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Educação e Pesquisa

Revista da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Education and Research


Journal of the School of Education, University of São Paulo

Universidade de São Paulo / University of São Paulo


Reitor/Rector: Marco Antonio Zago
Vice-Reitor/Vice-Rector: Vahan Agopyan

Faculdade de Educação / School of Education


Diretora/Dean: Belmira Amélia de Barros Oliveira Bueno
Vice-Diretora/Vice-Dean: Diana Gonçalves Vidal

Editoras / Editors
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Teresa Cristina Rego - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

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Émerson de Pietri - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Lucia Helena Sasseron Roberto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Maria Ângela Borges Salvadori - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Marília Pinto Carvalho - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Rosângela Gavioli Prieto - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Vinicio de Macedo Santos - Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil

Secretaria de Edições / Editions Office


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Conselho Editorial / Editorial Board


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Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, Brasil
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Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil Université de Genève, Genève, Suíça
Elsie Rockwell Marília Fonseca
Instituto Politécnico Nacional, Zacatenco, Distrito Federal, México Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
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Universidad de Barcelona, Barcelona, Espanha Universidade de São Paulo, São Paulo, SP,Brasil
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Humboldt Universiät, Berlin, Alemanha Universidad Nacional de Buenos Aires, Argentina
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Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil
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Luiz Antônio Cunha Zeila de Brito Fabri Demartini
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
Magda Becker Soares
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

Revista financiada com recursos de


Educação e Pesquisa
revista da faculdade de educação da usp
Educação e Pesquisa São Paulo v. 40 n. 3 280 p. jul./set. 2014

ISSN 1517-9702
Educação e Pesquisa, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.

EDUCAÇÃO E PESQUISA publica artigos inéditos na área de educação, em especial resultados de


pesquisa de caráter teórico ou empírico, bem como revisões da literatura de pesquisa educacional.

Educação e Pesquisa. São Paulo, FE/USP, 1975.

Trimestral
Publicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Continuação da Revista da Faculdade de Educação da USP
ISSN 1517-9702
1. Educação.

Indexada em / Indexed in:

AERA SIG - Communication of Research (EUA, www.aera-cr.asu.edu)


BBE - Bibliografia Brasileira de Educação (Brasil, INEP)
CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades (México, UNAM)
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EDUBASE (Brasil, FE/Unicamp)
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en Caribe, Espanã y Portugal (México)
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Copidesque e revisão / Copy desk and proofreading: Ana Paula C. Renesto


Editoração eletrônica / Desktop publishing: Anna Cecília de Paula Cruz
Versão para o inglês / English version: Ana Paula C. Renesto e Luiz Ramires Neto
Projeto gráfico e ilustrações / Graphic design and illustrations: Daniel Bueno e Fernando de Almeida

E-mail: revedu@usp.br
Solicita-se permuta / Exchange is requested

Tiragem: 800 exemplares


Sumário
589 Editorial
Artigos
599 La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios colombianos
Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita
617 Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e processos
Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza
637 Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada
em casos
Andreia Cristina Metzner
651 O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC)
Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk;
Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila
667 Contribuições da perspectiva crítica de base histórico-cultural para a produção científica
em psicologia educacional
Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino
683 Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP
Marcos Cezar de Freitas
699 La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso
latinoamericano
Jaime Rogelio Calderón López-Velarde
717 O sucesso escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização
familiar?
Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges
735 As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em instituições católicas
Carlos Manoel Pimenta Pires
751 Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos
Victor Andrade de Melo
767 Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia
solidária internacional
Antonio Takao Kanamaru
783 A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco
799 Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em
Honneth e Rousseau
Claudio Almir Dalbosco
813 Experiência e linguagem em Walter Benjamin
Eloiza Gurgel Pires

Entrevista
829 Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
Entrevistador: Danilo R. Streck
845 Instruções aos colaboradores

859 Leia também

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.


Contents
589 Editorial
Articles
599 Teaching and its relation to knowledge among Colombian university students
Miguel Ángel Gómez Mendoza; María Victoria Alzate Piedranhita
617 The relationship of higher education students to knowledge: learnings and processes
Maria Gabriela Parenti Bicalho; Maria Celeste Reis Fernandes Souza
637 A teaching proposal implemented in an undergraduate Physical Education program:
case-Based Learning
Andreia Cristina Metzner
651 Performance of Brazilian universities in view of the General Course Index (IGC)
Celina Hoffmann; Roselaine Ruviaro Zanini; Ângela Cristina Corrêa; Julio Cezar Mairesse Siluk;
Vitor Francisco Schuch Júnior; Lucas Veiga Ávila
667 Contributions of the cultural-historical-based critical perspective to scientific production
in educational psychology
Laísy de Lima; Simone Salviano Alves; Jaqueline Vilar Ramalho; Fabíola de Sousa Braz Aquino
683 Performance and adaptation of poor children to school: the research pattern of CRPE-SP
Marcos Cezar de Freitas
699 Investigation on youth and adult education: the theses of a Latin American contest
Jaime Rogelio Calderón López-Velarde
717 School success of girls from poor communities: what is the role of family socialization?
Marília Pinto de Carvalho; Adriano Souza Senkevics; Tatiana Avila Loges
735 The mortification of the flesh and the desire exposed: control over girls in Catholic institutions
Carlos Manoel Pimenta Pires
751 Body education – social dance in 19th century Rio de Janeiro: the Paranhos point of view
Victor Andrade de Melo
767 Autonomy, cooperativeness and self-management in Freinet: foundations of an
international solidarity pedagogy
Antonio Takao Kanamaru
783 Progressive education today: the legacy of John Dewey
Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco
799 The human condition and the virtuous education of the will: the depths of recognition in
Honneth and Rousseau
Claudio Almir Dalbosco
813 Experience and language in Walter Benjamin
Eloiza Gurgel Pires

Interview
829 Ecological rationality and citizenship education: interview with Gerd Gigerenzer
Interviewer: Danilo R. Streck

845 Instructions to authors


859 See also

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 280 p., jul./set. 2014.


Editorial

O acesso a artigos científicos em meio digital evidenciou que a relação do leitor com o texto possa
se fazer de modo um tanto mais direto, isto é, sem que necessariamente o leitor,
no seu percurso em busca da referência bibliográfica, se depare com informações
sobre o processo de edição que antecedeu e possibilitou a publicação do trabalho.
Um dos efeitos que essa relação um leitor – um texto pode produzir é também
a não necessária localização do artigo a ser lido no interior de um conjunto em
que componha uma organização. A ideia de unificação que sustenta o processo
de organização de um número de periódico científico pode se enfrentar, assim,
com a prevalência da unidade e da autonomia de cada um dos textos sobre a
ideia de organicidade que sustenta a edição de uma revista científica. O mundo
digital nos fez perceber de modo mais decisivo que a parte pode sobressair ou
se sobrepor ao todo.

Mas é justamente nas condições em que a parte, o fragmento, o heterogêneo, encontram-se em


lugar de relevo que a organização de um conjunto pode se mostrar tanto mais
produtiva. Em razão de projetar um leitor não apenas em busca de seus interesses
mais imediatos, projeta-se também um leitor que possa encontrar, no volume
a ser lido, uma coletânea em que questionamentos se fortaleçam com base no
próprio diálogo que se possa vislumbrar entre os textos aproximados para compor
o conjunto. E isso é tanto mais interessante quando se considera a multiplicidade
de perspectivas teóricas e metodológicas que compõem um campo como o da
educação e a qualidade dos debates que se apresenta nas produções que se
destinam à publicação em uma revista como Educação e Pesquisa.

É com satisfação que se apresenta, portanto, o terceiro número que compõe o volume 40 de
nosso periódico. Encontram-se nele artigos que propõem de modo instigante a
observação de questões educacionais segundo pontos de vista que se pretendem
distintos, inovadores, porque questionadores dos modos como estabelecidos, ou,
por vezes, estabilizados, dos processos de elaboração teórica e/ou metodológica
que sustentam as investigações em suas respectivas áreas. Os princípios que
orientam a organização do presente número de Educação e Pesquisa são, assim,
o questionamento das referências estabelecidas e a proposição de perspectivas
diferenciadas para a produção de conhecimentos no campo educacional.

Nesse sentido, abre a coletânea um conjunto de quatro artigos que se reúnem em torno do
questionamento sobre relações estabelecidas com o saber produzido. No primeiro
deles, “La enseñanza y su relación con el saber en los estudiantes universitarios
colombianos”, Miguel Ángel Gómez Mendoza e María Victoria Alzate
Piedranhita apresentam resultados de pesquisa que se orientou por conhecer
quais mecanismos estariam dificultando o sucesso de estudantes universitários
colombianos em seu percurso acadêmico, num contexto de massificação do
acesso à universidade. Ao questionar os modos como estudantes universitários
estabelecem suas relações com o saber em geral, e com o acadêmico em

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-970220144003001 589


particular, os autores partem do pressuposto de que não se trata de atribuir as
dificuldades acadêmicas dos alunos a carências que trazem de seus contextos
sociais de origem, mas a especificidades do ensino universitário e aos modos
como se conduzem as práticas pedagógicas na academia. São esse pressuposto
e o apoio em proposta teórico-metodológica referenciada na noção de relação
com, elaborada por Bernard Charlot, que sustentam a observação acurada e a
análise produtiva e reveladora sobre as relações do estudante universitário com
o contexto de aprendizagem que encontra na universidade.

O próximo texto desse primeiro conjunto também apresenta questionamentos sobre a relação
do estudante universitário com o saber, mas, neste caso, em contexto brasileiro.
Em “Relação com o saber de estudantes universitários: aprendizagens e
processos”, Maria Gabriela Parenti Bicalho e Maria Celeste Reis Fernandes
Souza também se referenciam na proposta teórico-metodológica de Bernard
Charlot para observar os modos como alunos de uma instituição de ensino
superior comunitária, privada, localizada em Minas Gerais, se relacionam
com os saberes que se lhes apresentam em seu percurso universitário para
a formação profissional. As autoras examinam os diferentes modos como os
sujeitos da pesquisa representam a formação universitária e como valoram a
função dessa experiência em relação a sua formação prévia, aos seus valores
sociais e culturais trazidos da escola básica e da família, e a seus projetos
presentes e futuros. Com a análise dos dados, evidenciam-se características
do contexto observado que proporcionam questionamentos decisivos, quanto
aos objetivos propostos e aos alcançados, para a formação profissional em
Instituições de Ensino Superior, se consideradas as percepções dos estudantes
sobre os modos de sua inserção nesse processo formativo.

Em “Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem baseada em


casos”, Andreia Cristina Metzner problematiza a ordenação curricular centrada
na noção de disciplina e na ausência de estabelecimento de relações entre as
unidades curriculares que compõem os cursos do ensino superior. A formação
de professores se depararia, assim, com a impossibilidade de elaboração de um
currículo mais orgânico, o que, nesse sentido, estaria relacionado com a dificuldade
de se realizar um processo formativo fundado na interdisciplinaridade e na
transdisciplinaridade. Uma perspectiva de solução para essa ordem existente seria
a organização do ensino em torno da aprendizagem baseada em casos. Os dados
da pesquisa se produziram com o emprego dessa metodologia, em experiência
desenvolvida em um curso de Educação Física de uma Instituição de Ensino
Superior, localizada no interior do estado de São Paulo. Em torno da atividade
formativa com os alunos, outras ações acadêmicas compuseram a experiência
desenvolvida, de modo a se realizar um trabalho que respondesse aos princípios
de inter e transdisciplinaridade que orientaram a pesquisa.

Encerra este primeiro conjunto o artigo “O desempenho das universidades brasileiras na perspectiva
do Índice Geral de Cursos (IGC)”, de autoria de Celina Hoffmann, Roselaine
Ruviaro Zanini, Ângela Cristina Corrêa, Julio Cezar Mairesse Siluk, Vitor

590 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.


Francisco Schuch Júnior e Lucas Veiga Ávila. Trata-se também de trabalho em
que se observam as relações dos sujeitos com os saberes acadêmicos, porém, neste
caso, a partir da perspectiva institucional. Colocando-se em face das discussões
críticas sobre os processos de avaliação das Instituições de Ensino Superior
no Brasil, os autores apresentam os problemas historicamente apontados para
esses processos, e os questionamentos sobre suas bases epistemológicas, suas
diretrizes valorativas e suas consequências sociais. Após esses apontamentos,
estabelecem posicionamento dissonante ao que fora revisado na literatura sobre
o assunto, e propõem-se a considerar as contribuições que pode oferecer, para
a avaliação da qualidade do ensino superior, a análise dos resultados do Índice
Geral de Cursos, produzidos no interior do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Superior (SINAES).

No segundo conjunto de artigos a compor este número da revista Educação e Pesquisa, reúnem-se
trabalhos produzidos com o objetivo de revisar o que se produziu historicamente
nas áreas em que se inserem. Em “Contribuições da perspectiva crítica de base
histórico-cultural para a produção científica em psicologia educacional”, Laísy
de Lima, Simone Salviano Alves, Jaqueline Vilar Ramalho e Fabíola de Sousa
Braz Aquino se propõem a mapear, dentre as produções em psicologia escolar e
educacional, aquelas que se filiam à abordagem histórico-cultural de ascendência
vigotskiana. O objetivo é o de reconhecer a produtividade em pesquisas que se
alinham a essa vertente teórica, para contribuir com os processos de investigação
que se realizem segundo essa perspectiva. Mais do que isso, encontra-se, no artigo,
abordagem das produções analisadas que as posiciona em face da elaboração
histórica que as tornou possível, com o que se oferece ao leitor, portanto, dimensão
crítica de relevo para se observar a constituição de uma concepção teórica que,
segundo as autoras, se associa ao compromisso da investigação científica com o
que é do social e da cidadania.

No artigo “Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa do CRPE-SP”,


Marcos Cezar de Freitas observa de que modo se produziu um novo padrão de
pesquisa no Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (CRPE-SP),
entre 1956 e 1963. O autor analisa as filiações teórico-metodológicas de dois de
seus principais pesquisadores no período, Dante Moreira Leite e Luiz Pereira, e as
proposições que desenvolvem para o tratamento das relações entre a constituição
da cidade de São Paulo em metrópole, com o processo de urbanização por que
passava o país naquele momento histórico, e, associadamente a esse processo, a
chegada, à escola, de crianças pobres. O novo padrão de pesquisa desenvolvido
conduziu à possibilidade de observar o desempenho insatisfatório da criança de
periferia na escola não como decorrente de aspectos biológicos, mas de questões
sociais, com o que se evidenciava o funcionamento de um princípio de exclusão
a regular as avaliações sobre o aproveitamento escolar. Trata-se, portanto, de
um momento de produtividade determinante para a pesquisa em sociologia da
educação, tanto no que se refere às novas possibilidades teórico-metodológicas
que se elaboravam, quanto aos resultados obtidos com as investigações realizadas.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 591


Em “La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas: las tesis de un concurso
latino-americano”, Jaime Rogelio Calderón López-Velarde mapeia a distribuição,
no contexto da América Latina e do Caribe, das investigações na área. Para tanto,
discute a própria compreensão que tem sido historicamente construída do que seja
a Educação de Jovens e Adultos e as consequências que têm produzido uma ou
outra proposta de definição para o que a constitui. Considera, assim, os avanços
obtidos nesse processo de (re)definições, e aponta para os desafios que a partir delas
se apresentam. Ao tratar teórico-metodologicamente os dados de análise, observa,
contrastivamente, as características das investigações em Educação de Jovens e
Adultos desenvolvidas nos diferentes países representados pelos documentos que
compõem o corpus da pesquisa. Mostra-se, assim, não apenas um painel histórico
e geográfico sobre a produção de conhecimento na área, mas também dos modos
diversos de inserção institucional que a Educação de Jovens e Adultos encontra nos
contextos analisados.

O terceiro conjunto de artigos se reúne em torno da temática do controle dos sujeitos e dos efeitos que
as formas de controle produzem para os processos educativos. O artigo “O sucesso
escolar de meninas de camadas populares: qual o papel da socialização familiar?”,
de autoria de Marília Pinto de Carvalho, Adriano Souza Senkevics e Tatiana Avila
Loges, apresenta resultados de pesquisa de caráter qualitativo, desenvolvida ao
longo de 2011, com oito famílias de setores populares da cidade de São Paulo.
O objetivo foi o de investigar como as diferenças na educação de meninos e na
educação de meninas, tais como representadas e realizadas pelos sujeitos das
famílias participantes da pesquisa, poderiam se associar ao desempenho mais e
menos satisfatório de meninas e meninos na escola. Os autores se propuseram
a romper com as abordagens dicotômicas encontradas em pesquisas que se
voltaram anteriormente sobre a mesma temática, de maneira a não relacionar de
modo estreito o sucesso escolar de meninas ao aprendizado da subordinação a que
estariam social e historicamente submetidas. Antes disso, procuraram observar as
respostas que os dados ofereceram às perguntas orientadoras da investigação e
tratar dessas respostas seguindo o princípio de que as relações de poder ligadas ao
gênero se constituem segundo dimensões contraditórias. Assim, dizem os autores:
“para não reiterar pressupostos afirmados de antemão, buscamos apreender
na análise tanto dimensões de ruptura quanto de manutenção das posições
subordinadas das mulheres”.

Artigo igualmente instigante é “As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre
meninas em instituições católicas”, de Carlos Manoel Pimenta Pires. Em bases
foucaultianas, o autor analisa o chamado Manual de piedade da donzela cristã,
material didático utilizado para a educação de meninas em internatos e conventos,
na segunda metade do século XIX e início do século XX, em Portugal. A hipótese
com que trabalha é a de que, no século XIX, processou-se a formação de episteme e
moral específicas da mulher, de modo a centrar o feminino como agente produtivo
da moralidade para a sociedade que se organizaria então no mundo ocidental e
de que muitos elementos nos encontrariam ainda hoje, na contemporaneidade. A
tese é a de que as instruções eclesiais participaram decisivamente do processo de

592 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.


formação desse sujeito feminino, com o que a Igreja teria pretendido, inclusive,
oferecer uma solução para a tensão gerada entre a vida privada familiar e a
convivência pública, no momento em que as sociedades soberanas começam a
ceder espaço para as sociedades industriais.

Também sobre o processo civilizatório, encerra esse terceiro conjunto o artigo “Educação do corpo
– bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos”. Com a análise de
crônicas publicadas no Jornal do Commercio por José Maria da Silva Paranhos,
personagem decisivo para a conformação do Império brasileiro, Victor Andrade
de Melo observa a importância dos bailes e das sociedades dançantes, não apenas
para a vida social, política e cultural do Rio de Janeiro da época, mas, nesse
caso, para a própria educação dos sujeitos que se constituíam nessa sociedade
que buscava um processo de promoção da civilidade. Em seus escritos, Paranhos
apresentou projetos para o Brasil, e o tratamento de temas relacionados aos bailes
e às danças compunha um de seus meios para a representação do que se desejaria
para uma nação não atrasada e para a evidência de uma elite em contraste com
o povo não educado. As danças da elite e as danças do povo marcavam o lugar
da separação entre uma e outra dessas classes sociais. Para a elite, os bailes
e a dança significavam a chance de polir os costumes, segundo Paranhos, de
modo a possibilitar conviver não elite e povo, mas os diferentes sociais que se
encontravam para compor essa classe privilegiada.

No último grupo de artigos que compõem este número de Educação e Pesquisa, encontram-se
trabalhos que se aproximam no objetivo comum de dialogar com a obra de
pensadores, direta ou não diretamente relacionados ao campo educacional, de
modo a produzirem-se discussões e subsídios para processos educativos. Nesse
sentido, em “Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos
de uma pedagogia solidária internacional”, Antonio Takao Kanamaru propõe-se
a observar o que seria um aspecto pouco considerado da obra do educador: “a
solidariedade radical em seus meios e seus fins”. A hipótese defendida é a de que o
cooperativismo e a autogestão seriam os pontos fundamentais das proposições de
Freinet, porque se associariam a uma pedagogia solidária de caráter internacional.
A defesa dessa hipótese se sustenta na observação de outra característica
também pouco explorada da obra desse autor: a presença de uma interpretação
heterodoxa do marxismo, sobre a alienação do sujeito produtor, as relações
materiais de produção, e a doutrina internacionalista de Marx. Nessas bases, a
pedagogia de Freinet se reinvestiria de ainda mais relevância na atualidade, pois
contraposta aos cerceamentos que políticas educacionais de caráter tecnocrático
e concorrencial, associadas a objetivos mercadológicos e financeiros, impõem à
liberdade pedagógica.

“A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey”, de autoria de Maria Luísa Frazão
Rodrigues Branco, contrasta também as propostas pedagógicas da educação
progressiva aos impedimentos à liberdade que representam na atualidade as políticas
educacionais de base neoliberal. Para responder ao objetivo de seu trabalho, a
autora revisita a obra de John Dewey em busca de assinalar os conceitos centrais

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 593


de seu pensamento pedagógico, para, em seguida, analisar como esses saberes
foram apropriados e desenvolvidos pelos pesquisadores que se propuseram a dar
continuidade ao trabalho do autor. Como no artigo anteriormente apresentado,
também neste se observa a caracterização do posicionamento político subjacente
à proposta pedagógica em análise, bem como aos modos como projetados os
sujeitos sociais que se constituiriam num processo formativo assentado nas
bases defendidas nessa concepção de ensino, de aprendizagem e de convivência
democrática no espaço escolar.

“Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento em Honneth


e Rousseau”, de Claudio Almir Dalbosco, apresenta ao leitor a proposta do autor
de observar que a Rousseau deveria ser atribuído não mais apenas o papel de
fundador da liberdade reflexiva, mas também da liberdade social. Para tanto,
discute em que sentido é possível reconhecer, nas considerações de Rousseau que
sustentam a teoria do reconhecimento, como a educação do amor próprio “apenas
se deixa compreender adequadamente como teoria da formação virtuosa da
vontade”. Segundo o autor, no reconhecimento recíproco, sustenta-se o respeito
pelo outro, o que se opõe ao desejo de reconhecimento social fundado no amor
próprio e na concorrência com os demais, em busca incessante por um lugar de
superioridade. Assim, a formação do aluno para a igualdade social deveria se fazer
desde a tenra infância, de modo a garantir que o processo educativo conduzisse
ao respeito recíproco entre iguais, e, portanto, à liberdade social. Observa-se,
assim, o quanto se mostram redutoras as propostas educacionais contemporâneas
que se restringem ao tratamento dos processos de aprendizagem, limitando
perigosamente, segundo o autor, “questões educacionais amplas e complexas”.

Completa este último conjunto de artigos o trabalho “Experiência e linguagem em Walter


Benjamin”, de Eloiza Gurgel Pires. A autora trata da função que possui a
linguagem no pensamento benjaminiano, função de traduzir, de transmudar o
mundo, o que é “o próprio movimento que constitui o conhecimento”. É nesse
movimento que se sustentaria a educação, realizada ontogeneticamente no sujeito
e fundamentada no caráter mimético da linguagem, concepção a que se opôs,
historicamente, o pensamento abstrato, racional. “A partir desse experimentum
linguae, descobrem-se os reflexos míticos e poéticos, bem como o sentido do
sagrado frequentemente dissimulado nas atividades mais banais e cotidianas”.
Desse modo, a obra benjaminiana se oporia a qualquer projeto educativo, a
qualquer institucionalização do saber, pois esses seriam obstáculos à experiência
total e concreta do conhecimento.

Encerra o volume a entrevista de título “Racionalidade ecológica e formação de cidadania”, realizada


por Danilo R. Streck com Gerd Gigerenzer, pesquisador do Max-Planck Institute for
Human Development, em Berlim. Na entrevista, o pesquisador alemão apresenta
suas críticas a respeito da validação dos modos de produção de conhecimento se
apenas assentada em bases lógicas. Considera, assim, a necessidade de reconhecer
a legitimidade dos conhecimentos produzidos com base em processos intuitivos.
Seu ponto de vista se justifica na própria impossibilidade de totalização do

594 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014.


conhecimento sobre as realidades tomadas para investigação. Num mundo de
incertezas, como o atual, a racionalidade ecológica sustentaria a produção de
conhecimentos em contexto, isto é, em função das especificidades sociais e
culturais que se apresentam ao pesquisador, que demandam tomadas de decisões
autônomas e criativas, face ao insólito, ao inusitado, ao não-costumeiro, àquilo
que escapa às generalizações fundadas na racionalidade da lógica científica.

Temos, portanto, neste número de Educação e Pesquisa, artigos em que se apresentam perspectivas
críticas, pontos de vista questionadores, o que enseja a reflexão e o movimento
de posições nos debates contemporâneos no campo educacional. Reúnem-
se textos de áreas diversas da pesquisa em educação e, também, de filiações
institucionais e proveniências regionais as mais diversas, o que responde de
modo representativo à complexidade do campo. Apresenta-se, também, parte
dos artigos vertida ao inglês, com o objetivo de contribuir para a ampliação dos
modos de acesso ao periódico e para a constituição de uma comunidade leitora
cada vez mais abrangente.

Esperamos que esta edição de Educação e Pesquisa contribua para o desenvolvimento das
investigações científicas sobre os processos educacionais, para a contínua revisão
crítica dos modos de produção de conhecimentos na área, e para o necessário
questionamento dos saberes já produzidos.

Émerson de Pietri

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, jul./set. 2014. 595


Artigos / Articles
La enseñanza y su relación con el saber en los
estudiantes universitarios colombianosI

Miguel Ángel Gómez MendozaII


María Victoria Alzate PiedranhitaII

Resumen

Se exponen los resultados de una investigación sobre las respuestas


de los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes
enseñados en la universidad desde la perspectiva de su relación con
el saber. Estudio exploratorio, cualitativo, descriptivo y descriptivo
en una muestra cualitativa con representatividad teórica de dieciséis
estudiantes de seis cursos universitarios, que se desarrollaron en el
segundo semestre de 2012 en la Universidad Tecnológica de Pereira,
Colombia. Se adoptaron cinco dimensiones de la relación con el
saber: (1) sentido; (2) dimensión de lo que es importante en el saber;
(3) contrato didáctico; (4) relación de identidad y afectiva con el
saber; y (5) actitudes de estudio. Tres rasgos generales surgen de
la investigación: (1) si bien los estudiantes, aceptan en su relación
con el saber la exigencia de la significación, esperan también
los momentos de la designación; (2) obstáculo importante en la
relación constituye la distancia entre lo que el curso propone y la
representación que el estudiante puede tener de la práctica fuente y
la práctica objetivo; (3) rasgo común para los cursos es la distancia
entre la percepción de las exigencias del profesor antes y después
de la evaluación. Se confirma la hipótesis comprensiva: la respuesta
que dan los estudiantes a las exigencias de las formas de los saberes
enseñados en la universidad dependen de su relación con el saber
y de sus actitudes y tratativas o enfoques que esta relación implica.

Palabras clave

Saber — Relación con el saber — Educación superior — Enseñanza —


Estudiantes — Universidad.
I- Artículo resultado del Convenio 708 de
2012 Ministerio de Educación Nacional de
Colombia, Universidad Tecnológica de Pereira.
Convocatoria Realización de estudios sobre
Educación Superior 2012. (Código Vicerrectoría
de Investigaciones, Extensión e Innovación de
la Universidad Tecnológica de Pereira. VIIE-
UTP: 4-12-5. Código división financiera UTP:
5-11-3-234-25).
II- Universidad Tecnológica de Pereira, Pereira,
Risaralda, Colombia.
Contactos: mgomez@utp.edu.co,
mvictoria@utp.edu.co

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008 599
Teaching and its relation to knowledge among
Colombian university studentsI

Miguel Ángel Gómez MendozaII


María Victoria Alzate PiedranhitaII

Abstract

This article presents the results of an investigation into student


responses to the demands of the forms of knowledge taught at the
university from the perspective of their relation to knowledge. It is
an exploratory, qualitative, and descriptive study with a qualitative
sample with theoretical representativeness of sixteen students
from six university courses offered in the second half of 2012 at
Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia. Five dimensions of
the relation to knowledge were adopted: (1) meaning, (2) dimension
of what is important in knowledge, (3) didactic contract, (4) identity
and affective relation to knowledge, and (5) study attitudes. Three
general features have emerged from the research: (1) although
students accepted the requirement of meaning in their relation to
knowledge, they also expect moments of designation; (2) the distance
between the course aims and the representation that the student may
have of the source practice and target practice is a major obstacle
in the relation; (3) the distance between the perception of the
demands of the professor before and after evaluation is a common
characteristic of the courses. The comprehensive hypothesis has
been confirmed: the response given by students to the demands of the
forms of knowledge taught at university depends on their relation
to knowledge and the attitudes and negotiations or approaches that
this relations implies.

Keywords

Knowledge — Relation to knowledge — Higher education — Education


I- This article is a result of Agreement 708 — Students — University.
of 2012 Ministry of National Education
of Colombia, Universidad Tecnológica
de Pereira. Call Realización de estudios
sobre Educación Superior 2012. (Code
Vicerrectoría de Investigaciones, Extensión
e Innovación de la Universidad Tecnológica
de Pereira. VIIE-UTP: 4-12-5. Financial
division code UTP: 5-11-3-234-25).
II- Universidad Tecnológica de Pereira,
Pereira, Risaralda, Colombia.
Contact: mgomez@utp.edu.co,
mvictoria@utp.edu.co

600 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000008 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 599-615, jul./set. 2014.
Algunos estudios han puesto en evidencia Según Jacky Beillerot (1998) integrante
de manera global los procesos de diferenciación del grupo CREF, indagar la relación con el
de las prácticas de estudio de los estudiantes saber, es
universitarios, tanto en el plano de las estrategias
de aprendizaje (ROMAINVILLE, 1993) como en (…) estudiar las situaciones donde se
el de las competencias lingüísticas y textuales implementan los elementos de esta relación
(POLLET, 2001). El campo de de investigación con el saber. Si se postula que la relación
que se exploró en esta ocasión es el de la con el saber no es tanto un atributo como
relación que los estudiantes mantienen con las un proceso, él es entonces más accesible en
diferentes formas de saber que se les pide o situación, o a él el no es posible acceder sino
demanda adquirir en la universidad. La noción en situación (provocada o natural). (p.7)
de relación con el saber (rapport au savoir), ha
tomado, desde hace veinte años, cada vez más Para investigadores de este grupo como
importancia en el campo de las ciencias humanas Beillerot; Blanchart-Laville; Mosconi (1996),
y de la educación. Se trata de una noción que la referencia a la teoría psicoanalítica está
continúa en proceso de elaboración y que ha netamente marcada. La noción de relación con
podido demostrar hasta ahora su real poder el saber es analizada a través de la problemática
heurístico tanto por sus cuestionamientos, como del deseo de saber. Es la dimensión clínica
por la relación con el campo de investigación e que fundamenta la coherencia epistemológica
intervención que este concepto abre. de sus investigaciones. Ahora bien, en una
Desde los años 90 del siglo pasado, en la perspectiva teórica, la relación con el saber es
tradición de investigación sociológica, psicológica percibida en un primer momento, en el nivel
y de las ciencias de la educación francesas, un de su génesis y en términos de relación de
buen número de investigadores apelan a esta objeto. Al respecto, como lo han desarrollado
noción de relación con el saber. Ella permite una Beillerot; Bouillet; Blanchard-Laville; Mosconi
nueva aproximación al logro, al fracaso y a la (1989), Beillerot (1998) y Blanchard-Laville
deserción escolar y universitaria. Dos equipos de (1996), en sus trabajos de elaboración teórica
investigación de manera sistemática han hecho y la relación con el saber, las concepciones de
uso de esta noción en sus trabajos: el grupo de Wilfred Bion y Donald Wood Winnicott, que
investigación del CREF (Centre de Recherche tratan de la construcción psíquica precoz de la
Education et Formation de la Universidad Paris capacidad de aprendizaje, del pensamiento y de
X – Nanterre) y el grupo ESCOL (Education, las primera experiencias de saber se plantean
Socialisation, et Collectivités Locales de la en primer lugar, junto a la teoría de Jacques
Universidad Paris VIII - Saint Denis). Lacan relacionada con el concepto de deseo, de
Para Bernard Charlot (1997), promotor deseo de saber y de su insatisfacción es, como
del segundo grupo tal, central en esta perspectiva.
Para Bernard Charlot, Élisabeth Bautier
(…) la relación con el saber es el conjunto Jean-Yves Rochex (1992), investigadores del
(organizado) de las relaciones que un grupo ESCOL (Education, Socialisation, et
sujeto humano (esto es singular y social) Collectivités Locales de la Universidad Paris
mantiene con todo lo que surge o se deriva VIII - Saint Denis), la orientación de las
del ‘aprender’ y del saber: objeto, ‘contenido indagaciones sobre la relación con el saber
de pensamiento’, actividad, relación es más sociológica, incluso antropológica.
interpersonal, lugar, persona, situación, Plantean la idea de una sociología del sujeto.
ocasión, obligación, etc., asociados de Sus trabajos intentan dar una nueva dimensión
alguna manera al aprender y al saber. (p. 22) a la cuestión del fracaso escolar en los niños

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 601


y jóvenes provenientes de medios sociales En 2010, en todo el país hay 1.674.420
desfavorecidos. Sus estudios se focalizan sobre estudiantes en el sistema de la educación
la relación con el saber y sobre la relación con superior, de los cuales 1.587.928 se
la escuela de los jóvenes que frecuentan las encuentran matriculados en programas
escuelas secundarias de los barrios periféricos de pregrado (técnico profesional,
de las ciudades francesas. Lo que se destaca tecnológico o universitario) y 86.492 en
en primer lugar, son las lógicas complejas y programas de posgrado (especialización,
múltiples que subyacen en el trabajo escolar a maestría o doctorado).
través del análisis de aspectos como la relación
con el lenguaje y relación con el saber y con el Y “La tasa de deserción por cohorte es
mundo de los estudiantes de secundaria (liceo) de 45%, es decir que de cada 100 estudiantes
herederos de familias favorecidas y de nuevos que ingresan a la educación superior, 55
estudiantes de liceo de familias populares. eventualmente se gradúan, mientras 45 nunca
Para este grupo, la reflexión teórica se articula lo hacen”.
alrededor de la noción de sentido dado a la En consecuencia, según el Ministerio de
experiencia escolar y los procesos de identidad Educación de Colombia (2009):
en la formación de personalidad. La perspectiva
empírica se focaliza sobre los retratos Uno de los principales problemas que
biográficos de los jóvenes estudiantes de liceo enfrenta el sistema de educación superior
de secundaria a partir de un balance de saber. colombiano concierne a los altos niveles de
Estos últimos se componen de producciones deserción académica en el pregrado. Pese a
escritas sobre las expectativas de los alumnos que los últimos años se han caracterizado
de liceo frente a su escolaridad y sus saberes por aumentos de cobertura e ingreso de
adquiridos, escolares o no escolares. estudiantes nuevos, el número de alumnos
Es entonces en esta línea de estudios de que logra culminar sus estudios superiores
este último grupo de investigadores (ESCOL, no es alto, dejando entrever que una gran
dirigido por Bernard Charlot), que se concibió parte de éstos abandona sus estudios,
esta investigación. Si bien, los estudios sobre principalmente en los primeros semestres.
la noción de relación con el saber implican, Según estadísticas del Ministerio de
hasta ahora, solamente a la población de los Educación Nacional, de cada cien
alumnos de la escuela primaria y la educación estudiantes que ingresan a una institución
secundaria francesa, en esta ocasión, se extiende de educación superior cerca de la mitad
el concepto de relación con el saber al ámbito no logra culminar su ciclo académico y
de la educación superior o universitaria, para obtener la graduación.
estudiar una población de estudiantes inscritos
en la Universidad Tecnológica de Pereira- El complejo fenómeno social y educativo
-Colombia, con las precisiones y cuidados de la deserción y el fracaso y el logro académico
conceptuales y metodológicos pertinentes y en la educación superior colombiana en los dos
propios del nivel superior o universitario del primeros semestres o primer año universitario
sistema educativo colombiano. — que toca en Colombia prácticamente a uno
de cada dos estudiantes — nos conduce a
Justificación del estudio cuestionarnos: si bien en los últimos doce años,
la educación superior colombiana conoce una
En Colombia, según los datos del masificación importante, ¿se puede hablar
Ministerio de Educación Nacional de igualmente de una democratización de la
Colombia (2012): enseñanza? El desafío es doble. Se trata, en

602 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
primer lugar, de asegurar la cualificación, académico y así contribuir a la superación de la
mediante aprendizajes de calidad, entre otros deserción y abandono estudiantil, es necesario
factores, esperada y sancionada por los diplomas también estudiar la relación que ellos mantienen
universitarios, que se fundamente sobre la con el saber en general, de una parte; y con la
investigación o sobre la profesionalización. naturaleza específica de los saberes enseñados
Pero el otro desafío, es también, asumir en la educación superior o universitaria, de otra
esta masificación preguntándonos sobre parte. De esta manera, en lugar de partir del
los mecanismos de fracaso que frenan la postulado que las dificultades experimentadas
democratización asociadas a las maneras como o vividas por muchos estudiantes provienen
los estudiantes se relacionan con los saberes de las diversas carencias, hemos sometido a
que les ofrece la universidad. prueba en este estudio el supuesto comprensivo
En este contexto, surgen varias según la cual estas dificultades son efectos de
preguntas: ¿cómo el principal implicado, el diferentes maneras de ser y especialmente de
estudiante aprendiz, vive esta situación y en concebir el saber y acceder a él, esto es, de la
particular sus aprendizajes? ¿Qué tipos de relación con el saber.
dificultades encuentra en esta relación con el
saber universitario y cuáles son sus razones? La importancia de estudiar el
Una abundante literatura (ROMAINVILLE, 1999, problema de la relación con
2000; ALZATE; GÓMEZ, 2009, 2010a; ALZATE; el saber en los estudiantes
DESLAULIERS; GÓMEZ, 2010), plantea diversas universitarios
hipótesis que ponen en relieve los factores
imputables al estudiante mismo. Estudios, El campo de investigación sobre la
como los de Alain Coulon (1997), exponen una enseñanza de los saberes universitarios ha sido
correlación entre el origen sociocultural y las preocupación nuestra en los últimos cinco años
dificultades de los estudiantes para adaptarse (2009, 2010, 2010a, 2010b, 2010c) y parte, ante
a los códigos de la enseñanza universitaria: todo, de la hipótesis, según la cual para ayudar
códigos lingüísticos, códigos asociados a los a los estudiantes universitarios es necesario
procesos de afiliación institucional y social, también estudiar la relación que ellos mantienen
exigencias implícitas de la universidad, etc. con el saber en general, de una parte; y con la
Estas dificultades son entonces consideradas naturaleza específica de los saberes enseñados
como el resultado de una falta o de un en la educación superior o universitaria, de otra
déficit: falta de motivación, falta de trabajo, parte. De esta manera, en lugar de partir del
falta de métodos, dominio insuficiente de la postulado generalmente aceptado, que afirma
lengua materna, déficits cognitivos anteriores que las dificultades experimentadas o vividas
atribuidos a la enseñanza secundaria e incluso por muchos estudiantes provienen de sus
asociados a la categoría social. diversas carencias, se considera que el estudio de
Ahora bien, si estos estudios han podido la relación con el saber ofrece una perspectiva
explicar, en parte, el origen de un cierto número diferente para su análisis (POZO; ECHERRÍA,
de dificultades encontradas por los estudiantes, 2009; HOUGARDY; PAMBU KITA, 1999).
parece que otras dimensiones respecto al fracaso En una investigación reciente, Enseñar en
y la deserción universitaria, examinadas en la Universidad. Saberes, prácticas y textualidad
otras poblaciones estudiantiles universitarias, (ALZATE; GÓMEZ; ARBELÁEZ, 2011), nos
no han sido todavía suficientemente exploradas limitamos de manera voluntaria a implementar
en la educación superior. las herramientas de análisis de las formas y
En consecuencia, para ayudar a los sus contextos epistemológicos, textuales y
estudiantes universitarios en su proceso de logro didácticos de los saberes universitarios en

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 603


algunas disciplinas académicas universitarias mundo. (2) ¿Cómo los estudiantes perciben ciertas
en las asignaturas o cursos de: didáctica características de los saberes enseñados: formas
del lenguaje, sociología de la educación, de situación didáctica, elementos asociados al
física, introducción a la filosofía, psicología grado de problematización y de sentido de los
del desarrollo. No obstante, desde entonces enunciados, tipos e importancia de razonamientos
aparecía en el horizonte una pregunta que se específicos a ciertos cursos universitarios, relación
abordó en esta investigación: ¿cómo la forma afectiva con el saber, dificultades asociadas a
del saber influye sobre el logro del estudiante las actitudes frente al estudio universitario y de
universitario? Interrogante que se responde contrato didáctico? (3) ¿Cómo interactúan los
desde la la teoría de la relación con el saber. estudiantes con las características antes indicadas
Una observación importante aparecía del saber universitario? (4) ¿Cómo perciben los
entonces en la investigación antes mencionada: estudiantes las actividades que se les pide cumplir
en la operación compleja que es la práctica de y que ponen en juego o implementan para
enseñanza en la educación superior, el profesor llevarlas a cabo?
intenta hacer acceder a los estudiantes ya sea a En este contexto, el enfoque descriptivo
una práctica de investigación o a una práctica y comprensivo de la investigación realizada en
profesional. Se constató que esta transmisión ese entonces sobre la naturaleza de los saberes
universitaria plantea un cierto número de universitarios y sus procesos de transmisión,
problemas. No existe una transmisión de se examina, en esta ocasión, a través de la
una práctica en el sentido de una receta que descripción de la forma que asume la relación
haría a los estudiantes competentes, sino más con el saber de los estudiantes en la Universidad
bien enfoques o tratativas de enseñanza que Tecnológica de Pereira, Colombia.
exigen de estos últimos tomar en cuenta una
serie de obligaciones con mucha frecuencia Las cinco dimensiones de
implícitamente declaradas: comprender los la relación con el saber: una
conceptos que no están claramente explícitos en aproximación inicial
el curso, enfrentamiento de saberes no estables
y problemas específicos de una profesión, etc. Se reitera, que relación con el saber
La siguiente pregunta que surgió se analizó a través de cinco dimensiones
entonces en este marco, y que ahora orienta susceptibles de generar problemas o dificultades
este artículo de investigación, se plantea así: de aprendizaje1 universitario en los estudiantes
¿responder a las exigencias de las diferentes universitarios para estudiar, a saber: (1) la
obligaciones de la enseñanza universitarias dimensión del sentido; (2) la dimensión de lo
implica una cierta forma de relación con el que es importante en el saber; (3) el contrato
saber, él mismo asociado a una relación con el didáctico; (4) la dimensión de la relación de
mundo (una manera de vivir, ciertas actitudes identidad y afectiva con el saber; y (5) las
ante el saber y el estudio universitario)? actitudes de estudio. Se trató entonces de explorar
Este interrogante nos condujo entonces en una muestra cualitativa con representación
a una serie de preguntas complementarias que teórica de estudiantes universitarios, la manera
se respondieron en la investigación: (1) ¿Qué cómo estos se relacionan con el saber que se
relaciones mantienen, de manera general, los ofrece en un cierto número número de cursos
estudiantes, con el saber universitario? Esta universitarios a través de las cinco dimensiones
pregunta se plantea a partir del postulado, según
el cual, esta relación con el saber está determinada 1- Aquí la expresión dificultades de aprendizaje no debe entenderse en
el sentido clínico y psicológico de grupo heterogéneo de alteraciones que
por una cierta manera de vivir, por ciertas se manifiestan en dificultades en la adquisición y uso de habilidades de
actitudes y por un cierto tipo de relación con el escucha, habla, lectura, escritura, razonamiento o habilidades matemáticas.

604 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
enunciadas, y que buscan dar cuenta de la Jean-Yves Rochex (1998), quienes consideran
relación con el saber de los estudiantes, así que un gran número de dificultades en los
como de algunas dificultades y situaciones estudios residen en la relación de “evidencia
de fracaso que podrán resultar o surgir en el y de adherencia al lenguaje y a la experiencia
desarrollo de los cursos universitarios. que se tiene con él” (p. 6). Esta relación
Veamos a continuación una breve implicaría resistencias de reconocimiento del
definición de estas dimensiones: carácter construido del saber, e incluso, de
(1) El sentido de los conceptos y de los reconocimiento de las formas de lenguaje
enunciados. Se aborda esta cuestión, retomando simbólicas y discursivas que lo constituyen, en
de Gilles Deleuze (1990), la distinción que este caso, en la enseñanza universitaria.
estableció entre la significación y la designación (3) El contrato didáctico. Guy Brousseau
en la producción de sentido de un discurso (1980) y Franc Morandi & René La Borderie
universitario. En la educación universitaria, (2006), consideran la noción de contrato
el discurso de la enseñanza se presenta con y anotan que el carácter explícito de la
frecuencia como un texto. Con frecuencia, es implementación de un situación compromete
un texto constituido de diferentes elementos: el a diferentes personas. Un contrato es firmado
discurso oral del profesor durante los cursos o deliberadamente por las diferentes partes. En el
sesiones, los soportes o apoyos proyectados en contrato didáctico, se teje así una relación que
pantalla; el programa del curso, los documentos determina lo que cada asociado, en este caso, el
o las lecturas a las cuales los estudiantes son profesor y el estudiante universitarios, tendrá la
remitidos. Se trata, entonces, como afirma responsabilidad de administrar y de la que será
Bernard Rey (2002, 2005), de un texto, porque de una u otra manera, responsable frente al otro.
el conjunto de lo que es formulado tiene una (4) La relación de identidad y afectiva con
coherencia (incluso si el texto es constituido de el saber. El lenguaje en la enseñanza universitaria
elementos dispersos). Igualmente, las palabras puede presentarse bajo una pluralidad de registros
que constituyen estos enunciados no designan de enunciación. Las formas textuales empleadas
en general, las cosas exteriores que se podrían pueden mostrar un estado de diferentes posturas
ver o tocar, ellas tienen sus sentidos y sus que tiene el sujeto con el saber: el yo-mí de la
relaciones mutuas en el marco del texto. experiencia vivida, el del relato, el que analiza y
Entonces, el sentido de los discursos argumenta, etc. Aquí, se plantea como hipótesis
no se deriva ya de la relación que mantienen que los estudiantes universitarios pueden tener
los enunciados con una realidad inmediata problemas para pasar fácilmente de un registro
y concreta compartida entre los locutores al otro, o peor aún, pueden tener la tendencia
universitarios — profesor y estudiantes — sino que a privilegiar el registro lingüístico yo-mí de la
emerge de la relación entre estos enunciados. En experiencia familiar y subjetiva.
oposición, en la vida corriente, los enunciados (5) Las dificultades asociadas a las
sacan su sentido del hecho que ellos refieren a actitudes de estudio. Con el vocablo estudio,
los objetos o a las acciones que constituyen el se reúnen diversas actividades: la asistencia
ambiente actual y familiar de los locutores. La y las actividades del estudiante en los cursos
palabra está entonces anclada en la situación universitarios, incluyendo aquellas que lleva a
del momento. Para expresar esto, se dice que el cabo fuera del local del curso y, en particular,
sentido del discurso del profesor, tal como él se la búsqueda de informaciones complementarias
presenta en la educación superior, nace no de la y sus actividades concretas para aprender.
designación, sino de la significación. Cuando se pregunta a los estudiantes sobre sus
(2) Lo que es importante en el saber. prácticas de estudio y las maneras como ellos se
Se adopta la hipótesis de Èlisabeth Bautier & movilizan, sus respuestas remiten a la hipótesis,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 605


según la cual, ellas están asociadas a una cierta de antemano y planificadas en un orden
concepción del saber. Este concepción puede preciso; — ella será llamada semi-dirigida
entonces tener un impacto sobre el éxito y cuando el entrevistador prevé algunas
logro universitario del estudiante. preguntas a plantear como puntos de
orientación. (p. 13-14)
Metodología2
En consecuencia, según los autores
La metodología empleada se identifica
con un enfoque descriptivo y comprensivo (…) una entrevista semi-dirigida se
de los cursos universitarios, en esta ocasión identifica por la presencia de dos
complementado, con una descripción de la forma características: — produce de parte del
de la relación con el saber de los estudiantes. entrevistado un discurso que no es lineal,
Al respecto Mattew B. Miles y Michele lo que significa que el entrevistador orienta
Huberman (2003), consideran que la entrevista en ciertos momentos; — las
intervenciones del entrevistador no están
Los investigadores cualitativos trabajan con siempre previstas de antemano. A lo más,
pequeñas muestras de personas, que viven este prevé algunas preguntas importantes,
en una situación familiar (en su ‘nicho’) en o algunos puntos de orientación (p.146)
su contexto y se estudian en profundidad
— a diferencia de los investigadores En consecuencia, y manteniendo una
cuantitativos que buscan múltiples casos continuidad en el tema y campo de investigación
descontextualizados y apuntan a una antes indicado, limitamos este nuevo examen
representatividad estadística. (…) El tipo de la enseñanza universitaria en términos de
de muestra llamado ‘representatividad relación con el saber, a una muestra cualitativa
teórica’ busca encontrar los ejemplos de con representatividad teórica de estudiantes que
un constructo teórico y de esta manera asistieron durante el segundo semestre de 2012
elaborarlo y examinarlo. (p. 59-60) a los siguientes cursos universitarios, como lo
indica el cuadro.
Ahora bien, según De Ketel & Roegiers
(2009), se puede afirmar que Cuadro 1 - Muestra cualitativa con representatividad teórica
de estudiantes entrevistados según cursos universitarios.
(…) una entrevista puede ser libre, semi-
dirigida o dirigida: — ella será llamada Introducción a la filosofía
Competencias comunicativas I y II
libre cuando el entrevistador se abstiene Didáctica de la lengua materna
de plantear preguntas que apuntan a Procesos de desarrollo del lenguaje
Construcción y didáctica del lenguaje escrito I, II y III
reorientar la entrevista; — ella será llamada
Epistemología de la pedagogía
dirigida cuando el discurso de la persona Sociología de la educación
entrevistada constituye exclusivamente Historia de la pedagogía
Constitución política y democracia
la respuesta a las preguntas preparadas Modelos pedagógico contemporáneos
2- El tipo de entrevistas en esta investigación tiene esencialmente un
Total: 13 cursos y 26 estudiantes entrevistados
enfoque exploratorio y cualitativo y se constituyó en punto de partida
para otra investigación en marcha para construir, con más agudeza, un
cuestionario dirigido al conjunto de la población de estudiantes implicados Fuente: Oficina de Registro y Control de la Universidad Tecnológica de
en los cursos que serán objeto del proyecto que se propone inicialmente. Pereira, Colombia, 2012
Se podrá entonces, en un segundo momento de la investigación (enfoque
confirmativo y cuantitativo), validar la construcción de algunas dimensiones
de la relación con el saber de los estudiantes y el repertorio de dificultades Teniendo en cuenta el objetivo del
encontradas en una población más amplia. estudio, explorar la relación con el saber de los

606 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
estudiantes de los cursos indicados en el Cuadro socio-cultural, los estudiantes que vienen de
1, se concibieron y aplicaron los siguientes medios desfavorecidos consideran que tienen
procedimientos: (1) Realización de entrevistas más riesgo y están expuestos al fracaso. Otra
semi-directivas o semi-dirigidas con cada uno corriente de estudios, explica las dificultades en
de los estudiantes universitarios de la muestra. el logro de un estado de déficit en los métodos
La entrevista semi-dirigida tuvo los siguientes de trabajo, lagunas en el dominio de la lengua
objetivos: (a) discernir, en una perspectiva materna y los lenguajes especializados que se
global, la relación con el saber del estudiante, usan en la universidad.
esto es, en una perspectiva biográfica; (b) abordar En la investigación realizada, se exploró
las dificultades que tienen los estudiantes una vía de explicación poco estudiada en
asociadas a las cursos que siguen y a su manera la enseñanza universitaria: algunas de las
de estudiar; (c) desde una perspectiva más dificultades que debe superar el estudiante
sistemática, indagar por las maneras como los universitario para tener éxito tienen que ver
estudiantes conciben y practican el estudio con lo que acontece y hace en los cursos a los
con miras a la presentación de exámenes que asiste. Las dificultades, probablemente tan
parciales y finales, y sus reacciones a este tipo diversas, visibles o ocultas, obstaculizarían
de evaluaciones. (2) Obtención de información la transmisión del saber del profesor al
complementaria y matizada mediante un estudiante, y serían provocadas especialmente
escrito que se les solicitó a los estudiantes: un por la naturaleza específica de los saberes
balance de saber, como lo sugiere Élisabeth universitarios enseñados. La singularidad de la
Bauthier y Jean-Yves Rochex (1998) con los relación con el saber del estudiante se convirtió
estudiantes de la educación secundaria francesa, entonces en objeto de indagación.
obviamente, con sus ajustes correspondientes Con un intencionado objetivo de
a la especificidad de la enseñanza superior o generalización, se agrupan u organizan las
educación universitaria. De esta manera, se constataciones y resultados. Según algunos de
propuso a los estudiantes redactar un corto los elementos que constituyen o identifican las
texto con el objetivo de responder a dos cinco dimensiones de la relación con el saber
preguntas o cuestiones: (a) ¿Aprender, es….?; adoptadas en el estudio.
(b) ¿Desde que usted nació, que ha aprendido,
que es lo importante para usted? En principio La relación con el saber específico
ninguna otra recomendación y precisión se
plantea para este balance de saber, con el fin ¿Qué es importante en el saber? Las
de no influir ni sobre la manera de abordar o respuestas de los estudiantes son testimonio
enfocar las respuestas a los asuntos asociados, de un interés por la validación del saber
ni sobre la manera de redactar de los estudiantes universitario enseñado, aceptando su carácter
universitarios a los cuales se les solicitará su construido e inestable. También declaran
colaboración para obtener esta información privilegiar los razonamientos a los resultados,
sobre su relación con el saber. aceptar la revisión de nociones y conceptos vistas
en los cursos cuando aparecen nuevas teorías
Resultados (presencia de la práctica fuente). La importancia
de tomar en cuenta de la práctica objetivo de
Visto en perspectiva, para el estudiante manera concreta en los cursos universitarios se
surge una especie de determinación siente o reclama en las respuestas obtenidas. De
preexistente al entrar y empezar en los estudios este modo, algunas respuestas a las preguntas
universitarios. La explicación sociológica abiertas son evidencia de la búsqueda de la
enfatiza el factor de pertenencia o proveniencia posible utilidad de los cursos en un plano o

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 607


marco profesional. Los estudiantes coinciden en problemas científicos que allí están presentes,
la importancia de tomar en cuenta su futuro que se planteen y reconstituyan por sí mismos
profesional en los cursos. las actividades intelectuales que han conducido
Si bien los cursos que siguieron los al saber. (b) Los mismos estudiantes, tienen la
estudiantes se distinguen por su objeto de tendencia a apoyarse en el contrato didáctico,
estudio, ciertos aspectos considerados como el cual puede enunciarse así: “Lo que el profesor
posibles fuentes de dificulta no cambian tanto. exigirá en el examen debe habérsenos enseñado
Un sector de estudiantes juzga esencial las durante su curso”. Forzando el asunto, se podría
demostraciones conceptuales en la comprensión decir que la exigencia de los estudiantes al
general de los cursos. Sin embargo, estas profesor es la siguiente: “Díganos directamente
exposiciones y demostraciones conceptuales lo que usted quiere que digamos o que hagamos
aparecen a menudo como complicadas de en el examen”. (c) Cuando el profesor rechaza
seguir. Enfrentar esta dificultad implica recurrir acceder a esta exigencia. Quisiera que los
a los ejemplos, las ilustraciones con el riesgo estudiantes realizaran el trabajo intelectual que
de alejar a los estudiantes del acceso a la teoría conduce al saber y que hasta cierto punto lo
científica del saber sabio. reconstruyeran. La tarea de establecer el saber
es devuelta por el profesor a los estudiantes. Es
Las prácticas fuente y objetivo lo que se llama la devolución.
La devolución, entonces es una actividad
En la educación superior, los profesores que en el proceso pedagógico y didáctico, en
intentan iniciar a sus estudiantes en la práctica este caso universitario, va en una dirección
que se encuentra en el origen del saber que casi inversa para que el saber sea pensado
ofrecen, es decir la práctica de investigación. personalmente por el estudiante; la devolución
Es a esta que se denomina-la práctica fuente. debe integrarse a la actividad de pensamiento
Los profesores de universidad lo hacen porque personal o individual.
es justamente su especificidad de ser a la vez Ahora bien, en la enseñanza
investigadores y profesores, productores y universitaria, el texto del saber lleva la marca
difusores de saberes. Tienen la convicción que de otra práctica diferente a la práctica fuente.
un curso no consiste solamente en presentar Se trata de la práctica profesional en la que
los resultados de la ciencia, sino también en desemboca muchos de los curso seguidos por
hacer conocer las operaciones que han llevado el estudiante. Es lo que se llama la práctica-
a esos resultados. Un saber significativo, no objetivo. Ella aparece, en el caso de la
se limita al conocimiento de una continuidad enseñanza superior, con una clara orientación
de enunciados considerados como verdaderos, de profesionalización. También está presente
exige que se lleven a cabo los procedimientos en las clases universitarias, para las cuales una
que permiten afirmar que ellos son verdaderos. salida profesional es siempre el horizonte preciso
Idealmente, el profesor debería compartir con (derecho, medicina, administración, psicología,
los estudiantes una práctica de investigación. ciencias aplicadas, etc.). Ahora bien, como se
Pero para familiarizar a los estudiantes en ha visto, es difícil familiarizar al estudiante en
esta práctica, el profesor solo dispone de su una práctica (la profesión) a través de un texto
discurso, es decir de un texto, lo que no siempre (el saber). Porque un saber cubre un campo de
es suficiente. Se derivaría de aquí entonces una fenómenos estrechamente circunscrito mientras
situación propia de la enseñanza universitaria: que una práctica profesional se ejerce en un
(a) el profesor quiere que los estudiantes no medio en el cual los fenómenos de naturaleza
se contenten con escuchar (o leer) el texto del múltiple se producen. De este modo, un curso
saber, sino que también se apropien de los de física ofrecido a un futuro ingeniero, trata de

608 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
los fenómenos que han sido delimitados por la de estudiantes consideran al profesor y su
construcción textual que se llama ciencia física. enseñanza como factores determinantes en sus
Pero el ingeniero deberá atender, en el ejercicio prácticas universitarias de saber.
de su profesión, las determinaciones que serán
físicas, pero también industriales, económicas, Las actitudes de estudio
organizacionales, humanas, sociológicas, etc., y
esto de manera simultánea. Algunos estudiantes afirman trabajar
Los estudiantes están interesados tanto sus cursos cerca del fin de los semestres, otros
en la práctica fuente como en la práctica insisten sobre la importancia de estudiar desde
objetivo en la construcción y desarrollo de los el comienzo, familiarizarse tempranamente con
cursos. Esta constatación se confirma además el curso y seguirlo de manera sistemática. Los
en las respuestas obtenidas. En efecto, si un análisis realizados permiten destacar o desvelar
número importante de estudiantes evocan una situación un tanto paradójica. En efecto,
positivamente las discusiones y debates, que si la mayoría de los estudiantes considera
tienen lugar durante el curso, otros insisten importante intentar encontrar las relaciones
sobre el interés de los conocimientos adquiridos entre las ideas, conceptos y nociones que
durante los cursos para su futura profesión. No pertenecen a dominios o campos diferentes,
obstante, los estudiantes consideran que la otros prefieren estudiar cada parte del curso
referencia explícita a la práctica fuente en un paso a paso. Las entrevistas indican que
curso podría derivar en otro tipo de estudio, los estudiantes se dedican a comprender las
muy extenso para ser desarrollado en este nociones a medida que avanza el curso. Sin
escenario. Cuando la práctica objetivo está embargo, esta etapa podría llegar a veces más
presente según los estudiantes entonces podría tarde que los exámenes parciales o finales,
impedir comprender el interés de las materias y entonces es necesario que los estudiantes
universitarias por sí mismas, y acabar por entren en una segunda fase de estudio: la
considerarlas únicamente como herramientas búsqueda de las relaciones y vínculos entre
de utilidad inmediata. ideas, conceptos y nociones ofrecidos en
la enseñanza universitaria. Un sector de
La relación de identidad y afectiva con el saber estudiantes manifiesta comenzar el estudio para
el examen acudiendo a los resúmenes y apuntes
Se observa que en la medida en que se de curso sintéticos, manera parcial de estudiar
desarrollan los semestres universitarios, una que podría interpelar a los cursos universitarios
mayoría de estudiantes reconoce haber cambiado que se exponen por un encadenamiento
su mirada sobre el saber en general, así como la rigurosamente lógico porque los estudiantes
disciplina involucrada de manera más específica. perderían los eslabones de la cadena de
Parece entonces que los estudiantes se dan razonamiento general del curso.
cuenta de las transformaciones que se producen
en su identidad intelectual y en el plano de las El sentido de los conceptos y enunciados
relaciones con sus pares e integrantes de sus
familias, es decir, admiten la transformación de Si bien los estudiantes no señalan
su yo intelectual y las relaciones que establecen necesariamente la necesidad y posibilidad de
en su vida universitaria. Igualmente, los dominar todos los enunciados del profesor de
estudiantes se distancian de sus convicciones manera inmediata, sin embargo, muchos de
que tienen un tinte egocéntrico y comienzan ellos declaran la exigencia de la designación.
a ver nuevas perspectivas y puntos de vista. Dicho de otra manera, para comprender una
Se agrega en este contexto, que un sector noción, concepto, teoría, tienen necesidad

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 609


de concretizarla en ejemplos. Esta demanda que puede generar una actividad intelectual
se presenta cuando no hay una comprensión favorable a la construcción de sentido. Sin
inmediata del sentido de una noción y los embargo, esta construcción o elaboración se
estudiantes desean ver el saber contextualizado apoya sobre el establecimiento de relaciones
por un enfoque más concreto y explicado en un entre diferentes enunciados. Cuando algunas
lenguaje familiar. justificaciones se omiten para simplificar el
El creciente interés por los cursos curso, relaciones lógicas más profundas y
universitarios es un factor que contribuye complejas se pueden perder. Esta suspensión del
a la aclaración de los nociones que en los sentido no podría conducir a una construcción
inicios aparecen difíciles o incomprensibles. posterior. En consecuencia, la presentación de
Sin embargo, cuando los cursos tienen ejemplos tiene sus riesgos. De un lado, permite
una orientación didáctica más explícita los comprender a través de un enfoque más concreto,
estudiantes no sugieren o exigen este proceso de más inmediato; y de otro lado, podría impedir
traducción a un lenguaje más familiar a ellos. Se la elaboración de las relaciones de sentido que
reitera que en ocasiones para diversas disciplinas existen en las teorías científicas. Intentar reducir
universitarias los estudiantes privilegian la un obstáculo que se encuentra en los estudiantes
designación y se aferran a lo concreto para podría a veces generar otro.
comprender, pero lo concreto puede implicar
diferentes niveles. Este puede destacar los El contrato didáctico
fenómenos de la vida corriente o las experiencias
de las ciencias, como también las nociones de los La idea de contrato, sugiere el carácter
cursos convertidas en objetos de referencia. explícito de la creación de una situación que
Algunos estudiantes privilegian la involucra varias personas. Un contrato está
significación y las relaciones entre las diferentes firmado deliberadamente por diferentes partes.
proposiciones de las disciplinas objeto de En el contrato didáctico, se construye de esta
estudio de los cursos. Estos son los mismos forma una relación que determina lo que cada
que manifiestan la importancia y necesidad de una de las partes, el profesor y el estudiante,
que los profesores acudan simultáneamente a tendrá la responsabilidad de gestionar o
la designación y a la significación para darle administrar y como cada uno será responsable
un sentido más profundo a sus aprendizajes. No frente al otro. Se construirá entonces entre
obstante, parece que establecer las relaciones enseñante y enseñado una serie de expectativas
entre las diversas proposiciones de un curso más o menos recíprocas que entrañaran y
puede tener dos orígenes: de una parte, los legitimaran ciertos comportamientos.
estudiantes comprenden estas relaciones porque Los estudiantes perciben la manera
se les fueron explicadas acercándolas a la como el curso es orientado cuando el
designación, y de otra parte, son ellos mismos profesor manifiesta qué espera de ellos en
quienes las determinan analizando desde su los exámenes; es decir, cuando no hay un
propia iniciativa antes de leer los documentos malentendido respecto a la evaluación. De
recomendados en el curso. Serían estos los este modo, si el curso universitario se presenta
estudiantes autónomos que darían un sentido claramente estructurado, y si la forma de
verdadero a sus cursos. evaluación de formula de manera explícita,
Se puede hablar de una figura los estudiantes tampoco están exentos de las
de suspensión del sentido en los cursos dificultades propias del estudio de las materias
universitarios. Los estudiantes esperan que los universitarias. De hecho, la comprensión de
desarrollos posteriores que se dan en el curso ciertos conceptos y la memorización de una
contribuirán a una mejor comprensión, situación terminología percibida como abundante y

610 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
extensa solo aparecerá cuando se entra en el propiamente dichas, no se excluye, obviamente,
estudio de las relaciones entre nociones. De que pueda haber, en el marco de un curso de
manera inversa, la evaluación puede sorprender forma tradicional (curso magistral), episodios
a los estudiantes que privilegian una estrategia de devolución. Uno de los medios para que
de estudio en función de una problematización esto suceda es que el profesor exponga el saber
fuerte del curso, mientras que los exámenes bajo una forma problematizada. Esto sucede
parciales y finales se elaboran por el profesor de manera práctica cuando en el marco de su
con un modelo de restitución de conocimientos. discurso, los problemas se planteen para que los
Los estudiantes afirman distinguir con estudiantes puedan apropiarlos, es decir, para
relativa facilidad, en el discurso del profesor, que puedan intentar responderlos. Dicho de
lo que es esencial y lo que es anecdótico, un otra manera, se trata que el saber no se presente
número significativo de ellos saben muy bien solamente bajo la forma de enumeración de
lo que se espera de ellos en los exámenes. resultados, sino que los resultados aparezcan
El cuestionamiento de los estudiantes sobre como respuestas a los problemas previamente
los exámenes o la evaluación podría tener planteados. Se podría decir, que en oposición
dos fuentes: una, la distancia entre lo que a la problematización, se encontraría, por
fue anunciado por el profesor (con frases ejemplo, la enumeración (sin que esta última sea
incompletas) y los exámenes con preguntas la única forma opuesta a la problematización).
abiertas para orientar su estudio que se Entre más un curso se aproxime a la forma
mencionarían en el programa o en ciertos de enumeración, como sucesión de elementos
momentos del curso y que a la hora de la presentados en una serie, como única razón
evaluación inducirían al error a los estudiantes; de su articulación común, entonces menos la
otra, sería el contraste entre el contexto agradable dimensión problemática estará presente. No
del curso y la exigencia asociada necesariamente habría en la enumeración, el hilo conductor
a la prueba de evaluación o examen. Si los que le da sentido, y que permite de esta
estudiantes piensan que en algunos cursos cada manera a los estudiantes, volver a apropiarse
uno puede tener su opinión y percibe el examen del saber a través de un pensamiento propio.
como una formalidad como consecuencia de la La presentación del saber como respuesta a
vivencia distendida de las sesiones del curso, el los problemas, que constituye otra manera de
riesgo del fracaso parece evidente. devolución, presenta también la ventaja de
También, la evaluación de los cursos ser análoga o semejante a lo que sucede en la
universitarios puede interesar a los estudiantes práctica científica. El investigador es alguien
cuando los exámenes se elaboran teniendo que pasa su tiempo intentando resolver los
como horizonte su futura profesión, en este problemas. De esta forma, una presentación
caso, las preguntas serían ante todo de problematizada del saber parece a primera
orden técnico-instrumental. Sin embargo, vista, garantizar que habría devolución, y que
es necesario en este tipo de evaluación los estudiantes darían sentido al saber. En
que el profesor comunique oportunamente realidad, las cosas son más complejas y puede
estas exigencias para que se establezca de haber formas de problematización del saber que
antemano el contrato didáctico necesario. no generen la devolución, porque los problemas
son formulados de tal forma que el estudiante
Problematización no pueda apropiárselos o que le aparezcan
como arbitrarios. En consecuencia, no se puede
Si la devolución no se logrará entonces evitar la pregunta por las condiciones
verdaderamente sino en las situaciones para que los problemas del saber tengan sentido
exteriores a las sesiones de cursos universitarios para los estudiantes.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 611


Cuando en los cursos los estudiantes que el curso propone y la representación que
se comprometen con la significación dan más el estudiante puede tener de la práctica fuente
importancia o prioridad a los razonamientos y a y la práctica objetivo. Para los estudiantes los
los debates contradictorios. De esta manera, se cursos con orientación teórica se distancian de
constata que entre los estudiantes que declaran la práctica objetivo y los cursos con orientación
encontrar con el paso del tiempo un creciente profesional de la práctica fuente.
interés por sus cursos se hallan también aquellos El tercer rasgo común para los cursos
que dan importancia a la problematización de con sus diversas prácticas de enseñanza
las materias universitarias. universitaria es la distancia entre la percepción
Ahora bien, en la universidad los de las exigencias del profesor antes y después
estudiantes siguen con interés los cursos donde de la evaluación. Las entrevistas y los balances
se realizan diversos ejercicios o trabajos prácticos. del saber así lo indican.
Estos ofrecen una preparación para los exámenes Las dificultades halladas varían los
y una aproximación las materias o disciplinas estudiantes y su manera de reaccionar a
universitarias más concretas que la de los cursos las formas del saber enseñado. Luego, se
teóricos. Sin embargo, esta aproximación debe confirma la hipótesis comprensiva y general
ser matizada, porque existe una diferencia de la investigación: la respuesta que dan los
esencial, que los estudiantes podrían no percibir, estudiantes a las exigencias de las formas de los
entre la resolución de un problema que hace saberes enseñados en la universidad dependen
competentes a los estudiantes en una materia en gran parte de su relación con el saber, y de
aprendida y la situación-problema que consiste sus actitudes y tratativas o enfoques que esta
en volver el saber problemático; también aquí relación implica. Se reitera la idea hipotética del
los estudiantes no podrían percibir que la teoría carácter singular e individual de la relación con
abordada en el curso es necesaria para continuar el saber en los estudiantes universitarios.
el desarrollo del curso y el de los ejercicios. El estudio también arrojó otros resultados.
Un conjunto de herramientas3 y elementos de
Conclusiones y consideraciones naturaleza conceptual y práctica para llevar a cabo
generales procesos de reflexión con el objetivo de examinar
las prácticas de enseñanza y relación con el
Más allá de las dificultades que parecen saber en los estudiantes de la educación superior.
desprenderse de la naturaleza propia de las ¿A quiénes se dirigirían estas publicaciones? A
disciplinas universitarias, tres rasgos comunes los profesores universitarios que se preguntan o
y generales surgen de la investigación. preocupan por sus prácticas, a los encargados o
El primero, no se identifica con una directivos de los cursos de formación de aptitudes
de las hipótesis iniciales que consideraba que pedagógicas universitarias, y a los consejeros
el estudiante inscribe totalmente su actividad psicopedagógicos de los estudiantes que existen
ya sea en una lógica de significación o en en diversas universidades colombianas.
una lógica de designación. Cualquiera que Se ha mostrado que el concepto de
sea el campo de estudio universitario, parece relación con el saber en la perspectiva adoptada
que si bien los estudiantes, parecen aceptar la en este estudio efectivamente está construido
exigencia de la significación de los estudios con cierto grado de coherencia tal que puede
superiores, esperan sin embargo los momentos
de la designación. Las explicaciones, las 3- Las herramientas son: (1) Los cursos en la enseñanza universitaria:
conceptos para determinar su especificidad en la relación con el saber;
ilustraciones, los ejemplos le son necesarios. (2) Los campos de limitaciones del saber enseñado en la educación
El segundo rasgo relevante es el obstáculo universitaria y su relación con el saber; (3) Las dimensiones de las
dificultades de aprendizaje de los estudiantes y su relación con el saber.
importante que constituye la distancia entre lo

612 Miguel Ángel Gómez MENDOZA; María Victoria Alzate PIEDRANHITA. La enseñanza y su relación con el saber en...
tener un estatuto de concepto en el campo y de relación con elaborado teóricamente y un
ámbito en que se ha aplicado. Sin embargo, uso corriente de esta expresión: (a) por una
la expresión relación con (rapport à) de uso reificación o cosificación de la noción, se puede
corriente a veces no se distingue suficientemente rápidamente suponer que existe una relación
de otras nociones cercanas. con detectable a priori, sin tener en cuenta
Así, Isabell Delcambre & Yves Reuter las situaciones concretas de la enseñanza y
(2002) consideran que el concepto relación con aprendizaje, en nuestro caso universitarias,
es, a menudo, tratado sin una construcción lo que haría de la noción equivalente del
teórica suficientemente elaborada, y la hándicap socio-cultural, noción contra la
evidencia de esta situación es la multiplicidad cual fue precisamente construido el concepto
de vocablos o términos empleados (posición, de relación con: el interés del concepto reside
lugar, postura, punto de vista, identidad precisamente en el hecho de no relacionar
enunciativa, relación con, incluso estatuto o rol) con el estudiante solo sus propias dificultades,
de manera vacilante. Situación que llevaría al sino tomar en consideración el contexto
concepto de relación con a ser un objeto donde (escolar, universitario, entre otros) en el cual él
cabe todo: la puesta en escena del sujeto, sus evoluciona; (b) al querer determinar una relación
relaciones (con el saber, con el lenguaje, con con únicamente a partir de las producciones
la escritura, con las tareas) la implementación escolares de los alumnos y universitarias de los
de estas relaciones, las diversas dimensiones estudiantes, se corre el riesgo de confundirlas
que las estructuran (cognitiva, efectiva), etc. con una simple adecuación con las normas de la
En ausencia de límites o de una construcción institución escolar o universitaria, planteadas a
precisa de los componentes y su articulación, se priori como indiscutibles, con el añadido de un
corre el riesgo de una dilución conceptual. juicio evaluativo que no es compatible con el
A esta dilución conceptual se agrega el riesgo enfoque descriptivo y comprensivo, en nuestro
en el campo de las didácticas, que sería el de un caso, de la relación con el saber.
uso sin precauciones de la noción para determinar Finalmente, esta relación no implica
las aptitudes de los alumnos en la educación media solamente al estudiante universitario y sus
o de los estudiantes en la educación universitaria y aptitudes y comportamientos propios, sino
encerrarlos de esta manera en una categorización, también al profesor y a los otros actores
que para ser posible, necesita de investigaciones del sistema universitario. Sin olvidar la
prudentes y complejas. posibilidad un principio que la relación con
En efecto, al menos dos riesgos son puede convertirse también en un contenido de
posibles por una colusión entre el concepto enseñanza en la universidad.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 613


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Recebido en: 04.04.2013

Aprobado en: 27.06.2013

Miguel Ángel Gómez Mendoza es profesor en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia.

María Victoria Alzate Piedrahita es profesora en la Universidad Tecnológica de Pereira, Colombia.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, 599-615, jul./set. 2014. 615


Relação com o saber de estudantes universitários:
aprendizagens e processos

Maria Gabriela Parenti BicalhoI


Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII

Resumo

Este artigo apresenta resultados de uma investigação que buscou


compreender a relação com o saber de estudantes universitários,
utilizando como referencial a teoria da relação com o saber de
Bernard Charlot. O campo de pesquisa foi uma universidade
comunitária localizada em um município de porte médio do
estado de Minas Gerais, sendo que os sujeitos da pesquisa foram
400 estudantes de 24 cursos de graduação. A coleta de dados foi
realizada por meio dos balanços de saber, instrumento proposto
por Bernard Charlot, que consiste na demanda da produção de um
texto a respeito das aprendizagens do sujeito. Após a apresentação
dos aspectos quantitativos da classificação das aprendizagens
evocadas pelos estudantes, o artigo discute a preponderância das
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pessoal e utiliza as
categorias mobilização e sentido para aprofundar a compreensão
dos relatos produzidos pelos estudantes nos balanços de saber.
Conclui que a relação com o saber dos sujeitos da pesquisa
está baseada na valorização das aprendizagens ligadas a seu
desenvolvimento pessoal, inclusive ao tratarem do que aprenderam
na universidade, e que uma parcela deles consegue reconhecer as
especificidades dessa instituição como espaço de aprendizagem. A
pesquisa identificou três polos nos quais se organizam os sentidos
atribuídos pelos estudantes à formação universitária: a conquista
de uma vida melhor, a transformação da maneira de ver o mundo e
a mobilização em relação ao saber em si.

Palavras-chave

Ensino superior — Relação com o saber — Estudantes.

I- Universidade Federal de Juiz de Fora,


Governador Valadares, MG, Brasil.
Contato: mgbicalho@hotmail.com.
II- Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, SE, Brasil.
Contato: celeste.br@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012 617
The relationship of higher education students to
knowledge: learnings and processes

Maria Gabriela Parenti BicalhoI


Maria Celeste Reis Fernandes SouzaII

Abstract

This article presents the results of an investigation that sought to


understand higher education students’ relationship to knowledge,
using Bernard Charlot’s relationship to knowledge theory as a
theoretical reference. The field studied was a community university
in a mid-sized city in the state of Minas Gerais, Brazil, and the
subjects were 400 students at 24 undergraduate courses. The
collection of data was performed using balances of knowledge, a
tool proposed by Bernard Charlot, which consists of asking subjects
to produce a written composition about their learnings. After
presenting the quantitative aspects of the classification of learnings
mentioned by students, the article discusses the predominance of
learnings related to personal development, and uses the categories
of mobilization and meaning to achieve deeper understanding of
the accounts produced by students in their balances of knowledge.
We concluded that the subjects’ relationship to knowledge is based
on the valuing of their personal development-related learnings also
with regard to what they have learned in the university, and that
some of them are able to recognize the specificities of that particular
institution as a learning space. The study identified three core topics
around which are organized the meanings attributed by students to
undergraduate education: achievement of a better life, changes in
their worldviews, and mobilization relating to knowledge itself.

Keywords

Higher education — Relationship to knowledge — Students.

I- Universidade Federal de Juiz de Fora,


Governador Valadares, MG, Brasil.
Contact: mgbicalho@hotmail.com.
II- Universidade Federal de Sergipe, São
Cristóvão, SE, Brasil.
Contact: celeste.br@gmail.com

618 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000012 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014.
Introdução Bernard Charlot, que consiste na demanda da
produção de um texto pelos sujeitos, a partir
Este artigo apresenta resultados de uma das seguintes questões:
investigação que se propôs a compreender as
relações com o saber de estudantes universi� Desde que nasci, aprendi muitas coisas,
tários, utilizando como referencial a teoria da em casa, na rua, na escola e em outros
relação com o saber de Bernard Charlot (1997, lugares... O quê? Com quem? O que é
1999, ���������������������������������������
2000, 2001, 2005, 2009). A escolha des� importante para mim nisso tudo? E agora,
sa abordagem teórica foi motivada pela consi� o que eu espero? (CHARLOT,1999, p. 7)1
deração do caráter complexo da docência, da
especificidade da atividade docente no ensino Acompanhando essa proposição e bus�
superior e das diferentes questões colocadas à cando adequá-la ao nosso campo de investiga�
área da educação pela expansão da oferta des� ção, acrescentamos a esse texto a expressão “na
se nível de ensino. Encontramos nas discussões universidade” antes da expressão “e em outros
de Bernard Charlot a respeito da relação com lugares”. Os textos produzidos pelos estudantes
o saber um referencial teórico que nos parece a partir dessa demanda constituíram o material
apropriado para a compreensão de diferentes por meio do qual discutimos diferentes proces�
aspectos envolvidos nas vivências educacionais sos de suas relações com o saber.
dos estudantes universitários. Na primeira seção deste artigo, apresen�
O campo de pesquisa foi uma universida� tamos os pressupostos teóricos e metodológicos
de privada comunitária localizada em um muni� que embasam a investigação realizada. Na se�
cípio de médio porte do estado de Minas Gerais. gunda seção, mostramos, através de gráficos e
A pesquisa abrangeu os 24 ������������������������
(vinte e quatro) cur� extratos dos balanços de saber, em que porcen�
sos de graduação oferecidos pela instituição, que tagem e de que maneiras as diferentes apren�
estavam agrupados nas áreas de ciências
������������
hu� dizagens são evocadas e discutimos os dados
manas e sociais (administração, design gráfico, encontrados a fim de compreender os processos
direito, história, jornalismo, letras, pedagogia, de relação com o saber dos estudantes pesquisa�
psicologia e serviço social); ciências agrárias e dos. Em outro movimento analítico propiciado
da saúde (agronomia, educação física, farmácia, pela leitura dos balanços de saber, utilizamos os
fisioterapia, nutrição, odontologia, ciências bio� conceitos de sentido e mobilização, a partir do
lógicas) e ciências exatas (arquitetura, ciências mesmo referencial teórico, para compreender
contábeis, ciências da computação, engenharia os relatos produzidos pelos estudantes, o que
civil, engenharia civil e ambiental, engenharia apresentamos na terceira seção do trabalho. Em
elétrica, sistema de informação). Os sujeitos da nossas considerações finais, buscamos refletir,
pesquisa foram os alunos do penúltimo período a partir dos dados, a respeito dos processos de
de cada curso. Os 400 estudantes que compu� ensinar e aprender no ensino superior.
seram a população investigada apresentavam
origem social, faixa etária e trajetórias escola� Uma pesquisa acerca da relação
res diversas. Tomados em conjunto, entretanto, com o saber na universidade
compartilhavam a condição de graduandos de
uma instituição privada comunitária cujos cur� A relação com o saber é, na concepção de
sos não ofereciam, à maior parte dos discentes, Charlot (2000, 2001, 2005, 2009), um conjunto de
experiências acadêmicas que ultrapassassem o
enfoque da formação profissional. 1 - “Depuis que je suis né j’ai appris plein de choses, chez moi, dans la
cité, à l’école et ailleurs... Quoi? Avec qui? Qu’est-ce qui est important
Para coletar os dados, foi utilizado o pour moi dans tout ça? Et maintenant, qu’est-ce que j’attends?”
balanço de saber, instrumento elaborado por (CHARLOT,1999, p. 7) Tradução nossa.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 619


relações que o sujeito estabelece com o aprender atividade, uma relação interpessoal, um lu�
– relações plurais, circunstanciais e, por vezes, gar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião,
contraditórias. O autor propõe a compreensão do uma obrigação, etc., relacionados de alguma
sujeito como, ao mesmo tempo, e inteiramente, forma ao aprender e ao saber – consequen�
um ser humano, um ser social e um ser singular. temente, é também relação com a lingua�
Um ser de desejo em um mundo compartilhado gem, relação com o tempo, com a atividade
com outros sujeitos; que ocupa uma posição no mundo e sobre o mundo, relação com os
social cuja primeira instância é a família e atribui outros e relação consigo mesmo, como mais
sentidos e significados singulares a si próprio e ao ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal
mundo, na construção de uma história singular. situação. (CHARLOT, 2005, p. 45)
Para esse sujeito, aprender é uma
necessidade que marca sua presença em um A relação com o saber é, portanto, constituída
mundo produtor de saberes. Essa atividade por um conjunto de relações empreendidas com
é central no processo de construção do ser diversas formas de aprender, que variam de acordo
humano, que envolve se tornar um membro da com a situação colocada pelo tipo de saber e pelas
espécie humana (hominizar-se), tornar-se um circunstâncias nas quais ocorre a aprendizagem.
ser humano único (singularizar-se) e tornar- Assim, seria equivocado buscar encontrar a relação
se membro de uma comunidade, ocupando com o saber do sujeito, ignorando os diferentes
nela um lugar (socializar-se). Por meio da espaços, situações e interações envolvidos no
educação produz-se a si mesmo e é produzido processo educativo do qual ele participa. Apesar
pelo mundo. Portanto, o sujeito e sua história de ser possível identificar uma forma dominante
são sempre totalmente sociais e singulares, – ao menos em relação à questão analisada – (o
sendo que o pertencimento a uma classe social autor admite a existência da uma unidade do
é interpretado de maneira ativa pelo indivíduo sujeito, construída na diversidade das relações com
na construção de uma história da qual é sujeito. o mundo), o mais importante é compreender as
Em diálogo com a sociologia da educação de relações entre os diversos tipos de relação com o
Pierre Bourdieu, Bernard Charlot afirma que é saber estabelecidos pelo sujeito.
preciso analisar as atividades que os indivíduos A pesquisa a respeito da relação com
exercem, no contexto das posições sociais, para o saber deve analisar, portanto, os diferentes
elementos que integram os processos
[...] conquistar, para manter, para ‘trans� construídos pelo sujeito nas diversas interações
mitir’ essas posições e é preciso conside� (CHARLOT, 2001, p. 23).
rar também outras perspectivas do que
simplesmente a de sua posição social. É esse trabalho de identificação, de
(CHARLOT, 2005, p. 40) exploração, de construção de elementos
e de processos que constitui a pesquisa
Frente à obrigação de aprender para ser, sobre a relação com o saber – que, em
a qual, de acordo com o autor, é subjacente à última instância, permite compreender
condição humana, os sujeitos vivenciam diversos as formas (eventualmente contraditórias)
processos de aprender, nos quais estabelecem de mobilização no campo do saber e do
relações com distintos saberes, diferentes aprender. [...]. Isto quer dizer que a resposta
relações com o aprender em contextos diversos. a uma questão colocada em termos de
relação com o saber deve ser uma resposta
A relação com o saber é o conjunto das re� em termos de processo e não uma resposta
lações que um sujeito estabelece com um em termos de categorias de relação com o
objeto, um ‘conteúdo de pensamento’, uma saber – [...].

620 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Buscamos compreender o conjunto Assim, buscamos identificar, ao analisar
dessas relações com o saber vivenciadas pelos o que escreveram os 400 estudantes pesquisados,
estudantes no ensino superior, considerando aquilo que fazia sentido para eles em relação
as especificidades dos processos de aprender a tudo que aprenderam em suas vidas. Essa
nesse contexto, uma vez que a entrada na análise foi levada a cabo por meio dos seguintes
universidade demanda dos estudantes a procedimentos: inicialmente, todos os balanços de
adaptação a processos e relações diferentes saber foram lidos por uma professora pesquisadora
daqueles com os quais se defrontaram nas e uma bolsista de iniciação à pesquisa. Em uma
etapas anteriores da escolarização (COULON, segunda leitura, foram relidos e as aprendizagens
2008). Nesse sentido: foram identificadas e classificadas, pelas mesmas
duas pessoas. A seguir, foram contadas as
[...] aprender é exercer uma atividade em aprendizagens de cada tipo em todos os textos.
situação: em um local, em um momento Foi utilizada a classificação proposta por Bernard
da sua história e em condições de tempo Charlot (2009), dividindo as aprendizagens entre:
diversas, com a ajuda de pessoas que • Relacionais/afetivas: relações interpessoais
ajudam a aprender”. (CHARLOT, 2000, p. 68, e comportamentos afetivo-emocionais, por
grifos do autor) exemplo, “aprendi a amar”, “aprendi a me
relacionar com as pessoas”, “aprendi a conviver
Ao produzirem os balanços de saber, com as diferenças”.
os sujeitos da pesquisa escreveram sobre seus • Ligadas ao desenvolvimento pessoal: conquistas
processos de aprender ao longo da vida e, de pessoais, maneiras de ser, valores, por exemplo,
maneira específica, na universidade. Apesar “aprendi a ser honesto”, “aprendi a não desistir
de tratar da palavra de sujeitos singulares, ao diante das dificuldades”, “aprendi os valores”.
analisar balanços de saber temos acesso aos • Cotidianas: tarefas e atividades do dia a dia,
processos pelos quais os sujeitos “colocam por exemplo, “aprendi a andar”, “aprendi a me
o mundo em ordem”, e não à construção de vestir sozinho”.
histórias escolares singulares. Por isso, “os • Intelectuais/escolares: aprendizagens que en�
balanços de saber são tratados como um texto volvem operações mentais, ou tarefas escolares,
só, onde se procuram encontrar regularidades por exemplo, “aprendi a ler e escrever”, “aprendi
que permitam identificar processos”. (CHARLOT, a estudar”, “aprendi a fazer as lições”.
2009, p. 20). Tratamos, portanto, do grupo de • Profissionais: ligadas ao exercício da profissão,
estudantes da universidade pesquisada. E o que por exemplo, aprendizagens de práticas e
encontramos nos textos produzidos por eles? conteúdos diretamente ligados às profissões.
• Genéricas/tautológicas: por exemplo, “aprendi
Os balanços de saber não nos indicam o muitas coisas”, “aprendi muito”.
que o estudante aprendeu (objectivamente) Tal trabalho de análise permitiu visualizar
mas o que ele diz ter aprendido no em que proporção as diferentes aprendizagens
momento em que lhe colocamos a foram evocadas pelos sujeitos da pesquisa, o
pergunta, nas condições em que a questão que apresentamos a seguir.
é colocada. Por um lado, isto significa
que nós apreendemos não aquilo que o As diferentes aprendizagens e os
aluno aprendeu (o que seria impossível), processos da relação
mas o que, para ele, apresenta de forma com o saber
suficiente a importância, o sentido, o
valor para que ele o evoque no seu relato. Considerando o conjunto dos estudantes
(CHARLOT, 2009, p. 19) pesquisados (gráfico 01) podemos verificar

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 621


que em um total de 1920 aprendizagens história, jornalismo, letras, pedagogia, psicolo�
evocadas, 50,9% foram classificadas como gia e serviço social foram agrupados na área de
ligadas ao desenvolvimento pessoal; 16,6% ciências humanas. No �����������������������
gráfico 02, podemos ve�
como relacionais/afetivas; 14,3% intelectuais/ rificar que, de um total de 826 apreendizagens
escolares; 8,9% cotidianas; 5,8% genéricas/ evocadas por esses estudantes, sobressaem-se as
tautológicas e 3,5% profissionais. de desenvolvimento pessoal (49,1%) e as apren�
Observa-se, portanto, em relação ao con� dizagens relacionais/afetivas (16,7%). A seguir,
junto dos estudantes, o predomínio das apren� apresentam-se as aprendizagens intelectuais/
dizagens ligadas ao desenvolvimento pesso� escolares (14,5%); cotidianas (11,5%); genéricas
al, que perfazem mais da metade do total de (5,9%) e profissionais (2,3%).
aprendizagens apresentadas nos balanços de Observa-se no grupo de estudantes da
saber. As aprendizagens intelectuais/escolares área de ciências humanas, em relação à popu�
foram citadas em proporção três vezes menor, lação pesquisada, praticamente a mesma pro�
em quantidade pouco inferior à das aprendiza� porção entre as aprendizagens genéricas, inte�
gens relacionais e afetivas. lectuais/escolares, ligadas ao desenvolvimento
Interessava-nos saber se essa distribuição pessoal (que continua, portanto, predominante)
variava de acordo com as áreas de conhecimento. e relacionais/afetivas. Em relação ao total de
Então, contabilizamos os dados por curso e, estudantes, os de ciências humanas e sociais
posteriormente, os agrupamos por área. A seguir, evocaram menos aprendizagens profissionais e
apresentamos os dados das três áreas, mostrando mais aprendizagens cotidianas.
que não existe variação importante. A preponderância das aprendizagens li�
Os 150 balanços produzidos pelos estu� gadas ao desenvolvimento pessoal também se
dantes de administração, design gráfico, direito, observa no conjunto das 464 aprendizagens
Gráfico 1 – Total de todas as áreas

Total (%)

Genéricas 5,8

Profissionais 3,5

Intelectuais e escolares 14,3

Cotidianas 8,9

Desenvolvimento pessoal 50,9

Relacionais e afetivas 16,6

Fonte: Dados da pesquisa de campo.


Casos válidos: 1920 aprendizagens.

622 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Gráfico 2 – Área de ciências humanas e sociais

Área de ciências humanas e sociais


(%)

Genéricas 5,9

Profissionais 2,3

Intelectuais e escolares 14,5

Cotidianas 11,5

Desenvolvimento pessoal 49,1

Relacionais e afetivas 16,7

Fonte: Dados da pesquisa de campo.


Casos válidos: 826 aprendizagens.

Gráfico 3 – Área de ciências agrárias e da saúde

Área de ciências agrárias e da saúde


(%)

Genéricas 7,1

Profissionais 5

Intelectuais e escolares 12,7

Cotidianas 8

Desenvolvimento pessoal 50

Relacionais e afetivas 17,2

Fonte: Dados da pesquisa de campo.


Casos válidos: 464 aprendizagens.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 623


evocadas pelos 162 estudantes dos cursos de de aprendizagens profissionais, enquanto as
agronomia, ciências biológicas, educação físi� aprendizagens intelectuais e escolares aparecem
ca, farmácia, fisioterapia, nutrição, odontolo� em maior número.
gia, reunidos na área de ciências agrárias e da Entre os estudantes dos cursos
saúde. Como se pode verificar no gráfico 3, as da área de ciências exatas (arquitetura,
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento pes� ciências contábeis, ciências da computação,
soal representam 50% do total, as relacionais/ engenharia civil, engenharia civil e ambiental,
afetivas somam 17.2%; as intelectuais/escolares engenharia elétrica, sistema de informação)
12.7%; as aprendizagens cotidianas 8%; as ge� foram produzidos 88 balanços de saber, nos
néricas/tautológicas 7.1% e as profissionais 5%. quais foram evocadas 431 aprendizagens.
Repete-se, portanto, o predomínio das Como se pode ver abaixo (gráfico 04),
aprendizagens ligadas ao desenvolvimento 55% dessas aprendizagens estavam ligadas
pessoal. Em comparação com o total de ao desenvolvimento pessoal, 17% eram
pesquisados, os alunos dos cursos da área de relacionais/afetivas; 14,6% intelectuais/
ciências agrárias e da saúde evocaram em seus escolares; 6,5% cotidianas; 3,1% genéricas e
balanços de saber um número mais expressivo 3% profissionais.

Gráfico 4 – Área de ciências exatas

Área de ciências exatas


(%)

Genéricas 3,9

Profissionais 3

Intelectuais e escolares 14,6

Cotidianas 6,5

Desenvolvimento pessoal 55

Relacionais e afetivas 17

Fonte: Dados da pesquisa de campo.


Casos válidos: 88 estudandes e 431 aprendizagens.

Em comparação com o grupo de estudantes pessoal e um número menor de aprendizagens


pesquisados, portanto, os estudantes da área de cotidianas e genéricas e tautológicas. A tabela
ciências exatas evocaram um número maior 01, a seguir, permite visualizar essa comparação
de aprendizagens ligadas ao desenvolvimento entre o total dos estudantes e cada uma das áreas.

