interpretação tópico-sistemática do Direito Ad-
ministrativo deve ser definida como operação que consiste em atribuir a
melhor significação, entre várias possíveis, aos princípios, às regras e aos
valores jurídicos concernentes à Administração Pública, hierarquizando-
os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias lato
sensu (incluídas as lacunas como modalidade especial), tendo em vista
a solução de casos concretos. 15 Já as antinomias jurídicas, no mundo das
relações de administração - a serem solvidas sob a ótica preponderante
dos princípios publicistas - devem ser pensadas como contraposições
axiológicas. 16 Com efeito, o sistema, assim como se o definiu, supõe
uma assimilação bem mais sofisticada do que aquela que o vê como
mero aparato destinado à solução das incongruências de ordem formal.
Reitere-se que, na linha proposta, também na órbita administrati-
vista, para vencer as antinomias (sempre, de algum modo, solúveis ju-
ridicamente, ainda que entre normas do mesmo plano), o critério hie-
rárquico-axiológico é aquele capaz de oferecer solução mais ou menos
apropriada, desde que, no bojo do sistema, tenha havido - como houve
- a positivação de princípios fundamentais dotados de mínima razoabili-
dade. De fato, no campo das relações de administração, opera-se, como
em todos os ramos, com o "metacritério" da hierarquização, indispensá-
vel à coerência, que determina devam ser considerados estes ou aqueles
princípios topicamente como superiores. Tal se mostra possível porque
justamente assim se hierarquizou, num dado momento, sem exclusão, na
abordagem que se faz, da necessidade de relativização em face de outros
princípios não inferiores a priori. 17
14. Nas várias dimensões ("normativen Dimension", "empirischen Dimen-
sion", "analytischen Dimension"), para recordar Robert Alexy in Theorie der
Grundrechte, cit., pp. 22-25 (trad. brasileira: Teoria dos Direitos Fundamentais, cit.,
pp.32-36).
15. Sobre conflitos de normas no tempo, vide 3.4 do Capítulo 3.
16. Está claro que não se separam rigidamente operadores deônticos dos axio-
lógicos, à vista do enfoque aqui adotado.
17. Por sua vez, Jean Rivero resume sua posição acerca de um critério de Di-
reito Administrativo, nestes termos: "les regles du droit administratif se caractérisent
par les dérogations au droit commun qu'éxige l'intérêt public, soit dans le sens d'une
majoration, au profit des personnes publiques, des droits reconnus aux particuliers
 .........,.
242 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Nesse prisma, as tarefas do doutrinador e do aplicador do Direi-
to Administrativo convergem para o desiderato de encontrar conexões
e hierarquizações à luz de princípios estimados como superiores, topi-
camente, sobretudo os encontráveis no topo do sistema constitucional,
apesar da indeterminação inicial que os caracteriza. Sublinhe-se, pois,
que não haverá boa atitude hermenêutica, nem ciência segura, sem a
manifesta aceitação, pelo operador, de que deve manejar, fundamentada
e racionalmente, o "metacritério" hierarquizador de princípios, regras e
valores, admitidas, como mostrado, as sutis distinções entre tais catego-
rias.
Suficientemente realçada a presença de princípios fundamentais
(não apenas os gerais) como intrínseca ao processo razoável e legítimo
de interpretação do Direito, adiante será proveitoso mapear os princí-
pios fundamentais do Direito Administrativo, à vista dos quais todas as
regras devem ser interpretadas e aplicadas.
Antes, entretanto, urge, à semelhança do que se fez em relação ao
Direito Constitucional, arrolar preceitos da boa interpretação tópico-sis-
temática do Direito Administrativo. Ei-Ios, em linhas gerais:
(I) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo pres-
supõe que os princípios, os objetivos e os direitos fundamentais sejam
reconhecidos como base e ápice da ordem jurídica, com a possibilida-
de de suspender ou cortar a eficácia de determinadas regras, sempre
que realmente necessário à consecução das finalidades superiores do
sistema.
Como visto, cumpre superar, em definitivo, a herança estreita e as-
fixiante da Escola da Exegese. Para tanto, importa acolher o preceito
consoante o qual a hierarquização prudente faz com que os princípios
e os direitos fundamentais (especialmente, aqui, o direito fundamental
à boa administração pública) 18 ocupem o lugar de eminência, na base
e no ápice do sistema. De fato, é no ápice principiológico do Direito
positivo (não no terreno movediço das regras) que se enfeixam as pres-
crições geradoras da normatividade das próprias regras, razão pela qual
o intérprete precisa guardar o foco e a concentração no todo, mais do
que em segmentos ou regras parciais. A sua tarefa consiste emfavorecer,
no caso do Direito Administrativo, a idoneidade das políticas públicas
dans leurs relations, soit dans le sens d'une réduction de ces droits" in "Existe-t-il
un critere du droit administratif?", Pages de Doctrine, Paris: LGDJ, 1980, p. 199.
18. V. o meu livro Discricionariedade Administrativa... , cit., 2ª ed., 2009.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 243
e a observância crítica (sem subserviência volúvel) das prioridades da
Carta, entre as quais o controle que a sociedade madura precisa exercer
sobre a maquinaria estatal. Levar tais objetivos a termo, sem retórica en-
ganosa, eis o dever ético-jurídico indeclinável do intérprete das normas
administrativistas, no exercício também de inteligência existencial. 19
Dito de outro modo: é astronômico equívoco situar as regras no
centro do universo normativo, sobretudo quando se tem de lutar contra
os resquícios do patriarcalismo e da escravidão, notas dominantes do
período colonial, ainda fortemente lastreadas em expressivo número de
regras nada republicanas. Em contraste, a boa interpretação sistemática
do Direito Administrativo empresta precipuamente densidade e consis-
tência, aos princípios, objetivos e direitos fundamentais. Há, nesse sen-
tido, várias disposições normativas cuja eficácia deveria ser suspensa ou
cortada, assim como outras há que cobram eficácia imediata.
Assim, preferível afirmar que o intérprete precisa positivar o siste-
ma administrativista que promova melhor o destino da cidadania, ain-
da que deva fazê-lo com o pensamento estratégico, sem estar movido a
golpes táticos e emocionais. É dele o papel de guardião das presentes e
das futuras gerações, como se verifica no caso notável dos "emergentes"
princípios da prevenção e da precaução, que se devem aplicar também
na seara regulatória. 20 Em outras palavras, igualmente no Direito Ad-
ministrativo, a resposta de que a regra prevalece demonstra assimilação
francamente inadequada de como se realiza a superação de qualquer
antinomia entre regras: são resolvidas tais antinomias mediante a hie-
rarquização dominante de princípios, objetivos e direitos fundamentais.
Radica nisso a importância de não esquecer a diferença de pata-
mar entre o constitucionalismo revigorado e democrático (dominado por
princípios, objetivos e direitos fundamentais) e o legalismo (domina-
do, na melhor das hipóteses, por regras primárias e secundárias, para
lembrar as categorias hartianas). O constitucionalismo democrático, por
definição e sem subterfúgios, haverá de ser tido como superior axio-
logicamente ao legalismo, na boa interpretação sistemática do Direi-
to Administrativo. É dizer: entre princípios fundamentais e regras que
19. Em boa hora, Howard Gardner in Mentes que Mudam, Porto Alegre: Art-
med, 2005, p. 50, cogita, ao lado das demais inteligências já aceitas (não sem antes
desafiar, com acerto, a visão-padrão de inteligência única), a chamada inteligência
existencial, vale dizer, a que envolve, formula e examina as perguntas mais impor-
tantes.
20. V. o meu livro Discricionariedade Administrativa... , cit., em capítulo espe-
cífico sobre os princípios da prevenção e da precaução.
 ..........
244 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
disciplinam as relações de administração~ devem preponderar aqueles,
sem que a suposta, na superficie, maior segurança das regras afete tal
primado, até porque o princípio da segurança jurídica é fundamental.
Mais claramente, para elucidar de vez, se determinada regra colidir
com o princípio da prevenção, por exemplo, o princípio é que deverá
preponderar, em pleno sistema romanístico-continental, com a devida e
suficiente motivação sistemática e com o afastamento, parcial ou total,
da incidência da regra colidente.
Nessa aplicação em prol dos objetivos máximos do Estado Demo-
crático, o princípio hierarquizado, tópica e sistematicamente, preponde-
ra sempre e resolve as antinomias de primeiro e de segundo graus. Sem
que prescrições férreas ou grilhões estabeleçam hierarquias a priori, ou
se mostrem impeditivas de decisão mais propícia à variabilidade evolu-
tiva benéfica do sistema jurídico.
De sorte que não se admite, nas relações administrativas, a timidez
similar à dos que protelaram a abolição da escravatura. A exegese das
normas administrativistas não deve ser rebelde imatura, porém é um erro
sem tamanho ser timorata. Tal estilo situa-se em completa dissonância
com as reclamações do mundo prático e do controle substancial dos atos,
contratos e processos administrativos.
Deveras, a hierarquização não deve acontecer, sob pena de desvio
irracional, nos moldes da aplicação subjetivista cega. Não menos certo
que a interpretação erra ao ser superprotetora a ponto de fragilizar os
cidadãos. Deve, porém, cumprir - sem hesitação - os deveres de defesa
e os prestacionais. Em lugar de omissa ou superprotetora, a interpretação
precisa ser diligente e protetora, na justa medida. Sem temor de ser a
melhor para todos. Ou não será sistematicamente boa.
Não se ignora a necessidade de cuidados, nessa linha. Um deles
deflui do dever de oferecer, com explicitude, a fundamentação suficiente
e jurídica (respeitada certa alteridade das normas). Com essa cautela, a
boa interpretação do Direito Administrativo tem o condão de aprovei-
tar, sem qualquer sentimentalismo, a resiliência normativa a serviço da
cidadania e do desenvolvimento humano, sem cair no pior solipsismo
escapista. Dessa maneira, a sociedade poderá começar a ser parceira da
Administração Pública, em vez do indiferente dar de ombros.
(11) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo é
aquela que sacrifica o mínimo para preservar o máximo dos princípios,
objetivos e direitos fundamentais, vedadas ações e omissões causadoras
de danos.
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 245
O próximo preceito de boa interpretação sistemática do Direito
Administrativo, em confluência com o prescrito para o Direito Consti-
tucional, consiste em adotar uma visão proporcional. Sem excessos nem
omissões. Boa interpretação não é a mais truculenta ou sedutora, porém a
mais adaptável evolutivamente. Proporcionalidade significa, sobremodo,
sacrificar o mínimo para preservar o máximo dos direitos fundamen-
tais, sem excesso e sem inoperância. Mais: presente o vício por ofensa
ao princípio da proporcionalidade, haverá dano anômalo e antijurídico,
embora a conduta do agente possa até ser catalogada como lícita", emH
sentido estrito. Trata-se de preceito que resolve embaraços relacionados
ao subjetivismo extremado em sede de responsabilidade por omissão.
Dito em outros termos, com a devida parcimônia, o princípio da pro-
porcionalidade retempera a responsabilidade e viabiliza o incremento da
tempestiva prevenção e, quando cabível, da precaução justificada.
Tudo considerado, no exercício das competências discricionárias e
vinculadas, força zelar pela' eficácia direta e imediata dos direitos fun-
damentais, especialmente do direito-síntese fundamental à boa adminis-
tração pública, sob pena de responsabilização. Apresenta-se condenável
toda e qualquer ação ou omissão despida de motivos plausíveis. Como
sublinhado, princípios, objetivos e direitos fundamentais vinculam de
modo cogente e, vez por todas, precisam gozar de primazia nas relações
administrativas.
(111) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo
deve favorecer o cumprimento das decisões jurisdicionais consolidadas,
salvo motivo explicitado e imperioso em contrário.
Oportuno aduzir como terceiro preceito, que o intérprete do Direito
Administrativo precisa reconhecer os efeitos da amplitude da tutela ju-
risdicional, de sorte a respeitá-la, ao máximo. Claro, o Poder Judiciário,
como salientado no capítulo anterior, não deve, por exemplo, conferir
interpretação demasiado restritiva do acesso ou calçada em juízos de
mera conveniência em relação à repercussão geral. 21 Claro também que
pode haver situação de indispensável insurgência crítica, dentro das re-
gras do jogo, contra decisões manifestamente erradas, a despeito da rei-
teração. Contudo, força extrair os melhores efeitos da preservação (não
servil, por suposto) da dignidade da tutela jurisdicional.
21. V. Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero in Repercussão Geral no
Recurso Extraordinário, São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 34: "uma vez caracterizada a
relevância e a transcendência da controvérsia, o Supremo Tribunal Federal encontra-
se obrigado a conhecer do recurso extraordinário".
 .......".
246 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
(IV) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo
deve almejar, como ideal regulador, a máxima realização possível dos
objetivos fundamentais da República (CF, art. 3º), com atuação prefe-
rencialmente preventiva ou precavida.
Na consecução máxima possível dos objetivos fundamentais da Re-
pública, imprescindível que o intérprete sistemático do Direito Adminis-
trativo contemple o caráter preferencial dos princípios da prevenção e da
precaução, de ordem a não chegar tarde demais. O princípio da preven-
ção, na seara pública, estatui, com aplicabilidade direta, que o Estado,
certo de que determinada atividade implicará dano injusto, estáforçado
a evitá-la, desde que no rol de suas atribuições e possibilidades. Dito às
claras, presentes os requisitos, o Estado Democrático tem o dever incon-
tornável de agir preventivamente, por exemplo, para evitar a tragédia
provocada por desmoronamento previsível de encostas.
Naturalmente, a certeza resulta condicionada e limitada pelos co-
nhecimentos dominantes na época da decisão, de sorte a não se requerer
certeza apodíctica ou mecânica. Como quer que seja, se houver certeza
suficiente de que determinado prejuízo acontecerá, a rede de causalidade
precisa ser tempestivamente interrompida. O ponto relevante é que não
se admite a inércia antijurídica do Estado, sob pena de responsabilização
proporcional. A omissão passa - ou deveria passar - a ser entendida
como causa possível de evento danoso. Com essa premissa, na seara
administrativa, o intérprete observará, em tempo útil, o princípio da pre-
venção, com seus elementos de fundo, quais sejam: (a) alta e intensa
probabilidade (certeza) de dano especial e anômalo; (b) atribuição e
possibilidade de o Poder Público evitá-lo e (c) ônus do Estado de pro-
duzir a prova da excludente do nexo de causalidade.
Já o princípio da precaução, para o intérprete tópico-sistemático,
traduz-se, nas relações administrativas, como dever de o Estado-Admi-
nistração, motivadamente, evitar, nos limites de suas atribuições e pos-
sibilidades, a produção de evento que supõe danoso, emface de (a) con-
vicção fundada (juízo de verossimilhança) quanto ao (b) risco de, não
interrompido tempestivamente o nexo de causalidade, ocorrer prejuízo
desproporcional, isto é, manifestamente superior aos custos da eventual
atividade interventiva.
Sem dúvida, o resguardo da precaução e da prevenção requer mo-
tivação consistente: 22 indicação cristalina dos fundamentos de fato e de
22. V. a Lei 9.784/1999, art. 50.
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 247
direito. Ainda convém grifar que, na abordagem tópico-sistemática, os
princípios da precaução e da prevenção, congruentemente, determinam
estratégias voltadas também para o longo prazo. Eis robusto motivo
adicional para a construção do Direito Administrativo mais de Estado
do que de governo, ou seja, para o erguimento de lídimas instituições
fiscalizatórias e regulatórias, dotadas de imunidade perante pressões
ilegítimas e protelações espúrias. Tal cortejo de males ou ameaças não
pode ser exitosamente atacado sem aguçar o senso de prioridade hierar-
quizadora. Daí resulta, com equilíbrio entre desassombro e comedimen-
to, autêntica mudança paradigmática. Os princípios da precaução e da
prevenção, incidentes nas relações administrativas, abrem ensejo para
vitórias significativas contra a condescendente, tradicional e patológica
negação dos mais elementares deveres republicanos.
