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A EXPERIÊNCIA DOS ÍNDIOS NA UNIVERSIDADE COMO UM EXERCÍCIO DE

TRADUÇÃO CULTURAL1

Talita Lazarin Dal’ Bó


Mestranda do PPGAS – UFSCar

Resumo
Apesar do conceito de “tradução cultural” receber pouca importância nos debates em
Antropologia, pode-se pensar que ele é capaz de resumir todo o exercício da disciplina: a tarefa
de entender outras culturas, outros modos de pensar.
Porém, uma questão que se coloca é quem seria esse “tradutor”: cada vez mais a
Antropologia reflete sobre a não-exclusividade do exercício de tal papel pelo antropólogo, ao
mesmo tempo que credita aos “nativos” (tidos por tanto tempo como os objetos de estudo do
antropólogo) a qualidade de sujeitos, conferindo também a eles o papel de tradutores. Sendo
assim, a partir do momento que se propõe a respeitar a condição de sujeito dos nativos, torna-se
necessário encarar a existência de outros mundos possíveis, de problemas e de conceitos que até
então podiam não existir para os antropólogos e para a antropologia.
Partindo destas considerações, pretende-se neste artigo refletir sobre a experiência dos
índios que ingressam nas universidades públicas, discutindo o papel de “tradutores” que pode ser
creditado a eles. A presença na universidade possibilita aos estudantes indígenas deparar-se com
um modo de vida diferente, com outros modos de pensar, de agir, de conceber o conhecimento,
de apreender e dar significado ao mundo; ou seja, permite-lhes refletir sobre outras culturas, e
sobre as suas próprias, podendo fazer de suas experiências acadêmicas exercícios constantes de
tradução cultural.

Palavras-chave
Estudantes indígenas – ensino superior – tradução cultural

O ingresso de 16 estudantes indígenas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


se deu no dia 25 de fevereiro de 2008, primeira semana de aula deste ano. Antes, nos dias 09 e 10
do mesmo mês, cerca de 40 índios de diversas etnias do país prestaram o Vestibular Indígena da
UFSCar e concorreram a uma vaga em cada um dos cursos de graduação oferecidos por essa
instituição. Dentre os aprovados, 3 Xukuro de Pernambuco ingressaram nos cursos de medicina,
fisioterapia e psicologia; 6 Terena do Mato Grosso do Sul nos cursos de imagem e som,
enfermagem, educação física, engenharia de computação, engenharia de produção e engenharia
agronômica; 4 Terena de São Paulo em filosofia, pedagogia, terapia ocupacional e estatística; 2
Guarani de São Paulo em engenharia florestal e turismo; e 1 Manchineri do Acre em Ciências
Sociais.

1
Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto
Seguro, Bahia, Brasil.

