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Ressurreição
Miguel Torga, Libertação (Coimbra, 1944), in Poesia Completa, Vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 2007, p. 179.
1. Apresente, com base nas duas quadras, quatro razões que justifiquem o sono do poeta.
Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba de
dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede. A seus pés,
passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da
eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das
5 telhas, para dentro da venda.
E o Batola por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze
casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no
fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos
campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme
10 profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!
Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão
vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra.
Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da aldeia. Nenhuma virá
até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da
15 faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas. E António
Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e
apagado no silêncio que o cerca.
Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada. Leva as mãos à
cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os braços. E
20 abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal ansiedade, que parece que todo ele
se vai despegar aos bocados. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se
alongar, como um uivo de animal solitário.
Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que aquela
noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola, derrotado por mais
25 um dia.
“Sempre é uma companhia”, in Manuel da Fonseca, O fogo e as cinzas, Lisboa, Editorial Caminho, 2011, pp. 150-151
1. Descreva o espaço físico e social em que se desenrola a ação, tal como é perspetivado por Batola.
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Sugestão de cenários de resposta
1. O poeta «deitou-se e teve sono» porque nada motivava ou inspirava a sua arte poética: não tinha
sentimentos amorosos («nenhum coração era seu dono»), estava incapaz de viver ilusões («Mais
nenhuma ilusão lhe apetecia»); tudo nele e à sua volta era decadência e abandono («Cada fruto
maduro apodrecia; / Cada ninho morria de abandono»). Tudo aponta para o desaparecimento e morte
do poeta.
2. No primeiro terceto, fica claro que o adormecimento do poeta, referido anteriormente, se integra na
«razão da vida» porque só esta é capaz de perspetivar a organização cíclica, o ritmo das estações do
ano. Assim, se no inverno a natureza descansa, na primavera a natureza acorda e os seus rebentos
brotam. O mesmo acontece ao poeta que, após ter «adormecido», «hibernado», «desperta» do seu
sono capaz de deitar os seus rebentos: o poema.
3. A metáfora associa o ofício do poeta à Natureza. O poeta, após ter «adormecido» (no período do
inverno), acorda com a energia da Natureza em plena primavera: a sua seiva, cheia de vitalidade, está
pronta para gerar nova vida. Da mesma forma, a «seiva do poema» está pronta para dar vida a nova
arte poética que significará a ressurreição do poeta que se anuncia no título.
4. A acção desenrola-se num espaço semidesértico, num lugarejo muito pobre («casinhas desgarradas e
nuas»); os campos áridos não trazem mais-valias em termos sociais, «plainos sem fim» e «desertos».
Além disso, a vida é um constante marasmo, influenciado também pela ausência de perspetivas («Um
silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme profundamente»).
5. A personificação do tempo, apresentado como uma personagem, ajuda a caracterizar a vida «triste»
dos ceifeiros; a morosidade da passagem do tempo evidencia o estado psicológico e a monotonia que
envolve o dia a dia lento, repetitivo e rotineiro destas pessoas.