624 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Tabela 01 – Total dos estudantes e das áreas pesquisadas

Tarefas das Ciências humanas Ciências agrárias


Ciências exatas
áreas e sociais e da saúde

Genéricas / Tautológicas 5,8% 5,9% 7,1% 3,9%

Profissionais 3,5% 2,3% 5% 3%

Cotidianas 14,3% 14,5% 12,7% 14,6%

Intelectuais / Escolares 8,9% 11,5% 8% 6,5%

Desenvolvimento Pessoal 50,9% 49,1% 50% 55%

Relacionais / Afetivas 16,6% 16,7% 17,2% 17%

Fonte: dados da pesquisa de campo


Casos válidos: 1920 aprendizagens

Vemos, portanto, que, tanto de maneira aprendizagens, uma quantidade muito maior
geral quanto em cada uma das áreas, os proces� de elementos de seu desenvolvimento pessoal,
sos construídos pelos estudantes na relação que em relação às aprendizagens escolares e
estabelecem com o saber são marcados por uma intelectuais/profissionais?
ênfase sobre as aprendizagens ligadas ao desen� Na busca pela construção dessas res�
volvimento pessoal. Ao mesmo tempo, aprendi� postas – e de outras perguntas – considera�
zagens que seriam esperadas em relação ao en� mos importante abordar diretamente os textos
sino superior, como as intelectuais /escolares e produzidos pelos estudantes, complementando
as profissionais, aparecem com frequência me� o movimento inicial de contabilizar as apren�
nor. É interessante destacar que o predomínio dizagens. Enquanto os dados anteriores refe�
das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento rem-se a todas as aprendizagens evocadas nos
pessoal aparece em todas as áreas do conheci� balanços, os extratos a seguir, retirados dos
mento, não sendo uma característica exclusiva balanços, abordam exclusivamente as apren�
dos cursos da área de ciências humanas, nos dizagens atribuídas a espaços e agentes liga�
quais os conteúdos se referem de alguma forma dos ao ensino superior. Ou seja, selecionamos
ao desenvolvimento humano. aquilo que os estudantes dizem ter aprendido
Podemos pensar então que “aprender a na universidade, no curso superior, com os
viver” é importante para todos os estudantes, professores da universidade e com os colegas
sendo que a universidade é um espaço dessa da graduação.
aprendizagem, não apenas por seus conteúdos, Ainda que apresentemos extratos de
mas também pelas vivências interpessoais e por textos produzidos individualmente e, nesse
uma “preparação para o mercado de trabalho” segundo momento, não nos atenhamos mais à
que envolve aspectos individuais, maneiras de quantificação das aprendizagens, continuamos
ser, conquistas pessoais, valores. em uma análise que se refere ao conjunto
Que reflexões podemos empreender dos estudantes, visto que a compreensão das
a partir desses números? Como analisar o lógicas e dos sentidos individuais exigiria
fato de que os estudantes universitários outros procedimentos metodológicos. Ao trazer
pesquisados citem, ao escrever acerca de suas as falas dos estudantes, buscamos aproximar

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 625


nossa análise das diferentes maneiras pelas Nas escolas em que estudei e na univer�
quais eles e elas organizaram a narrativa de sidade em que estudo aprendi com pro�
suas aprendizagens. fessores e colegas a ser mais compreen�
Nessa análise, de maneira geral, podemos siva, mais dinâmica e mais comunicativa.
considerar os sujeitos da pesquisa em dois (Estudante de Sistemas de Informação,
grupos. O primeiro é formado pelos estudantes sexo feminino, 20 anos)
que, em seus balanços de saber, associam a
universidade exclusivamente à aprendizagem Aprendi na faculdade que podemos ser tudo
de valores, maneiras de ser e regras de que nossa imaginação conseguir criar e
convivência. Em seus balanços de saber não que nosso corpo permitir. Um grande lugar
são lembradas aprendizagens intelectuais/ para se engajar no mercado de trabalho,
escolares nem profissionais. À universidade para curtir as melhores festas, para ter
são atribuídas apenas aprendizagens como as a certeza de que realmente aprendeu
exemplificadas a seguir: sobre a vida. (Estudante de Sistemas de
Informação, sexo masculino, 20 anos)
Aprendi que vivemos em comunidade e que
existem limites e direitos a serem respeita� Aqui na universidade estou aprendendo
dos, para que haja uma boa convivência. aquilo que é talvez a maior das lições;
Esse aprendizado foi me passado pela minha respeitar as diferenças e conviver bem
família e por minha vivência na universida� com tudo aquilo que antes eu não achava
de e no ambiente onde vivo. (Estudante de tão comum, pois como aqui encontramos
Agronomia, sexo masculino, 22 anos) sempre pessoas de todos os tipos, ter
respeito e compreensão é totalmente
Como estudante, aprendo a cada dia o indispensável. (Estudante de Ciências
quanto é importante a convivência com Biológicas, sexo feminino, 21 anos)
as pessoas, a simplicidade apesar de tantos
desafios. (Estudante de Ciências Contábeis, Nos balanços de saber dos quais esses
sexo feminino, 21 anos) extratos foram destacados, as aprendizagens
na universidade aparecem como uma sequência
Desde que nasci aprendi valores importan� não diferenciada daquelas realizadas na família
tes para cada pessoa: aprendi a conviver e na rua. Esses estudantes não destacaram
com pessoas diferentes, tanto no convívio outras aprendizagens na universidade além das
quanto na forma de agir e pensar, princi� ligadas ao desenvolvimento pessoal e às relações
palmente dentro da faculdade. (Estudante afetivas, as quais são aprendidas na vivência das
de Fisioterapia, sexo feminino, 20 anos) relações interpessoais. A realização do ensino
superior é lembrada como aquisição de maneiras
Meus pais foram meus primeiros educado� de viver e de relacionar-se, aprendizagens às
res, mesmo sem saber ler direito. Com meus quais eles atribuem a capacitação para a vida em
professores aprendi muita coisa, uma delas sociedade e na profissão.
é ser companheira, e até hoje aprendo a Um segundo grupo de estudantes, ao
cada dia, com meus filhos, com meu espo� contrário, citou as aprendizagens intelectuais/
so e com as pessoas que me cercam, princi� escolares e as aprendizagens profissionais
palmente aqui na universidade, que é uma como elementos importantes de seu processo
verdadeira escola, compartilhar este viver é de aprendizagem. Em alguns balanços de
um aprendizado a cada dia. (Estudante de saber, essas aprendizagens aparecem junto
Nutrição, sexo feminino, 43 anos) com as anteriores, em outros são exclusivas. O

626 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
conhecimento técnico-científico e a formação sacarose é muito prejudicial aos dentes e
profissional são, em alguns textos, valorizados que você não precisa escovar os dentes
em relação a outras aprendizagens. Escola, 3 vezes ao dia (mas não diga isso ao
universidade e professores são reconhecidos paciente, pois ele não escovará nenhuma
como espaços e sujeitos específicos, exclusivos vez ao dia). Aprendi tantas coisas que é
para determinadas aprendizagens. difícil descrever, pois nesses últimos 4
anos, teoricamente meu conhecimento
Na escola aprendemos a ler e a escrever triplicou. (Estudante de Odontologia, sexo
e na universidade a sermos profissionais. masculino, 22 anos)
(Estudante de Agronomia, sexo feminino,
21 anos) Na universidade tive outras experiências, o
aprendizado se processa de outras formas,
Em casa, na rua, na escola, assim como através de atividades práticas, não apenas
na universidade, aprendi a exercitar tudo aulas expositivas, mas também o trabalho
o que havia aprendido, tal como respeito clínico e laboratorial. Foi possível não só
ao próximo, lealdade, amizade, hones� aprender sobre as matérias relacionadas ao
tidade e também fui complementando o curso, mas também a grande importância
aprendizado técnico, que só lugares como da nossa futura profissão. (Estudante de
a escola e a universidade poderiam me dar. Odontologia, sexo feminino, 21 anos)
(Estudante de Ciências Contábeis, sexo fe�
minino, 22 anos) Na escola aprendi a construir verdadeiras
amizades e a base para um futuro melhor.
Nas escolas e universidades adquirimos Na universidade aprendi mecanismos para
conhecimentos científicos, além de colocar uma boa intervenção profissional, sempre
em prática toda nossa formação em casa respeitando meu código de ética. No estágio
através da família. (Estudante de Educação consegui colocar em prática tudo o que me
Física, sexo feminino, 21 anos) foi ensinado na academia. (Estudante de
Serviço Social, sexo feminino, 21 anos)
Na universidade, após a escolha da futura
profissão, obtém-se o conhecimento teóri� Com meus professores aprendi a escrever,
co-científico, o conhecimento prático e a a ler, fazer contas e sobre a história da hu�
introdução na rotina da profissão ideali� manidade, e atualmente estou aprendendo
zada, através dos estágios, trabalho e re� minha profissão. (Estudante de Serviço
lacionamentos com colegas, professores e Social, sexo feminino, 20 anos)
profissionais. (Estudante de Farmácia, sexo
masculino, 20 anos) Aprendi a lidar com o paciente e suas
particularidades com os professores de
Na faculdade tenho aprendido coisas que estágio e de comunicação terapêutica.
certamente se eu não estivesse aqui não te� Aprendi a ter uma visão holística do
ria aprendido, através dos professores (es� paciente a executar práticas sempre
tudante de Letras, sexo feminino, 22 anos) corretas com os professores de Semiologia
e Fundamentos de Enfermagem. Aprendi
Aprendi que quando se coloca uma meta com os professores de Ética, Saúde do
na vida e você luta por ela, normalmente Adulto, entre outras disciplinas que,
é alcançada, aprendi a respeitar a todos e como enfermeira, preciso ter postura de
que ninguém é superior a ninguém, que tal, ser ético e estar sempre à procura de

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 627


conhecimentos. (Estudante de Enfermagem, instituições. Os resultados desse estudo
sexo feminino, 21 anos) mostram que as aprendizagens relacionais/
afetivas representam 38% das aprendizagens
No curso de pedagogia aprendi sobre di� citadas e as ligadas ao desenvolvimento pessoal
versos campos de estudos como a Filosofia, representaram 10% do total de aprendizagens
Antropologia, Sociologia, Didática, Pesquisa citadas. As aprendizagens intelectuais/escolares
em Educação, fundamentos que irão mos� representam 24% do total de aprendizagens
trar o meu modo de pensar e me fazer nos evocadas, a maior parte delas consideradas
lugares nos quais eu promova a constru� pelo autor pouco ligadas à especificidade dos
ção e formação de pessoas, conhecimentos conteúdos e das atividades da escola:
e saberes. (Estudante de Pedagogia, sexo
Feminino, 21 anos) A relação com o saber propriamente dita
surge de forma particularmente vaga. As
Como vimos, portanto, esse segundo gru� actividades escolares básicas (ler, escrever,
po de estudantes vivencia a universidade como contar) têm muito significado para eles.
espaço de aprendizagens intelectuais/escolares e Mas elas remetem para os inícios da esco�
profissionais, ainda que alguns deles evoquem laridade e o que se segue parece não tê-los
aprendizagens relacionais/afetivas ou ligadas ao marcado. Eles vão à escola para fazer aquilo
desenvolvimento pessoal ao referir-se àquilo que que se deve fazer quando se vai à escola e
aprendem em seus cursos de graduação. esperam que esta conformidade lhes permi�
Como podemos analisar essa diferença tirá ter “uma boa profissão”, ou pelo menos
entre os textos dos balanços de saber? Os estu� um emprego. (CHARLOT, 2009, p. 34)
dantes que evocam aprendizagens intelectuais/
escolares e profissionais e as reconhecem como O mesmo pode ser dito, segundo o autor,
próprias da universidade estabelecem processos em relação à esfera profissional, para a qual
de relação com o saber diferentes daqueles que os jovens mostram-se pouco mobilizados. Ele
não o fazem? Em que consiste essa diferença? conclui que para os jovens franceses estudantes
Essas perguntas somam-se àquelas relativas à dos liceus profissionalizantes:
preponderância das aprendizagens ligadas ao
desenvolvimento pessoal em relação às apren� [...] aprender é, em primeiro lugar e
dizagens intelectuais/escolares e às aprendiza� sobretudo, desenvolver relações com
gens profissionais, levantadas anteriormente. os outros, ser capaz de desvencilhar-
Uma questão nos parece central: o que significa se no mundo, compreender a vida e as
o fato de que os estudantes pesquisados evo� pessoas, e, se for o caso, saber defender-
quem com maior frequência aprendizagens que se. (CHARLOT, 2009, p. 34)
não nos parecem as mais afeitas ao ensino na
universidade, mesmo em uma pesquisa realiza� Observa ainda que os jovens sujeitos da
da em sala de aula? pesquisa consideram a escola muito importante,
As análises realizadas por Bernard mas não se encontram mobilizados na escola,
Charlot, a respeito dos dados que encontrou ao em relação às atividades da escola. Ou seja,
pesquisar a relação com o saber de jovens de não possuem um engajamento verdadeiro na
liceus profissionalizantes de periferias de Paris, atividade escolar e na apropriação dos saberes.
auxiliam-nos na tentativa de responder as Para isso, é necessário que “[...] o próprio saber
questões colocadas. Os dados foram coletados (a formação, a cultura) surja como chave do
entre 1993 e 1995, a partir de 533 balanços futuro desejável antecipado” (CHARLOT, 2009,
de saber produzidos pelos estudantes daquelas p. 77), mediação que o autor não encontrou

628 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
com frequência. O que aparece como mediação Os dados coletados na universidade pú�
entre o presente e o futuro desejado não é o blica foram um pouco diferentes, sendo maior
saber, são os estudos e o diploma. Nesses casos, o percentual das aprendizagens intelectuais ou
a questão do saber não é central na relação do escolares, que representaram 26,9% do total de
estudante com a instituição escolar. aprendizagens evocadas, e menor o percentual
Charlot (2009) fala de uma oposição entre das aprendizagens relacionais e afetivas: 19,7%.
o saber e a vida, para compreender a relação dos Ainda assim, as aprendizagens ligadas ao desen�
jovens franceses com o saber. Para eles, o im� volvimento pessoal ocuparam a principal parcela
portante é a vida, não o saber, e, na escola, viver nos balanços de saber das estudantes de peda�
não é aprender, mas conviver com os colegas. gogia da universidade pública: 36%. As apren�
Em relação a um aspecto, entretanto, a escola faz dizagens cotidianas responderam por 10,8% do
sentido para esses jovens: ela é um espaço rela� total, as profissionais, por 2,3%, as genéricas
cional importante. Essa ênfase no aspecto rela� ou tautológicas, por 4,2%. A análise dos textos
cional pode ser compreendida como um desvio: produzidos pelas estudantes em seus balanços de
saber mostrou que os saberes da escola foram
[...] o aluno está enganado em relação à construídos em relação com os saberes da vida:
função da escola, ele não se apercebe da ou eram a continuidade desses ou seu sentido
sua especificidade, ele familiariza e trans� advinha da relação com a transformação da
forma a instituição em lugar de conví� vida. O saber, para as estudantes de pedagogia
vio, que assim se afasta de seu objectivo. pesquisadas, tinha sentido quando lhes possibi�
(CHARLOT, 2009, p. 83-84) litava ver o mundo de outra maneira, situar-se
nele e relacionar-se com os outros.
Essa interpretação, apesar de correta, não Assim, os resultados encontrados em
é, segundo o autor, suficiente. É necessário consi� nossa investigação com 400 estudantes de
derar que “... a aprendizagem da relação com o ou� uma universidade comunitária não parecem ser
tro é também uma forma de cultura” (CHARLOT, uma idiossincrasia da instituição pesquisada.
2009, p.84). Por isso, esses estudantes demandam As análises realizadas por Charlot, a partir
uma cultura que permita compreender a vida, o dos balanços de saber dos estudantes dos
mundo, os outros, as relações com os outros e liceus profissionais, orientam-nos no sentido
consigo mesmos. As considerações do autor sobre da “leitura positiva” de nossos dados, ou seja,
as diferentes dimensões da ênfase sobre as apren� uma postura epistemológica e metodológica
dizagens relacionais e afetivas nos parecem im� que “[...] liga-se à experiência dos alunos, à
portantes, possibilitando uma compreensão mais sua interpretação do mundo, à sua atividade.”
ampla e complexa dos processos de relações com Nesse sentido:
o saber dos sujeitos de nossa pesquisa.
Em pesquisa realizada em 2009, adotamos [...] praticar uma leitura não é apenas,
o balanço de saberes para analisar a relação nem fundamentalmente, perceber co�
com o saber de 266 estudantes de Pedagogia de nhecimentos adquiridos ao lado das ca�
duas universidades privadas e uma universidade rências, é ler de outra maneira o que é
pública em Minas Gerais (BICALHO, 2011). lido como falta pela leitura negativa”.
Encontramos entre as alunas das instituições (CHARLOT, 2000, p. 30, grifos do autor)
privadas que, do total de aprendizagens evocadas,
30% eram relacionais e afetivas, 40% ligadas ao Ao debruçarmo-nos sobre os dados de
desenvolvimento pessoal, 9% cotidianas, 15% nossa pesquisa, buscamos, portanto, evitar uma
escolares ou intelectuais, 1% profissionais e 5% leitura centrada naquilo que falta aos estudan�
genéricas ou tautológicas. tes universitários investigados. Nessa leitura

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 629


negativa, destacaríamos a inadequação de suas dinâmica interna necessária para aprender.
expectativas e de sua ligação com a educação “Mobilizar é por recursos em movimento.
escolar (tanto básica quanto superior), privi� Mobilizar-se é reunir suas forças, para fazer uso
legiando uma formação pessoal, baseada em de si próprio como recurso” (CHARLOT, 2000,
formas de viver e conviver, em detrimento da p. 55). A definição da mobilização envolve o
formação científica e profissional. Ao contrário, conceito de atividade; o sujeito:
ao buscar uma leitura positiva, percebemos que
os processos escolares de aprender abrangem, [...] mobiliza-se, em uma atividade, quando
para os estudantes, tanto conteúdos e processos investe nela, quando faz uso de si mesmo
intelectuais quanto valores e maneiras de ser. como de um recurso, quando é posto em
Assim, aprender os conteúdos científi� movimento por móbeis que remetem a um
cos e profissionais é um processo que implica desejo, um sentido, um valor. A atividade
mudanças na maneira de ver a si mesmos, aos possui, então, uma dinâmica interna. Não
outros e ao mundo. Graduar-se é, também, am� se deve esquecer, entretanto, que essa
pliar os horizontes, adquirir outras formas de dinâmica supõe uma troca com o mundo,
se relacionar com os outros: a formação pro� onde encontra metas desejáveis, meios de
fissional é valorizada como formação pessoal. ação e outros recursos que não ela mesma.
Retomando os extratos dos balanços de saber (CHARLOT, 2000, p. 55)
analisados anteriormente, encontramos, entre
os estudantes que relacionam o ensino univer� Segundo o autor, a adoção do termo
sitário às aprendizagens intelectuais/escolares e atividade tem a intenção de ressaltar a presença
profissionais, diferentes formas de combinar a de um sujeito que a realiza. Sujeito que se
formação pessoal com a formação científica e mobiliza, coloca-se em movimento em função
profissional. Podemos pensar ainda que a au� de determinadas atividades. Para a compreensão
sência da referência a essas aprendizagens pode dessa dinâmica, Charlot utiliza ainda o conceito
indicar a necessidade do desenvolvimento de de sentido, que se refere: à possibilidade do
processos de aprender que construam uma rela� estabelecimento de relações em um sistema ou
ção mais forte com o saber acadêmico. conjunto, à possibilidade de estabelecimento de
No trabalho de análise dos balanços de relações com outros aspectos ou fatos da vida
saber, identificamos alguns elementos recorrentes do sujeito e à produção de inteligibilidade sobre
nos relatos que nos pareceram elucidativos dos algo. Assim, tem sentido:
diferentes processos de relação com o saber vi�
venciados pelos estudantes universitários sujeitos [...] o que é comunicável e pode ser
da pesquisa. Eles fazem parte do quadro formado entendido em uma troca com os outros.
pela ênfase dada às aprendizagens ligadas ao de� Em suma, o sentido é produzido por
senvolvimento pessoal, e podem ser compreendi� estabelecimento de relação, dentro de um
dos com os conceitos de mobilização e sentido. sistema, ou nas relações com o mundo ou
com os outros. (CHARLOT, 2000, p. 57)
Sentidos da formação
universitária e mobilização em Tomando como referência esses três
relação ao “saber em si” conceitos – sentido, mobilização e atividade
– buscamos novamente nos balanços de saber
Charlot (2000) propõe os conceitos elementos que nos auxiliassem a compreender
de mobilização, sentido e atividade para os processos de relação com o saber dos
compreender os processos de relação com o sujeitos da pesquisa. Nos textos produzidos,
saber. O conceito de mobilização remete à os estudantes expressaram a atribuição de

630 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
diferentes sentidos ao ensino superior, ao melhor e de um futuro estável. De que maneira
relatarem o que buscam na universidade, o esse sentido atribuído à universidade compõe
que esperam a partir da conclusão do curso de as relações estabelecidas por eles com o saber?
graduação, como se veem enquanto estudantes Propomos duas leituras: por um lado,
e como projetam sua imagem como formados. atribuir à formação universitária o sentido de
Identificamos três polos de organização possibilidade de um futuro melhor – para si e
desses sentidos. O primeiro é o da formação também para outras pessoas – é uma forma
universitária como o caminho para uma de valorização desse processo, e pode ser um
vida melhor, a superação de dificuldades, o fator de mobilização dos estudantes em relação
reconhecimento no mercado profissional. É o a seus estudos. Por outro lado, é importante
que aparece nos relatos seguintes: perguntar, como faz Charlot (2009) na análise
dos dados de suas pesquisas, qual é o lugar
Espero me formar e ter uma vida adequada, ocupado pelo aprender nessa valorização do
para suprir as dificuldades que já foram ensino superior, sendo possível que, em alguns
passadas, e ver isso como um aprendizado casos, a formação universitária seja valorizada
para o futuro. (Estudante de Arquitetura, sem a consideração das aprendizagens ali
sexo masculino, 22 anos) realizadas. Nesse segundo caso, pode acontecer
uma trajetória universitária utilitarista,
Espero que no futuro bem próximo todos voltada apenas para a superação de etapas,
esses conhecimentos sejam o suficiente sem o estabelecimento de relações com o saber
para enfrentar esse mundo. (Estudante de da universidade.
Ciências Contábeis, sexo feminino, 21 anos) Identificamos um segundo polo de
organização dos sentidos atribuídos pelos
O que espero pra mim no futuro é ser estudantes à formação universitária: para vários
feliz, formar, ter uma excelente família e deles, o processo da graduação ocasiona uma
arrumar um bom emprego, isso é tudo que importante mudança pessoal, de perspectivas,
eu quero. (Estudante de Farmácia, sexo maneiras de ver o mundo, maneiras de estar no
masculino, 20 anos) mundo e relacionar-se com as pessoas. A seguir,
alguns extratos de balanços que expressam
Hoje me encontro aqui, dentro de uma esses sentidos:
universidade lutando para conseguir algo
de melhor para mim e para meus filhos. Ao entrarmos no ambiente escolar, o
Consequentemente poderei dar a eles tudo sentido da vida se define mais ainda.
que não tive a oportunidade de ter, inclusive (Estudante de Educação Física, sexo mas�
apoio quanto ao estudo. (Estudante de culino, 20 anos)
Letras, sexo feminino, 31 anos).
Na faculdade, a nossa mente se torna mais
Hoje estou prestes a me formar, sei que “aberta”, muitos conceitos são repensados.
essa é uma oportunidade única e que abrirá (Estudante de Fisioterapia, sexo feminino,
as portas para que eu possa ter um futuro 20 anos)
profissional brilhante, me tornando cada
dia mais feliz. (Estudante de Psicologia, Ingressei na universidade apenas com o
sexo feminino, 24 anos) objetivo financeiro, mas com os novos
conhecimentos adquiridos vi o mundo a
A universidade significa, portanto, para minha volta com outra perspectiva, a de
vários estudantes, a garantia de uma vida fazer algo, tentar mudar aquilo que ainda

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 631


se pode mudar. (Estudante de História, sujeitos, também, aprendizagens relativas a
sexo masculino, 44 anos) suas maneiras de ver o mundo, de viver, a seus
valores. Ou seja, durante o desenvolvimento de
Na universidade descobri que o universo seus cursos de graduação, muitos estudantes
não sou eu ou minha cidade. Fui vivenciam processos de mudança pessoal,
informado que há infinitas galáxias e que que foram expressos nos balanços de saber e
sou insignificante perto delas, mas que analisados por nós como aprendizagens ligadas
no meu mundo sou tudo. Na graduação ao desenvolvimento pessoal. Assim como
aprendi que muitas pessoas pensam igual refletimos anteriormente ao analisar os dados
ou diferente de mim, mas nem por isso de maneira quantitativa, também a partir dos
sou mestre... ou doutor. Descobri que o extratos dos balanços de saber apresentados
conhecimento não tem fim e que a cada nesta seção é possível identificar a ligação entre
dia novas coisas são descobertas. Eu posso o processo de formação científica e profissional
ser um inventor... de teorias. (Estudante de e os processos de desenvolvimento pessoal.
Jornalismo, sexo masculino, 21 anos) Os sentidos atribuídos à formação uni�
versitária estão ligados também à mobilização
Na universidade vivo um novo momento, em relação ao saber tomado como conteúdo
posso dizer que foi um divisor de águas intelectual, ou a relação com o saber-objeto.
em minha vida. O antes e o depois. Sua Alguns balanços de saber expressam essa mo�
importância foi a minha descoberta como bilização. Neles, os estudantes fazem referên�
pessoa, autonomia e liberdade de ser eu cia ao prazer, ao desejo de aprender, e o saber
mesma. (Estudante de Psicologia, sexo aparece como aquilo que o sujeito ama, pro�
feminino, 33 anos) cura, que dá sentido a sua vida e faz parte de
sua identidade.
Cheguei na universidade e vi que eu não
aprendi nada ainda da vida, que minha Aprendi como é bom aprender, estudar,
vida está começando aqui para o mundo ler... e o prazer que existe simplesmente em
lá fora. (Estudante de Serviço Social, sexo conhecer coisas interessantes. A questão
feminino, 26 anos) da busca pelo aprendizado é válida em
todas as áreas da vida: pessoal, acadêmica
Com a oportunidade de agregar novos e profissional. Assim como as lembranças
conhecimentos à minha vida conheci de momentos e de pessoas que amamos,
diversas formas de pensamento e práticas, o conhecimento que adquirimos são bens
que acabaram transformando minha forma que ninguém pode nos tirar. (Estudante de
de agir e pensar, o que penso ser. (Estudante Design, sexo feminino, 19 anos)
de Pedagogia, sexo feminino, 23 anos)
Na escola e no mundo foi onde me achei,
A experiência universitária vista como foi através deste desejo do saber que me
transformadora das maneiras de ver o mundo, impulsionou. (Estudante de Design, sexo
dos horizontes e dos próprios sujeitos é um masculino, 34 anos)
processo de relação com o saber que ajuda a
compreender a importância das aprendizagens Espero nunca parar de estudar porque sinto
ligadas ao desenvolvimento pessoal nos que não tem o menor cabimento estar e viver
balanços de saber. A atribuição desse sentido em sociedade sem entender o que ela produz,
à universidade revela que as aprendizagens produziu e ainda vai produzir. (Estudante de
científicas e profissionais significam para os Jornalismo, sexo masculino, 23 anos)

632 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
As melhores coisas aprendi na escola, lá como os problemas fundamentais da escola,
descobri minha paixão: a literatura e o do ensino e da aprendizagem. Longe de se
cinema. Na escola aprendi a gostar de esgotarem na disputa entre tradicionais e
estudar, odiar português, mas amar redação. construtivistas, esses problemas apontam
Aprendi que mesmo não suportando para o essencial que é saber se o aluno
números você pode ser bom com eles. tem a possibilidade de ter uma atividade
Descobri que definitivamente sou um intelectual ou não. (CHARLOT, 2005, p. 23)
cientista por natureza, e um pesquisador em
potencial. Não quero parar de ler e assistir A mobilização em relação ao saber em
filmes jamais. Isso me faz viver. (Estudante si – que identificamos como o terceiro polo dos
de Jornalismo, sexo masculino, 21 anos) sentidos atribuídos à formação universitária –
serve como ferramenta teórica para a discussão
Meus professores foram muito importantes dos outros dois polos (a valorização da
para mim, serviram como reais transmissores universidade como caminho para a conquista
de conhecimento, e foi com eles que aprendi de uma vida melhor e o reconhecimento do
a “gostar de aprender”. Defino assim a curso superior como transformador da maneira
minha busca pelo saber. É esse desejo de de ver o mundo). Isso porque, tanto em um caso
conhecer coisas novas e conhecer o mundo quanto em outro, são necessárias, para que o
que me impulsiona a sempre buscar o estudante realmente se insira nos processos de
conhecimento e foi exatamente a percepção aprender da universidade, a compreensão e a
desse desejo que me trouxe ao curso de mobilização em relação aos saberes específicos
licenciatura. (Estudante de Letras, sexo do curso realizado.
feminino, 19 anos) Novamente retomando a preponderância
das aprendizagens ligadas ao desenvolvimento
Na universidade aprendo e aprendi a pessoal, nos balanços de saber, entendemos que
cada momento o prazer de aprender. Para a construção de relações com o saber baseadas
minha vida essa experiência tem um valor no engajamento intelectual e na mobilização
inestimável. (Estudante de Psicologia, sexo intelectual (CHARLOT, 2005, p. 54) pode
feminino, 26 anos) ser um caminho para que as aprendizagens
intelectuais/escolares e profissionais, específicas
Sendo assim, o conhecimento é o que da universidade, passem a fazer mais sentido
me trouxe aqui, neste momento, e o que para os estudantes.
me mantém aqui. Além de ser a minha
motivação e a minha razão para buscar Considerações finais
algo maior para mim, e deixar minha
contribuição para os que hão de vir. Retomando os dados e as discussões
(Estudante de Engenharia Elétrica, sexo apresentadas neste artigo, podemos dizer
masculino, 22 anos) que a relação com o saber dos estudantes
universitários sujeitos da presente pesquisa
Nesses relatos, o conhecimento ocupa está baseada na valorização das aprendizagens
lugar central, é buscado, desejado e parece ligadas a seu desenvolvimento pessoal.
imprimir sentido à realização do curso de Considerando especificamente os processos
graduação. Charlot afirma: de relação com o saber desenvolvidos na
universidade, encontramos duas situações: um
Eis que o problema do sentido e, por grupo de estudantes percebe essa instituição
decorrência, o problema do prazer aparecem como mais uma etapa de seu processo de

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 633


formação pessoal, enquanto outro grupo atribui universidade privada comunitária localizada
ao ensino superior, além da formação pessoal, em um município de porte médio do estado
outras funções, ligadas a aprendizagens de Minas Gerais. Ao encontrá-la, voltamo-nos
intelectuais/escolares e profissionais, próprias para as inquietações que justificaram a questão
do ensino superior. Entendemos então que de pesquisa, e novas perguntas se apresentam:
a formação universitária é um processo de de que maneiras esses processos de relação
aprendizado de maneiras de ser e de relacionar- com o saber refletem a respeito dos processos
se com os outros e com o mundo. É também, de ensinar e aprender no ensino superior? Que
para uma parcela dos estudantes, espaço de demandas e desafios colocam para as práticas
aprendizado científico e de formação para o pedagógicas na universidade?
exercício de uma profissão. Trazemos novamente, para fundamentar
A compreensão dos processos de relação esta reflexão, as considerações de Bernard Charlot
com o saber dos estudantes pesquisados foi (1997). Para ele, a entrada na universidade está
construída também, neste trabalho, por meio diretamente ligada à compreensão e aquisição da
dos conceitos de sentido e mobilização. Vimos lógica do saber universitário, o que exige operar
que os sentidos atribuídos pelos estudantes com os saberes de forma descontextualizada
à formação universitária organizam-se em e a ressignificação das experiências de vida
torno de três polos: a busca por um futuro e trabalho em outros sistemas de saberes.
melhor; a transformação das maneiras de ver Portanto, o estar na universidade deveria
o mundo e a mobilização em relação ao saber desencadear outras relações com o saber. É essa
em si. Analisando esses três polos de sentidos, constatação que tem nos levado a indagar sobre
chegamos à consideração de que as questões do o sentido do conhecimento escolar e do papel
desejo de aprender e da mobilização intelectual da universidade na relação estabelecida com o
são centrais – e precisam ser construídas pelos saber por esses/essas estudantes, os significados
estudantes – nos processos de ensinar e aprender da universidade em suas vidas, em que medida
na universidade. Reconhecer a universidade o estar na universidade propicia aprendizagens
unicamente como espaço de formação pessoal, intelectuais e as coloca na condição de
ligada a valores e modos de ser pode significar, aprendizagens significativas.
nesse sentido, a não compreensão das Cientes do papel da universidade na
especificidades do saber universitário. produção de determinados tipos de aprendiza�
Essa é, em resumo, a compreensão gem e da heterogeneidade do público universi�
acerca dos processos de relação com o saber tário, especialmente no ensino superior priva�
dos estudantes universitários que construímos a do, procuramos, com a discussão desenvolvida
partir da análise dos balanços de saber produzidos neste artigo, chamar a atenção para a impor�
por eles. Essa é a resposta que oferecemos às tância de que os cursos de graduação sejam
perguntas que fizemos sobre os processos de realmente espaços de circulação, aquisição e
relação com o saber dos estudantes de uma produção de saber.

634 Maria Gabriela P. BICALHO; Maria Celeste R. F. SOUZA. Relação com o saber de estudantes universitários:...
Referências

BICALHO, Maria Gabriela Parenti. Relação com o saber e processos de construção do eu epistêmico por estudantes de pedagogia
de universidades privadas. In: CHARLOT, Bernard (Org.). Juventude popular e universidade: acesso e permanência. São
Cristóvão: Editora UFS, 2011.

CHARLOT, Bernard. Nouveaux publics, nouveaux rapports au savoir: nouvelles fonctions de l’université? Actes du colloque de
l’Association des conseillers d’orientation psychologues de France. Le défi de la réussite, Sorbonne, p. 41-50. jan. 1997.

______. Rapport au savoir en milieu populaire: une recherche dans les lycées professionnels de banlieue. Paris:
Anthropos, 1999.

______. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. Tradução de Bruno Magne.

______. (Org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artes Médicas, 2001.

______. (Org.). Relação com o saber, formação dos Professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto
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______. A relação com o saber nos meios populares: uma investigação nos liceus profissionais de subúrbio. Porto: Livpsic,
2009. Tradução de Cataria Matos.

COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: EDUFBA, 2008. Tradução de Georgina G. dos
Santos, Sônia Maria R. Sampaio.

Recebido em: 07.05.2013

Aprovado em: 27.06.2013

Maria Gabriela Parenti Bicalho é pós-doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, doutora em Educação
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

Maria Celeste Reis Fernandes Souza é doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-doutoranda
em Educação pela Universidade Federal de Sergipe, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CPNq),
secretária adjunta de Educação da Secretaria Municipal de Educação de Governador Valadares/MG e pesquisadora do Grupo
de Estudos sobre Numeramento – GEN/UFMG. Coordena projeto de educação social com pessoas jovens e adultas.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 617-635, jul./set. 2014. 635


Proposta didática para o curso de licenciatura em
educação física: aprendizagem baseada em casos

Andreia Cristina MetznerI

Resumo

O presente artigo tem como tema central a aprendizagem


baseada em casos, também conhecida por estudo de casos. O
objetivo deste estudo é apresentar uma proposta de trabalho
implementada em um curso de licenciatura em educação
física e estruturada a partir de um caso específico para a área
escolar. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa
e do tipo pesquisa de campo. Participaram do estudo 25
alunos do último ano do curso de licenciatura em educação
física pertencentes a uma instituição particular de ensino
superior, localizada no interior do estado de São Paulo. As
disciplinas selecionadas para o desenvolvimento das ações
foram: metodologia da educação física na educação básica,
seminário de conclusão de curso e estágio supervisionado.
Os resultados da pesquisa apontam que a utilização de casos
no curso de educação física promove tanto para o professor
quanto para os alunos resultados positivos e necessários
para a sua atuação profissional. Acredita-se que, quando a
docência é desenvolvida de forma comprometida e a partir
de uma prática pedagógica crítica e reflexiva, por meio de
desafios instigantes, tanto o professor quanto os alunos
alcançam resultados positivos. Para isso, o professor precisa
desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto propiciada
pelas aulas expositivas e enraizadas pelas metodologias
tradicionais.

Palavras-chave

Educação física — Aprendizagem baseada em casos —


Ensino superior.

I- Centro Universitário UNIFAFIBE,


Bebedouro, SP, Brasil.
Contato: acmetzner@hotmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464 637
A teaching proposal implemented in an undergraduate
Physical Education program: case-based learning

Andreia Cristina MetznerI

Abstract

This article focuses on Case-based learning, also known


as case study. the aim of this study is to present a work
proposal implemented in an undergraduate Physical
Education program and structured from a specific case for
the education area. The study’s methodology is qualitative
and field research type. Its participants were 25 students
of the final year of program the aforementioned from a
private institution of higher education located in the interior
of São Paulo state. The disciplines selected for developing
actions were: Methodology of Physical Education in Basic
EducationII, Course Completion Seminar and Supervised
Internship. The research results indicate that the use of
cases in the Physical Education course provides both the
professor and the students with results that are positive
and necessary for their professional performance. Also,
when teaching is developed in a committed way and from
a critical and reflective pedagogical practice by means of
exciting challenges, both the professor and the students
achieve positive results. For this, professors need to
extricate themselves from the routine and the “comfort zone”
afforded by class lectures and classes rooted in traditional
methodologies.

Keywords

Physical education — Case-based learning — Higher education.

I- Centro Universitário UNIFAFIBE, Bebedouro,


SP, Brasil.
Contact: acmetzner@hotmail.com
II- Translator’s note: In Brazil, basic education
comprises early childhood, primary and
secondary education.

638 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091464 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014.
Introdução ser vistas de forma isolada ou fragmentada. A
interdisciplinaridade “surgiu nos anos 70 como
A docência, durante muito tempo, foi resposta às necessidades de uma abordagem
concebida como um dom ou vocação. Ou seja, as mais integradora da realidade”. (DENCKER, 2002,
pessoas que gostavam e tinham facilidade para p. 19). De acordo com Martinazzo (2010, p. 203):
ensinar tornavam-se professores. Hoje, sabemos
que a docência vai muito além do gostar de ensinar [...] a interdisciplinaridade caracteriza-
e do domínio dos conteúdos de suas matérias de se por uma comunicação e até mesmo
ensino. Os desafios atuais da docência requerem por uma colaboração entre as diferentes
conhecimento científico e prático. Trata-se disciplinas, mantendo-se, porém, cada
da necessidade do docente estar em constante uma com e em sua especificidade.
formação, ser capaz de cumprir as exigências das
instituições de ensino, atender as necessidades Em relação à transdisciplinaridade,
e expectativas dos alunos, ter criatividade para podemos dizer que existia a mesma busca da
trabalhar com turmas heterogêneas e saber lidar unidade do conhecimento para que os alunos
com as diferenças, conseguir articular diferentes tenham uma visão mais ampla e global dos
conteúdos, acompanhar os avanços tecnológicos, fenômenos estudados, visando a formar
cumprir o programa de ensino, aliar ensino e profissionais cada vez mais completos. Ou seja,
pesquisa etc. é a soma e unificação de todos os saberes.
O exercício da docência nunca é
estático ou permanente. Segundo Cunha (2004, A compreensão transdisciplinar rompe com
p. 526), “a docência é um processo que se a forma epistemológica e metodológica
constrói permanentemente, aliando o espaço tradicional de ensino. Os limites parcelares
da prática com o da reflexão teorizada”. As impostos pelas disciplinas tradicionalmente
novas informações, as pesquisas, os alunos, as organizadas fragmentam o conhecimento
diferentes instituições de ensino modificam a e impedem a compreensão de um sistema
forma de o professor ministrar as suas aulas. complexo, no qual todos os elementos
Dessa forma, visando a garantir a estão em relação e interdependência.
qualidade do ensino e a aprendizagem efetiva (MARTINAZZO, 2010, p. 201)
dos alunos, o professor do ensino superior
precisa articular os conteúdos de sua disciplina O autor complementa que, para a
com os das demais disciplinas do curso. compreensão da realidade, é necessária uma
A prática pedagógica no ensino superior abordagem transdisciplinar, visando à quebra
necessita superar a visão de ensino fragmentado, da divisão e hierarquização de conhecimentos,
transformando as partes em um todo significativo. bem como à transposição dos conhecimentos
O primeiro passo é estabelecer interconexões estanques e à promoção do diálogo entre as
entre as disciplinas do curso; em seguida, diferentes disciplinas.
permitir a interconexão dos conteúdos, buscando As disciplinas de um curso superior são
a unificação do conhecimento. Esses dois organizadas de forma semestral ou anual. Na
fatores são denominados interdisciplinaridade e grade curricular, encontramos nos primeiros
transdisciplinaridade, respectivamente. semestres as disciplinas consideradas como
O termo interdisciplinaridade pode ser pré-requisitos e as demais disciplinas são dis-
entendido como um conjunto de disciplinas tribuídas ao longo do curso. Acreditamos que
interligadas, ou seja, o conteúdo e as atividades geralmente as disposições dessas disciplinas são
desenvolvidas nas disciplinas que compõem feitas a partir de uma reflexão sobre a impor-
a grade curricular de um curso não podem tância de manter uma integração entre elas.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. 639


Porém, uma boa organização da grade de lidar com o grande número de informações
curricular de um curso não é suficiente para recebidas e com as situações reais a que são
promover a inter e a transdisciplinaridade, expostos no dia a dia da profissão.
pois é preciso desenvolver práticas curriculares Ao buscar resoluções para o caso
que possibilitem a compreensão das relações apresentado, os alunos organizam as suas ideias,
existentes entre as diferentes disciplinas. buscam conhecimentos teóricos e práticos nas
diferentes disciplinas, apresentam soluções,
Os empecilhos à não-fragmentação do executam na prática a solução proposta, visando
currículo em disciplinas são variados, a verificar a sua aplicabilidade e pertinência etc.
abrangem o desconhecimento do significado Nesse contexto, o presente artigo tem
de projetos, a falta de formação específica como objetivo apresentar uma proposta de
para trabalhar com os mesmos, a acomodação trabalho, estruturada a partir da aprendizagem
pessoal e coletiva, até o medo de perder o baseada em casos, implementada em um curso
prestígio pessoal, pois a interdisciplinaridade de licenciatura em educação física de uma
leva ao anonimato – o trabalho individual instituição particular de ensino superior.
anula-se em favor de um objetivo maior – o
coletivo. (FAZENDA, 1993, p. 42) A educação física no ensino
superior: alguns apontamentos
Além disso, a autora aponta que é
mais fácil trabalhar de forma fragmentada A educação física, segundo Figueiredo
do que discutir ideias. Todo esse comodismo (2004, p.90), “pode ser compreendida como área
acaba deixando os projetos interdisciplinares que tematiza/aborda as atividades corporais em
e transdisciplinares elaborados pelas suas dimensões culturais, sociais e biológicas”.
universidades apenas no papel. Assim, o campo de atuação e os conteúdos da
O conhecimento não pode se restringir educação física são muito amplos.
apenas a uma área específica, mas, sim, deve- No passado, os cursos de licenciatura em
-se articular o conhecimento de uma disciplina educação física estavam preocupados em:
com os saberes e práticas das demais. Isso es-
treitará as fronteiras existentes entre as discipli- [...] formar executores e repetidores de habi-
nas de um curso e construirá eixos de ligação lidades motoras sem o devido conhecimento
entre elas, proporcionando a reunificação do sobre motricidade humana e sem compro-
conhecimento. metimento com o processo educacional. Por
Segundo Almeida (2012, p. 158): isso, as disciplinas curriculares que com-
punham estes cursos valorizavam excessi-
[...] é a partir deste momento que começa vamente a prática de habilidades como um
ganhar força o desenvolvimento de fim em si mesmas. (GHILARDI, 1998, p. 9)
propostas de trabalho integradoras e a
ser destacada a importância do trabalho Hoje, saber executar bem determinada
coletivo que possibilita comunicação entre habilidade não é garantia de ser um bom
as disciplinas. profissional, pois, para atuar na área de
educação física, é necessário muito mais do
Dentre essas propostas, podemos citar a que saber-fazer. Pelo contrário, é fundamental
aprendizagem baseada em casos. Acreditamos o domínio de um conjunto de conhecimentos
que a utilização de casos no ensino superior é práticos e teóricos, bem como ser capaz
importante para formar profissionais capazes de justificar as suas atitudes a partir do
de estabelecer conexões entre as disciplinas, conhecimento científico (GHILARDI, 1998).

640 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
Por isso, os currículos dos cursos de sintonia com o contexto sócio-histórico-
formação, que historicamente priorizaram a -cultural de seus alunos e especialmente,
transmissão de conteúdos, precisam ser ques- que incorpore o entendimento da comple-
tionados, pois os cursos que possuem uma visão xidade humana. (MARTINS; MOREIRA;
conteudista geram disciplinas fragmentadas. SIMÕES, 2006, p. 187)
Essa fragmentação existente colabora com a
hierarquia de saberes disciplinares, ou seja, al- O Conselho Nacional de Educação
gumas disciplinas são mais valorizadas ou têm (Parecer 009/2001, p. 10) aponta que os cursos
mais credibilidade dentro de um curso. de licenciatura devem evidenciar:
Nos cursos de educação física, as
disciplinas mais temidas ainda são a fisiologia, [...] os problemas e as especificidades
anatomia e cinesiologia. O medo e a dificuldade das diferentes etapas e modalidades da
que muitos alunos encontram ao cursarem tais educação básica, estabelecendo o equilíbrio
disciplinas criam um falso conceito de que essas entre o domínio dos conteúdos curriculares
são as mais importantes do curso. e a sua adequação à situação pedagógica.
Na verdade, não há disciplinas melhores
ou piores, mais ou menos importantes dentro de Para alcançar tais metas, Hunger
uma grade curricular. Todas as disciplinas fazem e Ferreira (2006, p. 145) acreditam que é
parte de um único curso superior e, portanto, necessário:
devem caminhar juntas em um mesmo patamar.
Por isso, de acordo com Neira (2010, [...] conceber a aprendizagem como um
p.73) “o currículo precisa ser fruto de uma ação processo que depende da interação entre
coletiva”. O autor complementa dizendo que “os o indivíduo e o meio a partir de uma
saberes e situações que constituem o currículo perspectiva metodológica que enfoque
da formação para a docência refletem, em última situações-problemas e o desenvolvimento
análise, o sujeito-professor que se quer formar” de projetos interdisciplinares.
(p.74). Ao contrário de um novelo de lã todo
emaranhado, o currículo precisa ter o formato Os cursos voltados à formação de pro-
de um quebra-cabeça onde todas as “peças” fessores, assim como a estrutura curricular, não
(disciplinas) se encaixam e dialogam entre si. podem ser pensados de forma isolada e desco-
Neira (2010, p.89) acredita que os nectada. Por isso, é necessário discutirmos e
currículos dos cursos de formação inicial de refletirmos a respeito de questões relacionadas
professores de educação física necessitam às contribuições das metodologias problemati-
de modificações, como “alternativa para o zadoras no ensino superior, especialmente nos
desenvolvimento de uma identidade profissional cursos de licenciatura em educação física, vi-
docente coerente com as necessidades sando à melhoria da qualidade desses cursos
educativas da contemporaneidade”. de graduação, tanto na dimensão profissional
Para Martins, Moreira e Simões (2006), quanto na acadêmica.
devemos ensinar aos alunos de educação física
em sua formação acadêmica: Aprendizagem baseada em casos

[...] a associação entre o ver, o ser, o fazer, As chamadas metodologias problemati-


o conhecer, o compreender e o conviver, zadoras têm sido bastante divulgadas mundial-
ou seja, uma formação que venha a per- mente, dentre elas encontramos a case based
mitir uma ação profissional que respeite learning ou aprendizagem baseada em casos,
o princípio da rigorosidade, que esteja em também conhecida por estudo de casos.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. 641


Em relação à aprendizagem baseada em da vida: sociais, culturais, econômicos,
casos (ABC), Montanher (2012, p. 6) aponta que é: ambientais, profissionais etc.

[...] uma estratégia de ensino e de apren- Os autores complementam dizendo


dizagem ativa, contextualizada e centrada que esses casos podem ser longos ou curtos
no aluno, em que o ensino se dá a partir dependendo do objetivo do estudo.
de um Caso paradigmático que contextua- Destarte, o caso pode ser elaborado a
liza uma situação problematizadora. Nesse partir de diversos contextos, porém não se
modelo o professor desempenha o papel de deve perder o foco principal, que é promover
mediador do processo de aprendizagem, o desenvolvimento e aperfeiçoamento do
questionando e orientando os alunos a re- conhecimento do aluno, no sentido de
fletir, pesquisar, analisar e formular hipó- desenvolver no futuro profissional competências
teses sobre o Caso e os problemas conexos e habilidades necessárias para a sua formação.
a este, de forma colaborativa e dialógica. Outro ponto relevante na aprendizagem
baseada em casos é que o papel do professor
O autor complementa dizendo que esse está relacionado ao mesmo tempo com a esco-
processo fundamentado no questionamento é lha ou elaboração dos casos e com todo proces-
essencial para motivar a aprendizagem de novos so de discussão.
conteúdos e a construção de novos saberes. Christensen e Hansen (1987 apud
Montanher, 2012, p. 35) argumentam que:
O Caso seria o instrumento que possibilita-
ria mobilizar o conhecimento-em-ação dos [...] a liderança do processo de discussão
alunos, conhecimento este que os leva a agir do Caso é uma responsabilidade crítica
de certa forma em certas situações, sem ter do professor, o qual, mais que possuir
plena consciência dos conceitos envolvidos um conhecimento profundo do campo ou
nos bons resultados obtidos. Ao observar os problema colocado no Caso, deve procurar
alunos trabalharem com o Caso, o profes- mediar o processo pelo qual os alunos
sor teria possibilidade de reconhecer neste individualmente, e em grupo, exploram
conhecimento-em-ação os seus saberes pré- a complexidade da situação específica
vios, o que é de grande valia, uma vez que apresentada pelo Caso.
possibilitaria orientar o ensino com base nes-
tes dados. (MONTANHER, 2012, p. 9) A aprendizagem baseada em casos
permite integrar informações provenientes de
Os casos podem basear-se em problemas diferentes disciplinas e de diferentes campos
reais ou fictícios. O importante é fazer com do conhecimento. Além disso, a aplicação
que o aluno interaja com o problema, formule dessa metodologia problematizadora permite
hipóteses, tome decisões e reflita sobre os ao professor pensar e planejar todas as etapas,
resultados, favorecendo uma participação ativa considerar os alunos (perfil), os tempos e prazos,
no processo de ensino e aprendizagem. os materiais didáticos ou fontes, os objetivos
Caracteristicamente, um caso, segundo de aprendizagem e a sua avaliação, a interação
Reis e Linhares (2008, p. 231): entre professor/alunos e alunos/alunos; enfim,
ela permite ao professor traçar uma hipótese de
[...] deve se constituir uma questão a ser trabalho, que poderá ser adaptada e alterada ao
resolvida no formato livre ou aberta; deve longo do curso ou disciplina.
ser atual e de interesse dos aprendizes, Para isso, o professor precisa
propiciando ligações com contextos desvencilhar-se da rotina e da zona de conforto

642 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
propiciada pelas aulas expositivas e enraizadas O filho mais velho, Guilherme, tem 15
pelas metodologias tradicionais. anos e está cursando o primeiro ano do
Hoje, diante de tantos avanços tecno- ensino médio. Já o Carlos tem 8 anos e
lógicos e do rápido acesso às informações, é está no ensino fundamental. E o caçula,
notória a necessidade de o professor tornar a Joãozinho, tem 4 anos e está na educação
sua aula motivadora. A aprendizagem baseada infantil. Todos estão matriculados em
em casos pode ser considerada uma alternativa escolas públicas.
plausível, devido à sua aproximação com a rea- No final de semana, Maria gosta de
lidade e com o preparo para a vida profissional conversar com os filhos sobre o que fizeram
dos alunos. na escola, o que aprenderam, do que mais
Acreditamos que, mesmo que tenhamos gostaram, como estão se comportando
um sólido embasamento conceitual relacionado na sala de aula etc. E então, nesse dia,
à aprendizagem baseada em casos, somente conversa vai e conversa vem, surgiu o
se o colocarmos em ação, em nossa prática, papo sobre as aulas de educação física.
é que conseguiremos dar significado a esses Guilherme disse que o professor de
conceitos e reelaborá-los. Por isso, a seguir, educação física dele é muito legal, pois
apresentaremos um caso aplicado em um curso deixa os meninos jogarem futebol e
de licenciatura em educação física. as meninas jogarem vôlei em todas as
aulas. Isso é muito bom, pois, segundo
Metodologia Guilherme, as meninas só atrapalham
quando inventam de querer praticar esse
Estudar os conteúdos de uma determinada esporte, pois futebol é coisa de menino.
disciplina e relacioná-los com os das demais pre- Carlos relatou que não gosta de participar
sentes no curso para solucionar um caso é muito das aulas de educação física; ele prefere
mais significativo e produtivo para o aluno do ficar sentado olhando os colegas. O
que apenas estudar esse conteúdo para a realiza- professor não insiste para ele participar
ção de uma prova. Por isso, acreditamos que a das aulas, pois ele prefere trabalhar apenas
utilização da aprendizagem baseada em casos é com aqueles alunos que “estão a fim de
importante para a formação no ensino superior. aprender”. Carlos só participa da aula de
Para a elaboração do caso, o primeiro educação física quando chove, pois ele
passo foi pensarmos no conhecimento prévio gosta de jogar damas e, sempre que está
dos alunos do curso de licenciatura em educa- chovendo, o professor deixa os alunos
ção física e nas disciplinas que estavam sendo dentro da sala de aula jogando damas e
ministradas naquele semestre, visando a unir jogo da velha.
informações que envolviam os conteúdos abor- Já o Joãozinho disse que na escola dele
dados nessas disciplinas. Além disso, procu- não tem professor de educação física e que
ramos um tema motivador, que despertasse o é a tia da sala que leva as crianças para o
interesse dos alunos. parque ou dá umas bolas e bambolês para
O caso elaborado foi o seguinte: brincarem no pátio.
Após essa conversa, Maria ficou
Maria, empregada doméstica há 10 anos, preocupada, pois os três filhos estão acima
tem 40 anos, é casada e mãe de 3 filhos. do peso e gostaria que eles se interessassem
Moradora de um bairro periférico de um por alguma atividade física, pois ela já
município do interior de São Paulo, sai assistiu várias reportagens na TV sobre os
de casa às 06h30min e retorna por volta benefícios da atividade física para a saúde
das 18hs. e qualidade de vida. Porém, nos finais

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. 643


de semana e no tempo livre, as crianças que confeccionassem os seus brinquedos
preferem ficar assistindo à televisão ou utilizando os materiais recicláveis
jogando videogame. encontrados em casa. A etapa posterior
Maria até entende as crianças, pois no foi realizar, no gramado da escola, uma
bairro onde mora não há nenhum local corrida utilizando os pés de lata. Foi
para brincar. As praças estão destruídas, muito divertido. O professor disse que, na
não há campo ou quadra para praticar próxima aula, iremos confeccionar bolas
esportes e, além disso, o bairro é muito de meia para jogar queimada. Acho que vai
violento. ser legal também.
Na segunda-feira de manhã, Maria ainda No final da conversa, diante de tanta
estava inquieta, pensando no que havia contradição, Maria questionou: Por que as
conversado com os filhos no final de aulas de educação física são tão diferentes?
semana. Então, ao chegar à casa dos É culpa dos professores ou da escola? Será
patrões, decidiu perguntar para um dos que os professores de educação física que
filhos do casal sobre como eram as suas atuam em escolas particulares são melhores
aulas de educação física. do que os das escolas públicas? Quais são
Maria procurou Gabriel para falar sobre o os principais conteúdos trabalhados nas
assunto. Gabriel tem 8 anos e estuda em aulas de educação física? A disciplina de
uma escola particular localizada no centro educação física é realmente necessária no
da cidade. O menino disse que, na aula currículo da educação básica?
passada, o professor de educação física
decidiu realizar uma atividade de resgate Após a elaboração do caso, foram
de brinquedos e brincadeiras tradicionais. planejadas e organizadas ações para serem
A primeira parte dessa atividade foi desenvolvidas nas disciplinas de metodologia da
fazer uma entrevista com os pais sobre educação física na educação básica, seminário
as brincadeiras que fizeram parte da sua de conclusão de curso e estágio supervisionado,
infância. Curiosamente, o brinquedo mais visando à integração entre os conteúdos
citado foi o “pé de lata”. A partir desse abordados e as reflexões para a resolução do
resultado, o professor propôs aos alunos caso apresentado.

Quadro 1 – Proposta de atividades/conteúdos relacionando as situações-problema que serão desenvolvidos na disciplina


Disciplina Proposta de atividade/conteúdos
• Impactos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional na Educação Física escolar (LDBEN nº. 9394/96).
• Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física (PCN’s).
Metodologia da • Cultura Corporal de Movimento.
educação física na • Discussão sobre a importância da criatividade nas aulas de educação física nos diferentes níveis de ensino.
educação básica • Debate sobre as seguintes questões: de que forma o professor poderia motivar os alunos a participarem das aulas
de educação física, principalmente, no ensino médio? Por que, geralmente, as aulas de educação física, ministradas
em instituições particulares de ensino são tão diferentes daquelas das escolas públicas?
• Levantamento de problemas de pesquisa a partir do contexto apresentado.
Seminário de • Trabalho escrito: propostas de pesquisas (tema, objetivo, justificativa, método).
conclusão de curso • Apresentação das propostas.
• Discussão sobre as propostas apresentadas.
• Os alunos deverão, a partir dos estágios realizados, comparar a situação-problema com a realidade vivenciada no
Estágio âmbito escolar.
supervisionado • Discussão sobre diferentes formas de minimizar e/ou solucionar os problemas apresentados com base nos
conteúdos teóricos estudados nas diferentes disciplinas.
Fonte: Dados da pesquisa

644 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
Os conteúdos e atividades propostas atuação do professor de educação física,
em cada disciplina, apresentados no quadro devido principalmente à falta de recursos e
1, foram desenvolvidos em uma turma de 25 à necessidade de motivar a participação dos
alunos do último ano do curso de licenciatura em alunos por meio de atividades diferenciadas.
educação física pertencentes a uma instituição Segundo Wechsler (1998, p. 40), por
particular de ensino superior, localizada no meio da criatividade, é possível:
interior do estado de São Paulo.
As discussões e debates ocorridos [...] identificar as dificuldades ou os
nas disciplinas foram gravados e serviram elementos faltantes; formular hipóteses a
de referência para a coleta de dados, respeito das deficiências encontradas; testar
proporcionando um registro detalhado das falas e retestar essas hipóteses e, por último,
dos participantes da pesquisa. comunicar os resultados encontrados.

Resultados e discussão: Por meio da criatividade, o professor


metodologia da educação física na é capaz de transpor as dificuldades que o
educação básica contexto educacional apresenta diariamente
nas escolas e criar novas oportunidades para
Na disciplina de metodologia da educação que os alunos vivenciem espaços, materiais,
física na educação básica, realizamos com os atividades e situações diversas.
alunos uma discussão a respeito da importância Após o término da discussão acerca
da criatividade nas aulas de educação física nos da criatividade nas aulas de educação física,
diferentes níveis de ensino. Dentre os principais iniciamos um debate sobre as seguintes questões:
comentários, encontramos: de que forma o professor poderia motivar os
alunos a participarem das aulas de educação
• É importante ser criativo nas aulas de física, principalmente no ensino médio? Por
educação física para dinamizar as aulas, que, geralmente, as aulas de educação física
modificar as formas de aprendizado, ministradas em instituições particulares de
conseguir atingir a maior parte dos alunos, ensino são tão diferentes das escolas públicas?
conquistando a participação de todos pelo De acordo com os participantes da
prazer. pesquisa, para motivar a participação dos
• A criatividade é importante para adaptar alunos nas aulas de educação física, o professor
os materiais e a aula de acordo com o precisa diversificar os conteúdos e inovar as
espaço disponível. suas estratégias de ensino.
• Como a falta de recursos é muito comum, É importante ressaltar que os conteúdos
principalmente nas escolas públicas, o da educação física escolar têm como centro a
professor de educação física precisa ser cultura corporal de movimento. De acordo com
criativo para conseguir diversificar a sua Soares et. al (1992, p. 38), cultura corporal pode
aula. ser definida como:
• A criatividade é importante para fazer
com que os alunos sempre tenham interesse [...] acervo de formas de representação do
pela aula e para que o professor seja capaz mundo que o homem tem produzido no
de adequar o conteúdo de acordo com a decorrer da história, exteriorizadas pela
sua faixa etária. expressão corporal: jogos, danças, lutas,
exercícios ginásticos, esporte, malabarismo,
Os participantes da pesquisa acreditam contorcionismo, mímica e outros, que
que ser criativo é fundamental para a podem ser identificados como formas de

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. 645


representação simbólica de realidades construção de uma escola pública dos anos
vividas pelo homem, historicamente iniciais democrática, inclusiva, crítica,
criadas e culturalmente desenvolvidas. reflexiva e de qualidade para todos é ainda
um enorme desafio. (LIMA, 2012, p. 152)
Diversos são os conteúdos possíveis de
trabalhar nas aulas de educação física escolar. As dificuldades que os professores de
Porém, a não diversificação desses conteúdos educação física encontram nas escolas públicas
nos diferentes níveis de ensino, segundo Silva são visivelmente maiores do que as encontradas
e Sampaio (2012, p. 116), podem causar sérios nas instituições particulares de ensino. Por
prejuízos: exemplo, a falta de apoio do poder público,
atrelado à má remuneração e condições de
[...] tanto no que tange a restrição ao trabalho, levam o professor a ministrar uma
acesso à cultura produzida pela sociedade aula de baixa qualidade nas escolas públicas.
no período de escolarização quanto à As políticas públicas destacam a
sua vivencia após a etapa de formação, necessidade da melhoria da qualidade do
fator que pode contribuir negativamente ensino. Porém, existe uma enorme fenda entre
nas atitudes a serem tomadas frente à o discurso político e a realidade educacional.
ocupação do tempo disponível com o lazer Os professores, mesmo reorganizando a sua
e na compreensão da importância para prática e utilizando diferentes estratégias de
a saúde e qualidade de vida advindas da ensino, não são capazes, sozinhos, de alcançar
Cultura Corporal do Movimento. a qualidade almejada pela legislação. Por
isso, os pontos que dificultam o trabalho do
Por isso, a educação física enquanto professor nas escolas públicas não podem ser
componente curricular da educação básica não deixados de lado.
precisa restringir as experiências corporais nas Segundo Fugikawa (2004), para que
aulas apenas a um tipo de conteúdo. Pelo con- as ações implementadas pelos professores de
trário, necessita possibilitar o acesso aos diversos educação física sejam significativas e voltadas
conteúdos da cultura corporal de movimento. para a construção da cidadania e emancipação
Em relação à diferença entre as aulas do educando, o trabalho do professor precisa
ministradas em instituições públicas e privadas, estar coerente com as especificidades dos
os participantes acreditam que os fatores que diferentes níveis de ensino e com a prática que
contribuem para que os professores de educação se pretende implantar na sala de aula. Mas, a
física ministrem aulas de maior qualidade autora complementa que
nas instituições particulares são: melhor
infraestrutura; grande quantidade e diversidade [...] isso implica também salários, planos de
de materiais; número reduzido de alunos carreira dignos e condições ideais de trabalho
por sala; os professores são constantemente com relação ao material de apoio didático,
avaliados pela direção da escola; existe uma por exemplo. (FUGIKAWA, 2004, p. 32)
cobrança maior dos pais dos alunos; e os
professores são mais bem remunerados. Seminário de conclusão de curso

Embora tenhamos atingido atualmente Os participantes, a partir do caso


altos índices de universalização da oferta apresentado, levantaram algumas questões
do ensino fundamental, a qualidade do de pesquisa que poderiam ser abordadas
ensino desenvolvido em nossas escolas no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
encontra-se em situação crítica. Assim, a Dentre elas:

646 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
• Qual a importância do professor de no dia a dia escolar, estamos oferecendo aos
educação física na educação infantil? futuros professores um referencial para a sua
• Quais as dificuldades encontradas pelos atuação profissional.
professores de educação física em inovar e/
ou modificar as suas aulas? Estágio supervisionado
• Por que a maioria dos alunos do ensino
médio não gosta de participar das aulas de A partir dos estágios realizados, os
educação física? alunos compararam o caso com a realidade
• Qual a importância do resgate de jogos vivenciada no âmbito escolar.
e brincadeiras tradicionais nas aulas de Os alunos apontaram que a realidade
educação física? escolar é muito parecida com aquela da situação
fictícia, pois: no ensino médio, a maioria dos
As questões de pesquisa apontadas professores ministra conteúdos envolvendo
pelos alunos estão de acordo com os problemas os esportes e os alunos não têm interesse em
apresentados no caso: a necessidade da inserção participar das aulas de educação física; no
do professor de educação física na educação ensino fundamental, não há diversidade de
infantil; as dificuldades que os professores conteúdos; e, na educação infantil, em grande
encontram em diversificar os conteúdos e parte das escolas, as atividades de movimento
motivar a participação dos alunos; a importância são ministradas pelos professores polivalentes
de trabalhar com os jogos e brincadeiras (professores formados em pedagogia).
tradicionais nas aulas de educação física. Acreditamos que a educação física precisa
Apesar de encontrarmos na literatura reconstruir a sua prática pedagógica tradicional
diversas pesquisas a respeito dessas questões, e caminhar em busca de objetivos, conteúdos
é importante intensificarmos os estudos que e metodologias adequadas aos diferentes níveis
envolvem esses temas, principalmente, durante de ensino e pautadas na cultura corporal de
os cursos de licenciatura em educação física, movimento. De acordo com Fugikawa (2004,
visando a ampliar os conhecimentos teóricos e p.41), “a eficiência do processo de ensino
científicos dos graduandos. depende da forma como a ação pedagógica é
Segundo Paiva e Betti (2010), vários organizada e sistematizada pelo professor”.
estudos surgiram no âmbito da educação física Para isso, o professor precisa “ter co-
escolar após a década de 80, contudo: nhecimento (teórico-prático) para compreender
a realidade em que o aluno está inserido, deve
[...] ainda há carência de pesquisas que, estar atento às peculiaridades que ocorrem e
dotadas de qualificação teórico-metodo- procurar instrumentalizar-se para intervir cons-
lógica, busquem o confronto dessas no- cientemente no contexto das relações escolares.”
vas proposições com situações reais no (FUGIKAWA, 2004, p. 32)
âmbito escolar, para que se possam ava- Em relação às formas de minimizar e/
liar criticamente suas potencialidades e ou solucionar os problemas atuais da educação
limitações, de modo a servir, com maior física escolar, os alunos disseram que:
nitidez, como orientação e referência aos
professores. (PAIVA; BETTI, 2010, p. 305) Os professores que atuam muito
tempo dentro das escolas precisam ser
Ao permitirmos e incentivarmos os incentivados a participar de cursos para
alunos a desenvolverem pesquisas envolvendo atualizarem os seus conhecimentos; para
o processo de ensino e aprendizagem, bem isso, esses cursos precisam ser de qualidade
como os obstáculos encontrados pelo professor e gratuitos. (Informante da pesquisa)

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 637-650, jul./set. 2014. 647


Os alunos precisam sair da graduação da pesquisa visualizassem o resultado final do
preparados para lidarem com o dia-a-dia trabalho desenvolvido durante o semestre,
escolar; os professores de educação física comparassem a situação fictícia apresentada
precisam diversificar os conteúdos de suas no caso com a realidade e as pesquisas atuais
aulas e motivar a participação dos alunos. na área e, além disso, pudessem estabelecer
(Informante da pesquisa) interconexões entre os conteúdos das
diferentes disciplinas que compõem a grade
É necessário melhorar o salário dos curricular do curso.
professores e as condições de trabalho; só
assim o professor ministrará uma boa aula. Considerações finais
(Informante da pesquisa)
Na busca de superar a fragmentação do
As respostas giraram em torno de uma ensino nos cursos de licenciatura em educação
melhor formação acadêmica, diversificação física, apresentamos uma proposta de trabalho
e escolha adequada de conteúdos, formação a partir da aprendizagem baseada em casos.
continuada de qualidade para os professores, É importante ressaltar que esse é apenas um
elaboração de planos de ensino procurando dentre muitos recursos que podem ser utilizados
atender as necessidades dos alunos, melhores no ensino superior objetivando a formação
salários e condições de trabalho. integral dos alunos.
Acreditamos que, apesar de as políticas A docência, no ensino superior, quando é
públicas não oferecerem suportes adequados desenvolvida de forma comprometida e a partir
para a melhoria das condições de trabalho de uma prática pedagógica crítica e reflexiva por
e a valorização dos professores em efetivo meio de desafios instigantes, permite que tanto
exercício, os professores de educação física, o professor quanto os alunos alcancem resul-
apesar de todas as dificuldades, precisam tados positivos e desenvolvam habilidades ne-
buscar o desenvolvimento de um trabalho cessárias para a sua atuação dentro e fora das
com qualidade, elaborando aulas de acordo universidades.
com as necessidades dos alunos, adequando A clássica distorção entre teoria e prática
os materiais e espaços disponíveis, bem como ainda é comum em muitos cursos do ensino su-
buscando novos conhecimentos a partir da perior. Por isso, é necessário oferecer ferramen-
educação continuada. tas para que os alunos pensem de forma global,
possam planejar suas ações e atuar de forma
Mesa-redonda ativa no processo de ensino e aprendizagem.
O papel do professor é fundamental
Após a discussão a respeito do caso nas nesse caso, pois, para que novas metodologias,
diferentes disciplinas, convidamos três professores diferentes recursos tecnológicos, bem como
para participarem de uma mesa-redonda visando o trabalho inter e transdisciplinar tragam re-
a discutir os temas abordados. Dentre esses sultados positivos, os professores necessitam
professores, convocamos um ex-aluno do curso trabalhar em parceria, oportunizando a inte-
de licenciatura em educação física, o professor de gração entre áreas diferentes de conhecimento.
uma das disciplinas trabalhadas naquele semestre Esperamos que as sugestões apresenta-
e um professor de outra instituição de ensino das nesse artigo contribuam para o surgimento
superior, que desenvolve pesquisas no âmbito da de novas ideias e ampliem as discussões pau-
educação física escolar. tadas nas questões referentes à aprendizagem
A mesa-redonda teve duração de duas baseada em casos nos cursos de licenciatura em
horas e foi importante para que os participantes educação física.

648 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
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Recebido em: 16.06.2013

Aprovado em: 16.10.2013

Andreia Cristina Metzner é mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, professora dos cursos de
Educação Física e Pedagogia do Centro Universitário UNIFAFIBE e professora de Educação Infantil da rede municipal de São
Carlos.

650 Andreia Cristina METZNER. Proposta didática para o curso de licenciatura em educação física: aprendizagem...
O desempenho das universidades brasileiras na
perspectiva do Índice Geral de Cursos (IGC)

Celina HoffmannI
Roselaine Ruviaro ZaniniI
Ângela Cristina CorrêaII
Julio Cezar Mairesse SilukI
Vitor Francisco Schuch JúniorI
Lucas Veiga ÁvilaI

Resumo

A educação superior exerce papel fundamental no desenvolvimento


econômico de determinado país, no que condiz ao atendimento
das demandas da sociedade. A qualidade no contexto da educação
superior tem sido tema recorrente nos últimos anos, sobretudo a
partir da criação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior (SINAES), que instituiu um sistema de avaliação
institucional global e integrador condizente a todas as Instituições
de Ensino Superior (IES) brasileiras, sendo responsável por produzir
índices para mensuração da qualidade como o Indicador de
Diferença dentre os Desempenhos Observado e Esperado (IDD), o
Conceito Preliminar de Curso (CPC) e o IGC, Índice Geral de Cursos,
que mede o desempenho global da instituição. Diante disso, este
estudo tem como objetivo analisar o IGC das universidades públicas
e privadas das cinco regiões brasileiras, no intuito de caracterizar o
desempenho das IES por região e verificar possíveis discrepâncias
intra e inter-regionais, identificando oportunidades de melhoria. Os
resultados evidenciaram desempenho superior das universidades
públicas em todas as regiões, tendo maior destaque as regiões norte
e sudeste. Quanto à variabilidade, as regiões Centro-Oeste e Norte
apresentaram os melhores desempenhos ambos condizentes ao setor
privado. No entanto, para realizar uma avaliação consolidada do
desempenho das IES por região, faz-se necessário analisar, de forma
integrada, os resultados do IGC alinhados aos demais subsistemas de
avaliação que integram a avaliação multidimensional do SINAES.

Palavras-chave
I- Universidade Federal de Santa
Maria, Santa Maria, RS, Brasil. Qualidade na educação superior — Desempenho do IGC nas regiões
Contatos: celina_hoffmann@hotmail.com,
jsiluk@gmail.com,
brasileiras — Avaliação de instituições de educação superior.
vfschuch@gmail.com,
admlucasveiga@gmail.com
II- Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
Contato: angelaccorrea@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491 651
Performance of Brazilian universities in view of the
General Course Index (IGC)

Celina HoffmannI
Roselaine Ruviaro ZaniniI
Ângela Cristina CorrêaII
Julio Cezar Mairesse SilukI
Vitor Francisco Schuch JúniorI
Lucas Veiga ÁvilaI

Abstract

Higher education plays a fundamental role in the economic


development of a country in terms of meeting society’s demands.
Quality in higher education has been a recurring theme in recent
years, especially after the creation of the National Higher Education
Assessment System (SINAES), which established a global and
integrative institutional assessment system in line with all Brazilian
Higher Education Institutions (HEIs). SINAES is responsible for
producing quality measurement indicators such as the Indicator of
Difference between Expected and Observed Performance (IDD), the
Preliminary Course Program Score (CPC), and the General Course
Index (IGC). The latter measures the overall performance of higher
education institutions. Thus, this study aims to analyze the IGC
of public and private universities of the five Brazilian regions
in order to describe the performance of HEIs by region, identify
possible intraregional and interregional discrepancies, and suggest
opportunities for improvement. The results showed that public
universities outperformed private ones in all regions, particularly
the north and southeast regions. Regarding variability, private
universities had the best performance in the center-west and north
of Brazil. However, a thorough assessment of the performance
of HEIs by region requires an integrative analysis of IGC results
aligned with other assessment subsystems that integrate the
multidimensional assessment of SINAES.

Keywords

I- Universidade Federal de Santa Quality in higher education — IGC performance in Brazilian regions —
Maria, Santa Maria, RS, Brasil. Assessment of higher education institutions.
Contacts: celina_hoffmann@hotmail.com,
jsiluk@gmail.com,
vfschuch@gmail.com,
admlucasveiga@gmail.com
II- Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
Contact: angelaccorrea@gmail.com

652 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041491 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014.
Introdução 2012). Tais números refletem o contingente
de IES que exercem papel fundamental no
A avaliação é um instrumento de controle desenvolvimento socioeconômico do país, na
e melhoria de desempenho, no que condiz às condição de agente formador dos profissionais
Instituições de Educação Superior (IES). De que atuarão no mercado de trabalho, sendo
acordo com Dias Sobrinho (2010, p. 195): distribuídas em universidades, centros
universitários, e faculdades.
[...] é uma ferramenta capaz de produzir O Ministério da Educação (MEC), por
mudanças nos currículos, nas metodologias meio da Lei nº 10.861, em 2004, instituiu o
de ensino, nos conceitos e práticas de Sistema Nacional de Avaliação da Educação
formação, na gestão, nas estruturas de Superior (SINAES). Consiste em um sistema de
poder, nos modelos institucionais, nas avaliação institucional abrangente e complexo
configurações do sistema educativo. pautado pela autoavaliação, avaliação externa,
condições de ensino e instrumentos de
Por essa razão, deve ser vista como informação como censo da educação superior
importante subsídio para a tomada de decisão e cadastro preenchido pela IES. O SINAES
no contexto de direcionamento das políticas é orientado por meio de indicadores, tais
públicas, bem como na transformação e como: o Conceito Preliminar de Curso (CPC)
melhoria da qualidade de cada IES dentro de e Índice Geral de Cursos (IGC), que subsidiam
sua realidade de trabalho. os processos de avaliação in loco e resultam
A qualidade no cenário da educação tem nos Conceitos de Curso (CC) e Instituição (CI).
sido tema recorrente nos últimos anos, muitas Institucionalmente, são considerados medidas
vezes atrelada à questão do sistema avaliativo da qualidade da Educação Superior (INEP, 2011).
institucional. Burlamaqui (2008), em estudo Esses indicadores exercerem importante
realizado de caráter bibliométrico, enfatiza que papel de nortear as iniciativas de políticas
o conceito de qualidade visto na perspectiva públicas para a educação superior. Conforme
de uma instituição deve estar acompanhado Burlamaqui (2008), a utilização de indicadores
das noções da multidimensionalidade e traz vantagens, pois retrata informações
complexidade, que são características inerentes passíveis de consulta pela sociedade, sobretudo
ao ambiente de uma IES. O autor também aos usuários do sistema. Diante da importância
defende a utilização de dados quantitativos da avaliação da educação superior e da
e qualitativos de forma conjunta para a compreensão de seus instrumentos, indicadores
mensuração do desempenho institucional, uma e resultados daí gerados, este estudo buscou
vez que isso possibilitará uma visão integrada analisar os valores do IGC das universidades
da própria realidade multifacetada da IES. públicas e privadas correspondentes às cinco
De acordo com o censo da educação regiões brasileiras.
superior de 2010, o número total de IES Nesse contexto, faz-se necessário
corresponde a 2.378, sendo a participação considerar que os índices de mensuração
majoritária dada pela esfera privada com da qualidade utilizados pelo INEP não são
88,3%, seguidos da esfera estadual com 4,5%, amplamente aceitos pela comunidade acadêmica
federal com 4,2% e municipal com 3%. No que se dedica aos estudos acerca da educação
entanto, a categoria federal apresenta maior superior. Pelo contrário, desde a sua concepção,
concentração média de matrículas em razão do os indicadores, incluindo o IGC, são alvos de
número de instituições federais com 9.481,4, efusiva polêmica. Schwartzman (2008, p. 20)
enquanto a categoria privada apresenta argumenta, em crítica ao CPC, que é importante
2.256,6 matrículas por instituição (INEP, indicador para composição do IGC:

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 653


Não tem legitimidade, porque não foi elabo- pela Associação Nacional de Instituições Federais
rado com a participação e o envolvimento de Ensino Superior (ANDIFES) ao Ministério de
de setores relevantes da comunidade de en- Educação e Cultura (ZANDAVALLI, 2009).
sino superior do país, que foi surpreendida A concepção dessa proposta de avalia-
com sua divulgação. ção contou com a pluralidade da participação
da comunidade acadêmica em que vários repre-
Outro ponto de vista defendido por uma sentantes de diversas universidades fizeram-se
leva de autores considera a utilização de indi- atuantes no processo. Visto que a composição da
cadores de qualidade uma visão reducionista CNA deu-se por diversas entidades relacionadas
do sistema de avaliação da educação superior. à gestão do ensino superior, tais como: Fórum
Como afirma Dias Sobrinho (2008, p. 821) “[...] de Pró-Reitores de Graduação; Fórum de Pró-
como se os números, as notas, os índices fos- Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação; Fórum dos
sem a própria avaliação e pudessem dar conta Pró-Reitores de Planejamento e Administração;
da complexidade do fenômeno educativo”, dei- Fórum de Pró-Reitores de Extensão; Associação
xando de considerar aspectos como identidade, Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais
contexto, e fatores culturais inerentes a cada IES de Ensino Superior (ANDIFES); Associação
avaliada. Nacional de Universidades Particulares (ANUP);
Vale ressaltar que este estudo considera Associação Brasileira de Universidades Estaduais
a visão sobre a polêmica gerada a cerca de tais e Municipais (ABRUEM) e a Associação Nacional
números ao longo do referencial teórico. de Escolas Superiores Católicas (ABESC) (BRASIL,
1993, apud ZANDAVALLI, 2009).
Referencial teórico O Programa de Avaliação Institucional
(PAIUB) surgiu com a finalidade de suprir al-
Com a finalidade de elucidar o objetivo gumas demandas latentes à época. A ideia era
proposto pelo presente estudo, faz-se necessário a de que por meio do processo da avaliação
enumerar os tópicos conceituais que irão institucional haveria a possibilidade de propi-
contextualizar a problemática apresentada ciar o constante aperfeiçoamento do desempe-
e oferecer os parâmetros necessários para nho acadêmico; servir como instrumento para
a análise dos resultados. Desse modo, são o planejamento e gestão universitária, além de
relacionados os constructos a respeito: da provocar um processo sistemático de prestação
avaliação da educação superior brasileira; da de contas à sociedade, partindo do pressuposto
avaliação institucional e qualidade na educação de que a educação é vista como um bem públi-
superior; do sistema de avaliação da educação co, sustentada por recursos públicos, e, portan-
superior; e do IGC como indicador da qualidade to, por toda a sociedade. O objetivo principal
nas IES. do PAIUB era a análise e o aperfeiçoamento
do projeto acadêmico e sociopolítico da insti-
A avaliação da educação superior brasileira tuição, promovendo a permanente melhoria da
qualidade e adequação das ações institucionais.
O histórico do processo de avaliação da As iniciativas propostas pelo PAIUB ser-
educação superior nas instituições de ensino viram de subsídios para a elaboração do Sistema
superior teve seu início em 1993 por meio Nacional de Avaliação da Educação Superior.
do Programa de Avaliação Institucional das Dias Sobrinho (2002 apud ZANDAVALLI, 2009,
Universidades Brasileiras (PAIUB), tendo sido p. 421) afirma a importância do programa pelo:
elaborado pela Comissão Nacional de Avaliação
(CNA), com assessoria da Secretaria de Ensino [...] fato de ser uma obra coletiva, aber-
Superior (SESu), e encaminhada sua proposta ta, que contempla a pluralidade, que cria

654 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
bases teóricas e práticas coerentes para Conforme esclarece Zandavalli (2009), a
atingir objetivos socialmente construídos e compreensão de tais antecedentes são funda-
tem, inequivocamente, caráter pedagógico mentais para identificar os avanços e recuos do
e formativo. SINAES, que teve o papel de reestruturação do
modelo de avaliação da educação superior bra-
Acrescenta-se o fato de possuir uma estru- sileira, tendo implícito o desafio de congregar
tura formada por três processos articulados: ava- instrumentos e espaços avaliativos, superando
liação interna (autoavaliação dos sujeitos e hete- a fragmentação por meio da articulação das
roavaliação das estruturas, processos e colegas); formas avaliativas.
avaliação externa (realizada por grupo de sujeitos
pares da comunidade acadêmica), e reavaliação Avaliação institucional e qualidade na
(reflexão crítica dos processos de avaliação). educação superior
Com a criação da Lei nº 9.131, de novem-
bro de 1995, a chamada Lei de Diretrizes e Bases De acordo com Ribeiro (2012), a socie-
da Educação Nacional (LDB), entre outras mudan- dade tem exigido, cada vez mais, a prestação
ças ocorreu a instituição do Exame Nacional de de contas do governo no que condiz ao con-
Educação, o chamado Provão, com a finalidade de junto de serviços prestados pelo Estado. Dentro
aferir conhecimentos e competências adquiridos dessa exigência, está incluída a oferta e a ma-
pelos alunos em fase de conclusão dos cursos de nutenção da qualidade da educação superior,
graduação. Além disso, existia a pretensão da utili- cujas tarefas de supervisão, correção de erros e
zação dos resultados para o fomento de iniciativas divulgação dos principais resultados são fun-
voltadas para a melhoria da qualidade do ensino. damentais. O direito à educação, assegurado
No que condiz à concepção do SINAES, pelo Estado, por si só não garante seu desem-
essa está fortemente atrelada aos fundamentos penho estratégico no contexto do plano de de-
do PAIUB, sobretudo no que condiz respeito à senvolvimento de um país, é preciso também
experiência adquirida no campo da avaliação assegurar alguns preceitos condizentes com a
institucional aplicada ao contexto da Educação realidade atual, como a busca por padrões de
Superior, conforme Ristoff e Giolo (2006, p. 197): referência que contemplem os princípios da
qualidade (INEP, 2009).
De fato, o novo Sistema Nacional de O termo qualidade não traz uma só con-
Avaliação da Educação Superior incorpo- ceituação capaz de considerar todas as dimen-
rou grande parte dos princípios e diretrizes sões que pode alcançar, mas pode estar relacio-
do Paiub, entre eles, o compromisso forma- nado com a conformidade entre a expectativa e
tivo da avaliação, a globalidade, a integração o resultado atingido e, além disso, pode ser estar
orgânica da autoavaliação com a avaliação atrelado à percepção do sujeito que exerce a ta-
externa, a continuidade, a participação ati- refa de julgar ou atribuir níveis de valor a deter-
va da comunidade acadêmica, o respeito à minada característica ou fenômeno.
identidade institucional e o reconhecimento Nesse contexto, Júnior (2009, p. 259)
da diversidade do sistema. Diferentemente afirma:
do Paiub, no entanto, o Sinaes não adotou o
princípio da adesão voluntária. Com a lei do [...] o que é considerado qualidade pelo
Sinaes, e em consonância com o que estabe- setor acadêmico pode conflitar com a
lecem a Constituição, a LDB e o PNE, todas as qualidade buscada pelos governos, com
IES do País, não apenas as do sistema federal aquela percebida pela sociedade ou,
devem participar dos processos avaliativos então, a que corresponde às demandas do
que compõem o sistema. setor produtivo.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 655


Dessa forma, as variáveis quantitativas A reflexão sobre a qualidade na educação
ou qualitativas são sustentadas por indicadores superior recai, inevitavelmente, sobre as noções
mensuráveis, com a finalidade de não haver de eficiência e desempenho, condizentes com a
predominância do caráter subjetivo no processo lógica empresarial que a relaciona ao conceito
de avaliação, uma vez que, de forma objetiva, de produção, em que os alunos seriam os inputs,
deve ser subsidiado pela conformidade, a interação entre professores e alunos em que
padronização e imparcialidade. se estabelece o aprendizado seria efetivamente
Segundo Silva (2008), a expressão quali- o processo e o aluno concluinte do ensino
dade na educação tem a função de conferir dis- superior seria o resultado final (output).
tinção a uma ou mais características considera- Nesse sentido, Burlamaqui (2008, p. 138)
das superiores ou de excelência, atribuindo-lhes concorda com tal perspectiva, com a ressalva do
condição desejável. Contudo, o autor enfatiza estigma que se cria em torno da educação como
que os sentidos da qualidade podem variar em processo. O autor afirma: “nota-se que o ensino
duas direções: de objeto para objeto e confor- corresponde a um processo permeado por vários
me o contexto histórico, ou seja, as referências aspectos ou variáveis que, ao final, trará algum
acerca da qualidade mudam com o passar do resultado (produto)”. Daí a utilização de índices
tempo. Assim, o que era visto como critério de de mensuração da qualidade que, aplicados em
excelência no passado, como a disciplina e o cada etapa do processo, passa a ser amplamente
rigor, hoje já não é tão valorizado. justificável, na medida em que se verificam
De acordo com Dal Magro e Rausch pontos fortes e fracos desse contexto, e, a partir
(2012, p. 432), “o desenvolvimento e a qualida- disso, ações de correção de erros e melhoria
de no ensino também dependem da avaliação podem ser planejadas.
constante nos processos de ensino, administra- Na perspectiva da administração da
tivos, e estruturais”. Nesse sentido, as diretri- educação superior sob a ótica da lógica em-
zes do SINAES contemplam tais perspectivas, presarial, Sander (2007) enumera quatro tra-
na medida em que há articulação com meca- jetórias e seus respectivos modelos de gestão
nismos regulatórios do Estado com o objetivo da educação, sob o conceito de: eficiência, efi-
da melhoria da qualidade acadêmica e gestão cácia, efetividade e relevância cultural. Esses
institucional (INEP, 2009). Vistas sob o enfoque seriam uma forma de um processo evolutivo
da lógica de mercado, as IES estão inseridas em da administração da educação. Com relação
um ambiente competitivo em que a procura por ao conceito de eficiência na educação, que se
um maior número de alunos reflete a excelên- aproxima da visão tecnocrática presente nas
cia de seus serviços prestados (DAL MAGRO; empresas, o autor admite a eficiência como cri-
RAUSCH, 2012). tério de desempenho econômico que acentua
Dessa forma, a disputa pela melhoria da as características extrínsecas e instrumentais
qualidade da educação superior ocorre no cenário do contexto organizacional e suas respectivas
macroeconômico, com a concorrência entre atividades, em que os sujeitos envolvidos nor-
países desenvolvidos produtores de inovações teiam-se pela lógica econômica, racionalidade
tecnológicas, com os países consumidores e instrumental e produtividade operacional. Tal
reprodutores da tecnologia já criada. Assim concepção muito se assemelha à prática atual
como na perspectiva microeconômica, com de utilização de índices de qualidade pelo sis-
a disputa direta entre as IES quanto ao seu tema de avaliação da educação superior, e que
desempenho diante do número de alunos, é repudiada pelo autor na medida em que ele
oferta de cursos e vagas, formação do corpo afirma que o conceito de eficiência na educa-
docente, condições da infraestrutura, produção ção não se coaduna com o caráter subjetivo e
científico-tecnológica, entre outros. com a ética inerente à prática educacional.

656 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Sistema de Avaliação da Educação Superior Nesse contexto, o SINAES busca asse-
gurar, entre outros aspectos, a articulação das
O SINAES teve seu início a partir da dimensões interna e externa, particular e glo-
promulgação da Lei nº 10.861, em 14 de abril de bal, além de buscar contemplar os pressupos-
2004, com o intuito de consolidar a avaliação da tos tanto da metodologia qualitativa quanto
educação superior brasileira. Foi instituído na quantitativa. Esse princípio do SINAES vem
forma de política de Estado, o que corresponde atender a demanda de um sistema de avaliação
à adoção das iniciativas e processos avaliativos da educação superior que contemple a comple-
inclusos no sistema, independente da troca de xidade da temática e do processo avaliativo, a
governantes, da esfera administrativa. Ele abrange participação de seus respectivos agentes das
instituições públicas e privadas, com o objetivo de dimensões governamentais, institucionais, de
melhoria da qualidade do ensino superior. aprendizagem, gestão administrativa e social
De acordo com Dias Sobrinho (2010), em (BRASIL, 2004).
sua concepção inicial, o SINAES esteve baseado No entanto, a elaboração e instituição de
nos pressupostos de avaliação e de educação índices de desempenho contribuíram para gerar
global e integradora, voltado a construir um grande polêmica em torno do tema, além de co-
sistema de avaliação da educação superior. Tal locar à prova todo o significado do SINAES que
iniciativa articula-se sob o senso comum de passou a apresentar uma concepção distorcida,
que a tarefa da avaliação do ensino superior diante da comunidade acadêmica. Nesse con-
é complexa o bastante para não se restringir texto, Ribeiro (2012) relata que, nos primeiros
em uma só dimensão avaliativa. Dessa forma, meses do ano de 2008, a comunidade acadêmi-
o SINAES propôs a integração entre diversos ca veio saber, por meio da mídia, a respeito das
instrumentos de avaliação com o objetivo mudanças ocorridas na filosofia do SINAES e
de englobar a pluralidade de variantes de do papel do Estado a partir daquele momento.
indicadores da qualidade com os quais as IES A polêmica gerada ficou em torno da
têm a missão de atender. criação de dois índices: o Conceito Preliminar
O SINAES constitui-se de três pilares de Curso (CPC), regulamentado pela Portaria
principais: a avaliação institucional, a avaliação Normativa nº 4 de 5 de agosto de 2008, an-
de cursos e a avaliação de desempenho dos tecedida pela Portaria Normativa nº 40 de
estudantes dos cursos de graduação, este último 2007 que avalia os cursos de graduação, e o
subsidiado pela aplicação do Exame Nacional Índice Geral de Cursos (IGC), regulamentado
de Desempenho dos Estudantes (ENADE). Já pela Portaria Normativa nº 12 de 5 de setem-
os dois primeiros pilares são acompanhados bro de 2008, também antecedida pela Portaria
por meio de processos de avaliação in Normativa nº 40 de 2007, que avalia o de-
loco (POLIDORI, 2009). Nesse sentido, é sempenho da instituição como um todo (INEP,
orientado por meio das seguintes dimensões 2011). Em ambos os indicadores, a base prin-
avaliativas: missão e plano de desenvolvimento cipal de cálculo é oriunda do ENADE, instru-
institucional; políticas relacionadas ao mento voltado à mensuração do desempenho
ensino, pesquisa, cursos de graduação, pós- dos estudantes de graduação.
graduação e extensão; responsabilidade A adoção de tais índices para mensura-
social da instituição; comunicação com a ção da qualidade do ensino superior brasileiro
sociedade; políticas de pessoal; administração provocou efusiva polêmica em torno do assun-
e organização institucional; infraestrutura to, proliferando diversas críticas entre os pes-
física; planejamento e avaliação; políticas de quisadores e estudiosos. De acordo com Polidori
atendimento aos estudantes e sustentabilidade (2009), o fato dos indicadores serem baseados
financeira (BRASIL, 2004). no desempenho dos estudantes, por meio dos

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 657


resultados do ENADE, retrata uma transgressão institucional e dos agentes envolvidos, além de
do próprio SINAES que prioriza um só pilar de desconsiderarem o caráter pedagógico e social
toda sua concepção sistêmica. Nesse sentido, da formação do cidadão universitário.
Barryero (2008, p. 867) argumenta sobre os ma- Limana (2008, p. 872) é ainda mais
lefícios provocados pela concepção dos índices incisivo nas críticas aos índices:
CPC e IGC:
[...] só serve para dar um verniz de
[...] parecem levar-nos novamente ao cientificidade a um imbroglio que, em
tempo dos rankings, das avaliações absoluto nada significa em termos de
mercadológicas e simplificações midiáticas, avaliação da educação superior, a não ser
mais próximas de uma visibilidade o de confundir a sociedade brasileira com
publicitária do que da verdade da avaliação falsos rankings de excelência [...].
da qualidade.
Tal polêmica parece residir não somente
Nesse sentido, Dias Sobrinho (2010, na formação e estrutura de cálculo desses
p. 216) sugere que a criação de tais índices indicadores, mas também na supervalorização
caracterizou a transformação da proposta da divulgação e ranqueamento de tais
original do SINAES, que originalmente foi resultados, pois a partir deles ficam evidentes
criado como um processo sistêmico de avaliação as discrepâncias entre as instituições, visto
do ensino superior. Nas palavras do autor: que é papel do próprio SINAES a divulgação
dos resultados à sociedade. Entretanto,
Em que pese a proposta original do SINAES para finalidade do presente artigo, não há
insistir nas idéias de sistema, de focar pretensão de participar dessa discussão acerca
centralmente a instituição e de repudiar da concepção pedagógica ou filosófica de tais
as práticas de rankings, isso não ocorreu, índices, muito menos vincular tal temática sob
plenamente, na prática. o enfoque histórico-político. Partindo-se da
existência e disponibilidade de tais índices, o
Tal argumento é reafirmado por presente estudo tem como objetivo analisar os
Ribeiro (2012, p. 307): valores do IGC contínuo das universidades das
regiões brasileiras, sob enfoque dos métodos
De fato, o SINAES está dando sinais de quantitativos de análise.
esgotamento, e o não cumprimento do
estabelecido, contrariando a expectativa O Índice Geral de Cursos como indicador de
de que o SINAES teria papel central na qualidade das IES
regulação.
Apesar de tamanha polêmica em torno
Entre as principais deturpações do dos índices elaborados a partir dos instrumentos
SINAES enumeradas pelos autores, incluem- do SINAES, sabe-se da importância de se utilizar,
se: 1) a desconsideração da avaliação de forma concomitante, dados qualitativos e
institucional em favor da divulgação do IGC; quantitativos para avaliação de desempenho,
2) a sobreposição dos resultados do ENADE pois ambos são capazes de oferecer subsídios
que compõem o cálculo de tais índices e, de sustentação para as conclusões que possam
por consequência disso, 3) a indução para a ser geradas. O cálculo do conceito preliminar de
elaboração e divulgação de rankings, os quais curso é fundamental para a formação do IGC,
não são capazes de retratar a realidade, pois portanto, faz-se pertinente entender o que é
não consideram a identidade e especificidades relevante para a formação do CPC.