1
O processo de inclusão de índios nas universidades públicas é um momento recente na
história dos povos indígenas no Brasil. Deste modo, as pesquisas sobre este tema ainda se
encontram em andamento, e muito do que se tem produzido explora principalmente os processos
de negociação, decisão e implantação dos projetos, sem levar em conta o significado dessas
experiências pelos próprios estudantes. Contudo, as discussões que pretendo levantar neste
trabalho remetem não ao tema das políticas públicas e ações afirmativas, mas a alguns aspectos
relativos a essas experiências e aos sentidos que os índios que ingressaram na UFSCar estão
dando a elas.
Para tanto, gostaria de iniciar com algumas questões levantados por mim (e para mim)
sobre este meu tema de pesquisa, especialmente no que diz respeito ao meu ‘campo e aos
procedimentos metodológicos que me foram sugeridos. Passa-se que a minha própria
universidade, ou seja, na qual estudo, estava passando pelo processo de planejamento de um
projeto de inclusão de estudantes indígenas quando se deu meu ingresso no mestrado, portanto, o
campo estaria no mesmo lugar que eu me encontrava. Pode parecer uma solução simples, porém,
a imagem mais comum e recorrente de uma pesquisa de campo em etnologia indígena sofreria
uma curiosa inversão. Tendo concluído recentemente minha graduação, o cotidiano universitário
não seria uma novidade para mim; ao contrário, os candidatos indígenas que ingressariam nos
cursos universitários passariam por algo que é comum aos estudantes que iniciam seus cursos em
nível superior – a adaptação a uma nova condição e uma nova vida – mas de modo ainda
potencializado. Se o ‘campo’ não seria, para mim, algo a ser observado e compreendido, ele o
seria sim para eles. E, dessa maneira, eles é que teriam que descrever para mim suas impressões e
sensações sobre essa nova experiência. O exercício de pensar, refletir, sobre algo novo pelo qual
estariam passando não caberia somente a mim, mas, principalmente, a eles. Foi após essa
reflexão sobre meu campo, que se deu pela pesquisa tratar desse momento bastante recente na
história dos povos indígenas brasileiros – o ingresso à universidade – e, portanto, de pouca
produção antropológica, que passei a refletir sobre quem seria o “objeto” de pesquisa, se ele se
confundiria com o “sujeito” e, mais ainda, quem seria, neste caso, o próprio antropólogo.
Sobre essa discussão, apoiei-me no artigo de Viveiros de Castro, “O Nativo Relativo”, no
qual o autor discorre sobre a relação existente entre o discurso do ‘antropólogo’ e o do ‘nativo’.
Uma relação que até então, para ele, sempre se apresentou com uma vantagem epistemológica
para o antropólogo, que sempre foi aquele que detém o sentido do sentido do discurso do nativo,
“ele (o antropólogo) quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza,
justifica e significa esse sentido” (2002, p. 115). Mas o autor propõe algumas mudanças que nos
2
levam a refletir sobre uma nova maneira de se fazer antropologia, ou seja, uma recusa aos modos
de investigação antropológica clássicos em que o antropólogo é “aquele que detém a posse
eminente das razões que a razão do nativo desconhece” (idem, p. 116). Sendo assim, não seria
mais o caso de procurarmos problemas comuns (universais), mas com respostas culturalmente
diferentes (particulares), e sim – a mudança radical – não supormos quais são os problemas, e
deixar que os ‘nativos’ os apresentem a nós.

Pois, se a primeira concepção de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como


encarnando uma solução específica de um problema genérico — ou como preenchendo
uma forma universal (o conceito antropológico) com um conteúdo particular —, a
segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente
diversos; sobretudo, ela parte do princípio de que o antropólogo não sabe de antemão
quais são eles. O que a antropologia, nesse caso, põe em relação são problemas
diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções (‘culturais’)
(Viveiros de Castro, 2002, p. 117).

Ao aceitar a sugestão deste autor, e fazer uma escolha, como ele diz ser necessário, por
essa antropologia que pressupõe uma equivalência conceitual dos procedimentos de investigação
com os procedimentos investigados, eu estaria então caminhando de acordo com minhas
intuições sobre quais seriam os papéis dos ‘nativos’ – os estudantes indígenas – em minha
pesquisa. E não poderia ser de outra maneira, visto que os “objetos/ sujeitos” dessa pesquisa é
que parecem se colocar no papel de antropólogo ao ingressarem num “mundo diferente” e
apresentarem eles mesmos suas reflexões sobre suas experiências.
Ao falar em tradução cultural neste trabalho, tema ainda pouco debatido na Antropologia,
não me refiro à tradução no sentido mais usual do termo, como tradução de linguagens, mas
como tradução de modos diferentes de pensar, de outras culturas, de mundos diferentes que se
cruzam. Talal Asad destaca em seu texto “The Concept of Cultural Translation in British Social
Antropology” que Godfrey Lienhardt além de ter sido possivelmente um dos primeiros a
explicitar a noção de tradução como uma tarefa central da antropologia social, ele também utiliza
essa noção não para se referir a um problema lingüístico, mas a “modos de pensar”: “I draw
attention briefly to Linhardt´s use of the word ‘translation’ to refer not to linguistic matter per se,
but to ‘modes of thought’ that are embodied in such matter” (1986, p. 142, grifo do autor).
Assim, voltamos à discussão levantada acima, e proposta por Viveiros de Castro, de que o
antropólogo deve aceitar a existência de outros modos de pensar, que não o seu, e de outros

