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Faculdade de Educação
Curso de Pedagogia
Belo Horizonte
2018
Lorena Mara de Jesus Sodré
Belo Horizonte
2018
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................. 4
1. Introdução
Esta pesquisa é fruto das diversas indagações que me foram suscitadas após a
realização de estágio obrigatório do curso de Pedagogia em uma creche-escola e
também, depois da minha participação na disciplina Relação família-escola: questão
social e problema sociológico, ministrada pela professora Tânia de Freitas Resende,
por meio da qual foi possível conhecer melhor essa temática tão relevante para os
estudos da Sociologia da Educação. Ambas as experiências me trouxeram diversas
inquietações acerca de como se dão as relações entre família e escola,
principalmente quando essas famílias trazem configurações ou dinâmicas que não
correspondem aos padrões socialmente dominantes.
escrita deste trabalho. Através das leituras e das discussões realizadas durante as
aulas, pude elaborar melhor as inquietações que surgiram durante a experiência
vivenciada no estágio, possibilitando à proposição desta pesquisa.
Passei então a interrogar: qual seria a visão das famílias acerca do tratamento
dispensado pelos professores a essas crianças e adolescentes no ambiente
escolar? Em que medida essas famílias se sentem acolhidas em suas
especificidades? Qual a receptividade da escola, e principalmente do professor, em
relação a elas? Como se dão os seus contatos? A partir desses questionamentos,
resolvi então investigar como se dá a relação entre as escolas e as famílias, em
caso nos quais as crianças ou adolescentes estão sob a guarda (oficial ou não) de
outros familiares, como avós, tios, irmãos, ou até mesmo de pessoas que não são
de seus círculos familiares.
grupo social; analisar a relação que a professora de classe estabelece com essas
famílias, caracterizando o seu discurso e suas estratégias com relação a elas.
2. Fundamentos conceituais
Nesse período citado por Ariès não existia uma separação clara entre o público e o
privado; a casa grande desempenhava uma função pública, sendo que nela os
amigos, clientes, parentes e protegidos podiam se encontrar para conversar. Não
eram apenas visitas corriqueiras, mas também profissionais. “Vivia-se em salas,
onde tudo se fazia.” (ARIÈS, 1986, p. 259). O sentimento familiar não se
desenvolvia, pois a todo tempo não havia intimidade possível entre os integrantes da
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Sánches (2001), ao referir-se ao período tratado por Ariès, declara que o fato da
vida até o século XVII transcorrer em público, não fazia com que a família não
existisse de fato, pois “seria paradoxal negá-la, mas não existia como sentimento ou
valor” (SANCHES, 2001, p. 51). Conforme Sánches, a partir do momento em que se
inicia o dualismo da consciência ocidental de separação entre o público e o privado,
a família, que até então vivia em um único espaço, a sociedade inteira, passa a viver
nesses dois espaços distintos.
Conforme Sánches (2001), tal modelo era defendido explicitamente por Talcott
Parsons, representante do funcionalismo, em seu livro La estructura social de La
família. Para Parsons, o sistema familiar ocidental é o mais eficaz em seu papel
socializador, pois a menina deve aprender cedo “as funções de dona de casa” e o
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menino deve saber pelo pai ausente, geralmente por motivos laborais, a dureza da
vida, e que não deve ser meigo e passivo como a irmã; assim, ambos se
preparariam para os papéis de pai provedor e mãe estabilizadora do lar. Na
avaliação de Sánches, esse modelo familiar não teria espaço para o conflito ou a
transformação, pois seus personagens desempenham seus papéis de forma
harmônica e complementar. Os funcionalistas supunham um modelo familiar “eterno
e universal”, não considerando o fato de a família não ser uma instituição estática,
mas em constante transformação (BRUSCHINI, 1989).
por cada grupo familiar. Perrenoud (2001) afirma que a família nuclear, entre os
diversos arranjos familiares, seria apenas mais um modelo, sendo difícil dar uma
definição simples de família.
aqueles que não conseguem alcançar esse ideal como incompetentes e inferiores
(GOMES, 1988 apud SZYMANSKI, 2005). Essa construção do ideal de modelo
familiar fortalece o discurso preconceituoso, que desqualifica as famílias não
nucleares/biparentais. Isso faz com que qualquer problema dos membros desses
grupos seja justificado sob a perspectiva de que essas famílias seriam
“desestruturadas” (PEREZ, 2009).
O caput do Art. 226 do Capítulo VII da Constituição Federal Brasileira de 1988 traz o
seguinte enunciado “A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.” Os parágrafos posteriores do capítulo discorrem sobre os direitos da família
perante o Estado. Ao realizar a leitura desse capítulo, é possível indagar: a qual
família a CF/88 se refere e que o Estado tem o dever de proteger? Ao longo dos
últimos anos, a família brasileira tem se transformado. Apesar do grupo familiar
nuclear, composto por pai, mãe e filhos, formado pela união de homem e mulher,
através do casamento ou união estável1, ser o prevalecente, outros arranjos
familiares são reconhecidos como famílias.
Dias (2016), em seu Manual de Direito das Famílias, afirma que quando se trata da
família constitucionalizada, ou seja, a família que a Constituição visa resguardar, já
não cabe mais o modelo de família no qual essa sirva apenas para a procriação. A
partir da CF/88, diversas entidades familiares passam a ser contempladas e
reconhecidas, tais como as famílias homoafetivas e monoparentais, por exemplo.
Para a autora, as mudanças ocorridas na sociedade, bem como o progresso dos
comportamentos, trouxeram novas configurações para a conjugalidade e a
parentalidade, fazendo com que arranjos familiares antes marginalizados e
considerados informais, passassem a ter assegurados seus direitos como família.
1 CAPÍTULOVII
Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso
(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
[...]
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm
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Este trabalho terá como foco famílias de classes populares, sendo necessário
considerar de modo particular esse grupo, que possui características específicas em
suas configurações familiares. Sarti (1996), em seu livro A família como espelho,
descreve um estudo realizado entre as décadas de 1980 e 1990com famílias de
classes populares de um bairro de São Paulo. . Nesse trabalho, ela apresenta
alguns elementos importantes para refletir acerca dos arranjos familiares
identificados nesses meios sociais. De acordo com a autora, para os pobres, a
família vai além da afetividade:
A família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, o núcleo da
sobrevivência material e espiritual, o instrumento através do qual viabilizam
seu modo de vida, mas é o próprio substrato de sua identidade social. [...]