(V) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo deve
ser articulada a partir da hierarquização motivada e imparcial das pre-
missas eleitas.
Outra diretriz de interpretação do Direito Administrativo consiste
em que o intérprete deve buscar motivação23/fundamentação (hierar-
quização) impessoal para as decisões públicas em incessante diálogo
com o sistema, sem adotar soluções "contra legem ", conquanto, em úl-
timo caso, deva buscar o afastamento da regra legal contrária ao siste-
ma. Em outro modo de dizer, precisa empenhar-se, com denodo, contra
o subjetivismo irracionalista que faz, não raro, a decisão administrativa
fruto da escolha calcada em escusa intencionalidade. Como visto, não se
pode erradicar a salutar dose de subjetividade na eleição das premissas,
mas é sem o menor sentido o decisionismo movido sob o influxo deleté-
rio das paixões. Vale dizer, a exigência alastrada de motivação racional24
funciona como poderoso escudo contra o exercício autofágico e coisifi-
cante do poder pela ausência da fundamentação reflexiva e pela quebra
frontal da sistematicidade ou "fraude"25 à Constituição.
23. Sobre o princípio da motivação, v. o meu livro O Controle dos Atos Admi-
nistrativos..., cit., pp. 104-111.
24. V. Aulis Aarnio in Lo Racional como Razonable, cit.
25. v., sobre fraude à Constituição, Marcos Bernardes de Mello in Teoria do
Fato Jurídico. Plano da Validade, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 96: "Se a lei contém
norma jurídica que, indiretamente, infringe a Constituição, há inconstitucionalidade
por fraude a preceito constitucional". E, na p. 97, arremata: "Temos, no entanto, a
convicção de que não há como se negar a aplicação da teoria da infração indire-
ta às normas jurídicas às espécies em que o legislador 'contorna' norma cogente
 -,.
248 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
(VI) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo é
aquela que pretende ser coerente e aberta, favorável à democracia real,
com a salvaguarda do direito fundamental à participação
Na continuidade da exposição desse rol de vetores ou preceitos de
boa interpretação sistemática do Direito Administrativo, cumpre men-
cionar a diretriz segundo a qual a sua boa interpretação sistemática é
aquela que, desde sempre, quer-se juridicamente aberta, coerente e com-
prometida com a democracia real, para além da representativa. 26 O intér-
prete, nesse caso, para preservar a abertura, a elasticidade e a coerência,
deve incentivar princípios "emergentes" (não raro, desdobramentos de
vetustos princípios), tais como o da participação.
Esse preceito surge como decorrência da premissa assumida, ao
longo do livro, de que, ao hierarquizar, precisa-se conferir, ao mesmo
tempo, abertura e consistência à ordem jurídica. Mas não só: ao assu-
mir o papel moderadamente transformador, o intérprete constitucional
pode-deve cumprir o compromisso com a educação para a emancipação
democrática e, por que não dizer, assumir o engajamento incisivo com
a democracia real. Com acerto, observou Norberto Bobbio: 27 "a demo-
cracia não pode ser mais formalidade: deve ser uma realidade; não pode
ser um simples instrumento de governo: deve ser a finalidade da luta
política (...) exatamente porque a democracia hoje deve transmitir a cada
indivíduo consciente os deveres e as responsabilidades do cidadão (...)
tem um objetivo próprio (...) Esse objetivo é a educação dos homens à
liberdade".
De outra parte, o erguimento consistente da democracia real e
participativa é indeclinável compromisso com a cidadania, noutras di-
mensões, além das educacionais. Sobremodo quando a inércia cultural
e econômica insiste em obliterar a participação política. Com efeito, a
democracia é o mais eficiente e eficaz dos regimes para vencer a eficiên-
cia do arbítrio e da corrupção. Bem por isso, cabe assumir, na defesa da
cidadania efetiva, a premissa de que se faz inadiável a exegese quefavo-
reça o aprofundamento do controle democrático do exercício do poder,
constitucional através de normas aparentemente compatíveis com a Constituição".
Reconhece que, para evitar discussões desnecessárias, seria melhor falar em infração
indireta à norma jurídica (p. 98).
26. No caso da CF brasileira, é uma exigência do art. 1º a coexistência sinér-
gica entre democracia participativa e democracia representativa. Falta vivificar o
dispositivo.
27. V. Norberto Bobbio in Entre Duas Repúblicas, Brasília: Editora UnB, Im-
prensa Oficial, 2001, pp. 36-37.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 249
sem o exagero de crer que a participação, por si só, erradique todas as
mazelas. Trata-se, na realidade, de corroborar a ideia de que o exercício
intenso (e, por suposto, esclarecido) da cidadania suscita o aumento da
probabilidade de abstenção ou redução das condutas mórbidas e dele-
térias na gestão pública.
Em desdobramento da premissa, tem-se que perceber que, quanto
maior a participação, maior a probabilidadé de acerto na escolha ou
na hierarquização das prioridades públicas, desde que haja boa infor-
mação. Nesse quadro, o intérprete deve vivificar os vários instrumentos
ora disponíveis que, de algum modo, prestam-se a fazer a sociedade civil
mais apta a desenvolver, na perspectiva da maioridade, a consciência de
que, em instância última, cada um é, de certo modo, responsável pelo
destino comum. Assumido, com o máximo de rigor, os encargos ineren-
tes à semelhante condição.
Doravante, cumpre assimilar a cogência do controle participativo
(ao lado dos demais controles), isto é, o exercício do direito de fisca-
lização, por intermédio da participação popular, quanto à eficiência, à
eficácia e à observância dos limites estabelecidos pela Constituição, em
matéria de políticas públicas, notadamente na seara orçamentária. Lógi-
co que a cidadania efetiva pressupõe, além da boa informação, a reflexão
crítica para que não se arvore em substitutiva ou excludente das demais
modalidades de controle dos atos, contratos e procedimentos da Admi-
nistração Pública (controles interno, externo e jurisdicional). Serve, por
assim dizer, para energizá-Ias, sem ostentar ou pretender superioridade
de qualquer natureza. Representa, nesses exatos termos, valioso meio de
tomar mais real a democracia formal. 28
Mais: o intérprete sistemático do Direito Administrativo, voltado
à defesa da cidadania efetiva, deve ter presente que o constituinte ori-
ginário, em boa hora, consagrou tal princípio da participação, já numa
decorrência do art. 1º, parágrafo único, da CF, já explicitamente, como
sucede, apenas para ilustrar, nos arts. 194, VII (caráter democrático da
gestão da seguridade social), 198, 111 (participação da comunidade como
diretriz do sistema único de saúde), 204, 11 (participação da população
no controle das ações de assistência social), 206, VI (gestão democráti-
ca do ensino público), sem falar de outros instrumentos (por exemplo,
os previstos no art. 14 da Lei Maior, tais como o plebiscito e o refe-
rendo). Em outras palavras, a participação da sociedade é diretriz de
28. No ponto, certo 1. Habermas in Faktzitãt und Geltung, cit., 1992, conquan-
to adote paradigma procedimentalista, ao salientar que o projeto de realização do
Direito não pode ser meramente formal.
 ~
250 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
estatura constitucional, dado o desiderato constituinte de democratizar
o poder, tomando-o visível e, por assim dizer, mais confiável e limitado
nas suas conhecidas propensões de abuso ou de conformista omissão.
Desse modo, a pouco e pouco, sem resvalar para a demagogia, poderá
ocorrer a ultrapassagem das arcaicas barreiras entre o Estado (aparato)
e a sociedade civil. Ou seja, dar-se-á uma reconfiguração institucional
que não sucumbe às artimanhas do senhorio prepotente, dos privilégios
nefastos e dos patrimonialistas e coronelistas anseios. 29
Assim, ao intérprete sistemático do Direito Administrativo incumbe
imprimir eficácia máxima ao princípio da participação. Não pode con-
sentir que seja de fachada nem simples ornamentação de estruturas aves-
sas à cidadania verdadeiramente protagonista, incompatível com meras
discussões públicas planejadas, de antemão, para a esterilidade. Essen-
cial, pois, a conquista de autêntico diálogo, isto é, da expansiva vincula-
ção entre a atuação social - em permanente processo de legitimação - e
os que exercem o poder público no bojo do aparato estatal. Eis o direito
fundamental à participação a ser estimulado com intensidade.
Forçoso, em suma, transformar a obrigatória participação popular
em direito a ser exercitado, sabendo que, sob vários aspectos, hoje é
mera latência. O controle social deve, nesse processo interativo, con-
tribuir para que o Poder Público supere práticas que já se revelaram in-
servíveis, abstrusas e contrárias ao anseio de endereçar o Estado Cons-
titucional ao cumprimento planejado das suas funções essenciais. Nem
mais, nem menos.
(VII) A boa interpretação do Direito Administrativo sempre pro-
cura zelar pela vitalidade sistemática, sem desprezar o texto, mas indo
além dele, como requer o próprio Texto Constitucional.
O próximo preceito de interpretação do Direito Administrativo,
idêntico (como não poderia deixar de ser) ao enunciado para o Direito
Constitucional, sugere que, sem desprezo da intenção textual normativa,
importa zelar pela soberania da vitalidade do sistema constitucional em
sua inteireza. Adotada, quando necessário e com extrema parcimônia,
a técnica da exegese corretiva, sem incorrer na prática da amputação
afoita. Mais do que a voluntas legislatoris ou a voluntas legis, impende
ressaltar e fazer visível o espírito atual e inclusivo do sistema. Como
referido, a intenção subjetiva do legislador histórico tem o seu peso, mas
29. V. Victor Nunes Leal in Coronelismo, Enxada e Voto, São Paulo: Alfa-
-Ômega, 1978, p. 253.
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 251
é secundária. Em outro dizer, não se deve descurar a vontade histórica
do legislador (a despeito de ser coletiva e confusa), uma vez que ca-
sos há em que as presumíveis intenções originais simplesmente não po-
dem ser menosprezadas. Mas sem esquecer que a pesquisa da vontade
histórica (jamais unívoca) depara-se, não raro, com enorme toxicidade
ideológica. 30 Logo, urge ter presentes as epistemológicas fraquezas do
"originalismo" extremado e das premissas associadas ao interpretativis-
mo estrito, preso à noção preconceituosa de que os direitos, objetivos
e princípios fundamentais existiriam apenas se e quando reconhecidos
pelas regras.
(VIII) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo
concebe os direitos fundamentais como totalidade indissociável e, nessa
medida, procura restringir as eventuais limitações.
O próximo preceito ilustrativo de exegese tópico-sistemática do
Direito Administrativo orienta: os direitos fundamentais não devem ser
apreendidos separada ou localizadamente, como se estivessem, todos,
encartados no art. 5º da Constituição Federal. Mais: devem ser interpre-
tadas restritivamente as limitações, pois, no âmago, todos os direitos
ostentam potencialidade eficacial direta e imediata. E melhor ainda:
todas as relações de administração pública devem ser reexaminadas à
luz da cogência do direito fundamental à boa administração pública,
integrável- mercê da cláusula constante em autêntica norma geral inclu-
siva, prevista no § 2º do art. 5º da CF - ao rol dos direitos fundamentais.
Com efeito, reconhecido o direito fundamental à boa administração, a
sua ablação e a limitação inviabilizadora de seu exercício mostram-se
rigorosamente inconstitucionais.
(IX) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo
sempre colima promover a preservação dos princípios constitucionais,
ainda quando em colisão.
Os princípios constitucionais, incidentes nas relações de adminis-
tração (arrolados a seguir), nunca devem ser eliminados mutuamente,
ainda quando em colisão. Além disso, importa, outra vez, ter presente
que a antinomia entre regras oculta antinomia entre princípios. Inva-
riavelmente opera-se uma hierarquização tópico-sistemática. No fun-
30. Sobre ideologias, v. Ivan Izquierdo observa in Silêncio, São Leopoldo:
Unisinos, 2003, p. 106: "Creio que as ideologias são algo essencialmente perverso,
baseadas na mais insensata arrogância. Nenhum ser humano tem realmente o direito
de impor sua ideologia aos demais".
 .."
252 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
do, também acontece autêntica afirmação tópica da natureza superior
de determinado comando principiológico em relação às regras em coli-
são, mais do que a supressão de uma pela outra, quando se esgotam as
possibilidades da exegese congruente e proporcionalmente modulatória
(recorde-se o quadro das distinções entre princípios e regras, no início
desse capítulo).
(X) A boa interpretação sistemática do Direito Administrativo con-
cretiza, ao máximo, o direito fundamental à boa administração pública.
Por certo, a boa interpretação sistemática do Direito Administrativo
é aquela que cuida de favorecer os direitos fundamentais, com especial
ênfase ao direito fundamental à boa administração pública, entendido
como o direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz,
proporcional cumpridora de seus deveres, com transparência, motiva-
ção, imparcialidade e respeito à moralidade, à participação social e à
plena responsabilidade por suas condutas omissivas e comissivas. 31 A
concretização desse direito deve acarretar, nas relações administrativas,
a cogência da totalidade dos princípios constitucionais corresponden-
tes. Mais: nesse direito-síntese 32 abrigam-se, entre outros, os seguintes
direitos: (a) o direito à administração pública transparente, que implica
evitar a opacidade (princípio da publicidade), salvo nos casos em que
o sigilo se apresentar justificável e, ainda assim, não-definitivamente;
(b) o direito à administração pública dialógica, com as garantias do
contraditório e da ampla defesa, é dizer, respeitadora do devido proces-
so (inclusive com duração razoável), o que implica o dever de motiva-
ção consistente e proporcional; (c) o direito à administração pública
imparcial, isto é, aquela que não pratica a discriminação negativa de
qualquer natureza; (d) o direito à administração pública proba, o que
veda posturas éticas não-universalizáveis; (e) o direito à administração
pública respeitadora da legalidade temperada 33 e sem a "absolutização"
irrefletida das regras; (f) o direito à administração pública eficiente e
eficaz, além de econômica e teleologicamente responsável, entendida a
eficácia como o cumprimento dos objetivos fundamentais da República
(previstos na CF, art.3º). Nessa linha, por exemplo, perante antinomia
31. V., para o conceito e reflexos, o meu livro Discricionariedade Administra-
tiva... , cit., pp. 22 e ss.
32. V. o inspirador art. 41 da Carta de Nice.
33. Para o exame do princípio da legalidade administrativa no Direito Compa-
rado, v. José Manuel Sérvulo Correia in Legalidade e Autonomia Contratual... , cit.,
pp. 33 e ss.
~
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 253
entre o direito à saúde e o regime de impenhorabilidade dos bens públi-
cos, pode preponderar axiologicamente o primeiro. 34
Por certo, esses direitos não excluem outros. Mas precisam ser tu-
telados em bloco. Quer dizer, as escolhas administrativas serão legíti-
mas se - e somente se - forem sistematicamente eficazes,35 motivadas,
proporcionais, transparentes, imparciais, respeitadoras da participação
social, da moralidade e da plena responsabilidade.
Em conexão, reconceitua-se a discricionariedade administrativa
legítima como a competência administrativa (não mera faculdade) de
avaliar e de escolher, no plano concreto, as melhores soluções, mediante
justificativas válidas, coerentes e consistentes de conveniência ou opor-
tunidade (com razões juridicamente aceitáveis), respeitados os requisi-
tos formais e substanciais da efetividade do direito fundamental à boa
administração pública.
