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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

ELIANE FERNANDES AZZARI

DISCURSOS SOBRE A PRESENÇA DE TECNOLOGIA EM


AULA DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ABISMOS E
PONTES.

CAMPINAS,
2017
ELIANE FERNANDES AZZARI

DISCURSOS SOBRE A PRESENÇA DE TECNOLOGIA EM


AULA DE INGLÊS NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ABISMOS E
PONTES.

Tese de doutorado apresentada ao Instituto


de Estudos da Linguagem da Universidade
Estadual de Campinas para obtenção do título
de Doutora em Linguística Aplicada, na área
de Linguagem e Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Hilsdorf Rocha

Este exemplar corresponde à versão


final da Tese defendida pela aluna Eliane
Fernandes Azzari e orientada pela Profa. Dra.
Cláudia Hilsdorf Rocha.

CAMPINAS,
2017
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CNPq, 140687/2014-9
ORCID: http://orcid.org/http://orcid.org/ht

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem
Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624

Azzari, Eliane Fernandes, 1968-


Az91d AzzDiscursos sobre a presença de tecnologias em aula de inglês na educação
básica : abismos e pontes / Eliane Fernandes Azzari. – Campinas, SP : [s.n.],
2017.

AzzOrientador: Cláudia Hilsdorf Rocha.


AzzTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Estudos da Linguagem.

Azz1. Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovich), 1895-1975 - Crítica e interpretação.


2. Língua inglesa - Estudo e ensino (Ensino fundamental) - Falantes de
português. 3. Educação básica - Brasil. 4. Ensino auxiliado por computador -
Brasil. 5. Tecnologia educacional. 6. Dialogismo. 7. Análise do discurso. I.
Rocha, Claudia Hilsdorf,1965-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto
de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Discourses on the presence of technology in English lessons in


Elementary education : depths and bridges
Palavras-chave em inglês:
Bakhtin, M. M. (Mikhail Mikhailovich), 1895-1975 - Criticism and interpretation
English language - Study and teaching (Elementary education) - Portuguese speakers
Basic education - Brazil
Computer-assisted instruction - Brazil
Educational technology
Dialogism
Discourse analysis
Área de concentração: Linguagem e Educação
Titulação: Doutora em Linguística Aplicada
Banca examinadora:
Cláudia Hilsdorf Rocha [Orientador]
Rosineide de Melo
Walkyria Maria Monte Mor
Eliane Righi de Andrade
Ruberval Franco Maciel
Data de defesa: 02-03-2017
Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


BANCA EXAMINADORA:

Cláudia Hilsdorf Rocha

Rosineide de Melo

Walkyria Maria Monte Mor

Eliane Righi de Andrade

Ruberval Franco Maciel

Maria de Fátima Silva Amarante

Terezinha de Jesus Machado Maher

Rodrigo Esteves de Lima Lopes

IEL/UNICAMP
2017

Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no


processo de vida acadêmica do aluno.
DEDICATÓRIA

Chris Weir, Gapstow Bridge Fall, Central Park, New York, Oil on canvas.
Disponível em: http://chrisweirgallery.blogspot.com.br/2014/01/gapstow-bridge-
fall.html. Acesso em 14 de julho de 2016.

A meu pai Julio (in memoriam), a Eduardo e a Ricardo. Os três homens


com quem tenho construído pontes dialógicas a fim de atravessar
alguns dos abismos apresentados nesta vida.
AGRADECIMENTOS

Há muitas pessoas a quem agradecer. De fato, ao adotar o dialogismo e o


diálogo por orientação ontológica, sinto-me compelida a agradecer a tudo e a todos
que, de toda e qualquer forma, cruzam meu caminhar.
Gratidão a meus pais e irmãos; cunhadas e “sobrinhada” (ô família
grande!). Não citarei nomes por temer esquecer algum (lamentável fato ocorrido no
texto final da minha dissertação de mestrado que me custa reclamações até hoje,
não é Eduardo e Ricardo? – mas vocês já ganham destaque na dedicatória, está
bem?).
Gratidão a minha orientadora, professora Cláudia Hilsdorf Rocha: mulher
dinâmica, engajada, inteligente, paciente e inspiradora. Que se multiplica entre os
papeis de mãe e amiga carinhosa e dedicada e acadêmica cheia de determinação.
Nossos diálogos ficaram registrados n’alma e perpassam todo este texto. Por você,
carrego respeito e deixo aqui registrada minha profunda gratidão.
Gratidão ao professor Petrilson Pinheiro pelas interlocuções: em aulas,
antes mesmo de eu entrar no doutorado, e nos exames de qualificação (de projeto e
tese). Não somente por suas importantes contribuições, mas, também, por seu
carisma marcante e sua boa-vontade inspiradora, sou muitíssimo grata.
Gratidão à professora Walkyria Monte Mór, pelas orientações na
qualificação do projeto e por aceitar prontamente compor a banca. Minha alegria por
ter sido sua aluna nos idos tempos da graduação em Letras, mas especialmente
pela honra que é poder contar com sua presença neste novo momento.
Gratidão ao professor Ruberval Maciel, sempre sorridente e solícito, que
aceitou prontamente dialogar conosco nesta jornada. Profissional dedicado,
diplomático e envolvente, receba minha gratidão por compor a banca.
Gratidão à amiga, professora Rosineide de Melo, companheira
bakhtiniana que desde o primeiro momento me encantou com sua simplicidade e
conhecimento. Sua amizade está entre as melhores coisas que arrebanhei até hoje
nesta vida acadêmica!
Gratidão à (nova) amiga, professora Eliane Righi de Andrade, com quem
não somente compartilho o prenome, mas, também, (descobrimos recentemente)
histórias de vida semelhantes. Mulher batalhadora, portadora de inteligência notável
e de uma compaixão ainda maior. É uma honra trabalhar a seu lado e, ainda maior,
tê-la na banca!
Gratidão à professora Maria de Fátima Silva Amarante, minha querida
oráculo. Pelas inteligentíssimas trocas de ideia com que me honra nas tarefas
cotidianas; pelos incentivos; pela paciência; pelas oportunidades; pelo carinho e
cuidado de irmã quando tive uma tenebrosa crise de pedra nos rins e, é claro, por
aceitar compor esta banca, minha eterna gratidão.
Gratidão também aos professores Terezinha de Jesus Machado Maher e
Rodrigo Esteves de Lima Lopes, que também foram tão solícitos ao aceitar compor
a banca com disposição e apreço, de quem sempre lembrarei com carinho e
respeito.
Gratidão a cada aluno(a) que tem feito parte de minha jornada como
professora e pesquisadora: diálogos estabelecidos dentro e fora de sala de aula e
amizades granjeadas ao longo do caminho que fazem parte de quem sou.
Gratidão aos colegas e professores/professoras do IEL/Unicamp (são
muitos, não citarei nomes), que desde 2010 têm contribuído para minha formação
acadêmica e pessoal: pessoas incríveis, criativas e repletas de sonhos, com quem
muito tenho aprendido.
Gratidão aos funcionários e funcionárias do IEL/Unicamp, especialmente
à equipe da pós-graduação, sempre solícitos, disponíveis e eficientes, sem os quais
nenhuma pesquisa teria encadeamento.
Gratidão ao CNPq que fomentou esta investigação, propiciando minha
participação em diversos congressos nacionais e internacionais e o custeio geral
desta pesquisa.
E, finalmente, minha eterna gratidão ao professor que se voluntariou a
participar deste estudo: um homem idealista e sonhador, que acredita na educação
como um caminho para uma sociedade mais justa e pacífica; que enfrentou
iniquidades no mundo acadêmico-profissional, escolhendo suas lutas e pagando seu
preço. A esse homem forte, desejo toda a alegria que esta vida possa dar. Desejo
também que não perca suas esperanças de ainda fazer parte de um mundo melhor,
menos rancoroso, egoísta e ambicioso, um lugar em que haja mais amor e sorrisos
no olhar.
EPÍGRAFE

Imagem disponível em http://www.literaturayescritores.com/wp-content/uploads/2014/03/FUNCIONES-DEL-


LENGUAJE.jpg. Acesso 22 out 2016.

Eu não quero reconhecer-me; quero conhecê-lo fora de mim. Isso é


possível? Meu esforço supremo deve consistir nisso: não me ver em
mim, mas ser visto por mim, com os meus próprios olhos, mas como
se fosse um outro, aquele outro que todos veem e eu não vejo.
(PIRANDELLO, 2001, p. 36)
RESUMO

Neste trabalho, situado no âmbito da pesquisa qualitativa em Linguística Aplicada,


tive por objetivo investigar – por meio de uma análise de orientação dialógica–,
implicações, possibilidades, abismos e possíveis pontes emergentes e/ou
decorrentes de apropriações discursivas que motivaram processos em que
tecnologias digitais fizeram parte, ao longo de um semestre letivo, dos fazeres de
um professor de inglês, em aulas de 8º e 9º anos, em uma escola de educação
básica pública na região de Campinas. Com a minha participação ativa nesses
processos, a investigação contou com duas etapas principais: na primeira, buscando
apoio metodológico da Pesquisa-ação Participativa, estabeleci interações orais e
escritas com o professor participante ao longo de um semestre letivo, dividido em
fases que envolveram o planejamento, a ação e a discussão de fazeres para as
suas aulas. Os enunciados decorrentes dessas interações, registradas com o auxílio
de instrumentos disponibilizados pelas tecnologias digitais, constituem os dados da
pesquisa. A seguir, a segunda etapa consistiu na análise desses enunciados
orientada por um dispositivo teórico-analítico proposto a partir das noções de
discurso; comunicação discursiva e apropriação discursiva, sob orientação das
considerações de Bakhtin e seu Círculo. Dessa orientação advêm os conceitos de
agência; autoria discursiva; polifonia; heteroglossia; cronotopo (indiciados na análise
dialógica dos dados à guisa de categorias de análise) e de exotopia (conceito que
perpassa todo o processo). Ademais, neste estudo aponto o olhar para a interface
educação (em língua inglesa), sociedade e tecnologias a partir de uma orientação
crítica e fundamentada no exercício da desconfiança. A discussão dos dados
encaminha possíveis horizontes para o contexto da pesquisa que, a maneira de
pontes construídas para encurtar a passagem por abismos, com vistas a uma
educação linguística em língua estrangeira voltada à cidadania e à construção de
uma sociedade mais justa, sejam vislumbrados pela ótica da Pedagogia do Possível.
Palavras-chave: Tecnologia digital, Dialogismo, Educação básica, Bakhtin, Língua
inglesa – Estudo e ensino.
ABSTRACT

The present paper reports my doctoral research, which is placed within the study
domain of Applied Linguistics. Its main objective was to investigate emerging
implications; possibilities; depths and bridges identified throughout the processes in
which DTICs (Digital Technologies of Information and Communication) were taken as
part of the classroom routines of an English as a Foreign Language (EFL) in-service
volunteer teacher, whilst teaching 8º and 9º graders in a public elementary Brazilian
school, situated in the outskirts of Campinas, in the state of São Paulo. Adopting a
dialogic and participative perspective, my investigation had two main phases: the first
one was framed under a methodological procedure known as PAR - Participatory
Action Research. During this stage, I established dialogic interactions with the
volunteer teacher with whom I shared the steps of planning; acting; observing and
discussing overall lesson procedures. During the first phase, the interactions
established by the teacher and I generated utterances which were later the final
object of a dialogic analysis during the next phase. This analysis was then carried out
by the means of a theoretical-methodological instrument I devised based on the
notion(s) of discourse; discursive communication and discursive appropriation as
suggested by some of the studies offered by Bakhtin and his Circle. The concepts of
agency; discursive authorship; polyphony; heteroglossia and chronotope – derived
from the discussions proposed by Bakhtin and his Circle – were elected as analyzing
categories, meanwhile the notion of exotopy permeated the whole process.
Moreover, I also devote part of my theoretical discussion to the interface amongst
EFL education, society and technologies which is taken from a critic perspective
based on exercising distrusting on a systematic basis. The data discussion points at
probable horizons (at least for the context in which the research was performed),
where a Pedagogy of the Possible poses as possible bridges constructed as a
means to shorten the way through depths when one is aiming at an EFL education
focused on developing citizenship and building a fairer society.
Key-words: Digital technology, Dialogism, Elementary education, Bakhtin, English
language teaching and learning.
LISTA de ABREVIAÇÕES

1. TDICs - Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação

2. P - Professor

3. Eu - esta pesquisadora, Eliane Fernandes Azzari

4. PAP - Pesquisa-ação Participativa

5. ATPC -Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
1.1. Caminhos da pesquisadora e da pesquisa.................................................13
1.2. Contexto e participantes de uma jornada dialógica....................................18
1.3. Objetivos e perguntas de investigação.......................................................21
1.4. Justificando a jornada.................................................................................22

2. ORIENTAÇÕES TEÓRICAS QUE ENCAMINHAM A JORNADA

2.1. A língua(gem), a ideologia, o sujeito e o discurso e o enunciado...................29

2.1.1. Diálogo e dialogismo; polifonia; heteroglossia; exotopia e cronotopia..........39


2.1.2. Agência, autoria e apropriação discursiva......................................................51
2.2. Educação, tecnologias e sociedade................................................................63

3. METODOLOGIAS E MÉTODOS DA JORNADA-PESQUISA

3.1 Retomando o contexto de pesquisa.....................................................................91


3.1.1 Escolhendo meios e modos para a jornada dialógica......................................93
3.2. Etapa 1: Pesquisa-ação Participativa (PAP) e a construção dos dados............95
3.3. Etapa 2: Dialogismo e análise de discursos .....................................................104

4. DIÁLOGO QUE COMPÕE A JORNADA-PESQUISA: (RE)LEITURA DOS


DADOS .............................................................................................................117

5. (RE)CONSIDERAÇÕES DE FINAL DE JORNADA.........................................227

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................206

ANEXOS..................................................................................................................234
13

1. INTRODUÇÃO

1.1. Caminhos da pesquisadora e da pesquisa: uma jornada dialógica

Row, row, row your boat


Gently down the stream.
Merrily, merrily, merrily, merrily,
Life is but a dream.1
(cantiga de tradição oral em língua inglesa - autor desconhecido)

Nesta introdução, esclareço um pouco de onde venho; do lugar em que


falo e por onde passei na tarefa de realizar esta pesquisa que é, antes de tudo, uma
jornada dialógica e exploratória. Observe que (propositadamente) não darei muitos
detalhes neste subcapítulo. Para tê-los, peço-lhe que me acompanhe página a
página ao longo deste relato de jornada. O diálogo, na perspectiva bakhtiniana que
orienta este estudo, é fundamento que abre espaço para a alteridade, que dá lugar à
diferença, possibilitando o surgimento de (novas / outras) compreensões, sentidos,
entendimentos. Para tanto, tecerei uma pequena narrativa que é um recurso
estilístico que encontrei aqui para atingir a um fim. Lanço mão deste recurso
ancorada em Bakhtin que sugere haver uma conexão entre a escolha de um estilo e
composição de um enunciado e um componente expressivo do enunciado, i.e.; “a
relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e
do sentido do seu enunciado” ([1979; 1992; 2003] 2011, p. 289). Ou seja, por hora,
neste subcapítulo, vou contar meu ‘causo’.
Olhando para o caminho que percorri em meu doutorado, percebo, hoje,
que comecei esta trajetória às avessas: com muitas (pretensas) certezas e poucas
dúvidas. Perfil inverso ao que desposo agora, em que esse caminho se aproxima de
seu destino e meus questionamentos e incertezas parecem ter se multiplicado
exponencialmente ao longo do percurso traçado durante os anos da pesquisa, como
discutirei ao longo do relato de minha investigação. Mas já posso informar a quem lê
este texto que percebo ter sido tanto afetada por esta pesquisa quanto a ela possa
eu ter contribuído, enquanto pesquisadora. Um exercício exotópico à moda

1
Refrão de uma popular cantiga infantil (nursery rhyme), cuja primeira publicação data de 1852, mas
não é possível identificar a autoria naquele editor, já que faz parte de uma tradição oral. Minha
tradução (livre) para os versos é “Reme, reme, reme o barco, gentilmente, rio abaixo. Alegremente,
alegremente, alegremente, a vida não é mais que um sonho”. Fonte: STUDWELL, S. M. (1997). The
Americana Song Reader. New York: Haworth Press, p. 82.
14

bakhtniana, conceito que discutirei atentamente no capítulo dedicado ao aporte


teórico.
Como professora de língua e literatura estrangeira (inglês) e tradutora e
intérprete há mais de 30 anos, eu trazia comigo muitas visões (ou talvez alguns
chamem de crenças), conceitos e paradigmas cristalizados e enraizados em minha
maneira de ver, entender e vivenciar as relações entre ensino e aprendizagem;
formação de professor; papel do professor; possibilidades em diferentes contextos
de ensino de inglês, especificamente no Brasil; as interfaces entre educação e
tecnologias (e longe vai esta lista). Para usar um exemplo bem gasto, meu olhar era
sempre “preto ou branco”, sem perceber algumas nuances e entremeios. Propensa
a paixões, muitas vezes me debrucei sobre teorias, métodos e meios, conceitos e
pedagogias, que me pareciam ser “definitivas” (naquele momento), isto é, até que eu
me deparasse e flertasse com outra abordagem, outra proposta, e desenvolvesse
outra paixão.
Minha trajetória na pesquisa que ora apresento é marcada,
primordialmente, pela desconstrução de minhas premissas e conceitos nessa área
em que trabalho e pesquiso – por escolha e gosto –, e pelo início de um processo de
(re) construção constante e, ao que parece infinita, de buscas redirecionadas e
orientadas para e por um olhar crítico e de desconfiança (temas recorrentes deste
estudo, aos quais ainda irei me referir adiante), que busca questionar e discutir, à
maneira dialógica, ao invés de prescrever ou definir.
Na maior parte de minha vida como professora, eu trabalhei em escolas de
idiomas e, desde 2014, atuo na educação superior, em Faculdade de Letras, com a
formação de professores e tradutores, em cursos de português-inglês. Mas foi
durante meu mestrado que a educação básica, especialmente a pública, chamou
minha atenção e para qual voltei minha pesquisa. Durante o mestrado pude conviver
com uma situação de ensino de inglês em anos Fundamentais II na escola pública,
ocasião em que abordei o assunto sob a ótica do aluno (AZZARI, 2013).
Naquela pesquisa, dei os primeiros passos em direção ao engajamento em
um tema que sempre me interessou, desde os idos tempos da minha graduação: a
formação (inicial e continuada) de professores de língua inglesa para diferentes
contextos brasileiros de educação e aprendizagem. Foram os pequenos espaços de
vivência e convivência com aqueles alunos (a quem devo gratidão perpétua pela
colaboração e aprendizado realizados em conjunto) que me fizeram desejar
15

aprofundar meus estudos em direção ao papel da educação linguística em língua


estrangeira (inglês) neste país.
Também foi naquele momento que apreendi o caráter mais que inter e
trans disciplinar do pesquisar em Linguística Aplicada e me apaixonei (recaída, na
verdade) pelo papel social que as pesquisas realizadas nesse campo de
conhecimento podem (e desejam) apresentar. Estudar e pesquisar com o aporte de
uma Universidade pública e com financiamento de um órgão público 2, fez com que
eu apenas reforçasse meu desejo de tratar da pesquisa mantendo em mente as
possibilidades outras que ela abarca. Desde então, pesquisar para mim é sinônimo
de responsabilidade social, de oportunidade para vozear atores (e discursos) por
vezes silenciados e/ou subju(l)gados; de entender, expor e acatar realidades e
perspectivas múltiplas, multifacetadas, plurais e diversas, sob uma visão
historicamente situada de educação, linguagem, tecnologias, sociedade e suas
interfaces.
Foi durante o período do mestrado, também, que flertei com a intersecção
linguagem, educação e tecnologias digitais. Para colorir a metáfora romântica que
me assalta nesta introdução, eu diria que foi nesse período que tive casos paralelos,
“extramestrado”. Mas, como uma amante organizada, dei conta dos
relacionamentos, que seguiram paralelamente.
No entanto, como amante calorosa, e como em qualquer início de
relacionamento, meu olhar para as tecnologias (em especial as digitais e síncronas)
vinha revestido da capa da perfectibilidade: “solução; meio; ferramenta;
oportunidade; resposta” – termos que eu associava, indiscriminadamente e à
maneira absolutista, à minha visão da relação tecnologia - ensino de língua inglesa,
naquele momento, e que me orientou até os primeiros passos deste doutoramento.
Meu relacionamento cor-de-rosa com o papel das tecnologias na educação
sofreu os primeiros abalos quando iniciei a leitura no campo do letramento crítico
(LUKE, 2013; 2014; MONTE MÓR; 2013) e, posteriormente, foi pego de supetão
pelas provocações de pesquisadores como Charlot (2013) e Biesta (2010). Mas o
golpe de misericórdia, que me fez “pedir um tempo” em minha relação pouco crítica
com a interface tecnologia e educação linguística foi aplicado por Selwyn (2011;
2014) e seu convite à desconfiança. Esses e outros pesquisadores, alguns deles

2
Reitero aqui meus agradecimentos ao CNPq pela bolsa que me concedeu e financiou esta pesquisa.
16

devidamente introduzidos em minha vida pelas mãos prônubas e prestativas de


minha orientadora, trouxeram-me mais perguntas do que respostas, quebrando
alguns dos paradigmas que me constituíam até então.
Dessa forma, como toda marinheira de primeira viagem, que tem seu
coração partido pelo desencanto do primeiro grande amor, saí à busca de novas
vivências até que finalmente aportei, mais uma vez, em escola pública. Desta vez,
ao invés de uma paixão cega, levei na bagagem a suspeita; troquei o amante pelo
companheiro de viagem (um professor participante, voluntário, que atuava em uma
escola estadual na região de Campinas) e embarquei em uma jornada por um
pedacinho das águas que abarcam a interface educação em língua inglesa e
tecnologias nos anos Fundamentais II, especificamente em 8º e 9º anos, com ideias,
perguntas e, claro, expectativas (sou humana, pois!).
Nesta viagem, tive por objetivo principal investigar possíveis implicações,
abismos e pontes emergentes e/ou decorrentes da apropriação de discursos3 que
advogam a presença de tecnologias (especialmente as digitais e síncronas) nos
fazeres em aula desse professor participante (nos subcapítulos 1.3 e 1.4 revelarei os
objetivos específicos bem como as perguntas de pesquisa e a justificativa para este
estudo).
Esta é, de maneira objetiva, uma jornada essencialmente exploratória,
que se enquadra no campo da pesquisa qualitativa (DENZIN, N. K.; LINCOLN, 2006)
em Linguística Aplicada. Ademais, é uma jornada primordialmente dialógica.
Trouxe comigo alguns frutos desta empreitada: o meu corpus de
pesquisa, constituído por diálogos construídos por mim e o professor no decorrer da
primeira etapa da investigação, quando encontrei apoio metodológico na Pesquisa-
ação Participativa (McINTYRE, 2008; KINGDON et al, 2006/2007), ancorada em
uma base dialógica (SULLIVAN, 2012). Como esclareço no capítulo três, busquei
alguns recursos para registro dos dados com apoio nas tecnologias digitais (que, de
fato, jamais saíram inteiramente de mim, das construções que trago comigo).
Ao longo do quarto capítulo, a fim de (re)ler os dados4, proponho utilizar
um dispositivo teórico-analítico que me permita uma análise de discurso
fundamentada no dialogismo, a partir de alguns dos principais conceitos propostos
3
Os conceitos de discurso e apropriação discursiva serão abordados no capítulo 2, quando buscarei tecer
possíveis sentidos para o termo a partir do olhar bakhtinianamente orientado – que, por infortúnio, não
oferece definições explícitas para este conceito.
4
Os enunciados – outro conceito que também desenvolverei no capítulo dois sob a ótica bakhtiniana.
17

por Bakhtin e seu Círculo [1929]2006; [1992] 2011), tais como o de comunicação
discursiva, heteroglossia, polifonia, apropriação discursiva, entre outros, dispostos à
guisa de categorias de análise.
Já adiantarei, no melhor estilo “spoiler” (quer dizer, que estraga o
suspense, contando parcialmente o que vai acontecer) que várias das expectativas,
que teimaram em ficar em minha bagagem, foram frustradas (evento pelo qual, hoje,
sou grata). Também posso deixar você que me lê entrever, no melhor estilo “teaser”
(ou seja, que provoca, incita), que descobri outras possibilidades: comecei a
aprender a enxergar entre algumas frestas; a rever parâmetros norteadores e a
redimensionar planejamentos, execuções e discussões, de modo a adotar uma
postura dialógica não somente diante da pesquisa, mas, também, na vida. Esse
processo, às vezes doloroso, foi fomentado por muitos diálogos: com os autores em
que aqui me apoiarei; com minha orientadora; os diligentes membros das bancas de
qualificação; meus alunos e minhas práticas didáticas na faculdade em que leciono e
com o professor que participou desta pesquisa, entre outros que eu talvez nem
consiga, por ora, enumerar. Dedicarei mais tempo e palavras a esse processo no
capítulo que encerra esta tese.
Engajar-me nesta jornada, como todo exercício exotópico, modificou quem
sou hoje e trouxe-me até outro tempo e espaço (o cronotopo a que se refere Bakhtin
e do qual falarei no próximo capítulo). Dessa forma, este é o relato de uma análise
de quem se propôs a imaginar a construção dialógica de pontes e(m) abismos (a
exemplo da imagem que trago junto a minha dedicatória, que materializa um olhar
dialógico para pontes e abismos, o que se torna possível ao se acatar
dialogicamente as diferentes perspectivas acerca de um mesmo tema). Esta jornada
me levou a (re)atar, (re)encontrar minha paixão primeira, agora em forma de amor
amadurecido, porque embateu com dissenso e encarou conflitos com um bom e
velho dialogar, remando (muita vezes nem um pouco “alegremente”) por águas
turbulentas desta vida de educador que, como diz a cantiga que abre este capítulo,
não é, senão, nada mais do que um sonho. Uma trajetória constituída por diálogos,
que visibilizam discursos e suas apropriações.
Vamos (re)viver essa jornada?
18

1.2. Contexto e participantes de uma jornada dialógica

Minha jornada começou em uma escola da rede estadual de São Paulo,


localizada na cidade de Campinas. Conversei com a direção e uma professora (com
quem estabeleci muitos diálogos produtivos, aprendi muito e a quem deixo aqui
meus sinceros agradecimentos) se dispôs a navegar em minha companhia. Por
quatro meses mantive diálogos ativos com essa companheira que, por motivos de
saúde, teve que abandonar o barco. Dessa forma, não conseguimos, ela e eu,
atingir nossos objetivos exploratórios em conjunto. Mas o fluxo da vida trouxe outro
navegante até mim.
Conheci o professor participante, com quem estabeleci a parceria para
esta investigação, quando ministrei uma oficina, durante um Congresso sobre ensino
de língua inglesa e tecnologias, na Universidade em que leciono, também na região
de Campinas. Esse companheiro tinha aquele mesmo brilho no olhar que outrora
apresentei, quando o assunto era integrar recursos tecnológicos digitais (tais como
recursos disponíveis para tecnologias móveis; sites; aplicativos, etc.) em suas aulas
de inglês para o 8º e 9º anos do Ensino Fundamental II, na escola pública em que,
então, lecionava, aspecto que deixou transparente durante sua participação na
oficina.
Em uma ação que me surpreendeu, esse professor me procurou
voluntariamente e se ofereceu para participar de minha pesquisa, informando que já
se encontrava em meio a um processo pessoal de trabalho com determinados
recursos e meios oferecidos pelas novas tecnologias em suas práticas didáticas,
com seus alunos de 8º e 9º anos. Com relação às turmas em que a pesquisa se
desenvolveu, não houve nenhum motivo especial para sua escolha a não ser o fato
de que eram as turmas para as quais o professor já estava trazendo a presença de
TDICs (Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação) às aulas.
Combinamos, então, o início de uma parceria em que eu, enquanto
pesquisadora, participaria nos processos de planejamento, ação e discussão em
determinadas aulas desse professor, no que dizia respeito à presença das TDICs
(Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação) nessas aulas. Para essa
colaboração, escolhemos trabalhar, em conjunto, com duas de suas turmas de 8º
ano do Ensino Fundamental II, no turno vespertino e, eventualmente, o professor
19

estendeu seu trabalho a suas turmas de 9º ano, sem a minha participação direta
nessas aulas.
Na ocasião em que me procurou, o professor trabalhava em uma escola
5
Integral , o que mudou no semestre imediatamente seguinte a nosso primeiro
encontro, quando o professor foi transferido (por questões de ordem político-
administrativas que não cabe aqui serem detalhadas) para outra escola, de
funcionamento em turnos regulares, localizada em uma cidade nas vizinhanças de
Campinas. Essa transferência ocorreu durante o período em que o professor e eu
negociávamos a viabilidade de nossa parceria, o que dependia da aprovação da
direção e da coordenação da escola para a qual fora transferido.
A mudança da escola de trabalho do professor foi um dos primeiros fatores
de conflito estabelecidos para o desenvolvimento da primeira fase deste estudo, que
envolvia o planejamento, a execução, a discussão e a (re)tomada de ação na
integração para a presença de tecnologias digitais (especialmente as síncronas) nas
rotinas e fazeres nas aulas de língua inglesa desse professor (essas fases serão
detalhadas no decorrer do terceiro capítulo, quando apresentarei as questões
metodológicas que aportam este estudo).
A nova escola em que foi alocado o professor, localizada na cidade de
Indaiatuba, na região de Campinas, também pertencia à rede Estadual de Educação
do Estado de São Paulo – ao menos até o final do ano de 2015, quando estive em
colaboração com o professor para fins desta pesquisa6.
Fui muito bem recepcionada pela coordenação e direção que, à época,
empregavam esforços no sentido de multiplicar ações formativas continuadas a seus

5
Segundo o site da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, o chamado “ensino integral” é encontrado,
atualmente, em mais de 500 escolas desse estado, as ETI (Escolas de Tempo Integral). Nessas escolas, a jornada
escolar é de (até) nove e meia horas diárias e há o oferecimento de cursos de idiomas (extracurriculares) tais
quais o italiano e o japonês, a cargo de Centros de línguas nelas estabelecidos. Segundo informou o professor,
durante os diálogos desta pesquisa, os salários dos professores dessas escolas são superiores aos demais,
alocados em escolas estaduais que oferecem regime escolar em tempo parcial (somente manhã ou tarde).
Informações sobre as ETIs disponíveis em: http://www.educacao.sp.gov.br/ensino-integral. Acesso em 14 jul
2016.
6
Ao discutir os dados, no capítulo 4, retomarei essa questão posto que, ao final do semestre letivo, em 2015,
ocorreram diversas mudanças nessa escola que repercutiram para o andamento desta pesquisa. Essas
mudanças aconteceram concomitantes a um turbulento e controverso processo de reestruturação na
educação básica estadual, iniciado pelo Governo do Estado de São Paulo, nessa data, que culminou com a
notícia de fechamento e/ou transferência de diversas escolas para algumas prefeituras, gerando um
movimento de protesto contrário a essa ação, por parte de alunos e a ocupação discente de espaços escolares
por todo o estado. Leia mais sobre o assunto em: http://educacaointegral.org.br/noticias/em-sao-paulo-
ocupacoes-de-escolas-se-fortalecem-apoio-da-comunidade/. Acesso em 20 JUL 2016 e
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/13/politica/1447426542_534410.html. Acesso em 20 de JUL de 2016.
20

professores e professoras, sendo que termos como “multiletramentos” e o uso de


novas tecnologias lideravam suas discussões – parte de um projeto da Secretaria da
Educação intitulado “Escola conectada” para estimular o uso de tecnologias digitais
em aula –, nas reuniões e encontros de planejamento (a ATPC - Aula de Trabalho
Pedagógico Coletivo). Localizada em área urbana, a escola abrigava alunos
provenientes de famílias de baixa e média renda, o que refletia, segundo análise do
próprio professor, na organização das turmas em um dado período letivo –, aspecto
que retomarei na análise dos dados.
Enquanto estrutura física, a escola oferecia, além das tradicionais salas de
aula equipadas com lousas de giz, um laboratório de informática (conhecidos nas
escolas da rede estadual paulista como o “Acessa Escola”7) com 16 computadores
operantes e com acesso à internet e um jovem no papel de monitor, um aluno do
Ensino Médio (que também era oferecido nessa escola, no período noturno)
responsável pelo ambiente físico. Havia ainda uma sala-biblioteca equipada com
lousa digital e equipamento multimídia (um computador e um projetor) também com
acesso à internet. O uso do laboratório de informática e da sala com lousa digital, no
entanto, era restrito, dependente de agendamentos e, portanto, compartilhamento
com os demais professores e disciplinas do mesmo turno.
Para o uso do “Acessa escola”, especificamente, era mandatória a
presença do jovem monitor, responsável por ligar todos os computadores e
supervisionar o uso da sala durante o tempo em que lá estivesse o professor. Se o
monitor estivesse ausente no dia, o uso da sala, ainda que agendado, não era
autorizado pela direção. Nesse caso, o professor simplesmente “perdia a vez”,
porque reagendar o uso do laboratório semanas seguidas causava conflito com
outros professores, que procuravam a coordenação acusando o professor de
“manipular o uso” daquele espaço. Emergia já, então, a tensão cobrança -
expectativa entre a política da organização daquela escola e seus docentes, em
função do discurso circulado acerca da tecnologia na educação naquela esfera.
Essa ocorrência, a meu ver, já revelou alguns dos embates e conflitos que seriam

7
Lançado em 2008, o programa Acessa Escola envolve especificamente o uso das salas de informática em
escolas do
estado de São Paulo, revelando parte da política publica instalada para o uso dos equipamentos e o acesso à
internet por
docentes e alunos desde então. Fonte: http://www.educacao.sp.gov.br/acessa-escola. Acesso em 16 de jul de
2016.
21

gerados pelo fato de que a inserção das TDICs, nos processos e procederes dos(as)
docentes dessa escola se configurava como um discurso de autoridade (BAKHTIN,
[1992]2011) – um dos aspectos centrais de minha discussão, que revisitarei e
expandirei nos capítulos dois e quatro, especialmente.
Também relevante para o entendimento do contexto desta pesquisa é
marcar que, para o professor, a alocação na nova escola significou grande ruptura –
profissional e financeira –, com uma considerável redução salarial e grande aumento
no percurso de deslocamento entre sua casa e o trabalho, uma vez que a escola se
localizava noutra cidade. Por conseguinte, restringiram-se ainda mais, então, os
recursos financeiros e o tempo para que o professor se dedicasse à família, à
profissão, à vida. Nessa escola, além de parte da carga total de aulas de inglês
oferecidas aos alunos do Fundamental II, o professor ainda contava com aulas de
português na composição de carga horária (ainda sim, bem inferiores ao número de
horas e ao valor da hora-aula que tinha quando trabalhava na Escola Integral). No
contraturno, o professor também lecionava em outra escola, na EJA (Educação de
Jovens e Adultos).
Acredito que a apreensão do quadro supradescrito seja de grande
importância para que se forme, desde já, o entendimento de algumas das condições
gerais e específicas que apresentam implicância nos fazeres desse professor e, por
conseguinte, para o desenvolvimento da pesquisa, conforme esclarecerei mais
adiante.
Como a realocação do professor aconteceu em meados do primeiro
semestre, com as aulas já em andamento, as turmas por ele assumidas já haviam
ficado por algum tempo sem aulas de inglês (por falta de professores, associada a
um período de pós-greve docente). Essa condição repercutiu, também, em algumas
das escolhas feitas nos planejamentos e ações em aula pelo professor (aqui,
participante), o que irei discutir na análise dos dados.
A seguir, esclareço pontualmente os objetivos desta jornada e as
perguntas que nortearam este estudo.

1.3. Objetivos e perguntas de investigação


Objetivos gerais
A presente jornada-pesquisa teve por objetivo investigar – por meio de
uma análise de orientação dialógica –, implicações, possibilidades, abismos e
22

possíveis pontes emergentes e/ou decorrentes da apropriação de discursos que


motivaram a presença de tecnologias digitais durante fazeres de um professor de
inglês em uma escola de educação básica pública, participando, enquanto
pesquisadora, de maneira ativa nesses processos.

Objetivos específicos:
a) Registrar o diálogo estabelecido entre mim e o professor participante
durante a primeira etapa da pesquisa, em que TDICs estão presentes
em seus fazeres, no contexto escolhido, construindo, assim, o corpus
da pesquisa, materializado em enunciados;

b) Propor um dispositivo teórico-analítico, com base em algumas das


discussões e conceitos estabelecidos por Bakhtin e seu Círculo, de
forma a orientar a análise dos dados (enunciados) construídos na
primeira etapa da investigação, a fim de identificar dificuldades /
possibilidades emergentes e/ou decorrentes das apropriações
discursivas identificadas.

Desses objetivos, advêm as seguintes perguntas de pesquisa:

1. Assumindo perspectiva bakhtiniana para a análise de discurso fundamentada no


dialogismo, que discursos em relação às TDICs e sua interface com a educação
linguística dão evidências de terem sido apropriados pelo professor participante e
quais os indícios mais aparentes dessa apropriação?

2. Que implicações (possibilidades; dificuldades) ligadas à presença das TDICs nas


aulas de inglês decorrem dos discursos emergentes do diálogo estabelecido entre
mim e o professor ao longo dos processos de planejamento, implantação e
discussão das ações pedagógicas em aula?
1.4. Justificando a jornada

A interface educação - tecnologias digitais tem sido alvo de interesse,


tanto no âmbito da pesquisa em educação quanto nos estudos desenvolvidos no
campo de pesquisa da língua(gem).
23

A fim de ilustrar o interesse de pesquisadores na relação educação e


tecnologias digitais e, a guisa de exemplo, realizei uma busca rápida na internet,
com a ferramenta de pesquisas Google Acadêmico, a partir do parâmetro “pesquisas
sobre educação e TICs”, que gerou aproximadamente 26.800 resultados em 0,09
segundos, para resultados apenas em português (Fonte:
https://scholar.google.com.br/scholar. Acesso em 15 de jul de 2016). O parâmetro
de busca “educação e tecnologias”, inserido no site de pesquisas do Portal de
Periódicos Capes/ MEC, com o filtro de busca “buscar assunto”, gerou 5.268
resultados com o tópico encontrado em artigos revisados por pares e demais
recursos online e com o parâmetro “educação e TICs”, 412 resultados, também em
poucos segundos (fonte: http://periodicos.capes.gov.br/. Acesso em 15 de julho de
2016).
Por suposto, se desejasse, por exemplo, investigar o estado da arte da
pesquisa nesse campo, poderia expandir esse exercício de busca às bases de
dados de teses e dissertações publicadas nos últimos 16 ou 20 anos (somente no
Brasil e/ou, se quisesse expandir ainda mais a procura, também as publicações em
língua inglesa, multiplicando, em muito, os resultados).
No entanto, assim como Selwyn (2012, p. 213), entendo que, embora
essa interface já tenha mobilizado a pesquisa em diversas áreas da produção do
conhecimento no campo das ciências (tais quais: a sociologia; a psicologia social; o
design instrucional; os estudos midiáticos, etc.), longe de abandonar esse campo de
pesquisa, é momento de retomá-lo sob uma abordagem, o que, segundo encoraja
esse autor, incluiria (mas não somente) pesquisar e escrever sobre tecnologias
digitais e educação, tendo em mente: “(...) estar certo somente quanto às incertezas
totais a esse respeito; manter um senso histórico e estar ciente dos contextos global,
nacional e local de educação e tecnologia” 8. Ademais, dentre os aspectos que esse
autor considera relevantes para a investigação dessa interface, o que talvez mais se
aproxime de meus propósitos seja “(...) sempre considerar de que maneira a
educação, a tecnologia e a sociedade podem se tornar mais justas” (SELWYN,
2012, p.214).

8
Todas as traduções de textos originalmente escritos em língua inglesa, apresentadas no decorrer desta tese,
são de
minha inteira responsabilidade, exceto casos em que se apresente, nas referências, uma fonte em que o texto
fora antes
traduzido.
24

Dessa forma, penso que discutir uma presença a priori dessas


tecnologias em aulas de língua inglesa na educação básica e, em especial, a
pública, requer ainda certa parcimônia e estudo atento. Assim como Amorim
(2004[2001]), acredito que seja parte de minha tarefa, no papel de pesquisadora,
“problematizar” os efeitos de sentido produzidos pelos discursos9 que circulam em
nossa sociedade em relação a essa interface, o que busco fazer nesta investigação.
Nessa direção, considero importante pontuar que é do interesse das pesquisas
realizadas em Linguística Aplicada discutir “problemas de comunicação, de discurso,
de uso de língua(gem) em contexto, em práticas situadas. Dentre esses, os usos
escolares da língua(gem); os discursos didáticos”, como apontado por Rojo (2007, p.
1762).
Apoiada em Bakhtin ([1992] 2011, p. 398), compreendo que a “definição
de sentido em toda a profundidade e complexidade de sua essência”, deva ser
pensada em um “contexto inacabado” em que o sentido, portanto “não é tranquilo,
nem cômodo”. Dessa forma, justifico esta pesquisa como uma tentativa de aproximar
o olhar para os sentidos que são constituídos e constituintes; construídos e/ou que
se constroem, quando se leva à prática, em um contexto específico, a apropriação
das asserções que associam a presença das TDICs em sala de aula, algumas vezes
de maneira taxativa e indiscriminada, como fosse essa meramente uma óbvia ação
a ser adotada por professores – sem, no entanto, que se discuta de que maneira, e
em que medida, marcar a presença dessas tecnologias em práticas didáticas
auxiliaria no cumprimento do papel educacional da formação em língua inglesa na
escola pública.
Ademais, concordo com Selwyn (2012, p. 213) quando afirma que, muito
embora a presença das tecnologias digitais na sociedade seja um crescente e
constante fator nos dias correntes, ainda há campo para a formação e a
familiarização dos docentes com a “era digital”. Seguindo nessa direção, é possível
também perceber o crescente interesse que tem sido dedicado ao lugar/papel das
tecnologias digitais na educação através de movimentos que têm direcionado
políticas públicas e investimento para/(n)essa relação, como a iniciativa da
Secretaria de Educação do Estado de São Paulo de criar um banco multidisciplinar

9
Os conceitos de discurso, língua(gem) e enunciado, entre outros, serão discutidos, sob a ótica bakhtiniana, no
próximo capítulo.
25

de objetos digitais de aprendizagem através do projeto “Currículo +”10, cujos


conteúdos poderiam ser, supostamente, acessados por professores e alunos através
das salas do Acessa Educação (a que me referi anteriormente).
Por fim, retomando minhas perguntas de pesquisa (apresentadas em 1.3),
espero que, a partir de uma análise atenta dos discursos (re)velados em meus
dados, sob um olhar crítico diante das implicações que se apresentaram como
abismos e/ou pontes durante a primeira etapa da pesquisa (o que explicitarei nos
próximos capítulos), espero que este meu estudo possa contribuir, de alguma
maneira, não com respostas taxativas e/ou generalizantes (o que de nenhuma forma
pretendo oferecer) mas, ao menos, fomentando a discussão acerca das TDICs e seu
lugar na educação em língua inglesa na educação básica (neste caso, tendo como
contexto uma esfera escolar pública).
Quero acreditar que o diálogo que ora estabeleço (com meus dados e
com você, meu leitor) possam provocar diálogos outros, no âmbito da formação
inicial e continuada de professores; na elaboração e implantação de currículos e
materiais didáticos, pertinentes ao planejar e ao fazer do ensino de língua inglesa na
educação básica.
Conquanto minha investigação e seus resultados não sirvam, de maneira
alguma, como generalização contextual, factual e/ou aplicação direta a outras
situações (similares ou não) de ensino e aprendizagem de língua estrangeira,
espero que possa ajudar, dentro do campo de conhecimento científico em que se
insere, a vislumbrar possibilidades, (re)pensar parâmetros e estabelecer metas. Em
minha prática pessoal, ao menos, já ajudou. Tive que aprender a praticar o exercício
da desconfiança, da crítica sistematizada, não somente em relação ao contexto
investigativo, mas comigo mesma, enquanto educadora, pesquisadora e sujeito
social.
Muito embora parte desse esforço tenha significado abandonar as
certezas (a que me referi nesta introdução como meu olhar de primeiro amor à
interface educação - TDICs), saber de onde eu parti e ter referenciais é mandatório
neste gênero acadêmico-científico em que me debruço e, assim, dedicarei, a seguir,
espaço às teorizações.

10
Disponível em http://curriculomais.educacao.sp.gov.br/. Acesso em 18 de setembro de 2014.
26

2. ORIENTAÇÕES TEÓRICAS QUE ENCAMINHAM A JORNADA

É possível imaginar que uma jornada satisfatória, do tipo que deixa caras
lembranças e experiências valiosas, tenha supostamente desfrutado de um bom
planejamento. No caso desta que ora descrevo, antes mesmo de planejar a
trajetória, precisei criar algumas bases a fim de que eu tivesse em que me apoiar
durante o meu percurso exploratório.
No entanto, sem perder de vista o lugar de onde eu falo, meu porto de
partida, e um dado senso de orientação (muito embora uma bússola possa indicar
direções, possibilidades, mas o rumo a seguir é sempre, em última instância, uma
escolha do navegante), estabeleci em meus planos o papel que ocupariam as
orientações teóricas em minha pesquisa. Esse papel, o das teorias, não é o de uma
determinante disposta a formular e moldar os fins, ou seja, não foram as bases
teóricas que determinaram a produção e a análise dos dados, mas vice-versa.
Dessa forma, procurei nas discussões teóricas instâncias que me ajudassem a
conceber e analisar o contexto e os dados –, e não o contrário.
Empresto de Rajagopalan ([2006], 2008, p. 163-164) a noção de que
teorias que são pensadas, concebidas “globalmente”, ou seja, a partir de
generalizações, não poderiam, simplesmente serem tomadas à maneira formulaica,
como parâmetros em que se possa (ou menos ainda, deva) encaixar realidades e
práticas locais. Nessa direção, encontro apoio também nas considerações em
relação aos conceitos de “prática” que faz Pennycook (2010, p. 08 a 13) – e que
retomarei logo a seguir –, bem como na posição que esse autor assume em relação
à interface teoria-prática, especialmente no que diz respeito a quebrar a visão
dicotômica e hierarquizada que algumas vertentes de pesquisa apresentam a esse
respeito. Desta maneira, acato um fazer científico em que teorias não estão
formuladas isoladamente a fim de serem “aplicadas” em certas práticas sociais, mas
percebo nas práticas sociais as construções do “fazer - pensando”, da “atividade da
língua(gem)” (PENNYCOOK, 2010, p. 08).
De acordo com Kramsch (2005), ao invés da clássica dicotomia que opõe
as noções de prática à de teoria, seria preciso abordar, nas investigações no âmbito
da Linguística Aplicada, uma “teoria da prática” que, para o pesquisador “explora
não as condições que tornam o mundo real possível, mas as condições que tornam
27

possível a própria exploração do mundo real. Uma forma reflexiva de conhecimento,


na condição da possibilidade da pesquisa em si”.
Conquanto eu tenha bases (identificáveis) que orientam minha visão de
língua(gem), educação, tecnologias e sociedade (meu porto de partida, o locus de
minha fala), fiz um esforço (não sem dificuldade, confesso) para que a experiência, a
exploração, a investigação e os dados orientassem minha apreciação metateórica,
(sub)vertendo meu próprio olhar o que, por princípio, já exigiu a quebra de (meus
próprios) paradigmas. Penso que ao assumir essa postura, enquanto pesquisadora,
eu me aproximei, de certa forma, do que Morgan e Ramanathan chamam de
“desaprendizagem de maneiras internalizadas e habituais de ver e ser; de nomear o
mundo e imaginar futuros sociais” (2005, p. 154).
Adiante neste texto, abro espaço para essa rede teórico-metodológica em
que busquei base na jornada e em que me apoiarei aqui para a (re)leitura dos dados
da pesquisa.
Nessa direção, quero elucidar, de antemão, que procurei tecer um
percurso teórico para os diversos conceitos que permeiam e norteiam minha
discussão dos dados ao longo do capítulo quatro (tais quais: discurso; enunciado;
cadeia discursiva; apropriação discursiva, diálogo e dialogismo, entre os tantos
outros) fundamentando-me, especialmente, na leitura que fiz de diversas obras de
Bakhtin e seu Círculo (devidamente referenciadas ao longo deste trabalho), por
vezes recorrendo a diferentes traduções de um mesmo texto (em língua portuguesa
e inglesa, que são os códigos linguísticos com que melhor consigo compor
sentidos). Como trabalho com a prática e o ensino de tradução, eu sinto que preciso
esclarecer, por princípio, o lugar de onde falo.
Assim como Bakhtin, entendo que
todo o sistema de signos (isto é, qualquer língua) por mais que
sua convenção se apoie em uma coletividade estreita, em
princípio, sempre pode ser decodificado, isto é, traduzido para
outros sistemas de signos (de outras linguagens); (...) No
entanto, o texto (à diferença da língua como sistema de meios)
nunca pode ser traduzido até o fim, pois não existe um
potencial texto único dos textos. O acontecimento da vida do
texto, isto é, sua verdadeira essência, sempre se desenvolve
na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos (2016, p. 76,
ênfase pelo autor).
28

No trecho supracitado, penso que Bakhtin já tenha antecipado um


importante e controverso tópico que envolve o campo da tradução até os dias
correntes: a questão da intraduzibilidade (tratada por outros autores, como Derrida11,
por exemplo, cuja discussão não trago neste instante para não tangenciar / desviar
demasiadamente (de) meus objetivos centrais neste trabalho). Não havendo
potencialmente ”texto único dos textos” lidos, como afirma Bakhtin, ao leitor cabe a
tarefa, sempre incompleta e, ao que parece, imprecisa, de transitar na tênue e
abstrata área fronteiriça das “duas consciências” a que se refere Bakhtin (2016, p.
76), respondendo ativamente aos textos que lê.
De tal forma, toda e qualquer tradução (e, portanto, leitura) de um texto
pode (e, acredito, deva) ser sempre questionada, posto que não seja totalitária ou
uníssona (o que, para o pensamento dialógico, parece ser muito saudável). No
entanto, já que ora me debruço sobre o gênero acadêmico, por mais que eu deseje
subvertê-lo em minha prática, sou certamente constrangida por (alguns de) seus
limites, dentre os quais se encontra a exigência de sustentar teoricamente minhas
análises, minhas (re)leituras dos dados que devem compor minha investigação.
Por conseguinte, ao buscar apoio nos textos bakhtinianos (e nos demais
autores a que recorri) em que acredito ter encontrado possíveis caminhos a fim de
traçar um dispositivo teórico-analítico para esta pesquisa, o faço ciente de que este
é apenas e simplesmente um (e não “o”) olhar específico, particular; uma tentativa
que faço de transitar entre “as fronteiras de duas consciências, de dois sujeitos”,
que, no caso das traduções, podem ser multiplicados exponencialmente: às vezes,
uma citação direta que aqui trarei será fruto de uma tradução que eu mesma fiz, por
exemplo, de um texto de partida escrito em língua inglesa; outras tantas vezes, uma
citação direta já poderá ser fruto de uma tradução de uma tradução (por exemplo, de
uma publicação em português do Brasil de uma tradução do francês de um texto
escrito por Bakhtin e o Círculo em russo!) o que, da maneira como entendo, faz
muita diferença. Nesse percurso, há construções outras, vozes outras, ideologias
outras, discursos alheios e próprios, mesclando-se num ir e vir e no devir (mais
adiante neste texto, ao conceituar “enunciado”, comentarei notas de tradução
passada e recente do tradutor Paulo Bezerra que ilustrarão essa implicação e, ao

11
Vide, por exemplo, DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo horizonte: Editora UFMG, 2006. Tradução de Junia
Barreto.
29

discutir conceitos de agência e autoria discursiva eu mesma, enquanto tradutora do


inglês para o português, farei minhas próprias inferências).
Concordo, de tal forma, com Holquist (1981, p.XIII, ênfase adicionada)
que, enquanto pesquisador, organizador e tradutor de textos bakhtinianos, faz a
seguinte afirmação em um pré-texto intitulado “Uma observação (nota) acerca da
tradução”:
(...) a “Nota do tradutor” presente em versões das obras de
Bakhtin que não são russas tem se tornado um gênero em si.
Não raro, a peculiaridade do russo de Bakhtin é invocada para
justificar certa estranheza (desconforto) no texto traduzido. Nós
acreditamos que o assunto seja mais complicado. O próprio
Bakhtin fornece o melhor contexto para perceber a natureza
verdadeira do problema na distinção que faz entre “estilo” e
“linguagem” – especialmente no que diz respeito à “imagem de
uma língua(gem)”,

ao que acrescenta que, naquela edição, ele e Caryl Emerson se esforçaram no


sentido de fazer uma tradução que se posicionasse em “nível das imagens de uma
língua(gem) em seu todo” ( que estou traduzindo do inglês “images of a whole
language”).
Portanto, peço a você leitor(a)-interlocutor(a) deste texto que dialogue
com este trabalho buscando não um “texto único dos textos” (que, como indica
Bakhtin, não existe!) mas, sim, trafegar pelo “acontecimento da vida do texto”, essa
“essência” (2016, p. 76) que , neste caso, transita entre múltiplas consciências e
leituras materializadas em cada uma das referências que trago a fim de embasar os
sentidos (naturalmente plurivocais) que tentei construir em minhas próprias
(re)leituras.

2.1 A língua (gem), a ideologia, o sujeito, o discurso e o enunciado

Da maneira como entendo, a língua(gem) é prática social. Para expandir


esta asserção, retomo a discussão estabelecida por Pennycook (2010) que
mencionei há pouco, em relação à necessidade de revisitar o termo “prática” que,
como aponta o autor, tem sido empregado a partir de diversas perspectivas nos
múltiplos campos de estudos da linguagem e da educação, sendo especialmente
conectado à noção de “uso”. Na visão de que partilho, o termo prática não se refere
a usos, exercícios ou “aplicações” (em oposição a teorizações), mas ao “fazer da
30

língua(gem) enquanto uma atividade social, regulada tanto por contextos sociais,
quanto por sistemas subjacentes” (PENNYCOOK, 2010, p. 09).
Essa visão vai de encontro à noção de língua(gem) unicamente como um
sistema/estrutura independente e abstrata, demovendo-a do papel de ferramenta.
Nessa direção, busco apoio em conceitos bakhtinianos e de seu Círculo para
desenvolver minha discussão.
Como aponta Paulo Bezerra (no pósfácio a sua tradução dos textos de
Bakhtin, 2016, p. 157)
as reflexões de Bakhtin, que afirma sempre ouvir vozes e vê a
língua estruturada sobre a bivocalidade “como fenômeno social
em formação histórica e socialmente estratificada”,
transbordam naquilo que certamente se constitui em sua
contribuição fundamental para a compreensão da língua como
sistema estratificado: a concepção dos gêneros,

que são enunciados em que tema; composição e valoração são identificáveis de


maneira relativamente estável.
Ao abordar os gêneros do discurso e os elementos do enunciado, Bakhtin
([1979; 1992;2003] 2011) (re)afirma a inseparável conexão entre a língua(gem) e as
diversas atividades (práticas) sociais em que se envolve o ser humano. De maneira
não linear e através de múltiplos textos e discussões, Bakhtin e seu Círculo apontam
para um olhar complexo, plural, conquanto integrador de língua(gem) (e de sujeito),
sempre relacionada ao campo de atividade em que se realiza a comunicação
discursiva.
Como não se pode localizar objetivamente nos estudos de Bakhtin e do
Círculo uma definição conceitual específica e linear para o termo “discurso”,
enquanto um construto, eu tentarei tecer aqui um caminho a partir de alguns dos
principais conceitos discutidos em um apanhado de textos desses autores, a fim de
construir o que entendo por discurso para fins desta discussão.
De maneira alguma pretendo apresentar uma visão fechada, absoluta ou
definitiva do temo em si. Pelo contrário, assim como acontece com outros conceitos,
o termo discurso, para ser abordado pela ótica bakhtiniana, precisa ser examinado a
partir de sua interelação e proximidade com outros conceitos discutidos por Bakhtin
e seu Círculo.
De maneira dialógica (como não poderia deixar de ser, neste caso, por se
tratar de Bakhtin), proponho entender o discurso como um conceito construído como
31

parte de uma trama conceitual em que as condições de produção que permeiam as


interlocuções/interações (quem fala, para/com quem fala, quando e onde fala) são
ainda repletas de valores socialmente orientados e compartilhados.
Nesse sentido, o discurso (concebido à maneira mais ampla) e grosso
modo, permeia, constitui as e é constituído por relações histórica e socialmente
estabelecidas nos universos em que acontecem as comunicações discursivas, em
que as ideias são materializadas na concretude das palavras, encadeadas no
enunciado (como discutirei adiante).
É na interlocução estabelecida na comunicação, da maneira como é
apreciada a partir do signo ideológico bakhtiniano, que elaboro um caminho para a
noção de discurso que me orienta nesta jornada-pesquisa.
O discurso em Bakhtin, assim como outros conceitos e/ou princípios,
ocupa momentos/lugares diversos em suas discussões e tem espaço,
especialmente, em suas apreciações no âmbito da literatura, mas acredito que seja
possível alinhavar algumas de suas considerações a esse respeito. Num esforço
para cumprir essa tarefa, navegarei por alguns textos desse autor, na tentativa de
(inter)conectá-los. Nesse percurso, chamo à atenção o(a) leitor(a) com quem
estabeleço este diálogo a fim de esclarecer que alguns conceitos serão repetidos
(não sem um propósito) enquanto outros carecerão de sua paciência, porque serão
desenvolvidos mais adiante neste mesmo capítulo e em capítulos futuros. Para
construir este meu diálogo com (algumas das) conceituações bakhtinianas, talvez
seja prudente também estabelecer, a priori, a noção do inacabamento como olhar
ontológico, visão que perpassa a concepção bakhtiniana de mundo.
O mundo, nas discussões de Bakhtin, é concebido à forma de um
acontecimento em que a(s) realidade(s) se encontra(m) em constante processo
formativo e, portanto, inacabado, sendo o discurso um constituinte do ser. O
sujeito, nessa perspectiva, é concebido social e dialogicamente, constantemente
movido pela relação eu outro, a que Holquist ([1990] 2002, p.17,18) chama de
“papel fundamental da simultaneidade”. A simultaneidade ocorre quando a relação
eu/outro não é a de emissor recipiente ou enunciador (ativo) observador
passivo. Como aponta esse autor, não há papeis de observadores no dialogismo
bakhtiniano, uma vez que o sujeito é, constitui-se, mediante seu papel ativo na
realidade (eu outro). Experimentando (e não meramente observando) a
realidade, o sujeito constitui / constitui-se a partir de um posicionamento ou ponto de
32

vista específico (HOLQUIST, [1990], 2002). É através dessa relação que o sujeito
bakhtiniano se coloca em constante (re)criação, aprendizagem, construção, à
maneira dialógica, emergindo de / desenhando realidades sociais, historicamente
intrincadas em relações de poder, ideologicamente marcadas. Nas palavras de
Bakhtin “o falante é um homem essencialmente social, historicamente concreto e
definido e seu discurso é uma linguagem social (ainda que no embrião), uma
linguagem de grupo e não um “dialeto individual”” (2015, p. 124, ênfase adicionada).
No caminho para estabelecer um diálogo com as observações
bakhtinianas e um conceito de discurso, talvez seja também possível falar em
universo discursivo, pensado a guisa de uma extensão povoada por diversidade,
diferenças e multiplicidade de vozes sociais, muitas vezes em embate e/ou
contradições, o heterodiscurso a que se refere Bakhtin (Volochínov) em Teoria do
Romance ([1929-1930], 2014), que pode, ainda, ser objeto de análise enquanto
“discurso concreto”, (re) apresentado como sinônimo de enunciado (idem, p. 48).
De toda sorte, o enunciado de Bakhtin é fundamentado na noção do signo
ideológico; das palavras que não (se) encarceram (em) um “significado” em si, único
ou restrito, mas que “não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam, mas
podem abastecer qualquer falante e os juízos de valor mais diversos e
diametralmente opostos dos falantes” ([1979; 1992;2003] 2011, p. 289). Ou seja, o
signo em si, quando tomado isoladamente, é simultaneamente terra de todos e de
ninguém, conquanto signo ideológico, a palavra no enunciado (também referido pelo
Círculo como “discurso concreto”) é tomada por objeto social, que reflete e refrata
realidades sociais em um universo discursivo.
Nessa concepção de comunicação não há significados estáticos ou
acabados; é elaborada por / elaboradora de sentidos interconectados em cadeia
comunicativa, em que as respostas dadas/formuladas aos signos ideológicos se
constituem por outros signos cujos sentidos também são/estão externos a si. É
dessa concepção que advém a ideia bakhtiniana de comunicação discursiva na qual
“existem tipos bastante padronizados e muito difundidos de enunciações valorativas,
i.e., de gêneros valorativos de discurso” (BAKHTIN, [1979; 1992;2003] 2011, p. 290-
291), marcados pela entonação expressiva que os constituem
A fim de estabelecer-se comunicativamente, enunciadores (falantes ou
escritores) e/ou interlocutores lançam mão do signo (e, portanto, são orientados pela
ideologia), construindo sentido através de uma cadeia responsiva, já que “a
33

compreensão é uma resposta ao signo por meio de signos. E essa cadeia de


criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para
um novo signo, é única e contínua (...)” (BAKHTIN[VOLOSHÍNOV]; 1929-1930],
2014, p. 34). Para engajar-se nessa cadeia responsiva e estabelecer diálogo com e
através do signo ideológico, o (inter)locutor precisa empenhar-se na construção de
sentido com apoio em outros sentidos (BAKHTIN, [1979; 1992;2003] 2011, p. 399).
A constituição de sentidos, dessa forma, carece de “interpretação como
correlacionamento com outros textos e reapreciação em um novo contexto (no meu,
no atual, no futuro)” (idem, p. 401).
Objetivamente, Bakhtin (1981, p. 259) afirma que
forma e conteúdo são unos no discurso, uma vez que se
compreende que o discurso verbal seja um fenômeno
social – social em todo o seu escopo e em todo e cada um de
seus fatores, da imagem sonora aos mais distantes alcances
dos sentidos abstratos (ênfase adicionada).