Sua importância não é funcional, seu valor não é meramente instrumental,
mas se refere à sua identidade de ser social e constitui o parâmetro
simbólico que estrutura sua explicação no mundo. (SARTI, 1996, p. 33)
Ao longo do texto, a autora discorre sobre a diferenciação dos papéis sociais dos
membros conforme o gênero e lugar na família. Nas famílias pesquisadas por Sarti,
quando o homem estava presente, esse era considerado a autoridade, o chefe da
família, cabia a ele o papel de provedor. O homem era então considerado e tratado
como chefe da família, tendo a incumbência de fazer a mediação desta com o
mundo exterior, ele possuía a autoridade moral. Já a mulher era considerada a chefe
da casa, cabendo a ela manter a unidade do grupo e controlar o dinheiro da família
(SARTI, 1996). Essas características vão ao encontro do que foi abordado
anteriormente, a respeito das famílias nucleares consideradas como grupo familiar
ideal pelos funcionalistas (AMAZONAS E BRAGA, 2006; BRUSCHINI, 1989;
SEGALEN, 1999).
fato das famílias das camadas menos favorecidas no Brasil serem as mais atingidas
pelas “consequências de um modelo sócio-político-econômico da acumulação do
capital” (SANTANA E MATOS, 2013, p. 4), ficando assim mais frágeis e vulneráveis,
sofrendo com as descontinuidades e as rupturas em face da falta de suportes de
ordem socioeconômica.
Dentro dessa dinâmica familiar, a figura masculina não aparenta ser muito presente.
São as mulheres que acabam decidindo se vão receber outras crianças em suas
casas e são elas que confiam os filhos para outras pessoas criarem, sendo que
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As avós passam, então, a cumprir funções de cuidados com seus netos, muitas
vezes em tempo integral, deixando de lado o papel exclusivo de avós e passando a
substituir as figuras materna e paterna (SHULER, 2015). Apropriam-se dessas
atribuições, pelo fato de os pais estarem impossibilitados para assumirem a criação
dos filhos, como por morte, gravidez na adolescência, divórcio e separações, falta de
emprego, instabilidade econômica, novas relações conjugais, dentre outros (SARTI,
1996; FONSECA, 2002; MOTA-MAUÉS, 2004; DIAS, AGUIAR e Hora, 2010;
SHULER, 2015).
Ao assumir a criação de seus netos, os avós não passam ilesos por essa relação.
Diversos desafios são enfrentados, tanto pelos avós, quanto pelos netos, podendo
ser emocionais, sociais e financeiros (COELHO e DIAS, 2016). Segundo Mainetti e
Wanderbroocke(2013), avós criarem seus netos pode trazer consequências
positivas e negativas. Entre as positivas é possível destacar “sentimento de
renovação pessoal, oportunidade de ter companhia e gratificação por estarem
provendo uma nova geração com cuidados e ensinamentos” (MAINETTI E
WANDERBROOCKE, 2013, p. 88). Já em relação aos aspectos negativos, as
sobrecargas financeiras, queda na qualidade da saúde física e emocional, estão
entre os impactos causados.
Segundo Resende e Silva (2016), essas interações entre a família e a escola podem
ocorrer em diferentes níveis, que variam conforme a intensidade do envolvimento.
No primeiro nível, a relação se estabelece a partir do momento em que os pais
matriculam a criança na escola; no segundo nível, os pais são receptores das
informações provindas da escola, através de bilhetes, comunicados ou
comparecimento em momentos de solicitações e festejos; o terceiro nível ocorre
através da maior interação entre família e escola, por meio de reuniões, eventos,
projetos, entre outros; o quarto nível é o de maior aprofundamento da relação, em
que os familiares participam e se integram de forma mais institucionalizada na vida
da instituição escolar, através da atuação em associações, colegiado, conselhos,
etc.
Tanto a família quanto a escola são duas instituições que se caracterizam pela
heterogeneidade em suas estruturas, possuindo ambas, formas específicas de
funcionamento e de reprodução social (ROMANELLI, 2009). É na família que
acontece a vida privada de seus sujeitos, onde há a manutenção do bem-estar dos
que dela fazem parte, na qual são providos os cuidados básicos como a
alimentação, moradia, os cuidados com sua saúde, educação, lazer (ROMANELLI,
2009; 2013). À família é atribuída a transmissão de aspectos culturais básicos que
se relacionam à linguagem, costumes, valores, padrões de comportamento. A
escola, por sua vez, se configura como um ambiente social formal, especializado na
formação e na educação das gerações mais novas, sendo um espaço de educação
que se diferencia da família e da comunidade. Ela se apresenta com o intuito de
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As mudanças econômicas, sociais, culturais que têm ocorrido nos últimos anos
permitiram o reconhecimento de uma variedade de arranjos familiares, como por
exemplo, as famílias reconstituídas, monoparentais, homoafetivas, entre outras
diversas maneiras de se constituir família. Há uma tendência a maior
democratização e menor hierarquização nas relações internas ao grupo familiar,
bem como de respeito e valorização da individualidade de seus integrantes. Apesar
dessas mudanças, a importância das funções educativas da família se manteve, e
pode-se afirmar até mesmo que se alargou, pois na sociedade contemporânea os
pais passam a ser vistos como responsáveis pelos fracassos ou sucesso dos filhos.
De modo concomitante às mudanças nas famílias, o sistema escolar também foi alvo
de importantes transformações, a partir do estabelecimento de novos valores
educacionais, os quais passam a preconizar a individualidade e autonomia dos
estudantes, conforme é apontado por Nogueira (2006). Para a autora, alguns fatores
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Conforme a autora, a escola assume papéis que antes eram atribuídos às famílias,
deixa de ater-se apenas ao desenvolvimento cognitivo dos alunos e passa a se
responsabilizar também pelo “bem estar psicológico e pelo desenvolvimento
emocional do educando” (NOGUEIRA, 2006, p. 162). A escola passa então a deter
para si informações mais íntimas da vida familiar dos alunos, sob a premissa de que
é necessário conhecer mais o estudante para realizar ajustes em suas ações
pedagógicas. A família, por outro lado, “passa a reivindicar o direito de interferir no
terreno da aprendizagem e das questões de ordem pedagógica e disciplinar. Não há
mais uma clara delimitação de fronteiras” (NOGUEIRA, 2006, p.164). Porém, apesar
do discurso de cooperação entre família e escola, essa relação não deixa de ser
conflituosa e ambígua. Há uma espécie de culpabilização mútua entre as duas
esferas, principalmente quando se trata de questões de indisciplina e baixo
desempenho escolar dos alunos (RESENDE, 2009).
