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White, Lynn. 1974. The historical roots of our ecologic crisis.

Ecology and religion in


history. New York: Harper and Row, 1974.

Ter uma conversa com Aldous Huxley era frequentemente sinónimo de


assistirmos a um monólogo inesquecível. Cerca de um ano antes de ter morrido,
acontecimento lamentável, discorria sobre o seu tópico favorito: a forma nada natural de
o Homem tratar a Natureza e os infelizes resultados que daí decorrem. Para ilustrar o
seu ponto de vista, contou como no verão anterior havia regressado a um pequeno vale
em Inglaterra onde passara muitos e felizes meses quando era criança. Outrora o vale
fora formado por maravilhosas clareiras de erva; agora, estava repleto de moitas
selvagens e feias porque os coelhos que anteriormente mantinham o crescimento do
mato controlado haviam sucumbido em grande número a uma doença, a mixomatose,
que foi introduzida propositadamente pelos agricultores locais para reduzir a destruição
das colheitas provocada pelos coelhos. Tendo algo em mim de Filisteu, não pude ficar
calado durante mais tempo, mesmo no interesse da grande retórica. Interrompi para
salientar o fato de o próprio coelho ter sido trazido como animal doméstico para a
Inglaterra em 1176, supostamente para melhorar a dieta proteica da classe camponesa.

Todas as formas de vida modificam os meios onde se encontram. O exemplo


mais espetacular e benigno é indubitavelmente o pólipo de coral. Servindo os seus
próprios interesses, criou um vasto mundo subaquático favorável a milhares de outras
espécies de animais e plantas. O homem, desde que se tornou numa espécie numerosa,
afetou de forma considerável o seu meio ambiente. A hipótese de que um dos seus
métodos de caça, aquele em que usava o fogo para fazer sair os animais do meio da
vegetação, deu origem às grandes pradarias do mundo e ajudou a exterminar, de grande
parte do globo, os enormes mamíferos do Pleistoceno é plausível, se é que não foi já
provada. Há pelo menos seis milénios que as margens norte do Nilo têm sido um
artefato humano em vez da selva pantanosa africana que a Natureza, não fosse o
homem, pretendia que fosse. A Barragem Assuão, que submerge uma área de 5.000
milhas quadradas [aproximadamente 12.900 quilómetros quadrados], é a mais recente
fase de um longo processo. Em muitas regiões, as técnicas de construção em terraço ou
de irrigação, o pastoreio excessivo, o abate de florestas pelos Romanos para construir
navios para lutar contra os Cartagineses ou pelos Cruzados para resolver os problemas
logísticos das suas expedições, alteraram profundamente algumas ecologias. A
observação de que a paisagem francesa se dividia em dois tipos básicos, os campos
abertos do norte e o arvoredo das zonas sul e oeste, inspirou Marc Bloch a empreender o
seu estudo clássico sobre os métodos agrícolas medievais. De forma muito pouco
intencional, as mudanças dos costumes humanos afetam frequentemente a natureza não-
humana. Note-se, por exemplo, que o advento do automóvel eliminou os grandes
bandos de pardais que outrora se alimentavam dos excrementos de cavalo que poluíam
as ruas.

A história da mudança ecológica é ainda tão rudimentar que sabemos muito


pouco sobre o que realmente aconteceu, ou quais foram os seus resultados. A extinção
dos auroques europeus numa data tão tardia como 1627 parece ter sido um simples caso
de caça excessiva. Em assuntos mais complicados, é frequentemente impossível
encontrar informações concretas e fiáveis. Os Frísios e os Holandeses têm estado a
impedir o avanço do Mar do Norte ao longo de, pelo menos, mil anos, e o processo está
a culminar nos nossos dias com a conquista ao mar do golfo Zuider Zee. Que espécies,
se é que algumas, de animais, pássaros, peixes, vida costeira ou de plantas morreram
neste processo? No combate épico que travam com Neptuno, será que os Neerlandeses
negligenciaram os valores ecológicos a ponto de afectar a qualidade da vida humana nos
Países Baixos? Tanto quanto sei, estas perguntas nunca foram feitas, muito menos
respondidas.