658 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Conforme o manual de indicadores número de matrículas referentes aos anos
de qualidade do INEP de 2011, a unidade de correspondentes, a consideração do triênio deve-
observação a considerar nesse índice corresponde se aos resultados do Enade, que é aplicado a cada
ao curso de graduação, sendo a composição três anos para cada área do conhecimento, e serve
para o cálculo formada pelos indicadores da de base para o cálculo dos CPCs. Além disso,
qualidade: as informações de infraestrutura, para os cursos de pós-graduação são utilizadas as
recursos didático-pedagógicos e corpo docente; o notas Capes da trienal referente ao ano de cálculo.
desempenho obtido pelos estudantes concluintes De acordo com INEP (2011), a Portaria
e ingressantes no ENADE, e os resultados do nº 40 de 2007, novamente publicada em 2010
Indicador da Diferença entre os Desempenhos institui que os resultados das avaliações presentes
Esperado e Observado (IDD). no ciclo avaliativo do SINAES sejam baseados
O IGC, por sua vez, é divulgado em indicadores de qualidade referenciados
anualmente e consiste na média ponderada em escala de 1 a 5 pontos. O status de nível
dos conceitos de graduação e pós-graduação satisfatório correspondem aos resultados iguais
strictu sensu, sendo que para fins de cálculo ou acima de 3 pontos. Sendo os valores abaixo
são utilizados os valores dos CPCs para o de 3 pontos passíveis de notificação. De acordo
conceito da graduação e para os cursos de com Burlamaqui (2008), em termos de avaliação
pós-graduação é realizada a conversão dos institucional, para uma variável ou estatística
conceitos atribuídos pela Coordenação de ser relevante ela deve ser capaz de influenciar
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior o resultado final, além disso, se duas variáveis
(Capes). A ponderação é feita com base no apresentarem causalidade ou interdependência,
número de alunos nos cursos de graduação, perfaz condição de identificar falhas ou
mestrado e doutorado. O resultado apresentado deficiências que sustentam as iniciativas do
é uma variável contínua no intervalo entre 0 processo decisório e possíveis adequações visando
e 5, sendo que para fins de classificação das ao incremento e à melhoria das condições da IES.
IES os resultados são transformados em valores
discretos de 1 a 5, conforme o tabela 1. De Método
acordo com INEP (2011), esse indicador servirá
como referencial norteador das comissões de De acordo com a Portaria Normativa nº 40
avaliação institucional. de 2007, instituída pelo Ministério da Educação,
as universidades são definidas como instituições
Tabela 1 - Distribuição do IGC pluricurriculares de formação dos quadros pro-
fissionais de nível superior, de pesquisa, de ex-
IGC (Faixa) IGC ies (Valor Contínuo)
tensão e de domínio e cultivo do saber humano.
1 0 ≤ IGCies< 0,945 Devem possuir, pelo menos, um terço do corpo
docente com titulação acadêmica de mestrado
2 0,945 ≤ IGCies< 1,945
ou doutorado e um terço do corpo docente em
3 1,945 ≤ IGCies< 2,945 regime de tempo integral. Tais características
4 2,945 ≤ IGCies< 3,945 perfazem condições para fins de regulamenta-
ção, no entanto, não deixam de configurarem
5 3,945 ≤ IGCies≤ 5
em indicadores de qualidade, como mostra a
Fonte: INEP, 2011 composição do CPC referenciado anteriormente.
De acordo com INEP (2012), o número
Para fins de cálculo do IGC, são utilizados de universidades aumentou de 156 em 2001
os valores dos CPCs do triênio anterior ao ano para 190 em 2010, apresentando 54,3% do total
de observação. Sendo a ponderação dada pelo das matrículas, tendo em vista o contingente

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 659


de faculdades e centros universitários. Nesse a diferença entre as médias dos grupos das
contexto, o SINAES atua com o propósito de universidades públicas e privadas de cada região,
realizar uma avaliação diagnóstica, formativa e considerando-se um nível de 5% de significância.
regulatória das instituições de ensino superior. Por meio dos resultados pretende-se não
Daí a importância de analisar a população de somente realizar comparações, muitas vezes
universidades brasileiras. vista como prática discriminatória, uma vez que
A complexidade inerente ao contexto as realidades regionais distinguem-se entre si,
da educação superior demanda a utilização de conforme foi argumentado por diversos autores
diversas fontes de informações que compõem citados no referencial teórico do presente
a formação de um indicador. No caso, do IGC estudo, mas mapear padrões de identidades
pode-se dizer que sua composição está atrelada a regionais, tendo como ponto de observação
outros indicadores como o CPC que, por sua vez, o IGC como índice de representatividade do
é dependente de um conjunto de fatores referen- desempenho das IES. Nosso intuito é, com isso,
tes à graduação. Além disso, para composição do contribuir na identificação das discrepâncias
IGC são requeridas as notas da Capes atribuídas inter e intra-regionais, com a ponderação por
aos cursos de pós-graduação. Nesse sentido, o meio das categorias pública e privada.
IGC pode ser considerado um indicador abran-
gente de avaliação do desempenho institucional, Resultados
pois engloba diversos itens avaliativos.
O presente estudo possui caráter descri- Por meio dos resultados, é possível
tivo, uma vez que consiste na observação, aná- caracterizar a distribuição dos valores de IGC
lise e caracterização de determinada realidade, nas cinco regiões brasileiras, considerando a
com intuito de agregar informações acerca de administração pública e privada, conforme
fatos ou fenômenos investigados e estabelecer mostra a tabela 2.
possíveis relações entre as variáveis (GIL, 2008). No que condiz aos valores da média do IGC
Quanto ao método de levantamento e análise na região Sul, observou-se que as universidades
dos dados, foram utilizados os pressupostos da sob a administração pública apresentam melhor
pesquisa quantitativa que é baseada no paradig- desempenho em comparação com a privada,
ma positivista. Nesse paradigma, a racionalida- sendo que também é o grupo responsável tanto
de predomina de forma absoluta e os métodos pelo maior quanto pelo menor IGC da região.
utilizados são eminentemente quantitativos, ou Tal aspecto é reafirmado nos valores do desvio-
seja, baseados em números que tentam, tão so- padrão e coeficiente de variação, que são
mente, representar uma realidade temporal ob- maiores do que os apresentados na categoria
servada (GOMES; ARAÚJO, 2005). privada. Foi observada diferença significativa
Quanto à coleta de dados, ocorreu por entre os valores médios de IGC (p = 0,01) quando
meio da planilha eletrônica em formato excel se comparou instituições públicas e privadas.
disponibilizada pelo site do INEP, com os dados Quanto à análise geral, a média encontrada
referentes ao IGC contínuo/2011 da população correspondente à região Sul é menor do que
composta por 221 universidades distribuídas a esfera pública e maior do que a privada,
em suas respectivas regiões e categorias considerando-se que as universidades do
administrativas (pública e privada). Por meio primeiro grupo perfazem o dobro do segundo.
do software statistica 9.1 foi realizada a análise Quanto à região Sudeste, a qual detém
descritiva do IGC nas IES correspondentes às o maior número de universidades em ambas
cinco regiões brasileiras: Sul, Sudeste, Centro- as categorias administrativas, os resultados
Oeste, Nordeste e Norte. Além disso, foi utilizado evidenciam o melhor desempenho das
o teste t-student com a finalidade de verificar universidades públicas que, da mesma forma,

660 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Tabela 2 – Estatísticas descritivas do IGC das universidades ano/2011 por região no Brasil
Sul Sudeste Centro-Oeste Nordeste Norte
Média= 2,77 Média=2,84 Média= 2,72 Média= 2,76 Média=2,91
DP=0,52 DP=0,65 DP= 0,59 DP=0,58 DP=0,60
Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada Pública Privada
Média 2,90 2,51 3,01 2,49 2,90 2,50 3,12 2,56 3,33 2,50
Mín. 1,65 2,03 1,57 1,44 2,10 1,96 2,34 1,75 2,27 2,00
Máx. 3,92 3,75 4,28 3,15 4,21 2,86 4,04 3,77 4,07 2,90
DP 0,52 0,43 0,67 0,42 0,71 0,30 0,52 0,52 0,54 0,31
C.V.(%) 18,02 17,09 22,38 17,05 24,61 12,06 16,79 20,18 16,38 12,27
p-valor 0,01 <0,001 0,16 <0,01 <0,001
Total 34 17 60* 28 10** 8 15 27 11 11

Fonte: elaborado pelos autores com base nos valores do IGC contínuo disponibilizados pelo INEP.
*Três universidades foram avaliadas sem conceito (SC)
**Duas universidades foram avaliadas sem conceito (SC)

apresentam valor médio superior de IGC em média do IGC, em que o maior valor está
comparação com as privadas. A diferença entre presente, sendo o menor valor encontrado no
as médias dos grupos foi significativa (p-valor grupo das universidades privadas. Verificou-
< 0,001). Os valores correspondentes ao desvio- -se que existe diferença significativa entre os
padrão e coeficiente de variação também foram valores médios de IGC para as universidades
maiores em relação à categoria privada. Tal fato públicas e privadas da região (p-valor < 0,01). No
representa uma maior heterogeneidade entre os que se condiz à variabilidade, as universidades
IGCs desse grupo. privadas apresentaram maior dispersão relativa,
A região Centro-Oeste apresenta, assim evidenciando valor mais elevado para o
como as outras regiões citadas acima, um coeficiente de variação.
melhor desempenho das universidades públicas Quanto à região Norte, verifica-se mé-
em relação à média do IGC se comparada com dia geral do IGC maior do que as das regiões
as universidades privadas. Da mesma forma, o Sul, Centro-Oeste e Nordeste, no entanto, com
valor máximo de IGC dessa região pertence a maior desvio-padrão. No que condiz às catego-
uma universidade pública, sendo que o menor rias administrativas, as universidades públicas
valor encontrado está localizado no grupo apresentaram melhor desempenho em compa-
das universidades privadas. No entanto, não ração com as privadas para a média do IGC,
se observou diferença estatística significativa estando o valor máximo do IGC presente entre
entre as médias de IGC entre os grupos das as universidades públicas e o valor mínimo, na
universidades públicas e privadas (p-valor = categoria privada. Observou-se também dife-
0,16). Quanto à variabilidade, as universidades rença significativa entre os valores médios de
privadas apresentaram maior homogeneidade IGC (p < 0,001). No entanto, as universidades
com relação ao IGC, evidenciando valores privadas apresentaram um menor coeficiente
menores para o desvio-padrão e coeficiente de variação, indicando maior homogeneidade
de variação quando comparadas ao grupo das neste grupo.
universidades públicas. A partir da análise dos resultados,
Com relação à região Nordeste, observa- percebe-se o desempenho superior das
se a média geral muito próxima da região Sul. universidades públicas em relação às privadas
Assim como as demais regiões, as universidades em todas as regiões analisadas. O melhor
públicas detêm o melhor desempenho para desempenho do IGC foi observado na região

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 661


Norte, sendo que a região Sudeste apresentou sejam consideradas as diferenças de cultura e
o segundo melhor desempenho para a média do identidade entre as instituições para não haver
IGC. As outras regiões apresentaram resultados a prática de discriminação e criação de estigmas
inferiores, porém com certo equilíbrio entre os acerca de IES e suas respectivas regiões.
valores das médias do IGC, apresentadas na Os resultados desta investigação re-
ordem decrescente: Sul, Nordeste e Centro-Oeste. fletem uma realidade reveladora, tendo em
Quanto à variabilidade, a maior vista que justamente a média mais elevada
homogeneidade foi evidenciada nas regiões do IGC foi evidenciada na região Norte, ga-
Centro-Oeste e Norte, ambas referentes ao nhando maior destaque por apresentar melhor
grupo de universidades da categoria privada, desempenho em relação às demais regiões.
enquanto que o restante das regiões apresentou Configura-se em região historicamente estig-
maior heterogeneidade considerando tanto a matizada, devido ao desempenho de seus in-
categoria privada quanto à pública. Destaca- dicadores socioeconômicos serem, geralmente,
se a categoria das universidades públicas com abaixo da média nacional. Além disso, essa
maior variabilidade observada presente na região não apresenta tradição inerente às IES
região Centro-Oeste. das regiões Sul e Sudeste.
A análise do IGC propicia a identificação Dessa forma, fica latente o questionamento
de oportunidades de melhoria por parte das sobre tal resultado: o IGC realmente é capaz de
instituições, além de estimular políticas públicas refletir a qualidade de determinada IES? Ou
nesse setor. Desta forma, a avaliação institucional seja, o valor calculado para o IGC é capaz de
deve ser incorporada pela gestão da IES, conforme refletir a realidade? Por meio dos valores do
colocado por Júnior (2009, p. 265): gráfico 1, pode-se observar uma realidade até
então desconhecida, por revelar um melhor
Para que a instituição esteja preparada para desempenho das IES do Norte e Nordeste em
enfrentar os desafios contemporâneos, detrimento das regiões Sul e Sudeste, sendo que o
é fundamental que sua realidade, suas senso comum admite exatamente o contrário. A
virtudes, capacidades e limitações sejam partir disso, surge a necessidade de formulações
conhecidas pelos seus membros. de hipóteses explicativas para tal resultado,
ou seja, a necessidade de mapear as causas ou
O desenvolvimento da educação superior os componentes avaliativos que ocasionaram
deve passar pela busca da equidade regional, resultado tão revelador. Por outro lado, pode-se
no que condiz tanto ao desempenho de índices dizer que os resultados deste estudo servem para
de qualidade quanto aos critérios subjetivos quebrar paradigmas e questionar o fundamento
de avaliação institucional, respeitando-se as dos argumentos contrários ao IGC que, por
diferenças culturais, econômicas e demográficas. sua composição, é imparcial, e os resultados
Considerando o referencial teórico sobre o retratados não provocaram discriminações
IGC e demais indicadores abordados neste entre IES ou regiões, pelo contrário, destacaram
estudo, incluindo a polêmica gerada em regiões historicamente estigmatizadas.
torno das interpretações de seus valores e Dessa forma, pode-se verificar, por meio
divulgação midiática, os resultados desta do gráfico 1, certa uniformidade no desempenho
pesquisa apontam para a reflexão justamente das regiões brasileiras quanto ao IGC.
a respeito do fundamento de tal discussão. No que se refere ao Brasil, por ser
Os argumentos contrários à utilização de tais considerado um país de extensão continental,
indicadores enfatizam a relevância de que coexistem discrepâncias de toda ordem entre as

662 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Gráfico 1 – Comparação entre Brasil x Regiões. do IGC, devemos levar em consideração a
4,4 composição desse índice de qualidade, o qual
4,2 Box & Whisker Plot
4,0
é formado pela média ponderada dos CPCs,
3,8 e este, por sua vez, relaciona subitens de
3,6 avaliação, tais como: professores doutores e
3,4
3,2 mestres, professores com regime de dedicação
3,0 integral ou parcial, infraestrutura, organização
2,8
didático-pedagógica, notas dos concluintes
2,6
2,4 e ingressantes do Enade, e o indicador de
2,2 diferença entre o desempenho observado e
2,0
1,8
esperado, o chamado IDD (INEP, 2011).
1,6 Destaca-se que, na sua maioria, os
1,4 itens que compõem o CPC favorecem as
Nordeste
Brasil

Sudeste

Norte
Sul

Centro
oeste

universidades públicas quanto à facilidade de


atendimento aos requisitos da qualificação
Mean Mean+/- SD Mean+/- 1,96* SD do corpo docente e regime de trabalho. Para
Fonte: elaborado pelos autores com base nos dados do INEP (2011). explicar o desempenho superior referente
ao IGC nas universidades públicas, tem-
regiões brasileiras. Entretanto, o IGC estabelece se a ponderação feita por Bittencourt et al.
critérios mínimos de desempenho para as IES (2010), em estudo realizado sobre os itens que
e a busca por um desempenho uniforme e compõem o CPC coletados em 2008. Os autores
constante deve ser monitorada e acompanhada. evidenciaram vantagem para o setor público
A educação superior, vista sob o prisma de um na maioria dos itens que formam o CPC, sendo
sistema, pressupõe a interação e coexistência somente os aspectos referentes à infraestrutura
entre diversas instituições que, tendo como e organização didático-pedagógica os pontos
ponto em comum organização acadêmica fortes da categoria privada, em que ambos os
(universidades), não devem se restringir à itens perfazem apenas 10% do CPC.
própria realidade. Tal consideração foi antevista por
A busca pela equidade no desenvolvi- Cunha (2004, p. 795) que, em artigo sobre
mento passa pelo feedback da avaliação ins- o tema, argumenta acerca da ideia de que o
titucional que também ocorre de forma con- desenvolvimento da educação superior ocorre de
junta e interação entre os pares. O gráfico 1 forma desigual entre os setores público e privado:
denota certa hegemonia entre as regiões bra-
sileiras, embora as regiões Sul, Centro-Oeste O efeito mais dramático desse processo é
e Nordeste estejam um pouco abaixo da mé- a improvisação dos professores do setor
dia do IGC nacional. No entanto, as regiões privado, que produz efeitos negativos
Sudeste e Norte apresentam média do IGC aci- para a qualidade do ensino, nos níveis de
ma da média nacional, sendo que a primeira graduação e pós-graduação.
evidenciou maior variabilidade.
Uma possível solução para minimizar
Considerações finais tal disparidade seria o aumento da oferta de
vagas nos cursos de pós-graduação (mestrado/
A partir da distinção feita entre as doutorado), com a finalidade de equilibrar o
universidades públicas e privadas, sobretudo mercado de trabalho desses profissionais e,
a superioridade da categoria pública, no que assim, propiciar condições das universidades
diz respeito aos desempenhos para a média particulares a satisfazer esses requisitos.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 651-666, jul./set. 2014. 663


Em síntese, todas as regiões evidenciaram economia, tecnologia e informação. Decorre
desempenho superior da esfera pública em daí a importância da avaliação institucional
comparação com a categoria privada, com e acompanhamento de seus indicadores.
os valores médios apresentando diferenças Conforme colocado por Ribeiro (2012, p. 177):
significativas entre as categorias públicas e
privadas de algumas regiões. As IES precisam responder às obrigações da
A região Norte apresentou o melhor busca contínua da qualidade no desempenho
desempenho para a média do IGC (2,91), o acadêmico, do aperfeiçoamento constante do
que denota aspecto revelador sob a ótica do planejamento e da gestão universitária [...].
desempenho da educação superior no contexto
das regiões brasileiras. Percebe-se, portanto, Nesse contexto, este artigo buscou, por
certa imparcialidade nos valores do IGC na meio do IGC, que congrega informações a
medida em que considera os cálculos de seus respeito da IES, contribuir com campo de estudos
componentes formadores de uma maneira voltado à educação Superior, evidenciando
objetiva, seguida das regiões Sudeste (2,84), as implicações que os resultados do IGC
Nordeste (2,76), Sul (2,77) e Centro-Oeste (2,72). adquirem quando analisados de forma inter e
A região Sul apresenta menor variabilidade intra-regional, expondo características como
absoluta (0,52), seguida das regiões: Nordeste desempenho e variabilidade, considerando IES
(0,58), Centro-Oeste (0,59), Norte (0,60) públicas e privadas.
e Sudeste (0,65). Quanto ao desempenho A realização deste trabalho foi motivada
individual, evidencia-se que a região Sudeste pela possibilidade de tratar o desempenho da
é detentora da universidade que apresenta educação superior sob o enfoque da abordagem
maior IGC (4,28), seguida das regiões Centro- quantitativa capaz de subsidiar análises quali-
Oeste (4,21) e Norte (4,07), sendo que em todos tativas. Dessa forma, este trabalho buscou cola-
os casos, trata-se de universidades públicas. A borar com resultados preliminares a respeito da
universidade com pior desempenho é da região comparação da qualidade da educação superior
Sudeste (1,44) da categoria privada, seguida das entre as regiões brasileiras, a partir da análise do
universidades das regiões Sudeste, novamente IGC. Porém, ressalta-se a necessidade de estudos
(1,65) e Sul (1,57), essas duas últimas advindas complementares capazes de contemplar hipóte-
da categoria pública. ses explicativas para os resultados do presente
A educação superior exerce papel estudo. Por isso, a realização de uma avaliação
fundamental no desenvolvimento econômico consolidada acerca do desempenho das IES por
de determinado país, no que se relaciona com região deverá ocorrer de forma integrada, ao
as demandas da sociedade, como a formação analisar os resultados do IGC alinhados aos de-
de profissionais qualificados para acompanhar mais subsistemas de avaliação que integram a
as constantes transformações advindas da avaliação multidimensional do SINAES.

664 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
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Recebido em: 28.06.2013

Aprovado em: 30.09.2013

Celina Hoffmann é graduada em processos gerenciais e aluna de mestrado do Programa de Pós-Graduação em engenharia
de produção da Universidade Federal de Santa Maria.

Roselaine Ruviaro Zanini é doutora em epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora de
estatística na Universidade Federal de Santa Maria; coordenadora da especialização em estatística e modelagem quantitativa;
professora do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção.

Ângela Cristina Corrêa é doutora em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Maria, administradora
pública federal; pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em administração da Universidade Federal de
Santa Maria; coordenadora do projeto Mapa Estratégico da Educação Superior (MEES), financiado pelo edital Pró-Adm./
CAPES.

Julio Cezar Mairesse Siluk é doutor em engenharia de produção pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor e
coordenador do Programa de Pós-Graduação em engenharia de produção da Universidade Federal de Santa Maria.

Vitor Francisco Schuch Júnior é doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas, professor no curso
de graduação e pós-graduação em administração da Universidade Federal de Santa Maria nos mestrados acadêmico e
profissional, especialização e programas interinstitucionais.

Lucas Veiga Ávila é graduado em administração e especialista em gestão estratégica de negócios pela Universidade
Regional Integrada, aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em administração de empresas da Universidade
Federal de Santa Maria.

666 Celina HOFFMANN; Roselaine R. ZANINI; Ângela C. CORRÊA; Julio C. M. SILUK; Vitor F. SCHUCH JR; Lucas V. ÁVILA. O desempenho...
Contribuições da perspectiva crítica de base
histórico-cultural para a produção científica em
psicologia educacional

Laísy de Lima NunesI


Simone Salviano AlvesI
Jaqueline Vilar RamalhoI
Fabíola de Sousa Braz AquinoI

Resumo

Com ênfase na importância do monitoramento da produção


científica, podendo o mesmo indicar qualidade da e rumos
tomados pela produção do saber, o presente estudo visa a mapear
as produções no âmbito da psicologia escolar educacional e,
mais especificamente, nos artigos científicos que apresentem
uma perspectiva crítica nessa área. Para tanto, foi realizada uma
busca bibliográfica das versões on-line, publicadas entre 2007
e 2011, disponíveis na página da revista Psicologia Escolar e
Educacional, publicação semestral da Associação Brasileira de
Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE). Ao todo, foram
analisados 134 artigos. Os resultados apontaram que 17 artigos
(12,69%) foram classificados na perspectiva crítica. Cada estudo
trata de importantes aspectos da psicologia escolar educacional,
tendo como foco o papel do psicólogo na escola, a formação
docente e a postura crítica dos agentes escolares. Todos os artigos
selecionados fundamentam-se na teoria histórico-cultural, uma das
abordagens críticas da psicologia resgatadas para a compreensão
dos fenômenos educacionais, aqui considerados essencialmente
psicossociais. Entende-se que esse levantamento representa
um instrumento de fundamentação e de questionamento na
formação acadêmica (graduação e pós-graduação) de alunos de
psicologia, da área de educação e de áreas afins, e propicia um
maior aprofundamento acerca de como vem se configurando a
psicologia escolar educacional contemporânea e dos impactos nas
práticas profissionais orientadas por uma perspectiva crítica.

Palavras-chave

I- Universidade Federal da Paraíba, Psicologia escolar educacional — Produção científica — Mapeamento —


João Pessoa, PB, Brasil Perspectiva crítica.
Contatos: la.laisy@hotmail.com;
simone.psico@bol.com.br;
jaqvilar@gmail.com;
fabiolabrazaquino@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471 667
Contributions of cultural-historical studies with
a critical perspective to scientific production in
educational psychology

Laísy de Lima NunesI


Simone Salviano AlvesI
Jaqueline Vilar RamalhoI
Fabíola de Sousa Braz AquinoI

Abstract

The present study seeks to map the productions in the scope of


educational and school psychology and, more specifically, in the
scientific articles that show a critical perspective in this area. This
is done by emphasizing the importance of monitoring scientific
production and its possibility of indicating the quality and directions
taken by the production of knowledge. In order to achieve this, we have
conducted a bibliographical search of the online versions published
between 2007 and 2011, available in the journal Psicologia Escolar
e Educacional (Educational and School Psychology), which is a
biannual publication of Associação Brasileira de Psicologia Escolar
e Educacional (ABRAPEE – Brazilian Association of Educational
and School Psychology). Overall, 134 articles were analyzed. The
results indicate that 17 articles (12.69%) were classified in the
critical perspective. Each study discusses important aspects of
educational and school psychology, focusing on the role of school
psychologists, teacher education, and the critical stance of school
agents. All the articles selected were based on the cultural-historical
theory, one of the critical approaches of psychology used to help
understand educational phenomena, which are considered in this
study as essentially psychosocial. This survey can be seen as a
platform to evaluate the academic undergraduate and graduate
background of psychology students in the field of education and
similar areas, and it provides a deeper view on how contemporary
educational and school psychology has been configured and its
impact on professional practices guided by a critical perspective.

Keywords

I- Universidade Federal da Paraíba,


Educational and school psychology — Scientific production —
João Pessoa, PB, Brasil Mapping — Critical poerspective.
Contacts: la.laisy@hotmail.com;
simone.psico@bol.com.br;
jaqvilar@gmail.com;
fabiolabrazaquino@gmail.com

668 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091471 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014.
Introdução interseção entre essas duas áreas, recorre a
Vygotsky como autor que embasa a referida
Esse trabalho é produto de debates e proposta de análise.
reflexões sobre as interfaces da psicologia social Mais recentemente, Arrocho (2010)
com o campo educacional, por se entender a recorre ao modelo histórico-cultural para
importância da relação entre esses campos discutir as relações entre a psicologia social e
de conhecimento para a prática profissional a educação, desenvolvendo articulações entre
do(a) psicólogo(a) e, fundamentalmente, pelo esses dois campos de conhecimento. A partir da
valor atribuído às interações sociais como leitura e dos debates em torno dos textos de
unidade de análise possível entre as referidas Ovejero (1993, 1996) e Arrocho (2009, 2010),
áreas (AROCHO, 2009, 2010; OVEJERO, 1996). buscou-se investigar a presença, na produção
Defende-se que estudar as relações entre esses científica brasileira, da perspectiva crítica na
campos da psicologia e conhecer os principais área escolar e educacional.
referenciais teóricos que orientam uma área Em consonância com pesquisadores
permite entender e atuar profissionalmente de brasileiros (MEIRA, 2003; SOUSA; SILVA,
forma consciente e crítica nos contextos nos 2009; MALUF, 2010; MARTINEZ, 2010;
quais ocorre a atividade do(a) psicólogo(a). NOVAES, 2010; FACCI; EIDT, 2011), observou-
Na compreensão de Ovejero (1996), nos -se, na literatura internacional, a recorrência
últimos anos, assistiu-se a uma progressiva à leitura e análise das questões educacionais a
aproximação entre a psicologia social e a partir do modelo histórico-cultural inaugurado
psicologia educacional, com destaque para por Vygotsky (1932/1996; 1984/2007). Na
o enfoque psicossocial como necessário literatura acima referida, o encontro da
e imprescindível na educação. Segundo educação com a psicologia é atravessado por
afirma o autor, os fenômenos educacionais uma leitura histórico-cultural. Os pressupostos
são essencialmente psicossociais, dado que desse modelo põem em relevo a noção de
compartilham duas classes: interpessoais sujeito constituído histórica e culturalmente,
(interação professor-aluno, aluno-aluno, pais com destaque para os processos de formação
e filhos) e grupais (tipo de grupo e de coesão do indivíduo a partir da rede social em que se
do grupo-classe ou do grupo familiar). O autor insere. Partindo desse modelo, compreende-se
enfatiza que, para abordar adequadamente toda que os processos de ensino e aprendizagem,
a complexa problemática da educação atual, que caracterizam as formas de socialização
é imprescindível a adoção de uma perspectiva e viabilizam a apropriação de ferramentas
abertamente crítica e emancipatória. culturais pelo homem, estão imbricados na
Em relação a essa questão, Ovejero formação da consciência e da subjetividade
(1993, 1996) propõe a necessidade de um (AROCHO, 2009, 2010; OLIVEIRA; MARINHO-
enfoque psicossocial, que leve em conta os ARAÚJO, 2009).
aspectos psicológicos e sociais de um fenômeno No âmbito da psicologia escolar e
que considera claramente psicossocial, qual educacional, Maria Helena de Souza Patto,
seja, o fracasso escolar. Nessa linha, o fracasso na década de 1980, deflagrou uma crítica
escolar seria um fenômeno social e educacional, contundente ao enfoque clínico de atuação
que reflete as relações entre indivíduo e dentro das escolas, crítica essa que denunciava
sociedade. Em seu texto “Psicología social de o modelo hegemônico na psicologia e defendia
la educación”, Ovejero (1996), ao apresentar o uma compreensão do fracasso escolar como
enfoque psicossocial para explorar as relações fenômeno de múltiplas dimensões. Sustentava
entre psicologia social e educacional, além de ainda que o trabalho do psicólogo escolar deveria
enfatizar a interação social como ponto de “contribuir para a elucidação de processos

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que se dão na vida diária escolar, em suas sobre a descontextualização e fragmentação
relações com as dimensões econômica, política do indivíduo (OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO,
e cultural da sociedade brasileira” (PATTO, 2009). Corroborando essa afirmação, Marinho-
1997, p. 467). Em suas elaborações, já pode ser Araújo (2010) defende que a relação entre a
encontrada uma crítica ao fazer psicológico na psicologia e a educação
escola que, segundo ressalta, não percebia que
“o que parece natural é social e o que parece (...) vem se estreitando, com teorias,
a-histórico é histórico” (PATTO, 1997, p. 464). A pesquisas e formas de intervenção
crítica apresentada à comunidade científica por profissional que influenciam as duas áreas.
Patto (1997) influencia leituras e críticas mais Os diálogos e debates têm avançado por
contemporâneas, como as elaboradas por Meira meio de novos paradigmas e prismas,
(2003, 2012), Guzzo (2011), Facci e Eidt (2011), que direcionam e redefinem formas
entre outros(as). mais dialéticas para a compreensão do
Na esteira desse debate, Meira (2003) desenvolvimento psicológico humano e
defende a necessidade de uma concepção da construção do conhecimento, quando
crítica que oriente o trabalho dos psicólogos ocorrem nos espaços educacionais. (p. 20).
educacionais e que traduza a compreensão de
que “a relação entre o homem e a sociedade Contudo, Marinho-Araújo (2010)
é de mediação recíproca, o que significa que afirma que vários desafios ainda se colocam,
os fenômenos psicológicos só podem ser atualmente, diante da consolidação do perfil
devidamente compreendidos em seu caráter profissional do psicólogo atuante nos meios
fundamentalmente histórico e social” (MEIRA, educacionais. Como outros autores (MALUF,
2003, p. 19). Essa autora, fundamentada em 2010; CRUCES, 2009; GUZZO; MEZZALIRA,
parte nas críticas realizadas por Patto e nas 2011; GUZZO; MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI;
proposições marxistas, compreende o homem SILVA NETO, 2010; MARINHO-ARAÚJO, 2010;
como um ser essencialmente social, constituído MARTINEZ, 2010; MEDEIROS; BRAZ AQUINO,
nas e pelas condições e interações sociais. 2011), questiona-se de que forma a psicologia
Articulada ao âmbito educacional, Meira escolar e educacional tem comparecido nessa
(2003, 2012) defende a escola como instituição discussão e se as atividades do psicólogo nos
socializadora das formas mais desenvolvidas meios educacionais têm se pautado por uma
do conhecimento humano e o psicólogo como orientação crítica, de base histórico-cultural.
mediador, comprometido ética e politicamente Diante do exposto, o presente estudo
com as necessidades sociais. Cabe a ele refletir buscou mapear produções que tivessem
sobre seu papel dentro da escola, entendendo a como foco a psicologia escolar e educacional
educação como uma atividade que tem como abordada de forma crítica, influenciada
meta a transformação social. pelo modelo histórico-cultural de Vygotsky,
Arocho (2010) afirma que há um entendido enquanto uma das abordagens
consenso entre os pesquisadores que adotam críticas dessa área. Isso porque esse modelo tem
essa perspectiva crítica em relação à ideia de fundamentado, com frequência, pesquisas da
que a realidade e o conhecimento dela são área educacional que exploram as articulações
construídos socialmente e que a educação é uma entre a educação escolar e as interações sociais
condição necessária para o desenvolvimento mais amplas (MEIRA, 2003, 2012; FACCI; EIDT,
tipicamente humano. Essa interface entre 2011; OLIVEIRA; MARINHO-ARAÚJO, 2009).
psicologia e educação vem sendo construída Nesses estudos, a relação entre essa teoria e o
gradativamente, a partir de questionamentos contexto educacional dá-se pelas possibilidades
sobre a naturalização do desenvolvimento e de leitura da realidade educacional, utilizando

670 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
conceitos como interação social, cultura, escola, educativos e as políticas decisórias, Bariani,
enquanto um campo de relações e de transmissão Buin, Barros e Escher (2004) realizaram uma
dos conhecimentos historicamente construídos, análise dos objetivos, métodos e enfoques
mediação, e o papel da atividade coletiva no utilizados em pesquisas. Revisaram aquelas
desenvolvimento humano (MEIRA, 2012). realizadas nos cinco anos anteriores ao trabalho
Diante disso, monitorar a produção e que relatassem estudos sobre a psicologia
científica pode funcionar como um crivo que escolar e educacional no ensino superior.
indique a qualidade e os rumos tomados pela A partir dessa revisão, as autoras conclu-
produção do saber. Ter conhecimento dessas íram que: a maioria dos objetivos que se propu-
produções contribui para a identificação seram os documentos refere-se ao conhecimento
dos temas que estão sendo discutidos, dos do perfil de estudantes universitários; predomi-
avanços e das lacunas que ainda precisam ser naram estudos de caráter descritivo; quanto aos
investigadas, com vistas a fundamentar práticas instrumentos de coleta de dados, prevaleceu a
nos contextos educacionais e a promover utilização de instrumento único, composto por
avanços na área (OLIVEIRA; CANTALICE; material impresso; o procedimento de análise
JOLY; SANTOS, 2006; SOUZA FILHO; BELO; mais utilizado foi o quantitativo; os informantes
GOUVEIA, 2006). foram principalmente estudantes universitários;
Desse modo, faz-se necessária a e os trabalhos analisados foram desenvolvidos
elaboração de trabalhos que organizem o tendo uma sólida base teórica.
corpo de conhecimento científico produzido, Cosmo e Urt (2009), reconhecendo a
tendo em vista que seus resultados serão úteis importância da análise da produção científica,
para pesquisas futuras e para a elaboração de realizaram uma pesquisa que visou a identificar
propostas de intervenção em diversos campos a presença do conhecimento psicológico nas
de atuação (OLIVEIRA; SANTOS; NORONHA; produções científicas sobre a escola. Nessa
BORUCHOVITCH; CUNHA; BARDAGI; mesma vertente, Oliveira e colaboradores (2007)
DOMINGUES, 2007; COSMO; URT, 2009). pesquisaram acerca da produção científica
Agências de fomento à pesquisa, em sobre avaliação psicológica no contexto
diversos países, têm investido na realização escolar. Considerando as colocações acima,
de avaliações da produção, com destaque para evidencia-se a importância de pesquisas que
aquelas publicações em periódicos científicos analisem a produção bibliográfica que vem
reconhecidos e conceituados. No cenário sendo construída nessa área do conhecimento.
nacional, entretanto, ainda há uma carência nesse Pontua-se que ainda há muito para ser
campo que conceitua e caracteriza a publicação conquistado nessa esfera, com o intuito de
psicológica nacional (OLIVEIRA; CANTALICE; aproximar teoria e prática. Em termos históricos,
JOLY; SANTOS, 2006). Consoante a essa ideia, o crescimento da área escolar e educacional
Witter (2008) indica que as investigações que na psicologia não ocorreu de forma paralela à
visam a avaliar outras pesquisas não são comuns criação de elementos teóricos e metodológicos
no Brasil, mas começam a ser desenvolvidas. A que fundamentem e consolidem práticas
autora destaca a importância dessas produções transformadoras e emancipatórias. Diversas
ao fomentar subsídios para a produção do críticas são tecidas buscando mostrar que a
conhecimento, definição de políticas de pesquisa área educacional tem ações limitadas, por vezes
e pós-graduação. fundamentadas na patologização dos problemas
Com o objetivo de contribuir para escolares, com uma visão adaptacionista e que
que as investigações científicas assumam uma culpabiliza o aluno; ao invés de contribuir para
postura mais rigorosa e informativa e possam a construção de uma educação democrática,
oferecer uma melhor base para os programas o que, de fato, é o seu papel. Compete à

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. 671


psicologia escolar e educacional contribuir para relativa à visão adaptativa que, por vezes,
que a escola realize satisfatoriamente seu papel fundamenta algumas práticas psicológicas.
de socialização do saber, de favorecimento de Diante disso, a reflexão crítica se constitui como
processos de humanização e de promoção do necessária a toda a sociedade e primordialmente
pensamento crítico (MEIRA; ANTUNES, 2003). àqueles que atuam no âmbito educacional.
Para colaborar com essa construção, este Pensar a psicologia educacional em uma
trabalho visa a mapear as produções no âmbito perspectiva crítica significa analisar a atuação,
da psicologia escolar e educacional e, mais as concepções e práticas dos psicólogos nessa
especificamente, nos estudos que apresentem área, valorizar o contexto social em que o sujeito
uma perspectiva crítica nessa área, tendo em está inserido e considerar a realidade vivida pelo
vista, como afirmam Meira e Antunes (2003), sujeito para poder compreender sua realidade
que esse pensamento crítico pode contribuir educacional (MEIRA, 2003; FACCI; EIDT, 2011).
para “a adoção de um compromisso social com Para alcançar os objetivos propostos, a
a cidadania” (p. 11). Além disso, apesar desse presente pesquisa analisou, particularmente,
movimento crítico ter surgido na década de 1980, os artigos científicos publicados na revista
com os estudos Patto, muito ainda precisa ser Psicologia Escolar e Educacional, no período
feito para que seus pressupostos se concretizem de 2007 a 2011. Considerou-se relevante iniciar
e, nesse sentido, a produção científica sobre esse o levantamento a partir desse período, tendo
tema é um elemento essencial para a elaboração em vista que, no ano de 2004, foi elaborado o
de novas práticas. Dessa forma, explicitam-se: Parecer no CNE/CES 0062/2004, e este originou
quais têm sido os principais temas abordados a Resolução CNE/CES nº 8 de 7 de maio 2004,
nas pesquisas; os referenciais teóricos adotados que instituiu as novas Diretrizes Curriculares
pelos pesquisadores; os tipos de pesquisas Nacionais para os cursos de psicologia no Brasil
realizadas; os participantes e os resultados (BRASIL, 2004). Tais diretrizes estabelecem
encontrados nos artigos da revista Psicologia a construção de princípios e fundamentos
Escolar e Educacional. norteadores da formação do psicólogo, forjadas
Entende-se como crítica, em concordância a partir de um amplo debate entre os profissionais
com Meira (2003), uma concepção ou teoria da área. O processo histórico de elaboração
que “(...) apreende a totalidade do concreto em dessas diretrizes e os posicionamentos e
suas múltiplas determinações e compreende a desdobramentos em relação a esse documento
sociedade como um movimento de vir-a-ser” têm sido alvo de debates e publicações de
(p. 17). Baseada nesse conceito, a autora recorre diversos autores na área educacional (GUZZO;
a concepções críticas de educação e psicologia MEZZALIRA, 2011; MALUF, 2010; CRUCES,
como uma possibilidade de fundamentação 2009). Tal documento guarda a expectativa
mais consistente para a psicologia escolar e de possibilitar uma formação abrangente, que
educacional. Sousa e Silva (2009) afirmam que desenvolva habilidades e competências que
um dos principais critérios para a definição respondam às demandas dos diversos contextos
de um trabalho crítico na área em foco é a de atuação desse profissional. Nesse sentido,
explicitação de compromisso com a psicologia evidencia-se que
escolar e a educação, no que diz respeito
especialmente aos pressupostos teóricos e a sua (…) a Psicologia Escolar poderá beneficiar-
relação com a prática. -se quanto à ampliação das concepções
Souza e Checchia (2003) também acerca da formação desejada para uma
apontam alguns elementos imprescindíveis para atuação competente e coadunada às
a formação e a atuação baseada na perspectiva demandas atuais, pois o momento histórico
crítica, tais como a ruptura epistemológica contemporâneo está propício às mudanças

672 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
que já vêm ocorrendo na área. (MARINHO- que realizaram os levantamentos de forma
ARAÚJO, 2010, p. 26) independente, preenchendo a ficha de análise, a
qual foi desenvolvida a partir do modelo original
A revista semestral da Associação de Bariani e colaboradoras (2004) e adaptada de
Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional acordo com os fins aqui propostos. Posteriormente,
(ABRAPEE) foi escolhida por ser o periódico os resultados encontrados foram discutidos
científico de uma associação de abrangência em reuniões com o grupo de pesquisadoras,
nacional da área da psicologia educacional, garantindo-se consenso entre as juízas.
que busca propagar o conhecimento de práticas Por fim, foi realizada uma análise, em
e pesquisas originais e atuais nesse campo. termos quantitativos e qualitativos, dos artigos
Seu propósito é a publicação de manuscritos que contemplavam o critério preestabelecido.
referentes à atuação, formação e história da Ressalta-se que o critério utilizado foi que
psicologia no âmbito educacional, textos de os artigos apresentassem discussões críticas
reflexão crítica e relatos de pesquisas. Vale sobre a atuação e/ou formação do psicólogo
destacar que outras publicações também escolar, pautadas essencialmente na psicologia
apresentam trabalhos na perspectiva escolar histórico-cultural, entendida como uma
crítica. No entanto, esse periódico foi escolhido das abordagens críticas da psicologia que
por ser específico da área da psicologia escolar propõe uma ruptura com o modelo clínico de
e educacional e por sua representatividade nas atuação. Os resultados foram organizados e
produções desse campo. serão apresentados e discutidos, atendendo os
objetivos deste trabalho.
Método
Resultados e discussão
Como se disse antes, inicialmente, foram
escolhidas para a análise as publicações de Ao todo, foram analisados nove números
Psicologia Escolar e Educacional, revista da da revista Psicologia Escolar e Educacional,
Associação Brasileira de Psicologia Escolar e contabilizando o total de 134 artigos. Dentre
Educacional (ABRAPEE). Em seguida, realizou- todos os artigos, 17 (12,69%) foram classificados
-se uma busca bibliográfica das versões on-line no critério estabelecido inicialmente de
disponíveis na página desse periódico, cobrindo psicologia escolar e educacional numa
o período 2007-2011. Analisaram-se apenas as perspectiva crítica, ou seja, apresentam uma
edições regulares da revista, excluindo-se assim discussão que rompe com a lógica patologizante
uma edição especial do ano de 2007 e o número dos problemas educacionais e propõe uma
dois do volume 12 (2008), que, na época da prática emancipatória, tendo o psicólogo como
coleta de dados, não estava acessível na rede.1 agente dessa mudança. Nesses artigos, foram
Cada exemplar da revista apresentava feitas análises mais minuciosas, considerando
quatro modalidades de publicações: artigos; os seguintes critérios: data de publicação;
resenhas; histórias; e, por fim, sugestões práticas. autoria e filiação institucional; objeto de estudo;
Tendo em vista as necessidades desta pesquisa, enfoques teórico e metodológico; e conclusões
optou-se por analisar apenas os materiais que se dos estudos.
encontravam na modalidade artigo. Cada artigo
foi lido na íntegra por duas das pesquisadoras, Data da publicação

1 - Atualmente, a edição especial (2007) e o número dois do A análise dos artigos indicou que, apesar
volume 12 (2008) podem ser localizadas nos respectivos endereços:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=1413- da pesquisa abranger os anos de 2007 a 2011,
855720080002&lng=pt&nrm=iso e http://abrapee.psc.br/Especial.pdf a perspectiva crítica esteve mais presente

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. 673


nos documentos de 2010 e 2011, tendo maior vinculados a universidades da região sudeste (São
concentração (cinco artigos) no primeiro Paulo e Minas Gerais); em 17,65% dos artigos,
número publicado no ano de 2011. Esses dados os autores eram vinculados a universidades do
sugerem o crescimento de discussões críticas Distrito Federal; 11,76% eram de Rondônia,
nas produções desse periódico ao longo dos único estado da região norte que apareceu nessas
anos. Essa tendência pode ser constatada publicações; e apenas em um artigo (5,88%), os
também nas formas de atuação dos psicólogos autores eram exclusivamente da região nordeste.
e na reestruturação das grades curriculares Dois artigos tinham autores que eram vinculados
dos cursos de psicologia das universidades a instituições de estados diferentes, sendo o
brasileiras. Mesmo sendo uma discussão que primeiro escrito por uma autora do Maranhão
remete à década de 1980, as transformações (nordeste) e outra do Distrito Federal (DF), e o
ainda estão ocorrendo lentamente. Todavia, segundo por autoras de Rondônia e de São Paulo
estão evoluindo e conquistando gradativamente (norte e sudeste). Nota-se, através dos vínculos
mais espaço para debates e atuações (MEIRA, empregatícios declarados, um engajamento dos
2003, 2012; SOUZA; CHECCHIA, 2003), embora autores com a vida acadêmica e com a área de
as mudanças em torno dessa questão ainda se conhecimento em questão.
mostrem, na prática, pouco perceptíveis. Diante desses dados, observou-se que
Outro aspecto que pode estar associado essas pesquisas estão mais concentradas nas
ao aumento da produção em uma perspectiva regiões sul e sudeste do país, o que corrobora a
crítica a partir de 2010 é o conjunto de ideia de um predomínio histórico dessas regiões
mudanças na política editorial da revista como mais desenvolvidas no âmbito da ciência e
Psicologia Escolar e Educacional que foi da produção de conhecimento. Esses resultados
implantado no segundo semestre de 2009 e são congruentes com outros encontrados em
aprimorado nos anos seguintes. Nesse período, trabalhos que analisaram a produção na área
o referido periódico teve seu pedido de inserção da psicologia escolar e educacional, como
no SCIELO atendido e, em decorrência disso, o de Oliveira e colaboradores (2006), por
artigos teóricos começaram a ser aceitos. Fez-se exemplo. Isso também se justifica pela maior
necessário, então, acurar cada vez mais todos concentração dos cursos de psicologia do país,
os procedimentos editoriais e de avaliação tanto de graduação como de pós-graduação,
dos manuscritos para atender aos critérios de nessas localidades.
excelência dessa base de dados.
Abordagem teórica
Autoria e filiação institucional
No tocante à fundamentação teórica,
Entre os 17 artigos classificados, utilizou-se como critério para a análise dos
constatou-se que a maioria (94,12%) possui artigos que eles apresentassem uma discussão
autoria coletiva. Desse total, apenas dois crítica pautada no uso da teoria histórico-
artigos (11,76%) apresentam co-autores do cultural, entendendo ser essa uma das
sexo masculino, o que reafirma a tradição principais abordagens que subsidiam leituras
da psicologia escolar como uma área de críticas no campo da psicologia escolar. Desse
conhecimento de domínio predominantemente modo, todos os artigos classificados destacam
feminino (OLIVEIRA et al, 2006). a importância dessa teoria, por considerar
Em 29,41% dos artigos, todos os autores, os aspectos sociais, culturais e relacionais
na época da publicação, tinham vínculos existentes na instituição escolar. Nessa teoria, o
com universidades da região sul (Paraná e ser humano é entendido como formado a partir
Santa Catarina); 23,53% tinham seus autores das relações sociais, e tanto a escola quanto os

674 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
processos educacionais de maneira geral têm os agentes escolares, devem assumir um
destaque especial (ALMEIDA; ALVES; NEVES; compromisso com a transformação, indo além
SILVA; PEDROZA, 2007; TONDIN; DEDONATTI; da transmissão de conhecimentos científicos,
BONAMIGO, 2010; WANDERER; PEDROZA, devendo, para isso, priorizar uma formação
2010; BRAY; LEONARDO, 2011; LESSA; FACCI, voltada para a cidadania, através da educação
2011;). Os autores do presente estudo, pautados e da reflexão crítica. (BRAY; LEONARDO, 2011).
nessa concepção, defendem que os agentes
escolares têm a possibilidade de romper com o Tipos de pesquisa e participantes
paradigma tradicional que culpabiliza o aluno
pelo fracasso e queixas escolares, e repensar Entre os 17 artigos analisados, 13 expõem
suas práticas. Os estudos aqui analisados estudos de campo, os quais apresentam como
consideram o sujeito como ser social e, sujeitos das pesquisas: psicólogos escolares
portanto, inserido em um contexto que o (FACCI; TESSARO; LEAL; SILVA; ROMA, 2007;
influencia e é influenciado por ele. Esses LONGAREZI; ALVES, 2009; WANDERER;
dados corroboram os argumentos de Ovejero PEDROZA, 2010; TADA; SÁPIA; LIMA, 2010;
(1993, 1996), quando aponta a abordagem GASPAR; COSTA, 2011; LESSA; FACCI, 2011;
histórico-cultural de base vygotskiana como SOUZA; RIBEIRO; SILVA, 2011); estudantes
uma das mais coerentes para analisar a do ensino fundamental, médio e/ou superior
interface psicologia social e educação. (SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA
Os proponentes deste estudo concordam JUNIOR; GUZZO, 2009; FONTES; LIMA, 2011;
com os autores que defendem que essa teoria PIOTTO; ALVES, 2011); grupos de professores
ajuda a compreender a importância de vários (ALMEIDA; ALVES; NEVES; SILVA; PEDROZA,
processos na dinâmica escolar que afetam 2007; BRAY; LEONARDO, 2011); e secretários
o desenvolvimento das crianças. A teoria municipais de educação (TONDIN; DEDONATTI;
histórico-cultural auxilia o processo de reflexão BONAMIGO, 2010).
crítica sobre a realidade escolar e fundamenta Os outros quatro artigos são revisões
o compromisso necessário à atuação nesse bibliográficas (BRASILEIRO; SOUZA, 2010;
âmbito. (CARVALHO; MARINHO–ARAÚJO, CARVALHO; MARINHO-ARAÚJO, 2009;
2009; SANT’ANA; EUZÉBIOS FILHO; LACERDA SCHLINDWEIN, 2010; SOARES; MARINHO-
JUNIOR; GUZZO, 2009). ARAÚJO, 2010), e discutem a formação de
Foi destaque nesses trabalhos o uso docentes e de psicólogos no Brasil, bem como
dos principais teóricos da corrente histórico- as concepções da psicologia escolar crítica.
cultural: Vygotsky, Leontiev e Luria. Novas
contribuições da literatura atual na área, autores Conclusões dos estudos
como Patto, Marinho-Araújo, Guzzo, Almeida,
Meira, entre outros, também foram citados por Todos os estudos tratam de importantes
estabelecerem uma produtiva articulação crítica aspectos da psicologia escolar e educacional.
entre os conceitos da teoria histórico-cultural e A partir de fundamentações elaboradas com
o contexto vigente no sistema escolar brasileiro, base nos pressupostos histórico-culturais,
considerando aspectos éticos, sociais, políticos rigor metodológico e procedimentos de
e institucionais (LONGAREZI; ALVES, 2009; análises, chegam a conclusões que podem
BRASILEIRO; SOUZA, 2010; SCHLINDWEIN, contribuir para a reflexão sobre as práticas
2010; SOARES; MARINHO-ARAÚJO, 2010; nessa área e subsidiar novas atuações de
FONTES; LIMA, 2011; PIOTTO; ALVES, 2011). caráter crítico e emancipatório.
Dessa forma, todos os artigos defendem Almeida, Alves, Neves, Silva e Pedroza
que a escola e, consequentemente, todos (2007) analisam a visão de professores do

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. 675


ensino médio sobre a influência da psicologia psicologia da educação e suas implicações para
em sua atuação. Elas defendem a relação entre a formação de educadores, através da revisão
pedagogia e psicologia, considerando ambas dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais
importantes. Veem a formação do professor a da Associação Nacional de Pós-Graduação e
partir de uma perspectiva “inovadora”, na qual Pesquisa em Educação (ANPEd), especialmente
ele reflete sobre sua atuação e interação com os no Grupo de Trabalho Psicologia da Educação
alunos. Longarezi e Alves (2009) abordaram a (GT20), no período entre 1998 e 2009. Esse
questão da formação continuada de professores, artigo também mostra que é preciso trazer as
considerando a contribuição da psicologia escolar contribuições da psicologia para uma visão
para a construção de um cenário social mais mais ampla, que permita compreender a escola
crítico e comprometido com políticas efetivas. e seus atores em todas as suas dimensões.
Esse trabalho concentrou-se na elaboração, no Nessa mesma linha de discussão,
desenvolvimento e na avaliação coletiva de um Wanderer e Pedroza (2010) tratam do psicólogo
projeto pedagógico na escola. enquanto agente transformador e crítico que
Nesse sentido, em ambos os trabalhos, pode questionar relações de hierarquização,
percebe-se que a psicologia pode contribuir bem como trabalhar com os agentes escolares
significativamente para a mudança nos cenários sobre as concepções históricas acerca da
educacionais. Tendo em vista que a atuação identidade da escola e as mudanças possíveis
do psicólogo na escola pode colaborar para a a partir da ação coletiva da comunidade. Para
formação continuada do professor, ela pode que isso se concretize, faz-se necessário romper
ajudar o desenvolvimento profissional e pessoal com uma prática adaptativa que usa rotulações
desse profissional, além de chamar a atenção dele e implementar um modelo de formação de
para uma postura mais crítica e prático-reflexiva indivíduos crítica e politicamente conscientes.
sobre seu próprio trabalho. Essas considerações Tondin, Dedonatti e Bonamigo (2010),
justificam a classificação desses artigos nos buscando entender os elementos inovadores
critérios estabelecidos, por se considerar, tal como e pertinentes às discussões atuais na área de
as autoras, que alguns conteúdos de psicologia são psicologia escolar e educacional, discutiram as
importantes não apenas para os psicólogos, mas concepções de psicologia escolar presentes em
também para os demais agentes educacionais, em projetos de lei. Nesse artigo, conclui-se que a
especial, o professor, já que todos devem estar legislação abrange uma variedade de concepções
envolvidos na construção da cidadania. teóricas e essas repercutem diretamente nas ações
Ainda sobre esse tema, Soares e e nos resultados dos trabalhos dos psicólogos,
Marinho-Araújo (2010) destacam a importância divergindo de acordo com a atuação crítica
da mediação do psicólogo escolar para de cada profissional e o contexto no qual ele
o desenvolvimento de competências dos está inserido.
educadores sociais. Elas abordam criticamente Partindo das concepções vigentes de
o modelo tradicional de atuação clínica dos psicologia escolar e educacional, alguns artigos
psicólogos escolares, destacando a importância apresentaram temas relativos à formação e ao
de intervenções com foco nas relações entre cenário atual de alguns contextos específicos.
os agentes escolares, principalmente o apoio Brasileiro e Souza (2010) analisaram a formação
ao processo de ensino e aprendizagem. de psicólogos diante das novas diretrizes de 2004
Dessa forma, os psicólogos escolares devem (BRASIL, 2004), no que se refere aos processos
potencializar uma atuação que contribua para educativos na Amazônia. Eles ressaltam alguns
a otimização das relações sociais institucionais. avanços em uma perspectiva emancipatória,
Schlindwein (2010), por sua vez, discutiu com pensamentos e ações questionadoras,
a relação entre teoria e prática no campo da perspectiva essa capaz de formar profissionais

676 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
críticos, preocupados e conectados com as preciso romper com paradigmas tradicionais e
transformações na área educacional. ampliar a visão das possibilidades de atuação.
A pesquisa realizada por Carvalho e Facci, Tessaro, Leal, Silva e Roma (2007),
Marinho-Araújo (2009) trata da realidade da Piotto e Alves (2011), Lessa e Facci (2011) e Bray
psicologia escolar no Maranhão. Por meio de um e Leonardo (2011) realizaram estudos sobre o
estudo bibliográfico sobre o tema, são levantadas fracasso e/ou as queixas escolares, tendo por
reflexões sobre o histórico e as tendências atuais base a teoria histórico-cultural e produções
no âmbito da formação e atuação do psicólogo recentes da psicologia escolar e educacional.
escolar nesse estado. As autoras mostram Apesar das diferenças existentes entre os
que, apesar das dificuldades de atuação nessa contextos e os participantes dessas quatro
área, as possibilidades de mudanças e novas pesquisas, os autores chegaram a algumas
configurações estão crescendo e contribuindo conclusões comuns. Eles defendem que a
para uma educação mais democrática. escola representa uma influente instituição na
A rede pública de ensino de Rondônia formação do sujeito e que os agentes escolares
foi estudada por Tada, Sápia e Lima (2010), devem estar aptos para educar para a cidadania.
que mostram que a inserção do psicólogo Essa literatura trata o fracasso escolar de forma
nesse âmbito é recente e que a maioria deles mais ampla e considera os diversos agentes
atua de forma clínica nas escolas, por exemplo, escolares, o que possibilita uma prática pautada
realizando atendimentos individuais por tempo em questões mais abrangentes e críticas.
prolongado. Os autores criticam esse tipo de Assim, faz-se necessário romper com
formação e atuação e sugerem uma prática uma visão tradicional, que afirma que o fracasso
pautada na teoria histórico-cultural. e/ou as queixas escolares estão diretamente
Souza, Ribeiro e Silva (2011) investigaram relacionadas apenas aos alunos. A escola
a prática do psicólogo escolar na rede particular também tem um papel importante na produção
de ensino da cidade de Uberlândia (MG). Os do fracasso escolar e diversos aspectos da
resultados constataram que a inserção desse instituição precisam ser analisados e repensados.
profissional no âmbito educacional privado Alguns autores procuram entender
reflete questões históricas da construção da o papel do psicólogo escolar e a realidade
psicologia escolar no Brasil. A atuação dos da escola a partir da concepção dos alunos.
psicólogos, nesse contexto, também é pautada Sant’Ana, Euzébios Filho, Lacerda Junior e
por visões tradicionais, resultantes de uma Guzzo (2009), ao realizarem um estudo com
formação desarticulada dos avanços nessa área estudantes do ensino fundamental, concluíram
de conhecimento. que, de maneira geral, diversas limitações
Outros temas pertinentes são apresentados foram encontradas na compreensão do papel do
nas publicações analisadas e levam à reflexão psicólogo no ambiente escolar. Diante disso, as
crítica sobre as possíveis formas de atuação autoras fazem uma crítica à visão predominante,
do psicólogo. As concepções e práticas do a do modelo clínico de intervenção. Elas
psicólogo escolar sobre a afetividade na relação destacam o surgimento de atuações de caráter
professor-aluno foram estudadas por Gaspar preventivo e comunitário e afirmam que isso
e Costa (2011). Esse estudo enfoca os aspectos precisa se consolidar na prática escolar.
preventivo, criativo e interdisciplinar que a Fontes e Lima (2011) realizaram uma
atuação do psicólogo no âmbito escolar exige. pesquisa com alunos do ensino médio da rede
Cabe ao profissional da área trabalhar com pública estadual de Porto Velho (RO) sobre
processos afetivos que envolvem os agentes a escola e o processo de aprendizagem. Os
escolares, possibilitando o desenvolvimento resultados evidenciam uma escola que tem
desses sujeitos. Para alcançar esse objetivo, é como foco apenas a transmissão do conteúdo,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 667-682, jul./set. 2014. 677


realizada por meio de aulas expositivas e material classificado no critério estabelecido
descontextualizadas das necessidades dos inicialmente de perspectiva crítica foi baixa
alunos. A psicologia escolar e educacional em relação ao número total analisado. Porém,
numa visão crítica, como apresentada pode-se perceber, nos artigos que apresentaram
pelas autoras, enfatiza a importância de se tal perspectiva, um sólido embasamento na
compreender o ponto de vista de todos os atores perspectiva histórico-cultural.
escolares sobre o cotidiano escolar, em suas Ratificando essa ideia, Arocho (2009) ex-
várias facetas. Considera-se que, a partir da plicita que os pressupostos histórico-culturais,
formação contínua e adequada, os psicólogos especialmente as contribuições de Vygotsky,
encontram fundamentos reais para sustentar Luria e Leontiev, configuram novos entendimen-
seus planejamentos e novas formas de atuação, tos sobre a realidade, o conhecimento e o su-
preocupados com a dinâmica da instituição jeito, sendo ponto de partida para a articulação
e com as concepções de todos os agentes entre a psicologia social e a psicologia escolar e
envolvidos no processo educacional. educacional numa perspectiva crítica e psicos-
social. A teoria histórico-cultural destaca que a
Considerações finais atividade psíquica superior tem origem social e
suas formas de expressão resultam das condições
Esta pesquisa propôs mapear as publi- históricas e culturais de sua produção. Dessa for-
cações de Psicologia Escolar e Educacional, ma, os processos de ensino-aprendizagem que
revista da Associação Brasileira de Psicologia ocorrem em contextos sociais, tais como a es-
Escolar e Educacional (ABRAPEE), no período cola, viabilizam a apropriação das ferramentas
de 2007 a 2011, com foco nos estudos que apre- culturais e promovem a formação de consciência
sentassem discussões críticas sobre a psicolo- e a constituição de subjetividade (VYGOTSKY,
gia escolar educacional, pautadas na psicologia 2007; AROCHO, 2009; OLIVEIRA; MARINHO-
histórico-cultural, compreendida aqui como ARAÚJO, 2009; OVEJERO, 1996).
uma das abordagens críticas da psicologia, que Os autores desse estudo consideram
propõe uma ruptura com o modelo clínico de que a teoria histórico-cultural, enquanto
atuação. Inicialmente, pode-se observar que, uma perspectiva da psicologia escolar e
quando se pretende realizar uma análise da educacional crítica, fornece ferramentas
produção científica em uma determinada área teóricas e metodológicas que permitem ao
da psicologia, diversos aspectos devem ser con- psicólogo, em seu contexto de trabalho, atuar
siderados. Dentre eles, cabe destacar o acesso junto às demandas concretas, na perspectiva
aos materiais a ser analisados. Por vezes, as bi- de adotar ações que expressem compromisso
bliotecas institucionais não os disponibilizam, social com uma escola mais igualitária, mais
o que revela a importância das bases de dados justa e que, de fato, atende a sua função social.
on-line, tal como aquela utilizada nesta pesqui- Defendem ainda que essa abordagem crítica
sa, para o avanço da produção do conhecimen- fundamenta reflexões sobre práticas mais
to científico. condizentes com a realidade social na qual
No que se refere especificamente à cada profissional está inserido, na tentativa
análise dos artigos, constatou-se que muitos de promover mudanças que ajudem a traçar
apresentam questionamentos sobre e críticas um caminho para uma atuação democrática e
ao sistema educacional em diferentes esferas. emancipatória. Nesse sentido, a revisão desses
Todavia, foram analisados exclusivamente trabalhos configura-se como importante por
os trabalhos que discutiam a atuação do ser mais um instrumento de fundamentação
psicólogo escolar e educacional na perspectiva e de questionamento, tanto na formação
crítica, e concluiu-se que a quantidade de acadêmica (graduação e pós-graduação) de

678 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
alunos de psicologia e de áreas afins, quanto Por fim, considera-se importante men-
na formação continuada de profissionais já cionar que o levantamento aqui apresentado
inseridos no campo de trabalho. não permite capturar o movimento de eferves-
Acrescenta-se que, na trajetória de cência e inquietação dos pesquisadores da área
construção e consolidação na área, foram educacional, dentre outros aspectos, por ser a
apresentadas fortes críticas e reivindicações, escola uma arena complexa, contraditória, que
entre os próprios pesquisadores desse campo, sofre a interferência necessária e profícua do
sobre a necessidade de uma reestruturação plano sócio-histórico e político que a demarca.
dos pressupostos teórico-metodológicos que Assim, espera-se que a presente pesquisa possa
orientavam a formação (inicial e continuada) e contribuir para reflexões acerca do significado
a prática do psicólogo nos meios educacionais que tem revelar o que já foi pensado, produ-
(PATTO, 1997; MEIRA, 2003; GUZZO; zido e sentido sobre uma determinada área do
MEZZALIRA; MOREIRA; TIZZEI; SILVA NETO, conhecimento, podendo, dessa forma, não só
2010; MALUF, 2010; NOVAES, 2010; GUZZO, apontar caminhos percorridos, mas também
2011). Foi dessa inquietação que começou a sinalizar novas possibilidades de atuação, que
ser observado o resgate da teoria histórico- respondam às demandas atuais do campo edu-
cultural, pela alegação de que o indivíduo cativo. E, ainda, integrar um conjunto de estu-
não pode ser explicado subtraindo-lhe a dos acerca do fenômeno em foco, identificando
dimensão sociocultural e histórica e que a temas que carecem de evidências, auxiliando,
escola, enquanto célula social, expressa as de modo geral, na orientação de pesquisas fu-
contradições e movimentos do sistema político turas que possam continuar contribuindo com
e educacional. a produção do conhecimento.

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Recebido em:18.06.2013

Aprovado em: 11.12.2013

Laísy de Lima Nunes é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba.

Simone Salviano Alves é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal da
Paraíba.

Jaqueline Vilar Ramalho é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da UFPB.

Fabíola de Sousa Braz Aquino é professora adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social da UFPB.

682 Laísy de L. NUNES; Simone S. ALVES; Jaqueline V. RAMALHO; Fabíola de S. B. AQUINO. Contribuições da...
Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o
padrão de pesquisa do CRPE-SPI

Marcos Cezar de FreitasII

Resumo

Este artigo analisa como o Centro Regional de Pesquisas


Educacionais de São Paulo (CRPE-SP) abordou os temas desem-
penho e adaptação da criança pobre à escola. O foco incide so-
bre os anos 1956-1963 e dedica especial atenção às manifestações
de Dante Moreira Leite e de Luiz Pereira a respeito do assunto. O
argumento central é o de que a transformação da cidade de São
Paulo em grande metrópole tornou-se o tema articulador com o
qual ambos os autores pesquisaram o desempenho e a adaptação
de crianças em idade escolar, especialmente aquelas identificadas
como suburbanas. Uma nova cultura urbana desafiava a estrutura
da escola e, com base no legado de Antonio Candido e de Florestan
Fernandes, tais questões foram investigadas com um novo padrão
de pesquisa, que se tornou marca do CRPE-SP naquele momento.
Esse novo padrão de pesquisa abriu espaço para que novos recur-
sos analíticos fossem mobilizados para o estudo da inteligência da
criança em situação escolar. Foram demonstradas as insuficiências
dos parâmetros biológicos para a compreensão do fenômeno da
reprovação, que tinha números expressivos. Para além de uma nova
compreensão antropológica a respeito da interação entre a cultura
escolar e os modos de viver das periferias urbanas, o padrão de pes-
quisa estabelecido enriqueceu o repertório de análises sociológicas
sobre a expansão do número de vagas escolares na cidade de São
I- Este artigo se baseia no projeto de Paulo. Para aquela sociologia da educação que então se renovava,
pesquisa denominado “A criança pobre o caráter fortemente excludente da reprovação escolar foi demons-
na economia das trocas incompletas: as
formas sociais do tempo escolar nos velhos
trado de forma magistral.
e novos urbanismos”, financiado pelo
Conselho Nacional de Desenvolvimento Palavras-chave
Científico e Tecnológico (CNPq)
II- Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil. Crianças pobres — Cultura urbana — Escolarização — Padrão de
Contato: marcos.cezar@unifesp.br
pesquisa — Intelectuais.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590 683
Performance and adaptation of poor children to school:
the research pattern of CRPE-SP I

Marcos Cezar de FreitasII

Abstract

This article examines how Centro Regional de Pesquisas


Educacionais de São Paulo (CRPE-SP – Sao Paulo Regional Center
for Educational Research) addressed the issues of performance and
adaptation of poor children to school. It focuses on the years 1956-
1963 and devotes special attention to the expressions of Dante
Moreira Leite and Luiz Pereira on the subject. The central argument
is that the transformation of Sao Paulo city into a great metropolis
became the articulating theme with which both authors investigated
the performance and adaptation of school-age children, especially
those identified as suburbanIII. A new urban culture challenged the
school structure and, based on the legacy of Antonio Candido and
Florestan Fernandes, such questions were investigated with a new
pattern of research, which became the mark of CRPE-SP at that
time. This new research pattern paved the way for new analytical
resources to be mobilized to study the intelligence of children at
school. The shortcomings of biological parameters for understanding
the phenomenon of failure and its significant numbers were
demonstrated. In addition to a new anthropological understanding
about the interaction between the school culture and ways of living
of the urban fringes, the research pattern established enriched the
repertoire of sociological analyzes of the expansion in the number
of school places in Sao Paulo city. For that sociology of education
I- This article is based on a research which then renewed, the strongly exclusionary nature of school
project called “A criança pobre na failure was demonstrated in a masterly manner.
economia das trocas incompletas:
as formas sociais do tempo escolar
nos velhos e novos urbanismos” Keywords
(The poor child in the incomplete
exchange economy: the social forms
of school time in the old and new Poor children — Urban culture — Schooling — Research pattern —
urbanisms), funded by Conselho Intellectuals.
Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq - National Council
for Scientific and Technological
Development).
II- Universidade Federal de São Paulo,
São Paulo, SP, Brazil.
Contact: marcos.cezar@unifesp.br
III- Translator’s note: In Brazil, the
meanings of the words suburbs and
suburban are negative.

684 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091590 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014.
Introdução da consolidação da excelência implícita ao
padrão recebido.
Muito recentemente, Beisieguel (2013) Neste artigo, quero concordar com a
publicou importante depoimento acerca dos leitura histórica e com a argumentação central
primeiros tempos da pesquisa em sociologia da do autor. Busco também acrescentar um nome
educação na Universidade de São Paulo. Nesse com a intenção de aproximar a riqueza desse
memorial, o autor retoma sua experiência como memorial dos estudos a respeito da infância,
ex-aluno e depois professor de sociologia da os quais têm recorrido à história da pesquisa
educação na mesma Instituição e acrescenta educacional para compreender um pouco de seus
informações acerca de sua experiência no próprios rumos (FREITAS; ZANINETTI, 2012).
Centro Regional de Pesquisas Educacionais de No âmbito dos estudos a respeito
São Paulo, o CRPE-SP1. da criança e infância no Brasil, tornou-
Num processo de formação de um se fundamental compreender os contextos
vocabulário sociológico próprio, menciona a nos quais alguns padrões de pesquisa foram
importância do livro Sociologia educacional, definidos. O Centro Regional de Pesquisas
de Fernando de Azevedo, mas reconhece nas Educacionais de São Paulo, CRPE-SP, é um
contribuições de Florestan Fernandes e Antonio capítulo muito relevante nessa história.
Candido os mais densos pontos de partida A argumentação aqui apresentada se
para a definição do padrão de investigação da baseia em projeto de pesquisa que utilizou
sociologia da educação brasileira. a documentação do CRPE-SP e que, por
Dois ensaios produzidos por Antonio isso, adquiriu familiaridade com o território
Candido, um publicado como separata do intelectual percorrido por Beisiegel. Se o autor
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – A rememorou a formação de padrões e indicou as
estrutura da escola (1956) – e outro publicado fundações da sociologia educacional brasileira,
na revista Pesquisa e Planejamento, do Centro aqui, pretendo indicar algumas repercussões
Regional de Pesquisas Educacionais de São desse padrão adquirido na forma de estudar a
Paulo – “As diferenças entre o campo e a cidade aproximação entre escola e crianças pobres.
e o seu significado para a educação” (1957) – Em minha opinião, se aquelas influências
são exemplos relevantes daquela nova forma de intelectuais indicaram o caminho, o modo de
se compreender a escola e a vida escolar. caminhar dos que se deixaram influenciar, por
Candido propôs a elaboração de um trato sua vez, sofreu o impacto da especificidade de
sociológico específico para a realidade escolar, alguns temas que o CRPE-SP estimulou como
alertando para a complexidade da vida social centrais para a pesquisa educacional. Nesse
interna em cada unidade. Esse procedimento, no sentido, é necessário também lembrar que o
seu entender, induziria o observador a perceber CRPE-SP era um desdobramento regional de
e a relatar o que cada escola possuía de único um projeto de grande envergadura, que era o
em relação às demais (CANDIDO, 1956, p. 1-2). Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
Na opinião de Beisieguel (2013), Luiz (CBPE), sediado no Rio de Janeiro.
Pereira seria o herdeiro exemplar desse legado, No âmbito do CRPE-SP, uma conexão
tornando-se não somente responsável pela virtuosa se estabelecia, ligando sólidos
produção de textos seminais que se tornaram procedimentos de pesquisa com temas férteis e
clássicos, mas também expressão singular inovadores. Esse cenário favoreceu a produção
de importantes estudos acerca da adaptação da
1- O CRPE-SP foi criado pelo mesmo Decreto n. 38.460 de 28/12/1955 criança à escola e vice-versa.
que criou, no Rio de Janeiro, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais,
CBPE, por iniciativa de Anísio Teixeira. Foi vinculado à Universidade de São Tal como Beisiegel indica, em Luiz Pereira,
Paulo em 22/05/1956. de fato, podemos reconhecer a excelência do

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 685


padrão que se estabelecia, mas, na perspectiva Williams denominou de “cultura urbana”
deste artigo, também é necessário acrescentar (WILLIAMS, 1983; 1995).
o nome de Dante Moreira Leite para que seja Mas, para pensarmos como Williams,
possível compreender o que de tão excelente temos de reconhecer que a escola que
aconteceu quando parâmetros inovadores se disseminamos no transcorrer do século XX
encontraram com temas ligados ao universo não pode ser entendida somente como fato
das tensões estabelecidas entre escola e crianças urbano. Trata-se de compreendê-la também,
urbanas de periferias. e principalmente, como fator daquilo que se
No âmbito dessas tensões, ambos os configurou como o urbano entre nós. Somos
autores apresentaram questões decisivas desafiados a pensar a disseminação da escola no
para a renovação nos estudos a respeito da Brasil como um dado de autoria, ou seja, somos
inteligência da criança e das situações em chamados a reconhecer que foi também com a
que a permeabilidade da escola às crianças de escola que fizemos as cidades que fizemos.
periferia parecia ser bastante reduzida. Escola e cidade revelaram-se
componentes de configuração recíproca
A importância do tema (FREITAS; BICCAS, 2009). No Brasil
urbanização naquele contexto republicano, não se entende uma sem abordar
a outra. Esse é um dado muito relevante para o
No transcorrer do século XX, o Brasil que se pretende recuperar neste artigo.
experimentou intenso processo de urbanização. Na passagem da década de 1950 para
Na década de 1950, a população de camponeses a década de 1960, o agigantamento das
ainda era maior do que a urbana. No campo, cidades e a consequente produção da escola de
tínhamos aproximadamente 33 milhões de massas ocuparam lugar de destaque no debate
pessoas e nas cidades, aproximadamente 19 travado por intelectuais que concorriam para
milhões (DÉAK; SCHIEFFER, 2004, p. 11). influenciar aquilo que, no âmbito do CBPE,
Mesmo assim, na metade do século do Rio de Janeiro, e do CRPE-SP, tornou-se
XX, não havia dúvida de que a “estabilidade um singular território de disputa: o perfil da
granítica” do grande país rural, para usar uma pesquisa educacional.
expressão de Oliveira Vianna que impressionou São muitos os registros presentes
Gilberto Freyre, estava se decompondo na documentação remanescente dessas
(FREYRE, 1958). instituições que nos permitem encontrar,
O país se urbanizava e, em alguns casos, nas manifestações de seus protagonistas,
como em São Paulo, acelerava-se um processo representações da escola como problema
de agigantamento que resultaria, como sabemos, urbano e representações da cidade como
em um dos exemplos mais significativos de problema escolar (FREITAS, 2001; 2005).
passagem da condição de pequeno burgo, vivida Naquele contexto, pesquisar educação era
até o século XIX, para a de metrópole, exemplo fazer pesquisa social (MENDONÇA; BRANDÃO,
mundial de concentração urbana com números 1997). Tanto é assim que o principal impresso
muito expressivos, que se multiplicaram de divulgação das atividades do CBPE, a Revista
exponencialmente no transcorrer da segunda Educação e Ciências Sociais, indicou inúmeras
metade do século XX. vezes que o sentido da pesquisa educacional só
A expansão de vagas escolares esteve no podia ser o de realizar pesquisa social.
coração dos desafios suscitados na crescente Tanto no CBPE quanto no CRPE-SP,
urbanização que tivemos. Quer como tema, a pesquisa educacional derivava da pesquisa
quer como problema, a escola demonstrava social e era no bojo dessa derivação que se
estar na essência da produção daquilo que travavam intensas discussões a respeito do

686 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
padrão de investigação a ser consolidado. Essas O CBPE e o CRPE-SP eram espaços
discussões permeavam a definição da relevância institucionais que estimulavam a presença de
de temas, objetos e incidiam principalmente pesquisas sociológicas e antropológicas junto aos
sobre as perspectivas a adotar. pesquisadores educacionais. Isso possibilitava
Os debates acerca das perspectivas verificar a sobrevivência de socializações arcaicas
a adotar marcaram os projetos focados no (os chamados velhos urbanismos) e compreender
tema da integração da escola na cidade. Com o impacto dissolvente da escola no modo de
números crescentes, essa integração tinha na viver das grandes cidades (os novos urbanismos).
sua complexa diversidade um aspecto a desafiar Ambos os centros de pesquisa, especializados
a estabilidade de temas e métodos. em educação, procuravam assegurar um padrão
Quando determinado tema se estabilizava de cientificidade baseado principalmente na
na agenda de pesquisa, isso significava que autoridade descritiva dos estudos de caso.
etapas prévias de embate intelectual tinham sido No universo institucional tanto do CBPE
vencidas. Para muitos daqueles intelectuais, o quanto do CRPE-SP, o estudo de caso despontava
que acrescentava dificuldades interpretativas como padrão considerado necessário para
àquela diversidade era a percepção de que que a singularidade da pesquisa educacional
ocorria inevitavelmente a passagem do rural pudesse ser reconhecida e afirmada dentro de
para o urbano. um cenário em que as disputas intelectuais
Nesse sentido, para usar um dos jargões se intensificavam e ganhavam repercussão
do CBPE, a passagem do rural para o urbano nacional. O estudo de caso se firmou como
fazia com que cada cidade pudesse ser entendida padrão de pesquisa entre aqueles que passaram
como laboratório de observação cultural. Estava por ambos os centros e, no bojo dos mesmos
em disputa a produção de sentido sobre o quê e acontecimentos, a relação entre cidade e escola
como observar (XAVIER, 2000). foi abordada com diferentes apropriações da
Essa situação conferia ao adjetivo palavra adaptação.
suburbano uma condição especial. Cultura O objetivo principal deste artigo,
suburbana era, naquele contexto, um lugar portanto, é elucidar como o desempenho e a
simbólico onde permaneciam instalados adaptação de crianças chamadas suburbanas
personagens de um tempo que ainda estava à escola, escola essa que chegava às periferias,
para ser dissolvido no encontro com a cidade. foram temas apropriados por Dante Moreira
As periferias das grandes cidades eram, de Leite e Luiz Pereira, que atuaram no CRPE-SP.
certa forma, apreendidas com representações No CRPE-SP, produzia-se uma abordagem
do encontro entre racionalidade urbana e que era, simultaneamente, a dimensão regional
rusticidade rural, estando a segunda condenada das pesquisas do Departamento de Pesquisa
a dissolver-se na expansão da primeira. Educacional e de Pesquisa Social do CBPE do
A questão da complexa diversidade Rio de Janeiro e a dimensão de afirmação de
do país tornou-se um tema indissociável das um padrão próprio de pesquisa. A riqueza da
preocupações que acompanhavam aqueles documentação preservada2 possibilita registrar
intelectuais a respeito do que eles mesmos alguns aspectos singulares de uma cena que
denominavam “velhos e novos urbanismos” se tornou capítulo indispensável para uma
(PEREIRA, 1959). A referência a velhos e sociologia histórica da adaptação da criança à
novos urbanismos se recriava cada vez que se escola no Brasil.
acentuava a importância de adotar padrões de
pesquisa adequados para garantir que realidades 2- A documentação do CBPE está preservada no Programa de Estudos
e Documentação Educação e Sociedade, da Faculdade de Educação da
urbanas emergentes fossem conhecidas de perto, Universidade Federal do Rio de Janeiro, e a do CRPE-SP no Centro de Memória
quando convertidas em objeto de pesquisa. da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 687


Tensões na difusão da escola singular relacionada ao tema escolarização. A
irradiação das práticas escolares, no bojo do
O alastramento de escolas pelas processo que agigantava o tecido urbano, pro-
metrópoles, expressão típica dos Boletins do porcionava àqueles debates novas apropriações
CBPE, ensejou a produção de surveys, ensaios e do tema da adaptação da criança à escola.
projetos voltados para a experiência de infância Esse tema já estava presente desde pelo
em contextos de expansão territorial urbana menos o final do século XIX, nas cidades do
(HAVIGHURST, 1957, p. 21). Rio de Janeiro e São Paulo. Mas a inflexão que
Crianças pobres eram personagens novas o CBPE e o CRPE-SP trouxeram à questão diz
nos também novos prédios escolares, os quais respeito à percepção desenvolvida em ambos os
prenunciavam um tempo em que a educação lugares de que a “escola estava sendo deslocada”
na forma escolar tornava-se também conquista (PEREIRA, 1967) e que, por isso, o próprio tema
das bordas, das franjas de cidades que estavam da adaptação deveria ser pensado à luz dessa
prestes a experimentar intensa explosão expressiva diferença.
demográfica urbana. As salas de aula instaladas em locais pe-
As histórias do CBPE e do CRPE-SP riféricos ou interioranos tornaram-se represen-
oferecem um ângulo especial para o estudo da tações de cenários nos quais aqueles intelectu-
história da educação brasileira, especialmente ais imaginavam assistir à “diluição do passado”
no que diz respeito ao impacto da presença da em práticas de racionalização modernizadora
criança pobre em meios escolares urbanos. (KLINEBERG, 1956; PEREIRA, 1967).
Nas décadas de 1950 e 1960, foi possível Por isso, a discussão acerca da adaptação
identificar certo embate entre os que se valiam da criança à escola não era o mesmo em
de repertórios de avaliação e mensuração da relação às discussões do início do século XX
inteligência da criança, utilizando parâmetros ou da década de 1920, pródiga em reformas
considerados válidos desde a década de 1920, e educacionais. O tema foi reapropriado e isso
aqueles que afirmavam que, se a escola passava proporcionou àqueles intelectuais apostar num
a abranger novos perfis populacionais, seus objeto de pesquisa permeado pelo interesse
instrumentos de avaliação deveriam também em decifrar o modus operandi da escola,
ser renovados para que não se convertessem em vislumbrando-a por dentro, como encarecia
instrumentos de expulsão da criança pobre dos Antonio Candido desde 1956.
territórios escolares. Dessa forma, especialmente em São Paulo,
Foi Antonio Candido quem chamou o CRPE-SP converteu cada sala de aula catalogada
atenção para a presença de “inteligências em seus registros em laboratório de análise social,
rústicas” nas cidades, numa referência ao fazendo, à sua maneira, aquilo que o CBPE fazia
“choque de mentalidades” que estava em com as chamadas cidades laboratório, em sentido
andamento (CANDIDO, 1957). mais amplo (XAVIER, 2000).
Desde o início, o projeto CBPE mobilizou Se, no CBPE, as cidades laboratório eram
intelectuais brasileiros e estrangeiros com lugares considerados ainda arcaicos, ainda
afinidades metodológicas e temáticas. Mas essas não tocados pelas dinâmicas representadas
afinidades constantemente se desmanchavam como modernas, no CRPE-SP, as salas de aula
nas situações que exigiam definição do objeto das escolas públicas eram representadas como
de pesquisa a ser delineado como de interesse locais que ainda conservavam as tensões entre
comum. Eram afinidades frágeis e vulneráveis o rural e o urbano (AZANHA, 1959).
às demandas por alinhamento político. Essas tensões eram consideradas visíveis
Foi nos domínios do CRPE-SP que os e avaliáveis, desde que fosse possível investigar
estudos urbanos suscitaram uma novidade o conjunto de respostas que cada criança

688 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
pudesse oferecer aos estímulos escolares que O corpo e a inteligência das crianças
passavam a fazer parte do cotidiano. foram focados com lentes antropológicas e
Os estudos a respeito do corpo e do sociológicas, tanto no Rio de Janeiro como
intelecto da criança, assim mesmo, com a em São Paulo. Naquele contexto, muitas vezes
separação entre a conformação corporal e a sociologia, a antropologia e as técnicas
a intelectual, eram tomados como parte do etnográficas eram mobilizadas do conjunto de
processo de decifração dos efeitos do modo de saberes identificado como necessário para o
viver sobre as possibilidades de aprender. desvendamento dos efeitos da escolarização no
Quem manuseia a documentação corpo e no intelecto da criança.
conservada do CRPE-SP percebe que, em Por isso, reconhecia-se que ampliar
relação a esse tema, o padrão de investigação a abrangência populacional da escola
repercutia a presença de Florestan Fernandes na significava também trazer para o “território
geografia política e intelectual que demarcava da homogeneidade e dos rituais de trabalho
o fato de o centro regional de pesquisa ter sido simultâneo” (FREITAS, 2011; 2013) crianças
alocado na Universidade de São Paulo. cujas particularidades pessoais e sociais
Florestan foi um dos intelectuais que desestabilizariam duas premissas básicas da
insistiu para que os estudos a respeito da educação na forma escolar: 1) turmas por faixa
infância se sobrepusessem aos estudos acerca etária organizadas em 2) séries anuais.
das crianças e suas dificuldades escolares. Ou A consolidação da escola seriada e sua
seja, de suas intervenções, o CRPE-SP recebia multiplicação pelo país na primeira metade
constantes estímulos para que a análise do do século XX foi um processo permeado pela
modo de viver predominasse sobre as análises de presença de intelectuais que se valeram de
desempenho. Sua familiaridade com a questão aferições, testes e medidas com as quais se
não se originava em interesses pedagógicos detectava a presença maior ou menor dos
(FERNANDES, 1963). indícios de anormalidade entre as crianças que
Entre 1942 e 1959, Florestan Fernandes chegavam à escola (MONARCHA, 1992; 1997;
investigou e publicou estudos a respeito de 2001; 2005; 2008a; 2008b).
folclore e mudanças sociais na cidade de São No CBPE e no CRPE-SP, o período de
Paulo, os quais foram reunidos em livro que se generalização da escola pública republicana no
tornou referência no assunto desde o início da Brasil foi identificado como uma fase (palavra
década de 1960 (FERNANDES, 1961; 2004). típica da década de 1950) em que, ao mesmo
É importante notar o esforço de Florestan tempo, se consolidavam modelos e se reagia à
Fernandes no sentido de resgatar a importância chegada da criança à escola em números mais
do folclore para a compreensão sociológica significativos.
das mudanças sociais que estavam em curso Essa reação entrou novamente em
na cidade de São Paulo. A análise que o autor questão a partir de 1957, com a aceleração
empreendeu acerca da “a cultura de folk, na expansão de vagas públicas na cidade
em desagregação, e a cultura civilizada, em de São Paulo. Tratava-se de compreender a
emergência e expansão” legou um rico e singular incorporação na escola de crianças de locais
material a respeito da configuração cultural ermos, periféricos, suburbanos e que, por isso
da vida urbana brasileira (FERNANDES, 2004, mesmo, punham em risco os fundamentos
p.11), especialmente no que toca ao até então homogeneizantes da escola seriada.
pouco estudado nexo entre cultura, infância e Para utilizar mais uma vez a expressão
cidade. Essa tríade reapareceu fortemente no que Antonio Candido construiu no âmbito do
CRPE-SP pelas mãos de Dante Moreira Leite e CRPE-SP, pode-se perguntar: qual seria o grau
de Luiz Pereira. de (in)compatibilidade entre “mentalidades

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 689


urbanas e rurais” no encontro que, por A expansão da escola pública movia-se
suposto, a escola inevitavelmente acabaria em direção às periferias de forma paradoxal e
proporcionando? (CANDIDO, 1957). ambígua. Menciono paradoxo e ambiguidade
No Rio de Janeiro, na documentação porque, ao mesmo tempo em que a ampliação
catalogada junto ao CBPE, percebe-se que do acesso indicava vitórias inerentes à
investigações acerca das expectativas foram democratização na ocupação dos lugares onde
inúmeras vezes organizadas3. Uma das os bens da cultura escolar se dão à partilha,
representações mais encontradas acerca do uma série de subordinações sociais restringia o
que as cidades tinham a oferecer para além do alcance desse ganho político.
trabalho assalariado era a descrição do mundo Essa restrição na qualidade do ganho se
urbano como lugar que oferece “gratuitamente deu na medida em que a expansão muitas vezes
escola do governo” (FREITAS; BICCAS, 2009). foi assimilada socialmente como conquista de um
Escola e cidade tornavam-se gradualmente direito, mas também foi percebida como aquisição
referências recíprocas. Percebe-se que algumas de um serviço precário oferecido às pessoas
décadas após 1930 a escola pública tornou-se consideradas muitas vezes indistintamente como
uma complexa personagem urbana com quase pobres que vivem em situações precárias e que,
nenhuma familiaridade com o lastro rural da portanto, não têm intelecto, só estômago.
cultura brasileira. O percurso para tornar o O fato é que a expansão na oferta de
país predominantemente urbano demonstrava vagas que estava em marcha desde a década de
ser um caminho sem volta, ainda que, naquele 1930 não estava conduzindo crianças e jovens
momento, os pesquisadores de ambos os centros para instalações palacianas arquitetadas pelos
tivessem diante de si números diferentes do que primeiros republicanos, como se sonhava no
temos hoje. O Brasil era ainda, como nos ensinou início do século XX, mas sim para instalações
Lima (1999), um grande sertão. planejadas para o aluno número, o aluno antes
O deslocamento humano sempre provocou de tudo contabilizado como item orçamentário.
perplexidade. O impacto da escolarização sobre Esse processo, na forma como se dava,
esse “povo da raiz” (HUTCHINSON, 1957, p. deixava no passado ainda muito próximo
37) foi uma questão permanente nos anos mais um modelo de professor, um modelo de
férteis do CBPE e do CRPE-SP. Mas nesse processo prédio escolar e certa ordenação presente nos
mantivemos em “estado de alerta” (LEITE, 1992) projetos de distribuição da escola nas cidades,
uma espécie de aversão generalizada àqueles sobretudo as de grande porte. Essa situação
que se deslocaram dos muitos sertões para os não passava despercebida a Dante Moreira
subúrbios das cidades grandes. Leite e a Luiz Pereira e neles repercutiam tanto
Nesses subúrbios, a escola também as lições de Antonio Candido, como também
foi conquistada como direito, mas seu valor as de Florestan Fernandes.
sociopolítico foi depreciado. Depois do impacto A história da expansão da escola pública
da escola, os estudos de mobilidade social estão no Brasil se fez acompanhar da produção de
entre os mais expressivos nos Departamentos receituários sobre o que fazer com crianças e
de Pesquisa Social do CBPE e do CRPE-SP, adolescentes pobres. Na década de 1950, os
quantitativa e qualitativamente (FERNANDES, conceitos básicos utilizados para enfrentar
1963; HAVIGHURSTa, 1957; PEARSE, 1957). essa questão eram assimilação e adaptação
(LOPES, 1959). Mas, no âmbito do CRPE-SP,
3 - Um exemplo de texto que repercutia a iniciativa sempre presente de
estudar expectativas pode ser indicado no ensaio “A antropologia social o uso do conceito de adaptação predominava
e o sistema educacional”, que Fred Eggan publicou no número 10 da sobre o de assimilação.
revista Educação e Ciências Sociais, em 1959, e que era um dos principais
instrumentos de divulgação de pesquisas realizadas no CBPE. Outro No CBPE, o analfabetismo era indicado
exemplo pode ser recolhido em Séguin, 1959. como peça fundamental nos diagnósticos que

690 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
explicitavam as causas do nosso atraso social. muitas vezes refém de plataformas políticas
Já no CRPE-SP, ao redor da noção de atraso, que propunham que a escola pública atuasse
giravam representações do anacronismo de como força centrífuga, capaz de conter a
nossas estruturas educacionais, que nem bem rudeza das periferias em seu próprio território
chegavam às periferias e já eram consideradas (MOREIRA, 1957).
incompatíveis com “o tipo humano lá instalado” Os temas comunidade e subúrbios
(LEITE, 1959; PEREIRA, 1959; GOUVEIA, 1957; eram mobilizados para justificar a elaboração
MOREIRA, 1957). de muitos projetos voltados à verificação do
No CBPE, as metáforas alusivas às impacto da chegada da educação escolar entre
raízes favoreciam estudos acerca do entorno da aqueles que, via de regra, passaram a ser vistos
escola, com base principalmente nos estudos como pessoas que não estavam preparadas para
de comunidade. Já no CRPE-SP, despontavam a rigidez das rotinas escolares.
estudos a respeito da quebra de padrões No Rio de Janeiro, a expressão crianças
culturais que filhos escolarizados introduziam de comunidades tornou-se quase um jargão,
no cotidiano das famílias suburbanas, o um complemento necessário à descrição de
que favorecia a utilização da categoria alunos de determinados locais das cidades. Os
racionalização de atitudes (BASTIDE, 1971; debates relacionados às possíveis adaptações
LAMBERT, 1973; FREITAS, 2005). da escola às realidades locais ensejavam aos
No transcorrer do século XX, o tema pesquisadores colocar em dúvida se a escola
da homogeneidade (ou da sua falta) firmou-se que chegava às margens, às franjas das cidades
como questão estratégica nos momentos nos era, ainda, a mesma instituição e se era capaz
quais os debates a respeito da equalização de de “surtir os mesmos efeitos” (CBPE, 1955). Em
oportunidades influenciaram diretrizes para São Paulo, a expressão que se generalizava era
a organização da escola, suas avaliações, crianças de periferia (FERNANDES, 1963).
sua abertura à circulação de métodos e sua Deve-se lembrar que a própria conceitua-
apropriação de estratégias pedagógicas. ção de comunidade, subúrbio, e de periferia rece-
A planta institucional dos anos 1950 e beu a contribuição decisiva do CBPE, pelos estu-
1960 não era a mesma que aquela de 1929, o dos específicos de João Roberto Moreira (1957),
que permitiu a Lourenço Filho elaborar seus e do CRPE-SP, pelos estudos também específicos
Testes para verificação da maturidade para a de Luiz Pereira (1959; 1967).
escrita (1929). Se o objetivo de Lourenço Filho Para usar uma linguagem familiar
foi o de consolidar critérios para a organização aos pesquisadores do CRPE-SP, parecia-lhes
de classes homogêneas, ou seja, para solidificar ser possível observar a escola em meio aos
as fundações da escola seriada no Brasil, no chamados sertões internos das grandes cidades,
âmbito do CBPE e dos CRPEs, a própria noção de nos seus locais de borda, nos quais o moderno
homogeneidade passou a ser posta em questão. da gramática urbana não se fixara ainda
Especificamente no CRPE-SP, esse fundamento e o arcaico dos resíduos rurais não estava
passou a ser muito relativizado. plenamente dissolvido (FREITAS, 2001).
Quando inicialmente planejada para Tais situações estimularam expedientes
as regiões centrais das grandes cidades, no de aplicação de escalas de verificação de matu-
amanhecer da República, a escola era representada ridade e de escalas de verificação de vocabulá-
como força centrípeta necessária para atrair para rio familiar, para além de outros expedientes de
os seus domínios as crianças que deveriam ser escalonamento das dificuldades individuais e
civilizadas nos moldes de uma civilização escolar. coletivas. Mas foi justamente nessas condições
A chegada gradual da instituição que o padrão assumido por Dante Moreira Leite
às periferias das grandes cidades tornou-a e Luiz Pereira em São Paulo fez diferença.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 691


O padrão de análise e sua quantum de escolarização o aluno trazia consigo,
incidência sobre a avaliação sem prender-se em demasia na avaliação de zero
a dez” (CRPESP, 1959, p. 131-132).
As vagas escolares se expandiam e a Essas escalas de escolaridade tinham
chamada diversificação cultural dos estratos que a intenção de proporcionar ao professor
experimentavam a aproximação em relação ao orientação pedagógica para que o nível cultural
mundo escolar causava, no âmbito do debate de cada família pudesse ser apreendido. Em São
intelectual, oscilações no sentido atribuído à arte Paulo, as escalas de escolaridade foram, por
de medir a inteligência. A hora era de dúvida: assim dizer, festejadas, como se representassem
como compreender o encontro entre aquilo que o ponto final para os estudos de inteligência
era chamado de cultura elaborada, com práticas que ainda manejavam conceitos e metodologias
citadinas ainda impregnadas de rusticidade? herdeiros de certa antropologia pedagógica que
O desafio gerado pelo aluno que não tinha conexões genealógicas com a antropologia
aprende mobilizava recursos analíticos os mais criminal do século XIX.
diversos, em nome do esclarecimento a respeito Dante Moreira Leite, a partir de 1958, co-
dos dramas do intelecto quando submetido a meçou a insistir para que constasse, do progra-
condições adversas. Inteligência tornava-se ma do CBPE, a avaliação do sentido econômico
uma palavra esvaziada na forma de se referir que a reprovação escolar adquiria na sociedade
ao desempenho escolar que os atores do CBPE e brasileira (LEITE, 1959; p. 15), considerando a
CRPE-SP propunham. O movimento centrífugo reprovação na forma como se dava, antes de
das vagas escolares não distribuía tudo o que tudo, instrumento de exclusão social.
podia e não recolhia daquelas crianças o que Mas não seria correto restringir essa nova
podia recolher. percepção somente aos domínios do CRPE-SP.
No CRPE-SP, Dante Moreira Leite, que No Rio de Janeiro, essa troca de sinais pode ser
sempre fez questão de colocar em dúvida o percebida nos inúmeros estudos que reivindicavam
alcance de propostas de análise do desempenho uma etnografia própria e necessária para estudar
excessivamente focadas na mensuração, a escolarização da criança favelada, sem os
garantiu espaço para novos estudos a respeito excessos de métrica das aferições de inteligência
da inteligência e desempenho escolar. Abriu-se (CONSORTE, 1956; 1959).
um tempo e um espaço institucional em que as As pesquisas, tanto no CBPE quanto
representações da anormalidade encontravam no CRPE-SP, passaram a ser movidas por uma
mais rejeição que adeptos. dinâmica que tinha, inclusive, um lema: a
O CBPE e o CRPE-SP reagiam a um escola só se conhece de perto. Assim como Dante
processo específico de expansão dos números Moreira Leite em São Paulo chamara a atenção
escolares. Foi a ideia de que esse processo para o problema da repetência, Consorte, no
revelou certa inadaptação da criança pobre Rio de Janeiro, verificou que a reprovação
à escola que estimulou pesquisadores de tinha números nada generosos para com as
ambos os centros de pesquisa a questionar a crianças pobres em geral e as faveladas em
universalidade das configurações internas da particular. Numa das escolas pesquisadas pela
escola pública brasileira. antropóloga, 42% das crianças matriculadas na
A diferença na abordagem de Moreira primeira série eram repetentes.
Leite pode ser assim sintetizada. No final Diante da suposta dicotomia entre adaptar
da década de 1950, a divisão de estudos e a criança à escola ou adaptar a escola à criança,
pesquisas educacionais do CRPE-SP propunha e entre adaptar a escola à comunidade ou
estabelecer programas de verificação de escalas adaptar a comunidade à escola, novos padrões
de escolaridade, com o objetivo de “avaliar o de pesquisa apresentavam-se como necessários.