Esse tratamento diferenciado conferido ao educandos, por parte da escola, pode ter
relações, ainda, com o perfil familiar dos alunos. Da mesma forma que, na
sociedade em geral, existe um ideal de família, para a escola também existe um
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3. Metodologia
2
A palavra pais está sendo utilizada neste trabalho de maneira genérica, para se referir a pai e/ou
mãe, biológico ou adotivo.
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mãe, a coordenação sabia que a criança residia com os pais e que estes não
assinavam como responsáveis por motivos de trabalho/tempo, situação em que a
família não foi selecionada por não atender ao perfil desejado. Aconteceu também
de a coordenação impedir o contato com algumas famílias que faziam parte do perfil
desejado, alegando que elas não seriam receptivas, pois os alunos eram
indisciplinados e problemáticos, e que a escola tinha dificuldades com os
responsáveis.
Os convites para a participação na pesquisa foram enviados por escrito, através dos
alunos, para que os interessados pudessem deixar também a forma de contato.
Após o envio dos convites, apenas três famílias deram resposta positiva para
participar da pesquisa. Uma, entretanto, não se encaixava no perfil desejado e foi
excluída. A família em questão era composta por um casal homoafetivo feminino,
que estava em processo de adoção de uma menina. Conforme ressaltado
anteriormente, para esta pesquisa os pais/mães adotivos estão na mesma categoria
dos pais biológicos, não sendo, portanto, nosso público alvo. A família acabou sendo
selecionada em um primeiro momento, pois como a adoção estava em processo de
execução, os nomes dos pais biológicos constavam no registro da escola, no qual
22
figurava uma das mães adotivas da aluna como sua responsável, só sendo
constatado o equívoco após o contato com a responsável, que explicou o caso.
3
Roteiro em anexo.
23
Tendo sido realizado apenas um contato (entrevista) com cada família, foi possível
perceber que seria necessário um aprofundamento maior das questões, para que os
resultados pudessem ser mais significativos e conclusivos. As entrevistas ocorreram
sem contratempos e apenas as avós se encontravam na casa no momento de sua
realização.
4. Sujeitos da pesquisa5
Suelen tem 14 anos e cursa o nono ano do ensino fundamental. Mora com a avó
paterna, Dulce, desde que nasceu. Dulce tem aproximadamente 50 anos6 e cursou
4
Roteiro em anexo.
5
Ao longo do texto foram utilizados nomes fictícios.
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até o 8º ano do ensino fundamental. O pai de Suelen é filho de Dulce, tinha 17 anos
quando a filha nasceu. A mãe da garota engravidou aos 12 anos e por esse motivo
foi morar na casa de Dulce. Um ano após o nascimento da menina, a mãe faleceu
em um acidente e a avó Dulce ficou com a guarda de Suelen. Dulce afirma que
desde o nascimento de Suelen ela já havia pleiteado a guarda, devido ao fato da
mãe da menina ser muito nova. Com a morte da mãe, a família materna solicitou a
guarda, porém Dulce acabou ficando em definitivo com a garota:
“Já tinha entrado na justiça para pegar a guarda, porque ela era muito
novinha, aí eu peguei, porque ia ser uma criança olhando outra criança, era
como se tivesse brincando de boneca, onde já se viu menina de 12 anos
cuidando de menino. Sabe nem o que que é. Então eu entrei na Justiça e
peguei.” (Dulce, avó de Suelen, entrevista de pesquisa).
O pai de Suelen mora na casa ao lado, porém, de acordo com a avó, ele não é muito
presente na vida da filha e costuma ajudar pouco financeiramente. Quando
questionada a respeito da presença do filho na vida da neta, Dulce é enfática: “Não,
e eu nem empato meu tempo com isso”. Quanto aos familiares maternos, Dulce
afirma que a neta não mantém mais contato, desde que ela ficou com a guarda da
menina.
As duas residem sozinhas em uma casa localizada em uma vila próxima à escola,
na região da Pampulha, em Belo Horizonte. A residência fica nos fundos de outras
casas, no início da vila. A avó é costureira e declarou ter renda mensal em torno de
dois salários mínimos, dinheiro com o qual mantém todas as despesas da casa e da
neta. A avó comprou a casa faz mais ou menos quatro anos, com dinheiro que
juntou ao longo do tempo; antes pagava aluguel, residindo em várias casas antes de
se estabelecerem em local fixo.
Antes mesmo de conhecer a região em que elas moram, eu já havia ouvido falar da
vila e um pouco sobre seus moradores, em conversas com as coordenadoras,
durante o estágio realizado na escola. Muitas vezes elas falavam que os pais das
crianças que moravam nessa vila eram “barraqueiros”, “briguentos”, e que sempre
arrumavam problema quando eram chamados à escola. Havia certa “fama” negativa
6
A entrevistada não informou a idade exata.
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na escola em relação aos moradores do local. Sempre que algum menino morador
da região cometia algum ato de indisciplina na escola, já falavam, “Fulano é da vila,
por isso ele fez isso”, e outras coisas do tipo. Foi perceptível por parte da
coordenação certo juízo em relação a essas famílias, principalmente ligado ao
território em que residem.
Ao chegar à residência de Dulce, ela falou que havia acabado de voltar, pois tinha
levado os outros dois netos, filhos de outra filha, que também residem na vila, à
creche. Embora eles não morem com Dulce, ela é responsável por levá-los e buscá-
los todos os dias para que sua filha possa trabalhar. Ao adentrar a residência, foi
possível perceber que havia outros cômodos, aparentemente, sala, cozinha,
banheiro e quartos, além de um espaço que ela usa para costurar. A casa
apresentava certa desordem e odor um pouco desagradável, com muitas roupas
sobre os móveis da sala. Havia dois cachorros dentro do cômodo e pude ver que
havia outros do lado de fora, no pátio da casa.
esse episódio porque passei a me perguntar até que ponto esse tipo de relação
entre Dulce e funcionários da escola poderia influenciar sua opinião quanto à
instituição. Não sendo possível, com os dados coletados, mensurar essa possível
influência, torna-se necessário, pelo menos, registrar essa hipótese.