As pessoas têm, pois, sido frequentemente um elemento dinâmico no seu próprio


meio ambiente, mas, no estado actual da aprendizagem histórica, é habitual não
sabermos exactamente quando, onde ou com que efeitos se produziram as mudanças
induzidas pelo homem. Contudo, ao entrarmos no último terço do século XX, a
preocupação com os efeitos ecológicos adversos está a crescer desmesuradamente. A
ciência natural, concebida como o esforço por compreender a natureza das coisas,
floresceu em várias eras e junto de vários povos. Da mesma forma, deu-se a acumulação
de antigas aptidões tecnológicas, que umas vezes cresceram rapidamente, outras
lentamente. Mas foi apenas há cerca de quatro gerações que a Europa Ocidental e a
América do Norte conseguiram arranjar um casamento entre a ciência e a tecnologia; a
união entre as abordagens teórica e empírica ao nosso meio ambiente natural. A
emergência da prática generalizada do credo de Francis Bacon, segundo o qual o
conhecimento científico significa poder tecnológico sobre a Natureza, praticamente não
pode ser datada antes de 1850, exceção feita às indústrias químicas, onde esta já se
efetuava no século XVIII. A sua aceitação como um padrão normal de ação pode
marcar o maior acontecimento da história humana desde a invenção da agricultura, e
possivelmente também da história terrestre não-humana.

A nova situação forçou, quase de imediato, a cristalização do mais recente


conceito de ecologia; de facto, a palavra ecologia apareceu pela primeira vez na língua
inglesa em 1873. Hoje, menos de um século mais tarde, a força do impacto da nossa
raça no meio ambiente cresceu tanto que mudou na essência. Quando foram disparados
os primeiros canhões, no início do século XIV, estes afetaram a ecologia ao enviarem
trabalhadores para as florestas e montanhas no intuito de procurarem mais potassa,
enxofre, minério de ferro e carvão vegetal, advindo daí alguma erosão e desflorestação.
As bombas de hidrogénio estão num patamar totalmente diferente: uma guerra travada
com elas pode alterar a genética de toda a vida existente neste planeta. Por volta de
1285, Londres já enfrentava o problema do smog, resultante da queima de linhite, mas a
atual combustão de combustíveis fósseis que o homem faz ameaça mudar a química da
atmosfera do globo como um todo, com consequências que só agora começamos a
vislumbrar. O certo é que, com a explosão populacional, o carcinoma do urbanismo não
planeado, o que agora são depósitos geológicos de detritos e lixo, nenhuma outra
criatura para além do homem conseguiu estragar e contaminar o seu ninho tão
rapidamente.

Já foram feitos muitos apelos à ação, mas as propostas específicas que surgiram,
por muito meritórias que sejam individualmente, parecem ser demasiado parciais,
paliativas, negativas: banir a bomba, deitar abaixo os quadros para afixar cartazes, dar
aos Hindus contraceptivos e dizer-lhes que comam as vacas sagradas. A solução mais
simples para qualquer mudança suspeita é, evidentemente, acabar com ela; ou melhor
ainda, remeter para um passado romantizado: fazer com que as horríveis bombas de
gasolina se pareçam com uma das cabanas de Anne Hathaway ou (no Faroeste) com
bares de cidades-fantasma. A mentalidade “área selvagem” defende invariavelmente,
seja em San Gimignano ou em High Sierra, o regresso estático a uma ecologia que
existia antes de o primeiro lenço de papel ter sido deitado fora. Mas, nem o atavismo
nem a petrificação conseguirão resolver a crise ecológica dos nossos tempos.
O que fazer? Ainda ninguém sabe. Se não pensarmos sobre o que é fundamental,
as medidas específicas que tomamos poderão produzir novos efeitos nocivos; efeitos
ainda mais graves do que aqueles que deveriam remediar.

Para começar, devíamos tentar clarificar a nossa forma de pensar olhando, com
alguma profundidade histórica, para os pressupostos que estão subjacentes à tecnologia
e ciência modernas. A ciência era tradicionalmente aristocrática, especulativa,
intelectual no seu propósito; a tecnologia era da classe baixa, empírica e orientada para
a acção. A rápida fusão de ambas, em meados do século XIX, está seguramente
relacionada com as revoluções democráticas contemporâneas, embora ligeiramente
anteriores, que, para reduzir as barreiras sociais, tiveram tendência a defender uma
unidade funcional entre o cérebro e a mão. A nossa crise ecológica é o produto de uma
cultura democrática emergente e totalmente nova. A questão que se coloca é saber se
um mundo democratizado consegue sobreviver às suas próprias implicações.
Presumivelmente não consegue, a não ser que repensemos os nossos axiomas.

