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Luciana Christante

MariadeHelena
Moura Neves
Em defesa de uma gramática que funcione
sificar mecanicamente palavras, locuções mostrar que a riqueza e o dinamismo da
Uma das principais e orações, o que é afinal? “É aquilo que língua não cabem em manuais engessa-
linguistas do país, arranja e arquiteta a produção de senti- dos, ela cita o caso do “mas”.
pesquisadora da dos. É a língua no seu funcionamento. A Segundo a norma gramatical, “mas” é
Unesp de Araraquara maior parte do que se decora nas aulas uma conjunção adversativa, ou seja, serve
critica o ensino de gramática não é verdade, porque não é somente para ligar duas orações contrárias.
atual e defende assim que a linguagem funciona”, afirma. Na prática, porém, ela aparece conectando
que a disciplina Maria Helena é uma gramática funciona- também frases que vão na mesma direção.
é fascinante lista – vertente na qual o que importa é a “Comprei esse livro, mas em São Paulo”,
função, determinada pelo uso, das formas exemplifica a autora em sua sala no câm-
linguísticas. Em vez de se pautar pelo que pus de Araraquara. Outro exemplo, desta
prescrevem os manuais e julgar o que é vez literário, vem do conto O búfalo, de

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ara a maioria das pessoas alfa- certo ou errado, ela usa uma abordagem Clarice Lispector, cuja primeira frase é
betizadas no Brasil, gramática científica para analisar a gramática viva. “Mas era primavera.”. “Ninguém pode dizer
é sinônimo de decoreba. Maria Boa parte de seu trabalho é baseado num que Clarice não sabia gramática”, ironiza.
Helena de Moura Neves, 78, uma das mais corpus, uma base de dados informatizada É nesse terreno escorregadio da lingua-
respeitadas linguistas do país, concorda: que reúne diversos tipos de textos (jor- gem, em que as palavras deslizam para con-
“Isso que se ensina na escola é ‘grama- nalísticos, didáticos, ficcionais, oratórios
tiquice’”. Antes não houvesse, segundo etc.) publicados no Brasil desde o século
ela, porque cria um bloqueio nos alunos 19. Um trabalho que foi desenvolvido por
e impede que se veja sua real beleza. Para ela e seu colega Francisco da Silva Borba.
a professora aposentada da Faculdade de Iniciado nos anos 1980 e atualizado pe-
Ciências e Letras da Unesp em Araraquara, riodicamente, o corpus é uma gigantesca Sempre

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gramática é algo fascinante, é a vida da amostra do português real – contém hoje preciso fazer

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língua. E nada tem de rígida como fazem cerca de 200 milhões de palavras (leia re- um parêntese

el en a, a o c on
parecer os manuais que quase ninguém portagem em Unesp Ciência, 1ª edição). para explicar
abre. “Quando digo que esta é minha espe- Contrastar regra e realidade é uma das que não fico o dia
inteiro procurando
cialidade, sempre preciso fazer um parên- principais linhas de trabalho da pesqui-
sujeito, verbo
tese para explicar que não fico o dia todo sadora, o que rendeu dois livros: Guia de
Guilherme Gomes

e predicado.

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procurando sujeito, verbo e predicado”, uso do português (Editora Unesp, 2000) e

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diz, bem-humorada. Gramática de usos do português (Editora

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Se gramática não é apenas um conjunto Unesp, 2003) – dois catataus, um com 800 espe cialida
de regras tediosas que servem para clas- e o outro com mais de mil páginas. Para