De maneira clara, o autor indica como uma língua é tomada por um


locutor de modo a atender suas necessidades “enunciativas concretas”, isto é, sua
vontade enunciativa. Ou seja, uma determinada forma linguística importa quando
“figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado a uma situação
concreta dada” (Bakhtin[Volochínov; 1929-1930], 2014, p. 96). Nessa direção, o
estudioso faz uma distinção objetiva entre signo e “sinal”12 (sign) / decodificação e
identificação. “Sinais” são identificáveis por interlocutores (daí ser necessária a
familiarização com determinados “sinais” – “estruturas abstratas” (idem, p. 95) –,
para que se possa estabelecer comunicação), mas o engajamento discursivo em si
acontece mediante a decodificação do signo (ideológico / ideologizado). De tal
maneira, o locutor ao “servir-se de uma língua para suas necessidades enunciativas
concretas” (idem) precisa manter em mente que, para que esse enunciado seja
decodificado por seu interlocutor é preciso que ele/ela consiga não somente
identificar o “sinal” (estar familiarizado com a estrutura linguística enquanto
organização abstrata), mas, também, que esse enunciado seja compreendido como
12
Os tradutores da edição citada, que partiram do texto em francês e ocasionalmente em inglês, optaram por
usar o termo “sinal”, que Bakhtin/Voloshínov teria tomado para distinguir de seu conceito de signo
(ideológico). Em língua inglesa o termo sign parece se adequar melhor (embora eu não leia russo e, portanto,
não possa aprofundar a discussão da escolha tradutória do russo para o inglês, em que sou fluente). Como
estou citando o texto traduzido para o português, acatei a escolha dos tradutores. Porém, não sei se o termo
“sinal” seria o mais adequado para compor sentidos nesse trecho, pelos valores semânticos a que possa
remeter (nos discursos cotidiano e acadêmico). Como para mim soa estranho, prefiro mantê-lo entre aspas.
34

um signo apropriado para o “contexto concreto”, a prática (atividade) social em que


se quer estabelecer a comunicação.
É possível perceber, portanto, como a noção bakhtiniana de língua(gem)
é essencialmente pluralista. Nem os signos ideológicos, nem os sentidos, nem a
comunicação discursiva e, portanto, o enunciado, são monológicos ou monolíticos.
Como vias de mão dupla, cada conceito é apresentado
entremeado/interconectado/relacionado a outro, de maneira que o discurso se
constitui de e constitui a cadeias, múltiplas, dialógicas que são concretamente
enunciadas. Cadeias infinitamente repletas de possibilidades e que, ao se
conectarem, constroem cadeias outras, intra/interuniverso(s) discursivo(s). Porque o
signo não carrega significado em si, mas é signo por ser ideológico, social e
historicamente situado, constituído em um campo de criatividade ideológica da qual
passa não somente a refletir, mas, tal qual um (minúsculo que seja) fragmento,
também refratar uma dada realidade. E essa cadeia fica visível, concretizada, no
enunciado (concretude discursiva). Mas como não há acabamento, como os
sentidos não são finitos, é necessário compor sentidos outros, estabelecer um
diálogo, a fim de que se estabeleça a cadeia comunicativa discursiva. Por
conseguinte, Voloshínov / Bakhtin concluem que
(...) o discurso verbal, tomado no seu sentido mais amplo como
um fenômeno de comunicação cultural, deixa de ser alguma
coisa autossuficiente e não pode mais ser compreendido
independentemente da situação social que o engendra. (199?,
s/p).

Ao discutir o discurso na vida e na arte, Voloshínov/Bakhtin (199?)


retomam o papel da entoação no discurso verbal oral (que é um dos objetos que
compõem meu corpus). Como postulam, é a entoação que estabelece, durante a
comunicação discursiva oral, a conexão que encadeia a relação entre o discurso
verbal (materializado no enunciado) e as instâncias, o contexto extraverbal, ou seja,
“é a entoação genuína, viva [que] transporta o discurso verbal para além das
fronteiras do verbal, por assim dizer” (199?, s/p.).
Em um texto recentemente traduzido para o português do Brasil, intitulado
“Diálogo I, a questão do discurso dialógico”, Bakhtin (2016, p. 116) informa que “todo
discurso termina, mas não no vazio, e dá lugar ao discurso do outro (ainda que seja
o discurso interior), à expectativa de resposta, de emoção”, esclarecendo sua visão
acerca da natureza dialógica do discurso. Nesse mesmo ensaio, mais adiante,
35

esclarece que “a unidade do discurso é o enunciado. Todo enunciado é por


natureza uma réplica do diálogo (comunicação e luta)” (idem, ênfase adicionada), ao
que acrescenta, a seguir, que “discurso é a língua in actu. (...) O discurso é tão
social quanto a língua” (BAKHTIN, 2016, p. 117, ênfase adicionada).
Para Sullivan (2012, p. 44) – também buscando apoio nas discussões
bakhtinianas –, discurso, nessa perspectiva, consiste na maneira como múltiplas e
distintas “vozes falantes” reagem e comunicam valores / ideologias /
posicionamentos a partir de seus pontos de vista específicos (olhares que são social
e historicamente constituídos e não meramente ou exclusivamente tomados como
opiniões pessoais e/ou individuais).
Para Bakhtin/Volochínov ([1929-1930], 2014, p.36), a palavra é um
“fenômeno ideológico”, através da qual se tem a melhor representação social,
embora a materialidade do signo possa ser tomada “como som, como massa física,
como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer” (idem, p.33).
Mas essa palavra a que se refere não é a entidade autônoma, abstrata, monolítica,
que carrega sentidos lacrados em si – um termo que denomina um instrumento, por
exemplo –, diferentemente, essa palavra torna-se fenômeno ideológico quando
invade o “universo particular” de signos. Conforme esclarece Bakhtin, essa palavra
(ou qualquer outra que seja a materialidade) é um objeto natural,
presente/presenciado em/por diversas atividades humanas, sendo que “(...) todo
produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim,
um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades.” (Bakhtin[Volochínov;
1929-1930], 2014, p. 32).
Como exemplo, posso pensar em uma vela que, enquanto objeto do
cotidiano, pode ser vista como instrumento para gerar luz e/ou calor, mas que
assume caráter de signo ideológico nas mãos de um religioso/fiel que segue levando
a vela acesa em uma procissão. A atividade religiosa (prática social) confere o
caráter ideológico da vela enquanto um signo concebido sob a ótica de Bakhtin.
Grosso modo, a ideologia pode ser caracterizada como um conjunto de
ideias com significados socialmente constituídos, que se encontram subjacentes ao
uso de formas linguísticas, i.e.; como motivações subjetivas – conquanto
socialmente construídas / compartilhadas –, e, assim, entendo que a ideologia é
marcada historicamente e está sempre situada no âmbito social.
36

Portanto, conforme é concebida por Bakhtin, a ideologia não está


circunstanciada em si mesma, enclausurada nos limites objetivos do signo (seja qual
for sua representação), mas “possui um significado e remete a algo situado fora de
si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não
existe ideologia”, como informa Bakhtin/Volochínov ([1929-1930], 2014, p. 31, grifo
do autor). Dessa visão advém, então, que através da palavra (ou do signo em suas
mais diferentes representações) seja possível observar indícios de processos
sociais.
A maneira como o signo bakhtiniano se constrói / é constituído está
diretamente ligada à esfera de atividade humana (escolar; política; religiosa, familiar,
etc.) em que se manifesta / é manifestado, contexto a que Bakhtin se refere como
“campo de criatividade ideológica”. É esse campo, então, que orienta, de acordo
com suas particularidades, o modo como uma realidade é apreciada pelo
enunciador, já que cada campo reflete e refrata a realidade a sua própria maneira,
por meio do signo ideológico, que sempre se remete a uma realidade outra, externa
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV [1929-1930], 2014, p. 32).
Ademais, a visão bakhtiniana esclarece que a materialização /
encarnação da língua(gem) e, portanto, do discurso,
(...) efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)
concretos e únicos (...) [que] refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu
conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem (...) mas, acima
de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, ([1979;
1992;2003] 2011, p. 261, ênfase adicionada).

Apropriando-me do olhar bakhtiniano, vislumbro uma inseparável relação


entre língua(gem) contextualização da atividade humana (esfera;
participantes; tempo/lugar sócio-histórico), o “quando-onde-como” essa prática social
é estabelecida, suas condições de produção.
Ao definir enunciado, Bakhtin define, também, uma relação indissolúvel
entre o emprego da língua(gem) humana e as atividades em que se engaja o sujeito
social, em comunicação discursiva (conceito que expandirei adiante neste texto).
Cabe sempre lembrar que os termos: “enunciado”, “enunciação” (e,
acrescento aqui, “enunciar”) são amplamente negociados e aplicados em
abordagens diversas no campo da língua(gem), representando uma “grande
polissemia de definições e empregos”, como afirmam Brait e Melo (2005, p. 62). Ao
37

exemplo dessas autoras, penso que seja igualmente importante destacar que há
vasta gama de leituras possíveis em relação à constituição de sentidos para os
termos “enunciado”; “enunciado concreto” e “enunciação”, mesmo dentro do âmbito
do pensamento de Bakhtin e de seu Círculo, sendo necessário perceber que tais
sentidos para esses termos são constituídos “na articulação com outros termos,
outras categorias, outras noções, outros conceitos que, mais do que a constitutiva
proximidade, lhes conferem sentido específico, diferenciado de qualquer outra
perspectiva teórica” (BRAIT; MELO, 2005, p.62).
Como resolvi adotar simplesmente o termo “enunciado” ao longo deste
texto, considero relevante também apontar duas observações referentes a questões
de tradução, que vão orientar o conceito de enunciado que me direciona:
primeiramente, refiro-me à nota do tradutor Paulo Bezerra que, em 2011, esclareceu
que o termo “viskázivanie” (em russo) de que lançou mão Bakhtin ao formular sua
definição de enunciado seria ambivalente, remetendo não só ao substantivo
enunciado como, igualmente, ao verbo, “ao ato de enunciar, transmitir pensamentos,
sentimentos, etc. em palavras” (BAKHTIN, ([1979; 1992;2003] 2011, p. 261, nota do
tradutor). Já em outra tradução mais recente (2016), que traz releituras desse
mesmo tradutor de alguns textos publicados anteriormente por ele no volume
organizado como Estética da Criação Verbal e que agora foram acrescidos por mais
duas traduções inéditas de textos de Bakhtin no volume Os Gêneros do discurso,
Bezerra (posfácio a BAKHTIN, 2016, p. 153) esclarece que “(...) substituí o termo
“enunciação” por “enunciado”” (ênfase adicionada). Segundo o tradutor, sua
primeira leitura teria sido aparentemente influenciada por outras orientações teórico-
linguísticas, o que o teria induzido a cometer aquilo que hoje considera ter sido “uma
séria impropriedade”, como esclarece esse tradutor e estudioso dos textos de
Bakhtin e seu Círculo, dizendo que, após releituras cuidadosas, entende hoje que
para Bakhtin, “viskázivanie”, ou “enunciado” não equivale a
mero ato de produção de fala ou discurso; é muito mais que
isso. Enunciado é o elo (NB: o elo, não um elo,) essencial da
cadeia de comunicação e é dotado de uma tridimensionalidade
comunicativa e histórica e cultural que reúne passado (o
antecedente), presente (o continuum) e futuro (o consequente)
do processo de comunicação, como um fenômeno da cultura
perene em sua substancialidade e aberto como forma de
existência e comunicação entre os homens no devir histórico e
na unidade aberta de cultura e história (Paulo Bezerra, posfácio
a sua tradução em BAKHTIN, 2016, p. 153).
38

Esse esclarecimento – relevante ao menos para mim, já que sou uma


leitora bakhtiniana sem acesso direto à língua russa –, aproxima-me da direção
tomada por Bakhtin ao informar o papel crucial que ocupa o enunciado na “cadeia de
comunicação discursiva” ([1979; 1992;2003] 2011, p. 289), enquanto elemento de
ligação, comparando-o a elos em uma corrente e sugerindo que esse elemento (o
enunciado, também chamado de enunciado concreto, em outros textos do autor e do
Círculo) tenha a importante função de estabelecer “a posição ativa do falante,
nesse ou naquele campo do objeto e do sentido (...)” e que “cada enunciado se
caracteriza, antes de tudo, por um determinado conteúdo semântico-objetal” ([1979;
1992;2003] 2011, p. 289, ênfase adicionada).
Essa é uma informação teórica a que reputo lugar de importância (daí a
ênfase que adicionei à citação direta supramencionada), uma vez que costruir
sentidos para viskázivanie (o enunciado), a partir das relações bakhtinianas, me
permitirão, ao longo do capítulo quatro, orientar a discussão de meus dados de
pesquisa, que são constituídos pelo diálogo estabelecido ao longo da etapa um da
investigação, materializados em enunciados que dizem respeito tanto a interações
comunicativas orais – que foram gravadas em áudio e depois transcritas –, quanto
ao diálogo estabelecido por meio de narrativas individuais (relatos) escritos pelo
professor que participa desta pesquisa e por mim, com apoio de recursos digitais
conforme esclarecerei no terceiro capítulo, quando partirei desses diálogos para o
recorte do corpus a fim de analisar a materialidade discursiva – os enunciados.
Embora enunciados possam variar, sendo mais ou menos fortes em
relação a sua expressividade, todo enunciado, ao carregar signos, é sempre
ideologicamente orientado. Nessa direção, é verdadeiramente “impossível”
conceber-se a total neutralidade de quaisquer enunciados uma vez que a esfera de
domínio dos signos é a esfera ideológica e que “cada signo ideológico é não apenas
um reflexo, uma sombra da realidade, mas também, um fragmento material dessa
realidade”, como informam Bakhtin/Volochínov ([1929-1930], 2014, p. 33).
Construir uma noção de discurso na perspectiva bakhtiniana é, portanto,
uma tarefa metateoricamente dialógica, gradual e complexa. Além de acatar as
noções de incompletude, ideologismo, pluralismo e as relações dialógicas inerentes
ao âmbito da língua(gem) e , portanto, ao universo discursivo, é preciso também
incorporar a noção da apropriação linguístico-discursiva que, do modo como
39

entendo, parece estar intimamente ligada ao conceito de subjetividade consciente


conforme concebido por Bakhtin, que afirma que
o enunciado vivo que surgiu de modo consciente num
determinado momento histórico em um meio social
determinado, não pode deixar de tocar milhares de linhas
dialógicas vivas envoltas pela consciência socioideológica no
entorno de um dado objeto da enunciação, não pode deixar de
ser participante ativo do diálogo social. (BAKHTIN, 2015, p.
49).
Esse olhar de mão-dupla para as relações em um dado universo
discursivo se dá, portanto, à medida que “a consciência adquire forma e existência
nos signos criados por um grupo organizado no curso de relações sociais”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929-1930], 2014, p. 36), pensamento que me direciona
aos conceitos de diálogo e dialogismo, a que me dedico a seguir.

2.1.1 Diálogo e dialogismo; polifonia, heteroglossia, exotopia e


cronotopia.

Para refletir acerca dos conceitos de diálogo e dialogismo através da


perspectiva bakhtiniana é preciso retomar a ideia de que, para Bakhtin e o Círculo,
em uma interação em que sentidos são socialmente (re)constituídos e
(com)partilhados, não há um falante ativo em oposição a um ouvinte passivo mas,
sim, dois falantes – contrariando o que postulam visões estruturalistas da
língua(gem). Ou seja, o ouvinte (nas interações comunicativas discursivas) tem um
papel ativo e não o de um mero receptor passivo. Acredito que o entendimento
dessa mudança de foco na maneira como se percebe as interações humanas seja
essencial para que se possa conceber o dialogismo que perpassa meu olhar neste
estudo. É sob essa perspectiva que concebo aqui o conceito de compreensão e é
ela também que conduz esta jornada-pesquisa desde seu embrião até à análise dos
dados, que seguirá mais adiante.
Como postula Bakhtin em um texto experimental, escrito em 1950 e
recentemente traduzido para o português no Brasil, “a compreensão não repete nem
dubla o falante, ela cria sua própria concepção, seu próprio conteúdo” (BAKHTIN,
2016, p. 113). Ainda em outro texto, o pesquisador afirma a condição da
compreensão como uma “forma de diálogo” que se coloca diante da enunciação
40

“assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à
palavra do locutor uma contrapalavra.” (BAKHTIN, 2016, p.137, itálico pelo autor).
Nessa direção, encaminhando a discussão sobre o diálogo para a
percepção da réplica ativa, Bakhtin afirma que “a compreensão é sempre prenhe de
resposta” (idem), indicando o trajeto para a visão dialógica do discurso.
Como aponta Sidorkin (1999), o olhar bakhtiniano informa que o
dialogismo é central à humanidade, pois
a existência humana, em si, depende do engajamento em
relações dialógicas. Um indivíduo pode existir enquanto
organismo, num sentido físico ou biológico. Mas nós somente
somos verdadeiramente humanos quando estamos numa
relação dialógica com o outro. (SIDORKIN, 1999, p. 11).

Por suposto, a pluralidade permeia a noção (dialógica e não dicotômica)


de falante-ouvinte e sua relação nos processos dialógicos para o estabelecimento da
compreensão. Apoiando-me em Bakhtin (2002), entendo que um dado enunciador
(falante) não é, então, o detentor exclusivo de seus enunciados, pois todo discurso
(e, portanto, sua materialização) é permeado por perceptíveis vozes, diversas, ainda
que frequentemente distantes e sutilmente marcadas, ou mesmo anônimas.
Mas há também uma multiplicidade de vozes mais próximas, que se
notabilizam no enunciar, o que leva Bakhtin (2014) a questionar “como se define o
locutor?” Ora, se a palavra (e o discurso) não é totalmente sua (ao menos não à
maneira exclusivista), lhe pertence parcialmente e “em um determinado momento, o
locutor é incontestavelmente o único dono da palavra”, ao que acrescenta o autor
que tal momento “é o instante do ato fisiológico de materialização [dessa palavra]”
(2014, p.117).
No entanto, ao expandir a noção de palavra para o signo ideológico
(como já apresentei anteriormente), Bakhtin ressalta que a questão do
pertencimento (do enunciado e do discurso) torna-se mais e mais complexa, pois é
em determinado contexto social que “se constrói uma determinada enunciação”
(idem). De tal maneira, a condição dialógico-discursiva em que são
construídos/compartilhados/manifestados os enunciados estará sempre atrelada a
uma dada situação e meio sociais que “determinam completamente e, por assim
dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN, 2014, p.
117, itálico pelo autor) que, para esse pesquisador, é sempre de natureza social.
41

Do instante em que esses enunciados integram contextos de discussão,


eles se tornam parte de uma cadeia (enunciativa) dialógica (BAKHTIN, 2016, p.
114). Nessa mesma direção, torna-se visível que “o diálogo traz a marca não de
uma, mas de várias individualidades” (idem, p. 115).
Como se percebe, o enunciado se trata sempre, e desde suas raízes, de
um conceito dialógico, posto que materialize o discurso, que é “dialógico por
natureza” (BAKHTIN, 2016, p. 116) e nunca está encerrado em si mesmo, uma vez
que seu fim dará sempre lugar ao discurso de outrem. A relação língua(gem)
discurso é intrinsecamente dialógica, posto que tanto é a “linguagem que torna
possível a vida discursiva” (2016, p. 117) quanto é esta vida que a influencia, a
modifica, a transforma. Tal modificação se concretiza mediante e estabelecimento
do diálogo, em situações de interatividade social.
O diálogo (em seu sentido ampliado para além de um tipo de interação
verbal entre pessoas que conversam) pode criar espaços para que o locutor-ouvinte,
em relações prenhes de dialogismo discursivo, possa(m) permanecer aberto(s) à
diferença, a novas possibilidades na constituição de sentidos, ao(s) discurso(s) de
outrem. É no contato de um sentido já estabelecido (no encadeamento de signos
ideológicos, como discuti anteriormente), pela correlação entre textos/contextos, que
sentidos outros, estranhos entre si, se engajam, encadeando sentidos novos. O
embate entre os sentidos, mediante o diálogo, possibilita a constatação e também a
contestação desses sentidos e de seus futuros encadeamentos.
De maneira objetiva, o diálogo
no sentido estrito do termo, não constitui, é claro, senão uma
das formas, é verdade que das mais importantes, da interação
verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num
sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz
alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda a
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2014, p. 127).

Por conseguinte, como destaca Shields (2007, p. 65), o diálogo em


Bakhtin torna-se um modo de vida – muito além de simples trocas de palavras ou
somente a fala em uma interação conversacional cotidiana. Pensar o diálogo como
parâmetro ontológico seria, pois, perceber nele e através dele a possibilidade de
abertura à diferença (alteridade) como caminho para um olhar mais completo em
direção às realidades socialmente constituídas. Do que advém a ideia de que, em
42

toda comunicação discursiva haverá sempre uma multiplicidade de olhares que,


excedendo-se, no encadeamento enunciativo (e, portanto, lotada por signos
ideologicamente orientados), serão sempre povoados por vozes diversas.
Ao (re)visitar a noção de objeto do discurso do falante, Bakhtin (2016)
reforça a ideia de cadeia na comunicação discursiva em que , isoladamente, cada
enunciado atua como um elo. De maneira limitada pela forma como os falantes vão
se alternando (enquanto sujeitos do discurso), cada enunciado “reflete o processo
do discurso, os enunciados do outro e, antes de tudo, os elos precedentes da cadeia
(às vezes os mais imediatos e, vez por outra, até os muito distantes (...))” (BAKHTIN,
2016, p.60). Dessa ideia advém que, não obstante diferentes, o objeto do discurso
de um dado locutor “não se torna objeto do discurso em um enunciado pela primeira
vez, e um determinado falante não é o primeiro a falar sobre ele” (idem, p.60-61).
Um objeto do discurso, portanto, é sempre marcado pelas diferentes
formas e meios pelos quais já foi previamente avaliado, analisado, legitimado ou
contraposto. Traçando analogia com a figura bíblica, Bakhtin estabelece que
nenhum “falante é um Adão”, cujos objetos com os quais se relaciona são “virgens,
ainda não nomeados” (2016, p. 61). Ou seja, o enunciar de um locutor é sempre
repleto de vozes outras já que
uma visão de mundo, uma corrente, um ponto de vista, uma
opinião sempre têm uma expressão verbalizada. Tudo isso é
discurso do outro (em forma pessoal ou impessoal) e este não
pode deixar de se refletir no enunciado. O enunciado está
voltado não só para seu objeto, mas também para os discursos
do outro sobre ele (BAKHTIN, 2016, p.61).

Como esclarece Vitanova ([2005]2013, p. 154), o diálogo, na perspectiva


bakhtiniana, é concebido como um processo em que sentidos são construídos
socialmente. Equivaler o enunciado a um elo em uma cadeia da comunicação
discursiva pressupõe, então, acatar não somente os discursos que o precedem (e
que nele estão inseridos) quanto as “atitudes responsivas diretas e ressonâncias
dialógicas” (idem, p. 62) que esse enunciado igualmente exerce naquele(s)
enunciados outros, que o seguem.
Estabelece-se, dessa forma, um encadeamento entre discursos
passados, presentes e futuros, manifestados no encadeamento enunciativo,
especialmente porque, como lembra Bakhtin, todo enunciado é estabelecido
pressupondo-se um endereçado, de que(m) se deseja obter uma resposta,
43

estabelecer um diálogo, muito embora aqueles que respondem a um enunciado não


sejam necessariamente, e vias de regra, sempre aqueles a quem esse enunciado foi
direcionado.
Como informa esse autor, “(...) as relações de sentido dentro de um
enunciado (...) são de índole lógico-objetiva (...) as relações de sentido entre os
diferentes enunciados assumem índole dialógica (ou, em todos os casos, matiz
dialógico). Os sentidos estão divididos entre vozes diferentes” (BAKHTIN, 2016, p.
88, ênfase adicionada).
Ao pensar as diferentes vozes entre as quais se dividem os sentidos,
sempre dialogicamente elaborados, remeto-me a outro elemento constitutivo da
comunicação discursiva que também faz menção à pluralidade vocal em relação a
um mesmo objeto do discurso: o conceito de polifonia.
A polifonia é foco de Bakhtin no texto “O problema da poética em
Dostoievski”, que tem tradução para o português datada de 2013. Nessa obra,
voltando o olhar para as relações autor-texto-personagem na obra de Dostoievski,
Bakhtin reflete não somente acerca da polifonia no texto literário, mas, como em
outras de suas obras, estabelece comparações entre o discurso literário e o(s)
discurso(s) do cotidiano. Dentre outras provocações, o autor oferece que
as relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as
relações entre as réplicas do diálogo expresso
composicionalmente –, são um fenômeno quase universal, que
penetra toda a linguagem humana e todas as relações e
manifestações da vida humana, em suma, tudo o que tem
sentido e importância (BAKHTIN, [192?] 2013, p.43).

A partir dessa (reiterada) noção de dialogismo, Bakhtin passa a comentar


o romance “Memórias do subsolo” de Dostoievski e, nesse percurso, apresenta uma
definição para polifonia, afirmando que “são vozes diferentes, cantando
diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a “polifonia””
(BAKHTIN, [192?] 2013, p.45, itálico pelo autor). Partindo da ideia de contraponto,
que marca a polifonia no universo musical, Bakhtin sugere que “para Dostoiévski,
tudo na vida é diálogo, ou seja, contraposição dialógica” (idem). O que colocaria
o romance de Dostoiévski em posição diferente do romance que o precede, uma vez
que seus personagens não estão sujeitos a um monovocalismo autoral (ou seja, a
ressoar única e exclusivamente uma voz preponderante, a do autor), mas, sim,
apresenta personagens cujas diversas vozes, por vezes controversas e sempre
44

distintas, são distinguíveis e provenientes de diferentes apreciações de um mesmo


objeto de discurso. Como informa Bezerra,
o autor do romance polifônico não define as personagens e
suas consciências à revelia das próprias personagens, mas
deixa que elas mesmas se definam no diálogo com outros
sujeitos-consciências, pois as sente a seu lado e à sua frente
como “consciências equipolentes dos outros, tão infinitas e
inconclusíveis, [como é a do autor] (2005, p. 195).

Enquanto construto situado no âmbito da linguagem, a polifonia é um dos


conceitos discutidos por Bakhtin de que lanço mão nesta pesquisa, em especial na
leitura dos dados (o que farei no capítulo 4), posto que esse conceito também me
auxiliará a analisar enunciados dialogicamente construídos nos diálogos que
estabelecemos o professor (participante) eu (pesquisadora) – em posições
de interlocução verbal oral e, também, escrita.
Conforme informa Bakhtin, a polifonia se instaura nos embates e
contraposições ideológicas que, para esse autor, se tipificava no capitalismo, que
propiciaria a multiplicidade de planos e contradições sociais, de onde advêm
diferentes vozes e apreciações diversificadas de um único objeto. Da maneira como
percebo, tais contradições aparecem reforçadas no neoliberalismo que permeia o
campo (contextual) em que estabeleço esta discussão/pesquisa, tema a que
retornarei mais adiante, em especial ao discutir a conceituação de tecnologia.
Além do caráter polifônico, outra característica que marca a visão
pluralista de língua(gem) nas discussões bakhtinianas é a noção de heteroglossia.
Ainda situando sua discussão no romance, Bakhtin aponta o olhar para o aspecto
multivocal da língua(gem) , constituinte inerente da condição humana, destacando
como o falante/locutor atua em tempos-espaços (o cronotopo, a que irei me referir a
seguir) sempre permeados e carregados de múltiplas vozes (por vezes, em embate),
identidades e sentidos (SHIELDS, 2007, p. 33).
Em alguns textos selecionados em The Dialogic Imagination (BAKHTIN,
1981) é possível identificar a preocupação do autor em postular sua visão dialógica
– em contraposição a uma visão de língua(gem) como estrutura abstrata –, em que
esse estudioso vê (partindo da análise do romance) enunciados plenos de vozes em
diálogo mas, também, em competição. Reconhecer essa trama heteroglóssica no
discurso, através de sua materialização em enunciados, é opor-se a ideia do
monologismo e do unitarismo, que silencia vozes outras, em favor de um olhar
45

dirigido à unificação (ética e estética e, por conseguinte, ideológica). As forças que


movimentam o embate heteroglóssico operam de dentro para fora e vice-versa, ou
seja
cada enunciado concreto de um falante serve como um ponto
onde forças tanto centrífugas quanto centrípetas são exercidas.
O processo de centralização e descentralização, de unificação
e desunificação, intersecção no enunciado; o enunciado não
somente responde aos requerimentos de sua própria
língua(gem) como uma corporificação individualizada de um
ato de fala, mas igualmente responde à heteroglossia; é de fato
um participante ativo em tal diversidade da fala (BAKHTIN,
1981, p. 272).

Dessa forma, não só a heteroglossia é inerente ao discurso, como a


própria materialidade discursiva (o enunciado) participa (dialogicamente) na
heteroglossia vigente no campo em que esse enunciado se manifesta. De tal modo,
esse processo afeta esteticamente cada enunciado porque, enquanto todo
enunciado careça do pertencimento a uma unidade linguística – e suas forças
centrípetas e tendências normalizadoras (sua estrutura abstrata) –, também esse
mesmo enunciado “participa da heteroglossia social e histórica (as forças
centrífugas, estratificantes)” (idem).
Como esclareci anteriormente, todo enunciado é social e historicamente
constituído e, no campo em que se manifesta, cria formato e vida (na esfera em que
a prática social toma evento), torna-se “heteroglossia dialogizada, anônimo e social
enquanto língua(gem) mas, simultaneamente, concreto e repleto com conteúdo
específico e marcado como um enunciado singular” (BAKHTIN ,1981, p. 272).
Portanto, a heteroglossia tanto constitui quanto é constituída por / em enunciados.
A heteroglossia em perspectiva bakhtiniana refere-se, portanto, não
apenas à pluralidade linguística (o plurilinguismo) como, também à multiplicidade de
vozes e discursos. Como esclarecem Blackledge e Creese (2014, p.4) “heteroglossia
enquanto um conceito teórico é, então, heteroglóssico por definição”, apontando
como a ocorrência do termo nos textos reputados a Bakhtin e seus pares também
está sujeita à polêmica.
Partindo de discussões que entendem que o termo “heteroglossia” em si
só teria surgido a partir de traduções do russo para o inglês, como solução para um
conceito que Bakhtin teria desenvolvido em torno da ideia de “diversidade
intralinguística”, referindo-se a questões de variantes linguísticas decorrentes de
46

implicações sociais e políticas (BLACKLEDGE; CREESE, 2014, p. 3 - 4). Esses


autores sugerem, então, retomar a perspectiva bakhtiniana acerca da heteroglossia
a partir de três aspectos levantados em suas discussões: “a natureza da
indexicalidade, as interações repletas de tensão e a multiplicidade de vozes
(multivocalidade)” (BLACKLEDGE; CREESE, 2014, p. 4).
Na definição supramencionada, a indexicalidade teria a ver com forma
pela qual a língua(gem) remete a “determinados pontos de vista, classe social,
profissão ou outra posição social” (idem). Essa visão nos permite associar o que as
pessoas falam com a imagem que construímos de quem elas sejam, porque
tomamos seu repertório discursivo como base para a ligação (um índex), que é
associado a práticas sociais. Disso implica que a maneira como se fala, da escolha
lexical à entoação e o registro, não são neutros ou simplesmente escolhas
individuais. Estão em meio a um embate de forças, centrípetas e centrífugas que,
operando simultaneamente uma na outra, operam em meio à heteroglossia.
Penso que o encaminhamento dado por Blackledge e Creese (2014)
possa então, de certa forma, ampliar a noção que empresto ao conceito de
heteroglossia, incorporando às ideias de indexação e embate de forças, o conceito
de pluralidade / multiplicidade vocal, partindo da noção de que “uma voz é uma
posição social de um mundo estratificado, como pressuposto por uma [visão] de
língua(gem) estratificada” (WORTHAM, 2001, p.50, apud BLACKLEDGE; CREESE,
2014, p.10)
O enunciado pode carregar consigo a polifonia – caracterizada por um
conjunto de múltiplas vozes que permanecem distintamente únicas e não são
silenciadas por forças majoritárias e/ou diferentes pontos de vista de um mesmo
objeto –, mas também a vive na heteroglossia, no campo em que se manifesta,
permeado por vozes, discursos outros, em perspectivas conflitantes (SHIELDS,
2007, p. 36). Esses dois conceitos – a polifonia e a heteroglossia –, estão
intrinsecamente conectados à noção de cronotopo (tempo-espaço) e, portanto,
também de exotopia.
Nas relações mediadas pelo diálogo bakhtiniano, em que residem os
enunciados, reside também o desejo de ser compreendido e de compreender, como
base de um modo de vida que acata a incompletude, a experimentação, o
inacabamento. Inacabamento esse que gera no sujeito o ímpeto interativo, do
envolvimento em relações dialógicas, do exercício exotópico.
47

A exotopia encontra lugar nos embates estabelecidos a partir da


enunciação, na comunicação discursiva. São os enunciados compartilhados no
diálogo que dão base para perspectivas alternativas que provocam; contestam ou
reafirmam; combatem ou complementam a visão do locutor-ouvinte. Esse processo
exotópico, que busca na alteridade o excedente que lhe falta (ao eu-falante,
inicialmente e parcialmente detentor do enunciado) é o processo que o constitui,
discursivamente. É através do movimento estabelecido no/pelo diálogo que o sujeito
bakhtiniano “encontra sua própria voz e a orienta entremeio vozes outras, para
combiná-la com algumas dessas e contrapor-se a outras, ou distinguir vozes entre
si, nas quais já estão inseparavelmente imersas” (BAKHTIN, 1973, p. 201).
O processo exotópico a que se refere Bakhtin se realiza quando
“contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim” e, diante desse ato,
percebe-se que “nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não
coincidem” (2011 [1992], p. 21). Por mais que eu me aproxime do outro, jamais
conseguirei enxergar a vida, olhar o mundo, a partir do lugar que ocupa esse outro.
O lugar de onde falo e de onde fala o outro é único. Oportuno se faz retomar a
epígrafe que trago no pré-texto desta tese e que, do modo como vejo,ilustra a busca
(do sujeito) por seu excedente, aquilo que lhe falta:
eu não quero reconhecer-me; quero conhecê-lo fora de mim.
Isso é possível? Meu esforço supremo deve consistir nisso:
não me ver em mim, mas ser visto por mim, com os meus
próprios olhos, mas como se fosse um outro, aquele outro que
todos veem e eu não vejo. (PIRANDELLO, 2001, p. 36)

Na epígrafe supracitada, o personagem central do romance de Pirandello


deseja contemplar, a partir de seu próprio olhar, de um mergulho em si mesmo, seu
excedente, aquilo que lhe falta e que somente a partir do olhar do outro, do lugar em
que se encontra o outro, é possível vislumbrar. Quer desconstruir sua própria
autoimagem para reconstruí-la a partir de um novo olhar para si, enxergando-se
assim como o outro o vê.
Por outro lado, o que propõe a exotopia bakhtiniana é que, ao contrário,
para alcançar tal excedente de visão é preciso sair de si, engajar-se em diálogos,
estabelecer interlocuções com o outro, para que eu enxergue mais de mim mesma;
para que se complete aquilo que me falta.
48

É através do diálogo, estabelecido no encadeamento enunciativo, que


revelo o meu olhar sobre o outro, algo que ele próprio não consegue fazer, e vice-
versa. O diálogo permite o exercício da extralocalidade, em que vou até o lugar do
outro e volto a meu próprio lugar. Esse exercício de excedente de visão, em
comunicação discursiva, me permite ver mais de um sujeito do que ele próprio
poderia ver de si e receber, em troca, essa mesma extravisão.
O olhar do outro vem de lugar, tempo-espaço diferentes e é repleto de
valores – ética e esteticamente diversos ao meu próprio olhar. De tal forma, só
através do exercício exotópico eu posso completar minha visão de mim mesma,
aquilo que não sou capaz de ver em mim (ou exclusivamente a partir do lugar que
ocupo que, enquanto singular, é também essencialmente limitado). Esse movimento
que leva ao posicionamento extralocal (exotópico) é materializado no encadeamento
enunciativo, na concretização discursiva. Como afirma Bakhtin
(...) é ainda em nós mesmos que somos menos aptos e
conseguimos perceber esse todo da nossa personalidade. (...)
Quando contemplo o todo um homem situado fora de mim,
nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não
coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que
esse outro que contemplo possa estar em relação a mim,
sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e
diante de mim, não pode ver (...) (BAKHTIN, [1979;1992;2003]
2011, p.04 e p. 21).

A abordagem que proponho nesta investigação, ao estabelecer uma


jornada dialógica, é fundamentada na noção do excedente de visão, como a propõe
Bakhtin, ao discutir o autor e a personagem. Nesse sentido, o pesquisador em
questão sugere que “esse excedente da minha visão, de meu conhecimento, da
minha posse – excedente sempre presente em face de qualquer outro indivíduo –, é
condicionado pela singularidade e pela insubstitutibilidade do meu lugar no mundo”
(BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011,p. 21, itálico pelo autor).
A exotopia é, portanto, um exercício de deslocamento tempo-espacial.
Nesse sentido, é preciso concebê-la em conexão com a ideia de cronotopo.
Componentes inseparáveis e basilares do viver, o tempo e o espaço
assumem um papel chave nas teorizações bakhtinianas. Não só o autor percebe a
inseparabilidade desses componentes, como também sugere que o tempo assuma o
papel de uma quarta dimensão espacial.
49

Movido pela discussão no âmbito do romance literário, o cronotopo


bakhtiniano está diretamente ligado à maneira como o herói romanesco se relaciona
com a vida. Do ponto de vista desta discussão, assim como sugere Shields (2007,
p.11), tomo as teorizações de Bakhtin em relação ao cronotopo por metáfora para o
discurso (e os diálogos) do cotidiano, assim como Bakhtin tomou o termo por
empréstimo da matemática, mais especificamente da Teoria da Relatividade de
Einstein (1981, p. 84). Como aponta o autor, cronotopo quer dizer, literalmente
“tempo-espaço”. Na maneira como vê Bakhtin, o tempo assume forma, encorpa-se
de tal modo no texto literário que apresenta certo destaque em relação ao espaço. E
é nessa relação cronotópica que a imagem do homem (sujeito) é projetada no
romance (1981, p. 85).
É nessa configuração do sujeito bakhtiniano, a guisa do olhar sobre o
herói literário, que concentro meu interesse, pois ela está diretamente ligada à noção
de agência e de atuação do sujeito no mundo (cronotopo).
Assim como acontece com outros conceitos, Holquist ([2010] 2015, p. 34)
informa que Bakhtin “lutou”, ao longo dos anos, na tentativa de “conferir ao termo
[cronotopo] maior precisão”, retomando-o em diferentes textos, sob aspectos
diversos. Segundo informa esse pesquisador, foi em “Considerações Finais”, editado
por Bakhtin em 1973, que o autor expandiu o termo de uma “(vaga) aplicação
literária (típica do seu período intermediário) para uma categoria epistemológica
abrangente” (HOLQUIST, [2010] 2015, p. 35).
Blommaert (2015, s/p), que ao tratar do cronotopo retoma a noção de
heteroglossia, afirma que esse é um conceito-chave na visão bakhtiniana de
língua(gem). Remetendo-se ao fato de que ao olhar para o discurso em sua
concretude enunciativa, no contexto de comunicação discursiva (prática social),
abre-se a perspectiva para uma análise socio-historicamente situada das “diferentes
vozes de diversas estratificações (camadas) sociais” que permeiam esse discurso,
naquele dado momento –, i.e., a heteroglossia, Blommaert aponta para a maneira
como questões de estilo são, igualmente, questões socialmente históricas (idem).
A estrutura heteroglóssica é, pois, especificamente atrelada a realidades
tempo-espaciais historicamente situadas e registram a diversidade intrínseca à
língua(gem)/enunciados concretos/discursos,cronotopicamente situadas.
As apreciações valorativas, ideologias marcadas nas réplicas ativas
estabelecidas nos processos de interlocução, emergem dos processos dialógicos
50

em que o interlocutor orienta seus enunciados a partir de seus próprios sistemas


verbo-ideologizados. Dessa constatação advém que nenhum elemento constitutivo
das relações comunicativo-discursivas pode ser tomado como neutro ou isento de
valoração e diversidade, nem mesmo os conceitos de tempo e espaço
(BLOMMAERT, 2015, s/p.). É nessa direção que o cronotopo bakhtiniano é
estabelecido em discussões que tomam o texto literário por campo de estudo.
Dessa forma, visualizando o cronotopo como uma das características
constitutivas do texto literário, Bakhtin (1981) sugere diferentes cronotopos que se
evidenciam em/pelas relações que estabelecem entre o sujeito (nesse caso, a
imagem do homem no romance) e seu posicionamento nos tempos-espaços em que
se constitui discursivamente.
Assim como sugere Blommaert (2015, s/p), também prefiro olhar para o
cronotopo proposto por Bakhtin pelo viés que denota as relações tempo-espaciais
em sua perspectiva social e histórica e suas interfaces com o conceito de agência
(que abordarei com maior foco mais adiante neste capítulo). Dessa forma, retomo
breve e resumidamente as três principais instâncias que surgem da discussão que
Bakhtin faz entre o sujeito (herói literário, naquele caso) e a ideia da vida como uma
aventura. Da interface com diferentes cronotopos, sugere Bakhtin (1981), surgiriam
diferentes construções de sentido, diferentes identidades e ações.
A partir da observação e da análise de diversos textos literários situados
em contextos de produção social e historicamente semelhantes, Bakhtin identifica
um fio condutor que liga enredos à maneira como se constituem e são constituídos
os sujeitos (herói, no romance). Em um primeiro momento, foca-se a vida como uma
aventura, em que a relação do sujeito com o tempo-espaço (cronotopo) é passiva:
há forças vitais que conduzem o sujeito a esta ou aquela direção, sem que ele
assuma por isso algum tipo de responsabilidade (ou seja, não há agência).
A passividade a que se submete o sujeito no cronotopo da aventura não
permite mudanças (como se pretende que exista num exercício exotópico, nos
embates estabelecidos pelos diálogos).
Um segundo tipo de sujeito viveria parcialmente entre dois mundos: o da
aventura e o real. Esse cronotopo não permitiria a mudança per se, mas uma
espécie de metamorfose espontânea, causada por um ou uma série de acaso(s),
i.e.: “o que se tem, ao invés disso, é a crise e o renascimento” (1981, p. 115).
51

Finalmente, Bakhtin sugere um terceiro cronotopo, em que o sujeito vive


completamente na intersecção tempo-espaço e a que o autor chama de tempo
biográfico, em que a vida é constituída pela praça pública, repleta de vida e ações
sociais. Como esclarece o estudioso
aqui o indivíduo está exposto em todos os lados... Tudo aqui,
até os mínimos detalhes, é inteiramente público. É totalmente
compreensível que sob tais condições não poderia haver em
princípio nenhuma diferença entre a abordagem que se toma
para a vida alheia e para a própria (BAKHTIN, 1981, p. 132).

Viver no cronotopo biográfico, no cerne tempo-espacial, é expor-se


publicamente e, para tanto, é preciso pesar as ações e as palavras e tomar atenção
a seu entorno, às realizações e palavras de outrem, às diferentes perspectivas e
olhares para esse mesmo cronotopo que advém dos enunciados constitutivos de
cadeias, em comunicações discursivas – constituir-se eticamente. Nesse cronotopo,
a agência é não somente uma possibilidade, mas, possivelmente, uma necessidade,
ao mesmo tempo promovedora e fruto de deslocamentos exotópicos e embates
estabelecidos em diálogos recheados pela polifonia e a heteroglossia discursivas.
Emprestando a metáfora literária dos cronotopos de Bakhtin, a exemplo
do que fazem Azzari e Melo (2016, p. 99), a guisa de um dos elementos constitutivos
desta proposta teórico-metodologica para a análise de discurso fundamentada no
dialogismo, no campo em que se insere este estudo, passo a seguir a discutir
possíveis interfaces entre as noções de agência; autoria e apropriação discursiva,
que juntamente com os conceitos até aqui elencados, apoiarão categorias de análise
no decorrer do capítulo quatro.

2.1.2 Agência, autoria e apropriação discursiva

O campo das discussões acerca da linguagem, educação/educação


linguística, não é estranho às teorizações sobre a agência enquanto construto e
elemento central (JORDÃO, 2010; MEDINA, 2006; PENNYCOOK, 2010;
RAJAGOPALAN, 2013; ROCHA, 2013; SHIELDS, 2007; SPIVAK, 2010).
Na perspectiva Bakhtiniana, as ideias de agência e cronotopo parecem
estar interconectadas em diferentes graus, de acordo com os diferentes contextos
sociais e históricos em que atua o sujeito e como ele se posiciona diante da vida.
Além desse aspecto, para Bakhtin, o sujeito é primeiramente agente, por exemplo, já
52

na própria conceituação de língua(gem), pois “imagens de [uma] língua são


inseparáveis das imagens das várias visões de mundo e dos seres vivos que são
seus agentes – pessoas que pensam, falam, e atuam em um contexto que é social e
historicamente concreto” (1981, p.49).
Vitanova retoma a noção bakhtiniana do diálogo como a “ação em si”, o
ato do sujeito de tornar-se (BAKHTIN, 194, p. 252 apud VITANOVA, [2005] 2013, p.
154). Nessa direção, a autora propõe construir uma noção de “autoria de si” (em sua
discussão, toma por relação o falante em uma língua estrangeira) partindo da noção
de agência proposta por Hicks (2000 apud VITANOVA, [2005] 2013, p. 154) que, ao
revisitar Bakhtin, informa que

agência implica a habilidade de tomar as palavras de outros e


marcá-las com sotaque à maneira única de cada um. Logo,
responder implica a habilidade de ler as particularidades de
uma situação e seus discursos e engajar-se com tais
particularidades de maneira eticamente específicas.

Ainda nessa direção, Vitanova (idem) associa a noção de


“responsividade” proposta por Bakhtin à construção da noção de autoria bakhtiniana,
apontando para a inevitabilidade da condição dialógica entre os sujeitos e seus atos,
mas sem deixar de destacar a relação entre sujeito, o ato de tornar-se e o contexto
social em que se dá a comunicação discursiva. Nesse sentido, a autora recorre ao
que postulam Clark e Holquist (1984, p. 09 apud VITANOVA, [2005]2013, p.154) “ao
sujeito é possível responder a seu contexto social; a esse mesmo sujeito cabe
responder pela autoria de suas respostas” (negritado por mim).
Faz-se relevante notar que a tradução do texto de Clark e Holquist
supracitado é de minha responsabilidade. No texto citado, os autores usam os
termos “answerable to e answerable for” – que da maneira como vejo, carecem de
um adjetivo equivalente em português do Brasil. Assim, optei por reformular
estruturalmente o termo que de locução adjetiva (answerable to / for) foi transposto a
verbo (responder por / a).
Nos trechos destacados acima, parece estar clara a proximidade que
tendem a assumir os conceitos de agência e autoria neste campo de discussão em
que me encontro. No entanto, é possível também, a meu ver, perceber seu
distanciamento e, igualmente, como são duas noções em dialogismo ativo nas
comunicações discursivas: é preciso agência (responder à) para assumir o papel de
53

respondente, enquanto locutor/interlocutor no diálogo bakhtiniano – do que advém


que há autoria (responder por) nos enunciados (apropriados) para fins dessa
resposta (ainda que essa autoria seja parcial ou momentânea, como já apontei
anteriormente neste mesmo capítulo).
A partir da noção de tal processo responsivo é possível entender-se a
afirmação de Bakhtin de que “o homem em sua especificidade humana sempre
exprime a si mesmo (fala), isto é, cria texto (ainda que potencial)”, ao que
acrescenta que “a atitude humana é um texto em potencial e pode ser compreendida
(como atitude humana e não ação física) unicamente no contexto dialógico da
própria época (como réplica, como posição semântica, como sistema de
motivos)” (BAKHTIN, 2016, p.77 e 78, ênfase adicionada). Ou seja, a réplica ativa do
interlocutor (dialógico) bakhtiniano é um ato de agência e de autoria discursivas, ato
de tornar-se (sujeito) em diálogo, na comunicação discursiva.
Desse processo de agência e autoria discursivas decorre também a
imagem que eu-outro fazemos, de mim mesma / outrem, quando dialogamos,
porque somos “o autor do enunciado mais comum, padronizado, cotidiano. Podemos
criar a imagem de qualquer falante, perceber objetivamente qualquer palavra,
qualquer discurso, mas essa imagem objetiva não entra na intenção e na tarefa do
próprio falante, nem é criada por ele como autor do enunciado” (BAKHTIN, 2016,
p.81,ênfase adicionada) mas, sim, ao que parece indicar Bakhtin, deriva do processo
exotópico, acontecimento cronotopicamente situado. Esta é uma das noções
conceituais que me permitem / possibilitam constituir mecanismo teórico-analítico
para a análise dialogicamente orientada que desenvolverei no quarto capítulo.
De toda maneira, pretendo reafirmar que proponho pensar ambas as
noções de agência e autoria a partir da perspectiva do(s) discurso(s) em que se
engaja(m) o(s) sujeito(s). Por conseguinte, as noções de “responder” (agência) e de
“ser responsável por suas respostas” (autoria) são constituintes do ato de tornar-se,
do exercício dialógico (caminho que orienta a visão do que excede ao sujeito e do
que, portanto, necessita buscar exotopicamente).
O grau de mudança decorrente desse exercício exotópico, porém, está
facultado à maneira como esse sujeito atua diante do cronotopo em que deseja (ou
não) situar-se, à maneira como se apropria do(s) discurso(s) (e enunciados) de
outrem. Como afirma Bakhtin,
54

(...) de um modo geral, toda relação de princípio é de natureza


produtiva e criadora. O que na vida, na cognição e no ato
chamamos de objeto definido só adquire determinidade na
nossa relação com ele; é nossa relação que define o objeto e
sua estrutura e não o contrário (BAKHTIN, [1979;1992;2003]
2011), p. 04).

Cabe ressaltar, no entanto que, em toda comunicação discursiva, assim


também como é o lugar de onde falo que define o objeto, é igualmente possível
pensar que esse objeto possa, dialogicamente, eventualmente vir a constranger /
afetar / (re)posicionar um enunciador, (re)definindo as relações entre eles
estabelecidas. Estamos ainda diante do fato de que, todo e qualquer relacionamento
/ interação (entre enunciador/ contemplador e objeto e/ou entre locutores) estará
sempre sujeita e permeada por questões de poder.
Nessa direção, o signo ideológico de Bakhtin – a palavra cujos sentidos
sempre extrapolam seus próprios confins e remetem-nos a contextos
extralocalizados –, é o cerne em que se registram os embates sociais. Se, como
afirmam Bakhtin/Volochínov ([1929] 2014, p. 35) “a consciência individual é um fato
socioideológico”, tanto nosso olhar definidor (de contemplador) sobre o objeto
quanto o efeito que ele nos cause são, igualmente, construções sociais e, portanto,
sujeitas às relações de poder socialmente estabelecidas nos cronotopos (tempo e
espaços) em que se estabelecem as comunicações discursivas.
A esse respeito, ao buscar exemplos no discurso cotidiano e no ficcional,
Voloshínov / Bakhtin (199?, s/p) reforçam a influência que exercem as relações
(pré)estabelecidas entre locutores nas escolhas da maneira pela qual se estruturam
os enunciados, esclarecendo que uma “obra” (enunciado) é sempre orientada a um
ouvinte / leitor (para quem se escreve / fala). Ainda segundo esses autores,
o primeiro fator determinante da forma do conteúdo é a escala
avaliativa do evento descrito e seu agente – o herói (tenha
nome ou não) com uma relação bilateral: patrão-escravo,
soberano-dominado, camarada-camarada, etc., como heróis de
um enunciado, também determinam sua estrutura formal
(VOLOSHÍNOV; BAKHTIN,199?, s/p.).

Esses exemplares de relações socialmente estabelecidas (pensadas


pelos autores no âmbito político-econômico capitalista) refletem e refratam diferentes
e diversas relações de poder socialmente estabelecidas.
55

De tal forma, se “a palavra é o modo mais puro e sensível da relação


social”, como sugerem Bakhtin/Volochínov ([1929] 2014, p. 36), é nela e por meio
dela que se materializam / instauram as relações de poder que, por suposto, são
forças ativas no estabelecimento tanto da agência quanto da autoria discursivas. No
tocante à comunicação na vida cotidiana, Bakhtin/Volochínov apontam que
(...)esse tipo de comunicação é extraordinariamente rica e
importante. Por um lado, ela está diretamente vinculada aos
processos de produção e, por outro lado, diz respeito às
esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas
(...) ([1929] 2014, p.37).

Para esses autores, portanto, a consciência, dada para alguns como


individual, não é senão a expressão de uma “psicologia do corpo social”, passível de
objetivação por meio de sua materialização na palavra (no discurso verbal), assim
como em outras materializações do signo (bakhtinianamente concebido), tais como
os gestos, os atos, as tecnologias... Dessa psicologia social deriva a estrutura social
e política que, juntamente com as relações de produção “determinam todos os
contatos sociais possíveis entre indivíduos, todas as formas e os meios de
comunicação verbal: no trabalho, na vida política, na criação ideológica. Por sua vez,
das condições, formas e tipos da comunicação verbal derivam tanto as formas como
os temas dos atos de fala” (BAKHTIN /VOLOCHÍNOV, [1929] 2014, p. 43).
Ou seja, não há comunicação discursiva (portanto, nem agência nem
autoria discursiva) que não esteja sujeita às relações de poder socialmente
estabelecidas, as “criações ideológicas ininterruptas” (idem, p. 43), às condições de
produção em que circulam os discursos e materializam-se enunciados.
Penso que haja, portanto, respaldo para a noção de autoria discursiva
que aqui desenvolvo nas teorizações propostas por Bakhtin que, referindo-se tanto
às obras de diferentes gêneros (científicos /acadêmicos/ artísticos) quanto ao
diálogo do cotidiano, a partir da noção de réplica ativa inerente aos diálogos
(unidades constituintes à comunicação discursiva), quando esse autor aponta que as
réplicas
estão nitidamente delimitadas pela alternância dos sujeitos do
discurso, cabendo observar que essas fronteiras, ao
conservarem a sua precisão externa, adquirem um caráter
interno graças ao fato de que o sujeito do discurso – nesse
caso o autor de uma obra – aí revela a sua individualidade o
estilo, na visão de mundo, em todos os elementos da ideia da
56

sua obra. (BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p.279, ênfase


adicionada).

Não obstante, sob o olhar bakhtinianamente orientado, nenhum desses


atos (o da agência e o da autoria) é concebido à maneira isolada e/ou
individualizada (monológica), mas sim, através do dialogismo, histórica e
socialmente situado, em que as cadeias enunciativas são organizadas por elos
(enunciados) repletos de valores éticos (ideologismo / forças centrífugas) e estéticos
(as forças centrípetas que movem a estrutura abstrata da língua(gem)) e, portanto,
povoados por múltiplas (e controversas) vozes – em polifonia, heteroglossia.
O gráfico 01 pretende representar e resumir visualmente tal relação. Muito
embora uma imagem estática e planificada não possa autorizar a visualização do
movimento multidimensional que perpassa o processo de tornar-se em comunicação
discursiva, recorro a esse recurso na tentativa de buscar auxílio na evidenciação das
categorias constitutivas desse processo:
57

MOVIMENTO DIALÓGICO / RESPONSIVIDADE (exotópico):


O ATO DE “TORNAR-SE” EM COMUNICAÇÃO DISCURSIVA

CRONOTOPO (tempo-espaço)

LOCUTOR / INTERLOCUTOR(eu outro)


(EM RÉPLICA ATIVA)
Engaja(m)-se em

DIÁLOGO(S) (encadeamento enunciativo):

Enunciados passados presentes futuros


(materialidade discursiva em que atuam forças centrípetas e centrífugas) constituídos por / constituintes de:

IDEOLOGIA(s) / relações de PODER


AGÊNCIA
(responder a)
HETEROGLOSSIA
AUTORIA
DISCURSIVA
(responder por)
POLIFONIA

Gráfico 01: Ato de “tornar-se” em comunicação discursiva

Cabe notar, no entanto, que conquanto estejam dialogicamente


posicionados, locutores/interlocutores não estão isolados nos processos de agência
e autoria discursivas. Apoiada em Medina (2006) penso que não se pode pensar a
questão da responsividade e da responsabilidade como vias de mão única: nem são
somente determinações e encargos pessoais (do sujeito), nem totalmente
imposições sociais (exclusivamente das relações externas a que aponta o signo
ideológico, central ao engajamento discursivo).
58

Adotando uma postura em favor do hibridismo, Medina (2006, p.133)


sugere quebrar o olhar dicotômico em relação à responsabilidade discursiva, em
favor da adoção de uma proposta que abarque agência e responsabilidade “que
contém elementos heterogênicos: subjetivos e objetivos, individual e coletivo”,
contrastando com o olhar que dicotomiza “voluntarismo e automatismo” nas
comunicações discursivas13 .
Acredito que essa visão coadune com a percepção que trago do tema (e
que tentei materializar no Gráfico 1), em que autoria (responsabilidade pela
resposta) e agência (ato de responder à) estão em interseção (dialogicamente
situadas entre si e no diálogo com outrem) e não oposição dicotômica.
Para Medina, a principal mudança causada por uma abordagem híbrida
do binômio responsividade/responsabilidade é que
(...) em relação a visões tradicionais, minha [de Medina]
contextualização propõe uma perspectiva caleidoscópica ou
polifônica na qual a agência é fraturada ou multifacetada em
cadeias performativas e, por conseguinte, a responsabilidade
encontra-se em difusão por dentre os elos dessas cadeias
(2006, p.133).

A noção de agência polifônica vem ao encontro das orientações


bakhtinianas no sentido em que para Bakhtin a língua(gem) e o discurso são
dialógicos de berço e, muitas vezes, polifônicos, mas sempre plurivocais. O universo
discursivo é sempre social e historicamente orientado/orientador dos atos em que o
sujeito se torna. Sob esse viés é que chamo de “responder por / autoria” àquilo que
Medina (2006) nomeia por “responsabilidade”.
Não obstante as convergências, entendo que a principal diferença entre a
proposta de Medina e a que aqui tento desenvolver seja o fato de que em suas
considerações esse autor acabe por imergir autoria e/em agência o que, da maneira
como vejo, constituem-se separadamente – muito embora de maneira simbiótica –,
i.e.: sem agência não há engajamento discursivo e, por conseguinte, limita-se a
possibilidade da autoria. Por outro lado, quero questionar se sem a autoria a agência
tornar-se-ia ato de adoção de discursos de repetição da palavra dotada de

13
Medina (2006, p. 133) se refere “atos de fala” em sua discussão. No entanto, para manter minha coerência
discursiva neste texto, estou apropriando sua discussão dentro do olhar que me orienta de “comunicação
discursiva” como proposta por Bakhtin e já exaustivamente mencionada ao longo deste capítulo.
59

autoridade em oposição ao discurso internamente persuasivo (BAKHTIN,


[1979;1992;2003] 2011), como passo a discutir.
A apropriação discursiva, sob a ótica bakhtiniana, pode equivaler a um
processo (em menor ou maior grau) de apagamento da palavra de outrem, palavra
alheia, pois “(...) a palavra do outro se torna anônima, apropriam-se dela (numa
forma reelaborada, é claro); a consciência se monologiza.” (BAKHTIN,
([1979;1992;2003] 2011, p. 403, itálico pelo autor).
Disso implica pensar a vida e o mundo orientados pela lógica do
dialogismo, em que enunciados carregam palavras que em si são vazias, não
constituem sentidos estáticos, mas que “se tornam” nos enunciados dialogados,
repletos de passado e presente, pois esses enunciados são elos encadeados em
tempos-espaços ideologicamente encharcados. Nesse movimento dialogizado não
há neutralidade e não há distanciamento possível/ passível de acontecer. Mas pode,
sim, haver o apagamento da conscientização: de onde vêm essas palavras, esses
discursos? E se há sempre um extratexto a que se ligam esses enunciados
(BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p. 402-403), onde há criatividade e, por
conseguinte, a autoria?
Do modo como vejo, no ato de responder por. Como aponta Bakhtin, nas
primeiras fases em que o sujeito toma consciência da palavra o “inconsciente” pode
vir a ser um fator criativo apenas no limiar da consciência e da palavra.
Mas que outras nuances dão cor a esse processo de apropriação?
Segundo informa Bakhtin
(...) as influências extratextuais têm um significado
particularmente importante nas etapas primárias de evolução
do homem. Tais influências estão plasmadas nas palavras (ou
em outros signos) e essas palavras são palavras de outras
pessoas, antes de tudo palavras da mãe. Depois, essas
“palavras alheias” são reelaboradas dialogicamente em
“minhas-alheias-palavras” com auxílio de outras “palavras
alheias” (não ouvidas anteriormente) e em seguida [nas]
minhas palavras (por assim dizer, com a perda das aspas), já
de índole criadora. ([1979;1992;2003] 2011, p. 402, ênfase
adicionada),

O processo de apagamento das vozes fundadoras surge quando a


consciência então se distancia de sua inicial interface dialógica com a palavra, que
passa pela fase das “palavras-próprias-alheias” (idem, p. 403). Nessa fase da
60

apropriação discursiva, Bakhtin aponta para um momento em que “a consciência


criadora é completada com palavras anônimas”, processo de monologização que,
de acordo com esse autor, tem grande importância. Esse processo dá origem a um
“todo único” (já repleto de palavras anônimas) que passa, então, a estabelecer novo
diálogo, com “vozes externas do outro” (idem).
Ou seja, o processo de criação discursiva é um ciclo encadeado de
apropriação (dialógica) apagamento (monologização) retomada do
diálogo (já com palavras anônimas) a palavra de outrem (com personificação
da consciência criadora) transformada por palavras outras (palavras-próprias-
alheias).
Nesse ínterim, há aquelas palavras que são projetadas como “vozes
alheias anônimas, em símbolos especiais: “voz da própria vida”; voz da natureza”;
“voz do povo”; “voz de Deus”, etc. Papel desempenhado nesse processo pela
palavra dotada de autoridade, que habitualmente não perde seu portador, não se
torna anônima” (BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p. 403). A essa lista de vozes
exemplificadas por Bakhtin quero acrescentar a voz da política educacional; a voz
do(s) currículo(s); do(s) material(ais) didático(s); dos gestores escolares(...). vozes
que retomarei no capítulo quatro, ao analisar enunciados.
A distinção de que trata Bakhtin no processo de apropriação discursiva
culmina, então, em dois principais eixos: o do discurso de autoridade e o de
discurso internamente persuasivo.
O primeiro pressupõe aquelas vozes que não se apagam durante o
processo de apropriação discursiva, ou seja, insistem em manter seu referencial
locutor, recusando-se ao anonimato. O segundo pressupõe a volta completa do ciclo
monologismo dialogismo monologismo dialogismo (...) sempre
inacabado e encadeado, que leva as palavras-próprias-alheias a tornarem-se
palavras próprias (com o apagamento da memória, a instauração do anonimato).
Da maneira como entendo, o discurso de autoridade não guarda lugar à
agência, nem à autoria. Encerra-se em si mesmo, passando a gerir discursos de
repetição, mecanizados e referenciados (um cronotopo da aventura, em que o
sujeito social transfere a voz a vozes outras, não assume responsabilidades e o ato
da vida, de tornar-se, fica relegado ao acaso).
Pode-se, porém, pensar em casos em que o discurso de autoridade é
tomado como voz legitimadora pelo locutor que, do ponto de vista das relações do
61

discurso com o discurso do outro, pode ser identificado pelo que Bakhtin define (em
“O discurso em Dostoiévski”) como discurso duplamente orientado, ou seja,
“aquele em que o autor inclui o discurso do outro em seu plano, em seu projeto
discursivo”, como esclarece Brait ([2009] 2013, p. 65).
Já o discurso que se torna internamente persuasivo abriu espaços para a
autoria (responsabilidade), marcando cronotopia real (não necessariamente na
praça pública bakhtiniana, no cronotopo biográfico), mas, de certa forma,
demanda/demandou agência (resposta à). Essa agência pode então ser do tipo que
se encontra dependente do acaso, dos acontecimentos que obrigam o sujeito a
reagir, responder; ou podem gerar espaços criativos, autorais – se vier repleta de
resposta a + resposta por, somando, por resultado: viver no cronotopo biográfico, da
exposição, do posicionamento, da mudança pela exotopia.
Acredito ser igualmente possível acrescentar ao campo da discussão
acerca dos processos de apropriação discursiva as considerações que faz Bakhtin
(2008; 2013) acerca do discurso polêmico, ao revisitar a questão da polêmica
aberta e da polêmica velada. Por se tratar de enunciado que questiona
abertamente o enunciado de outrem, a polêmica aberta parece-me ser de mais fácil
entendimento, levando-me a concentrar maior atenção na questão em torno da
polêmica velada.
Bakhtin informa que “as palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são
revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação,
isto é, tornam-se bivocais”, ao que completa mais adiante que “(...) o nosso discurso
da vida prática está cheio de palavras de outros” (2008, p. 219, ênfase adicionada).
O conceito de bivocalidade está, portanto, no cerne da apropriação
discursiva, pois, sendo bivocal, minhas palavras, ainda que apropriadas como palavras-
próprias, são fruto de um processo de monologização para dialogização, em que
passaram de palavras alheias a palavras-próprias-alheias e (eventualmente) palavras
próprias (quando há o apagamento da memória da voz do discurso apropriado). De
todo modo, são essas minhas palavras, de fato, lugar de embate em que há a fala do
outro, sua intencionalidade, seu contexto de produção, “revestidas” pelo “algo novo”,
que é minha própria voz, minha compreensão (à moda de réplica ativa, em meu
discurso interno). Esclarece Bakhtin que, em relação às palavras no discurso “da vida
prática”,
62

com algumas delas fundimos inteiramente a nossa voz,


esquecendo-nos de quem são; com outras, reforçamos as nossas
próprias palavras, aceitando aquelas como autorizadas para nós;
por último, revestimos as terceiras de nossas próprias intenções,
que são estranhas e hostis a elas (BAKHTIN, 2008, p. 219),

do que advém que essa bivocalidade pode, então, manifestar-se em um discurso


polêmico, derivado especialmente do terceiro caso a que se refere Bakhtin
(supracitado). A palavra alheia que integra meu discurso após tomar nuance de minha
nova interpretação, de ser “revestida” por minhas próprias “intenções”, pode tornar-se a
“palavra na polêmica velada, na réplica dialógica” (2008, p. 220).
Conquanto meu discurso, nessa condição, ainda tenha como foco meu
objeto, as apreciações que faço acerca de meu objeto de discurso são construídas de
maneira que “além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar
polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro
sobre o mesmo objeto” (BAKHTIN, 2008, p. 220). Ou seja, há um choque entre o meu
discurso e o discurso alheio acerca do mesmo objeto sendo que esse discurso do outro
“(...) não se reproduz, está sempre subentendido” (idem).
Diferenciando a paródia da polêmica velada, Bakhtin esclarece que, na
primeira, o discurso alheio, subentendido, é revestido pelo falante / autor (da paródia)
que usa o discurso de um outro como matéria prima, parodiada, sendo esse um registro
de que há, de fato, uma reprodução de um discurso de outrem.
Já no caso da polêmica velada, há intenção de repelir o discurso de um
outro, sendo que “(...) essa repelência não é menos relevante do que o próprio objeto
que se discute e determina o discurso do autor”. No capítulo quatro, ao analisar
enunciados que compartilham socialmente discursos acerca da interface educação e
tecnologias, darei exemplos que, a meu ver, representam esse tipo de polêmica velada.
Nessa direção, reforço o percurso teórico-analítico que me orienta nesta
jornada-pesquisa apoiada no entendimento de que
(...) o estudo fecundo do diálogo pressupõe, entretanto, uma
investigação mais profunda das formas usadas na citação do
discurso, uma vez essas formas refletem tendências básicas e
constantes da recepção ativa do discurso de outrem, e é essa
recepção, afinal, que é fundamental também para o diálogo
(BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, [1929] 2014, p. 152).
63

No capítulo 04, ao (re)ler dialogicamente os enunciados construídos em


comunicação discursiva entre mim e o professor-participante, retomarei os conceitos
e discussões até aqui traçados, de modo a me aventurar na busca por esse “estudo
fecundo do diálogo” a que se referiu Bakhtin. Por ora, dedico mais um tanto de
espaço às teorias que orientam minha visão de educação linguística, tecnologia,
sociedade e suas interfaces.

