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COMO TIRAR PROVEITO


DE SEUS INIMIGOS
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COMO TIRAR PROVEITO


DE SEUS INIMIGOS
Plutarco

Seguido de Da Maneira de Distinguir


o Bajulador do Amigo

Prefácio e notas
PIERRE MARÉCHAUX

Tradução
ISIS BORGES B. DA FONSECA

SÃO PAULO 2016


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Copyright © Éditions Payot et Rivages, 1993, para o aparelho crítico.


Copyright © 1997, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1.ª edição 1997


3.ª edição 2011
3.ª tiragem 2016

Esta obra foi traduzida do grego por


ISIS BORGES B. DA FONSECA

Preparação do original
Maurício Balthazar Leal
Revisão gráfica
Tereza Cecília de Oliveira Ramos
Lilian Jenkino
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Plutarco
Como tirar proveito de seus inimigos ; seguido de Da maneira de
distinguir o bajulador do amigo / Plutarco ; prefácio e notas Pierre
Maréchaux ; tradução Isis Borges B. da Fonseca. – 3.ª ed. – São
Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2011. – (Clássicos WMF)

Bibliografia.
ISBN 978-85-7827-443-6

1. Plutarco – Crítica e interpretação 2. Plutarco – Ética I. Ma-


réchaux, Pierre. II. Título. III. Título: Da maneira de distinguir o
bajulador do amigo. IV. Série.

11-06749 CDD-171
Índices para catálogo sistemático:
1. Plutarco : Sistemas éticos : Filosofia moral 171

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325-030 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3293-8150 Fax (11) 3101-1042
e-mail: info@wmfmartinsfontes.com.br http://www.wmfmartinsfontes.com.br
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Índice

Nota preliminar (da edição francesa)......... VII


Prefácio de Pierre Maréchaux ...................... IX
Bibliografia sumária..................................... XXXI
Cronologia...................................................... XXXIII

Comotirar proveitode seu s inimigos............... 1


Da maneira de distingu ir obaju lador doamigo....... 25

Notas ................................................................... 109


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Nota Preliminar
(da edição francesa)

O textogregoqu e segu imos é oda Coleçãodas


Universidades de França: Obras morais, tomo I, 2.ª
parte, Paris, Belles-Lettres, 1989. Trabalhamos igu al-
mente com os Moralia, I, editados por W. R. Paton,
I. Wegehau pt e M. Pohlenz, Teu bner, B. S. B., B. G.
Teu bner Verlagsgesellschaft, 1974.
Qu anto às notas, devemos mu ito à eru dição de
JeanSirinelli e de Robert Klaer. Para a trad u ção, não
nos privamos de consu ltar ed içõ es antigas d e Saix
(1537), de La Porte du Theil (1772), de Ricard (1845)
e d e Bétolau d (1870).

VII
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Prefácio
A s Impostu ras de A lcibíades
ou
do camaleão ao sábio estóico

Em honra de M. Daniel Mousseau

A figu ra de Plu tarco(66-120 d.C.), celebrada por


Montaigne e Rou sseau , aparece comou ma das mais
atraentes d a Antigu id ad e tard ia. Esse contemporâ-
neode Trajano, nu tridode platonismoe estoicismo,
apresenta-se a nó s comou m polígrafo. Escreve eru -
ditas biografias elogiosas de grandes personagens
do passado, as Vidas dos homens ilustres. Mas su a
atividade de filó sofoafasta-ou m pou codosistema-
tismo de seu s predecessores, para se voltar para a
ética. Os Moralia, grande síntese sobre a moral anti-
ga, evitam oestiloabstratoe imitam de preferência
a liberdade da palavra espontânea. Os dois tratados
qu e nos ocu pam, Como tirar proveito de seus inimi-
gos e Da maneira de distinguir o bajulador do amigo,
obedecem à regra. Plu tarco aí introdu z toda a arte
de u m conversador cu lto, mistu randooportu namen-
te brincadeiras, anedotas, mitos, discu ssõ es, em con-
formidade com os bons u sos da elegância, da poli-
dez e do rigor. Os Antigos interrogaram-se longa-
mente sobre os perigos doamor-pró prioe sobre as
conseqü ências dessa cegu eira; Plu tarco mostra qu e

IX
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

u ma tal complacência para consigodá ensejoà ba-


ju lação. Nu m catálogo demonstrativo, revela todos
os artifícios imagináveis dos lisonjeadores, explican-
docomoé possível pô -los a descoberto. Entretanto,
o tratado não põ e u m ponto final a essa casu ística
sem evocar longamente a qu estãoda franqu eza. Se
é preciso aprender a fru strar as ciladas dos baju la-
dores, é preciso conju ntamente saber aceitar a lin-
gu agem franca dos amigos. Nesse domínio, as qu ei-
xas qu e a rejeição da crítica faz nascer em nó s se
assemelham a recriminaçõ es de meninos amimados
a qu e se deixam arrastar somente os fracos e os feli-
zes deste mu ndo. A fortiori devem-se preferir as in-
ju nçõ es dos inimigos aos elogios pru dentes e melí-
flu os daqu eles qu e nos sãocaros. Tal é opassoini-
cial dotratadointitu ladoComo tirar proveito de seus
inimigos, obra breve e redigida à pressa. Manifesta-
mente datado do ano 100, aproximadamente, este
opú scu loapresenta-se comou ma carta dirigida a u m
homem políticodenominadoCornélioPu lqu ério. Plu -
tarcojá tivera a oportu nidade de refletir sobre qu es-
tõ es análogas em seu s Preceitos de governo, qu e seu
prestigiosodestinatárioconhecia bem. Sem ser u ma
repetição, otratadoassemelha-se a u ma síntese; fica
com a aparência de u ma improvisação qu ase oral
ditada a u m secretário. E, de certa maneira, põ e u m
ponto final à problemática plu tarqu iana da baju la-
ção. A franqu eza, nó s osabemos, pode ser u ma ba-
ju lação dissimu lada. Por várias razõ es, ela obstru i a
amizade porqu e soçobra em dois escolhos. Ora se

X
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Prefácio

apresenta comoárbitroe vem ferir diretamente oami-


goou opró ximo; ora faz opapel das adu ladoras e,
em vez de incriminar os verdadeiros defeitos, pren-
de-se a fu tilidades, a pormenores complacentes. Ex-
clu indo a pru dência, a solu ção consiste em conce-
der mais crédito a seu s inimigos qu e a seu s paren-
tes. A esse respeito, Como tirar proveito de seus ini-
migos mostra ao homem de Estado ou ao simples
particu lar de qu e maneira o verdadeiro estrategista
pode u sar, nas circu nstâncias menos favoráveis, re-
criminaçõ es, admoestaçõ es ou calú nias de seu s ini-
migos pessoais, para melhorar e para vencê-los. O
baju lador leva-nos à vigilância, tal é a lição do De
adulatore. Mas essa vigilância, completamente exte-
rior, diz respeito exclu sivamente a ou trem. Trata-se
de se desconfiar das sedu çõ es da alteridade. Aocon-
trário, oinimigoobriga-nos a u ma vigilância interior
permanente; excita nossodemônio familiar – como
reação, nó s nos aperfeiçoamos, nó s somos exempla-
res1, su portamos a injú ria2, aprendemos a dominar3,
somos generosos até com oinimigo4. Nu ma palavra,
a adversidade é u m exu tó rio para o mal e u m mo-
delopara obem.
O De adulatore et amico (Da maneira d e distin-
gu ir o baju lador do amigo) foi dedicad o a Antíoco
Filopapo, corego, depois arconte, ateniense d o sé-
cu lo I de nossa era. A intenção de Plu tarco está aí
mu itoclara. Trata-se de organizar u ma tipologia dos
diferentes baju ladores e arrolar as situ açõ es em qu e
a ambigü idade entre baju laçãoe amizade acha u ma

XI
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

saída. Com efeito, obaju lador sabe maravilhosamen-


te fingir-se de amigo. E oprimeirodilema entrevisto
por Plu tarcorefere-se à ambigü idade d a aparência.
Por qu e, qu eixa-se ele em su ma, o homem hones-
to concede u ma confiança ingênu a e espontânea a
esta ilu são de amizade qu e é a baju lação? É qu e o
olho é feito apenas para o engano. O baju lad or o
sabe, ele qu e ofu sca a vista com miragens, u ma mis-
celânea d e efeitos, u m logro pitoresco, etc. Qu em
d iz baju lação diz ideologia ou caleidoscó pio. Plás-
tico em su as metamorfoses (υγρ Ô ὸ ς µεταβάλλεσθαι5),
tend o a facu ldade de mu dar de pele (τ ὴν χρ ό αν
τρ έπεσθαι6), miméticodolu gar em qu e se encontra
Ô κειµένο ις χωρ ίο ις7), obaju -
(συναφο µο ιο υ̂ται το ι̂ς υπο
lador é omestre de u ma imaginária aomesmotem-
po discreta e sobrecarregada qu e se pavoneia, se
empertiga, ocu lta as verdad es invisíveis, e obedece
à febre doleilãoe aoprestígiod ocrescendo. Com
ele, tu do começa por u ma insinu ação progressiva
qu e, se a vítima ou sa, se torna profu sãogalopante,
inflação diabó lica ou proliferação cancerosa. Se se
trata d e elogio, por exemplo, com receiod e passar
por lisonjeador grosseiro, o baju lad or empregará a
prosopopéia, pondo os lou vores a seu papalvo na
boca de ou trem8; ou , então, cu mprimentandoa con-
trario, censu rará as virtu des qu e nãotêm os qu e ele
elogia9. Essa imaginária qu e começa tãosu avemente
acaba por avolu mar-se a ponto de u m baju lador su -
bestimadoganhar pou coa pou coa estima de su a ví-
tima. Começa-se por esse bailadode sombras ilu só -

XII
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Prefácio

rias, cu jo nome platô nico era σκιαγρ αφία, antes de


abord ar oreinoda consistência; pois toda a técnica
dobaju lador reside nesta arte de acomodar-se10, qu e
é também u ma arte de enlaçar-se, ou melhor, de ar-
rombar a fechadu ra da anu ência. A princípiootemor
de ser su speitoobriga oadu lador a partir doinfini-
tesimal. Para lou var, ele falará claro, u sand od e cer-
ta franqu eza, a qu e não visa a denu nciar senão os
defeitos secu ndários11, ou então, a rigor, ele se ser-
virá d e u m cu mprimento mu do12. Essas preocu pa-
çõ es lhe valerão u m acréscimo de reconhecimento.
Com efeito, a discrição, a pru dência e tu do o qu e é
consid erado como tal acrescentam à baju lação u m
valor extraordinário, qu e a d ou ra e a faz respland e-
cer. Platão não se preocu pava em elogiar, e toda a
su a dou trina, qu e execrava os xaropes de agradovil,
estabelecia a ciência séria contra a frívola e compla-
cente adu lação. Plu tarco, sem fazer apologia, reabi-
lita, para torná-las mais confu sas, essas rotinas da
baju lação13. De Alcibíades, príncipe dos baju ladores,
ele faz u m heró i-camaleão, ora gu erreiro, ora gros-
seirão, ora efeminado, ora estrategista. Fachada sem
interioridade, odiscípu lopreferidode Só crates, pal-
milhandocom passos discretos ocaminhod e velu -
dod oestratagema, cria para seu s pró prios fins toda
u ma técnica dod ivertimento, u ma academia de ba-
ju lação14! Adeptode u ma retó rica sem moral, de u ma
sedu çãosem limite, ele renu ncia à anagogia escarpa-
da para onde o leva seu mestre, pelas ru as insidio-
sas da demagogia. Essa inconstância lisonjeira já anu n-

XIII
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

cia oretratode u m embaixador doGrand e Rei como


monstro mu ltiforme, sob a pena de Baltasar Gra-
cián:

Eles viram u ma carru agem qu e vinha em su a direção,


du as serpentes pu xavam-na e u ma raposa a condu -
zia. Critilopergu ntou se era a Carru agem de Veneza,
mas a Raposa Cocheirofingia nãoter ou vidoe nada
respondia; havia dentrou m grande monstro, ou , para
melhor dizer, vários monstros u nidos nu m só , pois apa-
recia ora brancoe ora preto, ora jovem e ora velho,
ora homem e ora mu lher, ora racional e ora animal.
Por fim, aparecia tãomu ltiforme qu e Critiloimaginou
qu e fosse ofamosoProteu . (El criticón, crisi 7, Espa-
sa-Calpe, Madri, 1975, p. 61)

Lançandomãode todos os meios em seu poder,


o baju lador não só u sa aparências do vestu ário ou
gestos mu dos d e cortesia, mas freqü enta o palácio
d a lingu agem. Confeita su as palavras para excitar o
paladar dos homens condimentandooacepipe das
coisas; empola seu s epítetos; em su a boca, u m nariz
d e águ ia é régio(τὸ ν δὲ γρ υπὸ ν βασιλικ
,
ό ν15), a covar-
dia torna-se pru dência (δειλίαν ασφάλειαν16)! Por tais
processos qu e tiram o caráter d e realidad e d o seu
objeto, obaju lador instala-se à força em seu gabine-
te mágicodas vaidades e dos prestígios de qu e fala
Graciánem seu romance alegó rico. Obrigandoa to-
mar a sériooqu e oGórgias ou a República tinham
renegado, ele trabalha, tal como u m ocu lista astu to,
na esfera dos espelhos deformantes e nomu ndodos

XIV
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Prefácio

falsos reflexos. Um rei qu e cantarola se torna u m


Apolo, u m potentadoqu e se embriaga é feitodeu s
das vinhas, u m príncipe na palestra tem tu dod e u m
Hércu les17. Uma espécie de dió ptrica mental nasce
desses exageros: o baju lador a instau ra ao mesmo
tempoqu e cria u ma arte de pru dência qu e joga com
as maneiras circu nstanciais do ser e o ornamenta
com u ma finíssima pelícu la matizada. Comou m nariz
ad u nco se torna real? Basta mascarar su a essência
sob u m véu leve qu e su gere, para melhor enganar,
e ologroestá consu mado. É precisoter a aparência.
Tu doestá em ter a aparência. Plu tarco, Castiglione,
Gracián, La Bru yère observaram todos esses baju la-
dores d e corte, ambiente irreal, qu iméricoe incon-
sistente. E cada u m em su a língu a sabia qu e u m
adu lador d a têmpera de Alcibíades era oreflexode
u m reflexo, u ma exibiçãoencarnada em qu e opa-
recer su bmergia o ser, diminu indo-o ou aniqu ilan-
do-o. Entretanto, se Alcibíades foi opríncipe dos ba-
ju lad ores, foi o seu menos delicado representante.
Esse baju lador habitu al, comooconsiderou Plu tarco,
deu os ú ltimos retoqu es nu ma arte de agrad ar para
su bju gar. A sedu ção de Alcibíades assemelha-se ao
encantoirreversível e agressivodos mágicos. É u ma
operação de sentido ú nico: exclu i a comu nhão mú -
tu a, a comu nicaçãoqu e repou sa sobre este du ploin-
flu xode ida e volta. É talvez por issoqu e Alcibíades,
mau baju lad or, teve u ma carreira demasiad o fu lgu -
rante. Ao contrário, o hábil sed u tor d e corte, por
exemplo, dá a ilu sãode u ma reciprocidade. É para

XV
Proveito-00PREFACIO.qxp:Proveito-00PREFACIO 04.01.16 12:00 Página XVI

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

mais desviar o espírito que esse perspicaz impene-


trável18 deixa crer numa relação bilateral, enquanto
evita a todo o preço a troca. Ele adivinha, sem ser
adivinhado19, frustra o jogo de outrem sem permitir-
lhe ler no seu próprio jogo20; em suma, desfaz no
outro a obra de artifício para aí reencontrar a ver-
dade, mas é todo mistério sobre si próprio e aban-
dona o outro em sua ansiedade. Nada de adulação
passiva – o bajulador se deixaria apanhar em sua
armadilha –, mas uma adulação ativa que consiste em
dominar sem ser dominado, em compreender, pro-
cedendo de modo que ele próprio seja mal com-
preendido. Não se trata de induzir um amigo em er-
ro, mas de enfeitiçar um tolo sob as aparências da
amizade. O fim da bajulação, por conseguinte, tor-
na-se prático, técnico e militante antes de ser imoral,
pois que, para calcular sua imoralidade, ainda é
preciso ver contra quem ela se declara. Como se po-
de perder a vantagem no caso em que o astuto re-
vele seu jogo, a consciência trabalha sem cessar pa-
ra vigiar seus baluartes dominantes e consolidar sua
cidadela inexpugnável. A consciência do bajulador,
muito perspicaz, é consciência de falsa aparência: sa-
be que seu servidor imediato é um impostor, não
ignora que ele parece sem ser; ela quer naturalmen-
te ter as primícias de uma tal conspiração consigo.
Em outros termos, ela é ciência da ignorância, cons-
ciência da inconsciência. E, por pouco que a relação
se inverta, ela tem sempre em sua mochila algum
engano proveitoso, alguma fraude inédita, que lhe

XVI
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XVII

Prefácio

permitam fazer pender a coordenação para su bor-


dinaçãoe a igu aldade para disparidade. Entretanto, e
é oqu e Plu tarconãodiz, a baju laçãoserá qu ase ine-
vitável enqu antose opu serem a ponderaçãopassio-
nal dohomem honestoe a leviandade indiferente do
baju lador. Expliqu emo-nos.
A baju lação, essa coirmã d a arte e do teatro, é
apenas u ma das filhas doó cio. Comoarte e à seme-
lhança da coméd ia, ela só existe qu and oa u rgência
vital nãose faz sentir. Entretanto, mu itos elementos
a diferenciam da arte da cena: enqu antoa coméd ia
escrita se assemelha a u m fogode palha, a comédia
da vida oferece u m terrenodu radou roe propícioao
abrasamento, porqu anto o baju lador brinca com o
fogo; u ma vítima aparece, ele vai vê-la, põ e-na a d es-
coberto, imita-a, engana-a, excita seu amor-pró prio;
e, se a chama du ra mais tempo qu e os bens ambi-
cionados, nossovelhacoretira-se. E, su pondo-se qu e
tenha sidodesvendado, enqu antoopateta se deba-
te e soçobram corpoe bens nonau frágioda d esilu -
são, obaju lador, econô mico, nãocompromete senão
u ma parcela de su a alma nodesastre – a ou tra, atraí-
da por novas iscas, já está em pé de gu erra, mu ito
atarefada em estratégias preparató rias. Economia e
Diplomacia são, pois, as deu sas tu telares dobaju la-
dor. A vítima plau sível envisca-se nela mesma – com-
praz-se em mostrar o alvo d e seu s pontos fracos;
su a paixão dilu i-se ao longo de u m determinismo
visível a tod os; ao contrário, o baju lad or sabe tirar
a dramaticidade de su a tragédia interior; foi d esco-

XVII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XVIII

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

berto? Parte em bu sca de u m novopateta. Baju lar é


fru strar, istoé, farejar as armadilhas da ad versid ade,
mas também desapaixonar-se ou d esprender-se de
si mesmo.
Se obaju lador sabe atribu ir a cada coisa su a par-
te, se ele recu sa a tirania do ponto de vista ú nico,
para adotar u ma mu ltidão deles, a baju lação proce-
de, então, de u ma arte de tocar de leve os seres e as
coisas. Casoaconteça qu e ela seja profu nda, qu e ela
se enraíze, é sempre nu m desígnioastu cioso. Deve-
se dizer qu e a propensãoà ponderaçãoqu e caracte-
riza a maioria das vítimas qu e ela escolhe pode tão-
somente favorecer su a manobra devastadora. Há na
psicologia dos grandes homens cercados de u ma mu l-
tidão de baju ladores, Alexandre, Ptolomeu , Tibério,
Antô nio, Dionísio, particu laridades constantes: todos
su cu mbem ao imperialismo de su as tendências, às
gradaçõ es de su a natu reza passional, à exaltaçãode
seu s menores desejos, à inclinação para o sonho, a
u ma excessiva confiança em si qu e vai até aoextre-
moda credu lidade. O mesmose nota nas veleidades
esportivas de Alexandre21, no entu siasmo de Ptolo-
meu Evergeta II pelas ampu taçõ es cirú rgicas22, na hi-
pocondria doentia de u m Tibérioaniqu iladopela es-
magadora responsabilidade doimpério(60 C), novo-
lu ptu ososentimentode Antô niopor Cleó patra (61 A),
nas passageiras fantasias matemáticas de Dionísio
(52 D). Em todas essas figu ras histó ricas, u m impu l-
so, entregu e a si mesmo, prolifera indefinidamente,
a pontode ocu par todooespaço; longe de desapa-

XVIII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XIX

Prefácio

recer espontaneamente, torna-se vício arraigado ou


idéia fixa; transforma-se em circu nspecçãoe lentidão.
Qu antoaolisonjeador, ele é dotad oprodigiosa-
mente de todos os mecanismos regu ladores qu e com-
põ em au tomaticamente a hipertrofia dos desejos. Sa-
be limitar a manifestaçãoexcessiva de su as paixõ es
para, nu m jogosério, estar em conformidad e com a
dos ou tros; pode a qu alqu er momentoorganizar em
si mesmoessa concorrência dos instintos qu e os ser-
vid ores imediatos da vaidade, monopolizados como
sãopor impu lsos demais imperiosos, nãotêm a ca-
pacid ad e de fazer fu ncionar. Mantido longe da ob-
sessão, o baju lador instala em si mesmo essa toni-
cidade das inclinaçõ es contrastantes: adapta-se às
circu nstâncias, pod e aproveitar, em qu alqu er mo-
mento, a ocasiãofavorável, vence facilmente oretar-
damento patético de seu coração. Em resu mo, ele
nãoé dessas natu rezas graves, sombrias, inflexíveis,
qu e tomam fielmente u ma atitu de reservada para
com seu s prazeres e paixõ es. Está longe de gabar
esse radicalismo do coração qu e o tornaria visivel-
mente vu lnerável. Considera as almas d e su as víti-
mas comomodelos de fragilidade, comopresas fá-
ceis para o infortú nio, porqu anto elas oferecem u m
vastocu rsoa su as manobras capciosas. A ironia do
baju lador, essa maravilhosa disposiçãopara a viagem
da alma qu e é recu sa da inércia, consiste em não
aparecer integralmente em cada manifestação: oba-
ju lad or pou pa seu s recu rsos, nãotoma grandes ares
trágicos a nãoser de encomenda e jamais se deixa

XIX
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XX

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

prender na histeria. Compreende qu e opontofraco


d e su as vítimas reside nu ma hiperestesia: elas, ca-
pazes de amar e de odiar perdidamente, de apaixo-
nar-se por nãoimporta qu em, de ficarem cegas por
amor-pró prio, nãovivem mais aocompassod odia-
pasão, da ju sta observação das coisas, da lu cidez
crítica, mas entregam-se a exaltaçõ es compromete-
doras e desmedidas. O baju lador desenvolve, então,
em si u ma espécie de pru dência egoísta qu e oimu -
niza contra dilaceraçõ es doextremismosentimental.
Mantém a cabeça fria, concedendoa si omeiode ja-
mais se desencantar, em razão d e só representar a
coméd ia da sedu ção. E, su pondo-se qu e seja d es-
mascaradoe su rpreendidopela má sorte, a linha de
retirad a para a qu al ele recu ará coincidirá com u m
novoobjetode baju lação. Por mais qu e Plu tarcomos-
tre comose d esmascara u m baju lador, sabe qu e não
se pode su rpreendê-loem flagrante delitode deses-
pero, de cu lpabilidade ou de remorso. Toda d esola-
ção está em su a obra já apazigu ada: su a verdadeira
pessoa nãoestá lá, está sempre alhu res, a menos qu e
ela nãoesteja em parte algu ma... O baju lad or nãoé
u m med íocre parasita semelhante a essas adu lado-
ras de Chipre qu e foram cognominadas escabelos
porqu e se abaixavam diante das esposas dos reis
para permitir qu e elas su bissem em seu carro23. Não,
ele assemelha-se antes aos sofistas, a esses trapacei-
ros qu e sempre têm razãonopormenor, sem ter ra-
zãonoconju nto, pois qu e são, comoomostra Berg-
son, paralelistas, a meio caminho entre du as id éias.

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Prefácio

Dificilmente se pega obaju lador na su a pró pria ar-


madilha porqu e ele é literalmente perfeito. Um fu la-
no, u m dia, ad iantou -se em pleno senad o e fingiu
dirigir aoimperador Tibériocensu ras veementes. A
assistência imediatamente fez silêncio. Ou viram-se,
então, as precau çõ es de u m homem em desespero:
qu ando, declarava ele em resu mo, Tibério pou paria
su a saú d e e descansaria, ele a qu em consu miam as
vigílias e os cu idad os d e seu cargo24? Ou vindoessas
admoestaçõ es benevolentes, o retor Cássio Severo
afirmou ironicamente qu e u ma tal franqu eza mata-
ria seu homem. Entretanto, fica sempre na baju la-
ção o ú ltimo impu lso da sinceridade, assim como
paira incessantemente acima da incu lpação, ou da
cond enação à morte, a presu nção de inocência. O
baju lador sabe-obem; qu antomais ágil, mais se tor-
na inatingível, qu antomenos su speito, menos atin-
gível; comooescamoteador de Jerô nimoBosch, ele
sobressai em su tilizar u m obstácu lo, em marcar as
cartas, para fazer crer em su a dedicação, em su a pro-
fu nd id ade. A baju lação procede de u ma gravid ade
volú vel. Enqu antoa presa é atraente, ela represen-
ta o papel do ancoradou ro; é mais real qu e a pró -
pria realidade, finge sedentariedade, imobiliza-se; o
palerma qu e fica maravilhado, assim comoNarciso,
de encontrar u m ou troegoexpande-se, abre os cor-
dõ es d e su a bolsa aomesmotempoqu e se tornam
inflados os véu s de seu amor-pró prio. Se a navega-
çãoé de cu rta du ração, se a pobre rã hu mana, d es-
vairada de reconhecimento e cheia d e au to-satisfa-

XXI
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXII

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

ção, vem a nau fragar, seu adu lador habitu al escapa


por u m deslizamentoinsensível, e faz piru etas, para
nãod izer se pavoneia, à espreita de u m novoolhar
esbu galhado.
Nessas astú cias do baju lador, já se reconheceu
u m talentopró prioda inteligência e qu e é tão-só a
arte d e resvalar. O baju lador é comou m dançarino
de corda qu e andasse na terra firme em qu e rastejam
os papalvos, esses tardígrados doespírito. Longe de
aderir, longe de ponderar, ele atinge a emoção do
ou trocom u m toqu e mu itosu til. Mesmose fala vigo-
rosamente com os desbocados, é contrafeito qu e
mu rmu ra a si mesmo. Comoator consu mad o, d iver-
te-se com todos os sentimentos qu e seu arsenal tea-
tral lhe permite mascarar. Sem jamais explorar oco-
ração, explora a cabeça; e, por pou coqu e se apro-
xime doapaixonado, jamais se compromete a fu ndo,
noseu íntimoobviamente. Assemelha-se a esses be-
berrõ es qu e recu sam embriagar-se u nicamente do
mesmonéctar, e qu e, em vez d e esvaziar a garrafa
até à borra, criam para si u ma embriagu ez mu ltico-
lor, saboreandocom u ma mestria de enologista u m
grande nú merode vinhos.
Alcibíades, esse Panu rgogrego, representava os
elegantes em Atenas, tinha a cabeça rapada em Es-
parta, tinha maneiras grosseiras na Trácia, descam-
bava na efeminaçãona Pérsia25... Alcibíades é omo-
d elo su premo dos baju ladores (οÔ µέγιστο ς) ao mes-
motempoqu e é ode mais agu çada consciência: cons-
ciência bu liçosa qu e, comoProteu , se su bdivid e ao

XXII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXIII

Prefácio

infinito e evita a estu pidez do enraizamento, cons-


ciência extrema, qu e torna atentopara oreal e qu e
imu niza contra as estreitezas de u ma emoçãointran-
sigente, contra a intolerância de u m fanatismo ex-
clu sivo. A esse espírito de pizzicato, ou de u m lu -
diãomovente, Plu tarcocensu ra seu diletantismo, su a
inconstância. Ora, a característica dobaju lador é evi-
tar a repetição enfadonha, exceto se é coagido no
exercíciode su a fu nção; é, portanto, com ju sta razão
qu e Alcibíades, percorrendoocaminhoqu e oleva-
va de Atenas à corte de Tissafernes, não se d eteve
du rante otrajeto. Esse triu nfodomovimentoavan-
te sobre a aderência aos costu mes e aos d iscu rsos
tornou -oimaterial, insensível, disponível e su perior-
mente incrédu lo, ao mesmo tempo senhor dos po-
vos e das coisas. A baju laçãode Alcibíades nãopas-
saria d a ironia socrática novamente convertida para
fins d e adaptaçãosocial; graças a ela, ojovem com-
batente d e Potidéia aí faria a descoberta d a plu rali-
dad e; seu s sentimentos, desistindo de su a solidão
senhorial por vizinhanças hu milhantes, coexistiriam
com os da mu ltidão.
Nenhu m tema filosó ficoé mais diretamente ins-
pirad od opensamentosofísticoqu e oda baju lação,
na medida em qu e aparência e oportu nidade sãova-
lores essenciais aos olhos dos sofistas. Desse ponto
de vista, obaju lador aparece menos comou ma for-
ça negativa doqu e sob oaspectode u m homem de
ad aptação, nu m mu ndo de instabilidad e e d u plici-
dad e. Su a excelência manifesta-se por u m triplodo-

XXIII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXIV

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

mínio: ele determina as aparências, acomoda as cir-


cu nstâncias, triu nfa da mobilidade. Primeiramente, o
baju lador sabe recorrer às aparências em seu pró -
priofavor, mostrando-se em qu alqu er circu nstância
sob o aspecto mais feliz. Assim, só concede su as
atençõ es às natu rezas nobres, generosas e boas26
qu e o acolhem calorosamente. Depois, possu i a ar-
te d e u tilizar as circu nstâncias, aproveitand oas oca-
siõ es, segu ndou ma técnica qu e nãoé de previsão,
mas, antes, de intu içãoda oportu nidade nomomento
em qu e esta se apresenta. Enfim, é hábil em se mo-
ver noinstável e nofrágil. Essa facu ldade de evolver
noinapreensível e de fazer dissoseu alimentod iário
evoca, bem antes do completo desenvolvimento, a
filosofia de Pascal, porqu antou ma mesma intu ição
trágica d a fu tilidade de toda bu sca e d e toda posse
aproxima a frivolid ad e segu ndoPlu tarcododiverti-
mentopascaliano.