Kelly tem 14 anos e está no 5º ano do ensino fundamental. Ela e o seu irmão de 18
anos moram com a avó Sílvia, assim como a namorada do rapaz, de 17 anos, que
estava grávida na época da entrevista e foi morar com a família por causa da
gravidez. Sílvia é a avó materna de Kelly, tem 52 nos e cursou até o 4º ano do
ensino fundamental. A avó cuida da menina desde que essa tinha 1 ano e 9 meses e
seu irmão, 5 anos.
Kelly e seu irmão foram morar com a avó quando a mãe, que estava com um tumor
no cérebro, morreu atropelada por um ônibus. A avó cuida dos netos sozinha, eles
não possuem contato com parentes paternos, e Silvia relata que nem mesmo
conhecem os pais. Ela afirma que nunca tiveram ajuda, nem mesmo sabe quem são
os pais dos netos, mas ela considera que foi melhor para eles não os conhecer:
“Não e eu acho é bom porque eu nem sei quem é. É melhor pra gente cuidar.”.
De acordo com a avó Sílvia, tanto ela quanto o neto estavam desempregados, tendo
como renda mensal o auxílio que recebem no valor de um salário mínimo,
necessitando de ajudas de terceiros para complementarem o sustento da família -
ajudas essas que não foram especificadas durante a entrevista. A casa em que a
família reside está localizada ao lado da escola. Essa proximidade permite que Kelly
possa participar com mais frequência dos projetos realizados na instituição. No dia
da entrevista, apenas a avó estava na casa. Ela me recebeu na sala, que estava
muito organizada. A entrevista ocorreu sem contratempos, contando com a
disposição de Sílvia para responder aos questionamentos.
anos, período em que frequentava uma escola para alunos especiais em Uberaba,
cidade em que moravam. Após a vinda da família para Belo Horizonte, Kelly passou
a frequentar a escola regular, na qual está há 3 anos.
4.2. Professoras
A professora Aline possui 36 anos, está na escola há quatro anos e leciona língua
portuguesa para alunos do terceiro ciclo do ensino fundamental. É formada em
Letras e trabalha há mais de dez anos nessa área. A entrevista ocorreu na sala de
professores, com outros docentes próximos, uma vez que a professora não se
dispôs a ir a outro local. Porém, esse fato não chegou a prejudicar a entrevista,
sendo apenas desconfortável pelo barulho que envolveu o local e a presença de
outras pessoas.
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Durante a conversa com a docente, foi possível perceber que ela possui um grande
envolvimento com seus alunos. Tem conhecimento de fatos pessoais e familiares
deles, sempre buscando conversar e auxiliar em casos mais sérios.
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O horário de Projeto seria referente à Hora Atividade, que é o período garantido pela lei nº
11.738/2008, que garante aos professores o tempo para realização de atividades extraclasse, como
planejamento, organização das aulas, avaliação de atividades, etc.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11738.htm
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Porque na época a mãe dela tinha 12 anos então assim, e minha menina
também tinha 12 anos. Eram três crianças dentro de casa e meu filho tinha
17. Então foi indo, tudo crianças. Aí todo mundo cresceu, desembolou e ela
ficou. (Dulce, avó de Suelen, entrevista de pesquisa).
Outros trabalhos que trataram de avós responsáveis por seus netos trouxeram à
tona consequências para esses avós, que acabam tornando-se responsáveis e
desempenhando os papéis de figuras paternas e/ou maternas de seus netos.
Mainetti e Wanderbroocke (2013), ao tratarem do tema, pontuam que entre os
fatores negativos para os avós criarem os netos estariam a “queda na qualidade de
saúde física e emocional das avós, com incidência de depressão e baixa saúde
percebida, interferência na vida social e familiar, cansaço e esgotamento emocional”.
Por outro lado, as autoras apontam também aspectos positivos dessa convivência
entre netos e avós, dentre eles o sentimento de renovação pessoal decorrente da
"oportunidade de ter companhia e gratificação por estarem provendo uma nova
geração com cuidados e ensinamentos” (MAINETTI E WANDERBROOCKE, 2013,
p. 88).
impotência por considerar não estar fazendo o melhor para a neta Kelly, devido aos
parcos recursos da família e às necessidades específicas da menina. De acordo
com a avó, Kelly necessitaria de atendimentos especializados, como psicólogos e
fonoaudiólogos, para que seu desenvolvimento ocorresse de maneira mais
satisfatória, porém isso parece estar fora da realidade da família. O sentimento de
impotência fica evidente quando é questionada a respeito do que poderia fazer para
ajudar a neta a se desenvolver:
A gente vai tentando, fazer uma coisa aqui, uma coisa ali, mas ser correta
mesmo no termo de poder ajudar ela mesmo, eu não tenho condição pra
isso, não tem como. Por exemplo, nem estudo eu tenho, se eu tivesse mais
estudo eu poderia saber como ajudar ela melhor. Só isso mesmo. (Sílvia,
avó de Kelly, entrevista de pesquisa)
Ribeiro e Zucolotto (2015) destacam, também, o ponto de vista dos avós acerca das
dificuldades afetivas na relação com os netos, principalmente relacionadas com a
ausência paterna ou materna. De acordo com as autoras, alguns avós afirmam que
nunca conseguirão suprir a falta da mãe e do pai, mas que tentam fazer o máximo
para tentar amenizar e suprir essa ausência. Sílvia e Dulce relataram os sentimentos
das netas em relação à falta da presença materna, que nem sempre é expressa
verbalmente, mas também no comportamento:
Falar assim coisa não, mas a gente sente que ela sente assim um
pouquinho de falta, eu acho que é diferente. Não sei expressar pra você o
que seria, o que é, mas eu creio que ela sente falta. Igual ela vê muitas
meninas saindo com as mães, e eu... a gente não é a mesma coisa, assim,
entendeu? (Sílvia, avó de Kelly, entrevista de pesquisa).
32
Ela não teve contato assim com a mãe, não. Não teve contato. Agora que
ela tá grande é que ela fala ‘eu queria ter minha mãe’. (Dulce, avó de
Suelen, entrevista de pesquisa).