3
problemas, que não os explorados pela tradição antropológica2. Para tanto, os procedimentos de
nossas pesquisas precisam ser alterados. Não podemos chegar em campo com as questões que
queremos descobrir na cabeça, com os problemas formulados de antemão, porque certamente, na
maioria dos casos, eles não aparecerão como imaginamos, e possivelmente, não encontraremos as
respostas desejadas às nossas questões. Ou, se as encontramos, é bem provável que tenha
ocorrido um erro, um erro de ‘tradução’. O antropólogo deve, então, tentar entender o que se
passa nos modos de pensar dos seus nativos, quais o problemas levantados por eles, quais as
questões, quais as sensações, o que eles pensam e como eles interpretam as situações vividas.
Esse esforço de tradução do antropólogo, sem dúvida nenhuma, é bastante importante, pois cabe
a ele traduzir esses “mundos diferentes” de uma maneira que possa ser compreendido por outros
antropólogos, e por outras pessoas em geral. É bem verdade que a tradução nunca acontece
perfeitamente, que a figura do antropólogo não é neutra, e nem tem como ser, pois se o nativo
pensa, o antropólogo também, com seus conceitos (trazidos de sua ‘cultura’ e, ainda mais, com
seus conceitos antropológicos); mas não se espera que isso não ocorra, ao contrário, a
importância está justamente nessa relação do antropólogo com o nativo, que seria a grande chave
do exercício antropológico3.

(...) the understanding of another culture involves the relationship between two varieties
of the human phenomenon; it aims at the creation of an intellectual relation between
them, an understanding that includes both of them. The Idea of “relationship” is
important here because it is more appropriate to the bringing together of equivalent
entities, or viewpoints, than notions like “analysis” or “examination”, with their
pretensions of absolute objectivity (Wagner, 1981, p. 3, grifo do autor).

Neste sentido, os nativos não são mais apenas ‘objetos’, e não são simplesmente
‘sujeitos’. A idéia de relação em si já elimina essas duas posições como separadas, pois ora os
nativos podem ser sujeitos e o antropólogo objeto e vice-versa, e ora essas duas posições se
misturam. Contudo, não é aí que está a questão, como afirma Viveiros de Castro: “O problema

2
Devo deixar claro, contudo, que concordo com o autor que não se trata de afirmar que os nativos utilizam outras
características físicas, biológicas ou mentais para pensar, mas que o que eles pensam, ou como eles pensam, é que
pode ser diferente: “O problema é que o nativo certamente pensa, como o antropólogo; mas, muito provavelmente,
ele não pensa como o antropólogo” (Viveiros de Castro, 2002, p. 119, grifo do autor); e também: “Não acho que os
índios americanos ‘cognizem’ diferentes de nós, isso é, que seus processos ou categorias ‘mentais’ sejam diferentes
de quaisquer outros humanos” (idem, p. 124).
3
Aqui destaco também que não se trata apenas de “dar voz aos nativos” e sumir com a figura do antropólogo, como
algumas correntes antropológicas mais recentes vêm afirmando.

4
não está, portanto, em ver o nativo como objeto, e a solução não reside em pô-lo como sujeito.
Que o nativo seja um sujeito, não há a menor dúvida; mas o que pode ser um sujeito, eis
precisamente o que o nativo obriga o antropólogo a pôr em dúvida” (2002, p. 118, grifo do autor).
Creio que a noção de tradução cultural nos ajuda a pensar sobre a relação entre o antropólogo e o
nativo, entre o sujeito e o objeto, pois ela nos coloca as mesmas questões, mas da seguinte forma:
tradução de quem? De que? Para quem? As respostas variam de acordo com as pesquisas, mas se
sempre há relação, então o antropólogo não está sozinho em seu esforço de tradução. Ou seja, não
caberá unicamente ao antropólogo o papel de tradutor, este também será exercido pelo nativo.
É exatamente isto que tenho cada vez mais percebido em minha pesquisa. Por tratar-se de
uma situação nova em suas vidas, os ‘nativos’ têm realizado suas próprias traduções, são eles que
mostram a mim, antropóloga, suas reflexões sobre o que têm pensado e sentido, sobre suas
experiências como estudantes universitários, longe de suas aldeias, de suas famílias, de seus
modos de viver, de seus modos próprios de se relacionarem, e tendo que lidar agora com
situações novas, morando com pessoas diferentes, aprendendo conteúdos novos, convivendo em
um “outro mundo”, a universidade.