As Tradições Ocidentais da Tecnologia e da Ciência

Há uma coisa tão evidente que chega mesmo a parecer estúpido verbalizá-la:
tanto a tecnologia moderna como a ciência moderna são distintamente ocidentais. A
nossa tecnologia absorveu elementos de todas as partes do mundo, nomeadamente da
China, porém, um pouco por todo o lado, seja no Japão ou na Nigéria, a tecnologia de
sucesso é ocidental. A nossa ciência foi herdeira de todas as ciências do passado, talvez
em especial do trabalho dos grandes cientistas islâmicos da Idade Média, que tão
frequentemente suplantavam os antigos Gregos em aptidão e perspicácia: al-Razi na
medicina, por exemplo; ou ibn-al-Haytham na óptica; ou Omar Khayyam na
matemática. De facto, não foram poucas as obras de génios como estes cujos originais
árabes parecem ter desaparecido, sobrevivendo apenas as traduções medievais em latim
que ajudaram a lançar as bases dos progressos ocidentais posteriores. Hoje em dia, no
mundo inteiro, toda a ciência importante é ocidental, tanto em estilo como em método,
seja qual for a pigmentação ou a língua dos cientistas.
Um segundo par de factos é bem menos conhecido porque resulta de uma
aprendizagem história bastante recente. A liderança ocidental, tanto em termos de
tecnologia como de ciência, é muito mais antiga do que a chamada Revolução Industrial
do século XVIII. Estes termos estão de facto fora de moda e obscurecem a verdadeira
natureza daquilo que tentam descrever -- fases significativas em dois longos e separados
desenvolvimentos. No ano 1000 d.C., no máximo -- talvez mesmo, embora de forma
não muito convincente, 200 anos antes desta data -- o Ocidente começou a utilizar o
poder da água noutros processos industriais para além da moagem de cereais. A isto
seguiu-se, em finais do século XII, o domínio e o aproveitamento do poder do vento.
Foi com passos modestos, mas também com uma notável consistência de estilo, que o
Ocidente expandiu rapidamente as suas técnicas para desenvolver maquinaria eléctrica,
aparelhos que não requeriam tanto trabalho manual e a automação. Aqueles que
duvidam devem contemplar um dos mais monumentais feitos da história da automação:
o relógio mecânico de pesos, que apareceu em dois formatos no início do século XIV.
Não em termos da arte do artífice, mas em termos da capacidade tecnológica básica, o
Ocidente latino dos finais da Idade Média suplantava largamente as culturas bizantina e
islâmica, caracterizadas pela sua complexidade, sofisticação e magnificência estética.
Em 1444, um grande eclesiástico grego, Bessarion, que fora para Itália, escreveu uma
carta a um príncipe na Grécia. Ele estava surpreendido com a superioridade dos navios,
das armas, dos têxteis e do vidro ocidentais. Mas, acima de tudo, ele estava
espantadíssimo com o espetáculo proporcionado pelas rodas movidas a água que
serravam madeiras e acionavam os foles dos altos-fornos. É mais do que evidente que
ele nunca tinha visto nada que se assemelhasse no Próximo Oriente.

Em finais do século XV, a superioridade tecnológica da Europa era de tal ordem


que as pequenas nações que a constituíam, mutuamente hostis, podiam espraiar-se sobre
resto do mundo, conquistando, saqueando e colonizando. O símbolo desta superioridade
tecnológica é o facto de Portugal, um dos estados mais fracos do Ocidente, ter sido
capaz de se tornar, e de se manter durante um século, dono e senhor das Índias orientais.
E não devemos esquecer-nos que a tecnologia de Vasco da Gama e de Albuquerque foi
criada a partir do empirismo puro, indo buscar muito pouca inspiração ou apoio à
ciência.
Na compreensão vernaculista do presente, a ciência moderna começou
supostamente em 1543, quando Copérnico e Vesalius publicaram as suas grandes obras.
Contudo, os seus feitos não ficam diminuídos se salientarmos que estruturas como
a Fabrica e De revolutionibus não apareceram da noite para o dia. De facto, a distintiva
tradição ocidental científica começou no final do século XI com um colossal movimento
de tradução para latim das obras científicas árabes e gregas. Alguns livros notáveis --
como por exemplo, Theophrastus -- escaparam ao ávido e novo apetite ocidental pela
ciência, mas não passaram mais de 200 anos para que, efectivamente, todo o acervo de
ciência grega e muçulmana ficasse disponível em latim e fosse sofregamente lido e
criticado nas novas universidades europeias. Da crítica adveio nova observação,
especulação e uma crescente desconfiança em relação àqueles que em tempos antigos
eram a autoridade. Em finais do século XIII, a Europa apoderara-se da liderança
científica global, tendo-a retirado das débeis mãos do Islão. Seria tão absurdo negar a
profunda originalidade de Newton, Galileu ou Copérnico como negar a originalidade de
cientistas escolásticos como Buridan ou Oresme, cujas obras no século XIV serviram de
base aos primeiros. Antes do século XI, a ciência era praticamente inexistente no
Ocidente latino, mesmo nos tempos romanos. Do século XI para a frente, o sector
científico da cultura ocidental tem vindo a crescer a um ritmo constante.