2.2. Educação, tecnologias e sociedade.

Falar em educação linguística – aliando-a ao processo de ensino e


aprendizagem –, em uma língua estrangeira na Educação Básica não é novidade
alguma no campo de estudo em que se insere este trabalho. No Brasil, os
Parâmetros Curriculares Nacionais em Língua Estrangeira (PCNs de LE)14,
publicados em 1998, já apontavam que “a aprendizagem de uma LE é um direito do
cidadão e sua escolha e inclusão no currículo escolar deve ser pautada, “entre
outros fatores, pela função que desempenha na sociedade” ”(BRASIL,1998, p. 20),
apud AZZARI, 2013). O documento já previa o papel do engajamento discursivo em
língua estrangeira como formativo e constitutivo do caráter de cidadania e
participação social, através do engajamento em discursos outros em que o código
linguístico (enquanto estrutura abstrata – força centrípeta) é requisito para a
constituição de sentidos socialmente compartilhados e construídos.
Mas outro documento oficial, e que também ainda é referência para o
tema da educação em língua estrangeira, são as OCEM-LE15 (Orientações
Curriculares para o Ensino Médio – Línguas Estrangeiras). Publicadas em 2006, as
OCEM-LE reforçam o olhar voltado para o papel da educação em língua estrangeira
com vista ao exercício e a formação para a cidadania.
Orientadas por uma visão sócio-histórica e interativista, as OCEM-LE
destacam o lugar da crítica na educação linguística, abordando o letramento em LE
como um dos caminhos para o engajamento em práticas sociais
contemporaneamente situadas em um quadro de sociedade(s) globalizada(s), sem
14
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Estrangeira.
Brasília: MEC, 1998.
15
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares Para o Ensino
Médio: linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, DF: SEB/MEC, 2006.
64

perder-se de vista as relações globo-locais e nem as reestruturações /


reconfigurações discursivas e nas comunicações sociais promovidas pelas TDICs
(AZZARI, 2015).
O tema é, de fato, foco de diversos e múltiplos trabalhos no campo de
investigação da Linguística Aplicada (ROCHA, 2010; ROCHA; MACIEL; 2013;
AZZARI, 2013; 2015, para citar apenas alguns poucos dentre muitos outros que
deixo de elencar por não haver espaço neste texto).

Assim como Souza (2011), acredito que o papel do professor de inglês


neste mundo contemporâneo, a que o autor chama de “rizomático” (SOUZA, 2011,
p.282, referindo-se à metáfora sugerida por Deleuze e Guattari), tenha mudado.
Recai sobre esse professor a responsabilidade de (re)pensar seu lugar enquanto
educador. Essa importante faceta de sua atuação profissional requer mover a
discussão sobre o ensino de línguas para além da preocupação exclusiva com o
preparo do professor apenas para o uso de técnicas, procedimentos e métodos.
Ainda nessa mesma direção, Rocha e Maciel (2015) reforçam a ideia de
(outra) agência nos processos educacionais, apontando em direção às relações
entre o conhecimento e o poder. Com apoio em Apple (2010) os autores retomam a
importância do olhar orientado pelo viés da crítica, que permite evidenciar “relações
sincrônicas e diacrônicas contraditórias, entre conhecimento e o poder, entre o
estado e a educação e entre a sociedade civil e o imaginário político” (ROCHA;
MACIEL, 2013, p.13). Essas relações, conforme advogam esses autores, ainda
carecem de maior questionamento e destaque no âmbito específico da literatura
voltada para o ensino de línguas.
É preciso, portanto, (re)ver os próprios objetivos da educação. Por
conseguinte, ao lado de Biesta (2005), inquieto-me quando a questão é discutir
educação linguística, especificamente neste estudo, em língua inglesa
(ensinada/aprendida como língua estrangeira, no âmbito da educação básica e, em
especial neste caso, a pública).
Encontro apoio nesse estudioso quando afirma que “a pedagogia crítica
tem nos ajudado a ver que não há emancipação individual sem emancipação social”,
o que me leva a pensar como o autor que aponta que “o objetivo supremo da
educação é a autonomia racional” (BIESTA, 2005, p. 55, ênfase adicionada). Por
conseguinte, “adaptar-se” às tecnologias digitais e às práticas sociais que
65

em/através delas se realizam, só terá significância, dentro da educação formal, se


representar a construção de espaços para a agência, autoria e (re) significação do
sujeito social; seu (re)posicionamento em cronotopo, na comunicação discursiva.
Nessa direção, essa é uma noção de autonomia que parece ter se
aproximado muito, por exemplo, daquela proposta pelo educador Paulo Freire para
quem, como informa Zatti (2007), a autonomia está intrinsecamente conectada à
noção de liberdade (especialmente em relação às questões da opressão social) e às
relações do homem com a história e a sociedade. Mas como aponta Zatti
hoje sabemos que não podemos pensar uma sociedade e
indivíduos que se fazem autonomamente a partir de uma
racionalidade pura, e nem pensar uma autonomia absoluta que
é garantida pela racionalidade. Freire sabe disso, mas também
reconhece a importância da racionalidade (...) O educador
brasileiro usa a definição que Popper dá à racionalidade ou
racionalismo, (...) segundo o qual racionalidade é a consciência
das próprias limitações, a modéstia intelectual dos que sabem
quantas vezes erram e o quanto dependem dos outros até para
esse conhecimento (cf. idem). Ou seja, não é uma
racionalidade autossuficiente, é uma racionalidade que (...) se
coloca em atitude de quem não sabe tudo e muito tem ainda a
aprender. (ZATTI, 2007, p.65)

A educação parece ter herdado a noção da autonomia na aprendizagem


da ideia de autonomia de bases iluministas e, mais especificamente, na maneira
como foi rediscutida/ contraposta àquela por Immanuel Kant que foi, segundo Zatti,
“quem definiu o conceito de autonomia na modernidade e fez dele um conceito
central em sua teoria” (2007, p.10). A ideia de um aprendiz autônomo é, assim,
retomada com grande interesse pela ideologia neoliberalista, como discute Selwyn
(2014 – como eu comentarei mais adiante). No entanto, a autonomia permeada pela
ideologia neoliberalista é associada ao papel das (novas) tecnologias na educação a
guisa de instrumento para uma busca voluntária e individualizada do conhecimento,
do autoaprimoramento, orientado para e por uma economia de mercado. A questão
é que, sob o olhar neoliberalista, a autonomia toma caráter diferente daquele a que
se refere Biesta. Alias, concordo com Zatti quando sugere que “hoje o neoliberalismo
é algo que nega a autonomia, na medida em que promove uma crescente
desigualdade social” (2007, p. 48). Conquanto discursos neoliberalistas orientem
para um olhar para a educação como processo centrado no aprendiz e em seu papel
na própria aprendizagem, a “autonomia” a que se remete é oposta àquela sugerida
66

por abordagens fundamentadas na educação crítica e de bases dialógicas e acaba a


promover a desigualdade, reforçando a ideia de meritocracia: quem tem mais
vontade, que “corre atrás”, “se esforça”, aprende mais e conquista melhor lugar no
mercado de trabalho. Uma “ditadura de mercado”, como identificada por Freire e
apontada por Zatti (2007, p.48). Adiante, neste mesmo capítulo, retornarei a esta
questão.
Em tempos de TDICs os debates e pesquisas têm se voltado, vias de
regra, para tópicos tais como: a formação (e instrumentalização) docente e discente;
os papeis de professores e alunos/alunas diante dos processos de ensino e
aprendizagem; novas formas e meios de produção, acesso e
divulgação/compartilhamento de conhecimentos e os lugares/formas/tempos da sala
de aula contemporânea, por exemplo. Conquanto eu acate que todos esses sejam
aspectos importantes e cruciais nas questões educativas, assim como Biesta
entendo que “(...) em sociedades democráticas deveria haver uma discussão
constante e em andamento acerca dos propósitos da educação – tanto no que diz
respeito à educação pública quanto à privada” (2010, p. 19).
Nessa direção, Biesta aponta que a questão da qualificação é central
nos objetivos educacionais ressaltando, porém, que tal ideia diga respeito não
somente a “conhecimentos, habilidades e compreensões”, mas, igualmente, aos
recursos de ordem crítica que permitam aos estudantes
(...) “fazer algo” – um “fazer” que possa abranger do mais
específico (tal qual o preparo para um trabalho ou profissão em
particular, ou o treinamento para uma habilidade ou técnica
específica), a uma perspectiva muito mais geral (tal qual a
introdução à cultura moderna, ou o ensino de habilidades para
a vida, etc.) (BIESTA, 2010, p. 20).

No entanto, expandindo o debate acerca dos propósitos da educação


formal, Biesta propõe dois outros eixos centrais a serem pensados e um deles é a
socialização (2010, p.20, itálico pelo autor), que diz respeito ao papel inclusivo que
a educação exerce na inserção do educando em determinadas ““ordens” sociais,
culturais e políticas” (idem) . Seguindo a abordagem discursiva que me orienta neste
estudo, acredito poder me referir a essa “ordem” por esferas ou campos (sociais,
culturais) que, numa visão bakhtiniana, são essencialmente político-ideologicamente
orientados.
67

Abordando o papel de “socialização” da educação formal, Biesta destaca


como determinadas instituições são mais propensas a dirigir o olhar a esse quesito,
dando maior ênfase à questão de “transmissão” de “valores e normas, em relação
à continuação de determinadas tradições culturais e/ou religiosas, ou com propósitos
de socialização profissional” (BIESTA, 2010, p. 20). O autor ressalva, no entanto,
que ainda que esse não seja o aspecto central dos propósitos educacionais em uma
determinada instituição, a “socialização” ainda sim será elemento constitutivo dos
processos educativos – o que pode ser atingido de maneira mais ou menos
desejável, de acordo com as orientações valorativas de cada instituição.
Diante disso, considero relevante retomar a ideia de signo ideológico
(BAKHTIN[VOLOCHÍNOV]; 1929-1930], 2014, p. 32) e do universo particular de
cada um desses signos, que é irremediavelmente interconectado a sentidos
socialmente compartilhados, a que se remete o signo, e que estão extrapostos a seu
universo particular.
Nessa direção, a “socialização”, enquanto elemento constitutivo dos
processos educativos, estará igualmente sempre fadada a remeter
educadores/educandos às valorações a que tal socialização se associa (por motivo
de forças centrípetas e centrífugas, constituintes de todo e qualquer signo, sempre
repleto de teor valorativo) – daí alguns dos aspectos advindos desse quesito da
educação serem desejáveis e outros nem tanto. Os cronotopos podem, neste caso,
implicar uma educação (e aqui me refiro, à maneira dialógica, tanto ao ponto de vista
da formação/ação docente quanto discente) que socialize para o ato de tornar-se (no
fazer/ser) ou para as repetições de discursos de autoridade (especialmente
tipificados em regras institucionais nas esferas supramencionadas).
Finalmente, o terceiro eixo/dimensão constitutivo dos objetivos da
educação sugerido por Biesta diz respeito à “subjetificação – o processo de tornar-
se um sujeito” (BIESTA, 2010, p. 21, itálico pelo autor e ênfase adicionada) que,
segundo esse pesquisador, apresenta-se conceitualmente em oposição à função da
socialização (muito embora as dimensões assumam caráter correlativo e
intercomposicional em sua proposta).
Antes de expandir essa dimensão sugerida pelo autor, no entanto,
necessito registrar aqui um dado desconforto que sinto, pessoalmente, diante do
termo “subjetificação” que, neste caso, é a tradução literal que encontro para
“subjectification”, como proposto por Biesta (2010, p.21). Quer seja na língua de
68

partida ou de chegada, o termo (e não a ideia que se desenvolve a partir dele!) não
me agrada, por me remeter a uma situação a priori, como se alunos/professores já
não fossem, não existissem, não atuassem, ou seja, não se constituíssem como
sujeitos antes de sua inserção em processos educativos formais (o que imagino não
tenha sido o propósito de Biesta inferir). De qualquer forma, justifico-me por
entender que “as palavras são de ninguém, em si mesmas nada valorizam, mas
podem abastecer qualquer falante e os juízos de valor mais diversos e
diametralmente opostos do falante”(BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p. 290). De
tal forma, dou espaço ao terceiro eixo proposto por Biesta.
A construção identitária / o processo de “tornar-se” estaria, de acordo com
esse estudioso, na medida em que, diante dos processos de inserção nas esferas
(“ordens”) o educando16 dá indícios, certo teor, de independência/distanciamento,
entre si (sujeito/ator) e a esfera (ordem) em que a educação o quer inserir. A
questão que permanece é: será possível pensar que toda forma de educação formal
irá sempre (e em certa medida) contribuir para esse processo de subjetificação?
Por suposto, os dois primeiros eixos (ou dimensões) apontados por Biesta
(qualificação e socialização) são mais facilmente identificáveis em quaisquer
processos educativos, enquanto o mesmo não pode ser dito, no entanto, em relação
à subjetificação.
Para tanto, Biesta (2010, p. 21) propõe que se mude o foco da discussão
das questões acerca das reais funções da educação para “questões sobre os
objetivos, fins e propósitos da educação”. De acordo com o pesquisador, ao mudar o
foco, questionaremos que condições para a manifestação de subjetividade(s) advêm
de determinadas configurações educacionais. Ou seja, questionar se uma
determinada estrutura educacional em que se inserem professor/aluno permite-lhes
(e de que forma) a subjetificação (no sentido proposto por Biesta), que pressupõe a
independência, a manifestação – em maior/menor grau –, do sujeito inserido nas
esferas socializadas nos processos educativos.
Entendo que a noção a que Biesta nomeia por “subjetificação” (enquanto
dimensão constituinte dos processos de educação em ambiente escolar/formal)
encontre respaldo no que Bakhtin discorre acerca do papel do ser no ato do
16
Embora Biesta (2010) apresente sua argumentação em relação à educação – educandos, refiro-me aqui a
metáfora exotópico-dialógicamente orientada de educador/educando, pois, da maneira como entendo, o
processo educativo é dialógico e tanto afeta quanto é afetado por essa relação. Além disso, meu olhar neste
estudo está direcionado para/por o professor-educador (de língua estrangeira, inglês).
69

conhecimento, i.e.; “(...) a complexidade do ato bilateral de conhecimento-


penetração” (BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p.394) – que penso poder equivaler
ao que Biesta nomeia como a interface dos eixos/dimensões qualificação
(conhecimento) e socialização (penetração).
Ainda nessa direção, Bakhtin expande a relação do ser e do seu ato de
conhecimento, ato de tornar-se, esclarecendo que “(...) o ativismo do cognoscente e
o ativismo do que se abre (configuração dialógica)”, estão em proporção com a
“capacidade de conhecer e a capacidade de exprimir a si mesmo” (idem). De tal
maneira, para Bakhtin, “o indivíduo não tem apenas meio ambiente, tem também
horizonte próprio”.
É nessa interação (dialógica) entre horizontes do cognoscente e o
cognoscível que se estabelece, portanto o ato do conhecimento (ou seja, o
processo educativo), i.e.: “(...) a expressão do individuo e a expressão da
coletividade, dos povos, das épocas, da própria história, com seus horizontes e
ambientes”, como esclarece Bakhtin ([1979;1992;2003] 2011, p.395). E, conforme
indica o estudioso, o objeto das ciências humanas (portanto, o da educação) “é o ser
expressivo e falante” (idem), o que leva Bakhtin a concluir que
o ser da totalidade, o ser da alma humana, o qual se abre
livremente ao nosso ato de conhecimento, não pode estar
tolhido por esse ato em nenhum momento substancial
([1979;1992;2003] 2011, p.395).

Dessa forma, acredito que seja possível estabelecer o seguinte paralelo


entre as considerações feitas por Bakhtin ([1979;1992;2003] 2011) quanto ao ato
conhecimento e Biesta (2010) quanto aos objetivos da educação da seguinte forma:

Bakhtin ([1979;1992;2003] 2011 Biesta (2010)


p.395).
Cc CONHECIMENTO Cc PENETRAÇÃO C QUALIFICAÇÃO Cc SOCIALIZAÇÃO

Cc Cc
ATO DE TORNAR-SE SUBJETIFICAÇÃO
(SER)

Gráfico 02: Visões de conhecimento e de educação


70

Expandindo o conceito de “subjetificação”, Biesta (2010, p.21) informa


que abordagens críticas da educação como as manifestadas por Freire e Giroux
(1970; 1981, apud Biesta, 2010) já (re)afirmaram a relevância da contribuição
constante e inerente, durante os processos educativos, para essa abertura ao ato do
conhecimento / de tornar-se (subjetificação), de forma a “permitir que os educandos
se tornem mais autônomos e independentes em seus pensamentos e ações” (idem).
Nesse sentido, com apoio em Monte Mór (2013, p.33), entendo que a crítica pode
ser definida como “capacidade de percepção que cidadãos têm sobre a sociedade
em que vivem” (MONTE MÓR, 2013, p.33).
Novamente, ressalto que estou me apropriando das instigações
apresentadas por Biesta (2005; 2010) de modo a entendê-las num contexto em que
a educação é compreendida como um ato (de conhecimento) exotópico e
dialogicamente estabelecido e, portanto, para mim, as considerações do autor aqui
elencadas poderiam ser pensadas tanto em relação aos educandos quanto aos
educadores (no caso específico desta minha jornada-pesquisa, o professor de
inglês).
A questão da “boa educação” para Biesta, portanto, resume-se num
questionamento plural e multifacetado, que envolve o entendimento, a inter-
referência e a conexão entre diferentes dimensões do saber e do viver. Essas
dimensões, portanto, estão interligadas entre si e influenciam-se mutuamente
(BIESTA, 2010, p. 22).
No campo da educação em língua estrangeira – inglês –, sob a
perspectiva dialógica e criticamente orientada, penso que seja premente colocar em
pauta, juntamente com as três dimensões / eixos da discussão supracitada, a
maneira como eu situo, cronotopicamente, a educação em língua inglesa nos dias
atuais.
Como apontam Lin e Luk (2013, p. 78 - 79), conquanto os processos de
globalização tipificados no final do século XX e início do século XXI possam ter
reforçado movimentos em que se impõem a de-/neocolonização sobre outrem,
igualmente reforçando ideologias neoliberalistas, também abriram portas para
movimentos de cooperação / colaboração / constituição de identidades
transnacionais. As autoras, apoiadas em Robertson (1995), informam que a
legitimação da língua inglesa nesses processos tanto permeia as cadeias
homogeneizantes e dominadoras decorrentes da globalização, quanto reforçam
71

questões particularizadas (de contextos locais) de culturas que se vêm orientadas


para “os desejos de uma indústria para um turismo global crescente, voltado ao
exótico e ao multicultural” (LIN; LUK, 2013, p. 79).
Nessa mesma direção, encontro o apoio em Canagarajah (2013, p. 154-
155) para estabelecer um conceito de “contexto” tal qual um construto “de diferentes
camadas”, que pode ser considerado “relativo”, “dinâmico”, “mediado” por diversos
fatores e que, em seu estado plural (i.e.; “contextos”), se sobrepõem uns aos outros.
Dessa forma, a ideia de “local e global” deixa de ser vista como uma relação
dialeticamente oposta, mas antes como uma inter-relação contextual em que há o
encontro de “realidades” diferentes e dialogicamente sobrepostas. Nesses
contextos, as relações de incompletude e alternância de poder marcam o diálogo, as
negociações para a construção de significados mediados pela língua(gem), neste
caso, a língua inglesa –, que, conquanto seja fator constituinte / constituído por uma
globalização homogeneizadora, também é afetada pelas inevitáveis hibridizações
que sofre ao contato com as línguas(gens) e realidades socioculturais locais, de
cada falante. Diante de tal relação cronotópica, Canagarajah (2007, p. 98) questiona
de que maneira seria possível pensar uma prática linguística em que se abordasse,
conjuntamente, “a agência humana, a contextualidade, a diversidade, a
indeterminação e a multimodalidade, como norma”.
Portanto, pensar a educação linguística criticamente orientada é acatar
pluralismos (nos âmbitos cultural e social) e adotar a alteridade como base para uma
postura crítica (LUKE, 2014), que tenta romper com visões hegemônicas de uma
língua inglesa monologizada, em favor de um olhar orientado diante do engajamento
de (inter)locutores em diálogos (no sentido bakhtiniano), em comunicações
discursivas.
No entanto, como aponta Kubota (2014, p. 02), o foco na pluralidade,
multiplicidade e hibridização da língua(gem) pode não ser tema recente, mas é na
sociedade correntemente permeada por um “multiculturalismo neoliberal” que esses
temas têm encontrado destaque no âmbito das pesquisas em Linguística Aplicada. A
visão de uma “virada multi/plural” em relação à interface cultura/língua(gem) ainda
apresenta desafios e carece de discussão face a paradigmas tradicionais e
normalizantes que ainda percebem no inglês uma língua dominante em ambientes
educacionais formais, em países não falantes dessa língua.
72

Ademais, como informa Rocha (2015, p. 35), é desejável pensar um


ensino de língua estrangeira na contemporaneidade que busque se afastar de
padrões hegemônicos e homogênicos que, por caracterizarem abordagens
fundamentadas em uma perspectiva colonial, tendem a silenciar diferenças e,
portanto, pluralismos, em favor de uma visão centralizadora da língua inglesa.
No entanto, adotar um olhar plurilinguístico em relação à educação em
língua inglesa em âmbito escolar ao que parece não é assim tão simples. Como
apontam Hélot e Laoire, “ainda há uma tendência, que permanece em grande parte
das salas de aula, de abordar o ensino e a aprendizagem de línguas como se o
monolinguismo fosse regra” (2011, s/p).
Nessa direção, voltando sua discussão para contextos de educação
multilíngue, os autores sugerem que a(s) língua(s) que já constituem o universo
discursivo dos estudantes costuma(m) ser silenciadas na sala de aula, sendo a
língua alvo privilegiada nessa aula à maneira monolíngue, de forma que “a língua
dos aprendizes costuma ser até mesmo tratada como um impedimento ao
desenvolvimento da linguagem da escolarização e à aprendizagem, em geral”
(idem). Hélot e Laoire (2011, s/p) justificam a predominância do viés monolíngue no
contexto escolar à reminiscência de “um século de história durante a qual boa parte
das escolas na Europa foram as principais agentes para a implementação de uma
ideologia centrada no conceito de uma nação / uma língua”.
Por conseguinte, para Hélot e Laoire (2011), a ideia de um nacionalismo
fundamentado em torno de “uma língua” seria um discurso fundador da ideia que
perpassa, até os dias presentes, as visões de educadores (e entendo que ao
mencionar “educadores” os autores também incluam aqueles responsáveis pela
elaboração e gestão de currículos, que determinam políticas educacionais) que
continuam a privilegiar o ensino da “língua da escola” (em nosso caso, essa seria o
português do Brasil). Essa visão tende a dirimir o valor educativo de línguas outras
enquanto “mídia para a aprendizagem”, emprestando às chamadas “línguas
estrangeiras” o papel de apenas mais uma disciplina escolar. Penso que, grosso
modo, este seja um bom retrato do que acontece no âmbito de ensino de inglês na
educação básica brasileira, ao menos tomando como ponto de vista minha própria
experiência como docente e/ou pesquisadora nesse contexto.
Eu mesma, por diversas vezes ao longo de minha vida profissional,
coloquei-me a favor dessa postura monolíngue em sala de aula de inglês (aliás,
73

como discutirei na análise, parece que, infelizmente, ainda carrego esse ranço
comigo). Lembro-me, inclusive que, certa vez, há uns doze anos, eu travei mesmo
um embate discursivo com uma aluna que tinha o hábito de tomar notas fazendo
uma espécie de “tradução” (muito pessoal) para o português de tudo o que eu falava
em inglês em aula, o que, no meu entender de então, seria prejudicial ao
desenvolvimento de sua aprendizagem da língua alvo – exatamente como Hélot e
Laoire (2011) sugerem ainda ser o caso de muitos educadores.
Repensando essa questão a partir de novas perspectivas, nos dias atuais
concordo com Hélot e Laoire quando afirmam que
as profundas mudanças em nossas sociedades em relação à
mobilidade e migração, a novas formas de e ao acesso ao
conhecimento e às grandes desigualdades que afetam países
pobres e ricos demandam que as escolas repensem sua
abordagem de aprendizagem, ao invés de forçar os estudantes
a se adaptarem a um sistema educacional baseado em uma
visão de mundo do século XIX (HÉLOT; LAOIRE, 2011, s/p.,
itálico pelos autores).

Adotando uma perspectiva dialógica, é possível pensar em uma


perspectiva pedagógica que vislumbre a educação em língua estrangeira à maneira
menos verticalizada, determinada por visões advindas de um currículo pensado de
modo descendente. Mas há que se notar que as políticas que determinam a escolha,
a implantação e as práticas curriculares em uma determinada escola nem sempre
são visibilizadas.
Como informam Hélot e Laoire, há paradigmas subjacentes à maneira
pela qual os docentes e os gestores escolares operam no ambiente escolar. Não
obstante esse possa ser um percurso justificado por regras e normas
declaradamente pré-fixadas, não raro fazeres escolares e escolarizados são
justificados por fatores implícitos, historicamente constituídos nas práticas daquele
ambiente escolar porque “sempre foi assim” (HÉLOT; LAOIRE, 2011, s/p.). Em
decorrência desse fato, esses autores sugerem ainda que a desestabilização de
políticas escolares (internas e/ou gerais, curriculares e suas práticas) tende a surgir
apenas quando situações inesperadas e sem precedentes “sacodem” os sistemas e
suas certezas, sua estabilidade e hierarquizações.
Traçando um paralelo com as teorizações de Bakhtin e seu Círculo,
acredito que seja possível pensar que, constituídas em e por discursos, essas
práticas e políticas estabilizadas tendem a se tornam um discurso monoglóssico,
74

que não permite o plurivocalismo. Silenciadas, as vozes de alunos, professores e da


comunidade não participam, não há heteroglossia discursiva. Somente quando um
fator estranho, sem precedentes, um acontecimento atípico se instaura nesse
contexto é que suas bases podem ser movidas em favor de um discurso
heteroglóssico, a fim de encontrar as respostas e soluções para esse novo e inédito
fator. É a desestabilização de velhas e ecoadas certezas em relação aos processos
educacionais que oportuniza a agência e a criatividade.
De acordo com Hélot e Laoire
ao discutir políticas linguísticas para a sala de aula multilíngue,
é preciso levar em conta (...) as complexas interrelações entre
as agendas global e local e até que ponto os atores locais
estão cientes de sua própria agência, ou preparados para se
tornarem agentes de mudanças engajados em contestar as
relações de poder em jogo (2011, s/p).

Apropriando-me da discussão que fazem os autores supracitados em


relação à sala de aula multilíngue, penso que o mesmo possa ser pensado em
relação à maneira como a aula de inglês, como disciplina de língua estrangeira, é
operada no contexto da educação básica que norteia esta pesquisa.
Discutindo a implantação de uma política que adote a perspectiva de uma
sala de aula multilíngue, Hélot e Laoire (2011) apontam para a necessidade de
acatar o potencial de intercâmbio sociocultural e identitário que essa perspectiva
abriga. De maneira geral, essa é uma abordagem que aponta em direção a bases de
ensino e aprendizagem de línguas concebidas à maneira horizontalizada, de forma
que as imposições curriculares cedem espaço aos conhecimentos, capacidades e
necessidades locais. Esse é um movimento em favor da legitimação (ao invés do
apagamento) das diversidades (de vozes, saberes, culturas, estratos sociais, enfim,
de toda a sorte) que acabam por apontar em direção ao que os autores chamam de
uma “Pedagogia do Possível”17, em que os recursos e diversidades locais são
mobilizados em favor da (co)construção de conhecimentos através da educação
linguística. Esse é um movimento gerado a partir da desestabilização, da busca por

17
Considero importante destacar que o conceito de “possível”, nesse contexto proposto por Helót e Laoire
(2011) em nada se aproxima de uma ideia iluminista de contentamento, de fazer aquilo que “se pode fazer;
que dá para fazer”. A ideia do possível, na orientação pedagógica proposta pelos autores e da qual esposo, tem
a ver com a desestruturação de políticas internas historicamente estabelecidas e que acatam fazeres
hierarquicamente impostos à maneira generalizantes, menosprezando as relações, necessidades, condições e
realidades locais – o que inclui pensar a educação linguística à maneira pluralista e dar espaço para o ato de
tornar-se (subjetificação), através da abertura à heteroglossia discursiva.
75

novos olhares para políticas escolares que resultem em práticas pedagógicas que
atendam a novas, e inesperadas, reconfigurações. De tal forma, uma Pedagogia do
Possível significaria adotar uma abordagem de educação linguística em que
as noções de ecologia e agência convidam os professores e
aprendizes a ver suas realidades sob uma nova perspectiva e
atuar nessa realidade: em outras palavras, responder a todas
as possibilidades e potencialidades em sala de aula,
construindo assim suas próprias políticas que sejam localmente
efetivas e empoderadoras (HÉLOT; LAOIRE, 2011, s/p.).

Trabalhar nessa perspectiva, portanto, requer uma interlocução com o


que postula Biesta (2010) em relação aos objetivos da educação. Requer também
agência e autoria discursiva. Logo, requer mudanças cronotópicas, posto que seja
preciso que o professor, agente nessa mudança pedagógica, esteja disposto a
mover-se à praça pública bakhtiniana. Esse (re)posicionamento requer, no entanto,
levar em conta que
nós não devemos nunca esquecer que as escolas são
microcosmos de nossas respectivas sociedades e elas não
somente refletem valores e normas sociais como também as
reproduzem. Porque as escolas atuam como agentes
reprodutivas de normas sociais, é difícil para os professores
implementarem pedagogias empoderadoras e criativas, que
desafiem os valores dominantes e as ideologias arraigadas
(HÉLOT; LAOIRE, 2011, s/p.).

Ao longo do capítulo quatro, a discussão supracitada será retomada no


decorrer da análise, pois penso que, ao apropriar-se de discursos que advogam em
favor da interface educação e tecnologias em seu contexto escolar, o professor
participante, ainda que talvez de forma inconsciente (ou não?) tenha dado passos
em direção à desestabilização dessas políticas internas (algumas normalizadoras e
declaradas, mas também as implícitas) em favor de uma pedagogia (fundamentada
no) do Possível.
Ademais, entendo que um dos fatores que tem fomentado os processos
globalizantes, mas também desestabilizadores de antigas políticas, práticas e
certezas, é o advento da propagação das TDICs e seu papel na reconfiguração
discursiva – à medida que essas tecnologias não somente permitam novos
meios/espaços para o estabelecimento das comunicações, como também
76

promovam o surgimento de gêneros outros; novas e redesenhadas práticas sociais e


discursos.
Por conseguinte, sua interface com as questões acerca dos processos
educativos tem sido alvo constante de pesquisa e estudo, provocando discussões
que vão desde a defesa veemente (e considerada por muitos, já tardia) da inserção
das TDICs nos ambientes escolarizados, até o questionamento de que forma tal
inserção poderia, de fato, constituir-se de acréscimo em tais processos.
Como informei na introdução deste trabalho, minha relação com o tema
“educação em língua estrangeira – tecnologia” tem igualmente passado por
reformulações e altos-e-baixos. A adoção de uma perspectiva crítica diante da
educação tem me levado a assumir a postura da desconfiança sistematizada e,
nessa direção, encontro apoio nas discussões oferecidas por dois autores quanto à
interface educação - tecnologias: Selwyn (2011; 2013; 2014) e Charlot ([2003] 2013).
Conquanto eu concorde com Gee e Hayes (2011, p. 102) quando afirmam
que “a mídia digital permite que amadores construam redes interativas entre si, para
produzir conhecimentos fora das instituições formais” e que esse novo modelo de
produção do conhecimento deva ser criticamente estudado a fim de promover a
discussão acerca do modo e meios pelos quais o conhecimento se constitui e é
constituído no âmbito da educação formal, tenho ainda cá alguns outros
questionamentos.
Ao lado de Charlot ([2003] 2013, p. 41) penso que seja imaturo imaginar
que “(...) se podem resolver problemas da educação por um investimento
informático”, posto que
(...) o valor pedagógico do instrumento informático é outro. Ele
possibilita descarregar o docente e o discente da parte mais
chata e menos inteligente do processo de ensino-
aprendizagem: a transmissão-memorização de um monte de
informações.

Por conseguinte, segundo esse estudioso, há maior tempo e espaço para


que se possa “(...) avaliar as informações, juntá-las de forma crítica e criativa, para
produzir sentido, responder a questionamentos, resolver problemas, etc.” (idem). A
esse olhar “tecnicista” voltado às questões da interface educação – tecnologias,
Charlot chama de “atualização da mistificação pedagógica”, cuja “pedra angular”,
segundo informa, é o “discurso sobre a natureza humana” que tem, vias de regra, se
sobressaído na sociedade, enquanto discurso anunciado, projetado, de autoridade
77

(jamais silenciado) e, em contra partida, silenciador de realidades e desigualdades


sociais.
O autor acrescenta que, ao invés de pensarmos uma sociedade
contemporânea que se paute na informação, poderíamos vislumbrá-la como uma
sociedade “do saber” ([2003] 2013, p. 41). Para esse autor, a educação vai além das
relações meramente cognitivas (a qual trata por “cerebrais”). Informa Charlot que, “a
educação é um processo antropológico, social, cultural complexo, que requer um
cérebro, obviamente, mas que ultrapassa amplamente a questão neurológica” (idem,
p. 40). Nessa direção, também afirma que “a educação é política” ([2003]2013,
p.35). A visão de Charlot vem ao encontro do que postulam Bakhtin e Biesta
(supramencionados) que informam a relação entre o ato da construção do
conhecimento e o lugar social que ocupam os discursos, constituídos e constituintes
em/desses processos, sempre repletos de ideologização.
Seguindo por esse caminho, estabeleço também interlocução com Selwyn
(2014) que me convida a “desconfiar da tecnologia” em sua interface com os
processos educativos.
Passando por diversos conceitos de aprendizagem, seus diferentes
matizes e perspectivas, Selwyn (2011) propõe responder o que é educação. De suas
observações, destaco a noção de que seja no conjunto tratado por “educação
formal” que normalmente são centralizadas as investigações, que tendem a
identificar a educação dentro de parâmetros que a sustentam em espaços
institucionalizados – muito embora também sejam encontrados estudos no campo
da educação informal, talvez com menor destaque que o primeiro. Ao final de suas
considerações acerca de diferentes visões que norteiam os conceitos de
aprendizagem, Selwyn oferece que “(...) grosso modo, então, o termo “educação”
pode ser melhor entendido como as condições e preparações em que a
aprendizagem acontece”, ao que completa que
(...) é importante destacar que muito do que acontece em um
ambiente educacional tem pouco ou nada a ver com a
aprendizagem em si. Geralmente, os aspectos mais
significativos da educação recaem além da instância imediata
do indivíduo engajado na aprendizagem. Ao invés disso, é
78

importante também considerar o que pode ser nomeado por


“esfera18” social da educação (SELWYN, 2011, p. 05-06).

A explicação ao conceito de educação proposta por Selwyn (2011)


encaminha a noção de que é preciso estudar a educação e a tecnologia sob uma
perspectiva social, levando em conta todas as camadas, condições e estratificações
que dela decorrem. Seguindo por essa direção, o autor aponta por definição básica
a ideia de que tecnologia pode ser entendida, com certo consenso, como “o
processo pelo qual os humanos modificam a natureza de modo a atender suas
necessidades e desejos” (2011, p. 06), o que vem sendo feito desde os primórdios
da humanidade, através das ferramentas e artefatos construídos pelo homem
primitivo e que possibilitaram, desde sempre, sua atuação e relação com o meio
natural, bem como a autopreservação.
Segundo Selwyn, é dessa noção de melhoramento que advém a ideia de
que uma tecnologia mais moderna tem, por função basal, “tornar as coisas
melhores”. Selwyn sustenta sua afirmação apoiado em Volti (1992, p. 4, apud
Selwyn, 2011, p. 07) que informa que “(...) [as] tecnologias são desenvolvidas e
aplicadas de modo que se possa fazer coisas que antes não eram passíveis de ser
feitas, ou de modo que possamos torná-las mais baratas, rápidas e fáceis”.
Nessa mesma direção, é possível pensar que novas tecnologias também
podem gerar novas necessidades, ou seja, elas próprias podem criar problemas
e/ou suscitar carências que necessitem de (outras) tecnologias para serem
atendidas. Como ilustração, há a polêmica sobre a utilização de aparelhos celulares
(tecnologias digitais móveis) em ambiente escolar. Conquanto apontem para a
disponibilização de recursos de (suposta) interatividade e acessibilidade, ou mesmo
direcionem o que alguns consideram ser um senso de maior autonomia na
aprendizagem, a presença desses aparelhos em sala de aula pode implicar a
necessidade de expansão da rede de conexão sem fio e a utilização de dados via
internet, por exemplo.
A esse respeito, durante o início desta pesquisa, eu me deparei com
semelhante situação na escola em que colaborava com o professor (participante):
perguntei à coordenação se haveria a possibilidade de trabalharmos com recursos

18
O termo usado pelo autor em seu texto escrito em inglês é “milieu” (que, aliás, vem entre aspas). Dentre os
sentidos possíveis para o termo em português encontra-se: cercanias; arredores; vizinhança; ambiente; meio e
esfera. Escolhi dentre esses o que percebi dar conta melhor neste contexto.
79

mediados por celulares e obtive uma resposta negativa. A justificativa para a não
utilização dessa tecnologia era exatamente a questão da acessibilidade aos
ambientes em rede (síncronos): segundo a coordenação, o acesso a dados via
internet na escola dependia da redistribuição da rede sem fio (já que muitos alunos,
mais carentes, não tinham planos telefônicos com acesso a dados móveis, por
exemplo), o que não poderia ser oferecido pela escola.
A proibição não decorria de fatores como questões disciplinares ou
possível desvio da atenção dos alunos, mas sim do fato de que o tráfego de dados
via internet da escola era propiciado e monitorado pela secretaria da educação do
estado, via regional. Segundo informou a coordenação, quando a escola tentou
liberar a rede sem fio para que os alunos pudessem realizar uma atividade mediada
por celulares, sugerida no caderno do aluno, fornecido pela própria secretaria de
estado, houve sobrecarga no tráfego de dados, causando “represálias” e prejuízos à
gestão escolar que não podia, por exemplo, realizar tarefas administrativas que
dependiam do sincronismo da internet.
Como esclarece Selwyn, assumir que cabe sempre, por função básica, às
tecnologias “tornar as coisas melhores” é, segundo esse pesquisador, “inferir que o
termo “tecnologia” se refere a mais que somente ferramentas materiais e artefatos
que são usados para fazer alguma coisa” (2011, p. 07). Essa relação pode,
inclusive, ter suas raízes na origem grega do termo “tecnologia”, que permite traduzir
seu radical “techne” por “habilidade, arte ou artefato”. Já seu sufixo “-logía”, que
pode assumir, entre outros, o sentido de “conhecimento”, sugere, como aponta
Selwyn (2011, p.07) que o termo “tecnologia” tenha desde sempre sido associado
“aos processos e práticas de fazer coisas, entender coisas e desenvolver
conhecimento”.
Para Verazto et al (2008), é importante manter-se em mente a interface
da história da tecnologia com os contextos sócio-culturais e o desenvolvimento da
sociedade humana. Apontam esses autores, a palavra grega techné “(...) consistia
muito mais em alterar o mundo de forma prática do que compreendê-lo” (2008, p.
61), daí a proximidade entre o conceito de tecnologia e a noção de técnica que,
segundo informam, advém do mesmo termo grego, sendo que às técnicas,
historicamente, era dedicada a tarefa central de encontrar meios de transformação,
modificações no/para o mundo, (n)a sociedade. Assim, registrar historicamente o
conceito de tecnologia é notar-lhe intimamente “registrada com a história das
80

técnicas, com a história do trabalho e da produção do ser humano”, sendo que há


uma “tênue linha que separa a técnica da tecnologia” (VERAZTO et al, 2008, p. 62).
No ímpeto de descrever a história das tecnologias, os autores ressaltam a
importância dos contextos e circunstâncias sociais que permearam tal
encadeamento, ora favorecendo, ora dificultando o emprego das forças humanas em
favor do desenvolvimento de tecnologias que aprimorassem a relação do homem
com seu próprio mundo.
Retomando a história desde os primórdios da humanidade, Verazto et al
(2008) delineiam a intrínseca relação entre o desenvolvimento de técnicas, a partir
da criação de instrumentos; o despertar da sabedoria humana e as mudanças que
esses movimentos geram na sociedade, alterando-a permanentemente, a partir do
desenvolvimento e da implantação dessas novas técnicas. Desde os primeiros
ossos extraídos de carcaças de animais, apropriados pelos Neandertais, a
fabricação de instrumentos seria, então, a mola-propulsora para o surgimento de
novas técnicas. Esses primeiros instrumentos, feitos a partir de ossos e pedras,
tornam-se então, segundo Verazto et al, os “primeiros artefatos de um instrumento
tecnológico, pois representam a organização da comunidade para cumprir um
propósito particular: a sobrevivência poderia ser garantida através da interferência
do hominídeo no meio” (2008, p. 64). À medida que o homem evolui biologicamente,
sua produção tecnológica torna-se inerente e própria a si. De tal forma que podemos
assim “(...) entender o processo criador da humanidade e, essencialmente,
compreendermos melhor a tecnologia como uma fonte de conhecimentos próprios,
em contínua transmutação e com novos saberes sendo agregados a cada dia, de
forma cada vez mais veloz e dinâmica” (VERAZTO et al, 2008, p. 66).
Conceituar tecnologia, nessa perspectiva, pressupõe acatar que suas
bases encontram-se fundadas em uma área singular do conhecimento, em que
estão também manifestados aspectos culturais da sociedade em que está inserida e
dentro da qual é desenvolvida. Como sugerem Verazto et al
a tecnologia exige um profundo conhecimento do por que e do
como seus objetivos são alcançados, se constituindo em um
conjunto de atividades humanas associadas a um sistema de
símbolos, instrumentos e máquinas e, assim, visa a construção
de obras e a fabricação de produtos, segundo teorias, métodos
e processos da ciência moderna (2008, p. 67, ênfase pelos
autores).
81

Um risco a que se está sujeito, ainda segundo os pesquisadores


supracitados, é o de aplicarmos uma visão utilitarista e/ou instrumentalista à
tecnologia, igualando-a, assim, ao conceito de técnica, o que pode acontecer
quando nos concentramos somente nos fins a que tal tecnologia pode ser
submetida, importando-nos exclusivamente com as suas possíveis aplicações.
Saber os por quês, o como, ou seja, atentar-se às condições de produção de dada
tecnologia, expande as perspectivas para que não as tratemos meramente como
técnicas e instrumentos desenvolvidos com vistas à aplicabilidade em determinadas
tarefas (VERAZTO et al, 2008).
De toda maneira, torna-se viável entender como tem sido construído,
difundido e acatado o discurso que não somente advoga a inerência da interface
educação-tecnologia como também pressupõe, a priori, que tal relação ofereça as
tão aclamadas e necessárias mudanças que se pretende nos processos educativos.
Quando não há apagamento do discurso precursor, quando se mantém a memória
viva de sua(s) voz(es), como fora um fato dado e certo (discurso de autoridade), não
parece ser possível, desejável ou necessário questionar tal discurso, certo? Bem, a
resposta, ao que parece, deveria ser: “errado”. É isso que Selwyn (2014) propõem
que seu leitor faça ao assumir uma posição de desconfiança diante das aclamadas
modificações e melhorias propostas pelas (novas) tecnologias em sua interface
educacional.
No caminho para assumir uma posição de desconfiança diante das
chamadas “tecnologias educacionais”, Selwyn (2014) aponta que esse não é um
conceito que se configura a maneira ingênua, ou seja, não é exatamente aquilo que
parece ser. Ou ainda, como apontam Verazto et al, não se trata de um objeto
permeado pela neutralidade, o que “seria o mesmo que dizer que a tecnologia está
isenta de qualquer tipo de interesse particular tanto em sua concepção e
desenvolvimento como nos resultados finais” (VERAZTO et al, 2008, p. 69).
Como quaisquer outros fatores, discursivamente organizados, que se
inclua em relação dialógica nos processos de ser e conhecer e entendidos sob a
ótica bakhtiniana, as tecnologias voltadas aos processos educativos também são
repletas de ideologias – signos ideologicamente prenhes em que subjazem ideias
extralocalizadas. Ou seja, como sugere Selwyn em suas provocações, as
tecnologias voltadas à educação não são “forças neutras para o bem que
simplesmente precisam ser usadas à maneira “certa” ou “melhor” para que se
82

colham seus dividendos” (SELWYN, 2014, p. 16). O que implica, segundo o autor,
orientar o olhar diante dessas tecnologias de modo a “tomá-las por aquilo que são,
enquanto se tenta imaginar as tecnologias digitais por aquilo que poderiam
ser/tornar-se” (idem, p. 17). Do que advém que é preciso cautela a fim de que não
se assuma uma postura de prontamente associar as tecnologias digitais a discursos
que promulgam seu papel em transformações educacionais em relação de causa e
consequência, imediatista e simplista.
Selwyn (2014, p.20-24) traça diferentes concepções para o construto
ideologia, resenhando o conceito a partir de diferentes visões. Em todas as vertentes
que menciona, porém, fica clara também a noção de conjunto de ideias
subjacentes/inerentes que perpassam e incorporam-se em todos os campos de ação
da vida humana.
Das ideologias predominantes na contemporaneidade, Selwyn (2014)
destaca o neoliberalismo que permeia a chamada “nova economia”. Nesse universo
discursivo, prevalecem as ideias de individualismo / individualização (geralmente
associadas às pedagogias recentes que propõem o protagonismo discente, a
inversão da sala de aula, etc.) e os valores e interesses promovedores da “nova
economia” (globalizada) e a orientação neoliberal. Dentre as proposições desta
última, está a ideia de que não se “descreve o mundo como o é, mas o mundo como
o deveria ser” (CLARKE, 2005, p. 58, apud SELWYN, 2014).
Giroux (2004, p. 494) informa que um dos principais fatores constitutivos
da noção hegemônica difundida pela ideologia neoliberalista é a orientação da visão
da educação para valores e identidades exclusivamente voltados a atender questões
de mercado, ou seja, essa é uma orientação que visa produzir e legitimar a
formação de estudantes que atendam necessidades mercadologicamente ditadas
por setores da sociedade tais quais o de prestação de serviços. Ainda segundo esse
autor, a ideologia neoliberalista desvia os princípios e objetivos da educação do
desenvolvimento de cidadão críticos e criativos ao adotar o fundamentalismo do
livre-mercado como força propulsora de questões político-econômicas, isentando
parcialmente o estado de seu papel em questões fundamentais como os
investimentos na educação pública e em questões de desenvolvimento social,
transferindo ao indivíduo a responsabilidade pelas transformações de que carece a
sociedade em que vive.
83

No campo educacional, essa visão tem sido reforçada por ideias


(infelizmente, recentemente retomadas e difundidas por alguns políticos em nosso
país...) de que se deve separar política e educação (como se fora isso possível,
dada a natureza política intrínseca da língua(gem!), extenuando tensões entre os
valores democráticos e os valores mercadológicos (GIROUX, 2004). Uma educação
que distancie o discente da crítica, voltando-o apenas a uma formação
instrumentalista (em que se prioriza tecnologia(s) consideradas “instrumentos” mais
“úteis” ou necessários para a vida do trabalho, às necessidades do mercado), é um
atentado ao direito ao exercício da democracia e à formação cidadã. Um exemplo
recente dessa visão aplicada às vias de fato pôde ser acompanhado nos noticiários
que divulgaram o pedido de um secretário da educação do Japão para que as
universidades abolissem os cursos da área de humanidades, favorecendo a
formação tecnicista de trabalhadores especializados nas “tecnologias” de que
carecia seu mercado interno, em decorrência de crise econômica.19
Ao correlacionar a visão neoliberalista com os cronotopos bakhtinianos
posso pensar que essa orientação ideológica pressupõe um sujeito que não viva seu
tempo biográfico e, portanto, não vá à praça pública, mas, ao contrário, viva no
cronotopo (analogamente pensado como Bakhtin o propôs para o romance) entre o
tempo real e o da aventura. De tal forma, a agência (e, portanto, também a autoria
discursiva) fica limitada à instância em que, eventualmente, o “acaso” e/ou “o
destino” venha(m) provocar mudanças que são somente reações (e não ações) às
situações vivenciadas involuntariamente. Para tanto, a partir de tal mentalidade, o
sujeito está sempre sendo movido a estudar a fim de preparar-se para a
eventualidade de “ter que” intervir futuramente, num sistema fundamentado nos
valores da meritocracia, essencialmente individualista.
Seguindo essa visão neoliberal e tecnicista, que vislumbra nas tecnologias um
caráter instrumentalista, acredito poder relacionar algumas das tecnologias digitais
disponíveis para a educação linguística em língua estrangeira, tal qual sites para a
prática de exercícios estruturais (que focam a língua por seus aspectos subjacentes,
enquanto código) a guisa de oferecer “novas maneiras” de aprender e ensinar. Um

19
Fonte 1: http://noticias.terra.com.br/educacao/japao-pede-para-que-universidades-cancelem-cursos-de-
humanas,6ebd46a6261af0d724368316dde58525p9j1qquz.html. Acesso em 16 de set de 2015. Fonte 2:
http://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/economia.html. Acesso em 16 de set de 2015.
84

exemplo de tais tecnologias educacionais é o site “Duolingo”20, que informa em sua


página principal se tratar da “(...) nova melhor maneira de aprender um idioma”
(enunciando o discurso de autoridade que associa diretamente tecnologia à técnica
e a melhoramento). Grosso modo, essa é uma tecnologia síncrona e gratuita que
disponibiliza atividades para o estudo de quatro línguas diferentes (inglês, espanhol,
francês e alemão) usando, entre outros, um princípio básico de jogos (gameficação),
organizada à maneira comportamentalista e apoiada em traduções. Retomarei essa
tecnologia no capítulo quatro, posto que tenha surgido nos diálogos estabelecidos
ao longo da geração de dados desta jornada-pesquisa, nos fazeres do professor-
participante.
Em suma, penso que seja sensato acatar a sugestão de Selwyn para que
possamos
considerar como [ess]as ideologias dominantes podem
corresponder ao domínio específico da tecnologia educacional.
Logo, embora não possa parecer imediatamente óbvio,
precisamos explorar agora a ideia de que as tecnologias
digitais crescentemente em uso pela educação são igualmente
melhor compreendidas enquanto ideologias em suas
características e forma – ou seja, moldadas por conjuntos de
valores e interesses dominantes e, portanto, agindo (ainda que
sutilmente) de modo a perpetuar o domínio desses valores e
interesses (SELWYN, 2014, p. 31).

Seguindo por essa direção, Selwyn (2014) alerta para o fato de que
apropriar-se do discurso que outorga às tecnologias educacionais certezas e
absolutismos no sentido de melhoramento dos processos educativos é assumir,
igual e concomitantemente, as ideias que as subjazem – suas ideologias –, que
denotam o que se entende como “aprendizagem ‘boa’ ou ‘desejável’” (2014, p. 33).
De tal forma, o exercício da desconfiança diante de tal apropriação permitiria, ao
educador, revisitar essas ideias, de modo a confrontá-las com seus (próprios)
objetivos e contextos educacionais, de modo a tornar esse(s) discurso(s) de
autoridade, discursos internamente persuasivos. Nesse sentido, seria possível
igualmente confrontar a ideia generalizante de que as tecnologias digitais seriam
pura e simplesmente “uma forma de correção pedagógica, ou seja, um meio para se
introduzir valores de aprendizagem e filosofias específicos em ambientes
educacionais formais” (SELWYN, 2014, p.33).

