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a apreensão do começo e da origem leva a dois movimentos de comportamento exatamente

inverso: parte-se do começo, mas remonta-se à origem. É esse segundo sentido que designa
a história recorrente tradicional, a história retrospectiva e apologética, como uma
arqueologia, determinação reflexiva das origens. Tal retorno não se fixa como fim a
evidenciação de uma identidade (= eu interpreto o conceito de reflexo em um contexto
mecanicista e, aliás, é mesmo nesse contexto que ele aparece), mas de uma especificidade.
Trata-se, dentro do reflexo invertido da história, de reconhecer o verdadeiro sentido de uma
noção, não em um simples contexto teórico retrospectivo, mas em uma problemática real:
"É no presente que os problemas demandam reflexão. Se a reflexão conduz a uma regressão,
esta lhe é necessariamente relativa. Assim sendo, a origem histórica importa menos, na
verdade, que a origem reflexiva." Remontar à origem do conceito é pois resgatar a
permanência de uma questão e esclarecer seu sentido atual. Por exemplo, buscar as origens
do conceito de norma, como faz G. Canguilhem no final de seu livro sobre O normal e o
patológico, é mostrar como a idéia de uma fisiologia avançou a partir de uma patologia e
através das necessidades clínicas. Determina-se então, ao mesmo tempo, o sentido e o valor
de uma disciplina: sua natureza.
Esse modo de proceder permite precisar ainda a distinção entre o conceito e a teoria: a
presença contínua do conceito, em toda a linha diacrônica que sua história constitui, atesta a
permanência de um mesmo problema. Definir o conceito é formular um problema; o
balizamento de uma origem é também a identificação do problema. O importante é, pois,
reconhecer, através da sucessão das teorias, "a persistência do problema no âmago de uma
solução que se acredita lhe tenha sido dada".26 Por conseguinte, destacar o conceito para
escrever a história de uma ciência e distinguir
sua linha particular é recusar considerar o começo dessa história, e cada uma de suas etapas,
como
germe de verdade, como elemento de teoria, unicamente apreciável a partir das normas da
teoria
ulterior; recusar-se a fazer a reconstituição de premissas imaginárias para não ver, no que dá
início
a essa história, senão a fecundidade de uma atitude, ou ainda a elaboração de um problema.
Se o
conceito está do lado das questões, a teoria está do lado das respostas. Partir do conceito é
escolher
partir das questões para se escrever a história.

O conceito de norma fornece um bom exemplo dessa destituição do nível teórico e do


privilégio
concedido à abertura de uma problemática. É impossível dar uma determinação científica
do
conceito de norma: todas as tentativas feitas nesse sentido (pelo objeto da fisiologia, pela
idéia de
média...) evadem-se do domínio da ciência. Essas respostas se situam em um nível diferente
do da
questão: assim sendo, a resposta à "questão" do "homem médio" de Quêtelet lhe é dada por
Deus;
elas não podem, pois, servir de ponto de vista sobre a história, porque pertencem a uma outra
história: a resposta fornecida por Deus é demonstração suficiente. É impossível reduzir o
conceito à
teoria que ele apóia circunstancialmente, esclarecê-lo através dela. O que não quer dizer que
seja
impossível definir o conceito ou que a questão que nele reside esteja privada de sentido; pelo
contrário, é uma questão em busca de seu sentido, e é por isso que implica fundamentalmente
uma
história. Daí o conceito de norma possuir um valor eminentemente heurístico: a norma não
é nem
um objeto a ser descrito, nem uma teoria em potencial; assim sendo, ela pode ser utilizada
como
regra de pesquisa. "Parece-nos que a fisiologia tem mais a fazer que buscar definir
objetivamente27
o normal, e é reconhecer a normatividade original da vida."28 Reconhecer o conceito é
permanecer
fiel à questão e à sua natureza de questão em vez de buscar realizá-la, portanto em vez de
terminar
com ela sem tê-la realmente respondido. Essa exigência vale tanto para o modo de a ciência
proceder como para a história das ciências, sem que eles sejam assim reconduzidos a uma
medida
ou a um ponto de vista comuns: "O que nos importa não é tanto chegar a uma solução
provisória,
mas mostrar que um problema merece ser colocado."29 Surpreendentemente, foi nesse
sentido que
25 Observauons sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologíque, p. 29.
26 Id., p. 38.
27 Em outras palavras: como um objeto.
28 p. 109.
29 Id., p. 108.
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se recuperou a fórmula que faz da filosofia "a ciência dos problemas resolvidos",30 em uma
acepção
que Brunschwicg provavelmente não lhe deu: a filosofia — e é preciso dizer, embora isso
não deva
ficar inteiramente claro na continuação deste estudo, que a filosofia é a história — é a ciência
dos
problemas independentemente de sua solução, a ciência que não se preocupa com as soluções
porque, de certo modo, elas sempre existem, os problemas são sempre resolvidos em seu
próprio
nível; e a história das soluções não é senão uma história parcial, uma história obscura e que
obscurece tudo aquilo que toca, dando a ilusão de que é possível liquidar os problemas e
esquecêlos.
A história, deixando para trás a acumulação de teorias e respostas, é justamente a pesquisa
dos
problemas esquecidos, até em suas soluções.
Desse modo, toca-se em uma das maiores dificuldades presentes no trabalho de investigação*
do
conceito: se a presença do conceito compreende a permanência de uma questão, na maioria
das
vezes isso não ocorre senão de forma obscura, apresentando a questão como uma resposta,
travestindo o conceito em teoria. Entretanto, a questão jamais é esquecida: transposta, ela
permanece, e é ela que, no final das contas, é refletida por aquele que utiliza o conceito,
mesmo que
ignore aquilo que refletiu.