Parece que não conseguimos compreender a natureza ou o impacto presente na


ecologia dos nossos dois movimentos, tecnológico e científico, desde que estes tiveram
início, adquiriram o seu carácter e conseguiram alcançar o domínio mundial na Idade
Média, sem antes analisarmos os pressupostos e progressos medievais fundamentais.

A Visão Medieval do Homem e da Natureza

Até há pouco tempo atrás, a agricultura foi sempre a principal ocupação das
sociedades, mesmo das mais "avançadas"; daí que qualquer alteração nos métodos da
lavoura tenha grande importância. Os primeiros arados, puxados por pares de bois, não
conseguiam normalmente revolver a terra, limitavam-se a remexer a superfície. Assim,
tornava-se necessário fazer um cruzamento de aragens e os campos tendiam a serem
quadrados. Esta técnica funcionava bem nos solos relativamente leves e nos climas
semiáridos do Próximo Oriente e do Mediterrâneo, mas era inapropriada para os climas
húmidos e para os solos frequentemente viscosos do norte da Europa. Contudo, perto do
fim do século VII d.C., no seguimento de inícios um tanto obscuros, alguns camponeses
do norte começaram a usar uma forma totalmente nova de arado, equipado com uma
lâmina vertical que abria facilmente a linha do sulco, uma parte horizontal que cortava o
solo por baixo e uma aiveca para revirar a terra. A fricção deste arado no solo era tão
grande que, normalmente, eram necessários oito bois em vez de dois. A forma como
atacava o solo era de tal maneira violenta que deixou de ser necessário o cruzamento de
aragens, havendo tendência para os campos se alongarem em comprimento e ficarem
com o aspecto de longas faixas de terreno arado.

Nos dias do arado de cunha simples, os campos estavam geralmente distribuídos


em unidades capazes de sustentar uma única família. A agricultura de subsistência era a
norma. Mas não havia camponês que possuísse oito bois: para usar o novo arado, muito
mais eficiente, os camponeses juntavam os seus bois para formar grandes equipas de
aragem, recebendo originalmente (ao que tudo indica) faixas aradas na proporção da sua
contribuição. Assim, a distribuição da terra deixou de se basear nas necessidades de
uma família, passando antes a basear-se na capacidade de uma máquina que lavrasse a
terra. A relação do homem com o solo foi profundamente alterada: inicialmente o
homem fizera parte da Natureza; agora era o explorador da Natureza. Em mais nenhuma
parte do mundo se verificou por parte dos agricultores o desenvolvimento de qualquer
outro implemento agrícola análogo. Será uma coincidência que tecnologia moderna,
com a sua abordagem impiedosa face à Natureza, tenha sido em grande medida
produzida pelos descendentes destes camponeses do norte da Europa?

Esta mesma atitude aproveitadora encontra-se bem patente nos calendários


ilustrados ocidentais pouco antes de 830 d.C. Em calendários anteriores, os meses eram
representados por personificações passivas. Os novos calendários francos, que pautaram
o estilo para a Idade Média, eram muito diferentes: mostravam homens a coagir o
mundo que os rodeava -- arando, fazendo colheitas, cortando árvores, matando porcos.
O homem e a Natureza eram duas coisas distintas, e o homem dominava.