20
O site pode ser acessado no endereço https://pt.duolingo.com/ (último acesso em 21 out 2016).
85

Muito embora a discussão que ofereci até este momento em relação à


abordagem que considero importante adotar, ao tratar da interface educação
linguística em inglês e tecnologias, esteja orientada pelo olhar da desconfiança, é
preciso estabelecer que isso não queira dizer que eu me posiciono,
necessariamente e por princípio, contrariamente a essa interface.
O mesmo olhar crítico que advogo ser constitutivo de processos
educativos e que permeia a noção de vida com atuação no cronotopo cotidiano,
leva-me a adotar essa postura de desconfiança, como sugere Selwyn (2014), em
oposição à minha inicial atitude de fiel e cega paixão em relação ao tema (o que
registrei na Introdução a este texto).
No entanto, como também já afirmei anteriormente, esta jornada-
pesquisa, dialogicamente pensada e empreendida, consistiu de processos
exotópicos em que, mediante o exercício da desconfiança e especialmente face aos
abismos encontrados no contexto em que os dados foram gerados, mais uma vez
me vi diante da modalização de conceitos e a reavaliação de meus próprios - alheios
discursos, posto que as forças locais, por vezes, encontram caminhos e modos para
a construção de pontes – ideia que desenvolverei no capítulo final.
Penso que, neste ponto do texto, seja relevante retomar os objetivos
norteadores desta investigação.
A jornada-pesquisa em me engajei teve por propósito investigar – por
meio de uma análise de discursos fundamentada no dialogismo –, as implicações,
possibilidades, abismos e possíveis pontes emergentes durante os processos em
que tecnologias digitais fizeram parte dos fazeres de um professor de inglês em uma
escola de educação básica pública, sendo que todo o processo, inclusive o de
geração de dados, foi pensado à maneira dialógica.
Por conseguinte, minha participação enquanto pesquisadora não foi a de
uma passiva observadora, mas, antes, de uma participante ativa e replicante nos
diálogos que estabelecemos o professor e eu, antes, durante e depois de várias de
suas aulas de inglês, ao longo de um semestre letivo. Todos esses momentos foram
plenos de ideias e ações orientadas pelo desejo do professor, mas também o meu,
de pensar sim “uma melhor” maneira para lidar com questões pedagogias práticas;
recursos e currículo (além das demais demandas que compõem a educação básica
formal), sempre a partir dos discursos (quer sejam apropriados à maneira autoritária
86

ou internamente persuasiva) relacionados à interface tecnologias digitais – educação


linguística na escola pública.
Não por acaso desejei navegar por esse universo discursivo. Meu
interesse de pesquisa nasceu, de fato, de minhas percepções pessoais em relação
às TDICs e as possibilidades que poderiam oferecer aos processos educativos – a
partir das perspectivas de educação e tecnologia citadas anteriormente, neste
mesmo capítulo. Esse é um fator que merece ser visibilizado.
Em verdade, como indiquei na Introdução, o primeiro diálogo estabelecido
entre o professor-participante e mim aconteceu durante o encontro em uma oficina
que ministrei e que teve por foco elencar possibilidades de trabalho com múltiplas
TDICs em aulas de inglês. Minha postura nessa direção pode ter sido afetada pela
suspeita, mas permanece interessada.
Quer seja como professora, tradutora e/ou pesquisadora, agrada-me
poder recorrer a essas tecnologias (especialmente as digitais síncronas) em minhas
próprias práticas profissionais (assim como também nas pessoais) e, sempre que
possível e/ou relevante, lanço mão de muitas delas. Não o faço, porém, por default,
mas porque nelas posso me apoiar, uma vez que trabalho em uma instituição em
que os recursos tecnológicos me são disponibilizados e, também, quando encontro
nelas um ou ambos dos seguintes aspectos: a) como afirma Charlot (2013) muitas
vezes essas tecnologias são grande facilitadores de um tanto de meu trabalho
docente e; b) encontro nelas recursos para construir pontes (noção-metáfora que
expandirei na análise dos dados).
Concordo com Androutsopoulos e Juffermans (2014) quando apontam
que as mídias e meios digitais não devem ser considerados apenas por
materialidades e aparatos, mas, também, são as “qualidades renovadas do que quer
que elas estejam mediando, bem como seu lugar nas práticas culturais diárias”.
Ademais, há que se levar em conta o fato de que essas tecnologias
podem facilitar, entre outros aspectos, a “participação em discursos culturais e
políticos em grande-escala” (ANDROUTSOPOULOS; JUFFERMANS, 2014, p. 2).
Sobremaneira, a presença das TDICs na educação em língua estrangeira, à maneira
criticamente orientada, deveria representar mais que o emprego de técnicas
renovadas a fim de perpetuar tarefas pedagógico-didáticas tradicionais, tais quais
atividades de compreensão oral para o preenchimento de lacunas e exercícios
87

mecanicistas com foco na gramática normativa (geralmente escolhida a partir de um


modelo hegemônico e dominante).
Sob o olhar criticamente orientado, é possível pensar “os textos –
impressos e multimodais, em papel ou digitais – e seus códigos e discursos, como
tecnologias humanas para representar e remodelar mundos possíveis”, como
sugerem Luke e Dooley (2009, p.01), noção que expande sobremaneira o papel da
presença de TDICs na educação. Nesse viés, a educação é promotora de
“mudanças sociais, diversidade cultural, equidade econômica e a participação
política cidadã” (LUKE; FREEBODY, 1997, p. 1).
Nessa direção, situo essas (novas) tecnologias nos processos
educacionais em língua inglesa orientada por um viés crítico que, como esclarece
Luke (2011) “se refere ao uso de tecnologias de comunicação impressa e por outros
meios, para analisar, criticar e transformar as normas, regras sistematizadas e
práticas governamentais de campos sociais pertinentes às rotinas diárias” (LUKE
2004, apud LUKE 2011, p. 2).
De tal forma, quando tomadas como representações de “materialidades”
ideológicas (BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p. 395), as tecnologias (suportes,
meios e mídias) digitais não podem acatar por responsabilidade o papel de nutrir
carências educacionais outras, que se encaixam em um quadro muito maior e mais
complexo, em que se embrenham as políticas públicas e orientadoras de currículos
(e materiais didáticos); as instalações físicas; as diferenças locais e culturais (forças
centrípetas e centrífugas) dentre outros fatores que compõem esse quadro.
Recorrendo à sobriedade discursiva, apoio-me mais uma vez em Biesta
(2010, p.69) para quem a “qualidade é a palavra mais vazia e abusada da última
década, tornando-se confinada a processos e procedimentos, ao invés de
relacionar-se a conteúdos e objetivos”.
Conquanto as tecnologias digitais possam ser vistas como espaço de luta
e de conflito, abrindo portas para reivindicações como questões de acesso;
planejamento e currículo; relações excludentes e reafirmadoras de desigualdades –
especialmente quando se empresta às TDICs um teor de autonomia e/ou
autossuficiência (SELWYN, 2014) –, não se pode negar que apresentam traços de
um novo ethos. Esses traços apontam, como informam Knobel e Lankshear (2007),
para práticas em que a mediação dessas (novas) tecnologias permite um
funcionamento descentralizado das relações sociais e as bases para a construção
88

de um conhecimento colaborativo. Isso é o que pode acontecer, ao menos, fora dos


ambientes escolarizados.
E muito embora essas tecnologias não possam, autonomamente,
assegurar a ocorrência da aprendizagem, há nos ambientes digitais – em especial
naqueles que circulam sincronicamente – vasta gama de gêneros, suportes e mídias
diversificados que, a cada novo momento, configuram (com)textos propícios e
propiciadores para e de diferentes práticas letradas, como destacam Lankshear e
Knobel (2008, p.08). Noto, porém, que engajar-se nessas práticas implica o
desenvolvimento de letramento digital.
Lankshear e Knobel (2011) apontam como desde os anos de 1980, e
mais especialmente durante os anos de 1990, o termo “letramento” tem sido
atribuído a uma miríade de práticas, dentre elas, as que se referem às competências
ao lidar com tecnologias, tais como mostrar-se proficiente no manejo de um
computador pessoal. Nessa direção, ser “tecnologicamente letrado” seria sinônimo
de competência, por exemplo, ao programar um aparelho celular (LANKSHEAR;
KNOBEL, 2011; p. 56-57, edição digital). Movendo a discussão para os usos do
termo nos anos mais recentes, os autores apontam como referências a “letramento
midiático” e “letramento informacional” significariam exibir um olhar criticamente
orientado diante das mídias e informações circuladas na contemporaneidade. Nessa
direção, esses pesquisadores chegam a abordagens que definem o “letramento
digital” ou “letramentos do século vinte e um” (2011, p.59, edição digital).
Uma tentativa de definir esses letramentos seria pensar como
digitalmente letrado aquele que conseguisse “se engajar na produção de sentidos
em ambientes intensamente digitais”, isto é, concebendo letramento digital como
“um conjunto de habilidades, tarefas e desempenhos tidos como necessários para a
proficiência técnica diante das ferramentas digitais” (LANKSHEAR; KNOBEL, 2011;
p. 59, edição digital).
Pensando o engajamento em práticas letradas situadas no meio digital,
retomo Bakhtin que, ao abordar questões de estilística no ensino de línguas ([1997]
2013, p. 43) afirma que “o sucesso da missão de introduzir o aluno na língua viva e
criativa do povo exige, é claro, uma grande quantidade de formas e métodos de
trabalho”, o que, segundo o pesquisador, é essencial para que se promova o
desenvolvimento do “pensamento criativo, original, investigativo, que não se afasta
da riqueza e da complexidade da vida” (idem, p. 42).
89

Ademais, retomando a discussão acerca da relação entre cidadania,


educação e as novas tecnologias, Buzato (2010, p. 53) informa que ser “letrado”
(como sinônimo de aquisição de um dado letramento) é “participar de um conjunto
de práticas sociais nos quais significados e sentidos de certos conteúdos codificados
culturalmente (tradicionalmente, mas não exclusivamente textos escritos) são
gerados, disputados, negociados e transformados”. A seguir, esse autor esclarece
que engajar-se em (quaisquer) letramentos pressupõe interatividade para a
construção de sentidos (interpretações) em atividades que são constituídas – e,
quero acrescentar, que dialogicamente também constituem a –, por “propósitos,
valores, atitudes, códigos e dispositivos tecnológicos variados” (idem).
Por suposto, pensar que de que maneira as TDICs / o letramento digital
podem promover práticas educacionais situadas (como indica Bakhtin, aproximar o
aluno da “língua viva do povo”) implica expandir a ideia de letramento “situado” que,
conforme sugere Buzato (2010, p. 33), “(...) não se trata apenas de que eles existem
e circulam em domínios e contextos geográficos, culturais e institucionais e
históricos específicos (...)” – o que também denota a cada um desses constituintes
um dado letramento. Assim, como aponta esse pesquisador “entre letramentos e
contexto, há sempre uma relação de coprodução e recursividade” o que, por
conseguinte, favoreceria não somente a educação linguística em inglês pluralizada e
situada, mas, igualmente, a pluralidade de letramentos que poderiam igualmente, à
maneira crítica, favorecer e ampliar a participação social.
Resta questionar, então, quais as implicações da integração de tais
possibilidades nas práticas escolares. Será que há, realmente, espaço nessas
práticas para a construção da agência discursiva docente/discente (MEDINA, 2006;
VITANOVA, [2005] 2013), ou há somente a (re)produção de antigas práticas;
discursos de autoridade e velhas pedagogias? Igualmente, indicar se a interface
(novas) tecnologias-processos educacionais possibilita apoio não somente ao
aspecto da qualificação, mas igualmente, ao da socialização e da subjetificação,
entendidos enquanto propósitos da educação.
Assim como Lankshear e Knobel (2008, p.09) entendo que “as bases
educacionais para (...) que se considere onde e como os letramentos digitais devam
ingressar na aprendizagem formal têm parcialmente a ver com o quanto é possível
construir pontes entre os interesses dos alunos nessas práticas e os propósitos
escolares formais”. Aproprio-me da afirmação desses autores, acrescentando nessa
90

equação o papel agente e autoral dos docentes, que poderiam, portanto, considerar
tais interesses de forma a dar-lhes repostas a (agência) e responder por eles
(autoria). Não obstante, esse é um processo que implicaria igualmente pesar a
relevância pedagógica desse ingresso, ou seja, de que maneira se articulam com as
demandas curriculares e materiais nos contextos locais específicos.
A partir do próximo capítulo, navegarei por questões de metodologia e
métodos que me auxiliaram a gerar e entender os dados para, então, retomá-los em
uma (re)leitura que se pretende dialógica, a fim de identificar os discursos
emergentes dos diálogos/ações que estabeleci com o participante, com vistas a
atender aos objetivos desta jornada-pesquisa.
91

3. METODOLOGIAS e MÉTODOS DA JORNADA-PESQUISA

3.1. Retomando o contexto da pesquisa

Antes de encaminhar a discussão acerca das bases metodológicas em


que busquei apoio para o desenvolvimento de minha investigação, quero convidar
você, leitor(a), a relembrar, brevemente, o contexto21 em que desenvolvi esta minha
jornada-pesquisa,
Resumidamente, alguns dos aspectos que me parecem relevantes
retomar são:
a) Nesta pesquisa, conto com a participação voluntária de um professor
de inglês, docente efetivo em (então) serviço na educação pública fundamental no
estado de São Paulo;
b) Esse professor se ofereceu, voluntaria e espontaneamente, para
participar desta empreitada, logo após comparecer a uma oficina sobre as TDICs e o
ensino de inglês que ministrei, em um Simpósio sobre o ensino dessa língua, na
universidade em que trabalho;
c) O professor já estava em meio a um processo de inserção / presença
de TDICs em seus fazeres nas aulas de inglês que ministrava em uma escola
integral, pertencente à rede estadual paulista de educação pública e localizada na
cidade de Campinas, quando me procurou;
d) Antes de darmos início à etapa um da pesquisa, durante a qual foram
gerados os dados, o professor foi transferido pela Secretaria de educação para outra
escola estadual, que operava em turnos (de aula) regulares, localizada em outra
cidade (nos arredores de Campinas), o que trouxe radicais mudanças em relação a
seu contexto de trabalho e também em sua vida pessoal (como esclareço no
primeiro capítulo, item 1.2);
e) Quando visitei essa escola, fui bem recepcionada pela coordenação
que aceitou e apoiou prontamente à empreitada (e que já estava, inclusive,
trabalhando na formação continuada de seus professores para a adoção de TDICs e
seus recursos em aula e outros fazeres escolares);

21
Note que já descrevi este contexto com maior detalhamento no item 1.2, no primeiro capítulo, ao qual
sempre é possível retornar para maiores esclarecimentos, caso julgue necessário.
92

f) A escola estadual, de médio porte, atendia desde a Educação


Fundamental ao Ensino Médio; era muito bem gerida e organizada, tendo comprado
uma lousa digital com recursos próprios da gestão, instalada em uma sala com
equipamento multimídia que também funcionava como biblioteca – o uso dessa
lousa / recursos demandava agendamento prévio e respeito ao rodízio para a
utilização por todos os professores;
g) A escola ainda contava com um laboratório de informática, com 16
computadores operantes, acesso à internet e um jovem (aluno do Ensino Médio) no
papel de monitor. Seu uso também era restrito, dependente de agendamentos e da
presença do monitor, que era responsável por ligar os computadores e supervisionar
o uso da sala. Em caso de falta do monitor, o uso da sala não era autorizado pela
direção;
h) Como o professor participante já havia iniciado um trabalho que
envolvia TDICs com seus alunos de 8º e 9º anos do Ensino Fundamental II,
escolhemos dentre essas turmas duas, do período vespertino, em que
desenvolvemos, eu e ele, o trabalho conjunto, partindo do que ele já havia
programado e das necessidades que já havia detectado e queria abordar;
i) Ao final do segundo semestre letivo de 2015, ocorreram mudanças
nessa escola, decorrentes de um então (turbulento e controverso) processo de
reestruturação na educação básica proposto pelo Governo do Estado de São Paulo
(a esse respeito, vide minha nota no item 1.2) –, deu-se início a um processo de
reforma no prédio e na estrutura de gestão da escola (que, supostamente, iria
passar para a Secretaria Municipal de Educação), ainda em meio às aulas, o que
conturbou o encerramento do semestre letivo e, por conseguinte, a conclusão de
algumas das ações programadas pelo professor e por mim para a primeira etapa
desta pesquisa.
A partir dessa retomada (generalizada) do contexto, passo então a
detalhar a perspectiva e os instrumentos metodológicos de que lancei mão a fim de
estruturar a primeira etapa do processo desta pesquisa. Essa etapa possibilitou a
construção / geração dos dados, que são essencialmente o diálogo (no sentido
ampliado do termo como proposto por Bakhtin) que estabelecemos o professor e eu.
Esse diálogo foi registrado em enunciados, resultantes de nossas interações orais
antes, durante e depois de algumas aulas desse professor, bem como através de
registros (narrativas) escritas por nós, individualmente, nesse mesmo ínterim.
93

3.1.1 Escolhendo meios e modos para a jornada dialógica

Esta é uma investigação essencialmente exploratória, que se enquadra


no campo da pesquisa qualitativa (DENZIN, N. K.; LINCOLN, 2006) e situada no
âmbito da Linguística Aplicada. Ademais, é uma jornada primordialmente dialógica.
Pesquisar dialogicamente é um grande desafio à medida que implica
entregar-se ao exercício exotópico. É perceber-se no outro e, inversamente, o outro
em mim. Nesta jornada-pesquisa nunca pretendi viajar como mera observadora. Não
me tornei invisível, nem me distanciei. No entanto, não estou no lugar do professor
participante. Não posso ocupar o seu lugar, do qual apenas ele pode falar e
manifestar sua visão de mundo, suas epistemologias. Em dado momento, seus
discursos, suas vozes, invadiram-me e, inversamente, também as minhas vozes
povoaram as suas. Esse é um processo no qual a “subjetividade, vista
dialogicamente, é social, diz respeito a si assim como também aos outros”. O
diálogo, nesta abordagem de pesquisa, se torna metodologia e ocupa lugar no
campo da pesquisa qualitativa. (SULLIVAN, 2012, p.41).
Pensar uma investigação dialogicamente, portanto, requer entregar-se a
um processo em que
devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu
sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu
lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte
com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele;
devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe,
mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu
desejo e de meu sentimento” (BAKHTIN, 1997, p.46).

Claramente, posso indicar que meu objeto de pesquisa são os discursos.


É neles que busco encontrar possíveis respostas a minhas perguntas de
investigação. Meu objeto de pesquisa não é o professor-homem, ser objetificado;
coisificado – muito embora, como indique Bakhtin ([1979; 1992; 2003] 2011, p.400)
“(...) qualquer objeto do saber, incluindo o homem, pode ser percebido e estudado
como coisa”. Aliás, o autor esclarece que “o objeto das ciências humanas é o ser
expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é
inesgotável em seu sentido e significado. (...)” (BAKHTIN, [1979; 1992; 2003] 2011,
p.395, itálico pelo autor). No entanto, o próprio pesquisador completa que “(...) o
sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como
94

sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; consequentemente, o


conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKHTIN, [1979; 1992; 2003]
2011, p.400). E os discursos carecem do diálogo, da comunicação discursiva que
constituem e em que são constituídos, socialmente.
Nesse viés, assim como Amorim (2004 [2001]), percebo a pesquisa como
acontecimento estético e não pretendo ignorar o fato de que, na posição de
pesquisadora, exerço minhas agência e autoria discursivas ao longo da análise que
tecerei no próximo capítulo.
Em função da relação de poder em que me encontro, atuando como
pesquisadora, e, em última instância, durante o desenvolver de minha análise, é a
minha voz que falará mais alto, de forma autoritária. Ainda que esse discurso final
seja fruto de um diálogo interno da pesquisadora, sempre dialógico posto que
“minhas ideias” não são minhas e sim apropriadas, internamente persuasivas e
“minhas palavras” são alheias e, por isso mesmo, refletem, sempre, o dialogismo,
este será apenas o meu olhar, aquele que virá do lugar de onde eu falo.
De tal forma, assumirei, invariavelmente, e ainda que por um dado curto
momento inicial, uma posição de poder em relação ao professor com que dialogo
porque, se por um lado, para que haja a pesquisa – enquanto acontecimento
estético –, há a “necessidade de serem dois”, posto que nenhum “acontecimento
estético” é criado de modo isolado, uma vez que exige o “olhar do outro” para que se
concretize (daí o dialogismo), é esta mesma pesquisa que terminará por reafirmar,
enquanto acontecimento, “a superioridade do olhar do autor enquanto possibilidade
de totalização e acabamento” (AMORIM, 2004[2001], p.289). Por isso, desde o
início, me fiz visível, já que ser visível, neste gênero em que me debruço, é
inevitável.
No entanto, como afirma Bakhtin (2016), há nos sentidos uma pluralidade
de vozes. Ademais, minha análise não se pretenderá finita, absoluta e nem unívoca,
posto que os textos resultantes de uma (re)leitura / análise são muitos e
diversificadamente possíveis.
Para estudar os discursos é preciso olhar para suas materializações
concretas, os enunciados, uma vez que “o emprego da língua efetua-se na forma de
enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, proferidos pelos integrantes deste
ou daquele campo da atividade humana” (BAKHTIN, 2016, p.11). De tal forma,
busquei abordagens metodológicas e métodos que me permitissem estabelecer
95

diálogo com o professor e, através das interações comunicativas orais e escritas que
desenvolvemos ele e eu, em conjunto e individualmente, construir os enunciados
que, em sua concretude, materializam os discursos que tenho por objeto.
Por conseguinte, de maneira objetiva, esta jornada-pesquisa se configura
metodologicamente por duas etapas distintas.
Como retomei no início deste capítulo, fui procurada pelo professor que,
ouvindo o relato de meus objetivos de pesquisa se ofereceu para dela participar. As
TDICs já estavam mais e mais presentes nas aulas desse docente que expressou
interesse em expandir essa interface através de um trabalho colaborativo,
contando com minha participação direta em seus fazeres (e não como uma
pesquisadora-observadora), nas aulas de inglês que ministrava na escola pública.
Foi a partir desse acontecimento que procurei uma abordagem que
oferecesse um quadro teórico-metodológico que, simultaneamente, olhasse para a
pesquisa à maneira dialógica (orientação que já me constituía) e pudesse integrar
um método de trabalho participativo. Dessa maneira, elegi a PAP (Pesquisa-ação
Participativa) para ancorar a primeira etapa da investigação, o que explicito a seguir.

3.2. Etapa 1: Pesquisa-ação Participativa (PAP) e construção dos dados

A Pesquisa-ação, como outras abordagens metodológicas de pesquisa


em emprego na atualidade, apresenta diferentes matizes e vertentes22. Como
esclarecem Noffke e Somekh (2005, p. 89), grosso modo, a Pesquisa-ação aborda
diretamente a questão da dicotomia teoria-prática, tratando-a de modo integrado e
promovendo uma construção cíclica do conhecimento na investigação. Segundo as
autoras, essa vertente de pesquisa teve origem nos anos de 1940 na Europa no
campo da psicologia e nos de 1950 nos Estados Unidos – com foco no campo da
educação –, área em que se notabilizou no Reino Unido nos anos de 1970. Desde
então, essa abordagem investigativa se tornou cada vez mais popular no campo da
educação, com foco no melhoramento dos processos de ensino e aprendizagem e,
em especial, a formação docente. (NOFKE; SOMEKH, 2005). Desde sua origem,
constituía-se pelo trabalho investigativo dividido em estágios / etapas.

22
Para um melhor esclarecimento e detalhamento, veja o quadro que coloquei no Anexo 1, que apresenta
algumas das escolas correntes dessa modalidade de pesquisa.
96

A Pesquisa-ação Participativa (PAP), que em língua inglesa é


conhecida por PAR (Participatory Action Research) é uma vertente da Pesquisa-
ação que aqui na América do Sul teria se (re)configurado diferentemente a partir do
trabalho do pesquisador e educador Paulo Freire (NOFKE; SOMEKH, 2005, p. 89).
Apoiadas em Torres (1992), Nofke e Somekh (2005) informam que a
vertente da PAP aqui em nossas terras teria se iniciado como um modelo de
pesquisa de menores proporções, preocupado com contextos de “educação
popular”, configurando-se como um movimento de “procura por um novo tipo de
ciência, somado ao trabalho ativista/emancipatório” (BORDA, 2001 apud NOFKE;
SOMEKH, 2005, p. 90), razão pela qual encontrei nesse modelo orientações
metodológicas para a estruturação da primeira etapa de minha jornada.
Uma questão relevante em relação aos procederes da Pesquisa-ação, e
igualmente expansível à PAP, diz respeito à interface facilitador “externo”
(praticante) e “interno” (participante). Por configurar uma relação hierárquica, de
poder, com a força do pesquisador/especialista externo (extraposto ao contexto de
pesquisa) influenciando o praticante/participante interno (que está em seu contexto),
essa tradição metodológica tem sido alvo de algumas críticas relacionadas a
questões éticas (NOFKE; SOMEKH, 2005, p. 90).
Esse é um ponto ao qual busquei dedicar muita atenção durante essa
etapa de minha investigação, o que não foi feito sem dificuldade, confesso, posto
que tal postura demandasse constante auto-observação de minha parte, de modo
que eu evitasse sucumbir à tentação de impor ideias; (pré)conceitos; pareceres, etc.
De fato, não acredito que seja possível (nem desejo) afirmar que isso não tenha de
fato, e em certo grau, acontecido (os dados a serem explorados no capítulo quatro
são confessionais, neste ponto) – já que este é um tema paradoxal: se parto de uma
visão dialógica (de discurso, de mundo e das relações neles estabelecidas) em que
os acontecimentos sempre dependem de ao menos dois , do diálogo, como poderia
pensar que eu não teria “influenciado” o professor-participante? E o inverso, por
suposto, também ocorreu, já que, como já afirmei antes, esta jornada se configura
basicamente como um exercício exotópico.
De tal forma, quero pensar que eu tenha evitado, ao menos, trabalhar à
maneira hierarquizada e monológica, como quem quisera impor discursos de
autoridade (e/ou autoritários) ou como o estrangeiro – aquele outro, “vindo de fora”
como oferece a etimologia dessa palavra, segundo informa Kobai (2009, p.140); ou
97

ainda mesmo como um “observador participante”, sob o olhar etnográfico em uma


antropologia de orientação positivista, como informa Hustler (2005, p. 16)23.
Nessa mesma direção, encontro apoio em Dei (2013) que, ao (re)avaliar a
noção de uma educação democrática, sugere a necessidade de repensarmos
nossas definições neoliberais de “justiça social e igualdade”, uma vez que tais
conceitos tendem a partir de um ponto de vista que estabelece a relação eu-outro à
maneira verticalizada, em que “eu” me configuro como um sujeito detentor de um
conhecimento, superior, que “permito” ao outro adentrar em meu círculo de saber –
o que poderia, então, fomentar um conflito ético, no estabelecimento de relações de
poder no âmbito de aplicação da PAP.
Ademais, em acordo com as visões teóricas que me orientam, urge
registrar que, conquanto muitas definições de Pesquisa-ação anunciem como uma
de suas finalidades a busca por “soluções” práticas para problemas identificados por
pesquisador (es) e/ou participante(s) (BURNS, 2010; KINDON et al, 2007; REASON;
BRADBURY, 2008, ANDRÉ, 2013), este estudo não tem nem a intenção nem a
pretensão de, ao final do trabalho, apontar respostas exatas ou modelos a serem
seguidos – como também não foi esse meu objetivo central ao longo das fases em
que estive com o docente-participante.
Segundo Reason e Bradbury (2008, p.04), a PAP é
um processo participativo, democrático que diz respeito ao
desenvolvimento de um conhecimento prático na busca por
propósitos humanos, fundamentados numa visão de mundo
participativa... [e que traz] juntamente com a ação e a reflexão,
teoria e prática, na participação com outros.

De tal forma, diferenciando-se pela maneira como aborda as relações


entre conhecimento e prática; pesquisadora e participante da pesquisa, um dos
princípios norteadores da PAP é que o conhecimento gerado através da
investigação concretize-se em contribuições para as práticas dos envolvidos em
seus contextos (REASON; BRADBURY, 2008, p.4) – o que no caso deste estudo
acontece exotopicamente entre o professor e mim (já que também eu e minhas
próprias práticas fomos alteradas pelo processo, como retomarei adiante neste
texto).

23
HUSTLER, D. Key concepts In: GOLDBART, J. ; HUSTLER, D. Ethnography. In: SOMEKH, B.; LEWIN, C. (orgs.)
Research methods in the social sciences. London: Sage, 2005, p. 16-23.
98

Nesse tipo de investigação a “participação” é vista como um construto


central que aponta “um comprometimento político, processos colaborativos e uma
visão de mundo participativa” (KINDON; PAIN; KESBY 2007, p. 11) – orientação
ontológica desta abordagem.
De acordo com Kindon, Pain e Kesby (2007, p. 09) a PAP “representa um
importante desafio às tradições de pesquisa nas ciências, especialmente as sociais”
por, entre outros motivos, pressupor a adoção de uma postura em que se
“reconhece a existência de uma pluralidade de conhecimentos em uma diversidade
de instituições e contextos locais” – orientação epistemológica dessa metodologia.
Ainda nessa direção, Kindon, Pain e Kesby (2007, p. 13) afirmam que é
possível encontrar uma grande diversificação quanto à orientação teórica de
praticantes da PAP na atualidade, que incluem entre eles teorias: “feministas, pós-
estruturalistas, Marxistas e de teoria crítica, praticas democráticas e libertadoras
(...)”, entre outras24.
Dessa forma, o enquadramento da pesquisa é flexível e a estipulação de
métodos e cronogramas de trabalho pode (e deve) ser ajustada não só aos
propósitos como, também, às orientações teóricas norteadoras do estudo em
questão, i.e.; “adaptar e responder às necessidades específicas de contextos,
problemas e perguntas de pesquisa e às relações entre pesquisador e
participantes”, de modo que o “processo da pesquisa seja tão valorizado quanto
seus produtos finais” (KINDON; PAIN; KESBY, 2007, p. 13, ênfase adicionada).
A PAP é geralmente estruturada a partir de fases que se sobrepõe em ir e
vir (ciclos), muito embora conforme apontam Reason e Bradbury (2008, p.7) “não
pode haver um “jeito certo” de se fazer Pesquisa-ação”. Por isso, esses autores
sugerem que “bons pesquisadores [na Pesquisa-ação] apreciarão e saberão
delinear [suas pesquisas] a partir da gama de perspectivas e abordagens que lhes
estão disponíveis” (REASON; BRADBURY, 2008, p.7).
Dentre essas etapas há, grosso modo, os seguintes momentos:

a identificação de uma situação em que se pretende buscar algum tipo de


melhoria através da construção compartilhada do conhecimento e prática (neste

24
Novamente, indico a leitura do quadro que coloquei no Anexo 1.
99

caso, isso teve início no momento em que o professor me procurou, se predispondo


ao trabalho, o que realizamos conforme descrevo no Quadro 1);

a discussão sobre o processo (o que,neste estudo, aconteceu diversas vezes


ao longo desta etapa 1);

ações e novas discussões acerca de resultados dessas ações (com volta ao


estágio inicial quando desejável / possível, o que foi parcialmente possível fazer,
neste estudo, devido a fatores externos que tumultuaram o final do semestre letivo,
conforme esclarecerei adiante).

Burns (2010, p.19) – discutindo a Pesquisa-ação no ensino da língua


inglesa –, sinaliza essas fases, dividindo-as em: planejamento, ação, observação e
reflexão. Emprestando a proposta desse autor, permito-me reler essa nomenclatura
– tendo em vista minhas teorias norteadoras – renomeando a quarta fase por
“discussão”.
No caso específico desta minha investigação, descrevo essas fases
(resumidamente) no Quadro 1. Elas constituem os momentos em que o professor e
eu, dialogando, nos engajamos em interações comunicativas orais presenciais
(antes, durante e depois de algumas de suas aulas) e também através de narrativas
escritas por nós, individualmente, que constituem os meus dados, enunciados que
comentarei na análise.

O Quadro 1 apresenta as fases que organizaram a Etapa 1 desta jornada:


100

FASE OBJETIVO PERÍODO


a) Identificar, em conjunto com o professor
e a partir dos objetivos e perguntas de
IDENTIFICAÇÃO / pesquisa, suas necessidades, advindas
PLANEJAMENTO das realidades de seu contexto de
atuação; Agosto de 2015

b) traçar (conjuntamente) um plano de


ação

Aplicação do planejamento e implantação


das práticas planejadas em aulas de duas Agosto a Novembro
AÇÃO salas de 8º ano (posteriormente expandida de 2015
pelo professor aos seus 9º anos)

Observação sistematizada e documentada


do processo de apropriação e execução do
Setembro a
planejamento (ação) feito individualmente
Novembro de 2015
OBSERVAÇÃO e/ou em conjunto por professor e
pesquisadora

Encontros dialógicos para discussão (P e


Eu) a fim de avaliar todo o processo e (re)
desenhar um quadro acerca do percurso. Agosto a Dezembro
DISCUSSÃO
Os dados (essencialmente processuais e de 2015
emergentes ao longo de todo o processo)
são construídos dialogicamente.

Quadro 1: Fases da Etapa 1 da jornada-pesquisa.

No decorrer do capítulo quatro, à medida que realizarei a análise dos


recortes dos dados, vou também esclarecer as especificidades das ocorrências que
constituíram cada uma das fases que descrevi resumidamente no Quadro 1,
destacando mais uma vez que essas não foram partes distintas, fechadas e
linearmente organizadas de um processo, mas, sim, momentos que se
intercambiaram e, por vezes, sobrepuseram-se, no decorrer da primeira etapa da
pesquisa.
Como informam Kindon, Pain e Kesby (2007, p. 16), dentre os métodos a
que recorrem os pesquisadores que adotam a PAP, encontram-se o diálogo, a
narrativa (storytelling) e a ação coletiva. Dessa forma, ao longo das fases descritas
no Quadro 1, foram gerados os dados decorrentes de processo dialógico e
dialogado estabelecido pelo participante e por mim, em comunicações discursivas.
101

Objetivamente, como já apontei em outros momentos ao longo deste


texto, os dados que compõem o corpus principal desta pesquisa são constituídos por
enunciados, materializações decorrentes de interações comunicativas orais entre o
professor e mim – que foram gravadas em áudio e, depois, transcritas. Há também
narrativas individuais escritas (pelo professor e por mim), enunciados que também
são apreciados na análise, no capítulo a seguir.
Como instrumentos de registro desses dados, ao longo dessa primeira
etapa, utilizamos – o professor e eu, em comum acordo25:

gravações em áudio digital de nossos diálogos;

publicações multimodais (texto verbal, hipertextual e imagético) em


uma plataforma virtual e síncrona de curadoria (Padlet 26).
O Quadro 2 apresenta a organização dos dados de acordo com o
instrumento de registro utilizado e o tipo de interação em que foram gerados:

ORGANIZAÇÃO dos DADOS GERADOS na PESQUISA

PARTICIPANTES
DIRETOS NO TOTAL
MOMENTO da POSTAGENS
FERRAMENTA INTERAÇÃO FORMATO OBSERVAÇÃO

Interações verbais escritas (relatos)


PROFESSOR e digital - e hipertextos (multimodais)
PADLET 39
EU multimodal compartilhados, tais como links para
artigos.

Gravações em
PROFESSOR e Interações orais: discussões de
áudio em 08 digital
EU planejamento e pós-aulas.
dispositivo
móvel
Quadro 2: Organização dos dados gerados na pesquisa e seus instrumentos de registro.

25
Veja em Anexos o TCLE (termo de consentimento livre e esclarecido) elaborado conforme instrução e
aprovação do Comitê de Ética na Pesquisa da Unicamp.
26
Segundo o próprio site informa “Padlet é um aplicativo gratuito para montar Painéis ou Murais com fontes
da Internet, ou arquivos que você tenha no computador”. A plataforma é simples e bem intuitiva e permite a
compilação de dados em formato de textos escritos diretamente no app e/ou anexados na forma de
documentos, planilhas, apresentações ou PDFs (entre outros). Também suporta hipertextos, vídeos, áudio e
fotos. Veja em https://pt-br.padlet.com. Acesso em 23 de out 2016.
102

As interações comunicativas gravadas em áudio foram transcritas e


algumas delas, constitutivas de um recorte, serão foco de (re)leitura no capítulo
seguinte, juntamente com alguns dos enunciados que compõem parte das
postagens que tanto o professor quanto eu fizemos no Padlet. Essa tecnologia está
disponível no meio digital síncrono e permite a realocação / reconstrução, em meio
digital, de práticas sociais (gêneros) já estabelecidas tais quais a da bricolagem
(corte e recorte e coleção de dados, informações, etc.) e o diário pessoal.
A fim de preservar o sigilo da identidade do participante, conforme orienta
a ética na pesquisa (veja o termo de consentimento e a aprovação do Conselho de
Ética na Pesquisa em Anexos) não irei disponibilizar acesso direto à página do
Padlet, posto que as postagens do docente revelam seus dados pessoais. No
entanto, para fins de análise neste estudo, trarei algumas delas aqui, uma vez que
entendo que esses recortes constituem parte da materialidade discursiva que são
objeto de minha investigação.
Ao apropriar-me dessa plataforma (Padlet) a guisa de suporte para o
registro de meus dados de pesquisa, sua inserção representou, igualmente, parte de
um processo em que o professor, ao estabelecer diálogo comigo, se apropriou
discursivamente da ideia de inserção dessa tecnologia em seus próprios processos
educacionais, o que é discutido no recorte dos dados analisados no quarto capítulo.
Como eu já conhecia e usava o site Padlet, fui eu quem “criei” o mural
eletrônico e adicionei o professor como usuário com direitos de editor. Esse
movimento, desde seu princípio, já se constituiu como parte da apropriação
discursiva desse professor, que foi dialogada durante interações comunicativas
orais.
O professor e eu discutimos algumas opções de sites/plataformas antes
de elegermos o Padlet por aporte tecnológico. No entanto, reconheço que todas as
indicações surgiram de mim, à forma de enunciados vozeados com voz de
autoridade (que já conhecia tais tecnologias e já as tinha apropriado em meus
fazeres) e, por conseguinte, essa voz passou a permear o discurso do professor, à
maneira plurivocal e ideologicamente marcada. Cabe notar que, durante o mês de
agosto (e até meados de setembro), no entanto, o professor continuou
estabelecendo interlocução comigo através de outras plataformas, tais quais
mensagens via e-mail e aplicativo de mensagem pessoal instantânea (o que, a meu
ver, configurou que em relação ao Padlet houve não somente um processo de
103

apropriação discursiva, mas igualmente da materialidade tecnológica em si,


processo de letramento digital por que passou o professor).
A figura abaixo apresenta um recorte do site de curadoria utilizado como
instrumento de registro dos diálogos e a seguinte (Figura 2), parte de uma conversa
estabelecida por mensagem eletrônica, em que o professor menciona o processo
(então em andamento) de letramento na interface com o Padlet:

Figura 1: Plataforma criada e compartilhada para registro de diálogos com o professor-


participante.

Figura 2: Conversa estabelecida via mensagem eletrônica

Portanto, durante a Etapa 1 da pesquisa, desenvolvida ao longo do


segundo semestre letivo de 2015 (vide Quadro 1), amparada metodologicamente na
PAP, dialoguei com o professor participante tendo em mente o objetivo geral deste
estudo, qual seja: investigar implicações, possibilidades, abismos e possíveis pontes
emergentes e/ou decorrentes da apropriação de discursos que motivaram a
presença de tecnologias digitais durante seus fazeres em (algumas de) suas aulas
104

de inglês em seu contexto de trabalho docente. Para tanto, estabelecemos


interlocuções que, conforme já esclareci, compõem o corpus desta investigação.
Entre o início de agosto e o dia 02 de dezembro de 2015, o professor e eu
interagimos múltiplas vezes (vide Quadro 2), à maneira escrita, com a postagem de
relatos no Padlet e também à maneira oral, em interações comunicativas gravadas
em áudio, posteriormente transcritas para fins de publicação neste texto.
Por suposto, não obstante todas as interações comunicativas
estabelecidas entre o professor e mim na etapa 1 da pesquisa tenham
proporcionado riquíssimo material para análise, faz-se necessário gerar um recorte
desses dados.
Por conseguinte, os dados apreciados no capítulo a seguir representarão
uma parcela dos enunciados que compõem o corpus desta investigação. Embora
essa seleção não siga rigidamente um critério cronologicamente ascendente (i.e.; de
acordo com a data em que aconteceu a interação), vias de regra, está
cronologicamente orientada ao longo do segundo semestre de 2015, de acordo com
o ir e vir das fases que caracterizaram a PAP, a fim de que você leitor(a) possa
acompanhar à maneira (mais ou menos) ordenada a sequência de acontecimentos
que, em comunicação discursiva, compõem esta jornada-pesquisa.
Conquanto o material que compõe o recorte de meu corpus seja
infinitamente insuficiente para proporcionar bases para uma leitura da qual derivem
generalizações histórica e socialmente situadas (o que, aliás, esclareço não ser meu
desejo fazer) acerca dos processos de emergência e apropriação discursivas que
irei sugerir, acredito se tratar de material suficiente para dar conta de atender, de
alguma maneira, a meu objetivo geral de pesquisa (como articularei no capítulo
final).
Tendo em vista que meu objeto final de análise são os discursos em sua
materialidade enunciativa, retomo, a seguir, a abordagem que orienta a análise que
irei propor no decorrer do quarto capítulo.

3.3. Etapa 2: Dialogismo e análise de discursos

À medida que me propus a (re)ler o conjunto de dados, i.e., compor


sentidos para os enunciados, com vistas à identificar discursos emergentes, procurei
sempre manter em mente não somente os objetivos e as perguntas que orientam
105

esta pesquisa, mas também seu contexto, uma vez que, como informam Bakhtin /
Volochínov “o discurso de outrem constitui mais do que o tema do discurso”, ao que
esclarecem, mais adiante, que “(...) a enunciação citada tratada apenas como um
tema do discurso, só pode ser caracterizada superficialmente.Para penetrar
completamente no seu conteúdo é indispensável integrá-lo na construção do
discurso” ou seja, é preciso situá-lo em seu universo discursivo e tomar por conta
suas condições de produção, das quais fazem parte as relações estabelecidas entre
os interlocutores” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2014], p.150).
Nessa direção, reitero que conto com apoio em Bakhtin (1981, p. 259)
quando afirma que
forma e conteúdo são unos no discurso, uma vez que se
compreende que o discurso verbal seja um fenômeno
social – social em todo o seu escopo e em todo e cada um de
seus fatores, da imagem sonora aos mais distantes alcances
dos sentidos abstratos (ênfase adicionada),

de maneira que tentarei direcionar meu olhar metateórico para os dados de um


ponto de vista analítico que se configure integrador de aspectos interpretativos,
focados no campo semântico-objetal (BAKHTIN, [1979; 1992;2003] 2011) e,
também, no campo da materialidade, seu pertencimento a uma unidade linguística –
e suas forças centrípetas e tendências normalizadoras (BAKHTIN, 1981, p. 272),
acentuando ligeiramente maior ênfase à questão interpretativa. Justifico esta
tendência analítica por pensar, assim como Sullivan (2012, p. 44), que o discurso,
nesta perspectiva que me orienta, consiste na maneira como múltiplas e distintas
“vozes falantes” reagem e comunicam valores / ideologias / posicionamentos a partir
de seus pontos de vista específicos (olhares que são social e historicamente
constituídos e não meramente ou exclusivamente tomados como opiniões
pessoais e/ou individuais). Ainda nessa direção, recordo que “o enunciado está
voltado não só para seu objeto, mas também para os discursos do outro sobre ele”
(BAKHTIN, 2016, p.61).
Encontro igualmente apoio para esse olhar analítico para o discurso,
materializado em enunciados, no fato destacado por Brait ([2009] 2013) de que, ao
analisar o gênero romance literário, em Dostoiévski, Bakhtin não realizou uma
análise linguística per se, no sentido rigoroso do termo, por entender que “as
relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um
106

campo puramente linguístico de seu estudo” (Bakhtin, 2008, p. 208) ao que o autor
completa, entretanto, que as pesquisas metalinguísticas “não podem ignorar a
linguística e devem aplicar seus resultados” (BAKHTIN, 2013, p. 207).
Portanto, procurarei manter um olhar analítico metalinguisticamente
orientado, como sugere esse autor, uma vez que as relações dialógicas intra e entre
enunciados se encontram extralocalizadas às dimensões linguísticas, manifestando-
se em contextos sociais e históricos, e são relações ideologicamente orientadas e
compartilhadas. Como aponta Bakhtin “em cada enunciado – da réplica monovocal
do cotidiano às grandes e complexas obras de ciência ou de literatura –,
abrangemos, interpretamos, sentimos a intenção discursiva ou a vontade de produzir
sentido” (BAKHTIN, 2016, p. 37, ênfase do autor) o que, partindo do falante que
verbaliza suas intenções, acaba por definir o enunciado em seu todo. É essa
“intenção” do falante (locutor) que orienta a escolha do objeto (no campo de uma
determinada comunicação discursiva) e estabelece a relação desse enunciado com
enunciados outros, que o precederam, por exemplo.
Amparada em Sullivan (2012, p.08), entendo que seja de interesse da
análise realizada no âmbito da pesquisa qualitativa interpretar sistematicamente o
que as pessoas fazem e dizem. Na perspectiva dialogicamente orientada, essa
interpretação pressupõe acatar que nessas falas encontram-se refletidas e
refratadas diversas “relações de poder e a negociação local de identidade(s)” (idem),
objeto de estudo de diversas vertentes da análise de discurso.
Metodologias discursivas tendem a voltar seus interesses para os
universos (discursivos) (re)velados pelos dados, a partir de um viés critico. Mas a
questão da interpretação não é objetiva e nem tão pouco está enclausurada em
certezas absolutas. Ao contrário, como postula Sullivan (2012, p. 09), a interpretação
de dados a partir de uma análise discursiva apresenta um “dilema” que se posiciona
entre uma “hermenêutica da suspeita” e a “hermenêutica da confiança”.
Definindo hermenêutica por “um estilo de interpretação”, Sullivan distingui
“confiança ou empatia” de “suspeita”, apoiando-se em Ricoeur (1981)27 que se refere
a diferentes métodos que buscam abordar conteúdos de um texto a partir da adoção
de um dado distanciamento crítico (tais como vertentes da análise de discurso),
enquanto outros métodos propõem manter-se “abertos às verdades dos conteúdos

27
RICOEUR, P. Hermeneutics and the human sciences: essayson language, action and interpretation. Edit and
translated by J. B. Thompson. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.
107

(vertentes da fenomenologia, e Grounded theory)” (SULLIVAN, 2012, p.09). Como


proponho me debruçar sobre uma vertente de análise de discurso de orientação
dialógica, manterei a lógica da suspeita crítica que já me orienta metateoricamente
ao longo desta jornada-pesquisa.
Nessa direção, Sullivan (2012, p. 14) informa ainda que
(...) o eu e o outro são teoricamente compreendidos como
precursores entre si. Isto significa que as atitudes de confiança
e suspeita que os pesquisadores qualitativos trazem para a
análise podem também ser atitudes que os participantes
trazem para suas próprias experiências. Eles não são apenas
sujeitos a serem conhecidos, mas também sujeitos (“eus”) que
conhecem (cognoscentes) – que são capazes de interpretar e
(re)interpretar aquilo que eles tinham confiado ser
[anteriormente] suspeito e vice-versa.

De maneira geral, um aspecto significativamente importante para o


desenvolvimento de uma análise de discurso recai sobre a forma como se estrutura
as “falas”, objeto de análise. Nesse sentido, as considerações de Bakhtin acerca do
diálogo têm sido tomadas por estímulo e, então, são apropriadas para a análise de
discurso (como o faz, por exemplo, Fairclough)28.
Seguindo a orientação proposta por Sullivan (2012) adoto as teorizações
oferecidas por Bakhtin e seu Círculo acerca do diálogo como base e instrumento
teórico-analítico para a (re)leitura de discursos, por meio de sua materialidade
enunciativa.
Fazem parte desse dispositivo de análise os conceitos de apropriação
discursiva (discurso de autoridade / internamente persuasivo, e o percurso de
palavras alheias a palavras próprias); polifonia; heteroglossia, entre outros aspectos
de ordem teórica que foram discutidos ao longo do capítulo dois, tais quais: a ideia
de comunicação discursiva (como um todo), o ato de tornar-se (em diálogo com as
ideias sugeridas por Biesta (2010)) e a discussão acerca das visões de tecnologia.
Ao apropriar tal perspectiva por visão metodológica estou assumindo, a
priori, sempre haver interpretações outras cabíveis à (re)leitura de (meus) dados –
i.e.; entendo que os sentidos possivelmente construídos a partir de um dado serão
sempre plurais. Por isso, Sullivan pontua que
do ponto de vista de uma análise dialógica, entretanto,
ninguém, incluindo o ator, pode saber com certeza o que está

28
FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
108

fazendo (...) e o objetivo da interpretação não é recuperar um


sentido particular mas fazer sentido dos modos diferentes e
ambíguos pelos quais os sentidos podem ser experienciados
(SULLIVAN, 2012, p.14, ênfase colocada).

A ideia de uma (re)leitura dialógica dos dados a partir da noção da


pluralidade de sentidos possíveis e da perspectiva do diálogo pesquisadora
participante encontra igualmente respaldo no olhar que percebe que “o encontro de
pesquisa se faz no interior de construções e de dispositivos que interferem e
produzem efeitos de sentido na palavra enunciada. Palavra que merece, pois, ser
sempre problematizada” (AMORIM, 2004[2001], p. 259).

Muito embora Bakhtin e seu Círculo não tenham formalizado e/ou


registrado nenhum “método” distinguível para a análise de discurso em seus
escritos, encontro igualmente respaldo para a análise dialogicamente orientada em
Bakhtin/Volochínov quando afirmam que “a realidade do signo é totalmente
objetiva e, portanto, passível de um estudo metodologicamente unitário e
objetivo” ([1929-1930], 2014, p. 33, ênfase adicionada). Ademais, como informa
Bakhtin, todo o signo é ideologicamente prenhe de correlações contextuais e
extralocalidade já que “(...) cada palavra, (cada signo) do texto leva para além dos
seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros
textos” (BAKHTIN, [1979; 1992; 2003] 2011, p. 400).
De tal forma, uma análise dialógica realizada sob tal orientação sempre
me remeterá, enquanto intérprete dos dados, a sentidos extrapolarizados, que
excedem o domínio do enunciado a que me referir, levando-me em direção a
sentidos outros, situados no âmbito do universo discursivo que permeia tais
enunciados, possibilitando identificar a emergência (e proceder a uma análise) de
discursos. Discursos esses que, no olhar bakhtinianamente orientado, estão sempre
interconectados às bases materiais (sociais) em que são constituídos / a que
constituem. Nesse viés, as condições concretas, que propiciam / são propiciadas em
/ pelas comunicações discursivas, relacionam-se diretamente às condições
concretas (contexto) em que se manifestam.
Assim como Santos e Almeida (2012), entendo que a discussão em torno
do discurso de outrem na atualidade tem movimentado diferentes e numerosas
pesquisas no âmbito da linguagem, a partir de questionamentos, orientações
teóricas e objetos de estudo dos mais diversos. Nesse caminho, as autoras apontam
109

como o discurso de outrem tem sido tratado sob uma pluralidade de nomes, dentre
eles o de discurso citado. Abordando as diretrizes bakhtinianas para o olhar
orientado para o método sociológico em ciências humanas, Santos e Almeida,
referindo-se ao discurso de outrem, sugerem que
no movimento de interação social, os sujeitos constituem os
seus discursos por meio das palavras alheias de outros sujeitos
(e não da língua, isto é, já ideologizadas), as quais ganham
significação no seu discurso interior e, ao mesmo tempo,
geram as réplicas ao dizer do outro, que por sua vez vão
mobilizar o discurso desse outro, e assim por diante (SANTOS;
ALMEIDA, 2012, p. 79).

Seguindo na tarefa de tecer um percurso teórico-analítico para a análise


dialógica de meu corpus, entendo que os enunciados que compõem meus dados,
inclusive aqueles que foram proferidos por mim nas interlocuções com o professor,
podem ser configurados, linguisticamente, i.e., em termos sintáticos (enquanto frase,
uma estrutura subjacente que é sujeita a forças centrípetas) como registros de
discurso direto. Apontam Bakhtin/Volochínov ([1929] 2006, p. 151) que “se o diálogo
se apresenta no contexto do discurso narrativo, estamos simplesmente diante de um
caso de discurso direto, isto é, uma das variantes do fenômeno que estamos
analisando [o discurso de outrem]”. No contexto específico dessa citação, os autores
definem o emprego do termo diálogo esclarecendo que “não é a enunciação
monológica individual e isolada, mas a interação de pelo menos duas enunciações”
(idem, p. 152).
No entanto, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2006), analisando a questão do
discurso citado, em que propõem dotar de “orientação sociológica o discurso de
outrem” ([1929] 2006, p.146), oferecem que tais exemplares (de discurso citado,
aquele se toma “entre aspas”), quando destacados de suas condições de produção,
a guisa de tornarem-se citações (e, no caso deste meu estudo, objeto de análise),
podem ser tomados por exemplares de discurso indireto. Afirmam esses autores
que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é,
ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a
enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.148, itálico pelo autor).
Esclarecem ainda esses estudiosos que
(...) as expressões entre aspas (...) são tomadas diretamente
do discurso de outra pessoa de que nós queremos manter
distância. Mas aqui entramos no cerne do problema, isto é, na
110

necessidade de distinguir as duas orientações que pode tomar


a tendência analítica no discurso indireto e as duas variantes
principais correspondentes (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929]
2006, p.164, ênfase adicionada).

Grosso modo, o que Bakhtin / Volochínov discutem é que, ao citar esse


discurso, o falante (neste caso, eu enquanto pesquisadora que citarei o discurso
meu/de outrem em minha análise), toma esse discurso por “enunciação de outra
pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção
completa” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p. 148). De onde advém que,
ainda que seja exemplar de uma fala minha, um dado enunciado, tomado por mim
em minha análise à conta de materialização discursiva, por ser exemplar de um
“discurso citado” será sempre um discurso do qual eu, enquanto pesquisadora-
narradora e analítica neste texto (que é a minha narrativa), manterei certo
distanciamento (fator inerente à tarefa da citação e da análise, como apontam esses
estudiosos), a fim de realizar minha proposta interpretativa. Ademais, esclarecem
esses autores que “é a partir dessa existência autônoma que o discurso de outrem
passa para o contexto narrativo, conservando o seu conteúdo e ao menos
rudimentos da sua integridade linguística e da sua autonomia estruturais primitivas”
(idem, p. 149).
Por conseguinte, apropriando-me da discussão supracitada, entendo que,
ainda que eu não altere a estrutura sintática das frases que compõem os
enunciados, a fim de reportar o (que foi) dito (i.e.; que não vá usar a estrutura
indireta do tipo “o professor afirmou que teve dificuldades para acessar...”), ao citar o
discurso de outrem entre aspas, a guisa de trazer recortes do corpus para minha
análise, estarei extraindo esse discurso de seu universo discursivo, dando-lhe
caráter (temporariamente) autônomo e (re)contextualizando-o em minha narrativa
atual, que se constitui em outro universo discursivo e gênero (a tese acadêmico-
científica). Isso significa que o discurso citado saiu do campo (esfera) e gênero em
que se manifestou e foi transportado para “a enunciação do narrador, tendo
integrado na sua composição outra enunciação (...) para assimilá-la parcialmente
(...) embora conservando, pelo menos sob uma forma rudimentar, a autonomia
primitiva do discurso de outrem, sem o que ele não poderia ser completamente
apreendido” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.149).
111

No tocante aos gêneros de que transportarei os enunciados, no caso


específico de meus dados, posso dizer que os discursos (que foram enunciados) na
Etapa 1 da pesquisa estão organizados em dois principais gêneros: no gênero oral
diálogo de opinião (as interações comunicativas orais gravadas em áudio) e no
gênero escrito relato de experiência vivida (registrados no Padlet). – organização
em gêneros que faço a exemplo do que sugerem Schneuwly e Dolz (2011). Ao
transportá-los para análise, portanto, irei citá-los, demovendo-os de seus universos
discursivos e integrando-os a outro universo, configurado na presente narrativa (o
texto desta tese), que é organizada em um gênero tipificado na esfera acadêmica.
Para apreender os discursos e os processos de apropriação discursiva,
portanto, os demoverei de suas condições de produção, do lugar de que se fala,
para quem se fala, dotando-lhes de vozes outras, a fim de interpretá-los, constituir
sentidos, a partir deste (outro) lugar do qual olho para eles e partir “da recepção
ativa da enunciação de outrem” para a “sua transmissão no interior de um contexto”,
levando em conta que “toda transmissão, particularmente sob forma escrita, tem seu
fim específico (...) [e] leva em conta uma terceira pessoa – a quem estão sendo
transmitidas as enunciações citadas” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.152).
No entanto é importante ressaltar que, do ponto de vista teórico-analítico
acato à orientação desses autores de que “estamos bem longe, é claro, de afirmar
que as formas sintáticas – por exemplo, as do discurso direto ou indireto –,
exprimem de maneira direta e imediata as tendências e as formas da apreensão
ativa e apreciativa da enunciação de outrem” (idem, p. 153), ao que esclarecem que,
conquanto se configurem apenas como formas “padronizadas para citar o discurso”,
estão sujeitas às “tendências dominantes da apreensão do discurso de outrem”,
exercendo essas formas também, em via de mão dupla, sua influência sobre “as
tendências da apreensão apreciativa, cujo campo de ação é justamente definido por
essas formas.” (idem).
Em meu papel de pesquisadora-analisadora assumirei, igualmente, a
noção de que
toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de
outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem
sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a
enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra,
mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores. Toda a
sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo
perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é
112

por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do


exterior. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.154),

do que advém que, em minha análise, desenvolvida no capítulo a seguir, estarei


dialogando ativamente, em réplica, com os enunciados do recorte que farei de meus
dados, réplica essa que se configurará por exercício exotópico e dialógico em que,
dialogando a palavra do enunciado analisado com a palavra de meu discurso interior
buscarei apreender a enunciação de outrem (ainda que essa tenha sido uma
enunciação primariamente derivada de minha própria fala) a partir deste (outro) lugar
em que ora falo (daí o duplo caráter dialógico da análise em que proponho me
embrenhar).
Adiante em suas considerações, Bakhtin/Volochínov indicam também que
dependendo da orientação adotada, pode-se indicar a análise de enunciados em
direção a dois objetos distinta e elementarmente díspares, quais sejam: a) “a tomada
de posição com conteúdo semântico preciso por parte do falante” e, b) “à maneira
analítica”. Assim, pode-se identificar a enunciação de outrem
enquanto expressão que caracteriza não só o objeto do
discurso (que é, de fato, menor) mas ainda o próprio falante:
sua maneira de falar (individual, ou tipológica, ou ambas); seu
estado de espírito, expresso não no conteúdo mas nas formas
do discurso (por exemplo, a fala entrecortada, a escolha da
ordem das palavras, a entoação expressiva, etc.); sua
capacidade ou incapacidade de exprimir-se bem, etc.
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.164, ênfase do
autor).

Como esclarecem Bakhtin/Volochínov ([1929] 2006, p.164-166) os dois


objetos apresentam dimensões marcada e essencialmente diversas sendo que a
primeira vertente (“a tomada de posição com conteúdo semântico preciso por parte
do falante”) propõe-se a desconstruir sentidos em elementos semânticos
constituintes, supostamente objetivos.
Já a segunda vertente (maneira analítica) volta o olhar analítico para os
níveis linguísticos e estilísticos do enunciado (materialidade discursiva).
Nesse ponto, Bakhtin/Volochínov pondera(m), no entanto que
simultaneamente com o que poderia parecer uma análise
estilística, opera-se também, nesse tipo de transmissão
indireta, uma análise objetiva do discurso de outrem; disso
resulta, portanto, uma decomposição analítica do sentido
objetivo do mesmo modo que da sua forma de representação
113

verbal. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006, p.164-166,


ênfase adicionada).

Ou seja, não há, segundo o(s) autor(es), como separar os elementos


constitutivos de um enunciado, mesmo que se pretenda tratar do objeto à maneira
analítica, com ênfase no aspecto linguístico, posto que as forças de ordem de
estrutura linguística (centrípetas) e as posições ideológicas (forças centrífugas,
orientadoras do discurso) estão intrinsecamente e indissoluvelmente
(inter)conectadas, modificando-se e agindo dialogicamente uma sobre a outra.
Por fim, a essas duas vertentes de objetificação analítica dos enunciados
o autor nomeia “discurso indireto analisador do conteúdo” a primeira e “discurso
indireto analisador da expressão” a segunda. Ademais, esclarece que prender-se a
uma vertente analítica do enunciado de outrem apenas em relação ao conteúdo
implica apreendê-la somente no “plano temático”, permanecendo “surda e
indiferente a tudo que não tenha significação temática”. Isto é, a interpretação
dialógica de enunciados está sempre fadada a uma dada incompletude, à abertura a
interpretações (e construções de sentidos) outras.
Por outro lado, Bakhtin/Volochínov ([1929] 2006, p.165) aponta(m) que
uma variante analisadora de conteúdo “abre grandes possibilidades às tendências a
replica e ao comentário no contexto narrativo, ao mesmo tempo em que conserva
uma distância nítida e estrita entre as palavras citadas”, constituindo-se como
instrumento linear do discurso de outrem, conservando sua integridade e autonomia,
conquanto despersonalize, em certa medida, o discurso citado.
Quanto à vertente analisadora de expressão, o(s) autor(es) pondera(m)
que essa variante, ao trazer o enunciado entre aspas, integra no discurso
as maneiras de dizer de outrem que caracterizam sua
configuração subjetiva e estilística enquanto expressão”, de tal
forma que “essas palavras e maneiras de dizer (...) sua
especificidade, sua subjetividade, seu caráter típico são
claramente percebidos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006,
p.166).

Por conseguinte, adoto esta vertente como variante analítica para minhas
considerações no capítulo a seguir, tomando como categorias referenciais para a
análise o modelo de comunicação discursiva que (re)desenhei em minhas
discussões metateóricas ao longo do capítulo dois (Gráfico 1 : ato de tornar-se em
114

comunicação discursiva). Adoto esse modelo como base para um dispositivo teórico-
analítico por entender que a
noção de interação verbal via discurso é gerada pelo efeito de
sentidos originado pela sequência verbal, pela situação, pelo
contexto histórico social, pelas condições de produção e
também pelos papéis sociais desempenhados pelos
interlocutores (SANTOS; ALMEIDA, 2012, p.77).

Reforçando essa visão, Bazerman (2014, p. 226) afirma que é através da


interação, durante processos dialógicos de construção de sentidos, que emerge(m)
o(s) discurso(s), à medida que nos engajamos a fim de realizar ações socialmente
compartilhadas. Nesse processo, completa o autor, identidades e intenções
pessoais (individuais) se mesclam às características socialmente compartilhadas da
língua(gem) em questão. Dessa forma, a análise de discursos precisa ser
contextualizada na situação/ prática social em que emergem os dados, para que se
possa compreender como operam esses discursos nesse acontecimento social
específico.
Continuando a jornada, dedico o capítulo seguinte à (re)leitura dos dados
desta pesquisa, orientando meu olhar para uma análise de discurso fundamentada
no dialogismo e buscando apoio, como já esclareci, em dispositivo-teórico analítico
que (re)toma alguns dos conceitos discutidos no segundo capítulo à guisa de
categorias para uma análise interpretativa, que integra aspectos linguísticos ao
semântico-objetal (BAKHTIN, [1979; 1992;2003] 2011).
No entanto, antes de olhar para os enunciados que compõem meu corpus
per se (aqueles frutos das interações estabelecidas entre mim e o professor na
etapa primeira da pesquisa) irei trazer, no início do próximo capítulo, alguns
enunciados levantados em documentos que transitam na sociedade, que julgo
serem exemplares da materialização de discursos que circulam nos dias correntes e
que, do modo como vejo, carregam consigo um valor social adquirido que os lança
no domínio ideológico neoliberalista, aquele que reforça a visão salvacionista e
autonomista das TDICs, como as entendo através das observações de Charlot
(2013) e Selwyn (2011; 2014), discutidas no decorrer do capítulo dois. Meu encontro
com esses enunciados se deu, principalmente, através da mediação de postagens
em redes sociais síncronas de que participo e nas quais foram circulados por perfis
constituídos nessas redes sociais com quem me relaciono.
115

Em meu ponto de vista, esses discursos podem apontar vozes projetadas


à maneira autoritária e/ou como discursos de autoridade (BAKHTIN, [1992] 2011) e
que, portanto, não são (vias de regra e invariavelmente) passíveis de (total)
apagamento, e de se tornarem anônimas, nos processos de apropriação discursiva
do professor. De tal forma que justifico sua presença neste início de capítulo a guisa
de suplementação que dá base da qual partirá a discussão acerca da apropriação
discursiva, objeto da leitura dos dados construídos no decorrer da Etapa 1 da
pesquisa.
Para tanto, precisarei lançar brevemente mão do instrumento
metodológico configurado como Pesquisa Documental, que me dará aporte para
abordar enunciados tais quais editais de órgão públicos governamentais
responsáveis por processos educativos, entre outros, a fim de analisar discursos de
autoridade.
Grosso modo, é possível afirmar que a pesquisa documental ainda seja
“pouco explorada não só na área da educação como em outras áreas das ciências
sociais” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986: 38). Uma justificativa metodológica para recorrer a
essa abordagem, de modo a trazer à tona o que penso se caracterizar como
discursos de autoridade é a de que “o uso de documentos em pesquisa (...) permite
acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social” (SÁ-SILVA; ALMEIDA;
GUINDANI, 2009, p. 1)29. Reiterando não ser esta uma das principais metodologias
que dão aporte ao levantamento do corpus principal de minha pesquisa, abstenho-
me de expandir por completo minha discussão acerca dessa abordagem
metodológica. Ressalto que seu papel foi o de ancorar meu acesso a enunciados
que desejo contrapor, dialogicamente, aos enunciados que constituem meu corpus a
fim de justificar e embasar, a conta de ponto de partida para a análise que decorrerá,
os processos de apropriação discursiva que foram alvo de meus objetivos /
perguntas de pesquisa.
Dessa forma, procurei traçar um percurso entre enunciados que,
encadeados, permitissem-me observar (possíveis) caracterizações de apropriações
discursivas, situando-as sempre em acordo e em relação ao participante e ao
contexto desta pesquisa. Ainda buscando apoio em Bakhtin, entendo que

29
SÁ-SILVA, J. R.; ALMEIDA, C. D. de; GUINDANI, J. F. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. In:
Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, ano I, n.1, julho de 2009.
116

o estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros


discursivos é, segundo nos parece, de importância fundamental
para superar as concepções simplificadas da vida do discurso,
do chamado “fluxo discursivo”, da comunicação, etc., daquelas
concepções que ainda dominam a nossa linguística (...) o
estudo do enunciado como unidade real da comunicação
discursiva (...) (BAKTHIN, 2016, p. 22).

Seguindo por essa perspectiva, Bakhtin (2016) esclarece ainda que,


enquanto “unidade real”, é a alternância entre os sujeitos do discurso que estabelece
precisamente limites aos enunciados, em interlocuções estabelecidas à maneira de
réplica ativa, ainda que um interlocutor silencie (externamente) para dar turno ao
outro, em uma interação, uma vez que o dialogo interno não se cala, permanece em
réplica.
É a partir dessa noção de enunciado como unidade da comunicação
discursiva e buscando apoio nas discussões teórico-metodológicas que desenvolvi
até aqui, que darei início, no capítulo a seguir, à minha (re)leitura dos dados que,
assim como foram dialogicamente construídos, também serão analisados.
Tendo em vista a noção de comunicação discursiva que orienta meu
olhar, já adianto a você leitor(a) que, ao longo do próximo capítulo, optei por fazer
uma análise de recortes de meus dados em fluxo contínuo, respeitando e
privilegiando o processo e o ato de tornar-se em comunicação discursiva, ao invés
de, como acontece em diversos outros estudos que adotam abordagens qualitativo-
interpretativistas, organizar os dados por categorias (o que, certamente, seria uma
possibilidade e da qual abri mão em favor de manter a coerência com as bases
teórico-metodológicas em que busco apoio neste texto).
Dessa feita, voltarei a contar meu “causo”, agora sob uma perspectiva
analiticamente orientada.
117

4- DIÁLOGO QUE COMPÕE A JORNADA-PESQUISA: (RE)LEITURA DOS


DADOS

A partir das discussões que estabeleci nos capítulos anteriores, na


análise em que me debruço no decorrer do presente capítulo, parto, portanto, da
ideia basilar de que as interações verbais (comunicação social), constituídas por e
constituintes de discursos, são elaboradas mediante efeito de sentidos em que agem
forças centrípetas e centrífugas, manifestadas pela sequência verbal (nível
linguístico); o contexto histórico e social que marca a situação em que se
desenvolvem essas manifestações (ideologicamente marcadas, portanto) e, dentre
as condições de produção, os papeis sociais que desempenham os interlocutores
participantes de tal interação (em que se manifestam relações de poder).
Para (re)ler os dados dialogicamente gerados nesta pesquisa, retomo a
proposta de Bakhtin / Volochínov ([1929] 2014] que postula(m) que o signo tanto é
um resultado consensual derivado de interações sociais entre indivíduos, quanto
pelas condições materiais em que se dão tais interações. Neste sentido, esta análise
dialógica leva em conta três aspectos elencados como regras indispensáveis por
esses autores, a saber:
1. não separar a ideologia da realidade material do signo
(colocando-o no campo da “consciência” ou em qualquer outra
esfera fugidia e indefinível;
2. não dissociar o signo das formas concretas da
comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de
um sistema de comunicação social organizada e que não tem
existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico);
3. não dissociar a comunicação e suas formas de sua base
material (infraestrutura) (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, ([1929]
2014], p. 45).

