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Já foram feitos muitos apelos à ação, mas as propostas específicas que surgiram,
por muito meritórias que sejam individualmente, parecem ser demasiado parciais,
paliativas, negativas: banir a bomba, deitar abaixo os quadros para afixar cartazes, dar
aos Hindus contraceptivos e dizer-lhes que comam as vacas sagradas. A solução mais
simples para qualquer mudança suspeita é, evidentemente, acabar com ela; ou melhor
ainda, remeter para um passado romantizado: fazer com que as horríveis bombas de
gasolina se pareçam com uma das cabanas de Anne Hathaway ou (no Faroeste) com
bares de cidades-fantasma. A mentalidade “área selvagem” defende invariavelmente,
seja em San Gimignano ou em High Sierra, o regresso estático a uma ecologia que
existia antes de o primeiro lenço de papel ter sido deitado fora. Mas, nem o atavismo
nem a petrificação conseguirão resolver a crise ecológica dos nossos tempos.
O que fazer? Ainda ninguém sabe. Se não pensarmos sobre o que é fundamental,
as medidas específicas que tomamos poderão produzir novos efeitos nocivos; efeitos
ainda mais graves do que aqueles que deveriam remediar.
Para começar, devíamos tentar clarificar a nossa forma de pensar olhando, com
alguma profundidade histórica, para os pressupostos que estão subjacentes à tecnologia
e ciência modernas. A ciência era tradicionalmente aristocrática, especulativa,
intelectual no seu propósito; a tecnologia era da classe baixa, empírica e orientada para
a acção. A rápida fusão de ambas, em meados do século XIX, está seguramente
relacionada com as revoluções democráticas contemporâneas, embora ligeiramente
anteriores, que, para reduzir as barreiras sociais, tiveram tendência a defender uma
unidade funcional entre o cérebro e a mão. A nossa crise ecológica é o produto de uma
cultura democrática emergente e totalmente nova. A questão que se coloca é saber se
um mundo democratizado consegue sobreviver às suas próprias implicações.
Presumivelmente não consegue, a não ser que repensemos os nossos axiomas.
Há uma coisa tão evidente que chega mesmo a parecer estúpido verbalizá-la:
tanto a tecnologia moderna como a ciência moderna são distintamente ocidentais. A
nossa tecnologia absorveu elementos de todas as partes do mundo, nomeadamente da
China, porém, um pouco por todo o lado, seja no Japão ou na Nigéria, a tecnologia de
sucesso é ocidental. A nossa ciência foi herdeira de todas as ciências do passado, talvez
em especial do trabalho dos grandes cientistas islâmicos da Idade Média, que tão
frequentemente suplantavam os antigos Gregos em aptidão e perspicácia: al-Razi na
medicina, por exemplo; ou ibn-al-Haytham na óptica; ou Omar Khayyam na
matemática. De facto, não foram poucas as obras de génios como estes cujos originais
árabes parecem ter desaparecido, sobrevivendo apenas as traduções medievais em latim
que ajudaram a lançar as bases dos progressos ocidentais posteriores. Hoje em dia, no
mundo inteiro, toda a ciência importante é ocidental, tanto em estilo como em método,
seja qual for a pigmentação ou a língua dos cientistas.
Um segundo par de factos é bem menos conhecido porque resulta de uma
aprendizagem história bastante recente. A liderança ocidental, tanto em termos de
tecnologia como de ciência, é muito mais antiga do que a chamada Revolução Industrial
do século XVIII. Estes termos estão de facto fora de moda e obscurecem a verdadeira
natureza daquilo que tentam descrever -- fases significativas em dois longos e separados
desenvolvimentos. No ano 1000 d.C., no máximo -- talvez mesmo, embora de forma
não muito convincente, 200 anos antes desta data -- o Ocidente começou a utilizar o
poder da água noutros processos industriais para além da moagem de cereais. A isto
seguiu-se, em finais do século XII, o domínio e o aproveitamento do poder do vento.
Foi com passos modestos, mas também com uma notável consistência de estilo, que o
Ocidente expandiu rapidamente as suas técnicas para desenvolver maquinaria eléctrica,
aparelhos que não requeriam tanto trabalho manual e a automação. Aqueles que
duvidam devem contemplar um dos mais monumentais feitos da história da automação:
o relógio mecânico de pesos, que apareceu em dois formatos no início do século XIV.
Não em termos da arte do artífice, mas em termos da capacidade tecnológica básica, o
Ocidente latino dos finais da Idade Média suplantava largamente as culturas bizantina e
islâmica, caracterizadas pela sua complexidade, sofisticação e magnificência estética.
Em 1444, um grande eclesiástico grego, Bessarion, que fora para Itália, escreveu uma
carta a um príncipe na Grécia. Ele estava surpreendido com a superioridade dos navios,
das armas, dos têxteis e do vidro ocidentais. Mas, acima de tudo, ele estava
espantadíssimo com o espetáculo proporcionado pelas rodas movidas a água que
serravam madeiras e acionavam os foles dos altos-fornos. É mais do que evidente que
ele nunca tinha visto nada que se assemelhasse no Próximo Oriente.