6 unespciência .:. dezembro de 2009 dezembro de 2009 .:. unespciência


sentido fazer uma gramática normativa, recebido por ter sido a melhor aluna de a frase com gerúndio você minimiza uma
O que dizem mas hoje não. Por inércia e falta de com- sua turma de Magistério. Seu fascínio pela ordem, dilui a ação no tempo. Fica mais
sobre Maria Helena preensão, continuamos reproduzindo esse gramática, porém, é anterior. Ainda me- polido. O problema é que acabou criando
modelo”, afirma a pesquisadora. nina, costumava abrir sobre a mesa três um calo, mas também não precisa abolir.”
Foi por causa da Grécia Antiga que Maria edições de Os lusíadas para compará-las. A língua tem mecanismos de defesa,
Francisco da Silva Borba Helena entrou para a academia. Em 1967, Com uma legião de fãs no país, a pes- segundo ela. Como exemplo, cita os es-
prof. aposentado da Unesp em Araraquara
a então Faculdade de Filosofia, Ciências e quisadora protagonizou um evento atípico trangeirismos usados como estratégia de
Além de ser muito inteligente, ela Letras de Araraquara (depois encampada em agosto de 2008, em Araraquara. Seus marketing que a população geralmente
tem uma determinação e uma dis- pela Unesp) criou a graduação em Letras ex-orientandos e colegas organizaram um ignora. Apesar do que ditam algumas vi-
ciplina incríveis. A agilidade mental Português-Grego. Com os três filhos já prati- congresso para homenageá-la. Foram três trines, ninguém diz “Eu vou a uma sale”
dela é invejável. Vive o trabalho com camente criados, ela não resistiu e prestou dias de programação com a fina nata da ou “Comprei esta blusa com 50% off”. “Não
muita intensidade e está sempre dis- o vestibular. Depois de duas especializa- Linguística brasileira apresentando e de- adianta fazer lei, quem vai dizer o que fi-
posta a aprender com seus alunos. ções (em Linguística e Grego), também em batendo diversas vertentes da pesquisa em ca é o povo.” Ela também não teme pela
Escreve com clareza e simplicidade. Araraquara, partiu direto para o doutora- gramática, não só a funcionalista. “Quería- extinção da literatura diante da avalanche
É a pesquisadora mais produtiva que do em Filosofia na USP, que cursou com a mos demonstrar nossa admiração por suas de livros de autoajuda que, para ela, não

Arquivo Pessoal
conheço. É dela a melhor gramática licenciatura em Alemão na Unesp – para inestimáveis contribuições à Linguística, valem como leitura. “A literatura coloca o
que existe atualmente, pois reflete poder ler a literatura da área, na época pela sua atuação generosa e exemplar na leitor numa situação de interlocução. Ele
exatamente como a língua funciona. majoritariamente germânica. formação de novos pesquisadores, pela vai imaginar, sentir, se enlevar, se elevar.
Sua contribuição para a Linguística A tese deu origem ao livro A vertente afetividade que partilha com todos que A autoajuda tem outra função, que é re-
brasileira é inegável. A linguista autografando sua Gramática de usos do português em Salvador em 2000 grega da gramática, de 1987 (reeditado dela se acercam”, diz a organizadora do solver problemas.” Para a linguista, a boa
pela Editora Unesp em 2004). “É uma obra evento, Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher, literatura nunca vai acabar.
ferir ao texto diferentes efeitos de sentido, Mudar isso é função da universidade, notável em que ela faz um estudo muito ex-aluna e hoje professora da Unesp em Outro tema candente para o qual a pes-
José Luiz Fiorin que a linguista transita com desenvoltura avalia. “O ponto crítico é a formação dos aprofundado da filosofia grega para desvelar São José do Rio Preto. Sua obra é reconhe- quisadora vem sendo muito requisitada é
professor aposentado da USP
e gostaria de ver os alunos mergulhados. professores”, diz. “Eles têm de sair da fa- as bases teóricas e o contexto que cercam cida inclusive por colegas de universidades o acordo ortográfico, que ela julga neces-
Sua obra apresenta não apenas ex- Esse é o caminho, segundo ela, para re- culdade com a noção de que a linguagem é o aparecimento da gramática”, afirma José portuguesas, que frequentemente a convi- sário, embora critique a forma como foi
tensão máxima como uma qualida- conhecer as características objetivas, per- operacionalizável no uso, que ela é nosso Luiz Fiorin, professor aposentado de Lin- dam para participar em eventos além-mar. implementado. “Vivemos num mundo
de de mais alto grau. Profunda co- suasivas ou poéticas de um texto, o que instrumento de reflexão. É curioso que, jus- guística da USP e colega de Maria Helena Maria Helena confessa que é do tipo de globalizado, então é importante que Bra-
nhecedora da tradição gramatical, é muito mais importante do que saber se tamente na aula que trabalha a linguagem, dos tempos de especialização. orientadora que “pega no colo”, mas exige sil e Portugal escrevam da mesma forma.”
ela tem plena noção do preceituário o sujeito é composto ou oculto. “Desse não exista espaço para reflexão.” Essa é a Aposentada desde 1987, mas sem nunca dedicação. Alunos de iniciação científica ela Por outro lado, diz, houve uma série de
normativista dos nossos compêndios modo, o aluno cria gatilhos mentais, de mensagem que ela passa quando participa ter deixado de trabalhar, a rotina atual da só aceita se puderem passar quatro horas equívocos de interpretação do acordo, que
gramaticais. Conhece muito bem, por forma que quando quer falar ou escrever de cursos dirigidos a educadores e nas pa- pesquisadora deixaria muitos jovens com diárias na sua casa. “Quando eles terminam acarretaram diversos problemas ao Voca-
sua minuciosa pesquisa, como estão para produzir tal sentido, ele aciona esse lestras que dá pelo Brasil, quase sempre olheiras profundas. Dormindo cerca de qua- o trabalho, já estão com o projeto de mes- bulário Ortográfico da Língua Portuguesa,
sendo distribuídas as diferentes for- processamento.” Em vez de ficar tateando diante de auditórios lotados. tro horas por dia, ela dá aula nos cursos de trado pronto”, orgulha-se. Os orientandos o Volp, elaborado pela Academia Brasileira
mas no uso vivo da língua. Sua car- a superfície das palavras, o aluno deveria Mas diagnosticar o problema e apontar pós-graduação da Unesp em Araraquara e de mestrado e doutorado sempre somam de Letras. Segundo ela, é por isso que o
reira é de uma notável coerência. ser levado a penetrar no texto, defende. caminhos para mudança não é o suficiente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, dez, “que é o máximo permitido pela Ca- acordo tem gerado tanta confusão, prin-
Conhecê-la e ser seu amigo foi um As críticas ao ensino formal de gramá- para a pesquisadora. Seu trabalho ajuda em São Paulo. É coordenadora do gru- pes”, justifica. Nesse ritmo, ela já formou cipalmente no caso da hifenização. “Vão
dos maiores privilégios que a vida tica partem de alguém que conhece bem a entender também as raízes históricas po de pesquisa em gramática de usos do cerca de meia centena de pesquisadores ter de consertar o Volp”, decreta.
acadêmica me ofereceu. a realidade da educação brasileira. Antes que explicam o anacronismo do ensino CNPq e assessora do órgão na concessão e não pretende parar tão cedo.
de concluir a graduação em Letras, aos contemporâneo da disciplina. de bolsas na área de Linguística. Autora de
39 anos, Maria Helena foi professora de mais de 20 livros, está prestes a começar Modismos e acordo ortográfico
Marize Mattos português em escola pública, no ensino Raízes gregas a trabalhar num novo dicionário de usos Para alguém que entende a língua como um
Dall’Aglio Hattnher fundamental e médio, durante quase duas A gramática, como estudo da língua, surgiu do português, coordenado por Francisco sistema dinâmico e indeterminado, fenô-
professora da Unesp em S. José do Rio Preto
décadas. Essa bagagem a levou, vários anos na Grécia Antiga, com caráter explicitamen- da Silva Borba, com quem já produziu menos atuais como o excesso de estrangei- Eles