Estas novidades parecem estar em harmonia com alguns padrões intelectuais


mais vastos. A forma como as pessoas tratam a ecologia depende da forma como
percepcionam a sua relação com as coisas que as rodeiam. A ecologia humana está
profundamente condicionada pelas nossas crenças face à Natureza e ao destino -- ou
seja, pela religião. Do ponto de vista dos ocidentais, este facto é muito evidente,
digamos, na Índia ou no Ceilão. Mas é igualmente verdadeiro quando aplicado a nós e
aos nossos antepassados medievais.

A vitória do Cristianismo sobre o paganismo foi a maior revolução psíquica na


história da nossa cultura. Hoje, tornou-se moda dizer que, para o bem ou para o mal,
vivemos na “era pós-Cristã”. É certo que as nossas formas de pensamento e a nossa
linguagem deixaram em grande medida de ser cristãs, mas, do meu ponto de vista, a
substância mantém-se muitas vezes, e de forma surpreendente, muito próxima da do
passado. Por exemplo, os nossos hábitos quotidianos são dominados por uma fé
implícita no progresso contínuo, que era algo desconhecido tanto para a Antiguidade
greco-romana como para o Oriente. Esta fé está bem enraizada, e é indefensável para
além da teologia judaico-cristã. O facto de os comunistas partilharem essa fé vem
simplesmente ajudar a reforçar aquilo que pode ser demonstrado com base em muitos
outros fundamentos: que o Marxismo, tal como o Islão, é uma heresia judaico-cristã.
Hoje em dia, continuamos em grande medida a viver, tal como o fazemos há cerca de
1700 anos, num contexto de axiomas (verdades inquestionáveis universalmente válidas)
cristãos.

O que disse o Cristianismo às pessoas sobre as relações destas com meio


ambiente? Enquanto muitas das mitologias do mundo apresentam histórias da criação, a
mitologia greco-romana foi singularmente incoerente a este respeito. Tal como
Aristóteles, os intelectuais do Ocidente antigo negaram que o mundo visível tivesse um
começo. De facto, a ideia de um começo era impossível no enquadramento da sua noção
cíclica do tempo. Numa perspectiva diametralmente oposta, o Cristianismo herdou do
Judaísmo não apenas um conceito de tempo não-repetitivo e linear, mas também uma
impressionante história sobre a criação. Em fases graduais, um Deus afetuoso e todo-
poderoso criou a luz e a escuridão, os corpos celestes, a terra e todas as suas plantas,
animais, pássaros e peixes. Por fim, Deus criou Adão e, como resultado de uma reflexão
posterior, Eva, para evitar que o homem se sentisse sozinho. O homem deu nome a
todos os animais, estabelecendo assim o seu domínio sobre eles. Deus planejou tudo isto
expressamente para benefício do homem e para que este dominasse: nenhum item da
criação física tinha outro propósito senão servir os propósitos do homem. E, embora o
corpo do homem seja feito de barro, ele não é simplesmente parte da Natureza: ele é
feito à imagem de Deus.

O Cristianismo, especialmente na sua forma ocidental, é a religião mais


antropocêntrica que o mundo alguma vez teve ocasião de testemunhar. Numa data
tão remota como o século II, tanto Tertualiano como o santo Irineu de Lião insistiam
que Deus, quando moldou Adão, estava a prenunciar a imagem do Cristo incarnado, o
Segundo Adão. Em grande medida, o homem partilha com Deus a transcendência da
Natureza. O Cristianismo, contrastando totalmente com o Paganismo antigo e com as
religiões asiáticas (exceto, talvez, o Zoroastrismo), não se limitou a estabelecer um
dualismo entre o homem e a Natureza, insistiu ainda que é a vontade de Deus que o
homem se aproveite da Natureza para atingir os seus próprios fins.

Ao nível das pessoas comuns, o resultado disto foi muito interessante. Na


Antiguidade, cada árvore, cada nascente, cada ribeiro, cada colina tinha o seu
próprio genius loci, o seu espírito guardião. Os homens tinham acesso a estes espíritos,
mas estes últimos eram muito diferentes dos homens: centauros, faunos e sereias
mostram bem a sua ambivalência. Antes de alguém cortar uma árvore, de exercer a
atividade mineira numa montanha ou de represar um riacho, era importante aplacar o
espírito responsável por aquela situação, e mantê-lo aplacado. O Cristianismo, ao
destruir o animismo (primeiro estágio da evolução religiosa da humanidade, no qual o
homem primitivo crê que todas as formas identificáveis da natureza possuem uma alma
e agem intencionalmente) pagão, fez com que fosse possível tirar proveito da Natureza
numa atmosfera de indiferença para com os sentimentos dos objetos naturais.