Até há pouco tempo atrás, a agricultura foi sempre a principal ocupação das
sociedades, mesmo das mais "avançadas"; daí que qualquer alteração nos métodos da
lavoura tenha grande importância. Os primeiros arados, puxados por pares de bois, não
conseguiam normalmente revolver a terra, limitavam-se a remexer a superfície. Assim,
tornava-se necessário fazer um cruzamento de aragens e os campos tendiam a serem
quadrados. Esta técnica funcionava bem nos solos relativamente leves e nos climas
semiáridos do Próximo Oriente e do Mediterrâneo, mas era inapropriada para os climas
húmidos e para os solos frequentemente viscosos do norte da Europa. Contudo, perto do
fim do século VII d.C., no seguimento de inícios um tanto obscuros, alguns camponeses
do norte começaram a usar uma forma totalmente nova de arado, equipado com uma
lâmina vertical que abria facilmente a linha do sulco, uma parte horizontal que cortava o
solo por baixo e uma aiveca para revirar a terra. A fricção deste arado no solo era tão
grande que, normalmente, eram necessários oito bois em vez de dois. A forma como
atacava o solo era de tal maneira violenta que deixou de ser necessário o cruzamento de
aragens, havendo tendência para os campos se alongarem em comprimento e ficarem
com o aspecto de longas faixas de terreno arado.
Diz-se frequentemente que a Igreja substituiu o animismo pelo culto dos santos.
É verdade; mas o culto dos santos é funcionalmente bastante diferente do animismo. O
santo não se encontra nos objetos naturais; pode ter altares especiais, mas a sua
cidadania está no céu. Para além disso, um santo é totalmente um homem; pode ser
abordado em termos humanos. A juntar aos santos, o Cristianismo também tinha, claro,
os anjos e demónios herdados do Judaísmo, e talvez noutro grau, do Zoroastrismo. Mas
estes eram tão móveis como os próprios santos. Os espíritos dos objetos naturais, que
outrora haviam protegido a Natureza do homem, evaporaram-se. O monopólio efetivo
do homem sobre o espírito neste mundo estava confirmado, e as velhas inibições face à
exploração abusiva da natureza ruíram.
O dogma cristão da criação, que pode ser encontrado na parte inicial de todos os
credos, tem ainda outro significado para a nossa compreensão da crise ecológica atual.
Por meio de uma revelação, Deus deu ao homem a Bíblia, o Livro da Escritura. Mas,
uma vez que Deus havia feito a Natureza, esta também teria de evidenciar a mentalidade
divina. O estudo religioso da Natureza com o intuito de se conseguir uma melhor
compreensão de Deus ficou conhecido como teologia natural. Nos primórdios da Igreja,
e sempre no Oriente grego, a Natureza era concebida em primeira instância como um
sistema simbólico através do qual Deus falava ao homem: a formiga é um sermão para
os preguiçosos; a ascensão das chamas é símbolo da aspiração da alma. A visão da
Natureza era essencialmente artística, não científica. Enquanto Bizâncio preservava e
copiava grandes quantidades de textos científicos gregos antigos, era muito pouco
provável que a ciência, tal como a concebemos, conseguisse florescer em semelhante
ambiente.
Contudo, no Ocidente latino, no início do século XIII, a teologia natural seguia
um rumo completamente diferente. Deixava de ser a descodificação dos símbolos
físicos da comunicação divina com o homem para se tornar no esforço em compreender
a mente de Deus através da descoberta de como funcionava a sua criação. O arco-íris já
não era apenas um símbolo de esperança enviado por Noé depois do Dilúvio: Robert
Grosseteste, o Frade Roger Bacon e Teodorico de Friburgo produziram obras
assustadoramente sofisticadas sobre a óptica do arco-íris, mas fizeram-no em prol da
compreensão religiosa. Do século XIII em diante, até chegarmos a Leitnitz e Newton,
inclusive, todos os grandes cientistas explicaram as suas motivações em termos
religiosos. De facto, Galileu, se não tivesse sido um perito tão grande para um mero
teólogo amador, teria com certeza arranjado muito menos complicações para si: os
profissionais levaram a mal a sua intrusão. E, ao que tudo indica, Newton considerava-
se mais um teólogo do que um cientista. Só em finais do século XVIII é que a hipótese
de Deus se tornou desnecessária para muitos cientistas.
Para o historiador, torna-se muitas vezes difícil julgar os homens quando estes
explicam porque estão a fazer aquilo que querem fazer, estejam eles a apresentar razões
verdadeiras ou razões meramente aceitáveis do ponto de vista cultural. A coerência com
que os cientistas disseram, durante os longos séculos de formação da ciência ocidental,
que a tarefa e a recompensa do cientista era “pensar os pensamentos de Deus depois
dele”, leva-nos a acreditar que esta era mesmo a sua real motivação. Sendo assim, o
molde da ciência ocidental moderna tem uma matriz de teologia cristã. E o que lhe deu
ímpeto foi o dinamismo da devoção religiosa moldado pelo dogma judaico-cristão da
criação.