Somando a essas três premissas, os autores supracitados acrescentam a


ideia de que, por ser afetado por um índice valorativo (...) não pode entrar no
domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um
valor social (idem, p. 46, itálico pelo autor e ênfase adicionada por mim).
Reiterando a essência dialógica dos discursos, assim como Blackledge
([2012] 2014, p. 617) acato, para a análise que ora proponho, que os discursos
estão não somente ligados às suas realidades sociais, como também uns aos
outros, i.e.; “são moldados e influenciados por discursos outros”, pois o dialogismo
118

está no enunciado, mas também está na palavra “desde que nela colidam duas
vozes”. Nessa direção, a “autoridade da voz autoral está propensa a ser mantida
onde ela pertença àqueles que se encontre em posição de poder na sociedade”
(BLACKLEDGE, [2012] 2014, p. 617), quer dizer, quando seja materialização da
projeção de discurso autoritário e/ou de autoridade.
De onde advém, por conseguinte, minha justificativa para dar início à
minha análise partindo de alguns enunciados que, a meu ver, materializam discursos
socialmente construídos nos dias atuais a fim de reforçar a interface tecnologias
(especialmente as digitais) e melhoramento na educação como uma relação
obrigatória, dada como certa e (por vezes, obvia) de causa e consequência. Relação
da qual implicam a aquisição, o “domínio” e a propagação de tecnologias que
parecem ser conceituadas à forma de técnicas e instrumentos (como discuti com
apoio em Verazto et al (2008) e Selwyn (2014), no decorrer do segundo capítulo).
Nessa direção, dou início à minha análise partindo da apreciação acerca
desses discursos para o que recorri brevemente à Pesquisa documental, como
esclareci no capítulo anterior, a fim de selecionar e elencar alguns exemplares de
enunciados circulados em práticas sociais dos dias atuais – ao encontro dos quais
cheguei por intermédio de diferentes plataformas que se apoiam nos recursos da
internet. Penso que esses enunciados possam ser tomados como exemplares do
que entendo como a manifestação de discursos socialmente compartilhados que
advogam em favor da interface TDICs – educação em direção a melhorias em
processos educativos, ressoando discursos de autoridade.
No entanto, cabe esclarecer que os recortes desses enunciados que
seguem não estão sendo tomados por mim como generalizações e, seguindo
minhas orientações teóricas, compõem sentidos a partir dos contextos em que são
produzidos, circulam e/ou são apropriados (incluindo sua caracterização como
discurso citado, aqui, na presente narrativa, em que os recontextualizo).
Dentre os enunciados recentemente circulados por órgãos
governamentais (quer sejam de ordem federal ou estadual), no âmbito educacional,
estão os que promulgam a presença das TDICs na esfera escolar através de
aparelhos e suportes (tais como tablets) e materiais didáticos (livros digitais e
plataformas educacionais situadas em espaços digitais que oferecem objetos
didáticos). Nesse contexto, tomo como exemplo o discurso enunciado pelo edital
119

“Chamada Pública para Tecnologias Educacionais – 2014”30, publicado pelo


Ministério da Educação.
A Chamada foi justificada por estar “em consonância com sua política de
melhoria da qualidade da educação no Brasil” (ênfase adicionada) e, portanto,
dentro das bases do “Guia de tecnologias educacionais”, parte do PDE (Plano de
Desenvolvimento da Educação).
Não obstante o texto do edital da Chamada, publicado em 30 de janeiro
de 2014, não mencione explicitamente o termo “digital” junto ao termo “tecnologia
educacional”, uma leitura (ainda que rápida) do Guia de Tecnologias Educacionais
publicado em 201331 permite identificar, no campo “recursos necessários” que as
tecnologias lá compiladas e, portanto, “aprovadas” pelo Ministério da Educação
(MEC), envolvem, em menor ou maior grau, o uso de algum tipo de tecnologia digital
(quer seja na forma de DVDs, computadores pessoais, projetores multimídias ou
acesso à internet, entre outros).
No texto da Chamada Pública de 2014, o IDEB (Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica) responsável – conforme informa o MEC –,
pela indicação da média da “qualidade escolar”, está sendo diretamente associado
ao “conjunto de esforços” (no qual se insere o Guia de Tecnologias Educacionais)
para a melhoria da qualidade na educação. De acordo com o Ministério da
Educação, o objetivo do Guia (e, portanto, da “Chamada”) é “oferecer aos sistemas
de ensino uma ferramenta a mais que os auxilie nas tomadas de decisão para a
aquisição de materiais e tecnologias para uso nas escolas brasileiras de educação
básica pública32”.
As áreas contempladas pela Chamada (edital) são muitas e variadas33,
navegando pela formação continuada de professores, passando por áreas de
avaliação e ensino-aprendizagem e comunicação e uso de mídias, entre outras.
Nessa mesma publicação do Ministério da Educação, os enunciados que
definem os “objetivos” dessa chamada, reforçam a ideologia direcionada para uma
visão de relacionamento direto entre uso de tecnologias digitais e a virada

30
Fonte: <http://tecnologiaseducacionais.mec.gov.br/>. Acesso abril 2014.
31
Disponível em <
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13018&Itemid=949>. Acesso jun
2014.
32
Veja o texto completo em < http://tecnologiaseducacionais.mec.gov.br/>. Acesso em abril de 2014.
33
Disponível em <http://tecnologiaseducacionais.mec.gov.br/?pagina=areas>. Acesso em jun 2014.
120

substancial na qualidade da educação (vide especialmente o trecho negritado), ao


afirmar que
ao lançar esta Chamada Pública de Pré-Qualificação de
Tecnologias Educacionais, o Ministério da Educação tem como
objetivo avaliar e identificar tecnologias educacionais que
apresentem condições de promover a qualidade da
educação básica nas escolas públicas brasileiras (BRASIL,
2014, ênfase adicionada).

Do ponto de vista da materialidade linguística, parece-me clara e


explicitada, no enunciado supracitado, a ideia de associação direta entre (novas)
tecnologias (apresentadas tanto como produto/ferramenta, quanto como processos)
e a certeza da melhoria da qualidade de processos educacionais (como sugere
Selwyn, 2011; 2014), que é concretizada no uso do substantivo “qualidade”,
associado ao verbo “promover”, tomados como critério para “identificar” (verbo que
caracteriza a ação / papel que cabe à voz de autoridade tomar) as tecnologias que,
de fato, atendam a tal premissa.
A adoção de verbos no infinitivo reforça, a meu ver, a voz de comando, de
autoridade a quem (ela própria) empresta um caráter basilar, fundamental, na tarefa
de determinar o que deve ser considerado como tecnologias “que apresentem
condições” de alavancar processos educativos (que se tornam reducionisticamente
simplificados, mediante tal associação: adoção de tecnologias – melhor educação,
em posição causa-efeito).
No campo semântico-objetal, creio que seja também possível imaginar
que a voz de autoridade pressupõe, a priori, que há alguma diferenciação passível
de ser estabelecida entre tecnologias que podem “promover a qualidade da
educação básica” e outras que talvez não “apresentem condições de”, muito embora
não fique claro quais seriam os critérios para que se possa processar tal avaliação,
i.e.; o que exatamente torna tais e tais tecnologias educacionais mais aptas a
atender à essa megafunção automática e autônoma de melhorar a educação em
escolas públicas ?
Também não são esclarecidos os parâmetros para o que se julgue ser
“qualidade” nos processos educativos (abusando do uso desse substantivo
“qualidade”, como aponta Biesta (2010)) e, muito menos, quais os objetivos
concretos dessa educação (os por quês para essas tecnologias). De tal forma que,
121

em princípio, a palavra “qualidade”, enquanto um signo ideológico (bakhtinianamente


compreendido) é concebido pelo locutor (o MEC) como se tivesse um único sentido,
fechado, e socialmente compartilhado (entre todas as camadas e esferas sociais!).
Esse “sentido” (no singular, unitário e encerrado no termo) é tomado a priori,
portanto, como se fosse óbvio, finito (bem a exemplo do que sugere Biesta em suas
discussões) e pudesse ser imediatamente acessado/compartilhado pelo interlocutor
(a quem se dirige o enunciado da Chamada).
De tal forma, com apoio em Bakhtin (1981), entendo que o enunciado em
destaque carrega consigo enunciados (e vozes) passados, já constituídos social e
historicamente, no que diz respeito ao pressuposto papel das tecnologias que o
órgão público (enunciador) deseja “adquirir” após “pré-qualificar” tais recursos. Note-
se que a escolha pelo verbo (também no infinitivo) “adquirir” empresta ao termo
tecnologia um caráter de produto, commodity, reforçando a visão de tecnologia
como sinônimo de instrumento e, portanto, conectada à ideia de técnica, como
sugerem Verazto et al (2008), passível de ser usada e “possuída” por um “usuário”,
visto, por sua vez, como um indivíduo passível de existir/constituir-se fora do
discurso.
Acredito que seja possível pensar que esse mesmo enunciado já antecipe
e anuncie a cadeia estabelecida com possíveis enunciados futuros (dentre eles, os
das propostas que eventualmente foram enviadas para avaliação), encadeando
discursos que determinam caminhos para um olhar de política pública para a
educação básica, que também acaba por ressoar à moda de discurso de autoridade
para o setor privado da educação, já que essa voz que carrega a autoridade está
apta a “pré-qualificar” as tecnologias que nos enunciados futuros, a serem
apresentados a guisa de “propostas” de oferecimento dessas tecnologias
educacionais serão consequentemente construídos a partir dos parâmetros
orientados na “Chamada” (que, como o substantivo comum que se tornou próprio
nomeia, se configura como uma convocatória da voz de autoridade).
Outro exemplar que trago à luz desta análise advém de uma publicação
(hipertextual) que eu mesma fiz no Padlet em que estabelecíamos diálogo o
professor e eu:
122

Figura 3: Link para artigo publicado em meio digital. Disponível em http://porvir.org/professor-e-


crucial-na-mudanca-tecnologica-diz-unesco/20141125/. Acesso: outubro de 2016.

A figura três apresenta uma foto-impressão digital da postagem com o


hiperlink para um site34 que compartilhei com o professor-participante e que, a meu
ver, se configura como outro exemplar de discurso de autoridade acerca da
interface educação e tecnologias que circula na sociedade contemporânea e, muito
comumente, é (re)vozeado através de meios digitais. Nesse caso específico, eu
entrei em contato com esse enunciado através de postagens que apareceram na
“linha do tempo”, em meu perfil, em uma rede social síncrona de que participo. Note-
se que ao transportá-lo para o Padlet e ao trazê-lo para esta pesquisa também eu o
revozeio, tornando-o por um exemplar de discurso citado
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, [1929] 2006).
O contexto de produção inicial desse enunciado já denota, aliás, a citação
do discurso de outrem, já que se trata de chamada para a leitura de um artigo
baseado em um documento lançado pela UNESCO35 (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que foi publicado num site intitulado
“Porvir”, que se dedica a compilar discussões em torno de temas de interesse para
educadores, a partir da ótica da “inovação” nos processos educativos (o site -
informado na nota de rodapé 33 – pode ser acessado para maiores informações).
A voz do enunciador (site Porvir), a meu ver plurivocal e heteroglóssica
(no sentido de trazer, em seu contexto de produção, diversidade de vozes

34
Veja mais em: http://porvir.org/. Acesso em 10 de jan 2017.
35
Veja mais sobre essa organização em: http://en.unesco.org/. Acesso em 26 de out de 2016.
123

discursivas, social e devidamente indexadas), revozeia um enunciado de outrem (a


UNESCO) que, neste caso específico, se trata de um órgão a que se reputa discurso
de autoridade configurando (volitivamente?) um discurso duplamente orientado,
ou seja, “aquele em que o autor inclui o discurso do outro em seu plano, em seu
projeto discursivo”, como esclarece Brait ([2009] 2013, p. 65).
É, portanto, mantida uma voz autoral do discurso apropriado, já que essa
voz pertence a um locutor em dada posição de poder na sociedade em que circula
esse discurso, como sugerido por Blackledge ([2012] 2014). Por conseguinte, a
autoridade reputada à UNESCO parece estar posicionada no enunciado tal qual
força centrífuga de maneira a endossar a ideia que perpassa a assertiva “professor é
crucial na mudança tecnológica” e de modo que a orientação ideológica permanece
sem apagamento (mantendo a unificação, a centralização, uma orientação
centrípeta tendendo à estabilização e a unicidade). Ao exemplo de apropriação à
maneira de um discurso de autoridade, mantêm-se as palavras-alheias, trazidas
como palavras-alheias-próprias pelo enunciador (site Porvir), a fim de legitimar seu
discurso interno. Isso equivaleria a pensar que, nas entrelinhas do texto, há uma
ideia subjacente, algo semelhante a dizer que “como é a UNESCO quem fala, deve-
se acatar a afirmação”.
Tomada em sua propriedade enunciativa, a assertiva “professor é crucial
na mudança tecnológica” reforça as ideias de inevitabilidade da presença dessas
tecnologias nos processos educacionais (CHARLOT, 2013) e do papel que se
espera de um professor nos dias correntes. A escolha pelo adjetivo “crucial” traz um
termo semanticamente permeado por uma condição de caráter fundamentalista: sem
o “professor”, substantivo a que se refere “crucial”, e que nesse caso é tanto o
sujeito da frase quanto da tal “mudança” pretendida, essa “mudança” não acontece.
Esse sujeito (da frase, no aspecto linguístico do enunciado) e da ação (no
aspecto semântico-objetal de sujeito-social a quem cabe desencadear uma
mudança) recebe por tarefa não somente comprometer-se com a interface
tecnologia-mudança na educação, mas é chamado a assumir seu caráter “crucial”,
portanto, de fundamental importância, para que tal relação se estabeleça a contento.
A voz autoritária (a quem não cabe oposição) e que fala com autoridade,
ao recorrer ao adjetivo “crucial” é endossada pela UNESCO “corporificando o ato de
fala” e, também, mergulhando esse ato na heteroglossia, como sugere Bakhtin
(1981, p. 272), já que envolve diferentes vozes advindas de posições socialmente
124

estratificadas (a do site que se dedica a “inovações” educacionais, à da UNESCO,


como organismo internacionalmente reconhecido nos processos relacionados à
educação, cultura, políticas educacionais e pesquisas científicas, etc.).
O argumento que reforça a urgência para que o professor assuma essa
responsabilidade imanente diante da interface tecnologias-educação vem enunciado
por “jovens de hoje já dominam celulares”. A escolha de “dominam” como verbo para
expressar a relação do aluno dos dias presentes com as tecnologias digitais (e
nesse caso, móveis) reflete a noção de tecnologia como instrumento, produto a ser
conquistado e subjugado, igualmente, pelo professor. De tal modo, a ideologia que
permeia tal discurso remete-nos à ideia de que, a fim de encontrar espaços
profissionais no mercado de trabalho neoliberal, o professor deve, obrigatoriamente,
equiparar-se a esse jovem (estereotipado e homogeneizado pela generalização que
aponta para “jovens de hoje” – como se todos se encontrassem em contextos e
situações sociais similares em que viver tecnologias digitais é um dado, um fato
concreto, possível, desejável e onipresente) e conquistar o “domínio” desse território
chamado “tecnologias” (igualmente generalizadas pelos enunciados).
Reforçando novamente o lugar de voz de autoridade que parece ocupar
a UNESCO no que tange a discursos construídos em torna de questões da interface
educação e tecnologias, trago ainda mais um exemplar ao qual cheguei por
intermédio da mesma rede social de que participo (vide Figura 4).
125

Figura 4: Link para artigo publicado em meio digital. Disponível em:


https://www.facebook.com/olhardigital/photos/a.364500013560954.94163.135284343149190/927367
103940906/?type=1&theater. Acesso em 12 de janeiro de 2017.

A Figura 4 apresenta a foto-impressão digital de uma publicação circulada


por outro site, o “Olhar Digital”36, (que divulga o link para seus artigos publicados em
postagens em um perfil em rede social). A postagem intitulada “8 razões para
defender o uso do celular na sala de aula”, traz à tona, mais uma vez, a interface
tecnologias móveis – educação em esfera escolar, desta vez com apoio nas “razões”
pelas quais a presença desses aparelhos deve ser não somente acatada mas
“defendida” pelos interlocutores a quem se dirige esse enunciado.
O site (e, por conseguinte, seu perfil em rede social) em questão não é
dedicado exclusivamente às questões do âmbito educacional que, neste caso,
aparece como subtema do seu foco principal que é abordar as relações entre “as
pessoas” e o “mundo da tecnologia”, como informam os responsáveis no item
“sobre” em seu perfil de rede social.
A postagem, multimodalizada em texto verbal e imagético, enuncia, a meu
ver, um discurso de polêmica velada (BAKHTIN, 2008; 2013) ao afirmar, no campo
verbal, que o “uso do celular na sala de aula” deve ser “defendido”, como esclareço
a seguir.
Chama-me à atenção a escolha pelo verbo “defender”, que dá ares de
luta, batalha. No campo semântico-objetal, é possível pensar que a ideia de “defesa”
pressupõe ataque. Logo, de maneira velada, o enunciado está em diálogo com
enunciados outros, passados/presentes que, ao que parecem, materializam
discursos contrários em relação ao objeto do discurso (o uso de celulares em aula).
A manifestação de um dialogismo que se configura por relações interdiscursivas37,
(re)vela dessa forma, no discurso, uma polêmica velada.
Há uma preocupação em buscar apoio argumentativo com base
quantitativa: o numeral “oito” aparece à frente, na frase, indicando que são vários
(não apenas um ou dois) os motivos (“razões”) pelos quais se deve acatar essa
36
Segundo informa a página inicial do perfil do site em rede social “o Olhar Digital nasceu em fevereiro de 2005
com a missão de integrar o maior número possível de pessoas ao mundo da tecnologia. Nossa equipe entende
que, hoje, fazer parte desse universo é uma necessidade básica e deve ser acessível para todos.” Informação
disponível em: https://www.facebook.com/pg/olhardigital/about/?ref=page_internal. Acesso em 12 de jan
2016.
37
Termo que empresto de Paulo Bezerra, como o emprega em seu pré-texto à tradução que fez na 5ª edição
de Problemas da poética de Dostoiévski (BAKTHIN, 2013, p. XXII).
126

assertiva. O substantivo “razões”, sustentado pelo espectro de variação que denota


o numeral “oito”, aponta para os argumentos que amparam a tese apresentada (uso
“mais que justificado” do celular em aula).
Em relação à imagem, que como aponta Bakhtin também é representação
materializada do signo ideológico, é possível interpretá-la, enquanto parte
constituinte do enunciado (e não meramente ilustração) já que apresenta uma tarefa
(impressa em papel) sobre a mesa sobre a qual se debruçam diversos “estudantes”
(as quatro diferentes mãos) que estariam, supostamente, utilizando seus celulares
como suporte / meio auxiliar na execução de tal tarefa (refletindo e refratando a ideia
da tecnologia como ferramenta, que estaria “facilitando” a parte burocrática do
trabalho docente / discente, a exemplo do que aponta Charlot (2013)).
É possível ainda identificar, na imagem, que nas telas dos celulares
aparecem gráficos; mapas, tabelas, (talvez, um site de busca?), sugerindo prováveis
papeis que essa tecnologia poderia exercer, enquanto aporte a certos
procedimentos didático-pedagógicos em processos educativos.
O apelo de ordem da visão neoliberalista da educação, remete a noção
de autonomia do aluno em sua própria aprendizagem, o que fica reforçado na
imagem que omite a presença de um professor que, nesse caso, teria talvez
entregado a tarefa (não se sabe por que, em papel impresso (?) – talvez esse
professor imaginado ainda não esteja “assim tão” integrado às práticas
tecnológicas...), deixando a cargo dos estudantes o estabelecimento da interface
com a tecnologia digital (e, talvez, apoiá-la em trabalho colaborativo já que a
imagem sugere que cada celular, i.e., cada estudante, estaria acessando um tipo de
informação que, talvez, completaria aspectos diferentes da tarefa proposta (?)).
Ao lado desse enunciado multimodal, há um texto verbal que me remete a
outro enunciado. Esse enunciado que, ao exemplo do que sugeri em relação à
Figura 3 está igualmente permeado por discurso de autoridade, também ressoa
discurso duplamente orientado, mantendo a voz de autoridade sem apagamento,
ao declarar que “até a UNESCO preparou uma lista com bons motivos para usar
cada vez mais o celular em ferramenta pedagógica” (ênfase adicionada).
“Até”, que é um termo denotativo (uma expletiva), não tem função
sintática, mas tem por importante função semântica trazer a ideia de inclusão –
como sinônimo de “também, inclusive” –, o que, neste caso, está apoiando a
discussão em voz de autoridade (novamente a UNESCO, voz autoral ecoada, que o
127

enunciador não deseja apagar por ser legitimadora, daí o discurso duplamente
orientado). Essa inclusão (“até a UNESCO”) está, portanto, contraposta à ideia de
exclusão que estabelece, assim, a polêmica velada. Exclusão subentendida que,
neste caso, talvez seja representada por certas vozes que, situadas em contextos
educacionais, não acatem ainda (em suas práticas) a ideia postulada na tese de que
há variadas “razões” para justificar a presença de tecnologia móvel em situações de
ensino-aprendizagem formal (como fora esse um tema indiscutível, óbvio e já aceito
como certo).
Do ponto de vista semântico, portanto, a ideia subjacente aqui parece ser
a de que se “também a UNESCO” se deu ao trabalho de listar “bons motivos” para
que essas tecnologias façam parte de fazeres docentes, por que ir de encontro a
essa ideia? (o que significaria contestar discurso de autoridade, ao invés de
torná-lo palavras-alheias-próprias).
Na contramão da legitimação discursiva, que apropria a palavra-alheia
sem o apagamento de sua voz autoral, seguiria o exercício da suspeita sistemática
(LUKE, 2004; SULLIVAN, 2012), um “desconfiar” das relações causa e efeito em
relação às tecnologias educacionais, como sugere Selwyn (2012; 2014).
Seguindo por esta direção, poder-se-ia então questionar que não fica
claro, mesmo lendo o artigo hipertextualizado na postagem, como: de que ponto de
vista esses “motivos” poderiam ser considerados “bons”? Bons por que e para
quem? Seria essa uma assertiva que poderia ser generalizada, dessa forma, para
todo e qualquer contexto de sala de aula brasileira? Todos e todas os /as estudantes
estariam “equipados”, a priori, então, com equipamentos celulares e acesso à
internet? Como apontei anteriormente, no contexto em que realizei esta pesquisa,
por exemplo, a tese defendida no enunciado (Figura 4) não poderia se aplicar, uma
vez que as materialidades tecnológicas daquele contexto escolar não atenderiam ao
requisito básico que, nesse caso, seria sustentar o uso da internet pelos discentes
em seus próprios dispositivos móveis (o qual, aliás, muitos alunos de lá não
possuíam, inclusive).
A ideologia neoliberal (remeto-me aqui à discussão estabelecida por
Giroux (2004) que trago no capítulo três) que permeia os enunciados supracitados
reforça também, a meu ver, o tecnicismo apontado por Charlot (2013) e toma tais
discursos a priori e como fundadores das relações educacionais nos dias de hoje, de
modo que configura um dos primeiros abismos que se destacou nesta jornada-
128

pesquisa: a ideia socialmente difundida de que, contrariando o caráter dos


processos educacionais historicamente tipificados, a contemporaneidade reverte a
relação cognoscente/cognoscível (BAKHTIN, ([1979;1992;2003] 2011, p.395),
indicando um discente que guardaria em si recursos de alcance a informações para
a construção e o acesso a um saber socialmente compartilhado e ao qual teria
acesso fora do ambiente escolarizado, forçando o reposicionamento do sujeito
(social) professor nesse processo.
O docente, dessa forma, está (re)posto em condição de desvantagem,
diante de um abismo ou, como se diria popularmente, tem que correr atrás do
prejuízo e (re)assumir sua relação (de poder / hierarquia) nesse processo, através
da apropriação do discurso tecnologista; apropriar-se e assumir sua posição “crucial”
(como sugere o enunciado na Figura 3), diante de um saber que é caracterizado
nesses enunciados, nas práticas sociais em que circulam, como se fora “a
expressão da coletividade, dos povos, das épocas, da própria história, com seus
horizontes e ambientes” (BAKHTIN, [1979;1992;2003] 2011, p.395). O não
(re)posicionamento docente nesse contexto discursivo encaminharia, portanto, à
ideia de que os processos de ensino e aprendizagem formal, a escola, deixariam,
em dado momento, de ser relevantes e/ou necessários (como já discutido por alguns
pesquisadores, a exemplo de Lemke (2010)).
De toda a sorte, os enunciados analisados até aqui materializam
discursos constitutivos e circulados em práticas sociais que são exemplares de
olhares contemporâneos para a interface tecnologias-educação e, de certa forma,
servem de bases contextuais para as práticas educacionais e de pesquisa
desenvolvidas nos dias correntes, o que já me permite, assim encaminhar a
discussão para os enunciados que propriamente caracterizam o corpus central desta
análise.
Penso que já seja, então, possível mover esta discussão em direção a
(uma e não a) leitura de dados gerados na Etapa 1 com vistas a pensar as
implicações de apropriações discursivas nos processos em que algumas TDICs
fizeram parte dos fazeres do participante. Antes de transpor aqui os recortes per se,
no entanto, farei alguns esclarecimentos que julgo necessários para o melhor
entendimento do percurso que fiz ao trazer excertos de meus dados à luz de análise.
Como já esclareci, os dados desta investigação são compostos por
enunciados decorrentes das interações comunicativas orais e escritas, estabelecidas
129

ao longo das diferentes fases da Etapa 1 da investigação (já explicitada no capitulo


três). As gravações em áudio foram transcritas (veja em Anexos o quadro com
símbolos utilizados para a transcrição de interações gravadas em áudio). Já os
excertos de postagens do Padlet estarão aqui transpostos ipsis litteris, tal qual foram
lá escritos, a fim de preservar as características estéticas (a base material / a
infraestrutura dos signos), como sugerem Bakhtin/Volochínov, ([1929] 2014], p. 45),
durante a análise.
Noto ainda que, conforme informei no capítulo anterior, o professor
demorou um tanto a se adaptar ao Padlet enquanto plataforma para nossas
postagens. Por essa razão, alguns dos primeiros relatos escritos foram enviados por
ele para mim via mensagem de e-mail e, posteriormente, copiados em postagens no
Padlet (o que, aliás, constituiu parte de um processo de letramento digital desse
professor, como sugeri anteriormente).
Como apontei no Quadro 1 (vide capítulo três), a Etapa 1 deste estudo foi
caracterizada por diversas fases, interpostas e em um movimento de ir e vir, mas
que tiveram início com encontros presenciais, na escola, em que eu e eu professor
interagimos de forma a identificar suas necessidades / dificuldades, advindas das
realidades de seu contexto de atuação e traçar conjuntamente um plano de ação
que envolvesse a continuidade do planejamento (proposta) já elaborado e posto em
ação por esse professor, em relação à presença de algumas TDICs em suas aulas
de inglês com os 8º e 9º anos; colocar esse plano em prática, retomando nossa
discussões durante/após cada aula, traçando novos planos, retomando as
discussões e assim por diante. Nesta análise, os abismos identificados e as pontes
construídas não estão dicotomicamente posicionados, mas, sim, fazem parte de um
processo de construção a partir dos fazeres do professor e seu contexto de trabalho.
Resumidamente, a proposta (como o professor a chama) de interface com
as TDICs nas aulas de inglês consistia em uma série de atividades didáticas que
esse docente já havia instaurado em seus planejamentos e fazeres, em aulas no
semestre anterior ao início de nossa parceria. Essas atividades (mais ou menos
organizadas paralelamente ao currículo oficial, estipulado pelos conteúdos do
Caderno do Aluno38) contaram com a presença/mediação de tecnologias digitais
síncronas tais quais: a plataforma de exercícios à moda gameficada, o Duolinguo (já

38
SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Material de apoio ao currículo do estado de São
Paulo: Caderno do Aluno – Inglês, Ensino Fundamental- anos finais (nova edição). São Paulo: CGEB, 2014-2017.
130

previamente mencionado neste texto), além do uso de sites na WEB para a


realização de pesquisas, entre outros recursos e apps que irei descrevendo à
medida que discutirei os recortes dos dados. As tecnologias foram acessadas a
partir do uso da sala do Acessa39 e da sala-biblioteca com lousa digital e
equipamento multimídia (computador e projetor).
Grosso modo, essa proposta seguia, então, dois caminhos: a)
estabelecimento de uma base mínima para a construção sistêmica e lexical da
língua inglesa (tarefa para qual ele contou com o Duolinguo e, de forma sequencial e
paralelamente a essa ação, b) o trabalho colaborativo dos alunos a partir do gênero
canção popular (que também contou com apoio de diversas tecnologias digitais,
como descreverei a seguir).
Mais adiante no semestre, a partir do diálogo estabelecido, o professor e
eu adicionamos outras atividades a essa proposta, que também implicavam a
presença de TDICs, como discutirei no decorrer desta análise.
No entanto, como informei no capítulo três, o recorte dos dados não será
apresentado necessariamente de acordo com a data em que cronologicamente se
deram as interações (quer sejam orais ou escritas), mas está organizado de maneira
a proporcionar a você, leitor(a), a oportunidade de acompanhar o desenrolar dos
acontecimentos (tendo em mente as comunicações discursivas) em que dialoguei
com o participante, aqui apresentado à maneira narrativa.
Perceba que, ao trazer esses recortes estou expandindo, de maneira
implícita, o andamento de cada uma das fases da Etapa 1 da PAP que, como
expliquei no capítulo três e resumi no Quadro 1, foram sobrepostas, em um ir e vir, já
que nossas discussões acerca do planejamento partiram de ações já em curso
adotadas pelo professor antes do início de nosso diálogo e que foram sendo
adaptadas às realidades contextuais no decorrer do semestre letivo.
Dessa forma, darei início à análise trazendo um recorte de uma postagem
feita no Padlet em setembro e, mais adiante, oportunamente, retornarei a trechos da
interação oral estabelecida em 19 de agosto. Escolho começar com esse recorte
porque entendo que esse registro tenha sido a primeira interação em que o
professor registrou suas palavras-próprias, relatando nosso trabalho via PAP a partir
de seu locus.

39
Já mencionada por mim no capítulo 1, quando esclareço o contexto da pesquisa.
131

Dessa maneira, trago excerto do primeiro relato escrito pelo professor,


datado de 02 de setembro de 2015, como aparece postado em nosso Padlet:
Hoje eu tive a alegria de contar com a presença da professora
Eliane em algumas de minhas aulas, nossa troca de
experiências foi muito rica, algumas dicas valiosas me foram
passadas, a academia dentro da sala de aula melhora tanto
educadores quanto educandos (...) nosso interesse comum [o
de Eliane e o do professor] é o uso das novas tecnologias
como uma estratégias didática para despertar o interesse do
aluno em relação a língua inglesa (...).

Na primeira parte do excerto supracitado, em que o professor estabelece


um diálogo (no sentido proposto por Bakhtin/Volochínov, [1929] 2014, p. 127)
comigo, embora me enderece em terceira pessoa (“presença da professora Eliane”),
parece haver, dentre outros aspectos, indícios da pluralidade vocal (diferentes
vozes), marcadas por um falante que “participa da heteroglossia social e histórica
(as forças centrífugas, estratificantes)” (BAKHTIN, 1981, p. 272), da heteroglossia
que, a meu ver, se configura no enunciado que ressoa diferentes vozes, constituídas
em diferentes estratos da sociedade (a voz do professor e a voz da academia).
Essas vozes parecem estar em um conflito velado, já que ressoam o discurso que
afirma existir um distanciamento academia-escola e proclamam benesses em tal
(re)aproximação (que acontece em decorrência de minha presença): “(...) a
academia dentro da sala de aula melhora tanto educadores quanto educando”.
Essas pluralidades de vozes, advindas de diferentes estratos sociais, permeiam o
discurso internamente persuasivo que apresenta como palavras próprias
(materializadas na assertiva “a academia dentro da sala de aula melhora tanto
educadores quanto educandos”) as palavras-alheias cuja voz autoral sofreu
apagamento ao longo do processo de apropriação discursiva.
Do ponto de vista linguístico, as vozes estão indexadas à escolha do
substantivo “academia”, que é associado a mim, após ter sido inicialmente
apresentada por “professora Eliane”. O registro dialógico estabelecido pela PAP que
configura a “professora” (e não a pesquisadora), que de tal forma assume posições-
sujeito diferentes, embora concomitantes: Eliane é, simultaneamente, a professora,
a interlocutora que vem ao contexto do falante (professor-participante) dialogar para,
estabelecer (exotopicamente) a “nossa troca de experiências” (denotando certo
grau de igualdade social) e a pesquisadora, representante de outro estrato social (a
“academia”), tipificada como portadora de uma voz que advém de posição social
132

diferente daquela da professora e do professor (daí a heteroglossia), indiciando as


relações de poder percebidas pelo participante, relações que não permitem
apagamento da hierarquização, ainda que subentendida (um dos fatores conflitantes
quando se propõe trabalhar a PAP, como esclareci no capítulo três).
Minha posição sujeito está sendo permeada então, pela bivocalidade:
primeiramente, como a colega “professora” e, a seguir, como representante da
“academia” que, ao aproximar-se da escola (o que implica que há um pré-suposto
distanciamento) pode promover benesses aos processos educativos, ideia
sustentada por “melhora”, nesse caso um verbo que é usado à maneira assertiva. A
chamada melhoria implica, portanto, que, do ponto de vista da voz enunciadora (o
professor participante) há consciência de que existe abismos em seus próprios
fazeres (sua posição sujeito-enunciador é aqui generalizada, levada em dêixis a
terceira pessoa, traçando seu lugar de sujeito social com a pluralização de
“educadores” e a expansão da ideia de melhoramento aos “educandos”).
Esse enunciado reflete e refrata a valoração atribuída através do
emprego dos termos “alegria” e “rica”, que dão a entoação ao texto verbal escrito,
constituindo os valores que norteiam o discurso de que se apropria o locutor, à
maneira de palavras-próprias. Qual seria o motivador para essa “alegria”? Talvez,
arrisco pensar (usando o direito e as possibilidades de interpretação que me
proporciona o signo, a palavra, como informa Bakhtin) que a presença de “Eliane”
aqui, sua relação exotópica/participativa, sinalizaria o olhar do professor para as
bases da construção de possíveis caminhos (pontes) na direção de
aproximar/minimizar os abismos que enfrenta em seu lugar-profissão. Como sugere
Bakhtin ([1979; 1992; 2003] 2011, p. 289), a “alegria” representa, dessa forma, a
expressividade do enunciado, a maneira como o falante (professor) se relaciona
com o tema, nesse momento.
Ainda retomando o mesmo trecho (ênfase adicionada):
hoje eu tive a alegria de contar com a presença da professora
Eliane em algumas de minhas aulas, nossa troca de
experiências foi muito rica, algumas dicas valiosas me foram
passadas, a academia dentro da sala de aula melhora tanto
educadores quanto educandos (...) nosso interesse comum é o
uso das novas tecnologias como uma estratégias didática para
despertar o interesse do aluno em relação a língua inglesa.
133

As “dicas” que foram “passadas” são denotadas como “valiosas”,


reforçando o olhar do professor que mantém em destaque o lugar-pesquisadora de
Eliane, extraposta a seu contexto de trabalho, mas que é portadora de uma voz de
autoridade (a voz da “academia” a que representa) que permite “passar” dicas. A
escolha desse verbo, que implica a transmissão (de conhecimento), reforça a
posição da voz de autoridade (a que vem da academia) em oposição à primeira
posição-sujeito a que assume Eliane quando é introduzida como a “professora” com
quem se estabelece “troca de conhecimentos”.
Note-se que de uma noção de construção compartilhada de saberes
(professores em “troca de conhecimentos”) o discurso, conflituoso, que emerge a
seguir, aponta para a ideia de transmissão de informações em que a relação de
poder é estabelecida a partir da posição da voz de autoridade (“academia”) que
transita o objeto do discurso (a presença de Eliane no contexto do locutor) para
uma transmissão de informações adquiridas (“as dicas valiosas me foram
passadas”).
Em relação aos dêiticos, é possível ver o embate discursivo enunciado
pelo locutor que era um sujeito (sintaticamente) marcado pela primeira pessoa do
plural (registrado pelo adjetivo “nossa” em “nossa troca de experiências” –
remetendo ao sujeito nós), que é, logo a seguir, demovido dessa pluralidade quando
o locutor escolhe a voz passiva, assumindo lugar de objeto do verbo “passar” (usado
com sentido de transmitir) “dicas valiosas me foram passadas”, demovendo, ao
mesmo tempo, o caráter colaborativo da professora Eliane, quando essa assume
posição de representante da academia, da voz de autoridade e é tratada no singular.
Desse embate discursivo, metalinguisticamente materializado, advém a identificação
de duas diferentes posições cronotópicas em relação ao locutor/enunciador.
Por um lado, caminhando para além do tema e do objeto de discurso
desse enunciado, é possível perceber um não-dito. Ao me convidar para
compartilhar suas práticas e vivências em seu contexto de ensino, simultaneamente
adentrando o contexto de minha jornada-pesquisa, quero crer que esse professor
tenha se colocado cronotopicamente em tempo-espaço semelhante ao
biográfico. Colocando-se em praça pública, o professor resolveu agir, segurar as
rédeas de sua (imposta?) tarefa em relação às práticas profissionais que lhe são
esperadas na sociedade contemporânea, expôs a si mesmo, tornou-se “nós”,
134

“compartilhando experiências” com “alegria” – i.e.; ao menos no início desta nossa


jornada...
Por outro lado, ao posicionar-se discursivamente como uma voz
socialmente submetida à recepção de saberes vozeados pelo discurso de
autoridade (caracterizado pela “academia”), (re)posiciona-se em um cronotopo
entre tempo real e da aventura, deixando a cargo de uma voz de autoridade
“passar as dicas valiosas”, das quais sente necessidade, mas assumindo papel de
recipiente passivo de tais saberes, já que demoveu a si mesmo do papel (inicial) de
colaborador (que pressuponha a “troca de experiências”, os saberes compartilhados
em posição de igualdade por ambos interlocutores).
Esse posicionamento pode resultar, no âmbito da educação, na validação
de posições que, se tomadas a partir de orientações ideológicas neoliberalistas e
racionalistas, sustentem um lugar privilegiado da academia como detentora de (um)
conhecimento desejado – motivadas por forças centrípetas, essa mesma posição
pode ser reforçada no próprio relacionamento estabelecido entre os alunos e o
professor (e, neste caso, também a pesquisadora), de forma que restaria aos
discentes aprender aquilo que o professor (e a pesquisadora) julgarem mais
pertinente (ainda que sob a égide de motivar os discentes).
Mais adiante ainda nesse mesmo relato datado de 03 de setembro de
2015, o professor informa:
(...) nosso interesse comum [o de Eliane e o do professor] é o
uso das novas tecnologias como uma estratégias didática para
despertar o interesse do aluno em relação a língua inglesa.

O excerto supracitado marca a retomada do locutor enunciador em


primeira pessoa do plural (através do adjetivo “nosso”, dêixis designadora do
locutor), aproximando novamente as vozes (da pesquisadora e do participante),
correlacionadas pelo suposto interesse comum (o objeto do discurso enunciado
como “uso das novas tecnologias como uma [sic] estratégias didáticas”, cuja
finalidade é justifica como “para despertar o interesse do aluno em relação a língua
inglesa”).
Do ponto de vista semântico-objetal, percebo que nesse enunciado a
retomada pela posição-sujeito pluralizada (compartilhada) aponta para ideia de
buscar apoio na voz de autoridade para as escolhas já feitas anteriormente posto
que, como já informei, o professor veio me procurar para esse trabalho colaborativo
135

quando já havia estabelecido em seus próprios objetivos, planos e aulas de inglês, a


presença de (certas) TDICs, tomadas por ele a conta de “estratégias didática”, como
esse professor esclarece na continuidade do relato acima ao escrever, logo a seguir,
que
(...) nosso interesse comum [o de Eliane e o do professor] é o
uso das novas tecnologias como uma estratégias didática para
despertar o interesse do aluno em relação a língua inglesa.
tenho alguns alunos apáticos, indisciplinados e de difícil
maneja dentro dos meios convencionais que ao lhes ser
oferecido o acesso ao computador, acesso a um trabalho com
lousa digital passa a contribuir positivamente para o bom
andamento da aula.

Perceba-se a retomada do locutor em primeira pessoa do singular


(indexado no sujeito oculto ao verbo “tenho”) que redireciona o objeto do discurso
(presença das tecnologias nas suas aulas de inglês) para as práticas e fazeres,
contextualizados no universo discursivo do locutor.
Noto, no entanto, que apesar de ter apontado anteriormente para um “uso
das novas tecnologias como uma estratégias didática para despertar o interesse do
aluno em relação a língua inglesa”, o texto que segue enuncia outras razões pelas
quais essas “novas tecnologias” a que se refere teriam sido integradas a suas
práticas, já que informa que “ao lhes ser oferecido o acesso ao computador, acesso
a um trabalho com lousa digital”, esse professor observa que “alguns alunos
apáticos, indisciplinados e de difícil maneja dentro dos meios convencionais” (ou
seja, na sala de aula mediada pelas tradicionais carteiras, materiais digitais
impressos e lousa de giz), “passa a contribuir positivamente para o bom andamento
da aula.”
Dessa virada, no campo semântico, do olhar do enunciador em relação a
seu objeto de discurso (“uso das novas tecnologias na aula de inglês”) vejo emergir
uma possível polifonia discursiva , já que há vozes diferentes, e que não se
sobrepõem ou silenciam, contemplando um mesmo objeto a partir de diferentes
pontos de vista (BAKHTIN, 1981). Ou seja, em uma primeiro momento, o discurso
anunciado é o que advoga a “utilidade (uso)” das “novas tecnologias” como “uma
[sic] estratégias didática para despertar o interesse do aluno em relação a língua
inglesa”.
136

A seguir, o mesmo objeto é apreciado como elemento que “passa a


contribuir positivamente para o bom andamento da aula”, não sendo associadas as
suas (possíveis) contribuições na construção de processos de ensino e
aprendizagem da língua alvo (o inglês), mas, sim, sua interface com o referido lidar
com esses alunos que são apreciados com os adjetivos “apáticos, indisciplinados” e
contemplados como sendo “de difícil manejo”, o que indica a expressividade do
enunciado. A aparente falta de interesse desses alunos, apontada pelo professor
como sinal de apatia diante da própria aprendizagem é, portanto, associada a outro
problema de ordem de gerenciamento de sala de aula: a indisciplina. Nesse sentido,
é possível pensar que as tecnologias são trazidas às aulas de inglês, a fim de
“aliviar” o docente de certas tarefas, permitindo-o focalizar outros fazeres no
processo educativo, como sugerido por Charlot (2013).
Nessa direção, as “novas tecnologias” mencionadas pelo professor como
“oferecidas” aos alunos através do “acesso ao computador, acesso a um trabalho
com lousa digital” parecem ser endereçadas a conta de recursos técnicos (novos
instrumentos) que, a exemplo do que discutem Selwyn (2012; 2014) e Verazto e
seus pares (2008) são elaborados a fim de resolver problemas que o homem
encontra em seu relacionamento com o universo no qual se engaja em práticas
sociais, a fim de buscar melhorias nessa relação.
Conquanto esse discurso possa ser posicionado como centralizador, será
possível observar, ao longo desta análise, que de fato esse foi um meio para atingir
a determinados fins. De maneira generalizada, Selwyn (2011, p.32) aponta como a
adoção desse posicionamento pode afetar os processos educativos, funcionando
como distratores de questões outras, de caráter social, e não resolvíveis, por
suposto, através de uma relação de causa-efeito com a presença de certas
tecnologias. No entanto, para o contexto em que se encontra este estudo, será
possível obervar, ao longo desta análise, que as implicações desse discurso acabam
por abrir espaços outros nos processos educativos desenvolvidos pelo professor (e
de alguns dos quais em que também contribuí).
O próximo recorte de dados advém de uma interação oral que
estabelecemos em 19 de agosto de 2015 e de cuja gravação digital (áudio)40 trarei

40
O formato das transcrições das gravações em áudio dos diálogos seguiu as orientações / formatos sugeridos
em:
137

um excerto. Mas antes de analisá-lo, creio que seja preciso situar alguns
acontecimentos.
Como informei há pouco, a proposta com a qual o professor já trabalhava
quando cheguei a seu contexto partia de um diagnóstico que o docente fez logo que
assumiu as aulas naquela escola. As turmas de 8º e 9º anos haviam ficado alguns
meses sem aulas de inglês, por conta de uma greve de professores e de um
remanejamento interno de pessoal, o que resultou em um dos diversos abismos
detectados pelo docente naquele contexto: problemas de ordem metalinguística –
um déficit no conhecimento sistêmico da língua inglesa esperado daqueles alunos.
Essa posição diante da construção do conhecimento na educação
linguística advém de uma visão sistematizada de um conjunto de saberes pautados,
vias de regra, pelo olhar estruturalista, que empresta predominância ao caráter
linguístico, da estrutura sistêmica subjacente à língua meta (aqui, o inglês) – em
oposição à orientação discursiva. De onde advém que o conhecimento do aluno é
organizado (e mensurado) tendo por base um quadro curricular – comumente
fundamentado nas sequências estabelecidas nos materiais didáticos adotados –,
que prevê conhecimentos de ordem estrutural, tais quais tempos verbais e/ou
conjuntos lexicais organizados por temas (daí a ideia de déficit).
Como o primeiro semestre letivo de 2015 já estava em andamento
quando o professor assumiu essas turmas, o docente buscou primeiramente
estabelecer o que julgava ser uma base mínima para a construção sistêmica e
lexical da língua inglesa, ação para a qual relatou não encontrar apoio no material
didático disponibilizado em versão impressa para aquelas turmas. De tal modo, o
professor recorreu às tecnologias digitais a guisa de pontes. Foi para essa primeira
tarefa que ele lançou mão da plataforma Duolinguo.
Passo ao excerto da interação oral de 19 de agosto de 2015:

Eu E que-que que série que eles tão? [Em que- quais os anos
escolares?

GARCEZ, P. M.; LODER, L. L. Reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na conversa cotidiana em português do
Brasil. In: DELTA, vol.21, no.2. São Paulo: PUC-SP, jul/dez. 2005. Veja o quadro completo com os símbolos
utilizados em Anexo 4.
138

P [A-ahn::: é- eu tenho- eu
tô trabalhando com:: sexta- a antiga sétima série, oitavo [ano,
né?

Eu [oitavo ano. Nono, né?

P É. E o nono ano, né? Então:: eles-eles gostam muito e eles


[não:

Eu [e
eles não tinham muita base linguística [mesmo? Em termos de,
eu tô pensando, aqui, e-em:: estrutura linguística mesmo, né?

P [não tinha! Isto!

Eu Em língua como sistema.

P Isso! (...)

(...)

P [eu se- sim. Óh. É-é Não. Mas é aquela coisa assim, né?
Quando cê propõe uma atividade- eu trabalhei assim coisa::,
é:: o Duolingo, né? É um curso, assim, bem tradicional, né?
Mas é:: o interessante, assim, que ele vai, ele tem um::- uma
construção par e passo, né? Ele vai vendo as deficiência, ele
vai suprindo as deficiências e vai, é::: construindo autonomia.
Aí o aluno

Eu mas cê diz do ponto de vista, assim, de estrutura de


língua?

P É! De estrutura de língua, né? O aluno começa se:::


alfabetiza, se desenvolve e ele começa a se apropriar, né?
Então, assim, hoje você tem muito material, né? Foi uma das
plataformas, assim, que eu investi nesses últimos meses, né?
E aí, um começa a compara com o outro, um ajuda o outro

Eu Cê percebeu, assim, é: como foi a reação deles em relação


a usar, não só em termos de desempenho de nota, de- mas, é:,
durante a utilização, (...)

P = mas é, assim, e-eles ficam, assim, encantados, mesmo


os alunos com mais dificuldade, né? Quando cê ta mediando::
a tecnologia digital, ele ele chega, assim, um::: - vamu dizê,
assim, um::: muito interesse, né? É e a aula flui, assim, né? Ele
pergunta uma ou outra coisa, um ajuda o outro. Quê dize, a co-
u-[a o processo acontece
139

Eu [você sentiu mais participação mesmo


usando o Duolingo?

P Sim! [mas uma plataforma

Eu [mais que em sala de aula?

P Muito mais. Muito mais. Um ajuda o outro, né? Cos


trabalho, às vezes, em grupo. Não tem uma máquina pra cada
um. Mas é::: cê vê, assim, que:: ele- ele consegui, né?
Visualiza é::: organiza um programa de estudo, né? Não sei se
cê conhece, assim, toda a plataforma, que ele pode programa
quinze (15), vinte (20), cinquenta (50) minutos. Então, tem
alunos, assim que, eu mostrei a ferramenta e em alguns meses
eles mostraram que estudaram uma (1), duas (2) horas por
dias.

Eu Eles estudaram em casa também?

P Estudaram em casa, durante o período de férias, né?


[Porque vai- vai =

Eu [é
mesmo?

P = vai, é, acrescentando os in boxes, né? Que é uma:: que


vai dando o rankeamento do aluno, né? Então- tinha alunos,
assim, que começaram::

Eu Por conta própria, não [foi uma exigência sua?

P [por conta própria! Não! E::: esse


aluno, assim, al-alguns alunos que eram medianos, né? Se
tornaram bons, né? Tanto a-a- essa plataforma, eu, eu fui
formado, vamu dizê, assim, é::: numa tradição clássica,
daquela leitura e tradução

Apoiado em um olhar esperançoso em relação às TDICs em sua aula, o


professor procura se/me “converter”, validando sua escolha em lançar mão do
Duolinguo como recurso didático, tipificando o que Sullivan (2012, p. 09) chama de
“hermenêutica da confiança” (quando esse autor se refere ao posicionamento da
análise de discurso em pesquisa), neste caso, aplicada à própria fala do professor.
Primeiro, o professor define a plataforma como um “curso” (valor
pedagógico). Em seguida, aponta (em tom enunciativo que denota defesa) “assim,
bem tradicional, né”, em que “tradicional” é um adjetivo escolhido para indicar o (pré)
julgamento que o professor faz em relação ao recurso de que resolveu lançar mão a
140

fim de dirimir o prejuízo identificado na construção do conhecimento metalinguístico


de seus alunos. É esse adjetivo, que marca a expressão do enunciado, que me
permite também inferir que a “hermenêutica da confiança” passa pelo exercício da
suspeita, e que há certa consciência subjetiva (construída socialmente, conforme
sugere Bakhtin) de que a plataforma escolhida não se configura exatamente como
um novo ethos (no sentido proposto por Knobel e Lankshear, 2007).
Ou seja, o discurso do professor é dialogicamente construído; encontra-
se em réplica ativa (BAKHTIN, 2016) em si mesmo, carregado por vozes
conflituosas, que lutam para legitimar a sua própria escolha por aquela tecnologia,
justificando os meios com base em seus fins, muito embora reconheça não haver
naquela tecnologia um caráter de prática didaticamente inovadora (caracterizando,
talvez, um heterodiscurso?). O que leva o professor a expandir sua argumentação,
notabilizando seu posicionamento agente e esclarecendo que “eu mostrei a
ferramenta e em alguns meses eles mostraram que estudaram uma, duas horas por
dia”.
Nesse trecho, a tecnologia assume o papel de “ferramenta” (seu valor
didático), assumindo também caráter tecnicista, tomada como um instrumento
através do qual o professor percebe ter conseguido reproduzir uma prática didática
tradicional (a dos exercícios estruturalistas para a sistematização de um código
linguístico em língua estrangeira, presente há muito nos livros impressos),
ancorando-se no ambiente digital.
No entanto, como ficará mais evidenciado ao longo da análise dos demais
excertos, conquanto não se configure como um “novo ethos”, a presença dessa
tecnologia neste contexto específico acaba por promover um ensino-aprendizagem
menos voltado à assimilação de conteúdos transmitidos por um professor,
centralizador do processo, deslocando, de certa forma e em alguma medida, a
aprendizagem para um caráter mais colaborativo, como propõe o professor. E, se os
alunos “estudaram”, como afirma o professor, pode-se igualmente entender que, de
certa forma, um dos objetivos do professor, que era o de motivar os alunos, foi
atingindo com a presença dessa tecnologia (a plataforma Duolinguo) – o que se
apresentou como a construção de uma ponte, promovendo mobilidade no processo
educacional.
Assim como aponta Charlot (2013) essa tecnologia parece mais uma vez
ter sido eleita por facilitar a vida de professor e alunos, por aliviar um tanto do
141

trabalho (e suprir uma carência momentaneamente encontrada no material didático


impresso em uso). Pode não se configurar como um “novo ethos”, mas, ao que
aponta o professor, foi um meio (“ferramenta”) para atingir a um fim “eles
estudaram”.
Reforçando a ideia de tecnologia como instrumento que agrega valor
pedagógico, o professor informa que “(...) então, assim, hoje você tem muito
material, né? Foi uma das plataformas, assim, que eu investi nesses últimos meses,
né? (...)”.
A “plataforma” é vista, simultaneamente, como um suporte (tal qual fora
um material impresso) e também como fonte de conteúdos (“tem muito material”)
atendendo, dessa forma, aos objetivos a que Biesta (2010) chama de “qualificação”
da educação. A ideia de “investir” nessa tecnologia reforça a visão de commodity
permeada pela ideologia neoliberalista, como argumentam Selwyn (2014) e Charlot
(2013), o que acredito caracterizar um processo de apropriação discursiva. O
discurso aqui enunciado (tecnologias como instrumento, commodity, qualificação) é
ressonante de discursos que, a exemplo dos discursos percebidos nos enunciados
analisados no início deste capítulo, circulam em sociedade, no tocante à interface
educação e tecnologias.
No caso do excerto aqui em questão, porém, não aparecem as palavras-
alheias a guisa de legitimação, mas sua ressonância pôde ser identificada na forma
de palavras-próprias (“ferramenta”, “investi”) com apagamento da voz autoral, um
discurso internamente persuasivo. Implica dessa apropriação, entre outras
questões, a necessidade de apoiar-se em recursos como a sala do Acessa para que
os alunos possam fazer uso da plataforma digital (o Duolinguo) eleita pelo professor
como ferramenta para o trabalho metalinguístico na aula de inglês.
A seguir, o professor inclui em sua argumentação o papel de mediador da
tecnologia eleita, em um processo de aprendizagem cujo foco e a responsabilidade
estão centrados no próprio aprendiz (tendência corrente, como afirma Biesta, 2010)
e desloca o papel do professor que passa a ser um guia/orientador:
“(...) eu mostrei a ferramenta e em alguns meses eles
mostraram que estudaram uma (1), duas (2) horas por dia (...)”.
“(...) ele [aluno] vai vendo as deficiências, ele vai suprindo as
deficiências e vai, é::: construindo autonomia. (...)”
142

Esse aspecto reforça a ideia de melhoramento da educação (ideia que


discuto a seguir) através da adoção de tecnologias educacionais, como informado
por Selwyn (2011; 2014), também enfatizado no seguinte enunciado (ênfase
adicionada por mim):

P [por conta própria! Não! E::: esse aluno, assim, al-


alguns alunos que eram medianos, né? Se tornaram bons,
né? Tanto a-a- essa plataforma, (...)

A ideia de melhoramento tem sua apreciação marcada pelo adjetivo


“medianos” que, muito embora o professor não esclareça os parâmetros para essa
valoração, subentendo que parta da questão do maior ou menor conhecimento
metalinguístico, que é seu objeto de trabalho via Duolinguo e é avaliado nessa
plataforma através da pontuação atribuída à medida em que se acerta o resultado
de um exercício. Essa ideia vem ancorada no resultado obtido pelo aluno, o que é
mensurado pela mediação do recurso tecnológico explicitado em “rankeamento do
aluno” que no uso dessa plataforma aparece em “inbox”, como explicita o professor
em sua fala. Ou seja, fica reforçada aqui a ideia de que a visão de língua(gem)
subjacente mantêm a orientação sistêmica (havia um déficit metalinguístico a ser
superado, o que foi mediado pela presença da tecnologia apresentada pelo
professor a seus alunos).
Considerando-se o contexto deste estudo, penso hoje que isso tenha se
configurado como um aspecto positivo no sentido que, ao criar mobilidade (de um
ensino centralizado no professor para um caráter de aprendizagem mais
colaborativa e centrada no trabalho do aluno com a tecnologia, o que pode ser feito
por alguns discentes em casa e nas férias), o professor conseguiu abrir
oportunidades para trabalhar outros aspectos educacionais em suas aulas (como
ficará explicitado nos próximos excertos que analisarei). Além disso, o trabalho com
a plataforma Duolinguo parece ter atingido os fins objetivados pelo professor
(conquanto não seja possível afirmar que, caso contasse com os livros impressos
para todos, por exemplo, ele também não poderia ter alcançado tais objetivos).
Orientada pelos princípios dos jogos digitais, a plataforma Duolinguo vai
apontando pontuação para os acertos em cada tarefa realizada pelo aluno-jogador -
o “rankeamento” a que se refere –, o que parece, portanto, ter servido como um dos
parâmetros para o professor mensurar os resultados obtidos pela inserção dessa
143

tecnologia em seus fazeres, o que ele fazia ao checar regularmente o desempenho


/progressão dos alunos nas atividades realizadas na plataforma (sua pontuação
acumulada, quantas atividades haviam sido feitas, etc.).
Apenas a guisa de ilustração (já que não se trata de objeto de análise
deste estudo), veja a seguir um exemplo de tarefa proposta nessa plataforma (para
trazer aqui esse exemplo, conectei-me à plataforma por intermédio de meu perfil em
rede social síncrona a fim de iniciar um curso básico de inglês, com uma proposta
escolhida por mim de dedicação de cinco minutos de estudo diário). A Figura 5
mostra um exercício proposto e a Figura 6 o mesmo exercício já resolvido e com a
minha “progressão” (desempenho) marcada na barra acima da questão:

Figura 5: Exemplo de atividade proposta na plataforma Duolinguo. Disponível em:


https://www.duolingo.com. Acesso em 14 de janeiro de 2017.

Figura 6: Exemplo de atividade resolvida na plataforma Duolinguo. Disponível em:


https://www.duolingo.com. Acesso em 14 de janeiro de 2017.

Retomando o excerto da interação oral:


P É! De estrutura de língua, né? O aluno começa se:::
alfabetiza, se desenvolve e ele começa a se apropriar, né?
Então, assim, hoje você tem muito material, né? Foi uma das
plataformas, assim, que eu investi nesses últimos meses, né?
E aí, um começa a compara com o outro, um ajuda o outro
144

Eu Cê percebeu, assim, é: como foi a reação deles em relação


a usar, não só em termos de desempenho de nota, de- mas, é:,
durante a utilização, (...)

P = mas é, assim, e-eles ficam, assim, encantados, mesmo


os alunos com mais dificuldade, né? Quando cê ta mediando::
a tecnologia digital, ele ele chega, assim, um::: - vamu dizê,
assim, um::: muito interesse, né? É e a aula flui, assim, né? Ele
pergunta uma ou outra coisa, um ajuda o outro. Quê dize, a co-
u-[a o processo acontece

Eu [você sentiu mais participação mesmo


usando o Duolingo?

P Sim! [mas uma plataforma

Eu [mais que em sala de aula?

P Muito mais. Muito mais. Um ajuda o outro, né? Cos


trabalho, às vezes, em grupo. Não tem uma máquina pra cada
um. Mas é::: cê vê, assim, que:: ele- ele consegui, né?
Visualiza é::: organiza um programa de estudo, né? Não sei se
cê conhece, assim, toda a plataforma, que ele pode programa
quinze (15), vinte (20), cinquenta (50) minutos. Então, tem
alunos, assim que, eu mostrei a ferramenta e em alguns meses
eles mostraram que estudaram uma (1), duas (2) horas por
dias.

Eu Eles estudaram em casa também?

P Estudaram em casa, durante o período de férias, né?


[Porque vai- vai =

Eu [é
mesmo?

P = vai, é, acrescentando os in boxes, né? Que é uma:: que


vai dando o rankeamento do aluno, né? Então- tinha alunos,
assim, que começaram::

Eu Por conta própria, não [foi uma exigência sua?


P [por conta própria! Não! E::: esse
aluno, assim, al-alguns alunos que eram medianos, né? Se
tornaram bons, né? Tanto a-a- essa plataforma, eu, eu fui
formado, vamu dizê, assim, é::: numa tradição clássica,
daquela leitura e tradução
145

Ainda em relação ao excerto supracitado, há outro deslocamento passível


de identificação, uma implicação / decorrência da apropriação discursiva (e da
materialidade) que faz o professor em relação à presença da tecnologia Duolinguo
em seus fazeres. Esse deslocamento, de ordem física, material, implica deixar a sala
de aula tradicional, com carteira e lousa de giz, realocando a aula na sala de
informática com acesso à internet e, por conseguinte, (re)contextualizando o
processo de ensino e aprendizagem da língua inglesa em ambientes digitais a que
se tem alcance a partir desse novo local (espaço físico). Conforme afirma o
professor, esse movimento (físico) parece ter refletido positivamente noutro dos
eixos propostos por Biesta (2010) para os objetivos educacionais: o da
“socialização”. A esse respeito, o professor informa que
(...) mas é, assim, e-eles ficam, assim, encantados, mesmo os
alunos com mais dificuldade, né? Quando cê ta mediando:: a
tecnologia digital, ele ele chega, assim, um::: - vamu dizê,
assim, um::: muito interesse, né? É e a aula flui, assim, né?(...).

O advérbio “muito” e o substantivo “interesse” entoam a expressividade


de seu enunciado, denotam sua posição otimista, sustentando sua argumentação
em relação à apropriação que faz do discurso que advoga em favor do papel das
TDICs em suas aulas, discurso que já se tornou, por suposto, internamente
persuasivo.
Dialogando com os enunciados analisados no início deste capítulo, penso
que seja possível identificar a apropriação do discurso de autoridade que coloca o
professor como “crucial” em mudanças educacionais centradas na presença de
novas tecnologias. O professor “apresentou” a plataforma, seu papel foi o de
introduzir essa tecnologia como mediador para estabelecer práticas de ensino e
aprendizagem que sintonizassem com práticas sociais contemporâneas, em que as
tecnologias são mediadoras da comunicação e da informação. Como resultado, esse
professor percebe que sua aula “flui”, o que lhe ajuda a construir outra ponte.
O papel de despertar interesse no aluno e, também, de auxiliar no
andamento da aula é creditado ao deslocamento do espaço físico e à transposição
dos fazeres didático-pedagógicos para o ambiente digital (“(...) é a aula flui, assim,
né? (...)”. Esse argumento recebe reforço do professor quando informa que esse
deslocamento, que possibilitou a inserção de uma prática digital letrada na rotina
desses discentes, repercutiu na maneira como esses alunos passaram a se
146

relacionar com a construção do conhecimento sistêmico em língua inglesa também


fora dos limites da escola, o que o professor ressalta ao afirmar que
P Estudaram em casa, durante o período de férias, né?
[Porque vai- vai =

Eu [é
mesmo?

P = vai, é, acrescentando os in boxes, né? Que é uma:: que


vai dando o rankeamento do aluno, né? Então- tinha alunos,
assim, que começaram::

Eu Por conta própria, não [foi uma exigência sua?


P [por conta própria!

Um dos problemas recorrentemente apontados pelo professor em relação


a suas turmas dizia respeito a questões de postura, ética e relacionamento
interpessoal (aluno-aluno e alunos-professor). A socialização (no sentido proposto
por Biesta, 2010) parece ter sido promovida através da “mediação” da tecnologia
digital, como informa o professor, que agiu a maneira de um provocador para um
deslocamento cronotópico, instigando agência dos alunos e inserindo-os em
outras ordens (esferas), como destaca no trecho a seguir:

P É e a aula flui, assim, né? Ele pergunta uma ou outra


coisa, um ajuda o outro. Quê dize, a co- u-[a o processo
acontece

Eu [você sentiu mais participação mesmo


usando o Duolingo?