Diz-se frequentemente que a Igreja substituiu o animismo pelo culto dos santos.
É verdade; mas o culto dos santos é funcionalmente bastante diferente do animismo. O
santo não se encontra nos objetos naturais; pode ter altares especiais, mas a sua
cidadania está no céu. Para além disso, um santo é totalmente um homem; pode ser
abordado em termos humanos. A juntar aos santos, o Cristianismo também tinha, claro,
os anjos e demónios herdados do Judaísmo, e talvez noutro grau, do Zoroastrismo. Mas
estes eram tão móveis como os próprios santos. Os espíritos dos objetos naturais, que
outrora haviam protegido a Natureza do homem, evaporaram-se. O monopólio efetivo
do homem sobre o espírito neste mundo estava confirmado, e as velhas inibições face à
exploração abusiva da natureza ruíram.

Quando se fala em termos tão generalizados, é necessário introduzir uma nota de


aviso. O Cristianismo é uma fé complexa, e as suas consequências diferem consoante os
diferentes contextos. Aquilo que referi pode aplicar-se perfeitamente ao Ocidente
medieval, onde a tecnologia registrou efetivamente avanços espetaculares. Mas, o
Oriente grego, um reino altamente civilizado com igual devoção cristã, parece não ter
produzido qualquer inovação tecnológica de relevo após o final do século VII, altura em
que o fogo grego foi inventado. A chave deste contraste pode talvez ser encontrada nas
diferenças de tonalidade que os estudantes de teologia comparativa encontram entre as
Igrejas grega e latina no que se refere à piedade e ao pensamento. Os Gregos
acreditavam que o pecado era uma cegueira intelectual e que a salvação se encontrava
na iluminação, na ortodoxia -- ou seja, no pensamento esclarecido. Por outro lado, os
Latinos consideravam que o pecado era um mal moral e que a salvação se encontrava
numa conduta correta. A teologia oriental tem sido intelectualista. A teologia ocidental
tem sido voluntarista. O santo grego contempla; o santo ocidental age. As implicações
do Cristianismo face à conquista da Natureza emergiriam muito mais facilmente na
atmosfera ocidental.

O dogma cristão da criação, que pode ser encontrado na parte inicial de todos os
credos, tem ainda outro significado para a nossa compreensão da crise ecológica atual.
Por meio de uma revelação, Deus deu ao homem a Bíblia, o Livro da Escritura. Mas,
uma vez que Deus havia feito a Natureza, esta também teria de evidenciar a mentalidade
divina. O estudo religioso da Natureza com o intuito de se conseguir uma melhor
compreensão de Deus ficou conhecido como teologia natural. Nos primórdios da Igreja,
e sempre no Oriente grego, a Natureza era concebida em primeira instância como um
sistema simbólico através do qual Deus falava ao homem: a formiga é um sermão para
os preguiçosos; a ascensão das chamas é símbolo da aspiração da alma. A visão da
Natureza era essencialmente artística, não científica. Enquanto Bizâncio preservava e
copiava grandes quantidades de textos científicos gregos antigos, era muito pouco
provável que a ciência, tal como a concebemos, conseguisse florescer em semelhante
ambiente.
Contudo, no Ocidente latino, no início do século XIII, a teologia natural seguia
um rumo completamente diferente. Deixava de ser a descodificação dos símbolos
físicos da comunicação divina com o homem para se tornar no esforço em compreender
a mente de Deus através da descoberta de como funcionava a sua criação. O arco-íris já
não era apenas um símbolo de esperança enviado por Noé depois do Dilúvio: Robert
Grosseteste, o Frade Roger Bacon e Teodorico de Friburgo produziram obras
assustadoramente sofisticadas sobre a óptica do arco-íris, mas fizeram-no em prol da
compreensão religiosa. Do século XIII em diante, até chegarmos a Leitnitz e Newton,
inclusive, todos os grandes cientistas explicaram as suas motivações em termos
religiosos. De facto, Galileu, se não tivesse sido um perito tão grande para um mero
teólogo amador, teria com certeza arranjado muito menos complicações para si: os
profissionais levaram a mal a sua intrusão. E, ao que tudo indica, Newton considerava-
se mais um teólogo do que um cientista. Só em finais do século XVIII é que a hipótese
de Deus se tornou desnecessária para muitos cientistas.

