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intenção pré-didáctica
Autor(es): Baptista, Fernando Paulo do Carmo
Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23934
persistente:
Accessed : 16-Mar-2019 13:09:41
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MÁTHESIS 4 1995 321-336
POESIA E PROSA,
AS DUAS ESFERAS EXPRESSIONAIS DA LITERATURA
(UMA ABORDAGEM DE INTENÇÃO PRÉ-DIDÁCTICA)
Ao PROF.DOUTOR
VÍTOR MANUEL DE AGUIAR E SILVA
1. LITERATURA E POESIA
2°. a nível das interacções entre poesia e prosa literária (prosa poética,
poema em prosa, prosa narrativa de ficção ... ), assistiu-se a uma crescente
dinâmica com inevitáveis e recíprocas influências transformadoras e à
própria reconsideração do seu "estatuto" de valor e de importância, desde
logo no interior do próprio campo da Arte Literária ou Literatura, e com
natural projecção em todo o meio social. Cabe relembrar, a propósito, que
o designador "Literatura" foi, como vimos, recuperar a primigénia valência
gráfica da sua matriz etimológica: litterallitteratura.
Tal designação não se afigura desprovida de pertinência, sendo certo
que hoje a criação/produção literária se concretiza, por via de regra, através
de actos de escrita e, portanto, com "letras" (litterae). Do mesmo modo, não
é por acaso que o autor/criador literário, seja ele poeta, seja ele prosador, se
(auto)referencia pelo designador genérico de "escritor", coexistindo com
frequência, na mesma pessoa, ambas as dimensões criativas, embora com
pesos nem sempre iguais ...
2.5. Parecem, pois, não estar tão separados entre si os dois grandes
territórios da Arte Literária, salvo a prosa narrativa de ficção, enquanto
realização discursiva mais expandida e sujeita a dinâmicas de desenvolvi-
mento e a processos técnico-compositivos que lhe são próprios.
E se é pertinente a posição de um célebre estudioso destes assuntos,
Boris Tomachevski (cf. Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, Lisboa,
Estampa, 1978, 183), quando considera «ser mais natural e fecundo estudar
o verso e a prosa, não como dois domínios de fronteiras sólidas e bem
demarcadas, mas como dois pólos, dois centros de gravidade, em tomo dos
quais se dispõem historicamente factos reais ( ... ), sendo legítimo falar de
fenómenos mais ou menos prosásticos e de fenómenos mais ou menos
versificados», tendo, por isso mesmo, de se recorrer às formas mais típicas
e mais expressivas de ambos, para resolver a questão fundamental da
distinção, também é verdade que a própria etimologia das duas designações
- verso e prosa - aponta para uma base comum, a partir da qual se dá a
diferenciação distintiva.
De facto, as palavras verso e prosa radicam no mesmo verbo latino ver-
tere, cujo particípio passado, versus-a-um (ou também vorsus-a-um, na sua
configuração mais arcaica) significa "voltado", "virado", "que deu a volta".
Do movimento regular de vaivém do arado (em grego: ~Ol)cr'tpo<P1JMv) ao
fim de cada sulco, se dizia versus, tal como o movimento da pena ou caneta
ao fim de cada linha escrita, ao retomar o início de nova linha. Num caso,
326 FERNANDO PAULO DO CARMO BAPTISTA
3.1. Dá-se, pois, o nome de poesia a uma das mais remotas actividades
criadoras incluídas no universo da Arte, própria dos poetas, que são, por
excelência, os inspirados artistas da palavra.
Homens ou mulheres de carne e osso como os demais humanos, têm
os poetas essa rara e singular capacidade, por via de regra precocemente
desenvolvida, de sentir, de viver e de captar intensa e profundamente o
mundo e a vida, em todas as suas dimensões, e de, na base de uma poderosa
"enciclopédia" de conhecimentos e saberes múltiplos e de um quase sempre
exímio domínio dos códigos (da "gramática") da língua e da literatura,
plasmarem, com o seu poder inventivo e criador, com a sua intuição, o seu
sonho, a sua imaginação e fantasia, novos seres, novos mundos, novas
realidades, orientados pelo seu pessoal e original modo de perspectivar e
realizar o "Belo", através das modalidades, modos, géneros, subgéneros e
estilos da Literatura (e dentro dela, da poesia), ora respeitando-os, ora
transgredindo-os, para os inovarem, criativamente, sem, todavia, caírem no
desregramento que impede a legibilidade ...
As suas produções - os poemas - têm originárias e profundas relações
com a voz, com o canto e com a música, nelas convergindo características
fundamentais daqueles três singularíssimos modos de comunicação e
expressão humana.
Um dos maiores pensadores deste século, Martin Heidegger, viu na
"voz" dos grandes poetas «o dizer que diz mais» (cf. o ensaio «Pourquoi des
poetes?» in Chemins qui ne menent nulle part, Paris, Gallimard, 1968, 258-
-259) e Eduardo Lourenço (op. cit., 38), na mesma linha de pensamento,
depois de (se) interrogar que linguagem poderá nomear melhor a realidade
humana que a linguagem dos poetas, conclui: «É poeticamente que habi-
tamos o mundo ou não o habitamos».