P Sim! [mas uma plataforma

Eu [mais que em sala de aula?

P Muito mais. Muito mais. Um ajuda o outro, né? Cos


trabalho, às
vezes, em grupo. Não tem uma máquina pra cada um.
Mas é::: cê
vê, assim, que:: ele- ele consegui, né? Visualiza é:::
organiza um programa de estudo, né?

A perspectiva da construção colaborativa da aprendizagem, realizada


através do contato interação (dialógica) entre horizontes do cognoscente e o
cognoscível no estabelecimento do ato do conhecimento como sugerido por
147

Bakhtin ([1979;1992;2003] 2011, p.395) foi organizada com a transposição tempo-


espaço (cronotopo) da sala de aula (tempo real) para o do recurso educacional em
ambiente digital (que pode ser visto como aquele que se encontra entre “o tempo da
aventura e o real”, como discuti no capítulo dois).
Assim, lançando mão da analogia com o(s) cronotopo(s) propostos por
Bakhtin, penso ser possível identificar que o movimento, o impulso que faz com que
o sujeito (aluno) atue é não somente o deslocamento físico, mas também o da
perspectiva de interação com o conhecimento através de um espaço em que o
formato de um jogo (o universo da aventura) é trazido por uma plataforma síncrona a
guisa de “nova maneira para se aprender línguas”.
Críticas (de minha visão pessoal) ao modelo daquela tecnologia à parte
(porque não é este meu propósito neste estudo), o discurso do professor reforça a
ideia de que há uma visível alteração cronotópica em questão. Como a plataforma
Duolinguo trabalha com o formato clássico de jogos digitais em que superar
obstáculos (i.e.; resolver exercícios linguísticos, de estrutura e vocabulário) significa
acumular pontos, o modelo propiciaria, então, a interface “tempo da aventura -
tempo real”. Essa mudança gera um impacto positivo no contexto de trabalho desse
professor e alunos, promovendo maior estabilidade para as questões de
socialização, abrindo espaço para que a construção do conhecimento possa
acontecer.
Por fim, mais adiante nesse excerto do diálogo travado em 19 de
agosto, na esteira da autoafirmação para o trabalho com essa tecnologia valorada
como “tradicional” pelo próprio locutor, aparece o discurso de construção do
sujeito social, concebido dialogicamente na relação eu outro (a
simultaneidade sugerida por Holquist ([1990] 2002, p.17,18). Esse sujeito aquele que
é, se torna, através de seu papel ativo de experimentação na realidade (eu
outro), constituindo-se a partir de um ponto de vista específico (HOLQUIST, [1990],
2002), neste diálogo vem justificar seu próprio caráter “tradicional” (na transcrição
abaixo, a ênfase foi adicionada por mim):

P (...) eu, eu fui formado, vamu dizê,


assim, é::: numa tradição clássica, daquela leitura e
tradução
Eu (risos)
148

P Que eu estudei línguas clássicas no seminário. Eu estudei


latim, grego,
Eu ahan!
P russo, né? Alemão. Estudei espanhol, né? E o inglês, né?
Tudo dentro do viés instrumental, né? Da língua. Então, eu-
o Duolingo, ele é- eu, tem alguns que contestam muito essa
questão da tradução, né? Mas eu, como tenho, assim, o meu
papel como professor de língua materna e de língua
estrangeira, eu acho que a tradução ajuda muito o aluno a
melhorar a competência linguista, linguística dele na língua
materna, né?
Eu Uhum!
P Então, assim, o Duolingo faz uma combinação muito
focada em cima du-du-du:: du tradicional, né? E vai
inovando alguma coisa. E o bonito é que o aluno consegue,
é::... consegue::

Em primeiro lugar, volto meu olhar para minhas falas nesse trecho acima,
que se resumem a “risos”; e às interjeições “ahan” e “uhum”, enunciando meu
discurso interior a guisa de expressar minha participação na interação oral. De fato,
o tom de minha fala nesse instante poderia ser definido como “trêmulo” (muito
embora não estou certa de que meu interlocutor, naquele instante, se perguntado a
esse respeito, teria essa mesma interpretação...). O fato, ao menos para mim, é que
esse foi um daqueles momentos em que tive que manter a atenção para permitir,
dentro do possível, o exercício da alteridade e, nesta análise, o da exotopia.
Nos últimos vinte e poucos anos, dos trinta e um que tenho de profissão,
apropriei-me do discurso comunicativista, que advoga a ideia de que trabalhar o
ensino-aprendizagem de língua estrangeira via tradução é ruim, não promove
fluência, etc. Como apontei no capítulo dois, a ideia do monologismo (apontado por
Hélot e Laoire (2011)), fundador das bases para pedagogias e currículos em aulas
de língua, permeou meu discurso. Esses discursos me constituíram de maneira
hegemônica por muito tempo e orientaram minha forma de trabalho enquanto
professora de inglês em diferentes contextos formais de ensino, fundamentando-me
em oposição a uma abordagem que valorizasse o papel da língua do aluno nos
processos de ensino e aprendizagem de línguas outras – uma visão pluri /
multilíngue a que se referem Hélot e Laoire (2011). De tal forma, minha interlocução,
enunciada nas interjeições acima transcritas, (re)vela esse embate de vozes que
149

acontecem naquele instante, momento de grande desconforto para mim, como


esclareço a seguir.
Acatar o olhar do outro que postula que certa perspectiva de ensino-
aprendizagem da qual eu não compartilho possa vir a ser frutífera em determinado
contexto local de educação formal é um exercício exotópico, etnográfico e, eu diria,
em meu caso, existencial. Quando o professor se colocou como “formado, vamu
dizê, assim, é::: numa tradição clássica, daquela leitura e tradução”, minha
resposta foi “risos”. Riso nervoso, de quem queria dizer “imagina, que é isso, não
tem problema”, mas talvez completar “ninguém é perfeito!” (além de trazer à tona a
visão monológica que ainda me constituía e, muito possivelmente, ainda me
constitui...).
Esse posicionamento marcou um embate de vozes: polifônicas, já que
eu e o professor contemplávamos o objeto (a tradução no ensino de língua
estrangeira) a partir de olhares distintos, e heteroglóssicas, já que em meu
discurso, naquele instante em diálogo interno, (mais visibilizado enunciativamente
pelas interjeições “aham” e “uhum” e meu riso nervoso) dou lugar a voz que vem de
um lugar outro, falando de um lugar diferente daquele em que fala o professor; a voz
de uma posição social estratificada que se coloca como especialista externo
(extraposto ao contexto de pesquisa, como apontam Nofke e Somekh, 2005, p. 90)
que luta para não assumir, ainda que momentaneamente, a posição hierárquica
diante da construção do conhecimento, num diálogo em que o ato de tornar-se, a
que se refere Bakhtin, está acontecendo. Estabelece-se, dessa forma, um discurso
polêmico, a polêmica velada que travo ao contrapor com meu “riso”, meus “aham” e
“uhum” com as concepções de ensino e aprendizagem de língua de que desposa o
professor.
O enunciado ressalta a bivocalidade em torno da questão, materializando
o discurso polêmico ao indexar que “tem alguns” (dos quais o locutor, portanto, se
exclui), informando que “contestam” (escolha objetiva de um verbo que denota o
embate de opiniões a cerca do tema, e ao qual o locutor se contrapõe), pedindo, a
seguir, a minha anuência, enquanto interlocutora, ao lançar a conjunção interjetiva
“né?”, ao que, evasivamente (tentando escapar à polêmica) respondo com o sonoro
e significativo: “uhum”.
Percebo em minha fala, assim, que discursos pedagógicos orientados por
uma perspectiva monológica acerca dos processos de ensino e aprendizagem de
150

inglês ainda parecem ter sobressaído em relação às convicções teóricas mais


favoráveis ao plurilinguismo que acato nos dias presentes.
O professor, colocando-se mais uma vez em praça pública, permite-me
observá-lo por alguns de seus ângulos e revela a voz fragilizada, que parece sentir-
se menor, de certa forma, por prender-se à “tradição clássica”, como se construir
conhecimentos através da “leitura e tradução” fora quase um crime diante das
possibilidades e teorizações acadêmicas atuais. O sujeito aqui se constrói para
desconstruir-se, em seguida, afirmando (ênfase adicionada):

P (...) que eu estudei línguas clássicas no seminário. Eu


estudei latim, grego,
Eu ahan!
P russo, né? Alemão. Estudei espanhol, né? E o inglês, né?
Tudo dentro do viés instrumental, né? Da língua. Então, eu-
o Duolingo, ele é- eu, tem alguns que contestam muito essa
questão da tradução, né? Mas eu, como tenho, assim, o meu
papel como professor de língua materna e de língua
estrangeira, eu acho que a tradução ajuda muito o aluno a
melhorar a competência linguista, linguística dele na língua
materna, né?
Eu Uhum!
P Então, assim, o Duolingo faz uma combinação muito
focada em cima du-du-du:: du tradicional, né? E vai
inovando alguma coisa. E o bonito é que o aluno consegue,
é::... consegue::
O “viés instrumental” e o conhecimento de “línguas Clássicas” são
trazidos como justificativas para seu olhar “tradicional” (adjetivo que empresta
apreciação ao tema). Ademais, seu gosto pela plataforma/curso de abordagem
semelhante àquela que o constitui enquanto aprendiz é tempo-espacialmente
contextualizado pela introdução do advérbio de lugar: “no seminário”, que reforça o
locus da fala do enunciador (ou seja, de onde o professor acredita que venha e a
que ele credita sua voz, seus discursos – dessa feita, encadeando seus enunciados
presentes em relação aos que o precederam). Aliás, esse mesmo locus (o
“seminário”) marcará seu discurso mais adiante, como irei discutir em outro recorte
dos dados.
Ao invés de (re)velar-se, por direito, como profissional cuja formação
apresenta grande riqueza, parece ressoar nesse enunciado um discurso
151

autoritário, constrangedor, uma voz da academia contemporânea que ecoaria


desdizendo do “viés instrumental” e da perspectiva do ensino com a tradução: “(...)
tem alguns que contestam muito essa questão da tradução, né?” (marcas da
polêmica (des)velada (?).
Nesse dado instante da comunicação discursiva, deixo de ser a
professora-parceira, cuja presença trouxe “alegria”, como o professor apreciou na
postagem do Padlet em 02 de setembro, e assumo o lugar da
pesquisadora/estrangeira (lugar/papel que pareço ter acatado ao me restringir aos
“uhum” e “ahans”), sujeito a quem o (inter)locutor precisa “converter” para os
supostos benefícios da tecnologia por ele eleita.
Nessa direção, o professor /sujeito se (re) constrói ao afirmar que
(...) mas eu, como tenho, assim, o meu papel como professor
de língua materna e de língua estrangeira, eu acho que a
tradução ajuda muito o aluno a melhorar a competência
linguista, linguística dele na língua materna, né?
A relação de poder, verticalizada e hierarquizada pelos papeis sujeito-
pesquisadora e sujeito-professor pesquisado se inverte, momentaneamente, quando
o professor (re)assume seu lugar de especialista “(...) o meu papel como professor
de língua materna e de língua estrangeira(...)” e , assim como aponta Bakhtin, num
ato de agência discursiva, reconhece vozes outras em sua própria fala e, dentre
elas, encontra sua própria voz: “(...) eu acho que a tradução ajuda muito o aluno a
melhorar a competência linguista, linguística dele na língua materna”, enunciado que
me silenciou...
Talvez, meu silêncio possa ser interpretado como uma marca do
exercício exotópico que, do lugar em que hoje olho para essa interação
específica (aqui trazida como enunciado do enunciado, discurso citado, como
sugerem Bakhtin/Volochínov ([1929] 2006,)) eu penso que ela tenha me afetado
sobremaneira. A posição exotópica me orientou de modo a acatar o olhar de outrem,
a ouvir o que ele fala, do lugar em que fala; tomar certa ciência daquilo que me
excede, daquilo que não sei, porque, afinal, não estou naquele lugar somente esse
professor ocupa...
Para tanto, deixei-me afetar pela alteridade, acatando, com meu silêncio,
que meu interlocutor não era um recipiente, ouvinte passivo participante de uma
investigação, mas um sujeito constituído por e constituinte de sentidos e saberes,
que se propôs a uma alternância cronotópica, saiu de seu lugar de conforto, de
152

modo a comunicar-se discursivamente comigo, em diálogo e dialogismo. É raro


faltar-me palavras. Nesse caso, acredito que a mudez temporária, até de diálogos
internos, tenha (pessoal e profissionalmente) me feito muito bem. Essa experiência
me permitiu dar conta de meus próprios abismos, para os quais fui exotopicamente
construindo pontes ao longo da vivência nesta pesquisa.
Logo em seguida, o professor retoma a ideia de que tradicional e inovador
podem, de alguma forma, caminhar juntos “(...) então, assim, o Duolingo faz uma
combinação muito focada em cima du-du-du:: du tradicional, né? E vai
inovando alguma coisa (...)” (ênfase adicionada) e contribuir para a melhora, a
criação das pontes, que ele busca em seu contexto, ao justificar-se: “(...)e o bonito é
que o aluno consegue, é::... consegue::”. Novamente, a expressividade do
enunciado é recorrente da relação que o falante estabelece com o objeto, colorindo
sua fala com o adjetivo “bonito” que identifica: a) o ato do conhecimento, do tornar-
se (nesse caso, em relação à interface aluno-língua inglesa); e b) a realização de
que a presença de TDICs em seus fazeres já estaria ajudando a construir pontes
para dirimir distâncias e cobrir abismos contextuais.
De certa forma, é possível pensar que, ao acatar o papel da língua
portuguesa, a “língua dos alunos”, como sugerem Hélot e Laoire (2011), na aula de
inglês, o professor abriu espaço ao plurilinguismo, oportunizando as contribuições
que o conhecimento metalinguístico que esses estudantes já têm em português
contribuísse para a construção do conhecimento linguístico em inglês (discutir de
que maneira e em que medida, no entanto, é tema que foge ao escopo deste
trabalho). De meu ponto de vista, isso significou a construção de uma nova ponte,
contribuindo para a promoção da construção do conhecimento neste contexto.
Como esclareci anteriormente, o professor mencionou a “proposta”
didática que já havia desenhado para suas aulas nos 8º e 9º anos e que abarcava
duas ações principais: (re) construir o conhecimento metalinguístico (o que fez
ancorado no Duolingo) e trabalhar outros saberes em língua inglesa a partir de
gênero canção, outro fazer em aula de inglês do professor participante que também
contou com a presença das TDICs. Essa tarefa consistiu em um trabalho
colaborativo em que os alunos, também utilizando a sala do Acessa, pesquisaram e
escolheram na internet uma de suas músicas favoritas, cantadas em língua inglesa.
A seguir, os alunos deveriam montar uma apresentação em que as letras
de música fossem entregues aos colegas em inglês, acompanhadas de tradução
153

para o português (o que foi feito através de sites que informam letras de música e/ou
com a ferramenta Google tradutor41). Além de apresentar a letra, os alunos deveriam
falar sobre seus autores e intérpretes; interpretar brevemente os conteúdos
semânticos dessas letras de música e explicitar a razão para sua escolha. Devido às
condições/limitações de uso da sala do Acessa, que dependia de agendamento e da
disponibilização, já que outros professores também a utilizavam, boa parte do
trabalho precisou ser feito como tarefa para casa. Lembrando que a sala contava
com 16 computadores operantes e com acesso à internet, e as turmas de 8º e 9º
anos tinham, em média, 30 alunos.
As apresentações aconteceram na sala-biblioteca que dispunha de
equipamento multimídia e lousa digital, permitindo a projeção dos videoclipes e das
apresentações preparadas pelos alunos em PowerPoint e/ou Word (a escolha por
essas plataformas partiu do professor e foi objeto de apreciação durante uma de
nossas interações, como discutirei adiante).

Retomando nossa interação oral de 19 de agosto, acrescento a esse


recorte mais um trecho em que o professor comenta a sua proposta de trabalho:

P Estudaram em casa, durante o período de férias, né?


[Porque vai- vai =
Eu [é
mesmo?
P = vai, é, acrescentando os in boxes, né? Que é uma:: que
vai dando o rankeamento do aluno, né? Então- tinha alunos,
assim, que começaram::
Eu Por conta própria, não [foi uma exigência sua?
P [por conta própria! Não! E::: esse
aluno, assim, al-alguns alunos que eram medianos, né? Se
tornaram bons, né? Tanto a-a- essa plataforma, eu, eu fui
formado, vamu dizê, assim, é::: numa tradição clássica,
daquela leitura e tradução
Eu (risos)
P Que eu estudei línguas clássicas no seminário. Eu estudei
latim, grego,
Eu ahan!

41
Disponível em: https://translate.google.com.br/?hl=pt-BR. Acesso em 15 de jan de 2017.
154

P russo, né? Alemão. Estudei espanhol, né? E o inglês, né?


Tudo dentro do viés instrumental, né? Da língua. Então, eu- o
Duolingo, ele é- eu, tem alguns que contestam muito essa
questão da tradução, né? Mas eu, como tenho, assim, o meu
papel como professor de língua materna e de língua
estrangeira, eu acho que a tradução ajuda muito o aluno a
melhorar a competência linguista, linguística dele na língua
materna, né?
Eu Uhum!
P Então, assim, o Duolingo faz uma combinação muito
focada em cima du-du-du:: du tradicional, né? E vai inovando
alguma coisa. E o bonito é que o aluno consegue, é::...
consegue::
P Não, então, pegou muito, assim, [qué dizê

Eu [ajudou a organizar o
pensamento [sistemico?

P [Isso! U-u- ajuda, assim, a estruturar, organiza, né?


O que eu prôpus pra eles esse bimestre, né? Que eles vão, é,
pesquisa música prediléta deles, que eu tô colocando. Daí, eu
quero vê como é que eles vão trabalha com powerpoint, com
word, com outras ferramentas, né?
Eu Entendi!
P Pra::: porque eu to programando pra eles apresentarem
isso daí-
Eu E por que powerpoint e word? Tem, assim, uma- uma…
um motivo pra cê tê escolhido essas ferramentas especificas e
não outras? Não- só só por curiosidade mesmo.
P Não, é- não, digo, é o que eles conhecem, que eles
[utilizam aqui
Eu [eles já conhecem? [Já
sabem usar?
P [Já conhecem. muitos-
muitos conhecem. Então, assim, o trabalho é em grupo, porque
[tem uns que não têm computador (...)
P [Isso! U-u- ajuda, assim, a estruturar, organiza, né?
O que eu prôpus pra eles esse bimestre, né? Que eles vão, é,
pesquisa música prediléta deles, que eu tô colocando. Daí, eu
quero vê como é que eles vão trabalha com powerpoint, com
word, com outras ferramentas, né?
155

Eu Entendi!
P Pra::: porque eu to programando pra eles apresentarem
isso daí- (...)

No momento em que o professor informou as outras tecnologias de sua


escolha, indicando que os alunos iriam trabalhar “com powerpoint, com word, com
outras ferramentas, né?” para a elaboração da tarefa que propôs, indaguei:

Eu E por que powerpoint e word? Tem, assim, uma- uma…


um motivo pra cê tê escolhido essas ferramentas especificas e
não outras? Não- só só por curiosidade mesmo.
P Não, é- não, digo, é o que eles conhecem, que eles
[utilizam aqui
Eu [eles já conhecem? [Já
sabem usar?
P [Já conhecem. muitos-
muitos conhecem. Então, assim, o trabalho é em grupo, porque
[tem uns que não têm computador (...)

Minha afirmação/justificativa “Não- só só por curiosidade mesmo.”,


marcada pela hesitação denotada ao repetir o advérbio de exclusão “só” –
abreviamento de somente –, na verdade, é permeada pela pluralidade vocal. De
fato, ressoam aqui as vozes que me orientam, em discurso internamente
persuasivo, em relação a acreditar que PowerPoint e Word constituem recursos
tecnológicos que já estariam, de alguma forma, mais difundidos (o que o contexto da
pesquisa mostrou não ser bem dessa forma, como trago mais adiante). Minha
apreciação, em diálogo interno, sendo, portanto, de desaprovação. Há uma polêmica
velada sendo travada em meu discurso nesse instante: o discurso, em diálogo
interno, advoga que em contraposição ao PowerPoint e Word há outras tecnologias,
plataformas tais quais o Google Docs42, que a meu ver poderiam atender melhor à
demanda desse professor e seus alunos.

42
Para saber mais a respeito dessa tecnologia, recomendo a leitura do artigo publicado em
http://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/google-docs-app.html. Acesso em 15 de jan de 2017.
156

Reforçando essa posição em relação ao objeto do discurso daquele


enunciado, há também, no diálogo interno que estabeleço naquele instante, a voz
autoritária que acredita que, se os alunos já conhecem tais recursos (PowerPoint e
Word), como afirma o professor, de que poderiam se beneficiar dessa atividade?
Que ganho haveria em termos de letramento digital? – a que o professor parece
responder / replicar ativamente, logo a seguir, ao esclarecer “(...) então, o trabalho é
em grupo por que tem uns que não têm computador (...)”.

Há diferentes agendas em embate no diálogo acima. Minha agenda


pessoal (posição sujeito-pesquisadora) parece privilegiar a questão do letramento
digital, expandindo a noção de educação linguística em favor de uma abordagem
mais plural, que vá além do letramento em língua inglesa e pense em letramentos
múltiplos (como advogo em AZZARI, 2013; AZZARI; LOPES, 2013 e AZZARI, 2015).
Essa é uma agenda orientada pelo olhar advindo de discursos acadêmicos que me
constituem, fundamentam bases teórico-discursivas que têm sustentado minha
posição pesquisadora. Talvez, uma posição também centralizadora, de minhas
(in)certezas, uma vez que a proposta de trabalho do professor me fez reavaliar esse
meu olhar, já que a partir dos conhecimentos partilhados em aula os alunos
acabaram por construir letramentos outros.

Mas admito que, do lugar de onde falo aqui, nesta análise, parece-me
hoje que tal posição discursiva em relação ao objeto contemplado (i.e.; que
tecnologias x ou y o professor deveria adotar naquela proposta específica) partiu de
um olhar generalizante: as orientações teóricas que sustentam meu discurso e
fundamentam ideologicamente minha apreciação negativa pela escolha de
Powerpoint e Word não levam em conta caracteres específicos ao contexto e
práticas locais, como sugerem Canagarajah (2013) e Pennycook (2010), orientações
teóricas de que também assumo compartilhar...

Orientando-me novamente aqui, deste meu novo locus, pelo olhar da


exotopia, eu enxergo que não estou de fato no lugar de que fala aquele professor,
não tenho a visão necessária do contexto e das práticas que já constituem seu locus
de fala e, portanto, minha apreciação (ainda que, naquele momento da interação,
estivesse em diálogo interno) é a apreciação da estrangeira, que trás um discurso
157

heteroglóssico, fala de outro lugar/ estrato social (a academia), generalizando


saberes.

Porém, não contente em manter essa minha extraposição em diálogo


interno, na sequência àquela interação, dou início a uma posição polifônica,
insistindo em apreciar o objeto de discurso de outro ponto de vista, em minha
próxima fala.

O discurso acadêmico que sustenta minha agenda oculta surge como voz
de autoridade e tenta exercer poder de persuasão, retomando a questão das
tecnologias a serem eleitas para a tarefa proposta, a revelia do quadro local que já
me apresentou o professor, como revela o excerto a seguir:

Eu Que cê acha? Seria uma coisa que a gente poderia pensa


de trabalha nesse se- nessa sua ideia? De repente, de- da
gente fazer em escrita colaborativa, via google docs, ao invés
de trabalha com- [com word?
P [Dá! Tem uma professora que trabalha também,
né? [Então, o-o o problema-
Eu
[mas você, pra nossa proposta, aqui, do semeste, cê acha que
seria interessante se a gente pegasse o google docs e
trabalhasse com a es- [com a escrita colaborativa?
P [eu-eu eu achei interessante o Padlet, né? Eu- eu:: té
queria posta um texto, [lá, tal
Eu
[eles podem faze no gru- no google docs e a gen- eles podem
montar um Padlet da sala
P Também. É!
Eu Ou ter Padlets individuais em que eles possam faze a
narrativa deles, do que eles tão aprendendendo também. Isso
é::
P Uhuum! Eu- eu achei assim, a ferramenta, nu-não tô,
assim, bem introsando, mas muito fácil, assim. [E:::
Eu É! [e o google docs é pra- pra eles trabalharem em
grupo é legal, porque se eles tão em casa, também, eles têm
acesso à internet, alguns pelo menos que [fizeram esse::
P
[Sim! Tem alguns aqui que não têm, né? [Assim a: (...)
158

Minha insistência em relação à tecnologia Google Docs, afirmando que


poderia promover a “escrita colaborativa” vem de discursos que já me constituem e
continuaram insistindo em transferir para o contexto de trabalho do professor uma
experiência pedagógico-didática que trago de outro contexto de educação básica: o
da escola particular43. A réplica do professor, no entanto, é menos fundamentada em
sua constatação de que uma de suas colegas já utiliza essa tecnologia e muito mais
sustentada no fato de que, fora da esfera escolar, muitos alunos não têm como
acessar tais tecnologias. Disso advém que a presença dessas TDICs nas aulas de
inglês implica, para boa parte desses alunos, uma oportunidade de inclusão social
através de uma inclusão digital, como advoga, por exemplo, Braga, ao afirmar que
como professores, nossa meta é expandir as condições de
circulação social de nossos alunos, permitindo que eles
desenvolvam as habilidades necessárias para a construção de
conhecimento e modos de compartilhar informações
privilegiadas pela sociedade atual (BRAGA, 2013, p. 49).

Do lugar em que fala, o professor conhece as limitações e as


oportunidades (os abismos e as pontes) que tem que enfrentar / pode construir, em
seus fazeres. Há apenas duas aulas de inglês semanais; currículo a cumprir;
avaliações a serem aplicadas, corrigidas, computadas, recuperadas. Outros fatores
como feriados, palestras extras e eventos culturais também lotam seu calendário
escolar. Há pouco tempo para trabalhar com o conhecimento metalinguístico e
ainda, concomitantemente, expandir os letramentos para os digitais, para outras
oportunidades de construção do conhecimento. Não é à toa que a qualificação,
como o denota Biesta (2010, p. 20), acaba por se tornar o eixo a que se dedica
maior tempo e interesse nos processos educativos, em geral.
Em meio a essa realidade, minha posição extraposta ao contexto soa a
meus próprios ouvidos, agora na posição de analista desses discursos, utópica,
irreal, superdimensionada. Não é a falta de experiência como professora de
educação básica, inclusive, que me faltou nesse instante em que eu quis propor uma
agenda ambiciosa. O que me faltou foram contexto e perspectiva (o que me foi
concedido, depois, pelo exercício exotópico). Além disso, careci do exercício de
alteridade: afinal, o professor precisa primeiro sentir-se confortável em sua interface

43
Veja AZZARI, E. F.; CUSTÓDIO, M. A. Fanfics, Google Docs...a produção textual colaborativa. In: ROJO, R.
(org.), Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, [2013] 2016, p. 73-92.
159

com uma tecnologia antes de apropriá-la como parte de seus procedimentos


didático-pedagógicos, o que ele deixa subentendido ao afirmar que
P Eu- eu achei assim, a ferramenta, nu-não tô, assim, bem
introsando, mas muito fácil, assim.

Retomando a posição que lhe cabe enquanto professor das turmas, o


participante indica que, a “nova” tecnologia que eu já lhe apresentei, o Padlet, lhe
parece bem útil, não só como instrumento para registro de nossas interações, mas
apropriando-a em termos materiais e discursivos, o professor já vislumbra sua
presença em seus fazeres em sala de aula.
P [eu-eu eu achei interessante o Padlet, né? Eu- eu:: té
queria posta um texto, [lá, tal
Eu
[eles podem faze no gru- no google docs e a gen- eles podem
montar um Padlet da sala
P Também. É!
Eu Ou te Padlets individuais em que eles possam faze a
narrativa deles, do que eles tão aprendendendo também. Isso
é::
P Uhuum! Eu- eu achei assim, a ferramenta, nu-não tô,
assim, bem introsando, mas muito fácil, assim. [E:::
Eu É! [e o google docs é pra- pra eles trabalharem em
grupo é legal, porque se eles tão em casa, também, eles têm
acesso à internet, alguns pelo menos que [fizeram esse::
P
[Sim! Tem alguns aqui que não têm, né? [Assim a:
PE [É. Mas alguns que têm, se eles quiserem, também,
[eles podem pensa e escreve junto, né?

Concomitantemente, a fala do professor aponta para uma agenda


diferente da minha (o que faz todo o sentido), preocupada com seus contextos
locais, com seu aluno a quem conhece bem o suficiente para saber que “(...) o
trabalho é em grupo, porque tem uns que não têm computador (...)” – se não têm
computador em casa, não poderiam trabalhar colaborativamente, fora dos limites da
160

escola, com uma plataforma como o Google Docs, e o professor entende que boa
parte da tarefa que está propondo terá que ser feita fora do horário de aula,
contando com recursos de computador e acesso a internet de cada aluno (que os
tiverem), posto que o acesso a tais recursos na escola também é restrito.

No entanto, noto também a ressonância de um discurso internamente


persuasivo que insiste em (re)afirmar que os alunos (à maneira generalizada) já
são familiarizados com essas tecnologias (PowerPoint e Word) – o que, durante a
realização da tarefa, revelou-se diferente do suposto (e que expandirei mais
adiante).

Eu [eles já conhecem? [Já sabem usar?


P [Já conhecem. muitos- muitos conhecem

Penso que seja oportuno apontar que o discurso da academia, como tem
sido referenciado em alguns dos excertos analisados, não pode também ser tomado
como um discurso uníssono, monovocal e monológico (o que, aliás, está longe de
ser...). A “academia” é percebida aqui por mim como voz de autoridade, mas não
tenho a menor intenção de silenciar seus heterodiscursos, polifonias e/ou
plurivocalidades. Como discurso autoritário, ao recorrer à legitimação pela posição
de poder hierarquiza saberes, o que não quer dizer que sejam todos compartilhados
por uma única perspectiva, por suposto.
A seguir, retomo mais um recorte dos dados, trazendo a continuação do
relato postado pelo professor no Padlet no dia 03 de setembro, a que ele intitulou
“Apresentação My favourite English music”. Nesse relato o professor conta sobre a
primeira aula em que parte de seus alunos apresentou a tarefa com sua música
favorita em língua inglesa. O relato aconteceu logo após a aula de 02 de setembro e
a tarefa precisou de mais dois dias de aula posto haver muitos grupos em cada
turma. Como a apresentação dependia da sala equipada com a lousa digital, carecia
também de agendamento e disponibilidade do espaço, o que dificultou a sequência
na atividade proposta pelo professor (um abismo – dificuldade enfrentado como
implicação de apropriar-se discursivamente da validade da presença de TDICs em
seus fazeres e contexto). Conta o professor que

(...) tenho alguns alunos apáticos, indisciplinados e de difícil


maneja dentro dos meios convencionais que ao lhes ser
161

oferecido o acesso ao computador, acesso a um trabalho com


lousa digital passa a contribuir positivamente para o bom
andamento da aula. Hoje por meio da apresentação do
trabalho pude conhecer que cações [sic] fazem a cabeças dos
meus pupilos, a história de vida de seus ídolos, a lições
apreendida pelas canções populares "pop songs". Uns são
românticos, outros críticos, outros ainda religiosos, alguns bem
ecléticos, enfim o desafio que se coloca é mostrar o "saber
conviver" segundo um dos postulados Edgar de Morin,
respeitar as diferenças, sem taxações e preconceitos. Segundo
os postulados Bakhtinianos isto só aprende quando se sente
na pela, o contato com as diferenças. Por que uns curtem
música gospel e outros Fank [sic]? Será com amante do Rock
Roll caíram [sic] de moda e aquela que se encantam com uma
balada country ou ainda a tecnomusic. Isto foi apenas algumas
nuances do repertório que pode degustar no dia de hoje. Se
por um lado padeci com meus 8º anos, foi tremendamente
recompensado pelo meu 9º ano, estou com eles desde maio,
alguns alunos que somente conversavam entre si, hoje
finalmente conseguiram dialogar com a turma, depois de muita
insistência aprenderam o que é ouvir e ser ouvido. Fechei o dia
com chave de ouro.

Nesse enunciado, além de ser possível notar a ênfase ao discurso que


relaciona o papel das TDICs a algum tipo de melhoramento nos processos
educacionais, materializado em “contribuir positivamente” (o verbo denotando o
papel da tecnologia e o advérbio de modo à apreciação do locutor). Neste caso, a
tecnologia parece ter contribuído (certamente não em uma relação de causa e
efeito), como já observei anteriormente na análise da interação oral, mediando
questões de relacionamento interpessoal em aula que impediam os processos de
construção do conhecimento pretendidos pelo professor.
Ademais, como analisei anteriormente, há também o trato do aspecto da
socialização e da subjetificação, percebidos por mim à maneira que os informa
Biesta (2010). Esses aspectos são enunciados por “o desafio” (denotativo de um
abismo a ser superado) e o “saber conviver” (locução que pressupõe a ideia de
socialização – tarefa da educação de ir além dos conteúdos curriculares, centrados
no eixo qualificação, expandindo seu papel de posicionar os alunos em outras
esferas discursivas, como sugere Biesta (2010)).
Nesse caso, o olhar para o aspecto da socialização na educação é
orientado ideologicamente para (uma) moral, uma ética do viver e conviver em
sociedade e busca legitimação em uma voz de autoridade (“Morin” e “Bakhtin”) que
162

é citada entre aspas, mantendo o discurso de autoridade com a memória de sua voz
autoral e caracterizando um discurso duplamente orientado. Por conseguinte, o
professor demonstra que suas escolhas, ao planejar suas aulas e propor tarefas,
estão sustentadas em bases teóricas que reforçam seu papel de especialista e
endossam suas ações pedagógicas – o que legitimaria as ações desse professor,
que se desprende do currículo oficial para instaurar sua proposta de trabalho, como
discutirei mais adiante (atitude que associarei a sua agência e autorias discursivas
em favor de uma Pedagogia do Possível).
O trato em relação à questão da subjetificação, como propõe Biesta
(2010) ou o ato de tornar-se, como sugere Bakhtin ([1979;1992;2003] 2011 p.395),
é enunciado pela ideia que o trabalho colaborativo, tal qual o professor o descreve,
mediado pelas TDICs, que contribuiu para que fossem manifestadas as “diferenças,
sem taxações e preconceitos”. Esse acontecimento teria sido propiciado a partir da
interação estabelecida entre os alunos que, advindos de diferentes lugares e olhares
socialmente compartilhados, o que o professor materializa por “uns são românticos,
outros críticos, outros ainda religiosos, alguns bem ecléticos”, marcou a
heteroglossia e a pluralidade de vozes que permeou essa sua aula. O professor
manifesta assim em seu discurso, mais uma vez, um olhar bivocal em relação às
TDICs que adotou até aquele momento: o de um instrumento para o trabalho
metalinguístico (com o Duolingo) e o de mediador para a (trans)localização dos
alunos para um diferente cronotopo – em que lhes é permitido a agência discursiva,
em um processo de subjetificação.

Noto que, de acordo com os discursos que advêm desses enunciados,


essa aula de inglês na educação básica se transformou em espaço ampliado que,
por conta da agência e autoria discursivas do professor – que apropriou para si as
palavras-alheias em relação às TDICs de modo a (re)formular planos de aula e
estratégias de ensino e aprendizagem, tornando-as palavras-alheias-próprias e,
então, palavras-próprias –, redesenhou, por conseguinte, seu papel como
educador para além dos limites de um inglês ensinado a guisa de um conjunto de
regras e estruturas. Penso que isso tenha se configurado de modo muito positivo em
seu contexto, uma vez que seja uma postura que vai ao encontro do olhar que
favorece uma educação linguística voltada à formação cidadã, mais pluralista. Da
163

maneira como entendo, isso pode contribuir a guisa de exemplo de uma experiência
positiva que poderia vir a inspirar outros docentes em seus contextos específicos.
Se, por um lado o professor ressalta que, mesmo com a mediação das
tecnologias “padeci com meus 8º anos” (já que os problemas disciplinares e de
gerenciamento dessas turmas persistiram), o resultado de seu trabalho é apreciado
como “tremendamente recompensado” por seu 9º ano (note o uso do advérbio
enfatizando a expressão do enunciado).
Mas o que me chama a atenção é o fato de que, ao contrário do objetivo
proposto com o trabalho mediado pelo Duolínguo, neste caso a “recompensa” a que
se refere o professor não se trata do resultado de um tipo de ganho linguístico (o
que, de fato, não parece ter sido o objeto central dessa atividade proposta com a
música), mas o fato de que, por intermédio dessa tarefa,
alguns alunos que somente conversavam entre si , hoje
finalmente conseguiram dialogar com a turma, depois de muita
insistência aprenderam o que é ouvir e ser ouvido. Fechei o dia
com chave de ouro.

A ideia dos alunos de diferentes “tribos”, diferentes vozes, em


heteroglossia discursiva, olhando para si e entre si através da expressão de suas
preferências musicais, mostra que esse professor tinha em mente, em seu
planejamento e em sua proposta de ensino, expressa a maneira discursivamente
agente e autoral, muito mais que cumprir o currículo oficial proposto para as aulas
de inglês nos 8º e 9º anos.
A atividade em si é muito simples. Não exatamente inovadora, já que com
um toca-fitas K7 a guisa de tecnologia (hoje considerada simples e mega
ultrapassada), eu mesma pude, muitas vezes, fazer algo semelhante em aulas de
inglês que dei nos idos anos 80... Porém, mais do que o papel de mediação, penso
que à conta de “usar” as TDICs, sua presença nos fazeres desse professor nessa
tarefa implicou a criação de espaços outros: o diálogo, o movimento cronotópico, a
oportunidade para a agência e a autoria discursivas (do professor e de seus alunos,
dialogicamente).
Na maneira como vejo, esse pode ser o indicador de um caminho para
um olhar menos orientado para uma educação linguística preocupada somente com
a transmissão de conteúdos e a mensuração de sua assimilação (por parte dos
164

alunos), como criticada por Biesta (2010), e em favor de uma visão mais pluralista e
dialógica, em favor da cidadania, como advogada por Rocha (2010; 2015).
Guardadas as devidas proporções, vou arriscar traçar um paralelo entre o
que faz o professor, com sua proposta de trabalho, e o que Bakhtin (2008; 2013)
informa fazer Dostoiévski com seus personagens em seu romance polifônico –
embora seja um comparativo deveras arriscado, lanço-me à praça bakhtiniana...
Vejo um movimento dialógico na maneira como o professor desenhou seu
olhar para a aula. Essa simples proposta, da forma como foi feita, deu espaço à
polifonia: ao invés do professor trazer (como autor) uma canção (de sua própria
escolha) para trabalhar com os alunos, o professor abriu espaço para que o objeto
fosse apreciado por diferentes vozes, aquelas de seus alunos, que (assim como os
personagens de Dostoievski) também puderam vozear seus diferentes pontos de
vista sobre o mesmo objeto: a canção em língua inglesa. Ao completar a tarefa, os
alunos responderam à provocação discursiva escolhendo a música (agência) e
responderam por isso ao apresentar suas escolhas (autoria discursiva).
Já que cada canção escolhida pelos alunos tratou de um tema, posto que
foram diferentes canções, de diferentes ritmos, expressões de diferentes vozes
sociais, como informa o professor, o funk, o religioso, o popular, o rock, as
apresentações foram permeadas pela heteroglossia discursiva, em polifonia ( tomo
aqui polifonia no sentido em que não houve um intencional silenciamento ou a
sobreposição de vozes – muito embora haja sempre relações de poder em todas as
práticas, até mesmo as que se pretendem construções de conhecimento à maneira
mais horizontalizada). Busco apoio em Rocha (2010; 2015) que defende revelar-se
de extrema importância o papel da responsabilidade social nos fazeres de um
professor de inglês que busque uma postura cidadã e crítica na formação de seus
alunos, de maneira que a aula de inglês na escola pública possa se configurar como
um espaço outro em que se acate a pluralidade de vozes, culturas e línguas – a
diversidade dos estratos sociais de onde advêm essas pluralidades.
Por conseguinte, quer o discurso do professor ressoe sua formação
religiosa (de seminarista, como ele mesmo apontou) ou ecoe sua formação
acadêmica (que recorreu a Bakhtin e Morin no excerto de 03 de setembro), fato é
que sua preocupação para além da qualificação, com os fatores educacionais
pertinentes à socialização e à subjetificação (sua preocupação com o dialogo entre
alunos, a ética de relacionamentos e o exercício da alteridade), tornaram sua aula
165

um espaço em que o ato do conhecimento pôde ser, ainda que momentânea e


parcialmente, o ato de tornar-se.
Ao assumir um papel agente e autoral, partindo das apostilas e livros
didáticos e visionando suas práticas didáticas a partir das necessidades que
detectou em suas turmas, o professor não calou seus alunos, ao contrário, deu-lhes
voz. Não pediu que ecoassem sua opinião musical, como voz autoritária que o
poderia ter feito, mas, ao contrário, deu espaço à autoria discursiva de seus alunos,
deixando que eles trouxessem à aula, a praça pública em que foram convidados a
se expor, suas próprias visões do objeto de discurso. Dessa forma, o professor abriu
espaço para uma prática dialógica.
Nessa direção, esse é um posicionamento do professor que vem ao
encontro do que propõe Rocha (2010) que, ao advogar uma educação plurilingue,
afirma que
passo a ver as fronteiras como as zonas de contato
bakhtinianas, como marcas dos encontros e, também, dos
desencontros com o estrangeiro, ambos geralmente
conflituosos, porém transformadores (ROCHA, 2010, p. 14).

Para essa autora, que parte igualmente de uma visão dialógica, de


orientação bakhtiniana, para discutir a educação em língua inglesa no Ensino
Fundamental I, ao entrecruzar diferentes perspectivas em tarefas em aula, cria-se
espaços outros, zonas de contato “entre línguas, linguagens, culturas e visões de
mundos particulares, imersos na possibilidade de plurivalência de significados e
resignificações” (ROCHA, 2010, p. 18), de modo que se possam criar ações em
favor da produção de mudanças. Apoiada em Shields (2007, p. 71), Rocha (2010, p.
27) afirma que pensar a educação a partir de uma perspectiva dialógica amplia as
possibilidades em direção à construção de sentidos outros, por integrar a
plurivocalidade nos processos educacionais (o que eu entendo que tenha sido
facilitado / propiciado pela proposta do professor com a atividade “My favourite
Music”, daí eu entender que sua proposta tenha favorecido a realocação do
dialogismo em âmbito educacional).
Todavia, mais adiante no decorrer desta análise, trarei recortes de
interações ocorridas ao longo do semestre que vão indicar que essa proposta de
trabalho do professor gerou certa polêmica em seu contexto de trabalho e cobranças
em relação aos resultados de suas ações.
166

Para dar continuidade a esta análise e também manter certa cronologia


na narrativa, passo a focalizar um recorte de relato enviado pelo professor em 11 de
setembro de 2015 quando o professor, combinando comigo nosso planejamento
para a realização/continuidade de sua proposta de trabalho, escreveu:
(...) posso pedir o apoio da vice- direção que acompanhou os
trabalhos da 8ª série (9º ano C) e gostou muito da proposta, a
Sra. XXX, vice-diretora. Em função disso ela liberou a lousa
digital para os demais professores, consegui "convertê-la", (uso
das novas tecnologias) para uma aula com lousa digital online
e os alunos atuando com ela (...).

Penso que no enunciado supracitado seja possível identificar o professor


em novo deslocamento cronotópico. Além de sair de sua zona de conforto ao propor
compartilhar seu trabalho comigo, o professor também, levou essa noção de
exposição de maneira agente, ao seu contexto de trabalho, envolvendo
voluntariamente a gestão, a fim de provocar um possível envolvimento, também, de
seus colegas. Parece-me possível afirmar que, nessa direção, as palavras-alheias,
agora palavras-próprias, o discurso internamente persuasivo (BAKHTIN,
[1979;1992;2003] 2011), emprestou-lhe voz autoral, o que se percebe por sua
escolha de palavras, entendidas por mim aqui como um signo bakhtiniano: “consegui
“convertê-la”, referindo-se à sua própria apropriação em relação ao “uso” das novas
tecnologias. Ademais, a escolha do verbo em “converte-la” indicia um discurso de
autoridade da esfera religiosa, em que um líder religioso tem por tarefa converter a
mente dos fieis (novamente, ressonância da vivência desse professor como
seminarista).
A agência discursiva (responder a), neste caso, está direcionada à busca
pelo apoio, a legitimação do discurso de autoridade, representado pela “senhora
XXX, a vice-diretora”, para quem teve que apresentar seu trabalho a fim de
conseguir anuência para suas propostas que integravam as TDICS (e dependiam da
liberação do uso dos equipamentos e espaços físicos da escola) e que resultou num
movimento que poderia afetar também a prática de seus colegas professores (se
eles assim o desejassem) já que
o apoio da vice- direção que acompanhou os trabalhos da 8ª
série (9º ano C) e gostou muito da proposta, a Sra. XXX, vice-
diretora. Em função disso ela liberou a lousa digital para os
demais professores, consegui "convertê-la", (uso das novas
tecnologias) para uma aula com lousa digital online e os alunos
atuando com ela (...).
167

Entendo também que esse enunciado aponte para o fato de que – em


seus esforços para construir pontes que aproximem os abismos
profissionais/contextuais por que passa em seu caminho –, o professor precisa,
necessariamente, contar com discursos que (re)afirmem, validem e legitimem suas
práticas em seu contexto de trabalho, ou seja, abismos outros pelos quais precisa
passar para seguir adiante, já que se encontra inserido em um sistema educacional
em que há relações invariavelmente hierarquizadas à maneira verticalizada. Para
tanto, o professor precisou (re)pensar primeiro suas próprias ideias e práticas a fim
de mover-se em direção à abertura de espaços outros, propondo rotas alternativas
em seu contexto, em favor de um currículo local (daí sua aproximação com a visão
proposta de uma Pedagogia do Possível, por Helót e Laoire (2011)).
Conquanto os discursos que advogam a presença das TDICs circulem em
práticas sociais compartilhadas por órgãos governamentais politizadores da
educação (como no caso da “Chamada”, analisada no início deste capítulo), as
implicações de apropriar-se desses discursos, em contexto escolar, são ainda
permeadas por fatores outros, tais quais os pertinentes às hierarquizações das
organizações escolares e da distribuição do uso e do acesso às suas materialidades
tecnológicas. Ao que parece, os discursos ainda não são compartilhados
horizontalmente, à maneira colaborativa, como propõe Rocha (2010), por exemplo.
Na esteira das implicações decorrentes dessa apropriação
discursiva vêm, portanto, muitos fatores. A lousa digital e o equipamento multimídia
a ela atrelado, como já mencionei, dividia espaço com a biblioteca da escola que,
naquele semestre, passava por reorganização e, por isso, o uso da lousa digital
estava limitado não somente ao compartilhamento com os demais
professores/disciplinas dos currículos em andamento, mas, também, com a questão
da disponibilização do espaço físico – daí o professor ter expressado contentamento
ao ter conseguido o apoio da vice- direção que aparentemente havia gostado de sua
proposta, e, por conseguinte, “liberado” o acesso à lousa digital também para os
demais professores.
De fato, eu só pude entender mesmo a implicação desse discurso para
o contexto e as práticas em questão em uma das aulas de que participei com o
professor, no dia 02 de setembro. A sala com a lousa digital, tecnologia mediadora
da apresentação da proposta com a música favorita, estava abarrotada por livros
168

retirados das estantes e por bancos empilhados (o que dificultou sobremaneira o


trabalho proposto) – caracterizando outro abismo (fundamental) a ser enfrentado: o
das materialidades (físicas e processuais) e as suas limitações.
Por serem muitos os alunos em cada turma, foram necessárias mais de
uma aula para que todos os grupos fizessem as apresentações, o que acabou por
se tornar um problema. Mover os alunos de suas salas para outro ambiente,
organizar a todos e aos materiais, acessar as tecnologias... tudo isso demanda
tempo e as duas aulas de inglês logo terminam... O processo foi, em parte, facilitado
pela minha presença, já que atuei à maneira semelhante de um auxiliar de sala,
ajudando com o manejo das tecnologias e aparelhos, na organização geral, etc..
Ainda assim, não foi possível assegurar uma sequência para a tarefa nas aulas, já
que, entre outras coisas, a sala com a lousa digital não estava sempre disponível.
Num relato postado no Padlet em 10 de setembro o professor informa
como essa sequência de trabalho também foi interrompida já que
(...) hoje trabalhei com os alunos a revisão para a prova
bimestral, pude utilizar a sala de informática para enriquecer a
pesquisa e dar um pouco mais de recursos, estou baseando
minha avaliação no estudo do biografia do Walt Disney,
questões objetivas e as questões discursivas, reflexivas no
trabalho que os alunos fizeram nas apresentações, terão que
argumentar sobre a música e a biografia dos mesmos, além
disso no caso do 8º anos, deixei uma questão sobre o filme de
Oliver Twist, atividade que desenvolvi em parceria com as
disciplinas de História e Artes.

Perceba que o foco do professor não está nas questões metalinguísticas.


Como o calendário escolar previa avaliações bimestrais, o professor precisou
redirecionar seus objetivos. Ainda assim, preferiu fazer suas revisões com a
mediação das tecnologias: “hoje trabalhei com os alunos a revisão para a prova
bimestral, pude utilizar a sala de informática para enriquecer a pesquisa e dar um
pouco mais de recursos”. Mais uma vez, o professor retoma em seu discurso o papel
instrumental das tecnologias digitais, reforçando a tese de Charlot (2013) de que o
docente possa delas se utilizar a fim de facilitar seus fazeres, muito embora este
professor também perceba nessas tecnologias uma oportunidade para propiciar a
descentralização do papel do professor no processo ensino-aprendizagem.
A expressividade que marca esse papel das tecnologias nesse enunciado
está registrada em “para enriquecer a pesquisa e dar um pouco mais de recursos”,
169

reforçando o discurso internamente persuasivo, já manifestado em outras


interações, em relação à presença das TDICs em suas aulas para atender a
diferentes tarefas, mas com propósitos semelhantes, dentre eles: a ideia de ser um
recurso ou ferramenta; de servir como caminho para a pesquisa; e de proporcionar
maior independência ao estudante.
Conquanto a ideia de mobilidade e desestabilização na estrutura
centralizadora no ensino seja mais favorável a uma educação que se pense
dialógica do aquela centralizada em um professor-transmissor de conhecimentos
mimeticamente assimilados, por exemplo, entendo que a questão que se deve
problematizar aqui é que esta visão de autonomia do aluno, apresentada pelo
professor, é (da maneira como entendo) ainda muito próxima da ideia de autonomia
neoliberal (do indivíduo que é responsável, de maneira isolada, por seu próprio
desenvolvimento, como sugere Zatti (2007)) do que da autonomia a que se referem
Biesta (2010) ou Freire (apud ZATTI, 2007), como apresento no capítulo três. Penso
que já que não há espaço para a crítica, a discussão da tecnologia escolhida, a
proposição de outras tecnologias, enfim, o lugar para interação criticamente
orientada do estudante com sua história e sociedade, essa noção de autonomia a
que se refere o professor em múltiplas instâncias ainda que contribua para um
movimento desestabilizador em seu contexto tem, a meu ver, um caráter
neoliberalizado.
Ainda na mesma publicação de 10 de setembro o professor esclarece
que

(...) hoje, sem temporal foi um dia com grande presença de


alunos, ontem tivemos ausência de mais de 60%, espero que
tudo dê certo para que possamos finalizar as atividades, dentro
das minha aulas. Alguns alunos reclamam muito quando busco
trabalho interdisciplinar e transdisciplinar, foram condicionado a
uma visão compartimentada. Infelizmente a proposta curricular
dentro da distribuição de cargo horária tão desigual dentro do
currículo oculto construiu essa noção de algumas disciplinas
são mais importantes e outras menos importantes. Para piorar
o quadro há as avaliações institucionais que privilegiam o
Português e a Matemática, assim se faz a escola pública do
aprender apenas a ler, escrever e fazer contas. Qualquer
semelhança como o ensino primário de nosso antepassados e
mera coincidência? Não há uma escola para a elite e outro
para o povo.O número de alunos, as jornadas de trabalho
170

docente são um atentado a tudo que se pensa em termos de


bom senso.

Como já apontei anteriormente, uma grande dificuldade enfrentada


pelo professor é a carga horária dedicada à língua inglesa na educação básica.
Contando penas com duas aulas semanais, um dia de “temporal” que acarreta
“ausência de mais de 60%” dos alunos certamente faz diferença nos planejamentos
dessa disciplina.
Como o professor também assumia aulas de língua portuguesa para as
mesmas turmas, não raro procurava dialogar seu trabalho nas duas disciplinas, além
de buscar interlocução com outras disciplinas tais quais história e artes. No entanto,
como informa “alguns alunos reclamam muito quando busco trabalho interdisciplinar
e transdisciplinar”. Mas o professor reputa essa postura dos alunos ao sistema
curricular: “foram condicionado [sic] a uma visão compartimentada. Infelizmente a
proposta curricular dentro da distribuição de cargo horária tão desigual dentro do
currículo oculto construiu essa noção de algumas disciplinas são mais importantes e
outras menos importantes”.
Esse enunciado é particularmente exemplar da polêmica oculta, de
discursos em embate: segundo o professor, há, no discurso do aluno, a
ressonância de um discurso outro, que se opõe a sua visão de que os
conhecimentos devam ser compartilhados em uma perspectiva interdisciplinar. Esse
discurso é reputado como discurso autoritário e de autoridade, cuja voz é
materializada pela locução nominal “a proposta curricular”. Esse discurso, portanto,
não permite apagamento de voz autoral e nem discussão no que diz respeito a seus
propósitos, neste caso apontado como a “distribuição de cargo horária”, já que este
não é um fator negociável na posição em que se encontram docente ou discentes.
O professor subentende também outro embate: a escolha por saberes
privilegiados. Ao afirmar que “para piorar o quadro há as avaliações institucionais
que privilegiam o Português e a Matemática, assim se faz a escola pública do
aprender apenas a ler, escrever e fazer contas”, o professor aponta para o maior
prestigio que essas disciplinas (português e matemática) recebem em detrimento a
outras, como a língua estrangeira.
Esse discurso vem ao encontro do que aponta Biesta (2010) ao postular
que estamos voltados para uma educação fundamentada na “Era da mensuração”,
171

i.e., das avaliações institucionais que apontam a valoração em torno da “boa


educação” com base em resultados que visam medir o desempenho dos alunos (e,
portanto, das instituições educacionais) a partir de um olhar conteudista,
homogeneizante e que equipara escolas e sistemas de ensino como se todos os
discentes, contextos e condições de ensino e aprendizagem fossem iguais em todas
as localidades e em diferentes estratos sociais. Nessa direção, Biesta informa que
(...) em muitos casos a questão da boa educação tem sido
substituída por outros discursos. Tais discursos geralmente
parecem ser acerca da qualidade da educação – pense, por
exemplo, em discussões sobre a eficácia da educação ou em
ônus da educação –, mas, de fato nunca endereçam a questão
da boa educação em si (...) a que [objetivos] os processos
[educativos] devem supostamente atender. (BIESTA, 2010,
p.2).

Na fala do professor, são esses objetivos a que ele chama de “dentro do


currículo oculto”, ou seja, a busca por atender a demandas de avaliações
normatizadoras que julgam saberes dados como privilegiados, que “construiu essa
noção de algumas disciplinas são mais importantes e outras menos importantes” (e
que dá evidências da polêmica velada que se revela no discurso do aluno que
reclama de tarefas inter e transdisciplinares, como informa o professor). De fato,
tenho que concordar.
Como discuto em minha dissertação (AZZARI, 2013), a educação em
língua estrangeira na educação regular pública tem sido submetida a tantos altos e
baixos em termos de prestígio ao longo dos séculos, desde o Brasil imperial, que é
bem possível traçar as origens de seu desprestígio atual (esse a que se referem os
alunos e o professor). Relegada como tarefa secundária nos anos fundamentais
durante os anos da ditadura, o ensino de inglês (e de outras línguas) ficou a cargo
das escolas de idiomas e, dessa forma, foi elitizado, fruto de uma modernidade que
visionava o tecnicismo como fundador de um progresso social (e que, infelizmente,
tem sido discurso retomado por alguns governantes nos dias correntes).
Esse desprestígio a que se refere o professor é, portanto, um dos motivos
pelos quais penso que seja tão importante advogar em favor do entendimento do
papel formador e de engajamento que uma educação plurilingue pode exercer na
formação cidadã (para o que busco apoio em Rocha (2010)) dentro de um projeto de
172

sociedade pensado a partir da esfera educacional, como sugere Charlot (2013), por
exemplo.
Nessa mesma direção, ainda encontro apoio para analisar esse mesmo
enunciado nas discussões oferecidas por Biesta (2010) que afirma que, tirar o foco
da questão dos objetivos que de fato se busca atingir pela educação, em favor de
uma abordagem que discuta processos eficientes e eficazes, no sentido de atender
ao desempenho mensurado por testes padronizados, desloca o foco da questão do
que se entende por “boa educação”, de maneira que é
prejudicial para um controle democrático sobre a educação. (...)
o único caminho para recuperar bases é colocar a questão
acerca da boa educação de maneira aberta e normativa – uma
questão de objetivos, finalidades e valores –, e abordar essa
questão à maneira direta ao invés de fazê-lo de forma indireta
ou explícita (BIESTA, 2010, p.2).

Ou seja, quando se menciona “uma boa educação”, como é definida a


educação? Como é pensada? O que dela se espera? Uma educação voltada à
transmissão e assimilação de conteúdos irá lançar mão, consequentemente, de
instrumentos que possam medir esse tipo de objetivo, ou seja, os “resultados”
esperados da “boa educação” serão medidos através do desempenho dos alunos
em testes e avaliações institucionalizadas (e generalizantes) que possam mensurar
quanto dos conteúdos esperados (o objetivo) foi assimilado (o resultado bom ou
ruim). Daí o foco em repensar os objetivos da educação, o que de fato se almeja
através do ensino de inglês nos anos fundamentais na escola pública? – de onde
advém a relação de desprestígio da disciplina a que se refere o professor.
Ainda nessa mesma direção, numa interação oral entre nós estabelecida
em 02 de dezembro, questionando a maneira como a educação básica é pensada e
orientada no Estado de São Paulo, o professor, que é proveniente do Rio Grande do
Sul, afirmou:
A::- a minha cultura é::, assim, lá o- o:: lá o gauchês que [[eu
tenho, lá onde eu moro, onde eu construi=
PE [[(risos)
P2 =Que dizê, lá no Rio Grande do Sul, é de ouvi a
comunidade. A escola é construída de dentro pra fora, [não de
fora pra dentro, né?
Nesse enunciado, o adjetivo “gauchês”, e o advérbio de lugar “lá”, são
associados aos verbos “moro” e “construi”, marcando a construção identitária desse
173

locutor, de forma a antecipar o locus para sua fala de onde advém o discurso que
advoga, a exemplo do que propõe Biesta (2010), um olhar democrático e
democratizante para os objetivos e processos da educação. Esse discurso vem,
então, enunciado por “que dizê, lá no Rio Grande do Sul, é de ouvi a comunidade.
A escola é construída de dentro pra fora, [não de fora pra dentro, né?”.
Ou seja, naquele contexto citado o discurso de autoridade (representado
pelos órgãos estaduais responsáveis pelas políticas educacionais) cederia espaço
(de acordo com o que informa o professor) às vozes dos outros atores participantes
dos processos educativos (a “comunidade”) construindo uma escola “de “dentro pra
fora, [não de fora pra dentro, né?” , uma metáfora de forças centrípetas e
centrífugas, que contribui para a polêmica aberta que apresenta o discurso do
professor: “lá”, o lugar que o constitui identitariamente, em oposição ao “aqui” , que
parece ser sua praça pública bakhtiniana, sua arena de embates.
Para o contexto em foco, isso parece representar um embate de forças:
como o professor estava acostumado a práticas colaborativas em que o
heterodiscurso era constitutivo dos fazeres escolares, enfrenta um discurso
homoglóssico neste contexto em que se estabelece este estudo e, dessa forma,
precisa encontrar meios para construir pontes que viabilizem espaços para uma
prática localizada, que leve em questão seus alunos, seus contextos sociais,
culturais, linguagens, etc.. De tal forma, a proposta didático-pedagógica do professor
se apresenta como uma busca pela Pedagogia do Possível (HELÓT; LAOIRE,
2011), um fazer pluralizado, a partir do contexto local, que permita a manifestação
de vozes outras, de forma menos verticalizada, desestabilizando tradicionais
relações de poder internas e externas ao ambiente educacional, de modo a
reorganizá-las em favor de uma educação mais participativa e criticamente
orientada.
O próximo relato do professor, cujo excerto trago a seguir, foi postado no
Padlet em 16 de setembro, após a realização da avaliação bimestral. Nesse relato o
professor informa que
hoje fia [sic] as provas bimestrais, busquei regatar [sic]
algumas atividades que desenvolvi no mes [sic] de agosto, pois
o sistema de avaliação bimestral, quando se trata das aulas
LE, exige muito mais trabalho do porfessor [sic], o processo
deve ser praticamente instantãne [sic]. Enso/avalição [sic].
Trabalhei com a Biografia Gênro [sic] de texto, um pouco de
literatura e por fim música. Foi um trajeto interessante. Mas
174

muito ainda estão perdidos. Meu maisor [sic] desafio é que


alunos consigam refletir sobre as aquisições em LE, veja como
mais um meio de enriquecer sua formação pessoal e
intelectual. Tive mais sucesso no 9º ano e menos sucesso no
8ºs anos, é uma questão de maturidade. Trata-se de uma série
de transição. Quem sabe em um futuro próximo, eles tenham
mais maturidade. Há uma resistência em escrver [sic]
mesmoem [sic] língua [sic] materna por parte de um grupo de
alunos. Isto será um bom elemento para o program [sic] de
reforço.

Durante o mês de agosto, juntamente com a continuação do trabalho


metalinguístico via Duolingo e a proposta com a canção em inglês, o professor
dedicou parte do tempo de suas aulas e tarefa para casa na leitura de um texto em
inglês sobre a vida e o trabalho de Walt Disney (gênero biografia), sobre o qual os
alunos tiveram que responder questões objetivas e também uma discursiva, de
leitura crítica.
O texto e as suas questões, cuja correção eu pude acompanhar em uma
das aulas, foi escrito na lousa com giz pelo professor e copiado pelos alunos em
seus cadernos. Embora fosse um texto publicado no livro didático adotado na
escola, um material distribuído pelo governo federal, o professor informou não haver
na escola cópias suficientes para todos os alunos, daí o procedimento da cópia.
Esse é o texto a que se refere o professor no relato supracitado em “trabalhei com a
Biografia Gênero [sic] de texto, um pouco de literatura e por fim música”. Segundo o
professor me informou durante a aula em que corrigiu essa tarefa, era preciso
materializar algum tipo de conhecimento de ordem textual para justificar seu
planejamento bimestral e incluir na avaliação escrita (maneira como o professor lida
com o discurso autoritário, adequando-se como forma de resistência).
A apreciação do professor em relação a seu objeto de discurso (a
avaliação bimestral) aparece enunciada em
pois o sistema de avaliação bimestral, quando se trata das
aulas LE, exige muito mais trabalho do porfessor [sic], o
processo deve ser praticamente instantãne [sic]. Enso/avalição
[sic].