Para o historiador, torna-se muitas vezes difícil julgar os homens quando estes
explicam porque estão a fazer aquilo que querem fazer, estejam eles a apresentar razões
verdadeiras ou razões meramente aceitáveis do ponto de vista cultural. A coerência com
que os cientistas disseram, durante os longos séculos de formação da ciência ocidental,
que a tarefa e a recompensa do cientista era “pensar os pensamentos de Deus depois
dele”, leva-nos a acreditar que esta era mesmo a sua real motivação. Sendo assim, o
molde da ciência ocidental moderna tem uma matriz de teologia cristã. E o que lhe deu
ímpeto foi o dinamismo da devoção religiosa moldado pelo dogma judaico-cristão da
criação.

Uma Visão Cristã Alternativa

Tudo indica que nos encaminhamos para conclusões algo desagradáveis para
muitos cristãos. Uma vez que as palavras ciência e tecnologia são palavras abençoadas
no nosso vocabulário contemporâneo, há quem possa estar contente, de um ponto de
vista histórico, com as noções de que, primeiro, a ciência moderna é uma extrapolação
da teologia natural, e segundo, de que a tecnologia moderna pode ser explicada, pelo
menos em parte, como uma concretização ocidental e voluntarista do dogma cristão da
transcendência do homem face à Natureza, e do seu domínio sobre esta. Mas, como
agora reconhecemos, há pouco mais de um século, a ciência e a tecnologia -- até então
atividades bastante separadas -- juntaram-se para dar poderes à humanidade que, a
julgar por muitos dos efeitos ecológicos, estão fora de controlo. Sendo esse o caso, o
Cristianismo carrega um fardo muito grande em termos de culpa.

Pessoalmente, duvido que os desastrosos efeitos nocivos ecológicos possam ser


evitados através da simples aplicação de mais ciência e mais tecnologia aos nossos
problemas. A nossa ciência e a nossa tecnologia já não se enquadram nas atitudes cristãs
face à relação do homem com a Natureza, atitudes essas que são defendidas não só
pelos cristãos e neo-cristãos, mas também por aqueles que carinhosamente se
consideram pós-cristãos. Não obstante Copérnico, todo o cosmos gira em torno do
nosso pequeno globo. Não obstante Darwin, nós não somos, no fundo, parte do processo
natural; somos superiores à Natureza, temos para com ela um sentimento de desprezo,
queremos usá-la para satisfazer os nossos caprichos, quaisquer que sejam. O recém-
eleito Governador da Califórnia, um homem do clero tal como eu, mas muito menos
preocupado, falou em prol da tradição cristão quando disse (como se alega) "depois de
vermos uma sequoia, já vimos todas”. Para um cristão, uma árvore não pode ser mais do
que um facto físico. Todo o conceito do bosque sagrado não tem lugar no Cristianismo
nem no sistema de valores ocidental. Ao longo de quase dois milénios, os missionários
cristãos têm vindo a deitar abaixo bosques sagrados, porque estes, ao assumirem
espírito na Natureza, são idólatras. Commented [..1]: Até aqui.

Aquilo que fazemos quanto à ecologia depende das nossas ideias sobre a relação
homem-natureza. Mais ciência e mais tecnologia não nos vão fazer sair da presente crise
ecológica até encontrarmos uma nova religião, ou até repensarmos a velha. Os beatniks,
que são basicamente os revolucionários dos nossos dias, mostram ter um bom instinto
na sua afinidade com o Budismo Zen, que concebe uma relação homem-natureza muito
aproximada, quase uma imagem refletida, da visão cristã. Contudo, o Budismo Zen está
tão profundamente condicionado pela história asiática como o Cristianismo está pela
experiência ocidental, e tenho dúvidas quanto à sua viabilidade entre nós.