Já que a discrição é uma competência, mais do que faculdade,
ausentes os bons motivos para exercitá-la ou deixar de exercitá-la, o
agente público resta vinculado aos motivos opostos. De sorte que não
se aceita a figura da decisão administrativa completamente insindicável,
pois a motivação há de indicar, de modo límpido, os fundamentos da
juridicidade36 da escolha realizada.
Sem exceção, o controle do "demérito" (todo vício é sindicável)
alcança até a incoerência da conduta administrativa, na abertura de
exceções sem motivação. 3? Por tudo, ao intérprete sistemático do Direito
Administrativo incumbe combater os dois principais vícios no exercí-
cio da discricionariedade administrativa: o vício da discricionariedade
34. V., para ilustrar, REsp 840.782-RS, reI. Min. Teori Zavascki.
35. Engana-se quem supõe que a Constituição, ao consagrar o princípio da efi-
ciência (art. 37, com o advento da Emenda 19/1998), excluiu o princípio da eficácia.
Ao contrário. O aludido princípio consta expressamente no art. 74 da CF. Para além
disso, o princípio da eficácia, embora admissíveis outras abordagens, veda o des-
cumprimento dos objetivos fundamentais da República. Nesse sentido, força evitar
ou coibir os casos de discricionariedade administrativa ineficaz.
36. Sobre o tema da juridicidade, como verdadeira vinculação ao Direito, v.
Paulo Otero in Legalidade e Administração Pública, Coimbra: Almedina, 2003.
37. A propósito, para ilustrar cuidado com a abertura de exceções, v. o Código
de boa conduta administrativa (para o pessoal da Comissão Europeia nas suas rela-
ções com o público), no qual constam princípios como o da não-discriminação, de
modo que quaisquer diferenças de tratamento em casos análogos devem ser expres-
samente justificadas. Em especial, a aplicação do Código nunca deve resultar na im-
posição de encargos desproporcionados em relação aos benefícios. E ainda: exige-se
coerência, de maneira que qualquer exceção precisa ser devidamente justificada.
 --,.
254 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
excessiva ou abusiva (arbitrariedade por ação) e o vício da discricio-
nariedade insuficiente (arbitrariedade por omissão). Uma leitura des-
sa natureza precisa deitar raízes, entre nós, sem perpetuar o império do
medo e da antijuridicidade. Nas relações administrativas, doravante,
o necessário é o primado do direito fundamental à boa administração
pública,38 que acarreta o aprofundamento (mais do que a ampliação) da
sindicabilidade das decisões administrativas.
Estabelecidos tais preceitos, útil grifar o dever de retirar os princí-
pios, objetivos e direitos fundamentais do plano coadjuvante. Daí que
toda e qualquer relação administrativa há de ser pautada pelo conjunto
das diretrizes supremas, que precisam coexistir numa tensão dialética
salutar, com respaldo na interligação de sentidos devidamente hierarqui-
zados pelo aplicador do Direito, mais do que das leis ou regras. Impe-
rioso, portanto, não perder de vista e, ao contrário, realçar a exigência
de eficácia plena do sistema administrativista, entendido como rede de
princípios, regras e valores que hão de pautar, não nominal ou formal-
mente, mas em substância, o Estado Democrático nas suas relações de
administração.
Para isso, não custa sulcar determinadas ideias associadas aos pre-
ceitos, premissas norteadoras da interpretação tópico-sistemática:
(i) Os princípios fundamentais são diretrizes superiores às regras,
por definição, não devendo os agentes públicos - de modo passivo e i~­
refletido - prestar mero acatamento às normas contidas em regras, quan-
do manifestamente violadoras dos princípios constitucionais. As regras,
por sua vez, devem ser avaliadas à vista do incremento da efetividade
sistemática e sistematizadora das finalidades incorporadas, sem unilate-
ralismos, pela rede de princípios e objetivos fundamentais.
(ii) No sistema administrativista, não existe, a rigor, princípio ju-
rídico absolutista e excludente dos demais. Enunciem-se as principais
razões para a assertiva:
a) porque o sistema administrativista é aberto e dialético - uma
rede hierarquizada pelo intérprete, o que enseja a participação, com li-
berdade responsável, da consciência do mediador na circularidade her-
menêutica;
38. V. Jaime Rodríguez-Arana in EI Buen Gobierno y la Buena Administración
de lnstituciones Públicas, Navarra: Arazandi, 2006, notadamente ao examinar a re-
gulação dos conflitos de interesses, nos termos da Lei espanhola 5/2006.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 255
b) porque não se aplica, em nenhuma parte do Direito, a lógica do
"tudo ou do nada", sequer no plano das regras, apesar da aparência enga-
nadora da resolução de antinomias entre regras por ablação;
c) porque inexiste "a" única e cabal resposta jurídica correta, embo-
ra irrenunciável a busca, entre as variáveis, da melhor para a promoção
evolutiva, no momento, dos objetivos fundamentais da República;
d) porque, embora sem cair no ceticismo niilista, a autonomia do
objeto nunca será de molde a patrocinar a negação da intersubjetividade;
e) porque o Direito apenas se deixa sistematizar topicamente;
f) porque a lógica jurídica opera com silogismos dialéticos;
g) porque o intérprete é quem hierarquiza, nos limites do sistema,
reiterada a inviabilidade lógica da vinculação absoluta (que suporia au-
tomatismo impossível) e da discrição absoluta (que suporia espécie de
"pêndulo caótico" em zonas do ordenamento);
h) porque as Constituições democráticas devem ser entendidas
como intrinsecamente pluralistas, ainda mais que nem toda contradição
representa antinomia nefasta;
i) porque é falaciosa qualquer postura excludente que promova um
valor jurídico em detrimento parasitário dos demais;
j) porque, a rigor, os direitos fundamentais somente se afirmam
como direitos entre outros;
k) porque não se podem suprimir as mutações interpretativas, ainda
quando, à superfície, não aparentem ocorrer;
l) porque o Direito Administrativo é, sobretudo, uma rede de cone-
xões axiológicas;
m) porque direitos e regras não se confundem, superado o mero
Estado de Direito calcado em leis;
n) porque o sistema administrativista é caracteristicamente com-
plexo;
o) porque o positivador derradeiro do Direito é o intérprete;
p) porque se acolhe uma noção de coerência que não se coaduna
com a pretensão arrogante de verdades acabadas ou ideológicas;
q) porque o sistema apresenta finalidades que o transcendem, em-
bora o integrem, mercê de sua variabilidade;
r) porque os princípios somente encontram significação quando o
intérprete os percebe na interação sistemática;
s) porque a antinomia entre regras oculta, invariavelmente, uma an-
tinomia de princípios fundamentais.
 ---,.--
256 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Assentados esses pontos (preceitos e premissas), passa-se, confor-
me prometido, a enfocar o catálogo dos princípios fundamentais (desdo-
bráveis em regras, naturalmente) que devem reger as relações de Admi-
nistração Pública, sem pretensão exaustiva. Eis o catálogo dos princípios
fundamentais: 39
1) principio do interesse público e a correlata subordinação das
ações estatais ao principio da dignidade humana;
2) principio da proporcionalidade ou da simultânea vedação de
excessos e de omissões;
3) principio da legalidade temperada ou nuançada;
4) principio da imparcialidade (ou da impessoalidade), derivado
do principio geral da igualdade, que veda discriminações negativas e
determina discriminações inversas ou positivas;
5) principio da moralidade e seu descendente subprincipio da pro-
bidade administrativa;
6) principio da publicidade ou da máxima transparência;
7) principio da confiança legítima ou da boa-fé reciproca;
8) principio da motivação;
9) principio da ampla sindicabilidade dos atos e principio da par-
ticipação;
10) principio da unicidade da jurisdição e consequente não-cer-
ceamento do acesso ao Poder Judiciário em casos de lesão ou ameaça
de lesão a direitos do cidadão ou da Administração Pública;
11) principios da eficiência, da eficácia e da economicidade;
12) principio da legitimidade;
13) principio da responsabilidade objetiva da Administração Pú-
blica e dos entes prestadores de serviços públicos, sempre subjetiva res-
ponsabilidade do agente público, sem exceção;
14) principios da precaução e da prevenção;
15) principio da intervenção essencial que determina o dever do
Estado de realizar, de imediato e também a longo prazo, a tutela do
núcleo dos direitos fundamentais, assim como de adotar atuação prefe-
rencialmente subsidiária e incentivadora da emancipação crescente da
cidadania.
Cada um desses princípios vale à proporção em que se insere na en-
riquecedora totalidade dialética (em acepção forte do termo, como reite-
39. V. o meu livro O Controle dos Atos Administrativos... , cit., p. 53.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 257
rado no início desse capítulo) do ordenamento democrático. Sublinhe-se
que se constituem mutuamente e não se excluem. Destaque-se, ainda, o
caráter não apenas programático de tais diretrizes situadas no ápice do
sistema, dado que destinadas a cumprir papel decisivo e nada secundá-
rio na devida hierarquização axiológica e no controle das relações de
administração.
A especificidade do princípio do interesse público está em prescre-
ver que, em caso de colisão, deve preponderar a vontade geral legítima
sobre a vontade egoisticamente articulada. Claro, com a simultânea su-
bordinação das ações administrativas à dignidade e ao fiel respeito aos
direitos fundamentais. Não significa, portanto, admitir o arbitrário e ina-
ceitável jugo da vontade do particular imolado para gáudio de volúvel e
falso interesse coletivo. Ao revés. Representa tão somente uma diretriz
(condicionada por imperativos de justiça social) de que se subordinem
as condutas e os bens particulares ao interesse geral digno desse nome.
Quiçá na realização da velha meta de que o Estado, que somos nós, exis-
ta como a corporificação da vontade de promover o bem de todos, não
das vertentes grupusculares que pretendem destruir a teia onde se afirma
a pólis. Tal princípio não permite invocar em vão o interesse geral, sob
pena de desservir à dignidade do próprio Estado, que existe para o de-
senvolvimento das pessoas, não o contrário. Como enfatizado, a Admi-
nistração Pública goza de prerrogativas não propriamente por suprema-
cia, mas por mera legitimidade funcional. Nessa ótica, gradativamente
precisam ser revistos, com cuidado e sem arrogância, vários institutos e
conceitos, porque se faz indispensável reconhecer que a Administração
resulta tão ou mais devedora da consolidação dos direitos fundamentais.
Mormente quando se espera exemplar o seu acatamento ao plexo inteiro
dos princípios supremos, as "assimetrias" presentes, por exemplo, na re-
lação expropriatória ou nos contratos administrativos só experimentam
amparo e guarida, no plano concreto, se reconhecida a legitimidade da
atuação administrativa em face dos princípios. Desse modo, a relação
apresentar-se-á jurídico-administrativa, não apenas pela subordinação à
cogência do princípio do interesse público. Bem mais: a relação admi-
nistrativa deve resultar da imantação ditada pela totalidade dos princí-
pios, explícitos e implícitos, regentes da Administração Pública.
Sobre o princípio da proporcionalidade, significa que o Estado não
deve agir com demasia, tampouco de modo omisso ou inoperante na
consecução de seus objetivos. Exageros (para mais ou para menos) con-
figuram violações ao princípio. Na primeira situação, ocorre ofensa à
vedação de excesso, na tríplice dimensão de necessidade, adequação e
 -..-
258 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
proporcionalidade em sentido estrito. Na segunda faceta, tem-se a ino-
perância do Estado no cumprimento de seus deveres. 4o Em ambos os
casos, a par de infração administrativa, havendo nexo causal direto e
imediato (primeiro requisito) e dano injusto (segundo requisito), seguirá
o dever de indenizar e o ônus da prova da não-configuração do nexo
causal incumbirá ao Poder Público. Cumpre sublinhar que não se trata
de simples adequação meio-fim nem de mera vedação de excessos. Para
ser preciso, a violação à proporcionalidade ocorre quando, tendo dois
valores legítimos a sopesar, o administrador dá prioridade a um em pre-
juízo injustificável de outro. O vício está em realizar o sacrifício iníquo.
Sobre o princípio da imparcialidade (ou impessoalidade), urge
mencionar, nessa ilustração, apenas que deriva do princípio geral da
igualdade. Mister traduzi-lo como vedação de qualquer discriminação
ilícita e atentatória à dignidade (quer dizer, vedação de toda discrimina-
ção negativa). Mostram-se lícitas apenas as ações afirmativas ou discri-
minações inversas ou positivas, que estabeleçam quotas, por exemplo,
de modo comedido, inteligente e proporcional. Segundo o princípio em
tela, a Administração Pública precisa dispensar tratamento isonômico a
todos, sem privilégios, tampouco qualquer manobra persecutória. Quer-
-se a instauração, acima de sinuosos personalismos (sem prejuízo da va-
lorização diferencial do bom agente público), do governo dos princípios,
direitos e objetivos fundamentais, em lugar de idiossincráticos projetos
de cunho particularista e antagônicos à consecução do bem de todos.
Logo, segundo o princípio da imparcialidade, não se mostram legítimos
os subjetivismos injustificáveis e as idiossincrasias danosas. Ademais,
requer ênfase às políticas públicas de Estado, em lugar das vontades
transitórias e fugazes de governo, ou melhor, sobrepondo-se a elas. Es-
pecialmente quando o Direito Administrativo vê alterado o seu eixo
para se transformar no Direito que regula relações internas e externas
da Administração Pública, para além dos mandatos políticos, numa era
em que, por variadas razões, precisa-se apostar em parcerias de longo
prazo, planejamento e, sobretudo, em modelos regulatórios confiáveis
e imparciais.
No tocante ao princípio da moralidade, por mais que se pretenda
assimilá-lo a outras diretrizes e conquanto experimente pronunciada afi-
nidade com os demais princípios, inegável que o constituinte brasileiro,
com vasta gama de consequências hermenêuticas, pretendeu conferir-
-lhe autonomia jurídica. Segundo o princípio, estão vedadas condutas
40. Sobre o tema da vedação de insuficiência, v. Claus-Wilhelm Canaris in
"Grundrechte und Privatrecht", Archivfür die zivilistische Praxis 184, p. 228 (1984).
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 259
eticamente inaceitáveis e transgressoras do senso moral médio superior
da sociedade, a ponto de não comportarem condescendência. Não se
confunde, por certo, moralidade com moralismo, este último intolerante
e não-universalizável por definição. É princípio autônomo, o que evi-
dencia, como dito, a necessária superação da dicotomia rígida entre Di-
reito e Moral. Rigidez tão enganosa como aquela que pretende separar
Direito e Sociedade, notadamente à vista dos avanços teóricos na recon-
ceituação do sistema jurídico na teoria contemporânea. Com efeito, o re-
conhecimento autônomo dos deveres de probidade (inclusive no Direito
privado) representa irrenunciável conquista.
No que concerne ao princípio da publicidade ou da máxima trans-
parência, quer este que a Administração Pública aja de modo a nada
ocultar. O contrário soaria como negação da essência do Poder em sua
feição pública. De fato e no plano concreto, o Poder somente se legiti-
ma se apto a se justificar em face dos seus legítimos titulares, mais do
que destinatários. Traduz-se na exigência de comunicação transparente
à sociedade dos atos, contratos e procedimentos da Administração Pú-
blica. Funciona, no mais das vezes, como requisito para a geração de
efeitos jurídicos e se associa à moralidade, embora se admita o sigilo
em casos extremos de segurança ou em situações em que a divulgação
prévia poderia inviabilizar medidas defensáveis. Em função disso, deve
a Administração Pública zelar pela ampliação da transparência em seus
atos, contratos e procedimentos, exceto nas hipóteses em que o impedir
o bem de todos, embora tudo deva ser revelado a seu tempo.