Em su ma, essas habilidades estãocondicionad as


a u m reconhecimento do artifício como u m princí-
pio ú nico da vida social do baju lador. O freio qu e
Plu tarcoopõ e a essa vida é omedod a natu reza, é
o temor do natu ral, é o terror qu e a espontaneida-
d e d osentimentoinspira. Só a irru pçãod essas soli-
citaçõ es qu e gu iam ohomem sem artifíciotem por
efeitotornar obaju lador pu silânime, pois qu e oadu-
lator é u m inconsciente: tu dolhe é permitid o, tu do
lhe é possível. Qu alqu er pessoa pode assemelhar-se
a ele, na condiçãode renu nciar aoapeloda natu reza

XXIV
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXV

Prefácio

(tendências, paixõ es, apelodocoração) e de dar sem-


pre preferência à arte ou aoartifício.

Pod er enganador nu m sentido, a baju lação é


também (Plu tarco não o diz) u m pod er qu e cau sa
jú bilo, pois, à semelhança da perversão, torna feliz
aqu ele qu e ela engana. Opõ e aoreal, esse triste de-
ceptor, u m simu lacro cintilante. Sobrecarga, exces-
so, inflação de presença lingu ageira ou espacial, a
baju lação recu pera o qu e se arrasta na realidade,
para lhe dar u m recrescimentode volu me. Sob seu
império, a mais miserável aparência existe noespaço,
arqu eia obu stotal comomata-mou ros, pavoneia-se
e tend e para a exibiçãocomplacente de su a forma.
Esse triu nfo da baju lação su scita u ma interrogação
sobre a lingu agem franca, porqu e se o baju lad or
tem em nó s u ma presa fácil é qu e nossa su ficiência
nos cega e nos torna rebeldes à franqu eza de nossos
amigos27. É preciso ser sincero? Tod as as verdades
sãoboas de ou vir?
Plu tarco responde sem rodeios. A sincerid ade é
em absolu toincondicionalmente boa, pois é nela qu e
se nota a ocorrência instantânea da coragem. Dizer
a verdade a qu em amamos é omesmoqu e tomar a
decisãode d izer oqu e somos. Nos d ois casos, a as-
su nçãoefetiva da verdade exige u m violentoesforço
sobre si, u ma vitó ria sobre o interesse. Em matéria
de liberdade d e palavra (παρ ρ ησία), a ú nica ocasião
qu e seja d ad a aoamigode proferir u ma semiverda-
de é a lítotes, essa pseu dologia irô nica, qu e su põ e o

XXV
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXVI

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

extremodesdobramentoda consciência. Posta por Plu -


tarcona categoria das técnicas de franqu eza28, ela não
é falsa; propõ e-nos somente indu zir-nos à verd ade
pela via indireta da simu lação: longe de manobrar
por egoísmo, ela nos experimenta para ver se sabe-
remos compreender. A exemplodociru rgiãoqu e não
engana odoente escondendo-lhe obistu ri, pois qu e
é para seu bem, o homem de tato (οÔ χαρ ίεις) pode
d eixar em su spensosu a intençãode falar a verdade,
a menos qu e dilu a em algu mas doçu ras lingu ageiras
qu e exigirãodecifraçãoe interpretação29. A qu estão
d a franqu eza d elineia u ma separação entre amiza-
d e e adversidad e, entre baju lação hipó crita e fran-
qu eza hostil. Com efeito, a vigilância qu e oolhar crí-
ticode u m adversárionos impõ e exige mais de nó s
qu e o desleixo com o qu al ou vimos nossos paren-
tes. O tratado Como tirar proveito de seus inimigos
propõ e-se mostrar, comodissemos, de qu e maneira
u m homem de Estado(ou u m simples cidad ão) po-
d e aproveitar as censu ras de seu s inimigos pessoais
para melhorar, comoconverterá as críticas qu e qu er
manifestar a ou trem em inju nçõ es morais em face de
si mesmo, como su portará pacientemente a injú ria,
como aprenderá a exercer o domínio e como será
generosopara com seu s adversários.
Reconhece-se aí u ma fidelidad e à filosofia estó i-
ca qu e foi elaborada qu atrosécu los antes de Plu tarco,
a partir dos anos 300 antes de nossa era. Os nomes
d os grandes representantes dessa corrente de pen-

XXVI
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXVII

Prefácio

samentosãofreqü entemente mencionad os na obra


de Plu tarco, qu e lera e meditara mu itoesses au tores,
mesmonolu gar em qu e u ma escrita espontânea não
parecia estar servindo de base a u ma precisão téc-
nica. Essa fidelidade a u ma dou trina já antiga nãod e-
ve cau sar admiração; as filosofias antigas tinham o
impacto temporal das religiõ es, embora fossem re-
servadas a elites intelectu ais. Compreende-se, então,
qu e nãotenham soçobradona obsolescência, como
seria ocasode nossos sistemas contemporâneos qu e
vivem, como dizia Barthes, a evolu ção d a “pequ e-
na histó ria”. No tempo de Plu tarco, então, o estoi-
cismose põ e ainda oproblema da felicid ad e e con-
tinu a a refletir sobre o ideal sapiencial. A respeito
da ad versidade, ohomem sábionãod eve manifes-
tar nenhu ma inqu ietu de. Com efeito, a segu rança,
summum dobem qu e ele procu ra, adqu ire-se por u m
trabalhode impregnaçãolenta; é su ficiente, à força
de treinoe de ascese, convencer-se d e qu e os sofri-
mentos e a morte nãosãonada, e qu e a compreen-
são d a adversidade, a integração do infortú nio em
nossa pró pria vida, podem fortalecer a segu rança
interior qu e procu ramos. Entretanto, Plu tarconãoé
Sêneca e ele concede a melhor parte à afetividade
nomomentoem qu e ofiló sofolatinotenta absolu -
tamente erradicá-la. O afeto, segu ndo as instâncias
mais rad icais doestoicismo, nãopassa d e u ma exci-
taçãolocal, u m fenô menoparasita qu e se enxerta em
nossos ju lgamentos, nada em su ma qu e possa desa-
fiar os tribu nais da Razão. Plu tarco, comomed iad or,

XXVII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXVIII

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

acolhe a posiçãode Aristó teles qu e horroriza Sêneca:


d evem-se moderar su as paixõ es para u tilizá-las em
dose aceitável. Leiamos A constância do sábio, e vere-
mos qu e se trata de extirpar de nossa alma os impu l-
sos mais su speitos. Não vejamos nesse empreend i-
mentorepressivou ma impetu osid ade exacerbada e
vingadora qu e poria a menor veleid ade passional na
impossibilidade de cau sar preju ízo. Consideremos so-
mente qu e devemos aniqu ilar oafetonocasoem qu e
possa ser mal refreado. Nossa alma nãodeve em ne-
nhu m casonu trir em seu seioessa víbora qu e, u ma
vez reanimad a, iria picá-la infalivelmente.

Tratando-se da adversidade qu e é também, no


sentid odotratadode Plu tarco, crítica d e ou trem, o
estoicismodifere d e nó s em nu merosos pontos. Pri-
meiro, Plu tarco, a exemplo de Sêneca, é u niversa-
lista aomesmotempoqu e individu alista. É issoqu e
torna su a posição difícil de compreend er. Segu ndo
ele, osábiodeve cu mprir perfeitamente seu s d eve-
res, centralizandosu a ascese em si mesmo; issonão
impede qu e ele fiqu e inexoravelmente abertoà id éia
d e u ma razãou niversal, imparcial e qu e nãofaz es-
colha d as pessoas. Crendo sensato o d esejo doim-
possível, ele imagina qu e ohomem poderá tirar su a
confirmação do imenso poder da ju stiça eqü itativa
e da lei geral. Eis u ma opinião qu e contrasta com a
nossa. Nó s consideramos, como mod ernos, qu e o
desejosobressai nohomem e qu e omu ndoé somen-
te u ma soma de consciências diferentes qu e qu e-

XXVIII
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXIX

Prefácio

rem aniqu ilar-se por inveja, proselitismoou confor-


mismo. Ora, Plu tarco, comobom estó ico, põ e toda
su a esperança na perfeição do mu ndo; tenta, por-
tanto, u nificar a virtu de (receita d a felicidad e pes-
soal) e a moral dos deveres para com ou trem. Desse
pontode vista, ele compreende qu e a perfeiçãomo-
ral nãose mantém na inércia; assim, concebe a rela-
ção d o sábio com seu inimigo como u m exercício
nod esafioqu e permite à virtu de manter-se em for-
ma, pois esta pode perder-se, u ma vez ad qu irid a, e
voltar atrás como u ma mola tensa demais qu e se
afrou xasse.

O De adulatore e oDe capienda ex inimicis uti-


litate dependem finalmente do mesmo tema e po-
dem facilmente ju stificar u ma pu blicação conju nta.
Os d ois interessam-se pela qu estão d as aparências
e interrogam-se sobre a atitu de do homem qu e a
vid a social põ e constantemente em lu ta contra a ilu -
são. Qu andoopolíticoé opateta dobaju lad or, ele
ced e às belas aparências, entra de repente nessa
metamorfose dos volu mes e das formas qu e lhe faz
ver o real sob o prisma de au mento do amor-pró -
prio. Inversamente, qu andou m inimigoodespreza
e orid icu lariza, ele recu sa a crítica e põ e em d ú vi-
da su a veracid ade. Aind a u ma vez seu amor-pró -
prioologra, tornando-oincapaz de ver a falha qu e
se d enu ncia nele. De todos os lados, as forças da
filáucia, essa paixãoinveterada de si mesmo, impe-
dem ohomem de ter u m olhar ju stosobre as coisas;

XXIX
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXX

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

elas falseiam su a visão, confu ndem seu ju lgamentoe


favorecem su a divagaçãonu m mu ndoem qu e tu do
já é levado a enganá-lo, em qu e as similitu des ilu -
d em. Plu tarco encontra u ma solu ção para esta gi-
gantesca “falcatru a” qu e é a vida social. Exclu indo
tod a morosid ad e, mostra qu e é possível gu iar su a
vida aorevés das aparências, istoé, tomandoosen-
tid ooposto. Se a recu sa dolou vor é oprimeiropas-
soqu e condu z à bu sca da identidad e, deixandode
olhar para si mesmo e para seu s caprichos, o res-
peitod as críticas de ou trem e oreconhecimentode
su a legitimidade serãoomeiosu premod e chegar à
verd ade desejada. Em lu gar de instau rar u ma moral
social nova na histó ria da filosofia, Plu tarco prova
qu e a euthymia, essa serenidade do estó ico, esta
arte dos compromissos e das proporçõ es, permite
conciliar ao mesmo tempo as mais contrad itó rias
noçõ es: opu roe oimpu ro, oamor e a intimidade,
a franqu eza e otato. Nu m tempode coabitaçãopo-
lítica e de disparidade social, nãoseria desejável qu e
seu pensamento, desafiandooanacronismo, pu d es-
se servir de balau strada para as cortesãs d os prínci-
pes e para as rivalid ades dos ambiciosos?

XXX
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXXI

B ibliografia Su mária

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XXXI
Proveito-00PREFACIO:Proveito-00PREFACIO 25.07.11 12:58 Página XXXII

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

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XXXII
Proveito-00CRONOLOGIA:Proveito-00CRONOLOGIA 25.07.11 12:59 Página XXXIII

Cronologia

Em razãoda escassez de dados e a imprecisãodas datas


relativas à vida de Plu tarcod amos a segu ir algu mas informa-
çõ es coletadas por Vadim Valentinovitch Nikitin, especialmente
para esta edição, sobre a vida e a obra deste au tor, mas fu gin-
doaos padrõ es qu e haviam sidoestabelecidos para esta cole-
ção. Qu ase todas as datas sãoaproximadas, daí a necessidade
de virem precedidas de c. (cerca de).
O Ed itor

Plu tarconasceu em c. 46 d.C., em Qu eronéia, cida-


de d a Beó cia pró xima a Delfos, e aí também veioa
falecer, em c. 120.
Filhode família abastada e influ ente, estu dou em
Qu eronéia e depois em Atenas, onde aos vinte anos
já ou via as liçõ es domédicoOnesícrates, doorador
Emiliano e do filó sofo platô nico Amô nio. Dirigiu -se
então ao Egito (apenas Alexandria?) e de lá à Itália,
onde viveu por vinte anos (c. 75-c. 95). Em Roma terá
certamente fu ndado u ma escola. No fim desse péri-
plo cu ltu ral e diplomático, em meio a u m Império
Romanoqu e havia já integradoa si a Grécia, Plu tar-
co retorna à terra natal, onde passa a ocu par altos
cargos mu nicipais. Sabe-se qu e Plu tarco pertenceu
aocolégiode sacerdotes em Delfos. O Suídas, gran-
de léxicogregocompiladonofinal dosécu loX, in-
forma qu e Trajano, imperador romanode 98 a 117, o
elevou à dignidade de cô nsu l. Eu sébio(sécu loIII-IV),
au tor de u ma “crô nica” qu e é fonte de grande parte
de nossoconhecimentosobre as datas e os eventos
na histó ria grega e romana até 325 d.C., pretende qu e

XXXIII
Proveito-00CRONOLOGIA:Proveito-00CRONOLOGIA 25.07.11 12:59 Página XXXIV

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Adriano, imperador romanode 117 a 138, tenha en-


carregadoPlu tarcode governar a Grécia. Mas todoe
qu alqu er registro da vida de Plu tarco deve ser lido
sempre à lu z difu sa das conjetu ras.
Foi só de volta a Qu eronéia qu e Plu tarcopô s-se
a red igir a maior parte d as aproximadamente du zen-
tas obras qu e lhe sãoatribu ídas, das qu ais mu itos tra-
tados constitu am talvez reelaboraçãode su as confe-
rências. Essa grande produ ção está organizada em
d u as seçõ es:
1) Uma série de Vidas de homens ilustres, ou Vi-
das paralelas, escritas entre c. 105-c.115, qu e são,
exceto qu atro biografias isoladas, vinte e du as bio-
grafias d u plas nas qu ais a vida de u m romanoilu s-
tre (estadista ou soldado) é cotejada à vida d e u m
gregoilu stre (Rô mu loa Teseu , FábioMáximoa Pé-
ricles, César a Alexandre, Cíceroa Demó stenes, etc.).
Costu ma-se dizer qu e os critérios de comparaçãou ti-
lizados por Plu tarco para animar tais cotejos foram
antes os de u m moralista qu e os de u m historiad or,
pois tinham comoobjetivoapreender e dar a ver mais
os caracteres qu e os fatos ou as açõ es de seu s bio-
grafados, mais os aspectos morais qu e os eventos po-
líticos envolvidos no tema. Shakespeare baseou -se
na trad u çãoinglesa das Vidas (de Sir Thomas North,
1579, feita a partir de u ma versãofrancesa de Amyot)
para compor su as três peças romanas, Júlio César,
Antônio e Cleópatra e Coriolano.
2) Uma série de aproximadamente sessenta e cin-
co tratados esparsos, nos qu ais Montaigne parece

XXXIV
Proveito-00CRONOLOGIA:Proveito-00CRONOLOGIA 25.07.11 12:59 Página XXXV

Cronologia

ter se inspirado para escrever seu s Ensaios, reu ni-


dos sob otítu lod e Moralia. Os assu ntos desses tra-
tados, mais conhecidos por seu s títu los latinos, são
extremamente variados, recobrindo ética, religião,
filosofia, literatu ra e assu ntos norteados por u ma
apu rada cu riosidade eru dita, sempre nu m estilodesa-
fetadoe plenod e personalidade. Fazem parte dessa
seçãodas obras de Plu tarcoos textos aqu i editad os,
Como tirar proveito de seus inimigos (c. 100) e Da
maneira de distinguir o bajulador do amigo, este ú lti-
mo dedicado a Antíoco Filopapo, arconte ateniense
dosécu loI.

XXXV
Proveito-00CRONOLOGIA:Proveito-00CRONOLOGIA 25.07.11 12:59 Página XXXVI
Proveito-01:Proveito-01 25.07.11 13:13 Página 1

COMO TIRAR PROVEITO


DE SEUS INIMIGOS
Proveito-01:Proveito-01 25.07.11 13:13 Página 2
Proveito-01:Proveito-01 25.07.11 13:13 Página 3

Dedicatória: a administração política, fonte


fecunda de inimizades e de ódios.

1. Vejo, Cornélio Pu lqu ério1, qu e escolheste a ma-


neira mais doce de governar oEstad o: sempre a te
esforçares em servir a comu nidade, mostras u ma
grand e benevolência para com aqu eles qu e em par-
ticu lar te dirigem solicitaçõ es2. Pod e-se certamente
encontrar u m país onde não haja animais ferozes,
como, entre ou tras coisas, se fala a respeitode Cre-
ta3, mas já se viu u ma administraçãopolítica qu e não
tenha expostoaqu eles qu e a exerciam aociú me de
seu s rivais, à inveja e à concorrência, paixõ es mu ito
férteis em inimizad es (aliás, na falta de ou tras cau -
sas, as amizades reservam-nos inimizades. Tal era a
opiniãodosábioQu ílon4, qu andoele pergu ntava a
u m homem qu e se vangloriava de não ter inimigo
se também nãotinha amigo)? As med itaçõ es de u m
homem de Estad o devem apoiar-se, parece-me, na
qu estãodos inimigos encarada sob tod as essas face-
tas; e d eve-se ter atribu ídou m vivointeresse a esta

3
Proveito-01:Proveito-01 25.07.11 13:13 Página 4

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

sentença de Xenofonte5: qu e “é pró prio de u m ho-


mem ponderad o tirar proveito de seu s inimigos”.
Em conseqü ência, as conversas qu e tive recente-
mente sobre essa matéria, reu ni-as aproximadamente
nos mesmos termos e envio-as a ti. Tantoqu antopos-
sível, abstive-me d e inserir o qu e tinha escrito em
meu s Preceitos políticos 6, pois vejo qu e tens fre-
qü entemente esse tratad oentre as mãos.

Visto que é impossível não ter inimigo, é preciso


saber tirar proveito dessa situação.

2. Os primeiros homens limitavam-se a nãocair en-


tre as garras de seres selvagens de u ma espécie dife-
rente d a su a, e aí estava o objetivo dos combates
qu e eles travavam com animais selvagens. Depois,
seu s d escendentes aprenderam a u tilizá-los; aliás,
nãotiram proveitodisso, qu andose servem d e su a
carne para se alimentar, de seu pêlo para se vestir,
d e seu fel e de seu coalhopara se tratar, de seu cou -
ro para se armar? Em conseqü ência, se os animais
ferozes tivessem vind oa faltar à raça hu mana, é de
recear qu e su a vida se tivesse tornadoselvagem, in-
d igente e bárbara7. Por consegu inte, visto qu e os
homens comu ns se limitam a evitar a má vontad e de
seu s inimigos, e qu e os pond erados, nod izer de Xe-
nofonte8, tiram proveito de seu s ad versários, não
ponhamos su a palavra em dú vida, mas procu remos
u m método, u ma arte, graças aos qu ais os seres

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

incapazes de viver sem inimigos tirarão algu m ex-


ped iente vantajoso.
O lavrador nãopode tornar fecu nda qu alqu er ár-
vore, nem ocaçador, domar oprimeiroanimal qu e
chegar; eles procu ram, então, ou tros meios de tirar
proveito, oprimeiro, da esterilidade vegetal; osegu n-
doda selvageria animal. A águ a domar é pou copo-
tável e tem mau gosto; mas su stenta os peixes, favo-
rece os trajetos em todos os sentidos, é u ma via de
acesso e u m veícu lo para aqu eles qu e a u tilizam9.
Qu and oosátirocontemplou pela primeira vez ofo-
go, desejou beijá-lo e abraçá-lo; então, Prometeu
lhe d isse:

“De tu a barba de bode chorarás a perda.”10

O fogo qu eima qu em o toca; mas fornece lu z e


calor, serve a u ma infinidade de u sos para aqu eles
qu e sabem u tilizá-lo. Examina igu almente teu inimi-
go: esta criatu ra, de u m ou trolado, nociva e intratá-
vel, nãodá, de algu ma maneira, ensejode ser apa-
nhada? Nãopode prestar-se a algu m u soparticu lar?
Não é ú til? Mu itas coisas são igu almente penosas,
detestáveis, hostis, qu ando se encontram no nosso
caminho. Entretanto, notas qu e certos homens con-
verteram su a doença nu ma doce inaçãofísica. Mu i-
tos ou tros se fortificaram e se tornaram resistentes
sob o império das provocaçõ es qu e tiveram de so-
frer, aopassoqu e a perda de su a pátria e a privação
de seu s bens condu ziram raros eleitos a u m lazer

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

dedicado ao estu do e à filosofia. Foi a direção qu e


tomaram Dió genes11 e Crates12. Zenon13, aocontrário,
sabendoqu e onaviofretadopor ele tinha nau fraga-
do, exclamou : “Fazes bem, fortu na, em me recondu -
zires ao bu rel dos filó sofos!” É a mesma coisa para
esses animais cu joestô magoé dos mais encorreados
e cu ja saú de é das mais vigorosas; não engolem e
não digerem serpentes e escorpiõ es? Aliás, ou tras
espécies se nu trem de seixos e de conchas, transfor-
mando-os pela força e pelocalor de seu soprovital.
Em compensação, os indivídu os delicados e doen-
tios têm dificu ldades em su portar u m pou code pão
ou de vinho sem ter vontade de vomitar. Assim os
imbecis maltratam su as amizades, enqu anto os ho-
mens sensatos sabem dirigir para seu proveitomes-
moas inimizades.

Visto que nosso inimigo observa curiosamente


nossas ações, é necessário que estejamos
atentos a nós mesmos, e essa vigilância
transforma-se insensivelmente em hábito de
virtude. A emulação é uma contenção moral.

3. Em primeiro lu gar, parece-me qu e o mais preju -


dicial na inimizade pode tornar-se omais proveitoso,
se se qu er atentar nisso. E de qu e maneira? É qu e
teu inimigo, continu amente atento, espia tu as açõ es;
na expectativa d a menor falha, fica à espreita, em
tornod e tu a vida, nãovendosomente “através dos

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

carvalhos”, comofazia Linceu 14, nem “através de pe-


dras e telhas”, mas também através d e teu amigo,
teu d oméstico, e tod os aqu eles com qu em tiveres
familiarid ad e, para apanhar de su rpresa, tantoqu an-
to lhe for possível, o qu e farás, e aprofu ndar ou
sond ar tu as resolu çõ es15. Com efeito, acontece fre-
qü entemente qu e nossos amigos adoecem e agoni-
zam, sem qu e saibamos, enqu antolhes damos pro-
va d e d esinteresse e de negligência. Tratando-se de
nossos inimigos, aocontrário, vamos qu ase em bu s-
ca d e seu s sonhos. Doenças, dívidas ou brigas con-
ju gais escapam mais facilmente à memó ria de seu s
servid ores imediatos qu e à de seu adversário. Mas é
sobretu doaos erros qu e este se prende, e vai aoseu
encalço; e da mesma maneira qu e os abu tres são
atraíd os pelo odor das carcaças pú trid as, mas não
sentem o odor dos corpos sãos e vigorosos, assim
também as partes de nossa vida qu e são doentias,
fracas, afetadas atraem nosso inimigo; d e fato, os
qu e nos d emonstram aversãoinvestem contra elas
a passos largos, tomam-nas d e assalto e d esped a-
çam-nas. É issoentãou ma coisa efetivamente ú til?
Sim, sem nenhu ma d ú vid a. Issoobriga a viver com
cau tela, a prestar atençãoem si, a nad a fazer nem
nad a d izer estou vada e irrefletid amente, mas a man-
ter continu amente su a vid a resgu ard ad a d e u ma
eventu al crítica, como se se tratasse d e observar
u m regime d raconiano. De fato, essa maneira re-
servad a, qu e reprime as paixõ es d a alma e refreia
os d esvios d o raciocínio, inspira o cu id ad o e a

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

vontad e d e viver d e maneira virtu osa e irrepreensí-


vel16. Com efeito, as cid ad es, qu e gu erras d e vizi-
nhança e contínu as exped içõ es militares tornaram
sensatas, chegam a amar boas leis e u ma política
salu tar: da mesma maneira os homens, compelid os
por certas inimizad es a levar u ma vid a só bria, a
resistir à facilid ad e e à presu nção, a atribu ir u m fim
ú til a cad a u ma d e su as açõ es, são levad os, sem
saber, ru moà infalibilid ad e, e seu s costu mes ad qu i-
rem u ma regu larid ad e ed ificante, por pou coqu e a
razãovenha em seu au xílio. O pensamento:

“Qu e prazer para Príamoe os filhos de Príamo!”17

qu ando o temos sempre no espírito, desvia, afasta,


distancia de tu do o qu e pode alegrar os inimigos e
su scitar seu riso. Considera os artistas qu e figu ram
nas Dionisíacas: nó s os vemos relaxados e indolentes
em representaçõ es desprovidas de rigor, qu andono
teatro estão apenas entre eles; mas todas as vezes
qu e há concu rsoe rivalidade com ou tros gru pos, eles
redobram a atençãonãosó na interpretaçãode seu s
papéis, mas também nou sodos instru mentos de mú -
sica: afinam-nos, cu idam mais minu ciosamente da
harmonia doconcertoe doacompanhamentodas flau -
tas18. Em conseqü ência, aqu ele qu e sabe qu e seu ini-
migo é u m concorrente, tanto no plano da condu ta
como no da repu tação, presta mais atenção em si,
olha oefeitode seu s atos com circu nspecção, regu la
melhor su a condu ta. Com efeito, é igu almente u ma

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

particu laridade dovícioter mais vergonha dos inimi-


gos qu e dos amigos, qu andose age mal. Donde esse
ditode Nasica19, qu andopessoas pensavam e diziam
qu e opoderioromanoestava doravante fora de peri-
go, apó s a destru içãode Cartagoe a su jeiçãoda Gré-
cia: “Pois bem! É agora”, disse ele, “qu e estamos em
perigo, porqu e não deixamos a nó s mesmos rivais
qu e possam inspirar-nos temor ou vergonha.”

A inveja de nossos inimigos é um contrapeso à


nossa negligência. Além disso, nós nos
vingamos utilmente de um inimigo afligindo-o com
o nosso próprio aperfeiçoamento moral.

4. Acrescenta ainda a isso a resposta de Dió genes,


tãod igna de u m filó sofoe de u m homem d e Estad o:
“Como me defenderei contra meu inimigo? – Tor-
nando-te tu pró prio virtu oso.”20 Se vêem qu e são
apreciados os cavalos de seu inimigo e elogiados
seu s cães, as pessoas lamentam-se. Se vêem su as
terras bem cu ltivadas e seu jardim florid o, experi-
mentam u ma grande tristeza. Qu e su cederá, em tu a
opinião, se dás prova de eqü id ade, d e bom senso,
de solicitu de, de probidade nos discu rsos, de inte-
grid ade em teu s atos, de decência em tu a cond u ta,
“colhendo os fru tos em teu coração d os enormes
su lcos, teatrode crescimentode nobres desígnios”21?
“Vencidos, os homens são acorrentados a seu
mu tismo”22, diz Píndaro; essa observaçãonãoé nem

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

absolu ta nem válida para todos, mas concerne aos qu e


se vêem vencidos por seu s inimigos em vigilância, em
civismo, em grandeza de alma, em beneficência e em
hu manidade. Eis oqu e “paralisa a língu a”, comodiz
Demó stenes, “fecha a boca, su foca, faz calar”23.

“Sê diferente dos mau s, issodepende de ti.”24

Qu eres mortificar aqu ele qu e te od eia? Não o


trates d e homossexu al, de efeminado, de dissolu to,
d e tru ão ou de mesqu inho; mas comporta-te real-
mente como homem, sê moderado, d iz a verdade,
procede hu manamente e com ju stiça com aqu eles
qu e encontras. Mas se crês qu e és obrigad o a che-
gar às injú rias, afasta-te o mais possível d as d esor-
d ens qu e lhe atribu is. Sonda oâmagode tu a alma,
examina su as falhas, para não te expores a ou vir
d izer baixinho, por algu m vícioocu ltonãose sabe
ond e em ti mesmo, este versod opoeta trágico:

“Qu eres cu rar ou trem, qu andoregu rgitas de ú lceras!”25

Tu otratas de ignorante? Redobra em ti oard or


pelotrabalhoe ogostopelas ciências. De covarde?
Reaviva tu a au dácia e tu a bravu ra. De lascivo e de
d issolu to? Apaga de tu a alma todo vestígio de ten-
d ência à volú pia qu e ela pode ter conservadosecre-
tamente. Com efeito, nada seria mais vergonhoso
nem mais mortificante qu e ver recair sobre si a cen-
su ra qu e se teria feitoa ou trem; mas os olhos fracos

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

parecem ser feridos mais vivamente pela reverbera-


ção d a lu z, e os acu sadores pelas acu saçõ es qu e a
verd ad e faz recair sobre eles. Exatamente como o
vento do norte reú ne as nu vens, u ma condu ta má
atrai a si ju stas censu ras.