692 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
A configuração desse campo, no sentido O que impactava fortemente aquela
que Bourdieu (2000) dá à palavra, oferece o geração de intelectuais era a percepção de que
ensejo para que se perceba que, no que toca aos microcidades de mentalidade rural sobreviviam
estudos acerca da inteligência da criança, uma dentro e ao lado das zonas citadinas, que não
nova autoridade argumentativa se fez presente chegavam a ser um todo de mentalidade urbana
e o mote que tornou possível a manifestação (CANDIDO, 1957, p. 59-60).
daqueles jovens pesquisadores foi a “anatomia Dante Moreira Leite interveio em muitos
cultural” (CRUZ, 1961) das periferias das grandes debates, tomando por ponto de partida a
cidades, ou seja, a escolarização de crianças até argumentação de Antonio Candido:
então classificadas como suburbanas.
Para esses novos intérpretes, os Se o início da civilização industrial
repertórios de aferição, medida e avaliação desorganiza a família tradicional e as
da inteligência tinham pouco ou nada a dizer formas tradicionais de proteção à infância
àqueles que povoavam os novos sertões, os (como o apadrinhamento), [é] preciso
locais suburbanos em que escola pública e a criar instituições que as substituam.
expansão urbana trocavam suas incompletudes. Compreende-se, assim, que a escola
Os boletins publicados constantemente deixe de ser uma instituição voltada,
reforçavam a utilização do slogan cada escola é exclusivamente, para o preparo intelectual
uma escola, o que significava um entendimento e passe a desempenhar a função muito
conjunto sobre a unidade escolar como unidade mais ampla de ajustar a criança à vida
sociológica e antropológica (EDUCAÇÃO E social (LEITE, 1959, p. 16).
CIÊNCIAS SOCIAIS, 1956, p. 20). Contudo,
se os componentes internos de cada escola A apropriação de padrões entre os
sugeriam diferentes processos de observação autores se dava, nesse caso, ao redor do tema
e diferenciação, as diferenças entre o campo e adaptação, fosse da escola à criança, fosse da
cidade eram aquelas que permaneciam ao fundo criança à escola.
como referências mais complexas. Florestan Fernandes envolveu-se ativa-
Luiz Pereira assimilava uma orientação mente com o projeto dos centros em quase todas
de Henri Lefebvre, que conheceu lendo Antonio as etapas, desde o planejamento até sua concre-
Candido. Concordou que as desigualdades tização. Seu momento de maior engajamento
mais visíveis das realidades urbanas suscitadas no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
na modernidade eram as desigualdades entre deu-se na fase inicial, quando foi escolhido
homem e mulher, entre ricos e pobres e entre como debatedor do documento inicial, escrito
citadinos e camponeses (CANDIDO, 1957, p. 53). por Oto Klineberg. No Centro Regional de São
Desenvolvia-se um padrão de pesquisa Paulo, sua atuação foi mais intensa na primeira
atento àquilo que, naquele contexto, era definido gestão, de Fernando de Azevedo, entre 1956 e
como dualidade básica da sociedade brasileira. 1961, continuando, logo após, como colabora-
Tínhamos em nossas entranhas sociais uma dor na gestão de Laerte Ramos de Carvalho.
diferença arraigada entre mentalidades agrárias Mais do que um colaborador, Florestan foi
e mentalidades urbanas. um analista constante dos rumos tomados pelos
O novo perfil demográfico que começava estudos de comunidade. Na elaboração das diretri-
a configurar as grandes cidades promovia zes do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
intensa aceleração no ritmo de vida. As e do planejamento do trabalho das Divisões de
pesquisas em andamento deparavam-se com Pesquisa, Florestan manifestou um ponto de con-
crianças que tinham perdido uma referência de cordância em relação ao documento base, assim
habitat e adquirido novo espaço existencial. sintetizada por José Mário Pires Azanha:

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 693


A idéia principal desse documento era a de Pereira, a falta de homogeneidade dificultava o
que os Centros deveriam organizar-se com uso da planificação racional nos debates educa-
o objetivo de elaborar um mapa cultural cionais, evidenciando que Florestan Fernandes
do Brasil e um mapa educacional [...]. A os havia convidado também à leitura de Karl
idéia fundamental era de que nós não Mannheim. Luiz Pereira admitia que:
tínhamos conhecimento sistematicamente
organizado sobre o Brasil; embora [...] as camadas inferiores das comunida-
tivéssemos aí, centenas, milhares de estudos des citadinas vivem segundo um estilo
feitos ao longo de séculos de existência do não inteiramente urbano. Os contingentes
país, nós não tínhamos tido a preocupação migratórios vêm a fazer parte delas, per-
de uma obra de síntese - que fosse capaz manecendo como portadores de muitos
de nos dar... um mapa cultural do Brasil e complexos da cultura rústica, continuando
[um] mapa educacional do Brasil. A idéia a viver o rural na cidade (PEREIRA, 1959,
do Prof. Klineberg é a de que a feitura p. 1, grifos do autor).
desses mapas seria o ponto de partida
para um esforço de descentralização das Aquela geração tentava compreender o
soluções educacionais brasileiras; [...] impacto da escolarização na vida social e bus-
mas a idéia dele é de que um esforço de cava, ao mesmo tempo, evidenciar as formas
descentralização poderia ser superficial e por meio das quais mentalidades rústicas repre-
até inútil, se não levasse em conta fortes sentavam um contraponto permanente à racio-
características de diferenciação cultural, nalização característica da mentalidade urbana.
social e educacional, que nós tínhamos Segundo Luiz Pereira:
(AZANHA, 1959, p. 27).
A análise desse conteúdo cultural da ati-
Luiz Pereira foi o responsável pela pro- vidade ensino-aprendizagem mostra ser
dução dos exemplos mais significativos de ado- ele parte do patrimônio cultural de cama-
ção do padrão inspirado nos parâmetros susci- das citadinas sócio-econômicas não infe-
tados nas muitas intervenções de Candido e de riores e evidencia a ligação estreita desse
Florestan. Ao seu lado, no CRPE-SP, a movi- conteúdo cultural com um estilo urbano
mentação intelectual era intensa. Enquanto os de vida, possuído principalmente por tais
pesquisadores vinculados ao CRPE-SP produ- camadas. A transmissão desse conteúdo
ziam levantamentos acerca da leitura e da es- implica, portanto, na comunicação de um
crita nas escolas da capital paulista, de questões estilo urbano de vida social, cultural e
administrativas nas unidades escolares, da fadi- econômico. Assim sendo, o subgrupo de
ga entre estudantes na cidade de São Paulo, da ensino primário atua nas comunidades
relação entre o ensino médio e a estrutura so- rurais e semi-rurais, como agência de de-
cioeconômica, alguns grupos escolares eram es- sintegração de um estilo não urbano de
colhidos para laboratório de estudo. Nesse caso, vida e, ao mesmo tempo, como agência de
as unidades escolhidas permitiam a observação urbanização (PEREIRA, 1959, p. 1).
das mencionadas escalas de escolaridade.
Luiz Pereira dirigiu o projeto Rendimento Que efeitos esperar da associação entre a
e deficiências do ensino primário (CRPESP, escola urbana e a mentalidade rural?
1959). Esse estudo proporcionou ao autor lidar
a seu modo com a metáfora dos dois brasis, a [...] avulta a função urbanizadora desta
imagem do país cujo arcabouço legal não cor- associação, realizada sob formas específicas
responde às tramas do cotidiano real. Para Luiz várias: integração dos brasileiros numa

694 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
comunidade nacional com base numa especificamente para as instalações do CRPE-
cultura urbana; [...] desintegração do SP, o que se efetivou em 1962.
estamentalismo e outras frações de Nesse mesmo ano, a UNESCO e o Instituto
estrutura social das comunidades rústicas Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) emitiram
[...]. (PEREIRA, 1959, p. 1). documento conjunto em que expressavam
ser o CRPE-SP o local mais adequado para a
O padrão de pesquisa adquirido formação de pesquisadores na área educacional
por Dante Moreira Leite e por Luiz Pereira (ZUBINZKY, 1975). Certa internacionalização
encontrava nos temas desempenho e adaptação do CRPE-SP ocorreu a partir de 1963, com a
da criança pobre à escola a oportunidade para presença de pesquisadores da Universidade de
evidenciar que os intelectuais do CRPE-SP Chicago interessados em pesquisas a respeito da
adquiriram luz própria. estrutura socioeconômica e ensino médio.
A criança em questão, como objeto de As luminosas indicações de Antonio
pesquisa, foi abordada no bojo de interpretações Candido e Florestan Fernandes se materializa-
que permanecem como exemplos de grande ram em escritos que, desde as primeiras versões,
relevância para o estudo da complexa relação revelaram-se destinados a ocupar lugar de des-
que subsiste em nossa sociedade entre cultura taque na história da educação brasileira.
urbana e cultura escolar. Produzia-se renovada Os escritos de Dante Moreira Leite e Luiz
interpretação a respeito do lugar de direito a que Pereira podem ser reconhecidos como expressão
cada criança fazia jus na comunidade nacional. mais densa do padrão CRPE-SP, o qual repercu-
tiu numa forma singular de investigação acerca
Considerações finais do desempenho e da adaptação da criança pobre
à escola. Esse padrão singular de investigação
Em novembro de 1961, o diretor procurou mostrar que a inteligência da criança e
do CRPE-SP, Laerte Ramos de Carvalho, as vicissitudes de sua chegada e permanência na
promoveu a fusão entre os Departamentos de escola são questões que não podem ser reduzidas
Pesquisa Social e de Pesquisa Educacional. às verificações e mensurações de desempenho.
Simultaneamente, foram articuladas as De forma exemplar, demonstravam que a ques-
condições para que o curso de pedagogia da USP tão estava profundamente relacionada à cons-
fosse transferido para a Cidade Universitária, trução do país, como um todo, para todos.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 683-698, jul/set. 2014. 695


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Recebido em: 27.08.2013

Aprovado em: 17.12.2013

Marcos Cezar de Freitas é professor Livre-Docente do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade Federal de São Paulo.

698 Marcos Cezar de FREITAS. Desempenho e adaptação da criança pobre à escola: o padrão de pesquisa...
La investigación sobre educación de personas jóvenes
y adultas: las tesis de un concurso latinoamericano

Jaime Rogelio Calderón López-VelardeI

Resumen

Con la finalidad de conocer la situación que guarda la investigación


de la educación de personas jóvenes y adultas (EPJA) en América
Latina y el Caribe, se realizó un estudio comparativo mediante la
revisión de 170 tesis de licenciatura y posgrado que participaron
en un concurso durante los años 2005 al 2011. Se comparan las
instituciones, el género, así como los estudios realizados por
los concursantes y las temáticas de las tesis para establecer la
correspondencia y los cambios con respecto a las áreas y temas
de investigación propuestos en los documentos regionales
previos a la V y VI Conferencias Internacionales de Educación
de Adultos (Hamburgo, 1997 y Belén, 2009). La investigación
educativa en la EPJA, es mínima, ausente en muchos países y
desigual, concentrándose en Brasil, México y Argentina. Se realiza
en instituciones universitarias públicas mediante programas de
licenciatura y posgrados en educación, ciencias de la educación,
pedagogía y psicología, pero coexisten con una variedad de
programas que son cursados en su mayoría por mujeres. La
diversidad temática se acentúa como un rasgo de la investigación
en la EPJA, reemplazando a la alfabetización y la educación básica.
Los programas de licenciatura y posgrado sobre EPJA son escasos
y no constituyen una línea consolidada de investigación con
excepción de Cuba y Brasil. Es impostergable reactivar un análisis
que trascienda el término EPJA desde la perspectiva del aprendizaje
a lo largo de toda la vida.

Palabras Clave

Educación de adultos – Investigación – Tesis – Educación comparada.

I- Universidad Pedagógica Nacional,


Guadalupe, Zacatecas, México.
Contacto: peri984@hotmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014 699
Investigation on Youth and Adult Education: the theses of
a Latin American Contest

Jaime Calderón López VelardeI

Abstract

Aiming to know the status of research on Youth and Adult


Education in Latin America and the Caribbean, I have conducted
a comparative study that reviewed 170 undergraduate and
graduate thesis involved in a contest between 2005 and 2011.
Institutions, gender and also studies conducted by the contestants
and the themes of their theses were compared in order to
establish correspondence and changes in relation to the areas and
topics of investigation proposed in the regional documents prior
to the V and VI International Conferences on Adult Education
(Hamburg - 1997 and Belem - 2009). Research on Youth and
Adult Education is scarce, absent in many countries and unequal.
It is concentrated in Brazil, Mexico and Argentina. It is done
in public universities in undergraduate or graduate programs
in education, education sciences, education and psychology,
but they coexist with a variety of programs attended mostly by
women. Research on Youth and adult education – which replaces
literacy campaigns and basic education – is marked by thematic
diversity. Undergraduate and graduate programs on Youth and
Adult Education are scarce and are not a established line of
research, except for Cuba and Brazil. It is unpostponable to revive
an analysis that transcends the term Youth and Adult Education
from the perspective of lifelong learning.

Keywords

Adult education — Research — Thesis — Comparative education.

I- Universidad Pedagógica Nacional,


Guadalupe, Zacatecas, México.
Contact: peri984@hotmail.com

700 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000014 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014.
Introducción los estudiosos de la educación y los tomadores
de decisiones porque allí se encuentran nuevos
En 2005 el Centro de Cooperación conocimientos, hallazgos, propuestas y líneas
Regional para la Educación de Adultos en emergentes de investigación. Cabe mencionar
América Latina y el Caribe (CREFAL) estableció que la investigación sobre la EPJA en la región
el Programa Premio a las Mejores Tesis sobre desde hace dos décadas ha sido incipiente y
Educación de Personas Jóvenes y Adultas en las concentrada en la alfabetización, la educación
categorías de licenciatura, maestría y doctorado básica y la capacitación. ¿Esta situación se ha
para promover la investigación en este campo modificado? ¿Cuál fue la participación de los
educativo a fin de: países de la región en estos concursos? ¿Quiénes,
en dónde y de cuáles programas de licenciatura y
Reconocer y estimular en América Latina y el posgrado se graduaron los concursantes? ¿Cuáles
Caribe, a los autores de las mejores tesis sobre son las temáticas, problemas y tendencias que
EPJA, en la que se proporcione información ocupan la atención de la investigación en EPJA?
básica importante, se propongan nuevos ¿Qué diferencias y semejanzas se observan con
enfoques, se realicen aportaciones teórico- respecto a los Informes Regionales de EPJA
metodológicas o se muestren hallazgos elaborados en 2008?
relevantes en el campo. (CREFAL, 2011). La metodología incluyó tres etapas. En
la primera se mencionan los puntos generales
Esta iniciativa se inscribe en las líneas de de comparación como la participación, tipo de
acción propuestas por el Marco de Acción para instituciones y programas educativos. En la
la Educación de Personas Jóvenes y Adultas en segunda se comparan los países participantes
América Latina y el Caribe 2000-2010 para dar divididos entre aquellos que aportaron el
visibilidad a la EPJA mediante la difusión de mayor y menor número de tesis, indicándose el
experiencias de calidad e influir en las políticas nombre de los programas académicos, así como
educativas respectivas, entre éstas, “apoyar el género de los concursantes. En la tercera se
concursos de investigación y sistematización realizó la comparación entre las cuatro líneas de
de experiencias (…) y realizar investigaciones intervención y las doce áreas de investigación
comparadas” (UNESCO et al., 2000, p. 105). del Marco de Acción EPJA 2000-2010 con
Entre 2005 y 2007 se emitieron las temáticas de las tesis, complementándose
convocatorias anuales y a partir de 2009 con la relación de las áreas nuevas o distintas.
el periodo fue bianual, e integrándose como Posteriormente se compararon estos resultados
institución convocante, la Cátedra UNESCO con dos Informes Regionales (CARUSO et al.,
Brasil, ofreciendo a los autores de las tesis 2008; TORRES, 2009) citados en las referencias
ganadoras la publicación y premios en de este trabajo. Por último, se establecieron
pesos mexicanos de $50.000 en licenciatura, las diferencias y semejanzas entre los aspectos
$75.000 en maestría y $100.000 en doctorado. mencionados y se interpretaron los resultados.
Consideramos importante analizar las tesis La estructura del trabajo comienza con
de los cinco concursos porque son productos el abordaje de aspectos conceptuales de la
académicos que a través de estudios e EPJA en la región y una breve caracterización
investigaciones argumentan afirmaciones que de la situación de la investigación educativa
ponen a prueba los conocimientos adquiridos en esta materia y a continuación se sigue el
por los egresados de programas de licenciatura orden y desarrollo de las etapas metodológicas
y posgrado y constituyen un requisito para arriba mencionadas.
acreditar los estudios cursados. Representan a su Cabe aclarar que las tesis concursantes
vez, una fuente de consulta imprescindible para representan una fuente de consulta entre las

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 701


diversas modalidades de producción académica de Adultos de Hamburgo en 1977, se han dado
de la investigación y por ello las conclusiones pasos importantes para elucidar la especificidad
del estudio no son generalizables ya que de este concepto, pero aún son insuficientes.
solamente permiten un acercamiento parcial En efecto, si tomamos en cuenta la
pero significativo del estado que guarda agenda regional del Marco de Acción Regional
la investigación educativa en esta materia. arriba mencionado1 en el cual se sintetizan los
Asimismo otros elementos estructurales de principales aspectos problemáticos de la EPJA,
las tesis como los tipos de investigación, así se constatan avances significativos. En este
como los enfoques teóricos y metodológicos, documento destacamos cuatro pronunciamientos
incluyendo un examen sobre su calidad rebasan que son congruentes con la visión ampliada de
los objetivos de este estudio y serán motivo la Declaración y el Plan de Acción de Hamburgo
de un análisis posterior para contar con una (UNESCO, 1997), orientada a trascender los
visión integral de estos productos académicos. límites y discriminación impuestos por la edad,
No obstante, planteamos a modo de hipótesis el nivel y modalidad educativa e incluso para
que en varios países las tesis de licenciatura reemplazar el término educación por el de
son un requisito para obtener el grado de aprendizaje de adultos.
licenciatura pero también se admiten tesinas, El primero fue la adopción del término
proyectos de intervención y monografías que Educación de Personas Jóvenes y Adultas (EPJA)
desarrollan diagnósticos educativos, pero cuya coexistencia con los adultos fue producto
no son investigaciones que aporten nuevos no solo de los cambios demográficos en la región
conocimientos. sino de la incapacidad de los sistemas escolares
para lograr la permanencia de los jóvenes en la
Educación de adultos e educación básica u obligatoria y a la necesidad
investigación educativa de éstos de emplearse tempranamente en el
trabajo informal, reemplazando paulatinamente
¿Qué debe entenderse por educación e inclusive discriminando a los grupos de adultos
de personas jóvenes y adultas (EPJA) en el de los programas de EPJA (TORRES, 2009).
contexto de los países latinoamericanos y del El segundo consiste en reiterar la
Caribe para determinar cuáles investigaciones especificidad del campo de la EPJA, fortaleciendo
se corresponden con este término como es el el compromiso insoslayable con los grupos más
caso de las tesis y otros productos académicos? marginados, esto es, los indígenas, campesinos,
La (s) respuesta (s) a esta pregunta no es jóvenes y las mujeres y la inclusión de siete
un asunto sencillo porque es evidente que entre áreas de intervención: 1. Alfabetización; 2.
los países de la región y en el ámbito académico Educación y trabajo; 3. Educación, ciudadanía
existen diferencias con respecto a la edad, nivel y derechos humanos; 4. Educación con
educativo, perspectivas teóricas y la terminología campesinos e indígenas; 5. Educación y Jóvenes;
empleada para referirse a esta expresión; de igual 6. Educación y género; 7. Educación, desarrollo
modo a la influencia del contexto político, social local y sostenible. Finalmente se plantearon tres
y cultural de estas naciones y otras regiones líneas de acción: 1. Currículo y evaluación; 2.
del mundo. Así, conceptos como: educación Formación de educadores; 3. Investigación.
permanente, educación básica ampliada, El tercero, reconocer que la EPJA es una
educación formal y no formal, formación para actividad que trasciende lo estrictamente educativo,
el trabajo, educación popular y la expresión
aprendizaje a lo largo de la vida dan cuenta de 1- Suscribimos este documento, entre otras razones, para retomar la memoria
histórica de la EPJA, el reconocimiento al trabajo colectivo, sistemático y
esta diversidad conceptual. No obstante a partir representativo de múltiples actores dedicados a este campo educativo y por
de la V Conferencia Internacional de Educación la riqueza y vigencia de muchos de sus lineamientos y propuestas.

702 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
pues no se circunscribe a los aprendizajes en los los planes de estudio desde la educación básica
espacios escolares sino a una diversidad de lugares formal hasta programas académicos de nivel
en donde se convive para aprender y recrear la superior. En este sentido, no es apropiado que
cultura en sus múltiples manifestaciones. la EPJA los aborde separadamente, asumiéndose
El cuarto, esclarecer la finalidad de la como un espacio homogéneo y paralelo
EPJA y la invitación abierta al diálogo informado dentro de los sistemas educativos nacionales,
para enriquecer las nociones implicadas en este situación que por una parte, reproduce la carga
concepto y sus conexiones, poniendo énfasis en de nociones peyorativas hacia los sujetos que
la perspectiva del aprendizaje a lo largo de la vida la integran (carentes, vulnerables, en riesgo,
a fin de adecuarse a los contextos nacionales, en rezago educativo, etc.), y, por otra, le resta
regionales y locales de esta región (UNESCO et visibilidad, importancia y recursos financieros.
al., 2000). No obstante, los avances mencionados (TORRES, 2009).
también significaron la emergencia de situaciones 4- La especificidad de la EPJA. Si bien
problemáticas que se traducen en nuevos desafíos: la exclusión social y la pobreza es la categoría
1- Ampliación, diversificación y mayor identitaria de la EPJA, no es suficiente para
complejidad del campo de intervención de abarcar a todos los sujetos que la conforman,
la EPJA. La prioridad con los grupos sociales ya sea como población en rezago educativo,
mencionados y la inclusión de las temáticas (jóvenes expulsados del sistema escolarizado
propuestas significa, entre otros aspectos, mayores para los cuales operan políticas compensatorias),
niveles de articulación de políticas públicas población excluida y/o discriminada por
intersectoriales, reforzar vínculos entre el Estado diversas razones a quienes se destinan políticas
y las organizaciones de la sociedad civil, atención sociales, y los sujetos que no se encuentran
a grupos específicos (jóvenes en situación de en alguna de estas situaciones pero les asiste
calle, discapacitados, personas privadas de su el derecho a demandar aprendizajes continuos
libertad, migrantes, adultos mayores, etc.), acceso mediante programas de educación permanente
al mundo digital, e insistir en la formación inicial (CARUSOet al., 2008). Aún más, los jóvenes
y continua de educadores sin la cual la calidad de que cursan la educación secundaria y niveles
la EPJA resulta difícil de alcanzar. intermedios en donde priman condiciones
2- Ausencia de sinergias. Los vínculos de pauperización en el medio rural y urbano
educativos entre niños, jóvenes y adultos ya marginal, ¿no formarían parte de la EPJA?,
sea dentro del sistema escolarizado (propuestas ¿no sería paradójico que la EPJA excluyera a
de alfabetización simultánea entre niños y los estos jóvenes en su atención y estudio o a los
jóvenes y/o adultos; programas comunitarios, estudiantes indígenas que accedieron a estudios
entre otros) y fuera de este (programas de atención de tipo medio y superior?
y educación de la primera infancia que operan a 5- Fragilidad conceptual. Los criterios
modo de escuelas para padres y madres de familia, tradicionales para definir a los sujetos de
aprendizaje intergeneracional, comunidades de la EPJA como la edad, el rezago, condición
aprendizaje y otros), muestran la necesidad de social, modalidad educativa resultan hoy día
coexistencia y mutua interdependencia entre insuficientes dada la multiplicidad de situaciones
sistemas formales y no formales cuyas fronteras generadas por la pobreza e inequidad social y al
son cada vez más relativas y artificiales. papel diversificado que estos asumen: ciudadanos,
3- Aislamiento y homogeneidad de padres, trabajadores, adultos mayores, etcétera.
la EPJA. El énfasis en la ciudadanía, la (CARUSO et al., 2008). Además, la discusión
interculturalidad, los derechos humanos, el sobre una definición y caracterización que
desarrollo comunitario y el cuidado del medio trascienda el término EPJA desde la perspectiva
ambiente, son ejes transversales incluidos en del aprendizaje a lo largo de toda la vida no ha

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 703


prosperado y explica en gran parte la situación años 70 hasta hoy día, la revisión de la literatura
descrita en los puntos precedentes. sociológica y de los estados del conocimiento
Es claro entonces que la EPJA debiera reportan avances pero coinciden en su escaso
abarcar a todos y todas sin importar el carácter desarrollo (UNESCO; OREALC, 2003; RUIZ,
formal y no formal de la educación ni la 2005; SCHMELKES, 2008), particularmente en
condición socioeconómica, edad, raza, género, la investigación básica, que ha dependido en su
pertenencia étnica, sexual y religiosa. De hecho, mayoría de los especialistas de los organismos
así se concibe en el Marco de Acción citado y agencias educativas internacionales y por
(UNESCO et al., 2000, p. 90) cuando se señala: los investigadores nacionales adscritos a las
universidades y centros de investigación
Desarrollar programas para las personas públicos y privados.
jóvenes y adultas en su condición de Por el contrario, los estudios empíricos
madres y padres, estudiantes de la relacionados con las prácticas de la EPJA
educación secundaria, técnica y superior y (descripciones, diagnósticos, evaluaciones,
educadores de cualquier nivel y modalidad, materiales didácticos, etc.) son abrumadores y
para incorporarlos tanto como sujetos de en gran parte promovidos por los gobiernos y
aprendizaje como educadores. ministerios de los países de la región, enfocados
a las temáticas y problemas más acuciantes
Sin embargo, la realidad social impone (alfabetización, educación básica y capacitación
que el conocimiento y los aprendizajes para el trabajo), así como aspectos relacionados
imprescindibles para vivir y convivir en una con el aprendizaje de los adultos, la calidad,
sociedad cada vez más cambiante y compleja, el género y los temas emergentes asociados a
se pongan al alcance de quienes han sido la educación popular (ciudadanía, democracia
excluidos por un sistema que no logra hacer y participación social). Este débil desarrollo
valer los derechos humanos, entre estos el de coincide con el examen realizado por Ruiz (2005),
la educación. Por esta razón y conscientes quien a partir de la revisión de 313 trabajos
del riesgo reduccionista y simplificado que en los años 90 por la Red Latinoamericana
se corre, en este estudio, se considera a los de Información y Documentación (REDUC)
sujetos de la EPJA a quienes no ingresaron sobre educación de adultos y la educación
o fueron excluidos por el sistema educativo popular, concluye que solamente el 29% fueron
regular sea como demanda potencial o real considerados en la categoría de investigaciones
(participantes en los programas ofertados por y estudios. El 71% restante se distribuyó en las
instituciones educativas públicas, privadas y categorías de: sistematizaciones, polémicas y
de las organizaciones de la sociedad civil para discusión actual en el campo y descripción de
restituir su derecho a la educación). Asimismo experiencias y práctica.
las áreas de intervención y temas emergentes Otro rasgo de la investigación en EPJA
destinados a estos grupos sociales. que se deriva de este estudio, es su gran
Por lo que a la investigación educativa se diversidad temática ya que del conjunto de
refiere, en los principales foros internacionales estudios examinados se desprenden treinta
de la EPJA, especialmente en el Plan de tópicos sin desagregar los temas emergentes
Acción para el Futuro, de Hamburgo (UNESCO, (género, medio ambiente, etc.), de donde
1997, punto 22), así como el seguimiento se infiere en muchos casos la coexistencia
latinoamericano de CONFINTEA V (1998-1999) temática y una tendencia a la fragmentación
y en el referido Marco de Acción, el interés por de áreas de conocimiento que guardan estrecha
fomentar y consolidar la investigación educativa relación. Cabe mencionar que dentro de este
sobre la EPJA es una constante, pues desde los amplio espectro temático, la educación popular

704 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
ha tenido un papel protagónico dentro de la Participación, instituciones y
investigación educativa pues desde los años 70 y programas
bajo la influencia de la educación liberadora de
Paulo Freire y Orlando Fals Borda, se cultivaron Conforme a los datos de la tabla 1,
enfoques críticos al paradigma cuantitativo solamente catorce de 42 países de América Latina
mediante la investigación acción participativa y y el Caribe participaron en el periodo 2005 al 2011
la sistematización que documenta con enfoques con un total de 315 tesis. Sin embargo, del total
narrativos, la reflexión de experiencias de de tesis registradas, solamente 170, equivalente al
los actores sociales, destacando su dimensión 54 % fueron consideradas de EPJA. Además, el
organizativa y política. número de países participantes se reduce a diez
En resumen en el Marco de Acción de (24%) porque las tesis de cinco concursantes no
la EPJA, la importancia de la investigación correspondían a la EPJA. Solamente la mayoría
educativa es clave para de tesis de Argentina, Bolivia, Chile, Costa Rica,
Colombia y especialmente de Brasil, fueron de
[...] aportar conocimiento y contribuir al EPJA, mientras que en tres países, incluyendo
diseño de estrategias para la atención de la a México, se reducen a menos de la mitad.
diversidad y la distribución igualitaria de Esta situación se debió a que los concursantes
la educación. (UNESCO et al., 2000, p. 103). incluyeron en la EPJA a la población infantil
que cursa la educación obligatoria (preescolar,
Propiamente en las siete áreas primaria) hasta los jóvenes estudiantes de
prioritarias de acción, se insiste en el desarrollo la educación superior y en varios casos con
de investigaciones educativas, sumándose doce temáticas completamente ajenas a la EPJA, lo que
temas de investigación que se incluyen en las refleja un desconocimiento de las características
tablas del punto 3.3. y especificidad de este campo e insuficiente

Tabla 1- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011. Comparación entre países participantes y número de tesis registradas por
programa académico y número de tesis con especificidad en la EPJA

Tesis Registradas por Programa Tesis de EPJA por Programa


Total

Académico Académico Total


Países %
L E M D L E M D
1. Argentina 19 0 11 7 37 13 0 5 7 25 68
2. Bolivia 4 1 3 0 8 2 1 2 0 5 85
3. Brasil 9 2 26 13 49 6 2 26 13 47 96
4. Colombia 1 0 0 1 2 1 0 0 1 2 100
5. Costa Rica 0 0 1 0 1 0 0 1 0 1 100
6. Cuba 1 0 4 4 9 0 0 3 1 4 44
7. Chile 2 0 4 2 7 2 0 4 1 7 100
8. Ecuador 0 0 2 0 2 0 0 1 0 1 50
9. Honduras 0 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0
10. México 64 0 91 34 189 31 0 35 11 77 41
11. Perú 2 0 1 2 5 0 0 1 0 1 20
12. Puerto Rico 0 0 1 0 1 0 0 0 0 0 0
13. Uruguay 0 0 2 0 2 0 0 0 0 0 0
14. Venezuela 0 0 1 1 2 0 0 0 0 0 0
Total 102 3 148 64 315 55 3 78 34 170 54
L= Licenciatura E= Especialidad M= Maestría D= Doctorado
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 705


claridad en las bases de la convocatoria. En la fueron de financiamiento privado, sobresaliendo
región caribeña, Cuba presentó cuatro y Bolivia Chile y México en términos porcentuales
y Chile participaron con cinco a siete tesis. Por su (29% y 31% respectivamente). Asimismo los
parte Colombia, Ecuador y Perú participaron con concursantes egresaron de otras instituciones de
una a dos tesis y en la región centroamericana, educación superior (IES), destacando México con
solamente una tesis de Costa Rica (tabla 1). Los 10 de estas por ser el país con mayor número de
países con más concursantes fueron México, Brasil concursantes (tabla 2). En este país, las IES incluyen
y Argentina con 77, 47 y 25 respectivamente y entre otros establecimientos, institutos, escuelas
en su conjunto representan el 88% del total de normales, colegios, centros de investigación que
las tesis. Este hecho obedece no solo a la mayor ofertan programas para la formación profesional
extensión territorial y demográfica de estos de cuatro a seis años y estudios de posgrado
países sino a su papel geopolítico y económico sin importar su régimen de financiamiento o
a nivel regional y mundial y a la conformación estatus legal pero en la legislación argentina se
de sus sistemas educativos cuya diversidad y establecen distinciones entre universidades e IES
magnitud de problemas demandan mayores a partir de formas de gestión, esto es, carreras
conocimientos derivados de la investigación en áreas de conocimiento afines (Facultades) o
social y educativa. En este sentido, la expansión dedicadas a un área específica (Institutos). En
de los sistemas de educación superior en América total, participaron 63 universidades públicas y
Latina en las tres últimas décadas, propició en los quince privadas, además de dieciséis IES, tres
países mencionados, un crecimiento inusitado de estas privadas. Brasil ocupó el primer lugar
de instituciones universitarias y de educación con veinticuatro universidades públicas y cuatro
superior públicas y privadas, particularmente en los privadas (tabla 2).
estudios de posgrado cuyos productos académicos Cabe subrayar que del total de las tesis
se ve reflejado en esos porcentajes. Conjeturamos de México, el 27% fueron de la Universidad
a su vez que en estos países hubo mayor difusión Pedagógica Nacional que contaba hasta el 2010
de la convocatoria y material propagandístico del con la licenciatura en educación de adultos y
concurso a diferencia de regiones como el Caribe desde 2002 oferta en este nivel un programa de
anglófono y francófono con escasa presencia Intervención Educativa que incluye una línea
del CREFAL. Asimismo suponemos que más allá de EPJA. En Argentina, la Universidad Nacional
del interés de los concursantes por obtener el de Córdoba y la de Buenos Aires aportaron
recurso económico del premio fue la necesidad de tres tesis cada una y, entre una y dos, diversas
dar a conocer sus trabajos de tesis escasamente universidades públicas y tres privadas, mientras
valorados y difundidos. que en Brasil, de once Universidades Federales,
Como se puede observar, en general la destacan con el mayor número de tesis las de São
participación de los países de los concursantes Carlos con seis, y la de Minas Gerais con cinco.
es poca pues abarca un periodo de cuatro años Otra Universidad que envió cinco tesis fue la de
e inexistente en los 32 restantes que integran la São Paulo y el resto envió de una a tres tesis,
región, lo que refleja un panorama de desinterés incluyendo a cuatro universidades privadas.
investigativo de los centros universitarios en En cuanto a la distribución de los diferentes
materia de EPJA. programas de EPJA, el primer lugar lo ocupa el
De los datos reportados en la tabla 2, el nivel de maestría con 78 (46 %), en segundo,
81%, es decir, la mayoría de los concursantes, las de licenciatura con 55 (32 %), en tercero, las
realizó sus estudios en universidades públicas de doctorado con 34 (20 %) y, en cuarto, las de
federales, estatales y autónomas a través de especialización con solamente tres (2 %), (tabla
distintas Facultades, Escuelas y Departamentos, 1). La mayor parte de tesis de licenciatura se
especialmente en Educación. Solamente el 19% concentró en Argentina y México con trece y 31

706 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
Tabla 2- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y tipo de instituciones por régimen de financiamiento.
Universidades Instituciones de Educación Superior
Países
Públicas % Privadas % Públicas % Privadas %
Argentina 16 84 3 16 2 100 0 0
Bolivia 4 80 1 20 0 0 0 0
Brasil 24 86 4 14 1 100 0 0
Colombia 1 100 0 0 0 0 0 0
Costa Rica 1 100 0 0 0 0 0 0
Cuba 0 0 0 0 3 100 0 0
Chile 5 71 2 29 0 0 0 0
México 11 69 5 31 7 70 3 30
Perú 1 100 0 0 0 0 0 0
Total 63 81 15 19 13 81 3 19

Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.

respectivamente, mientras que las de maestría otros, aspectos diferenciales de la EPJA que
en Brasil y México. Las tesis de doctorado se llevaron a su comparación. Brasil fue cuna del
distribuyeron en tres países (Colombia, Chile y movimiento de educación popular desarrollado
Cuba) con una tesis y el resto en Argentina, Brasil a lo largo de los años 60 que se extendió en
y México con siete, trece y once, respectivamente. los años 70 a varios países latinoamericanos. A
Únicamente Brasil reportó dos tesis de especialidad su vez, las políticas y múltiples programas de
en EPJA y una en Bolivia. alfabetización tienen un lugar preponderante
Llama la atención que las tesis de en la EPJA desde la Campaña de Adolescentes
doctorado que implican mayor profundización y Adultos (1947) hasta Brasil alfabetizado
y aportes al conocimiento en el campo de la (2003). Actualmente los foros de EPJA
EPJA sean pocas, pues el promedio durante los representan alternativas basadas en estructuras
cinco concursos es apenas de 6.8, destacando intersectoriales y descentralizadas de organismos
Brasil con el mayor número de tesis en gubernamentales y no gubernamentales que
este nivel debido al impulso inusitado de la se movilizan para reivindicar el derecho a
investigación en esta materia en los últimos la educación básica y emprenden tareas de
10 años. Ahora bien, de los datos reportados formación (DI PIERRO, 2005, p. 22). Estos
en la tabla 1, destacamos dos grupos: El rasgos difieren con México en donde el peso
primero, integrado por los países que aportaron de los movimientos sociales es menor, además
el mayor número de tesis: Argentina, Brasil de la continuidad y alta institucionalidad en
y México. En el segundo, siete países con un las políticas y modelos para la EPJA bajo la
número reducido de tesis (Bolivia, Colombia, rectoría del Instituto Nacional de la Educación
Costa Rica, Cuba, Chile, Ecuador y Perú). Cabe para Adultos, organismo fundado en 1981
mencionar que en ambos grupos hubo nueve que opera en todos los estados del país y del
graduados latinoamericanos que estudiaron en cual dependen los contenidos curriculares.
universidades extranjeras. Argentina por el contrario, cuenta con menos
diversidad étnica que Brasil y México y ha
Comparación entre Argentina, experimentado cambios abruptos y recurrentes
Brasil y México en las políticas de EPJA marcados por los
regímenes militares y posteriormente por
Estos países además de reunir el mayor los gobiernos electos democráticamente que
número de tesis presentan, al igual que desarrollaron en 1973 y 1974 movimientos

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 707


renovadores bajo la influencia de la educación En Argentina hubo trece concursantes
popular. Posteriormente las políticas de licenciatura, seis varones y siete mujeres por
neoliberales del gobierno de Menen durante lo que existe un equilibrio entre los graduados
los años 90 ahondaron la situación marginal de este nivel educativo (tabla 3). En cambio,
de la EPJA y hasta diciembre de 2006 la EPJA la autoría de las cinco tesis de maestría fue
dejó de considerarse un régimen especial de mujeres, mientras que de las siete de
en la legislación educativa. A continuación doctorado, solamente un varón concursó en
centramos la atención en los programas este nivel, lo que indica una participación casi
educativos en cuanto a su distribución por absoluta del género femenino en las tesis de
nivel, género y nombre. posgrado (tabla 3).

Tabla 3- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Países participantes y programas académicos por género
Programas Académicos
Países Licenciatura Especialidad Maestría Doctorado
M % F % M % F % M % F % M % F %
Argentina 6 46 7 54 0 0 0 0 0 0 5 100 1 20 6 80
Bolivia 0 0 2 100 0 0 1 100 2 100 0 0 0 0 0 0
Brasil 2 33 4 67 0 0 2 100 5 19 21 81 2 15 11 85
Colombia 0 0 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0
Costa Rica 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0
Cuba 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 3 100 0 0 1 100
Ecuador 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0
Chile 1 50 1 50 0 0 0 0 0 0 4 100 0 0 1 0
México 7 23 24 77 0 0 0 0 8 23 27 77 4 36 7 64
Perú 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0
Total 16 29 39 71 0 0 3 100 15 20 63 80 7 21 27 79
M= Masculino F= Femenino
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.

En Brasil, de las seis tesis de licenciatura, al 64%. Empero, la participación y autoría


cuatro fueron de mujeres y dos de varones. Las femenina de las tesis es mayoritaria en estos
dos tesis de especialización recayeron en mujeres, tres países pues el promedio alcanza el 78 %.
mientras que en las veintiséis tesis de maestría la En relación a los nombres y áreas de
participación del género femenino es sobresaliente, conocimiento de los programas académicos en los
pues solamente dos de cada diez graduados son cuales se graduaron los concursantes de tesis2, en
varones (19% y 81%) respectivamente (tabla Argentina de los trece programas de licenciatura,
3). De igual modo ocurre con respecto al papel ocho se concentran en ciencias de la educación,
preponderante de las mujeres con once de las seguida por psicopedagogía, antropología,
trece tesis de doctorado (85%). sociología y la comunicación social, en ésta
En México concursaron 31 tesis de última se incluye otra tesis asociada al periodismo.
licenciatura y 35 de maestría. Las mujeres En cuanto a los cinco programas de maestría,
también ocupan un lugar preponderante ya que uno es de ciencias sociales con orientación en
en ambos programas rebasan el 75%, mientras 2 - Por su extensión, consideramos innecesario incluir la relación de los
que en el doctorado disminuye su participación programas académicos.

708 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
educación y otro de educación con orientación un conjunto de licenciaturas con una tesis, entre
en educación permanente, los tres restantes no éstas, educación y diversidad cultural, sociología
se refieren directamente a la educación sino a: 1) de la educación, innovaciones educativas y
evaluación; 2) políticas sociales; 3) salud mental comunicación. El panorama con respecto a los
comunitaria. Finalmente, de los siete programas concursantes de los 35 programas de maestría se
de doctorado, dos son de ciencias de la educación caracteriza por su diversidad. Si bien se ofertan
y tres corresponden a: 1) las ciencias sociales; 2) programas de educación y otros que giran
ciencias de la comunicación; 3) filosofía y letras. alrededor de este término: calidad, diversidad
Los otros dos fueron cursados en universidades cultural, desarrollo educativo, formación
extranjeras. En resumen, se observa la presencia docente, resaltan aquellos que se derivan de las
de la carrera de ciencias de la educación en la ciencias en general que incluyen especialidades
licenciatura y en los programas de doctorado que, (investigación educativa, ecología) o ciencias
en su conjunto, equivalen al 43 % de las carreras específicas (de la educación, administrativas,
y programas cursados y el otro 57% se distribuyen agrícolas, en sociología rural). Este crisol de
en una diversidad de carreras de licenciatura y en programas se incrementa con estudios de
los programas de posgrado antes mencionados. investigación educativa y de metodología,
En Brasil, de las seis tesis de licenciatura, aunado a programas que van desde la psicología
cinco fueron de pedagogía y de las veintiséis y pedagogía hasta la comunicación e inclusive
de maestría, catorce, es decir, poco más de ingeniería. Sin embargo, de ese conjunto de
de la mitad de este nivel (56%), fueron programas, llama la atención aquellos dedicados
de programas de educación y el resto se al quehacer investigativo con un total de ocho
distribuye en programas que también están tesis, equivalente al 23% del total. Finalmente,
asociados a este término mediante líneas, áreas en los once programas de doctorado, los de
y orientaciones diversas de investigación, pedagogía y educación comparten dos tesis cada
entre éstas: educación brasileña, sociología una, seguidas de un grupo de ciencias y ciencias
de la educación, fundamentos de educación, sociales que incluyen tres especialidades. El resto
educación y políticas públicas. Una situación se distribuye en cuatro programas: 1) filosofía de
muy similar a la anterior se observa en los trece la educación; 2) innovación educativa; 3) estudios
programas de doctorado, pues nueve de ellos de población; 4) estudios organizacionales.
también son en educación y con solo una tesis: A partir de estos resultados, encontramos
1) sociología de la educación; 2) educación que las tesis de licenciatura en Brasil son muy
especial; 3) psicología: 4) lingüística aplicada. pocas con respecto a las de Argentina y México
En síntesis, Brasil, no obstante el reducido pero las de maestría y doctorado superan por
número de tesis de licenciatura es el país con mucho a las argentinas y en menor medida
mayor homogeneidad en el tipo de programas a las de doctorado de México. En cuanto a
ofertados en este nivel pero especialmente en los programas de licenciatura, en Argentina
los programas de posgrado desde los cuales se predominan las ciencias de la educación
investiga la EPJA, y uno de los dos países en mientras que en Brasil los de pedagogía y en
donde existen especializaciones. México coexisten ambos programas a los cuales
En México, de las 31 tesis de licenciatura, la se suma una diversidad de carreras (tabla 4).
mayoría se concentran en tres carreras con cinco En Argentina fueron escasos los
tesis cada una: 1) pedagogía; 2) intervención concursantes de maestría cuyos programas se
educativa; 3) ciencias de la educación. Otras distinguen por su diversidad al igual que en
dos carreras con cuatro tesis cada una fueron: México. En cambio, Brasil muestra homogeneidad
psicología y educación de adultos y con dos y continuidad en este nivel y en los programas
tesis, educación indígena. El resto lo integran de doctorado, concentrados en educación

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 709


con múltiples áreas, líneas de investigación y predomina la diversidad de estos, incluyendo los
orientaciones específicas, situación que no ocurre de doctorado. Además, una diferencia de México
en México, en donde si bien coexisten en las con Argentina es la ausencia de doctorados en
licenciaturas y en las maestrías, los programas de: ciencias de la educación y en Brasil de programas
pedagogía, ciencias de la educación y psicología, de pedagogía (tabla 4).

Tabla 4- CREFAL. Concurso de tesis 2005-2011.Comparación de tendencias de los programas académicos


Tendencias
Programas
Académicos
Argentina Brasil México

Coexistencia entre pedagogía, ciencias


Homogeneidad en ciencias
Licenciatura Homogeneidad en pedagogía de la educación, Intervención educativa y
de la educación
diversidad de carreras

Maestría Diversidad Homogeneidad de programas de educación Heterogeneidad/ diversidad

Homogeneidad y continuidad de programas


Ciencias de la educación Heterogeneidad/ Diversidad
Doctorado de educación. Ausencia de pedagogía y
y diversidad de programas Ausencia de ciencias de la educación
ciencias de la educación

Fuente: Elaboración propia.

Comparación entre países con se recibió una tesis de maestría en Estudios de


poca participación la Cultura. En resumen, en este grupo de países
predominan concursantes de programas de
En el segundo grupo de países, Chile maestría muy diversos con hegemonía casi
presentó siete tesis, todas con programas total del género femenino, pues en Bolivia
diferentes. Dos de licenciatura y cuatro de solamente dos varones presentaron dos tesis de
maestría, entre éstas, Educación, mención este nivel educativo.
currículo y comunidad educativa, Evaluación Con respecto a los concursantes latino-
Educacional y Antropología y Desarrollo. La americanos que se graduaron en universidades
única tesis de doctorado fue presentada en una extranjeras, se reportaron nueve tesis; cinco de
universidad extranjera. Por su parte Bolivia maestría y cuatro de doctorado. En ambos nive-
tuvo dos concursantes de licenciatura y dos de les, los programas de educación y ciencias de la
maestría también con programas diferentes. educación apenas llegan a tres y el resto se dis-
Costa Rica solamente envió una tesis de maestría tribuye en un grupo diversificado de programas
en Informática y tecnología educativa, en tanto cursados en su totalidad por mujeres.
que Cuba reportó tres tesis de maestría: Una en
educación y otra en Longevidad satisfactoria. Síntesis comparativa
Promoción y educación para la salud. La tercera
fue realizada en una universidad extranjera. La En el estudio e investigación de la EPJA
única tesis de doctorado no fue posible localizarla. realizada por los concursantes de diez países
De Colombia solamente se consideró una tesis de latinoamericanos, convergen programas de
licenciatura en la carrera de Recreación y otra formación psicopedagógica y una variedad de
de doctorado en una universidad extranjera. disciplinas sociales que estudian el fenómeno
Ecuador envió una tesis de maestría cursada en educativo. Esta diversidad tiende a ser más
una universidad extranjera. Finalmente, de Perú notoria en los programas de posgrado incluidos

710 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
los estudios realizados en el extranjero y son feminización se relacionan con la posición
congruentes con la naturaleza de la EPJA, marginal de los estudios e investigación de la
considerada una actividad que trasciende lo EPJA dentro del campo educativo, así como
estrictamente educativo, pues no se circunscribe su escaso prestigio entre los investigadores y
a los aprendizajes en los espacios escolares sino comunidades académicas que dan prioridad a
a una diversidad de lugares, dimensiones e otras temáticas. Por otra parte, cabe mencionar
identidades de los jóvenes y adultos. También que son mínimos los programas que se estudian
coincide con la visión ampliada de la EPJA con alusión directa a la EPJA.
y marcan un distanciamiento con enfoques Otro aspecto importante es que, al
novedosos como la andragogía, promovida comparar los contenidos temáticos de las
en los años 70 por influyentes representantes tesis que se mencionan en el siguiente punto
como Roque Ludojoski en Argentina, Félix (particularmente los procesos de aprendizaje y
Adam en Venezuela y por la Unesco en los años saberes de la EPJA, currículo y evaluación), el
80. Asimismo de los enfoques de Animación lector observará que su estudio es mínimo en
sociocultural y la Pedagogía social que se los programas de licenciatura y posgrado de
ofertan en programas universitarios en los orientación psicopedagógica (tabla 5).
países europeos. Puede afirmarse que a pesar
de los avances en la investigación en EPJA, Comparación entre áreas
en los programas de maestría y doctorado de temáticas
la región aún distan mucho de consolidarse,
salvo Cuba y Brasil en donde ha tenido una Una vez identificados los temas de las
influencia importante en este último país el 170 tesis de EPJA, se estableció su coincidencia
Grupo de Trabajo en Educación de Adultos e inserción con las áreas de intervención e
dentro de la ANPED (Associação Nacional de investigación del Marco de Acción de la EPJA
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação). 2000-2010, conformándose tres grupos. El
Como ya se mencionó, Brasil y Bolivia primero incluye cuatro áreas temáticas con el
son los únicos países en los cuales se cursaron mayor número de tesis (catorce a veintiuno): 1.
tres programas de especialidad en EPJA. Esta Programas de formación; 2. Diversidad cultural;
situación concuerda con la afirmación de Maria 3. Alfabetización; 4. Género y educación. El
Clara de Pierro (2008, p. 124) cuando señala que segundo grupo aborda cuatro temas con cinco
“las licenciaturas y los cursos de especialización a siete tesis: educación y trabajo, educación
para profesores de EPJA son poco numerosas, y ciudadanía, procesos de aprendizaje y
lo que confirma la reducida participación de las desarrollo local. El tercer grupo está integrado
universidades con el asunto”. por las nueve áreas restantes con un mínimo
Por lo que al género se refiere, en todos los de dos a cuatro tesis incluyendo a dos áreas sin
países concursantes, la hegemonía de las mujeres ninguna tesis (futuros escenarios de la EPJA y
es evidente y su inclinación por los estudios de las reformas educativas) (tabla 5).
EPJA obedece, de acuerdo a las estadísticas El anterior panorama no deja de ser
sobre la distribución de la matrícula por áreas desalentador porque del total de las áreas
de conocimiento y género en la última década propuestas en el Marco de Acción, la cantidad
de gran parte de los países latinoamericanos, de tesis del primer grupo, representan apenas
a su creciente participación en los estudios de una cuarta parte del total, mientras que el 75%
educación superior, particularmente en el área de las temáticas es muy bajo. Un ejemplo de una
educativa, de las ciencias sociales, humanidades línea de acción propuesta en dicho Marco fue la
y de la salud (DE SIERRA; RODRÍGUEZ, 2005). de currículo y evaluación con apenas dos y tres
Conjeturamos que otras razones de esta tesis respectivamente. En síntesis, a excepción

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 711


Tabla 5- CREFAL. Concurso de tesis 2005- 2011. Relación de áreas temáticas de intervención e investigación del Marco de
Acción Regional para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010 y número de tesis por programa académico
Tesis de EPJA por Programa
Áreas temáticas de intervención* e investigación** del Marco de Acción Regional Académico Núm.
para la EPJA en América Latina y el Caribe 2000-2010
L E M D
1. Alfabetización 6 0 7 1 14
2. Educación y trabajo 2 0 3 2 7
3. Educación, ciudadanía y derechos humanos 0 0 2 3 5
4. Educación y género 4 2 5 3 14
5. Educación, desarrollo local y sostenible 0 0 5 0 5
6. Futuros escenarios de la EPJA 0 0 0 0 0
7. La demanda de la EPJA 1 0 2 1 4
8. La EPJA y las Reformas educativas. 0 0 0 0 0
9. Procesos de aprendizaje y saberes de las personas jóvenes y adultas 3 0 2 1 6
10. Enfoques y prácticas curriculares 2 0 0 0 2
11. Modalidades de evaluación y acreditación 1 0 2 0 3
12. Programas de formación y la formación de los educadores 8 0 9 4 21
13. Estrategias y programas para mejorar la calidad educativa 1 0 1 0 2
14. Indicadores de impacto de la EPJA 1 0 2 1 4
15. Diversidad cultural y lingüística y educación intercultural bilingüe. 9 0 6 5 20
16. Programas innovadores y/o alternativas de educación no formal 1 0 2 0 3
Total 39 2 48 21 110
* 1-5.
** 6-16. El mundo del trabajo y su relación con las personas jóvenes y adultas quedó incluido en el punto 5.
L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.

Tabla 6- Nuevas áreas temáticas de las tesis del Concurso CREFAL (2005-2011) y su distribución por grado académico

Nuevas Áreas temáticas L E M D Núm.

1. Educación básica 4 0 7 2 13
2. Educación y Tecnologías de la Información y Comunicación. 1 0 6 2 9
3.Sistematización de prácticas educativas 0 0 1 0 1
4. Educación y conocimientos disciplinares 0 0 1 0 1
5. Políticas públicas 0 0 5 2 7
6. Educación con adultos mayores 2 0 5 0 7
7. Educación en contextos de encierro 4 0 2 1 7
8. Educación popular 5 0 0 1 6
9. EPJA con capacidades diferentes 0 0 0 1 1
10. Educación y movimientos sociales 0 0 0 2 2
11.Gestión 0 0 1 0 1
12. Ensayos sobre Paulo Freire 0 0 1 1 2
13. Educación y salud pública 0 0 1 0 1
Total 16 0 30 12 58
L= Licenciatura. E= Especialidad. M= Maestría. D= Doctorado
Fuente: Elaboración propia con datos proporcionados por el CREFAL.

712 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
de los temas de formación de educadores y propuestos en el Marco de Acción y coincide a
diversidad cultural, son ínfimas las tesis que su vez con las diez tesis premiadas en el periodo
abordaron las propuestas de investigación analizado, pues cuatro de ellas se refieren a la
del Marco de Acción, considerando que alfabetización y el resto a temáticas diversas
son prioritarios y requieren conocimientos (CREFAL, 2011).
imprescindibles para una mayor comprensión y 3. Diversas líneas temáticas de
resolución de problemas del campo de la EPJA. incuestionable relevancia cuentan con muy
Con respecto a las nuevas áreas temáticas pocas tesis o con ninguna (evaluación, reformas
que se incluyen en la tabla 5A, a excepción de educativas, calidad, desarrollo local, salud,
la educación básica con el mayor número de programas innovadores, etc.). A este respecto,
tesis, tienden a cobrar fuerza las TIC y en menor el Informe para CONFINTEA VI coincide en
medida otras problemáticas y poblaciones que la calidad y el aprendizaje siguen siendo
específicas a las que no se había prestado la distantes (TORRES, 2009) mientras que en el
atención necesaria con seis a siete trabajos cada Informe Regional de Caruso, Di Pierro, Ruiz y
uno (las políticas públicas, los adultos mayores, Camilo (2008), se plantea la hipótesis de que
las personas consideradas discapacitadas, los varias de estas ausencias son producto de la
migrantes y quienes se encuentran en contextos falta de liderazgo simbólico de la EPJA en la
de reclusión). El resto se distribuye en temáticas actual coyuntura, lo que le impide articular
diversas con una a dos tesis. en su marco de acción las políticas y prácticas
en temas como: la educación ambiental, para
Comparación con los Informes la salud o para la incorporación de las TIC. De
Regionales igual modo, y pese a los avances en evaluación
de algunos países (Brasil, El Salvador, México
Al comparar estos resultados con los y Chile), se subraya que la falta de cultura e
Informes Regionales para CONFINTEA VI investigación en esta materia dificulta conocer
(TORRES, 2009) y el Informe Regional de CREFAL los impactos de los programas y proyectos de
y CEAAL (CARUSO et al., 2008), se observan al la EPJA (TORRES, 2009; CARUSO et al., 2008).
menos cuatro coincidencias: 4. El impulso dado a las buenas prácticas
1. El reconocimiento de avances en la educativas y la importancia de su difusión,
investigación educativa pero insuficientes y con tampoco aparece en las tesis concursantes
una marcada distribución desigual (TORRES, 2009), al igual que los programas innovadores,
concentrándose en los países grandes: Brasil, las alternativas de educación no formal y
Argentina y México y Cuba en la región caribeña. los movimientos sociales. En este sentido,
2. La alfabetización, línea de coincidimos en que su escasa diseminación y la
investigación fuertemente asociada con la aplicación de los resultados de investigación y
EPJA, deja de tener primacía, tomando su evaluación siguen sin influir en los diseños de
lugar problemáticas como la formación, el las políticas, la capacitación o en la enseñanza
género, la interculturalidad y la nuevas áreas (TORRES, 2009, p. 48). Llama la atención que en
temáticas que, en su conjunto, desplazan a la Venezuela, por ejemplo, no se hayan reportado
alfabetización y la educación básica e inclusive tesis sobre el papel de la Misiones Robinson.
superan a nueve temas propuestos por el Marco En resumen, este balance temático
de Acción (tabla 5), no obstante su menor invita a reflexionar acerca del interés por
visibilidad, impacto y legitimidad política problematizar y, en su caso, cubrir estos vacíos
(TORRES; 2009). Este desplazamiento significa para aportar no solo bases teóricas que orienten
a su vez, un giro gradual pero desequilibrado las prácticas educativas sino para reclamar y
hacia los grupos y ámbitos de intervención hacer valer la importancia de la EPJA como

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 713


campo educativo abierto, dinámico, incluyente abordarse e invitan a los futuros egresados y
e indispensable para mejorar las condiciones de estudiosos del campo de la EPJA a retomarlos en
vida económica, social, cultural y política de sus proyectos de intervención e investigación.
toda la población desprovista de oportunidades Se constata a su vez que la EPJA es abordada
de aprendizaje. predominantemente en universidades públicas,
por mujeres y en programas de licenciatura y
Conclusiones posgrado en educación en términos genéricos
o desde las ciencias de la educación y la
El examen comparativo de las tesis del psicopedagogía. No obstante, coexisten con una
concurso permitió valorar positivamente su variedad de programas que la analizan con una
importancia porque a través de él se fomenta visión que no se reduce a lo educativo. Asimismo
y conoce el estado que guarda la investigación son escasos los programas ofertados por las
de la EPJA en la región latinoamericana. En universidades con referencia directa a la EPJA
este sentido si bien hay avances, el panorama y a la formación especializada de educadores de
no es optimista ya que la participación en este adultos. Por esta razón es imprescindible una
certamen indica que la investigación de la EPJA mayor vinculación de las universidades con el
es débil, desigual y con una fuerte tendencia campo de la EPJA para fortalecer la formación
a su diversidad temática. En efecto, el interés antes mencionada y el desarrollo de proyectos
investigativo por la alfabetización y la educación de investigación educativa para contribuir,
básica fue reemplazado en los últimos años por entre otros aspectos, a la sistematización de
múltiples temáticas pero las tesis relacionadas experiencias que se quedan en el olvido y a la
con las propuestas de investigación del Marco ineludible redefinición conceptual de la EPJA
de Acción fueron mínimas, lo que mantiene un en el marco del aprendizaje a lo largo de toda
núcleo de problemas prioritarios que siguen sin la vida.

714 Jaime Rogelio Calderón LÓPEZ-VELARDE. La investigación sobre educación de personas jóvenes y adultas:...
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DE SIERRA, Rosaura; RODRÍGUEZ, Gisela. Feminización de la matrícula de educación superior en América Latina y el Caribe.
México: IESALC/UNESCO/UDUAL, 2005.

DI PIERRO, Maria Clara. Redefinición de la educación de adultos en Brasil. Revista Interamericana de Educación de Adultos,
México, v. 27, n. 2. p. 7-26, 2005.

______. Notas sobre la trayectoria reciente de la educación de personas jóvenes y adultas en Latinoamérica y el Caribe. In:
CARUSO, Arlés, et al. Situación de la educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe: informe
regional. México: CREFAL/CEAAL, 2008. p. 11-125.

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cuestiones sociales, Antología. México: CREFAL, 2008. p. 521-535. (Paidea Latinoamericana).

TORRES, Rosa María. De la alfabetización al aprendizaje a lo largo de toda la vida: tendencias, temas y desafíos de la
educación de personas jóvenes y adultas en América Latina y el Caribe. Hamburgo: UNESCO, Institute for Lifelong Learning,
2009. Disponible en: <unesdoc.unesco.org/images/0018/001829/182951s.pdf>. Acceso en: 21 mar. 2013. Síntesis del Reporte
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2000-2010. Santiago: UNESCO/CEEAL/CREFAL/CINTERFOR/OIT, 2000.

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regional de América Latina y el Caribe para la Conferencia De Seguimiento a CONFINTEA V, Hamburgo: UNESCO, Instituto de
Educación, Septiembre 2003. Disponible en: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001389/138996s.pdf>. Acceso en: 7
jun. 2013.

Recebido en: 08.06.2013

Aprobado en:11.09.2013

Jaime Rogelio Calderón López-Velarde cursó la Maestría en Pedagogía en la Universidad Pedagógica Nacional (UPN) y el
Doctorado en Ciencias de la Educación en la Universidad de Sevilla. Actualmente se desempeña como coordinador del Programa
de Investigación y Posgrado en la Unidad Zacatecas de la UPN.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 699-716, jul./set. 2014. 715


O sucesso escolar de meninas de camadas populares:
qual o papel da socialização familiar?I

Marília Pinto de CarvalhoII


Adriano Souza SenkevicsII
Tatiana Avila LogesII

Resumo

Este artigo apresenta resultados de um estudo qualitativo que


procurou conhecer os processos de socialização de gênero no
interior de oito famílias de setores populares na cidade de São Paulo.
Aqui enfocamos alguns dos aspectos que nos pareceram relevantes
na compreensão da trajetória escolar melhor sucedida das meninas.
Ao longo de 2011, foram feitas entrevistas semiestruradas com oito
mães, dois pais e dez crianças, além de conversas e observações
nas escolas, envolvendo ao todo 26 crianças e jovens. Obtivemos
indicações de que: a socialização de gênero no âmbito das famílias
de setores populares urbanos favorece nas meninas, e não nos
meninos, o desenvolvimento de comportamentos frequentemente
desejados pelas escolas, tais como a disciplina, a organização
e a obediência (ou formas de desobediência menos visíveis); ao
mesmo tempo, essa socialização faz com que a frequência à escola
tenha significados diferentes para garotas e garotos, uma vez que
elas são responsabilizadas pelo trabalho doméstico e têm muito
menos oportunidades de sociabilidade. Essas mesmas restrições
parecem fazê-las valorizar atividades extracurriculares com
formatos próximos ao escolar e desenvolver aspirações ligadas
a uma escolarização prolongada e a profissões qualificadas. A
existência mesma desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode
ser impulsionadora de maior empenho nos estudos, realimentando
a roda do sucesso escolar das meninas, que parece surgir de dentro
da própria subordinação de gênero.

Palavras-chave

Desempenho escolar — Gênero — Socialização familiar — Setores


populares urbanos — Meninas.
I- Pesquisa financiada pelo CNPq
II- Universidade de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
Contatos: mariliac@usp.br;
adrianosenkevics@gmail.com;
tkal@terra.com.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637 717
School success of girls from poor communities: what is
the role of family socialization? I

Marília Pinto de CarvalhoII


Adriano Souza SenkevicsII
Tatiana Avila LogesII

Abstract

This article presents results of a qualitative study that sought


to understand the processes of gender socialization within eight
families from poor communities in the city of Sao Paulo. We focus
on some aspects that seem relevant to understand the academic
success of girls. Throughout 2011, semi-structured interviews
were conducted with eight mothers, two fathers and ten children,
as well as conversations and observations in schools, involving
26 children and young people. We obtained evidence that
gender socialization within families of urban poor communities
encourage the girls, not the boys, to develop the behaviors mostly
desired by schools, such as discipline, organization and obedience
(or less visible forms of disruption). At the same time, this type of
socialization makes school attendance have different meanings for
girls and boys, since the girls are held responsible for housework
and have far fewer opportunities for sociability. These restrictions
seem to make them appreciate extracurricular activities under
schooled forms and develop aspirations associated with schooling
and skilled occupations. The very existence of such ambitious
projects, whether realistic or not, may be driving girls’ greater
commitment to education, and may be feeding back their academic
success, which seems to arise from the very gender subordination.

Keywords

School achievement — Gender — Family socialization — Poor


urban communities — Girls.

I- Research funded by CNPq


II- Universidade de São Paulo,
São Paulo, SP, Brasil.
Contacts: mariliac@usp.br;
adrianosenkevics@gmail.com;
tkal@terra.com.br

718 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091637 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014.
Já não é novidade constatar o sucesso por meio de estudo qualitativo, os processos
escolar das meninas no Brasil. Apontado por de socialização de gênero no interior de oito
Rosemberg desde a década de 1970, o melhor de- famílias de setores populares na cidade de São
sempenho das mulheres em sua trajetória de es- Paulo. Aqui enfocamos alguns dos aspectos que
colarização vem sendo objeto de estudos quan- nos pareceram relevantes na compreensão da
titativos e qualitativos (ROSEMBERG; MADSEN, trajetória escolar das meninas. A fim de evitar
2011; FERRARO, 2010; CARVALHO, 2009). conclusões universais, o estudo focou famílias
Entretanto, a explicação desse fenômeno de setores populares urbanos, levando em conta
comum à maioria dos países ocidentais que, em camadas sociais diferentes ou no meio
apresenta desafios teóricos, seja por significar rural, é possível que o melhor desempenho escolar
uma inversão na assimetria entre homens e feminino seja resultado de outros processos.
mulheres presente no conjunto da sociedade, seja Ao lado desse esforço para evitar
por induzir muito facilmente a generalizações essencialismos, buscamos também escapar
de caráter essencialista (ROSEMBERG, 2001). de certa polarização que tem permeado os
São comuns explicações universais como, estudos nesse campo. De um lado, a explicação
por exemplo, a hipótese de que a socialização mencionada acima está baseada no que pode ser
familiar das meninas seria mais compatível com chamado de “síndrome da situação subordinada
as exigências das escolas – ligadas à disciplina, da mulher” (SILVA, 1993, p. 82), análises que
organização, capricho, submissão e silêncio –, colocam o sucesso escolar das meninas como
enquanto os meninos seriam socializados para simples reforço de sua subordinação. Na
evitar a introspecção e a sensibilidade e para tentativa de romper com essa vitimização,
cultivar a rebeldia e a agitação. algumas estudiosas trazem para primeiro plano
Pesquisas brasileiras sobre o ensino a atuação deliberada de meninas e moças
fundamental público, desenvolvidas em em busca de seu sucesso escolar, que seria
diferentes regiões do país, reiteram esse tipo construído por elas. Silva (1993), por exemplo,
de explicação (SOUZA, 2007; PALOMINO, inverte a afirmação, mostrando que a maioria
2004; CARVALHO, 2005; CAVALCANTI, 2002) das alunas do ensino médio no Colégio Pedro
e insistem na ideia de que os comportamentos II, por ela estudadas, eram autônomas, ativas e
valorizados pela escola seriam aqueles cultivados envolvidas com atividades extracurriculares, de
pelas famílias nas meninas e não nos meninos. forma contrastante com seus colegas do sexo
Em outra vertente, estudos a respeito das relações masculino, o que resultava para elas em melhor
que as famílias mantêm com a escolarização dos desempenho escolar.
filhos assinalam a interdependência entre as Outras pesquisadoras destacam aspectos
condições sociais de origem e as formas dessas contraditórios da inserção feminina no
relações (NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2000 trabalho doméstico, que não apenas facilitaria
e 2013; ALMEIDA, 2009; BRANDÃO, 2010). a continuidade dos estudos, em termos de
Com apoio frequente nos estudos de Bourdieu horários e flexibilidade, como também levaria
e seus leitores, essas pesquisas, embora atentas as moças, por contraste, a uma percepção
a diversos aspectos das ações das famílias e dos positiva e agradável da escola. Tanto Madeira
sujeitos frente a seus processos de escolarização, (1997) quanto Rosemberg, Piza e Montenegro
raramente se perguntaram a respeito das (1990) enfatizaram a ideia de que a escola
diferenças entre os sexos1. aparece para muitas meninas e moças como
Este artigo é resultado de pesquisa que expressão de alguma liberdade de circulação
procurou avançar nessa lacuna, conhecendo, e como lugar de ampliação do convívio
social frente à quase reclusão em que vivem
1 - Uma exceção é o doutorado de Glória (2009). – reforçada pelo controle familiar sobre sua

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 719


circulação e lazer. As meninas veriam na Nos questionários das oito famílias
escola um “respiradouro”, nas palavras de pesquisadas, aparecem tanto o nome da mãe
Madeira (1997), lugar em que disporiam de um quanto o do pai e não foi utilizado o espaço
tempo para si mesmas, fora do controle estrito destinado a “outros responsáveis”, o que pode
da família e longe das tarefas do lar. Duque- indicar uma busca de conformidade ao modelo
Arrazola (1997) encontrou até mesmo meninas de família nuclear completa, por se tratar de
recifenses que consideravam a jornada escolar um documento escrito enviado pela escola.
como momento de descanso. Contudo, ao realizar as visitas e entrevistas,
Procuramos romper com abordagens identificamos a presença de duas avós como
dicotômicas e apreender as dimensões cuidadoras regulares das crianças e duas
contraditórias das relações de poder ligadas ao famílias monoparentais. Numa delas, residia
gênero, que constituem ao mesmo tempo formas no domicílio uma bebê, filha de uma das
de subordinação e de autonomia. E, para não irmãs, então com quinze anos de idade. Mas
reiterar pressupostos afirmados de antemão, a coabitação de três gerações familiares por
buscamos apreender na análise tanto dimensões vezes não era evidente, pois se tratava de casas
de ruptura quanto de manutenção das posições conjugadas ou superpostas no mesmo quintal.
subordinadas das mulheres. Dessa forma, consideramos como família
ou grupo familiar o conjunto de pessoas que
Caracterização dos sujeitos cuidava ou partilhava dos mesmos cuidados
das crianças a partir de quem demos início à
Os sujeitos centrais da pesquisa são pais e pesquisa, independentemente dessas pessoas
mães localizados a partir de três escolas públicas residirem no mesmo domicílio e de seu grau
da zona oeste do município de São Paulo, nas de parentesco. Ainda assim, quase sempre
quais seus filhos ou filhas estudavam. Em cada nossas entrevistas envolveram somente mães,
escola, um questionário de caracterização do que compareciam à reunião na escola ou
grupo familiar dos/as alunos/as foi respondido se dispunham a ser entrevistadas. Em duas
pelos “responsáveis” e, a partir dele, foram famílias, foram entrevistados também os pais2
selecionadas famílias que tinham pelo menos e, em uma, participou a avó.
um filho de cada sexo em idade escolar e que se Do ponto de vista socioeconômico,
dispuseram a participar da pesquisa. podemos dizer que havia grande homogeneidade
A primeira questão a esclarecer, que já entre as oito famílias estudadas: declararam
se revela nas aspas sobre o termo responsáveis renda mensal entre R$ 950,00 e R$ 2.500,00;
é quem consideramos como família da criança. a escolaridade dos casais era no máximo o
Dada a dificuldade em definir o conceito ensino médio incompleto, predominando o
de família – já apontada, por exemplo, por fundamental completo ou não; as profissões
Romanelli (2013) –, mantivemos nosso foco eram de baixa qualificação, com a maioria
na dimensão empírica dos grupos familiares, das mulheres ocupadas como empregadas
acompanhando estudos críticos, como os de domésticas e dos homens como trabalhadores
Fonseca (2005) e de Meyer e colaboradoras da construção civil; e a maior parte das
(2012). Assim, buscamos evitar os pressupostos pessoas que trabalhavam fora estava inserida
de uma família nuclear completa, composta no mercado informal. Em seis famílias, a
por pai, mãe e filhos, residentes num único prole se compunha de três ou mais filhos/as
domicílio e compartilhando a mesma renda; e sete moradias eram muito parecidas: casas
ao mesmo tempo, atentamos para as diferentes pequenas, de alvenaria, construídas pelos
dinâmicas dos grupos familiares, conforme
ampliávamos nossos contatos com eles. 2- O termo pais designará sempre os genitores de sexo masculino.

720 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
próprios moradores em favelas. Contavam com 14 alunos de sexo masculino, apenas cinco fo-
luz elétrica, água encanada e banheiro, mas ram caracterizados como “medianos” ou “sem
os serviços de esgoto e de coleta de lixo eram problemas”, nenhum como excelente e nove
precários ou inexistentes e eram frequentes os outros “apresentavam dificuldades” de apren-
relatos de violência policial. Contudo, essas dizagem e/ou disciplina, histórico de reprova-
residências tinham móveis novos, televisão HD ções e repetidas convocações dos responsáveis
de tela grande, computadores e video games, à escola. Embora construído aleatoriamente,
eletrodomésticos novos e telefones celulares. trata-se, portanto, de um grupo que corres-
Quatro dos grupos familiares tinham carro e ponde às características de desempenho esco-
quase todos vivenciaram, nos anos recentes, um lar que temos encontrado em nossos estudos
aumento de sua capacidade de consumo, com (CARVALHO, 2009), assim como em diversas
acesso a crédito e bens duráveis. outras pesquisas no Brasil e em outros países.
Ao longo de 2011, foram gravadas
entrevistas semiestruradas com oito mães, dois Sobre regras, controles e medos
pais e dez crianças, em seis3 residências. Em
cinco das visitas, filhos e filhas participaram em O tratamento igualitário entre os
diferentes momentos da conversa, tanto ao lado sexos no interior do casal e na educação de
quanto separadamente dos adultos. Buscamos filhos e filhas é um dos ideais associados aos
nas escolas informações sobre o desempenho modelos contemporâneos de família, ao lado
das crianças, seja em documentos seja em da valorização da infância, da afetividade e
conversas com educadoras, e ali também intimidade, assim como a presença de relações
realizamos observações e conversas informais não hierárquicas entre os grupos de idade e
com tais crianças. o primado do indivíduo sobre o coletivo (DE
Assim, foram envolvidos na pesquisa SINGLY, 1996). Em estudo realizado junto
14 meninos e 12 meninas, entre 6 e 18 anos a crianças moradoras em favelas do Rio de
de idade4. Desse total de 26 crianças e jovens, Janeiro, no início da década de 1990, Heilborn
estavam fora da escola apenas: Jeferson5, de 18 (1997) destaca que, se esse modelo é “capital na
anos, que abandonara o 1o. ano do ensino médio sociedade contemporânea, está longe, contudo,
no ano anterior à pesquisa, contra a vontade de de ser um fato universalizado”, uma vez que
sua mãe; e Silvana, de 15 anos, que, já grávida, o processo de difusão do individualismo
concluíra o ensino fundamental “empurrada”, “tomou como alvo, primeiramente, as camadas
de acordo com a coordenadora da escola, e, médias e altas da sociedade moderna” (p. 297).
no momento da entrevista, dedicava-se ao Assim, a autora encontrou lógicas distintas
cuidado da filha. Todos estudavam em escolas de organização das relações e das práticas
públicas de ensino fundamental ou médio. A sociais nas famílias que estudou, apontando,
respeito de 19 deles, obtivemos informações de em consonância com outros estudos sobre a
seu desempenho acadêmico junto à escola; nos cultura dos trabalhadores urbanos no Brasil dos
demais casos, recorremos às famílias. anos 1980-90, a prevalência do grupo sobre o
Dentre as 12 meninas, oito eram boas indivíduo, a presença de relações hierárquicas
alunas, oscilando entre “excelentes” e “media- entre os sexos e as categorias de idade, além da
nas”, e quatro “apresentavam dificuldades” de força de valores ligados à família e ao trabalho.
aprendizagem, nunca de disciplina. Já entre os Se, por um lado, não devemos nos iludir
que houvesse, tanto quanto nos anos 1990
3- Duas famílias foram entrevistadas nas escolas. como hoje, relações igualitárias e não violentas
4- Também faziam parte das famílias dois bebês com menos de 2 anos
e duas crianças com 4 anos. no interior das famílias de camadas médias e
5- Todos os nomes são fictícios. altas, as duas décadas que separam a pesquisa

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 721


empírica de Heilborn da nossa parecem ter Por exemplo, Lívia, ouvindo a mãe
contribuído para uma maior difusão nas (Aldilene) afirmar que as regras em casa eram
camadas populares dos ideais igualitários, do iguais, disse baixinho, para a pesquisadora
modelo de família como suporte à realização auxiliar, que não a deixavam ficar no
individual e do respeito às particularidades de computador até tarde, mas a mesma restrição
cada criança. A comparação, feita por uma de não era feita ao irmão, que, segundo ela, ficava
nossas entrevistadas, entre a criação de seus no computador até de madrugada. Já Keila,
próprios filhos em São Paulo e a educação mãe citada acima, logo após afirmar que só via
recebida por ela (e ainda hoje por seus diferença entre filho e filhas nas roupas íntimas,
sobrinhos) numa pequena cidade baiana, não disse: “acho que as meninas dão mais trabalho”.
deixa dúvidas sobre mudanças na hierarquia Assim como Keila, quase todos os
entre categorias de idade e sobre sua dimensão pais e mães disseram se preocupar mais
não apenas temporal, mas também espacial com as meninas, consideradas mais frágeis,
(rural/urbana): vulneráveis: “Eu acho assim que menino
homem é mais... nada pega, né, em menino
Quando minha mãe esteve aqui, ficou homem. Já em menina mulher é mais... tem que
horrorizada. Nossa criação lá no norte ter um pouco de cuidado” (Marinete, quatro
era outra; dos meus sobrinhos ainda é. Lá filhas e três filhos).
as crianças rezam pra dormir, rezam pra Era evidente a preocupação dessas mães
comer, pede benção pro pai e pra mãe. com a gravidez na adolescência, vivida por seis
Aqui as crianças já respondem pro pai, pra delas, quando tinham entre 14 e 17 anos de
mãe. Lá as crianças vão na missa. Aqui idade. Mas também apareceram preocupações
não, as crianças tão gritando, fazendo com os meninos, tanto diante da possibilidade
bagunça. Lá, se tem adultos conversando de “arrumar criança” quanto em razão do perigo
assim, elas nem passam perto que é pra de envolvimento com drogas e violência: “eu
não atrapalhar. (Marinete, 32 anos, quatro tenho medo e eu me preocupo mais, do jeito
filhas e três filhos) que estão as coisas hoje em dia. Eu dou mais
em cima dele porque ele é menino e eu me
Esse novo ideário parece também preocupo mais com ele” (Alice, um filho e duas
deslegitimar a afirmação explícita de diferenças filhas). De toda forma, as meninas eram muito
de tratamento conforme o sexo e valorizar mais vigiadas e tinham horários e espaços de
uma educação personalizada, ajustada às circulação mais restritos que seus irmãos.
necessidades de cada criança. Assim, ouvimos De maneira muito semelhante, Barroso,
em todas as entrevistas uma fala inicial que entrevistando jovens portugueses que tinham
afirmava a igualdade de regras e exigências pelo menos um irmão do sexo oposto, constatou
para toda a fratria: “O que serve pra um tem que “está-se perante uma igualdade proclamada,
que servir pra todos” (Edinalva, uma filha e mas desmentida pelos factos” (2008, p. 8). Os
três filhos); “em casa, as regras são iguais pros relatos obtidos pela autora permitiram-lhe
dois” (Aldilene, um filho e uma filha); “na afirmar que o sexo e a ordem de nascimento
minha casa, é assim: eu só sei que o Daniel continuam a ser “os principais critérios de
veste cueca e as meninas vestem calcinha, construção e desconstrução da igualdade
mas, no resto, a regra aqui em casa é para todo de direitos e deveres entre irmãos/irmãs” e
mundo” (Keila, um filho e três filhas). Essa que, “nos casos em que essa desigualdade de
ideia proclamada de igualdade, contudo, era tratamento não é assumida, apresenta-se de
desmentida seja na sequência das entrevistas, forma implícita” (2008, p. 8).
seja nas falas das crianças.