Tudo indica que nos encaminhamos para conclusões algo desagradáveis para
muitos cristãos. Uma vez que as palavras ciência e tecnologia são palavras abençoadas
no nosso vocabulário contemporâneo, há quem possa estar contente, de um ponto de
vista histórico, com as noções de que, primeiro, a ciência moderna é uma extrapolação
da teologia natural, e segundo, de que a tecnologia moderna pode ser explicada, pelo
menos em parte, como uma concretização ocidental e voluntarista do dogma cristão da
transcendência do homem face à Natureza, e do seu domínio sobre esta. Mas, como
agora reconhecemos, há pouco mais de um século, a ciência e a tecnologia -- até então
atividades bastante separadas -- juntaram-se para dar poderes à humanidade que, a
julgar por muitos dos efeitos ecológicos, estão fora de controlo. Sendo esse o caso, o
Cristianismo carrega um fardo muito grande em termos de culpa.
Aquilo que fazemos quanto à ecologia depende das nossas ideias sobre a relação
homem-natureza. Mais ciência e mais tecnologia não nos vão fazer sair da presente crise
ecológica até encontrarmos uma nova religião, ou até repensarmos a velha. Os beatniks,
que são basicamente os revolucionários dos nossos dias, mostram ter um bom instinto
na sua afinidade com o Budismo Zen, que concebe uma relação homem-natureza muito
aproximada, quase uma imagem refletida, da visão cristã. Contudo, o Budismo Zen está
tão profundamente condicionado pela história asiática como o Cristianismo está pela
experiência ocidental, e tenho dúvidas quanto à sua viabilidade entre nós.
Talvez devêssemos ponderar o maior radical na história cristã desde Cristo: São
Francisco de Assis. O principal milagre de São Francisco foi o facto de não ter morrido
queimado, como aconteceu a muitos dos seus seguidores de esquerda. Ele era tão
claramente herético que um General da Ordem franciscana, São Boaventura, um grande
e perspicaz cristão, tentou suprimir as primeiras ocorrências de franciscanismo. A chave
para compreendermos São Francisco é a sua crença na virtude da humildade -- não
apenas em relação ao indivíduo mas em relação ao homem enquanto espécie. São
Francisco tentou depor o homem da sua monarquia face à criação e estabeleceu uma
democracia para todas as criaturas de Deus. Com ele, a formiga deixa de ser apenas uma
homília para os preguiçosos, as chamas deixam de ser um sinal revelador da confiança
da alma ir ao encontro da união com Deus; agora, são a Irmã Formiga e a Irmã Chama,
que louvam o Criador da maneira que podem, tal como o Irmão Homem também o
louva de sua maneira.
Aquilo a que Sir Steven Ruciman chama "a doutrina franciscana da alma
animal" foi rapidamente extinto. Muito possivelmente, inspirava-se em parte, consciente
ou inconscientemente, na crença da reincarnação dos heréticos cátaros, que na altura
abundavam na Itália e no sul da França e que, presumivelmente, a tinham ido buscar
originalmente à Índia. É significativo que nesse preciso momento, cerca do ano 1200,
também se tenham encontrado vestígios de metempsicose no Judaísmo ocidental, na
Cabala provençal. Mas São Francisco não estava ligada nem à transmigração das almas
nem ao panteísmo. A sua visão da Natureza e do homem assentava numa espécie única
de pan-psiquismo de todas as coisas animadas e inanimadas, concebido para a
glorificação do seu transcendente Criador, que, num derradeiro gesto de humildade
cósmica, foi carne, esteve indefeso deitado numa manjedoura e morreu pendurado num
cadafalso.
Não estou a sugerir que muitos dos Americanos contemporâneos que estão
preocupados com a nossa crise ecológica sejam capazes ou estejam dispostos a
aconselharem-se com lobos nem a exortarem os pássaros. Contudo, a actual e crescente
perturbação do meio ambiente global é o produto de uma tecnologia e ciência dinâmicas
que estavam a aparecer no mundo ocidental medieval e contra as quais São Francisco se
rebelava de forma tão original. O seu crescimento não pode ser entendido, em termos
históricos, separadamente das atitudes distintivas face à Natureza profundamente
imbuídas em dogmas cristãos. O facto de a maioria das pessoas não pensar nestas
atitudes como sendo cristãs é irrelevante. A nossa sociedade não aceitou nenhum outro
conjunto de valores básicos que destronasse o do Cristianismo. Daí que continuaremos a
ter um agravamento da crise ecológica até rejeitarmos o axioma cristão de que a
Natureza não tem razão para existir senão para servir o homem.