Não atribuamos a outrem


defeitos que possuímos.

5. Todas as vezes qu e Platãose tinha encontradono


meiode homens de costu mes dissolu tos, costu mava
aodeixá-los dizer a si mesmo: “Nãosou eu pró prio,
por acaso, u m de seu s semelhantes?”26 Se aqu ele qu e
censu rou amargamente a condu ta de u m ou tro exa-
minar logoa su a e a refizer, dando-lhe u m desvioe
u ma direçãoem sentidoinverso, colherá os fru tos de
su as injú rias. De ou tra maneira, elas parecerão ser
inú teis e vãs, e, com efeito, são. A mu ltidão comu -
mente ri, sem dú vida, se vê u m calvoou u m corcu n-
da difamar ou escarnecer u m ou trosobre su as defor-
midades, mas é absolu tamente ridícu loou sar fazer ao
pró ximou ma censu ra qu e ele pode fazer voltar con-
tra nó s. Assim, Leão de Bizâncio, inju riado por u m
corcu nda a propó sito de su a vista fraca, respondeu -
lhe: “Atribu is-me a responsabilidade de u ma desgraça
mu ito hu mana, qu ando trazes sobre tu as costas as
marcas da vingança celeste.” Não acu ses, portanto,
u m homem adú ltero se és lou co pelos jovens, nem
u m ser dissipador de su a fortu na se és avaro.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“De u ma mu lher homicida27 és irmão pelo san-


gu e”28, d izia Alcmeãoa Adrasto. Qu e lhe respondeu
ele? Censu rou -lhe nãoocrime de u m ou tro, mas o
seu pró priocrime:

“Por tu a mãopereceu a mãe qu e te fez nascer.”29

Domíciod iz a Crasso: “E tu , nãoé verd ad e qu e,


qu and o morreu u ma lampreia qu e mand avas ali-
mentar nu m viveiro, choraste?” O ou troentãoretor-
qu iu : “Mas tu , não é verd ad e qu e, por ocasião d o
enterrorespectivod e tu as três mu lheres, nãod erra-
maste u ma lágrima?”30 Crês qu e para ter d ireito d e
censu rar basta ser homem d e espírito, falar com
voz forte e tom categó rico? Não, é precisoestar res-
gu ard ad od e tod a acu saçãoe d e tod a censu ra. Com
efeito, a nenhu m ou tro, parece, od eu s recomend a
tantoa prática d o“conhece-te a ti mesmo” comoao
homem qu e se intromete em censu rar ou trem, re-
ceand oqu e, d izend otu d ooqu e lhe agrad a, se ex-
ponha a ou vir coisas qu e lhe d esagrad am. Com
efeito, segu nd o Só focles, “acontece comu mente”
qu e tais personagens

“nãose dominandoem su a vã tagarelice,


ou vem empregar contra a su a vontade a lingu agem
qu e tinham mantidocom prazer sobre u m ou tro”31.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Maneiras de receber as censuras de outrem.

6. Eis oqu e há de ú til e de proveitosonas admoes-


taçõ es qu e se fazem a u m inimigo; mas ofatonãoé
menos verdadeiroem sentidocontrário: qu andose
é vítima d as injú rias e das críticas de seu s inimigos.
Por isso, Antístenes dizia com razão qu e, para os
qu e se preservam, há necessid ade de amigos since-
ros e inimigos ardentes: u ns nos afastam domal por
su as advertências, os ou tros, por su a censu ra32. Mas
vistoqu e hoje a amizade só eleva fracamente a voz,
qu and ose trata de falar com franqu eza, e qu e, ver-
bosa na lisonja, é silenciosa nos conselhos, é da
boca de nossos inimigos qu e nos é precisoou vir a
verd ad e. Com efeito, assim como Télefo, não po-
dend oser tratad opelos seu s, entregou seu ferimen-
to à lança d o inimigo, assim também aqu eles qu e
não pod em u su fru ir advertências favoráveis d evem
forçosamente escu tar com paciência as censu ras de
u m inimigo33, se ele denu ncia e reprime seu s vícios,
e deter-se menos na má intenção qu e o dirige do
qu e noserviçoreal qu e ele lhes presta. Um homem
qu eria fazer perecer Prometeu , oTessálio34. Feriu -o
com su a espada e fu rou u m flegmão, d e sorte qu e
lhe salvou a vid a, livrando-o desse abcesso qu e se
abriu . Tal é mu itas vezes o efeito de u ma maledi-
cência ditada pela có lera ou pela inimizade: ela cu ra
nossa alma d e u ma doença insu speita qu e tínhamos
negligenciado. Mas as pessoas, em su a maior parte,
qu and osãocensu radas, nãoprocu ram saber se es-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

sas reprimend as têm fu ndamento, mas u sam recri-


minaçõ es e acu sam seu agressor de u m vício dife-
rente. Imitam nisso a artimanha d e lu tadores em
combate com a poeira: nolu gar de se livrarem pes-
soalmente dos defeitos estigmatizados por seu s ini-
migos, borrifam-se mu tu amente com eles, de sorte
qu e, na peleja em qu e su cu mbem alternad amente,
se acham entãoenod oad os e enegrecid os. Nãose-
ria mais razoável, nessas ocasiõ es, corrigir o vício
qu e nos censu ram, com maior cu idad od oqu e se ti-
rássemos de nossomantou ma nó d oa qu e nos tives-
sem mostrado? Se nos atribu em defeitos qu e não
temos, d evemos procu rar a cau sa d essa calú nia, e
aplicar-nos, a pod er d e vigilância e apreensão, em
não cometer, sem sabermos, u ma falta semelhante
ou análoga àqu ela qu e nos censu ram. Assim, La-
cid es, o rei d e Argos, como su a cabeleira era pen-
tead a com d emasiad o cu id ad o, e and ava com ex-
cessiva d elicad eza, tornou -se su speito d e frou xi-
dão: omesmoaconteceu com Pompeu 35, qu e tinha o
costu me d e coçar a cabeça com u m d ed osó ; entre-
tanto, ele estava mu ito longe d e mostrar-se efemi-
nad oou u m d evassod esenfread o. Acu sou -se Cras-
so36 d e manter u ma ligação com u ma d as virgens
sagrad as37 porqu e, d esejand ocomprar-lhe u ma bela
propried ad e, lhe fazia u ma corte assíd u a, sem tes-
temu nhas, e a cu mu lava de amabilidades. Postú mia,
mu itopronta para rir e ou sada demais para falar com
os homens, foi d esacred itad a a pontod e ser acu sa-
d a d e impu d icícia. É verd ad e qu e foi inocentad a;

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

mas, aotermod a absolvição, ogrand e pontífice Es-


pú rioMinú ciofê-la lembrar-se su bsid iariamente d e
qu e tinha d e ser tão reservad a em seu s d iscu rsos
qu antoem su a cond u ta. Qu antoa Temístocles, qu e
foi reconhecid o inocente, tornou -se su speito d e
traição em virtu d e d e su a amizad e com Pau sânias
e d as cartas freqü entes qu e ele lhe enviava38.

Não se devem desprezar as censuras,


mesmo que elas não sejam fundadas.

7. Em conseqü ência, se se diz de ti algo falso, não


deves d esprezá-loou negligenciá-lo, por ser menti-
ra. Examina aocontrárioem tu as palavras, tu a con-
du ta, tu as atividad es de predileção, tu as relaçõ es,
tu dooqu e pô de servir d e pretextoà calú nia, depois
resgu arda-te dissoe foge! Com efeito, se ou tros, víti-
mas d e infortú nios imprevistos, tiraram daí liçõ es
proveitosas, assim comoensina Mérope:

“O infortú nio, é verdade, deu -me a sabedoria,


mas aopreçode seres caros, objetos de minha ternu ra”39,

qu e nos impede de tomar as liçõ es gratu itas de u m


inimigoe tirar partidodissopara aprend er u ma par-
cela doqu e nos escapa? De fato, em mu itos pontos
a clarividência d oinimigoé maior qu e a doamigo
– “oamor é cegoa respeitodoqu e ele ama”40, como
diz Platão; oó diou ne a intemperança d a língu a ao

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

gostodos tagarelas. Hieronfoi censu radopor u m de


seu s inimigos por ter mau hálito; de volta a casa,
disse à su a mu lher: “Qu e significa isto? Por qu e não
me falaste jamais a respeitode tal coisa?” Mas ela, qu e
era tãosimples qu antocasta, respondeu -lhe: “Achava
qu e todos os homens cheiravam da mesma maneira.”
Assim, é por nossos inimigos mais qu e por nossos
amigos e familiares qu e podemos tomar consciência
de nossas manias, de nossas fraqu ezas corporais e de
nossos defeitos mais diretamente perceptíveis.

É preciso suportar com doçura as brincadeiras e as


maledicências: essa paciência é um meio muito
eficaz de aprender a dominar sua língua.

8. Mas deixemos essa qu estãopara tratar dodomínio


qu e se deve exercer sobre a pró pria língu a: nãoes-
tá aí u ma parte diminu ta da virtu de. Ora, ficar-se-á
impossibilitadode manter su a língu a sob ocontrole
e a au toridade da razão se, a poder d e exercício e
d e trabalhoassídu o, nãose triu nfou d as mais detes-
táveis paixõ es tais como a có lera, por exemplo. O
d iscu rsoqu e jorra involu ntariamente, a

“palavra qu e dos dentes transpô s a barreira”,

e ofatode qu e

“certas expressõ es levantam vô oespontaneamente”41,

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

issoacontece geralmente aos espíritos comu ns qu e


segu em su a inclinaçãoe flu tu am aosabor de su a pu -
silanimidade, de seu ju lgamento débil, d e su a con-
du ta irrefletida. Ora, a palavra, coisa volatilíssima,
expõ e-nos, como nos ensina o divino Platão, aos
mais pesados castigos qu e deu ses e homens pod em
infligir42. Mas osilênciojamais tem contas a d ar; não
só nãocau sa sede, comoodiz Hipó crates43, mas dá
ao homem difamado u m traço de nobreza, u ma
marca socrática, ou mais exatamente u ma qu alid ade
heracliana, se é verdade qu e esse heró i

“nãose inqu ietava mais com as calú nias doqu e com


[u ma mosca zu mbidora”44.

Nada é mais nobre, segu ramente, nada é mais belo


qu e essa atitu de tranqü ila diante dos insu ltos d oini-
migo:

“Su portam-se mu itas graçolas passando


comou m marinheiroaolargod os escolhos”45,

mas oexercícioaí levadoa efeitotem maior mérito.


Uma vez acostu madoa su portar em silêncioas injú -
rias hostis, su portarás mais facilmente os arrebata-
mentos de u ma mu lher qu e te inju ria, ou virás sem
emoção as palavras ofensivas d e u m amigo ou de
u m irmão; e qu ando teu pai ou tu a mãe te derem
pancadas ou te lançarem algu m objeto no rosto,
aceitarás a ofensa sem có lera e sem ressentimento.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Só crates su portava Xantipa46, qu e era irritável e acri-


moniosa, a fim de qu e ohábitoqu e com issoadqu i-
risse otornasse mais doce aos ou tros. Entretanto, é
mais beloqu e seja contra inimigos e estranhos qu e
nos exercitemos em su portar com serenid ade as in-
solências, os arrebatamentos, os motejos, os u ltra-
jes, para habitu ar nosso hu mor a permanecer tran-
qü iloe a nãose irritar com as injú rias.

A generosidade para com um inimigo é uma


propedêutica para a grandeza moral.

9. Doçu ra e tolerância: eis oqu e ostentamos em nos-


sas inimizades. Acrescento qu e nossa retidão, nossa
grandeza de alma, nossa bondade pod em aí mani-
festar-se melhor ainda qu e em nossas amizades: sem
d ú vida há menos mérito em prestar u m serviço a
u m amigodoqu e vergonha em recu sá-lo, se ele tem
necessidade. Sem dú vida não se vingar de u m ini-
migo, qu andoa ocasiãose apresenta, é hu manida-
d e! Mas compadecer-se d ele qu andoestá prostrado
e assisti-loqu andoestá na miséria, ter atençõ es para
com seu s filhos e ocu par-se de seu s interesses qu e
periclitam, ohomem qu e nãosente a generosidad e
de u ma tal condu ta, qu e nãolou va essa virtu de, esse,

“d e açoou d e ferroé forjad oseu coraçãonegro”47.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Qu ando César ord enou qu e fossem reergu idas


as estátu as triu nfais de Pompeu qu e tinham sido
lançad as por terra, Cícerodisse-lhe: “Reergu end oas
estátu as de Pompeu , consolidaste as tu as.”48 Em
conseqü ência, não se deve ser avaro de lou vor ou
de homenagem a seu inimigo, qu andoele merece a
repu taçãoqu e se qu er atribu ir-lhe. Os qu e exaltam
são mais exaltad os; e as censu ras dirigid as a u m
desses u ma ou tra vez inspiram mais confiança, visto
qu e parecem ditadas nãopeloó diod ohomem, mas
pela reprovação de su a cond u ta. Mas o qu e há de
mais beloe d e mais ú til é qu e, tomand oohábitode
lou var nossos inimigos, de nos d efender d e todo
rancor e de tod a tortu ra à vista de seu su cesso, nos
afastamos mais dessa inveja qu e excitam em nó s
com mu ita freqü ência a felicidade de nossos amigos
e o su cesso d e nossos familiares. Ora, qu e ou tro
exercícioé mais ú til para a alma, e melhor a dispõ e,
qu e aqu ele qu e extingu e em nó s todo instinto de
rivalid ade e inveja? Com efeito, assim comona gu er-
ra há todas as espécies de necessidad es, aliás más,
qu e, tornadas costu mes e tendo força de lei, não
pod em ser facilmente su primidas, mesmo qu ando
nos contrariam; domesmomod oa inimizade, pela
ú nica razãode introdu zir em nó s, ju ntamente com o
ó d io, u m sentimento de inveja, d eixa em d epó sito
na su a passagem a desconfiança e o regozijo qu e
vêm doinfortú niodos ou tros, orancor enfim49. Além
disso, qu andoa maldade, a astú cia, ogostoda intri-
ga, qu e nãoparecem ser coisas condenáveis ou iní-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

qu as com respeito a u m inimigo, se insinu am em


nossa alma, aí permanecem sem qu e possamos nos
d esfazer deles; e ohábitofaz qu e, nãosabendonos
preservar d e tais defeitos com respeitoa nossos ini-
migos, os empregu emos mesmocontra nossos ami-
gos. Se então Pitágoras50 tinha razão qu ando, em
seu desejode habitu ar os homens a se absterem de
tod a a violência e de tod a exigência cú pid a diante
d os animais privados de razão, obtinha d os passari-
nheiros por seu s pedidos, e dos pescadores pela
compra de su as presas, a liberdade d os pássaros e
d os peixes qu e eles tinham captu rad o, e proibia
matar tod o animal d oméstico, é certamente bem
mais honroso ainda, nas discu ssõ es e nas rivalida-
d es qu e instigam os homens, ser u m inimigogene-
roso, ju stoe leal, reprimir seu s mau s impu lsos, bai-
xos e perversos, depreciá-los, a fim de ficar inabalá-
vel nas relaçõ es com os amigos, e abster-se de todo
preju ízo contra eles. Escau ro, inimigo d e Domício,
instau rou u m processo contra ele. Um servidor de
Domícioveioprocu rá-lo, antes qu e ocorresse ove-
red icto, parecendo ter para revelar-lhe algu m fato
qu e este não conhecia. Escau ro não o d eixou pro-
nu nciar u ma ú nica palavra, fez qu e odetivessem e
omand assem a seu senhor51. Catãoacu sava Mu rena
d e trama política. Enqu anto recolhia as provas, as
pessoas, segu ndo o costu me, acompanhavam-no
para observar seu s atos e nãoparavam d e lhe per-
gu ntar se ele tinha a intençãode fazer naqu ele d ia
algu ma investigaçãorelativa à acu sação. Se respon-

20
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

dia pela negativa, retiravam-se plenamente confian-


tes. Era como dar-lhe u ma demonstração manifesta
doconsiderável conceitoqu e se tinha de su a probi-
dade. Mas há u m testemu nhoainda maior e omais
belode todos: é qu e, qu andonos habitu amos a ser
ju stos mesmo para com nossos inimigos, ficamos
certos de qu e jamais seremos acu sados de inju stiça e
de má-fé para com nossos íntimos e nossos amigos.

Prestar homenagem ao mérito de seus inimigos


é prestar homenagem ao seu próprio mérito e
habituar-se a não ver com inveja a superioridade
de seus amigos. É preciso sermos generosos com
nossos inimigos, a fim de virmos a sê-lo, com mais
prazer e mais assiduidade, com aqueles que
amamos. Em suma, os inimigos são um exutório
para o mal e um modelo para o bem.

10. Mas pois qu e, segu nd o Simô nid es, “tod a coto-


via pou pu d a d eve ter seu penacho”52, e qu e tod a
natu reza hu mana comporta em si mesma rivalid a-
d e, ciú me e inveja “qu e corteja os visionários”53,
não seria prestar a si mesmo u m med íocre serviço
aprend er a se libertar d essas paixõ es, lançand o-as
sobre seu s inimigos, e d esviar, por assim d izer, seu
fétid o escoamento54 para longe d e nossos compa-
nheiros e d e nossos íntimos. É o qu e parece ter
compreend id ou m homem políticod e nome Demo;
apó s u ma revolu çãoqu e tinha trazid ootriu nfod e

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

seu s partid ários, aconselhou -lhes não banir tod os


os cid adãos qu e tinham professadoopiniõ es contrá-
rias, mas pou par algu ns deles, “para qu e”, dizia, “não
começássemos a qu estionar com nossos amigos qu an-
d onos tivéssemos livradode todos os nossos adver-
sários”. Paralelamente, se extingu irmos em nó s essas
paixõ es, excitando-as contra nossos inimigos, impor-
tu naremos menos nossos amigos. Com efeito, não
é preciso “qu e o oleiro qu eira mal ao oleiro”55, se-
gu nd o Hesíod o, nem “cantor ao cantor”; e não é
precisotambém sentirmos inveja d e u m vizinho, d e
u m parente, d e u m irmão“apressad oem fazer for-
tu na” e qu e encontra a prosperid ad e. Mas se não
tens nenhu m meio d e libertar tu a alma d as d ispu -
tas, d as invejas, d as rivalid ad es, habitu a-te a sentir
mord ed u ras apenas d o su cesso d e teu s inimigos.
Ergu e contra eles od ard od e tu a amargu ra, amola-
o e agu ça-o. De fato os bons jard ineiros, com a
intençãod e embelezar rosas e violetas, plantam em
su a proximid ad e alhoe cebolas qu e atraem a su bs-
tância cu jo mau cheiro e amargor pod eriam preju -
d icá-las. Domesmomod o, qu and ose lançam sobre
u m inimigosu a inveja e su a maldade, serena-se dian-
te d os amigos e sente-se menos angú stia com seu
su cesso. É aind a por essa razão qu e gostamos d e
competir com nossos inimigos em gló ria, poder, pro-
veitos honestos, sem nos limitarmos a esse d efinha-
mentod od espeito, se eles têm algu mas vantagens
a mais qu e nó s, e empenhand o-nos em u ltrapassá-
los em vigilância, em energia laboriosa, em tempe-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

rança e em au tocontrole, à semelhança de Temísto-


cles qu e dizia qu e a vitó ria de Milcíades em Maratona
nãoodeixava d ormir56. Aqu ele qu e se crê u ltrapas-
sad o pelo seu inimigo no foro, nas fu nçõ es pú bli-
cas, na gestãod os negó cios d oEstad o, ou ju ntod e
seu s amigos e d os pod erosos, d eixa-se arrastar ao
rancor e aocompletod esencorajamento, em vez d e
agir e ostentar rivalid ad es: para terminar, ele soço-
bra na ociosid ad e estéril d o homem invejoso! Ao
contrário, aqu ele qu e não fica cego d iante d e u m
inimigoexecrável, mas su bmete a u m exame eqü i-
tativo su a vid a, seu s costu mes, su as palavras, seu s
atos, reconhecerá qu ase sempre qu e essa su periori-
d ad e, invejad a por ele pró prio, provém d a rapid ez,
d a previd ência e d a sabed oria d a cond u ta d e seu
ad versário. Então, para ser igu al a este em amor d a
gló ria e dobelo, ele red obrará os esforços e lançará
para longe a ind olência e a moleza.

Os vícios dos inimigos tornam nossas


virtudes mais caras.

11. Se, aocontrário, é por lisonjas, artifícios, corru p-


çõ es ou traiçõ es qu e nossos inimigos parecem ter
conqu istado, na corte dos príncipes e no governo,
u m pod er legítimo e escandaloso, não nos afligire-
mos com seu crédito; e será antes u ma satisfação
para nó s comparar su a condu ta com a nossa pró pria

23
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

ind ependência, e u ma vida pu ra, isenta de censu ras.


Com efeito, “todooou roqu e está sobre a terra e sob
a terra tem menos valor qu e a virtu de”57, diz Platão,
e deve-se ter sempre no espírito estes versos de
Só lon:

“Pelos bens domu ndotrocar a virtu de?


Não, jamais!”58

Acrescentarei: “nem pelas aclamaçõ es com qu e


nos incensam os parasitas no palco d a vid a, nem
pelas honrarias e preeminência nos círcu los d e eu -
nu cos, d e d evassos e d e sátrapas aoserviçod os po-
tentados”. Com efeito, nada é invejável, nada é belo,
se nasce d a d esonra. Mas, pois qu e “oamor é cego
para oqu e ele ama”59, comod iz Platão, e vistoqu e
nossos inimigos nos fazem bem mais sofrer a torpe-
za d ovíciopor seu s pró prios d esregramentos, não
d evemos d eixar estéreis nem oprazer qu e nos d ão
seu s erros, nem od esgostolú gu bre qu e seu s bons
êxitos excitam em nó s; em conseqü ência, apoiemo-
nos nesse du ploexemplopara nos tornarmos melho-
res qu e eles evitandosu a perversidade, e para rivali-
zar com seu s su cessos sem imitar su as maldades.

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DA MANEIRA DE DISTINGUIR
O BAJULADOR DO AMIGO
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O amor-próprio é o começo da bajulação,


prática irreligiosa por excelência.

1. Qu andou m homem dá sem cessar, em palavras,


provas de amor-pró prio, meu caro Antíoco Filopa-
po1, Platão observa qu e todos o descu lpam; entre-
tanto esse sentimento, acrescenta ele, entre u ma
pletora de vícios mu itod iferentes, contém u m mu ito
importante qu e impede qu e ele tenha sobre si
mesmo u m ju lgamento íntegro e imparcial. “Com
efeito, oamante é cegoa respeitodoqu e ele ama”2,
a menos qu e tenha aprendido, por u m estu doespe-
cial, a habitu ar-se a apreciar e procu rar o belo, de
preferência aoinatoe aofamiliar. Noseioda amiza-
de eis qu e se abre aobaju lador u m vastocampode
ação: nossoamor-pró prioé para ele u m terrenode
acesso inteiramente propício à investigação sobre
nó s; por cau sa desse sentimento, cada u m d e nó s é
o primeiro e o maior adu lador de si pró prio, não
hesitandoem confiar nobaju lador estranhode qu em
espera ter a aprovaçãopara confirmar su as crenças

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

e desejos. Com efeito, aqu ele qu e é acu sad ode gos-


tar d a baju laçãonãopassa de u m homem perd ida-
mente enamoradode si3, qu e, pela paixãoqu e a si
mesmo dedica, deseja e crê possu ir todas as qu ali-
d ad es; ora, se odesejoé natu ral, a crença é, entre-
tanto, arriscada e reclama bastante circu nspecção.
Mas, su pond o-se qu e a verdade seja d ivina e seja,
segu nd oPlatão, oprincípio“de todos os bens para
os d eu ses e de todos os bens para os homens”4, o
baju lador está mu itoarriscadoa ser inimigodos deu -
ses e sobretu do do deu s Pítico, pois não d eixa de
estar em contradição com o “conhece-te a ti mes-
mo”, ilu dindocada u m qu antoà su a pró pria pessoa
e tornando-ocego, noqu e diz respeitoa si mesmo,
e às virtu des e aos vícios qu e lhe concernem, pois
torna as primeiras imperfeitas e inacabad as, os ou -
tros, totalmente incu ráveis.

O bajulador, esse parasita das naturezas


nobres, está atento aos reveses da sorte.

2. Se nessas cond içõ es obaju lador, comoqu alqu er


ou tra corja, atacasse ordinariamente ou essencial-
mente as natu rezas vu lgares e medíocres, seria menos
temível, e mais facilmente nos defenderíamos d ele.
Mas, assim comoos vermes penetram de preferência
nas madeiras tenras e odoríferas, da mesma maneira
sãoos coraçõ es generosos, honestos e bondosos qu e
acolhem obaju lador e onu trem, qu andose prende

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

a eles. Nãoé tu do: comodisse Simô nid es, “a criação


dos cavalos nãosu põ e u ma Zacintomas terras fér-
teis”5; assim a baju lação evidentemente não acom-
panha os indigentes, os anô nimos ou os desprovi-
dos d e recu rsos, mas faz qu e periclitem e se d es-
tru am as casas e as empresas importantes, chegan-
domesmo, com freqü ência, a derru bar as realezas e
os impérios. Assim, não é u ma qu estão irrisó ria a
exigir apenas u ma migalha de previdência oesprei-
tar su as manobras para apanhá-la em flagrante e
imped i-la de preju dicar e de tornar su speita a ami-
zade. Os parasitas, com efeito, afastam-se dos mori-
bu ndos e abandonam os cad áveres em qu e se coa-
gu la osangu e de qu e se nu trem; qu antoaos baju la-
dores, eles desdenham orelacionamentocom oqu e
existe d e árid oe glacial, mas, sedu zid os pela gló ria
e pelo pod er, fartam-se disso e fogem o mais d e-
pressa possível, qu andoa roda da fortu na mu da de
posição6.
Mas deve-se evitar esperar até a realizaçãodessa
experiência, qu e é inú til, ou , antes, preju dicial e
perigosa: é triste, qu ando chega o momento de re-
correr a seu s amigos, perceber qu e nãosãoamigos
e qu e nãoé possível trocar u m coraçãodesonestoe
pu silânime por u m coraçãosinceroe constante. Ora,
oamigoé comopeças de moeda: é precisopô -loà
prova antes de recorrer a ele, e nãoesperar qu e seja
esse recu rso qu e nos desilu da7. Com efeito, não é
apó s ter sidoenganado, mas precisamente para não
sê-lo, qu e devemos pô r à prova e desmascarar oba-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

ju lador; sem issoteremos a mesma sorte qu e aqu eles


qu e degu stam antecipadamente venenos mortais e só
ju lgam seu efeitoà cu sta de su a saú de e su a vida8.
De fato, nãolou vamos esses impru d entes assim
como não aprovamos aqu eles homens9 qu e, admi-
tind opor princípioqu e u m amigodeve u nicamente
bu scar ohonestoe oú til, crêem, qu andose d á pro-
va d e amenidade nas relaçõ es com as pessoas, qu e
se recebe imediatamente a acu saçãode ser baju lad or.
Um amigo não poderia ser nem d u ro, nem intratá-
vel, e nãoé a acrimô nia nem a au steridade qu e fazem
a nobreza da amizade. Aocontrário, essa d ignidad e
mesma e essa beleza qu e a caracterizam consistem
em su a doçu ra e em seu s encantos.

“É pertodela qu e as Graças e oDesejohabitam”10,

aliás nãoé somente para os infelizes, comod iz Eu -


rípides,

“qu e é doce, fitandoseu amigo, encontrar seu s olhos”11;

mas a amizade acrescenta tantoprazer e encantoaos


su cessos qu anto tira sofrimento e embaraços dos
reveses. E, segu ndod isse Eveno, assim comoofogo
é o melhor dos condimentos12, d a mesma maneira,
mistu rando a amizade à vida, a divindade espalhou
brilho, doçu ra e ternu ra por toda a parte em qu e a ami-
zade colabora com oprazer. Com efeito, se a amiza-
d e não mostrasse nenhu ma condescend ência em

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

su a relaçãocom oagradável, seria difícil compreen-


der por qu e obaju lador procu raria insinu ar-se entre
nó s através dos prazeres. Mas, de fato, a exemplo
do ou ro falso ou do metal de baixo qu ilate, esses
su ced âneos dobrilhoe das cintilaçõ es d oou rover-
dad eiro, o baju lador, imitando a doçu ra e a boa
vontad e doamigo, cu ida de parecer sempre diverti-
doe expansivo: nãose opõ e a nada, jamais contra-
diz. Nãose deve, então, desde qu e algu ém nos lou -
ve, su speitar de qu e deseja nos baju lar, pois o elo-
gioé tãoconveniente para a amizade qu antoa cen-
su ra nomomentooportu no. Digomais: u m excesso
de acrimô nia ou de azedu me não se concilia nem
com a amizad e nem com a u rbanidad e. Aocontrá-
rio, qu andoa benevolência conced e com liberalida-
de e solicitu d e os elogios devidos aobem, recebem-
se pacientemente e sem tristeza admoestaçõ es e
reprimendas plenas de franqu eza, qu e são ou vidas
com confiança e acolhidas com reconhecimento, na
convicçãode qu e sãonecessárias, pois qu e vêm de
u m homem qu e lou va tão prazerosamente qu anto
censu ra contra su a vontade.