A ideia de que a cobrança do sistema avaliativo dá “muito mais trabalho”


(note o advérbio de intensidade) ao docente de língua estrangeira aponta
novamente para o discurso em que essa disciplina é (veladamente) comparada e
contemplada como desprestigiada, em relação a outras áreas do conhecimento
175

também integrantes do currículo do Ensino Fundamental II. Nesse caso, o


desprestígio dessa disciplina, mencionado no discurso do relato de 10 de setembro
e que resulta em uma menor carga horária para as aulas de inglês, repercute
também em maiores dificuldades para o professor em relação à avaliação bimestral.
Compulsória, a prova bimestral pressupõe que as aulas foram dadas
conforme o calendário esperado, ou seja, nas datas previstas, sem interrupções
outras, e os planejamentos cumpridos a contento, o que resulta em “o processo
deve ser praticamente instantãne [sic]. Enso/avalição [sic]”. Ou seja, há pouco
tempo, muito a fazer, mas a cobrança na hora da avaliação segue o mesmo fluxo
das disciplinas mais privilegiadas em termos de carga horária. Outro abismo a ser
encarado pelo professor de inglês em seu contexto de trabalho. Neste contexto, o
professor buscou meio e modos, muitas vezes com a presença das tecnologias, a
fim de superar abismos como esse.
Mas penso que uma maneira de se lidar com essa situação seja retomar
a discussão do lugar que ocupa a educação linguística no ensino regular; criar
formas de resistência. Daí a importância de se realizarem mais estudos como este
que ora faço: que visibilizem e problematizem o papel que o ensino de línguas
estrangeiras ocupa nos processos da educação básica.
Acredito que as reuniões de ATPC nas escolas públicas poderiam ser
espaços em que essas questões fossem debatidas; em que se discutissem
pesquisas e estudos na área da linguagem; em que os professores abrissem
espaços para a construção colaborativa do conhecimento e o trabalho
interdisciplinar (como propôs, por exemplo, esse professor). Mais uma vez, penso
que um caminho possível para abordar essa questão seria através do diálogo (como
é bakhtinianamente pensado). Abrindo tempos-espaços para trazer vozes da
academia; da comunidade, do corpo discente...
Nesse mesmo excerto, o professor afirma que
meu maisor [sic] desafio é que alunos consigam refletir sobre
as aquisições em LE, veja como mais um meio de enriquecer
sua formação pessoal e intelectual. Tive mais sucesso no 9º
ano e menos sucesso no 8ºs anos, é uma questão de
maturidade. Trata-se de uma série de transição. Quem sabe
em um futuro próximo, eles tenham mais maturidade.

Segundo o professor, seu “maior desafio” é engajar seus alunos em


um processo metacognitivo, em que percebam sua própria aprendizagem “que
176

alunos consigam refletir sobre as aquisições em LE”. O “conseguir” pressupõe que


isso, ainda, não esteja acontecendo. O discurso da metacognição vem na esteira da
ideia de desprestigio, em relação às demais disciplina, que assola o ensino de
inglês, como o professor enunciou anteriormente. A escolha por “aquisição” remete,
novamente, ao discurso que toma a língua(gem) como território a ser conquistado,
que trará por recompensa “mais um meio de enriquecer sua formação pessoal e
intelectual” (mais um indicando possivelmente que, no momento, o desprestígio
dessa disciplina seja tal que esses alunos não percebam nenhum valor no estudo
dessa língua para sua educação?).
Novamente, há um discurso polêmico, um embate de vozes: por um lado,
a da voz desprestigiada da disciplina que “quando se trata das aulas LE, exige muito
mais trabalho do professor”; que é tratada com menor importância pelos currículos
oficiais, o que afeta a percepção dos alunos acerca de sua relevância (diante das
demais disciplinas) em seus processos educacionais. Por outro lado, a voz do
professor de inglês que, recorrendo à interdisciplinaridade e à presença de TDICs
em suas aulas, tenta reverter esse discurso de autoridade em relação à aula de
inglês na educação básica que parece já ter sido apropriado por seus alunos à
maneira de palavras-alheias-próprias.
Após a semana de avaliações, foi possível retomar as apresentações em
grupo da tarefa “My favourite music”, novamente contando com a sala com lousa
digital (o que não foi conseguido sem conflitos, como explicitarei no recorte de uma
interação oral que tivemos o professor e eu, mais adiante).
O próximo excerto que trago à luz de análise advém de um relato do
professor postado no Padlet em 23 de setembro, após uma aula da qual participei:
apresentação de hoje aconteceu com um grupo e uso do
Power Point, com a música "See you". O grupo de alunos
supreendeu [sic], além de colocar um belíssimo vídeo,
organizar e apresentar finalizaram a atividade com com [sic]
uma paráfrase [sic] da música, uma vesrão [sic] do fã clube.O
trabalho demonstrou que além da apropriação de
conhecimentos em língua estrangeira valeram-se de novoas
[sic] tecnologias para socializar o conhecimento. Uma lousa
digital na escola pública faz toda a diferença, além é claro da
dedicação e comprometimento dos alunos.

Ao descrever a atividade apresentada por seus alunos, o professor


marcou expressivamente seu enunciado com o adjetivo “belíssimo” (referindo-se
177

ao videoclipe musical escolhido pelos alunos) e o verbo “surpreendeu”, denotando


ênfase no fato de que o trabalho havia superado às expectativas, indo além das
instruções e requisitos ao finalizar com uma “paráfrase da musica, uma vesrão do fã
clube [sic]”. Reafirmando o discurso internamente persuasivo já manifestado em
enunciados anteriores, o professor reforça o papel da presença das TDICs como
instrumento de mediação e técnica (como sugere Verazto et al, 2008) ao afirmar
que “aconteceu com um grupo e uso do Power Point”. Reaparece também, neste
enunciado, a ideia de melhoramento na educação como decorrência da presença
das tecnologias (como discutido por Selwyn, (2012; 2014)), registrada em “uma
lousa digital na escola pública faz toda a diferença” , já que essa lousa teria
proporcionado a seguinte relação: “além da apropriação de conhecimentos em
língua estrangeira valeram-se de novoas [sic] tecnologias para socializar o
conhecimento”.
Para o contexto em questão, esse enunciado carrega um peso
importante: as relações de ensino e aprendizagem foram mobilizadas de modo a
criar espaços outros para a construção compartilhada de conhecimentos, como já
indiquei anteriormente.
O professor parece, no entanto, apontar uma diferenciação entre
apropriação e aquisição de língua: quando se referia ao papel da proposta com a
plataforma Duolinguo o professor se referia à “aquisição” da língua inglesa,
indicando sua preocupação com os objetivos metalinguísticos como fator para
“melhoramento”. No entanto, como já mencionei anteriormente, o papel
metalinguístico não figurava como objetivo central na proposta com a música favorita
(o que, por conseguinte, abriu espaço para as outras construções de conhecimento,
tais quais a da socialização e da subjetificação, como as entendo com apoio em
Biesta (2010)).
Não consigo, no entanto, identificar se a mudança de “aquisição” , de
enunciados anteriores, para “apropriação” no enunciado supracitado é decorrente do
fato de que não houve um trabalho específico de reflexão metalinguística nessa
atividade (que consistiu basicamente em copiar e colar letra de música de sites da
internet, e a traduzir essas letras com a ajuda desses mesmos sites ou do Google
Tradutor) ou da interferência/apropriação de meu discurso, através de nossas
interações.
178

De qualquer forma, discuti com o professor essa ideia de “apropriação da


língua estrangeira”, procurando construir sentidos para seu discurso e notei que,
para ele, viria na esteira do processo de aprendizagem com enfoque na tradução,
discurso formador desse professor, conforme discutido previamente nesta análise.
Como a atividade contou com a mediação das tecnologias síncronas e a tradução
consistiu, basicamente em copiar e colar a letra em inglês na plataforma Google
tradutor, consigo visualizar que neste caso talvez, em termos de letramento, o digital
tenha suplantado o linguístico. Por conseguinte, penso que a atividade tenha
atendido de alguma maneira à sugestão de Braga (2013) que mencionei
anteriormente.
Nesse mesmo dia 23 de setembro, o professor e eu discutimos as ações
em aula e nossos próximos passos. Nessa interação oral, cujo excerto trago a
seguir, revozeei minha visão da seguinte forma:
Eu você quer leva-los, novamente, pro laboratório pra ir
mostrar, então “olha, vamu pegar o powerpoint como
ferramenta”, pegar- pedir pra essa- a contribuição dessas
alunas que já fizeram a apresentação e dizer o que elas
aprenderam, elas podem contar pra sala o que elas
aprenderam, o que elas acharam de usar a ferramenta e
expandir um pouquinho, a partir do que elas fizeram, e pedir
pra que todos eles colocassem a- a <música>, a <letra>, tudo
numa apresentação, nem que fossem bem simples.
P uhum
Eu Acho que a gente conseguiria fazer isso em um dia de
aula dupla, se agente organizar direitinho
P Sim:::

Ao exemplo do que aconteceu quando o professor argumentou acerca


de suas razões para a adoção da plataforma Duolingo, na interação oral de 19 de
agosto, em que enunciei meu discurso pelas interjeições “ahan” e “uhum”,
denotando minha réplica ativa em diálogo interno, o professor assim também se
posicionou, na interação supracitada (datada de 23 de setembro). Em minha fala,
manifesto ideias decorrentes do discurso que já me constituía: o de que, naquela
atividade com a música houve ganhos outros, letramentos outros, que não somente
o linguístico.
179

Quando sugiro retomar o trabalho em outra aula, no laboratório de


informática a fim de pedir que “pra essa- a contribuição dessas alunas que já fizeram
a apresentação e dizer o que elas aprenderam, elas podem contar pra sala o que
elas aprenderam, o que elas acharam de usar a ferramenta” (o Power Point como a
ferramenta, nesse caso), meu discurso internamente persuasivo informa que, como
apenas um grupo apresentou um trabalho em que ao menos um tipo de letramento o
digital parece ter sido desenvolvido, como apontam Lankshear e Knobel (2011),
aquele relacionado à operacionalização de uma tecnologia entendida como
instrumento, que registro especificamente com a frase “usar a ferramenta”.
A apresentação “surpreendente” desse grupo, como registra o professor
em seu relato no Padlet, fora uma exceção. A tese que pressupôs que todos já
conheciam as tecnologias Word e Power Point não se confirmou. Vários alunos nem
sequer chegaram a montar uma apresentação (vários porque realmente não sabiam
como fazê-lo, o que constatamos em aulas posteriores), usando a lousa digital
apenas para a apresentação do vídeo, o que me levou a pensar na necessidade de
uma continuidade para essa atividade no laboratório de informática (sala do Acessa)
que, assim como indicam Lankshear e Knobel (2008, 2011) pudesse promover a
interatividade e o trabalho cooperativo.
De toda forma, meu discurso carrega também uma polêmica velada: o
discurso contrário àquele que vê ganhos para “aquisição linguística” (como indica o
professor em seu relato) no simples copiar, colar e traduzir de textos com a
mediação de plataformas de busca na internet e tradutores eletrônicos online.
A interjeição “uhum” e o “Sim:::” (seguido de prolongamento sonoro, aqui
representado pelo símbolo ::: - vide tabela em Anexos), do professor, falam muito.
Marcam seu discurso interior, sua réplica ativa (semi – silenciosa), que antecipa,
ganha tempo, para enunciar, mais adiante:
P
[Sim. Sim!
Eu e no final, agente vai ter, no final do semestre, um mural
da sala com... essas produções
P Exato! Não, eu acho [excelente
Eu [que cê tem na sequência, que tá
pensando em trabalhar agora?
180

P Eu- eu ainda- é que agora, assim, a gente vai pro


fechamento do bimestre, né?
Eu Ahan!
P E eu tenho que dar uma impulsão dentro du- du::: du
programa pra vê o que que a gente vai conseguir dentro do
currículo oficial
Eu Uh!
P o que que a gente vai trazê, porque até agora, assim... em
primeiro momento, foi um po- um po- um momento de
nivelamento, né?
Eu Uhum!
P de ajustamento, que eu trabalhei bastante com eles com (
), muitos gostaram, conseguiram alavancar, conseguiram tê u-
um:: domínio da língua. E agora, no segundo momento, pra
expansão de leitura e o multiletramento, né, que a gente tá
[trabalhando

Se para Bakhtin a compreensão é uma “forma de diálogo” já que


“assim como uma réplica está para a outra no diálogo, compreender é opor à
palavra do locutor uma contrapalavra.” (BAKHTIN, 2016, p.137, itálico pelo autor), na
interação oral supracitada, estabelecemos diálogo o professor e eu, opondo
contrapalavras a nosso locutor que, muitas vezes, foram enunciadas na forma de
interjeições (ahan; uh; uhum; exato).
Nesta análise, em que retomo os enunciados como exemplares de
discurso citado, eu estabeleço diálogo com esses enunciados, de forma à,
contrapondo-os com palavras outras, tentar compreendê-los. Esta réplica ativa que
ora desenvolvo, que é minha análise, me leva a pensar que as interjeições
ganharam destaque sobremaneira nas interações que estabeleci com aquele
professor. Nossos silêncios, preenchidos por “ahans” e “uhums” me fazem crer que
nossos discursos estavam, de certa forma, em embate, contrapostos, polemizados.
Recorro mais uma vez a exotopia bakhtiniana para acatar que, naquela
interação oral de 23 de setembro faltou-me conhecer o contexto e ajustar minha
perspectiva em favor desse contexto. Faltou-me, também, sair do lugar em que
ocupo na academia, como pesquisadora, como estrangeira; sair do lugar que ocupo
como professora que trabalhou toda a sua vida profissional em contextos de
181

educação privada. Por isso, quando o professor retoma o turno, sua fala enuncia e
anuncia:
P Eu- eu ainda- é que agora, assim, a gente vai pro
fechamento do bimestre, né?
Eu Ahan!
P E eu tenho que dar uma impulsão dentro du- du::: du
programa pra vê o que que a gente vai conseguir dentro do
currículo oficial
Eu Uh!
P o que que a gente vai trazê, porque até agora, assim... em
primeiro momento, foi um po- um po- um momento de
nivelamento, né?
Eu Uhum!
P de ajustamento, que eu trabalhei bastante com eles com (
), muitos gostaram, conseguiram alavancar, conseguiram tê u-
um:: domínio da língua. E agora, no segundo momento, pra
expansão de leitura e o multiletramento, né, que a gente tá
[trabalhando
E sou eu, novamente, quem recorro mais uma vez aos uhum e ahan...
Porque pareço finalmente entender que o professor não poderia se dar ao luxo de
retomar uma tarefa que, aliás, àquela altura do semestre, já deveria estar encerrada.
Não é uma questão de apropriação internamente persuasiva do lugar que ocupam
as tecnologias em suas práticas. É uma questão de discurso de autoridade: “dar
uma impulsão dentro du- du::: du programa pra vê o que que a gente vai conseguir
dentro do currículo oficial”.
De fato, quero (re)lembrar a você leitor(a) que quando dei início ao
trabalho participativo com o professor ele já havia iniciado um planejamento e, por
isso, nem todas as escolhas e ações foram conjuntas ou advindas de nosso diálogo.
Além disso, o professor tinha em mente um planejamento curricular (o “currículo
oficial”) de que ele buscou partir e desprender-se, em dado momento, em favor de
um olhar localizado em detrimento ao institucionalizado - ações favoráveis à
constituição de uma Pedagogia do Possível como proposta por Helót e Laoire
(2011).
Como explicitam esses autores, criar currículos internos, a partir do olhar
contextual e localizado, requer não somente a atuação agente (e autoral) desse
professor, mas também, dispor-se a embater as tensões estabelecidas entre as
182

forças políticas externas e internas a esse contexto, que sempre existiram porque,
por mais que deseje desenvolver um currículo localizado, o professor continuará, no
ambiente escolar, sujeito aos currículos e planejamentos institucionalizados que,
conquanto generalizantes, movem o sistema educacional por toda a parte (HELÓT;
LAOIRE, 2011).
Noto que o professor hesita “du- du::: du"... Prolonga o som da palavra
que antecipa a voz de autoridade que, à maneira autoritária, impondo o não -
apagamento de sua voz autoral avisa: o bimestre está sendo encerrado, chegarão
as reuniões de ATPC; as reuniões de fechamento com a coordenação e a direção. A
voz de autoridade e autoritária é retomada (e reaparece o “currículo oficial”): “o que
que a gente vai conseguir dentro do currículo oficial”. Seguida por um resumo
do que foi feito até o momento, apreciado pelo enunciador como sendo “bastante” :
P o que que a gente vai trazê, porque até agora, assim... em
primeiro momento, foi um po- um po- um momento de
nivelamento, né?

(ao que respondo com “uhum!”).


P de ajustamento, que eu trabalhei bastante com eles com (
), muitos gostaram, conseguiram alavancar, conseguiram tê
u- um:: domínio da língua. E agora, no segundo momento, pra
expansão de leitura e o multiletramento, né, que a gente tá
[trabalhando
Veja que há polêmica velada instaurada pelas interjeições, que
materializam o discurso interno que movimenta um diálogo silencioso, mas sempre
em réplica ativa; que leva o professor (que novamente se tornou o locutor principal
na interação), a buscar legitimação para seus planejamentos e fazeres, recorrendo
aos advérbios “bastante” e “muitos”, que denotam a expressividade em seu
enunciado, reiterando que “trabalhei bastante” e “muitos gostaram”, ou seja,
contrapondo a polêmica que (até então) estava velada e em discurso interior,
tornando-a polêmica evidenciada com apoio em advérbios de intensidade e de
quantidade. Como resultado de trabalhar “bastante” e de “muitos” gostarem desse
trabalho, há uma constatação de que “conseguiram alavancar, conseguiram tê u-
um:: domínio da língua”.
Novamente, manifesta-se em discurso internamente persuasivo a ideia de
que houve progresso – ganho linguístico sim com o trabalho realizado com o
Duolingo (denotado por “conseguiram alavancar”) –, e a ideia de língua como
183

território a conquistar (o “domínio” conseguido pelo embate – o jogo –, apoiado na


tecnologia Duolingo): “conseguiram tê u- um:: domínio da língua”.
E, finalmente, a réplica do professor a meu discurso repleto de
incompletude, que atesta certa parcialidade diante dos resultados obtidos por ele
com sua proposta de ensino e aprendizagem em inglês naquele bimestre, busca
apoio na voz de autoridade, a própria academia, para, finalmente, “fechar” o embate
discursivo, dar o cheque-mate em nossa polêmica, recorrendo ao termo
“multiletramento” – jargão que o professor sabe que compõe meu repertório
discursivo enquanto voz da academia (aquela monologizada na voz de um
imaginário, ao menos como a percebo relacionada neste contexto de pesquisa...)

P E agora, no segundo momento, pra expansão de leitura e o


multiletramento, né, que a gente tá [trabalhando
Eu [Bacana! Então,
professor, se- é:: não sei se cê tá...

Note, caro(a) leitor(a) que, nesse instante, daquela interação, fiz o que
qualquer interlocutor minimamente preparado faria: evadi, mudei (experientemente)
o tópico da discussão. Lancei mão de uma exclamativa (“Bacana!”) muito
expressiva, (desde que se tenha mais de trinta e poucos anos e se conheça essa
gíria...) e retomei o turno, mudando o objeto do discurso: “Então, professor se (...)”.
Mais adiante, naquele encontro, planejamos que a próxima atividade com
os alunos a ser realizada no laboratório de informática envolveria a criação de um
Padlet por grupo, que funcionaria a guisa de um mural em que os alunos postariam
as suas atividades do semestre, à medida do possível, a iniciar pela apresentação
feita para a tarefa “My favourite music”. Como já sinalizado em interações
anteriormente analisadas, o professor já havia manifestado interesse em reapropriar
o Padlet em suas aulas.
Devo adiantar que, se fui afetada pelo exercício exotópico que
representou colocar-me em diálogo com esse professor nessa interação de 23 de
setembro, eu não fui a única, posto que seja esse o efeito do dialogismo: caminha-
se numa via de mão-dupla, em que há o ir, o vir e devir.
Os dois próximos excertos que analisarei, decorrentes de postagens do
professor no Padlet, não somente narram os encaminhamentos dados ao semestre,
como também apontam para os processos em que o diálogo, as relações afetadas
184

pela exotopia, se manifestam nas apropriações discursivas materializadas nesses


enunciados.
O primeiro recorte é de um relato postado pelo professor em 30 de
setembro:
hoje pude retomar as atividades do currículo oficial, tanto no 9º
ano quanto nos 8ºs anos, não foi possível usar a sala de
informática, o estagiário não compareceu, também estava
acontecendo um torneio interclasses, hoje o 8º C turma cuja
série sou professor coordenador sagrou-se campeão no Futsal,
(...) Um dos meus alunos, hoje também trouxe seu violino e
mostrou um pouquinho de seu trabalho na aula de língua
inglesa. Foi uma tarde muito rica, embora a ideia inicial de aula
planejada tenha que ser interrompida por vários eventos, como
até mesmo a chuva (...). Somente é possível ganhar o jogo
quando se está jogando juntos, inclusive na inclusão digital,
acontece reunião na biblioteca e os recursos embora existam
não estão disponível no momento, não por falha técnica mas
por escassez de espaço físico e falta de recursos humanos.É
por esta razão que perdemos o jogo da inclusão digital e o
letramentos multimediáticos.

Em nossa interação de 23 de setembro o professor retomou o discurso de


autoridade, materializado como “currículo oficial” ao enunciar sua preocupação em
“dar uma impulsão dentro du- du::: du programa pra vê o que que a gente vai
conseguir dentro do currículo oficial” o que, informa ter feito, de acordo com seu
relato de 30 de setembro (supracitado), “hoje pude retomar as atividades do
currículo oficial, tanto no 9º ano quanto nos 8ºs anos”, ao que complementa que
“não foi possível usar a sala de informática, o estagiário não compareceu”.
Após indicar a retomada do “currículo oficial” (contrapondo-o, de forma
velada, às demais atividades que realizou até aquele momento), o professor informa
que “não foi possível usar a sala de informática, o estagiário não compareceu”,do
que subentende-se que tenha pensado no que discutimos (a cerca de retomar as
apresentações da música e revisitar as tecnologias para o seu desenvolvimento).
Porém, como já apareceu em interações anteriores (e aparecerá novamente em
outras ainda a serem discutidas aqui), agendar o laboratório de informática não
significa poder utilizá-lo (já que a presença do estagiário é condição sine qua non
para que isso aconteça). De certa forma, parece que haver relação entre “não foi
possível usar a sala de informática” e “poder” retomar o currículo oficial, como se
uma ação excluísse a outra (?).
185

Em relação a esse aspecto, penso que as tecnologias aparecem como


pontes, em muitas instâncias analisadas, mas também, como abismos: devido às
dificuldades de ordem material para acessá-las e torná-las presente em aula; como
demandam investimento em tempo e em letramentos outros (além do linguístico),
elas podem se tornar um “abismo” quando se trata de “retomar o currículo oficial”, ou
seja, de cumprir tarefas nas apostilas (caderno) impressas que constituem os
parâmetros para o currículo oficial daqueles alunos, porque elas também criam
necessidades (como comentei no capítulo três).
Mas eu pessoalmente acredito que seria possível pensar as atividades
realizadas com as tecnologias de maneira mais integrada ao “currículo oficial”, já
que atender aos prazos e termos do semestre era uma prioridade imposta por voz
de autoridade, como informa o professor. Porém, foi mais difícil pensar essa relação
neste caso porque as duas principais tarefas (com o Duolinguo e a música favorita)
já haviam sido pensadas e propostas pelo professor quando de meu ingresso em
seu contexto e, portanto, partimos do que já estava em ação para pensar ações
outras.
Como relata o professor
um dos meus alunos, hoje também trouxe seu violino e
mostrou um pouquinho de seu trabalho na aula de língua
inglesa. Foi uma tarde muito rica, embora a ideia inicial de aula
planejada tenha que ser interrompida por vários eventos, como
até mesmo a chuva

Esse recorte ressalta novamente o olhar do professor para as aulas de


inglês como espaço para a socialização e a subjetificação (BIESTA, 2010), para
além das questões linguísticas, cuja expressividade fica marcada no enunciado pela
locução “muito rica”, em relação à ideia de permitir que um aluno tenha espaço, no
já pouco tempo dedicado a aula de inglês, para tocar seu violino para os colegas.
No entanto, fica reforçada, mais uma vez, a dificuldade em manter-se
planejamentos quando há outras agendas concomitantes na escola, como fica
explicitado em “embora a ideia inicial de aula planejada tenha que ser interrompida
por vários eventos”.
Ainda nesse mesmo relato, o professor aponta em direção a mais um dos
abismos que encontra em decorrência de apropriar-se do discurso da interface
educação –tecnologias:
186

somente é possível ganhar o jogo quando se está jogando


juntos, inclusive na inclusão digital, acontece reunião na
biblioteca e os recursos embora existam não estão disponível
no momento, não por falha técnica mas por escassez de
espaço físico e falta de recursos humanos.É por esta razão que
perdemos o jogo da inclusão digital e o letramentos
multimediáticos.

Enunciando novamente um discurso de polêmica velada, o professor


lança mão de uma analogia com o futebol (que fez parte dos fazeres dos alunos
naquela tarde), para retomar as dificuldades que abundam quando a questão é
integrar TDICs em seus fazeres: se “Somente é possível ganhar o jogo quando se
está jogando juntos, inclusive na inclusão digital”, o advérbio de exclusão “somente”
indica que não se está jogando junto, que há embate entre ter os recursos
tecnológicos, querer usá-los e, efetivamente , poder usá-los – o que não acontece,
porque “os recursos embora existam não estão disponível no momento”, ao que o
professor justifica ser “não por falha técnica mas por escassez de espaço físico e
falta de recursos humanos” (além do estagiário da sala do acessa ter faltado, a
sala-biblioteca com lousa digital abrigava uma reunião naquele dia).
A esses fatores, abismos contextuais, o professor atribui “perder o jogo da
inclusão digital e os letramentos multimediáticos”, reafirmando o discurso
internamente persuasivo que já o constitui, mais uma vez, em relação ao papel
assumido por essas tecnologias nos processos educativos.
Em 07 de outubro, o professor postou um relato no Padlet que, ao narrar
uma sequência de seus fazeres em aula e reiterar seus discursos fundadores,
retrata, de certa forma, já com pistas de apropriações discursivas decorrentes de
nossas discussões, o resultado do embate estabelecido até então em nosso diálogo.
Por entender que essa postagem apresente não somente relevância para
o entendimento do andamento das fases que ora descrevo, mas também ofereça um
rico material a esta análise, em relação às implicações da presença das tecnologias
nessas aulas de inglês, transcrevo-a na íntegra, a seguir:
Multiletramentos além de aprender o uso dos recursos da lousa
digital, houve a possibilidade de interagir a partir de diferentes
bases culturais e valores que sustentam as visões de mundo.
Assim quando alguns alunos fizeram uso do Power Point e
outros apenas de vídeo e consulta de informações de alguns
sites, desta forma, foi possível que cada um além de avaliar o
trabalho dos outros pode realizar uma autoavaliação. Há
alunos que dominam o aplicativos [sic] e outros que nem
187

sequer o conheciam , assim por meio da socialização do


conhecimento fez se necessário o compartilhamento do
conhecimento, a socialização das informações. O desafio foi
programa [sic] uma aula para o uso do aplicativo do padrão
Microsoft. Cada um tem o seu tempo e processo de aquisição.
As etapas foram propostas, um caminho de sete slides, no
mínimo, é necessário aguardar a abertura da sala de
informática, normalmente, às 13 horas e trinta minutos, sob a
responsabilidade do estagiário, entretanto, ele está atrasado,
será que virá ou não, estamos na expectativa, professor alunos
e pesquisador, afinal sem a chave dele ninguém usa o recurso,
os alunos começam a ficar impaciente, a carta na manga, "Let's
take back the latest lesson, about food", page 10 and 11, ufa o
estagiário chegou, a sala está aberta e projeto incial [sic] da
aula é retomado, a edição eletrônica do trabalho: "My favorito
Muisc"[sic], já estamos na segunda aula de sequência de seis
aulas. Alguns trabalhos estão prontos, agora é só salvar, hora
de sair da sala, desconetar [sic], um entende com desligar,
todo um trabalho perdido, "peck", " você desligou meu
computador!"(...) "Eu não fiz por quer, desculpa". Assim termina
a aula. O professor volta para vida real e pensa em um feeback
[sic] do seu dia, fui ao banco buscar meu salário, o banco está
em greve, dois dias depois continua em greve. Um feriadão
sem dinheiro. Quem sabe um pouco de Bob Dilan "Don't worry
be happy" https://www.youtube.com/watch?v=z-zuaEr7Qkc.

O professor retoma o termo “multiletramentos” como evidência do


referencial teórico que se apresenta como discurso fundador, ponto de partida para
a apreciação que segue. Vale lembrar que, quando fui dar início a minha
investigação nessa escola, a coordenação me informou que estava em meio a um
trabalho de formação docente contínua, sob orientação da Secretaria de Educação,
intitulado “escola conectada”, cujas discussões, lideradas pela coordenadora do
Ensino Fundamental, ancoravam-se, entre outras bases teóricas, em leituras acerca
do conceito de multiletramentos44. É possível que seja desse discurso de autoridade
que o professor tenha apropriado o termo e o tema, mas não posso recorrer a tal
afirmação com certeza, posto que faltem mais evidências nessa direção, por isso
vou me restringir a apontar a possível origem da ocorrência como minha conjectura.

44
Como não tive acesso às reuniões de ATPC e nem às referências bibliográficas norteadoras daquele trabalho
na escola, não posso expandir aqui a questão desse ponto de vista. No entanto, posso informar que a
coordenadora me disse estar trabalhando com o livro “Multiletramentos da Escola”, organizado por Roxane
Rojo e Eduardo Moura (2012) e eu mesma lhe presenteei com uma cópia, para uso na escola, de um exemplar
do livro Escola Conectada, os Multiletramentos e as TICs (2013), também organizado por Rojo, em que tenho
dois textos publicados.
188

O que mais salta a meus olhos, de fato, é a réplica ativa a nossa


interação oral de 23 de setembro que vejo explicitada em “quando alguns alunos
fizeram uso do Power Point e outros apenas de vídeo e consulta de informações de
alguns sites” (fato que apontei naquela nossa discussão), ao que o professor justifica
como
desta forma, foi possível que cada um além de avaliar o
trabalho dos outros pode realizar uma autoavaliação. Há
alunos que dominam o aplicativos e outros que nem sequer o
conheciam , assim por meio da socialização do conhecimento
fez se necessário o compartilhamento do conhecimento, a
socialização das informações.

O fato mencionado pelo professor, de que alguns alunos não terem


preparado a apresentação com a tecnologia esperada (o Power Point) não é visto
como um problema, mas sim, como uma oportunidade, já que outros o fizeram,
auxiliando no processo do que o professor trata por “socialização de conhecimentos”
(talvez orientando-se por um discurso de base pedagógica interacionista?). A meu
ver, suas palavras ressoam como réplica ativa, um contrapor às minhas palavras de
23 de setembro, quando sugeri que voltássemos ao laboratório de informática de
maneira a trabalhar na construção colaborativa das apresentações com apoio
naquela plataforma digital. Essa réplica vem, então, acatar o inacabamento daquela
proposta didática, conquanto justifique “por meio da socialização do conhecimento
fez se necessário o compartilhamento do conhecimento” foi possível, ao menos,
promover a aproximação entre alunos e aplicativos que “que nem sequer o
conheciam”, apontando para a oportunização em favor de uma inclusão digital.
Na sequência, o professor descreve o que, sem dúvida, foi uma das
aulas mais produtivas de que participei naquele contexto. Dessa narrativa destaco
os seguintes aspectos:
- apropriando-se de meu discurso de que seria válido retomar a
preparação da apresentação a guisa de incluir um letramento digital, o professor
aceitou “o desafio” (como ele enuncia) que foi “programa [sic] uma aula”
(novamente, teve que partir do currículo oficial, encontrar espaço na reserva da sala
de informática...). Conquanto ele tenha me silenciado inicialmente, na interação oral
daquela data, concordou em dialogar e mergulhou comigo em comunicação
discursiva;
189

- há uma séria dificuldade de ordem física a ser superada como


implicação de sua apropriação discursiva: “é necessário aguardar a abertura da sala
de informática, normalmente, às 13 horas e trinta minutos, sob a responsabilidade
do estagiário, entretanto, ele está atrasado”. A aula tinha início às 13 horas e,
portanto, o laboratório só ficava disponível a partir de 13h30 (isso quando o
estagiário não atrasava – o que aconteceu naquele dia). Cientes desse fato,
planejamos o professor e eu utilizar os primeiros trinta minutos para organizar a
turma, fazer a chamada e dar as instruções sobre a tarefa a ser realizada na sala de
informática. Mas como ele mesmo informa “os alunos começam a ficar impaciente”,
então, ele resolveu retomar a tarefa da aula anterior, quando, finalmente, chegou o
monitor. Isso gerou muito estresse (em alunos, professor e pesquisadora),
especialmente porque a turma em questão era a que tinha alguns daqueles alunos
cujo comportamento era mais difícil de gerenciar em aula (além da “expectativa”
que, como o professor aponta, assolava a todos nós naquele instante). Cabe
lembrar que esse fato encurtou, ainda mais, nosso tempo de permanência no
laboratório de informática e, portanto, dificultou também a execução da proposta de
trabalho;
- os grupos que já haviam preparado a atividade auxiliaram aos demais,
que terminaram em tempos diferentes “cada um tem o seu tempo e processo de
aquisição. As etapas foram propostas, um caminho de sete slides, no mínimo”.
Sinceramente, se eu não estivesse auxiliando o professor, não sei se ele teria dado
conta dessa tarefa. Muitos alunos precisavam de explicações e corremos, eu, o
professor e os alunos mais preparados, de um lado para o outro (parte do caos a
que me referi). O tempo passando (já tínhamos começado mais tarde) e a aula por
acabar...
- o que ninguém nos contou (e nem o professor mencionou em seu relato
supracitado) é que, na sala do Acessa, nada fica gravado nas máquinas, no disco
rígido dos computadores. Grosso modo, o sistema funciona assim: os alunos
conectam-se ao sistema com suas senhas (após o monitor liberar o computador
central), mas todo o trabalho feito deve ser salvo em sites que armazenem dados
(online) e/ou em dispositivos móveis, como pendrives porque, ao deslocar, todo
trabalho assíncrono realizado é apagado do disco rígido. Mais tarde, descobrimos
que nem a coordenação e nem a direção conheciam esse fato. Somente o jovem
monitor sabia disso. Infelizmente, ele só se lembrou de nos avisar depois do primeiro
190

computador desligado, como relata o professor: “agora é só salvar, hora de sair da


sala, desconetar [sic], um entende com desligar, todo um trabalho perdido,
"peck", " você desligou meu computador!"(...) "Eu não fiz por querer, desculpa".
Assim, alguns grupos perderam excelentes apresentações com seu trabalho “My
favorite music”, que havíamos conseguido, aos trancos e barrancos, construir
naquela aula.
A aula narrada na interação de 07 de outubro marcou meu papel
realmente participativo nessa Etapa 1 da pesquisa. Como descrevi no capítulo três,
a PAP tem como uma de suas principais características a participação (do
pesquisador), que é concebida como um construto, instância em que se estabelece
troca de saberes, de modo que o conhecimento gerado através da investigação
possa contribuir em alguma medida para as práticas dos envolvidos em seus
contextos.
Naquele instante em que desligamos os últimos computadores, a
frustração pela perda de dados imperava entre nós: alunos, professor e
pesquisadora-participante. Mas, ao menos, pude sentir-me verdadeiramente
participativa naquele contexto de pesquisa, ainda que dividisse as frustrações
advindas dos (diversos) abismos que tivemos que superar para preparar uma
apresentação multimodal. Mas, certamente, eu não estava tão frustrada, naquele
exato momento, quanto aquele professor que, ao sair do trabalho
volta para vida real e pensa em um feeback [sic] do seu dia,
fui ao banco buscar meu salário, o banco está em greve, dois
dias depois continua em greve. Um feriadão sem dinheiro.

A “vida real”, aquela do banco em greve e o final de semana sem


dinheiro, opõe-se à vida da sala de aula, aquela em que talvez tudo o que fizemos,
afinal, foi sonhar com uma educação linguística voltada para a formação de
cidadãos. O tom de lamento, o discurso polifônico, instaurado no relato desse
professor, marcado pela locução “vida real”, em que se passa (mais um) “feriadão
sem dinheiro”, atesta um dos maiores abismos a que tem que superar esse
profissional em seu contexto. Infelizmente, as pontes para superá-lo estão ainda por
construir... A polifonia, constituída de ironia (ou seria mesmo só bom humor, um
otimismo a Poliana?) fica registrada quando, para terminar sua postagem, o
professor lança mão de um hipertexto, o link para um vídeo da música de Bob
191

Marley (que o professor chamou de Dilan) revertendo (ou seria (re)velando) seu
próprio lamento: “não se preocupe, seja feliz”.
Conquanto quixotesca, permeada por dificuldades de diversas ordens, a
disposição desse professor em manter a relação tecnologias-educação em suas
aulas de inglês não esmoreceu. Não sei se consigo pensar nessa atitude como um
ato de resistência ou de resiliência. Talvez um pouco de ambos. Também eu sou
uma otimista, com tendências a Poliana. Para o contexto, percebo que a insistência
do professor possibilitou muito mais aspectos positivos do que o inverso,
arrebanhando espaços e oportunidades para além dos conteúdos com foco em um
sistema linguístico.
Mas no tocante às dificuldades financeiras e ao papel-professor, recorro a
Charlot (2013) que afirma que a chamada pedagogia nova, permeada pelo
neoliberalismo, colocada em oposição à tradicional, cria a ilusão que a organização
escolar prepararia o estudante “para lutar contra a injustiça social e para transformar
a sociedade” (2013, p.270). Tratando essa ideologia por “ilusão pedagógica”, Charlot
informa que
é somente se considerarmos a sociedade como uma reunião
de indivíduos, abstraindo as estruturas sociais e as lutas que
elas engendram, e se pensarmos que a sociedade vale o que
valem individualmente seus membros, que o grupo-classe pode
aparecer como uma prefiguração e uma preparação da
sociedade ideal (CHARLOT, 2013, 270-271).

Se nossa sociedade vale o que vale individualmente um professor(a) –


bem, este enunciado deixo a você leitor(a), como tarefa, completar e encadear.
Em 16 de outubro o professor relata mais uma aula realizada com a
presença de tecnologias. Nessa aula, o professor trabalhou projetos diferentes com
os 8º e 9º anos, sendo que os que terminavam as tarefas propostas
retomaram o projeto: “My favourite music”, edição em PPT,
alguns conseguiram chegar perto da finalização, outros
reelaboram com aplicação de novos recursos, fundos,
letras,imagens.

A seguir, em uma postagem de 23 de outubro, o professor informa que


novamente recorreu ao laboratório de informática a fim de realizar atividades de
revisão
como atividade reforço solicitei que encontrassem os verbos
das suas músicas prediletas, os alunos demonstraram muitas
192

dificuldades, mas foi muito interessante as estratégias usadas


para localizar e realizar a tarefa propostas, em frente da tela do
computador alguns se valeram do Google tradutor, outros de
tradução ao lado da música em inglês, enfim a tarefa com
recurso digitais é bem mais instigante que o caderno, o livro, o
giz e a lousa.

Ao exemplo do que acontece em recortes anteriores, esse enunciado


materializa, mais uma vez, o discurso já apropriado à moda internamente persuasiva
pelo professor: “a tarefa com recurso digitais é bem mais instigante que o caderno,
o livro, o giz e a lousa.” Ao exemplo de outros enunciados analisados, a
expressividade do enunciado fica registrada nos advérbios que escolhe esse locutor
(aqui, o de modo e de intensidade) “bem mais” para dar a entonação à “instigante”,
adjetivo que exprime apreciação valorativa. As TDICs são, novamente, tomadas à
conta de processo que provoca (“instiga”) melhorias nos processos educativos e,
neste caso, no sentido de atuar como motivador para a aprendizagem e a interface
aluno (cognoscente) e objeto de aprendizagem (cognoscível).
Da maneira como entendo, reitero meu parecer de que esse percurso
discursivo implicou de forma positiva em práticas e fazeres do contexto, de forma a
mobilizar espaços e oportunizar o ato de tornar-se durante a construção de
conhecimentos.
Ainda nessa mesma data, o professor termina seu relato com a última
proposta, elaborada com o 8º ano, que também foi fruto de nossas discussões de
planejamento:

trabalhar Food Pyramed [sic], a partir de uma ilustração


presente no livro didático, onde se expunha uma pirâmide de
vidro com os alimentos estruturantes de uma dieta saudável.
(...)
O desafio final com auxílio da internet foi elaborar um cardápio
da merenda escolar, um cardápio que inclua também “snack”,
a) breakfest;[sic] c) lunch and dinner. It’s the homework for next
week.

O “auxilio da internet”, mencionado pelo professor, consistiu no uso de


mecanismos de busca para cardápios em inglês (textos verbais e imagéticos) e
tradução de vocabulário. Nnote-se que o tema dessa atividade derivou de uma
unidade do livro didático, cujas cópias a escola não dispunha em número suficiente
para todos os alunos, dificuldade que o professor procurou, mais uma vez, superar
193

com apoio nos recursos e meios digitais (mais uma instância do papel das
tecnologias, intrinsecamente ligada aos abismos registrados e às pontes construídas
nesse percurso).
O próximo relato que trago à luz de análise foi postado pelo professor em
03 de novembro no Padlet e diz respeito a uma aula dada em 28 de outubro, data
em que o estagiário do laboratório de informática não compareceu, o que levou o
professor a pedir que os alunos que tivessem dispositivos móveis fotografassem um
texto que ele havia selecionado para leitura e discussão em aula.
Nesse relato, referindo-se à continuidade do trabalho com a pirâmide
alimentar, o professor escreveu:
a tecnologia possibilita trabalhar com conteúdo mais
aprofundado (ênfase adicionada).
Reforçando essa mesma ideia, há também o próximo excerto, recorte de
uma interação oral entre o professor e mim, no dia 04 de novembro. Fala o
professor à maneira internamente persuasiva:
P Porque e- é aquela coisa assim, é: (...) Então::: a
tecnologia, ela é uma ferramenta, né, porque::: a todo
momento, você tem::: que tá trabalhando coisas muito
dinâmicas, né? E-e:: e, assim, como a gente já tem uma
trajetória, já tem um conhecimento, já tem uma formação, né?
A::: a tecnologia, ela abre caminhos, né? Então, você vê é:::
pelas produções textuais dos a- dos alunos aquele que:: faz
uma investigação mais aprofundada, [né?
Esse enunciado, mais uma vez, reforça a apropriação, à maneira
internamente persuasiva, de discursos que associam as tecnologias a
melhoramentos na educação. A marca expressiva, notada novamente na escolha do
advérbio (“mais”) para o adjetivo que dá o tom valorativo (“aprofundado”), materializa
esse discurso. O que não se esclarece, porém, é que sentidos esse professor
constrói para o adjetivo “aprofundado”, embora seja possível subentender-se que à
“tecnologia” é atribuído um valor a partir da comparação estabelecida com o material
didático impresso (que, neste contexto, não estava sempre disponível em
quantidade suficiente para atender a todos os alunos).
No entanto, assim como aponta Selwyn (2014) penso que seja importante
assumir uma posição de desconfiança em relação ao impacto que esses discursos
exercem sobre as tecnologias educacionais, a fim de evitar outorgar a essas
tecnologias um papel, lugar/espaço de maior dimensão do que talvez possam
194

ocupar nos processos educativos. Como aponta Selwyn (2014, p.25) a ideologia
libertária associada ao poder da tecnologia (e ao poder do indivíduo), que precedem
o advento das tecnologias digitais que já são orientadas pelo neoliberalismo, foram
bases da modernidade para que essas tecnologias sejam vistas como “a criação de
novas formas de ação e organização que não requerem a apropriação de espaços
ou estruturas tradicionais”. Uma pesquisa em uma enciclopédia impressa, nos anos
70 ou 80, poderia, também, ser aprofundada, conquanto contasse com outros
recursos tecnológicos e as limitações dos materiais impressos e lugares físicos ?
A noção de aprofundamento pode remeter, também, ao fato de que para
esse professor a internet tem sido posicionada em sua prática como um meio para
pesquisas, encontrar textos diversos acerca de um dado tema o que, para o
professor, pode estar associado a ir além de uma limitação dos materiais didáticos
impressos, que não permitem, por exemplo, a hipertextualidade.
Desse trecho, além da reafirmação de que “a tecnologia, ela é uma
ferramenta” ressalto a frase “a tecnologia, ela abre caminhos, né?(...) faz uma
investigação mais aprofundada” (ênfases adicionadas). A ideia de tecnologia
como instrumento remete-me aqui a uma visão iluminista, (ZATTI, 2007), de que
essa seja uma “ferramenta” que, a exemplo de um facão nas mãos de um
Bandeirante embrenhado pelas serras paulistas (metáfora ou símile que me assalta
visualmente), sirva para “abrir caminhos”, desvendar (neste caso), florestas de
conhecimentos.
Dessa ideia advém, também, então, o reforço mais uma vez à noção de
uma aprendizagem centrada no papel do aluno que, tomando a tecnologia por
instrumento, torna-se autônomo (materializado no discurso do professor por “faz
uma investigação mais aprofundada”). Retomo aqui a referência que já fiz
anteriormente ao olhar neoliberal que orienta este conceito de autonomia do aluno,
como apontado por Zatti (2007), em oposição a uma autonomia racional (como
propõe Biesta (2010) em consonância com um olhar para a educação crítica). A
tecnologia, vista como um signo ideologicamente orientado, como apontado por
Selwyn (2012; 2014), torna-se discurso fundador para a o professor que a toma
como conceito-chave para sua construção de pontes. Conquanto eu já tenha
apontado as possíveis positividades da interface estabelecida com as TDICs neste
contexto, penso que seja preciso manter o olhar da desconfiança diante de
discursos que se estabelecem como maximizadores / absolutos.
195

Como mencionei anteriormente, passou a fazer parte de nossos planos


para as aulas seguintes às apresentações da proposta com a música favorita, o
desenvolvimento de um Padlet por grupo de aluno. O relato de 10 de novembro faz
menção a essa proposta:
tema: Um nova ferramenta para os alunos “Padlet” e a relações
reais. Para realizar o trabalho me vali [sic] de “Cass code of
conduct” [sic], onde os alunos transpuseram a versão em
língua inglesa para a língua portuguesa, no mural virtual. Estou
recebendo críticas ao meu trabalho por parte de alguns alunos,
entretanto, para que o trabalho didático tenha qualidade há
algumas premissas e pressupostos fundamentais (...).Assim foi
possível apropriar-se de uma ferramenta e refletir sobre a
conduta pessoal para um bom ambiente em sala de aula.

O excerto reforça, em nova instância, o discurso de tecnologia como


sinônimo de ferramenta (já discutido em outros enunciados), que é como o Padlet é
tratado à maneira direta: “nova ferramenta para os alunos “Padlet”
As “críticas” a que o professor se refere, não foram feitas “por parte de
alguns alunos”, em relação à presença de tecnologias em sua aula, mas à maneira
como o professor se dirige, repetidas vezes, à questão das relações interpessoais,
como por exemplo, o fez nessa instância em que trabalhou um pequeno texto em
inglês com “códigos para a conduta em aula”, como ele informa “para realizar o
trabalho me vali de “Cass code of conduct” [sic], onde os alunos transpuseram a
versão em língua inglesa para a língua portuguesa, no mural virtual”.
De meu ponto de vista, em relação ao trabalho com o Padlet, guardo a
lembrança de alguns alunos que se interessaram muito por essa plataforma,
inclusive apreciando as ferramentas que permitem a personalização de seu mural e
já discutindo, entre eles e alguns comigo, como poderiam usar esse espaço para
“colecionar” hiperlinks para paginas de seus interesses pessoais. Foi outro
momento muito movimentado, no laboratório de informática, com mais alunos do
que computadores; com a necessidade de estimular o diálogo entre os alunos,
porque o trabalho era colaborativo, em grupo, e era necessário haver negociação;
com alunos com maior deficiência em termos de letramento digital
(operacionalização tecnológica) que necessitaram maior apoio e chamavam ao
professor e a mim a cada instante, enfim... Novamente, foi um caos produtivo (ao
menos, como eu o apreciei).
196

A apreciação do professor a respeito do trabalho com essa ferramenta foi


ficou mais clara na seguinte fala, excerto de uma interação oral de 02 de dezembro
que vem ao encontro desse meu relato
Eu [à tecnologia… [[e
eles demoraram mais tempo pra entender o padlet, para que
ele funcionava? O senhor achou [mais difícil de fazer o trabalho
com eles?

P [é:::
tem- tem- tem alguns alunos que, vamu dize assim, a
dificuldade de trabalhar com esse aluno, quando você precisa
de fazer aque- aquele atendim- aquele encaminhamen- aquele
atendimento individualizado, você começa a atividade, né? São
vinte e oito, vinte e cinco alunos por sa- você ta conseguindo
desenvolver com um aluno, de repente, o outro aluno tá na
frente do computador ocioso, (...)
(...) Então, assim, mas, eles, assim, amaram. É:: os
depoimento deles, assim.

Retomando o excerto de 10 de novembro, para o professor, foi acima de


tudo, como ele mesmo enunciou “possível apropriar-se de uma ferramenta e refletir
sobre a conduta pessoal para um bom ambiente em sala de aula”, apontando
novamente para sua agenda em favor de ocupar o cronotopo da aula privilegiando a
socialização (aqui compreendida como sugerido por Biesta (2010)), o que fica
marcado na frase “refletir sobre a conduta pessoal para um bom ambiente em
sala de aula”, ou seja, uma ação educativa que tem por objeto inserir o aluno em
determinada ordem social, a partir de um dado ponto de vista, como apontado por
Biesta (2010). Outro discurso que se repete ao longo dos excertos analisados, como
foi possível identificar.
O discurso fundador aqui, indiciado por “bom ambiente em sala de aula”,
vem da moralização do comportamento, materializada no texto que estipula quais os
códigos da conduta a ser adotada pelos alunos em aula. Ao invés de negociar tais
códigos com seus alunos, à maneira crítica, dessa vez o professor (que já havia
enunciado no início de nossas interações que alguns alunos são “difíceis de lidar”),
apresenta um discurso de autoridade e, à maneira autoritária: a conduta não é
discutida ou negociada, é estipulada por sua própria voz enquanto autoridade na
sala de aula.
Nesse caso, a tecnologia não é recurso para o “aprofundamento”, para a
pesquisa e a leitura de textos outros, para a abertura de espaços em favor da
197

heteroglossia discursiva. A tecnologia (representada pela interação com a


plataforma Padlet e o Google tradutor, na sala de informática) tornou-se, nessa
instância, o conjunto de novos instrumentos mediadores de antigas práticas: copiar,
colar e traduzir textos, colecionados em um mural (só que em formato digital).
Disso advém que as tecnologias digitais assumiram papeis distintos
nesse processo de apropriação discursiva que constituiu as propostas e fazeres de
aula desse professor: há momentos em que elas são tomadas a guisa de pontes
para ligar abismos como aquele causado pela ausência de materiais didáticos
suficientes para todos os alunos; ou como mecanismo descentralizador dos
processos de ensino-aprendizagem. Foram pontes para construção de espaços para
o heterodiscurso e a pluralidade vocal.
Mas há momentos outros em que, tomadas à maneira de discurso
fundador, acatado a priori, assumindo seu caráter ideologizado em um
neoliberalismo voltado ao salvacionismo, credita-se a elas um caráter “inovador”
para a realização de tarefas que, talvez, fosse melhor fazer no caderno e lápis
porque sua presença em aula poderia se constituir como fator motivador para a
geração de um abismo: qual a relação de construção do conhecimento com o uso do
Google tradutor neste contexto específico? Não estou ainda convencida de que essa
tecnologia tenha se configurado como uma contribuição nem para a construção de
conhecimentos de ordem metalinguística e nem para os letramentos digitais. Se não
houver criticidade diante da adoção das tecnologias digitais e de seu papel e
importância, ou seja, a manutenção do olhar de desconfiança proposto por Selwyn
(2014) ou de propósitos discutido por Charlot (2013) a tecnologia pode se tornar
perfumaria e acabar por determinar a criação de abismo onde haveria ponte.
Por fim, encerrando seu relato de 10 de novembro, o professor escreve:
agora o desafio é sistematizar tudo que trabalhos [sic] no
bimestre para construir um caldo de cultura. Isto é minha
versão apócrifa da Pedagogia do Possível.

No enunciado supracitado caminham duas manifestações de apropriação


discursiva: a primeira é a ideia de que, além de um momento destinado à construção
metalinguística, a aula de inglês desse professor se configurou, em algumas
instâncias, como um espaço para trocas e compartilhamentos de culturas,
subjetificações e socialização (BIESTA, 2010). Nessa direção, o professor indicou
sua preocupação em oportunizar a voz discente (escolhendo, expondo e justificando
198

suas preferências; tocando para os colegas seu instrumento preferido, trabalhando


colaborativamente na construção de conhecimento compartilhado, etc.). Esse
discurso fica materializado na locução adnominal “caldo de cultura”. Novamente, é
possível perceber um caminho para construção de pontes: a abertura para uma
formação linguística voltada a cidadania, com a oportunização de zonas de contato,
como sugere Rocha (2010) e um ensino e aprendizagem de caráter dialógico.
A segunda manifestação de apropriação advém de uma das discussões
orais que tivemos, o professor e eu, em que mencionei brevemente a expressão
“pedagogia do possível”, como um tema a que eu havia lido (em Hélot e Laoire,
2011, citado no capítulo dois) e que eu entendia parecer dar conta do que nós
estávamos, naquele momento, procurando trabalhar naquele contexto, com aqueles
alunos. Ao declarar que “isto é minha versão apócrifa da Pedagogia do Possível”, o
professor transformou as minhas palavras-alheias-próprias em suas palavras-
alheias-próprias e aqui, suas palavras-próprias.
As semanas que se seguiram à aula de 10 de novembro foram muito
conturbadas naquele contexto escolar. Nosso planejamento envolvia terminar o
Padlet de cada um dos grupos, adicionando a cada mural digital todas as atividades
realizadas ao longo do semestre. No entanto, entre 18 e 25 de novembro os
professores daquela escola tiveram que aplicar provas e avaliações, encerrando de
forma antecipada seus planejamentos, por conta de uma reforma que teve início no
final de outubro e que implicou quebrar paredes, janelas, pisos, etc. Essa reforma foi
uma iniciativa da Secretaria da Educação de Estado, como me esclareceram tanto o
professor participante quanto a coordenadora, e que fez parte (infelizmente, creio
eu) de um turbulento e controverso processo de reestruturação na Educação Básica
estadual (a que já me referi brevemente no capítulo um), iniciado nessa data pelo
Governo do Estado de São Paulo que divulgou a intenção de fechar e/ou transferir
diversas escolas para algumas administrações municipais. Disso implicaria, naquela
escola específica em que esta pesquisa se realizava, fechar o oferecimento do
Ensino Médio, além da redução da oferta de vagas para o Fundamental II, o que
naquela escola, como em muitas outras, gerou uma onda de protestos45.

45
É possível ler mais acerca dessa ação e dos protestos que gerou em todo o estado de São Paulo como reação
da sociedade em: http://educacaointegral.org.br/noticias/em-sao-paulo-ocupacoes-de-escolas-se-fortalecem-
apoio-da-comunidade/. Acesso em 20 JUL 2016 e
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/13/politica/1447426542_534410.html. Acesso em 20 de JUL de 2016.
199

Esses acontecimentos registram de forma contundente como nossos


contextos profissionais (de ensino, de pesquisa) são afetados pelos processos
sociais e econômicos e os discursos de autoridade que os constituem. Como nossa
vida como professores, alunos, pesquisadores, pais foi afetada por práticas sociais
decorrentes da apropriação de discursos ideologicamente encharcados pela
orientação neoliberalista. Como apesar dos protestos e movimentos de resistência
de muitos ainda sim objetivamente acabamos por nos desconectar desses discursos
que surgem à maneira autoritária, como imposições verticalizadas. De fato, muito
mais do que somente o andamento desta investigação foi, infelizmente, afetado.
Em relação especificamente ao andamento desta investigação, nossos
planos tiveram que ser abortados porque, devido às reformas, iniciadas com o
semestre ainda em andamento, como informa o professor em uma postagem em 30
de novembro
infelizmente não pude retomar o <duolingo.com>, pois durante
as últimas duas semanas os alunos não dispuseram da sala de
informática que continua parcialmente interditada para acolher
os livros da biblioteca.

Em 07 de dezembro o professor postou, no Padlet que compartilhamos


ele e eu, uma foto para que eu visse que a sala da biblioteca (onde ficava a lousa
digital) ainda estava em “reforma”, após três meses (foto essa que não posso
transpor neste texto por questões de ética na pesquisa, já que o Termo de
Conhecimento Livre e Esclarecido aprovado pelo Comitê em Ética na Pesquisa (vide
Anexos) não me autoriza a divulgar imagens). Ou seja, o caráter impositivo do
discurso de autoridade, lançado à maneira autoritária, apesar de protestos e
manifestações, não apresentou recuo em relação a essa escola que, por não estar
“oficialmente” no plano de reajuste da educação proposto pelo estado, fez parte de
uma polêmica velada e permaneceu por meses em uma espécie de limbo: não se
terminou a reforma, a escola deixou de pertencer à rede estadual e à conta da
transferência para a rede municipal deixou de atender ao Ensino Médio, causando
um encerramento abrupto no semestre e afetando diretamente a vida de todos os
envolvidos (professores, gestores, alunos, comunidade). A respeito de tal lamentável
(e nada democrático processo), aqui neste estudo, só posso deixar meu registro e
minha indignação.
200

O próximo recorte dos dados que trago à luz desta análise é excerto da
última interação oral que estabelecemos o professor e eu, datada de 02 de
dezembro de 2015. Nessa interação, fazemos um balanço geral, discutindo nossas
idas e vindas durante as diferentes fases que caracterizaram a PAP, ao longo
daquele semestre letivo:
Eu Mas a- mas a- a- como o senhor tava falando, agora a
pouco, o senhor falou “Ah! Mas a coordenação me cobro se eu
tava seguindo o programa ou não.” Mas o senhor acho que
eles aceitaram o seu argumento, depois, no final? Entenderam
o programa que o senhor fez com Inglês e Português? Ou eles
ainda queriam que fosse algo mais tradicional, mais fechado?
P A expectativa do Estado foi assim, na última reunião que
eu- que eu coloquei, assim, acho que foi o nosso fechamento,
né? “Ah! Mas a professora XXX, ela trabalhou com jornal”, né?
Eu até dei uns ( ) dentro da linha. Eu disse, “olha, eu trabalhei
a pedagogia do possível. Eu trabalho com o ser humano.” E:::
eu- eu vo fala também o repertório. Quando eu trabalhei- eu
consigo produzi, né, pra minha prática pedagógica alunos que-
geralmente, assim, quando e- a escola trabalha muito no nível
da superficialidade, você vai produzi alunos medianos, né? (...)
Mas o- o Sistema, ele tem uma coisa assim, né? Você tem
que::: é::: tê uma sala de aula, que o aluno não tenha
indisciplina, tê uma sala de aula, é:::, acomodada, né? É:::
ajustada, né? E:: não consigo produzi a- aquele: aquele
profissional que faz a diferença, que é nossa base. A gente não
trabalha na- na- na quantidade. Mas trabalha na questão da
qualidade e isso, dentro do sistema é mal visto. (...)

Eu E quanto a seu- e quanto ao seu:: seu envolvido no


projeto aqui da pesquisa e as produções de tecnologia com- o
senhor já ouviu algum feedback, alguma coisa disso lá da
coordenação? Ela menciono alguma coisa ou não?... Da
apresentação que ela viu dos alunos, porque ela acompanhou
algumas coisas, né?
P Sim. Sim! Ah! Eu- eu:::
(...)
[Sim! Sim!... É que- é que, assim, a gente nunca co- nunca
conhece, assim, é::: a reação completa das pessoas, né?
Porque::: a gente- o [aluno começa caminha
(...) Né? Porque é aquela coisa assim, chega um determinado
momento, né? E::: é i- i- isso eu senti por parte de alguns
colegas meus u-uma relação de ciumes.

Eu Ãh?
P Né? Eles ficaram, assim, naquela- aquela: aquela relação
de ciume, né? “Ah! Por que que vem, né? Por que que o
201

sujeito- por que que o laboratório ta reservado só pra ele, né?”


O: sujeito não consegue operaciona, não tem a proposta, mas
fica assim, “Ah! Mas como? Por que só-”, né? Então,
Eu Mas o senhor acha que desse ponto de vista a- a: escola
como- enquanto gestora, a coordenação foi mei- foi positivo?
P Foi. Foi! Eu consigui, vamos dizê assim, consegui o espaço
de trabalho até certo ponto, né? É::... ali dentro
Eu Dentro do possível!
P Porque- é isso! Dentro do possível, da conjuntura, né?
Porque é aquela coisa assim, é::: até- até pra:: faze aquele
trabalho com as músicas, eu tive que i lá, banca, né...com a
vice-direção. Eu disse, “Olha”- e chamei a vice-diretora e disse,
“Não, venha! Veja com a gente!” E quando ela viu viu “Ah! Mas
esses alunos tão fazendo muito pouco!” eu digo, “Não! Não é
pouco! Eles fizeram bastante!” É que esses alunos, eles não
opinavam. Eles não conseguiam fala pro grupo. Pela primeira
vez, eles conseguiram na aula de Inglês, seja fala em
Português, fala pra turma, serem ouvidos pela turma, né?
Eu Ou seja, foi muito além de um ganho linguístico só, né?
P Sim:!
Eu Daí, eu acho que teve um meio linguístico ali também,

P Sim!

Eu Porque eles também tão trabalhando com Inglês, tava


trabalhando com o Português. Eles tavam trabalhando com as
duas línguas em conjunto, como o senhor falo, né?
(...) Mas, talvez, não seja um ganho mensurável.

P Isso!