***

O Programa de Ações Afirmativas da UFSCar foi aprovado em novembro de 2006, mas


teve início neste ano de 2008. Este programa estabeleceu reserva de vaga para estudantes do
ensino público, com porcentagem para negros (pretos e pardos) e vagas extras para índios. Tenho
acompanhado os índios na UFSCar desde os dias do Vestibular Indígena. Eles chegaram na
UFSCar dia 08 de fevereiro à tarde e ficaram até dia 10 de fevereiro, alojados num ginásio. No
primeiro dia realizaram a prova objetiva, com questões de interpretação de texto/ português,
física, química, biologia, matemática, história e geografia. Todos os textos utilizados nas provas
tratavam de temáticas indígenas, e todos eram sobre índios Guarani, o que causou certo
incômodo em alguns índios de outras etnias. As questões de história e geografia também
abordavam alguns aspectos sobre os povos indígenas, exigindo dos alunos conhecimentos sobre a
legislação e a história dos povos indígenas no Brasil, muito vezes de modo generalizado, e
também com ênfase nos Guarani. Um exemplo é a questão 38 de geografia:

Questão 38
O texto de Curt Nimuendaju, “As lendas da Criação e destruição do mundo como
fundamentos da religião Apapocúva-Guarani” [apresentado de forma integral no início da prova

5
de geografia] revela alhures que as longas caminhadas dos Guarani, chamadas – guata na
língua Guarani, são parte de sua cultura e do seu modo de vida tradicional. De acordo com
diversos pesquisadores, apesar da grande dificuldade de acesso à terra, os Guarani atuais
continuam se deslocando, fundando aldeias e produzindo seu próprio território. As dificuldades
de acesso à terra pelos Guarani, bem como pelas demais populações indígenas no Brasil atual,
estão relacionadas:
a) À falta de terras férteis no Brasil. Como o país é muito populoso e precisa
alimentar sua população, as terras disponíveis são utilizadas para agricultura e
pecuária. O resultado disto é que as populações indígenas perdem boa parte de
suas terras ou se deslocam em busca de terras distantes das áreas de produção
agrícola.
b) À legislação brasileira que não prevê o direito de acesso à terra aos povos
indígenas. Assim, quando a população indígena tem suas terras invadidas não pode
reivindicar seus direitos sobre ela. Sem apoio jurídico, os índios são obrigados a
abandonar suas terras.
c) À atividade agropecuária, à exploração mineral, à extração madeireira e à
construção de rodovias e hidrelétricas. O resultado disto é o afastamento dos índios
de suas terras e até o seu extermínio, levando à degradação ambiental do território
indígena e comprometendo a sobrevivência e a qualidade de vida das sociedades
que o habitam.
d) Às características históricas e culturais da população indígena no Brasil. Boa parte
da população indígena não atribui importância ao uso da terra para o plantio, e
abandonam, com freqüência, suas terras deixando-as livres para a ocupação
agrícola e pecuária.
e) À atuação de proprietários rurais que compram a preços baixos as terras
indígenas e depois empregam os índios como mão de obra na agricultura. Disso
resulta que terminada a colheita, os índios ficam desempregados e sem suas terras,
sendo obrigados a migrar para as cidades.

Um dos candidatos, por exemplo, me informou que colocou a alternativa “d” porque na sua
aldeia eles não plantam mais. Ou seja, ele respondeu de acordo com a sua situação, e não com um
contexto geral (ou generalizado) dos povos indígenas. Porém, a alternativa correta, de acordo
com o gabarito das provas, era a “c”.
Na parte da tarde do mesmo dia, tiveram a prova de redação. O tema da redação era sobre
a educação no Brasil, e um dos textos apresentados para consulta tratava da educação indígena4.
Enfim, no dia seguinte, foram realizadas as provas orais individuais. Cada candidato foi
entrevistado por dois professores da universidade, dos quais, pelo menos um era da área a qual o
candidato pretendia ingressar. Segundo me contaram, as provas variaram entre entrevistas com
questões mais pessoais, como o porquê das escolhas dos cursos, o que pretendiam fazer quando
se formassem, e entre questões mais objetivas sobre conteúdos disciplinares. Temos alguns
exemplos: João Guilherme, Terena de MS, candidato a Engenharia de Computação, me contou
que perguntaram para ele como era feita uma lâmpada. Já Agenor Custódio, também Terena do