É difícil distinguir do amigo o hábil bajulador.

3. “É, portanto, d ifícil”, pode dizer algu ém, “d istin-


gu ir d oamigoobaju lador”, se nem oprazer nem o
elogio são o critério distintivo entre eles, pois em
matéria de amabilidades e pequ enas liberd ad es a
baju laçãoevidentemente vai mais longe qu e a ami-
zade; responderemos: Por qu e então? Nãoé u m tra-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

balhode fô legoir noencalçodoverdadeirobaju la-


d or, d aqu ele qu e sabe exercer seu ofíciocom talen-
to, comohomem hábil, e nãoprodigalizar esse no-
me, como faz a maior parte dos homens, a esses
“parasitas”, a esses “papa-jantares” ou a essas pes-
soas qu e, como dizia algu ém, fazem ou vir su a voz
somente apó s a ablu çãodas mãos13? Essas pessoas,
não estamos inclinados a olhá-las como baju lado-
ras: oaviltamentode seu caráter manifesta-se desde
oprimeiroserviço, apó s oprimeirocopo, através de
algu ma pilhéria ou algu ma indecência. Teria sido
inú til, por exemplo, desmascarar Melântio, parasita
d e Alexandre de Feras, qu e qu ando lhe pergu nta-
vam de qu e maneira Alexandre tinha sid o apu nha-
lad o não se envergonhava de respond er: “com u m
golpe qu e lhe atravessou o flanco e qu e visava ao
meu estô mago”14; omesmoacontece com esses as-
sed iad ores15 qu e giram sem cessar em tornode u ma
mesa bem provida, e qu e “nem a chama, nem o
ferro, nem obronze poderiam afastar d e u m jantar”;
ou entãoainda com essas adu ladoras cipriotas qu e,
apó s terem passado pela Síria, foram apelid adas
escabelos16, porqu e vergavam a espinha para aju d ar
as esposas dos reis a su birem nocarro.

Os mais hábeis são os que sabem dissimular:


dificilmente são identificados.

4. Qu al é então o baju lador d e qu em se d eve d es-


confiar? Seria aqu ele qu e não qu er parecer nem se

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

confessar tal, aqu ele qu e nãoé jamais su rpreend ido


em fu rtos em volta das cozinhas, qu e nãoé apanha-
do d e improviso enqu anto mede as sombras e cal-
cu la a hora d ojantar, qu e nãocai mortod e bêbedo
na primeira ocasião? De fato, o verdadeiro baju la-
dor, na maior parte dotempo, cu ltiva a abstinência
ao mesmo tempo qu e a intriga: crê dever imiscu ir-
se em vossas atividades, qu er partilhar vossos segre-
dos; em su ma, desempenha seu papel de amigo
como trágico e não como bu fão17 ou ator cô mico.
Com efeito, diz Platão18, “o cú mu lo da inju stiça é
qu erer passar por ju stosem ser”. Deve-se igu almen-
te considerar qu e a mais perniciosa baju laçãonãoé
a qu e se mostra, mas a qu e se ocu lta, nem a qu e
diverte, mas a qu e é séria: pois ela torna su speita a
verd ad eira amizade, com a qu al acontece freqü ente-
mente confu ndir-se, se não se toma cu idad o. Gó -
brias, nu m dia em qu e persegu ia oMago, caiu nu m
cô mod oescu roe travou -se aí u m du eloárd u o; ora,
vendoqu e Dariose mantinha lá, na expectativa, gri-
tou -lhe qu e desferisse golpes, mesmo com o risco
de perfu rar os dois19. Mas nó s, qu e nãopodemos de
maneira algu ma adotar oprovérbiopereça o amigo
com o inimigo 20, se d esejamos arrancar dobaju lador
essa máscara de amizade qu e é para ele aparente-
mente consu bstancial, temos de temer sobretu do
dois riscos: repelir o ú til ao mesmo tempo qu e o
mau ou expor-nos a algu m dissabor, pou pandooob-
jetode nossa afeição. De fato, assim comode todas
as sementes selvagens qu e, na peneira, se acham
mistu radas aofru mento, as mais difíceis de separar

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

sãoas qu e se assemelham a ele por su a forma e seu


tamanho(vistoqu e nãocaem separadamente se os
orifícios da peneira são mu ito estreitos, e qu e pas-
sam com o resto, se as malhas são d emais flexí-
veis21), d a mesma maneira é mu ito d ifícil fazer dis-
tinção entre u ma e ou tra, a tal ponto a baju lação
qu er tomar parte em cada emoção, cad a movimen-
to, cada prática e cada hábitoda amizade.

Astúcias do bajulador.

5. A amizade é oqu e há de mais doce nomu ndoe


nada nos traz mais alegria; eis por qu e o baju lador
u sa dos prazeres para fins de sedu çãoe é ohomem
dos prazeres. É igu almente porqu e a vontade de
obsequ iar e de se tornar ú til caminha na esteira da
amizade (a pontode u m amigo, diz-se, ser mais in-
dispensável qu e o fogo e a águ a) qu e o baju lador,
entregando-se aos bons ofícios, se dedica sem cessar
a ostentar zelo, diligência e prontidão. O qu e fu nda-
menta antes de tu do a amizade é a identidade dos
regimes de vida e a semelhança dos costu mes22; e,
geralmente, a similitu de dos gestos e das aversõ es é
a primeira coisa qu e nos liga e nos prende, através
das sensaçõ es. O baju lador percebe-operfeitamente;
e, comou m objetoqu e se talha23, ele se transforma
e se modela, adaptando-se e conformando-se, por
imitação, àqu eles de qu em procu ra ganhar o cora-
ção. Flu tu ante em su a metamorfose e convincente
em su as imitaçõ es, ele poderia fazer pensar nesta

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

frase: “Não! Não és o filho de Aqu iles, mas o heró i


em pessoa.”24 Mas eis oqu e em toda artimanha é o
mais hábil: o qu e se chama, certamente, de lingu a-
gem franca ele observa qu e é a lingu agem caracterís-
tica da amizade, como se falaria da lingu agem pró -
pria de u ma criatu ra, enqu antoa falta de franqu eza
denota, segu ndo ele, indiferença e baixeza. E sem
negligenciar essa imitação das aparências, a exem-
plodesses cozinheiros talentosos qu e, para evitar a
repu gnância dos molhos adocicados, se servem de
u m condimento de su cos picantes e amargos, os
baju ladores afetam u ma sinceridade qu e nãoé nem
espontânea nem salu tar, qu e nos lança u m clarão
ameaçador, noespaçode u m franzir de sobrancelhas,
e só oqu e faz é afagar oamor-pró prio. Assim, a per-
sonagem dificilmente é su rpreendida e assemelha-se
àqu eles animais qu e, tendoa facu ldade de mu dar de
cor, tomam a da matéria ou do lu gar em qu e se
encontram. Mas, como o baju lador nos ilu de, como
se cobre com u m mantode aparência enganosa, ca-
be-nos desmascará-lo, assinalandoas diferenças qu e
ocaracterizam, e desnu dá-lo, a ele “qu e se enfeita”,
comodiz Platão, “de cores e formas de empréstimo,
na falta das qu e lhe sãopró prias”25.

A semelhança dos gostos está na origem


da amizade: o bajulador a dissimula.

6. Examinemos, pois, a qu estãodesde oinício. A fon-


te d a amizade, nó s o afirmamos, é geralmente u m

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

temperamentoe u ma natu reza qu e reagem em con-


cord ância, qu e apreciam atitu des e hábitos26 morais
d e mesmo valor e qu e se comprazem nas mesmas
ativid ades, nas mesmas qu estõ es, nos mesmos di-
vertimentos. É a propó sitodissoqu e se d iz:

“O velhoaovelhopor seu s discu rsos sabe agradar,


e a mu lher à mu lher, e a criança à criança,
odoente aodoente; e, qu andooindigente
encontra seu semelhante, sente menos su a miséria.”27

Sabendo28 qu e é no prazer advindo de objetos


semelhantes qu e as relaçõ es da amizade e da afeição
têm su a origem, obaju lador trata primeirode aproxi-
mar-se de cada u m por esse meioe de se instalar a seu
lado, a exemplo daqu ele qu e aproveita o espaço de
algu mas pastagens para domesticar u m animal selva-
gem29. Adianta-se insensivelmente fingindoter as mes-
mas atividades, os mesmos lazeres referentes a disci-
plinas idênticas, os mesmos cu idados, os mesmos mo-
dos de vida, depois ele se imbu i dissoaté qu e oou tro
largu e mão, se deixe amansar e aceite sem pesar su a
mãoacariciante. Ele nãocessa de censu rar tu dooqu e
ju lga desagradável aoou tro, ocu paçõ es, maneiras de
vida, indivídu os; e apresenta-se, pelocontrário, como
lou vador doqu e faz odeleite de su a vítima, mas seu
elogio, qu e nãocai na moderação, soçobra sobretu do
na hipérbole e noencantamentoentu siasta. Em ú ltimo
lu gar, ele reforça as admiraçõ es e as antipatias qu e
finge ter, atribu indo-as mais à razãoqu e à paixão.

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Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 37

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

Inconstante e volúvel, tal é o bajulador.

7. Como então desmascará-lo? E por qu ais matizes


distingu ir aqu ele qu e nãoé nem se tornou nossose-
melhante, e entretantoqu er passar por tal? Primeiro, é
preciso examinar se seu s princípios são du ráveis e
inabaláveis; se ele se compraz sempre com as mes-
mas coisas, e se as aprova; enfim, se su a vida é regra-
da, e dirigida nu m mesmoe ú nicoplano, comocon-
vém ao qu e procu ra, gu iado por seu livre-arbítrio,
u ma amizade apoiada na conformidade dos costu mes
e dos caracteres, pois tal é overdadeiroamigo. Qu an-
toaobaju lador, comohomem cu ja psicologia nãotem
consistência, ele leva u ma vida apoiada na exigência
de u m ou troe nãona su a pró pria exigência; e é na
imitação desse ou tro qu e se acomoda e se modela;
por isso, longe de ser simples e u no30, é mú ltiplo e
variado, inconstante comou m flu idoqu e é transvasa-
do e qu e, passando de u ma forma para u ma ou tra,
mu da de contornos e de configu raçãosegu ndooreci-
piente qu e orecebe. O macaco31 empenha-se em imi-
tar ohomem e deixa-se apanhar qu andose agita e se
saracoteia em su a presença; qu antoaobaju lador, ele
engana os ou tros e os apanha na armadilha de u m
mimetismoqu e, longe de ser u niforme, oleva a can-
tar e a dançar com u m, ou a lu tar e cobrir-se de poei-
ra com oou tro. Se qu er agradar àqu ele qu e só gosta
de caça e de cães, segu e oseu rasto, qu ase bradando
comoFedra:

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“Sim, estou impaciente, ó grandes deu ses, por atiçar


[com a voz
e instigar minha matilha contra cervos em desespero!”32

De fato, nãose importa com a caça, é ocaçad or


qu e ele persegu e e qu er prender em su a red e. Se
ele persegu e em compensaçãou m jovem letradoe
estu d ioso, nãod eixa mais os livros, su a barba d esce
até aos pés, seu ú nicocu idadoé ostentar obu rel e
a ind iferença do filó sofo33, tem sem cessar na boca
os nú meros e os triângu los retângu los d e Platão.
Mas se se apresenta por su a vez u m indolente, be-
berrãoe, além disso, rico,

“Entãooju diciosoUlisses se despojou d e seu s


[andrajos”34,

obu rel é arremessado, a barba é escanhoad a como


u ma seara estéril. Já só se cu ida de baldes para refri-
gerar, taças, risos nos passeios e escárnios contra os
filó sofos. Assim, diz-se, qu ando Platão chegou ou -
trora a Siracu sa, e a mania inveterada d a filosofia se
tinha apoderadod e Dionísio, opalácioestava toma-
d o pela poeira qu e u ma mu ltidão d e geô metras
amadores levantava; mas, depois qu e Platão caiu
em d esgraça e qu e Dionísio, enfastiad oda filosofia,
tornou a cair em su a paixão do vinho, das mu lhe-
res, das frivolidades e da libertinagem, todos os seu s
cortejadores, metamorfoseados como por u m filtro
d e Circe, retornaram à ignorância, à negligência e à

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

estu pid ez. Tal foi igu almente a condu ta d esses mes-
tres na baju laçãoe d esses demagogos35 cu jomode-
loincontestável foi Alcibíades: em Atenas, ele repre-
sentava os trocistas, criava cavalos, e levava u ma
vida cheia de jovialidade e elegância; na Lacedemô -
nia, tinha a cabeça rapad a, u sava u m mantogastoe
tomava banhos frios; na Trácia, gu erreava e entrega-
va-se à bebida; e, qu ando chegou à corte de Tis-
safernes, rendeu -se à volú pia, à efeminaçãoe à jac-
tância! De tod a maneira, ele baju lava opovoe obti-
nha os favores de todos, identificando-se com eles e
adaptando-se a seu s costu mes. Bem diferentes fo-
ram Epaminondas e Agesilau ; embora tivessem esta-
doem contatocom u m grand e nú merod e homens,
cid ades e costu mes, permaneceram fiéis a seu estilo
pessoal, na arte de se vestir, em seu regime alimen-
tar, em seu s hábitos lingu ageiros e em seu mod ode
vida. Da mesma maneira, Platãofoi em Siracu sa tal
qu al na Academia, e perante Dionísio tal qu al pe-
rante Díon.

Como discernir o bajulador: primeiro indício de


reconhecimento, as variações.

8. Mas é mu ito fácil reconhecer as metamorfoses


desse polvoqu e é obaju lador36: é precisoqu e a pró -
pria pessoa afete inconstância, censu randoogêne-
rode vida qu e antes lou vava e aceitando, comosob o
impériod e u m sú bitoentu siasmo, ativid ades, com-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

portamentos, maneiras de falar qu e desaprovava.


Ver-se-á efetivamente qu e ele nãotem nada de cons-
tante, nada qu e lhe seja particu lar, e qu e nãoé atra-
vés doprisma de u ma afeiçãopessoal qu e ama ou
odeia, qu e se alegra ou se aflige; aocontrário, ver-
se-á qu e reflete, como u m espelho, a imagem das
paixõ es, dos comportamentos e ativid ades de ou -
trem. Qu eixas-te de u m amigoem su a presença? Ele
é capaz de responder por exemplo: “Tard aste em
d esmascarar esse indivídu o; qu antoa mim, antes já
me desagrad ava!” Mas se, inversamente, mu d as de
opiniãoe ocobres de elogios então, por Zeu s, obje-
tará impetu osamente: “Compartilho tu a satisfação,
felicito-te por essa criatu ra e faço-onomeu pró prio
nome, pois tenho plena confiança nele!” Falas em
mu dar de vida, por exemploem deixar a vida polí-
tica pelo repou so e pela tranqü ilidade: “Há mu ito
tempo”, diz ele, “pensei qu e devíamos nos afastar
d otu mu ltoe da malevolência.” Mas pensas em lan-
çar-te d e novo na carreira política, em retornar ao
foro? Comoteu ecoele diz: “Eis sentimentos dignos
d e ti; o ó cio não é sem encanto, concord o, mas é
pou coglorioso, e aviltante!” É preciso, então, dizer
logoa u m tal indivíd u o:

“Vejo-te, estranho, diferente de há pou co!”37

Qu e devofazer de u m amigoqu e segu e tod os os


meu s movimentos e qu e opina sem cessar de acor-
d o comigo: minha sombra nesse particu lar faz isso

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

melhor qu e ele. Qu eroalgu ém qu e procu re comigo


a verd ade e me aju de a decidir. Aí está, portanto,
u ma d as maneiras de reconhecer obaju lad or.

Segundo indício: o bajulador confunde


todos os valores morais.

9. Mas, vizinha dessas tentativas de identificaçãocom


su as vítimas, há u ma ou tra diferença domesmoesti-
loqu e é precisoobservar: overdadeiroamigonãoé
u m imitador patente de tu do o qu e nos concerne,
nem u m lou vador arrebatado: lou va somente orefe-
rente aomelhor. E comodiz Só focles ele é feitopara

“compartilhar nossoamor, mas nãonossoó dio”38,

e, grandes deu ses, para compartilhar conosco su -


cessos dignos e u m amor dobelo, sem ser por isso
o cú mplice de nossos erros e nossas fraqu ezas. E,
entretanto, qu em sabe se – fatocorrente em casode
oftalmia – u m flu xocontagioso, resu ltante da convi-
vência com ou tras pessoas e da vida em comu m, não
vos encherá a contragosto de mau s hábitos e erros.
Assim, os íntimos de Platão, peloqu e se diz, imita-
vam seu dorsoarqu eado, os de Aristó teles faziam-se
gagos à semelhança dele, e os dorei Alexandre incli-
navam a cabeça e falavam com voz rou ca na conver-
sação. É bem verdade qu e algu ns indivídu os se pau -
tam à porfia e de maneira inconsciente pelos costu mes

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

e maneira de viver daqu eles qu e freqü entam. Mas,


qu antoaobaju lador, ele é inteiramente semelhante
aocamaleão, qu e pode assu mir todas as cores exce-
to a branca; e, se não lhe é possível chegar a u ma
exata parecença nos domínios dignos de su a obsti-
nação, nãodeixa de imitar tu dooqu e é vil. A esse
respeito, os pintores sem talento, cu jopincel é inca-
paz d e reprodu zir os belos traços, detêm-se na mi-
nu ciosa representaçãodas ru gas, efélides e cicatrizes.
À semelhança d esses, obaju lador finge reprod u zir a
intemperança de seu modelo, su a su perstição, su a
có lera, su a aspereza para com os domésticos, su a des-
confiança contra os familiares e os pró ximos, pois
su as inclinaçõ es natu rais olevam espontaneamente
aovício, e ele nos imita de propó sitonomal, para
parecer, ainda menos, qu e pensa censu rar-nos por
isso39. Com efeito, todoaqu ele qu e nãose prende a
u m id eal de virtu de é su speitode odiar e condenar
os erros de seu s amigos: su speita qu e cau sou sozi-
nha a perda e a ru ína total de Díon no espírito de
Dionísio, de Sâmio no de Filipe, d e Cleô menes no
d e Ptolomeu . Mas o baju lador qu e qu er ser seme-
lhante a nó s, e mais ainda parecê-lo, sabe agradar-
nos e ganhar nossa confiança. Apó ia-se noqu e cha-
ma seu inteirodevotamentoa nãocensu rar ovício
e a simpatizar conoscoe partilhar nossas afinid ad es
em todas as coisas. Os adu ladores, portanto, não
qu erem ficar alheios nem mesmoaoqu e é involu n-
tário ou casu al. E, qu ando fazem su a corte aos

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

doentes, fingem sofrer as mesmas doenças, simu lan-


do vista fraca ou difícil au dição, se os qu e eles fre-
qü entam são qu ase su rdos ou não vêem absolu ta-
mente nada. Assim, os baju ladores de Dionísio,
qu and osu a vista começou a enfraqu ecer, and avam
aos encontrõ es entre eles e, à mesa, d erru bavam os
pratos. Algu ns vãomais longe notrabalho: qu erem
transformar-se até aoâmagoda alma e impregnar-se
das mais íntimas e secretas paixõ es dos homens qu e
baju lam. Informados de u ma infelicid ade conju gal
ou d e desavenças com filhos ou domésticos, logo,
sem pou par a si mesmos, eles se lamentam da aflição
qu e lhes cau sam seu s pró prios filhos, su a mu lher, seu s
parentes e seu s amigos, e fazem novas censu ras, sob
a forma d e confidências. A semelhança, com efeito,
consolida a comu nidade dos sentimentos e, depois de
ter d e algu ma maneira recebidogarantias, faz-se aos
baju ladores algu ma confissão secreta; desd e então
u m relacionamentose estabelece entre os interessa-
dos e teme-se perder a confiança. De minha parte
conheçou m baju lador qu e repu diou su a mu lher sob
opretextode qu e seu amigotinha mandadoembora
a su a. Mas, comocontinu ava a vê-la secretamente e
a receber su as visitas, su a artimanha foi descoberta:
foi a mu lher doamigoqu e a desvendou . Assim, era
precisoconhecer mu itomal obaju lador para pensar
qu e os jambos segu intes lhe convinham mais qu e ao
carangu ejo:

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“todoseu corponãoé senãoventre e seu s olhares


[perspicazes
penetram em toda parte; ele rasteja com seu s dentes”40;

pois aí está oretratodoparasita, oretrato

“d e u m desses amigos de frigideira e d e pó s-refeição”,

comod iz Ê u polis41.

Terceiro indício: ele se deixa ultrapassar.

10. Mas, qu anto a esse assu nto, atenhamo-nos à


parte d o nosso tratado qu e lhe é reservad a. Há to-
d avia, em matéria d e imitação, u m artifíciod obaju -
lad or qu e não d evemos omitir: embora imite algu -
ma boa qu alidade, deixa à su a vítima a preeminên-
cia, pois os verdadeiros amigos não são animados
mu tu amente de nenhu ma rivalid ade, d e nenhu m
ciú me: qu aisqu er qu e sejam seu s su cessos, igu ais
ou d esigu ais, eles não concebem nem impaciência
nem orgu lho. Mas o baju lador, sempre atento a
d esempenhar apenas u m papel secu ndário, nãoas-
pira jamais à igu aldade e confessa qu e é u ltrapassa-
d oe precedid oem tu d o, excetonomal, pois então
ele d ispu ta oprimeirolu gar. Estais de mau hu mor?
Ele se diz melancó lico. Sois su persticioso? Ele se d iz
fanático. Estais enamorado? Ele está lou cod e amor.
“Ristes inoportu namente?”, diz ele, “mas eu , qu ase

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

rebentei de rir.” Nas qu alidad es lou váveis, é ocon-


trário: ou ve-se dele qu e “é rápid o na corrida, mas
vó s tendes asas”, “sabe manejar seu cavalo, mas ele
nãoé nada em comparaçãoa u m centau rotal como
vó s”, “tenhoinspiraçãopoética”, dirá ele, “e compo-
nhosu ficientemente bem ohemistíqu io,

mas nãotenhooraioqu e é pró priode Zeu s”42,

pois ele pensa ao mesmo tempo valorizar o gosto


de seu interlocu tor, imitando-o, e prestar homena-
gem a seu talento su perior, cedendo-lhe a palma.
Tais sãoos traços distintivos qu e separam obaju la-
dor doamigo, nomu ndoda imitação.

O objetivo da bajulação: agradar a todo o custo.

11. Mas, vistoqu e oprazer, comofoi dito, é u m fa-


tor comu m (pois ohomem de bem se regozija com
seu s amigos tantoqu antoocorru ptocom seu s baju -
ladores), tentemos fazer também neste pontoa dis-
tinção. Ela consiste em relacionar o prazer com o
seu fim. Considera o problema sob este ângu lo: o
perfu me e oantídototêm ambos u ma d oce fragrân-
cia, com a diferença de qu e u m é bom apenas para
agrad ar aoolfato, enqu antooou tro, essencialmen-
te pu rgativo, calorífero ou cicatrizante, é apenas
casu almente odorífero. Ou troexemplo: os pintores
obtêm por mistu ra cores e tintas brilhantes, mas há

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

também drogas medicinais cu joaspectoé brilhante


e cu ja cor nada tem de desagrad ável. Onde está
então a diferença? Evidentemente será a finalid ade
d e seu empregoqu e nos fará distingu i-los. Da mes-
ma maneira, os atrativos qu e presidem à amizade,
além d e comportarem nobreza e u tilid ade, têm u m
encantoqu e é comosu a flor, e ora u m divertimento,
a mesa e ovinho, ora, por Zeu s, orisoe as conver-
sas galhofeiras serviram por assim dizer de condi-
mentopara assu ntos honestos e sérios! É oqu e faz
u m poeta d izer:

“Deleitavam-se u ns com os ou tros em assu ntos alegres”43

“qu e ou tra desavença, pertu rbandonossos dois coraçõ es,


teria alteradoas doçu ras de u ma amizade tãoterna?”44.

Mas, qu antoaobaju lador, seu trabalho, seu ú ni-


co propó sito é preparar e tramar cau telosamente
u m gracejo, real ou verbal, por prazer ou para o
prazer. Em resu mo, ele crê dever fazer tu dopara ser
agradável, enqu anto o amigo, realizando sempre o
necessário, é freqü entemente agradável, mas é tam-
bém cau sa de d esprazer45. Nãoqu e deseje ser desa-
grad ável, mas, se vê qu e é melhor sê-lo, também
nãorecu a nem diante dessa necessid ad e.
Com efeito, assim comou m médico, nocasode
ser ú til, aplica oaçafrãoe onardo46 e, por Zeu s, pres-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

creve mu itas vezes banhos agradáveis ou u ma ali-


mentação saborosa, mas por vezes deixa de lado
esses remédios e vos enche de castó reo47

“ou de pó lio48 malcheiroso, de odor fétido”,

ou vos obriga a beber eléboroem pó sem ter a in-


tençãod e vos preju dicar, tantocomonãotinha d e-
sejadoantes vos agradar, pois qu e, nu m casocomo
noou tro, ointeresse de vossa saú de é qu e otinha
gu iad o; da mesma maneira, oamigosaberá às vezes
te prod igalizar elogios e discu rsos gentis para te
cond u zir aobem, comofaz este:

“Teu cro, criatu ra amada, filhode Télamon, chefe d e


[gu erreiros,
arremessa assim tu a lança...”49,

ou este ou tro:

“Comopoderia te esqu ecer, depois disso, caroUlisses?”50

E, qu ando hou ver necessidad e de corrigir, de


atacar com u ma palavra incisiva e u ma franca liber-
dad e cheia de solicitu de, ele nãohesitará em d izer:

“Filhode Zeu s, Menelau , estás perdendoa razão?


Nãoé a ti qu e convém tal lou cu ra...”51

Há mesmocertas ocasiõ es em qu e oamigou ne


ogestoà palavra: assim Menedemo52, vend oqu e o

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

filho d e seu caro Asclepíades levava u ma vida de


d evassidãoe libertinagem, recondu ziu -oà pond era-
ção, fechando-lhe su a porta e recu sando-lhe ocu m-
primento. Da mesma maneira Arcesilau proibiu a
entrad a em su a escola a Báton, qu e, nu ma comédia,
tinha inseridou m versosatíricocontra Cleantes; foi
preciso o perdão concedido por este ú ltimo assim
comooarrependimentodoofensor para qu e se efe-
tu asse a reconciliação53. Com efeito, se se faz sofrer
aqu ele qu e se ama, é precisoqu e seja em seu inte-
resse e sem destru ir a amizade por palavras desa-
grad áveis. A censu ra mord az não deve passar de
u m remédiodestinadoa salvar e a proteger aqu ele
d e qu em se cu ida. É por isso qu e, como u m mú si-
co, oamigosabe, em vista dobeloe d oú til, modi-
ficar otom de seu instru mento: ora afrou xa as cor-
d as, ora as aperta; ele é, com freqü ência, agradável,
é sempre ú til. Mas obaju lador, qu e tem apenas u ma
cord a, a doprazer e doencantamento, está acostu -
mad oa fazê-la ressoar sozinha. Nãoconhece osen-
tidod e u m atode oposição, de u ma palavra contra-
d itora; escravo das vontades de ou tro, fala e canta
sempre em u níssono. Xenofonte conta qu e Agesi-
lau 54 recebia com mu ito gosto os elogios daqu eles
qu e na ocasiãopodiam censu rá-lo. Pod emos assim
crer nas doçu ras e nas complacências d e u m amigo
qu e pode, se necessário, oferecer-nos resistência e
d esagradar-nos. Mas consideremos su speita a ami-
zad e d e u m homem qu e somente se aplica a baju lar
nossas tendências e nossos prazeres, sem ter jamais

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

a coragem d e nos censu rar. E, na verdad e, d eve-se


ter presente no espírito essa tirada de Lácon qu e,
ou vindo u m panegirista do rei Carilo, exclamou :
“Pois qu ê! Ele, qu e nem mesmocom os perversos é
ríspid o, pode ser u m homem de bem?”

Perigo dos louvores que dão ao vício


o nome da virtude.