722 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
Não podemos desprezar o contexto Cabe destacar, contudo, que essas
da entrevista, como relação assimétrica, e o características personalizadas eram invocadas
fato de que sujeitos que não necessariamente para justificar desigualdades de gênero nas
acreditavam numa educação igualitária entre os regras e tarefas atribuídas, com maior peso
sexos facilmente deduziriam ser essa a posição sobre as meninas. Ora elas precisavam ser
dos(as) entrevistadores(as), em razão do próprio mais controladas por serem mais jovens, ora
tema da pesquisa, que lhes foi explicitado. por serem mais velhas; por serem delicadas
Assim, Evonete, por exemplo, mãe de dois ou desobedientes e atrevidas; ora lhes cabia
meninos e uma menina, empregada doméstica, maior fatia do trabalho doméstico por serem
que concluíra o ensino médio na modalidade primogênitas, ora por serem prestativas, ou
EJA há cerca de dois anos, evitou ao máximo porque seus irmãos eram desajeitados; uma
fazer generalizações sobre homens e mulheres e era descrita como frágil, outra como “songa-
tentou contornar a ideia de que as regras para monga”6, uma terceira como pretensiosa, e
filha e filhos eram diferentes. Mas, em entrevista todas essas características justificavam maior
feita separadamente, seu filho Luciano (9 anos) controle ou preocupação.
afirmou que a irmã de 7 anos não podia brincar Em síntese, os modelos educativos que
de carrinhos porque sua mãe não deixava – “É, encontramos dialogavam em diferentes graus
carrinho é pra menino” –, da mesma forma que com as prescrições de infância, igualitarismo e
ele não podia brincar de boneca. individualidade, presentes nos ideais de família
Talvez com menor preocupação em contemporâneos, mas não rompiam com a
demonstrar um discurso adequado para os(as) desigualdade de gênero: por meio de uma
pesquisadores(as), Marta (avó de três meninas e vigilância mais estrita dos pais e mães, as filhas
um menino), declarou: pareciam aprender desde muito cedo certas
características que as professoras reconhecem
Homem pode tudo [...]. Eu acho que todas como femininas e frequentemente valorizam,
as meninas são mais cobradas, pelo que tais como a organização, a obediência, o
a gente vê, no geral [...]. Então, a minha silêncio e a calma. Provavelmente faziam parte
opinião é essa aí: que a mulher é mais desse aprendizado até mesmo as formas de
cobrada em tudo, e tem que fazer, tem que romper com as regras de maneiras discretas e
estudar, tem que trabalhar dentro de casa – que significavam menor enfrentamento direto,
e o menino não. O Daniel é o dia inteiro no já descritas, por exemplo, por Bernardes (1989).
computador. Essas características apareciam para pais e
mães como espontâneas, naturais e derivadas
A maioria dos pais e mães buscava explicar do simples fato das filhas serem meninas.
as diferenças no tratamento que davam a meninos
e meninas a partir de características individuais A divisão de trabalho entre
de cada criança, recorrendo aos ideais de uma pai e mãe
educação personalizada: “Porque são quatro e
nenhum dos quatro tem a mesma cabeça, nenhum Em nossa sociedade, pais e mães
dos quatro pensa igual. Como todo ser humano” envolvem-se no cuidado com a prole e nas tarefas
(Edimara, uma filha e três filhos). Chamou nossa domésticas de forma muito desequilibrada em
atenção a frequência dessas falas, assim como de termos do tempo empregado e do tipo de tarefa
descrições das características ou história de cada desenvolvida, questão já explorada na literatura
filho(a) – doenças, período vivido longe da mãe, (PINHEIRO et al., 2008; BRUSCHINI, 2006).
influência da avó etc. –, que indicam a difusão
desse modelo de educação individualizada. 6 - Boba, sonsa.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 723


Mesmo quando trabalhavam fora, as mães natural na vida doméstica” (p. 53). O autor põe
continuavam como as principais responsáveis em relevo as relações de poder entre homens
pelos afazeres domésticos. Quando declaravam e mulheres, ao lado das tentativas das mães
dividir esse trabalho, as tarefas feitas pelos pais de controlar o espaço doméstico e a educação
eram consideradas como ajuda: “O serviço é meu dos filhos e filhas. Isso se tornou evidente para
e ele me ajuda” (Evonete, família 6). Quando nós, por exemplo, quando tentamos ter acesso à
presentes nas entrevistas, os pais por vezes residência de Regina e André para lá entrevistar
comentavam orgulhosos sobre tarefas que tinham seus filhos. Ao ouvir esse pedido, ele nos
cumprido recentemente, o que só ressaltava seu respondeu: “Aí tem que marcar com a mulher.
caráter excepcional: “A gente divide. [...] Eu lavo Porque aí quem manda é a mulher”.
louça... arrumo a casa. Ontem mesmo, eu limpei Assim, embora tentássemos incluir os
tudo, lavei o banheiro” (Wilson). pais, apenas dois foram entrevistados, o que nos
Bruschini e Ricoldi (2012) encontraram, levou a prestar atenção a possíveis vieses nas
em pesquisa qualitativa com grupos de homens falas das mães, que poderiam estar marcadas
dos setores populares, uma maior participação por seu esforço em manter o poder sobre essa
deles no cuidado com os filhos e na limpeza esfera da vida. Brugeilles e Sebille (2009),
da casa, seja em relação a estudos anteriores analisando os resultados de questionários sobre
seja frente à percepção inicial deles próprios de a participação de pais no cuidado e educação
que esses seriam assuntos pertinentes apenas de filhos/as na França, encontraram diferenças
às mulheres. Assim, embora as companheiras significativas conforme a resposta fosse dada
gastassem mais horas do que eles nessas tarefas, por pais ou por mães. “Cada um valorizava
ao detalharem sua rotina, os homens revelaram seu próprio papel” (p. 21), dizem os autores,
ter alguma participação. O mesmo ocorreu nas que interpretam essas diferenças como fruto
famílias ouvidas por nós, com a maioria dos das relações de poder, mas também como
pais que coabitavam com as crianças sendo resultado de formas diferentes de definir cada
descritos por si mesmos ou pela parceira como tarefa e como consequência da legitimidade
participativos e presentes em pelo menos dos discursos de divisão igualitária do trabalho
algumas das tarefas de cuidado. entre os sexos. Algumas de nossas entrevistadas,
Em geral, os pais eram responsáveis pelo ao contrário, provavelmente em razão desses
transporte das crianças para a escola quando mesmos valores igualitários, tenderam a
a família tinha carro, e alguns frequentavam supervalorizar a atuação de seus parceiros: “Na
as reuniões escolares, principalmente quando realidade, quem não faz muita coisa aqui sou
tinham escolaridade maior que a mãe ou horários eu” (Keila). Ou, quando entrevistadas por duas
de trabalho mais flexíveis. Mas as mães eram as mulheres, buscavam nossa cumplicidade: “O
principais responsáveis pelo acompanhamento André colabora. [risos] Vocês sabem como é,
das lições de casa e pela educação das homem ajuda, né?” (Regina).
crianças, o que teve consequências na pouca De toda forma, parece-nos fundamental
disponibilidade dos pais para participar das destacar que se trata de relações de poder
entrevistas da pesquisa. com supremacia masculina (e aqui não nos
Estes eram também territórios de deteremos, por exemplo, nos casos de pais
negociação no âmbito do casal, como destacou alcoolistas e de violência doméstica), relações
Romanelli (2013) ao apontar a quase onipresença que são fonte cotidiana de aprendizado para
das mães como interlocutoras nos estudos filhos e filhas a respeito de seu lugar de
sobre as relações entre família e escola: “essa gênero. Sem dúvida, o exemplo das atividades
questão remete à assimetria e desigualdade nas parentais é uma fonte decisiva na socialização
relações de gênero e não pode ser aceita como de gênero das crianças, mais ainda que a

724 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
educação explícita (BRUGEILLES; SEBILLE, meninos, assumira desde cedo o cuidado com eles
2009; OCTOBRE, 2010). Isto é, se meninas e enquanto a mãe trabalhava fora. A desenvoltura
meninos aprendem cotidianamente a respeito da garota durante a entrevista, feita em sua casa,
de hierarquias e também sobre passividade, seja no cuidado com o irmão caçula, de 1 ano e
obediência e autocontrole ou, ao contrário, 7 meses, seja no preparo de café para nos servir,
poder, ação e rebeldia, têm grande peso nesse só comprovou isso. Ela nos declarou que mesmo
aprendizado as relações de poder entre seus pais o irmão de 8 anos praticamente não a ajudava
e mães, assim como a divisão de trabalho entre em nada: “Ele é preguiçoso”.
eles. Também fazem parte desse aprendizado Nas casas das mães Alice, Keila e
implícito rupturas, questionamentos, formas Marinete, as meninas eram as principais
de contornar essas hierarquias e de obter poder responsáveis pelo serviço doméstico, que não
nos interstícios da dominação. era partilhado pelos irmãos:

Meninas e meninos frente ao Eu falo: “Filhas, passem as roupas, porque


trabalho doméstico a mamãe tem bastante roupa, passa um
pouco que, quando eu chegar, eu passo
Todas as meninas participavam mais o outro”. E elas passam, elas arrumam a
intensamente que seus irmãos das tarefas casa, a Francimary [11 anos] você tem que
domésticas, mesmo quando a colaboração das ver, ela arruma a casa igual gente grande,
crianças era secundária: Lívia (10 anos) contou limpa. [...] (Alice, um filho e duas filhas).
que o irmão de 17 anos bagunçava o quarto
que dividiam. Aldilene, sua mãe, pedia para Fazem tudo. Eu chego e a casa está toda
ele arrumar, “mas, se ele não faz, eu mesmo arrumada, a comida feita, e a menor [Leila,
arrumo”. Já na família de André (pai, um filho e 4 anos] tomada banho e trocada. [Quem
uma filha), ele estabelecia uma clara diferença cozinha?] A Luciane [11 anos], e a Valentine
de atribuições, indo contra as ideias de sua [14 anos] cuida da casa. Lava roupa, passar
parceira Regina: não passa, mas ela lava roupa e cuida da
casa toda. [...] O Daniel [16 anos] não faz
A mãe tenta forçar eles, “tem que fazer isso, nada, ele não lava um copo, mas também eu
tem que fazer aquilo”. Eu já sou contra. Ela não deixo ele fazer nada, porque, se ele for
fala que eu sou meio machista, eu falo: “ó, fazer ele vai quebrar todas as coisas. (Keila,
trabalho de casa, quem faz é a mulher, a um filho e três filhas).
mulher!” Não digo algumas coisas que o
homem faz, mas querer obrigar, já querer É, como eu tô trabalhando, quando eu
ensinar a fazer arroz, fazer comida, não. chego na minha casa, tem janta pronta,
Ensina ela, ensina a menina, porque, o almoço tá pronto, a roupa toda lavada,
quando ela crescer, ela vai cozinhar [...]. a roupa tá passada. [Quem é que faz?] A
Mas o menino, não. Eu não obrigo ele a Silvana [15 anos] e a Alaíde [18]. A Sirlene
fazer. Não precisa ele fazer isso. (André) [14] não ajuda nada.7 [...] Os meninos
também não. Eles falam assim que quem
Em outras cinco famílias, as meninas faz serviço de casa é mulher. (Marinete,
tinham papel fundamental e até mesmo três filhas e quatro filhos).
exclusivo na execução dos trabalhos da casa
e no cuidado com os irmãos e irmãs menores.
7 - Sirlene foi qualificada pela mãe e irmãs como “songa-monga”. Ela tinha
Emily, de 10 anos, sendo a filha primogênita de sérios problemas de atraso na aprendizagem escolar (frequentava o 4º ano do
Wilson e Edimara, numa fratria com mais três fundamental e não estava alfabetizada), além de dificuldades na fala.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 725


Silvana e Alaíde contaram que, às nesse grupo, 32% das moças e somente 8% dos
vezes, os meninos (todos com menos de 13 rapazes gastavam mais de 11 horas semanais
anos) falavam para elas “a gente manda e nesta atividade (ARTES, 2009, p, 104). Contudo,
vocês obedecem”, ao que elas responderiam: é interessante destacar em muitas das falas de
“nós não somos empregadas para fazer o que nossas entrevistas a presença de críticas a essa
vocês mandam”. Esse diálogo nos pareceu divisão desigual das tarefas, que não aparece
particularmente revelador das relações de poder naturalizada e inquestionável como encontrou
envolvidas na divisão do trabalho doméstico Heilborn (1997) nas famílias que estudou nos
e das contestações das meninas ao lugar de anos 1990. Diante das críticas de Marta, das
subordinação que lhes é reservado. respostas de Alaíde e Silvana aos irmãos, das
Já na família de Edinalva (três filhos e acusações de machismo feitas por Regina a
uma filha), um dos meninos, Vicente, de 13 seu cônjuge, da participação ativa de Vicente
anos, dividia com equidade as tarefas com nas tarefas, entre outras falas e situações, já
sua irmã Giovana, de 12 anos, com certa não seria possível sintetizar o que ouvimos
participação do irmão mais novo. Apenas o nos termos feitos por aquela autora, cujas
primogênito não participava, conforme as entrevistadas não questionavam “o porquê de
palavras da mãe, confirmadas por Giovana e as mulheres realizarem a totalidade do serviço
Vicente em conversas posteriores: doméstico” (HEILBORN, 1997, p. 324).
Que consequências a responsabilização
O mais velho diz: “Eu trabalho fora, não pelo trabalho doméstico tem sobre o desempenho
posso!” Aí eu digo: “Eu trabalho fora, escolar das meninas de setores populares
cozinho pra vocês e lavo roupa!” Mas, ele urbanos? O estudo já citado de Artes (2009)
não gosta muito não. Mas o Vicente não concluiu que as tarefas domésticas parecem ter
reclama sobre isso, se eu chamar ele me algum efeito negativo sobre a escolarização das
ajuda. (Edinalva). meninas somente quando ocupam mais de 11
horas por semana, certamente por tomar-lhes
Apesar dessa exceção representada por tempo e esforços. Mas nos parece que também os
Vicente, mais uma vez as palavras diretas significados atribuídos aos afazeres domésticos,
de Marta, avó de um menino e três meninas, assim como o fato deles serem desenvolvidos
sintetizam bem o quadro geral: de forma isolada no interior dos domicílios são
muito relevantes na compreensão da postura
O que eu vejo é que nós, mães, colocamos das meninas frente à escola. Já foi enfatizado
mais coisas para as meninas fazerem por outras autoras (ROSEMBERG et al., 1990;
do que para os meninos, tipo coisas HEILBORN, 1997; MADEIRA, 1997; DUQUE-
assim de dentro de casa. Eu não sei em ARRAZOLA, 1997) que as meninas de setores
outros lugares, mas aqui as meninas são populares ficam praticamente confinadas em
verdadeiras donas de casa, elas são, mas casa, seja pelo trabalho doméstico, seja por
o Daniel já fica mais... [gesto de liberdade] uma educação em que a família restringe sua
porque é homem. circulação. Esse contexto levaria as meninas
a perceberem mais positivamente a escola,
Dados quantitativos confirmam a como um espaço de sociabilidade, liberdade,
ampla desigualdade na divisão do trabalho realização pessoal e até mesmo de lazer.
doméstico: de acordo com a Pesquisa Nacional A fala de Keila (mãe, um filho e três
por Amostra de Domicílios – PNAD 2006, 56% filhas) sobre as responsabilidades e castigos
dos meninos e 78% das meninas entre 10 e 14 que atribuía às filhas é muito esclarecedora
anos realizavam tarefas domésticas, sendo que, desses significados:

726 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
De vez em quando, elas faltam [à escola] adquirido recentemente um carro e comentou:
por coisa de casa mesmo, porque elas não “muitas vezes a gente sai. Faz o quê... faz duas
fazem as coisas em casa. Aí eu chego e semanas, a gente foi pra praia”.
faço elas fazerem, e elas não vão para a De fato, o tempo das mães e das
escola nesse dia [...]. Porque elas ficam o meninas só se tornava livre, até mesmo nos
dia inteiro com a cara para o ar, e eu lá fins de semana, depois de concluídas as
trabalhando. E, quando dá a hora de ir tarefas domésticas e essa parece ser a principal
para a escola, elas largam a casa sem fazer diferença no que se refere a gênero:
nada, e vai para a escola com as amigas.
Aí não dá. (Keila, grifo nosso). Eu trabalho um sábado sim, um sábado
não. O domingo é “vapt-vupt”, a gente
Cabe destacar que o filho mais velho de [mãe e filhas] faz o almoço, termina de
Keila, Daniel, de 16 anos, não participava de fazer o almoço uma hora, vai almoçar, aí
qualquer tarefa doméstica nem trabalhava fora, chega uma amiga na casa da gente, aí o
mas faltava frequentemente à escola, quase dia foi embora, e eu vou descansar também
sendo reprovado por faltas no ano anterior à pra semana. (Alice, duas filhas e um filho).
pesquisa. A mãe declarara que o “obrigava a ir
para a escola”. Se para as meninas era um castigo As residências eram muito pequenas, e
faltar à aula, aonde iriam “com as amigas”, nelas observamos a rara presença de brinquedos
para o menino o castigo era inverso, situação e mais raramente ainda de livros, enquanto
que possivelmente condicionava e ao mesmo as ruas – estreitas, sujas, sem arborização –
tempo refletia posturas diferentes do menino eram consideradas espaços perigosos, em geral
e das meninas no cotidiano das salas de aula. devendo ser evitadas. A única família em cuja
Quantas outras crianças estarão aprendendo casa observamos muitos brinquedos e alguns
os mesmos significados e prioridades, a escola livros infantis foi a dos filhos de um zelador de
como prêmio ou castigo? edifício e de uma empregada doméstica, e as
crianças nos disseram que a maior parte havia
O lazer ou a falta dele sido doada, já usada pela patroa de sua mãe e
uma vizinha do edifício. Nas demais entrevistas,
Nos fins de semana, o tempo livre era em as meninas declararam gostar de: brincar de corda
geral ocupado por atividades em família, en- e de elástico; brincar com bonecas, de escolinha,
volvendo tanto meninos quanto meninas, sem usando pequenas lousas, e de médica. As bolas
diferenciação. Apenas os(as) mais velhos(as)- de futebol e pipas eram unanimidade entre os
principalmente os rapazes – por vezes saíam so- meninos. Em seis famílias, constatamos a presença
zinhos ou não aceitavam ir a alguma atividade. de cachorros, com os quais as crianças brincavam,
Na verdade, as famílias saíam pouco e em geral sendo descritos como sua “companhia”.
iam à casa de parentes, a parques públicos ou Na maioria dos núcleos familiares,
igrejas: “de final de semana, a gente fica em casa contudo, as principais distrações dentro de casa
mesmo” (Alice); “Nós vamos para a igreja porque eram o computador, o video game e a televisão.
é a nossa ‘night’. É verdade, lá nós fazemos tudo Games e computadores eram disputados entre
o que nós queremos fazer – canto, churrasco, irmãos e irmãs, mas as entrevistas e observações
passeios – mas nos conformes” (Keila). Algumas indicaram que eles eram majoritariamente
vezes, percebíamos que pais e mães sentiam- usados pelos meninos: “O Daniel é o dia inteiro
-se na obrigação de relatar atividades de lazer no computador. [...] Todo mundo fica um
e rememoravam uma saída que na verdade era pouquinho, mas ele fica mais porque ele fica no
excepcional, como no caso de Wilson, que havia Face[book]” (Keila, mãe).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 727


Parte das famílias tinha acesso à internet da posse e da utilização de computadores
em casa. Embora não tenhamos feito essa no desempenho escolar ou na ampliação de
pergunta diretamente, as menções ao uso de horizontes culturais.
redes sociais e e-mails nos mostraram que essa Às meninas, com a rua quase interditada,
não era uma situação rara. Pesquisa divulgada restava assistir televisão e às vezes desenhar e
pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI. jogar dominó, sempre no confinamento dos
br)8, com dados coletados em 2012, constatou pequenos espaços de seus lares: “As meninas
que 71% dos alunos do ensino fundamental ficam assistindo televisão, elas ficam fazendo
e médio na região sudeste tinham em casa desenho, é assim” (Alice); “É, o que elas gostam
computador com acesso à internet e as famílias mais é ver televisão, elas gostam de novela. É
que estudamos parecem incluir-se nesse quadro. mais televisão mesmo” (Marinete, mãe).
O video game era tomado como
equivalente ao computador e este era descrito Brincar na rua
como brinquedo e fonte de distração, não como
fonte de conhecimento, relacionado à escola Durante a semana, o lazer fora de casa
ou ao trabalho: “A Cintia gosta de um video significava ficar conversando na porta dos
game de veterinário que tem de cuidar dos vizinhos, empinar pipas na rua e jogar em
bichinhos, está sempre brincando disso no lap campinhos de futebol improvisados em terrenos
top” (Regina, mãe); “Em casa, a Lívia joga video baldios, já que as residências não tinham quintal
game, fica no computador ou brinca com suas e ficavam em bairros onde inexistem praças ou
bonecas” (Aldilene, mãe). centros esportivos públicos. Essas atividades
E, ao contrário do encontrado por fora de casa, em quase todas as falas de pais
Octobre (2010) na França, quase sempre quando e mães, eram permitidas apenas aos meninos.9
o computador tinha um dono específico, Por exemplo, na família de Ernani (12
pertencendo a um dos meninos: anos) e Cláudia (9 anos), de acordo com o pai
(André), o menino podia brincar na rua, junto
Tem aquelas briguinhas entre os dois com amigos da vizinhança, onde jogavam bola,
(irmão e irmã) de disputa de computador. andavam de bicicleta e empinavam pipa. Além
O computador é dele, eu dei pra ele. Logo disso, Ernani ia a pé sozinho à escola e ao projeto
que ele me pediu eu falei “eu vou te dar um educativo que frequentava no contraturno:
computador”. (André, pai) “É menino, tem que deixar um pouco solto”
(André, pai). Já Cláudia era levada de carro
Entre famílias francesas, Octobre (2010) por ele à escola e ao projeto. A mãe, Regina,
aponta uma tendência a comprar computadores afirmou explicitamente que preferia “manter a
para as meninas, por se tratar de equipamentos filha mais em casa, porque é menina”, sendo-
caros e delicados, dos quais supostamente elas -lhe permitido trazer amigas e eventualmente
cuidariam melhor, além de saberem extrair frequentar a casa de uma colega de escola.
mais benefícios escolares de seu uso. No São regras semelhantes às descritas por
grupo investigado por nós, a associação dos Alice, que sustentava e educava sozinha seus
computadores aos jogos parecia garantir sua três filhos (Fernando, de 15 anos, Fernanda,
masculinização, embora ele fosse utilizado 13, e Francimary, 11): “Aqui na rua, ninguém
também pelas meninas, principalmente para vê meus filhos andando, só quando vão para a
jogos não violentos e participação em redes escola mesmo. Quando eu chego, eu boto para
sociais. Assim, eram pífias as repercussões dentro, eles vão assistir televisão e vão dormir.”
8- http://www.cetic.br/educacao/2012/alunos/B8.html, acessado em 9- Uma exceção era a família do zelador de um edifício de bairro de elite,
29/05/2013. com inserção diferente na rua e na vizinhança.

728 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
Embora essa fala inicial se dirija a todos, aos Já as filhas: “As meninas ficam mais dentro de
poucos, percebe-se que há alguma flexibilidade, casa. [Você deixa sair?] A gente nunca deixou.
e que ela é maior para o filho: Mas você viu o que aconteceu, né?! De tanto
não deixar sair, olha aí no que deu!” [aponta a
As meninas, não vem ninguém chamar bebê no colo da filha, risos].
elas aqui, só quando é mesmo para ir para Se a preocupação com o controle da
algum lugar, o shopping ali mesmo, que a sexualidade das meninas é bastante evidente
Fernanda vai com a prima dela, às vezes, nessas falas, os espaços externos eram
comprar alguma coisa. E não saem para percebidos como fonte de perigo tanto para
lugar nenhum. [...] Elas vêm juntas da meninas quanto para meninos. Em relação aos
escola, e eu falo para elas que é da escola filhos, o envolvimento com drogas e seu tráfico
para casa. [...] O Fernando, quando chega parecia ser o principal motivo de atenção, como
algum amigo chamando para jogar bola, descreveu, por exemplo, Keila, mãe de um rapaz
depende do horário. Às vezes, chega à e três meninas:
noite chamando e eu não gosto, eu tenho
medo. (Alice, mãe) O povo não sabe, mas estamos em uma
guerra já, um matando o outro, o medo de
Evonete pareceu ser ainda mais rigorosa uma mãe é esse: perder os filhos para duas
e muito raramente permitia à filha, Ana Lúcia, coisas, para as drogas e para o mundo.
de 7 anos, dormir fora, mesmo na casa da tia: Porque o mundo vem e mata, agora é
assim. Se envolveu com droga atualmente,
Ela não vai muito, porque ela é menina, e você é cobrado porque você é um drogado.
eu não gosto muito de deixar. Eu acho que (Keila, mãe)
menina tem que estar ali mais ou menos ao
alcance dos olhos da mãe. Eu não gosto, Assim, filhos de ambos os sexos eram
mas como é minha irmã, eu abro uma objeto de preocupação e controles. Os riscos
exceção, uma vez ou nunca, é muito raro. ligados à masculinidade se relacionavam
(Evonete, mãe) principalmente ao envolvimento com atividades
ilícitas, forma possível para obtenção de renda
Isso não significa que as crianças não e exercício do poder (ZALUAR, 2010). Mas a
transgredissem as regras e não saíssem das diferença de gênero era nítida no que se referia
casas apertadas em busca de sociabilidade à sexualidade. Como já indicamos, a maioria
e lazer. Com ou sem conhecimento dos pais dos pais e mães começava falando em igualdade
e mães, tanto meninos quanto meninas nos nas regras que empregavam na educação das
contaram que saíam, seja para jogar futebol crianças, mas quase sempre desembocavam em
seja para encontrar amigos e amigas. Um caso diferenças. Edimara, após declarar ter deixado o
típico foi o da família de Marinete, numerosa emprego para ficar mais próxima da filha mais
e vivendo nas piores condições dentre todas velha, Emily, de 10 anos, em razão dos perigos
que entrevistamos. Perguntada sobre as regras externos, comentou sobre as possibilidades de
a respeito de locais e horários de lazer dos três sua filha ou seus filhos tornarem-se mãe ou pais:
filhos e quatro filhas, que tinham entre 7 e 18
anos, sendo que uma das moças, com 15, já era É o que eu falo pro Alex (8 anos), a
mãe, Marinete nos esclareceu que os meninos, mesma coisa: a partir do momento que
quando não estavam na escola, estavam “no você engravidar uma menina, seja ela
campo jogando bola. Tem o campinho aqui preta, branca, pobre, rica, você vai ter
perto”, como acontecia durante a entrevista. que assumir. [...] Aí, quando você tiver na

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 729


idade de dançar, de beber, de pegar uma Atividades extraescolares e
aqui, uma ali, levar uma pro matinho hoje, planos de futuro
levar outra pro matinho amanhã, você
ia conhecer a branca, a preta, a amarela, Uma de nossas hipóteses iniciais,
rosa, mas você vai estar ali, com uma só. inspirada na pesquisa de Silva (1993), era
Todo dia vai ter que olhar pra cara dela, de de que as famílias oferecessem atividades
manhã, de tarde, de noite! (Edimara, mãe) extraescolares diferenciadas para meninos e
meninas, com as segundas mais envolvidas
Certamente Edimara não teria deixado o em práticas que contribuiriam para seu
emprego para olhar de perto a filha de 10 anos se sua desempenho escolar, já que eles se dedicariam
visão sobre o exercício da sexualidade da menina principalmente a esportes. Essa hipótese
fosse a mesma, isto é, se tivesse expectativas de confirmou-se parcialmente, pois, ainda que as
que ela “conhecesse o branco, o preto, o amarelo”, garotas fossem mais numerosas em atividades
nos “matinhos”, antes de se casar ou estabelecer não esportivas, parece importante considerar
um relacionamento fixo. Este é um bom exemplo sua escolha ativa e sua iniciativa em busca
do que observamos nas oito famílias: apesar de dessas práticas, mais do que a simples oferta
regras semelhantes, as restrições à circulação no por parte dos(as) adultos(as).
espaço público eram muito maiores às meninas, No conjunto das famílias, encontramos:
que se viam praticamente confinadas à casa. quatro casos em que nenhum dos filhos ou
Como sintetizou com clareza Edinalva: “Homem filhas praticava atividades extracurriculares;
tem a passagem livre, como dizem. Mulher não.” uma família em que todos(as) participavam de
Combinada à sobrecarga de trabalho doméstico, práticas esportivas, embora diferenciadas por
essa restrição levava as meninas a uma vida sexo (natação para todos, meninos no futebol
bastante restrita, passando muitas horas fechadas e menina na ginástica artística); uma família
dentro de suas casas. em que ambos – irmão e irmã – frequentavam
Como apontamos ao discutir a entidades filantrópicas no contraturno, nas quais
responsabilidade das meninas pelos afazeres praticavam esportes, tinham acompanhamento
domésticos, há fortes indicadores de que a das lições de casa e projetos ligados ao meio
escola representa para as garotas um espaço ambiente e cidadania; e duas famílias nas quais
de liberdade, sociabilidade e realização pessoal. somente as meninas participavam de atividades
Já para os meninos, a escola representaria uma extras oferecidas pela escola em que estudavam
pausa nas atividades coletivas e de lazer nos (jornal e teatro). Além disso, numa dessas
campinhos de futebol, nas vielas. Assim, parece últimas famílias, as meninas eram também
que os anos que separam nosso trabalho das muito envolvidas com práticas sistemáticas das
pesquisas reunidas na coletânea organizada igrejas que frequentavam10.
por Madeira (1997) não trouxeram mudanças Portanto, parece que as famílias que
relevantes para as crianças e jovens de camadas ofereciam atividades extracurriculares o
populares urbanas, no que se refere ao papel faziam sem distinção de sexo, a qual aparece
que a escola pode representar no contexto das somente se consideramos o tipo de atividade.
diferenças de gênero em sua socialização. Se Enquanto os meninos quase sempre iam para
o acesso à escolarização ampliou-se de forma práticas esportivas, cinco meninas e apenas
significativa nesse período, a relação tumultuada, dois meninos tinham outros tipos de atividade.
interrompida e malsucedida de parte expressiva Consideramos, com Silva (1993), que as práticas
desses meninos com a escola parece reiterar
10- A família como um todo variava com frequência o vínculo a diferentes
que, para eles, esse é um espaço de restrição, ao igrejas evangélicas e, no momento da entrevista, as filhas não participavam
contrário da vivência de suas irmãs. das mesmas igrejas que os demais familiares.

730 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
esportivas da forma como são hoje oferecidas diferentes práticas, muitas delas próximas do
pouco contribuem para um melhor desempenho formato escolar, enquanto seu irmão mais ve-
escolar. No que se refere ao desenvolvimento da lho, Daniel, estava envolvido principalmente
leitura e escrita ou à maior familiaridade com com a música, atividade que partilhava com
o mundo letrado e outros elementos da cultura o pai e que desejava assumir como profis-
escolar, as práticas desenvolvidas pelas meninas são. Cláudia, Francimary, Fernanda e Luciane
fora da escola pareciam ser mais eficazes, desde foram classificadas por suas professoras
a participação em grupos de teatro e jornal até como “excelente” ou “brilhante”, enquanto
a oferta de aulas e atividades para crianças Valentine foi considerada “mediana”; já seus
menores no âmbito de igrejas. irmãos, Fernando, Daniel e Ernani, apresen-
Mesmo quando envolvidas em contex- tavam constantes problemas de disciplina e
tos semelhantes aos de seus irmãos, as me- aprendizagem em suas escolas.
ninas pareciam potencializar essas atividades O que vemos, portanto, são escolhas
como aprendizagem útil à escola, como era o ativas e parcialmente autônomas por parte
caso de Ernani (12 anos) e Cláudia (9), am- das meninas, dentro do estreito leque de prá-
bos frequentando entidades filantrópicas11. ticas extraescolares que lhes eram possíveis.
Cláudia sempre fazia as lições de casa sob Eram opções que as levavam a aproveitar es-
supervisão na entidade que frequentava, en- sas oportunidades para melhorar sua apren-
quanto seu irmão alegava que os monitores dizagem ou as remetiam a atividades mais
não o autorizavam a fazer isso, informação próximas ao modelo escolar. Não nos parece
que foi posteriormente contestada pelo pai: possível afirmar que essa seja a causa de um
“Minha mulher foi lá esses dias e a monitora melhor desempenho das meninas: encontra-
falou ‘não, pode trazer, o que tiver de lição mos, em outras famílias, boas alunas que não
traz aqui que a gente ajuda’”. Uma das re- praticavam atividades extracurriculares sis-
clamações da escola de Ernani, relatada pela tematicamente ou que praticavam atividades
mãe, era exatamente o não cumprimento das estritamente esportivas. Além disso, cabe per-
lições de casa. Na família de Francimary (11 guntar se o fato de irem muito bem na escola
anos), Fernanda (13) e Fernando (15), apenas impulsionava a participação de meninas como
as meninas participavam do jornal e do gru- Luciane e Francimary em atividades de teatro
po de teatro organizados pela escola fora do e jornal ou, ao contrário, essa participação ex-
horário das aulas, embora todos estudassem tra alimentava seu desempenho escolar. Tudo
lá. A mesma situação foi observada no caso indica que se tratava de um círculo virtuoso de
de Daniel (16 anos), Valentine (14) e Luciane estímulo e aproveitamento ativo por parte des-
(11), que participavam de atividades ligadas sas garotas, que, em meio à escassez, potencia-
à escola e a igrejas evangélicas. As meninas lizavam suas oportunidades de acesso à cul-
se envolveram nas oficinas extras oferecidas tura de prestígio. Paralelamente, seus irmãos
pela escola por iniciativa própria: duran- pareciam consolidar um progressivo afasta-
te a entrevista, a mãe não soube responder mento de atividades próximas ao modelo es-
de quais atividades elas participavam. Seu colar, dedicando-se ao futebol e a atividades
irmão estudara na mesma escola até o ano de trabalho e lazer distantes da cultura escolar.
anterior e não havia participado de quaisquer Também foi surpreendente constatar
atividades. Além disso, Valentine e Luciane que as meninas, independentemente de suas
também escolhiam as igrejas com as quais idades, apresentavam, com mais frequência
desejavam “congregar” e ali desenvolviam que seus irmãos, sonhos profissionais melhor
delimitados e que exigiriam uma escolarização
11- Cada um frequentava uma entidade diferente. prolongada. Um menino declarou pretender

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 717-734, jul./set. 2014. 731


ser médico e outro músico, enquanto sete Conclusões
meninas queriam ser policial, médica,
veterinária, bióloga, atriz, oficial da marinha, Portanto, no que tange aos setores
professora. A mesma situação foi descrita por populares urbanos, temos indicações de que
Terrail (1992) junto às meninas francesas, a socialização de gênero no âmbito familiar
que, de acordo com enquete nacional de favorece nas meninas e não nos meninos
1988, mostraram-se mais ambiciosas que os o desenvolvimento de comportamentos
meninos no que se refere ao nível de ensino frequentemente desejados pelas escolas, tais
que almejavam, assim como à profissão como a disciplina, a organização e a obediência
pretendida, independentemente das condições (ou formas de desobediência menos visíveis);
sociais da família.12 ao mesmo tempo, essa socialização faz com
Este parece ser mais um círculo virtuoso: que a frequência à escola tenha significados
bem-sucedidas e sentindo-se à vontade na diferentes para a maioria das garotas e garotos
escola, várias meninas já aos nove anos de destes setores, uma vez que elas têm muito
idade sonhavam com profissões qualificadas e menos oportunidades de circulação, sociabilidade
estabeleciam planos ambiciosos que poderiam e estímulo. Essas mesmas restrições parecem
evitar as restrições do trabalho doméstico. fazê-las valorizar atividades extracurriculares
A existência dessas aspirações, por sua vez, com formatos próximos ao escolar e desenvolver
podia estar impulsionando-as a investir mais aspirações ligadas a uma escolarização prolongada
na escola, valorizar a aprendizagem e obter e a profissões qualificadas. A existência mesma
bons resultados. desses planos ambiciosos, realistas ou não, pode
ser impulsionadora de maior empenho nos
estudos, realimentando a roda do sucesso escolar
12- Esse tema merece uma discussão muito mais detalhada, que não dessas meninas, que parece surgir de dentro da
será desenvolvida aqui por razões de espaço. própria subordinação de gênero.

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Recebido em: 01.10.2013

Aprovado em: 06.03.2014

Marília Pinto de Carvalho é professora livre-docente (Associada III) na Faculdade de Educação da USP, pesquisadora nível
1 do CNPq. É colíder do EdGES (Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual) e publicou entre outros: Avaliação
escolar, gênero e raça (Papirus, 2009).

Tatiana Avila Loges é doutoranda na linha de pesquisa sociologia da educação na Faculdade de Educação da USP, com
mestrado em educação. É integrante do EdGES desde 2011 e bolsista de apoio técnico à pesquisa pelo CNPq, sob a orientação
da professora Marília Pinto de Carvalho.

Adriano Souza Senkevics é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e
mestrando na linha de pesquisa sociologia da educação na Faculdade de Educação da USP, sob a orientação da professora
Marília Pinto de Carvalho. Em 2013, realizou um estágio de pesquisa na Universidade de Sidney, com a supervisão da
professora Raewyn Connell.

734 Marília Pinto de CARVALHO; Adriano S. SENKEVICS; Tatiana Avila LOGES. O sucesso escolar de meninas de camadas...
As mortificações da carne e o desejo exposto: controle
sobre meninas em instituições católicas

Carlos Manoel Pimenta PiresI

Resumo

Na tentativa de compreender a gênese da educação dedicada


especificamente às mulheres, analisaremos um livro didático usado
em internatos e conventos de meninas, da segunda metade do
século XIX e início do XX, chamado Manual de piedade da donzela
cristã. Nossa proposta é descrever, em parte, uma das formas de
constituição do modo de ser feminino na contemporaneidade,
refletindo historicamente a respeito da elaboração de um saber-
poder sobre as mulheres, fundamentando-nos em uma análise
foucaultiana. Propomos recuperar o que tradicionalmente fora
o organizador das instituições católicas femininas, ou seja, seus
modos peculiares de normatização e manutenção das populações
de meninas e mulheres ao modo disciplinador cristão, como
um dos paradigmas do sujeito feminino. Assim, juntando-se a
demandas normativas do período pós-revolucionário dos 1800 na
produção de um feminino produtivo – transplantado nas figuras
da boa mãe, da carinhosa esposa e da trabalhadora obediente,
ou o que pudesse determinar a mulher socialmente controlada e
promotora da família nuclear moderna –, formaram-se episteme e
moral específicas da mulher, com participação paritária da teologia
católica com outros campos de saber. Nossa tese é justamente a
de que a formação do sujeito feminino contemporâneo tem ampla
participação das instruções eclesiais. Para defendê-la, analisaremos
o referido manual, que será considerado uma janela que nos abre
para uma mirada investigativa do cotidiano de meninas em escolas
confessionais e monastérios.

Palavras-chave

História da educação — Manuais escolares — Gênero e educação —


Metodologia arqueológica foucaultiana.
I- Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
Contato: carlosmanoel74@hotmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028 735
The mortification of the flesh and the desire exposed:
control over girls in Catholic institutions

Carlos Manoel Pimenta PiresI

Abstract

In an attempt to understand the genesis of the education dedicated


specifically to women, I analyze a textbook called Manual de piedade
da donzela cristã (Manual of piety of the Christian maiden), which
was used in boarding schools and convents for girls, in the second
half of the nineteenth and early twentieth centuries. My purpose
is to describe, in part, based on a Foucauldian analysis, one of the
forms of constitution of the ways of being feminine in contemporary
times, reflecting historically about the development of a knowledge-
power over women. I propose to recover what had traditionally been
the organizer of Catholic institutions for girls, i.e., their peculiar
modes of standardization and maintenance of the populations of
girls and women according to the Christian disciplinarian mode,
as one of the paradigms of the female subject. Thus, the episteme
and moral specific of women was formed, with equal participation
of Catholic theology and other fields of knowledge, joining the
normative demands of the post-revolutionary period of the 1800s
in the production of a productive feminine – transplanted to the
figures of the good mother, loving wife and obedient worker, or what
could determine the woman socially controlled and promoter of the
modern nuclear family. My thesis is precisely that the formation of
the contemporary female subject has broad participation of ecclesial
instructions. To defend it, I shall analyze that manual, which will
be considered a window that opens to an investigative perspective of
the everyday life of girls in denominational schools and monasteries.

Keywords

History of education — Textbooks — Gender and education —


Foucauldian archaeological methodology.

I- Universidade de Lisboa, Lisbon, Portugal.


Contact: carlosmanoel74@hotmail.com

736 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022013005000028 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014.
Introdução: breve descrição da era fundamentalmente religioso, reduzindo-
educação feminina até o século XIX se à instrução à leitura, à reza, a um pouco
de escritura e ao ensino de algumas ações
Podemos afirmar que, com o advir da ditas femininas, como, por exemplo, o coser
chamada modernidade, a família transformou- (HOUILLON, 1974, p. 16).
-se em uma das prioridades do governo das Mesmo após as chamadas Revoluções
populações no Ocidente. Como consequência, o Liberais, observa-se a manutenção da tutela
tratamento dedicado às especificidades femini- masculina na maioria das sociedades europeias
nas passou a ser um dos temas fulcrais entre e do Novo Mundo e, também, a continuidade
pensadores desde o Renascimento. das estruturas educacionais monásticas, ambas
O feminino idealizado já fora incorpo- mantenedoras de uma feminilidade encerrada
rado ao projeto de humanistas (leigos e reli- aos lares e a instituições controladas pela Igreja
giosos), em que se assumia a necessidade de (BOTHONEL; LAURENT, 1974, p. 99-137)1.
se impor controles sobre o comportamento das Nenhuma sociedade ocidental outorgou à mulher,
individualidades das mulheres, atrelando-as a por exemplo, a possibilidade da cidadania plena
processos normativos de regulação da subjeti- no século XIX (FRAISSE; PERROT, 1993, p. 12).
vidade. Obviamente, os objetivos de moralistas Por outro lado, o que podemos acrescen-
e demais pensadores do comportamento não tar como diferencial nos 1800 seria a elevação,
se circunscreviam apenas às mulheres, mas se em importância, do feminino a um protagonis-
alargavam ao social como um todo, já que elas mo nos destinos das sociedades ocidentais. No
representavam um vetor importante dentro das caso específico da igreja, a mulher passava a um
famílias (VARELA, 1997, p. 193). papel primordial na edificação moral dos corpos
Por sua vez, até o século XIX, nos campos sociais, colocando-se dentro da família como a
jurídico e teológico – assim como no próprio mãe educadora e exemplar. Tratava-se de uma
senso comum –, mormente as mulheres foram espécie de contrapoder masculino e estava num
encaradas com desconfiança com relação às processo de correção moralizador infinito.
suas capacidades e às suas atitudes, mantendo-
se uma tutela jurídica e moral, cujo controle A alma feminina, distinta e complementar
da vida social passava da responsabilidade da masculina, converte-se, para a Igreja
paterna para a do marido ou do convento, em da Restauração, numa reserva de recursos
uma vivência que primava pela heteronímia civilizadores e de possibilidades de
(HOUILLON, 1974, p. 9). conversão. (GIORGIO, 1993, p. 183-184)
Com relação à educação, os conventos
exerceram papel institucional relevante àquelas O que pretendemos no decorrer do artigo
que eram enviadas para tais recintos. Houve é entender a organização de um tipo de exercício
um grande esforço católico, após as guerras de poder sobre as mulheres dentro das instituições
religiosas na Europa do século XVI, na fundação de trancamento confessionais, tentando perceber
de ordens femininas dedicadas à manutenção a formação de um sujeito feminino nos interstí-
de um ambiente instrucional às crianças e cios do catolicismo. Não se almeja afirmar que
adolescentes que se preparavam para serem seja essa a única forma de feminino constituído,
religiosas. Concomitantemente, não podemos mas há intenções de conceber um tipo peculiar
deixar de citar que cresceram, em número, os que de alguma forma permanece nas formas de
centros escolares confessionais dedicados às subjetivação das mulheres da atualidade.
meninas que, não necessariamente, seguiriam
1- Na França, por exemplo, foi apenas na década de 1870 que o estado
como monjas. Em tais instituições, tanto para os francês implementou uma rede escolar primária aberta às meninas,
externatos como para os de clausura, o ensino tratadas por igual em comparação aos meninos.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 737


Assim, afirmamos que a instituciona- comportamento litúrgico com condutas
lização da família cristã passou por um modo em geral (polidez, modos de civilidade e
de disciplinar e governar o comportamento das sexualidade). Na primeira parte, cujo título é
meninas, concatenado à elaboração de um dis- Uma flor a colher a cada manhã, encontram-se
positivo de feminização, em que se renovariam sugestões a quem ou a que se deveria rezar e
preceitos de interação entre os sexos e de cons- meditar, as quais são divididas em um diário,
tituição de uma nova sociedade, muito parecida sendo uma espécie de calendário espiritual. O
à que vivemos (VARELA, 1997, p. 175-176). segundo item dedica-se a determinar os hábitos
cotidianos das meninas, esmiuçando as normas
Manual de piedade da donzela de uma condução ascética. Na sequência, já
cristã se apresentam os exercícios espirituais e os
métodos de ouvir a missa, em um adestramento
Adotaremos, como objeto de estudo, da religiosidade. Já na quarta parte, explicam-
trechos de um livro didático feito especificamente se os deveres da religião, em uma apresentação
à educação de meninas enclausuradas em dos sacramentos e obrigações de um bom
colégios internatos e conventos católicos. O cristão. Por fim, há uma descrição das práticas
intitulado Manual de piedade da donzela cristã de devoção, tentando ligar o tirocínio católico
(1919) foi elaborado para uso das professoras. do presente com seu passado.
Era dedicado à instrução da prática religiosa Incluímos o livro didático como
e indicado à leitura das próprias meninas das relevante na análise da educação feminina
instituições confessionais. partindo do pressuposto de que as leituras
A primeira edição em língua portuguesa eram objetos de controle por parte da igreja,
data de 1873. Em nossa análise, consultamos atenta ao que era lido, ao mesmo tempo
a décima quinta reimpressão, número que em que produzia bibliografia própria para
demonstra a boa tiragem do manual e leva-nos a ocupar espaços da literatura leiga. “Ler pouco
supor seu largo uso em centros escolares católicos e ler bem: essa é a máxima. [...] Nenhuma
espalhados pelo mundo luso-brasileiro. Importante divagação: ler é um exame de consciência
recordar que a prática de se confeccionar e usar através de mediação de um texto.” (GIORGIO,
manuais de piedade, nas instruções católicas, vem 1993, p. 198). Logo, considerar-se-á o que era
de longe – existindo vários outros escritos sobre o lido como uma possibilidade de agenciamento
modo de se portar das donzelas, em circulação no do feminino.
mundo católico –, estabelecendo uma das práticas Como proposta de exercício de uma
de fé incorporadas ao cotidiano institucional análise arqueológica foucaultiana, dividimos
escolar cristão. em cinco plataformas explicativas os trechos
De acordo com a introdução do livro, in- selecionados para análise, de modo a ter um
dicava-se a leitura diária às jovens, funcionan- ponto de mirada privilegiado sobre o saber
do como um vade-mécum de conduta e civi- feminino que emerge de um tipo específico de
lidade. Ademais, as próprias mestras poderiam organização do discurso do passado e, por sua
usá-lo como um apoio didático aos estudos vez, disciplinador da mulher, resultando em
religiosos, sendo lhes permitido escolher alea- uma nova subjetividade.
toriamente um trecho qualquer para a leitura Essas plataformas foram agrupadas da
coletiva, com pretensões claras de discutir al- seguinte forma: o controle dos desejos (item
gum aspecto negativo ou positivo do compor- 3), a racionalização das ações (item 4), a ascese
tamento das meninas naquele dia. do comportamento (item 5), a calibração do
Dividida em cinco partes, essa amor (item 6) e os usos meticulosos da carne
obra articulava normas relacionadas ao (item 7).

738 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
O cerceamento da A intimidade trazida à baila não foi um
individualidade e o controle de fenômeno exclusivo do catolicismo. O controle
conduta das neófitas cristãs sobre as vontades tem sido utilizado, nos últimos
séculos, como um dispositivo influente nas
– Oremos para que Deus nos conceda táticas de manutenção do poder sobre indivíduos.
a graça de repelirmos as tentações que Mais especificamente no decorrer do século XIX,
tivermos hoje. houve um hiperdesenvolvimento do discurso
– Jesus e os aflitos. sobre o desejo, adquirindo-se novas maneiras de
– Que impressão deviam fazer nos corações compreendê-lo – que Foucault (2003) designou
estas palavras de Jesus: ‘todos que sofreis, como scientia sexualis –, com o qual se buscava
vinde a mim: eu vos confortarei’. Ninguém uma forma verdadeira de ocorrência, tanto no
tinha falado assim; especialmente ninguém comportamento como na estética.
tinha acolhido os atribulados como Jesus... Em tentativas de controlar as relações que
Por isso vede quem são pobres, os doentes, os indivíduos têm consigo mesmos – como ob-
os desvalidos que o acompanham. Quem servado no trecho do Manual –, os desejos, e,
os agasalhará antes? Quem os não repelia por consequência, os próprios prazeres físicos,
da sua companhia? Ó Jesus, ensinai-me foram encarados como ações relevantes a quem
a ter bom coração, a amar, a procurar exercesse o poder sobre as meninas. Essa seria
quem todos repelem... dai-me graça para uma das consequências mais significativas dos
consolar muitos infelizes na minha vida. dispositivos de repressões e impedimentos se-
– Buscarei hoje ser útil a alguma das xuais contidos na educação religiosa. Podemos
companheiras. (IGREJA, 1919, p. 90) afirmar, entretanto, que esses dispositivos foram
reproduzidos igualmente, na mesma época, pela
“Repelirmos as tentações que tivermos vigília corporal da ciência médica e pelos cerce-
hoje” e “buscarei hoje ser útil a alguma das amentos do inconsciente aplicados pela prática
companheiras” são trechos de Uma flor a colher psiquiátrica/psicanalítica. (FOUCAULT, 2006).
a cada manhã, que aspirava interrogar os Foi desfechado, portanto, ao redor do pe-
desejos dos indivíduos, substituindo-os por uma ríodo das edições do livro (1873-1919), o con-
instrução que se desviasse de possíveis ímpetos trole das condutas sexuais da mulher com a
sinistros. Nesse caso específico, especula-se que formação de todo um arcabouço religioso, mé-
às tentações deveriam se contrapor as iniciativas dico e psicológico de pensamentos e comporta-
de sentido altruísta, apagando-se o que fosse de mentos que pudessem visualizar a perversão da
mais individual nos sujeitos – os seus quereres – alma, a insalubridade do corpo e a anormalidade
e colocando-se como foco algo que significaria da mente. À teologia centenária juntou-se, em
uma subordinação às vontades do grupo. uma empreitada normatizadora e constituidora
Dispõe-se sobre a intimidade, de maneira do dispositivo da feminilidade, certa psicologia
a condicioná-la a um papel público a ser racional em sentido contrário a uma espiritua-
exercido, o “de amar, ter bom coração, o de lidade irracional tradicionalmente posicionada.
consolar os infelizes”. No florescimento de uma No contraponto à racionalidade como
arguição sobre a ética cristã, com esse extrato, mantenedora da fé, tínhamos, por exemplo, o
percebemos o quão relevante os desejos são misticismo penitencial, que fora uma maneira
e compõem a espreitada de controle sobre os de exercício de santidade das mulheres desde
indivíduos do corpo católico, trazendo como os primeiros tempos da Igreja que, em meio às
hipótese de que passam a ser a prioridade nos orações e meditações, tinham visões e conversas
exames intestinos dos ambientes educacionais com Deus, Jesus e toda a cosmogonia cristã
mantidos pela Igreja. possível. Santa Teresa D’Ávila (doutora da Igreja

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 739


e fundadora da congregação das carmelitas Provoca-se o encontro da ignorância
descalças) talvez fora um dos principais modelos individual sobre si e toda a constituição de uma
de como a Igreja dava crédito e autoridade para tecnologia de interrogação das intimidades,
tal maneira de se exercer a crença (ANDERSON; via conhecimento acumulado pela observação
ZINSSER, 2007, p. 230-233). institucional das mestras condutoras, para
A maneira ascética propalada nos tre- tentar compreender externamente o desejo dos
chos do Manual, e que veremos mais deta- indivíduos e suas modalidades. No caso citado, a
lhadamente adiante, abre mão do misticismo religião intentou trazer o medo à perscrutação da
extático em nome de uma racionalidade da imaginação, indicando às meninas seu despreparo
fé, propondo adestramentos controladores da e o risco em percorrer lugar tão indômito.
crença, dando pouca margem de autonomia Não se trataria de paralisar os motores
aos exercícios espirituais. internos do querer, e sim entender as suas
interferências na constituição dos sujeitos.
Não obstante, [...] a Igreja mudou sua Em um desvio de suas atribuições, usar suas
atitude diante das mulheres que teste- energias no germinar dos desejos verdadeiros
munhavam uma experiência mística. [...] (os autorizados pela Igreja), aqueles nos quais
Rechaçou a autoridade potencial das vi- se incitaria a conter mais o que é tido como
sionárias, honrando-as com uma con- correto, em contraponto a um aumento de
descendente inocência infantil e não por intensidade do prazer, que colocaria o indivíduo
seus laços especiais com a divindade. em uma rota própria, fora das vistas eclesiais.
(ANDERSON; ZINSSER, 2007, p. 238) Trata-se, através dos discursos calados, de um
arrebatamento do cotidiano íntimo das pessoas.
Prescrições racionalizadoras dos O poder eclesial agiria, nessa nova
espíritos femininos disposição institucional formatadora de uma
verdade de agir feminina, com regras e ações
Oremos em desagravo das blasfêmias. que clarificassem as interdições, incorporando
– O décimo primeiro fruto do colégio é e fabricando uma linguagem que se impusesse
fortaleza de vontade. A regra é às vezes no ato de conceder e de bloquear o não
incômoda; mas quanto disciplina o caráter, tolerado. Elaboraram-se, com isso, enunciados
ensina a refrear a imaginação, a repelir sobre o comportamento em geral, incluindo aí,
fantasias para cumprir deveres! Submetei- especificamente, aquele relacionado ao desejo e
vos sinceramente e tereis energia para ao prazer, deixando claro o que é permitido no
sofrer as mágoas que mais tarde vos uso de um referencial do que é ilícito.
assaltarem. Criava-se um ambiente que naturalizava
– Procurarei hoje observar silêncio. um estado de direito totalizador no ato de
(IGREJA, 1919, p. 37) discursar sobre a conduta alheia. No plano das
estratégias, havia tentativas de censura plena
O Manual propõe converter o desejo da conduta, com intenções de abafar o desejo
blasfemo, contido na alma, em objeto de reflexão individual. Propomos explanar três exemplos.
racional, não com uma punição dolorosa ao Primeiro: o que vem a ser proibido.
corpo, mas simplesmente com a imposição do
silenciamento do espírito. Ao se fazer calar a Examinai os pecados feitos [...] contra o
alma gozosa, apostar-se-ia no irrompimento, próximo. Juízos temerários; desprezo; ódio;
entre as discípulas a se conduzir, da sensação de inveja; desejo de vingança (especificai se
desconhecimento sobre a própria subjetividade e, é contra as mestras ou companheiras);
mais especificamente, do poder de seus desejos. dar maus conselhos; maus exemplos;

740 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
fazer más ações; maledicências; calúnias; Eu creio firmemente meu Deus, todas
notícias falsas; disputas, palavras ásperas as manhãs que tendes revelado, e que
e injuriosas; falta de zelo e de bondade; nos ensinais pela vossa Igreja católica,
falta de respeito e de docilidade; astúcia. apostólica e romana, sendo que vós não
(IGREJA, 1919, p. 403) vos podeis enganar nem enganar-nos, e
nesta crença quero viver e morrer. Amém.
Segundo: o anúncio da culpa ao se pecar. (IGREJA, 1919, p. 217)

– Oremos pelas almas que há muito tempo Segundo: uso do Salvador como um
resistem a Deus. estimulador juvenil da santidade.
– Deveis expiar vossos pecados; para este
fim Deus permitiu que o regulamento da – Jesus e as crianças.
casa vos constrangesse e contrariasse – Jesus está sentado rodeado dos
às vezes; suportai com boa vontade este discípulos... adiante, por entre a multidão,
constrangimento. seu paterno olhar divisou meninos
– Não farei a mínima infração ao pequenos que estavam tímidos ao pé de
regulamento, com a intenção de expiar suas mães, estendeu-lhes os braços. As
minhas culpas. (IGREJA, 1919, p. 179-180) crianças compreenderam este apelo do
coração, e aproximam-se de Jesus que os
Terceiro: a existência de um estado abraça, os abençoa, os conserva perto de
superior, o da pureza. si, fala-lhes do céu. [...] Ó Jesus, eu também
sou criança; corro para vós; acarinhai-
Oremos por quem trabalha pela salvação me, falai-me do céu. Se eu me conservar
das almas. sempre simples, inocente, mansa, vós me
– O décimo segundo fruto do colégio amareis sempre, não é assim?
é a inocência, que se conserva aqui na – Ó! Afastai-vos, pois de mim, pensamentos,
sua integridade; a inocência que sempre desejos, afetos, que despojaríeis meu
deixa entrever através do semblante a coração do que agrada Jesus.
eterna juventude da alma. Oh! Que ainda – Hei de dispor-me com fervor para a próxima
por longo tempo ignoreis o mal! Amai comunhão. (IGREJA, 1919, p. 86-87)
a oração, fugi das ocasiões perigosas,
procurai vossas mestras. Terceiro: a salvação acessada pela esperança.
– Repetirei bastante vezes a invocação: pela
santa e Imaculada Conceição, virgem purís- Eu espero, meu Deus, com firme confiança,
sima, rainha dos anjos, alcançai-me pureza que pelos merecimentos de meu senhor
de alma e corpo. (IGREJA, 1919, p. 37-38) Jesus Cristo, me dareis a vossa graça n’este
mundo, e se observar vossos mandamentos,
Por outro lado, complementariamente a vossa glória no outro, porque me tendes
ocorre uma normatização das condutas que prometido, e sois fiel em vossas promessas.
mantivessem ou criassem uma libido apropriada. Amém. (IGREJA, 1919, p. 217)
Desenvolveu-se toda uma tecnologia e
conhecimento em relação ao apetite e à tentação, Desse modo, aqui expomos não uma
heterogêneos em seus controles, incitadores descrição de uma história da repressão à
e condutores. Das induções, enumeramos três sexualidade organizada pela Igreja, tampouco a
tipos. Primeiro: a fé associada ao ato de crer de sua liberação. Em realidade, propõe-se entender
maneira incondicional. o porquê de tanto interesse e, por consequência,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 741


a produção de conhecimento acerca dos desejos sensuais, sempre coloridas com um reflexo
e, de maneira subliminar, da sexualidade de inocência e candura, que engana uma
feminina; e que, por estarem atrelados à alma inexperiente como a sua, mas oculta
intimidade, ganharam grande importância nas no fundo grande perigo e às vezes mal sem
discussões católicas desse momento histórico. remédio. Esta menina não vive nunca no
A Igreja tentou inventar modalidades de presente: aí vegeta como planta, seu coração
relações com seus fiéis. Algumas importadas está sempre além de três ou quatro anos.
dela mesma, como a ascese dos monges – [...] Filha, ocupai-vos mais, sobrecarregai-
celibatários, o pastorado de seus missionários, -vos de trabalho, executai sempre o que vos
o controle dos comportamentos via confissão ordenam, sem isto estais exposta a ser mui-
e os usos arquetípicos das entidades cristãs. to infeliz e culpada. (IGREJA, 1919, p. 164)
Ainda assim, incluiu novos dispositivos de
mando, incorporados no cotidiano e adaptados Um dos significados da condução de
de acordo com as demandas surgidas nas comportamentos, retratados acima, trata dos
relações internas de suas instituições, como a assuntos íntimos, apoiada na capacidade de se
própria disciplina escolar. Contudo, todos esses apurar as condutas infinitesimais, acedendo di-
estratagemas tinham em comum a condução das retamente o subjetivo, em uma constituição de
condutas como centro, em uma racionalização micropoderes sobre o corpo que pudesse amai-
dos comportamentos. Não havia um caráter nar instintos e desejos. De forma complemen-
repressor puro mas, ao contrário, incorria-se, tar, programam-se comportamentos saudáveis,
ao mesmo tempo, na incitação e no controle determinando moralidades que se justificavam
dos quereres individuais, manipulando de uma como diminuidoras de um sofrimento em vida e
forma a enquadrá-los no seu campo normativo que evitassem desvios futuros.
e de suas categorias. Esse tipo de acepção pode se adaptar à or-
Partimos do pressuposto de que o dem discursiva católica, já que ajuda a infundir a
discurso sobre o sexo, desde o século XVIII, prática da identificação a um potencial pecador,
desenvolveu-se suficientemente a estimular a independentemente de seu passado puro. Ativa-
própria sexualidade no chamado Ocidente e se a prática reflexiva da precaução saudável da
que, ao contrário do que se poderia pressupor, alma, em que se incute na subjetividade o exer-
não teve uma forma definida e um órgão cício de autovigília que nunca esmorece.
emissor único. Houve um poliformismo de
produção de saberes, que gerou um campo de É por isso que no século XIX, a sexualidade
conhecimento complexo acerca da sexualidade. foi esmiuçada em cada existência, nos seus
Adiante, perscrutaremos um pouco mais como mínimos detalhes; foi desencavada nas
se daria esse conhecimento específico eclesial condutas, perseguida nos sonhos, suspeitada
nos 1800 sobre a sexualidade feminina. por trás das mínimas loucuras, seguida até os
primeiros anos da infância; tornou-se a chave
A autovigília e o desejo da individualidade [...]. De um pólo a outro
combinados como atos de dessa tecnologia do sexo, escalona-se toda
ascese uma série de táticas diversas que combinam,
em proporções variadas, o objetivo da
Oremos por aquelas que são propensas à disciplina do corpo e o da regulação das
melancolia. populações. (FOUCAULT, 2003, p. 137)
– Deus não gosta de menina de caráter
exaltado e romanesco, que enche o coração Nesse contexto, surge um olhar sobre
e a cabeça de ideias vagas, efeminadas, as sexualidades infantil e juvenil, encaradas

742 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
agora como armazenadoras de uma energia gênio. Se somos teimosas. Se ficamos na
que poderia ser transformada em positiva, cama por preguiça. Se gastamos o tempo
caso fosse utilizada de maneira autorregulada, com ninharias, se permanecemos ociosas,
em um procedimento a ser relacionado ao se fizemos perder tempo aos outros.
amadurecimento psicológico. (IGREJA, 1919, p. 401-402)
Em outros períodos históricos, a fala e o
comportamento dos mais jovens não circulavam Buscando explicar de maneira adaptada os
e não eram notados entre os adultos. Passou-se pecados capitais às jovens, enumeraram-se, em
a ouvi-los e a percebê-los a partir de meados do realidade, as identidades possíveis delas pelo erro
século XVIII, não com intenções de fazer fluir e não pela honra. É na anormalidade que se optou
a emancipação desses seres, porém para regulá- fixar a católica e não a um tipo de cristã perfeita,
-los, interditando suas comunicações com enun- algo externo e ineficaz como demarcação da
ciados normatizadores. As escolas confessionais virtuosidade. Agia-se influenciando diretamente
foram uma das primeiras a se incumbir de criar as meninas, incentivando-as a identificar suas
um ambiente que pudesse aplacar essa potência faltas e corrigi-las sozinhas. Foi-se além do
pueril, desviando-a e adequando-a a uma estru- simples perdão salvacionista; formataram-se as
tura de controle que, primeiramente, percebesse índoles particulares.
o que se falava para posteriormente impor outro Convocou-se a constituição de estruturas
discurso, o autorizado aí sim pelos agentes das de vigília altamente complexas para atentar-se
instituições eclesiais. sobre as desordens insignificantes, enfatizando
A repercussão foi a fixação da identidade o cotidiano e suas falhas triviais. Para tanto,
geral dos mais jovens a uma específica, adequada constituiu-se um discurso acerca das faltosas,
às ambições católicas. “Refrear as paixões” e as que no cotidiano rompiam as normas já
“domá-las pela oração”, nada mais foi do que um sabidas, que se colocavam do lado do desvio, ao
vínculo da subjetividade, daqui para frente, aos menos no olhar de quem detinha o predomínio
desejos. Como sequela disso, posicionaram-se os da ordem do discurso.
corpos e os comportamentos a esse componente
da alma, relegando outros a um segundo Oremos pedindo para ter hoje ocasião de
plano. Em nome de uma normatização do fazer bem.
comportamento libidinoso da chamada mocidade – Deus gosta de uma menina silenciosa. Ó!
cristã – e, portanto, da constituição de uma Quanto as graças se concedem àquelas que,
maneira preponderante de se relacionar com o para agradar a Deus, se calam durante o
querer próprio –, iniciou-se uma verdadeira caça estudo, na aula, no dormitório!... Começar
aos gostos e prazeres menores e/ou periféricos, muito jovem a refrear a língua, faz esperar
denominados, pela Igreja, de pecados. grandes virtudes para o futuro.
– Se eu falhar distraidamente hoje farei
Se se tem vanglória da beleza, das vestes, uma mortificaçãozinha no refeitório.
da riqueza, dos talentos, do nascimento; (IGREJA, 1919, p. 170-171)
se no modo de vestir, de falar, de andar,
tem-se como fim excitar a admiração. Se Toda uma cadeia de poderes vem se mis-
nos achamos melhor que o próximo. Se se turar ao habitual, explodindo potências entre
tem vexame de seus pais. [...] Se se tem as que conseguiam, de alguma forma, deter o
dureza com os pobres [...]. Se nos entristece domínio de quem emite a alocução ou das suas
o bem e o merecimento alheio. [...] Se formas diversificadas. O resultado é o brotar de
nos impacientamos; murmuramos, e nos uma infinidade de discursos competentes so-
entregamos aos arrebatamentos do mau bre o que deveria ser uma menina e uma moça,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 743


usurpando o cotidiano da própria individualida- dos vícios e virtudes das meninas cristãs. Não
de e encarregando-se dos fatos sem importância. se tratava de uma exercitação que convocasse
Tratava-se de silenciar a vaidade, a ira, o relaxamento, tampouco o alcance da
a vergonha, a avareza, a teimosia, a preguiça, a transcendência. Nela, deveria-se encher a
ociosidade e muitas outras expressividades das imaginação de racionalizações que vigiassem
donzelas, cuja qualidade fosse a da anormali- o que se pensasse. Para tanto, propunha-se
dade. As percepções das anomalias femininas uma conversa com Deus, em uma mentalização
ocorriam, conjuntamente, ao intenso movimen- de imagens de seres perfeitos que julgam
to para se colocar em discurso todas essas in- nossos atos, internalizando-se inquirições e
quietações e variações individuais de conduta julgamentos próprios.
por parte de quem fosse incumbido de exercer
o poder sobre a mulher em formação. Esse mo- – O que eu digo a Deus! Tudo que sinto.
vimento acarretou em um emudecimento de Quando tenho dissabores, eu lhes digo,
quem deveria obedecer. para que o Senhor os saiba melhor, e isto
A cantilena política da banalidade deveria, me alivia; peço-lhe ânimo para os suportar,
por sua vez, tentar resgatar o controle do todo, que me ajude a dizer e a fazer o que devo;
já que é nele que está inscrito o habitual. Daí depois falo-lhe a favor dos doentes que
a necessidade da elaboração de uma tecnologia conheço, de meus pais, daqueles que amo,
complexa de controle sobre o ordinário feminino, designo-os um por um, comunico-lhe
que criasse um disparate entre o pequeno erro e a o que me tem acontecido, os males que
grande sanção. Complementando o domínio sobre receio... Digo isso a nosso senhor como
o mundo micro, armou-se toda uma maquinaria diria a minha mãe.
de inteligibilidade dos pecados, com o intuito – Mas isto não é orar.
não de extirpá-los, mas de controlá-los e incluí- – Oh! Eu não sei; mas visto que Deus é meu
los. É um processo de autoinquirição cotidiana pai, não hei de dirigir-me a ele como faço
ilimitada, em exercícios que possibilitassem a a meu pai, quando à noite estamos ambos
recriminação de si própria, que pudessem abrir a no serão?
alma para que se acessasse aos desejos perversos. – É uma conversação, e esta não pode ser
A utilidade dessa sistematização foi a longa quando ninguém responde.
efetivação de um sistema que questionasse as – Oh! Há resposta! Às vezes, é triste, não se
faltosas prontamente, com o intuito de que a ouve nada, não se sente nada, é porque Deus
pecadora se sentisse convencida de sua própria está zangado. (IGREJA, 1919, p. 223-224)
culpabilidade e, portanto, se autocontrolasse
em seguida ao acometimento das tentações. Para uma conversação, exigia-se interação.
Ao mesmo tempo, as fronteiras do vício seriam Para a interação com Deus efetivar-se era preciso
vislumbradas e incorporadas de uma maneira ter, por parte da menina penitente, atributos
em que qualquer uma que se aproximasse dela como: a iniciativa de começar; a disposição em
se sentiria já culpada. O poder mais brutal, manter um diálogo longo; uma reflexão profunda
aquele que agisse na interdição mais fulgurante, advinda dos cuidados com o que se vai dizer; um
seria a exceção nessa nova disposição do poder arrolamento e ordenamento dos acontecimentos,
sobre a alma feminina, já que se apresentaria dividindo-os, no mínimo, entre positivos e
ineficiente. Compreender-se-ia, pois, que o negativos; e um final que trouxesse um veredito.
pecado e o erro nunca acabariam, já estariam Às mestras pastoras era dever que ensinassem o
na natureza da mulher. cortejo a Deus pelas alunas penitentes, passando
A meditação encaixou-se aqui como a ideia de que se adentrava em uma relação
algo de importância capital nessa cartografia interminável. “Não vos separeis do bom senhor

744 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
que vos esperou” (IGREJA, 1919, p. 238); ou seja, alma, é ter lucrado mais do que se conquis-
a meditação como uma espécie de compromisso tasse mil mundos. (IGREJA, 1919, p. 245)
matrimonial com Deus.
Mas qual a conduta cobrada por Deus Na construção da nova cristã era desejosa
nessa relação tão íntima? Nas conversas de a sensação de segurança. Partindo daí, diminui-
alcova com Nosso Senhor, o que ele poderia riam as possibilidades das incertezas, ocorridas
cobrar e louvar? Em grande parte do livro é muitas vezes dos sentimentos incontroláveis
indicado o protótipo da santa. de paixão, que poderiam escoar em arroubos
Primeiramente, diz-se que Deus exige a de individualidade rebelde. Em contrapartida,
criação de um cotidiano em que apenas ocor- o autocontrole deveria surgir nas meninas, em
ressem a oração, o estudo, o trabalho e o re- troca da possibilidade da construção de um
pouso. Cada uma dessas atividades deveria ser destino mais previsível. Surgiriam, então, ações
aperfeiçoada a cada dia, de uma maneira que integradas de inculcação de sentimentos e rela-
agradasse e não provocasse o desgosto divino. ções afetivas que ameaçassem a existência de
Seguindo, dever-se-ia entregar todo o amor que indivíduos que emanavam impulsos e emoções
vem do coração a ele, pois seria o único que faz espontâneas, além de possibilitarem inúmeras
isso de maneira verdadeira. Ao mesmo tempo, vantagens aos que fossem capazes de moderar
é premente a resistência aos convites deleitosos suas paixões. (ELIAS, 1994, p. 198)
do demônio e do mundo, evitando trair a con- “Sufocar o impulso da paixão” de certa
fiança de quem tanto se dedicava às meninas. maneira impõe uma prática ascética à criança.
Opor-se aos momentos de tédio seria Obviamente, a devassidão já era renegada pela
outra regra de conduta para com Deus. O Igreja há tempos. Contudo, no manual admitia-
império do aborrecimento significaria mais uma -se um tipo de relação libidinosa das meninas
tendência que os indivíduos teriam em repartir com o Senhor. Por sua vez, havia regras intro-
o seu amor e suas atenções com o mundo e uma jetadas por uma disciplina específica à infân-
dificuldade em dedicá-lo exclusivamente a Ele. cia. O que podemos concluir, por enquanto, é
A companhia do todo poderoso traria que na ascese tradicional, o desejo era encarado
o reconforto, a segurança. Mas, mesmo que como proibido e, portanto, evitado; a partir de
fosse traído, no manual constava que Deus então, passou a ser admitido, e, por sua vez,
não abandonaria a pessoa. Contudo, perder- regulado. Não se evitava tal sensação; ao con-
-se-ia a possibilidade de ocorrer uma relação trário, admitia-se que os sujeitos pudessem ser
totalmente sincera e isenta de outros arrou- libidinosos, desde que direcionassem a energia
bos. Assim como Deus perdoa seus servos, há estimulada aos objetos católicos.
que repeti-lo e relacionar-se com os outros da
mesma forma, suportando os defeitos, além de Os amores do pai e da mãe como
ajudar nas necessidades e dando bons exem- reguladores dos controles sobre
plos (IGREJA, 1919, p. 239-244). o corpo
Nas regras de condutas para conosco,
parte na qual se ajudariam as meninas a se Oremos para que neste mês não se façam
atingir o status de santa, a obra dedicada às pecados mortais nesta casa.
donzelas cristãs indicava que a sensação de – Filha, eu próprio me dou a todas as
prazer é algo proibitivo, sendo que nunca se meninas que me apresentam um coração
deveria apaixonar e somente amar. puro e amante; queres-me?
– Sim, menino Jesus, eu vos quero, vinde
Ter sufocado no coração o impulso de uma a minha alma na santa comunhão, e
paixão, ter arrancado uma imperfeição da permanecei com tão boa vontade como

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 745


estivestes no presépio; minha alma é pobre paixão de Cristo. Os rosários, as cerimônias pú-
como este... mas feliz do que vosso asilo, blicas de via sacras e o culto ao Sagrado Coração
sabe amar, quer amar, e expandir seus só vieram a reforçar a inculcação do sofrimen-
sentimentos. (IGREJA, 1919, p. 19) to corporal impingido ao Salvador para que
ele atingisse a purificação plena (DELUMEAU,
A afetividade elevada era articuladora 1991). Percebe-se um aprofundamento da carne
do enamoramento, não a incontrolável paixão como local seleto da inocência e o conforto de
romântica, mas o ascético, dirigido, pragmático, Jesus como o guião paternal.
que se vincula por privilégios ou querendo algo Assim como o filho, o corpo de Maria
em troca. Não é uma entrega ao objeto amado, serviu também como modelo de ascetismo e
mas é a criação de um vínculo que resulte em entidade a ser amada. Enfatizou-se uma Nossa
uma interdependência. Senhora que não cometera o pecado original,
Estabelece-se um contrato amoroso abluindo a concepção do Salvador e dando a
entre as entidades e seus adoradores católicos, sensação às fiéis da possibilidade de uma vida
em que ambos se doam e se tornam fiéis. longe do desejo e do prazer carnal.
Cabia agora aos indivíduos cumprirem o
contrato estabelecido, feito e confirmado – Oremos em união das criancinhas que
através das promessas, pedidos, venerações e hoje morrerem e subirem ao céu.
outras manifestações mais que demonstrassem – Filha, dou-te como festas o véu de minha
o amor. Nunca se poderiam frustrar as santa mãe.
expectativas dos santos ou da Virgem ou de – Aceito com felicidade, menino Jesus, há de
Cristo com seu comportamento. recordar-me a modéstia da santa virgem: que
Na liturgia católica tradicional, já só a vós queria ver, nem desejava ser vista
se colocava o corpo como objeto central por ninguém; com ela, conservarei hoje os
da salvação, posto no exemplo máximo da olhos baixos, andarei um pouco mais deva-
consubstanciação de Deus na carne – no caso gar sem afetação, evitarei tudo que atrai a
do próprio Jesus. Equivalia-se a demonstrar a atenção dos outros. (IGREJA, 1919, p. 23)
possibilidade da salvação da alma nas maneiras
de se disponibilizar comportamentos que se Acompanhada à imagem da Imaculada
afastassem dos pecados, fazendo o centro da vem a da Assunção, devoção crescente também
atuação pastoral da Igreja a adequação dos entre os fiéis católicos do século XIX, que
corpos dos fiéis a uma purificação próxima à poderiam conceber uma Maria que não entrou
ocorrida com Cristo. em estado de decrepitude – já que não poderia
Dispuseram-se, nesse sentido, alguns ressuscitar, papel esse de exclusividade de seu
artifícios de ajuda ao desejoso da salvação pelo filho. Nessa caracterização, Nossa Senhora
corpo: um deles seria a eucaristia, representando simplesmente subira aos céus sem marcas de
a recepção do corpo e do sangue de Cristo, envelhecimento, glorificada em uma eterna
assim como os ritos de batismo, a crisma, as juventude, isenta da decadência corporal
bodas e a extrema unção. Todos pretendiam do restante dos mortais. Nossa Senhora se
nada mais que confirmar o domínio que Deus apresentaria, portanto, casta, maternal e jovial.
tem sobre o corpo e indicar a fidelidade dos
sujeitos católicos aos preceitos de purificação. – Maria Santíssima é o modelo que estudo.
Por sua vez, houve, a partir do século – Ó minha mãe que delicioso pensamento
XIX, uma atenção exacerbada sobre o corpo de tive esta manhã! De joelhos perante
Jesus durante o seu período de prisão e tortura, vossa amada imagem eu pensava: Maria
fazendo com que se reforçassem ritos ligados à Santíssima foi menina como eu... Ó! Se eu a

746 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
tivesse tido por companheira no Templo de religiosidade, a partir do momento de sua ins-
Jerusalém onde, como eu estou aqui ela era titucionalização via escolarização.
discípula! Então ante meus olhos, como se o Uma das resultantes foram as pequenas
bom Deus quisesse realizar meus desejos, vós mortificações, postas como uma das estratégias
me aparecestes menina, ó Maria Santíssima! de disciplinarização do corpo feminino, subs-
E me dissestes: Sê minha companheira e tituindo o sangue e a dor, tão frequentes no
amiga, queres sê-lo? (IGREJA, 1919, p. 71) Antigo Regime como maneiras de expressivida-
de da penitência. Desse modo, interiorizar-se-ia
Em um numeroso panteão de santos, e o desapego de si mesma no trivial, incluindo-se
mesmo tendo à disposição o próprio Cristo, içou- uma racionalidade contábil dos pequenos sa-
se a figura de Maria, posta em um protagonismo crifícios de acordo com a consubstanciação dos
tão relevante quanto o de Jesus, seu filho. desejos e dos prazeres.
Dela se poderiam retirar múltiplas qualidades
atreladas ao feminino. Há de se examinar, aqui, – Oremos pelas companheiras que em outro
Maria como figura de empoderamento. tempo nos encaminharam para o mal.
Com sua aclamada beleza, a Igreja promo- – Deveis mortificar vosso corpo. Não lhe
veu uma fusão entre os corpos das fiéis e o da concedais tudo o que reclama, às vezes
santa, indicando algo que manteria as católicas privai-o de alguns dos gostinhos que só
isoladas de seu desejo incitado. A pureza demons- servem para enfraquecer vossa alma.
traria uma conduta representativa de autocontrole – Eu me privarei de algumas gulodices nas
e introjetora de comportamentos a serem segui- refeições. (IGREJA, 1919, p. 178-179)
dos. Concomitantemente, abriu-se a possibilidade
do feminino como modelo de conduta. Nota-se uma diferença em relação à ma-
O culto da Virgem Maria permitiria múlti- neira de se pensar a salvação da alma feminina
plas associações, no qual situassem maneiras de no catolicismo. Não se indicariam mais as peni-
positivação do exercício de poder pela Igreja sobre tências com tanta ênfase, aquelas que pudessem
os fiéis. Primeiramente, houve o estabelecimento provocar um autoflagelo às que tivessem já peca-
de uma ética feminina universal – vigiada pelo do. Em um refinamento do domínio, atuava-se no
pai postiço Nazareno redentor – que moralizava pensamento com o intuito de se evitar a priori o
desejos, canalizados para uma continência sexual cometimento de pecar.
permanente e ao estímulo de um amor materno de Por implicação, um arrebatamento na-
preservação. Em segundo lugar, lançava-se uma tural, as relações de afetividade aumentariam
estética da juventude associada à pureza mariana, dentro dos núcleos familiares. Michel Foucault
que elevou as meninas a uma posição prioritária (2003) chega a lançar a tese de que isso, a par-
na salvação da humanidade. tir do século XIX, tenha trazido uma maneira
incestuosa dos parentes se relacionarem. As
Conclusão: as mortificações da carne famílias passaram a ser o cerne de perpetua-
e o desígnio de controle sobre as famílias ção de um dispositivo de controle dos desejos,
tanto na perseguição de um comportamento
A mulher da segunda metade dos 1800 perfeito idealizado, como na constituição das
tornou-se um hospedeiro de colonizações ins- próprias anormalidades.
titucionais, sendo a Igreja um deles, perceben-
do na possibilidade de manipulação do corpo Deus chamando-vos para este colégio tinha
feminino um poderoso espaço de controle so- em vista, sem dúvida, a salvação de vossa
cial do mundo católico. Elas saíram de uma alma, e também a de inúmeras almas, que
posição de figurantes para o protagonismo da vossas orações mais regulares e fervorosas

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 747


aqui, unidas as de vossas mestras e dia de uma menina, desde o acordar, passando
companheiras, ajudarão a converter. pelo vestuário, trabalho manual, as recreações,
O senhor tinha em vista a salvação de os estudos, as refeições e como se deve deitar.
vossos pais, por quem haveis de orar aqui Afirmava que as jovens deveriam acumular
de modo mais eficaz, porque vossas preces tesouros durante a vida para alcançar a graça de
mais fervorosas estarão impregnadas da adentrar no paraíso (IGREJA, 1919, p. 118-119).
confiança que enternece o coração de Deus
[...]. (IGREJA, 1919, p. 213) Chegou a noite... se o dia foi ocupado no
desempenho dos deveres, vosso será plá-
A família era posta como local de chega- cido! Não sentis, todas as noites, pensan-
da dos valores cristãos. Até o século XVII, o vi- do no silêncio lúgubre que vai cercar-vos,
ver era essencialmente social. A família existia profundo sobressalto? Este leito com feitio
como experiência, mas não como sentimento de de túmulo, o sono que vai separar-vos do
pertencimento ou valor moral. A sociabilidade mundo inteiro, a escuridão que vos cerca
dos grupos familiares era quase toda publicita- e através da qual parece que avistais os
da, sobrando pouco à intimidade. As famílias olhos de Deus que vos examina, a peque-
no século XVIII e, mais marcadamente no sécu- na lâmpada que arde sem ruído, tudo isso
lo XIX, transformaram-se em pequenas socie- não vos impressiona? Quando se não tem
dades protegidas, que foram se afastando das a consciência tranquila, oh! Como se deve
relações sociais, das obrigações civis e das tra- ter medo! À luz do dia parece que talvez
dições (ARIÈS, 2003). Em realidade, uma tensão se possa lutar com Deus: alguém estaria
entre a vida privada familiar, organizada pelas presente para nos defender... mas de noi-
intimidades e um viver público foi mais um dos te... Oh! Silêncio! Recolhimento! Modéstia!
resultados dos desmanches das sociedades so- Oração! (IGREJA, 1919, p. 208-209)
beranas e a experiência das sociedades indus-
triais. Ou seja, de um lado os costumes específi- O livro reforçava uma investigação retros-
cos comunitários das famílias se chocaram com pectiva do eu, que passou a ser um dos objetos
as exigências de civilidade (SENNET, 1988). primordiais de atuação dos sujeitos na moder-
De maneira parcial, a Igreja foi uma nidade. Estimularam-se arrependimentos, avi-
das instituições que se aventurou na resolução varam-se ascetismos, mortificaram-se quereres
dessa tensão, com as tentativas de introjeção carnais; mas, ao mesmo tempo, provocaram-se
de uma civilidade própria pela via escolar. Os desejos celestiais, vontades de individualidades,
novos apóstolos se dedicaram a reorganizar as cobiças por um mundo mais seguro. A Igreja e
novas relações sociais, com especial atenção seus agenciamentos, seus enunciados e seus dis-
para as famílias. positivos convidou os fiéis à construção de si de
Partia-se do pressuposto de que o mundo maneira autônoma. Porém, no limbo, aos cochi-
público seria viciado e, seguindo esse raciocínio, chos da escuridão, escondendo os prazeres na in-
seria importante partir do rearranjo das virtudes timidade da alcova de Cristo e no colo mariano.
das individualidades, para depois passar para as Altruísmo, silêncio, autocontrole das
acomodações parentais e, por fim, lograr alcançar afetações e outras mais foram prescrições
o corpo social. Controlando-se os desejos de eclesiais a um tipo de comportamento idealizado
maneira rígida, manteriam-se as famílias como feminino, que foram sendo apresentados por
os refúgios morais da sociedade, protegidas de este texto, nos trechos selecionados do Manual
uma vida social encarada como corrompida. de piedade da donzela cristã. De uma maneira
O Manual, em sua segunda parte, sutil, foi-se sugestionando uma subjetividade
dedica-se a determinar as ações corretas de um a ser alcançada e que se conecta, justamente,

748 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
a uma produção disciplinar da mulher, que Decorreria daí tomar-se conhecimento
fora alçada como componente estrutural das sob que maneiras, quais vias e como seriam
famílias, indo além da própria sociedade pós- organizados os discursos competentes acerca
revolucionária que se constituía. Dentro disso, dos comportamentos e pensamentos libidinais
o indivíduo e os desejos surgidos, as suas ações que chegavam aos indivíduos e lhes confor-
ocorridas, os seus comportamentos incididos, os mavam condutas. Para nós, a Igreja ingressou
amores e as paixões brotadas e os usos da carne, profundamente nessa racionalização do dis-
foram se sujeitando a um controle estendido, curso sobre a volição, constituindo, inclusive,
a uma racionalização proposta, a uma ascese uma própria sobre os comportamentos envol-
imposta, a uma calibração sugestionada e ao vidos com esse tema através do estabeleci-
cálculo dos usos do corpo. mento de verdades, assumindo a posição de
Quais os efeitos de poder induzidos e um centro gerador – principalmente em suas
ambicionados, a quem empunhava as verdades instituições escolares – de uma parte do saber
geradas pelos discursos acerca do desejo? Essa sobre a sexualidade na modernidade, e, mais
foi nossa pergunta basilar. designadamente, a respeito da mulher.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 735-750, jul./set. 2014. 749


Referências

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Recebido em: 30.11.2012

Aprovado em: 24.04.2013

Carlos Manoel Pimenta Pires é doutorando em História da Educação pela Universidade de Lisboa. Pesquisador da Fundação
para a Ciência e Tecnologia (Portugal). Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo. Graduado em História pela
Universidade de São Paulo.

750 Carlos Manoel Pimenta PIRES. As mortificações da carne e o desejo exposto: controle sobre meninas em...
Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século
XIX: o olhar de Paranhos

Victor Andrade de MeloI

Resumo

Muitos autores consideram os anos 1850 como um marco na


história brasileira, pois foi um período em que se conformou, em
diferentes âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar, de forma
mais efetiva, o processo de construção da nação independente. Na
capital, que se tornou foco irradiador de novas modas e costumes,
gestou-se uma dinâmica social mais mundana, uma maior
estruturação do comércio de luxos e entretenimentos. Ao estudar
esse período da história brasileira, este artigo tem por objetivo
discutir os aspectos educacionais que cercavam uma das atividades
comumente promovidas no Rio de Janeiro de meados do século
XIX, os bailes, a partir do olhar de um importante personagem do
Império: José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma pesquisa
histórica que utilizou como fontes 47 crônicas da série Cartas ao
amigo ausente, publicadas no Jornal do Commercio entre os anos
de 1850 e 1851. Ao final, conclui-se que a visão de Paranhos a
respeito dos bailes tem relação direta com sua percepção e seus
projetos para o país. Os eventos dançantes não eram concebidos
somente como um divertimento, mas, a seu ver, eram também
ocasiões que contribuíam para forjar e fortalecer uma sociedade
civil, composta por distintos setores da elite nacional, que poderia
conduzir o Brasil a um futuro alvissareiro, marcado pelas ideias de
civilização e progresso. Os posicionamentos de Paranhos ajudam
a entender os bailes como uma estratégia de educação do corpo a
partir de três princípios: eficácia, propriedade e identidade.

Palavras-chave

Bailes — Dança — Educação do corpo.

I- Universidade Federal do Rio de


Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Contato: victor.a.melo@uol.com.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004 751
Body education – social dance in 19th century Rio de
Janeiro city: Paranhos’ point of view

Victor Andrade de MeloI

Abstract

Many authors consider the 1850s a milestone in Brazilian history,


because it was a period in which stability arose in different areas,
which enabled more effective progress in the process of building
an independent nation. The capital (Rio de Janeiro city), which
disseminated new trends and customs, nurtured a more mundane
social dynamics, and a greater structuring of the trade in luxuries
and entertainment. By studying this period of Brazilian history, this
article aims to discuss the educational aspects of one of the activities
commonly promoted in Rio de Janeiro in the mid-nineteenth century,
the dance balls, from the point of view of an important personage
of the Brazilian Empire: José Maria da Silva Paranhos. The sources
of this historical investigation have been 47 chronicles from the
series Cartas ao amigo ausente (Letters to an absent friend), written
by Paranhos and published in Jornal do Commercio between 1850
and 1851. The study concludes that Paranhos’ view of the balls is
directly related to his perception and his projects for the country.
He perceived the dance events not only as entertainment, but also
as occasions that helped to shape and strengthen a civil society
composed of different sectors of the national elite, which could lead
Brazil to an auspicious future, marked by the ideas of civilization
and progress. Paranhos’ positions help understand the dances as a
strategy for body education based on three principles: effectiveness,
ownership and identity.

Keywords

Balls – Social dance – Body education.

I- Universidade Federal do Rio de


Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Contact: victor.a.melo@uol.com.br

752 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000004 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014.
Introdução Nesse contexto, de um lado, adotaram-se
costumes mais distendidos, frutos, inclusive, dos
E se não fossem os bailes, o que seria do bom povo
mais frequentes contatos no cenário urbano. De
fluminense?
outro lado, aumentaram as preocupações com
José Maria da Silva Paranhos
os comportamentos a serem adotados. Todos
passavam por um processo de reeducação frente
Carvalho (2012) e Chalhoub (2012), entre ao novo dinamismo social.
outros autores, consideram os anos 1850 como Isso é, quando o espaço privado, sem deixar
um marco na história brasileira. Tendo surtido de ser importante, perde força frente ao avanço
efeito a estratégia da antecipação da maioridade das vivências na esfera pública, novas exigências
de Pedro II (1840), conformou-se, em diferentes pendem sobre os indivíduos. Que comportamentos
âmbitos, uma estabilidade que permitiu avançar, adotar? Como expressar um gosto apurado tendo
de forma mais efetiva, o processo de construção em conta os novos parâmetros? Como isso se
da nação independente. manifesta nas vestimentas, nos cumprimentos,
Ainda que persistissem resistências e nos gestos, nas técnicas corporais? Trata-se
ocorrências contraditórias, como a manutenção claramente de um processo de educação do
da escravidão, foi o período em que mais bem corpo. Estou aqui dialogando com as ideias de
delineou-se o processo de modernização que, de Soares (2001, p. 110):
alguma forma, já vinha sendo entabulado desde
a chegada da família real portuguesa (1808). Os corpos são educados por toda realidade
Constroem-se discursos de que o Brasil deveria que os circunda, por todas as coisas com
ser reconhecido pelo seu caráter civilizado e pela as quais convivem, pelas relações que
adesão à ideia de progresso (SCHWARCZ, 1998). se estabelecem em espaços definidos e
Impactos desse processo são claramente delimitados pelos atos de conhecimento.
observáveis no município neutro da corte, que Uma educação que se mostra como face
se tornou o espaço das principais experiências polissêmica e se processa de modo singular:
de modernização do país, foco irradiador de dá-se não só por palavras, mas por olhares,
novas modas e costumes. Gestou-se no Rio de gestos, coisas, pelo lugar onde vivem.
Janeiro uma dinâmica social mais mundana,
uma maior estruturação do comércio de luxos Concordamos com a autora ao dizer que,
e entretenimentos, relacionados, inclusive, à por sua materialidade, esses corpos educados,
conformação de uma sociedade civil que desejava ou que se pretende que assim o sejam, são
(e precisava) expor publicamente seus símbolos de uma representação da sociedade, permitindo-
status e distinção. Tornaram-se mais valorizadas nos prospectar a “dinâmica de elaboração dos
as atividades públicas de convivência, quase uma códigos a que devem responder”. Ao seu redor é
obrigação para os que desejavam ser reconhecidos possível compreender “as técnicas, pedagogias e
em certos círculos sociais: instrumentos desenvolvidos para submetê-los a
normas” (SOARES, 2001, p. 111). Trata-se não só
[...] é na capital, durante os anos de 1840 de um processo que pende sobre os indivíduos,
e 1860, que se cria uma febre de bailes, mas sim sobre a sociedade como um todo, sendo
concertos, reuniões e festas. A corte se inegável seu caráter político: gestar grupos e
opõe à província, arrogando-se o papel de governar comunidades passa, inequivocamente,
informar os melhores hábitos de civilidade, pela necessidade de estabelecer parâmetros de
tudo isso aliado à importação dos bens educação corporal.
culturais reificados nos produtos ingleses e Nessa perspectiva, a educação do corpo
franceses (SCHWARCZ, 1998, p. 111). se cruza com a educação das sensibilidades e dos

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. 753


sentidos. Devemos ter em conta o desafio apontado onde se tornou professor. Inclusive em função
por Oliveira (2012, p. 08) para melhor entender a do estrato social de sua família (que não era das
especificidade dessa intervenção educacional: mais ricas), não estabeleceu, como era comum
em muitas lideranças do país, uma relação direta
Para tentar uma aproximação dessa dimensão com a advocacia.
da nossa humanidade, pretendemos Desde os anos 1840, atuava na imprensa,
inscrevê-la no âmbito de um conjunto de primeiro fórum público do que viria a ser uma
influências mutuamente complementares. brilhante carreira política e diplomática: foi um
A natureza, a estética, a ciência, a cultura, dos principais estadistas do Segundo Reinado,
entendida como síntese da economia, da tendo ocupado postos-chave e se envolvido com
política, da sociedade, por mais que sua importantes acontecimentos do Império. Foi
separação remeta a dificuldades que não são responsável por implementar uma série de reformas
de fácil resolução, são os âmbitos nos quais no país, notadamente quando esteve à frente do
os sentidos, a sensibilidade e sua educação Conselho de Ministros, entre 1871 e 18751.
podem ser percorridos pelo historiador. No Jornal do Commercio, Paranhos
ingressou em dezembro de 1850, na condição
Partindo dessas considerações, este de autor anônimo da série Cartas ao amigo
estudo tem por objetivo discutir os aspectos ausente, publicada até outubro de 1851,
educacionais que cercavam uma das atividades quando viajou para o Uruguai, por motivo de
comumente promovidas no Rio de Janeiro de serviço diplomático. Criado em 1827, tendo
meados do século XIX, os bailes, a partir do olhar como foco as questões da economia, esse
de um importante personagem daquele cenário: periódico paulatinamente foi mudando de
José Maria da Silva Paranhos. Trata-se de uma perfil, passando também a se debruçar sobre a
pesquisa histórica que utilizou como fontes 47 política e assuntos mundanos. Foi um dos mais
crônicas que o autor publicou, entre os anos de importantes jornais do Império, sendo um dos
1850 e 1851, no Jornal do Commercio. responsáveis por implementar inovações na
Dialogando com as posições de René imprensa e por torná-la um fórum público de
Remond (2003), metodologicamente este estudo grande relevância (JUNQUEIRA, 2010)2.
transita entre a história política e a história Há divergências a respeito de quem seria
cultural. O político é considerado como um ponto o pioneiro da crônica brasileira. De toda forma, a
de condensação que, a partir de instituições e atuação de Paranhos no Jornal do Commercio pode
funções caracterizadas como estatais, se irradia ser considerada como exemplo de um cronista
para todas as outras esferas da vida social, em ação (EWALD, 2000). O autor abordava, com
influenciando e sendo influenciado por elas. cumplicidade com o leitor, o que acompanhava
Assim, argumentamos que se as agências em todos os âmbitos na vida da corte:
que promoviam os bailes não eram efetivamente
órgãos estatais, eram, contudo, compostas por Paranhos participava de todas as festas,
lideranças nacionais e tinham seu funcionamento frequentava o Prado, adorava os bailes e
de alguma forma relacionado a algumas demandas recomendava sempre aos que o escutavam
e necessidades do país. que gozassem o mundo, porque fugaces
Neste momento, cabem algumas linhas labuntur anni (RODRIGUES, 2008, p. xviii).
para apresentar o personagem com o qual
dialogaremos. Paranhos, o futuro visconde do Rio 1- Paranhos foi, ainda, Ministro das Relações Exteriores (1855-1857;
Branco, nasceu na Bahia (em 1819). Deslocou-se 1858-1859), Ministro da Marinha (1853-1855; 1856-1857), Ministro da
Guerra (1871) e Ministro da Fazendo (1871-1875).
para o Rio de Janeiro na década de 1830. Estudou 2 - Atuaram no Jornal do Commercio grandes personalidades do país. É
na Academia da Marinha e na Escola Militar, de publicado até os dias de hoje, pelo grupo Diários Associados.

754 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Deve-se ressaltar que seus posicionamentos Além disso, havia ainda uma grande
são uma representação, um olhar de um ruptura: “Povo e elite mantiveram-se em
personagem que já era reconhecido, mas que mundos à parte no campo cultural, assim como
se encontrava ainda no início de uma trajetória no mundo social e político” (CARVALHO, 2012,
que lhe alçaria ao posto de um dos mais p. 35). A dança era uma das práticas nas quais
importantes do Império. Seus pontos de vista essa separação claramente se manifestava:
são marcados não exatamente pelo frescor da “o reisado, o lundu, o batuque, o maxixe
juventude, mas sim por uma ainda instável contrastavam com a valsa e a polca dos salões”.
certeza de meia idade acerca dos projetos para (CARVALHO, 2012, p. 35).
a nação, que ele mesmo vai contribuir para Vejamos como se estruturava a prática
operacionalizar nas décadas seguintes. da dança naquelas décadas de 1840/1850.
Nesse sentido, essas crônicas podem
ser consideradas como “uma fonte primordial A sociedade fluminense dança
para o conhecimento do Império, num de seus
períodos mais característicos” (RODRIGUES, O baile! O baile é sempre o baile! Estas interjeições
exprimem as mais sérias preocupações, os mais vivos e
2008, p. X), uma “fonte autêntica, viva, diária, afetuosos sentimentos da atual sociedade fluminense.
cotidiana, para captar o sentido, o valor, a José Maria da Silva Paranhos
significação, o ethos da reviravolta que se opera
na década de 1850” (p. XXII). Fonseca (2007) Na transição dos anos 1840/1850, no Rio de
concorda com esse ponto de vista, destacando Janeiro, já não era uma novidade a dança de salão,
que, nesses escritos, Paranhos discutiu seus aquela que é praticada não de forma espontânea
projetos para o país a partir de um olhar de nas ruas, mas sim em espaços fechados, seguindo
quem era egresso das fileiras das escolas regras e princípios coreográficos variáveis de
militares, e não da faculdade de direito. acordo com diferentes estilos.
Consideramos, assim, produtivo prospectar Sabe-se que, já instalado no Brasil, D.
seus posicionamentos acerca dos bailes e socieda- João mandou vir de Portugal, em 1810, o mestre
des dançantes, novas organizações da sociedade de dança Pedro Colonna (CAVALCANTI, 2004).
civil que funcionavam mesmo como instâncias No ano seguinte, desembarcou na colônia o
educacionais, informando os possíveis usos do francês Luis Lacombe, que passou a oferecer seus
corpo, dramatizando as tensões relacionadas aos serviços de docente e a coreografar espetáculos
projetos de grupos engajados no forjar da nação. apresentados nos teatros da Corte (SILVA, 2007).
Devem-se considerar algumas peculia- De fato, com a chegada da família real
ridades dos bailes abordados por Paranhos. portuguesa, em 1808, houve grandes mudanças
Inegavelmente, esses eventos frequentados pe- no cotidiano colonial, notadamente no Rio
las elites do Império dialogavam com referên- de Janeiro. A vida pública se tornou mais
cias que chegavam da Europa. Seria um equí- agitada. Os bailes, seguindo padrões europeus,
voco, todavia, encará-los como uma cópia do tornaram-se mais comuns, dinamizados por
que ocorria no velho continente. Havia, sim, mestres que chegavam do velho continente.
movimentos de reelaboração, a incorporação Eram promovidos em teatros, nas residências
de peculiaridades do jovem país que ainda ini- das elites, nas festividades da Coroa:
ciava seu processo de construção identitária:
As danças se aperfeiçoavam com mestres
É dentro dessa complexa dialética do entendidos. Luiz Lacombe não tinha mãos
nacional e do universal que se deve a medir e multiplicavam-se salões e saraus
interpretar a rica produção cultural do onde suas discípulas exibiam passes e passos
Segundo Reinado. (CARVALHO, 2012, p. 35) de bem aprendidas graças coreográficas. Os

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cabeleireiros e os mestres de danças [...] comerciantes, negociantes em geral). Esse
gozavam de grande prestígio e maiores quadro gerou a necessidade de estabelecimento
proveitos (PINHO, 1942, p. 15). e aprendizado de novos comportamentos,
que deveriam ser informados pelas agências
Em 1815, é fundada a Assembleia educativas (notadamente a família e a escola),
Portuguesa, com o objetivo de reunir pessoas mediados pela imprensa, que repercutia o
influentes em torno de certos divertimentos, entre momento pelo qual passava a cidade.
os quais bailes, previstos nos estatutos, seguindo Graham também compareceu a eventos
rígidas normas de etiqueta (SILVA, 1978), uma promovidos pela Sociedade Praia-Grandense,
iniciativa que não teve longa duração. localizada em Niterói. Ao comentar a inauguração
Uma nova agremiação dedicada à do novo salão de baile da agremiação, foi
dança surgiu somente em 1834, presidida eufórico: “o melhor que já vi até hoje” (HAMOND,
por um importante personagem do Império, 1984, p. 112). O inglês percebeu que, embora
o conselheiro Diogo Soares da Silva de Bivar. suas atividades contassem com importantes
Ficou conhecida como Bailes do Catete, atraindo personagens do Império, o regulamento do clube
não somente membros da aristocracia, como sugeria que os frequentadores deveriam se vestir
também comerciantes, estrangeiros ligados de maneira mais simples. Nos convites, aliás,
a órgãos diplomáticos, pessoas envolvidas deixava-se claro: “He proibido o luxo no trajar,
com os novos negócios que se estruturavam e o uso de brilhantes, e pérolas” (HAMOND,
na cidade (CARDOSO, 2006). Essa sociedade 1984, p. 112). Avaliação positiva teve também
teria sido uma das primeiras a abolir a grande outro estrangeiro que lá esteve em dia de festa,
separação que existia entre homens e mulheres o norte-americano Charles Wilkes4: “Raras vezes
nas atividades públicas (ZAMITH, 2011). vi tão bom gosto nos arranjos e uma sociedade
Por volta da mesma época foi criada tão distinta” (HAMOND, 1984, p. 197). Como
a Assembleia Estrangeira, presidida por observado, tratava-se de novos comportamentos
Marcelino José Coelho, importante liderança públicos que deveriam ser observados pelos que
dos comerciantes fluminenses. Sua sede, uma desejassem se integrar à dinâmica social em
casa alugada do marquês de Barbacena, também construção.
se localizava no bairro do Catete. Gozando de Essas iniciativas dos anos 1830/1840
certo prestígio na cidade, chegou, em 1841, a não alcançaram a projeção que conseguiram as
oferecer o mais badalado baile em homenagem agremiações criadas na década de 1840/1850.
à coroação de Pedro II. Entre tantas, algumas merecem destaque. O
O Almirante Graham3 muitas vezes esteve Cassino Fluminense foi fundado em 1845, com o
nessa agremiação. Em setembro de 1835, observou fim de: “proporcionar a seus membros honestos
a presença de cerca de 400 pessoas de “todas as divertimentos, por partidas de Baile e Música”
classes” (HAMOND, 1984, p. 90). Em outra ocasião, (ALMANAK LAEMMERT, 1849, p. 227). A
em um baile à fantasia realizado em junho de 1836, diretoria, eleita a cada dois anos, era composta
chegou a comentar: “Não sei se jamais me diverti por insignes personagens do Império. O primeiro
tanto, pois não me lembro de ter parado de rir um presidente foi Luiz Fortunato de Brito Abreu
só momento” (HAMOND, 1984, p. 128). Souza e Menezes, desembargador e um dos
Era, de certa maneira, uma novidade essa grandes nomes da advocacia de seu tempo.
mistura de distintos grupos sociais (aristocracia, Essa agremiação foi, de fato, uma das
mais importantes do Rio de Janeiro do século
3- Graham Eden Hamond esteve, no Rio de Janeiro, em 1825, comandando XIX (NEEDELL, 1993). Como a ela se referiu
o navio que trouxe Charles Stuart, embaixador responsável por negociar
o reconhecimento português da independência brasileira, e, entre 1834 e 4- Wilkes esteve na cidade liderando uma expedição científica, a United
1838, como almirante-em-chefe da esquadra do Atlântico Sul.  States Exploring Expedition.