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Ser orientada por ela é ter a experi- mais tarde, a investigar os descaminhos te normativo (o termo grego grammatiké três outras obras semelhantes. rismos e gerundismos não são exatamente têm de sair

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ência de aprender com a clareza de do ensino básico da disciplina. Em A gra- significa “a arte de ler e escrever”). O pri- “Ao conhecê-la na seleção para a espe- um problema, ainda que muitos os vejam da faculdade

el en a, s ob r e
com a noção de
seu raciocínio; é encontrar o encan- mática – história, teoria e análise, ensino meiro manual conhecido data do século cialização em Linguística, em 1975, des- como atentados ao bom português. Sobre
que a linguagem é
tamento a cada nova pergunta que (Editora Unesp, 2001), Maria Helena traça 1º a.C. e foi produzido na biblioteca de cobri o que era ser o segundo da classe”, a invasão de palavras de origem inglesa
operacionalizável no

es
deriva de uma pesquisa; é aprender um diagnóstico desanimador: “100% dos Alexandria. Por essa época, a civilização recorda Fiorin. Ele destaca ainda que Maria no vocabulário, Maria Helena relativiza uso, que ela é nosso

s or
a pensar com autonomia; é ter a cer- professores entrevistados afirmam ensinar grega já estava ruindo, como resultado de Helena é a primeira mulher autora de uma lembrando que, quando o francês ditava instrumento de

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teza de uma companhia atenta, de gramática. Uma conclusão muito grave que um longo período de invasões bárbaras. gramática no Brasil. Ser a primeira, aliás, a moda, condenavam-se os galicismos. reflexão.

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uma instrução segura. se tira dos resultados da pesquisa, porém, Assim, a normatização foi uma resposta à é algo a que ela está acostumada desde ce- Já em relação ao gerundismo, a pesqui- ve e
ri a od
é que os professores confessam que seu necessidade de preservar a língua e a cul- do. A vaga de professora na rede pública, sadora vê o fenômeno como resultado do s er a f or m aç ã
trabalho (...) ‘não serve para nada’”. tura. “Naquelas circunstâncias, fazia todo que assumiu com 18 anos, foi um prêmio surgimento dos call centers. “Construindo

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