12. Diz-se qu e o moscardo penetra nas orelhas dos


tou ros e a carraça nas dos cães. Os ambiciosos têm
seu inseto, qu e é obaju lador. Ele apodera-se da ore-
lha d eles, lisonjeando-os; aí se fixa; e d ificilmente é
arrancadopara ser esmagado. É, portanto, necessário,
em semelhante caso, recorrer a u m ju lgamentocu ida-
dosoe esclarecidopara distingu ir se ele lou va nossas
açõ es ou nossa pessoa. Reconhecer-se-á qu e olou -
vor é atribu ídoaoato, se concerne a au sentes mais
qu e a presentes, se emana de pessoas qu e também
têm a mesma vontade ou omesmoideal, se nãonos
concerne a nó s em particu lar, mas se se dirige também
a todos qu e agiram de maneira semelhante, se não
visa a pessoas qu e mu dam sem cessar de opinião, e en-
fim eis ocritériodecisivo, se temos nó s pró prios cons-
ciência de nãolamentar oqu e nos acarreta esses e-
logios, de nãonos envergonharmos e de nãopreferir-
mos ter feitoou d itoocontrário, pois trazemos em
nó s u m tribu nal diante d o qu al nó s nos ju lgamos,

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

cad a u m por su a vez. Ora, esse tribu nal nãoad mite


oelogio: ele é impassível, inacessível, e obaju lad or
não pode de repente aí prepond erar. Mas não sei
como acontece qu e os homens, em su a maioria,
qu ando são infelizes não dão ou vidos às consola-
çõ es, e se deixam sobretu dolevar por seu s compa-
nheiros de infortú nioe lamentaçõ es; e, qu and oco-
metem u m erroe faltam a algu m dever, aqu ele qu e
por su as críticas e censu ras procu ra inspirar-lhes u m
arrependimentosalu tar parece a seu s olhos inimigo
e acu sador. Se lhes dirigimos, ao contrário, lou vo-
res, se os felicitamos por su a condu ta, eles desfa-
zem-se em abraços e tomam essa aprovaçãopor u m
sinal d e benevolência e amizade. Sem dú vid a, os
qu e estãosempre prontos a elogiar ou aplau d ir u ma
açãoou palavra isolada, seja ela séria ou divertid a,
e acerca de não importa qu al assu nto, essas pes-
soas, digo, são nocivas apenas no presente e de
imed iato. Mas qu andopor esses elogios se atinge o
caráter, e qu and o as baju laçõ es chegam a atacar,
ju stocéu , opró priomoral, faz-se entãocomoaqu e-
les escravos qu e rou bam trigo, não qu ando ainda
está na espiga, apó s a ceifa, mas na parte qu e é d es-
tinad a à semeadu ra. De fato, sãoas d isposiçõ es da
alma, isto é, a semente de nossos atos, princípio e
fonte d e vida, qu e os baju ladores corrompem, d an-
d oaos vícios os nomes das virtu des. Nas sediçõ es e
nas gu erras, escreve Tu cídides, “os homens, para
qu alificar os atos, chegaram a modificar arbitraria-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

mente o sentido habitu al das palavras. A au dácia


insensata é tid a por coragem e generoso d evota-
mento aos seu s, o oportu nismo pru d ente, por co-
vard ia dissimu lada sob aparências dignas, e a mo-
deração, por máscara da pu silanimidade; ohomem
de espírito, bastante abertopara abarcar os aspectos
de u ma situ ação, era ju lgadoinaptoà ação”55.
Na boca do baju lador, e é o qu e se deve saber
descobrir se se qu er tomar cau tela, a prod igalidad e
chama-se índ ole liberal, a covardia u ma precau ção
sensata, a instabilid ade ligeireza, a mesqu inharia u m
gostod a med ida, a paixãoamorosa ternu ra e sensi-
bilid ade; ele chama coragem o qu e é có lera e d es-
dém, benevolência o qu e é apenas hu mild ad e e
vileza. Comodiz Platãoem algu ma parte, oenamora-
dose faz obaju lador dos seres amad os56. O homem
de nariz achatado, diz ele, tem u ma fisionomia
atraente; onariz adu ncoé pró priode u m rei; as car-
naçõ es escu ras dãooar máscu lo; a tez pálida é a dos
filhos dos deu ses; qu antoa essas epidermes qu e rece-
bem oepítetode “cor de mel”, sãopu ra invençãodos
amantes qu e se qu erem deixar enganar e procu ram
dar u m belonome à palidez doobjetoamad o. Ora,
aqu ele qu e se deixa persu adir de qu e é beloqu an-
doé feio, e grand e qu andoé pequ eno, nãopoderia
ser enganado, por mu ito tempo, com u ma pequ ena
ilu são, cu jopreju ízoé insignificante e facilmente repa-
rável. Mas qu e terríveis conseqü ências tem comu -
mente esse lou vor qu e, acostu mando-nos a olhar nos-
sos vícios como virtu des, a nos regozijar com isso

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

em vez de nos afligir, tira aomal a vergonha qu e ele


natu ralmente d eve inspirar. Esse lou vor cau sou a
ru ína completa dos sicilianos por qu alificar a cru el-
d ad e de Dionísioe de Fálaris de “ó diopelos mau s”
e de “eqü id ade”. Ocasionou a perda d o Egito cha-
mandode piedad e e devoçãoa efeminaçãode Pto-
lomeu , su a su perstição, seu s berros fanáticos, os
ru íd os estridentes d as danças e dos tamborins. Qu a-
se derru bou e destru iu , nos ú ltimos sécu los, oImpério
Romanotãoadmirável, designandocomoeu femismo
o lu xo de Antô nio; su as libertinagens, su as festas
grandiosas comod ivertimentos agrad áveis e alegres
enqu antose tratava dos excessos dopod er e da for-
tu na. Qu e é qu e aju stava à boca de Ptolomeu forbéia
e flau ta, qu e é qu e preparava para Nerou ma cena
trágica e ovestia bizarramente pondo-lhe máscara e
cotu rnos? Não era o lou vor dos baju ladores? Não é
ele qu e aniqu ila a maior parte dos soberanos, qu e
sedu z, fazendo-os crer, à força dos qu alificativos
lau dató rios, qu e sãoApolos qu andocantarolam u ma
melod ia, Dionísios qu ando se embriagam, e Hér-
cu les se se exercitam na lu ta?

Os artifícios dos bajuladores para


disfarçar os elogios.

13. É , portanto, qu ando o baju lador nos ad u la qu e


devemos desconfiar. Ele nãooignora e é mu itohábil
em evitar as su speitas; se tenta ganhar u m homem

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

abastad oou u m camponês cobertode u ma espessa


peliça, ele u sa toda zombaria comoEstrú tias cu mu -
land o Bias57 d e graçolas e insu ltand o bru talmente
su a estu pidez sob a forma de elogios:

“Bebeste mais qu e orei Alexandre”58,

“Ah! eu rio, pensandona taça doCipriota”59.

Ele põe os elogios na boca dos outros.

Mas se ele tem de se defrontar com pessoas mais


su tis, qu e sãoprecavid as e estãoatentas aoespaço
e aoterreno, nãod irige nenhu m elogiofrontal mas
leva-opor longos d esvios, aproximand o-se d e su as
vítimas aosabor d e u m cercoimperceptível, como
se faz para d omesticar u m animal obstinad o, to-
cand o-o com a ponta d os d ed os. Ora, à maneira
d os orad ores, ele emprega a prosopopéia e põ e
vossolou vor na boca de ou tro, precisandocom qu e
prazer extremoencontrou na praça estrangeiros ou
respeitáveis velhos qu e, cheios d e ad miração por
vosso mérito, evocavam vossos nu merosos belos
atribu tos. Ora, fingind o relatar u ma leve calú nia
qu e ele pró prioterá inventad od e propó sitocontra
vó s, comose a tivesse ou vidode u m terceiro, chega
solícito para saber em qu e tempo, em qu e lu gar

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

pu d estes cometer u m tal ato. E, apó s u m d esmen-


tid o pelo qu al efetivamente espera, aproveita a
ocasiãopara vos apanhar nas red es d e seu elogio.
“Eu estava, com efeito, ad mirad o d e qu e tivesses
falad omal d e u m amigo, tu qu e nem aos teu s ini-
migos mald izes; ou qu e tu te tivesses apropriad o
d e bens alheios, tu qu e és tãolargamente pró d igo
d os teu s!”

O bajulador censura as virtudes que não


têm aqueles que ele adula.

14. Ou tros baju lad ores imitam os pintores qu e fa-


zem sobressair os efeitos d e lu z d e u m qu ad ro, ju s-
tapond o-lhes sombras projetad as e cores escu ras:
criticand o, estigmatizand o, d ilacerand oe rid icu lari-
zand o os valores contrários, consegu em, sem se
trair, celebrar e fomentar secretamente os vícios dos
qu e baju lam. Com depravados, censu ram a tempe-
rança como sinal d e ru d eza; d iante d os homens
cú pid os e sem escrú pu los, qu e se enriqu eceram por
meios cond enáveis e criminosos, qu alificam como
pu silânime e incapaz d e agir ohomem mod erad oe
contente com su a situ ação. Se se acham com seres
ind olentes, ociosos, “qu e evitam ocentrod as cid a-
d es”60, nãose envergonham d e d efinir a ad ministra-
ção d o Estad o como u ma ingerência fastid iosa e
infru tu osa nos negó cios d as pessoas, e d e qu alificar
a ambição d e miragem estéril. Acrescentemos qu e,

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

para baju lar o orador, menosprezam violentamente


o filó sofo, e ju nto d as mu lheres d esavergonhad as
d isfarçam-se d e galantes, d izend od as mu lheres vir-
tu osas, exclu sivamente ligad as a seu s esposos, qu e
elas têm a alma ru d e e qu e são insensíveis a Afro-
d ite. Mas o cú mu lo d a d u plicid ad e é para os baju -
lad ores não pou par nem a si pró prios, e qu e, a
exemplod os lu tad ores qu e se abaixam para d erru -
bar seu ad versário, eles passam d iscretamente d a
censu ra d e seu s pró prios d efeitos aoelogiod e su a
vítima: “No mar, sou mais med roso qu e o ú ltimo
dos escravos; diante das provaçõ es, renu ncio; se me
ofend em, enfu reço-me”, d iz o baju lad or, qu e se
apressa em acrescentar: “Ele nãose amed ronta com
nad a, nad a omagoa, é u m homem à parte, su porta
tu d ocom d oçu ra, tu d ocom equ animid ad e.” Se al-
gu ém, tend ou ma alta concepçãod e seu profu nd o
bom sensoe qu erend opassar por firme e au stero,
afetandou ma retidãoinfrangível, diz a cada instante:

“Noelogioe na censu ra, evitai tod oexcesso,


Rebentode Tideu ...”61,

nãoé por aí qu e nossohábil baju lador oatacará. Ele


mu d ará de tática com relaçãoa u m tal homem: é so-
bre su as pró prias qu estõ es, diz ele, qu e vem pedir-
lhe conselho, comoa u m espíritocu joju lgamentoé
mais esclarecido; sem dú vida, ele tem ou tros ami-
gos com qu em está bem mais ligado; mas é preciso
absolu tamente qu e se dirija aobaju lad or, embora o

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

importu ne. E acrescenta: “Onde se pod e achar u m


recu rso, qu ando se tem necessidade de u ma opi-
nião? Em qu em depositar su a confiança?” Depois,
tendoou vidoa resposta doou tro, exclama, sem nada
examinar, qu e recebeu u m orácu loe nãou m conse-
lho. Se notou qu e nosso homem se atribu i algu ns
méritos literários, entrega-lhe u ma de su as composi-
çõ es, pedindo-lhe qu e a leia e a corrija. Algu ns cor-
tesãos de Mitrid ates, vendoqu e ele amava a medici-
na, apresentavam-lhe seu s membros para qu e ele os
ampu tasse ou os cau terizasse. Era u ma baju lação
qu e resid ia nogesto, nãona palavra, pois aos olhos
d omonarca a confiança qu e lhe testemu nhavam era
u ma homenagem à su a habilid ade.

“Comosãonu merosas as formas dod ivino!”62

Essa categoria de elogios qu e nãose reconhecem


reclama precau çõ es mais delicadas, e nãose podem
desmascará-los eficazmente a não ser qu e se dêem
expressamente ao baju lador conselhos e recomen-
daçõ es absu rdos, e se ofereçam correçõ es despropo-
sitadas. Se ele não faz nenhu ma objeção, aprova
tu do, aqu iesce a tu do, e a cada proposiçãoexclama:
“Bem! Perfeito!”, reconhecer-se-á mu itofacilmente

“qu e fingindoqu erer receber osinal d e acordo


ele pensa, nofu nd o, nu m ou trointeresse”63;

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

qu er u nicamente lou var ou trem e exacerbar su a vai-


dad e.

Louvor mudo.

15. Ou tra coisa ainda: algu ns apresentaram a pintu ra


como u ma poesia mu da. Paralelamente, há certos
elogios qu e dizem respeito a u ma baju lação mu da,
pois assim comoos caçadores enganam mais segu -
ramente a caça se parecem menos ocu pados em qu e-
rer caçá-la doqu e em prossegu ir seu caminho, gu ar-
dar os rebanhos ou lavrar, da mesma maneira os
baju ladores nu nca nos tocam mais vivamente por
seu s elogios doqu e qu andofingem nãonos lou var,
mas fazer ou tra coisa. Ceder seja seu leito à mesa,
seja seu assento a u m recém-chegado, interromper
seu discu rso, qu andose fala noconselhoou notem-
plo, diante de u m homem rico desejoso de falar, e
ceder-lhe a tribu na e a palavra, é mostrar por seu
silêncio, bem mais energicamente qu e por todos os
protestos domu ndo, qu e altoconceitose forma de
su a excelência e de su a capacidade. É por issoqu e
se vê os baju ladores apoderar-se dos primeiros lu ga-
res, nas assembléias e nos teatros, não qu e se ju l-
gu em dignos de se apossar deles, mas com a inten-
çãode fazer su a corte aos ricos, levantando-se e lhos
cedendo. Nos conselhos e tribu nais, eles tomam de
chofre a palavra, depois se retiram, como em pre-
sença de oradores mais au torizados; e, por pou co

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

qu e seu contraditor seja influ ente, rico ou renoma-


do, adotam sem dificu ldade a opiniãocontrária.

A derrota voluntária de suas próprias


opiniões: o bajulador inclina-se
diante da riqueza e do poder.

Eis então a melhor ocasião de desmascarar esse


gênerode concessõ es e de deferências fingidas qu e
seu s au tores concedem nãoà experiência, à virtu de
ou à idade, mas à riqu eza e ao crédito. O pintor
Apeles replicou a Megábisoqu e, sentadopertodele,
qu eria falar de desenho e de sombras: “Vês estes
meninos qu e tritu ram a terra ocre de Lelos? Enqu an-
toestavas calado, eles te prestavam atençãoe admi-
ravam tu a pú rpu ra e tu as jó ias de ou ro. Mas, desde
qu e começaste a falar doqu e nãosabes, zombam de
ti.” A Creso, qu e, nu ma conversa, interrogava Só lon
sobre a felicidade, este ú ltimocitou , entre os exem-
plos de bem-estar su perior, u m obscu rocidadãode
nome Telos, assim como Cléobis e Bíton64. Mas os
baju ladores, nãocontentes de celebrar a felicidade e
a fortu na dos reis, dos ricos e dos notáveis, colocam-
nos acima dorestodos homens por su a inteligência,
habilidade e virtu des em todos os gêneros.

16. E, depois disso, algu ns resmu ngam d iante das


teorias dos estó icos qu e dizem qu e o sábio u ne à
riqu eza a beleza, a nobreza e a soberania. Mas, qu an-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

dou m homem é rico, os baju ladores oproclamam,


ao mesmo tempo, orador, poeta, e, se ele o qu er,
pintor, flau tista, hábil corredor, atleta65 vigoroso; dei-
xarão d e propó sito qu e os derru be na lu ta ou os
preced a na corrida, comoCrísonde Hímera, qu e se
deixou distanciar qu ando corria contra Alexandre;
mas orei, qu andoopercebeu , manifestou su a indig-
nação. A ú nica coisa, dizia Carnéades66, qu e os filhos
dos reis e d os ricos aprend em convenientemente é
montar a cavaloe nada mais, pois, afirmava ele, se
nod ecu rsode seu treinamentooprofessor, cobrin-
do-os de elogios, os baju la tantoqu antoseu concor-
rente na lu ta qu ando se deixa espancar, o cavalo,
incapaz de distingu ir u m simples particu lar de u m
notável, ou u m rico de u m pobre, e bem longe de
se preocu par com isso, sacode d a sela todoaqu ele
qu e não sabe montar. Mas qu e patetices e tolices
dizia Bíton67, afirmando qu e “se se devesse tornar
u m campo fértil e produ tivo a poder de elogios,
seria preferível, evidentemente, agir assim a empe-
nhar-se em cavá-lo. Em conseqü ência, nãoseria d es-
propositad o lou var u m homem, se os cu mprimen-
tos fossem ú teis àqu eles qu e os prodigalizam e se o
reconhecimentodeste ú ltimonãofosse infru tu oso”.
Mas u m camponãocorre oriscode se deteriorar sob
os lou vores, enqu anto elogios falsos e não mereci-
dos podem cegar, levando até à lou cu ra, e perder
aqu ele qu e por eles é enganado.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

A pseudofranqueza do bajulador
é uma arma perigosa.

17. Nada mais sobre esse ponto; para prossegu ir-


mos d e modoordenado, vejamos oqu e se refere à
franqu eza da lingu agem. Qu andoPátroclocingiu a
armad u ra de Aqu iles e condu ziu seu s cavalos ao
combate, absteve-se somente de tocar na lança do
Pélione renu nciou a u sá-la; seria precisoda mesma
maneira qu e o baju lador, enfarpelando-se, para se
d isfarçar, com as insígnias e atribu tos da amizade, se
abstivesse de tocar nu ma ú nica coisa para simu lá-la:
refiro-me à franqu eza lingu ageira, essa arma d istin-
tiva d a amizade, essa

“arma pesada, arma forte, e só lida”68.

Ora, u ma vez qu e, pelotemor d e serem traíd as


no meio d os risos, d o vinho, d os sarcasmos, d as
brincad eiras, essas pessoas tentam elevar su a arti-
manha até à afetação d e u ma altiva severid ad e,
exercem su a baju laçãocom u m ar triste, e mistu ram
a su as ad u laçõ es as opiniõ es e as censu ras, investi-
gu emos aind a, sem omiti-los, os ind ícios d essa táti-
ca. Vê-se, nu ma coméd ia d e Menand ro, u m falso
Hércu les apresentar-se em cena trazendou ma clava
qu e, longe d e ser compacta e só lid a, tem tu d o d e
factício, inconsistente e oco. Da mesma maneira a
franqu eza d obaju lad or, se posta em prova, se reve-
la branda, desprovida de peso e energia. Prod u z o

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

mesmoefeitoqu e os travesseiros d as mu lheres, os


qu ais parecem su stentar as cabeças e opor algu ma
resistência, mas, pelocontrário, cedem e ficam mais
baixos precisamente como essa franqu eza d e má
qu alid ad e qu e nãopassa d e ênfase vã, falsa e enga-
nosa: ela se eleva, amplia-se, d e sorte qu e aotermo
d e su a qu ed a chega ao nad a, fazend o su cu mbir
aqu ele qu e aí repou sava com confiança.

A verdadeira franqu eza, aqu ela qu e caracteriza a


amizad e, empenha-se em cu rar as falhas; e a d or
salu tar e conservadora qu e cau sa se assemelha aos
efeitos d omel qu e, embora d oce e proveitoso, cor-
ró i as ú lceras e tem a virtu d e de pu rificá-las. Ela será
para nó s oobjetode u ma mençãoespecial.

A franqueza estigmatiza ordinariamente


falhas secundárias.

O baju lador, ao contrário, ostenta altivamente


azedu me, acrimô nia e inflexibilidade em su as rela-
çõ es com os ou tros. É intratável com os d omésticos,
enérgico em assinalar as falhas de seu s parentes e
amigos, e, com respeitoaos estranhos, nãoé anima-
do d e nenhu ma admiração, de nenhu m respeito,
mas somente de desprezo; rebeld e à misericó rdia,
calu niador, procu ra exclu sivamente excitar os ou -
tros à có lera. Ele qu er alcançar u ma repu taçãode ini-
migod ovício, a d e u m homem qu e “cederia a u ma

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

tal franqu eza apenas contra a vontade; ele nu nca


d isse nada; nu nca fez nada por complacência”. E,
contu do, d epois disso finge ignorar as faltas reais,
as faltas capitais, e nada saber disso. Mas fica fu rio-
soqu andose trata de se manifestar sobre os peca-
d ilhos leves e exteriores. Vê ele u m vaso ou u m
mó vel deslocados, u m interior malcu id ad o, negli-
gência com relação à cabeleira ou vestimenta, u m
cãoe u m cavalonãoconvenientemente tratad os? É
por tais objetos qu e revela com violência e veemên-
cia seu pretendidozelo. Mas parentes desprezad os,
filhos abandonados, u ma esposa ind ignamente tra-
tad a, pró ximos desdenhados, u m patrimô niodilapi-
d ad onãooafetam. Fica mu doe tímido. É comou m
professor d e ginástica qu e deixa oatleta embriagar-
se e entregar-se à devassidão, mas qu e se faz exi-
gente no u so de u ma garrafinha ou de u m estrigil;
ou comou m professor de gramática qu e repreende
u ma criança por tabu inhas e u m estilete e nãopare-
ce ou vir seu s barbarismos e solecismos. Com efei-
to, o baju lad or, d iante de u m orad or lamentável e
rid ícu lo, é homem capaz de nãose prender aofu n-
d odod iscu rso, mas de pô r em qu estãosu a voz e de
censu rá-loacerbamente sob pretextode qu e “estra-
ga su a laringe bebendogelados”. Se é encarregado
d e ler u ma obra abominável, qu eixa-se d e qu e o
papel é demais espessoe trata ocopista d e escrevi-
nhad or negligente. Assim, os cortesãos d e Ptolo-
meu , vendoseu gostopelas letras, dispu tavam com
ele sobre u ma qu estãode vocabu lário, u m hemistí-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

qu io ou u ma qu estão de histó ria e prolongavam a


discu ssãoaté aomeioda noite, mas, noqu e tocava à
su a cru eldade, arrogância, seu tamborim e festas ini-
ciáticas, nenhu m deles ou sou censu rá-lo69. Semelhante
a u m ciru rgiãoqu e, achando-se diante de u m doente
qu e sofre de abscessos e fístu las, empregasse su a lance-
ta para cortar-lhe os cabelos e as u nhas, obaju lador
apenas u sa su a franqu eza com relação a partes qu e
nãoexperimentam afliçãonem dor.

A franqueza pode também cair


no elogio dissimulado.

18. Ou tros, aind a mais inábeis qu e os precedentes,


se d ed icam a tornar agradáveis a franqu eza e as
censu ras. Assim, Ágis, o Argivo, vend o Alexandre
dar a u m bu fãopresentes consideráveis, exclamou ,
nu m ímpetode despeitoe descontentamento: “Qu e
indignidade absu rda!” O rei voltou -se para ele colé-
ricoe pergu ntou -lhe oqu e acabava de dizer: “Con-
fesso”, respondeu Ágis70, “qu e não posso ver sem
raiva e sem indignaçãoqu e todos vó s, filhos de Zeu s,
vos alegrais igu almente em escu tar os qu e vos baju -
lam e d ivertem; de fato, Héracles se deliciava com
não sei qu ais Cércopes; Dionísio, com Silenos; e
pessoas da mesma qu alidade podem ser vistas com
créd ito ju nto de vó s.” Tendo Tibério vindo u m d ia
aosenado, viu -se u m de seu s baju ladores levantar-se:
“Como somos cidadãos livres”, disse ele, “temos o

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

d ireitode falar livremente, sem nenhu ma reticência,


sem nenhu ma reserva sobre oqu e d iz respeitoaos
interesses pú blicos.” Esse começoatraiu a atençãoe
osilênciod e todos os senadores e de Tibério; “Cé-
sar”, d isse ele, “ou ve omotivode qu eixa qu e todos
temos contra ti, e sobre oqu al ningu ém tem a cora-
gem de te falar abertamente. Negligencias d emais o
cu id ado com tu a pessoa, comprometes tu a saú de,
extenu as-te com preocu paçõ es e trabalhos, por nó s,
sem d escansar noite e dia”. Comoele continu ava a
proferir u ma qu antidade de palavras desse gênero,
oretor CássioSevero, dizem, exclamou : “Essa fran-
qu eza matará este homem!”71

Ele censura o contrário das falhas verdadeiras.

19. Sãoas baju laçõ es de menor conseqü ência; mas


aqu elas de qu e vou falar sãoperigosas e fatais se se
d irigem a homens pou cohabitu ados a refletir; con-
sistem em acu sá-los de paixõ es e defeitos contrários
aos seu s. Por exemplo, Himério, obaju lad or, saben-
d oqu e u m ricoateniense era de u ma avareza só rdi-
d a, censu rava-o por su a prodigalidad e e su a negli-
gência, chegando a lhe dizer: “Um d ia morrereis
miseravelmente de fome com vossos filhos.” E, ao
contrário, àqu ele qu e é perd u lário e gastador, eles
d irigem censu ras sobre su a mesqu inharia e avareza,
como fazia Tito Petrô nio72 a Nero. Se príncipes se
comportam com seu s sú d itos com rigor e cru eldade,

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

os baju ladores os intimarão a renu nciar a essa cle-


mência excessiva, a essa hu manidade inoportu na e
inú til. Assim ainda manobra aqu ele qu e, para baju -
lar u m tolo, u m poltrão, u m incapaz, finge resgu ar-
dar-se e ter medodele comode u m homem terrível
e decidid oa tu doempreender. Se u m invejoso, gos-
tandosempre de maldizer e censu rar, se d eixa levar
por acaso a fazer o elogio de u ma celebridade, o
baju lador toma à parte opanegirista e lhe faz gu er-
ra, como se tratasse de doença. “Lou vais”, diz ele,
“pessoas qu e não merecem: pois, enfim, qu em é
este homem, qu e fez ele, qu e disse d e tãobrilhan-
te?” Mas é principalmente qu ando o amor está em
jogo qu e o baju lador faz seu s maiores ataqu es e
inflama aqu eles qu e adu la. Se os vê zangad os com
seu s irmãos, cheios de desprezo por seu s pais, de
negligência por su a mu lher, evita dirigir-lhes re-
preensõ es ou censu ras e excita mais su a có lera: “Tu
nãosabes te fazer valer; é tu a cu lpa; acu ses somen-
te tu a obsequ iosid ad e e tu a hu mild ad e.” Mas se se
trata d e u ma cortesã, ou d e u ma mu lher casad a d e
qu em estamos enamorad os, e se sentimos u m pru -
rid o d e có lera ou d e d espeito, o baju lad or logo se
apresenta com su a franqu eza qu e ostenta u m gran-
d e brilho. Atiça u m fogojá mu itoard ente, abre pro-
cesso contra o enamorad o, acu sa-o d e não estar
apaixonad oe d e d ar nu merosas provas d e u ma in-
sensibilid ad e d esolad ora:

“Ó coraçãoesqu ecidode beijos tãoternos.”73

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Assim, os amigos de Antô nio, vendoqu e estava


apaixonadopela egípcia e a desejava ardentemente,
convenciam-node qu e era ela qu e estava enamora-
da dele, e censu ravam-lhe oqu e eles chamavam su a
frieza e seu desdém. “Eis u ma mu lher”, diziam-lhe,
“qu e abandona u m tãogrande reinoe a mais delicio-
sa maneira de vida, qu e estraga su a beleza segu in-
d o-te nas gu erras, qu e aceita opapel e a atitu de de
u ma concu bina,

Tu abrigas em teu coraçãopensamentos inflexíveis74,

e zombas de su as afliçõ es.” Ora, Antô nio, lisonjeado


pela acu saçãode inju stiça, nãopercebia qu e, pare-
cendoqu erer corrigi-lo, se acabava por pervertê-lo.
Uma tal franqu eza pode ser comparad a às mordidas
d as prostitu tas, qu e despertam e ativam as sensa-
çõ es volu ptu osas por meio do qu e se creria dever
ser doloroso. Da mesma maneira qu e ovinhopu ro,
reméd io soberano aliás contra a cicu ta, se mistu ra-
d oa ela se torna ineficaz contra a violência d ove-
neno, porqu e este é levadoprontamente aocoração
pelo calor qu e se desenvolve, assim esses homens
perversos, sabendo qu e a franqu eza constitu i u m
au xílio poderoso contra a lisonja, baju lam precisa-
mente por meio da franqu eza. Eis por qu e Bias75
não respondeu adequ adamente a algu ém qu e lhe
pergu ntava qu al era de todos os animais o mais
nocivo: “Entre os animais ferozes”, disse ele, “otira-
no; entre os d omesticados, o baju lador.” Teria sido

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

mais verdadeiro dizer qu e há baju lad ores domesti-


cados qu e qu erem partilhar apenas d e nossos ba-
nhos e de nossa mesa; mas oqu e leva até aos qu artos,
até ao gineceu , como tentácu los, su a ind iscrição,
su as calú nias, su a malícia, esse é selvagem, feroz,
intratável.

O único meio de lutar contra o bajulador


é tomar consciência das próprias falhas.