Quanto ao princípio da confiança ou da boa-fé,41 aplicado às rela-
ções de administração, resulta da junção dos princípios da moralidade e
da segurança das relações jurídicas. A despeito da escassez de disposi-
ções legais no Direito brasileiro, parece inequívoco que o princípio da
confiança estatui o poder-dever de o administrador público, nas relações
com a sociedade, zelar por uma relação timbrada por autêntica fidúcia
mútua. Em sentido amplo, pode-se dizer que se trata de um dos princí-
pios constitucionais de cuja eficácia mais carece o País para atrair inves-
timentos produtivos e viabilizar produtivas parcerias público-privadas,
em sentido amplo. Em nosso contexto, não se atentou o suficiente para
o sentido positivo da confiabilidade jurídico-administrativa como uma
obrigatória condição de continuidade institucional. Sem a poderosa en-
tronização do princípio da confiança nas relações de administração, até
41. Sobre o tema da boa-fé na esferajusprivatista, v., entre nós, ludith Martins-
-Costa in A Boa-fé no Direito Privado: Sistema e Tópica no Processo Obrigacional,
São Paulo: Ed. RT, 1999.
 ..........
260 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
o edificio constitucional corre perigo. O constante ataque à Lei Maior,
numa cultura de inconstitucionalidades rotineiras, em nada contribui
para o enraizamento cultural do princípio sob comento. Quanto ao prin-
cípio da segurança jurídica, dimanante da noção de Estado Democráti-
co, significa que a Administração Pública deve zelar pela estabilidade
e pela ordem nas relações jurídicas como base para que se cumpram as
finalidades superiores do ordenamento. A estabilidade faz com que, por
exemplo, em certos casos, a Administração tenha o dever de convali-
dar atos irregulares na origem. É que, por mais vertiginosas que sejam
as circunstâncias, a vida em sociedade somente se toma racionalmente
experimentável se houver um horizonte de previsibilidade, no qual a
entropia ceda vez à organização, sem embargo da abertura às mutações
valorativas.
Com efeito, a contraposição (falso dilema) ordem-justiça foi um
dos maiores equívocos registrados na jusfilosofia e na prática, tão grave
como o corte rígido entre ser e dever-ser. É que, sem estabilidade, a jus-
tiça não se afirma, pois carece de amparo, que há de ser inspirador dos
laços de coesão e de respeitabilidade recíproca. Vai daí que se apresenta
insuprimível a ligação desse princípio com o da confiança ou boa-fé,
apesar das sutis distinções. Do princípio da segurança jurídica infere-
se a menor precariedade possível nas relações de administração, donde
segue que, V.g., as autorizações devem ser vistas como atos geradores
de direitos e, portanto, não necessariamente revogáveis sem direito à
indenização.
Acolhe-se, ainda, o princípio da ampla sindicabilidade, suscitan-
do um controle substancialmente alargado, nas suas quatro vertentes:
o controle judicial ("derradeiro", por força do art. 5º, XXXV, da CF), o
controle externo, o controle interno e o controle social. Há, pois, neces-
sidade de se rever o sistema de controle, fazendo-o pronunciadamente
mais apto a exigir respeito ativo dos direitos fundamentais. Numa ampla
sindicabilidade (não incontrastável) dos atos, contratos e procedimentos
administrativos, de sorte a não mais se acolher a categoria dos atos in-
sindicáveis em seus vícios.
É sob o prisma dos princípios, direitos e objetivos fundamentais
que o controle precisa ser exercido, evidentemente não mais restrito
ao tradicional controle de legalidade, por mais que se confira elastério
ao termo. Tudo assimilado, atitudes mais enérgicas contra o desvio de
finalidade sistemática mostram-se imprescindíveis para transcender o
formalismo que camufla a ausência de higidez nas relações de adminis-
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 261
tração: precisa-se de interpretação que, entre nós, viabilize, na prática e
para valer, o direito fundamental à boa administração.
Não há, convém sublinhar, atos administrativos exclusivamente po-
líticos, de sorte que o administrador tem o compromisso com a melhor
decisão justificável. Não se trata de cometer o equívoco hermenêutico
de acreditar na única solução correta. 42 Quer-se somente afirmar que a
liberdade, positiva ou negativamente considerada, precisa ser usufruída
de acordo com o sistema, cuja abertura faz múltiplas as possibilidades de
aplicação do Direito. As escolhas, em maior ou menor escala, devem en-
contrar fundamentação no sistema, para evitar dois fenômenos simétri-
cos igualmente nocivos: uma vinculação formal de atos administrativos,
materialmente dissociada dos princípios fundamentais, e uma noção de
discricionariedade tendente à manifesta desvinculação. Toda e qualquer
atuação administrativa precisa estar vinculada à motivação intersubjeti-
vamente racional. 43
No que diz respeito aos princípios da eficiência, da economicidade
e da eficácia, impende aqui apenas salientar,44 respectivamente, que o
intérprete está obrigado a respeitar a eficiência, donde segue o respeito
à vedação meios inadequados. Deve ter compromisso indeclinável de
encontrar a solução mais adequada economicamente na gestão da coi-
sa pública, com a vedação de desperdício. Deve, enfim, estar atento ao
princípio da eficácia como vedação ao descumprimento dos objetivos
fundamentais. 45
Já quanto ao princípio da legitimidade, determina que, em matéria
de exegese, mister cuidar, sem redundâncias, da perspectiva mais subs-
tancialista, impondo-se ultrapassar as aparências da regularidade formal.
Ao que tudo indica, o constituinte originário (CF, art. 74) ·não pretendeu
42. A rigor, na perspectiva dialética esposada, não se pretende a única resposta
jurídica correta, embora irrenunciável a busca da melhor (mais sistematica) inter-
pretação, num dado momento, para a promoção tópico-sistemática do bem de todos.
43. Nessa obra, já se deixou claro que se emprega o paradigma da racionalida-
de intersubjetiva, porém numa tentativa de síntese ou conciliação entre Habermas e
Gadamer. Portanto, não propriamente naquele sentido de racionalidade comunicati-
va de Habermas, apesar de a expressão evocar a teoria do discurso.
44. Com efeito, Norbert Achterberg in Allgemeines Verwaltungsrechts, cit.,
pp. 279-289, contribui no intuito de pôr em evidência os objetivos fundamentais do
Estado e, ao versar especificamente sobre o tema da ação administrativa, acrescenta
como máxima a ser respeitada pela autoridade pública, entre outras, o princípio da
economicidade (Wirtschaftlichkeit).
45. V., para desenvolver o tema, o meu livro O Controle dos Atos Administra-
tivos... , cit., pp. 125-128.
 ..............
262 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
oferecer ao princípio da legitimidade qualquer conotação estritamente
procedimental. Serve, sim, de chamamento ao intérprete para que não
se cinja à juridicidade acanhada, pois deve zelar pela íntegra das diretri-
zes superiores. O exame da legitimidade dos atos administrativos requer
mais: examinar, a fundo, a finalidade apresentada e a motivação ofereci-
da, de modo a não compactuar, de forma alguma, com qualquer desvio
teleológico. O que se almeja é, em suma, vedar o escudo do formalismo,
graças ao qual foram e têm sido cometidas inúmeras violações.
No que diz com o princípio da responsabilidade objetiva, dele se-
gue que o Estado e os prestadores, por delegação, de serviços públicos
devem reparar os prejuízos anômalos, determináveis e especiais, aco-
lhida a teoria do risco não-integral. Vale dizer, tais entes arcam com os
riscos inerentes à atuação intervencionista, daí decorrendo que a vítima,
em razão de sua presumida vulnerabilidade, resulta sem ter o ônus de
provar culpa ou dolo da Administração Pública ou das pessoas jurídicas
prestadoras de serviço público. Suficiente que nada exclua, no curso do
processo, a formação do nexo causal direto e imediato entre a atuação
(omissiva ou comissiva) do agente público e o dano. Como sublinhado,
impõe-se o respeito pleno e preferencial aos princípios da prevenção e
da precaução, nos termos já formulados nesse capítulo.
Completando a tábua dos princípios fundamentais que regem as re-
lações de administração, o princípio da intervenção do Estado promotor
do núcleo essencial dos direitos fundamentais, sobre o qual já se discor-
reu. Não se trata de Estado máximo contraposto a Estado mínimo, senão
que de lutar pelo Estado essencialmente capaz de promover a eficácia
dos princípios, objetivos e direitos fundamentais. Bem compreendido, o
princípio da intervenção proporcional representa a superação de falsos
dilemas e de dicotomias falaciosamente rígidas.
Assim, culmina-se a síntese ilustrativa dos princípios regentes do
Direito Administrativo brasileiro. Em função desses princípios funda-
mentais, plausível reelaborar a conceituação do Direito Administrativo
como uma rede de princípios, de regras e de valores, concernentes às
relações jurídicas internas e externas da Administração Pública, ou de
quem delegadamente lhe faça as vezes. Dito de outro jeito, esse ramo
passa a ser interpretado como sistema que regula as relações internas
e externas da Administração Pública. Estas são reconceituadas como
as que se orientam não somente por regras, mas sobretudo pelo plexo
sistemático de princípios,46 organicamente articulados e regentes das re-
46. A respeito da utilidade dos princípios na aplicação do Direito, v. Carlos
Ari Sundfeld, Fundamentos de Direito Público, 4ª ed., 10ª tiro São Paulo: Malheiros
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 263
lações administrativas, de molde a respeitar e a fazer respeitar o direito
fundamental à boa administração pública.
De igual sorte, poder-se-ia trazer à colação, ainda para exemplificar,
a contribuição de Norbert Achterberg, que os faz derivar, em linha dire-
ta, dos valores fundamentais (Eckwerte) conformadores da Constituição,
especialmente o Estado de Direito (Rechtsstaatlichkeit), o Estado Social
(Sozialstaatlichkeit) e a Democracia (Demokratie). Do Estado de Direi-
to, em sentido material, extrai os princípios da Justiça (Gerechtigkeit) e
da Segurança Jurídica (Rechtssicherheit), colocando em realce, desde
logo, que entre tais princípios podem acontecer "movimentos contrários,
dos quais resultam 'antinomias internas', no interior do Estado de Di-
reito" ("doch kõnnen zwischen ihnen auch Gegenlaufigkeiten auftreten,
aus denen sich eine 'innere Antinomie' der Rechtsstaatlichkeit ergibt").
Mas alerta para a circunstância de que, a cada passo, "ficará evidenciado
qual dos princípios será m~is valorizado pela ordem jurídica positiva"
("Dann kornrnt es darauf an, welches der beiden Prinzipien die positive
Rechtsordnung hõher bewertet"). De outra parte, do Estado de Direi-
to, em sentido formal, recolhe os princípios da separação dos Poderes
(Gewaltenteilung), direitos fundamentais (Grundrechte), reserva legal
(Vorbehalt des Gesetzes), proporcionalidade (Verhiiltnismiissigkeit),
proteção da confiança (Vertrauensschutzes) e controles administrativos
(Verwaltungskontrollen). Do Estado Social, em sentido material, apon-
ta os princípios da socialidade ou justiça social (Sozialitiit oder Soziale
Gerechtigkeit) e da eficiência na ação (Handlungseffizienz). O primeiro
busca "um equilíbrio nos desequilíbrios sociais entre as pessoas e serve,
antes de tudo, à manutenção e à segurança da dignidade do ser humano"
("einen Ausgleich sozialer Ungleichheiten zwischen den Menschen aus-
gerichtet und dient zuvõrderst der Erhaltung und Sicherheit der mens-
chlichen würde"). O segundo reclama "eficácia das medidas no tem-
po, no conteúdo e numa visão de espaço" ("(...) Wirksamkeit solcher
Massnahmen in zeitlicher, inhaltlicher und umfanglicher Hinsicht"). Em
outras palavras, a atuação do Estado, em todos os casos, "deve, como
se dizia outrora, produzir e realizar o ótimo" ("(...) müssen in jeder der
zuvor genannte weisen optimal erbracht werden"). Do Estado Social,
em sentido formal, afirma, basicamente, o princípio da segurança social
Editores, 2009, pp. 148-149, especialmente ao assinalar: "É o conhecimento dos
princípios, e a habilitação para manejá-los, que distingue o jurista do mero conhece-
dor de textos legais. (...) A aplicação das regras não se faz de modo isolado, mas em
conjunto com todo o ordenamento. Ninguém pode aplicar uma regra - tem sempre
de aplicar todo o Direito".
 ..............
264 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
(sozialen Sicherheit), sob cujo domínio ficam adstritos, entre outros, os
sistemas de beneficios sociais e os serviços de saúde. Da forma demo-
crática de Estado decanta os princípios da legitimação (Legitimation), da
decisão policrática (Polykratischer Entscheidungsfindung), bem como o
da participação (Partizipation ).47
Como se nota, numa e noutra das classificações ilustrativas, os prin-
cípios são derivados entre si e reciprocamente complementares. O que
importa destacar é que nenhum dos princípios apontados pode ter a pre-
tensão de exclusividade48 e, não raro, na prática, tencionam-se mutua-
mente; porém se verifica, pela hierarquização onipresente, a dominância
ditada pelo anseio de coerência, que outra coisa não é senão o vetor
finalístico do princípio da hierarquização axiológica.
Pois bem: a elaboração de catálogos desse tipo é uma das tarefas
do intérprete tópico-sistemático ao enfocar qualquer disciplina jurídica.
Lembre-se, ademais, que, a rigor, nenhum dos princípios prepondera a
priori. Não apenas estão condicionados às circunstâncias externas, mas
à ponderação hierarquizadora do intérprete. Forçoso é, portanto, cons-
truir, a p,artir do sistema, uma boa tábua de princípios fundamentais do
ramo em que se opera, não apenas das regras - mormente as infracons-
titucionais -, que desempenham papel importante, mas menor para a
compreensão sistemática.
Em outras palavras, em lugar das leituras desconectadas, a função
primeira do intérprete, à luz da visão hierarquizadora, é a de soldar, na
própria consciência, tudo o que se encontra disperso, preparando-se para
aplicar, acima e além de tudo, o Direito na sua totalidade aberta, variável
e evolutiva. Claro que, quando os aludidos comandos principiológicos
estiverem em situação de contrariedade, não de mera contradição, des-
pontará, invariavelmente, o "metacritério" chamado a dar a solução ju-
rídica pertinente.
Por exemplo, na elucidativa observação de Hartmut Maurer, "o
problema do anulamento do ato administrativo constitutivo de direitos
será dominado por dois princípios antagônicos. De um lado, o princípio
da legalidade da Administração, que reclama o restabelecimento da si-
tuação legal e, portanto, o anulamento do ato administrativo ilegal. De
outro, situa-se, todavia - e esse conhecimento foi fundamental para a
47. V. NorbertAchterberg in Allgemeines Verwaltungsretcht, cit, pp. 73-85.
48. Examinou-se essa característica, em especial comentar os tipos de função
dos princípios, na abordagem de Claus-Wilhelm Canaris in "Grundrechte und Priva-
trecht", Archivfür die zivilistische Praxis 184, cit., pp. 88-99.
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 265
mudança da jurisprudência -, o princípio de proteção da confiança, que
exige a consideração da confiança do destinatário do ato concessivo de
direitos e da estabilidade do ato administrativo decretado pela autori-
dade pública, gerando, com isso, a manutenção do ato administrativo
ilegal".49 Dito em outros termos, no caso em tela, a antinomia de prin-
cípios encontra a seguinte solução, graças à qual a totalidade de princí-
pios (inclusive o princípio do interesse público) resulta preponderante
em face das condicionantes circunstanciais, ora a legalidade estrita, ora
a confiança do cidadão:
PSL x PSC
(PRINCÍPIO SUPERIOR (PRINCÍPIO SUPERIOR
DA LEGALIDADE) DA CONFIANÇA)
== PS DA HIERARQUIZAÇÃO AxIOLÓGICA
O exame dessa antinomia revela que o princípio da legalidade,
desde que interpretado sistematicamente, representa não uma certeza
49. V. Hartmut Maurer in Allgemeines Verwaltungsrecht, München: C. H.
Beck'sche, 1986, p. 228. Hans-Uwe Erichsen, Peter Badura e Wolfgang Martens,
in Allgemeines Verwaltungsrecht, BerlinINew York: Walter De Gruyter, 1981, p.