No início desse excerto, manifesto minha preocupação em relação à


maneira como a gestão teria percebido a realização das tarefas propostas pelo
professor (e, algumas outras, por mim), ao longo do semestre: “Mas a- mas a- a-
como o senhor tava falando, agora a pouco, o senhor falou “Ah! Mas a coordenação
me cobro se eu tava seguindo o programa ou não.””.
Veja que o professor já havia sinalizado, em outra interação, a “cobrança”
da coordenação em relação a “seguir” o programa (o “currículo oficial”, a voz de
autoridade e autoritária que inevitavelmente permeia o trabalho do professor). Penso
202

que haja aqui um bom exemplo das políticas abertas e também das implícitas, a que
se referem Hélot e Laoire (2011) e que norteiam os fazeres escolares.
Eu já havia tido um encontro com a coordenação no mês de novembro
em que ela pediu que eu relatasse o trabalho a partir de minha perspectiva, de
estrangeira, extraposta às configurações daquele contexto escolar. Durante essa
conversa, a coordenação manifestou ter gostado do trabalho que viu o professor
realizar com as apresentações que contaram com a mediação da lousa digital (aula
durante a qual a coordenação, inclusive, fotografou as atividades, para registro do
trabalho na escola).
No entanto, as vozes em diálogo, nessa minha interação com a
coordenação, eram muito diferentes das vozes em diálogo na interação dela com o
professor, posto que as relações sociais (e, portanto, de poder) entremeadas nesses
encontros eram divergentes. Ou seja, quando a coordenação falou comigo seu lugar
de fala era, de certa forma, diferente daquele que ocupou ao falar com o professor,
em reunião com a direção e/ou outros professores da escola. Na conversa comigo,
conquanto mantivesse sua posição de coordenadora (o papel que ocupa naquele
contexto), nossa interação, enquanto interlocutoras, não estava permeada pelas
relações de trabalho (verticalmente hierarquizadas) que constituíam sua relação com
o professor. Esse fato tem relevância para esta análise já que, conforme informa
Bakhtin a condição dialógico-discursiva em que os enunciados são construídos e
compartilhados está sempre ligada a uma dada situação e meio sociais e são esses
fatores que fundamentalmente “determinam completamente e, por assim dizer, a
partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (2014, p. 117, itálico pelo
autor).
Por conseguinte, na interação oral que tive com o professor em 02 de
dezembro, em que nosso diálogo teve por objeto central do discurso nossa visão
acerca do trabalho realizado com a presença das tecnologias (aquelas já
mencionadas neste relato-análise) em suas aulas de inglês, especificamente,
entendi ser importante retomar como se estabeleceu, sob a perspectiva desse
professor, a relação da voz de autoridade (coordenação / direção) com seus/nossos
fazeres daquele semestre, ao que informa o professor:
P A expectativa do Estado foi assim, na última reunião que
eu- que eu coloquei, assim, acho que foi o nosso fechamento,
né? “Ah! Mas a professora XXX, ela trabalhou com jornal”, né?
Eu até dei uns ( ) dentro da linha. Eu disse, “olha, eu trabalhei
203

a pedagogia do possível. Eu trabalho com o ser humano.” E:::


eu- eu vo fala também o repertório. Quando eu trabalhei- eu
consigo produzi, né, pra minha prática pedagógica alunos que-
geralmente, assim, quando e- a escola trabalha muito no nível
da superficialidade, você vai produzi alunos medianos, né? (...)
Mas o- o Sistema, ele tem uma coisa assim, né? Você tem
que::: é::: tê uma sala de aula, que o aluno não tenha
indisciplina, tê uma sala de aula, é:::, acomodada, né? É:::
ajustada, né? E:: não consigo produzi a- aquele: aquele
profissional que faz a diferença, que é nossa base. A gente não
trabalha na- na- na quantidade. Mas trabalha na questão da
qualidade e isso, dentro do sistema é mal visto. (...)

A primeira questão enunciada que me salta aos olhos é exatamente a


comparação estabelecida, no discurso da direção que é citado pelo professor, entre
o trabalho desse professor e o da outra professora de inglês da escola, também
atuante em outras turmas do Fundamental II, marcada por “Ah! Mas a professora
XXX, ela trabalhou com jornal”. Note que, ao citar esse discurso, o da cobrança da
voz de autoridade em relação ao cumprimento do currículo oficial, o professor
informa como seu enunciador/locutor não a direção, ou a coordenação, mas “A
expectativa do Estado”, uma voz de autoridade que não permite apagamento.
Interessante notar que, ao substituir o locutor direção/coordenação pela
“expectativa do Estado”, o professor recorre a uma espécie de metonímia, em que
a voz do sujeito coordenadora/diretora deixa de ser (identitariamente) singular e
assume o lugar de sujeito-Estado, voz de autoridade e que é, também autoritária, já
que fala de um lugar outro no estrato social (o lugar da política pública, que
determina caminhos a serem percorridos pela educação em língua inglesa, através
do “currículo oficial” (o “programa” que foi cobrado, que tinha que ser seguido pelo
professor). Essa voz, a do Estado (mais adiante na interação referida também como
“o Sistema”), não permite diálogo, não oferece interlocução. Daí que, além de ser
voz de autoridade, enuncia seu objeto de discurso – o currículo oficial, o programa –
, à maneira autoritária. Quando o locutor é caracterizado como voz do Estado, não
há, ao que parece, diálogo. Quando a voz é aquela que fala da posição-sujeito
direção e/ou coordenação o professor ainda pode argumentar, como fica
evidenciado em
(...) porque é aquela coisa assim, é::: até- até pra:: faze aquele
trabalho com as músicas, eu tive que i lá, banca, né...com a
vice-direção. Eu disse, “Olha”- e chamei a vice-diretora e disse,
“Não, venha! Veja com a gente!” E quando ela viu viu “Ah! Mas
204

esses alunos tão fazendo muito pouco!” eu digo, “Não! Não é


pouco! Eles fizeram bastante!”.

A declaração “eu tive que i lá, banca, né...com a vice-direção” (ênfase


adicionada), marca não só a possibilidade de estabelecer interlocução com a voz de
autoridade (aqui em posição-sujeito “direção”) mas, também, aponta para o exercício
da agência e da autoria discursivas (o responder a e responder por de que trato
neste estudo), porque não só ele “tive que i lá” (agência, respondeu a direção),
como também ele “banca” (ou seja, responde por suas escolhas), justificadas nos
discursos que apropriou e se tornaram, então, internamente persuasivos, no tocante
à relação educação e tecnologia.
Dessa forma, o professor reitera como assumiu a responsabilidade por
sua autoria discursiva, manifestada em sua proposta didática, na maneira como
estabelece a comunicação discursiva em seu contexto de trabalho. Por acreditar que
sua proposta didática atenderia às necessidades de seus alunos, como ele retoma
“Eu trabalho com o ser humano.” E::: eu- eu vo fala também o repertório. Quando eu
trabalhei- eu consigo produzi, né, pra minha prática pedagógica”. Ou seja, a
apropriação discursiva, emergente nos fazeres desse professor, implicou várias
coisas e, dentre elas, assumir um cronotopo biográfico, agente e autoral.
Entendo que esse deslocamento cronotópico se faça relevante e seja
desejável quando se tem em mente a construção de pontes. É uma posição que
fortalece o olhar para as necessidades e oportunidades do contexto local e que pode
favorecer a ligação entre abismos que se apresentem entre os aspectos
globalizantes da educação, aqueles de ordem institucionalizada (dentro e fora da
escola) e os espaços locais.
Por conseguinte, o discurso que circula em sociedade acerca da interface
educação-tecnologia, como apontei no início deste capítulo, à conta de discurso de
autoridade, foi apropriado por esse professor, tornou-se discurso internamente
persuasivo. As palavras-alheias tornaram-se palavras próprias, manifestadoras das
ideologias que permeiam as noções de educação, tecnologia e sociedade que
constituem os discursos, o professor. Mas essa apropriação vem cercada,
mergulhada e permeada por diversas implicações, como vimos ao longo desta
análise. Implicações de ordem das materialidades, como a disponibilização de
205

equipamentos, recursos humanos e espaços físicos. Implicações, também, de


ordem das relações interpessoais, como fica evidenciado por
[Sim! Sim!... É que- é que, assim, a gente nunca co- nunca
conhece, assim, é::: a reação completa das pessoas, né?
Porque::: a gente- o [aluno começa caminha
(...) Né? Porque é aquela coisa assim, chega um determinado
momento, né? E::: é i- i- isso eu senti por parte de alguns
colegas meus u-uma relação de ciumes.
(...)
Né? Eles ficaram, assim, naquela- aquela: aquela relação de
ciume, né? “Ah! Por que que vem, né? Por que que o sujeito-
por que que o laboratório ta reservado só pra ele, né?” O:
sujeito não consegue operaciona, não tem a proposta, mas fica
assim, “Ah! Mas como? Por que só-”, né?
Com certa hesitação,
é que- é que, assim, a gente nunca co- nunca conhece,
assim, é::: [pausa, prolongamento do som] a reação completa
das pessoas, né? Porque::: [nova pausa, prolongamento do
som] a gente- o [aluno começa caminha
o professor informa que, dentre as implicações de sua apropriação discursiva que se
configuraram como abismos (dificuldades) há, ainda uma “relação de ciúmes”
locução adnominal que evidencia a entoação do enunciado, que aponta em direção
a outro abismo, neste caso, decorrente da interação entre o professor e seus pares.
Essa apreciação vem justificada pelo professor ao citar o discurso de
alguns de seus pares em: “Ah! Por que que vem, né? Por que que o sujeito- por que
que o laboratório ta reservado só pra ele, né?” O: sujeito não consegue operaciona,
não tem a proposta, mas fica assim, “Ah! Mas como? Por que só-”, né?”. Ou seja, os
demais professores não utilizariam os espaços e recursos por falta de planejamento,
de uma proposta, por não terem, talvez, ainda, se apropriado desse discurso acerca
da interface educação-tecnologia em seus próprios fazeres (?). Mas esse é um
discurso também permeado pela polêmica.
Em meados de outubro presenciei esse discurso indiretamente enunciado
pela voz da coordenação, que afirmou ter ouvido a queixa de um docente que teria
dito por que o laboratório estava sendo repetidamente reservado para o professor-
participante deste estudo. Nessa interação, o discurso apreciado pelo professor
como sendo manifestação de “ciúme” de seus pares, teria advindo do fato de que,
206

como o laboratório de informática só poderia ser utilizado com a presença do


monitor, que muitas vezes faltava ou chegava atrasado, o professor remarcava sua
reserva o que, aos olhos de seus colegas soava como uso exclusivo, manipulação
do uso daquele espaço. No entanto, da esteira dessa polêmica aberta, segue uma
polêmica outra, velada.
Conquanto a voz de autoridade cobrasse do professor o cumprimento do
currículo oficial, o “programa”, na interface com sua proposta de trabalho que
integrava as TDICs, dos demais professores a direção cobrava a não “utilização” dos
“recursos tecnológicos” , o que era esperado pelos gestores dado que o projeto
pedagógico da escola incluía, via ATPC, a interface educação-tecnologia, o uso do
Acessa, veiculado no projeto “escola conectada” que estava em implantação pela
coordenação, como mencionei anteriormente.
Ou seja, mais uma vez, penso ser possível identificar um discurso
duplamente orientado: a fala da coordenação é sempre permeada, via de regra,
pela voz de autoridade, o Estado, que não só impõe (verticalmente) o currículo como
também espera que a escola (mais especificamente, os professores) consiga
cumpri-lo ao mesmo tempo em que os professores associem ferramentas
tecnológicas a suas práticas. Aos professores parece ser necessário, portanto, lidar
com todos esses discursos à maneira de um equilibrista com seus malabares, em
meio a um tanto de outros fazeres. Criar espaços outros mediante a resistência.
Ainda nesse excerto de 02 de dezembro:
Eu Mas o senhor acha que desse ponto de vista a- a: escola
como- enquanto gestora, a coordenação foi mei- foi positivo?
P Foi. Foi! Eu consigui, vamos dizê assim, consegui o espaço
de trabalho até certo ponto, né? É::... ali dentro
Eu Dentro do possível!
P Porque- é isso! Dentro do possível, da conjuntura, né?
Porque é aquela coisa assim, é::: até- até pra:: faze aquele
trabalho com as músicas, eu tive que i lá, banca, né...com a
vice-direção. Eu disse, “Olha”- e chamei a vice-diretora e disse,
“Não, venha! Veja com a gente!” E quando ela viu viu “Ah! Mas
esses alunos tão fazendo muito pouco!” eu digo, “Não! Não é
pouco! Eles fizeram bastante!” É que esses alunos, eles não
opinavam. Eles não conseguiam fala pro grupo. Pela primeira
vez, eles conseguiram na aula de Inglês, seja fala em
Português, fala pra turma, serem ouvidos pela turma, né?
Eu Ou seja, foi muito além de um ganho linguístico só, né?
207

P Sim:!
Eu Porque eles também tão trabalhando com Inglês, tava
trabalhando com o Português. Eles tavam trabalhando com as
duas línguas em conjunto, como o senhor falo, né?
(...) Mas, talvez, não seja um ganho mensurável.

P Isso!

Ressalto, primeiramente, que a operacionalização em favor de uma


Pedagogia do Possível é, no entanto, um pensar agente e autoral docente que não
se faz pelos limites de seu contexto, mas sim, pelo pensar a partir de seu
contexto, abrindo espaços de luta e resistência, como apontam Helót e Laoire
(2011) diante das políticas internas e externas institucionalizadas à maneira
explicitada e/ou velada; é constituir lugar para a pluralidade de culturas, línguas e
identidades.
A escolha por manter a agência e a autoria discursivas diante das
apropriações que fez implicou, também, redimensionar expectativas. Como aponta o
professor: “Foi. Foi! Eu consigui, vamos dizê assim, consegui o espaço de trabalho
até certo ponto, né? É::... ali dentro (...) Porque- é isso! Dentro do possível, da
conjuntura, né?.”
A ideia aqui não está associada apenas ao conceito de fracasso ou
sucesso, certo ou errado, resultado positivo ou negativo. A avaliação que faz o
professor vem modalizada, redimensionando expectativas, planejamentos, diante da
realidade do que foi, efetivamente, possível fazer. Assim, o professor afirma que
“consegui o espaço de trabalho até certo ponto”, a modalização marcada pela
locução adverbial “até certo ponto” (subentendendo que há, sim, uma distância
ainda entre o que se desejaria e o que se pode fazer).
Esse redimensionamento de expectativas é tomado à conta de um
acontecimento positivo, em que o trabalho realizado foi conseguido “dentro do
possível, da conjuntura, né?”. Essa dimensão, marcada pela expressão adverbial de
modo “dentro do possível” é justificada pelos limites impostos pela “conjuntura”,
substantivo que remete ao conjunto de fatores que compuseram a realidade
contextual dos fazeres do professor e suas materialidades tais como espaço físico;
recursos instrumentais e humanos; demandas curriculares e programações internas
e externas, entre outros tantos fatores, como evidenciado ao longo desta análise.
208

Adiante, estabelecendo dialogo com a direção, o professor sustenta


seu discurso argumentando que
eu disse, “Olha”- e chamei a vice-diretora e disse, “Não, venha!
Veja com a gente!” E quando ela viu viu “Ah! Mas esses alunos
tão fazendo muito pouco!” eu digo, “Não! Não é pouco! Eles
fizeram bastante!” É que esses alunos, eles não opinavam.
Eles não conseguiam fala pro grupo. Pela primeira vez, eles
conseguiram na aula de Inglês, seja fala em Português, fala pra
turma, serem ouvidos pela turma, né?

O professor traz, à maneira de discurso citado, o enunciado da (vice)


direção que, apreciando sua proposta com a atividade da música favorita, enuncia:
“Ah! Mas esses alunos tão fazendo muito pouco!”. Esse fazer “muito pouco” (que
por si só expressa contrassenso...) enuncia o discurso, em polêmica aberta: o que é
“fazer pouco”? O que essa locutora entende por “fazer mais”? Se for retomar minha
própria apreciação inicial a respeito dessa atividade, expressada aqui lá mais para o
início desta análise, eu também, inicialmente, achei pouco, quando tomei por base a
produção linguística. Quer dizer, estamos falando de uma aula de língua inglesa e,
naturalmente, espera-se produção de conhecimento de ordem metalinguística.
Penso que também seja esse um percurso para o discurso da vice-diretora que
declarou, em tom apreciativo, que o que viu os alunos fazerem em aula era “muito
pouco”.
Neste ponto, acredito se pertinente retomar a proposição de Biesta (2010)
para que se (re)posicione como central a questão dos objetivos da educação (neste
caso, a educação em língua estrangeira). Claramente, esse “muito pouco”, que vem
do lugar em que fala a voz de autoridade, é palavra contraposta em réplica-ativa
ao “dentro do possível, da conjuntura”; do “Não! Não é pouco! Eles fizeram
bastante!”, vozeado pelo professor. Da maneira como entendo, o discurso fundador
dos interlocutores é diferente e eles falam de lugares diferentes, não somente pelas
posições sociais que ocupam, no universo das relações do trabalho, mas pela
maneira como parecem entender os objetivos da educação linguística em língua
inglesa.
A voz de autoridade (a vice-direção) vem permeada por enunciados
outros que encadeiam como objetos do discurso o currículo oficial, o desempenho
dos alunos nas avaliações internas e externas, as comparações estabelecidas entre
o trabalho de diferentes professores em uma mesma disciplina, etc.. A apreciação
209

dessa voz, advinda desse lugar, racionalmente olha para a atividade com a música e
julga tratar-se de fazer “muito pouco”, porque enquanto tarefa proposta no âmbito de
uma educação cujos conteúdos, o aspecto da qualificação (Biesta, 2010) são o
objetivo principal; uma educação orientada para a mensuração (via avaliações
institucionais internas e externas ao ambiente escolar), uma tarefa voltada a
escolher, copiar, traduzir com um tradutor automático eletrônico e apresentar uma
canção parece, de fato, ser muito pouco...
A voz do professor vem prenha de palavras-próprias, apropriadas de
discursos que possibilitam ver na educação em língua estrangeira mais do que
somente a construção de conhecimentos de ordem linguístico-estruturais. Esse lugar
de que fala o professor permite-lhe pensar na sala de aula como um espaço para o
diálogo, o dialogismo (como proposto por Shields (2007)), a autonomia (ainda que
não aquela a que se refere Biesta (2010) ou Zatti (2007) orientada em direção à
criticidade), de modo que haja também, dentre os objetivos dessa educação, além
das questões pertinentes à qualificação, o trato das questões da socialização e da
subjetificação (BIESTA, 2010). Para esse professor, fez-se muito, “dentro do
possível”, já que

(...) esses alunos, eles não opinavam. Eles não conseguiam


fala pro grupo. Pela primeira vez, eles conseguiram na aula de
Inglês, seja fala em Português, fala pra turma, serem ouvidos
pela turma, né?

Esses alunos tiveram espaço para ouvir e ser ouvidos o que, para Bakhtin
([1979;1992;2003] 2011, p.394) é essencial para que aconteça o ato de tornar-se
(sujeito) em diálogo, na comunicação discursiva.
Finalmente, encerrando esse excerto da interação oral de 02 de
dezembro, eu digo ao professor que
Eu Ou seja, foi muito além de um ganho linguístico só, né?

P Sim:!

Eu Porque eles também tão trabalhando com Inglês, tava


trabalhando com o Português. Eles tavam trabalhando com as
duas línguas em conjunto, como o senhor falo, né?
(...) Mas, talvez, não seja um ganho mensurável.
P Isso!
210

Noto que, nesse instante, meu discurso é plurivocal: revozeio o discurso


do professor de que os alunos “tavam trabalhando com as duas línguas em
conjunto”, expressando minha concordância (algo de que pareço ter me convencido,
provavelmente graças ao processo exotópico, ao longo do processo da pesquisa
dialógica). A seguir, acrescento “como o senhor falo, né?”, ou seja, trago a voz do
professor como palavras-alheias, com autoria marcada, já que as contraponho a
minhas palavras-próprias, enunciadas à maneira internamente persuasiva: “ou seja,
foi muito além de um ganho linguístico só, né? – discurso para o qual peço a
anuência do interlocutor com meu “né?”.
Se, por um lado, ainda pareço não estar muito convicta quanto ao
trabalho feito em relação aos objetivos metalinguísticos, mantenho em perspectiva a
visão de educação linguística que me orienta, com bases numa formação que
englobe em seus objetivos, de modo a permitir que o ato de conhecimento se realize
diante da hibridação dos horizontes do cognoscente e do cognoscível. Uma
educação que acate as diferentes maneiras de ver o mundo, nossa eterna
incompletude diante dele e nossas próprias construções identitárias, diante da
possibilidade de compor sentidos para vida e o viver, através do diálogo.
Para encerrar este capítulo, transcrevo um excerto final da fala desse
professor, ainda nessa interação oral que estabelecemos em 02 de dezembro,
nosso último encontro presencial.
Peço licença a você leitor(a), acostumado às formalidades deste gênero
acadêmico, o texto científico, que, ao exemplo do que postulam as orientações
bakhtinianas, é um enunciado “mais ou menos estável” para que me permita
aproveitar-me da nuance do “mais ou menos”, para desestabilizar um tantinho este
gênero (mais uma vez) e terminar a análise dos dados ecoando a voz do
participante desta pesquisa.
Esse próximo excerto ficará aqui, ao final deste capítulo, como “food for
thought”, como se diz em língua inglesa, ou seja, como tema para sua apreciação e
reflexão.
Da maneira como vejo, nesse trecho que transcrevo a seguir há muito
texto bonito, (re)velador; registro social e histórico de um momento de embate pelo
qual se passa na educação pública; depoimento honesto e pulsante, rico demais
para eu me debruçar nele (apenas) à guisa de ser (mais um) dado em uma
pesquisa. Quero deixá-lo aqui como um registro.
211

É um recorte com enunciados permeados pelo olhar que move esse


docente diante dos papeis da educação e do educador, como evidenciado ao
informar que ele
trabalha numa:: numa perspectiva (...) da escola cidadã. Que
dizê, você forma um ser humano que, eles vai busca muda o
mundo ou vai se ajusta a esse mundo.

Esse educador que, pensando em uma formação que (de alguma forma)
se faça cidadã, à medida que se opõe a uma educação que se baseie na “aquela
coisa assim, é::: a lógica mercantilista na educação, não é?”.
Fica evidenciado, também, nesse sujeito-locutor um sentimento de
amargura, um desabafo/lamento evidenciado no adjetivo “execrado”, componente de
um educador que acredita que “fui execrado dentro duma escola como eu comecei a
questiona, não é” (note-se que aqui ele se refere a um acontecimento ocorrido no
passado, em outra escola em que trabalhou, mas que, evidentemente, deixou
marcas). Questionar, agir, ter autoria, desestabiliza sistemas, move cronotopos.
Um sujeito-educador que, mesmo sentindo-se vitimado por suas posturas
que, como ele mesmo informa, “vêm de u é uma perspectiva, assim, é::: de um:::
cunho político, assim, bem forte”, ainda sim, não parece querer abrir mão de sua
agência, ao afirmar que, “é um debate que eu:::... que eu, talvez, vou retoma no
futuro.”. Um educador que deseja evidenciar que “eles vai investi, práticamente, um
milhão de reais pra troca o piso, troca as portas, pinta as paredes e nem um centavo
em novas tecnologias. Nenhum ganho enorme pros aluno.” , mostrando que, para si,
um investimento em tecnologia traria melhorias outras nos processos educativos em
seu contexto – discurso de que se apropria com convicção exposta em suas
propostas de aula.
Assim, termino este capítulo com a voz desse professor, a ressoar vozes
outras em seu discurso, tais quais as dos demais professores e alunos que foram
profundamente afetados pelos acontecimentos que marcaram o final de 2015, nessa
escola (e que, infelizmente, como mostram os registros dos noticiários, também
aconteceu em outras). Como apontam Hélot e Laoire (2011) é preciso lembrar que a
escola é “um microcosmo” da sociedade, refletindo e reproduzindo (e, por que não,
instigando?) valores sociais:

P É- é- Sim!... É::: aí, vamo dizê assim, a::: a própria:: a


própria::: a própria reforma, vamo dizê assim, as- já tinha
212

algumas coisas que já tavam programada pra culminância, né?


Em função da greve, da reforma, a- a- a escola, ela é:: em
função do número de alunos, o espaço já é limitado. E, agora,
a gente já começo a:: tê uma compreensão maior do espaço,
porque uma sala tá desocupada, pra troca o piso, a outra tá lá,
em obra. Então::
Eu Mas que é difícil de mensura esse tipo de ensino, é!

P É!- É! É! Então, aquela coisa assim, é::: a lógica


mercantilista na educação, não é? É um debate que eu:::... que
eu, talvez, vou retoma no futuro. (...) trabalha numa:: numa
perspectiva (...) da escola cidadã. Que dizê, você forma um ser
humano que, eles vai busca muda o mundo ou vai se ajusta a
esse mundo. Então, é- é:: é uma perspectiva, assim, é::: de
um::: cunho político, assim, bem forte. E, esse ano, assim, fui
execrado dentro duma escola como eu comecei a questiona,
não é? E-e os melhores sistemas do mundo, ã::: o grande
desafio que se coloca, olha, que o professor consiga dá uma
aula que hipnotize todos os alunos, que faz com que todos
aprendam aquele conteúdo ao mesmo tempo. E digo, isso não
existe! Esse é um processo que, quando a gente usa a questão
da tecnologia, você vai vê que… o time de cada aluno é
diferente do outro, em qualque competência, em qualque
habilidade, né? E::: é- e o momento, aquele momento ele pode
não tá ali, mas um outro momento ele pode se volta e
desenvolve aquilo, né? Retoma aquilo. Então, du- du- da
tecnologia, uma na- nessa escola, pra gente consegui- eles vai
investi, práticamente, um milhão de reais pra troca o piso, troca
as portas, pinta as paredes e nem um centavo em novas
tecnologias. Nenhum ganho enorme pros alunos. Mas é uma
política- que dizê assim, moral da história lá, que dizê, vai se
reforma a escola e já tá se anunciando lá que já vai fecha as
portas, é - o:: a escola passa, deixa de sê uma pedra no
sapato, que sempre construiu uma alternativa, mostrou ali um
Estado diferente, em várias coisas.

Eu Ela vai deixa de sê da rede Estadual?


P Vai deixa! Já existe, assim, u::: um acordo adicional com o
Prefeito, que ele que transforma aquela escola de primeira-
primeiro ciclo.

Eu E aqueles professores todos vão sê:: remanejados?

P Vão-... vão sê!


Eu A direção, todo mundo vai sê remanejado?
P Aliás, a direção já tem sessen- já tem tempo de serviço.(...).
E ela/ se/ formo, né? Na militancia política de contextação, não
é? E- e::
213

(...)
Eu E vai sê uma das escolas que tá no remanejamento,
então, desse::

P Ela- eles não colocaram no programa, oficialmente. Mas, a


qualquer momento, os alunos, lá, se::

Eu Vão sê remanejados?
P Os alunos, é, do terceiro (3º) ano, lá, eles não, é:: é:, não
fizeram prova do SARESP. Eles só assinaram e não
completaram, né? Então, é: foi um ato de protesto dos alunos,
né?. (...)
214

5. (RE)CONSIDERAÇÕES DE FINAL DE JORNADA

Direcionar o olhar a partir de uma perspectiva dialógica é acatar a


incompletude. É conceber o mundo à forma de um acontecimento constantemente
permeado por processos formativos e, portanto, inacabado. De tal forma, enquanto
um sujeito orientado pelo dialogismo, eu sinto certo desconforto para intitular este
capítulo por “conclusão”.
Assim, se comecei esta tese contando “um causo” e convidando você
leitor(a) a (re)viver comigo minha jornada-pesquisa, proponho encaminhar seu
término com algumas (re)considerações de final de jornada que, à maneira
bakhtinianamente orientada, não se propõem conclusivas, mas convidam,
novamente, ao diálogo. Para tanto, retomemos os propósitos deste trabalho.
Ao longo de um semestre letivo em que participei ativamente em/dos
fazeres de um professor de inglês, tive por objetivo principal investigar implicações,
dificuldades e possibilidades decorrentes do fato desse professor ter se apropriado
de discursos que advogam em favor da presença de tecnologias digitais em suas
aulas de inglês em uma escola de educação básica pública.
Dessa forma, dialoguei com o professor participante durante a primeira
etapa de minha investigação, dividida em fases intercambiáveis de planejamentos,
ações e discussões. Nossas interações, orais e escritas, constituíram o corpus da
pesquisa, dados materializados em muitos enunciados dos quais selecionei alguns
recortes a fim de analisar discursos (meio pelo qual entendi ser possível visibilizar as
tais implicações decorrentes / emergentes do processo de apropriação discursiva
em sua prática e contexto sociais).
A fim de analisar esses discursos, propus orientar-me a partir de algumas
das discussões e conceitos estabelecidos por Bakhtin e seu Círculo de forma a
compor um dispositivo teórico-analítico por base norteadora, para o qual também
busquei ser amparada pelas discussões acerca de educação, tecnologia e
sociedade propostas por estudiosos tais como Selwyn (2012; 2014), Charlot (2013);
Biesta (2010) e Hélot e Laoire (2011), entre outros.
Advindas desses objetivos, duas perguntas nortearam minha pesquisa, a
saber: a) assumindo perspectiva bakhtiniana para a análise de discurso
fundamentada no dialogismo, que discursos em relação às TDICs e sua interface
com a educação linguística deram evidências de terem sido apropriados pelo
215

professor participante e quais os indícios mais aparentes dessa apropriação e b) que


implicações (possibilidades; dificuldades) ligadas à presença das TDICs nas aulas
de inglês decorreram dos discursos emergentes do diálogo estabelecido entre mim e
o professor ao longo dos processos de planejamento, implantação e discussão das
ações pedagógicas em aula.
Em relação à primeira pergunta que orientou esta pesquisa, ao longo da
análise de dados que propus no decorrer do capítulo quatro, acredito terem sido
diversas as evidências de apropriação de discursos socialmente compartilhados
acerca da interface tecnologias – educação. Penso que seja possível identificar,
dentre essas evidências, duas principais vertentes discursivas que inúmero a seguir
(e cujas implicações para o contexto discuto mais adiante):
a) aquela que empresta às tecnologias o papel de ferramentas e/ou
instrumentos que podem facilitar práticas pedagógicas e/ou substituir materiais
didáticos tradicionais, especialmente os impressos (aspecto evidenciado, por
exemplo, através do discurso que advogou em favor da presença da plataforma
Duolingo como recurso mediador no trabalho metalinguístico) e;
b) uma segunda vertente discursiva, talvez decorrente da primeira, que vê
nessas tecnologias meios e modos para um desejado melhoramento nos processos
educativos, tais quais: promover o interesse e o engajamento dos alunos em
atividades didáticas dentro e fora do ambiente escolar; auxiliar no trato disciplinar em
sala de aula e o aspecto a que o professor nomeou por “aprofundamento” dos temas
e tópicos estudados, ou seja, maior acesso a saberes e conhecimentos
compartilhados, especialmente ao contar com o acesso a ambientes síncronos).
O discurso que advoga a promoção do engajamento dos alunos em
atividades propostas fica evidenciado logo ao início da análise dos excertos quando,
em interação oral, o professor argumenta que, mesmo durante as férias, os alunos
teriam continuado a “estudar” a língua inglesa ao acessar as atividades na
plataforma Duolingo (dando, portanto, evidências de que ao apropriar-se
discursivamente do papel dessa tecnologia em processos de ensino e aprendizagem
da língua alvo e, por conseguinte, abrindo espaço para ela em seus fazeres, o
professor acreditou ter promovido algum melhoramento em relação à educação
metalinguística de seus alunos – o que foi mensurado pelo professor mediante os
resultados registrados na plataforma online para cada um dos alunos).
216

Em relação ao caráter instrumental emprestado às TDICs, ficaram


destacadas as instâncias em que o professor reafirmou o papel que tiveram as
plataformas de busca em ambiente digital síncrono, o site Google Tradutor, o
programa de edição de apresentações Power Point, o site de curadoria Padlet e a já
mencionada plataforma síncrona Duolinguo.
Todas essas tecnologias supracitadas tiveram sua presença nos
planejamentos e aulas desse professor a guisa de recursos que auxiliaram, segundo
ele enunciou em vários dos excertos examinados, a suprir a carência de materiais
impressos disponíveis naquela escola; a promover a interação entre alunos-objeto
de estudo da disciplina, aluno-aluno(s) e aluno(s)-professor, aumentando de certa
forma, segundo o parecer do professor, o interesse desses estudantes em relação à
aula de língua inglesa.
Outro aspecto que pareceu emergir nas interações que estabeleci com
esse professor em decorrência da apropriação discursiva em relação à presença das
TDICs em suas aulas foi o papel que tiveram as atividades propostas, especialmente
a mediada pelo recurso da lousa-digital, na abertura de espaços outros em que foi
possível visibilizar a voz dos estudantes. Ao justificar a escolha por suas músicas
favoritas, os alunos tiveram a oportunidade de compartilhar seu lugar de fala, já que
atividade culminou em um “caldo”, como apontou o professor, em que a diversidade
cultural e os diferentes estratos sociais de que advêm esses alunos ficaram
evidenciados em uma prática que oportunizou a manifestação do discurso de outrem
e o “ato de tornar-se durante o ato da construção do conhecimento” (termo que trago
aqui tomando por base o que sugere Bakhtin). Como apontei anteriormente, essa
prática, através dos espaços que viabilizou, se revelou bastante próxima da proposta
de Rocha (2010) em relação à criação de zonas de contato, espaços outros em que
a educação em língua inglesa nos anos fundamentais possa se configurar
plurilingue.
Acredito que se pode também notar que, a partir da análise dos dados, foi
possível identificar a apropriação (internamente persuasiva) que faz esse professor
de uma noção de educação em língua inglesa que se configura para além das
questões curriculares e de cunho exclusivamente conteudista.
Ao exemplo do que sugerem Hélot e Laoire (2011) é evidente que, ao
“bancar” sua proposta de trabalho com os 8º e 9º anos (palavra empregada pelo
professor), esse docente se arriscou a criar suas próprias políticas internas,
217

pensadas a partir do conhecimento que construiu acerca de seus alunos e seus


contextos (internos e externos à escola). Sua proposta de trabalho foi marcada por
agência e autoria discursivas, (re)posicionamentos cronotópico e um exercício de
alteridade (exotópico) maximizado por sua iniciativa de me receber em sua sala de
aula.
Por conseguinte, penso que seja possível entender que o professor
construiu algo bem próximo àquilo que Hélot e Laoire (2011) propõem chamar de
uma Pedagogia do Possível. Muito embora aqui o contexto de ensino não se trate da
sala multilíngue em que se enquadra a pesquisa desses autores, aproprio-me da
ideia para este contexto que penso ter sido um tanto mais plurilingue, já que não
houve o silenciamento da “língua dos alunos” (para me apropriar do termo daqueles
autores). A cada um foi dada a oportunidade de se expressar, encontrar não
somente a sua própria voz, mas fazê-lo mediado por sua própria língua(gem).
Além disso, como disse o professor, sua “versão apócrifa da pedagogia
do possível” (mais um discurso que se manifestou a exemplo de palavras-alheias-
próprias, apropriadas a partir de nosso diálogo) me leva a considerar outro aspecto
de meus objetivos de pesquisa: as implicações decorrentes / emergentes dessas
apropriações discursivas que fez o professor.
Recorrendo à metáfora de abismos e pontes que norteou minha
apreciação nesta jornada, penso que seja identificável, ao longo dos excertos
examinados no capítulo anterior a este, diversas instâncias em que foi preciso
buscar alternativas diante de dificuldades eminentes. Isso porque, foram muitas as
dificuldades a se enfrentar, a saber:
a) de início, a defasagem na construção do conhecimento sistêmico dos
alunos;
b) as limitações de recursos físicos e humanos para o trato com as
tecnologias em aula tais como: poucos computadores disponíveis, agendamento e
acesso às salas de informática e da lousa digital; a não possibilidade de gravar os
trabalhos digitais dos alunos em suas áreas logadas no Acessa – só descoberto
após a perda dos dados;
c) o embate de forças internas, marcadas pela relação de poder na voz
de autoridade manifestada pelo currículo oficial, pelas enunciações da coordenação
e da direção da escola, pelo calendário de avaliações, pelos resultados cobrados
pelos diversos atores envolvidos (direção, coordenação, demais professores, os
218

alunos, o Estado, a comunidade). Embate também marcado pelos discursos


polêmicos vigentes naquele contexto, que apoiam, estimulam e cobram a presença
de tecnologias nos fazeres do professor, mas, em contrapartida, mantém o foco no
cumprimento de planejamentos e currículos institucionalizados – o que gerou e
sustentou o embate discursivo do professor com seus pares;
d) o baixo prestígio denotado à aula de língua inglesa em relação às
demais disciplinas e sua influência na apreciação que fazem os alunos das
propostas nessa aula;
e) a situação de mudança no sistema educacional decorrente de ações
promovidas pelo Estado implantadas a partir de uma reforma física feita em meio ao
semestre letivo.
Certamente, outros tantos abismos/pontes poderiam ser evidenciados, a
partir de diferentes leituras desses mesmos recortes dos dados. Todavia, as
dificuldades supracitadas, identificadas a partir da (re)leitura que propus fazer dos
excertos discutidos na análise, implicaram, dialogicamente, a tentativa de
estabelecer ações que permitissem ao professor tentar superá-las ou, acredito eu,
ao menos, encontrar um senso de que ainda valeria a pena propor-se a enfrentar
tais dificuldades.
De tal forma, entendo que seja possível identificar dentre as
possibilidades construídas:
a) o envolvimento de alunos com sua própria aprendizagem da língua
inglesa a partir do interesse que parece ter sido despertado em alguns deles através
da mediação da plataforma Duolinguo;
b) os espaços para a manifestação da subjetificação e a construção
identitária proporcionados pela tarefa que envolveu a apresentação com a música
mediada por TDICs e recursos com a lousa digital;
c) o fomento à interatividade e ao trabalho colaborativo proporcionado
pelas atividades propostas com a interface dos recursos digitais no laboratório de
informática;
d) a presença das tecnologias auxiliou a suprir necessidades curriculares
locais, oportunizando ao professor sua agência e autoria discursivas na elaboração
de uma prática aos moldes de uma Pedagogia do Possível, dialogando orientações
institucionais (o global) com as necessidades e recursos de seu contexto (o local);
219

e) a abertura da aula de inglês para uma visão de educação que abarcou,


além da preocupação metalinguística, construções outras, para além das questões
linguístico-sistêmicas exclusivamente.
Essas possibilidades, geradas em decorrência do que entendo ter sido
uma mudança cronotópica que marca a agência e autoria discursivas do professor,
propiciaram, a meu ver, exemplares de ações oportunizadas pelas presenças de
TDICs que podem se tornam significativas em um contexto como o que ora
descrevo. Não somente foram encurtadas distâncias em termos de conteúdos e
saberes curriculares, mas também foram apresentados espaços outros, que
possibilitaram uma fazer educacional em aula de inglês mais voltado a uma agenda
local, com benefícios à prática da subjetificação (o ato de tornar-se, no ato da
construção do conhecimento).
Endereçando-me ainda à segunda pergunta de pesquisa, entendo que ela
advenha de um objetivo específico deste trabalho no qual eu propus (re)ler os dados
a partir de um dispositivo teórico-analítico que adota como base algumas das
discussões e conceitos estabelecidos por Bakhtin e seu Círculo, de forma a orientar
a análise dos dados (os enunciados) construídos na primeira etapa da investigação,
a fim de identificar dificuldades / possibilidades emergentes e/ou decorrentes das
apropriações discursivas emergentes.
Nessa direção, acredito que os conceitos por mim elencados, dentre eles,
a noção do processo de apropriação discursiva (à maneira de discursos de
autoridade ou internamente persuasiva); a noção de discursos em polêmica velada e
os duplamente orientados; as propostas bakhtinianas e de seus pares em relação
aos conceitos de diálogo e dialogismo e às ideias de cronotopo, heteroglossia,
polifonia, agência e autoria discursivas, evidenciaram-se adequados para apoiar as
discussões que eu incitei. Especialmente à medida que propus dialogar tais
conceituações com as discussões acerca da educação, tecnologia e sociedade, para
as quais busquei apoio nas propostas e análises dos estudiosos com quem
estabeleci interlocução ao longo deste texto.
A esse respeito, entendo que este estudo se configure contribuinte para
um fazer ampliado nas discussões e investigações no campo da educação, em
especial a linguística, mas igualmente em outras áreas em que se pretenda assumir
uma perspectiva dialógica.
220

Expandindo diálogos estabelecidos em estudos anteriores, entendo que


esta pesquisa venha somar ao campo das análises de processos educativos dentro
e fora da sala de aula, (re)apresentando a (ainda) relevância e pertinência das
discussões estabelecidas por Bakhtin e seu Circulo em relação a essas práticas
sociais e/em seus contextos atuais. A ideia de comunicação discursiva como um
conceito integrador e integrado pode auxiliar, como visto aqui, a investigar e a
analisar os discursos como elementos integradores e fundadores dos processos
sociais em que se constroem e a que constroem, carregando forças centrípetas e
centrífugas à maneira encadeada.
Por isso, espero que este texto, enquanto enunciado, possa ser percebido
como um elo nessa cadeia em que se manifesta e, como tal, antecipe e permeie
enunciados (e seus discursos) em devir – ainda tão necessários, haja vista a
incompletude deste mundo em que nos (re)construímos dia a dia.
Quero também crer que uma ideia central permeie, como um todo não
apenas analítico, mas, fundador, esta pesquisa (à qual escolhi me referir como
“jornada”): a noção da exotopia.
Foi partindo da ideia de exotopia que pensei ser possível pesquisar sob a
perspectiva de um olhar dialógico, que adota o diálogo por visão de mundo (como o
fazem outros pesquisadores tais quais Rocha (2010) e Amorim ([2001] 2004)).
A noção de exotopia, na perspectiva bakhtiniana, que me encanta por me
fazer acatar meus próprios limites e incompletude e por motivar-me a buscar, no
exercício exotópico, no diálogo, um percurso a fim de encontrar aquilo que me falta,
me ajudou a enxergar, neste contexto de pesquisa, velhas ideias através de outras
lentes.
Por exemplo, colocando-me exotopicamente diante desse contexto pude
perceber que uma dada tecnologia (e aqui me refiro ao Duolinguo) que em princípio
não me agrade pessoalmente por não representar, a meu ver, aquilo que promete
(inovação, novas maneiras de aprender e ensinar, etc.) pode exercer um papel na
propagação de deslocamentos outros.
Ainda que orientada por ideologias neoliberais (ao menos, da maneira
como eu a percebo) e tomando por base visões tradicionais de ensino e
aprendizagem, revestindo-as da roupagem da “inovação digital”, no ambiente desta
pesquisa essa tecnologia – eleita como um apoio pelo professor, em uma ação
agente e autoral em que tomou seu contexto como base para elaborar um currículo
221

local –, de fato pareceu contribuir não somente para atingir propósito de estudo
sistêmico (da língua inglesa) como também para despertar o interesse de seus
alunos na disciplina; sua maior participação nas atividades propostas e o trabalho
interativo com seus colegas a quem davam ou em quem buscavam apoio,
descentralizando, de alguma forma, o papel tradicional do professor, o que em si já
é, no mínimo, um ato de resistência ao modus operandi.
Quando amplio meu olhar, a exemplo de um zoom em uma câmera,
minha perspectiva em relação a essa experiência com essa tecnologia também se
expande: retomo a condição de um professor trabalhando em escola pública, com
menos computadores do que alunos; com limitadoras disputas internas por espaços
(físicos e metafóricos) de trabalho; com imposições curriculares e políticas
institucionalizadas (internas e externas), enfim, chego à conclusão que o trabalho
proposto foi realmente bastante.
Penso que a ação em favor da presença dessas tecnologias que fizeram
parte de seus fazeres em aula tenha sido um exercício de resistência desse
professor, do qual partilho com profundo interesse, manifestado ao propor um ensino
de língua plural, em que há uma agenda local que se esforça para se estabelecer,
mas nunca sem o embate e as tensões derivadas do enfrentamento diante da
agenda global.
Mas eu só consigo enxergar isso, hoje, porque pesquisei com o olhar
orientado pela exotopia, porque me embrenhei no dialogismo, porque me propus a
dialogar, acima de tudo, com minhas próprias (in)certezas diante de processos
educacionais e permitir-me questionar paradigmas que me orientavam. Porque,
assim como o fez o professor ao me acatar em seu contexto, eu também propus me
expor em praça pública, neste texto, nesta investigação, continuando o diálogo
estabelecido entre ele e mim.
A exotopia e o dialogismo auxiliaram-me a visibilizar nesta tese que, se
ainda há muito que fazer para e na escola pública, como muito se fala em sociedade
(normalmente de modo generalizado e generalizante), há também muito sendo feito,
ainda que, sem olhar por essas lentes, possa parecer, para alguns, que o que se faz
é pouco. No entanto, não penso que as ações e suas implicações, decorrentes de
apropriações discursivas, aqui descritas e analisadas, sejam elemento formulaico.
Não as apresento à maneira prescritiva. Mas creio firmemente que podem servir
como provocações.
222

Conquanto toda tecnologia seja sempre limitada e ideologicamente


orientada, não é propriamente apenas seu uso que pode causar mobilizações, mas,
sim, os propósitos a que se destina sua presença numa aula de inglês numa escola
pública, como a que trago neste estudo. Continuo acreditando que a pergunta
central a se fazer diante dos processos educacionais em língua inglesa ainda seja:
quais os objetivos dessa educação?
De tal forma, espero que este trabalho possa também contribuir para a
área de investigação em que se situa multiplicando e corroborando maneiras e
modos outros também passíveis do fazer científico, de se pensar a pesquisa e seus
objetos de análise, seus dados. Um exercício dialógico-exotópico permite não
somente ampliar visões, mas também, multiplicar perspectivas. E quando se amplia
perspectivas, abre-se espaço para diversidades, pluralismos e, por conseguinte,
possibilidades para acatar outros modos de ver, fazer e entender velhos enunciados.
Assim como sugere Biesta (2010) que a educação atue não somente nos
eixos de qualificação e socialização, mas também na subjetificação, penso que esse
também possa ser um papel da pesquisa científica: não somente quantificar,
classificar dados e correlacioná-los a bases teórico-discursivas, mas, também,
permitir que pesquisadores, participantes e leitores dessas pesquisas exercitem
Nela e através dela suas construções e manifestações identitárias e socializem-se à
maneira crítica, no sentido proposto por aquele autor, ingressando em esferas
sociais outras, em que possam contribuir para a construção (dialógica) do
conhecimento.
Dessa forma, esta jornada foi um grande exercício exotópico em que, pela
generosidade de um colega professor, pude adentrar um contexto (ainda que
extraposta, dada minha posição-pesquisadora) e olhar o outro e seus fazeres
através de seus-meus olhos. Por intermédio do diálogo, cruzar palavras-alheias,
torná-las, às vezes, próprias, às vezes marcá-las pelas vozes que ecoei e, vezes
outras ressoná-las em minhas palavras. Abrir-me ao exercício da exotopia, colocar-
me neste texto tanto quanto trago nele as vozes daqueles em que busquei substrato
para compô-lo, todo esse conjunto de fatores alterou quem sou.
Hoje, percebo que essas vivências, participações que eu fiz, motivada
pelo intuito de pesquisar em Linguística Aplicada e entender, ainda que partisse de
uma pequena e breve experiência, mais um ângulo a partir do qual é possível
223

compor sentidos para as relações entre educação, tecnologia e sociedade,


afetaram-me sobremaneira.
Meus discursos – que são discursos de outrem revozeados em minha voz
que, portanto, não é só minha –, hoje, são outros. Porque todo o acontecimento,
toda a experiência que cruza o universo do ser cognoscente, como propõe Bakhtin,
afeta, (re)constrói os discursos de que sou constituída e aos quais constituo em
minhas próprias práticas sociais, aquelas nas quais me engajo diariamente, por
escolha ou força cronotópica.
E dentre todas as discussões evidenciadas pelos recortes transcritos em
minha análise, há um discurso ao qual desejo contrapor uma réplica à maneira de
uma polêmica aberta.
Em uma postagem de 03 de setembro em nosso Padlet, o professor
afirmou que “nosso interesse comum é o uso das novas tecnologias como
estratégias didáticas para despertar o interesse do aluno em relação à língua
inglesa”. Vou discordar.
Em um primeiro e dado momento, talvez tenha sido esse o ponto em que
nossos olhares convergiam. No entanto, do lugar em que falo hoje, após reler os
percursos por que passei nesta jornada, entendo que nosso diálogo tenha sido
mediado por pelo desejo de olhar para a educação linguística como um espaço para
a construção de saberes outros; como oportunidade de participação em discursos
outros. E o que medeia essa construção não é, necessariamente, uma estratégia
didática baseada nesta ou naquela tecnologia, mas sim, a disposição para tentar
uma Pedagogia do Possível.
O que acredito nos mover, ao professor e a mim, é a disposição para
colocar-se em praça pública, arriscando cruzar abismos/pontes contextuais,
intrinsecamente decorrentes da profissão que escolhemos e dos espaços de
trabalho que ocupamos. Colocar-se à disposição para o engajamento discursivo à
maneira agente e autoral e, assim, encontrarmos, mediante todas as vozes que nos
orientam, constituem e permeiam, a nossa própria voz.
Esse é um posicionamento que requer de um docente dispor-se a
confrontar as interrelações estabelecidas entre agendas global e local, sempre
complexas. É tornar-se ciente de que, pensar e praticar uma Pedagogia do Possível
requer também estar preparada para assumir posição agente diante de mudanças
224

resultantes de processos em que se confrontam as relações de poder em jogo em


toda e qualquer interação humana.
Uma docência voltada à prática de uma Pedagogia do Possível
questionaria, também, como nos apropriamos do conhecimento, qual é o locus
desse conhecimento (incluo aqui, a questão das tecnologias que não podem ser
tomadas, penso eu, como se fora elementos neutros e desprovidos de ideologias).
Essas também são questões muito importantes quando se deseja pensar uma
pedagogia que se configure não somente como do Possível, mas também, voltada à
esperança, como sugere Dei (2013).
Acredito que o interesse em comum que me aproxima do professor
participante deste estudo seja, pois, o interesse pela implantação de uma educação
linguística com bases em uma pedagogia que, apoiando-me em Dei (2013), entendo
ser aquela que busque uma abordagem pluralista e verdadeiramente inclusiva – não
a inclusão como maquiagem, superficial –, mas aquela pautada pelo espaço em que
as diferenças, a alteridade, as diversidades não só se manifestem, mas, também, se
constituam em e através da construção de conhecimentos verdadeiramente
compartilhados.
Como ainda sugerem as perspectivas pedagógicas do Possível (na
perspectiva proposta por Helót e Laoire (2011)) e da esperança (sob o olhar
proposto por Dei (2013)), penso que o professor e eu nos unimos no desejo de uma
educação linguística que estimule, promova e possibilite uma cidadania – não
aquela somente do papel, já cantada em verso e prosa nos últimos 20 anos, desde
os Parâmetros Curriculares, por exemplo –, mas uma cidadania política e
socialmente crítica. Caráter formador do educador tão importante nos dias de hoje,
em que as sociedades parecem estar voltando costas aos poucos progressos que já
foram feitos em direção à construção social a partir da diversidade; momentos em
que se vive uma lamentável onda de “back to basics”, ou seja, retomada do que era
constituinte das bases educacionais há muitos séculos atrás – uma orientação
conteudista, tecnicista e excludente, ao invés de se pensar a escola como meio para
a participação social.
Da maneira como entendo, a movimentação cronotópica que fez o
professor, com sua proposta didática aos moldes de uma Pedagogia do Possível, é
também um encaminhamento para a Pedagogia da Esperança, proposta por Dei
(2013). Uma pedagogia que transforme a aula de língua inglesa em um espaço em
225

que há (ainda) o entendimento de que se pode mover, romper, deslocar. De que é


factível, com ou sem a mediação das TDICs (embora eu ainda acredite que, com o
apoio nessas tecnologias as possibilidades hoje possam ser maximizadas) pensar
uma pedagogia que permita não só participar em (papel que tem sido muito atribuído
às novas tecnologias), mas, também, contestar, criar resistências. Essa é uma
noção que dá um senso de objetividade à noção de democratização da educação:
que o acesso, a inclusão, a participação na construção do conhecimento não sejam
apenas movidas por um olhar orientado por forças centrípetas, centralizadoras, mas,
sim, por desejos, identidades e forças dispersas, simultâneas e colaboradoras que
compõem o todo social, nos diferentes estratos, com suas próprias comunidades e
práticas.
Defendo, dessa forma, uma “pedagogia social”, como sugere Charlot
(2013), em torno do Possível, como propõem Hélot e Laoire (2011) e com bases nas
considerações que oferece Dei (2013), em que a educação em LE seja parte de um
processo em que a educação é vista como um fenômeno inseparavelmente cultural
e social, alinhado a um projeto de sociedade.
Por esse olhar, talvez algumas tecnologias digitais, conquanto sejam
sempre signos ideologicamente marcados, possam assumir um caráter mediador em
processos de agência, autoria discursiva e participação social, auxiliando em
mudanças cronotópicas que nos levem, todos, enquanto sociedade, a vivenciar mais
tempos biográficos e menos tempos de aventura (do pão e circo, de que tanto já
partilhamos...).
Finalmente, encerro este texto (mas nunca o diálogo!) com uma citação
(discurso citado, palavras-alheias que desejo fazer próprias), porque penso seja
essa uma maneira de resumir bem o que hoje, exotopicamente, eu acredito
verdadeiramente me unir ao colega professor com quem construí esta jornada e,
ademais, o que ainda continuará a mover os meus próprios passos, de alguma
forma, daqui em diante:
é, de certa forma, idealismo acreditar que as escolas, sozinhas
possam mudar completamente as sociedades e, mesmo assim,
diariamente há professores que se engajam em atos de
resistência contrariando ideologias dominantes, eles
testemunham as crescentes desigualdades sociais que afetam
as crianças com quem trabalham e às quais eles lutam para
auxiliar na construção de sentidos diante de um mundo que
muda rapidamente. Muitos acreditam que podem fazer a
226

diferença, ainda que seja somente para alguns poucos alunos


(...) (HÉLOT; LAOIRE, 2011, s/p.).

Espero, portanto, que possamos aquele professor e eu, e quem sabe,


você leitor(a), de alguma maneira e em certa medida, continuar encontrando forças
e espaços pra seguir com nossos atos de resistência e fazer alguma diferença.
Desta forma, termino de contar “este causo” para que, ao finalizar esta
jornada, outras possam começar.
227

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ZATTI, V. Autonomia e educação em Immanuel Kant e Paulo Freire. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2007.
234

ANEXOS

ANEXO 1- Vertentes atuais da Pesquisa-ação e Pesquisa-ação Participativa

Box 2.1 Some current schools of PAR

Action Research: Cornell University, USA (Greenwood)


Action Research: Scandinavia (Gustavsen)
Action Research: Austria (Schratz)
Action Learning: Australia (McTaggart)
Participatory Research: International Council for Adult
Education and Ontario Institute for Studies in Education,Toronto (Hall)
Participatory Action Research: Germany (Tillman)
Participatory Action Research: Peru (Salas)
Participatory Action Research: Colombia (Fals-Borda)
Participatory Action Research: India (Rahman)
Participatory Action Research: USA (Park, Whyte)
Participatory Action Research: University of Calgary, Canada (Pyrch)
Feminist Participatory Action Research: USA (Brydon-Miller, Maguire)
Participatory Community Research: USA (Taylor, Jason, Zimmerman)
Community-based Research: India (Tandon)
Community-based Participatory Research: USA (Stoeker)
Tribal Participatory Research: American Indian and Alaskan Native
Communities, USA (Fisher and Ball)
Constructionist Research: University of Texas, USA (Lincoln)
Participatory Learning and Action (PLA): University of Sussex, UK
(Chambers)
Cooperative Research: University of Bath, UK (Reason)
Participatory Learning and Action (PLA): MYRADA, India (Shah)
Critical Systems Theory: University of Hull, UK (Hood)

Source: Brydon-Miller et al. 2003; Fals-Borda 2006; Authors’ own analysis

Fonte: KINDON, S.; PAIN, R.; KESBY, M. Participatory Action Research Approaches
and Methods. Connecting people, participation and place. London/ New York: Routledge,
2007, p. 12.
235

ANEXO 2 - Autorização da realização do projeto (parecer emitido pelo


Conselho de Ética na Pesquisa – CEP
236

ANEXO 3 - Termo de consentimento livre e esclarecido conforme aprovação do


CEP

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

APROPRIAÇÃO DE TECNOLOGIAS DIGITAIS, ENSINO DE LÍNGUA


INGLESA NA ESCOLA PÚBLICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: SOBRE
DISCURSOS e PRÁTICAS

Pesquisadora Responsável: Eliane Fernandes Azzari

Você está sendo convidada a participar como voluntária de um estudo. Este documento,
chamado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, visa assegurar seus direitos e deveres como
participante e é elaborado em duas vias: uma que deverá ficar com você e outra com a pesquisadora.
Por favor, leia com atenção e calma, aproveitando para esclarecer suas dúvidas. Se
houver perguntas antes ou mesmo depois de assiná-lo, você poderá esclarecê-las com a pesquisadora.
Se preferir, pode levar para casa e consultar seus familiares ou outras pessoas antes de decidir
participar. Se você não quiser participar ou retirar sua autorização, a qualquer momento, não haverá
nenhum tipo de penalização ou prejuízo.
Justificativa e objetivos:
Conquanto iminente, a inserção das novas tecnologias no ensino/aprendizagem de línguas
na escola regular ainda pede estudo e pesquisa. Entende-se que seja de importância, para os estudos da
linguagem e seu papel na educação, problematizar os efeitos de sentido produzidos pelos discursos
que circulam em nossa sociedade, em especial, na esfera escolar, reafirmando a relevância do uso das
Tecnologias da Informação e Comunicação Digitais (TICDs) nas práticas didáticas. Dessa forma,
percebe-se que a investigação proposta neste projeto justifica-se por sua atualidade e relevância no
âmbito educacional, especialmente mediante os investimentos financeiros que têm sido feitos por
instâncias governamentais a fim de garantir a presença de tais tecnologias.
O objetivo geral do estudo é investigar em que medida a apropriação das tecnologias
digitais (tais como: telefonia móvel; aplicativos, sites e/ou gêneros digitais disponíveis na rede
mundial de computadores – a WEB; livro didático digital e outras afins) pode (ou não) contribuir para
as práticas de uma professora de inglês em serviço, que atua na Educação Básica pública e quais as
implicações de tal apropriação no fazer cotidiano e na formação dessa professora. Os objetivos
secundários são:
a) Identificar necessidades pertinentes ao contexto de ensino; planejar ações; observar
essas ações em prática e discutir com a participante o que caracteriza a apropriação das TICDs em suas
práticas pedagógicas e quais as implicações de tal processo em seus fazeres diários; b) analisar, a
partir dos discursos por participante e pesquisadora, em que medida essa apropriação tecnológica
contribui (ou não) para as práticas didáticas da docente em seu contexto e; c) refletir acerca das
implicações da apropriação tecnológica, apontando possíveis perspectivas para futuras ações de
formadores de professores pré e em serviço.
Procedimentos:
Participando do estudo você está sendo convidada a fazer parte, ao longo de um semestre
letivo - através de reuniões presenciais e/ou em ambiente virtual fechado e secreto, com duração de até
duas horas uma vez por semana ou quinzenalmente - de uma Pesquisação (aquela em que há
participação e colaboração ativas da pesquisadora). Durante o estudo serão realizadas discussões
presenciais registradas em áudio e/ou discussões à distância, registradas em um grupo fechado e
secreto na rede social Facebook. Essas discussões estabelecerão o diálogo e a troca de experiências
entre você e a pesquisadora, com vistas a: levantar necessidades específicas do seu contexto de
atuação profissional, diante dos objetivos propostos; planejar ações e discutir as ações implantadas.
Você é também convidada a autorizar a pesquisadora a realizar eventuais observações de suas aulas,
que serão gravadas em áudio e também durante as quais a pesquisadora fará registros escritos da
observação, para posterior discussão conjunta.
237

Desconfortos e riscos:
Há ciência de que não existe pesquisa sem riscos. No entanto, adotando postura de
respeito a você participante desta pesquisa, em sua dignidade e autonomia e em reconhecimento de sua
vulnerabilidade,
Rubrica do pesquisador:______________ Rubrica do participante:______________
Página 01 de 02.
238

está assegurada a sua vontade de contribuir e permanecer, ou não, na pesquisa, por meio
de manifestação expressa, livre e esclarecida de modo que, em conformidade com a eticidade da
pesquisa, eventuais riscos ou desconfortos para a sua saúde física e mental será evitados, garantindo a
integridade da sua pessoa enquanto ser humano – permanecendo assim, o sentido de destinação sócio-
humanitária desta pesquisa e sua relevância social.
Benefícios:
O estudo beneficia a sociedade da seguinte maneira: além de fomentar discussões acerca
da relação entre as TICDs e as práticas para o ensino de inglês na escola regular, este estudo poderá
propiciar oportunidades para construção de sentidos e conhecimentos à participante e ainda estimular
futuras propostas e ações em torno da formação de professores de inglês pré e em serviço.
Acompanhamento e assistência:
O acompanhamento e assistência ofertados a você, participante do estudo, acontecerão de
forma processual na medida em que as etapas da Pesquisação forem acontecendo, ao longo dos
semestres letivos (de Fevereiro a Dezembro de 2015). Qualquer dúvida e/ou sugestão poderá acontecer
nesses momentos e também através dos contatos fornecidos pela pesquisadora.
Sigilo e privacidade:
Você terá, ao assinar este termo, a garantia de que sua identidade será mantida em sigilo e
nenhuma informação será dada a outras pessoas que não façam parte da equipe de pesquisadores. Na
divulgação dos resultados desse estudo, seu nome não será citado bem como nenhuma de suas
informações que possam identificar-lhe.
Ressarcimento:
Não há previsão de ressarcimento ou ônus financeiro, pois o estudo desde a sua
concepção não gerará gastos aos participantes envolvidos.
Contato:
Em caso de dúvidas sobre o estudo, você poderá entrar em contato com Eliane Fernandes
Azzari pelo endereço Rua Sérgio Buarque de Holanda, 571, cep 13083859, Campinas, estado de São
Paulo, Brasil, telefone: 019 99609 3466 ou através do e-mail: elianeazzari@gmail.com.
Em caso de denúncias ou reclamações sobre sua participação no estudo, você pode entrar
em contato com a secretaria do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP): Rua: Tessália Vieira de Camargo,
126; CEP 13083-887 Campinas – SP; telefone (19) 3521-8936; fax (19) 3521-7187; e-mail:
cep@fcm.unicamp.br
Consentimento livre e esclarecido:
Após ter sido esclarecida sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar, aceito participar:
Nome da participante:
______________________________________________________________________
Autorizo a gravação em áudio: ( )Sim ( )Não
________________________________________________________ Data:
____/_____/_____.
(Assinatura do participante ou nome e assinatura do responsável)
Responsabilidade do Pesquisador:
Asseguro ter cumprido as exigências da resolução 466/2012 CNS/MS e complementares
na elaboração do protocolo e na obtenção deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Asseguro, também, ter explicado e fornecido uma cópia deste documento ao participante. Informo que
o estudo foi aprovado pelo CEP perante o qual o projeto foi apresentado. Comprometo-me a utilizar o
material e os dados obtidos nesta pesquisa exclusivamente para as finalidades previstas neste
documento ou conforme o consentimento dado pelo participante.
______________________________________________________ Data:
____/_____/______.
(Assinatura do pesquisador)
Página 02 de 02.
239

ANEXO 4 – Quadro com símbolos utilizados para a transcrição de diálogos


gravados em áudio

Principais convenções para transcrição (sistema Gail Jeffferson)

Fonte: GARCEZ, P. M.; LODER, L. L. Reparo iniciado e levado a cabo pelo outro na conversa
cotidiana em português do Brasil. In: DELTA, vol.21, no.2. São Paulo: PUC-SP, jul/dez. 2005.

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