756 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Paranhos na crônica do dia 27 de abril de 1851: ocasiões nas quais se minimizavam as tensões
“o aristocrático Cassino, que conta em seu seio internas, celebravam-se alianças e acordos,
com todas as glórias parlamentares presentes e estabeleciam-se distinções com quem estava
passadas, todas as sumidades políticas e cortesãos fora (e entre quem estava dentro). Saber dançar,
[...]”. Sua sede da rua do Passeio foi um importante assim, passou a ser uma necessidade. Não
centro de encontro das elites nacionais. valia qualquer dança, mas estilos considerados
Também merecem destaque, pela reper- civilizados. Nada que se confundisse com
cussão de suas atividades e pelos personagens as práticas populares, razão pela qual era
que as integraram, a Sociedade Recreação necessário aprender a forma correta de bailar.
Campestre, a Assembleia Fluminense e a É interessante citar que, em 1854,
Sociedade Amizade, mas de fato muitas eram foi lançado, sendo editado pela Laemmert,
as agremiações que promoviam bailes para provavelmente o mais antigo manual de dança
diferentes estratos das elites e setores médios5. publicado no Brasil. Leiamos a descrição:
Houve também espaços populares de dança
que se organizaram no decorrer do século XIX. Arte da dansa de sociedade ensinada em lições
Esse é o caso do Salão do Caçador, criado em 1859, claramente explicadas por meio de trinta e
no Largo de São Domingos. Segundo Francisco duas figuras gravadas e contendo além de
Macedo, seus “frequentadores se compunham contradanças gerais, das figuras da valsa, da
da mais ínfima espécie de rameiras e devassos” polka, da schottisch e da redowa as marcas
(PECHMANN, 2002, p. 315). Esse médico, tão das contradanças provinciais e de várias
preocupado com a moralidade pública, lembrava outras inteiramente novas. (ZAMITH, 2011)
outros locais, a seu ver marcados pela devassidão,
onde bailes eram oferecidos: Bailes do Rachado, Nesse cenário, não surpreende que a
Bailes do Ângelo, Chico Caroço, Salão do Oriente, dança tenha sido introduzida nas escolas, antes
Fábrica de Cerveja de Mata-Cavalos. mesmo da ginástica e dos esportes. Vejamos,
Na verdade, a prática da dança por por exemplo, o caso do Colégio Pedro II. Já
populares sempre sofreu restrições, notadamente no primeiro regulamento previa-se no artigo
quando se dava em espaço público. Pelos jornais, 54: “As lições de Dança serão dadas nos dias
é comum encontrarmos indícios dessas tensões, de feriados aos Alumnos, cujos Pais houverem
comunicados de repressão ou solicitações de que determinado que a aprendão” (BRASIL, 1838).
alguma medida fosse tomada. Havia um claro Tratava-se de um curso à parte, ainda assim
processo de estabelecimento de um modelo sendo digno de registro que tenha sido previsto.
correto de diversão, relacionado a iniciativas O primeiro professor de ginástica
de controle da ordem pública, relacionadas a dessa instituição, Guilherme Luiz de Taube,
um perfil civilizacional que determinava o que somente foi contratado em 1841. Frente
deveria ser aceito ou não. à dificuldade de conseguir outro docente,
O perfil dos dirigentes das agremiações quando ele deixou a instituição em 1843, o
mais renomadas é um indicador das suas reitor, Joaquim Caetano da Silva, chegou a
intencionalidades. As elites, que no processo propor ao Ministério do Império:
de construção da nação precisavam mesmo
se reconhecer como tal, utilizavam os bailes Não sendo facil achar hum bom Mestre de
como forma de identificação e diferenciação, gymnastica, e correndo os alumnos continuo
risco, se elle sahir maó; com o mais profundo
5- Alguns exemplos: Recreio dos Militares, Harmonia dos Empregados respeito tenho a honra de lembrar a V. Exc.
Públicos, Sylphide, Minerva, Floresta, Cassino Americano, Dois de
Dezembro, Assembleia Familiar Fluminense, Lísia, Vestal, Recreação a conveniencia de substituir-lhe hum Mestre
Brasileira, Terpsícore, Ulisséa, Nova Eleusina, Amante do Recreio. de Dança (CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 170).

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Como podemos notar, no espírito do seu colégio de meninas havia “os seguintes en-
tempo, dança e ginástica eram equiparados sinos ler, escrever, contar, gramática portugue-
como estratégias de educação corporal no sa, desenho, dança, coser, bordar, e marcar, etc.”
âmbito da prestigiosa instituição. (JORNAL DO COMMERCIO, 08/01/1828, p. 2). A
Com a Reforma Couto Ferraz (BRASIL, prática também era oferecida como parte da edu-
1854), que estabeleceu novas normas para cação masculina, como podemos ver nesse anún-
o ensino primário e secundário na corte, a cio do mesmo jornal, em 17/01/1831 (p. 4):
dança se tornou obrigatória no Colégio Pedro
II. Nas décadas de 1850 e 1860, a prática se [...] a cuja casa se poderá dirigir qualquer
manteve. Em 1865, por exemplo, havia 141 pessoa que quiser aprender, ou mandar
matriculados em suas turmas (80 do internato e ensinar a meninos quaisquer das preditas
61 do externato), número superior à maioria das letras, ou qualquer das duas línguas. Os
matérias, sendo que a aula era ministrada para hábeis mestres poderão ensinar também as
todas as séries, por isso o número tão grande6. línguas latina, e alemã, a dançar e a desenhar.
Cumpre ressaltar que somente nos anos 1870,
seria suprimida da instituição (BRASIL, 1870). Em muitos países aconteceu processo
A dança também era oferecida no ensino semelhante. Lousada (1998) informa que o
privado. Nas décadas de 1840/1850, entre as mesmo ocorrera em Portugal, desde a transição
escolas masculinas, podemos citar: Colégio dos séculos XVIII e XIX, tendo a dança se
D’Instrução Elementar (futuro Colégio de Santa incorporado às exigências de educação, de
Cruz); Colégio de São Pedro de Alcântara; homens e das mulheres, não mais só da
Liceu Comercial; Instituto Comercial (futuro aristocracia, como também de setores médios.
Colégio Freese) e Liceu Rossmalen. Já entre Este é um tema fascinante, que
as femininas, citamos: Colégio de Instrução pretendemos aprofundar em outras ocasiões.
e Educação de Meninas (futuro Colégio de Da mesma forma, vale investigar melhor as
Botafogo); Colégio de Meninas (Madame muitas sociedades que ofereciam os bailes. Esse
Lacombe); Colégio de Meninas da Baroneza artigo, contudo, é dedicado a discutir o olhar
de Geslin; Colégio Augusto; Colégio de Santa de José Maria da Silva Paranhos, analisando
Cecilia; Colégio Estrella; Colégio Madame Luiza como esse notável personagem do Império
Halbout; Colégio Emulação da Juventude; teria se posicionado frente à febre de atividades
Colégio Madame Carolina; Colégio da Lapa dançantes e refletido a respeito das necessidades
e Colégio Miss Steinmetz. Atuavam como de comportamentos que deveriam ser adotados.
professores, nessas instituições ou oferecendo
aulas em salas particulares: Antonio Maria Uma febre dançante: os bailes no
Rioja Castelini, Carolina Caton, Francisca olhar de José Maria da Silva Paranhos
Farina, Francisco York, João José da Rocha,
Não exagero dizendo que uma febre dançante
Julio Toussaint, Madame Lacombe, Miguel se apossou do espírito, ou antes das pernas dos
Vaccani Junior, entre outros. habitantes desta boa cidade do Rio de Janeiro. Por
Desde a década de 1820, frequentemente toda a parte e todos os dias ouve-se falar de bailes,
se apresentava a dança como um conteúdo das uns com antecedência anunciados, outros de repente
improvisados. Vai-se visitar a um conhecido velho,
iniciativas educacionais. Por exemplo, em 1828, na intenção, após a tarefa do dia, de gozar alguns
D. Tereza Fortunata da Silva informava que no minutos de repouso, e eis senão quando acha-se um
homem numa sala de dança. Se alguém vai à casa de
6- Confira Mappa das matrículas do Imperial Collegio de Pedro II, um amigo para passar algumas horas em agradável
único estabelecimento publico de instrucção secundaria, por matérias. prática, e esse amigo tem irmãs, filhas ou primas,
Disponível em: <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1740/000085.html>. acham-se lá dois homens que lhes possam
Acesso em: 11 abr. 2013. 

758 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
servir de vis-à-vis, improvisa-se imediatamente uma Era categórico, como podemos notar
contradança. E como fugir a esta nova espécie de nesse trecho, escrito em 24/08/1851:
leva forçada? Pede-se com tanta graça, com palavras
tão doces, que, a menos de faltar a todas as regras
da civilidade fluminense, não há alternativa, é forçoso Nem mais, nem menos! Aqui executa-se a
aceitar o convite e dançar muito risonho. polca, acolá a contradança, mais adiante a
José Maria da Silva Paranhos valsa, e por toda a parte a graciosa e delicada
schottisch, que muitos alteram a seu bel-
José Maria da Silva Paranhos não prazer, sem se lembrarem que outrora a
deixou passar despercebido esse movimento dança era uma arte, senão quase uma ciência.
de valorização da dança no Rio de Janeiro de
meados do século XIX. Para ele, tratava-se de Para Paranhos, não havia exceções,
um desdobramento da busca de sintonização tratava-se de uma vaga que a todos envolvia,
com o continente europeu e da influência dos inclusive “aqueles sobre quem repousam os
estrangeiros que chegavam ao país. Era um futuros destinos do país”, que “entregam-
sinal de que a cidade passava por profundas se a exercícios coreográficos, para não dizer
mudanças e “perdia a inocência”: “O Rio de ginásticos” (PARANHOS, 24/08/1851).
Janeiro tem mudado tanto, que custa a conhecê- De forma ocasional, Paranhos, ao
lo” (PARANHOS, 13/01/1851). Seu olhar não mobilizar a ideia de ginástica, uma prática que
era somente uma constatação, mas também ainda era embrionária na sociedade fluminense,
uma celebração. Para ele, a sociedade da corte deixa transparecer que encarava a dança como
deveria aprender a se comportar como os povos um exercício corporal.
“mais desenvolvidos”, adotando parâmetros de Devemos perceber que esse elogio à
vida “mais civilizados”. dança era simultaneamente motivo de júbilo e
Paranhos percebeu que se diversifica- preocupação. Essa nova performance pública era
vam os divertimentos, tornando-se mais ati- fundamental para a sociedade, mas deveria ser
va a vida pública. Um dos indícios desse novo experenciada de forma adequada, de maneira
cenário seria a multiplicação das “sociedades a efetivamente significar algo produtivo para
de baile, de dança, musicais e dramáticas” a consolidação da nação, entendida, como já
(PARANHOS, 24/02/1851). Mesmo os proble- dissemos, a partir de parâmetros civilizados, isso
mas da cidade, o rigoroso clima e a epidemia é, inspirados em países que tinham aderido mais
de febre amarela não conseguiam aplainar o explícitamente ao discurso e ideário modernos.
ímpeto dos que compareciam aos eventos pro- Para nosso cronista, os eventos dançantes
movidos por essas agremiações. O autor escre- se constituíam mesmo no principal assunto da
ve em 24/02/1851: “não há calor nem febre cidade. A chegada de um novo estilo de dança
que tenham o poder de intimidar os seus cava- era comemorada como uma grande novidade.
lheiros e as suas belas”. A schottisch, por exemplo, é enfaticamente
O cronista não usava meias palavras para saudada por ser mais adequada ao caráter dos
definir o que ocorria, a seu ver, na sociedade brasileiros. Em mais de uma ocasião, aliás,
fluminense. Na crônica de 11/05/1851, escreveu: Paranhos chegou a considerar um baile como
o mais importante acontecimento da semana.
Continua o furor bailante com tal A cada atividade promovida, centenas de
intensidade, que se pode temer que daí pessoas compareciam. O que tanto entusiasmava
venha a nascer alguma febre simples ou os amantes dos bailes? A dança em si, certamente,
mista, conforme for só devida a alguma das que gerava uma proximidade física ainda inusitada
três espécies – valsa, polca e contradança –, naquele momento. A possibilidade de ouvir boa
ou às suas possíveis combinações. música também. Todavia, eram bem mais amplos

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. 759


os estímulos que envolviam essas ocasiões que pela maneira de se portar frente ao outro,
movimentavam a sociedade fluminense. notadamente porque havia uma nova
Algumas motivações pareciam bem personagem em cena: as mulheres, que não
frugais, como sugere Paranhos ao observar, na foram só partidárias, como também agentes
crônica de 24/02/1851, o “grande número de importantes das mudanças em curso. Como
gastrônomos que lá vão somente pelo cheiro colocado por Silva (2011, p. 52), a elas:
dos sorvetes e dos sequilhos”, preparados pelas
mais importantes confeitarias da cidade, como [...] deve-se uma parte importante do
a Francioni, que assim anunciava: “Incumbe-se processo de modernização, europeização
de qualquer função, e aluga todo o necessário e afrancesamento do Rio de Janeiro, que
para o serviço tanto da mêsa quanto para os iria contaminar paulatinamente as outras
bailes” (ALMANAK LAEMMERT, 1851, p. 388). urbes brasileiras.
A Castellões não deixava por menos,
publicando um anúncio ainda maior, no qual O aumento de sua presença social
informava que possuía “o mais completo e tumultuava a ordem dos desejos e dos
variado sortimento de doces finos, tanto para chá, procederes. Até mesmo por isso, muitas eram
quanto para bailes, funções, etc.” (ALMANAK as críticas que pendiam sobre os bailes, por
LAEMMERT, 1851, p. 388), um serviço que já há Paranhos, com a ironia de sempre, contestadas.
algum tempo era oferecido, como podemos ver Leiamos um trecho, da crônica de 11/05/1851:
no Laemmert de 1847 (p. 409): “O apreço que
tem tido os doces de sua casa, lhe tem grangeado Não imito o esdrúxulo filósofo dos nossos
a fama publica, e a freguesia das sociedades tempos que, em um baile, o que mais sentia
Philarmonica e Assemblea Fluminense”. era a dor que lhe causava a ideia da imensa
Nosso cronista observou, no texto de quantidade de carneiros sacrificados à
01/06/1851, de forma bem humorada, que esses casquilharia das luvas de pelica. Não
atrativos gastronômicos por vezes interferiam posso tolerar a hipocrisia com que certa
no bom andamento dos bailes. Jovens, com presumida matrona, que já está entre
“apetite e sede insaciáveis”, esqueceriam as duas idades, prega contra a licença das
danças, fazendo “uma guerra desapiedada aos folias dançantes, e revestindo-se de toda
sorvetes, aos canudos, aos pastéis, às empadas a gravidade, diz que nem em sua livraria
e aos sanduíches”. As soluções para “refrear esse permite o contato dos autores machos com
terrível bando de cossacos” seriam: chamar a os autores fêmeas. Não aconselho que os
atenção dos pais; atrair-lhes o interesse pelo “belo nossos vigários imitem o cura de Bellebat,
sexo”; em último caso, desenvolver estratégias que, para evitar que nos festins houvesse
para despistar e enganar os “agressores”. alguma indecência, tocava ele próprio o
Claramente conclamava nosso cronista violão e fazia dançar os seus paroquianos.
que se aprendesse a lidar com essa novidade, Mas também não posso deixar de perguntar
que de forma ambígua apresentava novas a certos rigoristas se quando eles pregam
possibilidades de vivência social pari passu do púlpito contra a dança e os prazeres
com novos rigores comportamentais. Esses humanos, não os espera lá no refeitório um
acontecimentos aparentemente ingênuos suculento jantar ou gorda ceia.
se relacionavam a uma exigência que se
impunha aos frequentadores dos bailes: a Havia também, é verdade, o oposto, uma
necessidade de saber se portar em público. expectativa de algumas famílias de que a frequ-
Isso passava pela forma de se vestir, pelo ência aos bailes pudesse gerar bons casamentos,
domínio das técnicas de dança, mas também postura igualmente ironizada por Paranhos:

760 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Só as moças que aspiram ao ministério Então o luxo e os prazeres, já não correspon-
doméstico e desejam contribuir para o dendo às posses daquele que os quer ostentar
aumento legal da humanidade, é que vão e gozar, longe de serem lícitos e salutares,
perdendo de todo a fé nos tais bailes. corrompem os bons costumes de uma famí-
(PARANHOS, 27/04/1851) lia ou de uma nação morigerada, excitam a
cobiça, acostumam às intrigas e às baixezas
De toda forma, em vários momentos, o e solapam pouco a pouco os alicerces da pro-
cronista defendeu uma maior liberdade feminina, bidade. (PARANHOS, 11/05/1851)
para ele um sinal de que avançavam os costumes.
Mais ainda, sugere que as atividades dançantes Trata-se de uma posição interessante. Ao
desempenhariam um importante papel: propor uma distensão dos costumes, de forma
alguma sugeria abandonar a moralidade públi-
Há mesmo quem pretenda que a educação ca. Muito pelo contrário, para não por em risco
das mulheres não se pode operar sem os uma instância tão importante para o país que
bailes; que as mulheres criam-se no salão, estava nascendo, dever-se-ia ter em conta os
como o general no campo da batalha, novos rigores que a nova dinâmica exigia. Por
como o homem de ciência no gabinete, isso sua grande preocupação com a educação
como o homem de Estado nos escritórios dos que iam aos bailes: se limites não fossem
de jornal e nas discussões da tribuna estabelecidos, perder-se-ia sua potencialidade.
.(PARANHOS, 27/09/1851) De toda forma, o cronista exaltava
os bailes, lembrando, inclusive, que tinham
Ao sugerir que os bailes eram fundamen- potencial econômico. Em 11/05/1951 escreveu:
tais na educação da mulher sintonizada com os
novos tempos, Paranhos enfrentava os que se [...] favorecendo o consumo dos objetos
apegavam ao passado. Todavia, não pensemos do tom ou de luxo, animam a indústria
que tinha uma visão idílica dos eventos dan- e o comércio, e tornam-se por este modo
çantes. Para ele, essas ocasiões não deveriam se tão protetores do progresso material do
tornar um vício. Chega a sugerir que as mulhe- país como provado fica que o são da sua
res que se submetem “ao violento exercício co- civilização política e moral.
reográfico de dois, três e seis bailes por semana”
(PARANHOS, 31/08/1851) acabam adquirindo Lembra que, na alta temporada, a cidade
uma má fisionomia. Mais ainda, preocupa-se entrava em polvorosa, como colocado na
com os elevados custos: crônica de 27/04/1851:

A sociedade fluminense está a tal ponto Felizes cabeleireiros, alfaiates, lojistas, mo-
atacada da febre dançante e fascinada com distas, e o restante da legião de industrio-
os prazeres da comédia dos bailes, que sos suíços a serviço dos fashionables e das
começo a recear pela saúde e felicidade elegantes de todas as idades.
das belas, pelos fundos dos pais e pelo
crédito comercial de muitos elegantes. Para Paranhos, havia um ganho ainda
(PARANHOS, 31/08/1851) maior – fortalecer elos entre distintos grupos.
Em 11/05/1851, afirmou:
No seu modo de entender, os excessos
poderiam até mesmo ser prejudiciais à saúde [...] reunindo debaixo do mesmo teto,
e “um veneno corrosivo da moral pública, da e obrigando o saquarema e o luzia, o
felicidade doméstica e da fortuna privada”: cabeludo e o liso, o cabano e o bentevi,

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. 761


a dançarem na mesma sala e ao som acordo entre os partidos, em benefício dos
da mesma orquestra, acostumam estas melhoramentos técnicos e materiais do
diferentes espécies de animais do Brasil a país. (FONSECA, 2007, p. 11)
viverem sem se devorarem uns aos outros.
Esse posicionamento ajuda-nos a com-
Deveria ser, assim, celebrada a costumeira preender o seu entusiasmo com os eventos do
presença de: “Todas as classes, todas as profissões Recreação Campestre. Para ele, era uma agre-
nobres, todas as ciências, todas as opiniões ou miação mais democrática, onde importantes
personalidades” (PARANHOS, 18/08/1851). personagens da sociedade nacional se permi-
Essa linha de argumentação, que tem tiam contatos mais descontraídos, em um am-
relação com sua compreensão de que é necessário biente marcado por menos constrangimentos.
gestar uma sociedade forte e organizada, uma Como escreveu em 01/06/1851: “O baile cam-
dimensão fundamental para garantir o futuro da pestre é uma dessas concepções que imortali-
nação, está presente das mais diferentes formas zam os seus autores”.
nas crônicas de Paranhos. Pode ser vista quando Enfim, Paranhos encarava os bailes
celebra as novas possibilidades de encontros como uma forma de polir os costumes, a fim de
entre homens e mulheres. Também quando gestar o que ele chama de civilização popular.
comenta, com o entusiasmo de sempre, um baile Há que se ter claro, todavia, quem desejava
promovido pelo Recreio dos Militares, no salão que integrasse essa confraternização. Não se
do Floresta. tratava de propor uma comunhão entre elites e
O cronista julga que essas ocasiões populares, mas sim entre os diferentes estratos
ajudariam a fortalecer os laços entre militares das elites, como enumera em 24/08/1851:
e civis, atitude fundamental para garantir a
defesa nacional. Além disso, considerava que Havia artistas, especieiros, comerciantes de
era uma forma de suavizar a dureza da vida pequeno e grosso trato, militares, médicos,
na caserna. Discordava, aliás, que a dança advogados, deputados, senadores e minis-
prejudicaria a preparação do combatente. Para tros: os pequenos acotovelando-se com os
ele, a marcialidade de algumas músicas até grandes, e todos confundidos nesse utilíssi-
mesmo despertaria “os instintos guerreiros” e mo e bem entendido sistema de igualdade.
os tornaria “apaixonados da sua vida ativa e
aventurosa” (PARANHOS, 10/08/1851). Uma Vejamos como, em outra ocasião, definiu
vez mais vemos nas posições de Paranhos a os presentes em um baile:
sugestão de que se tratava de uma contribuição
para a educação do corpo, nos moldes que Todas as classes aí estão representadas – as
apresentamos na introdução. artes, as letras, a indústria, a lavoura e o
Essa valorização da confraternização comércio; o funcionário civil e o militar,
entre os diferentes é, de alguma forma, similar grandes e pequenos, a inteligência e o
à sua posição a respeito do quadro político dinheiro, o talento e a felicidade, o nacional
nacional, da necessidade de conciliação e o estrangeiro. (PARANHOS, 21/09/1951)
para o bem da nação, algo que se manifesta
frequentemente em suas crônicas no Jornal Na verdade, Paranhos não desconsiderava
do Commercio: os benefícios das danças para a população em ge-
ral, encarando-as, contudo, a partir de uma fun-
Nas Cartas ao amigo ausente, nota-se que cionalidade específica. A questão era educar os
a discussão de Paranhos, quase sempre, populares para que, de forma ordeira, suportassem
gira em torno da necessidade de um seu destino. Leiamos o que escreve em 29/06/1851:

762 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Bem hajam os Prados, os teatros, os bailes, Paranhos chega a ironizar a intensa
que contribuem com as festas da nossa agenda dos parlamentares: não se podia privá-
bela e sublime religião para distrair o povo los de tamanho “fervor filarmônico-dançante-
fluminense das aflições do presente, e fazê- teatral”. Dessa forma, devia-se ter com eles
lo caminhar ledo e cego para o futuro [...]. certa tolerância, já que seria absurdo:

Os eventos dançantes abordados por Exigir que, depois de uma vigília passada
Paranhos eram mesmo espaços privilegiados de nas regiões agitadas e deslumbrantes da
encontros das elites, inclusive daqueles que, no schottisch [...], um digno representante se
âmbito da política, dirigiam os rumos do país. levante ao alvorecer, e pálido, lasso e ainda
Ele, aliás, sugeria que “a quadra parlamentar desacordado pelas emoções da véspera, se
coincide com a estação própria dos bailes nesta mergulhe numa atmosfera glacial e úmida.
boa cidade”. (PARANHOS, 27/04/1851) É verdade (PARANHOS, 28/07/1851)
que os clubes funcionavam o ano inteiro, mas o
auge de suas atividades dava-se na ocasião em Vejamos que, mesmo com os bailes
que a câmara e o senado estavam em plena atu- públicos ocupando progressivo espaço, ainda
ação, quando personagens importantes de todo seguiam existindo as atividades privadas, que
o país estavam reunidos na sede do Império. reuniam a fina flor da sociedade fluminense.
Segundo seu perspicaz olhar, os bailes com- Paranhos narra uma dessas reuniões, realizada na
plementavam (e mesmo integravam) as tarefas casa do oficial-maior da secretaria dos negócios
parlamentares, aproximando os representantes estrangeiros, em que estiveram presentes:
(entre si e com seus eleitores), amenizando as
tensões da nação, contribuindo “poderosamen- [...] o ministro desta repartição, o da
te para as combinações da pequena e da grande Guerra, todo corpo diplomático, inclusive
política”. (PARANHOS, 18/05/1851) os adidos, vários conselheiros de Estado
Como colocado na crônica de 27/04/1851, e deputados, oficiais das Secretarias de
o baile era a ocasião em que se poderia: Estado e muitos outros [...] 43 pessoas do
sexo feio e 37 do belo sexo. (PARANHOS,
conversar ao som de uma galopada, estudar 06/07/1851)
o espírito humano engolindo um canudo e
sorvendo uma pirâmide de neve, e preparar a A despeito do perfil dos convidados,
solução das grandes questões de Estado com “Contradançou-se, schottischou-se à larga”.
o auxílio do encanto das belas, a fascinação Da mesma forma, ainda que com frequência
das luzes, e as inspirações de uma orquestra. reduzida, o Imperador Pedro II progressivamente
foi tornando-se mais recluso, volta e meia
Eram momentos em que se alinhavam os acontecia algum baile promovido pela família
debates políticos. imperial, ocasião sempre celebrada e aguardada
com ansiedade.
Se a diplomacia considera os jantares Dançava-se por todos os lados, razão pela
como habilíssimos agentes internacionais, qual todos deveriam aprender não só a dançar,
os ministérios e os pretendentes dizem que mas fundamentalmente como se comportar
as soirées e os bailes são de uma grande nessas ocasiões. Tratava-se de uma exigência
força persuasiva para certos parlamentares tendo em conta as necessidades da nação,
(PARANHOS, 27/04/1851). segundo o olhar de Paranhos.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 751-766, jul./set. 2014. 763


Conclusão Devemos prospectar essas posições na
trajetória do cronista. O que sugere Fontana
O fim da temporada parlamentar e o (2012, p. 5) ajuda-nos a pensar:
aumento da temperatura funcionavam como
senhas para que houvesse um intervalo na Jose Maria da Silva Paranhos vive e cons-
intensidade dos eventos sociais. Na crônica de 12 trói sua identidade política num período
de outubro de 1851, ele escreveu: “Era tempo de de grandes mudanças e de passagem à
remitir a febre dançante, de dar algum descanso modernidade. O contexto de entrada do
à alma e ao corpo, e cuidar de distrações menos liberalismo nos círculos intelectuais e
agitadas”. Reduzia-se o frenesi: “Eclipsa-se o sol maçônicos o faz conjugar tradições “ar-
dos bailes, desaparecem as grandes ilusões do caicas” e aspirações modernas, numa
mundo político”. Para Paranhos, a cada uma dessas tentativa de moderação que o acompa-
sessões, a sociedade fluminense modificava-se: nhará por toda sua vida. Num momento
onde o tempo histórico parece acelerar-se,
A nossa sociedade já vai compreendendo [...], assim como muitos de sua geração,
que se pode amar o teatro, a música, a (apropriou-se) de elementos conservado-
poesia, e até ser elegante e agradável ao belo res e liberais, dentro de um processo de
sexo sem que o homem se torne incapaz de circulação de ideias próprio do período.
trabalhos sérios, de exercer as mais elevadas Vivenciou os conflitos e contradições típi-
como as mais difíceis funções civis. Os cas da modernidade, sentindo as rupturas
homens de porte homérico e semblante e permanências do período, sendo liberal
socrático, para quem a dança é uma e conservador, progressista e tradicional.
puerilidade, a música uma distração nociva
e a poesia um desarranjo mental, já estão Os bailes eram indicadores de uma
menos suscetíveis, menos inexoráveis, e até sociedade mais livre, mas cuja liberdade deveria
não é raro ver uma dessas figuras equestres ser vivida com limites. Tratava-se, de fato, de
de vis-à-vis com algum dandy dançando um processo de educação do corpo que pode ser
uma contradança, ou toda embasbacada a entendido a partir das três faces da experiência
aplaudir os triunfos de uma bela e maviosa corporal propostas por Vigarello (2003):
cantora. Já era tempo de perdermos esses • a educação do físico (princípio da eficácia) – a
preconceitos. (PARANHOS, 12/10/1851) necessidade de conhecer certas técnicas civiliza-
das, que passaram a ser, inclusive, ensinadas na
É interessante notar o quanto o olhar escola, não devendo se confundir com as danças
de Paranhos a respeito dos bailes tem relação voluptuosas típicas dos populares;
com sua percepção e mesmo entusiasmo com • a educação do espírito (princípio da proprie-
o momento pelo qual passava a sociedade dade) – havia um conjunto de comportamentos
brasileira; mais ainda, com seus projetos considerados socialmente adequados que deve-
para a nação. As atividades dançantes eram riam ser aprendidos, marcando a diferença com
tanto celebradas como expressão dos novos a falta de moralidade que supostamente reinava
tempos quanto compreendidas como agências nos espaços populares;
educacionais, polindo os costumes, ensinando • a educação para a inserção em coletivos
a conviver, em um mesmo espaço, homens maiores (princípio da identidade) – tudo isso
e mulheres, militares e civis, aristocratas deveria ter em conta gestar uma sociedade civil,
e envolvidos com os novos negócios, especificamente uma elite, tão necessária para a
parlamentares de distintos partidos. consolidação da nação.

764 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
A dança não era, portanto, somente um dinâmica social. Uma exigência social, deven-
divertimento. Era um sinal dos novos tempos, do, portanto, ser motivo de educação. Uma edu-
produto e, esperava-se, produtora de uma nova cação do corpo, dos sentidos, das sensibilidades.

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Recebido em: 24.04.2013

Aprovado em: 11.09.2013

Victor Andrade de Melo é professor dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História Comparada da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

766 Victor Andrade de MELO. Educação do corpo – bailes no Rio de Janeiro do século XIX: o olhar de Paranhos...
Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet:
fundamentos de uma pedagogia solidária internacional

Antonio Takao KanamaruI

Resumo

A moderna educação pública, a partir de fins do século XX, passou


a sofrer novas influências de políticas hegemônicas de vieses
tecnocrático, mercadológico e financeiro. Diante desse quadro, um
de seus principais fundamentos, a autonomia pedagógica, encontra-
se sob pressão e condicionamento no mundo. Assim, defendemos
que o estudo da autonomia na educação moderna pode auxiliar
a esclarecer criticamente as condições e seu desenvolvimento na
história. Nessa perspectiva, uma das reconhecidas obras pedagógicas
reside na chamada Pedagogia do trabalho ou escola moderna, de
Célestin Freinet (1896-1966), a qual procuramos analisar a partir
de revisão da literatura. Neste trabalho, portanto, enfocamos seus
meios e fundamentos teórico-metodológicos como a livre expressão,
o livre trabalho, a livre cooperação, as técnicas de trabalho, a livre
pesquisa, a comunicação interescolar. Na análise, observamos a
presença teórica de um quadro marxiano heterodoxo implícito na
metodologia freinetiana, particularmente relacionada à teoria das
relações materiais de produção, à teoria da alienação e à doutrina
internacionalista. Tais fundamentos, somados à originalidade de
Freinet, permitiram a criação de meios técnicos e a cooperação
internacional, que subjazem à autonomia radical de sua pedagogia.
Como resultados, observamos e descrevemos fundamentos pouco
analisados em Freinet, devido ao caráter embrionário em seu tempo
e espaço: o cooperativismo internacional e a autogestão da escola
moderna, os quais revelam a relevância e atualidade do autor para o
resgate e o desenvolvimento da autonomia pedagógica, bem como
a ampliação da dimensão da obra freinetiana como uma pedagogia
solidária internacional, frente ao difícil contexto histórico presente.

Palavras-chave

Autonomia pedagógica — Cooperativismo — Autogestão escolar —


Pedagogia solidária.
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brasil.
Contato: kanamaru@usp.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007 767
Autonomy, cooperativeness and self-management in
Freinet: foundations of an international solidarity pedagogy

Antonio Takao KanamaruI

Abstract

Since the late twentieth century, modern public education has come
under new influences of hegemonic policies with technocratic,
marketing and financial biases. Given this scenario, one of its
main foundations, pedagogical autonomy, is under pressure and
conditioning in the world. Thus, I argue that the study of autonomy
in modern education may help critically clarify the conditions
and its development in history. From this perspective, one of the
recognized pedagogical works is the so-called pedagogy of work or
modern school, by Célestin Freinet (1896-1966), which I sought to
analyze through literature review. Therefore, in this study I focus
on its means and theoretical and methodological foundations such
as free speech, free work, free cooperation, work techniques, free
inquiry, interschool communication. In the analysis, I have observed
the presence of a heterodox Marxist theoretical framework implicit
in Freinet’s methodology, particularly related to the theory of the
material relations of production, the theory of alienation and
the internationalist doctrine. Such foundations, coupled with the
originality of Freinet, enabled the creation of technical means and
international cooperation, which underlie the radical autonomy of
his pedagogy. As for findings, I observe and describe foundations
which have been little analyzed in Freinet, given their embryonic
nature in his time and space: the international cooperativeness and
self-management of the modern school. Such foundations reveal not
only the relevance and timeliness of the author to the rescue and
development of pedagogical autonomy but also the expansion of the
size of Freinet’s work as an international solidarity pedagogy in the
difficult current historical context.

Keywords

Pedagogical autonomy — Cooperativeness — School self-management


— Solidarity pedagogy.
I- Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, Brazil.
Contact: kanamaru@usp.br

768 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014005000007 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014.
Introdução técnicas têm por objetivo conduzir educandos
didaticamente ao trabalho coletivo e criador.
Na extensa obra do francês Célestin Mas, a nosso ver, a obra freinetiana
Freinet1, observamos, a partir da revisão da não se limitou à celula mater didática da rela-
literatura, um aspecto pouco abordado em ção educador-educando. Compreendemos que
sua teoria e práxis pedagógicas baseadas em Freinet interveio também nas próprias relações
métodos ativos: a solidariedade radical em seus entre educadores, ao estender coerentemente a
meios e fins. Solidária devido ao compromisso cooperação2 e a autogestão escolar a essa rela-
ético e socialmente transformador assumido ção de trabalho, conforme o sétimo princípio
em sua pedagogia popular. Radical em sentido da Carta da Escola Moderna, que descreve que:
análogo ao levantado por Paulo Freire, no
clássico Pedagogia do oprimido (2005, p. Educadores do ICEM são os únicos res-
26), quanto à etimologia do próprio termo, ponsáveis pela direção e esforços de co-
relacionado à ideia de raiz, segundo o qual: operação. […] Estamos interessados pro-
fundamente na vida da nossa cooperativa,
[…] a radicalização (grifo nosso) é crítica, porque é a nossa casa, nosso quintal que
por isto libertadora. Libertadora porque, devemos alimentar nossos fundos, o nos-
implicando o enraizamento (grifo nosso) so esforço, nossos pensamentos e estamos
que os homens fazem na opção que prontos para se defender contra qualquer
fizeram, os engaja cada vez mais no pessoa que iria prejudicar os nossos inte-
esforço de transformação da realidade resses. (ICEM, 1968).
concreta, objetiva.
Junto com o décimo princípio, Freinet
Trata-se, portanto, da solidariedade e colaboradores consideraram que o objetivo
radical, da responsabilidade enraizada em sua do movimento cooperativo da Escola Moderna
missão, objetivos e métodos. corresponde ao ato de “[…] desenvolver o
Essa dimensão pouco estudada na obra trabalho em fraternidades e para o destino de
de Freinet pode ser observada em aspectos auxiliar profundamente e de forma eficaz todas
já analisados e amplamente reconhecidos as obras de paz”. (ICEM, 1968).
na literatura, como aqueles relacionados às Tal aspecto é comumente descrito na
centralidades dos conceitos de livre trabalho, literatura, mas a análise e a discussão crítica a
bem como de livre expressão, que, junto respeito do caráter dessa relação a qual definimos
com a livre cooperação, a livre pesquisa e as como solidária é incipiente. Isso porque suas
respectivas técnicas (técnicas de vida), que a reflexões nesse campo tornaram-se mais efetivas
notabilizaram, como a impressão gráfica, o com as crises estruturais da segunda metade do
correio interescolar, o diário coletivo (livro de século XX (SINGER, 2002), nas quais o debate
vida), o jornal escolar, fichas e fichário escolares, entre concorrência e solidariedade começaram a
os audiovisuais (documentário cinematográfico, se aprofundar e a se estender para áreas além
rádio-gravador) e a revisão do layout do da economia, alcançando também a pedagogia
interior arquitetônico e mobiliário escolares, (SINGER, 2009; GADOTTI, 2009).
constituem, em seu conjunto, os meios e fins Com o desenvolvimento da livre
da pedagogia freinetiana. Fundamentalmente, cooperação entre educandos e, portanto,
seus pressupostos conceituais e condições
2- Para Marx (1988, p. 246), “a forma de trabalho em que muitos
trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo
1-Dedicado ao freinetiano Profofessor Titular José de Arruda Penteado processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas
(Departamentp de Educação – IA/UNESP), in memoriam. conexos, chama-se cooperação”.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 769


também entre educadores sob autogestão das contradições de qualquer sistema
escolar, entendemos a coerência da solidariedade […]. (FREINET, 1979, p. 120)
existente na pedagogia freinetiana tanto em
suas relações didáticas quanto em seu projeto Embora fiel ao pensamento marxista,
político-pedagógico em sociedade. antecedentes históricos de Freinet revelam
Nesse ponto, aventamos como hipótese também o seu desligamento do antigo PCF –
o cooperativismo e a autogestão como a Partido Comunista Francês, que atribuímos
contribuição original na obra de Freinet, à discordância ao dogmatismo partidário,
caracterizando-a em um aspecto renovado: posteriormente verificável em um dos princípios
a de uma pedagogia solidária de caráter na Carta da Escola Moderna. Junto com a defesa
internacional. Esse caráter é frisado no décimo do cooperativismo e autogestão, a carta revela a
princípio presente na Carta da Escola Moderna, heterodoxia no pensamento e ação do pedagogo.
na qual se estabelece que a pedagogia Freinet é Esse caráter heterodoxo acerca do
“inerentemente internacional”. cooperativismo e da autogestão na análise
Procuramos evidenciar também outro freinetiana, não obstante o seu caráter popular,
aspecto pouco abordado na obra de Freinet, em tese, repousa na consciência de Freinet quanto
mas que a fundamenta implicitamente em à discussão crítica entre Marx e Proudhon,
termos teórico-metodológicos e praxiológicos: considerado “pai do cooperativismo”4. Nessa
a presença de uma interpretação marxista discussão, o autor preservou e desenvolveu
original, de características heterodoxas, as noções de cooperativismo e autogestão.
particularmente sobre a teoria da alienação do Ao mesmo tempo, reuniu contribuições da
sujeito produtor, a teoria das relações materiais autonomia e livre expressão provenientes
de produção, que fundamenta a noção de ideais revolucionários iluministas,
capital das condições objetivas das relações particularmente a partir de Rousseau5. Nesse
sociais históricas, e, finalmente, a doutrina processo articulado de análise e reflexão
internacionalista de Marx. a respeito dos fundamentos da pedagogia
O marxismo na obra de Freinet foi freinetiana, observamos o caráter crítico e
analisado por Élise Freinet (1979), que manteve heterodoxo em sua teoria e metodologia.
vivo o movimento da Escola Moderna após o Nesse panorama geral acerca da obra
falecimento de Freinet. Na obra O Itinerário de freinetiana, procuramos demonstrar a sua
Célestin Freinet, Élise afirma: relevância e atualidade no presente contexto
histórico, a partir do qual nos propomos a
[…] Fora de seu domínio pedagógico, estudar e analisar esses referidos aspectos.
Freinet já tem uma ampla cultura humana No presente contexto da educação
e uma filosofia de orientação decorrente do pública, desde fins do século XX, procuramos
materialismo dialético. […] O pensamento justificar o tema também a partir da influência
marxista esclareceu para ele a revolta de condicionante de políticas e critérios
1917, vivida nas trincheiras e ligada à tecnocráticos, mercadológicos e financeiros6
Revolução da URSS. […] Era na prática um sobre o grau de autonomia da pedagogia
engajamento que justificava sua adesão moderna. Observamos, em contrapartida,
ao Partido Comunista e sua militância na a relevância crítica e a atualidade da obra
Internacional do Ensino3. E era, para seu
4- Para o acratismo e o cooperativismo mutualista de Proudhon,
pensamento, entrar sem cessar no centro referenciamo-nos em seu Sistemas das contradições econômicas ou
filosofia da miséria. São Paulo: Escala, 2007.
3- Freinet excursionou para a Rússia e teve contatos com a política 5- Vide Carlota Boto (1996) e Freire (1996).
da URSS. Sobre essa política e seu caráter modernizador, observamos a 6 - Análise crítica presente em Warmling; Astier (1997) sobre pseudo-
documentação presente em Lenine (1981). reformas de ensino na França, sem mudanças estruturais.

770 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
pedagógica de Freinet, devido à contribuição seus pulmões foram seriamente lesionados
original relacionada à plena autonomia, ao por gases tóxicos em Verdun, com sequelas
livre cooperativismo e à autogestão escolar, irreversíveis à respiração. Freinet buscou terapia
desenvolvidos estruturalmente em seu projeto médica ao longo de quatro anos (SAMPAIO, 1989;
político-pedagógico da chamada escola moderna. ELIAS, 1997; LEGRAND, 2011), mas a ineficácia
Nessa perspectiva geral, observamos, dos tratamentos o fez assumir essa realidade e
por decorrência, a sua dimensão maior como conformar-se com a deficiência.
uma pedagogia solidária internacional, Embora fatigado e extenuado fisicamen-
dirigida ao desenvolvimento do educando pelo te, era lhe exigido ser objetivo e comunicar ver-
trabalho, principalmente a partir de condições balmente o essencial (PENTEADO, 1979), algo,
técnicas objetivas, mas também de condições a seu ver, necessário à pedagogia moderna ba-
organizativas de administração e gestão seada na experiência e em contraposição direta
democráticas diretas ou reais, para uma escola à escolástica, então baseada no verbalismo in-
verdadeiramente risonha e franca, expressão telectual e abstrato, em geral estranho às neces-
comumente atribuída ao autor. sidades dos educandos e às famílias de aldeões.
Em 1920, iniciou sua atuação como
Freinet: a autonomia frente às educador em Bar-sur-Loup e nessa nova etapa
adversidades começou a pesquisa e a discussão de uma nova
pedagogia assumidamente popular, baseada no
Conforme a literatura existente, a trabalho, influenciada pelas experiências-limite
construção da pedagogia do trabalho ou da que viveu. Nessa fase, conheceu primeiro a obra
escola moderna, do francês Célestin Freinet de Rousseau a respeito do reconhecimento da
(Gars,1896, Vence,1966), não foi elaborada a natureza peculiar infantil. Podemos dizer que
priori e academicamente. Pelo contrário, teve vem daí sua ponderação acerca da defesa da
influência de sua experiência de vida desde os autonomia e da livre expressão presentes como
primórdios, quando foi pastor de ovelhas, nos ideais na Revolução Francesa e na Declaração
Alpes Marítimos, já nos seus primeiros anos Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de vida (FREINET, 1979). Essa profissão lhe embora considerasse uma referência em geral
exigia tomar decisões importantes relacionadas distorcida das elites7.
à segurança do rebanho, principal fonte de Por outro lado, observamos seu viés
sustento de sua família humilde. multifacetado que, ao lado do fundamento
Pensamos que essa experiência profissional baseado na razão, tem a influência de Teilhard
influenciou a concepção e o desenvolvimento de de Chardin quanto à aproximação científica
sua obra pedagógica, levando-o a valorizar a entre razão e espiritualidade humanista, em
autonomia e a livre descoberta, que ulteriormente termos antropológicos, segundo o qual “nada é
se tornariam base para a consideração da tão delicado e fugidio, por natureza, quanto um
importância da livre expressão e da livre pesquisa. começo” (apud FREINET, 1979). Nesse sentido,
Esses seriam valores importantes também para eis a valorização por Freinet do papel da livre
educandos superarem o difícil isolamento rural e pesquisa e da livre expressão como meios
provinciano a que estavam submetidos. essenciais para a “ascensão da vida”.
A experiência histórica adversa na Essa pesquisa adquiriu articulações mais
biografia de Freinet também deve ser considerada, importantes devido ao novo e moderno órgão
visto que aos dezoito anos iniciou sua experiência
traumática como soldado nas batalhas da I Guerra 7 - “[…] E é tradição referir-se a Rabelais, Montaigne e J.-J.Rousseau
[…] (mas) tais idéias que os intelectuais julgam ter descoberto não
Mundial (1914), mesmo ano em que iria iniciar o correm desde sempre entre o povo […] não foi o erro escolástico que
magistério em Nice. Após um ano de combates, […] deformou a essência, para monopolizá-la […]?” (FREINET, 1979, p.3)

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 771


Nouvelle Éducation, bem como o Congresso Assim, em 1934, migrou para Vence
Internacional de Educação Nova, em 1932, (LEGRAND, 2011), cidade na qual fundou a
na cidade de Nice. Freinet teve contato com própria escola cooperativa experimental e
os conceitos e materiais fundamentais de autogerenciada, para atendimento de filhos
Maria Montessori, com a Casa dei Bambini, de famílias operárias e do serviço assistencial
os centros de interesse de Decroly, as reservas de Paris, consolidando, assim, sua obra. Mas,
infantis e o interesse em Claparède, o texto em 1939, eclodiram os conflitos da II Guerra
livre de Bovet, a escola ativa de A. Ferrière Mundial. O estado de saúde do pedagogo se
(1946). Posteriormente, Freinet também tomou deteriorou (SAMPAIO, 1989), sendo preso
conhecimento do escotismo de Baden-Powell, e encaminhado ao campo de concentração
baseado no ensino ao ar livre, bem como da de Var. Detento, mas, resistente à condição,
escola-canteiro ou escola-laboratório de John alfabetizou outros presos. Foi retirado por Elise
Dewey, revisando-as crítica e dialeticamente, Freinet e encaminhado ao hospital do campo de
no campo pedagógico-moderno. concentração, sendo libertado apenas em 1941
Paralelamente, Freinet, nessa fase, (SAMPAIO, 1989).
demonstrou cidadania ativa em sua aldeia, Como libertário engajado, tomou a
na qual liderou um movimento e fundou decisão de atuar como guerrilheiro maquisard,
uma primeira cooperativa, em Bar-su-Loup, nas Forces Françaises de l’Intérieur (FFI), na
em defesa da instalação da energia elétrica Resistência Francesa9. Como tal, tornou-se líder
(LEGRAND, 2011). Iniciou também sua na comuna e zona do Briançonnais.
militância sindical e partidária comunista Três anos após o fim guerra, já em 1948,
(LEGRAND, 2011), inclusive excursionando à a Cooperativa de Educação Laica foi rebatizada
antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas como ICEM – Institut Coopératif de l’École
Soviéticas). Foi nesse período que tomou Moderne (LEGRAND, 2011) - agora em Cannes,
contato com os debates liderados por Lênin no baseada no cooperativismo para a fabricação
campo da educação operária8. de material didático e pedagógico acessível
Freinet retornou mais bem preparado e (PENTEADO, 1979). O número de participantes
já em 1928, em Saint-Paul de Vence, fundou entre pais e docentes chegou a vinte mil
a Cooperativa de Ensino Laico, com os (PENTEADO, 1979; SAMPAIO, 1989).
principais meios de produção de sua pedagogia, Mas, em 1950, Freinet foi expulso do PCF,
como o uso da imprensa de tipos móveis e por discordâncias burocráticas e ideológicas
a correspondência interescolar de alcance (LEGRAND, 2011). Em 1956, participou da
internacional. Mas, a oposição conservadora campanha nacional da crítica à superlotação de
local mais interessada na rentabilidade turística classes e à reivindicação da defesa de turmas
forjou uma falsa acusação com intenções discentes de no máximo vinte e cinco alunos
políticas (LEGRAND, 2011), que, mesmo sem para uma melhor interação didática e qualidade
provas, conduziu a câmara arbitrariamente a do ensino público.
exonerá-lo do sistema municipal. Em 1966, Freinet faleceu em Vence.
Como resistência a esse jogo político A pedagoga e artista Elise, sua atuante
dominante, Freinet fundou o Movimento de colaboradora e companheira, manteve a
Educação Cooperativa nos anos 1930, que continuidade de sua obra, da qual destacou a
obteve sucesso de publicações de material livre expressão como essência da pedagogia da
didático, permitindo reunir recursos e conquistar Escola Moderna.
autonomia financeira.
8 - Para consulta mais consequente aos planos educacionais da antiga 9- Sobre Freinet maquisard consideramos a introdução de Elise
URSS, vide Lenine (1981). Freinet (1969).

772 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
Retrospectivamente na análise, notamos e a livre organização, categorias centrais no
o engajamento e o enfrentamento das adversida- pensamento e análise freinetianos.
des por Freinet, traço importante para a compre- Antes de alcançar esse desenvolvimento
ensão de sua personalidade e história. Essa expe- teórico-metodológico, em seus primeiros anos
riência viva revela a construção e a valorização Freinet analisou criticamente os fundamentos e
de sua autonomia e independência, resultante da a prática da pedagogia escolástica, revendo sua
necessidade de decidir e enfrentar permanente- própria experiência na escola dominante à época,
mente realidades adversas por meio do traba- a qual considerava traumática e domesticadora
lho. A nosso ver, esse aspecto influenciará a sua em função da separação, de caráter intelectualista
obra, pensamento e ação. Portanto, a autonomia e dogmática, entre conteúdo e forma didáticas
em sua vida não constitui uma ideia surgida a de um lado e, de outro, das necessidades reais
priori, mas um valor resultante de uma série de de educandos. Assim, tornou-se crítico acerbo
experiências de vida e de dificuldades superadas e pesquisador pedagógico para a construção
por meio do trabalho, pesquisa e engajamento de uma pedagogia efetivamente científica.
popular. Tais aspectos tornam-se centrais na Observava que a pedagogia escolástica no
construção da pedagogia Freinet, cujo desenvol- aspecto geral apenas sujeitava educandos à
vimento lógico e coerente conduziu sua obra ao passividade, à repetição e à subordinação, em
estabelecimento do cooperativismo e autogestão frontal contradição quanto à autonomia do
escolar, como condição para a plena autonomia educando, fundamental para o rigor da vida no
da escola moderna. campo e para a vida. Em Para uma escola do
povo, Freinet (1998, p. 19) considerou que:
A autonomia radical, o livre
trabalho e a livre organização Esta escola já não prepara para a vida;
para a liberdade pedagógica não está voltada nem para o futuro, nem
moderna mesmo para o presente; obstina-se num
passado que não volta […]. […] A Escola
Na análise desse histórico de Freinet, que não prepara para a vida, já não serve
bem como de suas influências pedagógicas, a vida; e é essa a sua definitiva e radical
observamos alguns aspectos que se constituirão condenação […].
as colunas centrais de seu pensamento e ação: a
autonomia como razão última e o trabalho como Para a fundamentação desse novo
atitude vital diante de adversidades; a defesa da trabalho pedagógico, Freinet defendeu o
livre expressão, como consequência necessária conceito psicológico de trabalho-jogo cujo
da autonomia, e a livre pesquisa, como fundamento está no objetivo concreto do
consequência do trabalho como meio gerador de labor, da construção do conhecimento sensível,
conhecimento novo e, finalmente, a cooperação do trabalho como meio lúdico em si mesmo,
e autogestão como resultado coerente e lógico baseado na necessidade natural na psicologia
dessa experiência teórico-metodológica. do educando. Tal conceito opunha-se ao
Consideramos na análise freinetiana a dominante jogo-trabalho, o ersatz, que simula a
autonomia e a livre expressão como elementos atividade laboral sem necessariamente realizá-
indissociáveis, razão pela qual enunciamo- la ou atingir um objetivo concreto.
las resumidamente como a autonomia, assim Em Ensaio de psicologia sensível II,
como o livre trabalho e livre pesquisa apenas o autor assim se refere ao conceito de ersatz
como o trabalho e, finalmente, a cooperação - a lógica substitutiva ou simulada de vida,
e autogestão como organização. Desse modo, contrária ao trabalho real - relacionada à escola
resumimos a autonomia radical, o livre trabalho tradicional dominante:

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 773


O que é mais grave ainda é que essas dos Alpes Marítimos. Procurava, nessa técnica,
soluções ersatz não estão na ordem natural também a aproximação mútua entre escola
das coisas; elas não passam de uma atitude e comunidade por meio de rudimentos da
excepcional e irregular em face de uma pesquisa de campo, o estudo do meio, coerente
impotência também acidental e irregular. à noção do educando como sujeito ativo nesse
(FREINET, 1976, p.11) processo didático. Freinet (1969) considerou
essa nova e moderna noção de espaço escolar
Mas Freinet dialeticamente não descar- aberto à comunidade como uma reserva
tava a função do ersatz (substitutivo) como um infantil em oposição à edificação fechada e sem
todo. Compreendia que o trabalho enquanto comunicação com o mundo exterior.
jogo em si, necessário ao educando, poderia, A experiência da aula-passeio,
em determinadas circunstâncias impeditivas do semelhante à de uma pequena expedição, era
real do trabalho-jogo, ser benéfico se em segui- uma das principais atividades discentes, cujas
da permitisse a realização do trabalho-jogo e indagações, opiniões e impressões do educando
respectiva sublimação. eram expressas e discutidas em livres textos e
Diante desse quadro geral, Freinet registradas em um diário escolar (livro de vida),
estabeleceu uma de suas leis psicopedagógicas que constituía uma das principais ferramentas
(vigésima-quarta), segundo a qual o trabalho de livre expressão e reflexão autônoma da
constitui corretor de regras ou lógicas de vida criança. A produção de livre escrita e de pesquisa
ersatz. Sob a teoria do tateamento experimental, discente e docente acabavam por constituir
como assim denominou, Freinet desenvolveu complementarmente o próprio material didático.
técnicas didáticas para trabalho livre e Por essa razão e para a coerência ao princípio
cooperado, com fins libertadores principalmente pedagógico moderno, Freinet defendeu a
quanto à expressão, sem, contudo, confinar abolição de manuais escolares (FREINET, 1979),
educandos em salas de aula. ferramenta central da separação escolástica entre
Esse problema em particular Freinet vida e realidade.
(1969) descreveu em a Pedagogia do bom Com a construção pedagógica da
senso ou Les dits de Mathieu, classificando-o autonomia por meio do livre trabalho, da livre
criticamente como parte de uma “pedagogia expressão, da livre pesquisa, o espaço escolar
de casaca”. Para ele, tratava-se de uma decorrente do modelo escolástico necessitava
das primeiras contradições da escolástica. ser abolido e reorganizado a partir da lógica
Assemelhou esse confinamento a um campo e dinâmica do trabalho livre, coletivo, criador,
de concentração e de condicionamento quase sob livre cooperação.
animal, motivo pelo qual procurou retirar Para defender o caráter científico dessa
os educandos desses locais, levando-os para pedagogia crítica, Freinet a explanou como uma
fora dos muros escolares, em livre direção aos teoria objetivamente formulada e baseada em um
limites da aldeia e do campo. empirismo experimental a partir do trabalho de
Analogamente à antiga peripatética, descoberta ou tateio experimental do educando,
mas livre do caráter tecnicista dos antigos cujos fundamentos conceituais se assentam
liceus, o educador elaborou o procedimento diretamente na construção da autonomia por
didático da aula-passeio, para anular o meio do trabalho (FREINET, 1979). Esse processo
isolamento de educandos em salas de aula e, constitui, para Freinet (1977), um método natural
principalmente, estimular a observação sensível consoante às necessidades, intuições, interesses,
e a descoberta da realidade e da natureza, bem impulsos e motivações do educando.
como das atividades produtivas (SAMPAIO, Elise Freinet (1979), na obra O Itinerário
1989) existentes na aldeia em torno da escola e de Célestin Freinet, considerou principalmente

774 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
a livre expressão como elemento distintivo e introduz técnicas de trabalho (técnicas de
crítico em seu método natural, em contraposição vida), organizadas quase tacitamente como um
a outros métodos e teorias psicopedagógicas sistema para apropriação e uso coletivo entre
orgânicas ao escolasticismo. educandos e educadores e pais, a partir da
Nesta etapa de análise, podemos prensa gráfica de tipos móveis para a impressão
considerar alguns aspectos fundamentais de livres textos e livres desenhos12, trabalho
presentes na formulação teórico-crítica e que permitiu também a elaboração de suportes
praxiológica de Freinet. Reiteramos a influência comunicativos (jornal, cartazes, folhetos etc.), a
da experiência concreta do trabalho presente partir da técnica complementar do silk screen.
na biografia de Freinet, cujo resultado foi a Freinet (1969), em Por uma escola do
valorização da autonomia, mas também o povo, também promoveu e registrou mudanças
compromisso com a razão sensível e humana, estruturais da classe escolar: aboliu estrados e
presente em Rousseau, sobretudo crítica quanto plantas mecanicistas do interior arquitetônico
às origens da desigualdade. Nesse aspecto, da tradição escolástica, cujo espaço servia
Freinet estava consciente de sua origem funcionalmente à centralização da autoridade
trabalhadora, camponesa. Sua sensibilidade docente e não à noção da criança como sujeito
se voltava à consciência da desigualdade e às ativo do processo de ensino-aprendizagem. Além
condições de vida e produção dessa população. disso, criou o conceito de cantos pedagógicos,
Nesse contexto, observamos uma que tornou a sala de aula semelhante a um
influência marxista que se manifesta ateliê de trabalho e criação multidisciplinar.
implicitamente em três aspectos: 1) na presença Para auxílio à metodologia da livre
da teoria da alienação do sujeito, na forma de pesquisa, Freinet (1969) orientou didaticamente
crítica e prevenção pedagógica; 2) na teoria as crianças a uma espécie de pré-iniciação
das relações materiais de produção, quanto científica, a partir de seus interesses e
às condições objetivas geradas pelas técnicas necessidades, com técnicas de documentação
de vida; e 3) na doutrina internacionalista sistemática por fichas e consulta em fichários.
marxista, presente nos correios interescolares. Coerentemente, estabeleceu um processo de livre
No primeiro aspecto, observamos a autoavaliação coletiva baseada em indicadores
crítica marxista à alienação10 nos métodos de produção para livre uso, inspirada em etapas
e nas consequências negativas dos dogmas gerais de desenvolvimento.
pedagógicos do escolasticismo, no qual o O terceiro aspecto marxista em
objetivo pedagógico da autonomia da criança Freinet refere-se ao caráter assumidamente
não era visado, mas sim a sua passividade. internacionalista de seu sistema. Reunindo a
Essencialmente, para Freinet, o escolasticismo condição objetiva da técnica e a sua respectiva
era baseado na separação da escola da realidade apropriação coletiva, o autor, em referência
de vida da criança e da sua família e em à crítica ao isolamento rural e provinciano,
repetições e memorizações. promoveu o uso e desenvolvimento de correios
A segunda evidência marxista em interescolares. Com isso, Freinet se aproximava
Freinet reside na consciência quanto às da noção iluminista de cidadão do mundo, mas
condições objetivas da relação infraestrutura- sobretudo da doutrina internacional de Marx.
superestrutura ou às relações materiais Ao mesmo tempo, como cientista da educação,
de produção11. O pedagogo originalmente buscava também submeter processos e resultados
10 - Referimo-nos particularmente à análise de Marx sobre a sistematicamente à avaliação e conferência
mercadoria e a divisão de trabalho e manufatura. Confira Marx (1988, científicas de colaboradores e pesquisadores
p. 45-78 e p. 254-276)
11- Marx (1988). Acrescentamos nesta passagem, o texto A ideologia alemã. 12- Análise teórica e metodológica do papel do desenho e o estudo
Feuerbach. Oposição das concepções materialista e idealista (MARX, 1982). psicopedagógico desenvolvido por Fa a partir de Freinet (1977).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 775


internacionais, perfazendo uma comunidade de (FREINET, 1979) em contraposição às relações
caráter aberto, solidário e internacionalista, com competitivas e meritocráticas. Freinet não
vistas a uma nova sociedade. restringiu a solidariedade às relações didáticas
Nesse aspecto, Freinet no décimo entre educador-educandos, mas avançou
princípio da Carta da Escola Moderna, também às relações docentes, consolidando a
considerava que a pedagogia é inerentemente sua obra estrutural e efetivamente como um
internacional: “[…] para nós, mais do que uma projeto politico-pedagógico maior.
profissão de fé, mas uma necessidade para o
trabalho”. (BEAUNIS, 2009) Livres relações autônomas: uma
Observamos, porém, que Freinet desenvolve pedagogia solidária internacional
uma análise e interpretação heterodoxa de Marx,
razão pela qual o consideramos marxiano e Baseados na análise dos fundamentos da
menos marxista no sentido dogmático do termo. autonomia radical na pedagogia Freinet, entre os
Retrospectivamente, observamos como sintomática quais o da livre expressão e o do livre trabalho,
a sua expulsão partidária, sofrida por divergências, bem como os fundamentais e decisivos meios
e a busca pela coerência radical para a libertação concretos, como as técnicas de vida, consideramos
do homem pela própria perspectiva marxista. por extensão três contribuições científicas
Essa heterodoxia possivelmente se decorrentes, originais e decisivas do pedagogo.
relaciona à organização geral baseada no A primeira reside no esforço de coerência
cooperativismo13 e na autogestão para a lógica quanto às relações didáticas críticas entre
produção social da escola moderna ou pedagogia educador e educandos. Se essas são dirigidas à
do trabalho. construção da real autonomia, consequentemente
Dialeticamente, Freinet se aproxima nesse essa relação se estendeu mutuamente entre
aspecto da querela entre Marx e Proudhon14 educadores. Nesse ponto, observamos a principal
e reafirma a importância da autonomia em consequência humana, teórica, política e social
sua análise. Freinet, nessa perspectiva geral, da moderna pedagogia do trabalho freinetiano. A
também contribuiu para uma original análise e única relação social possível para essa pedagogia
interpretação do marxismo e se aproximou de da autonomia radical, portanto, corresponde ao
autores como Gramsci, Benjamin e outros. cooperativismo, para a produção social da livre
Nessa análise geral acerca dos relação de trabalho entre pares. Nesse mesmo
fundamentos da escola moderna, a partir da raciocínio, a horizontalidade necessária para
autonomia radical, mas principalmente do livre administração política-pedagógica da escola
trabalho e suas técnicas, da livre organização moderna, consequentemente, implicou a defesa
como condições reais para a liberdade e a construção da autogestão escolar16.
pedagógica moderna, observamos um caráter Mas Moacir Gadotti (2009, p. 32-33), em
original e peculiar na obra de Freinet: a sua Educar para a cooperação, reflete o significado
ampla dimensão solidária15, cujo autor observava essencial desse sistema:
como fenômeno inerente as “solidariedades
fundamentais de todas as formas de Vida” […] na autogestão, a formação para a ges-
13 - Marx (1988) em uma primeira análise considerou que “A cooperação
tão não é um processo educativo restrito
permanece a forma básica do modo de produção capitalista, embora sua ao setor administrativo. A formação para a
figura simples mesma apareça como forma particular ao lado de suas gestão em empreendimentos autogestioná-
formas mais desenvolvidas”.
14 - Referimo-nos à crítica da Miséria da Filosofia de Marx, resposta à
Filosofia da Miséria de Proudhon. Marx, em carta, realizou esclarecimentos 16 - Para Brasil (2005, p. 10), “[…] subentende a existência de autonomia
críticos em Sobre Proudhon. (MARX; ENGELS, 1983, p. 20-28, vide nota 4). e […] capacitação para administração coletiva […] direito à informação e
15- Referenciamo-nos nos fundamentos gerais da solidariedade, em democracia nas decisões. […] como partilha de poder e controle da vida
Singer (2002). Em pedagogia, referenciamo-nos em Gadotti (2009). do empreendimento coletivo.

776 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
rios dirige-se ao conjunto das pessoas liga- nosso) capaz de administrar a quase
das ao empreendimento, embora tenha que totalidade da vida escolar.
existir formação específica e professional
para certos quadros institucionais de acor- Nesse aspecto, Paul Singer (2009, p. 12),
do com suas responsabilidades. Trata-se de no Prólogo de a Economia solidária como praxis
uma formação para a gestão colaborativa pedagógica, de Moacir Gadotti (2009), afirma:
e o trabalho de equipe. […] Ela não se res-
tringe a aspectos informativos e formati- Convém recordar que um dos princípios
vos, mas envolve também aspectos orga- basilares do cooperativismo […] é que, a
nizativos e produtivos. Com a autogestão, qualquer momento, novos trabalhadores
todos participam das decisões independen- tenham o direito de se associar a
temente da função que executam. empreendimentos solidários e que associados
a tais empreendimentos tenham o direito
Para Elias (1997, p. 65): de deixá-los […]. A autogestão só é válida
enquanto os trabalhadores participarem dela
Freinet jamais aceitou a competição (grifo por sua própria vontade. Se a participação
nosso) individual que existia nas escolas; em empreendimentos solidários se tornasse
em seu lugar propôs a vida cooperativa, obrigatória pela eliminação de todos os
idéia reforçada no encontro com Cousinet outros modos de produção de determinado
e Profit, em Montreaux (1924). O primeiro país, os trabalhadores não seriam mais os
preconiza o trabalho em pequenos grupos donos do seu destino, que ficaria sujeito à
e Profit propõe a solidariedade pela vontade dos que teriam poder para autorizar
cooperativa escolar. Freinet vai mais longe: e impedir o funcionamento dos diversos
sua pedagogia circula entre o individual modos de produção.
e o coletivo, procurando desenvolver ao
máximo o senso cooperativo. Ao mesmo tempo, como visto
anteriormente, Freinet não operava didática e
Nesse aspecto, Freinet manteve a pedagogicamente a partir de ideias puras, mas,
coerência ética estrutural nessas relações consciente das relações materiais concretas de
discentes e docentes na Cooperativa de Ensino produção, sistematizou o uso e a apropriação
Laico e no Instituto Cooperativo de Escola coletiva das técnicas em torno da imprensa escolar
Moderna, documentados no órgão L’Educateur e de outras novas mídias daquele contexto. Essa
(FREINET, 1985). Enfatiza-se, portanto, que medida, além de oferecer as condições objetivas
essa perspectiva ética radical não se restringiu concretas para a produção dessas relações
à cooperação e à autogestão administrativas didáticas, gerava principalmente as condições
apenas entre educadores, mas, principalmente, reais de autonomia, livre trabalho e livre expressão
para os educandos. Freinet (1969, p. 149), em de educandos e também de educadores.
Para uma escola do povo, alertou que para a A pedagogia de Freinet, nesse aspecto,
constituição de uma real cooperativa escolar: proporcionou a organização da escola
popular como um centro de comunicação por
[…] não se trata de fundar, como por excelência, mas baseado no trabalho cooperado
vezes acontece, um agrupamento formal real. Nesse aspecto, opunha-se à escola nova
no papel, com o objectivo de comprar um cujas considerações gerais já eram existentes
material qualquer mediante o pagamento mais amplamente na teoria liberal da escola-
de uma cotização mensal, mas de uma canteiro ou escola-laboratório, de John Dewey
verdadeira sociedade de crianças (grifo (1971). Mas, conforme interpretação de Élise

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 777


Freinet (1979, p. 88), em O Itinerário de de Freinet, no sentido de uma construção
Célestin Freinet, a seu ver John Dewey embora permanente e dinâmica de cultura de pesquisa
representasse o mais prolífico pensador do fundamental baseada na livre expressão e na
movimento da Escola Nova, por outro lado geração do conhecimento novo a partir da
desenvolveu pedagogicamente: cooperação internacional.
Freinet ainda observou e denunciou o
[…] uma teoria aparentemente perfeita caráter de classe presente no ensino público,
no plano das idéias, (mas) na realidade é razão pela qual seu compromisso ético, social
isolada da prática, deixada ao acaso do e político voltou-se aos educandos de famílias
improviso, quando é na prática que se pode carentes e aquelas abandonadas em serviços
encontrar solução para os problemas da assistenciais, mais coerente à sua própria origem
vida cotidiana. […] Lamentamos que Dewey camponesa. Freinet (1998, p. 79) denunciou, em
não tenha feito delas nenhuma prática A educação pelo trabalho:
escolar a ser promovida: a organização
técnica da escola a que propõe depende de As práticas pedagógicas de educação
doutrinas filosóficas, que ele justificará em nova tornam ainda mais evidente as
sua concepção de uma escola-laboratório alienações da escola do povo no regime
ideal, que nunca se realizará. Será capitalista. Deterioração, obsolescência
simplesmente pela crítica autorizada que ele dos locais, falta de instrumental educativo
entrará na prática pedagógica, pela análise e de créditos, hostilidade dos poderes
de escolas novas americanas, criadas públicos a toda iniciativa dos professores.
à sua revelia. A concepção de Dewey, Estado de privação e de subalimentação
baseada no princípio da continuidade (da da infância proletária. Falta de formação
criança na escola, da escola na sociedade, dos professores primários, relegados
do homem na natureza), é mitológica, ao empirismo pedagógico, diante dos
estranha à experiência vivida, e subestima professores universitários altamente
o meio social constructor ou destruidor da especializados, possuidores de todos
personalidade da criança, segundo a classe os meios que favoreçam suas obras
social a que pertença. pedagógicas. Oposição permanente entre
uns, de cultura intelectualista, e outros
Em contraposição à escola nova, de cultura popular de sensibilidade e
a escola moderna de Freinet se baseou bom gosto. Existe uma escola de Classe.
distintamente no efetivo trabalho livre e
cooperado, a partir de técnicas concretas e Não se trata, portanto, de uma opção
da relação de ensino e aprendizagem aberta pelo sistema privado. Pelo contrário, o autor
no vilarejo em torno da escola. Mais do que o buscava radicalizar a defesa do ensino
raio geográfico montanhoso e provinciano da público, mas em termos populares. Nesse
escola, Freinet agiu radicalmente para torná- aspecto, para Dallari (1998), não se distingue
la uma internacional, por meio da técnica de o objetivo entre os sistemas estatal e privado,
correios interescolares. mas essencialmente o desenvolvimento pleno
Assim, tal cooperação internacional e integral do educando em sociedade. Freinet,
entre educandos, educadores e pedagogos nessa esfera pública, buscou radicalizar a
freinetianos, proporcionou a realização de independência da escola popular em nova
conferências, boletins, avaliações, discussões e articulação, de um regime cooperado e
intercâmbios, demonstrando concreta e plena autogestionário com a comunidade, liberto de
coerência teórica, metodológica e praxiológica injunções extrapedagógicas:

778 Antonio Takao KANAMARU. Autonomia, cooperativismo e autogestão em Freinet: fundamentos de uma pedagogia...
Servir à verdade, ao direito, à justiça, ainda pouco considerada na pedagogia de Freinet:
não se usa mais uma sociedade que a de uma pedagogia solidária internacional.
pisoteia essas noções. Temos de servir A relevância e atualidade da pedagogia
a um regime: pobres entre pobres e Freinet no presente contexto histórico adquire
educando filhos de pobres, deveríamos consistência diante da hegemonia de políticas
colocar a nossa ascendência moral, nosso educacionais baseadas em critérios tecnocráticos-
devotamento, nosso saber a serviço dos concorrenciais, mercadológicos e financeiros,
ricos exploradores: mutilados, odiando a que interferem no grau de liberdade pedagógica
guerra que fizemos, teríamos que mentir moderna e mais amplamente na noção da
sem parar a nossos alunos, inculcar-lhes educação como direito humano essencial.
uma moral essencialmente contestável, que
não tem relação alguma com a verdadeira Considerações finais
moral que praticamos e ensinamos. O que
se gostaria, nós o sabemos e vemos muito Baseados em uma revisão geral, procura-
bem, seria que continuássemos a utilizar mos sustentar a hipótese do caráter solidário da
o sistema imoral e antipedagógico que pedagogia freinetiana a partir da verificação de
prepara, não homens mas servidores dóceis seus fundamentos como a autonomia, a livre ex-
de um regime; gostariam de obrigar-nos, pressão, o livre trabalho cooperado, a livre pesqui-
a nós, educadores proletários, a servir sem sa, a avaliação autônoma e o correio interescolar.
reservas à escola da classe burguesa. A isso O aprofundamento desse caráter ético
dizemos não. Somos educadores. Nosso da solidariedade não se restringe às relações
primeiro dever é respeitar as crianças que didáticas entre educandor e educando, mas
nos são confiadas, educá-las, prepará-las. se encontra também na relação docente entre
Para isso, opomo-nos a todo dogmatismo educador e educador.
que se justifica por considerações Nesse aspecto, como condição objetiva para
extrapedagógicas. Não estamos a serviço de a execução do projeto político-pedagógico solidário
governos que passam, nem de regimes que da escola moderna, bem como uma perspectiva
mudam; estamos a serviço das crianças, a política de autonomia radical pedagógica,
serviço da sociedade para a qual queremos Freinet baseou o seu trabalho no cooperativismo
prepará-las, segundo as técnicas da internacional e na autogestão escolar.
verdade e da liberdade, felizes e orgulhosos A partir dessa perspectiva, torna-se possí-
de apoiar-nos, para isso, em todas as forças vel refletir a respeito da superação da polaridade
que buscam o mesmo objetivo de libertação estatal-privado, para efetivamente construir uma
e renovação. (FREINET, 1998, p.82) esfera pública-democrática, popular. Nesse sen-
tido, a pedagogia freinetiana se inscreve central-
Trata-se então, a nosso ver, da pedagogia mente no campo das discussões acerca da eco-
do trabalho ou escola moderna, de uma perspectiva nomia e cultura baseadas no trabalho solidário.
de autonomia radical e estruturalmente enraizada Com a presente consideração, procuramos
desde a sua concepção, a sua estrutrutura e o demonstrar a relevância e a atualidade científicas
seu funcionamento para fins de “libertação e dessa pedagogia moderna e crítica que, em
renovação”. Isso, na visão de Freinet, corresponde si, pressupõe novos estudos e pesquisas para
a um regime cooperativo, autogerido e em a superação do presente status quo, com a
comunicação internacional que, devido ao seu construção da escola do trabalho cooperado e
caráter embrionário na história, somente no popular, qualificada por Freinet como moderna e
presente contexto ganha dimensão maior, mas do futuro, mas, também, risonha e franca.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 779


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Recebido em: 09.10.2012

Aprovado em: 09.10.2013

Antonio Takao Kanamaru é professor doutor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São
Paulo (USP). 

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 767-781, jul./set. 2014. 781


A educação progressiva na atualidade: o legado de
John Dewey

Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI

Resumo

A educação progressiva é uma das tradições educativas mais


fascinantes dos Estados Unidos da América, destacando-se pela
sua visão humanista da educação e pelo compromisso com o
aprofundamento da democracia através da escolarização. Neste
artigo, analisamos os principais desenvolvimentos da educação
progressiva por meio da revisão de literatura recente a respeito
do assunto e de escritos de seguidores mais proeminentes,
estabelecendo a relação entre as propostas atuais e o pensamento
fundador de John Dewey. O nosso objetivo consiste em elucidar
qual o núcleo fundamental das ideias defendidas por esse
movimento educativo, baseando-nos numa discussão dos conceitos
centrais do pensamento pedagógico de John Dewey e na forma
como esses foram apropriados e alargados pelos seus sucessores
e atuais defensores. A partir da análise, concluímos que, apesar
da influência dessa tradição educativa ter diminuído, fruto da
generalização de uma perspectiva neoliberal na educação norte-
americana, as suas propostas são fundamentais para a promoção
de uma sociedade mais democrática e justa. Entre essas propostas,
que permanecem fiéis aos aspectos fulcrais do pensamento de John
Dewey, adaptando-o aos novos tempos, destacam-se o compromisso
com a integração social e o pluralismo, além da concepção da
aprendizagem como ampliação de uma experiência partilhada,
favorecedora da promoção do capital social e do estabelecimento
das bases de uma aprendizagem permanente.

Palavras-chave

Educação progressiva — John Dewey — Educação democrática —


Pluralismo — Comunidade.

I- Universidade da Beira Interior,


Covilhã, Portugal.
Contato: branco.luisa@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013 783
Progressive education today: the legacy of John Dewey

Maria Luísa Frazão Rodrigues BrancoI

Abstract

Progressive education is one of the most fascinating educational


traditions of the United States of America and is noted for its
humanistic vision of education and commitment to the deepening
of democracy through schooling. This article analyzes the main
developments in progressive education by reviewing recent literature
on the subject and the writings of its most prominent followers,
establishing the relationship between current proposals and the
foundational thought of John Dewey. My goal is to elucidate the
fundamental core of the ideas espoused by this educational movement
by discussing the central concepts of the pedagogical ideas of John
Dewey and how such concepts were appropriated and extended
by his successors and current defenders. Based on the analysis, I
have concluded that, despite the decline in the influence of this
educational tradition, due to the spread of a neoliberal perspective
on American education, its proposals are critical to promoting a
more democratic and just society. Among such proposals, which
remain faithful to the key aspects of the thought of John Dewey,
adapting it to the changing times, I highlight pluralism and the
commitment to social integration, in addition to the conception of
learning as an extension of a shared experience, which encourages
the promotion of social capital and the laying of the foundations for
lifelong learning.

Keywords

Progressive education — John Dewey — Democratic education —


Pluralism — Community.

I- Universidade da Beira Interior,


Covilhã, Portugal.
Contact: branco.luisa@gmail.com

784 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014005000013 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 783-798, jul./set. 2014.
Introdução tradicionais e o empobrecimento do currículo
centrado num número reduzido de matérias
A educação progressiva teve início nos básicas, um conjunto significativo de escolas
primórdios do século XX, nos Estados Unidos nos Estados Unidos da América continua com-
da América, ao mesmo tempo em que, na prometido com a implementação de uma edu-
Europa, verificava-se um amplo movimento de cação progressiva, prolongando, desse modo,
renovação pedagógica, que ficou conhecido por uma rica e duradoura tradição educativa.
Escola Nova, e com o qual manteve estreitas No âmbito do presente artigo, propomo-nos
relações (FLORES, 2001; MATA, 2001). Embora debater os desenvolvimentos atuais da educação
de forma intermitente, a influência dessa tradição progressiva e a forma como se apropriaram do
pedagógica, na qual avulta a centralidade do legado fundador constituído pelo pensamento
pensamento de John Dewey, perdurou até aos anos de John Dewey, bem como refletir acerca de sua
70 do século passado (SEMEL, 2008). O relatório importância na promoção de uma sociedade mais
A nation at risk, publicado em 1983, apontou justa e democrática. Tentaremos, por conseguinte,
para a existência de fragilidades na educação responder às questões: como é que a tradição da
norte-americana, capazes de comprometer, a educação progressiva se desenvolveu e enriqueceu,
breve trecho, a competitividade econômica do na relação com o pensamento de John Dewey,
país quando comparada com a de outros países. e por qual motivo continua a ser uma proposta
Estava, assim, aberto o caminho para a restauração educativa adequada e séria no contexto das atuais
de uma agenda mais tradicional em termos de sociedades democráticas?
educação. A educação progressiva, associada
por muitos a uma abordagem educativa menos Caráter fundacional do
rigorosa e promotora de uma desautorização dos pensamento de John Dewey
adultos, tornou-se alvo dos ataques da opinião
pública e a sua importância decresceu. A centralidade do pensamento de John
Nos anos 90 do século passado, contudo, Dewey e o seu papel fundacional (amplamente
verificou-se um ressurgimento da tradição reconhecidos) na constituição da educação
progressiva, a partir da criação de pequenas progressiva têm de ser equacionados à luz do
escolas públicas, baseadas nessa concepção movimento progressivo mais vasto. A chamada
e, particularmente, empenhadas em equilibrar era progressiva teve início no final do século
individualismo e sentido de comunidade. XIX, correspondendo a um tempo marcado
No entanto, a generalização da perspectiva pela esperança que sucedeu a um período de
neoliberal e de uma lógica de prestação de “desencantamento com o status quo”1 e “a
contas, definitivamente estabelecida com a uma análise de todos os aspectos da sociedade
aprovação da legislação intitulada No child e a um apelo à renovação e a um novo vigor
left behind, em 2002, secundarizou a visão da democráticos”2 (VANPATTEN, 2010, p. 126).
missão humanística das escolas e enfraqueceu a Em termos rigorosos, esse movimento
força dos professores. Além disso, fragilizou o reformista não pode ser dissociado da depressão
controle exercido sobre a sua própria profissão, econômica ocorrida na passagem do século XIX
de modo a comprometer o objetivo de integrar e para o século XX, a partir da qual surgiu uma
promover a democracia através da escolarização urgência de repensar tanto a sociedade quanto
e da educação, que pode ser perspectivado como a democracia. Em consequência disso, emergiu
o fim principal da educação progressiva. 1- Todas as citações incluídas no presente texto são tradução nossa.
Apesar das atuais iniciativas educa- Optamos, por conseguinte, por apresentar cada uma no original em Inglês.
“[...] disenchantment with the status quo”.
cionais favorecerem, com a dominância dos 2 - “an examination of all aspects of society and a call for democratic
testes estandardizados, o retorno dos métodos renewal and reinvigoration”.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. 785


um clamor coletivo por mais justiça social e grupos distintos e capazes de, nessa dialética
econômica, tendo sido envidados esforços nesse (capacidade de considerar e de superar pontos de
sentido em várias áreas de atuação (expansão vista diferentes e até opostos), encontrar interesses
dos cuidados de saúde, combate à pobreza comuns e constituir novas associações que,
e ao desemprego, cuidado dos idosos etc). Os simultaneamente, potenciem a sua individualidade.
inícios do movimento progressivo foram, por Desse modo, foi um firme apoiante das escolas
conseguinte, marcados por uma atitude de públicas, acreditando que a educação era um
abertura à mudança, sendo essa, portanto, a fator crucial para atingir um consenso no seio da
sua característica mais saliente e consensual. diversidade. A frequência dessas escolas permitiria
Com efeito, se para alguns autores, como a constituição de comunidades fortes, ajudando os
Hayes (2006, p. 5), “os progressivos não eram indivíduos a ultrapassar os preconceitos trazidos
revolucionários, mas antes pessoas interessadas do seu ambiente social.
na resolução de problemas específicos assim Uma das traves mestras do pensamento
como na melhoria do estado de coisas”3, para de Dewey consiste na afirmação de uma estreita
outros, como Miller (2009), o movimento relação entre democracia e educação. Faz a
progressivo, longe de ser moderado, implicou distinção entre democracia em sentido estrito,
uma rejeição da forma tradicional de vida correspondendo a um sistema de governo
americana. Segundo o autor, isso foi feito por (democracia política) e democracia em sentido
meio da promoção de reformas socias em grande lato, enquanto ideia social. Nessa última
escala e da atribuição ao estado de um papel acepção, a democracia corresponde à “ideia
cada vez mais predominante. Esse papel foi de comunidade em si”4 (DEWEY, 1991, p. 148),
entendido como instrumento para salvaguardar constituindo um ideal regulador cuja realização
a liberdade, não se limitando a proteger os está dependente da sua apropriação por todas
direitos individuais, mas a providenciar uma as formas de associação humanas.
distribuição mais equitativa dos mesmos. Podemos dizer que uma associação
As preocupações da era progressiva, em humana é uma comunidade quando a atividade
termos de maior justiça social e econômica, conjunta desenvolvida se traduz num bem para
aparecem refletidas na obra de Dewey. Para todos, não constituindo, simultaneamente,
ele, só uma mudança em termos educacionais uma restrição ao pleno desenvolvimento das
poderá suscitar uma reforma social. Incidindo, potencialidades dos membros do grupo. O que
inicialmente, nas questões da educação e da distingue a vida comunitária é, por conseguinte,
escolarização, os seus escritos tornam-se, a sua natureza moral, implicando um esforço
progressivamente, mais focados na elaboração consciente de ordem intelectual e moral por
de uma filosofia da experiência, possuindo, parte dos seus membros. Segundo Dewey (1991,
contudo, uma relevância direta para a educação. p. 154), “nascemos seres orgânicos associados
A centralidade da educação relacionada com a a outros, mas não nascemos membros de uma
expansão da experiência, fortemente enfatizada comunidade”5, sendo isso algo que temos
pelo autor, insere-se na defesa pelo movimento de aprender a ser, a fim de realizar a nossa
progressivo da expansão de programas e humanidade. É necessário esclarecer aqui
oportunidades educativas. que, para Dewey, não existe uma ideia ou
Segundo Dewey, o futuro da sociedade essência da humanidade propriamente dita, um
americana está dependente da construção de estado de perfeição a alcançar. A realização
um sentido de comunidade, que tenha por base da humanidade a que se refere tem a ver
a associação entre indivíduos pertencentes a
4 - “idea of community itself”.
3 - “[…] the progressives were not revolutionaries, but rather people who 5 - “We are born organic beings associated with others, but we are not
were interested in fixing specific problems and improving the status quo.” born members of a community”.

786 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
com um processo aberto de crescimento e de salientado por Hansen (2009), a obra de Dewey
aperfeiçoamento, no sentido de uma experiência traduz uma paixão pelo espaço “que está entre”
mais partilhada e alargada, que resulta da e que pode ser entendido como o espaço entre o
interação e capacidade de comunicação entre self que se foi e o self em formação, a comunidade
os vários indivíduos. de ontem e a comunidade de hoje; o ponto de
A clarificação do papel da educação vista adotado e o novo ponto de vista, exercendo
e da sua estreita relação com a consecução uma atração magnética e impulsionando as
da democracia, em sentido lato, pressupõe a pessoas para a frente “no sentido da criatividade,
compreensão da relação entre individualidade da expressividade, do habitar o mundo de
e comunidade no pensamento de Dewey. Por forma mais plena, isto é, de forma reflexiva e
individualidade (que distingue de indivíduo), apreciativa”6 (HANSEN, 2009, p. 106).
entende aquilo que é próprio de cada um e O crescimento é, em si mesmo, e
constitui o seu valor próprio, considerando simultaneamente, o objetivo e o veículo
que é algo que tem de ser desenvolvido e da própria vida, expresso num processo
conquistado, não estando dado à partida e não contínuo de reconstrução da experiência do
constituindo, por conseguinte, uma identidade self, que enfrenta e acomoda o previsível e o
fixa, mas o resultado das ações de um indivíduo imprevisível. Contudo, e como já foi salientado,
que é essencialmente social. A imaturidade dos no pensamento de Dewey, o self não pode ser
mais novos, com a dependência e plasticidade entendido como independente e autossuficiente.
que a carateriza, é, por conseguinte, vista O crescimento do indivíduo processa-se sempre
como uma vantagem, na medida em que num meio social, tornando-se as suas respostas
representa a capacidade para se desenvolver, inteligentes em função da sua associação e
impulsionada pelo contacto social. Efetivamente, comunicação com outros. Como referido por
a incapacidade física da criança humana é Dewey7 (1991, p. 24):
compensada pela sua capacidade social traduzida
numa extraordinária aptidão para responder a [...] o homem não está apenas associado de
estímulos sociais. Desse modo, a dependência facto, mas torna-se um animal social na
deve ser entendida como interdependência, composição das suas ideias, sentimentos e
compreendendo simultaneamente a plasticidade comportamento deliberado. Aquilo em que
dos imaturos, mas também a sua capacidade acredita, o que espera e tem por objetivo é o
para aprender com a experiência socialmente resultado da sua associação e da sua relação.
configurada. Há, portanto, uma inseparabilidade
e uma codependência entre o desenvolvimento/ Numa sociedade progressiva, a
construção da individualidade e a experiência associação deve promover e não impedir as
social, de que a comunidade é a realização plena variações individuais, as quais deverão ser
e completa (DEWEY, 1997a). incentivadas, pois constituem os meios que
Outros dos aspectos estruturantes do possibilitam o crescimento da sociedade.
pensamento de Dewey constitui a equivalência Ao contrário de uma sociedade
estabelecida entre viver, aprender e crescer. conservadora e não democrática, a democrática
Para o autor, viver é crescer sem um fim valoriza a liberdade, o que significa, em sentido
predeterminado que não seja mais crescimento, forte e progressivo, assegurar, acima de tudo,
sendo igualmente esse o objetivo da educação.
6 - “toward creativity, toward expressivity, toward inhabiting the world that
A educação deve, desse modo, possibilitar uma much more fully, which is to say reflectively and appreciatively”.
reorganização e reconstrução contínuas da 7- “man is not merely de facto associated, but he becomes a social
animal in the make-up of his ideas, sentiments and deliberate behavior.
experiência dos indivíduos e das comunidades, What he believes, hopes for and aims at is the outcome of association and
possibilitando o seu crescimento. Como intercourse.”

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. 787


as condições para que cada um possa pensar aprendizagem. Efetivamente, Dewey sustenta
por si mesmo e não se limitar a adotar uma uma visão construtivista da aprendizagem numa
postura conformista. O conceito de liberdade versão não ingênua.
que está aqui em jogo transcende uma Segundo Dewey, não é expectável que
concepção negativa correspondendo a uma o estudante faça descoberta originais, o que
concepção positiva da mesma, entendida como não invalida, contudo, que as condições de
algo que tem de ser realizado e não apenas aprendizagem constituam um desafio para
assegurado. Em termos das implicações sociais e aquele que aprende no sentido de permitir uma
educacionais, tem sobretudo a ver com a criação “descoberta genuína”10 (DEWEY, 1997a, p. 303).
de condições que possibilitam o desenvolvimento O conhecimento tem uma função adaptativa,
de um pensamento efetivo, nomeadamente diferindo da mera conformidade a uma
a possibilidade de “iniciativa intelectual, realidade dada e independente do sujeito (a
independência na observação, invenção asserção central do construtivismo, de acordo
judiciosa, antecipação das consequências”8 com Glaserfeld, 1999), traduzindo-se num
(DEWEY, 1997a, p. 302). alargamento da experiência pessoal e social.
Essa concepção está sustentada numa
teoria pragmatista do conhecimento, que Conceito de educação
tem na continuidade uma das suas principais progressiva segundo John Dewey
características. A continuidade deve ser entendida
como um meio que permite a livre comunicação, Não há consenso em torno da definição
ultrapassando divisões, antíteses e dualismos da educação progressiva. De um ponto de
(no que pode também ser lido como um resíduo vista superficial pode ser entendida como uma
hegeliano significativo no pensamento de Dewey). série de práticas traduzida numa organização
Considerando que conhecer implica a reconstrução do ensino-aprendizagem oposta à do ensino
da experiência, o conhecimento pressupõe uma tradicional, nomeadamente à ênfase colocada
perceção mais profunda das conexões do objeto, na transmissão de conteúdos e no desempenho
determinando a sua aplicabilidade e envolvendo a do professor. Num sentido mais profundo, a
totalidade do sujeito. educação progressiva assenta numa lógica
Assim sendo, o conhecimento não pode específica, numa filosofia da educação diferente.
ser entendido como uma “contemplação ociosa É essa a perspectiva subscrita por Dewey
de um espectador não comprometido”9 (DEWEY, na obra Experience and education (1997b), pu-
1997a, p. 338), implicando mente e corpo bem blicada originalmente em 1938, e que constitui
como teoria e prática. Significa uma forma de um dos seus escritos mais incisivos a respeito
participação, cuja efetividade está relacionada do tema. Tendo em conta o trabalho realizado
com o controle que confere aos sujeitos, ajudando- com várias escolas progressivas, o autor refor-
os a lidar com novas situações e a conferir mula algumas das ideias expressas anterior-
propósito ao futuro. Não é algo rígido nem fixo, mente, esclarecendo a visão que está por detrás
dado de uma vez por todas, mas o resultado de da educação progressiva. Para ele, a unidade
processo de tentativa e erro. O fato de existir um fundamental da nova filosofia que sustenta a
corpo de conhecimentos socialmente transmitido educação progressiva “encontra-se na ideia de
não invalida o esforço individual para encontrar que há uma relação íntima e necessária entre os
um sentido. Como veremos, isso é especialmente processos da experiência atual e a educação”11
importante pelas suas implicações para a (DEWEY, 1997b, p. 20).

8 - “[…] intellectual initiative, independence in observation, judicious 10 - “genuine discovery”.
invention, foresight of consequences”. ��- “is found in the idea that there is as intimate and necessary relation
9 - “[…] idle view of an unconcerned spectator”. between the processes of actual experience and education”.