Foi notória, durante a entrevista com a Sílvia, sua insatisfação com a condição
financeira da família. A falta de recursos faz com que não consigam atender
satisfatoriamente às necessidades especiais de Kelly, que precisaria de ajuda
especializada para se desenvolver mais efetivamente do ponto de vista cognitivo, o
que tem prejudicado seu resultado na escola. Cabe acrescentar que, além dos
parcos recursos financeiros, possivelmente, devido à baixa escolaridade da avó e à
falta de conhecimento, ela não saiba como buscar alternativas para auxiliar Kelly,
como através do SUS, por exemplo. Observa-se, portanto, que se trata da falta de
recursos de diferentes tipos; nos termos de Bourdieu (1998), provavelmente a posse
de maior capital econômico, cultural (especialmente o informacional) e mesmo
social8 permitisse a Silvia maior sucesso nessa empreitada.
No que tange à escola, bem como à recepção por parte dos funcionários e
professores, as avós disseram ser sempre bem recebidas na instituição. Dulce diz
gostar da escola, achar os funcionários prestativos, afirmando que, sempre que
precisou deles, foram atenciosos. Sílvia, quando questionada a respeito da recepção
por parte da escola, também apresenta uma visão positiva, afirmando que o
tratamento por parte dos funcionários é bom e sempre que necessita de algum
auxílio ou de tirar alguma dúvida, eles estão disponíveis.
8 Segundo Bourdieu, a posição social de uma família e suas possibilidades diante do sistema de
ensino são em grande parte decorrentes da posse de quatro tipos de capitais: econômico (bens
materiais, recursos financeiros), cultural (acesso a bens culturais socialmente legitimados, nível de
escolarização, posse de informações sobre o sistema de ensino, etc.), social (rede de relações
potencialmente rentáveis em determinado campo) e simbólico (prestígio e reconhecimento
decorrentes de determinados pertencimentos sociais) (BOURDIEU, 2003; NOGUEIRA e NOGUEIRA,
2004).
33
recebidas quanto a isso, sendo que o tratamento é tão bom quanto se fossem mães
das alunas:
Não, pelo contrário, dão mais atenção, mais carinho. Têm mais dedicação.
(Dulce, avó de Suelen, entrevista de pesquisa).
Não, pra eles nem parece que eu sou vó, é a mesma coisa de eu tá mãe.
Eles nem lembram às vezes que eu sou avó dela. É como se fosse mãe
mesmo. Ela me chama de mãe, né, ela não fala vó. Eu não consigo falar
mãe pra ela, sempre avó que eu falo. Mas a convivência com escola com
ela está sendo boa aqui em casa. Não estou tendo problema com a escola
não. (Sílvia, avó de Kelly, entrevista de pesquisa).
Essa visão positiva das avós entrevistadas em relação à escola vai no mesmo
sentido da opinião das professoras, como será exposto mais à frente. Porém, essa
perspectiva favorável em relação ao tratamento dado pela escola aos avós
cuidadores dos netos não se apresenta em todas as situações, conforme a literatura.
Coelho (2018), em seu trabalho que trata sobre a relação entre avós, netos e escola,
relata ter presenciado, durante as observações nas escolas, momentos nos quais as
avós, ao solicitarem informações aos funcionários, eram tratadas com rispidez e
indiferença. Essas situações não podem ser tomadas como gerais, pois poderão
variar conforme a instituição e atores envolvidos nos fatos observados ou relatados.
Uma importante direção para a pesquisa, que não pode ser devidamente
aprofundada neste estudo, seria justamente compreender quais os fatores
explicativos e/ou condicionantes dessas variações.
pesquisa corroboram essa literatura, Esse fato denota certa tendência na maneira
pela qual as famílias das classes populares avaliam as escolas e professores.
Quanto a esse último aspecto, isto é, as interações cotidianas entre as duas avós
(Dulce e Síliva), suas netas e a escola, as situações são bem contrastantes. Dulce
costuma comparecer à escola apenas em reuniões ou quando há algum tipo de
solicitação; não costuma participar de eventos, como festas juninas, festa da família.
Disse que foi algumas vezes ao Programa Escola Aberta9, mas também parou de ir,
pois geralmente está trabalhando. De acordo com ela, a neta também não gosta de
participar desses eventos. Já Silvia tem o costume de procurar a escola para tirar
dúvidas a respeito da neta, também participa das reuniões e frequenta os eventos
da escola, pois a neta gosta de estar presente:
Quando tem eu vou. Vou lá, fico um pouco com ela, tiro foto, as professoras
tiram foto com a gente. É muito bom, a convivência é boa.(Sílvia, avó de
Kelly, entrevista de pesquisa).
A avó de Kelly destaca a importância, para a neta, das atividades que a escola
oferece, principalmente pelo fato de não terem muito recursos para realizar outros
passeios e também por sua saúde fragilizada:
É importante pra ela, ela gosta, traz os bilhetes pra mim assinar, ela fica
empolgada com excursão, essas coisas. Ela fica doida pra passear, porque
ela não sai, aqui em casa fica mais eu mesmo e ela. Então ultimamente eu
ando muito doente, também não tenho saúde. Aí fica assim. Em algum
ponto ela fica prejudicada, porque ela poderia ter outras atividades pra
fazer, entendeu , e não tem. (Sílvia, avó de Kelly, entrevista de pesquisa).
Sílvia relata que costuma acompanhar os deveres de casa da neta. Quando Kelly
tem alguma dúvida ela recorre à professora ou a auxiliar que a acompanha em sala.
9
“O Programa Escola Aberta incentiva e apoia a abertura, nos finais de semana, de unidades
escolares públicas localizadas em territórios de vulnerabilidade social. A estratégia potencializa a
parceria entre escola e comunidade ao ocupar criativamente o espaço escolar aos sábados e/ou
domingos com atividades educativas, culturais, esportivas, de formação inicial para o trabalho e
geração de renda oferecidas aos estudantes e à população do entorno.”
Fonte: http://portal.mec.gov.br/observatorio-da-educacao/195-secretarias-112877938/seb-educacao-
basica-2007048997/16739-programa-escola-aberta.
35
Sempre tem a menina lá que ajuda ela fazer, mas sempre que ela traz a
gente ajuda eu participo com ela pra fazer. Alguma coisa que eu não sei
que às vezes tem umas coisas que eu não entendo ai eu deixo para a
professora ensinar ela.