227, seguindo orientação idêntica, põem em realce que "o princípio da legalidade
da Administração é somente um entre outros elementos dos princípios do Estado
de Direito. Este princípio contém junto também o axioma da segurança e da paz
jurídicas, dos quais deriva a proteção da confiança dos favorecidos. Legalidade e
segurança jurídica são como que elementos um e outro da manifestação abrangente
dos princípios do Estado de Direito, constitucionalmente de igual hierarquia e de
igual valor. (...) A jurisprudência e a doutrina têm, por conseguinte, apenas permi-
tido o anulamento de um ato administrativo ilegal que conceda direitos, desde que
o interesse público na legalidade prepondere sobre a confiança que por meio do ato
administrativo constitutivo de direitos se tem na estabilidade das decisões das auto-
ridades" ("Der Grundsatz der Gesetzmassigkeit der Verwaltung ist namlich nur eines
von mehreren Elementen des Rechtsstaatsprinzips. Dieses Prinzip enthalt daneben
auch den Grundsatz der Rechtssicherheit und des Rechtsfriedens, aus dem sich für
das, Rede stehende Problem der Gedanke des Vertrauensschutzes des Begünstig-
ten ableiten lasst. Gesetzmassigkeit und Rechtssicherheit sind aIs Bestandteile des
beide Erscheinungen umschliessenden Rechtsstaatsprinzips verfassungsrechtlich
gleichrangig und gleichwertig. (...) Rechtsprechung und Lehre haben demgemass
die Rücknahme eines rechtswidtigen begünstigenden Verwaltungsaktes nur zuge-
lassen, soweit das Offentliche Interesse an der Gesetzmassigkeit der Verwaltung das
Vertrauen des durch den Verwaltungsakt Begünstigten auf die Rechtsbestfandigkeit
der behõrdlichen Entscheidung überwog". As mesmas posições doutrinárias são sus-
tentadas, entre outros, por Norbert Achterberg, Allgemeines Verwaltungsrechts, cit.,
p.468.
 ~~
266 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
infalível,50 mas uma possibilidade entre outras e, só nessa condição,
pode desempenhar o papel de anteparo contra subjetivismos arbitrários
de todos os matizes. Justamente ao não ser absolutizado. Legalidade pre-
cisa alcançar o significado mais alto de princípio, para além das regras,
assim mudando de grau qualitativo. Converte-se, sob certo aspecto, em
princípio da constitucionalidade, capaz de manter as distinções entre
normas estritas e direitos, sem reduzir os últimos ao reconhecimento
daquelas, ao lado de promover a unidade dialética que dá conta das di-
ferenças entre princípios e regras. 51 Embora eminente e diferenciado de
maneira qualitativa, o princípio da constitucionalidade representa, bem
observado, um coroamento evolutivo da legalidade.52 Indica ao intérpre-
te esclarecido o imperativo de ascender da lei para o todo, que é o Direi-
to, e vice-versa, num processo circular e dialético que caracteriza a com-
preensão em sua riqueza de alternativas, longe do passivismo ingênuo ou
indolente. O controle de legalidade estrita passa a ser, de algum modo,
com várias implicações nem sempre assumidas, integrante do controle
da constitucionalidade. Convém enfatizar: a legalidade é princípio entre
outros. Assim, proclamar a mútua derivação dos princípios significa que
os princípios da reserva legal e da proporcionalidade, por exemplo, são
relativamente autônomos. Nesse contexto, a soberania da Constituição,
de que fala Gustavo Zagrebelski,53 apresenta-se, antes de tudo, como
soberania de princípios à procura da síntese na consciência do intérprete.
Por isso, o princípio da legalidade deve ser visto, no Direito Administra-
tivo, no bojo da submissão maior da Administração Pública ao Direito. 54
50. Não é de se estranhar que, em situações especiais, o princípio da legalidade
ceda ao princípio maior da segurança das relações jurídicas. É que, como já se viu,
especialmente no Capítulo 4, até na mais complexa das antinomias, que se situa no
plano dos critérios para resolver antinomias de segundo grau, um princípio poderá
ser hierarquizado como superior, com o escopo de manter a função sistematizadora
do Direito, incompatível com desajuste não resolvido entre suas partes.
51. V. a tábua de diferenças e semelhanças no início deste capítulo (item 10.2).
52. Uma vez que abandonada por inteiro a ilusória subsunção mecânica, então
o princípio da legalidade estrita é um princípio importante, mas entre os princípios.
53. Gustavo Zagrebleski in li Diritto Mite..., cit., pp. 8-11, sustenta que as
separações lei/direitos/justiça e princípios/regras encontram sua unidade na aplica-
ção judicial do Direito e o caráter prático da interpretação implica tensão entre lei e
realidade. Tomar exclusivamente em consideração os casos daria lugar a uma pura
e simples "casuística" (excesso de concreção); já tomar em consideração exclusi-
vamente o ordenamento conduziria a uma ciência teorética (excesso de abstração).
54. A propósito, Hartmut Maurer in Droit AdministratifAllemand, cit., p. 18,
de modo bastante elucidativo, expôs a distinção entre duas acepções do princípio da
legalidade: (a) Atividade administrativa prevista pela lei: a submissão à lei, nessa
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 267
A subordinação ao Direito significa que o ato administrativo lato sensu
deve estar realmente em conformidade com a lei mas, acima disso, com
a rede de princípios, direitos e objetivos fundamentais.
Nessa ótica, a sindicabilidade toma-se amplíssima em matéria de
atos administrativos. A aludida figura do controlador como "administra-
dor negativo" merece acolhida. Decididamente, por tudo, o Direito Ad-
ministrativo é mais do que a lei, embora seja também lei. 55 Dito de outra
maneira, a Administração Pública está sempre obrigada, pelo sistema, a
exercer a liberdade para encontrar a melhor solução, devidamente mo-
tivada. Em contrapartida, nenhuma vinculação será tida como absoluta,
uma vez que o agente público não pratica automática subsunção da lei ao
caso. À vista disso, resulta nítido o caráter não-automático que se deve
emprestar, por exemplo, ao dever de anulação dos atos administrativos
viciados, até porque casos haverá, como enfatizado, em que o dever pro-
eminente será o de convalidá-los.
Portanto, no que tange ao princípio da legalidade e do acatamento
da Administração Pública ao Direito, é de frisar que se evoluiu do le-
galismo primitivo para uma posição, por assim dizer, principiológica e
substancialista (sem interpretativismo imoderado). Claro, nessa altura,
que a aplicação das normas administrativistas, inclusive em nossa tradi-
ção romano-germânica, deve lidar com o Direito entendido como tota-
lidade sistemática aberta, maior do que o conjunto das regras jurídicas.
Assim, a legalidade faz as vezes de valioso princípio, todavia somente
experimenta significado apreciável na interação com os demais. Pensar
o Direito Administrativo exclusivamente como mero conjunto de regras
legais seria subestimar, de forma danosa, a complexidade do fenômeno
jurídico-administrativo.
hipótese, pode apresentar uma intensidade variável, podendo ser estrita com o efeito
de que a Administração tem que agir, em presença da situação de fato definida pela
lei, como quer o comando legal (é a competência vinculada). Mas pode haver lacuna
no sentido de que, na presença da situação de fato definida pela lei, a Administração
tem um "poder" discricionário. (b) Atividade administrativa não-prevista pela lei:
a autoridade pode agir com sua própria iniciativa e segundo suas apreciações, mas
naturalmente tem de respeitar os limites e obrigações gerais estabelecidos em lei
(regras de competência, direitos fundamentais, princípios).
55. No Direito comparado, para ilustrar, além da Carta alemã (art. 20.3), a
Constituição espanhola, por exemplo, estatui subordinação à lei e ao Direito. En-
quanto, no art. 9º, diz que "garantiza el principio de legalidad", no art. 103 estatui:
"La Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa
de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcen-
tración y coordinación, con sometimiento pleno a la ley y aI Derecho". Na mesma
linha, v. art. 266 da Carta portuguesa, para citar outro exemplo.
 .............
268 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Ressalte-se, finalmente, que a complementação dos princípios de-
penderá do diálogo reflexivo dos intérpretes 56 com o sistema, em face
da abertura característica do seu objeto. 57 Haverá de ser sempre uma
interpretação vocacionada a imprimir coerência e vida à totalidade dos
princípios, das regras e dos valores. 58
10.4 Conclusões
Conclui-se que, apenas na superficie, a interpretação muda confor-
me se tratar dessa ou daquela província do Direito. Como sublinhado,
observa-se constância num ponto, por assim dizer, decisivo: o processo
hermenêutico sempre opera tópica e sistematicamente, perpassado pelo
exercício dialético do "metacritério" hierarquizador de princípios, regras
e valores, em todos os momentos, não obstante as contingentes distinções.
Além disso, necessária a hierarquização dos princípios, das regras
e dos valores em seu conjunto, sobretudo quando se tem presente a es-
sencial identidade do pensamento sistemático e da tópica, de molde a
interpretar o Direito mediante o estabelecimento de nexos vivos e de
relativizações recíprocas. A breve ilustração, nesse capítulo, mostra que,
se é acertada a noção da dialética unidade do sistema, não é menos pro-
cedente que esta ocorre a partir da superação das inevitáveis antinomias
pelo princípio da hierarquização.
A mais alta meta do intérprete sistemático está em produzir - com
fundamentação normativa e empírica - a realização complexa do siste-
ma jurídico. 59 Sublinhe-se que, em qualquer ramo do Direito, o intérpre-
56. Para ilustrar, com enfoques variados, a contribuição importante da reflexão
nacional, v. as referências bibliográficas em meu livro O Controle dos Atos Adminis-
trativos... , cit., pp. 481-512.
57. Tal abertura originária do objeto da interpretação sistemática é que faz crer
que a vontade jurídica é necessária para constituir o sistema, mas, ao mesmo tempo,
para nele encontrar as soluções de suas aporias. Assiste razão a Geraldo Ataliba in
"Relações entre Poderes, Ministério Público. Inquérito Civil", Revista de Processo
65/207 (1992), ao asseverar: "O postulado da harmonia do sistema jurídico implica
que as normas não se amontoam, formando um todo caótico, mas, pelo contrário, or-
ganizam-se harmonicamente, formando um sistema coerente e coordenado, segundo
um critério normativo próprio, em função de valores (traduzidos em princípios) que
permitem ao intérprete perceber a harmonia e desvendar a hierarquia que o preside".
58. Os efeitos hermenêuticos no Direito Administrativo e no Direito em geral
de uma compreensão tópico-sistemática trazem, implicitamente, o horizonte de um
mais evoluído sistema jurídico, mais afinado com as necessidades de nosso tempo.
59. "Por um sistema, no entanto, compreendo a unidade dos conhecimentos
múltiplos sob uma ideia" ("Ich verstehe aber unter einem Systeme die Einheit der
SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 269
te - nos limites estabelecidos pelo objeto com o qual interage - é quem
concede energia, consistência e unidade coerente ao Direito positivo.
Nesse aspecto, força revisar o peso das fontes (formais e materiais), tan-
to no sistema romanístico como no da common law. Afinal, o sistema
apenas se completa na sede consciencial do intérprete. Não faz sentido
esconder, dissimular ou negar tal fato.
De outra parte, ao lado da crescente adoção de cláusulas abertas e
da abertura imanente à polissêmica linguagem das normas, constata-se
a rnaleabilidade natural do conteúdo das prescrições jurídicas, ainda as
mais determinadas. Não se mostra, pois, aconselhável insistir na vere-
da que afirma a regência da original intent do legislador. Tampouco a
missão do intérprete pode ser vista como a de clarificar a vontade da lei,
isoladamente considerada e sem a pertinente subordinação teleológica
ao bloco de princípios formadores do sistema.
Desse modo, interpretar uma regra é aplicar o sistema inteiro de
princípios, e qualquer exegese comete direta ou indiretamente aplicação
da totalidade do Direito. Dada a natureza do sistema jurídico e a sua es-
truturação materialmente hierarquizável, as diversidades entre os ramos
residem especialmente na preponderância desses ou daqueles princípios,
sem que se infirme a noção de totalidade dialética. Assim, não obstante
as distinções entre institutos e relações jurídicas, a interpretação tópico-
-sistemática tem de trabalhar com a diversidade de função dentro do con-
junto. São conciliáveis ou superáveis as contradições, justamente pelo
recurso a princípios ascendentes até (e desde) o "metacritério" da hie-
rarquização, que se apresenta como princípio estruturador, precisamente
por sua função racionalizadora de emprestar consistência ao sistema, na
síntese6Ü positiva dos princípios, mas também das regras e dos valores.
Para além das visões unilaterais e facciosas, o sistema jurídico demanda a
conexão das parcelas normativas com a totalidade da rede, na consciência
do intérprete, responsável pela fundamentação racional da decisão. Sem
incorrer nas falácias que infirmam a interpretação sistemática.
Pelo exposto, após essa adicional e sumária incursão ilustrativa,
sublinha-se que, numa interpretação tópico-sistemática consciente, o
mannigfaltigen Erkenntnisse unter einer Idee" - v. Immanuel Kant in "Kritik der
reinen Vemunft", Werkausgabe, voI. IV, Frankfurt: Suhrkamp, 1989, p. 696.
60. "Woraus denn folgt, dass haltbares Recht nur eine Synthese von Grundsat-
zen sein kann (...) Prinzipienloses Recht ist ein Grãuel (...)" ("Donde segue que um
sólido Direito apenas se pode constituir da síntese de seus princípios. (...) Um Direito
desligado dos princípios causa horror (...)"), nos termos de Bemhard Rehfeldt in
Einführung in die Rechtswissenschaft, cit., p. 117.
 .............

270 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA RÍGIDA 271

Direito deve ser visto como um, com várias dimensões. A interpretação i) Em todos os campos do Direito, notam-se, insofismavelmente,
de uma norma pertencente a esse ou àquele ramo será a interpretação os princípios fundamentais subjacentes nos raciocínios jurídicos. Mais:
sistemática do Direito na sua integralidade, captável no plano da racio- interpretar uma norma é aplicar o sistema inteiro. Por isso, boa exegese
nalidade dialética ou intersubjetiva. Aqui não propriamente no sentido é aquela que produz aperfeiçoamento lúcido da multidimensionalidade
da teoria do discurso (como pode parecer de imediato), mas mais exa- do ordenamento.
tamente uma racionalidade que trabalha na síntese da hermenêutica e j) A hierarquização axiológica é responsável pela sistematização
da crítica das ideologias e acolhe a identidade essencial da tópica e do do Direito como totalidade dialética: na sua complexa multiplicidade,
pensamento sistemático. o Direito é um só.