Talvez devêssemos ponderar o maior radical na história cristã desde Cristo: São
Francisco de Assis. O principal milagre de São Francisco foi o facto de não ter morrido
queimado, como aconteceu a muitos dos seus seguidores de esquerda. Ele era tão
claramente herético que um General da Ordem franciscana, São Boaventura, um grande
e perspicaz cristão, tentou suprimir as primeiras ocorrências de franciscanismo. A chave
para compreendermos São Francisco é a sua crença na virtude da humildade -- não
apenas em relação ao indivíduo mas em relação ao homem enquanto espécie. São
Francisco tentou depor o homem da sua monarquia face à criação e estabeleceu uma
democracia para todas as criaturas de Deus. Com ele, a formiga deixa de ser apenas uma
homília para os preguiçosos, as chamas deixam de ser um sinal revelador da confiança
da alma ir ao encontro da união com Deus; agora, são a Irmã Formiga e a Irmã Chama,
que louvam o Criador da maneira que podem, tal como o Irmão Homem também o
louva de sua maneira.

Comentadores de épocas posteriores afirmaram que São Francisco pregava aos


pássaros como censura para com os homens que não queriam ouvir. A história não reza
assim: ele rogou aos passarinhos que louvassem Deus e, num êxtase espiritual, eles
bateram as asas e chilrearam de contentamento. Há muito que as lendas de santos,
especialmente de santos irlandeses, contavam as interacções destes com os animais, mas
acredito que o fizessem tendo sempre como objectivo mostrar o domínio humano sobre
as criaturas. Com São Francisco é diferente. A terra em redor de Gubbio, nos Apeninos,
era assolada por um temível lobo. Diz a lenda que São Francisco falou com o lobo e fê-
lo ver o seu erro. O lobo arrependeu-se, morreu no odor da santidade e foi enterrado em
chão sagrado.

Aquilo a que Sir Steven Ruciman chama "a doutrina franciscana da alma
animal" foi rapidamente extinto. Muito possivelmente, inspirava-se em parte, consciente
ou inconscientemente, na crença da reincarnação dos heréticos cátaros, que na altura
abundavam na Itália e no sul da França e que, presumivelmente, a tinham ido buscar
originalmente à Índia. É significativo que nesse preciso momento, cerca do ano 1200,
também se tenham encontrado vestígios de metempsicose no Judaísmo ocidental, na
Cabala provençal. Mas São Francisco não estava ligada nem à transmigração das almas
nem ao panteísmo. A sua visão da Natureza e do homem assentava numa espécie única
de pan-psiquismo de todas as coisas animadas e inanimadas, concebido para a
glorificação do seu transcendente Criador, que, num derradeiro gesto de humildade
cósmica, foi carne, esteve indefeso deitado numa manjedoura e morreu pendurado num
cadafalso.
Não estou a sugerir que muitos dos Americanos contemporâneos que estão
preocupados com a nossa crise ecológica sejam capazes ou estejam dispostos a
aconselharem-se com lobos nem a exortarem os pássaros. Contudo, a actual e crescente
perturbação do meio ambiente global é o produto de uma tecnologia e ciência dinâmicas
que estavam a aparecer no mundo ocidental medieval e contra as quais São Francisco se
rebelava de forma tão original. O seu crescimento não pode ser entendido, em termos
históricos, separadamente das atitudes distintivas face à Natureza profundamente
imbuídas em dogmas cristãos. O facto de a maioria das pessoas não pensar nestas
atitudes como sendo cristãs é irrelevante. A nossa sociedade não aceitou nenhum outro
conjunto de valores básicos que destronasse o do Cristianismo. Daí que continuaremos a
ter um agravamento da crise ecológica até rejeitarmos o axioma cristão de que a
Natureza não tem razão para existir senão para servir o homem.

O maior revolucionário espiritual da história ocidental, São Francisco, propôs


aquilo que julgava ser uma visão cristã alternativa da Natureza e da relação do homem
com ela; tentou substituir a ideia do domínio ilimitado do homem face à criação pela
ideia da igualdade de todas as criaturas, incluindo o homem. Falhou. Tanto a ciência
actual como a tecnologia actual estão tão tingidas pela arrogância cristã ortodoxa face à
Natureza que não se pode esperar o aparecimento de uma solução para a nossa crise
ecológica apenas com base nelas. Uma vez que as raízes dos nossos problemas são em
tão grande medida religiosas, o remédio também terá de ser essencialmente religioso,
quer lhe chamemos isso ou não. Devemos repensar e re-sentir a nossa Natureza e o
nosso destino. A percepção profundamente religiosa, embora herética, dos franciscanos
primitivos quanto à autonomia espiritual de todas as partes da Natureza pode indicar-
nos um caminho. Proponho que São Francisco seja o santo patrono dos ecologistas.

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