788 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
A partir de uma análise mais cuidadosa alargamento da compreensão de si mesmo e do
do pensamento de Dewey, apercebemo-nos mundo e a constituição de uma personalidade
que relacionar a experiência atual com a plenamente integrada como resultado da
educação é uma redundância. Tendo em conta integração das experiências. A autodisciplina
que os princípios de qualquer experiência são é a consequência natural da atenção contínua
a continuidade e a interação, aprender envolve requerida por esse tipo de atividade.
sempre, segundo ele, uma reorganização Alargar a experiência, aprender, não é
da experiência do self. Por continuidade, mais do que uma forma de se associar ao processo
entende “que cada experiência transporta ininterrupto que é o viver e que tem de enfrentar
simultaneamente algo daquelas que aconteceram o previsível e o imprevisível, terminado, ao
antes, modificando de alguma forma a qualidade limite, com o fim da consciência (SHAKER;
das que vêm depois”12 (DEWEY, 1997b, p. 35). HEILMAN, 2008). Os professores desempenham
Sendo sempre subjetiva e pessoal, um processo aqui um papel fundamental. Antes de mais,
ativo, cada experiência afeta ainda, e é afetada, têm de conhecer os seus estudantes de forma
pelas condições objetivas em que ocorre, tendo profunda a fim de identificar as atitudes que
igualmente implicações sobre as condições estão a ser criadas, distinguindo entre as que
objetivas de experiências posteriores. A isso lhes permitirão crescer e as que os impedirão de
Dewey chama de princípio da interação, segundo avançar. Em segundo lugar, e tendo em conta
o qual as condições atuais são determinantes esse dado, deverão criar um ambiente adequado
da qualidade das experiências presentes, mas, à ocorrência de experiências educativas. Em
também, das futuras. suma, segundo Dewey, a criança deve ser o centro
Tendo em conta que o valor da experiência da educação, razão pela qual os educadores
“só pode ser julgado na base daquilo que têm de estar cientes de que a formação precisa
impulsiona”13 (DEWEY, 1997b, p. 38), a marca ser concebida para o desenvolvimento dela: a
distintiva de uma experiência educativa consiste criança deve constituir o critério de seleção dos
na tradução dos princípios da continuidade e conteúdos e das experiências bem como da sua
interação em crescimento, permitindo ao sujeito calendarização.
(re)construir uma experiência mais integrada Considerando que as formas de
e unificada. A efetivação de uma experiência organização democráticas proporcionam uma
educativa exige, desse modo, que o ambiente melhor experiência humana, potenciando as
esteja organizado de forma a “envolver a pessoa qualidades de interação e continuidade, Dewey
em atividades específicas que tenham um sustenta que as escolas devem ser comunidades
objetivo ou propósito de momento ou se revistam embriônicas, a fim de permitir a familiarização
de interesse para ela”14 (DEWEY, 1997a, p. 132). dos estudantes com a vida democrática. A
Com efeito, o que está em jogo numa característica da interação, em particular, permite-
experiência educativa é a possibilidade -nos apreender o desenvolvimento da experiência
do sujeito se identificar com a atividade, como um processo social. Consequentemente, as
encontrando sentido para a mesma, de forma a crianças devem acostumar-se à ideia do trabalho
compreender as sucessivas tarefas como fazendo como um empreendimento social, o que requer
parte do contínuo de uma mesma situação em do professor um planejamento cuidadoso no
desenvolvimento, favorecendo-se, desse modo, o sentido de organizar experiências que satisfaçam
as necessidades dos indivíduos que têm
12 -� “that every experience both takes up something from those which
have gone before and modifies in some way the quality of those which perante si, permitindo-lhes desenvolver as suas
come after.” capacidades, capacitando-os, simultaneamente,
13 -� “can be judged only on the ground of what it moves toward and into”.
14 - “Engage a person in specific activities having an aim or purpose of a atuar como grupo, assumindo-se o professor
moment or interest to him”. como o líder das atividades do grupo.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. 789


A educação progressiva no de alguns dos seus mais proeminentes autores,
presente chegamos à prevalência de alguns tópicos
que configuram as suas principais propostas
Procuraremos, em seguida, compreender na atualidade: a compreensão da educação
como é que a educação progressiva se progressiva como uma abordagem educativa
desenvolveu e enriqueceu nas últimas centrada na criança; uma abordagem educativa
décadas, apesar da dominância de uma que privilegia o sentido de comunidade; a
agenda conservadora em matéria de educação, importância de educar a criança como um
abordando as suas principais propostas. Antes, todo; a defesa de um conceito lato de sucesso
porém, convém esclarecer que, no início do e de avaliação; a defesa da profissionalidade
século XXI, o progressivismo mantém-se como docente; o desenvolvimento de cidadãos ativos
um movimento multifacetado, constituindo a como o principal resultado a atingir com a
sua caraterística mais central e unanimemente escolarização.
reconhecido o papel nuclear desempenhado
pela obra de John Dewey (NORRIS, 2004). Tal Uma abordagem centrada na
como no início do movimento, os adeptos da criança
educação progressiva não pertencem à esquerda
radical, mas a uma esquerda reformista, A caraterística mais consensual da
significando que o sentido da moderação educação progressiva é a de que consiste numa
prevaleceu. Segundo Goodman (2006, p. 1), abordagem centrada na criança. Egan (1999,
o movimento progressista representa “um apud NORRIS 2004, p. 10) explica o significado
espetro ideológico propositadamante alargado dessa expressão:
de ideias sociopolíticas e educacionais,
enraizadas no pragmatismo americano”15 que, A crença central - o dogma mais funda-
ao contrário da esquerda radical, valoriza o mental do progressivismo - é que para
legado americano honrando a importância da uma educação efetiva das crianças é vital
democracia representativa. Nesse contexto, a ter em conta a sua natureza, e em parti-
sua luta concentra-se no aprofundar e expandir cular o seu modo de aprendizagem e es-
dos sentidos da democracia, nomeadamente tádios de desenvolvimento, acomodando
através do aperfeiçoamento das instituições as práticas educativas ao que podermos
e ideologias herdadas dos seus antepassados, apurar sobre isto.16
da consideração dos problemas das mulheres
e das minorias e da promoção de relações de A importância de ter em conta as
reciprocidade e maior equidade com outras necessidades da criança, que encontramos
sociedades. Procurando ser uma alavanca de bem vincada na obra pedagógica de Dewey,
responsabilidade social e de solidariedade, enquanto necessidade de entrar em relação com
no contexto da expansão e realização dos a experiência da criança tendo em conta as suas
direitos humanos, concebe a escola como um necessidades, forças e fraquezas específicas no
meio crucial para atingir uma maior equidade sentido de a ajudar a progredir, foi enriquecida
e dignidade humana, resistindo a tudo o que no diálogo entre o progressivismo e o
possa ser interpretado como uma forma de construtivismo de Jean Piaget e seus seguidores.
coisificação do outro. Recentemente, a teoria das inteligências
Através da revisão de literatura atual
acerca da educação progressiva e do trabalho 16 -� “The central belief-the most fundamental tenet of progressivism- is
that to educate children effectively it is vital to attend the nature of the child,
��- “a purposefully broad ideological range of both sociopolitical and and particularly to their mode of learning and stages of development, and to
educational ideas that are rooted in American pragmatism”. accommodate educational practices to what we can discover about these”.

790 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
múltiplas de Howard Gardner reforçou essa algum, ser indulgente com a criança, assumindo-
intuição central da educação progressiva, se, contudo, que a coação e a punição não
convidando-nos a considerar diferentes estilos constituem boas medidas educativas.
de aprendizagem. Uma abordagem centrada na criança
Com base na abordagem centrada na significa, ainda, que uma boa escola “reflete
criança e no desenvolvimento da ideia de que os valores e ideias dos estudantes”18 (SHAKER;
existem diferentes estilos de aprendizagem HEILMAN, 2008, p. 179), aspecto especialmente
e de envolvimento na mesma, um grupo de desenvolvido por Deborah Meier (2002a,
educadores progressivos, sob a liderança de 2002b). Finalmente, uma abordagem centrada
Patricia Carini, desenvolveu uma metodologia na criança constitui um convite à adoção de
intitulada revisão descritiva. Segundo Carini uma multiplicidade de modelos e caminhos
(2000, p. 16), os fundamentos e objetivos desta educativos, em vez da imposição de uma visão
metodologia são os seguintes: única acerca do que significa ser uma pessoa
educada e, concomitantemente, da defesa de um
Partindo da ideia de que as capacidades e único caminho educativo (NODDINGS, 2002).
possibilidades humanas estão amplamente
distribuídas, orientámo-nos no sentido de Educar a criança como um todo
observar e de particularizar as capacidades e
as potencialidades de cada criança. Com base Outro tópico que emerge da literatura
em ambientes de sala de aula ricos em mídia atual é o imperativo de educar a criança
e em materiais, estamos bem colocados para na sua totalidade (NODDINGS, 2002; 2005;
procurar e tornar visíveis os interesses fortes 2006). Esse imperativo pode ser interpretado
de cada criança bem como os modos particu- em dois sentidos, qualquer deles fazendo
lares como se envolve e aprende.17 apelo aos princípios da experiência, tal como
conceitualizada por Dewey. Em primeiro
Distinguindo-se de uma abordagem lugar, tendo em conta que qualquer estudante
clínica ou fisiológica, a revisão descritiva consiste é um indivíduo complexo e que, como tal,
numa abordagem narrativa e não judicativa, não pode ser desmembrado numa coleção de
enraizada numa perspectiva fenomenológica, atributos, os autores progressivos defendem
que tem como objetivo apreender (e não uma educação focada no desenvolvimento total
categorizar) a singularidade de cada indivíduo na da criança. Consequentemente, privilegiam
sua complexidade, potenciando a sua capacidade uma abordagem holística do currículo, que
para aprender. permita aos estudantes perceber (e estabelecer)
Em suma, o que esses recentes conexões entre as suas próprias experiências. A
desenvolvimentos revelam é que a principal concretização disso exige que as relações entre
reivindicação da educação progressiva, segundo as várias disciplinas, especialmente nos níveis
a qual a criança deve ocupar o centro do processo superiores de ensino, seja impulsionada a partir
de aprendizagem, corresponde à importância de de dentro, no sentido de permitir a exploração
construir um ambiente de aprendizagem baseado de tópicos pertencentes a outros domínios do
num estudo cuidadoso da singularidade daquela, conhecimento. Desse modo:
a fim de favorecer uma participação ativa e um
crescimento efetivo. Não significa, de modo estudantes que se estão a especializar
��- “Starting from the idea of human capacity and possibility, widely em matemática ou ciência podem,
distributed, we were oriented to look for and to particularize the capacities neste processo, aprender alguma coisa
and strengths of each child. Starting from classroom settings rich in media
and materials, we are in position to seek and make visible each child’s
strong interests and characteristics modes of engaging and learning”. 18 - “reflects values and ideas of the students”

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p.783-798, jul./set. 2014. 791


sobre história, biografia, filosofia, boas e más de avaliação, traçando uma linha
literatura, estética, religião e como viver19 entre um conceito estreito de avaliação, que deve
(NODDINGS, 2006, p. 90). ser combatido, e um conceito lato a incentivar,
concordando com a necessidade de avaliar o
Em segundo lugar, os autores progressivos trabalho desenvolvido pelas escolas.
criticam a não-inclusão no currículo de A unanimidade em torno desse assunto
conteúdos valorizados pelos estudantes e não acontece por acaso. A implementação
relacionados com a sua vida quotidiana, dos testes estandardizados é um bom exemplo
assim como um conjunto de capacidades que daquilo a que Dewey (2002, p.59) chamou
ajudam as pessoas a viver de uma forma mais sugestivamente “o desperdício na educação” e
inteligente, moral e feliz. Noddings (2002, p. que resulta, entre outros fatores, do isolamento
95), em particular, realça aqui as capacidades dos vários domínios de estudo, logo da
“tradicionalmente associadas às mulheres”20 artificialidade das matérias e da vida escolar em
e relacionadas com o cuidado humano. Para relação à vida quotidiana.
Meier (2002b), é importante abolir a falsa Os testes estandardizados são
dicotomia entre conhecimento prático e considerados uma má forma de avaliação,
conhecimento acadêmico, dignificando os dois, porque consistem numa medida reducionista
como forma de conseguir chegar aos estudantes conducente a falsas certezas. Focados nos tipos
menos privilegiados e estabelecer uma ponte de inteligência linguística e matemática, não
com as suas culturas. Shaker e Heilman (2008) favorecem a prossecução do objetivo essencial
recordam a importância da inclusão de uma do desenvolvimento da criança e do jovem no
educação espiritual (enquanto distinta de uma sentido da solidariedade e das competências
educação moral e religiosa), enfatizando a sua sociais (DEWEY, 2002). De acordo com Meier
importância para uma vida democrática, tendo (2002a), tais exames são incapazes de prever
em conta que “o conceito de espiritualidade qualidades essenciais ao desenvolvimento de uma
se relaciona com propósitos humanos amplos, cidadania democrática, tais como a capacidade
antitéticos da autoabsorção”21 (SHAKER; de cooperação, a criatividade, a perseverança, a
HEILMAN, 2008, p. 188), isto é, com a abertura capacidade de correr riscos, a fiabilidade, entre
a um transcendente que favoreça a superação outras, estreitando, assim, o conceito de sucesso.
do individualismo. Para além disso, os autores progressivos
denunciam os riscos inerentes a uma única
Um conceito lato de sucesso e forma de avaliação, defendendo a importância
de avaliação de múltiplas formas de avaliação. Mas acima
de tudo, o que é colocado em questão é a
Há unanimidade entre os educadores capacidade dos testes estandardizados avaliarem
progressivos na crítica feita à ênfase colocada o que os estudantes realmente aprenderam na
nos testes estandardizados, que são um dos traços escola e, desse modo, consistirem uma medida
dominantes da educação nos EUA na atualidade. adequada para melhorar a educação. O sistema
Não significa isso, contudo, que sejam contra a de testes, tal como está organizado, tem como
lógica da avaliação ou da prestação de contas. objetivo hierarquizar os alunos, sendo incapaz
Pelo contrário, fazem a distinção entre formas de avaliar se os professores ensinaram bem e se
os estudantes efetivamente aprenderam. Reflete-
19 - “students specializing in mathematics or science can, in the process,
learn something of history, biography, philosophy, literature, aesthetics, -se, ainda, numa simplificação do processo
religion, and how to live”. de aprendizagem e do papel do professor na
20 - “traditionally associated with women”.
��- “the concept of spirituality is connected to broad human purposes organização desse processo. Como salientado
antithetical to self-absorption”. por Meier (2002b), tem igualmente o efeito

792 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
de desacreditar as capacidades dos adultos Só assim pode ser alcançada uma forma mais
significativos, professores e pais, para avaliar segura de prestação de contas.
as evidências de aprendizagem em nome de Kreschevsky et. al (2010) referem três
evidências indiretas consideradas mais credíveis. formas diversas e complementares de prestação
A alternativa baseada numa perspectiva de contas. A primeira, prestação de contas a si
progressiva implica uma avaliação mais lata, mesmo, permite aos professores e alunos observar
baseada num “conjunto de dados e num contri- o que realmente conseguiram fazer, estabelecendo
buto substancial dos profissionais”22 (SHAKER; a comparação com os seus objetivos e com
HEILMAN, 2008, p. 180). É considerada crucial os objetivos da escola. Neste processo, os
a implementação de formas de avaliação que professores e os alunos podem revisitar o seu
restituam a autoridade àqueles que conhecem trabalho e refletir acerca da melhor forma de o
realmente as crianças, possibilitando ainda melhorar, estreitando os seus laços e tornando-
a apresentação e partilha das evidências da -se aprendizes da sua própria aprendizagem. A
aprendizagem com as crianças, família e co- segunda, prestação de contas entre si, favorece a
munidade. Essa visibilidade da aprendizagem, aprendizagem individual e grupal assim como a
tornada possível através de um amplo processo constituição de uma identidade coletiva, já que os
de documentação, que reúna diferentes formas estudantes comentam os trabalhos uns dos outros,
de evidência da mesma, sustenta o conceito os professores pedem a colegas que observem
alargado de prestação de contas proposto pelos os seus alunos, os pais podem contribuir com a
educadores progressivos. recolha de provas de aprendizagem, emergindo
Para Krechevsky et al. (2010, p. 65), dessa dinâmica o sentido de uma comunidade de
a documentação constitui um instrumento aprendizagem. Finalmente, a terceira forma, uma
fundamental para implementar uma forma de prestação de contas à comunidade envolvente
prestação de contas mais consistente e válida. mediante mostras de aprendizagem, a partir da
Para eles, essa documentação é definida como: qual se promovem apresentações de portfólios,
por exemplo. Essas mostras, que recuperam
a prática de observação, gravação, inter- uma tradição fortemente enraizada nos Estados
pretação e partilha, através de uma varie- Unidos, permitem aos estudantes apresentarem
dade de meios, dos processos e produtos da perante a comunidade mais vasta os resultados
aprendizagem a fim de possibilitar o apro- da sua aprendizagem. Em síntese, contra a visão
fundamento da mesma”23. (KRECHEVSKY que subjaz à legislação do no child left behind,
et. al 2010, p. 65) considerada como instigadora de uma política
punitiva que exclui em vez de permitir a melhoria
Para Meier (2002), é fundamental da educação, avaliando os estudantes através de
implementar formas de avaliação que, voltando lentes estreitas e hierarquizando-os, os educadores
a colocar a autoridade nas mãos daqueles progressivos defendem uma noção alternativa
que melhor conhecem as crianças, forneçam de padrões de sucesso, baseada em múltiplas
simultaneamente meios para que a comunidade, perspectivas e evidências, possibilitando uma
a família e a escola possam apreciar os juízos exposição e uma crítica públicas.
produzidos sobre as aprendizagens das suas
crianças, colocando questões ou mesmo A defesa da profissionalidade
apresentando provas complementares daquela. docente

22 - “a range of data and a substantial element of professional peer input”. Apesar de a educação progressiva defen-
23 - “the practice of observing, recording, interpreting, and sharing
through a variety of media the processes and products of learning in order der uma abordagem centrada no aluno, consi-
to deepen learning”. derando que uma boa escola é aquela onde as

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ideias e os valores das crianças contam e são em conjunto no sentido de criar formas de
levados a sério, isso não significa, de modo confiança colegial. A educação das crianças
algum, antes pelo contrário, que o papel dos deve ser entendida como uma tarefa comum,
professores não se revista da maior importân- devendo as escolas organizarem-se de modo a
cia. Por um lado, os professores são aqueles que tornar essa ideia numa realidade.
melhor conhecem as crianças devido ao con-
tacto permanente e direto que têm com elas, O desenvolvimento de cidadãos
ocupando, por conseguinte, uma posição privi- ativos como principal resultado
legiada para ultrapassar o hiato geracional. Por da escolarização
outro lado, têm a responsabilidade de tornar a
cultura acessível aos alunos e de discutir com Os educadores progressivos subscrevem a
eles as mensagens superficiais lançadas pelos relação íntima entre democracia e educação de-
meios de comunicação e por adultos desencan- fendida por Dewey, privilegiando, à semelhan-
tados. Nesse contexto, devem desempenhar o ça deste, a democracia em sentido forte, como
papel de inspiradores das novas gerações me- uma forma de viver com os outros e como uma
diante a criação de situações de aprendizagem forma de relacionamento e de interação diária.
que alimentem a curiosidade das crianças e o Para além desse sentido de democracia participa-
seu amor pelo conhecimento. tiva, defendem igualmente outro aspecto central
Segundo esta ótica, a tarefa de ensinar é na noção de democracia proposta por Dewey: a
vista como uma atividade criativa, exigindo o ideia de pluralismo (NEUBERT, 2009). Acreditam
domínio de uma grande variedade de técnicas que a diversidade de grupos e culturas deve ser
e uma atenção muito particular à singularidade valorizada e constitui um ganho para a demo-
dos estudantes. Como salientado por Shaker e cracia, desde que os pré-requisitos institucionais
Heilman (2008, p. 180), “os professores têm de estejam assegurados no sentido de assegurar
diariamente aproveitar todas as oportunidades uma comunicação livre e frutífera. Efetivamente,
para alargar a efetividade da sua ação e chegar o consenso e a unidade, dentro da diversidade,
a cada estudante de forma educativa”24. Na são fundamentais para a construção de um sen-
senda da defesa feita por Dewey da necessidade tido de comunidade. Acreditando que hoje, tal
de preservação da liberdade intelectual como ontem, “a crise da democracia é também
dos professores, os educadores e autores a crise da comunidade”25 (SHAPIRO, 2009, p. 5),
progressivos rejeitam a ideia de um ensino cujo entendem a educação para uma cidadania demo-
objetivo seja a mera obtenção de sucesso em crática como intimamente relacionada com uma
testes estandardizados. Consideram que essa abordagem educativa centrada na comunidade.
concepção é extraordinariamente redutora do Na base desses pressupostos, e desafiando
profissionalismo docente, empobrecendo-o na a agenda neoliberal para a educação, os
medida em que reduz os professores a meros educadores e autores progressivos reclamam
técnicos, colocando de lado a sua sabedoria uma outra visão e lógica educacionais,
profissional (NORRIS, 2004; HAYES, 2006). sustentando que a educação não pode ser neutra,
Ensinar é visto como um empreendimento não devendo ter como único objetivo o preparar
moral, que exige uma relação de confiança trabalhadores competentes (NODDINGS, 2005;
entre professores e alunos. Os professores têm, SHAKER; HEILMAN, 2008).
acima de tudo, de acreditar na capacidade e na Efetivamente, uma sociedade democrá-
vontade de aprender dos seus alunos, mas têm tica exige o desenvolvimento de competên-
também de se apoiar uns nos outros e trabalhar cias essenciais à prossecução do bem comum
���- “teachers need every opportunity to broaden their effectiveness and
successfully reach each student in an educative manner every day”. 25 -� “the crisis of democracy is also the crisis of community”.

794 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
e à consecução de uma cidadania responsável. de dimensão reduzida, no sentido de favorecer
Entre essas avultam o pensamento crítico, a re- relações de confiança, desenvolvidas em torno
solução de problemas, o autoconhecimento, a de objetivos comuns e de processos de decisão
comunicação efetiva, a flexibilidade, a criativi- transparentes. Como referido por Deborah
dade genuína, a consciência social e a vontade Meier (2004, p. 73):
para estabelecer e honrar compromissos. Para
corresponder a essa visão, as escolas públicas [...] a confiança nas escolas não pode
têm de se tornar comunidades de inquérito, crescer a não ser que os diretores, pais
preocupando-se com a construção de conhe- professores e crianças se conheçam bem
cimento, “mas também de sentido, identidade e que o seu trabalho seja acessível à
e comunidade”26 (SHAKER; HEILMAN, 2008, comunidade mais lata.27
p. 187). A importância das escolas públicas se
concentrarem na realização de objetivos co- Conclusões
muns e de um futuro comum é, assim, enfatiza-
da (MEIER, 2002a). As propostas atuais da educação
A criação de condições adequadas por progressiva têm como núcleo a relação estreita
meio da escolarização para a formação de entre educação e expansão da experiência
cidadãos críticos e informados é, por conseguinte, atual, aspecto central do pensamento de
indispensável para a sobrevivência da democracia. John Dewey. Esta ideia corresponde, ainda,
Esse objetivo exige, simultaneamente, a à afirmação central do progressivismo,
construção de um currículo que privilegie quer segundo a qual só por meio do alargamento
as questões conceituais quer as questões práticas, de oportunidades educativas a todos se poderá
favorecendo o exercício da curiosidade por alcançar uma sociedade mais justa e equitativa.
crianças e adultos. Efetivamente, transformar Ser educado consiste, por conseguinte, no
a escola numa comunidade democrática exige apoderar-se da sua própria situação em sentido
participação e envolvimento por parte das pleno, isto é, de forma crítica e reflexiva,
crianças, mas também a adoção de uma atitude alargando simultaneamente a compreensão
democrática pelos adultos (docentes, pessoal de si e do mundo. Esta concepção parte do
não docente e pais), que deverão estar dispostos reconhecimento de uma diferença essencial
a partilhar responsabilidades e a aprender entre a educação humana e a educação animal.
em conjunto. A necessária familiarização dos Os seres humanos sentem necessidade de dar
estudantes com uma cultura de debate requer, sentido ao mundo a fim de o poder habitar.
ainda, que os adultos à sua volta mostrem que é A educação tem de ter em conta a
possível manter discordâncias com outros sem se especificidade do estudante, entrando em linha
perder o respeito. de conta com as suas necessidades forças e
A multiplicação de oportunidades fraquezas. A criança/estudante deve ser, por
de partilha de conhecimentos, colocando conseguinte, a base das opções e das decisões. O
os estudantes mais velhos a ajudar os mais papel das escolas não é criar uniformidade, mas
novos, encorajando o voluntariado adulto e as permitir o desenvolvimento da individualidade.
atividades que reúnem pessoas com diferentes A diversidade é valorizada enquanto forma de
idades e níveis diversos de escolaridade, está expandir e enriquecer a experiência comum.
entre as medidas utilizadas para desenvolver Nos escritos contemporâneos dos autores
escolas e comunidade. Uma escola animada progressivos, essa última ideia aparece expressa
por um sentido de comunidade deve ainda ser de forma muito vincada. A tradição da educação
27 -� “trust in schools can’t grow unless principals, parents, teachers and kids
26 -� “meaning, identity and community as well”. know each other well, and their work is accessible to the larger community”.

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progressiva evoluiu e consolidou-se, em tempos Muito mais do que transmitir informação, a
de globalização dominados por um agenda educação escolar deve preparar os estudantes
neoliberal, como uma abordagem centrada para aprender ao longo da vida de forma ativa
nos alunos, que descarta a uniformidade e a e pragmática, oferecendo-lhes uma educação
esdandardização, defendendo que a diversidade integral. Sem subestimar a importância da
deve ser reconhecida e promovida. A revisão literacia e da numeracia, os educadores
descritiva da criança é o exemplo de um progressivos atuais acreditam que esses
instrumento metodológico poderoso que objetivos podem ser alcançados por meio da
amplifica essa ideia, tornando-a palpável em resolução de problemas práticos e de atividades
termos pedagógicos. Para além de permitir o e projetos que mobilizem os interesses dos
reconhecimento de diferentes tipos de inteligência estudantes, quebrando as fronteiras artificiais
e de diferentes estilos de aprendizagem, realça a entre as várias disciplinas e restaurando a
importância de olhar para os estudantes como unidade da experiência.
pessoas e não como casos, cujas especificidades Finalmente, a educação democrática
devem ser valorizadas. não é considerada como um empreendimento
De fato, um dos seus objetivos consiste neutro, mas é considerada um empreendimento
em combater o conformismo e a estandardização moral e espiritual, o que significa, num sentido
que, de acordo com os educadores e autores progressivo, que se baseia numa concepção dos
progressivos, estão a comprometer a educação não seres humanos como iguais, racionais e capazes
só nos EUA, mas um pouco por todo o mundo. A de cooperação. Desse modo, a realização de uma
revisão descritiva pressupõe, ainda, a consideração educação democrática exige um investimento
da continuidade entre educação formal e não na capacidade ética do ser humano para encetar
formal, um dos pressupostos iniciais da educação um diálogo democrático e para tomar decisões
progressiva, igualmente desenvolvido por Dewey. em conformidade.
As escolas não podem ignorar as aprendizagens Hoje, mais do que nunca, uma verdadeira
feitas pelos estudantes e que são trazidas para o seu educação democrática, uma educação crítica,
interior. Em suma, como refere Carini (1986, p. 17): exige um esforço de compreensão das diferenças
“a diversidade de perspectivas e de pensamento”28 culturais e de outro tipo de diferenças,
devem ser encaradas “como o nosso maior implicando uma escuta atenta e séria. Nessa
recurso, dado que nós, seres humanos, estamos perspectiva, a integração étnica, racial e social
vocacionados para uma forma de vida em comum, deve ser encorajada nas escolas de um mundo
cuja vitalidade depende das forças e contributos que é cada vez mais diverso. Esse aspecto,
dos indivíduos”. 29 realçado nas propostas atuais da educação
Defendendo uma concepção de progressiva, revela um compromisso muito claro
democracia em sentido forte, a educação com a justiça social e o pluralismo através da
progressiva, de hoje, realça a importância das educação. A comunicação deve ser incentivada,
escolas se constituirem como comunidades no espírito de Dewey, não significando com
de investigação, aprendizagem e sentido. As isso que os conflitos devem ser evitados ou que
escolas, e em especial as escolas públicas, devem se devem procurar falsos consensos, mas, sim,
encorajar a dedicação pessoal ao bem comum, ensinar os estudantes a lidar com os conflitos e a
favorecendo o capital social, entendido como a solucioná-los, tendo em conta a perspectiva dos
capacidade para cooperar em benefício mútuo. outros e sem minimizar ou anular as diferenças.
Consequentemente, de acordo com as
��� - “diversity of outlook and thought”. perspectivas progressivas atuais, o papel da
29 - “as our richest resource since we humans are inclined toward a
communal mode of life which depends for its vitality on the strengths and educação não consiste apenas em preparar os
contributions of individuals”. estudantes para o mercado de trabalho, devendo,

796 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
essencialmente, focar-se na preparação de da educação progressiva”30, ignorando o seu
cidadãos críticos e comprometidos no sentido de potencial e requisitos e preferindo assimilá-la a
preservar, melhorar e aprofundar a democracia, uma perspectiva romântica e economicamente
através de um exigente e envolvente processo inviável (SHAKER; HEILMAN, 2008).
de ensino-aprendizagem. Por esse motivo, A educação progressiva é uma abordagem
subscrevemos a afirmação de Norris (2004, educativa exigente, que requer professores muito
p.17), para quem “não foi a educação competentes e empenhados, comportando custos
progressiva que não esteve à altura das pessoas, pessoais e econômicos, mas que pode ser bem
mas estas que não souberam estar à altura sucedida. Na prática, está a dar os seus frutos
em numerosas escolas nos EUA, apesar de uma
30- “[…] progressive education has not failed the people but that, in fact, conjuntura adversa, contribuindo para uma
people have failed progressive education”. revitalização da vida democrática.

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Recebido em: 08.06.2013

Aprovado em:11.09.2013

Maria Luísa Frazão Rodrigues Branco é doutora em Educação pela Universidade da Beira Interior, Portugal, e professora
auxiliar do Departamento de Psicologia e Educação da mesma universidade. Investigadora do Instituto de Filosofia/Gabinete
de Filosofia da Educação da Universidade do Porto. As suas pesquisas têm-se centrado nas áreas da Teoria da Educação,
Pensamento Pedagógico Contemporâneo e Educação para uma Cidadania Democrática.

798 Maria Luísa Frazão Rodrigues BRANCO. A educação progressiva na atualidade: o legado de John Dewey
Condição humana e formação virtuosa da vontade:
profundezas do reconhecimento em Honneth e RousseauI

Claudio Almir DalboscoII

Resumo

Parte significativa do debate filosófico e pedagógico


contemporâneo considera a teoria do reconhecimento como
postura intelectual promissora para tratar de problemas
filosóficos e educacionais. Nesse sentido, não se pode pensar
uma ordem social justa sem o processo educacional formativo
do ser humano amparado por estruturas sociais e institucionais
de reconhecimento. O filósofo social frankfurtiano Axel Honneth
tem se destacado, na atualidade, por apresentar uma teoria
do reconhecimento com forte inspiração hegeliana. Contudo,
em trabalho recente, intitulado Untiefen der Anerkennung
(Profundezas do reconhecimento), publicado na Alemanha
em 2012, inspirando-se em Frederick Neuhouser, considera
Rousseau, e não mais Hegel, o pioneiro fundador da teoria do
reconhecimento. O presente ensaio, contrapondo-se criticamente
à interpretação de Honneth, possui duplo propósito: por um lado,
mostrar que, se Honneth considera acertadamente Rousseau
como teórico do reconhecimento, também deveria tomá-lo
como pioneiro da noção de liberdade social; por outro, justificar
que a profunda imbricação existente no pensamento do filósofo
genebrino entre teoria do reconhecimento e educação do amor
próprio só se deixa esclarecer com base em uma teoria da
formação virtuosa da vontade. De outra parte, ao argumentar
a favor da formação virtuosa da vontade como forma de evitar
a extensão do amor próprio pervertido, Rousseau, além de
tocar em um problema de fundo da condição social humana,
I- Este ensaio é parte de meu pós-doutorado, também lança as bases para uma avaliação crítica do cenário
realizado no CEBRAP/SP, durante o segundo
pedagógico contemporâneo, o qual reduz perigosamente
semestre de 2013, mediante supervisão dos
professores Dr. Marcos Nobre (Unicamp) e Dr. questões educacionais amplas e complexas simplesmente a
Ricardo Terra (USP), aos quais agradeço pela problemas de aprendizagem.
recepção e liberdade para realização do trabalho,
bem como pelo debate proporcionado. Também
sou grato ao CNPq pela Bolsa Produtividade Palavras-chave
em Pesquisa e à Universidade de Passo Fundo
(UPF/RS) por ter me concedido total liberação de
minhas atividades institucionais, sem a qual não Amor próprio — Reconhecimento — Formação — Vontade —
poderia ter realizado o trabalho. Virtude.
II- Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo,
RS, Brasil.
Contato: vcdalbosco@hotmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625 799
The human condition and the virtuous education of the
will: the depths of recognition in Honneth and Rousseau I

Claudio Almir DalboscoII

Abstract

A significant part of the contemporary philosophical and
educational discussion considers the theory of recognition as a
promising intellectual approach to philosophical and educational
problems. In this sense, one cannot think about a just social order
without the educational process of the human being supported
by social and institutional structures of recognition. At present,
the Frankfurter social philosopher Axel Honneth has stood out
for presenting a theory of recognition with a strong Hegelian
inspiration. However, in a recent work entitled Untiefen der
Anerkennung (Depths of recognition), published in Germany in
2012, drawing inspiration from Frederik Neuhouser, Honneth
considers Rousseau, not Hegel anymore, the pioneer of the theory
of recognition. Critically opposing Honneth’s interpretation, this
essay has a double purpose: on the one hand, to show that, as
Honneth rightly considers Rousseau a theorist of recognition,
he should also regard him as a pioneer of the concept of social
freedom; and, on the other hand, to justify that the profound
intertwining present in the thought of the Genevan philosopher
between the theory of recognition and the education of self-love
can only be clarified on the basis of a theory of the virtuous
education of the will. Moreover, when arguing for the virtuous
education of the will in order to avoid the extension of perverted
self-love, Rousseau not only addresses a fundamental problem
of the human social condition, but also lays the foundations for
I- This essay is part of my postdoctoral
studies, performed at CEBRAP / SP during the a critical evaluation of the contemporary educational scenario.
second half of 2013, under the supervision Such scenario dangerously reduces large and complex educational
of Professors Marcos Nobre (Unicamp)
and Ricardo Terra (USP), whom I thank for
issues to mere learning problems.
welcoming me, for the freedom to perform this
work as well as for the debate provided. I would Keywords
also like to acknowledge Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq - National Council for Scientific and Self-love — Recognition — Education — Will — Virtue.
Technological Development) for the research
productivity fellowship and Universidade de
Passo Fundo (UPF/RS) for my leave from work
at the university, without which I could not have
performed this study.
II- Universidade de Passo Fundo, Passo
Fundo, RS, Brasil.
Contact: vcdalbosco@hotmail.com

800 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014091625 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014.
Introdução Axel Honneth, penso que é possível reconhecer
a fecundidade da contribuição de Frederick
Investigações recentes procuram mostrar Neuhouser sem secundarizar a interpretação
que é Rousseau e não Hegel o fundador da te- de Ernst Cassirer. Como procuro mostrar na
oria do reconhecimento. Entre elas, destacam- parte final deste ensaio, esses dois autores
-se Pathologien der Selbstliebe (Patologias do não se excluem, mas sim se complementam
amor próprio), de Frederick Neuhouser (2012), e mutuamente, pois a teoria da educabilidade
Untiefen der Anerkennung (Profundezas1 do re- do amor próprio, como forma consequente
conhecimento), de Axel Honneth (2012a). Nesse de enfrentar os perigos que lhe são inerentes,
seu pequeno ensaio, Axel Honneth não esconde pressupõe a formação da vontade, cujos traços
o quanto se deixa influenciar profundamente gerais Rousseau esboça no Émile como teoria
pelo amplo e detalhado livro de Neuhouser. As da virtude.
pesquisas do filósofo americano permitem, em O núcleo do problema da vontade em
primeiro lugar, segundo Honneth, localizar a Rousseau, considerado acertadamente por
unidade do pensamento de Rousseau não mais Honneth como obscuro, deixa-se esclarecer
na autodeterminação livre da vontade, como melhor – e esta é minha hipótese – quando
acreditou outrora Ernst Cassirer (1975), mas compreendido como um problema de formação
sim na teoria do amor próprio. Em segundo lu- (Bildungsproblem). Ou seja, Rousseau estava
gar, aprofundando a interpretação de Nicholas certo de que a vontade humana não se explica
Dent, Neuhouser conclui que a tese de que o por si mesma e nem deveria ser tomada como
sujeito humano deve sua capacidade de ação um conceito abstrato. No entanto, como não é
social ao reconhecimento de outros sujeitos absolutamente boa3 e como é a força movente
pertence originariamente não ao pensamento do amor próprio, ela precisa ser formada
de Hegel, mas sim ao de Rousseau. A “depen- virtuosamente para que possa impulsionar as
dência constitutiva ao outro” formaria, nesse forças construtivas do amor próprio e, com
contexto, o elo entre os resultados negativos isso, dominar o ímpeto destrutivo das paixões
da crítica à cultura e a versão positiva presente humanas. Ora, se o problema se põe realmente
na ideia de um contrato social entre cidadãos dessa maneira, então o Émile ocupa um lugar de
e cidadãs. Sendo assim, conclui Honneth, é a maior destaque na arquitetônica do pensamento
teoria do reconhecimento sustentada pela teo- rousseauniano do que aquele concebido tanto
ria do amor próprio – e não mais a autodeter- por Honneth quanto pelo próprio Cassirer.
minação da vontade – que constitui a unidade De qualquer modo, o fato de Axel
sistemática das principais obras de Rousseau Honneth assumir essa nova interpretação de
(HONNETH, 2012a, p. 48).2 Neuhouser traz certamente implicações decisivas
Desse modo, a alta consideração para sua própria teoria da justiça, cuja última
que Honneth tem sobre a interpretação de versão encontra-se formulada em seu extenso
Neuhouser ocorre nitidamente em detrimento livro Das Recht der Freiheit. Grundriss einer
da interpretação de Cassirer, pressupondo, em demokratischen Sittlichkeit (Direito à liberdade.
última instância, a incompatibilidade entre Esboço de uma eticidade democrática), publicado
a tese da autodeterminação livre da vontade na Alemanha em 2011. Segundo Honneth, as
e a teoria do amor próprio. Contrariamente a teorias modernas da justiça fazem repousar sua
justificação na ideia da liberdade individual,
1- A tradução mais usual da expressão “Untiefen” seria abismos. Contudo,
opto por profundezas porque dá mais a ideia de profundidade no sentido assumindo tal ideia três versões diferentes, as
de inesgotável, e não enquanto algo sem fundo, como a expressão abismo
poderia dar a entender. 3- Rousseau foi um dos autores entre os modernos que melhor
2- Ver também a resenha crítica de Honneth sobre o livro de Neuhouser reconheceu a fraqueza e a vulnerabilidade da condição humana, sabendo
(HONNETH, 2012b). derivar dela também o problema da “vontade fraca”.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. 801


quais influenciam, cada uma a seu modo, as simultaneamente, pensar o quanto tal ideia
próprias teorias contemporâneas e atuais de pode revelar-se ainda atual como referência
justiça: a liberdade negativa, formulada por crítica à redução da educação a uma “questão
Hobbes; a liberdade reflexiva, esboçada por de aprendizagem”, que predomina no cenário
Rousseau e sistematizada diferentemente por pedagógico contemporâneo.
Kant e Herder; e, por último, a liberdade social,
pensada por Hegel. Profundezas do reconhecimento
Não é minha pretensão, neste breve ensaio,
seguir pormenorizadamente a exposição que No ensaio Untiefen der Anerkennung,
Honneth faz, na primeira parte de seu referido Honneth, seguindo de perto as pegadas de
livro, de cada uma dessas três grandes concepções Neuhouser4, afirma que, com a teoria do amor
modernas de liberdade. Pretendo deter-me, isto próprio, Rousseau transformou-se no fundador
sim, especificamente na implicação que tem da ampla tradição da teoria do reconhecimento.
para sua própria posição o fato de ter assumido Nesse sentido, o conceito de amor próprio serve
integralmente a nova interpretação de Neuhouser. não só para sua crítica à sociedade e à cultura,
Se Honneth está de acordo com Neuhouser mas também para a fundamentação de sua
sobre o fato de que é Rousseau e não mais teoria do reconhecimento intersubjetivo, a qual
Hegel o fundador da teoria do reconhecimento, assume dupla variante, uma negativa e outra
então ele deve ser levado, por coerência de positiva. A variante negativa consiste na busca
sua adesão àquela interpretação, a ver em pela estima pública e pelo reconhecimento
Rousseau não mais só o fundador da liberdade social, mas sempre tomando os outros como seres
reflexiva – a qual Kant tomará como ponto de inferiores. Ou seja, essa forma de reconhecimento
partida para justificar sua ideia de liberdade é negativa porque alimenta o incessante
como autodeterminação (Selbstbestimmung) desejo humano de sempre buscar uma posição
e autolegislação (Selbstgesetzgebung) –, mas, superior em relação aos seus semelhantes. Dela
sobretudo, o fundador da própria liberdade social. brota o espírito de concorrência desenfreado,
Na sequência, desenvolvo minha movido pela vaidade5, soberba (petulância) e
argumentação em três momentos. No primeiro, ódio. Essa variante predomina nos escritos de
reconstruo em linhas gerais a releitura que crítica à cultura e à sociedade, especialmente no
Honneth faz, inspirando-se em Neuhouser, do Segundo Discurso. A segunda variante, por sua
pensamento de Rousseau no referido ensaio, vez, gira em torno da noção de reconhecimento
“Untiefen der Anerkennung”. No segundo recíproco. Ela é positiva, nesse sentido, porque,
momento, faço um ingresso pontual na primeira além de se opor ao desejo de superioridade,
parte de sua grande obra, Das Recht der Freiheit, fomenta o respeito recíproco entre iguais. Ela é
visando a resumir a breve interpretação que ele predominante no Émile, voltando-se aí contra
oferece do pensamento de Rousseau. Por fim, a variante negativa com o intuito de preparar
no terceiro momento, argumento a favor da o aluno fictício para o domínio de seu amor
noção de liberdade social no pensamento de próprio inflamado.
Rousseau, buscando mostrar, ao mesmo tempo,
em que sentido a educabilidade do amor próprio
só se deixa compreender adequadamente 4- No ensaio “Aspiração humana por reconhecimento e educação do
como teoria da formação virtuosa da vontade. amor próprio em Jean-Jacques Rousseau” (DALBOSCO, 2011a, p. 481-
496), ocupo-me em detalhes da interpretação que Neuhouser faz do amor
Essa contraposição crítica à interpretação de próprio em Rousseau.
Honneth serve-me a uma dupla finalidade: 5- N. J. H. Dent, por exemplo, considera a vaidade como um dos
sentimentos mais destrutivos do amor próprio, porque ela resume o desejo
esclarecer o sentido genuinamente formativo humano incessante de se comparar com o outro visando a ser superior a
da ideia de educação em Rousseau e, ele e sentir-se agraciado por tal superioridade (DENT, 1996, p. 208-209).

802 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Para mostrar a centralidade da teoria suas mãos por influência de Neuhouser. Nesse
do amor próprio no pensamento de Rousseau, contexto, Honneth retoma esquematicamente
Honneth divide seu breve e denso ensaio em três a distinção entre amor de si e amor próprio,
partes. Na primeira, segue o desenvolvimento vendo no primeiro, em comum acordo com
teórico de Rousseau até o ponto em que o Neuhouser e o próprio Rousseau, o sentimento
genebrino põe a exigência da forma social que o ser humano desenvolve visando a sua
igualitária de reconhecimento recíproco como autopreservação. Nesse sentido, o amor de si é
alternativa aos aspectos danosos do amor um sentimento pré-social, que coloca o homem
próprio. Na segunda parte, pretende mostrar natural em estado de isolamento e de quase
brevemente a enorme influência que a dupla total independência. Enquanto isso, o amor
variante do reconhecimento social exerceu próprio refere-se ao sentimento social, pois
no discurso filosófico da modernidade. Nesse nasce com a sociedade e impele o ser humano a
contexto, escolhe as noções de história da comparar-se permanentemente com os outros,
filosofia de Kant como manifestação prototípica fazendo-o depender do julgamento daqueles.
da primeira variante, uma vez que, segundo Enquanto o amor de si possui valor absoluto, o
ele, Kant teria mostrado claramente em tais amor próprio possui valor relativo.
noções como a profunda necessidade humana Como sentimento eminentemente social,
de estima social transforma-se perigosamente o amor próprio pode assumir uma variante
na força motriz do progresso social e cultural.6 altamente perigosa e destrutiva, sobretudo
A variante positiva será desenvolvida por quando a busca humana incessante pela
Fichte e Hegel na direção de uma teoria do estima pública for acompanhada pelo desejo de
reconhecimento do direito e da eticidade. querer ser a qualquer custo superior aos seus
Por fim, na última parte do ensaio, Honneth semelhantes. Ora, é justamente nesse contexto
reconstrói o ceticismo crescente manifestado, que o amor próprio transforma-se nas paixões
segundo ele, pelo próprio Rousseau em relação à odientas e raivosas, conduzindo o ser humano ao
dependência ao outro que está inerente ao amor orgulho, à vaidade e à petulância (prepotência).
próprio. O filósofo genebrino teria retomado, De outra parte, a força motriz do amor próprio
segundo ele, sobretudo em seus escritos tardios, pode assumir variante construtiva, culminando
o argumento, com o qual também já havia se na ideia do reconhecimento recíproco, que é
deparado no Segundo Discurso, de que talvez a base da cidadania republicana constituída
fosse mais aconselhável à paz da alma humana democraticamente por seres livres e iguais. Esse
tornar-se completamente independente da é, em síntese, o núcleo da dupla variante que
consideração e do reconhecimento do outro constitui o amor próprio e que Honneth toma de
(HONNETH, 2012a, p. 49). empréstimo da hermenêutica competente que
Não seria menos importante seguir de Frederick Neuhouser faz do texto de Rousseau.
perto aqui o detalhamento do argumento de Com base nisso, Honneth volta-se
Honneth nas três partes do referido ensaio, primeiramente à variante negativa e analisa o
considerando a riqueza de suas ideias. Contudo, modo como ela alimenta a crítica rousseauniana
para meus propósitos, basta reconstruir agora o à cultura. A crítica ao teatro serve-lhe como
núcleo da primeira parte, uma vez que é nela que modelo paradigmático, uma vez que, ao se
aparecem delineados os traços gerais da teoria voltar contra o projeto de implantação do
rousseauniana do reconhecimento que chega a teatro em Genebra, Rousseau teria arrolado
6 - Embora Honneth não aprofunde esse aspecto, é com a noção uma gama diversificada de argumentos para
de “sociabilidade insociável” (ungesellige Geselligkeit) que Kant traz mostrar em que sentido o palco simboliza o
contribuição importante à filosofia social e, especificamente, ao pensamento
educacional. Ocupei-me desse tema no quarto capítulo de meu pequeno refinamento do amor próprio pervertido. Com
livro Kant & a educação (2011b). o teatro, os cidadãos e cidadãs aprendem a

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. 803


troca de papéis, incorporando de tal forma incontrolável da conduta de distinção
suas características que terminam por ficar (HONNETH, 2012a, , p. 52).
convencidos da verdade de seus novos papéis.
Além disso, os atores teriam a capacidade Em resumo, como atestam então o
de infectar o público com o vírus do simples Segundo Discurso e a Carta a D’Alambert,
parecer, transformando-o enganosamente na Rousseau deixou-se orientar, em sua ampla
esfera do ser. Como atividade cultural central crítica à cultura, pela variante negativa do amor
de sua época, o teatro aguçaria, então, segundo próprio: a busca incontrolável por superioridade
Rousseau, o aspecto destrutivo do amor próprio, e a obsessão pela distinção em relação aos seus
fomentando a lógica do parecer em detrimento semelhantes são duas tendências que formam
do ser. Sendo assim, a cultura teatral colocar- a dinâmica destrutiva do desenvolvimento
se-ia na contramão da comunidade republicana, cultural humano.
alicerçada no cumprimento do dever e nos Contudo, no Émile, a variante positiva
valores de sinceridade e orgulho da cidadania assume sua dianteira, mostrando com isso a
(HONNETH, 2012a, p. 49-50). insatisfação do filósofo em relação ao aspecto
Contudo, segundo Honneth, Rousseau já prejudicial e destrutivo do amor próprio.
havia elaborado, dois anos antes, no Segundo Honneth reconhece que não é tão fácil assim
Discurso, essa tendência cultural de afetação para Rousseau provocar a passagem do
do aspecto destrutivo do amor próprio. Em tal aspecto negativo para o positivo do amor
escrito, já se encontra empregado o conceito próprio. Segundo ele, para que tal passagem
de amor próprio para designar, como “segunda pudesse ser efetuada com força e mais clareza,
natureza”, esse modo de relacionamento Rousseau deveria ter acentuado as condições
humano surgido com a sociabilidade e que mediante as quais a necessidade patológica
põe a busca por estima pública como base de do ser humano de mostrar sua superioridade
constituição do próprio laço social. Recorrendo em relação aos seus semelhantes ficasse
à Observação XV do Segundo Discurso, na qual suprimida pelo autojulgamento mediado
Rousseau estabelece a famosa distinção entre intersubjetivamente (HONNETH, 2012a, p. 52-
amor de si e amor próprio, Honneth acentua 53). Em outros termos, a variante positiva do
a forma negativa que o amor próprio assume amor próprio toma efetivamente a dianteira em
aí, como “fonte contínua do impulso, para o passagens do Émile onde fica estabelecido o
[ser humano] poder provar-se como superior respeito recíproco como vetor da sociabilidade
em relação ao seu semelhante” (HONNETH, humana. É nessas passagens que Rousseau
2012a, p. 51). Ora, é justamente nessa procura traça o ideal formativo do Emílio, mostrando
incessante por superioridade em relação aos seus o quanto a simplicidade e a moderação
semelhantes que Rousseau localiza, no Segundo são decisivos para sua formação virtuosa,
Discurso, a raiz de todas as patologias sociais voltando-se contra a vaidade e a soberba.
de seu tempo. Honneth resume lapidarmente o Testemunhos da variante positiva do
ponto em questão: amor próprio são, então, exatamente aquelas
passagens do Émile nas quais Rousseau procura
O que ontem ainda podia valer em rela- enfrentar o inevitável problema da educação
ção à riqueza, ao poder e à beleza como do amor próprio de seu aluno fictício. Para
sinal de uma superioridade individual, Honneth, o núcleo dessa tarefa educativa
deve hoje ser novamente sobrepujado em repousa na proposta feita por Rousseau de
razão da ampliação social, de tal modo “ampliação” do amor próprio até a virtude.
que domina em todos os campos de con- Assim argumenta ele: “Falar sobre a ampliação
corrência uma tendência de elevação do amor próprio significa então precisamente

804 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
familiarizar os sujeitos com a concepção de O importante, para meu ponto, é que
que eles precisam do reconhecimento social Honneth destaca o papel indispensável que a
recíproco e, por isso, devem renunciar ao espírito variante positiva desempenha no pensamento
forte de concorrência que visa à superioridade” de Rousseau, formando o alicerce de sua
(HONNETH, 2012a, p. 53). teoria educacional. Sob esse aspecto, vale a
Portanto, mostrando ao seu aluno pena traduzir na integra uma passagem de seu
fictício a importância da dependência recíproca, referido ensaio, que resume bem seu argumento:
Rousseau queria evitar que seu amor próprio
fosse infectado pelo vírus da soberba e do desejo Rousseau está sendo muito consequente
de superioridade (vontade de dominação). quando expõe, em sua obra educacional,
Com isso, encontrou a forma temperada do os critérios pedagógicos que disponibilizam
reconhecimento social na expressão “respeito aos adultos, desde sua mais tenra idade, a
entre iguais”, pondo-a como alternativa consciência sobre a igualdade social. Pois,
à tendência destrutiva do amor próprio. somente quando o indivíduo aprende a se
Desse modo, pela interpretação de Honneth, considerar como igual entre iguais, é que
podemos ver que “dependência recíproca” e ele pode se compreender simultaneamente
“respeito entre iguais” constituem o núcleo da como colaborador daquele “outro generali-
educabilidade do amor próprio, pois são esses zado”, de cuja formação do juízo ele próprio
dois aspectos que, segundo Rousseau, impedem depende para a satisfação de seu amor pró-
que a variante negativa do amor próprio assuma prio (HONNETH, 2012a, p. 54).
a dianteira na formação do aluno fictício.
Ora, segundo Honneth, se compreendermos Ou seja, por ser considerada como valor
desse modo o tratamento pedagógico oferecido insubstituível, a igualdade social precisa fazer
por Rousseau ao amor próprio no Émile, não parte do mundo do ser humano já em sua
será tão difícil entender os motivos que fazem primeira infância. Mais uma vez, torna-se claro
o filósofo genebrino aparecer em geral, na o quanto é importante, para a formação do
atualidade, como teórico do reconhecimento. aluno fictício, a consciência sobre a dependência
Além da vontade de dominação (busca obsessiva social e o respeito recíproco entre iguais, pois
pela posição superior em relação aos demais), o são esses dois aspectos que propiciam uma
amor próprio é constituído pela necessidade de satisfação positiva do amor próprio e, com isso,
“se fazer valer como alguém aos olhos de seus da realização pessoal do próprio sujeito.
parceiros sociais e poder desfrutar com isso uma Em conclusão, a reconstrução acima nos
forma de valor social” (HONNETH, 2012a p. 53). dá uma ideia geral do quanto a teoria da ambi-
Não há dúvida que Honneth toca aqui no aspecto guidade do amor próprio, mediada pela interpre-
crucial do pensamento de Rousseau e que está no tação de Neuhouser, foi capaz de alterar significa-
centro de sua concepção de justiça e dignidade tivamente a posição de Honneth, a tal ponto que
humana. Dent, grande especialista em Rousseau o levou a considerar, sem maiores dificuldades,
no âmbito da pesquisa anglo-saxônica, sintetiza Rousseau como fundador da teoria do reconheci-
isso de maneira clara por meio do conceito de mento. Muito longe estamos aqui, então, daquele
“personalidade moral”. Assim afirma ele: “A Rousseau simplesmente enquadrado na formula-
‘personalidade moral’, no entender de Rousseau, ção da liberdade reflexiva e como puro pioneiro
é a necessidade humana fundamental para cada intelectual da distinção entre heteronomia e au-
pessoa de ser reconhecida e respeitada por outros tonomia. Reconstruir brevemente como Honneth
como alguém que importa e que tem valor e formula essa sua apreciação convencional do
dignidade sem depender de ninguém” (DENT, pensamento do genebrino em seu livro O direito à
1996, p. 149). liberdade é o objetivo do tópico seguinte.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. 805


Rousseau como fundador da poderoso na modernidade porque foi o único
liberdade reflexiva valor ético capaz de vincular sistematicamente
o si mesmo (Selbst/Self) e a ordem social. Sendo
No prefácio de O direito à liberdade, Axel assim, do mesmo modo como a liberdade
Honneth revela que, embora o trabalho nessa individual oferece representações da ideia
obra tenha lhe custado cinco longos anos, ao do bem ao indivíduo, ela também oferece
terminá-la, teve o impulso, percebendo sua indicações para uma ordem social legítima
incompletude, de querer iniciá-la novamente. (HONNETH, 2012a, p. 36). Fica posta então,
De qualquer forma, trata-se de um trabalho desse modo, a exigência do nexo estreito entre
extenso, de muita coesão e profundidade liberdade individual e justiça social e, mais
argumentativa, representando sem dúvida um precisamente, a exigência de que qualquer
estágio avançado na maturidade intelectual do representação de justiça precisa ser remetida à
autor. Sem correr o risco de cair no pedantismo, autodeterminação individual.
esbanja erudição, passando em revista várias Se a ideia de justiça depende do
tradições filosóficas, políticas e jurídicas, tanto esclarecimento da noção de liberdade individual,
modernas como contemporâneas. então é precisamente sua diferenciação tripartite
A consideração a Rousseau ocupa um na modernidade que deve ser investigada. Ora,
lugar infinitamente pequeno na exposição de é na pesquisa dos três modelos que constituem
Honneth, considerando, por um lado, a enorme a liberdade individual que Honneth se volta
extensão da obra e, por outro, o papel destacado ao pensamento de Rousseau. Antes disso, ele
que o pensamento do genebrino desempenha oferece uma exposição resumida de Hobbes,
no cenário filosófico da modernidade. Não tomando-o como exemplo do modelo negativo
seria nada descabido imaginar, caso Honneth de liberdade. Hobbes teria oferecido, aos seus
desejasse realmente reescrever essa sua grande olhos, um modelo negativo de liberdade porque
obra, não só o lugar de maior destaque que daria a concebeu como independência das coações
a Rousseau, como também o modo diferente externas, justificando com base nisso o sistema
como abordaria o pensamento do genebrino. social do egoísmo.
De qualquer sorte, Rousseau é tratado aí como No que diz respeito à liberdade reflexiva,
pioneiro intelectual da liberdade reflexiva, sendo Rousseau é tomado como seu pioneiro
considerado, mais precisamente, como teórico intelectual, estando na origem das duas
originário da autonomia da vontade e como versões elaboradas posteriormente: liberdade
fundador da distinção entre ação heterônoma reflexiva como autolegislação (Kant) e como
e ação autônoma. Ou seja, como verdadeiro autorrealização (Herder). Para justificar essa
precursor de Kant, passa longe da noção de inserção de Rousseau na concepção reflexiva
liberdade social. Antes de reconstruir em detalhes de liberdade, Honneth toma “a profissão de fé
esse núcleo da interpretação de Honneth, preciso do vigário saboiano” como referência textual. É
inseri-la, resumidamente, nos propósitos mais nesse longo interlúdio inserido no livro quarto
amplos de sua grande obra, O direito à liberdade. do Émile que Rousseau discute dois temas
A primeira parte do livro O direito à que serão decisivos para o desenvolvimento
liberdade é dedicado à “apresentação histórica” posterior da liberdade reflexiva, principalmente
da liberdade individual. O autor compreende por para a sua versão kantiana: o tema da vontade
liberdade individual a autonomia do indivíduo, e, diretamente vinculado com ele, o da distinção
concebendo-a como valor ético dominante da entre ação heterônoma e ação autônoma.
sociedade moderna, que impregna também Esses dois temas estão sustentados pela tese,
decisivamente sua ordem institucional. O formulada textualmente em Do Contrato Social,
pensamento da autonomia tornou-se tão de que o sujeito é livre somente quando pode

806 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
determinar a si mesmo. Ou seja, de acordo que ele próprio escolheu de maneira racional e
com essa obra jurídica e política de Rousseau, livre (HONNETH, 2012a, p. 61).
vontade livre é aquela que pode dar-se a si Em síntese, Rousseau antecipa o núcleo
mesma a lei. da versão reflexiva de liberdade, na medida em
“A profissão de fé do vigário saboiano” que a faz repousar na capacidade da vontade
torna-se importante aos propósitos de Honneth dar a si mesma a lei (ideia de autolegislação). Ele
porque é aí que Rousseau abordaria, segundo formulou tal definição com base na distinção
ele, as transformações necessárias ao conceito entre vontade e desejo, fazendo resultar dela
de natureza humana para poder justificar a também a distinção entre ação heterônoma e
autonomia da vontade. Nesse sentido, seu ação autônoma. Uma vez resumido o núcleo
ponto de partida consiste em abordar a natureza da interpretação que Honneth faz de Rousseau
humana como constituída pela tensão entre em O Direito à liberdade, pretendo mostrar,
vontade e desejo, e a questão pedagógica moral na sequência, que se Rousseau, como o
decisiva, formulada no livro quarto do Émile, próprio Honneth comprovou, é o teórico do
consiste em saber como o aluno fictício pode reconhecimento, não pode ser tomado tão só
ser educado para a autodeterminação. Desse como precursor da liberdade reflexiva. Também
modo, Honneth não ignora em sua abordagem pretendo dar um passo além, mostrando que a
que o núcleo do projeto educacional dessa educabilidade do amor próprio depende, como
obra pedagógica rousseauniana repousa na modo de enfrentamento da destrutividade do
formação humana para a maioridade. Segundo amor próprio, da formação virtuosa da vontade.
ele, é nesse contexto que se põe o problema
da liberdade e da autonomia da vontade, Formação da vontade como
remetendo tal problema diretamente à distinção educação do amor próprio
entre heteronomia e autonomia.
Considerando a definição de natureza Na parte final do ensaio, pretendo
humana e o problema da determinação assinalar minha crítica ao tratamento oferecido
(autonomia) da vontade, Honneth define por Honneth a Rousseau em sua obra Das Recht
ação heterônoma como aquela que se deixa der Freiheit, baseando-me em duas ideias:
orientar pelas inclinações sensíveis. Ela não é a primeira ampara-se na identificação entre
livre porque depende das “leis do corpo”, isto aquilo que Honneth concebe como variante
é, da causalidade natural. Sem ter as forças positiva do amor próprio e a concepção
suficientes para dominar suas paixões, o ser de liberdade social que ele reconstrói do
humano não age de acordo com sua própria pensamento de Hegel; a segunda ideia refere-se
vontade, cedendo a todo o momento ao poder ao vínculo entre educabilidade do amor próprio
de suas inclinações. Estando vulnerável aos e formação virtuosa da vontade.
seus desejos, ele distancia-se da ação virtuosa. No que diz respeito à primeira ideia,
O autor define ação autônoma, por sua vez, o próprio Honneth já deixa entender, em seu
como aquela que segue o que é determinado ensaio Untiefen der Anerkennung, embora sem
pela vontade e não pelos desejos. No entanto, seguir firmemente nessa direção, que o Rousseau
entre ação e vontade se interpõe a lei, sendo a teórico do reconhecimento estaria muito
vontade livre aquela que se deixa determinar próximo da concepção de liberdade social. No
pela lei que ela dá a si mesma. Nesse entanto, para que possamos torná-la uma direção
sentido, a autonomia da vontade permite ao segura, basta acentuar a semelhança existente
sujeito que realize em sua ação aquilo que entre, por um lado, a definição oferecida por ele
originariamente era sua intenção, ou seja, o do reconhecimento recíproco no referido ensaio
e, por outro, a noção hegeliana de liberdade

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social que apresenta no livro Das Recht der nesse sentimento de humanidade, é uma das
Freiheit. A meu ver, ambas convergem na principais tarefas do livro quarto do Émile.
noção de “respeito mútuo entre iguais”, pois o Em síntese, segundo a concepção
que Rousseau concebe como variante positiva rousseauniana, não pode existir sujeito virtuoso fora
do amor próprio no Émile antecipa a própria da sociedade, uma vez que a ação virtuosa depende
exigência do “ser para si mesmo em outro”, sempre de estruturas sociais de reconhecimento.
que Hegel põe como condição da liberdade Tudo isso constitui, posteriormente, a base da
social. Desse modo, ambos, Rousseau e Hegel, filosofia social de Hegel, antecipada, no entanto,
compartilham a mesma tese de que a ação originariamente, em seus traços gerais, pela teoria
virtuosa só pode ocorrer de forma cooperativa, rousseauniana do amor próprio. Portanto, se
na vida em sociedade. No caso especificamente Honneth, ao escrever sua grande obra Das Recht
de Rousseau, são as misérias comuns e a der Freiheit, já tivesse interpretado Rousseau como
fraqueza do ser humano que o impelem à vida teórico do reconhecimento e prestado cuidadosa
social e à humanidade. Ele deixa isso claro na atenção ao aspecto construtivo do amor próprio,
seguinte passagem do livro quarto do Émile: certamente o teria concebido também como
pioneiro da concepção social de liberdade.
É a fraqueza do homem que o torna sociável; De outra parte, embora existam muitas
são nossas misérias comuns que incitam semelhanças entre Rousseau e Hegel, não posso
nossos corações à humanidade: nada lhe deixar de assinalar uma diferença importante.
deveríamos se não fôssemos homens. Todo A “Profissão de fé do vigário saboiano” não
o apego é sinal de insuficiência: se nenhum desenvolve um programa detalhado de como a
de nós tivesse necessidade de outrem, não liberdade se encarna nas instituições éticas e como
pensaria em unir-se a ninguém (ROUSSEAU, seria por elas realizada. Trata-se aí, é verdade, de
1992, p. 246).7 preparar o ingresso virtuoso do jovem Emílio na
sociedade, mas não na forma de uma exposição
Portanto, o vetor da sociabilidade das instituições sociais e da suposta eticidade a
virtuosa consiste aqui, de acordo com essa elas inerente. Rousseau é extremamente crítico
passagem, não na vontade do ser humano de em relação ao espírito cultural e científico,
querer buscar incessantemente uma posição não vendo com bons olhos o estado em que se
superior em relação aos outros, deixando-se encontravam as instituições sociais e culturais
mover pela vaidade e ambição desmesurada de sua época. Também é preciso considerar,
(variante negativa do amor próprio). Repousa nesse contexto, que, embora Rousseau não tenha
sim na condição humana frágil e vulnerável, desenvolvido obviamente uma filosofia do direito
pois é daí que brota o próprio sentimento de nos termos hegelianos, antecipou, contudo, a meu
humanidade que une todos os seres humanos ver, aspectos decisivos dela como propedêutica
entre si.8 Orientar a educação do jovem Emílio formativa da vontade do aluno fictício, colocando
na direção de uma vontade virtuosa, que repousa em sua base o exercício da virtude.
Uma passagem do livro quarto do Émile
ilustra bem essa ideia: “o exercício das virtudes
7- No original: “C’est la faiblesse de l’homme qui le rend sociable: ce
sont nos misères communes qui portent nos coeurs à l’humanité, nous ne
sociais leva ao fundo dos corações o amor à
lui devrions rien si nous n’étions pas hommens. Tout attachement est um humanidade: é fazendo o bem que nos tornamos
signe d’insuffisance: si chacun de nous n’avoit nul besoin des autres il ne bons; não conheço nenhuma prática mais
songeroit guères à s’unir à eux” (OC IV, 503).
8- Martha Nussbaum interpreta o problema na mesma direção: “Na teoria segura” (ROUSSEAU, 1992, p. 284).9 Ou seja, em
da educação de Rousseau, o aprendizado sobre a debilidade básica do ser
humano é um elemento central, pois só o reconhecimento desta debilidade 9- No original: “l’éxercice des vertus sociales porte au fond des coeurs
nos permite transformar-nos em seres sociais e, portanto, formar a l’amour de l’humanité; c’est en faisant le bien qu’on devient bon, je ne
humanidade” (NUSSBAUM, 2010, p. 60). connais point de pratique plus sure” (OC IV, 543).

808 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
outros termos, é por meio da prática da virtude importância do respeito recíproco entre iguais
que podemos cristalizar em nossos corações o por meio do longo, tenso e inesgotável processo
amor à humanidade e, com isso, tornarmo-nos educativo de seu amor próprio, o qual depende
sujeitos justos, uma vez que Rousseau considera da capacidade de determinação da vontade.
a justiça como a virtude principal. Talvez por se deixar intimidar pela obscuridade
Por fim, volto-me agora para a imbricação do conceito rousseauniano de vontade ou por ter
entre educação do amor próprio e formação moral visto nele somente a sombra kantiana projetada
da vontade. Como já afirmei antes, Honneth, por Cassirer, ignorou que foi justamente na
ao conceber desde o início a interpretação de educação virtuosa da vontade que Rousseau
Neuhouser como contrária à posição de Cassirer, pensou ter encontrado o principal antídoto à
assume a teoria do amor próprio sem dar a devida variante negativa do amor próprio.
atenção ao problema da formação virtuosa da Podemos nos perguntar agora: por que
vontade e, com isso, tangencia o aspecto nuclear a educabilidade do amor próprio depende da
do projeto educacional do Émile. Sendo assim, formação da vontade? Um ingresso pontual
não consegue extrair todas as consequências que no Émile é indispensável para esclarecer essa
a teoria da educabilidade do amor próprio possui questão. Nesse texto, como em outras obras de
para pensar uma ordem social justa. Ele incorre Rousseau, o amor próprio é concebido com um
nesse limite porque padece do mesmo pathos de dos principais sentimentos humanos, que pode
outras grandes interpretações do pensamento de inclinar-se tanto aos vícios quanto à virtude.
Rousseau que tendem a considerá-lo somente a Essa dupla direção (inclinação) constitui o
partir Do Contrato Social, não sendo capazes, núcleo da própria teoria da ambiguidade do
desse modo, de vincular os problemas jurídicos amor próprio. Contudo, por ser um sentimento,
e políticos aí contidos com o indispensável o amor próprio não pode agir por si mesmo,
problema da formação virtuosa da vontade. Elas precisando ser, nessa condição, impulsionado
ignoram, portanto, o quanto o direito e a política por outra coisa. Ora, a vontade significa
são profundamente devedoras, no pensamento exatamente esse impulso, tornando-se, desse
de Rousseau, de uma teoria da virtude. modo, a força movente do amor próprio. Quando
É bem verdade que, como vimos, Axel dirigida construtivamente, essa força torna-
Honneth não desconsidera, de modo algum, se virtude. Desse modo, a virtude nada mais é
a importância do Émile, sobretudo, porque, do que o impulso ético da vontade, fazendo o
segundo ele, inspirando-se na interpretação de amor próprio canalizar suas forças (paixões) na
Frederick Neuhouser, é nessa obra que Rousseau direção construtiva. Ou seja, quando é movido
vê na educação do amor próprio a maneira pelo amor à justiça, o amor próprio torna-se
mais eficaz de enfrentar a corrupção social e a cooperativo e solidário, deixando de ser vaidoso
barbarização da moral diagnosticadas nos escritos e petulante, enfim, egoísta.
de crítica à cultura. Honneth põe-se também na Rousseau torna isso claro em uma
direção certa quando concebe a ampliação do passagem importante do Émile, localizada quase
amor próprio até a virtude, concebendo-a como ao final dessa obra. Assim afirma ele: “A palavra
solução encontrada por Rousseau para tratar da virtude vem de força; a força é a base da virtude;
periculosidade do amor próprio. a virtude só pertence a um ser fraco por natureza
Contudo, permanece a meio caminho e forte por sua vontade; é só nisso que consiste
quando atribui somente ao reconhecimento o mérito do homem justo [...]” ( ROUSSEAU,
social recíproco a força capaz de ampliar o 1992, p. 535).10 Com isso, fica claro, então, que a
amor próprio até a virtude. Ignora, com isso,
��� - No original: “Le mot vertu vient de force; la force est la base de toute
que, na arquitetônica pedagógica de Rousseau, vertu. La vertu n’appartient qu’à un être faible par sa nature et fort par sa
o aluno fictício só adquire consciência sobre a volonté; c’est en cela que consiste le mérite de l’homme juste [...]” (OC IV, 817).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. 809


virtude (justiça) brota da ação dirigida pela força interpretação de Honneth é, nesse aspecto,
da vontade e não pelo impulso dos desejos e parcial e restritiva.
inclinações. A própria justiça, como uma virtude Cabe resumir agora, então, esquematica-
cardinal da teoria moral rousseauniana, repousa mente, em forma de conclusão, como essa dupla
na força da vontade. Podemos ver, com isso, teoria da virtude ganha forma na arquitetônica
o quanto a orientação normativa dessa força pedagógica do Émile. Enquanto a exposição da
movente torna-se decisiva, pois, se for dirigida teoria negativa da virtude ocorre nos três pri-
pela virtude (justiça), também proporcionará meiros livros, a teoria positiva ocorre nos livros
uma ampliação construtiva do amor próprio. quarto e quinto do Émile. Cada um desses dois
Portanto, o vínculo da teoria do amor próprio momentos contém muitos problemas filosóficos
com a formação virtuosa da vontade é o núcleo e pedagógicos, mostrando o quanto Rousseau
do pensamento filosófico e pedagógico de se aprofundou na compreensão da condição
Rousseau, porque serve tanto para “corrigir” a humana e na análise da sociedade de sua época
tendência pessimista de seus escritos de crítica à e, por fim, o quanto apostou na formação da
cultura quanto para oferecer a base formativo- vontade como núcleo diretivo da educabilidade
educacional necessária aos ideais normativos do amor próprio.
que sustentam a concepção antropológica, Primeiro, sobre a teoria negativa da virtude.
política e jurídica do genebrino. Não sendo ela a formação moral propriamente
Justamente nesse contexto é que se dita, serve sim como sua propedêutica, uma
deixa compreender a afirmação da “ampliação vez que tem como tarefa principal ensinar o
do amor próprio”, que Honneth considera educando fictício a evitar os vícios. A teoria
acertadamente como aspecto central da negativa da virtude, constituindo o núcleo da
contraposição à variante negativa do amor educação natural12 como educação negativa,
próprio. Assim se expressa Rousseau: assenta-se no princípio pedagógico da educação
“Estendamos o amor próprio sobre os outros pelas coisas, dependendo, nesse sentido, da arte
seres, nós o transformaremos em virtude, e não de encenação pedagógica do educador.13 Desse
há coração humano em que essa virtude não modo, o processo de reconhecimento recíproco
tenha sua raiz” (ROUSSEAU, 1992, p. 288).11 que ocorre nesse âmbito da arquitetônica
Ou seja, a ideia da ampliação do amor próprio pedagógica restringe-se consideravelmente à
implica a ruptura com sua própria perspectiva relação entre educador e educando. Rousseau faz
individualista egocêntrica, exigindo que o ser propositalmente essa restrição porque acredita
humano inclua em sua própria ação o ponto de que a fase da infância – abrangendo primeira,
vista dos outros. Mas Honneth se ateve somente segunda e terceira infância –, deve ser de quase
à ampliação do amor próprio, desconhecendo inatividade do amor próprio. Desse modo, é
que essa teoria positiva da virtude é precedida, tarefa da educação natural postergar pelo menos
na arquitetônica pedagógica do Émile, por uma até a puberdade o florescimento do amor próprio,
teoria negativa da virtude, a qual tem como coibindo com isso que sua dimensão inflamada e
meta principal a “contenção” do amor próprio venenosa assuma a dianteira na formação do si
na fase educativa inicial do aluno fictício. mesmo do educando.
Uma breve referência a essa dupla teoria da
virtude é indispensável para ver o quanto a
formação da vontade torna-se a força movente 12- Tratei sistematicamente desse tema no meu livro Educação natural
em Rousseau (DALBOSCO, 2011c).
da educabilidade do amor próprio e quanto a 13 - Ou seja, Rousseau concebe como tarefa principal do educador criar
os cenários pedagógicos adequados, levando em consideração, sobretudo
��- No original: “Etendons l’amour-propre sur les autres êtres, nous le nessa fase em que o educando se encontra, o ambiente natural, envolvendo
transformerons em vertu, et il n’y a point de coeur d’homme dans lequel passeios na floresta, caminhadas no campo e brincadeiras no escuro.
cette vertu n’ait sa racine” (ROUSSEAU, 1959-1995, p. 547). Sobre esse tema, ver a exposição oportuna de Alfred Schäfer (2002, p. 94).

810 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Em síntese, a teoria da virtude ocupa-se de seu amor próprio, Emílio percebe o quanto se
nessa fase da justificação do aspecto natural ampliam diante de si tanto a ação social quanto
e negativo da educação. Tal aspecto é natural a teia institucional que constitui a sociedade
porque o que está em jogo na educação do como um todo. O intenso desenvolvimento de
aluno fictício é a formação de noções básicas seu amor próprio, representado pela explosão de
sobre o que são suas necessidades naturais suas paixões, é acompanhado pela possibilidade
e quais são os modos mais adequados de real de ampliação da esfera pública destinada
satisfazê-las. O núcleo das relações educativas à sua ação. É justamente aí que a formação
é orientado aí pela tensão entre as necessidades virtuosa da vontade assume o papel de
da criança e os cuidados do adulto. De outra timoneiro no sentido de orientar as paixões
parte, o aspecto dessa educação é negativo e, com isso, contribuir para que predomine a
porque não se trata ainda de ampliar o amor variante construtiva do amor próprio.
próprio até a virtude, mas de contê-lo em Rousseau esboça o “programa” de
relação aos vícios. Contudo, o que em princípio formação virtuosa da vontade de maneira
aparece só como negativo nessa “contenção” do meio tortuosa, recorrendo a um conteúdo
amor próprio, converte-se, nos três primeiros assistemático, formado por teses e princípios
livros do Émile, numa dimensão positiva, pois polêmicos. Para o que interessa agora ao meu
ela está a serviço do desenvolvimento de outras ponto, cabe destacar que seu núcleo repousa no
capacidades (potencialidades) do educando, “amor à humanidade”, materializado pelo amor
transformando-se na propedêutica da posterior à justiça. Como ele próprio afirma: “o amor
formação virtuosa da vontade do aluno fictício. ao gênero humano não é outra coisa em nós
É nesse sentido que a teoria negativa da virtude senão o amor à justiça” (1992, p. 288). O amor
assume a forma de uma “física experimental”, à justiça torna-se uma virtude poderosa capaz
cuja tarefa principal consiste em fortalecer o de canalizar construtivamente a força do amor
corpo e refinar os sentidos do educando. Ora, próprio na direção do respeito recíproco entre
o fortalecimento do corpo e o refinamento dos iguais. Desse modo, vontade virtuosa é aquela
sentidos, além de constituírem a propedêutica capaz de assegurar a igualdade nas relações
da formação virtuosa da vontade, funcionam humanas e sociais, pois Rousseau está convicto
também como mecanismo poderoso de de que é pelo princípio da igualdade que se
preparação do terreno para a germinação pode assegurar a justiça na vida republicana.14
futura da consciência cidadã, indispensável ao Com o arrazoado acima, penso ter
exercício republicano democrático de iguais deixado claro, por um lado, o quanto a
entre iguais. educabilidade do amor próprio depende da
Por fim, no que diz respeito à formação formação virtuosa da vontade e, por outro, o
virtuosa da vontade, seu coração localiza-se quanto o reconhecimento recíproco entrelaça-se
no livro quarto do Émile, sendo também com a concepção de liberdade social. Sendo
complementado, em sua dimensão política, pelo assim, fica reafirmada uma dupla conclusão,
livro quinto. Há aqui uma mudança substancial já antecipada na introdução do ensaio: a
em relação à teoria negativa da virtude, pois a primeira é de que Rousseau só pôde fundar a
formação do jovem Emílio ocorre num contexto teoria do reconhecimento porque formulou
educacional ampliado, não mais restrito à embrionariamente uma concepção de liberdade
relação tripartite entre educando, educador e social. A segunda conclusão confirma a ideia de
natureza. Trata-se, na verdade, de pensar sua que as interpretações de Cassirer e Neuhouser,
formação num contexto marcado pela dupla e
14- Na atualidade, John Rawls (2012), também se deixando influenciar
significativa ampliação: do amor próprio e da fortemente pela teoria do amor próprio de Neuhouser, considera o princípio
sociedade. Na condição de pleno florescimento da igualdade como núcleo da teoria da justiça de Rousseau.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 799-812, jul./set. 2014. 811


ao contrário do que afirmou Honneth, depende de um amplo “programa” de formação
complementam-se mutuamente, pois, como da vontade, duplamente esboçado, como teoria
acabei de mostrar, a educação do amor próprio negativa e positiva da virtude.

Referências

CASSIRER, Ernst. Das Problem Jean Jacques Rousseau. Darmstadt: WBG, 1975.

DALBOSCO, Claudio Almir. Aspiração humana por reconhecimento e educação do amor próprio em Jean-Jacques Rousseau.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 3, p. 481-496, jan./dez. 2011a.

DALBOSCO, Claudio Almir. Kant & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011b.

DALBOSCO, Claudio Almir. Educação natural em Rousseau: das necessidades da criança e dos cuidados do adulto. São Paulo:
Cortez, 2011c.

DENT, Nicholas J. H. Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

HONNETH, Axel. Das Recht der Freiheit: grundriss einer demokratischen Sittlichkeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011.

HONNETH, Axel. Die Entgiftung Jean-Jacques Rousseau. Neuere Literatur zum Werk des Philosophen. Deutsche Zeitschrift für
Philosophie, v. 60, n. 4, p. 611-632, 2012b.

HONNETH, Axel. Untiefen der Anerkennung: Das sozialphilosophische Erbe Jean-Jacques Rousseau. WestEnd, Neue Zeitschrift
für Sozialforschung, v. 9, n. 1-2, p. 47-64, 2012a.

NEUHOUSER, Frederick. Pathologien der Selbstliebe: Freiheit und Anerkennung bei Rousseau. Frankfurt am Main: Suhrkamp,
2012.

NUSSBAUM, Martha. Sin fines de lucro: por qué la democracia necesita de las humanidades. Buenos Aires: Katz, 2010.

RAWLS, John. Conferências sobre a história da filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard: Bibliothèque de la Plêiade, 1959-1995. 5 tomos.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. Tradução de Sérgio Milliet.

SCHÄFER, Alfred. Jean-Jacques Rousseau: ein pädagogisches Porträt. Weinheim/Basel: Beltz Verlag, 2002.

Recebido em: 27.09.2013

Aprovado em: 07.03.2014

Claudio Almir Dalbosco é professor titular do curso de filosofia e do Programa de Pós-graduação da Universidade de Passo
Fundo (UPF/RS).

812 Claudio Almir DALBOSCO. Condição humana e formação virtuosa da vontade: profundezas do reconhecimento...
Experiência e linguagem em Walter Benjamin

Eloiza Gurgel PiresI

Resumo

Este artigo apresenta uma reflexão a respeito da teoria da linguagem


benjaminiana. Walter Benjamin, filósofo e crítico literário alemão,
nas primeiras décadas do século XX, produziu um estudo decisivo
no qual a linguagem não pode ser considerada como mero
instrumento de elaboração dos dados da realidade nem como
simples abstração, mas é pensada como campo no qual emerge
uma intrincada rede de relações entre conhecimento e experiência.
Para o filósofo, a linguagem é o médium espiritual e histórico
da experiência. O conceito de Erfahrung (experiência) atravessa
toda a sua obra: desde um texto de juventude, escrito em 1913,
intitulado Erfahrung (1933), em que o autor contesta o desinteresse
dos entusiasmos juvenis em nome da experiência dos adultos, às
teses de 1940. Esse conceito está intrinsecamente relacionado,
em seus escritos, ao pensamento de que todas as manifestações
e expressões humanas podem ser concebidas como linguagem e,
essa, por sua vez, é então pensada na sua dimensão simbólica, ao
contrário do que pretendiam os filósofos do esclarecimento quando
apontavam, como condição para o verdadeiro conhecimento,
uma racionalidade que separava o imaginário do pensamento.
Na contramão do pensamento iluminista científico, o paradigma
estético é fundamental nos escritos benjaminianos. A partir do
acolhimento do conceito na imagem, evidenciam-se novas formas
de conhecer. Nessa perspectiva, tentaremos discutir o pensamento
de Benjamin, mostrando as articulações e rupturas engendradas com
as problematizações constituídas a partir das conexões existentes
entre linguagem e experiência e sua relação com o campo educativo.

Palavras-chave

Experiência — Linguagem — Conhecimento — Walter Benjamin.

I- Universidade Estadual do Rio


de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil.
Contato: eloizagurgel@uol.com.br

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524 813
Experience and language in Walter Benjamin

Eloiza Gurgel PiresI

Abstract

This article presents a reflection on Benjamin’s theory of language.


Walter Benjamin, German philosopher and literary critic in the early
twentieth century, produced a landmark study in which language
cannot be considered a mere instrument of development of data
from reality nor a simple abstraction, but it is thought as a field in
which an intricate network of relationships between knowledge and
experience emerges. For the philosopher, language is the spiritual
and historical medium of experience. The concept of Erfahrung
(experience) permeates all his work: from a text written in 1933,
when he was young, entitled Erfahrung (1933), in which the author
questions the lack of interest in the enthusiasm of the youth in
the name of the experience of adults, to the theses of 1940. In his
writings, this concept is closely related to the thought that all human
manifestations and expressions can be regarded as language, and
language, in turn, can then be thought in its symbolic dimension,
contrary to what the philosophers of the Enlightenment intended
when they indicated, as a condition for true knowledge, a rationality
that separated the imaginary from the thought. Contrary to the
scientific Enlightenment thought, the aesthetic paradigm is essential
in Walter Benjamin’s writings. From the concept image, new ways
of knowing are evidenced. In this perspective, we seek to discuss
Benjamin’s thought showing connections and ruptures engendered
with problematizations formed from connections between language
and experience and their relation to the education field.

Keywords

Experience — Language — Knowledge — Walter Benjamin.

I- Universidade Estadual do Rio


de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil.
Contact: eloizagurgel@uol.com.br

814 http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022014041524 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014.
O colecionador de insignificâncias reconfigurações da memória; não a partir de um
lugar fixo, mas movendo-se em uma constelação
Ler o que nunca foi escrito.
Walter Benjamin
de ideias.
Benjamin propõe saltos, recortes inusitados
Na obra de Walter Benjamin, encontra-se que desfazem a distinção entre a chamada alta
um conjunto complexo de reflexões em torno de cultura e a cultura popular e quebram o tempo
variadas relações estabelecidas entre história e continuum da história oficial. Ao colocar-se
linguagem, imagem e pensamento, mas, longe a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, o
de constituírem-se como um pensamento filósofo propõe-se desconstruir a historiografia
sistemático a respeito da imagem, essas e os métodos tradicionais de pesquisa a partir
reflexões atestam uma perspectiva original e de um olhar atento sobre as transformações
incontornável acerca do olhar e da natureza históricas da percepção humana; sobre as
da imagem que atravessa o pensamento. Nessa ruínas da modernidade e os estilhaços urbanos
concepção, a imagem é um princípio dinâmico, das metrópoles; sobre os atos de barbárie que
uma potência do pensamento. se cometem em nome do progresso – os quais
Ao pensar a obra de arte e o contexto ele presenciou na iminência dos catastróficos
urbano como medium-de-reflexão, Benjamin acontecimentos europeus da Segunda Guerra.
pôs em xeque uma concepção linear de Vale lembrar que esse autor judeu alemão,
conhecimento baseada no continuum da apaixonado por Paris, foi fortemente marcado
própria história, desenvolvendo a crítica de um pelas contingências históricas que atravessaram
determinado modelo de razão e de racionalidade toda a primeira metade do século XX, o que
(SELIGMANN-SILVA, 2002, p. 8-9). refletiu não apenas no teor acentuadamente
Nessa crítica, a ciência e a filosofia são político de ensaios como Teorias do fascismo
pensadas como arte. O filósofo propõe não uma alemão (1996), escrito em 1930, e Experiência
reterritorialização dos saberes, mas, ao contrário, e pobreza (1996), escrito em 1933, mas
a sua desterritorialização, seguida de uma também no caráter provisório e descontínuo
interrupção, um gesto de descontinuidade na de trabalhos controvertidos como as Passagens
estável cronologia da história. Algo semelhante (2006), obra não concluída, escrita entre 1927-
ao que ocorre no contexto daquilo que Deleuze 1940. Em setembro de 1940, Benjamin morreu
e Guattari chamaram de labirinto rizomático. tragicamente. O filósofo cometeu suicídio –
Para os autores, a realidade constitui-se como após uma árdua jornada pelos Pirineus, quando
multiplicidade e, como tal, não está contida em tentava a travessia da França para a Espanha
nenhuma totalidade, tampouco remete a um com o propósito de fugir do nazismo.
sujeito; configura-se como rizoma – vegetal Com os cacos da história, Benjamin
que não tem uma raiz fixada em um ponto, construiu uma obra múltipla, optando por
mas possui várias ramificações –, “[...] não tem uma escrita não didática, polifônica e não
começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual linear; fragmentária e inconclusa, como foi a
ele cresce e transborda” (DELEUZE; GUATTARI, sua história.
2006, p. 32). Nesse sentido, o labirinto rizomático, Seria um equívoco tentar compreender
como metáfora do conhecimento, é algo em a obra benjaminiana pelo pensamento das
permanente construção, uma obra inacabada disciplinas; como afirma Arendt (1999). Benjamin
– aberta – que possui direções movediças, é divergia do cânone oficial na universidade
conectável, modificável. Da mesma forma, o alemã, aproximando-se da filosofia por via
conhecimento é pensado por Benjamin de modo indireta: filosofava de passagem. Estudou a
não linear; como uma paisagem urbana, a partir cultura urbana sem ser antropólogo, aventurou-
de lugares diferentes, fragmentariamente, nas -se na história da literatura sem ser historiador

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. 815


e, ao recusar a filologia, método de pesquisa simples ou simplificada: “Uma fuga é uma
tradicional da academia alemã, rechaçou espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos
também o espírito de síntese ou de sistema. eixos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 33).
Autodenominava-se um pesquisador itinerante, Ao sair dos eixos disciplinares, o
nem filósofo nem teólogo, nem linguista nem caminho é o da direção contrária à esperada.
tradutor, historiador ou poeta. Interessa a Benjamin aquilo que foi esquecido
Era um colecionador de insignificâncias: pela história, ou simplesmente ignorado pelo
cartões postais, selos, brinquedos, citações, racionalismo da modernidade: a literatura e
livros antigos, borboletas. Também trazia a arte dos surrealistas, dos simbolistas e dos
consigo algumas cadernetas de notas com decadentistas; a cultura urbana e seu cotidiano;
endereços, citações e suas observações sobre as experiências com o haxixe. Ele não parte
o cotidiano, além de escrever diários de de um lugar fixo, pois entende que a realidade
viagem que mesclavam a sua vida pessoal com é algo descontínuo. Assim sendo, ao invés de
reflexões poéticas sobre as fisionomias das passar lógica e dedutivamente de um elemento
cidades. Um exemplo dessa escrita é Diário de a outro, explicitando as conexões, mistura o
Moscou (1989), escrito entre dezembro de 1926 que se passa nas ruas com o que se passa nas
e fevereiro de 1927, por ocasião de uma viagem fábricas, nas salas de cinema e na literatura,
a Moscou e de seu romance com a atriz russa sobretudo na literatura marginal, bem como
Asja Lacis, a quem ele dedicou, em 1928, Rua na narrativa dos folhetins (MARTIN-BARBERO,
de mão única: “Esta rua chama-se Rua Asja 2003, p. 84-85). Assim é que surgem relações
Lacis, em homenagem àquela que, na qualidade inusitadas estabelecidas entre os escritos de
de engenheiro, a rasgou dentro do autor” um poeta como Baudelaire e as expressões da
(BENJAMIN, 2000). multidão urbana e dessa com as técnicas de
Benjamin era formado em literatura montagem cinematográfica.
e filosofia alemã; mesmo que em sua época Ao redefinir o conceito de verdade e
houvesse uma grande diferenciação dos recuperar a linguagem como campo para a
saberes, não havia a especialização em excesso resignificação do sujeito e da história, a obra de
tal como conhecemos hoje, principalmente no Benjamin apresenta-nos caminhos que levam a
meio acadêmico. Como herdeiro da grande um diálogo entre o conhecimento e a verdade;
tradição do romantismo alemão (os Irmãos a sensibilidade e o entendimento:
Schlegel, Novali, Hölderlin) e da filosofia
alemã em geral, são as relações entre língua/ Benjamin reivindica para as ciências
linguagem e história que lhe interessam. Seu humanas outra forma de expor a verdade,
pensamento, de acordo com Gagnebin (2010), forma que se distingue profundamente do
nasce e se constitui a partir dessa questão, e que chamamos conhecimento empírico do
não de domínios do saber específico delimitado real e, portanto, questiona os limites rígidos
em disciplinas. Em seus escritos, não se trata da racionalidade técnica, preconizando
apenas de buscar uma reflexão interdisciplinar um tipo de conhecimento que inclui as
ou uma troca entre proprietários de territórios paixões e as utopias indispensáveis à vida,
científicos, mas há a perspectiva de uma fusão sem as quais não há humanidade possível
dos saberes, sem hierarquias ou justaposições. (SOUZA, 2009, p. 187).
Percebe-se nos ensaios de Benjamin
algo semelhante ao movimento das linhas de Recorrendo a metáforas, imagens,
fuga do pensamento, devires que, segundo alegorias, aforismos e citações, o filósofo
Deleuze, podem produzir relações dinâmicas e constrói uma visão de mundo que não é,
muito complexas mesmo a partir de uma forma certamente, aquela do pensamento sistemático,

816 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


limitado a operações conclusivas. Ao contrário, ideais de progresso técnico e material. Nesse
trata-se de uma perspectiva que amplia texto, a experiência não é tomada ainda
as possibilidades da razão, movendo-se e como categoria, como ocorrerá, por exemplo,
refazendo-se nas dobras da linguagem. em seus ensaios sobre Leskov e Baudelaire. A
preocupação de Benjamin era a de ressignificar
A magia da linguagem a palavra Erfahrung, apropriada pelos adultos
conservadores, e desmistificar o sentido de
Em seus estudos a respeito do drama jugendstil (estilo de juventude), mostrando que
barroco, Benjamin descobre que, em meio aos esses termos eram utilizados como estratégia
resíduos e farrapos de um mundo em ruínas pela cultura burguesa com o objetivo de
(a Europa do século XVII), o trabalho do adequá-los ao que era conveniente ao sistema.
alegorista revela algo para além das evidências As intuições juvenis de Benjamin – inscritas
encontradas nas coisas, nas paisagens. Sob seu sob o marco do movimento da juventude e
olhar, o sentido não nasce tanto da plenitude da sob o impacto da Primeira Guerra Mundial
eternidade, mas surge da ausência dos objetos, emergem, mais tarde, em suas escolhas
ausência dita e, assim, tornada presente na epistemológicas e nos seus estudos a respeito
linguagem. A alegoria revela-se para o filósofo da modernidade, em uma visão histórica não
como uma escrita imagética com um enorme dissociada da compreensão da linguagem
poder de significação. Essa descoberta permitiu- enquanto médium; isto é, o pensar do pensar,
-lhe, simultaneamente, aprofundar a sua teoria experiência relacionada aos processos culturais
da linguagem. e sociais. Em um olhar retrospectivo ao texto de
Nas palavras de Benjamin “Todo 1913, Benjamin escreve:
conhecimento filosófico tem sua única
expressão na linguagem e não em fórmulas e Num de meus primeiros ensaios mobilizei
números” (BENJAMIN, 1971, p. 111). Entendendo todas as forças rebeldes da juventude
a linguagem como um todo aberto, o conceito contra a palavra ‘experiência’. E eis que
de experiência (Erfahrung) estará articulado agora essa palavra tornou-se um elemento
ao de conhecimento, pois para Benjamin a de sustentação em muitas de minhas
estrutura da experiência se encontra na base coisas. Apesar disso, permaneci fiel a mim
do conhecimento (MATOS, 1993). O conceito de mesmo. Pois o meu ataque cindiu a palavra
Erfahrung atravessa toda a obra benjaminiana: sem a aniquilar. O ataque penetrou até o
desde um texto de juventude intitulado âmago da coisa (BENJAMIN, 2009a, p. 21).
Erfahrung (1933), em que o autor contesta o
desinteresse dos entusiasmos juvenis em nome Atento à crescente modernização das
da experiência dos adultos, às teses de 1940. cidades, à industrialização, às vanguardas
O texto denominado Erfahrung é artísticas e ao advento da Primeira grande
escrito a partir da associação do filósofo ao Guerra, Benjamin escreve seu ensaio em um
Jugendbewegung, um movimento reformista gesto de repúdio à ordem estabelecida. Ele
educacional, da segunda década do século incorpora à juventude um espírito capaz de
XX na Alemanha, que pretendia transformar transformar a sociedade, um espírito pulsante e
radicalmente a sociedade e a cultura pela crítico, não conformado pelo desenvolvimento
ação de uma juventude esclarecida. Esse contínuo da história – leia-se, do progresso.
ensaio expressa o sentimento de insatisfação Faltaria ao “adulto que já vivenciou tudo:
e decepção do jovem pensador a respeito juventude, ideais, esperanças, mulheres”
de um modo de vida adulta, que substitui os (BENJAMIN, 2009a, p. 21) sensibilidade para a
valores éticos e espirituais em detrimento dos poesia e as artes.