4
Eu não tive acesso às redações, e eles apenas me diziam que não sabiam como tinham se saído.

6
MS, candidato a Imagem e Som, me informou que o questionaram sobre seu interesse no curso,
se ele pretendia depois trabalhar em prol de sua comunidade indígena. Os candidatos à área de
saúde foram os mais questionados sobre se havia interesse ou não em trabalhar posteriormente
em suas aldeias/ comunidades de origem. Já Jiene Pio, Terena de SP, candidata a Filosofia,
recebeu uma pergunta bastante estranha. Lembro-me que ela saiu muito chateada da prova, com a
certeza de que não tinha sido aprovada, e me contou que lhe haviam feito a seguinte questão: “o
que quer dizer para você a frase ‘o céu cair sobre nossas cabeças’?”. Ela me disse que para ela
essa frase não fazia sentido algum, e foi o que respondeu aos professores. Logo depois ouvi em
uma conversa, uma índia Pankararu, que trabalha na FUNASA em SP e tinha sido convidada para
estar presente nos dias do vestibular para dar apoio pedagógico, dizer para Jiene: “Mas você não
conhece uma dança dos Terena em que as mulheres protegem a cabeça porque alguma coisa
lhes será derramada, uma dança simbólica?”, e Jiene respondeu que não.
Outra situação curiosa ocorreu logo antes do início das provas orais. Indianara, Guarani-
kaiowá de MS, candidata a Medicina, quando estávamos saindo do alojamento e nos dirigindo ao
local da prova, voltou correndo para buscar algo. Quando a questionei o que era, ela me
respondeu: “Fui pegar meus colares de índia, preciso parecer mais índia para essa prova”.
Parece-me que ela já fazia uma boa idéia de qual seriam suas respostas às questões: por que você
se interessa por esse curso? Pretende voltar à sua comunidade de origem quando se formar?
Pretende trabalhar para sua comunidade indígena?
Indianara não passou, mas os outros três candidatos foram aprovados. Não tenho ainda a
informação do rendimento dos candidatos nas provas, nem sobre os critérios das avaliações, ou
seja, se alguma prova valia mais nota que a outra. Até esse momento, apenas foi divulgada a lista
dos aprovados. Todos os cursos que tiveram alunos inscritos e presentes no dia do vestibular,
mesmo nos que havia apenas um interessado, tiveram suas vagas preenchidas. Não me cabe aqui
julgar os procedimentos da UFSCar neste vestibular, esta discussão pretendo levantar em outro
trabalho, pois o tema das políticas públicas para inclusão de índios no Ensino Superior não é o
explorado aqui.
Interessa-me neste momento, destacar as percepções dos índios sobre esses dias do
vestibular. Foi uma grande experiência para muitos, principalmente para os que nunca haviam
prestado algum vestibular. Muitos estavam inseguros, pois já haviam parado de estudar há
bastante tempo, mas alguns me disseram ter feito um bom exercício para tentar relembrar os
conteúdos das aulas. Outros, que acabaram de se formar no ensino médio, acharam a prova fácil.
Tauã, Terena de MS, candidato (e posteriormente aprovado) a Engenharia de Produção, me disse
7
que achou a prova fácil, inclusive a oral: “Me perguntaram quantos dias leva pra Terra dar uma
volta no Sol, e me pediram pra localizar o Brasil no mapa do mundo, pra usar a bússola. Muito
fácil”.
Algumas impressões sobre a universidade também me foram passadas. Acharam bonito,
“até que tem bastante natureza”5, disse Ednaldo, Xukuru do PE, candidato (e aprovado) a
Psicologia. Uma professora indígena que esteve presente para acompanhar os candidatos do MS
me disse durante um almoço no refeitório que talvez eles teriam problemas com os horários, com
a pontualidade. Estávamos comentando sobre alguns índios que chegaram de Araçatuba com uma
hora de atraso para a prova e não puderam realizá-la. Ela disse: “Uma grande dificuldade na
escola indígena é que os índios não chegam na hora, não estão acostumados a ter horário”. E
acrescentou: “São diferenças culturais, não faz parte da nossa cultura”.
Passados os dias do vestibular, dentro de uma semana saiu o resultado das aprovações. Os
candidatos aprovados voltaram para São Carlos no dia 22 de fevereiro para a matrícula, e
iniciaram as aulas no dia 25. Desde então, os tenho acompanhado cotidianamente. Contudo, o
início de minha pesquisa é bastante recente, porque o processo do vestibular e do ingresso se deu
há pouco mais de dois meses, e encontra-se num período em que os estudantes indígenas estão
ainda se adaptando aos horários das aulas, às atividades extra-curriculares, e se organizando com
a quantidade de novos afazeres. O que, de uma maneira geral, não tem sido muito fácil. Quase
todos os 13 estudantes que estão no campus de São Carlos6 reclamam da dificuldade com os
conteúdos e com a grande quantidade de matérias, algumas inclusive que exigem conhecimentos
em idiomas os quais eles nunca tiveram nenhum aprendizado. Mas, devido ao pouco tempo de
aula, ainda não temos informações suficientes sobre como eles têm lidado com os conteúdos das
aulas, apenas essa dificuldade em acompanhar grande parte das disciplinas.
Contudo, algumas situações os têm levado a refletir sobre seus papéis na universidade, o
que eles representam para si mesmos e para os outros estudantes. Especialmente certos
comentários de estudantes não-índios os têm deixado bastante incomodados. Em uma reunião
feita no alojamento, João Guilherme, índio Terena estudante de Engenharia de Computação,
comentou: “Meus colegas ficam dizendo que eu não sou índio, que eu não pareço índio”, eu