4.2. A FORMA
verbal de cada verso pode ser, como já foi referido, uma única palavra ou
uma sua fracção (com uma ou mais sílabas: Flor... ; Luar... ; Serena-
mente ... ), ou então uma sequência mais ou menos longa de palavras (canta
até te mudares em azul; E o vento dessa palavra é uma expansão da terra).
São raros os poemas constituídos por um único verso; a ocorrência mais
generalizada, digamos mesmo dominante, é a de os versos se agruparem em
conjuntos métricos denominados estrofes, estâncias ou copIas, classifica-
das de isométricas ou de heterométricas consoante são constituídas, ou não,
por versos com a mesma medida. Os códigos fónico-rítmico e óptico-
-métrico do nosso sistema literário comportam um "inventário" estrófico
muito rico e diversificado que inclui o monóstico (estrofe de um só verso,
como acontece geralmente com certos registos de natureza epigramática ou
semelhante), o dístico (ou parelha), o terceto, a quadra, a quintilha, a
sextilha, a sétima (septilha), a oitava, a novena, a décima, etc., e que se
actualiza em molduras poéticas rígidas marcadas por um forte grau de
invariância (sextina, soneto clássico, décima clássica, rondó ... ), em moldu-
ras poéticas menos rígidas, caracterizadas por um certo grau de variabili-
dade (glosa, vilancete, trioleto, terza rima, balada, canção clássica... ) e,
ainda, em molduras poéticas fluidas (proteiformes) que permitem as mais
diversas e originais combinatórias rítmicas, métricas e estróficas. (Ter em
conta, a propósito, as oposições isorritmia Vs heterorritmia, isometria Vs
heterometria, isostrofismo Vs alostrofismo, etc., em suas manifestações
mais "puras" ou mais "híbridas"; cf. Massaud Moisés, Dicionário de
Termos Literários, São Paulo, Editora Cultrix, 1992, artigo «Estrofe», 207-
211 e Amorim de Carvalho, Tratado de VersijiGaf!!!)_Portuguesa, Coimbra,
Almedina, 61991,95-167).
4.2.3. A RIMA
Se a poesia «é» tudo isto ... , como poderá aceitar-se a hipótese de haver
quem não goste dela? E, sendo assim, onde é que residirá a causalidade
dessa rejeição? Ignorância? Mau gosto? Ou ambas e outras coisas mais, em
simultâneo? Será a poesia «matéria» ensinável? E, se o for, qual a peculiar
natureza desse «ensinável»? Que métodos (ou contra-métodos ... ), que
"técnicas" reclama para se "ensinar" (in-signare)? É possível, ou não, criar
condições pedagógicas para que um jovem estudante realize aprendizagens
motivadoras e produtivas, sinta prazer e prazer profundo na leitura dum
texto poético, na criação dos seus próprios poemas? E se isso for possível,
poderá sê-lo fora de uma estratégia de sedução e de uma "atmosfera" de en-
cantamento que o enleiem e apaixonem, numa espécie de iniciação "eróti-
ca", primigénia e sem pecado, à prática de escutar, de dizer, de ler e de
escrever poemas? Poderá alguém apagar da memória da Cultura o valor e
o alcance do famoso registo de Platão (República, 606 e) que nos dá o len-
dário Homero metonimicamente canonizado pelos seus admiradores como
«o educador da Grécia» (cf. Maria Helena da Rocha Pereira, Hélade, Coim-
bra, IEC, 41982, 408 e Werner Jaeger, Paideia, México - Buenos Aires,
Fondo de Cultura Económica, 21962,30-47 e 48-66) e que legitima uma
outra leitura (agora em clave de sinédoque) segundo a qual a poesia, a des-
peito das conhecidas restrições daquele filósofo, foi seguramente na Euro-
pa como em toda a parte a criação que de entre quantas integram o universo
das Belas Artes mais fez avançar o Homem e transformar o mundo e avida?
Que essa «lâmpada miraculosamente intacta» (Eduardo Lourenço, op.
cit., 23), preservadora e inspiradora de todas as esperanças, jamais se
apague do coração dos homens!
REFERÊNCIAS BffiUOGRÁFICAS:
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982, 15-16.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Bélade, Coimbra, IEC, 41982, 408.
PRADO COELHO, Eduardo. Os Universos da Crítica, Lisboa, Edições 70, 1982,
71--99,173-18gepassim.
RIFFATERRE, Michael. Sémiotique de la poésie, Paris, Éditions du Seuil, 1983.
SKLOVSKU, Viktor. Teoria delta Prosa, Torino, Einaudi, 1976.
SUCHODOLSCHI, Bogdan. «A educação entre o ser e o tef», in revista Perspec-
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TELES, Gilberto Mendonça. Estudos de Poesia Brasileira, Coimbra, Almedina,
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TOMASCHEVSKI, Boris. «Sur le vers», in Tzvetan Todorov (org.), Théorie de
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