Nesse diapasão, podem ser resumidas as principais ideias de fundo
do presente capítulo:
a) A interpretação do Direito positivo implica sempre a escolha fun-
damentada de, pelo menos um, princípio fundamental que deve prepon-
derar na sua relação com os demais comandos normativos, notadamente
em relação às regras: interpretar é hierarquizar, além de criticar as pré-
-compreensões gadamerianamente inevitáveis.
b) O sistema jurídico, na sua inteireza, mostra-se aberto e unitário
e encontra coerência e consistência na interação com a consciência do
intérprete no circular processo hermenêutico. O que vincula o aplicador
brota do sistema, sem que este aniquile a contribuição participativa do
intérprete, visto como positivador derradeiro.
c) Acima de disputas quanto ao mérito dessa ou daquela solução,
inegável a existência de critério jurídico para solver antinomias na es-
posada acepção ampla, admitidas várias possibilidades de interpretar o
Direito; porém toda interpretação revela-se, de algum modo, sistemáti-
ca. Donde segue a importância de se tornar conscientemente sistemática.
d) Há necessidade de tratamento tópico-sistemático das lacunas e
das antinomias, estas abarcando aquelas.
e) Os princípios fundamentais figuram, na prática e por definição,
como superiores às regras jurídicas, ao menos nos termos do acordo se-
mântico estabelecido no capítulo inicial dessa obra.
f) Entre as esferas do Direito público e do Direito privado há cone-
xões, a cada passo, mais nítidas.
g) A elaboração de seguro catálogo de princípios fundamentais
(sem cair em esquemas reducionistas) e, ao mesmo tempo, a avaliação
de sua força constitutiva é tarefa, por excelência, da hermenêutica.
h) O controle de constitucionalidade apresenta-se idêntico ao con-
trole de sistematicidade, ou seja, deve o intérprete velar pelas soluções
que evitem a ruptura da racionalidade ínsita a sistemas abertos, evoluti-
vos e unitários.
...........

SÍNTESE CONCLUSIVA

1. Na perspectiva tópico-sistemática conceitua-se o sistema ju-

rídico como uma rede axiológica e hierarquizável de princípios fun-
damentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos, cuja
função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar
cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, as-
sim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente,
na Constituição.
Imperioso ter nítidas as distinções entre princípios e regras (vide
o quadro no Capítulo 10), ao lado da percepção de que os princípios
constitutivos do ordenamento são a expressão de uma determinada prio-
rização de valores e objetivos fundamentais. Tudo, entretanto, sem cair
em funcionalismos frívolos ou retóricos: o exame das regras (tanto nos
chamados hard cases como nos clear cases) exige inteligência, em sen-
tido diverso do antigo, de sorte que superar as antinomias de avaliação
implica tratar, mais ou menos pronunciadamente, de todos os elementos
que compõem o sistema.
Por princípios fundamentais entendem-se os critérios ou as diretri-
zes basilares do sistema jurídico, que se traduzem como disposições hie-
rarquicamente superiores - do ponto de vista axiológico - às regras. São
linhas mestras de acordo com as quais guiar-se-á o intérprete quando se
defrontar com as antinomias. De modo que, havendo colisão, deve ser
realizada uma interpretação com foco em tais princípios (em função da
"fundamentalidade"). Bem vistas as coisas, a primazia da "fundamenta-
lidade" faz com que - seja na colisão de princípios, seja no conflito de
regras - um princípio fundamental, não propriamente uma regra, deva
ser erguido como proeminente na realização dos objetivos justificadores
do sistema. Jamais haverá um conflito de regras que não se resolva
sistematicamente à luz dos princípios fundamentais, a despeito de esse
processo hermenêutico nem sempre se fazer nítido para parte dos obser-
vadores e partícipes.
Tais princípios podem estar expressa ou implicitamente positi-
vados. Nesta última categoria encontra-se, na órbita constitucional, o
 ............
274 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
princípio da proporcionalidade (que veda, ao mesmo tempo, excessos
e omissões), sem cujo manejo lúcido toma-se inviável alcançar uma
aplicação tópico-sistemática do Direito, situada para além da subsunção
tradicional típica das correntes que mantêm a dicotomia coisificadora e
fixista entre sujeito e objeto.
Recorde-se que a própria Constituição cuida de estabelecer princí-
pios fundamentais (embora de conteúdo não determinado previamente
de modo cabal), avultando entre os quais o da dignidade e o da invio-
labilidade dos direitos à liberdade, à igualdade e à vida (aí abarcados
todos os direitos fundamentais. Então, nesse contexto, devem as normas
estritas ou regras ser entendidas como preceitos menos amplos e axiolo-
gicamente inferiores aos princípios. Existem justamente para harmoni-
zar e dar concretude aos princípios fundamentais, não para debilitá-los,
nem deles subtrair a nuclear eficácia direta e imediata. Tais regras, por
isso, nunca devem ser aplicadas mecanicamente ou de modo passivo,
porque a aplicação de tais normas implica, em todos os casos, uma si-
multânea aplicação dos princípios em conexão com as várias frações
do ordenamento. Quanto aos valores stricto sensu, em que pese o fato
de o preâmbulo constitucional referir "valores supremos", têm quase o
mesmo sentido de princípios fundamentais, com a única diferença de
que os últimos, conquanto encarnações de valores e "justificadores" do
sistema, apresentam uma forma de diretrizes. A referência a eles no con-
ceito de sistema, entretanto, é antes um reforço e uma homenagem à
terminologia constitucional.
Desse modo, ainda que, no corpo da obra, tenham sido examinadas
outras distinções entre princípios e regras, nessa síntese parece suficien-
te grifar que, sem que se adote a ideia de única interpretação correta,
afirma-se a possibilidade de melhor compreender a rede de princípios,
regras e valores numa lógica que não é a do "tudo-ou-nada" (em am-
bos os casos), isto é, que precisa ser dialética sempre, no campo dos
princípios e no plano das regras. É que não se constata uma zona de
vinculação pura sem espaço à racional hierarquização axiológica. Nesse
prisma, o conceito esposado (a) elucida a exigência teleológica e opera-
cional do princípio hierárquico-axiológico que confere sentido unitário à
vontade da Constituição, construída (mais do que descoberta) no círculo
hermenêutico, que acontece tópica e sistematicamente; (b) robustece a
necessidade de, sob o ângulo da coerência, realizar uma interpretação
conforme a Constituição, justamente para assegurar a aludida hierarqui-
zação - mais do que lógica, eminentemente teleológica -, observando-se
o primado principiológico-valorativo; (c) aponta princípios e objetivos,
SÍNTESE CONCLUSIVA 275
em face dos quais - em caso de incompatibilidades internas - devem as
normas infraconstitucionais guardar uma função instrumental, tendo em
vista a realização superior da Constituição e a preponderância dos direi-
tos fundamentais em relação às leis; (d) desvela o Direito como sistema
aberto e plural, dotado de variabilidade evolutiva, embora com elemen-
tos reputáveis historicamente como intangíveis; (e) afirma a plausibi-
lidade da obtenção do Direito alinhado com os princípios e objetivos
fundamentais da República, tidos - sem fuga ou protelação acomodatí-
cia - como vinculantes para o intérprete, de sorte que a eventual omissão
das providências necessárias ao resguardo de sua efetividade deve ser
prudentemente colmatada pelo intérprete, a quem não cabe adiar a salva-
guarda dos direitos fundamentais, sem exceção; (f) descortina a comple-
tabilidade, que não se confunde com a completude, do sistema jurídico,
uma vez que se ressalta a dimensão tópica na aplicação dos princípios
fundamentais; (g) indica a escolha hierarquizadora como tarefa máxima
do intérprete, especialmente ao lidar com as antinomias (eminentemen-
te axiológicas); (h) sugere uma melhor interpretação tópico-sistemáti-
ca dentre as "n" possibilidades interpretativas, isto é, aquela que sabe
hierarquizar sistematicamente de modo o mais universalizável no en-
frentamento das contradições nefastas, contribuindo para o primado do
respeito à hierarquia mais ética do que formal, numa intelecção apta a
promover a adoção de soluções melhores para o "bem de todos" (CF, art.
3º); (i) acolhe a possibilidade epistemológica da síntese hermenêutica
entre as visões da Tópica jurídica e a dos defensores do pensamento
sistemático, aparente e só aparentemente em contraposição, pois, numa
apropriada compreensão dialética, o dilema se esvai e resulta firme o
reconhecimento de que não só deve existir, mas ocorre, desde sempre,
uma identificação essencial dos pensamentos sistemático e tópico. Afas-
tada qualquer alternativa unilateral e excludente.
2. Uma vez formulado o conceito-guia de sistema jurídico, afirmou-
se que todas as suas frações guardam conexão com a sua inteireza, don-
de resulta que qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma
aplicação dos princípios fundamentais, é dizer, da totalidade do sistema,
como uma condição inafastável para a unidade e a abertura, a mutação e
a variabilidade evolutiva.
Inegável que a interpretação sistemática, decididamente, não deve
ser tratada como uma técnica a mais, porque somente a concatenação
axiológica revela-se capaz de determinar o alcance teleológico dos dis-
positivos, na tarefa de harmonização concreta dos múltiplos comandos,
de sorte a produzir e, depois, resguardar a unidade axiológica.
 ............,
276 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Importa pôr em realce que sempre se efetua a escolha tópico-siste-
mática por um dos critérios hermenêuticos. Mas, ao fazê-lo, utilizam-
se, sob determinado aspecto, todos os demais, daí o acerto em se cogitar
da constituição mútua dos vários critérios, hierarquizáveis topicamente
de maneira a manter o Direito como um sistema dotado de unidade
e de hierarquia (nunca apenas a priori), seja na pauta aplicativa, seja
no campo teorético ou científico, afastada qualquer noção linear, seja
a apenas tópica, seja a somente axiomático-dedutiva. Decididamente,
não é crível a interpretação sistemática como simples linha auxiliar me-
todológica.
À vista dos motivos pelos quais se entendeu conveniente alargar o
conceito de sistema jurídico, e contemplando o princípio da hierarqui-
zação axiológica - o qual não se confunde com a simples escolha de
premissas nos silogismos jurídicos -, sugere-se que, bem pensada, a in-
terpretação jurídica é interpretação sistemática ou não é interpretação.
Nessa ordem de ideias, a interpretação sistemática deve ser con-
cebida como uma operação que consiste em atribuir, topicamente, a
melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas
estritas (ou regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo
aberto, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias em sentido
amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação.
De fato, a interpretação sistemática é, em todas as hipóteses, hierar-
quizadora, utilizada tal expressão em sintonia com o conceito de sistema
I side em integrar a totalidade sistemática, transcendendo o pensamento
jurídico adotado. E mais: não só a interpretação extensiva ou a aplicação
analógica, senão que toda e qualquer interpretação deve ser vista fun-
cionalmente como sistemática e, em razão disso, hierarquizadora.
Frise-se que a ampliação do conceito de interpretação sistemáti-
ca afigura-se proporcional e simétrica àquela realizada no tocante ao
conceito de sistema jurídico. Em outras palavras, a interpretação siste-
mática, nessa ótica mais compatível com as presentes e multifacetadas
funções do Direito contemporâneo, realiza-se em consonância com a
rede hierarquizável, máxime na Constituição, de princípios, regras e de
valores compreendidos dinamicamente e em conjunto. Assim, o controle
de constitucionalidade deve ser representado como espécie de controle
da sistematicidade do Direito Positivo.
Tal formulação conceitual de interpretação sistemática apresenta
as vantagens daquela de sistema jurídico, além das que seguem: (a)
orienta a interpretação, assim concebida, no intuito de vencer as an-
tinomias em sentido amplo (antinomias de valoração), para o plano
SÍNTESE CONCLUSIVA 277
superiormente principiológico; (b) evidencia que precisa existir uma
hierarquização normativa, especialmente em face dos princípios e obje-
tivos fundamentais da Constituição, razão pela qual toda interpretação
sistemática é, de certo modo, interpretação constitucional, subordina-
da qualquer relação jurídica aos direitos fundamentais e aos princípios
superiores; (c) aviva a noção de que os valores, elevados à condição
de supremos por determinação expressa da Constituição, têm de servir
como critério de permanente avaliação tópico-sistemática, no âmbito
da aplicação judicial, fundamentando-a, conscientemente; (d) permite
uma aplicação mais elástica das normas, seja por se adaptar à modifi-
cação dos próprios valores, seja por contribuir para eliminar as nulida-
des das normas contrárias ao sistema; (e) conduz à constatação de que
a lógica jurídica há de ser necessariamente dialética e que são vastas
e, não raro, generosas as possibilidades hermenêuticas conferidas ao
intérprete/aplicador. Ainda: a hierarquização axiológica nunca será so-
mente jurídica, nem poderia sê-lo, por mais que se force a distinção
entre exegese como ciência e de criação do Direito como arte, uma vez
que a interpretação opera, no plano consciencial, como uma construção
tópico-sistemática da própria juridicidade; (f) permite ver que a manei-
ra adequada de compreender o Direito Positivo, a par e além da técnica
de pensar a partir de problemas, consiste numa verdadeira obra de sis-
tematização dos múltiplos métodos, eis que o mister do intérprete re-
tópico, ao menos aquele exercido unilateralmente; (g) reforça a ideia de
que a interpretação não deve ocupar jamais um papel secundário, dado
que a interpretação tópico-sistemática, bem compreendida, é método
não exterior ao objeto de sua apreensão, capaz de engendrar uma visão
aberta, transdogmática, plena e maduramente receptiva aos apelos da
vida em seus reclamos de evolução ética e de justo movimento; (h) faz
ver que interpretar uma norma é interpretar o sistema inteiro: qualquer
exegese sistemática comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da
totalidade do Direito.
Semelhante operação, que consiste em pretender atribuir a melhor
significação sistemática, dentre várias possíveis, aos princípios, às re-
gras e aos valores jurídicos, revela que o objeto da interpretação siste-
mática não se confunde com mera coisa destacável do intérprete, tam-
pouco com o resultado cego de forças ou de processos. Ao interpretar o
"objetivamente" dado, o exegeta realiza a sistematização, e, ao fazê-lo,
transcende inevitavelmente o objeto em si. E só na transcendência que o
imanente jurídico experimenta o seu melhor sentido evolutivo.
 .......,..
278 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
3. As antinomias jurídicas, em sentido amplo, reclamam ser pen-
sadas, concomitantemente, como contradições lógicas e axiológicas.
Como visto, o sistema jurídico, como entendido aqui, apresenta-se com
significação mais rica e desafiadora do que aquela que o vê como um
mero aparato destinado à exclusão de confrontos normativos formais.
Nesse diapasão, pelas razões oferecidas em capítulo específico,
evoluiu-se para entender as antinomias jurídicas como incompatibili-
dades possíveis ou instauradas entre regras, valores ou princípios ju-
rídicos, pertencentes validamente ao mesmo sistema jurídico, tendo de
ser vencidas para a preservação da unidade e da coerência do sistema
axiológico-positivo e para que se alcance a máxima efetividade da plu-
ralista teleologia constitucional.
Como está claro, o conceito resultou bem distinto daquele de Nor-
berto Bobbio (examinado no corpo da obra), ainda que, em sua home-
nagem, seja feita alusão à pertença válida ao mesmo sistema. É que a
antinomia jurídica é, acima de tudo, axiológica. Merece ser sublinhado,
pois, que as antinomias somente são desfeitas mediante hierarquização,
no plano axiológico, de sorte que uma norma antinômica deve ceder
diante de um princípio, conforme o caso, desde que tal se faça necessário
à concatenação interna do sistema. Naturalmente, a situação de confli-
to a ser equacionada goza de anterioridade em face da hierarquização,
que pode solvê-la de maneira ostensiva ou convertê-la em aparente, es-
pecialmente ao tratar da antinomia entre os critérios voltados a solver
conflitos.