5
O campus de São Carlos/SP da UFSCar tem 230 hectares de extensão com 25 mil m² de área construída. Todo o
campus é bastante arborizado e ainda conta com um lago em seu centro. Além disso, está localizado a uma certa
distância do centro da cidade.
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Além do campus de São Carlos, a UFSCar também possui outros dois campi, um em Araras (SP) e outro em
Sorocaba (SP). Dois índios estão no campus de Sorocaba cursando turismo e engenharia florestal, e um está em
Araras cursando engenharia agronômica. O contato com esses três estudantes tem sido um pouco mais difícil, apenas
através de alguns e-mails, mas pretende-se visitá-los com mais freqüência ao longo da pesquisa.

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questionei o que ele respondia aos colegas, e então ele me disse: “Eu falo pra eles que queria ver
se eles fossem na minha aldeia, visse como a gente vive lá, se eles agüentariam ficar lá um dia.
Aí sim eles iam ver que eu sou índio”. Esse fato, de ter que expressar sua “indianidade” tem sido
recorrente. É certo que na universidade, eles são alunos, e é este papel que estão tendo que
aprender a se adaptar. Mas, ao mesmo tempo, se sentem incomodados com os comentários sobre
não parecerem índios, frutos, principalmente, da ignorância de muitas pessoas sobre a situação
atual dos povos indígenas no Brasil e da velha e equivocada imagem do índio exótico, selvagem,
que, como é bastante sabido, continua a ser disseminada nas escolas brasileiras. Desse modo,
esses estudantes indígenas se vêm cada vez mais na dupla posição de estudante e de estudante
índio, ou seja, têm que aprender a lidar com a “igualdade” – pois nas salas de aulas, nas
moradias, no refeitório, nas atividades, no dia-a-dia em geral, são tratados de maneira igual por
serem alunos universitários como os outros não -índios – e, ao mesmo tempo, têm que lidar
também com a “diferença”, pois são comumente questionados por suas condições de “índios”. É
interessante observar como eles se saem diante dessas exigências, afinal, para eles esses papéis,
essas posições, não são separados, elas se sobrepõem, pois não há necessidade deles serem uma
coisa ou outra, porque eles são as duas coisas. Ou seja, o fato deles serem índios não interfere em
nada o fato deles serem estudantes, e vice-versa. Contudo, eles se sentiram na obrigação de
expressarem suas condições de índios, e resolveram organizar um evento na UFSCar.
Aproveitando que no mês de abril se comemora o “Dia do Índio”, organizaram um evento
para: “divulgar as culturas indígenas, marcar a presença dos estudantes indígenas na UFSCar,
divulgar os diferentes significados do dia 19 de abril para os povos indígenas e demonstrar a atual
situação dos povos indígenas no Brasil” (objetivos do projeto do Evento Cultural dos
Acadêmicos Indígenas da UFSCar que ocorrerá no dia 29 de abril). O evento contará com uma
dança dos índios Terena7, com uma palestra que será feita por Ednaldo, um dos estudantes
xukuru, com a apresentação seguida de comentário de um filme sugerido pelos índios: “Brasil
Indígena – cinco séculos de resistência” e, finalizando, com uma apresentação de Erenilso,
estudante manchineri, tocando e cantando uma música de seu povo. A idéia do evento, assim
como das apresentações, tudo foi sugerido e montado pelos próprios índios, com o apoio da
coordenadora das ações afirmativas na UFSCar.
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Os estudantes indígenas da UFSCar optaram por uma dança Terena por ser a maioria deles pertencente a esta etnia.
E ainda tiveram a idéia de convidar outros índios Terena da aldeia Kopenoty (localizada na reserva indígena Araribá
- Bauru/SP, de onde uma das estudantes da UFSCar veio) para somarem mais pessoas, pois assim a dança ficaria
mais bonita, e também resolveria o problema deles de conseguirem as roupas e os artefatos necessários. Contudo,
mesmo os estudantes indígenas de outras etnias, que não Terena, quiseram aprender a dança para se apresentarem
junto.