Em resumo: retornar ao conceito significa exibir a questão original, e é esse o sentido da


empreitada de uma arqueologia: na medida em que a questão não está amarrada às suas
respostas
por uma relação de necessidade — permanecendo o conceito independente de um contexto
teórico
—, a história descreve um verdadeiro vir a ser determinado mas aberto, dedicando-se a
restituir
mutações verdadeiras; e estas não podem ser marcadas senão através de sua relação com um
nascimento que só tem valor de medida no sentido de que ele não é o índice de uma
imutabilidade.

2. Fazer a história do conceito após seu nascimento é dar conta de um movimento, ainda que
se
possua o segredo de sua consistência, que é definida originalmente por uma polivalência.
Não se
tratará, portanto, de uma linha reflexiva em si mesma, mas de um trajeto que não existe senão
pelas
suas mudanças de sentido, suas distorções. Só assim se desmistifica o tema da origem, pois
ele foi
separado da representação de uma idade de ouro da verdade, realizada positivamente por
simples
projeção, e negativamente, como não-existência de uma incoerência. Sair da idade de ouro é
acentuar aquilo que justamente fora rejeitado no mito: o caos do erro. Reencontra-se a idéia
bachelardiana do valor epistemológico do falso, que é a única que permite exprimir a
passagem do
não-saber ao saber. No princípio do método encontra-se, portanto, a decisão de distinguir a
problemática verdadeiro-não verdadeiro da problemática saber-não saber, e de ater-se
30 Cf. La formation du concept de réflexe.
31 Introduction au traité de physiologie de Kayser, p. 16.
* Défouissement, no original. (N.T.)
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exclusivamente à segunda; para empregarmos uma terminologia marxista, que não é a de G.
Canguilhem, diremos que a primeira é uma problemática ideológica — e o cientista está
efetivamente comprometido com a ideologia de sua ciência —, em oposição à segunda, que
é uma
problemática científica: percebe-se a revolução epistemológica implicada nessa forma
particular de
escrever a história. Reconhece-se também a significação de uma teratologia dos conceitos,
como
descrição rigorosa do não-saber: por exemplo, um conceito viável retrospectivamente,
porque se
sabe apreciar a sua fecundidade, pode aparecer no momento do seu nascimento como
aberrante;
ele não repousa em nada; ainda não constituiu seu pano de fundo teórico. É então que se pode
compreender como o conceito evolui por razões não teóricas, particularmente pela
intervenção de
uma prática não científica, ou regulada a partir de uma outra ciência: o falso se revela então
não
ser, na maioria das vezes, senão a interferência não codificada de dois domínlos remotos;
sua
verdade é ser desproporção, mas ao mesmo tempo ele é, então, a condição de aparecimento
de uma
ciência.
A história que recusa a se deixar traduzir nos termos de uma lógica dada de partida,
independentemente dela, sabe, no momento devido, encontrar e pensar a lógica do
imprevisto. Há
necessidade de precisá-lo? Essa é uma teoria da própria racionalidade histórica, e não uma
ideologia da irracionalidade, ou irracionalismo.

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