Diferentemente também, em boa medida, do sustentado por Nor-
berto Bobbio, os critérios afiguram-se inegavelmente jurídicos, embora
transcendam a esfera da estrita juridicidade, na ótica de uma adequada
interpretação tópico-sistemática. São, pois, suficientes para resolver as
antinomias, mesmo aquelas que sucedem entre normas de mesmo es-
calão formal. Além disso, a interpretação sistemática do Direito é, de
algum modo, sempre principiológica, dado que a referência a planos
mais altos é fase necessária e inelimináve1. Reitere-se que toda interpre-
tação torna-se sistemática e hierarquizadora. A chamada interpretação
literal, por exemplo, surge apenas como um dos momentos (o primeiro)
da interpretação sistemática. Uma de suas mais complexas modalidades
ocorre na (redefinida) interpretação conforme a Constituição, expressão
máxima da busca nuclear de unidade não-antinômica da ordem jurídica.
Com efeito, a própria interpretação sistemática estabelece (provi-
soriamente) as fronteiras do sistema, o qual está num vir-a-ser, em face
de sua condição de objeto que se constitui pelo convívio de múltiplos
SÍNTESE CONCLUSIVA 279
elementos, os quais compõem, no limite, a totalidade valorativa em evo-
lução. Em termos mais profundos, a liberdade (abertura originária) é
que justifica a existência do sistema, na sua dimensão de compósito de
valorações, em que pese a faculdade do intérprete de não hierarquizar,
porém essa já terá sido forçosamente uma espécie de hierarquização.
Fortalece-se, portanto, o olhar crítico em relação às posturas ana-
crônicas daqueles que presumem irrelevante o relacionamento da exege-
se com as complexas funções contemporâneas (regulatórias, por exem-
pIo), eis que todas as frações do sistema jurídico, ainda quando vistas
como singularidades, somente se fazem compreensíveis à proporção em
que ocorre a conexão com o todo. Tudo no anelo da dialética coerência,
sustentada por algo mais do que os nexos baseados na causalidade de
outrora. Não por acaso, emergem princípios como da prevenção e da
precaução. Importa, mais que nunca, salientar que toda interpretação co-
mete, direta ou indiretamente, a aplicação de princípios, regras e valores,
é dizer, da totalidade do sistema. Então, a aplicação de cada preceito pas-
sa a ser vista como responsável aplicação do todo, contempladas, sem
escapismo, as finalidades historicamente identificáveis como objetivos
fundamentais.
Na linha proposta, para vencer as antinomias (sempre solúveis ju-
ridicamente), o critério hierárquico-axiológico, nos termos dos ante-
cedentes conceitos de sistema jurídico e de interpretação sistemática,
mostra-se topicamente capaz de oferecer sempre uma solução razoável
e melhor para o bem de todos, desde que, no bojo do sistema, tenha
havido - como houve - a positivação de princípios fundamentais dota-
dos de mínima razoabilidade. Ou seja, desde que o Direito reúna forças
para cumprirfunções sistemáticas, viáveis quando o ordenamento é vis-
to e concretizado como autenticamente democrático.
Por isso, não se esposa aquela classificação de Bobbio que estabele-
ce uma discriminação entre antinomias solúveis e insolúveis. Por iguais
motivos resultantes da diversidade do enfoque, não há maior sentido em
se propor, para desfazer nós górdios, o recurso a diferenças de forma
entre os mandamentos normativos (ora imperativos, ora proibitivos, ora
permissivos), como se as normas permissivas fossem necessariamente
mais propícias, devendo, só por isso, preponderar. A solução (de quali-
dade variável em termos evolutivos), terá que ser, de qualquer maneira,
patrocinada pelo "metaprincípio" da hierarquização - mais axiológica
do que formal - das normas ou disposições antinômicas, ainda quando
suscitados conflitos entre os critérios encarregados de desfazer os nós
górdios.
 ---,---
280 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
Observe-se, de outra parte, que o princípio hierárquico deve pre-
ponderar sobre o critério da especialidade, sob pena de se perder a
ideia central de que há princípios no topo do ordenamento jurídico em
torno dos quais as normas de vários escalões devem ser necessariamen-
te harmonizadas. A solução, pois, inclusive para as assim chamadas
antinomias de segundo grau, isto é, aquelas que se processam entre os
próprios critérios usuais (cronológico, hierárquico e de especialidade),
há de fazer preponderar o critério hierárquico-axiológico. Deveras,
admite-se, sem vacilações, uma mais dilatada visão de hierarquia, a
ponto de escalonarprincípios, regras e valores no seio da própria Cons-
tituição.
A sistematicidade - urge ressaltar -, embora não seja, em si, condi-
ção de legalidade formal, o é do desenvolvimento evolutivo da própria
legalidade, no atinente ao cumprimento dos objetivos fundamentais do
Direito posto. Todavia, não se devem confundir as antinomias, más e
nocivas, que precisam ser dissolvidas, com aquelas tensões que põem,
construtivamente, o sistema em marcha. Por tudo, ao se examinar o tema
dos critérios cumpre guardar que, mesmo quando instaurado, "v.g.", um
conflito aberto entre lei superior geral e norma especial inferior, deve
vencer, ao fim e ao cabo, o critério hierárquico-axiológico.
4. No exame das configurações hipotéticas constatou-se, mais ni-
tidamente, a atuação do critério de hierarquização axiológica com um
peso decisivo em relação a todos os critérios usuais para vencer antino-
mias, especialmente nas hipóteses de ocorrência simultânea das incom-
patibilidades.
É de aduzir que tais configurações, ainda que não exaustivas, foram
levadas a efeito precipuamente para corroborar as afirmações no que
conceme à necessidade de se utilizar um conceito alargado de interpre-
tação sistemática que inclua o princípio da hierarquização. Este se mos-
trou necessário, em todos os casos, para vencer as antinomias, de sorte a
tomar compreensível, por exemplo, como uma súmula pode, à primeira
vista, preponderar sobre uma regra legal em pleno sistema romanístico:
na realidade, prepondera o princípio hierarquizado como superior às re-
gras em litígio.
Almejou-se, ainda, tomar cristalino que não se opera com o con-
ceito de antinomia lógico-matemática ou formal, conquanto, na oitava
hipótese, tenha sido possível notar certa semelhança com o fenômeno da
autocontradição. Mais: com as configurações hipotéticas cuidou-se de
evidenciar que tampouco se opera com o conceito de antinomia semânti-
SÍNTESE CONCLUSIVA 281
ca, em que pese o interesse que possa apresentar, noutras circunstâncias,
para o estudo do princípio da hierarquização.
Sublinhe-se que, até em razão do âmbito, nem toda contradição
deve ser reputada como antinomia nociva, no sentido aqui figurado. Ao
mesmo tempo, jamais se constata ausência de critérios, uma vez que
invariavelmente prepondera o princípio da hierarquização axiológica,
mesmo no conflito entre os critérios (sem operar a lógica do tudo-ou-
-nada). Cumpre reiterar que, longe de contestá-la, robustece essa posi-
ção o fato de eventualmente uma lei especial preponderar, à primeira
vista, sobre uma norma superior, ainda que, na realidade, ocorra a pri-
mazia de pelo menos um comando principiológico no caso concreto.
Com base nessas considerações, acentue-se que a classificação en-
tre antinomias solúveis e insolúveis é equívoca, porque as antinomias
são "reais" até que a hierarquização as resolva pela preponderância, par-
cial ou total, de regras e, no fundo, de princípios fundamentais. Quando,
por força de compatibilização, tomam-se "aparentes", o fenômeno tam-
bém pode ser explicado em função do primado de um princípio hierar-
quicamente superior.
De tal maneira, as configurações hipotéticas abrem caminho, em
nosso estudo, para o exame mais detido do princípio da hierarquização
axiológica, cuja compreensão culmina no entendimento acerca da impro-
priedade da classificação entre antinomias próprias e impróprias. Ainda
que suceda incompatibilidade quase estritamente por razões formais, aí,
igualmente, haverá, na instauração da incompatibilidade, o traço subs-
tancial, trazido pela insuprimível dialeticidade. Dado que, ocultamente
ou não, atuará um princípio eminentemente axiológico, chamado a re-
solver - prevenindo ou remediando - a colisão incômoda às finalidades
do Direito como permanente conquista de coerência sistemática, imple-
mentada pelo positivador derradeiro que é o intérprete.
5. O princípio da hierarquização axiológica é uma espécie de "me-
taprincípio", sem medo de usar o termo, que aspira à universalização
salutar do "bem de todos" (CF, art. 3º), e se formula, expressa ou im-
plicitamente, do modo o mais formal possível, distinguindo aspectos e
escalonando os princípios, assim como as normas estritas e os valores.
Entretanto, para prevenir leituras que, desavisadamente, tenham ima-
ginado vestígio de hipertrofia do formalismo nessa abordagem, deve
restar claro que, na perspectiva dialética, jamais o formal será apenas
formal. Cogita-se de, no adotado paradigma hermenêutico-dialético, ver
no princípio da hierarquização, não uma suposta hierarquia previamente
 ------......-..
282 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
dada, mas uma diretriz-mor para a solução prática dos conflitos. Vale
dizer, um princípio que veda as contradições nefastas, determina o cum-
primento dos objetivos fundamentais da República e incentiva a relativi-
zação mútua dos valores.
Reitere-se, portanto, para desfazer mal-entendido, a inocorrência de
qualquer adesão, remota que seja, a formalismo abstrato ou vazio. Nes-
ses termos, possível rever a proposta conceitual do princípio da hierar-
quização axiológica. Cuida-se de "metacritério" que indica, inclusive
em face de antinomias no plano dos critérios, a prevalência de princípio
axiologicamente superior, mesmo no conflito especifico entre regras,
visando-se a impedir a autocontradição do sistema e resguardando a
unidade sintética de seus múltiplos comandos. Unidade que começa e
culmina no labor consciencial dos intérpretes.
Trata-se de critério sob o qual, em certa medida, pela atuação circu-
lar e dialética do intérprete, estão subsumidos os demais critérios (sem
se confundir, em que pesem as afinidades, com o princípio "U" de Ha-
bermas). Se se quiser dizer, faz as vezes de imperativo principiológico
que imprime unidade sistemática aos fins jurídicos. Assim formulado, o
princípio da hierarquização axiológica, em face da necessária transcen-
dência da hierarquia meramente formal, faz desaparecer, notadamente
no concernente às antinomias de segundo grau, o impasse quanto à solu-
ção dos conflitos entre os critérios de especialidade e cronológico.
O princípio da hierarquização axiológica contém, sob certo aspec-
to, o fundamento dos demais critérios ou princípios superiores. Ou seja,
poder-se-ia asseverar, guardadas várias e sutis diferenças, quefunciona
analogamente, para lembrar a abordagem kantiana (sem o seu forma-
lismo) como o princípio supremo dos juízos sintéticos, só que no campo
jurídico material. Em outras palavras, encontra uma correspondência
direta ou indireta com o imperativo de coerência interna e, portanto,
com princípios e objetivos tais que viabilizem, num dado momento his-
tórico, a universalização bem hierarquizada das prescrições jurídicas.
Portanto, a diferença está em que, por natureza e índole, tal impe-
rativo ostenta natureza dialética. Daí a variabilidade evolutiva - numa
evidente evocação do linguajar evolucionista de Charles Darwin - da
hierarquização. Releva sublinhar que esta se realiza, em todos os tem-
pos, como pressuposto do fazer jurídico de maneira tópico-sistemática.
Urge assumi-la lucidamente.
Dito de outro modo, tem-se consciência plena de que a compreen-
são do princípio da hierarquização axiológica ocorre num determinado
SÍNTESE CONCLUSIVA 283
horizonte gadameriano. Não se nega, ao revés, que semelhante hierar-
quização se apresenta suscetível às mutações históricas, uma vez que os
conteúdos normativos se desapegam das fontes originárias e o aplicador
não se comporta como retratista. Precisa descobrir o melhor significa-
do do comando, mediando-o justificadamente com o presente e com o
futuro.
Ademais, afirma-se que a relativa universalidade do princípio da
hierarquização axiológica induza releitura da teoria da norma geral
exclusiva, que se mostra extremamente útil para a compreensão do pro-
cesso interpretativo, desde que assumida com acréscimos. Com efeito,
um sistema que disponha, na omissão da lei, dever o intérprete recorrer à
analogia, aos costumes e aos princípios (ainda que diga gerais), a par de
introduzir uma norma geral inclusiva, realiza, expressa e positivamente,
o chamamento à hierarquização. Malgrado a enganadora aparência, pela
redação dada, de subsidiariedade dos princípios. A decisão jurídica de
situar, ou não, o caso como enquadrável em dispositivo desse jaez estará
forçosamente condicionada por uma hierarquização axiológica, levada a
termo, nas condições específicas, pelo intérprete sistemático.
Mister reiterar que inexiste lacuna de critério: sempre viável o re-
curso ao "metacritério".dotado de juridicidade, à semelhança da chama-
da norma geral exclusiva, mas que funciona e opera como norma nega-
tiva e geral que veda todas as contradições nocivas e ordena coerência,
inclusive e especialmente quando da antinomia entre a norma inclusiva
e a exclusiva.
Exsurge, de fato, como fórmula derivada do princípio superior da
hierarquização, que a unidade dialética e a completabilidade do sis-
tema são indispensáveis à garantia de todos os valores, impedindo a
erupção de decisionismos subjetivistas maculados pela irracionalidade
arbitrária. O "metacritério" da hierarquização axiológica, inclusiva e
exclusivamente, veda a incoerência e a incompletabilidade, de modo
concomitante.
Para o intérprete importa, sobretudo, compreender os fins e ob-
jetivos fundamentais do Direito e desvendar, na atualidade, quais os
princípios hierarquizáveis como superiores. Ciente de que a desatenção
a princípios e objetivos fundamentais implica ofensa não apenas a espe-
cífico e inclusivo mandamento, senão que a todo o plexo de comandos.
Como visto, a zona hierarquizável entre o regulamentado e o não-re-
gulamentado não configura, diversamente do sustentado por Norberto
Bobbio, uma ausência de condições jurídicas para decidir.
284 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
o fato de se possuir um "metacritério" jurídico para decidir entre
a norma geral inclusiva e a norma geral exclusiva, quando em situação
antinômica, não significa que o sistema seja - em si - completo (é com-
pletável), emface da pacifica constatação da ocorrência de lacunas. To-
davia, nesse tipo particular de situação antinômica, clarifica-se a ideia
de que o "metacritério" haure o seu conteúdo existencial na exigência
de racionalidade (interna ao sistema) e realiza escolhas (transcendentes
ao e para o sistema). Infere-se que há, na resolução da antinomia em
apreço (entre norma geral inclusive e norma geral exclusiva), uma multi-
plicidade de soluções, sem que tal variedade de alternativas - gênese de
boa parte das antinomias - signifique falta de critério válido para decidir
qual o melhor critério para ver solvidos os conflitos concretos.
6. Questão significativa relaciona-se à antinomia denominada, para
lembrar a linguagem de Bobbio, de avaliação, a qual se configura quan-
do da injustiça. Fez-se, a propósito, breve exame da contribuição de
Iohn Rawls - sem a pretensão de elaborar uma paralela teoria da justiça,
nem intentando esposá-la, como poderia parecer numa leitura superfi-
cial- só para exemplificar o enfrentamento da questão relativa à justiça.
Culmina-se por responder afirmativamente à questão sobre a ocorrência
de antinomias axiológicas em conflitos de regras com princípios hierar-
quizados ou escolhidos como superiores. Embora alcançável idêntico
resultado se se operasse com outras tradições teóricas sobre a justiça, o
que importa, aqui, é ajudar a perceber que o intérprete sistemático preci-
sa, na interação com o sistema objetivo, oferecer uma resposta jurídica
à incômoda situação da injustiça. Para tanto, não há saída: hierarquizará
este ou aquele princípio, esta ou aquela regra de prioridade.