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O objetivo central dos índios com esse evento, como foi dito acima, é de destacar suas
condições indígenas, mostrar para os outros estudantes, não-índios, que eles são sim, índios, e,
para tanto, acreditam ser necessário trazer para o público universitário danças e músicas típicas,
um filme que retrata a exploração dos índios, mas que também destaca as conquistas dos povos
indígenas, e também falar sobre o que representa o “Dia do Índio” para eles. Nota-se que com
isso eles saem um pouco de seus papéis de estudantes comuns, que ingressaram em cursos
regulares, ou seja, não-específicos para índios, e destacam seus papéis de índios, de pertencentes
a outros povos, com ‘culturas’, costumes e modos de pensar diferentes. Sentem, então, a
necessidade de mostrar suas diferenças, seja para diminuir o preconceito que sentem, seja para
responder às curiosidades dos outros estudantes.
Senti a necessidade de explorar um pouco mais esse acontecimento neste trabalho porque
para mim foi uma surpresa. Não imaginava que esses índios, uma vez que ingressassem na
universidade, em cursos regulares, sentiriam a necessidade de destacar suas diferenças, suas
condições de índios, mas sim que eles tentariam marcar a igualdade, sendo estudantes como
qualquer um outro. Mas não foi o que houve. E foi assim, que, com as informações deles sobre o
que os outros estudantes estavam comentando sobre eles, que me fizeram refletir sobre algo que
eu ainda não havia pensado como um problema que eles enfrentariam. E muito menos que dariam
uma solução como essa, de organizar eles próprios um evento, e quererem mostrar suas
especificidades, seus modos diferenciados, suas “culturas”.
Portanto, esses estudantes, ao ingressarem no Ensino Superior passam, neste momento,
pela experiência de digerir a universidade, as novidades, e, ao mesmo tempo, de trazer para a
universidade sua condição de índios. Foi devido a tais motivos que eles exerceram um pouco seus
papéis de tradutores, interpretando o que os outros estudantes não-índios diziam, e respondendo a
eles com a idéia deste evento. E quanto a mim, percebi que o que há entre o ‘antropólogo’ e
‘nativo’ é realmente uma relação, um aprendizado, de ambas as partes. Eu estou conhecendo os
problemas deles a partir do que eles me dizem, do que eles demonstram serem seus problemas, e
não apenas aqueles que eu esperava que eles enfrentassem. Esta minha pesquisa anda tem muito
a caminhar, mas já venho tentando me atentar mais a essa relação com meus ‘nativos’ e a
perceber melhor aquilo que eles estão tentando me mostrar sobre suas experiências na UFSCar.

Referências Bibliográficas

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ASAD, Talal. “The Concept of Cultural Translation in British Social Anthropology”. In: ed.
James Clifford and George Marcus. Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography.
Berkeley: University of California Press, 1986.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O Nativo Relativo”. Mana, 8 (1):113-148, 2002.

WAGNER, Roy. The Invention of Culture. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1981.

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