20. Evidentemente há apenas u ma ú nica maneira de


proteção: é tomar consciência e jamais se esqu ecer
de qu e nossa alma é a sede de du as facu ldades; u ma
é dotada de sinceridade, beleza e razão, a ou tra, des-
provida de senso, é u m teatrode mentiras e violen-
tas paixõ es. Ora, u m amigoverdadeiroaconselha e
advoga em favor da melhor parte, a exemplo do
médico qu e se propõ e manter e fortificar a saú de,
enqu antoobaju lador, abraçandoa cau sa doirracio-
nal e dopassional, afaga-a e a excita e, peloatrativo
das volú pias qu e ele trata de lhe dar, desvia-a e a
leva a se su btrair aos poderes da razão. Há alimen-
tos qu e, sem au mentar a massa dosangu e e a inten-
sidade da respiração, sem dar vigor à medu la e aos
nervos, inflamam os ó rgãos genitais, debilitam e
deterioram a carne. Da mesma maneira obaju lador,
cu jos discu rsos sãoincapazes de fortalecer em nó s a
sensatez e a razão, sabe tão-só nos familiarizar com
as volú pias carnais, fazer nascer ardores desproposi-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

tados, excitar ociú me, su scitar a elevaçãoinsu portá-


vel e oca doorgu lho, acompanhar nossa afliçãocom
su as lágrimas ou , por calú nias e pressentimentos
contínu os, encher de azedu me, pequ enez e descon-
fiança u ma alma levada à malevolência, à baixeza e
à má-fé. Eis u ma artimanha pela qu al u m espírito
observador poderá facilmente reconhecê-lo, pois ele
sabe qu e obaju lador espreita, por assim dizer, opri-
meirogerme de nossas paixõ es com a intençãode aí
se insinu ar, e su a presença indefectível assemelha-se
à do tu mor qu e cresce sobre as u lceraçõ es ocu ltas
ou os ardores intensos da alma. “Estás encolerizado?
Castiga, ele vos dirá. Desejas algu m objeto? Compra-
o. Tens medo? Foge. Tens su speitas? Confia.” É, tal-
vez, difícil su rpreendê-lo nessas espécies de exalta-
çõ es cu ja violência e importância nos tornam su rdos
à voz da razão; mas, como o baju lador é sempre o
mesmo, oferecerá facilmente u m meiode agir sobre
ele nas pequ enas paixõ es. Se, por exemplo, temen-
doos efeitos da embriagu ez ou de u ma boa refeição,
hesitais em tomar u m banho ou em vos sentar à
mesa, u m amigovos reterá e vos recomendará a abs-
tinência e a restrição; o baju lador, ao contrário, ele
pró priovos arrasta aobanhoe vos faz servir algu m
novo prato, aconselhando-vos a não vos extenu ar
fazendodieta. Se vê qu e hesitais, por indolência, em
empreender u ma viagem, u ma travessia, ou em pra-
ticar u ma ação qu alqu er, ele vos dirá qu e não é
u rgente, qu e é preferível adiar o empreendimento
ou enviar ou tra pessoa. Se prometestes emprestar ou

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

dar dinheiro a u m de vossos amigos, e, aborrecido


por terdes assu midoocompromisso, estais envergo-
nhadode faltar à palavra, obaju lador fará inclinar a
balança do mau lado, pesará vossas resolu çõ es no
sentidode vossa bolsa, banirá opu dor qu e vos de-
tém, alegandoqu e as grandes despesas qu e fazeis, e
a necessidade de abastecer a mu ita gente, vos obri-
gam a serdes econô mico. Em conseqü ência, se so-
mos evidentemente conscientes de nossas ambiçõ es,
de nossas indelicadezas e de nossas covardias, é im-
possível qu e nãodesmascaremos u m baju lad or: é o
apologista infatigável d e nossas paixõ es, e odiscu r-
soem defesa delas ju stifica su a franqu eza. Mas, so-
bre essa qu estão, issoé su ficiente.

Os serviços prestados: reconhece-se o bajulador


por sua devoção obsequiosa.

21. Passemos agora às cortesias e aos bons ofícios.


Aí ainda obaju lador se dedica a confu nd ir e a d issi-
mu lar bastante a diferença qu e osepara d oamigo,
manifestando em tu do su a solicitu d e infatigável. A
cond u ta do amigo é, segu ndo Eu rípid es, simples
como u ma palavra de verdade, sem rod eios e sem
dissimu lação; mas, ontologicamente falando, a do
baju lador

“sabe remediar pela arte su a pró pria fraqu eza”76,

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

assim como por remédios nu merosos e, ju sto céu ,


excepcionais. Assim, u m amigoqu e vos encontra na
ru a passa, às vezes, sem d izer u ma palavra, ou sem
nad a ou vir de vó s; contenta-se em d ar e receber,
por u m olhar e u m sorrisoagradável, a demonstra-
ção de u ma benevolência recíproca, mas o baju la-
d or acorre precipitadamente e vos estend e d e longe
a mão; se oavistais e ocu mprimentais primeiro, ele
apresenta, para se descu lpar d e nãovos ter visto, as
testemu nhas e os ju ramentos. O mesmoacontece nos
negó cios: os amigos negligenciam com freqü ência
as qu estõ es acessó rias, porqu e nãoqu erem pô r em
su a condu ta u ma exatidão pu eril e ind iscreta, nem
se oferecer a prod igalizar todas as espécies de ser-
viços. Nosso homem, ao contrário, manifesta pre-
sença, é assíd u o, perseverante, infatigável e não
cede a ningu ém olu gar nem a ocasiãode vos pres-
tar assistência. Qu er ser u m “factotu m” e, se não
receber ordens, fica vivamente irritado, ou , melhor,
seu desalento e seu s protestos u ltrapassam todo
limite.

Promessas inúteis.

22. Em todos esses indícios ostensivos, os espíritos


sensatos podem reconhecer nãou ma amizade verda-
deira e sincera, mas a solicitu de afetada de u ma cor-
tesã qu e vos dá u m abraço hipó crita. Entretanto, é
primeiramente através da prestaçãode serviços qu e a

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

diferença se manifesta. Já se disse mu ito bem antes


de nó s. Eis comou m amigofaz u ma promessa:

“Se possofazê-lo, primeiro, se issojá foi feito, em


[segu ida.”77

O baju lador vos dirá:

“Tu dooqu e vos agradar: basta falar.”78

É ju stamente esse tipo de gente qu e os poetas


cô micos põ em em cena:

“Coloca-me, Nicô maco, diante d este soldado.


Verás se com chicotadas nãootornobem doce,
se nãotornoseu rostomais mole qu e u ma esponja.”79

Aquiescência servil.

Isso não é tu do: u m amigo não se associará a


nenhu m empreendimento, a menos qu e, consu lta-
doantes, tenha examinadoa qu estãoe contribu ído
para orientá-la no sentido do d ever e da u tilidade.
Mas o baju lador, mesmo qu ando lhe é permitido
examinar a qu estãoe discu ti-la, pensa somente em
se mostrar condescendente e em nos agrad ar e,
temend oser su speitode hesitaçãoou de escapad e-
la, mostra-se tão disposto, tão ardente como vó s,
em ver a realização de vossos desejos. Com efeito,
há bem pou cos reis ou ricos qu e dizem:

71
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“Qu e eu encontre u m mendigo, e, se ele qu er,


pior qu e u m mendigoqu e, por d evotamentoa mim,
vença seu medoe me fale d ofu ndod ocoração!”80

Mas, comoos trágicos, todos eles qu erem ter u m


corod e amigos qu e cantem com eles e u m au d itó -
rioqu e os aplau da. Eis por qu e a Mérope da tragé-
d ia d á este conselho:

“Escolhe comoamigos aqu eles qu e nãofazem


[concessão,
mas qu e u m ferrolhod efenda tu a corte
dos perversos qu e, para teu agrad o, incensam teu
[prazer.”81

Mas é ocontrárioqu e se faz comu mente: procu ra-


se fu gir dos qu e nãofazem nenhu ma concessãoem
seu s discu rsos e vos contradizem para defender vos-
sos interesses, enqu antoa esses vis impostores, qu e
só sabem agradar por baju laçõ es servis, se abre a
porta, e eles sãorecebidos nãosó sob seu teto, mas
ainda no seio de su as paixõ es e de su as qu estõ es
mais secretas. Entre esses confidentes, aqu ele qu e
ainda é inexperiente considera qu e nãotem odirei-
to e qu e é completamente indigno de dar su a opi-
nião sobre matérias tão importantes; qu ando mu ito,
seria oau xiliar ou oservidor. Mas omais astu toatém-
se a partilhar vossa irresolu ção, a franzir as sobran-
celhas, a menear a cabeça, gu ardando o silêncio.
Mas, se aqu ele qu e oconsu lta faz conhecer su a opi-

72
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

nião, ele exclama: “Por Hércu les, ganhaste de mim


por pou co: eu ia dizer a mesma coisa.” Os matemá-
ticos afirmam qu e as linhas, em conseqü ência de
su a abstração e d e su a imaterialidade, não pod em
cu rvar-se, estend er-se nem mover-se por si, e se-
gu em otraçado, oprolongamentoe omovimentodos
corpos cu jas arestas elas marcam. O mesmoaconte-
ce com obaju lador: tu osu rpreenderás sempre se-
gu ind o o fio de teu discu rso, de teu s sentimentos,
de tu as percepçõ es, e mesmo, na verd ade, de tu as
có leras. Nesses pontos pelomenos é bem fácil, por-
tanto, d istingu i-lo de u m amigo, e, mais ainda, na
maneira de prestar serviço.

Da maneira de obsequiar.

O d evotamento de u m amigo, como u m ser vi-


vo, contém qu alidades intrínsecas, mas evita sobre-
tu doa ostentaçãoe obrilho; e, a exemplodomédi-
co qu e mu itas vezes cu ra certos doentes sem qu e
eles saibam, o amigo presta-nos serviço por u ma
intervençãoou transaçãopru dentemente preparada
qu e ele deixa obeneficiárioignorar. Tal era ocará-
ter d e Arcesilau . Entre vários ou tros sinais, citarei
este: tendo u m d ia encontrado Apeles d e Qu ios
doente e nu ma total indigência, veio prontamente
revê-lo com vinte dracmas, e, sentand o-se à su a
cabeceira, disse-lhe: “Não vejo aqu i senão os ele-
mentos de Empédocles,

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

ofogo, a terra, a águ a, oéter pu roe leve82,

e qu e nãoestás mu itobem deitado.” Aomesmotem-


po, ajeitandootravesseiro, aí colocou por baixo, às
ocu ltas, a bolsa. E, qu ando a velha qu e o servia a
encontrou e, tendo-se admirado, avisou Apeles, disse
ele sorrindo: “É u ma su tileza de Arcesilau .” E d eve-
se crer qu e “sãosemelhantes a seu s pais”83 os filhos
qu e vos vêm em filosofia. Isso se verificou com
Lacid es, u m discípu lo de Arcesilau . Ele assistia u m
d ia com ou tros amigos à instru ção do processo de
Cefisó crates; oacu sad or pedia qu e ele apresentasse
seu anel, o acu sado deixou -o cair no chão sem
baru lho e Lacides, qu e o notara, pô s o pé sobre o
qu e constitu ía a ú nica prova e o escondeu ; Cefisó -
crates, absolvido, foi agradecer a seu s ju ízes; mas
u m deles, qu e tinha percebidoa manobra, pediu -lhe
qu e fosse agradecer a seu amigo e contou -lhe esse
rasgo de generosidade qu e Lacides tinha mantido
em segredo. É assim, creio, qu e os deu ses, em cu ja
natu reza está procu rar nos benefícios tão-somente o
prazer de obsequ iar, fazem bem aos homens sem
qu e percebam, gostam de lhes ser agradáveis e de
os comprazer em vista dopró prioato.
Em su a condu ta, obaju lador nad a tem d e ju sto,
verdadeiro, simples, liberal; sempre su ado, grita, agi-
ta-se, mod ifica su a fisionomia e mu ltiplica os sinais
d e pu ra aparência, qu e qu erem fazer crer nu ma
dedicaçãoú til, laboriosa e solícita. Ele assemelha-se
a u ma dessas pintu ras mu ito rebu scadas qu e qu e-
rem d ar a ilu sãoda vida por cores berrantes, ru ptu -

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

ras d e pregas, ru gas e traços angu losos, e vos im-


portu na contando minu ciosamente su as atividades,
pormenorizandoseu s passeios sem ru mo, seu s cu i-
dad os, os rancores qu e provocou , as dificu ld ades e
provaçõ es sem-nú meroqu e experimentou , de sorte
qu e somos tentados a lhe dizer: “Isso não valia a
pena!” Com efeito, u m benefíciocensu rad osu scita a
irritação, perde todo seu valor e torna-se imperti-
nente e intolerável. Ora, os d obaju lador, nomesmo
instante em qu e sãoprestados, parecem trazer em si
a censu ra e nos envergonham. Ao contrário, u m
amigoforçadoa dizer oqu e fez fala sem rod eios e
expõ e simplesmente o fato sem falar de si mesmo.
Os lacedemô nios enviaram aos habitantes de Es-
mirna a provisãode trigoqu e eles tinham reclamad o;
comoestes ú ltimos se su rpreenderam com essa ge-
nerosidade, seu s benfeitores lhes responderam: “Nada
fizemos d e extraordinário; com efeito, para reu nir
esse trigo, ordenamos simplesmente por u m d ecre-
toqu e os homens e os animais se privassem d e ali-
mentação du rante u m dia apenas.” Essa maneira
generosa de prestar serviço é tanto mais agrad ável
aos beneficiários qu antomais os d eixa crer qu e cu s-
tou pou cofazê-lo.

Os serviços prestados pelo bajulador


dispensam a moral.

23. Entretanto, nãoé somente pela ostentaçãood io-


sa d e seu s serviços ou pela prodigalidad e d e su as

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

promessas qu e se pode reconhecer obaju lador, mas


é sobretu d opelou so, bom ou mau , qu e faz deles e
por su a finalidad e, seja ela su bordinad a à u tilidad e
ou aoprazer. De fato, oamigonãodeverá segu ir a
opiniãode Gó rgias segu ndoa qu al é apreciável exi-
gir de seu amigo apenas serviços honestos e pres-
tar-lhe seu concu rso, mesmo em serviços d esones-
tos, pois ele qu er

“su stentar nossas virtu des, sem favorecer nossos vícios”84.

Afastar-se-á mais entãoseu amigod e tu d ooqu e


é inconveniente. E, se não se pod e persu ad i-lo,
pod e-se fazer-lhe objeção com esta ad mirável fó r-
mu la d e Fó cion a Antípatro: “Não pod erias ter em
mim u m amigoe u m baju lad or”, istoé, u m amigoe
u m inimigo. Deve-se, com efeito, aju d ar seu amigo
em seu s empreend imentos, mas não em seu s cri-
mes; d eve-se ser u m conselheiroe nãou m conspi-
rador, u m fiador, nãou m cú mplice, u m companheiro
d e infortú nio, sim, por Zeu s, mas nãou m coniven-
te nos erros. Visto qu e não convém partilhar com
seu s amigos a confid ência d e seu s crimes, comose
pod e preferir colaborar para qu e eles os cometam
e tornar-se seu companheirod e infâmia? Assim, os
laced emô nios, vencid os por Antípatro e negocian-
d oa su spensãod e hostilid ad es, propu nham aceitar
as med id as d e represálias mais severas contanto
qu e não tivessem nad a d e d esonroso. Tal é o ver-
d ad eiroamigo. É preciso, para vos prestar serviço,

76
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

fazer a d espesa, afrontar o sofrimento e o perigo?


Ele é tod o zelo e não alega jamais pretexto algu m
para recu sar. O qu e se exige d ele é d esonesto? Ele
d esiste e d ispensa-se d a participação.
Ao contrário, a baju lação, se se trata d e prestar
serviços penosos e arriscados, resiste e, se para ex-
perimentá-la tu a fazes ecoar, ela produ z, refu gian-
do-se atrás de u m pretexto, u m ru ído dissonante e
de má qu alid ade. Mas trata-se de serviços imorais,
vis, d esonrosos? Podes servir-te dela sem receiode
abu sar. Esmaga-a: esse tratamentonãolhe parecerá
du ronem ofensivo. Vês omacaco? Ele nãosabe nem
gu ard ar a casa comoocão, nem lavrar a terra como
oboi; mas su porta os gracejos, os insu ltos, e tolera
ser consid eradocomoobjetode brincadeira e zom-
baria. Assim é também obaju lador: incapaz de pô r
a serviço dos ou tros su a eloqü ência, su a bolsa ou
su a pessoa, inábil para todo trabalho e para toda
aplicação séria, pronto para agir em segredo, fiel
med ianeiroem casode paixãosecreta, rigorosona
recu peraçãode u ma prostitu ta, pontu al em saldar a
conta de u m banqu ete, diligente em ord enar u ma
refeição, propensoa amabilidades requ intad as para
com as cortesãs, inflexível e sem-vergonha, se rece-
be a ord em de expu lsar vossa esposa ou de tratar
ru demente vossos sogros. Em su ma, aí também não
é difícil apanhar em flagrante nosso homem: qu al-
qu er coisa infame e vergonhosa qu e se lhe qu eira
ordenar, ele está pronto a esforçar-se para agrad ar
aoqu e dá a ordem.

77
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

O bajulador procura afastar os


verdadeiros amigos.

24. Um exame das disposiçõ es do baju lador com


respeitoa nossas relaçõ es de amizad e será u m meio
infalível de reconhecer oqu e osepara doamigo. Aos
olhos d este ú ltimo, com efeito, nada é mais d oce
qu e partilhar com mu itas pessoas os sentimentos de
u ma benevolência recíproca; além d isso, ele não
trabalha sem cessar para qu e tenhamos mu itos ami-
gos e sejamos estimad os por todos os qu e nos
conhecem? Persu adidode qu e entre amigos tu d oé
comu m, ju lga qu e nada d eve ser tãocomu m como
os pró prios amigos. Mas o falso amigo, o amigo
bastard o e pérfid o, qu e só pode ocu ltar o agravo
qu e faz à amizade alterando-a comose faria com a
falsa moeda, pratica contra seu s semelhantes a inveja
qu e lhe é natu ral, e procu ra u ltrapassá-los em pilhé-
rias e tagarelice. Por pou co qu e u m su jeito valha
mais qu e ele, aocontrário, ele teme-oe assu sta-se,
não, por Zeu s, “porqu e irá a pé contra o carro
lídio”85, mas porqu e ao ou ro pu ro “ele não pod e”,
segu nd o disse Simô nid es, “opor o modesto chu m-
bo”. Igu almente, sentindoqu e, em comparaçãocom
u m amigo verdadeiro, só lido e de boa índole, se
reconhecerá como ele é frívolo, falso e trapaceiro,
d eixa-se confu ndir e age como aqu ele pintor qu e,
tend o feito u m péssimo desenho de galos, tinha
encarregadoseu escravode afastar para bem longe
d oqu adroos galos verdadeiros; nossohomem afas-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

ta os verdadeiros amigos e os impede d e se aproxi-


mar. Se nãoconsegu e, finge baju lá-los, envolvê-los,
extasiar-se com su a su perioridade, enqu anto em
segred o semeia contra eles calú nias qu e desperta
por seu s discu rsos. E qu ando esses cochichos co-
meçaram a envenenar a ferida, mesmoqu e oefeito
não corresponda imediatamente à su a expectativa,
o baju lador gu arda fielmente na memó ria o conse-
lho d e Medeio. Este homem pertencia ao coro de
baju ladores de Alexandre; tinha aí opostod e chefe
de orqu estra, de corifeu -mestre, qu e tinha conspira-
docontra as mais honestas pessoas da corte. Ord e-
nava então a seu s su bordinados atacá-las ou sada-
mente e atormentá-las a poder de maledicências,
afirmand o claramente qu e, qu ando a ferid a fosse
cu rada, a cicatriz da calú nia permaneceria. Foi assim
qu e ocoraçãode Alexandre, minadopor esses estig-
mas, ou mais exatamente por essa gangrena e esses
cancros, fez perecer Calístenes, Parmênione Filotas,
e se entregou sem reserva aos engodos de Ágnon,
Bagoas, Agésias, Demétrio, qu e oadoraram de joe-
lhos, o adornaram e o remodelaram à semelhança
de u m ídolobárbaro. Tal é opoder das complacên-
cias verbais, u m poder ainda maior em razãode se
dirigir evidentemente a homens qu e crêem ser os
maiores! Com efeito, alimentar sobre si as mais altas
idéias e experimentar aomesmotempoesse desejo
é dar ao baju lador crédito e razõ es de au dácia. De
fato, na terra os lu gares elevados sãode abordagem
e acesso difíceis para os empreendimentos hostis;

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

em compensação, a elevaçãoe oorgu lhoqu e osu -


cessoou u ma feliz natu reza dãoà alma são, se obom
sensolhe falta, u ma maravilhosa via de acessoà mes-
qu inhez e à baixeza.

Os riscos do amor-próprio.

25. É por issoqu e, noiníciodeste tratad o, recomen-


d ávamos qu e se extirpasse docoraçãooamor-pró -
prioe a presu nção. Pois bem, nó s orecomendamos
ainda agora pois é nossa boa opinião sobre nó s
mesmos qu e, lisonjeando-nos previamente, nos torna
mais vu lneráveis à baju laçãoexterior e para ela nos
prepara. Mas se examinarmos as mil falhas d e nossa
natu reza, dó ceis às inju nçõ es dodeu s e consideran-
doo“conhece-te a ti mesmo” comooconhecimen-
to mais importante a adqu irir, se refletirmos sobre
nossa edu caçãoe nossa instru çãoà vista dobem, e
se observarmos a imperfeiçãoe a confu sãod a mis-
tu ra qu e elas formam, tanto em nossa cond u ta co-
mo nos pensamentos e sentimentos, então nos de-
fenderemos das ciladas dos baju ladores. Alexandre,
para cair em si, dizia qu e su a inclinaçãopara osono
e para oamor, estados qu e ora rebaixavam su a no-
breza e ora oexpu nham à paixão, ofazia bem sentir
qu e ele nãoera deu s, embora lhe dessem onome.
Qu antoa nó s, considerandosem cessar nossas eter-
nas torpezas, misérias, insu cessos e erros, nó s nos
apanharemos, por assim dizer, em flagrante delito, e

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

issode maneira nenhu ma se u m amigonos cobre de


elogios e flores, mas se nos acu sa, se se exprime fran-
camente e nos critica qu ando, por Zeu s, agimos mal.

Da linguagem franca dos amigos verdadeiros.

Mas, em geral, há pou cos homens qu e têm cora-


gem de ser francos com seu s amigos e qu e nãopro-
cu ram de preferência lhes agradar. E, entre esses
eleitos, dificilmente encontrarás ainda aqu eles qu e
saibam u sar oportu namente a franqu eza, e não a
façam consistir em críticas e repreensõ es.

Do tato.

Acontece com a franqu eza qu e nãotem su cesso


omesmoqu e com certos reméd ios: ela aflige, ator-
menta inu tilmente e realiza com d or oqu e a baju la-
çãosabe nos tornar deleitável. Um elogiod escabido
vale tantocomou ma censu ra proferid a inoportu na-
mente: os dois preju dicam. Eis o motivo essencial
qu e nos faz dar oflancoaos baju ladores e nos tor-
nar su a presa: vamos nó s pró prios aoencontrod eles,
como a águ a qu e corre dos mais ru des declives e
dos solos menos movediços para as cavid ad es de
u m lamaçal! É preciso então qu e a lingu agem livre
seja temperada pela maneira de agir e qu e se su b-
meta às instâncias d a razão. Esta aliás exclu i a inten-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

sidad e viva demais da qu al a brilhante franqu eza


tem o segredo. Sem isso, repelidos e ferid os por
censores e acu sadores impenitentes, iríamos abri-
gar-nos à sombra d os baju ladores e procu rar refú gio
nu m lu gar em qu e a crítica é a coisa menos partilha-
d a d o mu ndo. Com efeito, é pelas virtu d es, meu
caroFilopapo, qu e se devem evitar os vícios, e não
pelos vícios contrários, como fazem essas pessoas
qu e crêem escapar à timid ez pela impu dência, à
ru d eza pelogracejo, e afastar-se tantomais d a indo-
lência e da covard ia qu antomais se aproximam da
petu lância e da arrogância. Algu ns, para nãoserem
su persticiosos, caem na impiedade; com receio de
serem estú pidos, tornam-se velhacos; e, por não
saberem corrigir seu caráter, torcem-nonu m sentido
oposto, como se faria com u m pedaço d e madeira
flexível. É u ma maneira mu ito inconveniente de
recu sar a baju lação ofender inu tilmente, e só pode
caber a u m homem grosseiro, estranho à benevo-
lência, escapar à baixeza e ao servilismo de toda
relaçãoamigável, sob a aparência de u m hu mor rís-
pid oe d esagrad ável. Parece aqu ele libertode comé-
d ia qu e imagina qu e dizer injú rias é gozar d od irei-
tod e falar com franqu eza.

Há uma franqueza eficaz?

Se é vergonhosotornar-se baju lador procu rando


agradar, não o é menos entregar-se, para evitar a

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

baju lação, a u ma franqu eza imoderada, qu e destró i


a amizade e a solicitu de. Evitemos esses dois exces-
sos, e qu e a franqu eza, comoqu alqu er ou tra qu ali-
dade, encontre seu ideal no meio-termo. Tal é a
exposiçãoqu e, reclamandoela pró pria su a seqü ên-
cia ló gica, impõ e visivelmente seu coroamento ao
meu Tratado.

Onde a franqueza exclui o interesse.

26. Como verificamos qu e u ma pletora de fatalida-


des d eploráveis acompanha a franqu eza, comece-
mos por eliminar desta o amor-pró prio, cu idand o,
com mu ita atenção, em não parecer respond er de
algu ma maneira por censu ras a ataqu es ou ofensas
qu e nos atingem mais intimamente. Com efeito,
qu and oalgu ém fala em seu pró priointeresse, pare-
ce qu e age nãopor benevolência, mas por có lera, e
qu e mais dirige u ma censu ra do qu e prodigaliza
u ma liçãomoral. A franqu eza é dodomíniod a ami-
zade e da nobreza, mas as censu ras vêm do amor-
pró prioe da estreiteza de espírito. É por issoqu e se
concebem sentimentos de respeitoe admiraçãopelos
homens qu e falam com franqu eza, enqu antoos d ifa-
madores excitam o desprezo e a ind ignação. Por
exemplo, Agamêmnon, qu e se irritava com a lingu a-
gem franca de Aqu iles, embora parecesse bastante
mod erado, permitiu qu e Ulisses o atacasse du ra-
mente e lhe dissesse:

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“Au tor de tod os nossos males, devias ter comandado


a ou tros combatentes sem força e sem virtu d e!”86

Ele deu provas d e ind u lgência e paciência, con-


tidocomoestava por essas palavras solícitas e sen-
satas, pois sabia qu e Ulisses não tinha motivo pes-
soal para se encolarizar, e falava apenas pelo bem
d a Grécia, enqu antooou trotirava de si mesmoos
motivos de su a animosidad e. Todavia, Aqu iles em
pessoa, qu e nãoera “nem doce nem tratável”87, mas
“homem du ro, e pronto a acu sar até inocentes”88,
permitiu , calado, qu e Pátroclolhe dirigisse mil acu sa-
çõ es d este gênero:

“Coraçãoimpiedoso, nãotiveste comopai Peleu , o


[bom au riga,
nem comomãe Tétis: foi omar glau coqu e te gerou ,
foram as rochas abru ptas, porqu antotu a alma é feroz.”89

O orador Hipérides, vendo qu e seu s discu rsos


tinham ofend ido os atenienses, pretendia qu e eles
examinassem não se su as palavras tinham algu ma
coisa d e mordaz, mas se eram desinteressadas. Da
mesma maneira as advertências de u m amigo, qu an-
d oisentas de toda paixãopessoal, d evem ser consi-
d erad as comorespeitáveis, nobres, incontestáveis. E
se, pond od e ladoos erros qu e só dizem respeitoa
si mesmo, se realçam, com u ma inteira liberdade,
aqu eles qu e atingem os ou tros, seria impossível re-
sistir a u ma franqu eza cu ja doçu ra desse ainda mais

84
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

peso e mord acidade à advertência. Eis por qu e se


diz com ju sta razãoqu e, nos impu lsos d e irritaçãoe
nas d esavenças qu e nos opõ em a nossos amigos, é
precisoprocu rar sobretu d ooqu e lhes pode ser ú til
e conveniente.
Não é menos digno de u ma amizade generosa,
qu and onos consideramos a nó s mesmos despreza-
dos e esqu ecidos, falar francamente e intervir em
favor d e ou tros amigos qu e sãonegligenciados. Foi
o qu e fez Platão qu ando sentiu a desconfiança e o
descontentamento de Dionísio. Pediu -lhe u ma au -
diência e obteve-a. O príncipe estava certo d e qu e
ofiló sofovinha qu eixar-se e incriminá-lo, mas Pla-
tãofalou -lhe mais ou menos nestes termos: “Se sou -
besses, Dionísio, qu e u m de teu s inimigos tinha de-
sembarcadona Sicília com mau s propó sitos e qu e a
falta d e ocasiãooimpediu d e levar a efeito, permi-
tirias qu e ele voltasse a embarcar e d eixaria qu e
saísse impu nemente d e teu s Estados? – Não, sem
dú vid a, Platão, respond eu Dionísio, pois é preciso
od iar e pu nir a má vontade de seu s inimigos tanto
qu anto seu s crimes. – Mas, replicou Platão, se u m
homem bem-intencionado tivesse vind o prestar-te
u m serviçoimportante e nãolhe desses a oportu ni-
dad e d e fazê-lo, crerias estar desobrigad o d o reco-
nhecimentopara com ele e poder tratá-locom d es-
prezo? – Qu em é então o homem d e qu em falas?,
pergu nta Dionísio. – É Ésqu ines, prossegu iu , u m dos
mais virtu osos discípu los de Só crates, omais afável
em seu s hábitos, o mais capaz de levar ao bom

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

caminhoaqu eles qu e ofreqü entam. Ele atravessou


os mares para poder travar contigorelaçõ es filosó fi-
cas e vê-se negligenciado.” Esse discu rsoimpressio-
nou Dionísiode tal maneira qu e, admirand oa gran-
d eza d e alma e a nobreza de Platão, o tomou em
seu s braços e tratou depois Ésqu ines com d eferên-
cias e provas de liberalidade.

A zombaria deve ser excluída da franqueza.