No começo desse ano ela deu uma balançada, agora ela equilibrou de
novo, mas sempre né, muito nova também. Então, pra mim tá indo bem,
não tenho do que queixar dela não. (Dulce, avó de Suelen, entrevista de
pesquisa)
A avó diz que é muito rígida com a neta e, quando questionada se já foi chamada
alguma vez na escola por causa da jovem, ela diz: “Fui. Eu dei um couro nela, lá
dentro mesmo.” (Avó Dulce).
Quanto às suas pretensões para o futuro da neta, Dulce diz que isso vai depender
da menina, que ela tem vontade de continuar estudando, mas diz não saber como
isso vai ocorrer:
Eu espero dela formar, até porque a ideia dela é essa, até continuar. Eu
quero que ela estuda né, mas vão ver né, esse povo depois que cresce... é
difícil. Eu acho que ela vai até o final. Eu acho né, não sei. [...] Em relação
aos estudos ela está indo muito bem, só Deus sabe o final, a gente só
espera que completa tudo, mas... A escola é muito boa, os diretores, os
funcionários também, então não tenho nada a reclamar. (Dulce, avó de
Suelen, entrevista de pesquisa).
já deixo ela atravessar, já ir, porque faz parte dela crescer, igual a psicóloga
falou pra mim na época né, que eu tenho que deixar ela desenvolver um
pouco. Porque ela tinha medo até de atravessar a rua, daqui pra aqui, ela
tinha medo. Então ela está se desenvolvendo mais, fazendo as coisas,
convivendo lá com os meninos. Já conversa, tem as meninas pra ela
conversar. (Sílvia, avó de Kelly, entrevista de pesquisa).
No trabalho de Sá (2017), a autora constata que as mães acreditam ter uma missão
moral para com seus filhos de criação, sendo necessário fazer com que estudem
para terem melhores futuros, entretanto, diante das incertezas e resultados não
satisfatórios de alguns, elas acabam aceitando com certa resignação o fato de não
irem bem na escola, relacionando isso a escolhas, gostos e disposições individuais:
Na fala das mães, “há aqueles que têm e aqueles que não têm cabeça boa
para a escola”, “há aqueles que escolhem gostar da escola e os que não
escolhem”, ou ainda, “há aqueles que estão dispostos a se esforçar e
aqueles que não estão dispostos”. As escolhas são vistas como individuais
e como algo, em última instância, incontrolável pelas famílias ou mesmo
pelos sujeitos. (SÁ, 2017, p.220)
No caso desta pesquisa, Dulce diz esperar que a neta termine os estudos,
entretanto, fica clara a incerteza em sua fala, sendo essa expectativa (além de vaga,
37
10
Para uma análise mais efetiva quanto às expectativas das famílias em relação ao futuro de alunos
com necessidades especiais, seria necessária a realização de uma pesquisa mais específica a
respeito do tema, a qual não foi possível no âmbito deste trabalho.
38
Zago (2008; 2012), ainda ressalta que em algumas famílias das classes populares, a
mobilização familiar se volta à necessidade de sobrevivência. Algumas famílias, por
reconhecerem a importância dos estudos, principalmente para alcançarem melhores
postos de trabalho no futuro, tentam manter os filhos o máximo de tempo na escola,
entretanto, muitos necessitam, até mesmo de forma precoce, conciliar o trabalho
com o estudo. Assim, em alguns casos o abandono dos estudos ocorre de forma
definitiva, ou retornam mais tarde, enfrentando interrupções e desafios. Conforme a
autora, apesar das famílias alimentarem a crença de um futuro melhor através da
escolarização, devido às limitações das condições materiais, os projetos de futuro
são limitados, sem uma real perspectiva de mudança.
Um aspecto importante, apresentado por Lahire (1997), diz respeito à maneira pela
qual as famílias irão expressar a importância que dão à escola. Quando cita os pais
que batem em seus filhos que vão mal na escola, ele deixa evidente – mesmo
considerando a problemática da violência – que, ao tomarem essas atitudes, tais
pais estão demonstrando a importância conferida à escola, o que vem ao encontro
do ato de Dulce, que diz ter batido na neta quando foi chamada na escola por causa
dela.
39
E o que dizer dos pais ou mães que batem nos filhos quando os resultados
são ruins ou quando as cadernetas mostram que brincaram em aula? O que
quer que se possa pensar da eficácia pedagógica dessa política disciplinar,
tais fatos provam que os pais não são indiferentes aos comportamentos e
aos desempenhos escolares: para bater nos filhos, é também necessário
julgar que isso vale a pena e conferir à escola um mínimo de importância e
de valor. (LAHIRE, 1997, p. 334-335).
Para a professora Luiza, o fato de um aluno não fazer parte de uma família nuclear,
não impede que ele tenha sucesso escolar. Ela acredita que o mais importante,
nesse caso, não é a configuração familiar, mas o fato desse aluno ter alguma
pessoa que se interesse por sua vida, seus estudos:
Eu acho que a gente tem que fazer o melhor que for pelo aluno. Então às
vezes, ele não mora nem com a mãe nem com o pai, mas ele mora com
uma avó carinhosa, com um avô preocupado, então ele tem seguimento. Às
vezes ele mora com uma mãe, mas a mãe também não está preocupada
com o rendimento do filho, ela está preocupada com ela, com ela sair, e o
menino cai. Então, na minha cabeça não tem aquela formação de família
perfeita, eu acho que tem que ser uma família harmoniosa, onde que o
menino possa crescer, com alguém preocupado com ele. Eu sempre falo,
eles não são sozinhos, tem sempre um responsável, então que esse
responsável seja uma pessoa confiante pra poder caminhar com essa
criança. Então eu não me preocupo se é o pai ou mãe com os filhos, eu
acho que sim, tem que ser aquela pessoa, que vai direcionar um caminho
que seja pelo menos viável para essa criança (Luíza, professora de Kelly,
entrevista de pesquisa).
Embora considere que o arranjo familiar do aluno não interfira diretamente em seu
sucesso ou fracasso escolar, a professora Luíza argumenta que a família em si é a
41
Às vezes aqueles que já são indisciplinados, estão faltando maior zelo desses
familiares. A gente percebe também até pelo olhar do caderno do filho, que
muitas vezes tem menino que não faz nada, e você vê que a família não está
percebendo. Porque se seu filho chega todo dia sem ter nenhuma atividade
no caderno, a família tem que vir cá pra saber o que está acontecendo.