Bem de ver, de passagem, que entre os princípios superiores de
Rawls, a rigor, não perdura antinomia insolúvel, seja porque há uma hie-
rarquização patrocinada por regras de prioridade, seja porque as regras
nada mais implicam, em seu esquema filosófico, do que o uso empírico
ou, no enfoque aqui esposado, o exercício do princípio da hierarquização
axiológica. Mas o exame mais detido dessa teoria não seria pertinente,
pois o escopo é apenas ilustrativo da inevitabilidade da hierarquização,
ao se tratar dessa antinomia.
Sublinhe-se, portanto, na contemplação do problema da justiça, a
cogência de se considerar a hierarquização axiológica dos princípios
como atitude indescartável para vencer antinomias, inclusive aquelas
algo impropriamente denominadas de avaliação (na realidade, à luz do
conceito adotado, todas o são, de algum modo).
SÍNTESE CONCLUSIVA 285
Assim, uma antinomia que se traduz como incompatibilidade entre
o Direito posto e o Direito tal qual deveria ser somente será solúvel pela
adoção de um "metacritério" (de cunho também jurídico, como assinala-
do) que decide priorizar esta solução ou outra supostamente mais justa.
Convém notar que tal hierarquização haverá de definir a prioridade, não
obstante ser, ela mesma, constituinte do sistema.
Com a assertiva intenta-se sublinhar, ao lado dos limites imanentes
ao sistema, a remanescente possibilidade de contínuo aperfeiçoamento
evolutivo em face da·abertura ditada pela primazia prática do critério da
hierarquização, compreendido numa ótica engrandecida pela racionali-
dade dialética. Do examinado, resulta que (a) uma adequada hierarqui-
zação axiológica mostra-se capaz de vencer antinomias entre princípios
e regras de prioridade, sempre pressuposto o princípio jurídico de justi-
ça, material eformal (de conteúdo algo indeterminado "apriori'); (b) a
aplicação do princípio da hierarquização axiológica, em face do conflito
entre regras de prioridade, imanentes ou externas ao sistema, tem de
ser capaz de juridicamente vencer - sem cair numa exacerbada hete-
rointegração - o conflito eventualmente existente entre o Direito posto
e o Direito como deveria ser, mormente num Estado Democrático, no
qual se insere presumivelmente a exigência racional de justiça, apesar do
pluralismo de concepções; (c) a gravidade do conflito entre valores fun-
damentais - o respeito à ordem (exigência de racionalidade) e o apreço
à justiça (respeito à liberdade, na ótica, por exemplo, de Rawls) - requer
uma resposta que, seguramente, precisa ser vista também como jurídica.
Eis a razão pela qual as injustiças ou as colisões de atos ou normas com
regras de prioridade põem em risco a estrutura-mestra e a coerência do
sistema. Como a injustiça - ela própria - é uma antinomia, do intérprete
cobram-se soluções justas sistematicamente, não omissões.
No concerto, pois, dos princípios e objetivos fundamentais, sobre-
tudo quando se trata de vencer antinomias, opera o princípio da hierar-
quização axiológica como critério que ordena, inclusive nos casos de
antinomias entre critérios atinentes à justiça, a prevalência de princípio
axiologicamente superior, ou de norma hierarquicamente superior, vi-
sando a uma exegese conformadora e tendente à efetividade justa do
bem de todos.
Deve-se recordar, ainda, que, por definição, os princípios são mais
elevados do que as regras jurídicas, dado que determinam a maneira pela
qual devem ser interpretada~ e tratadas as normas estritas. O sistema
jurídico é, sobretudo, um complexo de princípios positivos, expressos
ou tácitos, cujo conteúdo, sobremodo no caso dos princípios fundamen-
 ~
286 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
tais - entre os quais o dajustiça, - transcende aquele que se confere às
regras, embora dialeticamente interligadas ao sistema.
Em síntese, frise-se: uma interpretação sistemática do Direito rea-
liza sempre uma hierarquização axiológica, de sorte a preponderar, in-
clusiva e exclusivamente, ora a norma superior, ora, em caso de antino-
mia pendente, o princípio superior. Recorre-se, em todas as hipóteses,
expressa ou ocultamente, ao princípio da hierarquização axiológica.
7. Considerou-se relevante tecer o rol das diferenças qualitativas
entre normas estritas (regras) e princípios, pois aclara a ideia de fundo
de que a lógica jurídica - justamente por ser também técnica de pensar
para resolver problemas reais - nunca deve ser considerada como axio-
mática ou meramente formal. A hierarquização tópico-sistemática, como
atividade finalística, acarreta a possibilidade substancial de superar an-
tinomias entre regras e objetivos fundamentais, expressos ou implícitos.
Desse modo, resulta solar que não serve ao intérprete sistemático
o silogismo da lógica dita tradicional ou categórico na suplantação das
antinomias, porque só se pode utilizar, no exercício na seara jurídica,
o raciocínio próprio da Dialética. De sorte que todas as colisões entre
regras são traduzíveis, em última análise, como tensões antinômicas de
princípios e de valores, com a permanente tarefa hermenêutica de se
contrastarem regras e princípios, na senda compreensiva de planos di-
mensionais elevados.
8. Ao se tratar da obrigatoriedade de normas hierarquizadas como
contrárias ao sistema, concluiu-se - nisso com diferença de abordagem
em relação a Canaris - que, em todas as situações aporéticas, mostra-
se virtualmente possível a formação do sistema nos pontos antinômicos
residuais, mormente porque, do contrário, os restantes domínios resulta-
riam turbados ou ameaçados.
Dessa maneira, em que pese a abertura do Direito e haurir ele o
conteúdo das hierarquizações "dentro" e "fora", evidencia-se, potencial-
mente, alcançável a formação plena (não-absoluta) de coerência, e é so-
mente essa possibilidade que garante o significado do sistema em termos
racionais práticos. Justamente, portanto, por intermédio da técnica de
declarar ou não a nulidade de normas contrárias ao sistema que irrompe,
nítida, a notável significação da interpretação tópico-sistemática.
Consoante se estima, resultam valiosas inferências a propósito: (a)
é a hierarquização axiológica que decide manter, total ou parcialmen-
te, as normas que se localizam, em maior ou menor grau, numa rota
SÍNTESE CONCLUSIVA 287
de colisão com o sistemajurídico (o que explica o conhecido processo
da modulação); (b) mostra-se permanentemente viável obter a coerên-
cia, pois, no fundo, inexistem lacunas de colisão não-colmatáveis; (c) a
possibilidade de declarar a nulidade de uma norma contrária ao sistema
nada mais é do que, no exercício do "metacritério" hierarquizador, ven-
cer uma antinomia, não pela modulação, mas pela supressão da norma,
quando esta se revelar rigorosamente em litígio evolutivo com a necessi-
dade de coerência e - não menos relevante - de legitimidade do sistema
jurídico.
9. O modo proposto de enxergar as antinomias jurídicas suscita co-
nexa reflexão obrigatória, sobremodo em função do princípio da hie-
rarquização axiológica, com a sustentada identificação essencial- mais
do que simples interpenetração - dos pensamentos sistemático e tópico.
Trata-se, pois, de profunda revisão no tocante à doutrina das fontes, dado
que a tarefa de sistematização do Direito requer participação ativa do
intérprete, sem excluir prévia ordem presente no objeto da interpretação.
Tal enfoque, levado às últimas, tem o condão de conduzir à reforma do
modo de estudar e de assimilar o Direito Positivo, compreendido efe-
tivamente como sistema, cuja positivação aperfeiçoadora acontece no
círculo hermenêutico.
O pensamento tópico-sistemático que realiza a hierarquização axio-
lógica, precisamente por ocorrer em meio à concretude aporética, apre-
senta notáveis e peculiares exigências, que o fazem ir além da Tópica.
Diante do visto, deve-se reter, nessa síntese conclusiva, que há conteúdo
tópico-sistemático inafastável na interpretação jurídica em todas as sea-
ras e em todos os estratos do ordenamento, mais evidentemente e em
especial quando aparentam faltar valorações jurídicas positivadas.
Portanto, a Tópica não é apenas meio auxiliar do pensamento sis-
temático, caracteristicamente hierarquizador, senão que traço integrante
do sistema e ensejador da sua abertura. Respeitadas as possibilidades da
Tópica, na interpretação sistemática, designadamente no combate às an-
tinomias e na colmatação das lacunas (vistas como antinomias entre nor-
ma geral inclusiva e norma geral exclusiva), observa-se a insuficiência
(epistemológica e ontológica) das visões unilaterais, já as somente pro-
blemáticas, já as sistêmicas em sentido antigo. Ou seja, as que tentavam
absolutizar certas angulações da totalidade. Logo, bem vistas as coisas,
sobrepassado o falso dilema entre o pensamento tópico e o sistemático,
reina identidade essencial no raciocínio jurídico, revelada sobremodo
 -----.........,
288 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
diante do imperativo de combater as antinomias jurídicas, entendidas
com suficiente acuidade.
Ilustrativamente, nesse horizonte, examinada a hermenêutica cons-
titucional, restou salientado que todo intérprete sistemático opera, de
certo modo, como intérprete da Carta e se afigura inegável que a inter-
pretação constitucional é um processo tópico-sistemático. De maneira
que resulta cogente alcançar uma lúcida solução de equilíbrio entre os
aspectos formais e os efeitos das decisões interpretativas, evitadas as
construções facciosas e respeitada a Constituição na sua abertura dialó-
gica e no seu caráter histórico não-linear. Com efeito, a tarefa primeira
do intérprete radica em cumprir a precípua função sistematizadora. Ain-
da que reconheça, nesse desiderato, tratar-se de projeto aberto às muta-
ções histórico-axiológicas.
Ao serem hierarquizados, prudencialmente, os princípios, as regras
e os valores constitucionais, a interpretação sistemática aplica, no exame
da Constituição, o "metacritério" hierárquico-axiológico, que escalona
sempre, situando os princípios na base e no ápice do sistema, vale dizer,
no fundamento e na cúpula do ordenamento. A par disso, o intérprete
sistemático da Lei Fundamental deve guardar vínculo, antes de tudo,
com os objetivos fundamentais do tecido normativo, isto é, com aquilo
que este possui de eticamente superior e universalizável de modo satis-
fatório.
Deve buscar fundamentação objetiva para decisões sincrônicas
com o sistema, sem adotar soluções contra legem, em que pese exer-
cer atividade consciente e assumidamente positivadora (para além da
polêmica acerca da eventual criação de Direito por essa via). Cumpre
perceber, também ao compreender a Constituição, que o pensamento
tópico não difere essencialmente da técnica de formação sistemática,
facetas do mesmo poder de hierarquização axiológica. Deve, por isso,
honrar a preservação simultânea das características vitais de qualquer
sistema constitucional democrático, vale dizer, a abertura e a coerência,
as quais implicam o dever de zelar pela permanência "na" e "da" mudan-
ça. Deve, ainda, contribuir, por assim dizer, para a vitalidade longeva do
sistema constitucional, sem prejuízo do uso, com parcimônia, da técnica
da exegese corretiva. Claro que sem usurpar funções. Cônscio de que
os princípios constitucionais jamais devem ser eliminados mutuamente,
ainda quando em colisão ou contradição, cuida de conciliá-los, lembran-
do que toda resolução de antinomias, no campo das regras, oculta uma
solução axiologicamente superior no domínio dos princípios.
SÍNTESE CONCLUSIVA 289
A respeito da interação entre o público e o privado, convém reiterar
que, numa adequada interpretação sistemática, os princípios merecem
ser entendidos como relevantes pontos de convergência entre as esferas
do Direito público e do Direito privado, compreendido o sistema como
totalidade viva, complexa, multifacetada, mas uma só. De sorte que a
distinção, mais do que em função dos interesses em jogo ou em razão
dos sujeitos, haverá de ser efetuada, outra vez e sempre, pela dominância
tópico-sistemática dos princípios.
Ainda: em toda relação jurídica haverá sempre a incidência, direta
ou indireta, de prescrições constitucionais, razão pela qual conveniente
afirmar que qualquer compartimento do Direito encontra-se, por assim
dizer, constitucionalizado. Algo que corrobora a ideia de que uma ade-
quada interpretação sistemática precisa ser, de modo insofismável, bem
efetuada hermenêutica constitucional.
10. O modelo que se propõe para dar conta da essencial identidade
entre o sistemático e o tópico vem a ser o da dialética tensão que expun-
ge antinomias e que pressupõe que o positivado e o conteúdo axiológico
- que o transcende - sejam vistos com um olhar abarcante. Semelhan-
te perspectiva tópico-sistemática precisa nortear e presidir a subsunção
principiológica do Direito como sistema, sem que se afirme o nexo ju-
rídico tão somente como aquele positivado, eis que a lógica formal e a
material referem-se entre si. De maneira que a adequada compreensão
da operacionalidade da interpretação sistemática implica uma dimensão
hermenêutica que se afasta, quase de um todo, das antiquadas e recorren-
tes pesquisas de modo apenas dedutivo.
Mais: toda interpretação jurídica que deixar de ser, a um só tempo,
aberta e sistemática será simples simulacro de exegese, manifestamente
sem conexão com a necessidade do Direito vivo, que se deve entender,
"transdogmaticamente". Assumida a postura de ir além (tanto na doutri-
na como na aplicação) no rumo dos objetivos fundamentais, a cada pas-
so mais eminentes e sempre determináveis pelo aplicador, cuja formação
consciencial se faz decisiva, em todos os aspectos.
De outra parte, assumir a identidade essencial dos pensamentos
sistemático e tópico reforça a conveniência de se articular enfoque con-
vergente à hermenêutica filosófica e à crítica das ideologias, numa pos-
sível síntese das propostas de Hans-Georg Gadamer e Jürgen Habermas,
tomada em consideração a implícita proposta de paradigma dialético
comum.
 ---......,.--
290 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO DIREITO
A analogia calha inteiramente ao desiderato de fundo desse livro,
qual seja, o de destacar que, apesar das dificuldades de conciliação da
Tópica com a doutrina da validade e das fontes do Direito, somente
uma consciente interpretação tópico-sistemática parece em condições
de cumprir a tarefa de solver antinomias jurídicas. Aliás, Canaris, sem
extrair as conclusões que aqui se procuraram fixar e em que pese con-
siderar a Tópica apenas como primeiro passo para uma determinação
sistemática, notou que a oposição não é exclusivista. Sem dar o passo
lógico na senda da constatação de que a dimensão tópica ou problemá-
tica reside no cerne de toda aplicação do sistema jurídico. A recíproca
também é verdadeira, isto é, somente se interpreta superando aporias e,
nessa medida, sistematizando.
Em última instância, a interpretação tópico-sistemática é a inter-
pretação jurídica, por excelência. Deve o intérprete, com sabedoria
(senso evolutivo, sensibilidade superior e explicitação lúcida dos funda-
mentos), contribuir para a descoberta e para a formação tópica do siste-
ma jurídico, em sintonia com os objetivos fundamentais do Estado De-
mocrático. Além disso, irrenunciável a luta pela formação de um Direito
dotado de concatenação valorativa, vale dizer, que se deixe interpretar
plástica e maleavelmente de modo a se fazer garantidor da justa segu-
rança das relações jurídicas. De fato, toda a perquirição empreendida
parece revelar a importância de robustecer a formação axiológica do
intérprete para a suprema tarefa ético-jurídica que consiste em alcançar
o melhor e mais fecundo desempenho da interpretação sistemática em
-todos os ramos, com o escopo de construir um Direito dotado de efetiva
coerência e de saudável abertura. Em suma, um Direito visto, ensinado
e aplicado como lídima rede democrática de princípios, de regras e de
valores, cuja hierarquização antecede, acompanha e ilumina o processo
da sua interpretação sistemática.
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