27. Em segu nd olu gar, d evemos, d e algu ma manei-


ra, varrer tod otraçod e insolência, rid ícu lo, gracejo
ou zombaria: são apenas mau s paliativos a serem
eliminad os d e toda lingu agem franca. Um ciru rgião,
proced end o a u ma incisão, tem necessid ad e d e se
servir d e mu ita d elicad eza e rigorosa d estreza, e
su a mão d eve evitar toda negligência, tod o gesto
minu ciosod emais qu e a faria tremer, ferir aolad o,
d esviar-se. Da mesma maneira, a franqu eza pod e
ad mitir habilid ad e e elegância, contanto qu e a be-
nevolência preserve a d ignid ad e; mas oorgu lho, a
acrimô nia e a bru talid ad e, se aparecem, d estroem-
nas e assinalam seu d esaparecimento. Por essa ra-
zão, foi irreplicável e espiritu osa a reflexãod aqu e-
le tocad or d e lira qu e fechou a boca a Filipe (ele
tinha procu rad o d ispu tar com ele sobre a maneira
d e ferir as cord as): “Soberano”, d isse ele, “o céu
vos livre d e serd es assaz infeliz para saberd es isso
melhor qu e eu !” Mas Epicarmo não respond eu tão

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

corretamente a Hieron, qu e oconvidava a jantar pou -


cos d ias apó s ter mand ad o matar vários d e seu s
amigos. “Não me convid aste há pou co, qu and o
sacrificaste teu s amigos.” Foi igu almente d eplorável
a resposta d e Antifonte qu e, enqu anto se d iscu tia
na casa d e Dionísio para saber qu al era o melhor
bronze, respond eu : “Aqu ele d e qu e os atenienses
se serviram para fu nd ir as estátu as d e Armó d io e
Aristó giton.” O qu e essas censu ras têm d e amargo
e cáu stico não corrige, e o qu e têm d e grotesco e
fú til está longe d e d ivertir. Ora, esse gênerod e ati-
tu d e proced e d e u ma falta d e d omínio, mesclad a
de violência e maldade, acompanhada de ó dio. Ad o-
tand o-a, provoca-se su a pró pria perd a, por ter,
comose d iz, “d ançad opertod emais d opoço”. De
fato, Dionísio mand ou matar Antifonte. Timágenes
perd eu a amizad e d e César, nãoqu e lhe tivesse fa-
lad oalgu m d ia com u ma lingu agem livre, mas por-
qu e nos banqu etes e coló qu ios, sem ter a menor
intenção séria, mas somente com o propó sito “d e
d ivertir os argivos”, ele se permitia a cad a instante
brincad eiras ofensivas, qu e ju lgava au torizad as pela
amizad e. Os Cô micos, com certeza, compu seram
para a cena nu merosíssimas e severas críticas satíri-
cas qu e visavam à política, mas, aí mistu rand ozom-
baria e pilhéria, assim comose mistu ra a vários ali-
mentos u m molhopicante, tiravam à franqu eza su a
eficiência e u tilid ad e. Elas conferiam aos poetas
u ma repu taçãod e mald ad e e impu d ência, enqu an-
to o pú blico não tirava nenhu m proveito d esses
d iscu rsos. Além d isso, d eve-se sempre, natu ralmen-

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

te, levar a seu s amigos od ivertimentoe oriso; mas


qu e a franqu eza gu ard e su a gravid ad e e seu caráter
habitu al, e, qu andose trata de assu ntos mais impor-
tantes, é preciso qu e o tom, o gesto e a d ignid ad e
d od iscu rsoacarretem a confiança e a persu asão.
A perd a domomentooportu nofaz sempre abor-
tar as maiores coisas, mas torna sobretu do inú til a
franqu eza; deve-se entãoevitar isso, novinhoe na
embriagu ez, pois evidentemente cobrir de nu vens a
serenidade d e u m belo céu é mistu rar ao diverti-
mentoe aobom hu mor qu e aí reinam palavras qu e
fazem franzir as sobrancelhas e espalhar a tristeza
sobre os rostos; é declarar-se o inimigod o deu s li-
bertad or qu e, segu ndoPíndaro, “desata a cadeia das
expectativas penosas”90. Aliás, esse contratempocom-
porta u m inconveniente grave: ovinholeva à có le-
ra e acontece freqü entemente qu e a embriagu ez,
em contatocom a franqu eza, gera oó d io. Em su ma,
há mais covardia qu e nobreza e coragem em se ca-
lar, qu and ose está só brio, e em só falar livremente
nomeiode u ma refeição, comoos cães poltrõ es qu e
jamais latem tanto como em torno d a mesa. Mas é
inú til insistir sobre esse ponto.

A franqueza deve concernir aos homens


favorecidos da sorte.

28. Vistoqu e mu itos nãopretendem ad vertir os ami-


gos na prosperid ade e nãoou sam fazê-lo, nomíni-
moconsideram qu e oêxitoé absolu tamente inaces-

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

sível às admoestaçõ es e se situ a fora d e seu alcance;


em compensação, se seu s amigos sofreram algu ns
reveses qu e os abatem e os hu milham, eles os ata-
cam. Estãocaídos nochãoe aoalcance d e golpes?
Pisoteiam-nos e disparam sobre eles, comou ma tor-
rente refreada em seu cu rso, a cascata vertiginosa
de su a lingu agem franca, felizes como estão de
aproveitar esse revés de fortu na para se vingarem
dos menosprezos recentemente sofrid os e de su a
fraqu eza de então. É por isso qu e não é inconve-
niente se estender u m pou cosobre a qu estãoe res-
ponder à fó rmu la eu ripidiana:

“Para qu e servem os amigos, qu andose tem osu cesso?”91

De fato, sãosobretu doas pessoas felizes qu e pre-


cisam dos amigos qu e falam com franqu eza e rebai-
xam oexcessode seu orgu lho: pois há pou cos ho-
mens qu e se mantêm sensatos na prosperid ade. A
maioria tem necessidad e de u m bom sensod e em-
préstimo, e de raciocínios qu e, vindos de fora, repri-
mem neles o enfatu amento e a agitação cau sados
pelos grandes su cessos. Mas, qu andoa fortu na d eita
abaixo seu orgu lho com su a prosperid ade, o pró -
prio revés é u ma admoestação mu ito forte para le-
vá-los aoarrependimento. Eles nãotêm mais neces-
sid ade, então, da franqu eza doamigonem d e cen-
su ras severas e mordazes. Mas, na verdade, nessas
espécies de reveses,

“é doce encontrar u m olhar benevolente”92,

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

ode u ma pessoa cu ja presença nos consola e recon-


forta. Assim, no meio dos combates e perigos, se-
gu ndoXenofonte, orostodoce e hu manode Clear-
co su scitava mais coragem diante do perigo. Mas
pronu nciar palavras mordazes, e contu doplenas de
franqu eza, dirigidas a u m homem infeliz equ ivale a
su bmeter u m olhodoente e infectadoa u ma lu z viva
demais. Longe de cu rar ou aliviar seu mal, irrita-se,
extenu a-se u m coração já magoado. Assim, u m ho-
mem qu e passa bem de saú de, por exemplo, escu ta
tranqü ilamente u m amigo qu e o censu ra, não fica
absolu tamente irritado nem impaciente pelas ad-
moestaçõ es de u m amigo qu e lhe faz observar su a
ligaçõ es e patu scadas, su a pregu iça em praticar es-
porte, a freqü ência de seu s banhos, su as festanças in-
tempestivas. Mas está ele doente? Vó s vos tornais
insu portáveis, agravais vosso mal, dizendo-lhe qu e
ele deve seu estadoà intemperança e à indolência, à
boa comida e às relaçõ es com as mu lheres: “Como
és importu no, meu pobre homem!”, exclamará. “Fa-
çomeu testamento; os médicos preparam-me castó -
reoou escamô nea e tu , tu me dás liçãoe me pregas
moral.” É qu e não convém aos infelizes nem fran-
qu eza nem sentenças morais, mas palavras doces e
consoladoras. Com efeito, qu andoas crianças caem,
as amas nãoacodem com a intençãode repreendê-
las, mas procu ram ergu ê-las, limpá-las, acalmá-las; e
somente depois é qu e pensam nas pu niçõ es e nas
censu ras. Conta-se qu e Demétrio de Falera, banido
de su a pátria e levando u ma vida de abandono e

90
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

miséria nos arredores de Tebas, viu u m dia com pesar


aproximar-se Crates, de qu em temia a liberdade cínica
e odiscu rsoru de. Ora, este abordou -ocom doçu ra e
disse-lhe qu e oexílionãoera u ma condiçãodesagra-
dável com qu e devesse afligir-se, pois qu e olivrava da
incerteza e da inconstância das coisas; ao mesmo
tempo, exortou -oa procu rar em si mesmosu a força e
seu consolo. Demétrio, encantadocom seu s discu rsos,
e retomandocoragem, disse a seu s amigos: “Ah! Como
eu deploro hoje os cu idados e os trabalhos qu e me
impediam de apreciar u m tal homem!”:

“Um amigoindu lgente conforta oaflito,


mas sabe contradizer u m espíritoinsensato.”93

É assim qu e agem os amigos generosos. As al-


mas vis e inferiores, os adu ladores da prosperidad e
assemelham-se, como diz Demó stenes, “às fratu ras
e entorses cu ja d or se aviva com o menor aciden-
te”94. Insu ltam-vos nos reveses e parecem fru ir pra-
zerosamente deles. De fato, se algu ém necessita de
u ma observaçãonas ocasiõ es em qu e, por su a pró -
pria cu lpa, sofreu u m revés por ter sid omal aconse-
lhad o, é su ficiente dizer:

“Eu era, tu sabias, de opiniãointeiramente contrária;


para te dissu adir fiz tod oomeu possível!”95

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

A ocasião é mãe da franqueza.

29. Em qu ais circu nstâncias, pois, u m amigo d eve


mostrar-se insistente e qu and od eve u sar otom d a
franqu eza? Qu and o, sofrend oas investid as d a volú -
pia, d a có lera ou d a violência, tem a ocasiãod e re-
primir a cu pid ez ou d e se opor a u ma lou ca incons-
ciência. É assim qu e Só lon, vend o Creso orgu lhar-
se d e u ma felicid ad e efêmera, ad vertiu -oqu e pen-
sasse em seu fim incerto. Da mesma maneira, Só -
crates, esse censor d e Alcibíad es, sou be contê-lo,
comovendo-oaté as lágrimas, e afligiu -lhe ocoração.
Tais foram as ad vertências d e Ciroa Ciaxares ou d e
Platãoa Dionísio. Na época feliz em qu e este ú ltimo
atraía, pela beleza e pela grand eza d e seu s feitos, a
ad miraçãod ou niverso, esse filó sofooad vertia qu e
tivesse cau tela, com temor “d e u ma confiança pre-
su nçosa qu e é vizinha d a solid ão”. Espeu sipotam-
bém lhe escrevia qu e nãodevia orgu lhar-se qu and o
as mu lheres e as crianças proclamavam seu s lou vo-
res, mas tratar de dar à Sicília oadorno d a pied ad e,
d a ju stiça e d e u ma excelente legislaçãopara d igni-
ficar a Acad emia. Eu ctoe Eu laio, companheiros d e
Perseu , nãood eixavam notempode su a prosperi-
dade e não cessavam de agradar-lhe em tu do e de
segu ir su a opinião. Mas, qu and o ele foi vencid o e
postoem fu ga pelos romanos na batalha d e Pid na,
cu mu laram-no d as mais amargas censu ras, e lem-
braram-lhe minu ciosamente seu s erros e negligên-
cias nos termos mais ofensivos, a tal pontoqu e esse

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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

infeliz príncipe, indignadode dor e có lera, matou os


d ois com seu pu nhal.

30. Essas, pois, sãoem geral as ocasiõ es em qu e se


deve falar livremente; mas nãoconvém negligenciar
aqu elas qu e nossos amigos nos oferecem. Mu itas
vezes, u ma pergu nta, u m relato, a censu ra ou oelo-
gio, atribu ídos aos mesmos atos a respeito de pes-
soas d iferentes, dão-nos u ma abertu ra natu ral para
falar com franqu eza. Conta-se qu e Demarato, por
exemplo, foi de Corintoà Maced ô nia na época em
qu e Filipe estava em conflitocom su a mu lher e seu
filho. Comoesse príncipe, apó s u ma acolhida calo-
rosa, lhe tinha pergu ntado se os gregos viviam em
acord o entre eles, Demarato, qu e era para ele u m
amigo devotado, replicou : “Olha qu e pergu nta, Fi-
lipe, indagar da concó rdia dos atenienses e dos pelo-
ponésios e ver com indiferença teu pró prio palácio
em qu e reinam as dissensõ es e os conflitos.” Boa ati-
tu de também a de Dió genes qu e, tendo vindo ao
acampamentode Filipe qu andoeste ú ltimomarcha-
va contra os gregos, foi condu zidodiante dopríncipe
qu e, não o conhecendo, lhe pergu ntou se era u m
espião. “Um espião, Filipe, sim”, respondeu , “qu e veio
para observar tu a impru dência e tu a lou cu ra, qu e
fazem, sem nenhu ma necessidade, qu e jogu es nos
dados, noespaçode u ma hora, tu a coroa e tu a vida.”

31. Essa resposta era talvez livre demais; mas u ma


ou tra ocasião favorável para repreender seu amigo

93
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

é aqu ela em qu e ele se torna hu milhadoe embara-


çad opelas censu ras qu e ou tros lhe fizeram a respei-
to d e seu s erros. É u ma circu nstância qu e poderia
u tilizar u m homem de tatoqu e, afastand opara bem
longe os censores, chamasse ele pró prioà parte seu
amigo para lhe fazer entender qu e, na falta de ou -
tras razõ es, deve cair em si, pelomenos para evitar
a arrogância de seu s inimigos: “Em qu e têm eles mo-
tivopara abrir a boca, qu e têm a dizer-te se negas,
se rejeitas oqu e te acarreta essas críticas?” Assim, com
efeito, se o insu ltador fere, o admoestador presta
serviço. Algu ns com mais elegância recondu zem seu s
amigos aobom caminhocriticandoterceiros, pois é
nos ou tros qu e estigmatizam os comportamentos
qu e sabem ser os de seu s amigos. Nosso mestre
Amô nionotou u m dia, du rante a au la da tard e, qu e
algu ns discípu los tinham tidou m almoçocopioso; or-
d enou entãoa seu escravolibertoqu e infligisse u m
castigo a u m pequ eno cativo de su a propriedade,
acrescentando: “Nãohá almoço!” Dizend oisso, lan-
çou sobre nó s u ma espiadela, a fim de qu e os cu l-
pados tomassem para si a censu ra.

A franqueza é geralmente
acompanhada de discrição.

32. Evitemos ainda criticar nossos amigos em pú bli-


co, e med itemos esta tirada de Platão. Vend oSó cra-
tes censu rar com mu ita vivacidade u m de seu s dis-

94
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

cípu los nodecorrer de u m banqu ete, ele lhe d isse:


“Nãoseria preferível fazer-lhe essas censu ras em par-
ticu lar?” Só crates então replicou : “E tu ? Não pod ias
esperar qu e estivéssemos só s, para me d izeres isso?”
Diz-se qu e Pitágoras fez pu blicamente a u m de seu s
jovens discípu los u ma reflexão tão violenta qu e o
rapaz se enforcou de desespero. Depois desse acon-
tecimento, o ilu stre homem a ningu ém mais censu -
rou diante de testemu nha. O vício, com efeito, é u ma
doença vergonhosa qu e deve ser tratada e revelada
em segredo, e não em pú blico, com ostentação e
reu nindo testemu nhas e espectadores. É pró prio de
u m sofista e nãode u m amigofazer-se valer, graças
aos erros alheios, e pavonear-se como esses charla-
tães qu e fazem su as operaçõ es nos teatros para obter
clientes. É sem bru talidade (e é ju stonãorecorrer a
ela em nenhu ma terapia) qu e se deve considerar o
aspecto relu tante e impertinente do vício. De fato,
nãoé simplesmente “oamor qu e, censu rado, se tor-
na mais opressivoainda”, comodiz Eu rípides96, mas
sãotodos os vícios e todas as paixõ es qu e, depois de
censu rados rigorosamente em pú blico, sãolevados à
insolência. Platão qu er qu e os velhos, para inspirar
respeito aos jovens, respeitem a estes primeiro. Da
mesma maneira, a franqu eza dos amigos, cheia de
escrú pu los, é aqu ela qu e inspira mais vergonha. A
delicadeza e a doçu ra com as qu ais se tenta persu a-
dir u m cu lpadocorroem e destroem seu vício, qu e se
enche de embaraçodiante doretraimentode qu e se
dá prova. É por issoqu e este versoé excelente:

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

“Ele aproxima su a cabeça, a fim de qu e ningu ém


[perceba.”97

Nada, por exemplo, é menos conveniente qu e


revelar os erros d o marido qu ando a mu lher ou ve,
d opai sob os olhos d e seu s filhos, doamante d ian-
te d oser amado. Fica-se profu ndamente penalizado
e indignado, qu andose é hu milhadodiante das pes-
soas aos olhos das qu ais se pretend e brilhar. Se
Clito irritou Alexandre, não foi tanto, creio eu , por
cau sa d e su a embriagu ez, como pela afronta d e se
ver censu rad opu blicamente. Aristô menes, governa-
d or d orei Ptolomeu , tendodespertadoesse princí-
pe, qu e pegava nosonoenqu antod ava au diência a
embaixadores, forneceu aos baju ladores a ocasião
d e perdê-lo; e, fingindoa mais viva ind ignação, co-
mose a honra dopríncipe tivesse sid oatingida, dis-
seram-lhe: “Se tantas fadigas e vigílias te fizeram pen-
d er a cabeça, é em particu lar qu e se deve ad vertir-
te, e não qu erer levantar a mão contra ti diante de
u ma tãovasta assembléia.” Eopríncipe mandou en-
viar a seu mestre u ma taça de venenocom ordem de
bebê-lo. Aristó fanes conta-nos qu e Cléonoacu sava
d e “falar mal da Cidade na presença d e estrangei-
ros”98 e qu e assim excitava os atenienses aorancor.
Nãoempregu emos, então, jamais a franqu eza d ian-
te d os ou tros se não desejamos brilhar em pú blico
ou arrastar as mu ltidõ es, mas u sar a lingu agem fran-
ca com fins ú teis e cu rativos.

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Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 97

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

Necessidade da autoridade moral.

Qu em qu er qu e fale com franqu eza deveria po-


der aplicar a si pró prio estas belas palavras qu e
Tu cíd id es põ e na boca dos coríntios, qu andod izem
de si mesmos “qu e são dignos de lançar a censu ra
sobre os ou tros”99. Um enviado de Mégara, na as-
sembléia dos confederados, proferia verdad es em
nome da Grécia. “Teu s discu rsos”, dizia-lhe Lisandro,
“tinham necessidade de u ma cidade.” Igu almente se
pod e d izer qu e a franqu eza tem necessidade d e cos-
tu mes pu ros, e nada é mais verdadeiropara qu em se
ocu pa d e censu rar os ou tros. Platãodizia qu e a vida
de Espeu sipoera u ma liçãocontínu a. Assim, qu an-
doPó lemonentrou nocu rsode Xenó crates, só pe-
los olhares desse filó sofocaiu em si e foi levad ono-
vamente à virtu de. Mas se u m homem frívoloe sem
valor moral se põ e a falar com franqu eza pod e-se
objetar:

“Todocobertode pú stu las, qu eres cu idar dos ou tros.”100

Devemos incluir-nos na crítica


que dirigimos aos outros.

33. Entretanto, como é freqü entemente a pessoas


sem valor moral relacionadas com interlocu tores da
mesma espécie qu e as circu nstâncias levam a fazer
advertências, a maneira mais conveniente d e fazê-lo

97
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 98

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

seria envolver-nos e inclu ir-nos de algu m mod ona


censu ra, qu andou samos de franqu eza. É nessa pers-
pectiva qu e se diz:

“Filhode Tideu , qu e nos acontece


para qu e tenhamos esqu ecid onossocoraçãotão
[impetu oso?”101

“Apenas contra Heitor nossas mãos sãoimpotentes.”102

Citaremos também Só crates, qu e advertia os jo-


vens d e seu s erros, desenvolvendoprecau çõ es infi-
nitas. Parecia estar como eles na ignorância e apli-
car-se à prática das virtu des e à bu sca da verdade.
Conced e-se, com efeito, su a confiança e su a amiza-
d e àqu ele qu e parece cometer os mesmos erros qu e
nó s, e qu erer corrigir seu s amigos como algu ém o
faz a si pró prio. Mas, aqu ele qu e se faz passar por
u m homem incensu rável e isentode toda paixão, a
menos qu e tenha sobre nó s u ma grande su periori-
d ad e d e idade ou u m prestígioreconhecidode vir-
tu de e de gló ria, torna-se odioso, insu portável, sem
ser ú til. Bem habilmente, então, Fênix contou seu s
pró prios infortú nios, os de u m homem levadopela
có lera a tentar matar seu pai, projetoqu e logoaban-
d onou por temor

“de levar entre os gregos onome de parricida”103.

98
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 99

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

Ele nãoqu er, advertindoAqu iles, deixar crer qu e


ele pró priofoi incapaz de se entregar à có lera e qu e
era irrepreensível. Essas espécies de admoestaçõ es
penetram ocoraçãod e maneira persu asiva, e ced e-
mos sem dificu ldade àqu eles qu e, longe de nos me-
nosprezar, parecem condescend er com nossas fra-
qu ezas.

Pode-se introduzir um elogio discreto na crítica.

Um olhoinflamadonãopode su portar odia claro,


nem u ma alma afetada de u ma paixãoviolenta, u ma
censu ra sem concessão feita com franqu eza demais.
O meiomais segu rode fazê-la receber tal admoesta-
çãoconsiste em introdu zir nesta ú ltima algu m lou vor
discreto, comonestes versos:

“Nãoé honrosoabandonardes vossovigor ardente,


vó s todos aqu i os melhores doexército. Eu , por mim,
[não
entraria em contenda com u m gu erreirosem valor qu e
abandonasse a gu erra;
mas por vó s sintou ma indignaçãoprofu nd a.”104

e ainda:

“Pândaro, onde estão, pois, teu arco, tu as flechas aladas


e tu a fama qu e aqu i ningu ém igu ala?”105

99
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 100

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

E é bem evidente qu e exortaçõ es comoestas re-


vigoram os espíritos desanimados:

“Onde estãoÉdipoe seu famosoenigma?”106

“É assim qu e se exprime a sombra dogrande Hércu les?”107

Com issonãosomente se abranda oqu e a censu -


ra tem de du roe imperioso, mas enche-se de emu la-
çãou m coraçãoqu e com a lembrança das belas açõ es
se envergonha de seu s erros e toma a si mesmocomo
modelodobem qu e deve fazer.

Evitar louvar um terceiro criticando outro.

Qu ando, aocontrário, pomos em paraleloou tras


pessoas, por exemplo, da mesma idade, da mesma
cidade, ou da mesma família, a obstinaçãonatu ral do
vício revolta-se e exaspera-se; mu itas vezes ela se
compraz em responder com có lera: “Por qu e então
nãoir ter com essas pessoas qu e têm mais valor qu e
eu ? Nãocessarás de me importu nar?” Evitemos, pois,
censu rando algu ém, fazer o elogio de u m ou tro, a
menos, por Zeu s, qu e seja o de u m pai, como faz
Agamêmnon:

“Comoofilhod e Tid eu é pou codignodele!”108

100
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Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

e Ulisses na tragédia dos Círios:

“E tu , qu e deslu stras omagníficobrilhod a raça,


fias a lã, tu qu e tens comopai omais valente dos
[gregos.”109

Evitar a polêmica.

34. Nada é menos conveniente ainda do qu e opor


censu ra à censu ra e franqu eza à franqu eza. É o
meiod e acender logoa có lera e fazer nascer a desa-
vença. Conflitos desse gênerocaracterizam, em ge-
ral, não u ma franqu eza recíproca, mas a franqu eza
de u m homem qu e nãosu porta a dos ou tros. É me-
lhor, pois, receber com tolerância as admoestaçõ es
de u m amigo; e, se ele pró prio, mais tarde, por ter
caíd o em algu m erro, tem necessid ade d e nossa
advertência, a franqu eza qu e u sou conoscoau toriza
a nossa para com ele. Tem-se odireitode lembrar-
lhe, sem o menor ressentimento, qu e ele pró prio
tem ocostu me de apresentar livremente a seu s ami-
gos seu s erros e qu e esses foram o objeto d e su as
censu ras e advertências; e essa lembrança otornará
mais afável e mais paciente com u ma correçãoqu e
sente ser d itada nãopor u m desejode represálias e
recriminação, mas por u m sentimento d e benevo-
lência e amizade.

101
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 102

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Deve-se reservar a crítica para


os casos excepcionais.

35. Acrescentemos esta tirada de Tu cídides: “Qu an-


dose realizam grandes projetos, incorre-se na hosti-
lidade dos ou tros.”110 Da mesma maneira, u m amigo
pode correr oriscode desagradar por su as advertên-
cias, qu andooobjetivoé importante e absolu tamen-
te excepcional. Se, ao contrário, tomando menos o
tom de u m amigoqu e ode u m pedante, fica de mau
hu mor a propó sito de tu do e contra tu do, su as ad-
vertências nas conju ntu ras capitais perderãosu a força
e seu efeito, porqu e terá abu sadoda franqu eza como
u m médicoqu e aplica a doenças insignificantes u m
medicamento acre e amargo, mas indispensável e
oneroso, qu e se dá apenas nos casos mais críticos.
Evitará, pois, com cu idado essa propensão para a
censu ra. Se u m ou tro, salientandoas menores parti-
cu laridades, qu er fazer de tu do u m crime, isso será
para ele u m motivopara censu rar os erros mais con-
sideráveis. O médico Filó timo disse u m dia a u m
doente acometidopor u m abcessonofígadoe qu e
lhe apresentava u m dedocheiode pu s: “Meu amigo,
não é no panarício qu e reside teu problema.” Pois
bem! pode apresentar-se também a u m amigoa oca-
sião de dizer a u m homem qu e faz reparos sobre
coisas sem importância e sem valor: “Por qu e esta-
mos falandode brincadeiras, bebidas e ninharias? Qu e
ele mande embora, meu caro, su a amante e deixe de
jogar dados. Qu antoaoresto, ju lgaremos qu e é u m

102
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 103

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

homem admirável.” Perdoar facilmente os pequ enos


erros é adqu irir odireitode censu rar os maiores sem
desagradar. Mas aqu ele qu e, como verdadeiro mo-
delode acrimô nia e de amargu ra, faz observar tu do
escru pu losamente e se ocu pa de tu do, torna-se insu -
portável a seu s filhos, a seu s irmãos, e detestável
mesmoa seu s escravos.

Sejamos benevolentes na crítica.

36. Como nem tu do na velhice é desagradável, se-


gu ndoEu rípides111, assim também nãose encontram
todos os males reu nidos nas imperfeiçõ es de nossos
amigos. Deve-se então observar não só o mal, mas
ainda obem qu e podem fazer, e começar por lou vá-
los de bom grado. Qu ando o ferro foi amolecido e
dilatadopelofogo, dá-se-lhe a têmpera, qu e otorna
mais compacto. Da mesma maneira, qu andoos ami-
gos estão de bom hu mor e inflamados pelo elogio,
pode-se dar, por assim dizer, u ma boa têmpera à su a
alma, empregandocom doçu ra a franqu eza. É omo-
mentode lhes dizer: “Tu as ú ltimas açõ es sãodignas
das primeiras? Vês qu e bens produ z a virtu de? Eis o
qu e exigimos nó s, teu s amigos, aí está oqu e é apro-
priadopara ti; para issonasceste; aqu ilo, aocontrá-
rio, deve ser rejeitado

nos montes ou na espu ma domar bramador.”112

103
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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Com efeito, comou m médicocompassivopode


qu erer expu lsar a d oença de seu paciente pelosono
e pela alimentação, de preferência aou sodocastó -
reoe d a escamô nea, assim também u m amigover-
d ad eiro, u m pai terno, u m bom preceptor, qu ando
qu iser corrigir-nos, preferirá sempre olou vor à cen-
su ra. Nada torna as censu ras menos penosas e mais
salu tares doqu e evitar a exaltaçãoe empregar otom
d a doçu ra e da afeição. Nãose deve nem acu sar du -
ramente os qu e negam seu erro, nem se recu sar a
ou vir su a ju stificação, mas, aocontrário, su gerir-lhes
meios honestos de defesa, fechar os olhos sobre o
qu e su a cau sa tem de desvantajoso para vê-la so-
mente sob u ma lu z favorável. É o qu e faz Heitor,
d izend oa seu irmão:

“Nãoconvém, infeliz insensato,


pô r nocoraçãou ma tal có lera.”113

Ele faz considerar su a retirad a d o combate não


comou ma fu ga, mas comou m efeitode su a exalta-
ção. Nestor faz omesmoqu andodiz a Agamêmnon:

“Mas tu cedeste aoarrebatamentode u ma alma


[magnânima.”114

Nãoé mais honestodizer: “Nãorefletiste”, ou “Não


sabias” doqu e dizer “Cometeste u ma inju stiça, u ma
ação indigna”, ou ainda: “Não qu estiones com teu
irmão” d e preferência a “Não invejes teu irmão” e

104
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 105

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

“Evita esta mu lher qu e te perde” de preferência a “Dei-


xa d e corromper esta mu lher”?

A eficácia da franqueza imediata.

Eis aí como a franqu eza deve reparar o mal já


cometido; mas trata-se de preveni-lo? Ela comporta-se
aocontrário. É preciso, por exemplo, afastar algu ém
de u m erro qu e vai cometer, reprimir u ma paixão
desenfreada, dar força e energia a u ma alma fraca e
indolente qu e visa a u ma açãonotável? É entãoqu e
se devem apresentar-lhe com veemência os motivos
indignos qu e a fazem agir: comoUlisses, em Só focles,
para irritar Aqu iles, lhe diz qu e su a có lera nãoé cau -
sada pela refeição, mas pela “vista assu stadora das mu -
ralhas de Tró ia”115; e comoAqu iles, indignado, amea-
ça tornar a embarcar, Ulisses acrescenta:

“Eu sei oqu e evitas; nãoé ou vir ofensas,


mas qu e Heitor esteja perto; é beloencher-se de có lera!”