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Influenciado pela carga romântica A lei do mito é a da repetição, algo que
que caracterizou o movimento da juventude, nos remete à brincadeira da criança que busca
Benjamin confere à experiência dos jovens a satisfação no fazer sempre de novo. Dessa
um estatuto diferenciado. O filósofo faz uma repetição nasce o hábito. Mas, ao contrário do
crítica à sociedade hierarquizada na qual a ideia mundo das crianças, no dos adultos a repetição
propagada pelos mais vividos, pais, pedagogos, não está sob controle dos agentes, daí a
políticos, de que a idade adulta seria a idade petrificação do cotidiano e sua mitologização.
da experiência, daqueles que já viveram tudo e O posicionamento crítico da juventude é,
possuem a sabedoria, desvaloriza a juventude na verdade, um alerta contra o empobrecimento
enquanto potencial de conhecimento e da experiência e do vazio que se forma no coti-
sensibilidade. Para Benjamin, a quantidade diano daqueles que se consideram mais vividos.
das vivências não determina a qualidade das É também uma forma de ação recordatória, re-
experiências, por isso o filósofo fará uma troativa, que busca retomar por intermédio da
distinção entre vivência e experiência, sem memória as potencialidades do passado. O texto
excluir a possibilidade do erro: Erfahrung constitui esse primeiro momento no
qual o filósofo se contrapõe ao conformismo e
Cada uma de nossas experiências pos- à indiferença que caracterizaria a idade adulta
sui efetivamente conteúdo. Nós mesmos em relação aos descaminhos da história, a toda
conferimos-lhe conteúdo a partir do nosso sorte de catástrofes que esse tipo de conduta
espírito. – A pessoa irrefletida acomoda- permitiu realizar.
-se no erro. ‘Nunca encontrarás a verdade’, O filósofo encontrará em Kant os pressu-
brada ela àquele que busca e pesquisa, ‘eu postos para a formulação de um conceito de ex-
já vivenciei isso tudo’. Para o pesquisador, periência total, o qual alude diretamente à ideia
contudo, o erro é apenas um novo alen- de verdade que, sob o prisma da filosofia benja-
to para a busca da verdade (Espinosa). A miniana, é entendida como a não intencionali-
experiência é carente de sentido e espírito dade do ser; algo indefinido, indeterminado que
apenas para aquele já desprovido de espíri- preexistiria – como foi exposto no prefácio do
to (BENJAMIN, 2009b, p. 23). Drama barroco alemão – a toda atividade cons-
titutiva do intelecto. A lacônica frase com que
Os adultos, para Benjamin, gabam-se de Benjamin finaliza seu ensaio Sobre o programa
sua experiência, a qual é esvaziada de sentido de uma filosofia futura (1917, p. 111), “a experi-
quando, segundo o filósofo, restringe-se à mera ência é a multiplicidade unitária e contínua do
vivência individual (Erlebnis), em uma sucessão conhecimento”, exprime em poucas palavras a
interminável do mesmo, em um cotidiano sua proposta para um programa de investigação
petrificado. O vazio dessa vivência individual da experiência e do conhecimento, a partir do
é engendrado por uma ação que se limita a si tratamento dado por Kant aos mesmos concei-
própria; a qual não faz outra coisa senão repetir a tos em seu sistema filosófico.
história e reificar a ordem. Ela tende, na verdade, A meta de Benjamin é preservar e
ao apagamento da experiência que a precedeu. concluir o espírito do próprio sistema kantiano
De acordo com Giorgio Agamben (2008), essa no estabelecimento de outra filosofia (não
expropriação da experiência já estava implícita reduzida a mera teoria do conhecimento),
no projeto fundamental da ciência moderna, o baseada fundamentalmente na possibilidade
qual configurou o “tempo homogêneo e vazio”. de realização de uma experiência pura,
Na tranquila cronologia da história, a linguagem total e contínua. Entre as várias diretrizes
perde então a sua dimensão expressiva e reforça mencionadas em seu artigo, destacam-se duas de
a mitologização do cotidiano. fundamental importância: a) recuperar o legado

818 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


kantiano, seu sistema, extraindo e atualizando o objeto na tentativa de apreendê-lo. Mas
(por descarte, assimilação e modificação) a consciência chega tarde demais. A busca
as noções que poderiam fundamentar um de uma racionalidade que faça conhecer
conceito mais amplo, profundo e significativo sentindo e sentir conhecendo é uma das
de conhecimento – em vista de revalidar uma preocupações da crítica benjaminiana à
experiência metafísica latente na filosofia Razão das luzes, à Aufklärung. Não se trata,
de Kant; e b) assegurar a autonomia própria para Benjamin, de recuperar algo que nos
do conhecimento, no estabelecimento de um lembremos, tampouco da consciência que
campo de total neutralidade, fazendo com que o tomamos tarde demais. Procura-se, entre
mesmo não se restringisse apenas a uma relação ambos, produzir a situação que permita a
entre sujeito e objeto e nem sequer a uma outra coincidência do desejo e do conhecimento
espécie de relação que se desse somente entre do desejo, do presente do conhecimento e
entes metafísicos (BENJAMIN, 1971). do presente da consciência.
Por metafísico Benjamin não entende
a ciência da natureza, tal como a terminologia A hipótese de Benjamin de que o
crítica a cunhou, e sim em seu sentido pensamento religioso, via teologia, permitiria
etimológico, como toda sorte de experiências restaurar o elo existente entre arte, filosofia e
que extrapolam o natural, o racional, ou seja, política, denota a insatisfação do filósofo com
experiências suprarracionais, supranaturais – relação ao conceito de conhecimento de Kant e,
que se relacionam, por seu turno, à dimensão portanto, o de experiência que estaria reduzido
teológica (MURICY, 1999, p. 73). O esforço a fundamento do próprio conhecimento. Isso
empreendido por Benjamin, ao abordar Kant, se deve, sobretudo, ao fato de os princípios do
não foi o de demonstrar a falência de um projeto conceito de conhecimento em Kant terem sido
filosófico, mas sim o de expor os seus limites extraídos das ciências, especialmente, as físico-
diante de um conceito de experiência que, de matemáticas (BENJAMIN, 1971).
acordo com Benjamin, se daria por intermédio A experiência kantiana é, de acordo
da religião, conhecimento que se apresentaria à com Benjamin (1971, p. 101), uma “experiência
filosofia como teoria. singular temporalmente limitada demasiada-
Matos (1993) observa a esse respeito mente objetiva”. Ou seja, Kant estaria, de acor-
que, para Benjamin, o fato de Kant ignorar a do com Benjamin, preso à visão de mundo do
experiência religiosa, linguística e até mesmo a Iluminismo, na qual a experiência se reduz a um
estética não é propriamente o sinal da falência ponto zero, a um mínimo grau de significação.
de um projeto/sistema filosófico, o kantiano, Ou seja, a experiência resultaria tão somente da
mas “de quanto esse projeto [...] se ancorava na relação da consciência pura com a empírica. Em
pobreza da experiência que a época favorecia” outras palavras, uma experiência restrita, um
(MATOS, 1993, p. 132). Isso porque, com a conhecimento limitado. Para Benjamin (1971),
modernidade, a imaginação foi capturada no as limitações desse conhecimento se devem
conhecimento, a experiência transformou-se ao modo como Kant considerou a experiência
em experimento, os sujeitos – na sua incerteza, enquanto experimento; como algo meramente
heterogeneidade e imprevisibilidade – foram mecânico, previsível, mensurável.
desapropriados e, no seu lugar, surgiu um único Para Benjamin, somente na linguagem o
e novo sujeito – o eu penso cartesiano. Matos conhecimento e a experiência podem convergir.
(2006, p. 240) afirma ainda que: É exatamente na busca da essência linguística
do conceito de experiência que Benjamin tentará
Há olhares que veem sem ver. O atento olhar articular filosofia e religião, valorizando as
cartesiano – o olhar em linha reta – imobiliza experiências suprassensíveis e suprarracionais,

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ignoradas pela epistemologia moderna. Kant, de sua linguagem. É ela, e não a comunicação de
acordo com Benjamin (1971), não empreendeu conteúdos, que inscreve a natureza no mundo do
uma reflexão acerca da natureza linguística, sentido. Ao contrário da perspectiva cientificista,
ignorando, portanto, na sua sistematização, outros a linguagem nomeadora não visa à dominação
campos de conhecimento, qualitativamente da natureza (D’ANGELO, 2006, p. 12).
distintos. Ao empreender uma revisão crítica da Benjamin relaciona experiência, língua
filosofia de Kant, o filósofo permitirá integrar, e essência espiritual em geral – das coisas e
ao sistema kantiano, elementos que haviam sido dos homens. Em seu texto, a essência espiritual
excluídos pela insuficiência básica da visão de refere-se à linguística e a linguagem das coisas
mundo do esclarecimento. é imperfeita, pois a ela foi negado o princípio
Benjamin recorre ao mito bíblico da formal linguístico: o som. Em sua linguagem
criação, a partir do Gênesis, para expor as muda, a natureza comunica-se de acordo com
suas concepções sobre a linguagem. O recurso as possibilidades de uma magia atribuída à
ao mito, segundo Muricy (1999), é muito matéria. Há, portanto, uma distinção entre
significativo de um procedimento utilizado a magia imaterial, puramente espiritual da
no enfrentamento dos pressupostos teóricos linguagem humana e a magia da linguagem
daquilo que se convencionou chamar de a virada das coisas.
linguística do início do século XX, movimento Para explicar essa dimensão metafísica
que pôs no centro da reflexão filosófica a última da linguagem, o filósofo recorre à origem
palavra da linguística e das teorias semióticas, bíblica segundo a qual, no início, a palavra não
deixando de lado, por seu caráter metafísico, era destinada à comunicação entre os homens,
a reflexão sobre a natureza da linguagem. mas se constituía como revelação de um
Contrariamente às concepções da virada saber que dispensava mediações. No nome, a
linguística, a teoria da linguagem de Benjamin linguagem comunicava a si própria e de maneira
se opõe a uma perspectiva instrumentalista da absoluta. Depois do pecado original, o homem é
linguagem, não a considerando como mero condenado a usar a palavra como instrumento
meio de comunicação. O autor vai contra a de comunicação. Houve, então, a extinção
corrente hegemônica das reflexões filosóficas da linguagem adamítica, o que possibilitou o
de matriz científica, recorrendo ao que estava surgimento do verbo propriamente humano. O
diametralmente oposto a essas matrizes: a verbo divino é substituído pela proposição com
Cabala, os místicos, os românticos do círculo de a qual os homens falam sobre as coisas por meio
Iena, Friederich Schlegel e Novalis. de atos e julgamentos. Com a queda do homem
Em Sobre a linguagem em geral e do paraíso, instaura-se um divórcio entre as
sobre a linguagem humana (1992), texto palavras e as coisas. Do saber mediatizado
escrito em 1916, ao se interrogar sobre a pelas abstrações proposicionais emerge um
essência da linguagem, Benjamin irá recorrer conhecimento do mundo por meio da conversa
à teologia e à mística judaica, tornando o seu vazia ou, como o filósofo denominou, da
pensamento, aparentemente anacrônico, algo tagarelice (BENJAMIN, 1992).
surpreendentemente atual (SOUZA, 2009, p. 190). A língua nominal perde sua magia. A
Ele foge aos esquemas da linguística de Saussure perda da linguagem pura, ou o abandono do
e da filosofia analítica. Na interpretação do nome, faz surgir a necessidade de comunicar
pecado original como fenômeno linguístico, há algo exterior ao próprio nome. A palavra não é
o reconhecimento de que a linguagem humana é mais o lugar da essência espiritual, mas meio de
inseparável da dicotomia conhecimento/vida. O comunicar conteúdos, transmitir informações;
texto sugere o fim dessa dicotomia, retomando comunicar algo exterior à própria linguagem.
a essência espiritual humana; recuperando a De acordo com Benjamin, há na linguagem

820 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


algo comunicável, mas esse algo é a própria dominantes da cultura burguesa. Contudo,
linguagem, o que nela se manifesta. Assim, de Benjamin não parte de uma análise social da
acordo com o filósofo, tudo o que existe, seja da história, e sim de sua materialidade linguística,
natureza animada ou inanimada, acontecimento pois é aí que a história se revela. Quando
ou coisa, comunica, expressa a sua essência Baudelaire fala do “difuso temor das noites
espiritual. A atividade intelectual geradora de medonhas que o peito oprimem como um papel
ideias ou conceitos não é algo que se comunica que amassa” (BAUDELAIRE,1995, p. 137) ele
através da linguagem, mas na linguagem, ou está revelando uma dimensão do real a qual a
melhor, a atividade intelectual, ela própria é análise da sociologia não chega” (D’ANGELO,
linguagem. Desse ponto de vista, a linguagem 2006, p. 19).
é tomada como a expressão do pensamento, Para Benjamin, linguagem é tradução,
médium-de-reflexão. sendo que sua relação com as coisas não é
Nessa visão metafísica da linguagem há arbitrária; uma palavra não é o signo de uma
a tentativa de compreensão do mundo como coisa, não é mera convenção. Não constitui
revelação, na linguagem, de uma verdade a essência da coisa que nomeia. Mas é na
que não se expressa exclusivamente pela linguagem, enquanto médium, que se traduz
abstração conceitual, mas também por meio o mundo, ou que se torna dizível, poetizável
da experiência sensível. Além disso, com a tese e compreensível a linguagem muda das
de que “todo conhecimento filosófico tem a coisas. Essa tradução na linguagem do homem
sua única expressão na linguagem”, Benjamin da linguagem muda das coisas é o próprio
elabora um conceito de experiência que permite movimento que constitui o conhecimento,
a construção de um conhecimento capaz de essencial para se pensar todo e qualquer
alcançar não o conhecimento de Deus, mas a processo educativo. Em Benjamin, o verdadeiro
experiência de Deus. Assim, abre-se o acesso fundamento do conhecimento não é o sujeito,
a regiões que nem a filosofia de Kant, nem a empírico ou transcendental, mas a linguagem.
cultura iluminista conseguiram alcançar.
Conforme Souza (2009, p. 191), “Esta A concepção mimética da
dimensão semântica do mundo dos objetos linguagem
pode estar encarnada nas palavras da poesia”,
que podemos experimentar como um tipo Os ensaios de Benjamin a respeito
de conhecimento diferente daquele que da linguagem podem ser divididos em dois
encontramos no pensamento científico, empírico grupos: os escritos de juventude, fortemente
técnico. Sob a perspectiva benjaminiana, influenciados pela mística judaica (Da linguagem
na linguagem poética a verdade é devir (ou em geral e da linguagem do homem (1992) e A
desvio); sua forma alegórica e fragmentária tarefa do tradutor (1979)), e dois textos curtos
de expressão não constitui uma manifestação escritos depois de 1933, que pertencem à sua
de irracionalismo, mas uma forma de falar fase materialista.
do mundo. Daí o interesse por Baudelaire e Nesses dois últimos textos (Doutrina
As flores do mal, tomados como referência do semelhante (1996) e Sobre a capacidade
na crítica da modernidade, pois a experiência mimética (1970)), o conceito de mímesis é um
do poeta diante de um mundo capitalista, conceito-chave na reflexão benjaminiana. De
reificado, assume uma dimensão ética oposta à forma instigante, confere outra dimensão ao
do esteticismo a-histórico. pensamento crítico. Benjamin retoma a teoria
Logo, o ato heroico de ir contra a da mímesis de Aristóteles: a mímesis como
corrente em Baudelaire, Proust, Kafka, Brecht, um processo de aprendizagem específico do
manifesta-se como resistência aos valores ser humano (especialmente das crianças).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. 821


Em Aristóteles, o impulso mimético está na brinquedo é, para o filósofo, o que impede
raiz do lúdico e do artístico; a aquisição de o reconhecimento dos potenciais infantis
conhecimentos se dá em um processo prazeroso de se relacionar com o mundo e mesmo de
no qual se desenvolve a faculdade de reconhecer transformar muitos dos sentidos e funções para
semelhanças e de produzi-las na linguagem os quais os brinquedos foram criados:
(GAGNEBIN, 1999). Nesse caminho esboçado
por Aristóteles, a teoria da mímesis induz a uma Elucubrar pedantemente sobre a fabricação
teoria da metáfora; conhecimento e semelhança, de objetos - material educativo, brinquedos
conhecimento e metáfora entretêm ligações ou livros – que fossem apropriados para
estreitas, muitas vezes esquecidas, e até negadas. crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa
Nos escritos de Benjamin, a produção é uma das mais bolorentas especulações
mimética estará relacionada, como em dos pedagogos. Seu enrabichamento pela
Aristóteles, ao jogo e ao aprendizado, ao psicologia impede-os de reconhecer que a
conhecimento e ao prazer de conhecer. Dentro Terra está repleta dos mais incomparáveis
dessa perspectiva, remetendo-se ao universo objetos de atenção e exercício infantis [...].
infantil, Benjamin contesta a crença de que um Em produtos residuais, reconhecem o rosto
suposto preestabelecido conteúdo imaginário que o mundo das coisas volta exatamente
do brinquedo vem a determinar a brincadeira para elas, e para elas unicamente. Neles, elas
da criança. Ao definir esse pensamento como menos imitam as obras dos adultos do que
“grande equívoco” (BENJAMIN, 1996, p. 250), ele põem materiais de espécie muito diferente,
afirma que a relação da criança com o brinquedo através daquilo que com eles aprontam no
dá-se na direção contrária, é na brincadeira brinquedo, em uma nova, brusca relação
que a criança busca incluir o seu brinquedo ou entre si. Com isso, as crianças formam para si
objeto de brincar”: “a criança quer puxar alguma seu mundo de coisas, um pequeno no grande,
coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia elas mesmas (BENJAMIN, 2000, p. 18-19).
e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se
ladrão ou guarda” (BENJAMIN, 2009a, p. 93). Sob a ótica benjaminiana, a educação
A criança não brinca só de comerciante ou de enquanto formação não é propriedade privada
bombeiro (atividades humanas), mas também de da pedagogia, mas pode ser compreendida
trem, de cavalo, de carro ou de máquina de lavar. como um fenômeno que se realiza no sujeito,
De fato, a experiência social da criança como ontogênese, ou seja, como caminhada
atualizada na brincadeira e no jogo encontra- do ser em um processo infindável. As crianças
-se permeada por condutas miméticas, que lhe são reconhecidas, então, como agentes
permitem ir além da sua capacidade de produzir transformadores dos espaços com os quais
semelhanças para lançar-se à transmutação interagem, atribuindo significados aos objetos
entre os diversos e possíveis papéis sociais, que manipulam e aos inúmeros papéis que
pelos quais ela transita livremente: entre o representam. A brincadeira torna-se um ritual
ser comerciante ou ser professor, ou entre o mimético. Esses rituais da infância são retomados
personificar-se de moinho de vento ou de trem por Benjamin como importantes fontes de
(BENJAMIN, 2009a). subsídios para o entendimento dos processos
Nos ensaios Rua de mão única (2000), históricos de construção dos saberes, bem como
escrito em 1928, e Infância em Berlim por volta da constituição do sujeito moderno. Opondo-se à
de 1900 (2000), escrito em 1938, Benjamin pedagogização dos brinquedos, o filósofo chama
dirige sua crítica para determinadas funções atenção para os processos históricos nos quais
pedagógicas atribuídas a alguns objetos o ser humano produz semelhanças reagindo às
criados para as crianças. A pedagogização do semelhanças já existentes no mundo.

822 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


As semelhanças se modificam no constelações e dos planetas feita pelo astrólogo,
decorrer dos séculos, não são imutáveis, a leitura do adivinho e a leitura de um texto; do
não existem em si, mas são redescobertas e mesmo modo, o gestual da dança assemelha-se
ressignificadas pelo conhecimento humano aos movimentos da pintura e da escrita. Essa
em diferentes épocas (GAGNEBIN, 1999). Um teoria vai na direção contrária a das concepções da
exemplo disso pode ser dado com os saberes da linguagem baseadas no signo. Isso pode explicar o
astrologia, da adivinhação e das práticas rituais. interesse de Benjamin pelas teorias onomatopaicas
Esses saberes são colocados hoje em oposição em torno da origem da linguagem, ainda que ele
ao saber racional, o progresso científico os as julgasse muito limitadas em relação àquilo que
marginalizou, excluindo-os do que se possa constitui a semelhança.
chamar de verdadeiro conhecimento. No Na teoria mimética da linguagem está
entanto, eles passaram a existir nos arquivos implícita uma lógica não da identidade, mas da
da linguagem: semelhança; não há uma concepção identitária
do sujeito e da consciência, mas “a eclosão de
Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras um verdadeiro outro” (GAGNEBIN, 1999, p. 103).
e dos acasos era para o primitivo sinônimo A atividade mimética não se reduz a uma cópia,
de leitura em geral, e se além disso existiram ela é uma mediação simbólica:
elos mediadores para uma nova leitura,
como foi o caso das runas, pode-se supor Em vão procurar-se-ia uma similitude entre
que o dom mimético, outrora o fundamento a palavra e a coisa baseada na imitação.
da clarividência, migrou gradativamente, no Saber ler o futuro nas entranhas do animal
decorrer dos milênios, para a linguagem e sacrificado ou saber ler uma história nos
para a escrita, nelas produzindo um arquivo caracteres escritos sobre uma página
completo de semelhanças extra-sensíveis. significa reconhecer não uma relação de
Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais causa e efeito entre a coisa e as palavras
alta aplicação da faculdade mimética: um ou as vísceras, mas uma relação comum de
médium em que as faculdades primitivas de configuração. A imitação pode ter estado
percepção do semelhante penetraram tão ou não presente na origem, ela pode se
completamente, que ela se converteu no perder sem que a similitude se apague
médium em que as coisas se encontram e se (GAGNEBIN, 1999, p. 98-99).
relacionam, não diretamente, como antes,
no espírito do vidente ou do sacerdote, mas Daí o conceito de semelhança
em suas essências, nas substâncias mais extrassensível, utilizado por Benjamin para
fugazes e delicadas, nos próprios aromas. definir a linguagem como o grau último da
Em outras palavras: a clarividência confiou capacidade mimética humana e o arquivo o
à escrita e à linguagem as suas antigas mais completo dessa semelhança extrassensível.
forças no correr da história (BENJAMIN, Essa transformação filogenética da capacidade
1996, p. 112). mimética é explicada pelo exemplo ontogenético
do aprendizado da linguagem falada e da escrita
A capacidade mimética humana não pela criança.
foi substituída pelo pensamento abstrato, Com o movimento gestual do seu corpo
racional, mas se concentrou na linguagem e na inteiro, a criança brinca/representa o nome e
escrita. Para Benjamin (1996), a leitura é um dessa forma aprende a falar. Para a criança,
processo eminentemente telepático; por meio nesse jogo, as palavras não são signos fixados
de uma iluminação profana do pensamento é pela convenção, mas sons a serem explorados. O
possível encontrar parentesco entre a leitura das escritor Eduardo Galeano (2002) costuma dizer

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. 823


que nesta fase somos mais profanos e poetas; pois do signo, mas a uma transformação do
é de muita importância para a criança o aspecto sentido. O movimento do pensamento remete
material da linguagem, algo que os adultos ao movimento da metáfora, em um fazer-
se esquecem em detrimento do seu aspecto desfazer lúdico e figurativo; dá-se visibilidade
conceitual e que a linguagem poética recupera. No ao invisível, comunica-se o não comunicável,
aprendizado da escrita ocorre o mesmo processo: atualiza-se o já dito. Benjamin dizia que a
a criança desenha a letra, ela imita o modelo criança entra nas palavras como quem entra em
proposto pelo adulto e, ao escrever a palavra, cavernas, criando caminhos estranhos em um
desenha uma imagem (não uma cópia) da coisa, universo a ser explorado. Algo parecido com o
estabelecendo, assim, uma relação figurativa com percurso dos poetas, dos artistas ou dos cineastas
o objeto (GAGNEBIN, 1999, p. 100). quando penetram na linguagem, criando seus
Benjamin refere-se à escrita chinesa para caminhos, suas errâncias, suas obras, suas
explicar a relação entre pintura e escrita, uma montagens, estabelecendo uma relação com o
relação que não é necessariamente uma relação tempo que não é, necessariamente, aquela do
de imitação. A partir da concepção mimética da tempo linear, cronológico, homogêneo e vazio.
linguagem, ele supõe movimentos históricos de Inspirado pelo pensamento benjaminiano,
transição da pintura à escrita, por meio não só da Giorgio Agamben (2008) aproxima os conceitos
grafia oriental, mas também por intermédio dos de experiência e linguagem remetendo-se a uma
hieróglifos e da escrita rúnica. O autor mostra in-fância; um lugar que é anterior à palavra;
que a escrita não deriva de uma abstração ou que rompe com a continuidade da história,
de uma convenção como a que o nosso alfabeto e que produz a descontinuidade entre língua
representaria, mas de um impulso mimético que e discurso, entre natureza e cultura. Não se
se inscreve no espaço pela dança, numa parede trata de uma ideia de infância como etapa de
pela pintura, ou numa página pela escrita. ordem cronológica, como uma potência que
Nos ensaios sobre a capacidade mimética permite a renúncia do previsível e ilumina
e sobre a semelhança, há uma distinção entre aquilo que não se revela de imediato. A infância
a dimensão semiótica e a dimensão mimética instaura o sujeito criativo, coloca o indivíduo
da linguagem. A dimensão mimética surge do no lugar de produtor da cultura para que, com
semiótico como uma imagem fugaz que aparece outros interlocutores, ele possa dar sentido e
e desaparece na paisagem. Na dialética do acrescentar significação ao mundo. A infância se
visível invisível, a literalidade do texto é o fundo constitui num experimentum linguae. De acordo
único, imprescindível para que essa imagem com Giorgio Agamben, ela é entendida como a
possa, como em um relâmpago, apresentar-se possibilidade de recuperação da pura expressão;
em forma de enigma, como interrogação. Para é o momento em que as palavras ainda não
Benjamin, essa imagem rápida remete ao sentido estão presas a modelos lógicos abstratos, ou a
essencial e ao mesmo tempo mutável do texto. A uma subjetividade essencialmente fabricada,
transmissão do significado é apenas o pretexto, modelada, recebida, consumida.
imprescindível, que permitiria a elaboração de A partir desse experimentum
um outro texto, um verdadeiro outro. linguae, descobrem-se os reflexos míticos
A mímesis indicaria uma dimensão e poéticos, bem como o sentido do sagrado
essencial do pensar, em uma aproximação frequentemente dissimulado nas atividades
lúdica, que o prazer suscitado pelas metáforas mais banais e cotidianas. Nesse contexto, a
nos devolve. Ela aponta para uma aproximação história materializa-se teatralmente; faz parte
do outro que consiga dizê-lo sem desfigurá-lo. da mesma matéria imaginária e ficcional da
Nessa perspectiva, a linguagem não existência. Nesse sentido, o discurso histórico
se restringe à tese linguística do arbitrário é também o discurso imaginário, no qual o

824 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


tempo cronológico homogêneo é interrompido; como Baudelaire, atestam o interesse do filósofo
fazendo emergir, em um salto originário em pensar a linguagem como campo (médium)
(Ursprung), o diferente, o inusitado, o não para a construção do pensamento enquanto
revelado, o silenciado. As imagens do cotidiano poiesis (atividade criativa que organiza a refle-
são postas em suspenso; dá-se visibilidade ao xão). Nesse sentido, Benjamin tinha, segundo
ínfimo, ao insignificante; transformam-se os Hannah Arendt (1999, p. 10), uma rara habilida-
destroços em matéria de poesia, matéria de de para pensar poeticamente. Como bem coloca
história: “As coisas jogadas fora têm grande Muricy (2008, p. 79), em Benjamin:
importância – como um homem jogado fora.
[...] As coisas sem importância são bens de [...] construir ideias é recuperar – na
poesia” (BARROS, 2001, p. 14-15). linguagem domesticada pelo uso
Como em Baudelaire, os belos poemas pragmático das exigências de informação
de Manuel de Barros são exemplos do re- e comunicação – uma dimensão inaudita
descobrimento de um mundo pouco visível. onde possa brotar algo como uma origem
Nesses versos há a recusa dos grandes temas; sempre renovável.
as coisas desimportantes transformam-se em
relíquias de linguagem – como ocorre no poema A escrita poética, ao reinventar o mundo,
de Drummond, quando um acontecimento é construção do olhar crítico, se pensarmos que o
absolutamente banal – uma pedra no meio crítico, assim como o alquimista, exerce a obscura
do caminho – pode ganhar, na interpretação arte de transmutar os elementos desimportantes do
dos leitores, outras dimensões; sentidos outros real em resplandecentes verdades, interpretando
que quebram a própria continuidade temporal os processos históricos inerentes a essa mágica
do acontecimento na repetição dos versos. transfiguração (BENJAMIN, 2009b). Ao interrogar
Importante ressaltar que o componente poético os objetos, o olhar crítico descobre nas coisas, nas
constitui-se então como espaço da criatividade, cidades, as marcas do mundo, procura então,
operação própria à imaginação, lugar da in-fância no invisível que se esconde e se presentifica na
que produz uma íntima ligação entre o pensar e linguagem das coisas, aquilo que faz um rosto,
o ser. Como sentenciou Anaximandro, na Grécia: uma paisagem ou um objeto nos falar.

Pensar, no entanto, é poetar e a verdade Considerações finais


não apenas um tipo de poetar no sentido
da poesia e da canção. O pensamento do A obra benjaminiana não apresenta
ser é a maneira fundamental de poetar. No uma proposta educacional; ao contrário,
pensamento assim considerado, a linguagem reage justamente à ideia de tal proposta. Sua
passa a ser linguagem primordial, isto é, em crítica dirige-se ao que chama de programa
sua essência. [...] Todo poetar, em seu sentido de remodelação da humanidade, nascido com
mais amplo, e também no mais estrito, é em o Iluminismo que, no século XVIII, reuniu
seu fundo pensamento (ANAXIMANDRO nomes como o de John Locke na Inglaterra,
apud HÜHNE, 2004, p. 78). Kant na Alemanha, e na França os escritores
enciclopedistas Diderot, Voltaire, D’Alembert,
Ao despojar-se da concepção instrumen- Montesquieu, Rousseau e outros pensadores que
talista do conhecimento, Benjamin procura, se mobilizavam em torno do que ficou conhecido
nesse poetar, recuperar a dimensão mágica da como Filosofia da ilustração, uma Suma filosofia,
linguagem. Os escritos benjaminianos acerca da que pretendia abarcar com os seus verbetes todos
modernidade a partir da fisionomia das cidades; os saberes da ciência, da política, da filosofia e
dos poetas e artistas surrealistas; sobre autores das artes. O projeto do pensamento iluminista

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. 825


era o de construir um conhecimento universal, a instiga-nos a pensar tanto a realidade enquanto
partir de uma racionalidade capaz de esclarecer, texto que se abre à significação de cada um,
iluminar, ilustrar. Com os êxitos da física, torna- quanto o próprio movimento do sujeito em um
-se possível conceber um universo determinista processo de criação-nomeação do mundo. Nesse
totalmente inteligível ao cálculo. Surge uma movimento itinerante, a linguagem é o espaço
visão do mundo constituída pela identidade do em que o sujeito diz o seu eu como condição de
real, do racional e do calculável. Assim, são sua historicidade. Nas palavras de Kramer,
eliminadas a desordem e a subjetividade. A razão
converte-se em um mito unificador do saber, [...] só o ser humano pode ser in-fans
como também da ética e da política. (etimologicamente em latim, aquele que
Emergem os princípios utilitaristas da não fala). Então, ao contrário dos animais,
economia liberal-burguesa segundo os quais o homem – como tem uma infância, ou
prevalece a ordem e a harmonia. A construção da seja, não foi sempre falante – aparece como
racionalidade iluminista colocou a sensualidade, aquele que precisa, para falar, se constituir
a sensibilidade, o desejo e a paixão como inimigos como sujeito da linguagem e deve dizer
do pensamento (MATOS, 1990, p. 284). A “eu”. Nessa descontinuidade é que se funda
questão do dualismo corpo e alma será discutida a historicidade do ser humano. Se há uma
por Benjamin em O drama barroco alemão como história, se o homem é um ser histórico é
algo que impede a compreensão da paixão só porque existe uma infância do homem, é
enquanto um componente do desenvolvimento porque ele deve se apropriar da linguagem.
da racionalidade, inviabilizando a relação entre Se assim não fosse, o homem seria natureza
o homem e o seu desejo, entre a razão e o corpo, e não história. E aqui reside a possibilidade
a história e a memória. de saber, quer dizer, de vivendo a história
A filosofia da razão ilustrada pretendia e de recontando essa história construir
fazer da criança um ser supremamente piedoso, um saber coletivo que extrapola a mera
bom e sociável. Essa concepção de educação justaposição de informações (KRAMER,
limitou as possibilidades dos processos formativos s.d., p. 249).
e de aprendizagem. Ao buscar uma experiência
total e concreta do conhecimento, Benjamin Nessa perspectiva, recupera-se aquilo que
critica a institucionalização do saber. O filósofo foi deixado à margem pelos sistemas escolares
alemão encontra nos artistas e nas crianças um fechados em suas disciplinas e hierarquias de
outro entendimento do mundo. Ele se opõe aos valores. Valoriza-se o ínfimo e um pensar-sentir
padrões psicológicos, referindo-se à figura da que passe pela mediação do insignificante.
criança como uma pessoa inserida na história e Assim, a própria vida cotidiana fragmentária
em uma cultura, da qual é também criadora. e aparentemente sem sentido configura-se
A atualidade do pensamento de Benjamin em um experimentum linguae, permeado de
e suas reflexões a respeito da modernidade, poéticas visuais, sonoras e textuais, apresenta-
da infância e da linguagem nos dão pistas se como um saber coletivo; uma estrada-
para refletir a educação enquanto processo texto aberta a possíveis leituras/escrituras
formativo, no qual o conhecimento realiza- que são compartilhadas como experiências de
se como uma experiência de linguagem. Isso linguagem, formas de conhecimento.

826 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


Referências

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Recebido em: 21.07.2013

Aprovado em: 02.10.2013

Eloiza Gurgel Pires é artista visual; pesquisadora e doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é
professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). No trânsito indisciplinado por diferentes
campos, suas pesquisas e publicações discutem as relações existentes entre os processos culturais da contemporaneidade e
a educação a partir: das poéticas urbanas; do binômio história/memória; da arte e das linguagens midiáticas, especialmente
das linguagens audiovisuais.

828 Eloiza Gurgel PIRES. Experiência e linguagem em Walter Benjamin


Racionalidade ecológica e formação de cidadania:
entrevista com Gerd Gigerenzer

Danilo R. StreckI

Resumo

A entrevista tem por tema as pesquisas sobre racionalidade


ecológica e suas implicações para a educação, especialmente
para a formação da cidadania, pesquisas essas desenvolvidas
no Max-Planck Institute for Human Development, em Berlim. O
estudo da racionalidade ecológica ocupa-se com o processo de
tomada de decisões num mundo em que o agir humano se dá
num contexto de incertezas, em que uma avaliação completa
dos fatores é praticamente inviável. Parte-se do pressuposto de
que processos cognitivos não podem ser dissociados da realidade
social e cultural, e que a identificação das heurísticas que regem
a tomada de decisões pode ser um importante instrumento para a
formação de um pensamento autônomo. Destaca-se, do ponto de
vista pedagógico, a importância de favorecer o desenvolvimento
da capacidade de compreender os limites e as possibilidades da
lógica científica na qual se fundam os processos educativos e de
estimular o desenvolvimento de formas de conhecer que são tão ou
mais determinantes da ação quanto a lógica científica. Gigerenzer
enfatiza o papel do trabalho coletivo e interdisciplinar para
favorecer a criatividade na pesquisa e no ensino, bem como para
tomar melhores decisões no cotidiano.

Palavras-chave

Racionalidade ecológica — Cidadania — Heurísticas — Incerteza.

I- Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, São Leopoldo,
RS, Brasil.
Contato: streckdr@gmail.com

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201 829
Ecological rationality and citizenship education: an
interview with Gerd Gigerenzer

Danilo R. StreckI

Abstract

The subject of this interview is the research on ecological


rationality and its implications for education, especially
for citizenship education, carried out at the Max-Planck
Instuitute for Human Development, in Berlin. The studies
on ecological rationality focus on the processes of decision
making in a world in which human activity happens in a
context of uncertainties, where a complete evaluation of
factors is practically impossible. The assumption of the
research is that cognitive processes cannot be dissociated
from social and cultural realities, and that therefore the
identification of the heuristics used in making decisions can
be an important instrument for the formation of autonomous
thinking. Of special interest from the pedagogical perspective
is promoting the development of the capacity to understand
and deal with the limits and possibilities of the scientific
logic on which educational processes are largely based, and
the development of forms of knowing that are as much or
more determinant than that one. Gigerenzer emphasizes
the role of collective and interdisciplinary work to promote
creativity in research and teaching, as well as to make
decisions in daily life

Keywords

Ecological rationality — Citizenship — Heuristics —


Uncertainty.

I- Universidade do Vale do Rio dos


Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil.
Contact: streckdr@gmail.com

830 http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022014400300201 Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014.
Introdução A reflexão sobre os limites e o potencial da
racionalidade diz respeito a todas as áreas
do conhecimento, embora seja de especial
relevância para a educação. Pode-se presumir
que a crise da escola tem a ver, entre outros
motivos, com a dificuldade de dar conta da
diversidade de formas de pensar, conhecer e
tomar decisões que hoje buscam expressar-se
como parte de uma sociedade plural.
Um dos livros de Gigerenzer mais
premiados internacionalmente encontra-se
traduzido no Brasil com o título de O poder
da intuição: o inconsciente dita as melhores
decisões (2009).2 O título propõe de forma um
tanto provocativa o argumento que perpassa a
obra de Gigerenzer: que a intuição pode ser um
importante instrumento para tomar boas decisões.
A pergunta, segundo ele, não é se, mas quando
podemos confiar em nossas intuições. Segue-se
Fonte: arquivos do entrevistado.
que, para responder a essa pergunta, precisamos
entender como ela funciona. Buscando resgatar
Gerd Gigerenzer é pesquisador no Max- a intuição da aura negativa com que geralmente
Planck Institute for Human Development, em é associada, Gigerenzer volta sua crítica também
Berlim, onde atualmente dirige o Harding Center à escola: “Alinhado com essa visão negativa,
for Risk Literacy. Ele é formado em psicologia nosso sistema educacional valoriza tudo, menos
pela Universidade de Munique (Alemanha), a intuição”.
onde também obteve o título de Ph.D. em Sua definição de intuição compreende
psicologia. Foi diretor do Max Plank Institute for três características: 1) surge muito depressa
Psychological Research, em Munique, de 1995 em nossa mente consciente; 2) as razões
a 1997, e do Max Planck Institute for Human fundamentais não estão plenamente acessíveis
Development, em Berlim, em vários períodos a essa mente consciente; e 3) é suficientemente
entre 1997 e 2013. Foi professor em importantes forte para motivar uma ação. Segundo essas
universidades europeias e norte-americanas, características, pode-se constatar que grande
entre elas Chicago, Munique e Salzburg.1 parte de nossas decisões se enquadra nessa
O conceito de racionalidade ecológica definição. Em primeiro lugar, pela limitada
(TODD et alii, 2012), central no trabalho de capacidade do cérebro humano, que seria
Gigerenzer, sugere certa familiaridade com a incapaz de “computar” conscientemente todas
ideia de ecologia de racionalidades na obra de as alternativas possíveis para todas as ações.
Boaventura de Sousa Santos (2004), que tem Em sua obra vemos, por isso, seguidas alusões à
estimulado a crítica à racionalidade científica vontade de onisciência que se vê legitimada pelo
hegemônica e, o que é mais importante, o suposto domínio do conhecimento de alguns
“descobrimento” de saberes silenciados por essa especialistas. Em segundo, pelo fato de não
lógica que Santos identifica como metonímica. podermos contar com uma visão determinista

1- A presente entrevista foi realizada no escritório de Gerd Gigerenzer no 2- Obra publicada pela editora Best Seller. Outro livro em língua
Max-Planck Institut für Bildungsforschung (Max-Planck Institute for Human portuguesa, Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza (do original
Development), em Berlin, em novembro de 2012. Reckoning with Risk) foi publicado em Portugal pela Editora Gradiva.

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 831


do mundo, onde então os resultados das cérebro humano. Saber como e por que se
decisões seriam totalmente previsíveis. estuda isso e não aquilo, por que se escolhe
Um dos pressupostos nos quais o conceito determinada marca de roupa, por que se
de racionalidade ecológica está baseado é que o escolhem certas companhias são decisões que
cérebro funciona como as duas lâminas de uma “não são unicamente uma questão de prós
tesoura: uma delas é a capacidade neurológica e contras imaginados. Algo mais pesa no
e a outra é o ambiente em que operamos, e processo decisório, algo que tem, literalmente,
o qual condiciona o funcionamento. Para a um peso razoável: nosso cérebro, fruto do
tomada de decisões, teríamos uma “caixa de processo evolutivo. Ele nos dá aptidões que
ferramentas adaptáveis”, as heurísticas, que se desenvolveram durante milênios, mas
são estratégias práticas de tomada de decisão. que são em sua maior parte ignoradas pelos
Essas não são inatas nem fixas, mas têm uma textos-padrão sobre tomadas de decisão”
estrutura adaptável ao meio em que atuamos. O (GIGERENZER, 2006, p. 73).
livro O poder da intuição traz muitos exemplos Outra contribuição relevante para a
de como no cotidiano utilizamos esse tipo de educação atual diz respeito ao lugar e papel das
“atalhos”, tanto na vida profissional quanto informações na tomada das decisões. Segundo
na social. Decisões importantes como a troca Gigerenzer, há situações em que menos é mais,
de emprego ou opções determinantes para o dependendo da capacidade de escolher as opções
nosso futuro são menos o resultado de cálculos mais adequadas. Isso vale tanto para médicos
complexos do que de intuições que podem no diagnóstico de seus pacientes quanto para
parecer pouco racionais. Não é de estranhar que professores na avaliação de seus alunos ou
a epígrafe do capítulo inicial desse livro seja a pesquisadores na sua opção metodológica.
célebre frase de Blaise Pascal: “O coração tem Luria (1968) já se debateu com esse problema ao
razões que a própria razão desconhece”. buscar compreender a mente de Shereshevsky,
Do ponto de vista pedagógico, a pesquisa que tinha uma incrível capacidade de guardar
da equipe de Gigerenzer chama à humildade uma enorme quantidade de informações, mas
quanto ao alcance e possibilidades da lógica que não era capaz de realizar abstrações a partir
racional e científica. Os estudos não sugerem dos dados armazenados (OLIVEIRA; REGO,
que se abandone essa lógica, dentro da qual os 2010). Para aprender a lidar com a crescente
próprios estudos são conduzidos, mas desafia disponibilidade de informação, a educação
a olhar para outras formas de conhecimento precisa ensinar a confrontar-se com as
que, conforme ele explicita na entrevista, eram incertezas e probabilidades. O resultado de não
consideradas as mais confiáveis em outros fazê-lo são médicos que não sabem interpretar
tempos históricos. Para isso, é necessário corretamente dados para seus pacientes em
reconhecer que o funcionamento da mente é relação aos riscos, economistas que agem
condicionado pelo meio (bounded rationality), como se fossem deuses, e cidadãos que não
encontrando maneiras de se adaptar de aprenderam a “pensar junto”.
forma mais ou menos criativa e inovadora Gigerenzer alerta que o ensino da
(GIGERENZER, 2006). Coerente com esses matemática está baseado no ensino de certezas,
princípios, em sua prática de pesquisa, ele deixando de trabalhar com a probabilidade.
enfatiza o trabalho em equipe interdisciplinar. Assim, caberia uma “alfabetização em risco”,
O desafio para a educação consiste que teria como um requisito a introdução ao
em buscar conhecer “caixas de ferramentas pensamento estatístico já na escola fundamental,
adaptáveis” e saber dispor melhor dos conforme experiências realizadas na Alemanha e
instrumentos que ali encontramos e que nos Estados Unidos (BOND, 2009). Dentro de uma
resultaram do longo processo evolutivo do perspectiva mais ampla, a “alfabetização em risco”

832 Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
é vista como precondição para uma cidadania expertos acreditam seja correto, as pessoas
bem informada dentro de uma democracia deveriam ser encorajadas e equipadas para,
participativa. Como expresso pelo entrevistado: por si mesmas, tomar decisões informadas.
Alfabetização em risco deveria ser ensinada
Tanto educadores quanto políticos deveriam desde a escola fundamental. Ousemos
ter consciência que alfabetização em risco conhecer – risco e responsabilidades são
é um tópico vital para o século vinte e um. oportunidades a serem apreendidas, não
Em vez de ser manipulados a fazer o que os evitadas. (GIGERENZER, 2012, p. 260).

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Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 833


A ENTREVISTA tentamos combater o câncer com drogas. Foram
gastos bilhões em tecnologia e medicação. No
Agradeço por arranjar lugar em sua pesada entanto, o efeito dos exames sobre o total da
agenda para esta entrevista, que eu espero mortalidade de câncer é zero para muitos deles,
compartilhar com um público mais amplo e muito reduzido para alguns. O efeito de drogas
na América Latina. Pelo menos um de seus sobre a taxa de mortalidade, para os tipos de
muitos livros está traduzido no Brasil, O câncer mais severos, está no prolongamento da
poder da intuição: o inconsciente dita as vida na ordem de algumas semanas ou meses,
melhores decisões [Gut Feelings] e eu posso com substancial perda de qualidade de vida.
antecipar que as preocupações endereçadas A melhor forma de reduzir o peso do
em seus estudos se tornarão parte das câncer é a prevenção, ou seja, uma melhor
discussões em muitas áreas, inclusive na alfabetização em saúde e melhor estilo de vida.
educação. Você poderia dizer-nos algo sobre Estima-se que 50% de todos os cânceres são
como desenvolveu o interesse em estudar este devidos ao comportamento: fumar cigarros (20
tópico? O que o moveu e continua movendo a 30% de todos os cânceres), obesidade devida
a estudar o papel e o lugar da intuição na à ingestão de bebidas com açúcar, fast food, e
tomada de decisões? falta de atividade física (10 a 20%), e abuso de
bebidas alcoólicas (10% nos homens, 3% para
Médicos, juízes, administradores – todos mulheres). Todos os números são dados dos
eles se apoiam em suas intuições e têm receio Estados Unidos).
de admiti-lo. No entanto, no pensamento No entanto, dizer a um jovem de 15 anos
ocidental, a intuição já foi vista como a forma para parar de fumar é tarde demais. Os hábitos de
mais certa de conhecimento, aquela de anjos comer, beber e de atividade física são formados
e seres espirituais que intuíam com claridade na fase inicial da infância. Por isso, um programa
impecável. Desde a Ilustração, no entanto, a para a alfabetização em saúde deve começar cedo,
razão foi colocada sobre a intuição e, muito iniciando-se no jardim de infância ou primeira
antes, os homens sobre as mulheres. Agora as série e continuando até a puberdade. Para cada
pessoas acreditam que a intuição é feminina e euro colocado nesse tipo de programa, poderiam
frágil, enquanto que o pensamento intencionado ser salvas mais vidas do câncer e de outros
é masculino e racional. Essa carreira estranha da problemas de saúde do que pela mesma quantia
intuição, que iniciou como uma forma divina de gasta no desenvolvimento de drogas.
conhecimento e acabou sendo desprezada como O programa de alfabetização em saúde,
um guia não confiável da vida, ligado com ao baseado na pesquisa disponível, deveria ter
nosso coração, isso chamou minha atenção. como referência dois princípios básicos:
1. Iniciar cedo. Idade de 5 a 10 anos para as
Quais são alguns dos principais projetos com crianças, quando o programa é iniciado antes
os quais seu grupo de pesquisa no Instituto da puberdade.
Max Planck para o Desenvolvimento Humano 2. Ser um programa integrado. A alfabetização
em Berlim atualmente trabalha, especialmente em saúde deveria ser ensinada pelos professores
aqueles mais diretamente relacionados com a regulares, não por um professor especial, e
educação? ser integrada no esporte, na biologia e outras
disciplinas. Esse aspecto é importante porque os
Um projeto trata de ensinar alfabetização professores representam um modelo, devendo
em saúde na escola fundamental. Deixe-me por isso ser parte do programa.
ilustrar isso com um de nossos maiores pesos na O conteúdo do currículo deveria incluir
área da saúde: o câncer. Durante décadas, nós três tipos de competências:

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 835


1. Habilidades como cozinhar e esportes. falar de uma personalidade moral ou imoral. Há
2. Conhecimento médico, por exemplo: que sempre uma combinação entre ambas.
os cigarros contêm arsênico e outros venenos;
como se parece o pulmão de um fumante; e Isso de certa forma lembra Piaget, que lida
como nosso corpo engorda. com a inteligência do indivíduo em termos
3. Conhecimento psicológico, por exemplo: de adaptação entre organismo e ambiente.
como a propaganda está programada para im- Mas em sua teoria não há lugar para a ideia
pressionar pessoas jovens e como companhias de estruturas.
orientadas para o lucro manipulam as crianças
em direção a estilos de vida prejudiciais. Piaget tem os estágios. Basicamente,
ele sugere que as crianças são de alguma
Seu trabalho é basicamente sobre o processo forma iluminadas na idade de doze ou
de tomar decisões melhores em situações quatorze. Eu não acredito que seja dessa
de incerteza. O que você considera uma boa forma. Com certeza, há avanços em termos de
decisão? Há algumas condições especiais para estratégias cognitivas que as pessoas usam,
tomar uma boa decisão? mas adolescentes, pelo menos nas sociedades
ocidentais, são dependentes de outros como
Uma boa decisão melhora não apenas a nunca antes. E, se eles se comportam de acordo
saúde, a situação financeira e o bem-estar do com a heurística “faça o que o seu grupo faz”,
indivíduo, mas também, de sua comunidade o resultado pode ser avaliado como altamente
como um todo. Para poder tomar boas decisões, moral ou imoral, dependendo da situação na
o que se necessita é conhecer as evidências qual eles usam a heurística.
básicas, bem como o pensamento estatístico. E,
num mundo de incertezas, você também precisa Permita-me avançar para a contribuição de sua
de boas heurísticas e intuições. E coragem: teoria de racionalidade ecológica e heurísticas
Sapere Aude! para a cidadania. Ao ler seus artigos e analisar
alguns de seus livros, eu constato que uma das
O conceito básico em sua teoria é racionalidade contribuições seria o abandono da ideia de
ecológica, e o pressuposto é que a mente e o onisciência, e a outra seria a importância de
ambiente funcionam como duas lâminas de saber identificar e compreender as heurísticas
uma tesoura. Pareceu-me interessante, em que usamos, por exemplo, quando escolhemos
seu construto teórico, a ideia de racionalidade um candidato. Minha leitura está correta?
ecológica, que busquei associar com o conceito
de ecologia de racionalidades, de Boaventura Sua percepção, aqui, está certa em
de Sousa Santos, que significa que não há vários pontos. Primeiro, não existe algo
apenas uma maneira de pensar e conhecer. como certeza; superar a ilusão de certeza é o
Quando você fala de racionalidade ecológica, primeiro passo em direção a uma cidadania
há algum tipo de valor implícito, como quando madura. Isso também significa que você
falamos de movimento ecológico? precisa parar de acreditar que todas as espécies
de expertos conhecem tudo. Esse é o primeiro
Deixe-me começar dizendo que ponto. O segundo aspecto é que a democracia
moralidade não é algo que se encontra funcionará apenas se o conhecimento for
simplesmente dentro do indivíduo, como a distribuído entre o povo; e não funcionará
maioria das teorias pressupõe, mas ela também é se alguns expertos alegarem saber tudo,
externa. Você pode falar de um ambiente moral enquanto todos os demais virem novelas. Isso
ou imoral da mesma forma como você pode é uma forma de democracia decadente, uma

836 Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
democracia que vai definhar. É necessário Sim, é autorreflexividade, mas o mesmo
criar, através da educação, um ambiente em princípio pode ser usado com o seu grupo,
que as pessoas sejam inspiradas a pensar. A seus colegas. A questão aqui é pensar sobre as
pensar e não apenas a buscar o máximo de heurísticas que as pessoas usam. Isso se aplica
prazer. A pensar e ter prazer em pensar. às coisas do cotidiano, por exemplo, quando
Sobre sua pergunta a respeito da caixa se faz o pedido de um prato no restaurante. Eu
de ferramentas de heurísticas: essa caixa costumo dar muitas palestras em muitos lugares
de ferramentas é o que você necessita num ao redor do mundo e quase sempre acabo
mundo de riscos desconhecidos. Se tudo fosse num restaurante no qual nunca estive antes
conhecido, como num cassino, você poderia e provavelmente jamais estarei novamente,
calcular e usar pensamento estatístico. Você e eu aprendi a nem me preocupar em abrir o
não necessitaria de intuição ou de heurísticas. cardápio. Eu uso uma heurística simples que
Mas, para a maioria dos problemas, nem tudo funciona melhor do que buscar maximizar, isto
é conhecido. Por exemplo, com quem casar-se é, tentar avaliar todas as alternativas. Se é um
ou o que fazer com o resto de sua vida. Aqui bom restaurante, eu pergunto ao garçom o que
heurísticas são úteis como instrumentos. Outras ele comeria aqui nessa noite. Eu não pergunto o
ferramentas são analogias ou histórias. Mas, que ele recomendaria, pois isso o leva a pensar:
num mundo de incertezas, nós necessitamos “Oh, esse é um alemão e eu vou sugerir algo de
de heurísticas e, por isso, não há apenas uma que alemães talvez gostem”. Eles sabem o que
delas, mas uma caixa de ferramentas com há na cozinha quando eu pergunto. Isso é muito
muitas. No entanto, nenhuma heurística é útil simples e aproveita o conhecimento de outros
todo o tempo, o que leva à sua questão da que sabem mais sobre o assunto. Muitos alemães,
racionalidade ecológica. Tome, por exemplo, em comparação com outras nacionalidades, têm
a heurística “imita o teu grupo”. Isso pode ser mais problemas com imitação.
uma boa ideia se você tem o grupo certo, e uma
ideia muito ruim se você tem o grupo errado. As heurísticas não podem ser reduzidas a
simples truques? Eu sei que sua teoria de
Mais concretamente, na prática educacional, forma alguma é simplista, mas eu gostaria
como poderíamos lidar com heurísticas? Seria de compreender melhor o que você entende
útil dizer “Vamos pensar sobre a forma como por simples. Nós poderíamos inclusive falar
escolhemos nossos candidatos”? de uma “estética do simples”. Como isso se
relaciona com complexidade, que é uma
Sim, isso seria um autoexperimento. Um ideia que, a partir de Edgar Morin, encontra
norte-americano, por exemplo, poderia dizer “Eu importante eco no pensamento atual.
sou contra Obama porque meus pais ou meu
grupo de amigos são contra ele”. Esse insight pode Simplicidade permite transparência, e
ser útil. Então, você pergunta a si mesmo: “Eu transparência permite confiança, porque você
de fato quero ser essa pessoa, que apenas reflete, terá menos probabilidade de ser enganado.
espelha o ambiente, sem sequer se esforçar para Sistemas complexos são diferentes. Por
pensar, ou eu quero fazer algo diferente?” exemplo, na Alemanha e nos Estados Unidos,
como em muitos outros países, nós temos
Na pesquisa-ação e pesquisa-participante, que sistemas de taxação que ninguém entende,
são metodologias que procuro usar nas minhas nem mesmo meu contador. Essa não é a
pesquisas, a autorreflexividade coletiva é um dos forma como a democracia deveria funcionar.
critérios básicos de validade e qualidade da pes- Não há necessidade de um sistema tão
quisa. Isso estaria de acordo com esse critério? complexo, exceto pelos furos no sistema dos

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 837


quais grupos de interesse tiram vantagem. estatística ajudariam o médico a tomar uma
Um sistema simples é transparente. Você decisão melhor sobre o estado de sua saúde
sabe exatamente onde estão os seus pontos do que olhar para apenas uma ou duas coisas?
fortes e as suas fragilidades, e cada um Heurísticas também são interessantes para
pode entender o que se passa. Assim, eu não questões financeiras. Por exemplo, para a
acredito que isso deveria ser considerado um avaliação de crédito. Se você fosse um banqueiro
truque. Na realidade, torna-se evidente que a e eu viesse a você e solicitasse um milhão de
complexidade muitas vezes é algo de que não dólares para abrir um novo negócio, então você
nos beneficiamos. Tanto assim que ninguém teria o mesmo problema. Há diferentes maneiras
pode de fato conhecer o resultado. Eu trabalho de lidar com o assunto. Alguns têm um grande
com o Banco da Inglaterra e os sistemas de volume de dados e procuram acumular todas as
regulação como “Basel 2“ e “Basel 3”3 são tão informações; outros são como um bancário em
complexos que todos no banco a quem eu tenho Berlim, que disse: “Eu apenas olho para duas
perguntado respondem: “Ninguém entende as coisas e é isso”.
consequências de sua implementação ou não”.
Mas, para chegar a esse ponto, há muito
Isso é o que nos é dito: “É muito difícil para conhecimento prévio. Um professor pode
você entender”. olhar para um trabalho e, após ler as primeiras
linhas, ele poderá dizer se é bom ou ruim, mas
Há uma compreensão em nossa ,para poder fazer isso, ele teve que passar por
sociedade de que, se nós enfrentamos um um processo complexo.
problema complexo, temos que buscar soluções
complexas. E, se elas não funcionam, nós Eu diria que esse professor tem
tornamos o assunto ainda mais complexo, em experiência. Mas o que na realidade são
vez de fazer uma pergunta diferente: há uma esses processos nós não sabemos. Nós os
solução simples para esse problema complexo denominamos de complexos porque nós não
que talvez não seja perfeita, mas que funciona sabemos. E nós temos evidência de outros
melhor? Jamais será absolutamente perfeita. estudos de que problemas complexos podem ser
resolvidos por heurísticas, apesar de que cada
Permita-me retornar à questão do simples em um que não conhece as heurísticas diria que as
termos de saúde, que é uma de suas áreas de soluções devem ser complexas.
estudo. Não há um risco maior de erro se o
médico tem apenas alguns processos simples No sentido exposto, é evidente então que o
para avaliar o paciente? Ele olha para dois simples não é o fácil. Permita-me abordar
ou três fatores e toma a sua decisão, que, outro tema. O que o senhor diria sobre
para o paciente, pode ser uma questão de pensamento dissonante? Um pensamento
vida ou morte. [Nesse momento da entrevista, que não representa apenas uma acomodação,
juntaram-se a nós dois pesquisadores da mas que é inovador, divergente? Como
equipe de Gigerenzer.] acontecem inovações?

A resposta é: o médico pode estar certo Essa é uma boa pergunta. Certamente
ou errado se ele usa heurísticas. É disso que analogias são um bom exemplo. O que nós
trata o estudo da racionalidade ecológica. Nesse tentamos fazer é criar um ambiente que
caso, os cálculos de uma sofisticada regressão facilita a inovação. Nós temos pessoas de
3- Basel 1, 2 e 3 são conjuntos de regulamentações internacionais muitas disciplinas diferentes. Por exemplo,
editadas pelo Basel Committee on Bank Supervision. Konstantinos é engenheiro e Timo, um

838 Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
pesquisador visitante, é matemático [refere- do olhar – como pegar uma bola em movimento
se aos dois colegas que haviam se juntado – pode ser usada deliberadamente, mas também
a nós]. Isso é muito importante. Muito da de forma inconsciente. Isso é porque a distinção
inovação, eu penso, tem a ver com criar um entre esses dois sistemas mentais, que liga as
ambiente em vez de colocar algo na cabeça heurísticas ao inconsciente, não faz sentido. Se
das pessoas. E com ter um grau suficiente você é um ser onisciente, você não necessita de
de heterogeneidade, pessoas com diferentes intuição. Se você é deus, você não necessita de
métodos que devem ser postos junto para nada; você nem precisa pensar.
analisar os mesmos problemas. Nós também
temos um pequeno ritual aqui. Todos os dias, Enquanto estava no MPIB (Max Planck Institut
às 16 horas, temos um café com o grupo todo für Bildungsforschung), eu me interessei pelo
(você está cordialmente convidado), para que trabalho de dois grupos de pesquisa nos quais
as pessoas se encontrem e conversem entre si. eu percebo uma contribuição importante
para a educação da cidadania. Um deles é o
E qual seria a relação entre heurísticas e intuição? de racionalidade ecológica e o outro é o da
história das emoções, em que as emoções são
A intuição é definida como “conhecimento vistas como fenômenos históricos e culturais.
sentido” (felt knowledge), que é facilmente Percebo certa relação entre ambos.
acessível à consciência, mas que não podemos
explicar. Nós não sabemos se todas as intuições Eu aprecio que você esteja refletindo
são baseadas em heurísticas, mas sabemos sobre a aproximação entre esses dois grupos.
que algumas delas podem ser analisadas e são
baseadas em heurísticas bastante simples. A Há hoje uma vasta literatura que fala que
mesma heurística pode ser usada intuitiva ou vivemos num mundo de incertezas. Qual seria
deliberadamente. A relação com inovação, nesse a relação dessa literatura com a sua pesquisa?
sentido, é interessante. Eu faço muitas palestras
para pessoas do comércio e muitas delas têm Sim, há muita literatura, a maior parte
problemas com inovação e gut feelings, uma da sociologia. Eu distingo risco de incerteza,
expressão que eu uso como sinônimo de intuição. em que as alternativas são amplamente
Elas desconfiam de qualquer gut feeling e isso é desconhecidas. A teoria das decisões em boa
um obstáculo para a inovação. Além do mais, há medida ignorou as incertezas. Ela vai até a
aquelas que pedem justificativas para qualquer ambiguidade, que é quando você não conhece
nova ideia; isso é o oposto de uma estratégia as probabilidades, mas conhece as alternativas,
intuitiva. No entanto, o processo intuitivo de todas as consequências. Isso é típico para a
tomar decisões não é diferente no mundo dos economia, onde tudo é construído sobre a ideia
negócios, no dos esportes ou das artes. de risco, e, se os riscos não são conhecidos,
eles os reduzem para se encaixar no velho
As heurísticas seriam, então, um campo cálculo de risco. Eu acredito que somos dos
intermediário entre intuição e o desejo de poucos centros no mundo que procuram lidar
uma racionalidade onisciente? matematicamente com a incerteza.

É levemente diferente. Eu diria que Eu vejo muitas pesquisas no campo da saúde


decisões intuitivas são, ao menos parcialmente, – sobre decisões de pacientes e médicos – e da
o mecanismo de heurísticas. Mas a mesma economia que têm a ver basicamente com o
heurística pode ser usada tanto consciente mercado. Como os profissionais da educação
quanto intuitivamente. Por exemplo, a heurística recebem a sua teoria e lidam com ela?

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 839


Você pode tomar, por exemplo, nosso Muitas teorias são tão verdadeiras que
trabalho sobre como ensinar pensamento elas não podem estar erradas. E, assim, elas
estatístico ao usar certas representações, o que funcionam como canais nos quais você se
também é uma perspectiva da racionalidade encontra, e mesmo assim você não sabe o que
ecológica. Essa ideia entrou num razoável número fazer. O que nós buscamos fazer é desenvolver
de manuais de estatística usados no ensino médio instrumentos que realmente mudam as coisas.
na Alemanha. Isso é um sinal de sucesso aqui. Mas, Por exemplo, nós sabemos que muitas pessoas
além disso, eu penso que o pensamento estatístico têm o que nós chamamos de ansiedade de
é muito mais importante que a geometria ou a matemática ou estatística. Elas não sabem
álgebra para toda a vida depois da escola. nada de estatística, o que muitas vezes se
deve a um certo tipo de representação, a
A isso você se refere como matemática da exemplos inúteis e cansativos que elas não
certeza? entendem. E se você representa, por exemplo,
uma inferência chamada Bayesin (Thomas
Sim. Isso é que é ensinado. Tudo que é certo Bayes) como probabilidade incondicional,
é ensinado. No momento em que a incerteza en- você pode ter certeza de que 90% dos ouvintes
tra, mesmo que seja sobre riscos desconhecidos... estarão interessados porque no fim dirão: “Ah,
[Timo: Mas muitas coisas no mundo são certas. Eu eu consigo fazer isso”. E as probabilidades
penso nas ruas de Berlim. Elas sempre estão ali. Eu condicionais virão mais tarde. Assim, você
não entendo por que você é contra a geometria.] sempre tem uma rede de segurança onde, se
Eu não sou contra. Eu estou falando de priorização. você não entende, você pode voltar ao tema.
Evidentemente você pode fazer ambos. Isso também tem a ver com ajudar as pessoas
a ter uma relação emocional melhor – ajudar
Levemos a sua reflexão para entender como crianças a aprender a lidar com riscos e
lidamos com teorias. Por exemplo, no campo incertezas, e a distinguir entre ambas. Uma
da educação, muitas vezes temos visões muito última nota sobre isso: eu penso que heurísticas
fechadas das teorias que contrapomos umas e estatística deveriam ser ensinadas desde a
às outras. primeira série.

840 Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
Publicações do autor (seleção):

Livros

GIGERENZER, Gerd; MUIR GRAY, J. A. (Eds.). Better doctors, better patients, better decisions: envisioning health care 2020.
Cambridge, MA: MIT Press, 2011.

GIGERENZER, Gerd; HERTWIG, Ralph; PACHUR, Thorsten (Eds.). Heuristics: the foundations of adaptive behavior. New York: Oxford
University Press, 2011.

GIGERENZER, Gerd. Rationality for mortals: how people cope with uncertainty. New York: Oxford University Press, 2008.
GIGERENZER, Gerd. Korean translation: Books 21 Publishing Group: Publishing House VEDA.

GIGERENZER, Gerd. Gut feelings: the intelligence of the unconscious. New York: Viking Press, 2007.
GIGERENZER, Gerd. Audio book: Tantor Media, 2007.
GIGERENZER, Gerd. Ebook: Kindle edition, 2008. UK edition: Penguin/Allen Lane, 2007.
Tradução para o alemão: Bauchentscheidungen: die Intelligenz des Unbewussten und die Macht der Intuition. Bertelsmann, 2007.
Tradução para o holandês: De kracht van je intuitie. Kosmos, 2007.
Tradução para o espanhol: Decisiones instintivas: la inteligencia del inconsciente. Ariel, 2008.
Tradução para o croata: Snaga intuicije: inteligencija nesvjesnog. Algoritam, 2008.
Tradução para o italiano: Decisioni intuitive. Raffaello Cortina, 2009.
Tradução para o polonês: Intuicja: intelligencja nieswiadomosci. Prószinsky i S-ka, 2009).
Tradução para o francês: La genie de l’intuition. Editions Belfond, 2009.
Tradução para o chinês: China Renmin University Press, 2009.
Edição brasileira: O poder da intuição: o inconsciente dita as melhores decisões. Best Seller, 2009.

GIGERENZER, Gerd; ENGEL, Christoph (Eds.). Heuristics and the law. DAHLEM WORKSHOP ON HEURISTICS AND THE LAW, 94.,
Berlin, June 6-11, 2004. Report of the… Cambridge, MA: MIT Press, 2006.

GIGERENZER, Gerd. Calculated risks: how to know when numbers deceive you. New York: Simon & Schuster, 2002.
Edição no Reino Unido: Reckoning with risk: learning to live with uncertainty. Penguin Books, 2002, Kindle edition 2003.
Tradução para o alemão: Das Einmaleins der Skepsis: über den richtigen Umgang mit Zahlen und Risiken. Berlin Verlag, 2002.
Tradução para o italiano: Quando i numeri ingannano: imparare a vivere con l‘incertezza. Raffaello Cortina, 2003.
Tradução para o japonês: Hayakawa Publishers, 2003.
Tradução para o português: Calcular o risco: aprender a lidar com a incerteza. Gradiva, 2005.
Tradução para o francês: Penser le risque: apprendre a vivre dans l’incertitude. Editions Markus Haller, 2009.
Tradução para o coreano: Sallim Publishing Co.

GIGERENZER, Gerd; SELTEN, Reinhard (Eds.). Bounded rationality: the adaptive toolbox. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.

GIGERENZER, Gerd. Adaptive thinking: rationality in the real world. New York: Oxford University Press, 2000.
Tradução para o chinês: Shanghai Educational Publishing House, 2006.

GIGERENZER, Gerd; TODD, Peter M.; ABC Research Group. Simple heuristics that make us smart. New York: Oxford University
Press, 1999.

KURZ-MILCKE, Elke; GIGERENZER, Gerd (Eds.). Experts in science and society. New York: Kluwer: Plenum, 2004.

HELL, Wolfgang; FIEDLER, Klaus; Gigerenzer, Gerd (Eds.). Kognitive täuschungen = Cognitive illusions. Heidelberg, Germany:
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TODD, Peter M.; GIGERENZER, Gerd; ABC Research Group. Ecological rationality: intelligence in the world. New York: Oxford
University Press, 2012.

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Artigos e capítulos de livro:

ANDERSON, Britta L.; GIGERENZER, Gerd; PARKER, Scott; SCHULKIN, Jay. Statistical literacy in obstetricians and gynecologists.
Journal of Healthcare Quality. doi:10.1111/j.1945-1474.2011.00194, 2012.

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GAISSMAIER, Wolfgang; GIGERENZER, Gerd. When misinformed patients try to make informed health decisions. In: GIGERENZER,
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GIGERENZER, Gerd. Rationalität, heuristik und evolution. In: GERHARDT, Volker; LUCAS, Klaus; STOCK, Günther (Eds.). Evolution:
theorie, formen und konsequenzen eines paradignas in natur, technik und kultur. Berlin: Akademie-Verlag, 2011. p. 195-208.

GIGERENZER, Gerd. Moral satisficing: rethinking moral behavior as bounded rationality. Topics in Cognitive Science, v. 2,
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GOLDSTEIN, Daniel G.; GIGERENZER, Gerd. The beauty of simple models: themes in recognition heuristic research. Judgment and
Decision Making, v. 6, n. 5, p. 392-395, Jul. 2011.

HERTWIG, Ralph; GIGERENZER, Gerd. Behavioral inconsistencies do not imply inconsistent strategies. Frontiers in Cognition,
v. 2, n. 292, p. 1-3, nov. 2011.

HICKS, John S.; BURGMAN, Mark A.; MAREWSKI, J. N.; FIDLER, Fiona M.; GIGERENZER, Gerd. Decision making in a human
population living sustainably. Conservation Biology, v. 26, n. 5, p. 760-768, Oct. 2012.

MAREWSKI, Julian; GIGERENZER, Gerd. Entscheiden. In: SAGES, W. (Ed.). Management-diagnostik. 4. ed. Göttingen: Hogrefe,
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n. 1, p. 77-89, Marc. 2012.

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ANNUAL CONFERENCE OF THE COGNITIVE SCIENCE SOCIETY, 31., 2009, Austin. Proceedings of the... p. 2232-2237.

VOLZ, Kirsten G.; GIGERENZER, Gerd. Cognitive processes in decision under risk are not the same as in decisions under uncertainty.
Frontiers in Decision Neuroscience, v. 6, n. 105, 2012.

842 Danilo R. STRECK. Racionalidade ecológica e formação de cidadania: entrevista com Gerd Gigerenzer
TODD, Peter M.; GIGERENZER, Gerd. What is ecological rationality? In: TODD, Peter M.; Gigerenzer, Gerd; ABC Research Group.
Ecological rationality: intelligence in the world. New York: Oxford University Press, 2012. p. 3-30.

Danilo R. Streck é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS).

Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 3, p. 829-843, jul./set. 2014. 843


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Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Apenas as obras citadas ao longo do texto devem
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e em página separada.

Exemplos:

FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São


Paulo: FFCL/USP, 1954.

FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.

FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.

FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.

MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand


Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso
em: 25 fev. 2011.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.

PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1980.

PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383.

846
VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.

VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio


Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.

Métodos de estatísticas

Quando utilizados, os métodos estatísticos precisam ser descritos com o pormenor necessário
para permitir o acesso aos dados originais e a verificação dos resultados apresentados por um leitor
versado no assunto; ao mesmo tempo, deve-se evitar linguagem excessivamente técnica e apresentá-
-los com suficiente clareza de modo a favorecer a compreensão de um leitor não especializado.
Tal solicitação aos autores requer providências como: procurar, sempre que possível, quantificar os
resultados e apresentá-los com os correspondentes indicadores de erro de medição ou de incerteza
(por exemplo, intervalos de confiança); evitar basear-se apenas em testes de inferência estatística,
que não veiculam informação quantitativa relevante; discutir a elegibilidade das unidades de
experimentação; fornecer informação pormenorizada sobre a aleatorização e sobre as observações;
discutir a razoabilidade dos resultados e relatar possíveis limitações do método utilizado; especificar
os programas informáticos utilizados; restringir quadros e figuras à quantidade necessária para
explicitar a fundamentação do artigo e sua solidez; evitar quadros com muitos tópicos e duplicação
de dados; definir termos estatísticos, abreviaturas e símbolos utilizados no artigo.

Avaliação inicial

O manuscrito passa por uma apreciação preliminar feita pela comissão editorial, após a qual,
ou será devolvido para o/a autor/a com observações, ou enviado diretamente para pareceristas
externos/as. O objetivo dessa etapa inicial é avaliar se o manuscrito se enquadra nas diretrizes
e escopo de Educação e Pesquisa, e se tem potencial de diálogo com o campo educacional,
contribuindo para a construção de conhecimentos dentro deste campo. A partir dessa apreciação,
a comissão editorial decide se uma avaliação externa integral é justificada.

Processo de avaliação pelos pares

Os artigos recebidos para eventual publicação em Educação e Pesquisa serão previamente


avaliados pela Comissão Editorial. Aqueles que estiverem fora dos critérios editoriais da revista
serão devolvidos e os demais encaminhados para a análise de pareceristas, sendo no máximo um
deles membro da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, à qual esta publicação
está subordinada. Os avaliadores consultados terão, no mínimo, o título de doutor e pertencerão
a instituições científicas diversas. Os nomes dos autores, dos pareceristas e das instituições a que
pertencem permanecerão em sigilo durante todo o processo. A revista publica anualmente os
nomes de seu corpo de pareceristas ad hoc.
Os aspectos que orientam a avaliação dos originais encaminhados aos pares para análise
são: conteúdo teórico e empírico, domínio da literatura científica, atualidade do tema, contribuição
para a área de conhecimento específica, originalidade da abordagem, estrutura do texto e qualidade
da redação. Os avaliadores poderão recomendar a aceitação integral do texto, indicar recusa
ou, ainda, sugerir modificações para nova avaliação. A Comissão Editorial poderá submeter as

847
sugestões de reformulações ao autor e o artigo, já reformulado, retornará aos mesmos avaliadores
para um parecer final.

Autoria

Entende-se como autor todo aquele que tenha efetivamente participado da concepção do
estudo, do desenvolvimento da parte experimental, da análise e interpretação dos dados e da
redação final. Recomenda-se não ultrapassar o número total de quatro autores. Caso a quantidade
de autores seja maior do que essa, deve-se informar ao editor responsável o grau de participação
de cada um. Em caso de dúvida sobre a compatibilidade entre o número de autores e os resultados
apresentados, a Comissão Editorial reserva-se o direito de questionar as participações e de recusar
a submissão se assim julgar pertinente.
Ao submeter um artigo para publicação em Educação e Pesquisa, o autor concorda com
os seguintes termos:
1. O autor mantém os direitos sobre o artigo, mas sua publicação na revista implica, au-
tomaticamente, a cessão integral e exclusiva dos direitos autorais para a primeira edição,
sem pagamento.
2. As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não
refletindo, necessariamente, as opiniões da revista.
3. Após a primeira publicação, o autor tem autorização para assumir contratos adicionais,
independentes da revista, para a divulgação do trabalho por outros meios (ex.: publicar em
repositório institucional ou como capítulo de livro), desde que feita a citação completa da
mesma autoria e da publicação original.
4. O autor de um artigo já publicado tem permissão e é estimulado a distribuir seu trabalho
on-line, sempre com as devidas citações da primeira edição.

Conflitos de interesse e ética de pesquisa

Caso a pesquisa desenvolvida ou a publicação do artigo possam gerar dúvidas quanto a


potenciais conflitos de interesse, o autor deve declarar em nota final que não foram omitidas
quaisquer ligações a órgãos de financiamento, bem como a instituições comerciais ou políticas.
Do mesmo modo, deve-se mencionar a instituição à qual o autor eventualmente esteja vinculado,
ou que tenha colaborado na execução do estudo, evidenciando não haver quaisquer conflitos de
interesse com o resultado ora apresentado. É também necessário informar que as entrevistas e
experimentações envolvendo seres humanos obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos
para a pesquisa científica.
Os nomes e endereços informados à revista serão utilizados exclusivamente para os serviços
prestados por esta publicação, não sendo disponibilizados para outras finalidades ou a terceiros.

Correspondência:
Faculdade de Educação - USP
Educação e Pesquisa
Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca
05508-040 - São Paulo/SP
Tel./Fax: (11) 3091-3520
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848
Instructions to authors

Educação e Pesquisa publishes only previously unpublished articles in the field of education
and does not consider manuscripts concurrently submitted for publication in books or other
periodicals in Brazil or abroad. Manuscripts must be submitted via the journal’s page in SciELO
publishing system (http://www.scielo.org/php/index.php).
The time frame necessary for submissions to complete the review process – and be selected
or rejected – varies according to the complexity of the reviews and possible changes suggested and
implemented. The dates of receipt and approval of each article are stated in the published text. For each
of the journal’s issues, the Editorial Board establishes the criteria of organization of the articles approved.

Guidelines for manuscript submission

Upon submission of an article, authorship and the author’s institutional affiliations must
be filled out in proper spaces in SciELO System and should not be mentioned in the text, which
will be submitted to blind peer review. Any references that enable reviewers to infer indirectly the
authorship of the work are not accepted either. Authorship information is recorded separately, as
metadata, and it is accessed only by the editors.
When preparing the manuscript, the following guidelines should be followed:

• The manuscript can be submitted in Portuguese, Spanish or English. It should be typed


in Word for Windows, Times New Roman font, 12-point font size, 1.5 line spacing. All the
manuscript pages should be numbered sequentially. The body of the manuscript should
have a minimum length of 35,000 and a maximum length of 50,000 characters, including
spaces and not including the abstract.

• The title of the manuscript should have 15 words or fewer.

• The abstract should contain between 200 and 250 words and describe, in an informative
manner and without listing topics, the following items: general theme and research problem;
objectives and/or hypotheses; methodology; main results and conclusions. It is recommended
that the abstract should be written as a single paragraph, in the active voice, in the third
person of the singular, in concise and affirmative sentences. The following items should
be avoided: neologisms, bibliographical citations, symbols and abbreviations except those
in common use, as well as formulae, equations, diagrams etc., unless absolutely necessary.

• The article should have 3 to 5 keywords.

• Possible acknowledgements should be cited with the title, but in a footnote, and without
any direct or indirect reference to the authorship.

• Tables, charts, graphs, and figures (photos, drawings and maps) should be numbered
with Arabic numerals in the order in which they appear in the text and should include
appropriate headers. Legends should appear right below each figure. Maps should contain
graph scales and legends.
• Images must be grayscale, be scanned electronically in JPG format with 300 dpi or
higher resolution and have dimensions that allow reducing or enlarging them without

849
impairing their readability. All images must be submitted as separate files and named
according to their references in the text (e.g., Graph 1).

• Explanatory footnotes should be avoided and used only when strictly necessary for
understanding the text. Their maximum length should be three lines. Notes should be
numbered in Arabic numerals according to the order in which they appear in the text.

• Citations in the text should meet the following criteria:


a) quotations of up to three lines should be run in – integrated into the text in the same
font size as the text - enclosed in quotation marks and be followed by the following
information in parentheses: last name of the author of the quote, the year of publication
and page numbers;
b) quotations longer than three lines should be set off as block quotations – that is, in a new
paragraph with a hanging indent of 4 cm on the left, 11 point font, without quotation marks;
c) if there is no quotation, but just a reference to some work, the author’s last name should
be cited in parentheses in capital letters along with the year of publication.

• References must conform strictly with the technical standard NBR6023 of August 30,
2002 of the Brazilian Association of Technical Standards (ABNT). Only works cited in the
text should be included in the reference list, under the heading References, at the end of
the article and on a separate page.

Examples:

FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São


Paulo: FFCL/USP, 1954.

FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.

FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.

FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.

MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand


Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso
em: 25 fev. 2011.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.

PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1980.

PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383.

VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.

850
VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.

Statistical methods

When employed, statistical methods must be described in sufficient detail to allow a competent
reader access to the original data and verification of the results presented, whilst avoiding excessively
technical language and presenting results with enough clarity so as to facilitate their understanding
by a non-specialized reader. This guidance to authors requires steps such as: seeking, as much as
possible, to quantify the results and present them with corresponding indicators of measurement error
or uncertainty (for example, confidence intervals); avoiding relying solely on statistical inference tests
that convey no relevant quantitative information; discussing the eligibility of the experimentation
units; supplying detailed information about randomization and about the observations; discussing
the reasonableness of the results, as well as the possible limitations of the method used; specifying
the software employed; restricting tables and graphics to the amount necessary to explain the foun-
dations of the article and their robustness; avoiding tables with too many topics and duplication of
data; defining statistical terms, abbreviations and symbols used in the article.

Initial assessment

Manuscripts undergo a preliminary assessment by the editorial board. Then they are
returned to their authors with observations, or sent directly to external referees. The purpose of
this initial phase is to assess whether the manuscript fits the scope and guidelines of Education
and Research and whether it has potential for dialogue with the educational field, contributing to
the knowledge within this field. Using this assessment, the editorial board decides whether a full
external review is justified.

Peer review process

The articles received for their eventual publication in Educação e Pesquisa will be
previously read by the Editorial Board. The articles that do not meet the editorial requirements
shall be returned, and the rest of them will be forwarded to three evaluators for their analysis. At
the most, one of the evaluators will be a member of the School of Educaton of the Universidade
de São Paulo, to which the journal is subordinated. All evaluators have at least a doctor’s degree
and belong to various scientific institutions. The names of the authors, the evaluators and the
institutions they belong to will remain undisclosed throughout the entire process. The journal
publishes annually the names of its body of evaluators ad hoc.
The aspects that guide the evaluation of the articles are: theoretical and empirical content,
author’s knowledge of scientific literature, current relevance of the topic, contribution to the specific
area of knowedge, originality of the approach, text structure and writing style. The evaluators may
recommend the integral acceptance of the text or its rejection, or they may suggest modifications
for a new evaluation. The Editorial Board may submit such suggestions to the author of the article,
and after the changes have been included, the Board will send the article again to the evaluators
for a final evaluation

851
Authorship

Author is understood here as anyone who has effectively taken part in the conception of the
study, in the development of the experimental sections, in the analysis and interpretation of data
and in the final writing. It is recommended that the total number of authors should not be greater
than four. If the number of authors is larger than that, the editor in charge must be informed of
the degree of participation of each author. In the case of doubt about the compatibility between
the number of authors and the results presented, the Editorial Board has the right to question the
participation of authors and to refuse submission at its discretion.
By submitting an article for publication in Educação e Pesquisa the author agrees to the
following terms:
1. The author holds the article copyrights, but its publication in the journal automatically
implies the author’s agreement to release its complete copyright to the journal’s first issue,
without financial compensation.
2. The ideas and opinions expressed in the article are the author’s exclusive responsibility
and they do not necessarily reflect the opinions of the journal.
3. After the article’s first publication, the author is authorized to assume additional contracts,
independent from the journal, to publish or present the work through other means (e.g.
in an institutional repository or as a book chapter), as long as a complete quote of the
authorship and of the original publication are provided.
4. The author of an article published in the journal has the right to, and is encouraged to,
distribute the work on-line, always quoting its first publication in the journal.

Conflicts of interest and research ethics

When the research developed or the publication of the article may raise doubts about
potential conflicts of interest, the author should declare in an endnote that no links to funding
agencies or to commercial or political institutions have been omitted. Similarly, the institution to
which the author is associated, or that has collaborated in the conducting of the study, should also
be mentioned to guarantee that there are no conflicts of interest with the results being presented.
It is also necessary to inform that the interviews and experiments involving human beings have
followed the ethical procedures established for scientific research.
The names and email addresses entered in this journal site will be used exclusively for the
stated purposes of this journal and will not be made available for any other purpose or to any
other party.

Contact:
Faculdade de Educação - USP
Educação e Pesquisa
Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca
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852
Instrucciones a los autores

Educação e Pesquisa publica solamente artículos inéditos en el área de Educación y no


acepta trabajos que hayan sido enviados simultáneamente a libros u otros periódicos nacionales o
extranjeros. Los trabajos se deben enviar a través de la página de la revista en el Sistema SciELO
de Publicação (http://www.scielo.org/php/index.php).
El plazo para respuesta (aceptación o rechazo) varía según la complejidad de las evaluaciones
y posibles alteraciones sugeridas y realizadas. Las fechas de recibimiento y aprobación de cada
colaboración se informarán en el texto publicado. Le corresponde al Comité Editorial definir, en
cada número de la revista, los criterios para reunir los artículos ya aprobados.

Directrices para la presentación de trabajos

Al proponer un artículo, la identificación del (de los) autor(es) y la pertenencia institucional


se deben rellenar en los espacios propios del Sistema SciELO y no deben figurar en el cuerpo del
texto, que se enviará para evaluación. No se aceptará ninguna referencia que le permita al lector
crítico inferir indirectamente la autoría del trabajo. Las informaciones autorales se registran a
parte y solamente los editores tienen acceso a ellas. De esa forma, el Comité Editorial garantiza
el anonimato de autores y evaluadores.
Al redactar el artículo, se deben considerar las siguientes orientaciones:

• El texto se puede presentar en portugués, español o inglés, se debe digitar en procesador


de texto Word for Windows, en Times New Roman 12 pto, espacio 1,5. Todas las páginas
del original se deben numerar secuencialmente. El texto debe tener como mínimo 35.000
caracteres y como máximo 50.000, considerando espacios y excluyendo el resumen.

• El título del artículo debe tener como máximo 15 palabras.

• El resumen debe contener entre 200 y 250 palabras y explicitar, con carácter informativo y
sin enumeración de tópicos, los siguientes ítems: tema general y problema de la investigación;
objetivos y/o hipótesis; metodología empleada; principales resultados y conclusiones. Se
recomienda el uso de un único párrafo, voz activa y tercera persona del singular, frases
concisas y afirmativas. Se deben evitar: neologismos, citaciones bibliográficas, símbolos
y contracciones que no sean de uso corriente, así como fórmulas, ecuaciones, diagramas,
etc. que no sean absolutamente necesarios.

• Se deben incluir de 3 a 5 palabras clave.

• Los agradecimientos (opcionales) se deben mencionar junto al título, pero en nota de pie
de página y sin ninguna referencia, directa o indirecta, a la autoría.

• Tablas, cuadros, gráficos y figuras (fotos, dibujos y mapas) deben estar numerados con
números arábigos según la secuencia en que aparezcan, siempre referidos en el cuerpo del
texto y encabezados por su respectivo título. Inmediatamente debajo de las figuras deben
constar sus respectivos subtítulos. Los mapas deben presentar escalas y subtítulos gráficos.

• Las imágenes deben figurar en blanco y negro y deben estar digitalizadas electrónicamente
en formato JPG con resolución a partir de 300 ppp. Deben presentarse en dimensiones

853
que permitan ampliarlas o reducirlas sin perjudicar su legibilidad. Todas las imágenes
deben enviarse separadamente, en sus archivos originales. El nombre de cada archivo debe
corresponder al nombre de la imagen (por ejemplo: Gráfico 1).

• Notas de pie de página de carácter explicativo se deben evitar. Pueden utilizarse


únicamente cuando sean imprescindibles para la comprensión del texto y deben tener la
extensión máxima de tres líneas. Las notas deben estar numeradas con números arábigos
según la secuencia en que aparezcan en el texto.

• Las citas en el cuerpo del texto deben obedecer a los siguientes criterios:
a) Citas textuales que tengan hasta tres líneas se deben incorporar al párrafo, transcritas
entre comillas y acompañadas de las siguientes informaciones entre paréntesis: apellido
del autor de la cita, año de publicación y número de página;
b) Citas textuales que tengan más de tres líneas deben estar en párrafo aislado, con margen
izquierdo de 4 cm, letra tamaño 11 y sin comillas;
c) Si no hay cita textual sino cita bibliográfica, el apellido del autor tiene que estar indicado
entre paréntesis, con letras mayúsculas, junto al año de la publicación mencionada.

• Las referencias deben obedecer a la norma técnica NBR6023, de 30/08/2002, de la


Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Solamente las obras mencionadas a lo
largo del texto deben figurar en la bibliografía, que debe constar con el título de Referencias,
al final del texto y en página separada.

Ejemplos:

FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São


Paulo: FFCL/USP, 1954.

FERNANDES, Florestan. Prefácio. In: PEREIRA, Luiz. A escola numa área metropolitana.
São Paulo: FFCL/USP, 1960.

FERNANDES, Florestan. Sobre o trabalho teórico. Transformação, Assis, n. 2, p. 11, 1975.


FERREIRA, Márcia dos Santos. O Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo
(1956/1961). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2001.

MARTUCCELLI, Danilo. Grand résumé de la société singulariste. SociologieS, Paris, Armand


Colin, 2010. Disponível em: <http://www.sociologies.revues.org/index3344.html>. Acesso
em: 25 fev. 2011.

PAIVA, Vanilda Pereira. Educação popular e educação de adultos. São Paulo: Loyola, 1973.

PAIVA, Vanilda Pereira. Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvimentista. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1980.

PARSONS, Talcott. Uma visão geral. In: PARSONS, Talcott. (Org.). A sociologia americana:
perspectivas, problemas, métodos. São Paulo: Cultrix, 1970. p. 366-383.

VALLE, Ione Ribeiro. O lugar dos saberes escolares na sociologia brasileira da educação.
Currículo sem Fronteiras, v. 8, n. 1, p. 94-108, jan./jun. 2008.

854
VIDAL, Diana Gonçalves (Org.). Na batalha da educação: correspondência entre Anísio
Teixeira e Fernando de Azevedo (1929-1971). Bragança Paulista: EDUSF, 2000.
Métodos y estadísticas

Cuando utilizados, los métodos estadísticos se tienen que describir con el detalle necesario
para permitir el acceso a los datos originales y la comprobación de los resltados presentados
por un lector versado en el asunto; por otro lado, se debe evitar un lenguaje excesivamente
técnico y presentarlo con suficiente claridad de modo a favorecer la comprensión de un lector no
especializado. Tal solicitud a los autores requiere providencias tales como: buscar, siempre que
posible, cuantificar los resultados y presentarlos con los correspondientes indicadores de error
de medición o de incertidumbre (por ejemplo, intervalos de confianza); evitar basarse solamente
en tests de inferencia estadística, que no vehiculan información cuantitativa relevante; discutir
la elegibilidad de las unidades de experimentación; proveer información pormenorizada sobre lo
aleatorio y sobre las observaciones; discutir la razonabilidad de los resultados y dar a conocer
posibles limitaciones del método utilizado; especificar los programas informáticos empleados;
restringir cuadros y figuras a la cantidad necesaria para explicitar la fundamentación del artículo
y su solidez; evitar cuadros con demasiados tópicos y duplicación de datos; definir términos
estadísticos, abreviaturas y símbolos utilizados en el artículo.

Evaluación Inicial

El artículo pasa por una valoración preliminar realizada por la comisión editorial, después
de la cual, puede ser devuelto al autor /a con observaciones, o, enviado directamente para
evaluadores externos/as. El objetivo de esa etapa inicial es evaluar si el artículo se ajusta a las
directrices y alcance de Educação e Pesquisa, así como su potencial de diálogo con el campo
educacional, contribuyendo en la construcción de conocimientos dentro de este campo. A partir
de esa apreciación, la comisión editorial decide si se justifica una evaluación externa integral.

Proceso de revisión por pares

Los artículos enviados para eventual publicación en la Educação e Pesquisa serán previamente
evaluados por el Comité Editorial. Los que no estén de acuerdo con los criterios editoriales de la
revista se devolverá a sus autores y los demás enviados para análisis de tres evaluadores, como
máximo uno de ellos será miembro de la Facultad de Educación de la Universidad de São Paulo,
a la que la revista está subordinada. Los evaluadores consultados pertenecen a instituciones
científicas diversas y tendrán, como mínimo, el título de doctor. Los nombres de los autores, de
los evaluadores y de las instituciones a que pertenecen permanecen anónimos durante todo el
proceso. La revista publica a cada año los nombres de sus evaluadores ad hoc.
Los aspectos que orientan la evaluación de los originales enviados a los pares para el
análisis son: contenido teórico y empírico, dominio de la literatura científica, actualidad del tema,
contribución para el área de conocimiento específica, originalidad del abordaje, estructura del
texto y calidad de redacción. Los evaluadores podrán recomendar la aceptación del texto en su
íntegra, o su rechazo, o aun sugerir modificaciones para nueva evaluación. El Comité Editorial
podrá someter las sugerencias de reformulación al autor y el artículo, ya reformulado, retornará
a los mismos evaluadores para una evaluación final.

855
Autoría

Se entiende por autor todo el que haya participado efectivamente de la concepción del
estudio, del desarrollo de la parte experimental, del análisis e interpretación de datos y de la
redacción final. Se recomienda no exceder el número total de cuatro autores. En el caso de
que la cantidad de autores exceda ese número, se debe informar al editor responsable el grado
de participación de cada uno. Si hay alguna duda sobre la compatibilidad entre el número de
autores y los resultados presentados, el Comité Editorial se reserva el derecho de cuestionar las
participaciones y de rechazar la sumisión del artículo si lo juzga pertinente.
Al someter un artículo para publicación en Educação e Pesquisa el autor está de acuerdo
con los siguientes términos:
1. El autor mantiene los derechos sobre el artículo, pero su publicación en la revista implica,
automáticamente, la cesión total y exclusiva de los derechos de autor para la primera
edición, sin pago.
2. Las ideas y opiniones expresadas en el artículo son de exclusiva responsabilidad del
autor y no reflejan necesariamente las opiniones de la revista.
3. Después de la primera publicación, el autor tiene autorización para asumir contratos
adicionales, independientes de la Revista, para la divulgación del trabajo por otros medios
(ex.: publicar en repositorio institucional o como capítulo de libro), desde que hecha la cita
completa de la misma autoría y de la publicación original.
4. El autor de un artículo ya publicado tiene permiso y es estimulado a distribuir su trabajo
online, siempre con las debidas citas de la primera edición.

Conflictos de interés y ética de investigación

En el caso de que la investigación desarrollada o la publicación del artículo puedan


generar dudas en cuanto a potenciales conflictos de interés, el autor debe declarar en nota final
que no se han omitido cualesquiera relaciones con órganos de financiamiento ni tampoco con
instituciones comerciales o políticas. De la misma manera, se debe mencionar la institución a la
que el autor esté vinculado, o que haya colaborado en la ejecución del estudio, evidenciando
que no hay cualquier tipo de conflictos de interés con el resultado que se presenta. También es
necesario informar que las entrevistas y experimentos que impliquen a seres humanos obedezcan
a los procedimientos éticos establecidos para la investigación científica.
Los nombres y las direcciones informados en esta revista serán utilizados exclusivamente
para los servicios dados por la publicación, no estarán disponibles a otros propósitos o a terceros.

Correspondencia:
Faculdade de Educação - USP
Educação e Pesquisa
Av. da Universidade, 308 - 2º andar - Biblioteca
05508-040 - São Paulo/SP
Tel/Fax: (11) 3091-3520
E-mail: revedu@usp.br

856
Leia também / See also
Educação e Pesquisa
revista da faculdade de educação da usp

Sumários

Educação e Pesquisa Educação e Pesquisa


v. 40, n. 2, abr./jun. 2014 v. 40, n. 1, jan./mar. 2014

Artigos Artigos

PACKER, Abel Laerte. A eclosão dos periódicos do Brasil e ROSISTOLATO, Rodrigo; VIANA, Guilherme. Os gestores
cenários para o seu porvir, p. 301-323. educacionais e a recepção dos sistemas externos de
REGO, Teresa Cristina. Produtivismo, pesquisa e comunicação avaliação no cotidiano escolar, p. 13-28.
científica: entre o veneno e o remédio, p. 325-346. FREITAS, André Luís Policani; SILVA, Vinicius Barcelos da.
BENCHIMOL, Jaime L.; CERQUEIRA, Roberta C.; PAPI, Avaliação e classificação de instituições de ensino médio:
Camilo. Desafios aos editores da área de humanidades um estudo exploratório, p. 29-47.
OSTI, Andréia; MARTINELLI, Selma de Cássia. Desempenho
no periodismo científico e nas redes sociais: reflexões e
escolar: análise comparativa em função do sexo e
experiências, p. 347-364. percepção dos estudantes, p. 49-59.
ALVES, Mariana Gaio; AZEVEDO, Nair Rios; GONÇALVES, BARREYRO, Gladys Beatriz; ROTHEN, José Carlos. Percurso da
Teresa N. R. Satisfação e situação profissional: um estudo avaliação da educação superior nos governos Lula, p. 61-76.
com professores nos primeiros anos de carreira, p. 365-382. BROOKE, Nigel; FERNANDES, Neimar da Silva; MIRANDA,
RAMOS, Madalena; PARENTE, Cristina; SANTOS, Mónica. Isabela Pagani Heringer de; SOARES, Tufi Machado.
Os licenciados em Portugal: uma tipificação de perfis de Modelagem do crescimento da aprendizagem nos anos
inserção profissional, p. 383-400. iniciais com dados longitudinais da pesquisa GERES, p.
ABREU, Daniela Gonçalves de; MOURA, Manoel Oriosvaldo 77-94.
MONTEIRO, Maria Inês Bacellar; FREITAS, Ana Paula de.
de. Construção de instrumentos teórico-metodológicos
Processos de significação na elaboração de conhecimentos
para captar a formação de professores, p. 401-414. de alunos com necessidades educacionais especiais, p.
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FERREIRA, Marcia Serra. Sentidos de prática pedagógica SOFIATO, Cássia Geciauskas; REILY, Lucia Helena.
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Educação e Pesquisa Educação e Pesquisa
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