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Aos 35 anos Camilo Castelo Branco vive o maior dilema da sua vida. Perseguido pela justiça,
É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem for-
mada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericór-
dia?! Essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que
15 o pobre moço perdera a honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da
primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”
Alguém poderia dizer: não há coincidências. E não há, de facto. Camilo Castelo Branco está
preso na Cadeia da Relação do Porto por causa de um amor impossível. Para passar o tempo
escreve um romance genial sobre o amor trágico que leva o seu protagonista à Cadeia da Relação
20 no Porto.
Isabel Rocheta [Prof. Universitária FLUL] De alguma maneira, quando Camilo escolheu o subtí-
tulo de Amor de Perdição – Memórias de uma família – está a estabelecer uma identificação.
Quando abrimos a novela, na introdução, encontramos logo a figura de Simão através de
um registo das Cadeias da Relação do Porto, em que Simão aparece com a indicação da sua
25 filiação.
Annabela Rita [Prof. Universitária FLUL] Nós verificamos que ele, sujeito, narrador que se as-
sume como autor que escreve aquele texto e que escreve nas circunstâncias em que um seu
antepassado também… circunstâncias semelhantes às que um seu antepassado viveu e que
se encontra no mesmo lugar. Portanto, é essa coincidência, essa duplicidade que adensa a
30 tragédia, coincidência que ele vai explorar. É exatamente essa… essa coincidência que justifica
que ele escreva. Ele encontra o registo da prisão de Simão Botelho, seu tio… tio-avô. O que
importa é que é com base numa alegada coincidência de situações que ele vai contar a história
de Simão Botelho. E essa história é coincidente com a sua. Portanto, ao denunciar a situação…
enfim, da perseguição e da injustiça e ao reivindicar o direito ao amor e à paixão, e à concreti-
35 zação disso, ele está a defender-se a si próprio.
fotocopiável
40 Em 1849, num baile de Carnaval, Camilo Castelo Branco conhece o amor de uma vida: Ana
Plácido, inocente de 17 anos, solteira ainda. Camilo apaixona-se nesse momento, mas de pouco
vale. Um ano depois, Ana Plácido casa com Manuel Pinheiro Alves, emigrante que fizera fortuna
no Brasil. Camilo vai para Lisboa determinado a fazer-se escritor, mas os planos não correm
como previsto. Volta ao Porto, muda de vida, ingressa num seminário. A vocação religiosa tam-
45 bém falha. Fica no Porto e regressa à escrita. Vai publicando furiosamente e torna-se conhecido
a partir de 1856 com a edição de Onde está a felicidade?, obra elogiada por muitos, entre eles,
Alexandre Herculano. […]
Com a fama vem, finalmente, a concretização da paixão. Em 1858, a relação de Camilo e Ana
50 Plácido é comentada da Foz até à Campanhã, torna-se no escândalo preferido das boas famílias:
– Isso é mesmo verdade?
– Verdade?!
– Sim. Essa história da Ana Plácido e do Camilo…
– Eu acho que sim… eu acho que ela saiu de casa, abandonando o marido.
55 Ana abandona a casa do marido e vai viver com Camilo. Para escapar à pressão social, Ca-
milo, Ana e o filho mudam-se para Lisboa.
– Essa mulher manchou a sua honra. É altura de lutar e não se deixar vencer.
Pinheiro Alves tenta negociar o fim da relação, disposto a receber a sua mulher de volta a
casa, mas não tem sucesso. A paixão é forte e fala mais alto que os laços do matrimónio.
60 Em dezembro de 1859, o marido enganado leva o caso à justiça. Ana Plácido é acusada de
crime de adultério e Camilo de copular com mulher casada. Ana é presa em junho e Camilo, de-
pois de uma breve fuga, entrega-se a 1 de outubro. É uma novela seguida com avidez pelo povo.
[…]
José Manuel Oliveira [Bibliotecário e Museólogo Casa de Camilo] Criou-se em torno do julga-
mento de Camilo Castelo Branco e de Ana Plácido uma espécie de fações: umas que eram a
65 favor de Camilo outras que eram a favor de Pinheiro Alves. A verdade é que, mesmo nos jor-
nais, e mesmo em termos públicos, Pinheiro Alves encarregou-se de fazer alguma publicita-
OEXP11DP © Porto Editora
ção do escândalo desta relação. A verdade é que Camilo Castelo Branco acabou por conseguir
dar volta a isto tudo. E o escrever o Amor de Perdição não é tão inocente assim, independente-
mente do aspeto literário da obra, eu creio que, provavelmente também há aqui um fator muito
70 forte de tentar convencer os 12 jurados de que ele se perdera por amor. E a melhor forma de
convencer os 12 jurados era convencer as 12 mulheres dos 12 jurados e ele conseguiria isso
através de uma obra como foi o Amor de Perdição.
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