(Luíza, professora de Kelly, entrevista de pesquisa).
O desafio é você trazer para a escola aqueles pais dos meninos que estão
realmente precisando. Eles só vêm quando tem ocorrência, ou quando a
diretora chama. (Suelen, professora de Kelly, entrevista de pesquisa).
Para Perez (2009), a escola de maneira equivocada confere aos pais papéis que
não fazem parte suas atribuições, responsabilizando-os por problemas que seriam
da competência da instituição escolar. Segundo Perrenoud (2001), do ponto de vista
da escola e professores, as famílias devem educar as crianças para que sejam
capazes de cumprir o papel de alunos. Para o autor, os papéis dos pais não se
limitam às “prescrições regulamentares e legais”:
Para Romanelli (2009), a escola tende a avaliar de maneira negativa as famílias que
não acompanham os deveres dos alunos, ou não estão presentes nos eventos e
reuniões, ligando isso ao fato de uma suposta desestruturação familiar. Conforme
Sigolo (2009, p.398), a demasiada ênfase dada à participação parental na escola,
por parte dos legisladores, gestores e professores, transmite a ideia de que essa “é
uma condição crítica para o sucesso acadêmico”.
A respeito dos alunos que não vivem com os pais, a professora Aline, acredita que
isso impacta de maneira negativa sua escolaridade, pois esses poderão ficar sem
42
uma referência, o que faria com que seus resultados e escolhas de futuro possam
ser comprometidos:
Não tem como não impactar, isso é determinante. A família, ela é uma
referência, tanto uma referência positiva, quanto negativa. Muitos têm
exemplos excelentes em casa e são maus alunos, que a gente sabe que
também há exceções, mas via de regra, uma família estruturada, uma
família que acredita no menino, ele tende a buscar os desafios e vencê-los.
A parceria com a escola se faz sim, muito presente, aqui na nossa escola
nós temos algo assim muito presente, que eu vejo, a gente chama muito a
família, só que comumente nós somos entristecidos por essa família,
porque às vezes nós chamamos porque o comportamento é X, o
comportamento ruim, por exemplo, e a família apoia o menino, ao invés de
nos apoiar, porque a gente quer ajudá-los, mas ela não enxerga isso. Então
a gente vê uma superproteção, vê uma falta de referência, no sentido assim
de mostrar para o menino, de respeito, vários outros valores que a gente vê
assim, indo por água abaixo por meio dessa geração. (Aline, professora de
Suelen, entrevista de pesquisa).
Para ilustrar seu ponto de vista, a professora Aline relata ainda o caso de um aluno
que mora com avó, pelo fato do pai estar preso e a mãe tê-lo abandonado. Segundo
a docente, o aluno possui um significativo histórico de indisciplina e grandes
dificuldades de aprendizagem, os quais ela relaciona à situação familiar do garoto:
A gente tem um caso muito crítico aqui do Vinícius, que é um aluno que é
muito indisciplinado. Inclusive com os próprios colegas ele tem problema de
relacionamento, atualmente todo mundo na sala dele, a maioria está a fim
de bater nele. Ele é criado pela avó, acho que o pai está preso, a mãe
entregou o menino e falou assim “eu não quero esse menino”, então você
vê assim que ele é totalmente perdido. Ele privilegia o lado social com a
indisciplina porque ele quer mostrar que ele está bem, mas a gente sabe
que ele sofre, não tem como ele não sofrer. É uma forma dele se igualar.
‘Eu não dou conta de estudar, mas eu sou super social, me envolvo bem.’ É
onde eles tentam suprir com o convívio, com essas questões de
relacionamento com os colegas. (Aline, professora de Suelen, entrevista de
pesquisa).
A fala da professora Aline traz alguns elementos para dialogar com a literatura sobre
o tema. Segundo Perez (2009, p. 388), os professores reproduzem uma
representação discriminatória a respeito das famílias das camadas populares,
contrapondo o estereótipo de “família ideal supostamente coesa das camadas
médias”, ao “estereótipo de família desestruturada da população pobre”. Para
Resende (2009), o estereótipo segundo o qual a família desestruturada, que não
impõe limite aos filhos, seria causadora de problemas na escola, é recorrente entre
os educadores escolares; entretanto, segundo a autora, esse discurso seria
simplificador e reducionista, uma vez que, para ela, a “(in)disciplina escolar é um
43
pesquisa, dados o pequeno tempo em campo e os contextos das entrevistas, não foi
possível aprofundar suficientemente esse entendimento.
Em relação à Kelly, de quem Luíza é professora pelo segundo ano consecutivo, ela
deixa explícitas as dificuldades da menina em relação aos demais alunos da sala.
Kelly, que tem 14 anos e possui déficit intelectual, está atrasada em relação aos
seus colegas do 5º ano, tanto no que se refere à idade, quanto ao aprendizado.
A professora conta que, quando a aluna chegou à escola, ela era muito tímida e
retraída, em muitos momentos parecendo estar triste, mas ao longo do tempo vem
se socializando com os colegas. A professora destaca a participação de Kelly em
eventos, como festa junina, Escola Aberta e também as aulas de balé oferecidas
pela escola.
45
Ela considera a avó bastante presente na vida escolar da aluna, sempre que
possível está presente nas atividades da escola junto com a menina. Destaca a
participação da garota nas festas juninas da escola, em que ela sempre se
apresenta a caráter, com todo o esforço da avó, para alugar as roupas, por exemplo.
A professora Luíza enfatiza que possui bom relacionamento com as famílias de seus
alunos em geral, colocando-se disponível sempre que possível para conversar.
Quanto à avó de Kelly, ela disse nunca ter tido nenhum tipo de problemas, sendo até
“amiga” em redes sociais.
Às vezes ela chama a gente para conversar e diz que não está bem por
causa disso, de questões familiares. Mas o que a gente pode fazer em
relação a essas questões, é realmente, assim, conversar com o aluno a fim
que aquele momento seja atenuado, e exigir da mesma forma, porque ele
precisa vencer essa ausência, esse problema não é maior do que ele, muito
pelo contrário, ele dá conta. Então a gente tenta fazer isso com o aluno,
pelo menos é o que eu faço com os meus. (Aline, professora de Suelen,
entrevista de pesquisa).