Eis como, mostrandoaohomem enérgicoe cora-


josoa desonra da covardia, aohomem castoe sensa-
toa da incontinência, a u m coraçãogenerosoe mag-
níficoa da mesqu inharia e da avareza, nó s os afasta-
mos dovícioe os levamos à virtu de. Nos casos em
qu e nãohá mais remédio, é precisofalar com doçu ra,
de sorte qu e as advertências pareçam menos concer-
nir à censu ra qu e à compaixãoe aopesar. Mas trata-

105
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 106

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

se de prevenir as qu edas e combater paixõ es qu e


dominam? É ocasodessa franqu eza verdadeira, qu e
não u sa cau tela. Censu rar os erros cometidos é o
qu e fazem comu mente os inimigos. Assim, Dió genes
dizia qu e, “se se qu er encontrar a salvação, se deve
ter bons amigos e ardentes inimigos, porqu e os pri-
meiros vos dãoliçõ es e os segu ndos vos censu ram”.
Ora, é preferível evitar erros, ou vindoos conselhos,
a ser levado, sob oefeitoda reprovação, aoarrepen-
dimentode tê-los cometido. É u ma razãosu plemen-
tar para mostrar habilidade, mesmo qu ando se fala
francamente, pois a franqu eza é na amizade oremé-
dio mais poderoso e mais eficaz, qu e requ er conti-
nu amente e nomais altograu u m espíritooportu nis-
ta e u m temperamentocheiode doçu ra.

Do apaziguamento.

37. Como a franqu eza é mu itas vezes penosa para


aqu ele qu e se qu er cu rar, devem-se imitar os médicos.
Qu and oeles praticam u ma incisão, nãoabandonam
à su a dor e aoseu sofrimentoa parte doente: aplicam
com doçu ra lavagens e compressas. Da mesma ma-
neira, aqu eles qu e sabem advertir com habilid ade
não se retiram apó s ter lançado censu ra severa e
mordaz. Mas, por conversas de u m ou trogênero, por
palavras amáveis, adoçam e dilu em a amargu ra de
su as palavras. Assim fazem os artistas qu e talham a
ped ra, qu andod ãopolimentoe brilhoàs partes das

106
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 107

Da Maneira de Distinguir o Bajulador do Amigo

estátu as qu e, a pod er de golpes, foram talhad as.


Mas se, com o golpe da franqu eza, se fere até dei-
xar cicatrizes, se, qu and oopaciente está exaspera-
do, só se permite qu e ele escape apó s tê-locoberto
de tu mores e contu sõ es, a có lera oimpedirá de vol-
tar, e as palavras já não agirão sobre ele. Está aí,
pois, u m erro qu e se deve, acima d e tu do, pô r de
parte. Evitemos, então, com omaior cu idad o, qu an-
doad vertimos nossos amigos, abandoná-los omais
rápid o possível e terminar nossa conversa com pa-
lavras mordazes qu e possam hu milhá-los.

107
Proveito-02:Proveito-02 25.07.11 13:14 Página 108
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 109

Notas

As Impostu ras de Alcibíades

1. De capienda ex inimicis utilitate ou De cap., 88 E-90 E.


2. De cap., 90 C-D.
3. De cap., 90 E.
4. De cap., 90 E-91 E.
5. De adulatore et amico, 51 C.
6. Ibid., 51 D.
7. Ibid., 51 D.
8. Ibid., 57 A.
9. Ibid., 57 C-D.
10. Sobre esta expressão ler-se-á B. Gracián, L’homme de
cour (Oráculo manual y arte de prudencia), máxima 274,
trad u zido por Amelot de la Hou ssaye (reed. Paris, Grasset,
1924) e o comentário de Vladimir Jankélévitch, Le Je-ne-sais-
quoi et le Presque-rien, “la manière et l'occasion”, tomoI, Pa-
ris, 1980, p. 24.
11. De adulatore..., 59 D-F.
12. Ibid., 58 B.
13. Ler Spinoza, Ética, IV, cap. 21 (adulatio).
14. De adulatore..., 52 D-E.
15. Ibid., 56 D.
16. Ibid., 56 C.
17. Ibid., 56 F.

109
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 110

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

18. La Bru yère, Les caractères, VIII.


19. De adulatore..., 49 B.
20. Ibid., 51 F.
21. Ibid., 53 C.
22. Ibid., 60 A.
23. Ibid., 50 D.
24. Ibid., 60 C.23. Ibid., 50 D.
25. Ibid., 52 D-E.
26. Ibid., 49 C. – Gracián, noOráculo manual, mostra qu e
a arte doheroe, versãosu perior dobaju lador, consiste em sa-
ber livrar-se dos infelizes: d evemos “conhecer as pessoas fe-
lizes para nos servirmos delas, e as infelizes para delas nos
afastarmos” (cap. 31).
27. Ibid., 66 A-F.
28. Ibid., 70 D-F.
29. Sobre esta qu estão, ler-se-á Vladimir Jankélévitch, Les
vertus et l’amour, I, Paris, 1986, pp. 220 ss.

Como Tirar Proveito de seu s Inimigos

1. Cneu CornélioPu lqu érioera procu rador da Acaia nofim


d a vida d e Plu tarco.
2. Sobre a moderaçãopolítica segu ndoPlu tarco, ler Prae-
cepta gerendae reipublicae, 810 B.
3. Cu riosidade já assinalada em Plínio, Hist. nat., XI, 28,
99. A obra de Plu tarcoestá repleta de anedotas referentes aos
naturalia; lê-se por exemploqu e ogatotem horror aoperfu -
me (Conjugalia praecepta, 144 C-D), qu e opolvodevora seu s
tentácu los no inverno (De communibus notitiis, 1059 E) ou
entãoqu e se desventram os ratos das minas para extrair de su as
entranhas o ou ro qu e engoliram (De cupiditate diuitiarum,
526 B). Sobre todas essas cu riosidades, ler a tese de François
Fu hrmann, Les images de Plutarque, Paris, 1964, p. 59, nota 2.
4. Ler oDe amicorum multitudine, 96 A infra.

110
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 111

Notas

5. Econômico, I, 15, e Ciropedia, I, 6, 11.


6. Tratado dos Moralia registrado sob a expressão latina
Praecepta gerendae reipublicae, 798 A ss. Essa dedicató ria a
u m notável romano, leitor assíd u o das obras políticas de
Plu tarco, tradu z da parte doescritor u m desejode recomendar
su a obra tantoaos gregos comoaos romanos, a fim de enalte-
cer esse entendimentoleal e esse igu alitarismoqu e ele gosta-
ria d e ver se instau rar entre os cidadãos dos mu nicípios gregos
e a au toridade imperial romana.
7. Ler oDe sollertia animalium, 964 A e 965 B.
8. Econômico, I, 15, e Ciropedia, I, 6, 11.
9. Amizade e inimizade recorrem freqü entemente, na obra
de Plu tarco, a comparaçõ es físicas: a amizade qu e tem su a voz
pró pria, a franqu eza, não se deixa afrou xar ao sabor das cir-
cu nstâncias comou ma bolina de navio(De amicorum multitu-
dine, 95 F); mas acontece qu e ela se deteriora comoas armas
e os u tensílios (De fraterno amore, 481 E). Os amigos dos ricos
assemelham-se a u m enxame de moscas errantes afu roando
em su as cozinhas; e, qu andoa alimentaçãocomeça a faltar, es-
ses insetos parasitas voam e deixam os lu gares vazios (De ami-
corum multitudine, 94 B). Mu ltiplicando demais nossos ami-
gos, somos dignos dessas mu lheres devassas qu e não podem
permanecer fiéis a seu s primeiros amores, porqu e se entregam
incessantemente a novos (id., 93 CD) ... Sobre essas imagens,
deve-se consu ltar a tese de Fu hrmann, pp. 224 a 226.
10. Versos de Ésqu ilo, Prométhée allumeur de feu. Ver Nau ck,
Trag. Graec Frag. (abreviadoem T. G. F.) n.º 207.
11. Dió genes, oCínico. Cf. Dió genes Laércio, VI, 20 ss.
12. Crates d e Tebas (nãoconfu ndir com Crates, poeta cô -
mico do sécu lo V, conhecido mu ito fragmentariamente) foi o
alu no de Dió genes. Nascido de u ma família rica, abandonou
su a fortu na para tornar-se filó sofo. Plu tarco, qu e o cita fre-
qü entemente comomodelode renú ncia aos bens deste mu n-
do(cf. De uitando aere alieno, 831 F), teria escrito, segu ndoo
imperador Ju liano(Or., IX [VI], 200 B), u ma Vida de Crates cu jo
textose perdeu .

111
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 112

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

13. Zenon foi por su a vez discípu lode Crates antes de ser
o fu nd ador d o estoicismo. Essa anedota foi aproveitada por
Plu tarco (cf. o De tranquillitate animi, 467 C, e o De Exsilio,
603 D). Sêneca, oFiló sofo, apropria-se dela, por su a vez, em
u m textointitu lad oA tranqüilidade da alma. Aí se lê especial-
mente qu e, qu andoele sou be donau frágioem qu e tu doqu e
possu ía acabava d e ser su bmerso, nosso Zenon disse: “A
Fortu na qu er qu e eu filosofe mais à vontade.” (Nuntiato nau-
fragio, Zenon noster, cum omnia sua audiret submersa: “Iubet,
inquit, me fortuna expeditius philosophari.” – De tranquillita-
te animi, XIV, 3.)
14. Linceu , filhode Afareu , pertence à raça dos Perseidas;
tomou parte especialmente na expedição dos Argonau tas em
qu e foi aproveitado por su a vista penetrante (ele via, por
exemplo, através de u ma prancha de carvalho). Mitó grafos
como Paléfato (Des histoires incroyables, X) imaginaram u ma
interpretação evemerista da lenda de Linceu : ele teria sido o
primeiromineiroqu e cavou osoloe qu e, com oau xíliode u ma
lâmpada, segu iu os filõ es do metal; teria trazido o minério à
lu z, e esse atoter-lhe-ia valid oa repu taçãode ver sob a terra.
Ver igu almente Tzetzés, Commentaires sobre Licofron (Ale-
xandra), edição G. Mü , ller, 3 vols., Leipzig, 1811, 553. Para a
tradu ção da palavra οστράκων (terracota, objetos de terraco-
ta), retomamos a interpretaçãode Amyot (“telhas”).
15. Ver a imagem d oDe fraterno amore (490 C) em qu e o
ind
, agado r indiscretoperscru
, ta noindizível (υπορ
Ô ύττοντα τ ω̂ν
απορρήτων ενια).´
16. A calma das paixõ es e a virtu de constitu em para Plu -
tarcoa boa saú de da alma. O amigosempre estimu la oqu e há
de melhor nu m homem, comou m médicoqu e se empenha em
manter a saú de (De adulatore et amico, 61 D); nãohá de manei-
ra nenhu ma necessidade de alimentos su pérflu os para u m ho-
mem são; a razão dá-lhe u ma tensão e u ma forma excelente
com otempo(De cohibenda ira, 453 E).
17. Ilíada, I, 255.

112
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 113

Notas

18. Ver também Vida de Demóstenes, 22, 4.


19. Sobre CipiãoNasica (P. Corneliu s ScipioNasica), filho
de Cneu CornélioCipiãoCalvo, ver Tito-Lívio, XXXV e XXXVI.
20. Já citadonoDe audiendis poetis, 21 E.
21. Ésqu ilo, Sete contra Tebas, 593 ss.
22. Fragmentos, 229.
23. Sobre a falsa embaixada, 208.
24. Eu rípides, Orestes, 251.
25. Versotiradode u ma peça de Eu rípides (Nau ck, T. G. F.,
Eu rípides, n.º 1086, p. 703), citadoigu almente noDe adulato-
re et amico, 71 F.
26. Nãosabemos de qu e obra de PlatãoPlu tarcotoma esta
reflexãoqu e cita mais três vezes nos Moralia (De audiendo, 40
D, De tuenda sanitate praecepta, 129 D, e De cohibenda ira,
463 E). Pode-se observar qu e, se a atitu de expressa por essa
interrogação pod e fazer lembrar o preceito socrático “conhe-
ce-te a ti mesmo”, ela aproxima-se, de preferência, da prática
estó ica d o exame de consciência. Lê-se, por exemplo, no De
ira de Sêneca: “Os vícios alheios estãodiante de nossos olhos,
os nossos atrás de nossas costas... Uma grande parte dos ho-
mens irrita-se nãocontra odelito, mas contra os delinqü entes.
Tornar-nos-emos mais mod erados, observando-nos a nó s pró -
prios, sondandonossa consciência. Será qu e também nó s não
cometemos nad a semelhante? Caímos nos mesmos erros? Cabe
efetivamente a nó s condenar essas práticas?” (II, XXVIII, 8; ver
também III, XXXVI-XXXVII). ,
27. O textogregoprecisa: ανδροκτόνου γυναικὸς (de u ma
mu lher assassina de seu esposo).
28. VersotiradodoAlcmeão de Eu rípides (Nau ck, T. G. F.,
adesp. n.º 358, p. 906).
29. Ver nota precedente.
30. A lampreia (moréia) de Crasso era célebre. Lú cio Li-
cinoCrasso, qu e foi censor em 92 a.C., nada tem a ver com o
triú nviro.
31. Passotirad ode u ma peça desconhecida.

113
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 114

Como Tirar Proveito de seus Inimigos

32. Em ou tros textos (De adulatore, 74 C e De profectibus


in uirtute, 82 A), essa observaçãoé atribu ída a Dió genes.
33. Télefo, feridopor Aqu iles na coxa com u m golpe de lan-
ça, deveu su a cu ra tão-só à limalha qu e se achava sobre su a
arma. Cf. De audiendo, 46 F.
34. Cognome provável de Jasãode Feras. Ver Cícero, De la
nature des dieux, III, 28, 70.
35. Lê-se na Vida de César, IV, 9: “Entretanto, qu andovejo
su a cabeleira tãoartisticamente arru mada, qu andoovejocoçar su a
.c
cabeça com u m só dedo(τὴν κ όµην ενὶ δακτύλωκν ώµενον), já

nãome parece concebível qu e esse homem tenha podidopô r
em seu espíritou m crime tal comoa derrogaçãoda constitu ição
romana.” (trad. R. Flacelière) Cf. Su etô nio, Vida de César, 45, 3-4.
Coçar a cabeça com u m só dedo(sem dú vida para nãodesman-
char seu penteado) era tidocomogestode u m efeminado. Ver
igu almente Lu ciano, O mestre de retórica 11; Ju venal, IX, 133 e
Ju liano, O banquete ou As saturnais, 323 B.
36. Trata-se esta vez doávidoMarcoLicínioCrasso, otriú n-
viro. Ver Plu tarco, Crassus, I.
37. Por ou tras palavras, u ma vestal. Ver TitoLívio, IV, 44.
38. Cf. Vida de Temístocles, 23.
39. Dístico tomad o a Cresphonte, tragéd ia perd id a d e
Eu rípid es. Cf. Nau ck, T. G. F., Eu rípid es, p. 458, p. 501.
40. Citaçãode Platão(Leis, 731 e) freqü entemente repeti-
d a nodesenvolvimentodeste tratado.
41. Expressõ es desconhecidas, salvoa segu nda, freqü ente
nos poemas homéricos: citemos Il., IV, 350 ou XIV, 83.
42. Leis, 717 e, e 935 a.
43. Cf. De garrulitate, 515 A. Passomanifestamente interpo-
lado, difícil, portanto, de compreender.
44. Citaçãode origem desconhecida.
45. Ver nota precedente.
46. Xantipa, exemplo perfeito da megera indomesticável,
nãoé u ma figu ra de Platão. Provém da tradiçãocínica qu e ex-
traiu de Xenofonte esse traço. Ver por exemploBanquete, 2, 10.

114
Proveito-03NOTAS:Proveito-03NOTAS 25.07.11 13:14 Página 115

Notas

47. Pínd aro, Fragmentos, 123.


48. Anedota freqü entemente repetida: cf. César, 57, ou
Cícero, 40.
49. Plu tarcohabitu almente desconfia das alegrias perversas
qu e, sob pretextos na aparência estimáveis, se instalam na
alma e acabam por se transformar em taras morais. Devem-se,
então, d esprezar as aparências mais deleitáveis: por exemplo,
os elogios de u m sicofanta nãopassam de u ma malevolência
qu e hesita em manifestar-se sob a lingu agem da amenidade;
eles têm a perfídia doescaravelhoqu e evita oolhar e encon-
tra abrigonocálice de u ma rosa (ver De Herodoti malignitate,
874 B C e Adversus Coloten, 1120 D).
50. Plu tarco, Quaestiones conuiuales, VIII, 729 E.
51. Um erro introdu ziu -se no passo: foi Cneu Domício
Ahenobarbo, tribu nodopovoem 104 a.C., qu e desempenhou
as fu nçõ es de acu sador, pretendend oqu e Escau rotinha viola-
doritos nodecu rsode u ma cerimô nia; qu antoaoescravo, ele
pertencia ao pró prio Escau ro. Sobre essa anedota, ler Cícero,
Pro rege Deiotaro, 11 (31).
52. Ver Ed mond s, Lyra graeca, II, p. 278.
53. Pínd aro, Fragmentos, 212.
54. Trata-se aqu i das valas de derivaçãopelas qu ais se des-
via a águ a. A imagem é freqü ente noDe fraterno amore, 487
F, ou nas Memoráveis de Xenofonte, I, 4, 6.
55. Expressão qu ase proverbial tomada de Hesíodo (Os
trabalhos e os dias, 25-26, depois 24).
56. Plu tarcocita com freqü ência esta palavra; ver por exem-
ploVida de Temístocles, 3, 3.
57. Leis, 728 a.
58. Fragmentos, 4, 10-11.
59. Ver supra.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

Da Maneira de Distingu ir o Baju lador do Amigo

1. Caio Jú lio Antíoco Filopapo, descendente dos reis de


Comagena, foi destitu ído por Vespasiano em 72, antes de vir
instalar-se em Atenas, onde desempenhou u m papel eminen-
te na qu alid ade de coregoe arconte. Sobre Filopapo, consu l-
tar B. Pu ech, Le cercle de Plutarque, 1979, tese de terceiro
ciclo(Paris-IV).
2. Platão, Leis, 731 d e.
3. Aristó teles escreve: “Como todos os homens natu ral-
mente têm amor-pró prio, todos consideram normalmente
comoagradáveis os objetos qu e lhes pertencem particu larmen-
te, qu ero dizer seu s discu rsos e su as obras. É por isso qu e
amam com mais freqü ência seu s baju lad ores, seu s amantes,
su as dignidad es, seu s filhos, pois seu s filho , s são su a obra.”,̂
(’Επεὶ δὲ φίλαυτοι πάντες, καὶ τὰ α υτ
Ô ω̂ν αν άγκη η
Ô δέα ,ε ιναι
, ,
πα̂σιν, ο ι̂ον εργα
´ καὶ λόγους. ∆ιὸ καὶ φιλοκόλακες ως Ô επὶ
, τὸ
πολὺ, [καὶ φιλερασταὶ] καὶ φιλότιµοι καὶ φιλ ότεκνοι. αυτ ω̂ν
γ ὰρ έργον τὰ τ έκνα. Retórica, 1371 ,b, 21-25.) Erasmotradu z a
expressão grega σφόδρα φίλαυτός εστι pelas palavras uehe-
menter est amans sui (ver os Opuscula Plutarchi nuper tra-
ducta, Erasmo Roterodamo interprete: Quo pacto quis efficere
possit ut capiat utilitatem ab inimico..., Basiléia, J. Froben,
1514, in-4.º).
4. Platão, Leis 730 c.
5. Bergk, Poet. Lyr. Gr., III, 393. Certos manu scritos pro-
põ em λακύθω. Amyot segu e essa variante; ele tradu z e comen-

ta tu do ju nto: “L’entretenir écu rie ne su it point la lampe, ains
les champs à bled: c’est-à-d ire qu e ce n’est point à faire à pau -
vres gens à entretenir grands chevau lx, ains à ceu lx qu i ont
beau cou p de revenu .” Comolembra J. Sirinelli, é Vu lcobiu s qu e
propô s Zacinto, ilha arborizad a e pou copropícia às pastagens,
para explicar a oposição(op. cit., p. 280, nota 2, qu e leva à pá-
gina 85).
6. Plu tarco mu ltiplica em su a obra esses exemplos realis-

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Notas

tas: ele escreve, nu m ou tro lu gar, qu e as paixõ es nascem na


alma comovermes e larvas (De superstitione, 165 B) ou qu e o
amor, decepcionad opela feiú ra física, se afasta a exemplodos
escaravelhos qu e abandonam operfu me peloestru me (Quaes-
tiones conuiuales, 692 E).
7. Imagem tó pica; a moeda é sempre em Plu tarcoa imagem
da au tenticidade; testar-se-á entãooamigocomou ma moeda.
8. Cf. Plu tarco, De curiositate, 517 A.
9. Trata-se daqu eles qu e, por amor de si, são vítimas dos
aliciadores e d os baju ladores.
10. Hesíodo, Teogonia, 64.
11. Eu rípides, Íon, 732.
12. Cf. Moralia, 126 D, 697 D e 1010 C. Plu tarcofaz alu são
a Eveno de Paros, sofista e poeta elegíaco, mais ou menos
contemporâneode Só crates. Cf. as alu sõ es de Platãoa Eveno:
Apol. 20 a b; Fédon, 60 a, 61 b; Fedro, 267 a.
13. Na Vida de Fócion, Plu tarcolembra qu e os reis somen-
te recorrem aos baju ladores apó s terem lavadoas mãos, istoé,
nomomentodas refeiçõ es, noqu al os assu ntos pou cosérios
podem ser abord ados. Ateneu determina-oigu almente (9, 408
F). Além disso, Plu tarco, fiel às normas da Comédia Média e da
Nova, sabe estabelecer a diferença entre obaju lador e opara-
sita; este ostenta u ma fisionomia sorridente, mas su as orelhas
trazem a marca dos golpes; aqu ele alardeia gravidade; franze
a sobrancelha, comoomostra Pó lu x (IV, 148).
14. Citação dos Bajuladores de Ê u polis (Kock, Com. Att.
Frag., I, fr. 162).
15. Esses “scevoliseu rs”, propõ e Antoine du Saix nu ma tra-
du çãoqu e data de 1537. Comoojovem Mu ciu s Scaevola qu e não
temeu a prova do fogo, o baju lador não receia nem a chama,
nem oferro, nem obronze qu andose trata de ir comer.
16. A histó ria é mencionada em Ateneu, VI, 256 c d.
Plu tarcou sa aí u m jogode palavras intradu zível qu e se apó ia
em κολακίδες (as baju lad oras) e κλιµακίδες (as pequ enas
escadas). Cf. Montaigne, Ensaios, II, 12.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

17. Liter. “segu nd o a maneira d o ator d o d rama satírico”


(υποκριτὴς
Ô σατυρικός).
18. República, 361 a.
19. Ver Heró doto, III, 78.
20. Nau ck, T. G. F., Adesp, n.º 362.
21. A propó sitodeste passo, Racine escreve em seu exem-
plar dos Moralia (B.N. Paris, Rés. J. 105): “Il n’y a point d’yvroie
plu s dangereu se qu e celle qu i ressemble le plu s au bled”
(Hérétiques déguisés).
22. Ver oDe amicorum multitudine, 96 D.
23. “Comocera qu ente”, propõ e du Saix. Erasmomantém-
se fiel a Plu tarco(ceu materiam).
24. Snell, T. G. F. II, Adesp. Fr. 363.
25. Fedro, 239 c. , ,
26. Assim tradu zimos a paronomásia έθη καὶ ήθη (dispo-
siçõ es morais e hábitos). Ver igu almente Platão, Leis, XII, 968
d.
27. Comédia perd ida (Kock, Com. Graec. Frag. Com. ad.
1206) Cf. igu almente Aristó teles, Retórica, 1371 b 12. O pro-
vérbiofinal equ ivale aoSimile gaudet simili, mu itas vezes cita-
d oe qu e se encontra nos Adágios de Erasmo.
28. O desenvolvimento qu e segu e lembra u m passo dos
Praecepta gerendae reipublicae, 800 A ss.
29. Reminiscência de u m passoda República, 493 a.
30. ’Απλου̂ς é freqü entemente opostoa ποικίλος (diverso)
em Platão. Este ú ltimovocábu loaplica-se com mu ita freqü ên-
cia a Alcibíades.
31. Certos editores preferem à palavra πίθηκος (omacaco)

ovocábu loωτος (ogrande bu fo). Com efeito, essa ave de rapi-
na notu rna, segu ndoAristó teles (Hist. Nat., 597 b), é malicio-
sa e imitadora. ,
32. Ou “as cervas malhadas” (βαλίαις ελάφοις). Citaçãode
Eu rípides, Hipólito, 218-219 invertidos.
33. Cf. sobretu doDe Iside, 352 D.
34. Odisséia, XXII, 1.

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Notas

35. Ler Aristó teles, Política, 1292 a 20.


36. Imagem tó pica: ler Fu hrmann, op. cit., pp. 147-148.
37. Odisséia, XVI, 181.
38. Antígona, 533.
39. Liter.: “Ele parece tanto mais afastado de censu rar o
vícioqu antomais se dedica a imitá-lo.”
40. Bergk, Poet. Lyr. Gr. iii 4, p. 669 (Carm. pop. 35).
41. Kock, Com. Att. Frag. I Ê u polis, frag. 346.
42. Calímaco, Aetia, fr. I, 20.
43. Ilíada, XI, 643.
44. Odisséia, IV, 178.
45. Ver Platão, Górgias, 465 b.
46. O nard oé u ma valeriana.
47. O castó reo é u ma secreção do castor, u tilizada como
remédioantiespasmó dico.
48. Sobre opó lio(π όλιον), ou carvalhinha, qu e é u m vu l-
nerário, ver Plínio, XXI, 44 e 145.
49. Ilíada, VIII, 281.
50. Ilíada, X, 243.
51. Ilíada, VII, 109.
52. Discípu lode Fédon.
53. Arcesilau é considerado como o fu ndador da Acade-
mia Média (268-241). Cleanto foi escolarca no Pó rtico (264-
232). Báton é u m au tor da Comédia Média.
54. Xenofonte, Agesilau, XI, 5.
55. Tu cídid es, III, 82.
56. Tema desenvolvidona República, 474 d.
57. Estrú tias é personagem d oBaju lador de Menandro.
58. O bajulador, frag. 3
59. Ibid.
60. Platão, Górgias, 485 d.
61. Ilíada, X, 249.
62 Eu rípides, Alceste, 1159; Bacantes, 1388, sobretu do.
63. Snell, T. G. F. II, 365.
64. Ler Heró d oto, I, 30 ss.

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Como Tirar Proveito de seus Inimigos

65. A Antigu idade transborda dessas anedotas sobre a con-


fiança dos ricos em su as miseráveis habilidades, por pou co
qu e u m parasita venha celebrar o talento deles. Cf. a histó ria
d e Evângelo em Contra um ignorante que preparava para si
uma biblioteca, de Lu cianode Samosate.
66. Filó sofodosécu loII, paladinoda Nova Academia.
67. Bíon de Borístenes, filó sofocínico.
68. Ilíada, XVI, 151.
69. Trata-se sem dú vida de Ptolomeu IV Filopator (221-
204), apelidad oτρύφων.
70. Trata-se do poeta Ágis, qu e foi u m dos mais célebres
cortesãos d e Alexandre, segu ndo o testemu nho de Arriano,
Anáb., IV, 9, 9.
71. Anedota du vidosa e forjada.
72. Trata-se de Caiu s Petroniu s Arbiter, oau tor doSatiricon.
Mas nenhu m testemu nhosobre oescritor – cf. sobretu doa nar-
rativa de Tácito, Annales, XVI, 17 ss. – permite firmar essa ob-
servação.
73. Ésqu ilo, Mirmidões; cf. Platão, Banquete, 180 c.
74. Odisséia, X, 329. É Circe qu e se dirige a Ulisses.
75. Um dos sete Sábios.
76. Eu rípides, Fenícias, 472.
77. Odisséia, V, 90.
78. Odisséia, V, 89.
79. Kock, Com. Att. Frag., III, 432, Com. ad. 125.
80. Eu rípides, talvez Ino. Nau ck, T. G. F. 412.
81. Eu rípides, Erecteu, ibid., 362, 18-20.
82. Talvez versos de Empédocles.
83. Idéia de Hesíodo, Trabalhos, 235.
84. Eu rípides, Ifigênia em Aulis, 407.
85. Píndaro, Fragmentos, 206 (ed. Snell-Machler).
86. Ilíada, XIV, 84.
87. Ilíada, XX, 467.
88. Mistu ra de du as citaçõ es da Ilíada, XI, 654 e XIII, 675.
89. Ilíada, XVI, 33-35.

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Notas

90. Snell, Frag. 248.


91. Orestes, 667.
92. Eu rípides, Íon, 732.
93. Eu rípides, Fr. 962.
94. Sobre a coroa, 198.
95. Ilíada, IX, 108.
96. Estenebeu . Ver Nau ck T. G. F. 665
97. Odisséia, I, 157; IV, 70; XVII, 592.
98. Acarnianos, 503.
99. Tu cídid es, I, 70.
100. Eu rípides, T. G. F. 1086.
101. Ilíada, XI, 313.
102. Ilíada, VIII, 234.
103. Ilíada, I, 70.
104. Ilíada, XIII, 116 ss. (trad. Ricard).
105. Ilíada, V, 171-172.
106. Eu rípides, Fenícias, 1688.
107. Eu rípides, Héracles, 1250.
108. Ilíada, V, 800.
109. Eu rípides, Fr. 683 a.
110. II, 65, 5.
111. Eu rípides, Fenícias, 532.
112. Eu rípides, Fenícias, 528.
113. Ilíada, VI, 326.
114. Ilíada, IX, 109.
115. Só focles, fr. 566.

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