A professora diz nunca ter tido contato com a avó ou pai da menina, e acredita que
há uma falta de referência e apoio familiar, que acaba resultando nas dificuldades
escolares que ela apresenta:
Em relação à Suelen, a professora diz que ela foi suspensa algumas vezes por
indisciplina. Afirma que quando conversa com a aluna, ela apresenta uma leve
melhora no comportamento, mas que logo ela volta à indisciplina:
Essa visão das professoras quanto às famílias parece reforçar o fato das escolas
idealizarem um perfil familiar para os alunos a partir da presença física na escola. No
caso da aluna Kelly, apesar dela morar com a avó e possuir as dificuldades de
aprendizagem, Sílvia costuma ser participativa nas atividades da escola, acompanha
a rotina da neta, o que faz com que a professora tenha uma visão mais favorável da
família. Por outro lado, no caso de Suelen, além da menina apresentar dificuldades
de aprendizagem e indisciplina, a avó não é presente fisicamente na escola e isso
faz com que a professora relacione o comportamento da aluna à ausência e falta de
referência familiar.
nessa direção, uma vez que a presença da avó na escola não se converte em
solução para suas dificuldades no processo pedagógico.
6. Considerações Finais
A presente pesquisa teve como tema a relação entre a escola e as famílias das
crianças e adolescentes que estão sob a guarda (legal ou não) de outros familiares,
como avós, tios, irmão, bem como demais responsáveis sem parentescos, como
padrinhos. Faz-se necessário conhecer e compreender de maneira mais consistente
a temática, uma vez que educadores e demais agentes escolares, em muitas
ocasiões, adotam padrões normativos de família, excluindo aquelas que não se
encaixam nesses padrões. É preciso aprofundar esse debate que poderá contribuir
para que a convivência entre essas instituições ocorra de maneira a favorecer a vida
escolar dos estudantes envolvidos.
Diante disso, a pesquisa teve como objetivo geral compreender como se estabelece
a relação entre famílias e escolas em casos nos quais as crianças vivem sob a
responsabilidade de outros adultos que não as mães e/ou os pais. Para viabilizar o
estudo, optou-se por focalizar as perspectivas dos sujeitos (responsáveis e
professoras) a respeito dessa relação. Em decorrência da situação encontrada na
pesquisa de campo, a investigação acabou se concentrando nos casos de duas
avós responsáveis pelas netas, o que levou à busca de bibliografia mais específica
concernente a essa relação (avós como cuidadores de netos).
No que se refere aos perfis das famílias analisadas e às suas dinâmicas educativas
com relação às meninas, verificou-se que apenas as avós se responsabilizam pelas
funções de cuidar e educar, algo que se tornou natural para elas, uma vez que não
possuem ajuda de outros nessa tarefa. Foi possível constatar a percepção das avós
quanto à escola, sendo que se sentem bem atendidas nas suas especificidades, não
tendo apresentado queixas em relação à instituição e a seus educadores e
funcionários.
Diante do que foi exposto acima, é importante tecer algumas considerações. Para
que os resultados dessa pesquisa fossem mais conclusivos, seria necessária a
ampliação do número de famílias e professores participantes, bem como a inserção
de novos atores, o que não foi possível neste estudo, dada a limitação de um
trabalho de conclusão de curso. Dentre esses novos atores, seria importante trazer o
ponto de vista da coordenação, visto que, geralmente, são os(as) coordenadores(as)
que mantêm maior contato com as famílias, recebendo de forma mais direta as
demandas que elas trazem, intermediando o contato dos professores com os
responsáveis. A visão dos alunos, filhos dessas famílias, também seria importante,
uma vez que geralmente o ponto de vista do estudante não é considerado nos
estudos da relação família-escola. Além disso, eles serão os verdadeiros impactados
na maneira como virá a se estabelecer esse contato entre família e escolas, além de
serem mediadores do mesmo contato.
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desafios. In: PINHO, Sheila Zambello de (Org.). Formação de educadores: O papel do
educador e sua formação. São Paulo: Unesp, 2009, p. 397-408.
Anexos
Anexo 1
Roteiro de entrevista
Família
Perfil familiar
Tópico Perguntas
Motivos e tempo pelos quais - Qual o motivo de N estar morando com vocês?
as crianças estão sob os
- Há quanto tempo N está com vocês?
cuidados dos atuais
responsáveis. - Essa situação de N é permanente ou temporária?
Relação da criança com os pais - Os pais de N mantêm algum tipo de relação com
(se há ou não contato). ele?
Família x Escola
Tópico Perguntas
Percepção dos responsáveis - Como a sra. se sente quando vai à escola por
em relação ao atendimento qualquer motivo? Gosta de ir? Sente-se à vontade?
/recepção da escola Por quê?
(professores, coordenação.
- Em geral a sra. é bem tratada pela equipe da
escola?
situação?
Anexo 2
Roteiro de entrevista
Professores
● Formação
● Função na escola
● Como você avalia a relação com as famílias nesta escola? Em geral, as famílias são
envolvidas com a escolaridade dos filhos? Costumam acompanhar em casa?
Costumam participar das reuniões e eventos na escola? Quando chamadas, em geral
comparecem? Solicitam reuniões e atendimentos dos profissionais da escola para
conversar sobre as crianças?
● Na sua turma existem crianças que não vivem com os pais? [Você tem acesso a essa
informação?] Quantas?
● Na sua avaliação, o fato de não viver com os pais tem algum impacto na escolaridade
da criança? Qual (is)? Fale a respeito. [As crianças provenientes dessas famílias
encontram maiores dificuldades do que as demais? Quais os motivos atribuídos para
essas possíveis dificuldades?]
● A escola costuma promover algum tipo de comemoração no Dia das Mães ou no Dia
dos Pais? Se sim, como vocês lidam com a situação dessas crianças? Já houve algum
incidente a esse respeito?
● Como você percebe a relação dessas crianças com as demais? O fato de não viverem
com os pais traz algum tipo de impacto para essa relação? Sentem-se discriminadas
de alguma forma ou não?
● Na entrevista a avó relatou que se sente bem recebida [e apoiada] pela escola. Isso é
uma política ou proposta da escola? Vocês têm reuniões em que discutem o
acolhimento às famílias? Ou é uma característica de alguns profissionais? Como vê
isso?
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Anexo 3 –