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“Não sem razão é o único jogo que, dês que foi inventado, aproximadamente no ano 600 d.C.

,
é o mais jogado em todas as partes do mundo, cativou a imaginação e o interesse de milhões
de pessoas e tem sido fonte de grandes tristezas e grandes alegrias.”
– Norman Reider
QUE É XADREZ
A historiografia sobre sua origem não é consenso definitivo (assim como a do próprio
homem), mas os motivos (o para que), isso muitos dos que praticam tem suas ideias! Uma
nomenclatura chinesa diz muito sobre ele: Choc-chu-hong-qui, que significa “o jogo da ciência
da guerra”. Seu primeiro nome na Itália evoca a vivaz capacidade do xadrez de aflorar fortes
emoções: scacci alla rabiosa, que significa “xadrez de estilo furioso”. Sabe-se que ele não
nasceu como é atualmente, suas alterações formais seguem, de certo modo, um paralelismo com
os da vida bélica e política (embora seu caráter régio não tenha se perdido).
Vemos que sua essência é a guerra (a luta, como cunhou o filósofo Emmanuel Lasker).
Xadrez é, claramente um jogo de guerra. Percebemos isso pela simples descrição objetiva
imediata: nos mostra dois exércitos opostos e constituídos por hierarquias reais e seus soldados
reunidos.
E está totalmente compatível com a axiomática bélica da ação humana:
 Cada lado age;
 Cada ação busca um objetivo;
 Isso revela que o agente valorizou, com sua ação, esse objetivo relativamente mais que
qualquer outro que ele tenha considerado no momento que começou a agir
 Para atingir seu objetivo mais valorizado, ele deve interferir ou decidir não interferir (o
famoso lance de espera) – que, logicamente, também é uma interferência proposital –
algum momento antes a fim de produzir um resultado posterior
 Essa interferência implica em alguns meios escassos – no mínimo a posição presente, e
o tempo (turno) consumido pela ação;
 Como uma consequência de ter escolhido e dado preferência a um objetivo ao invés de
outro – de não ser capaz de realizar todos os objetivos simultaneamente – toda e
qualquer ação implica em custos, i.e., abrir mão do valor agregado ao objetivo
alternativo mais valorizado que não pode ser realizado ou cuja realização deve ser
adiada, porque os meios necessários para alcançá-lo estão comprometidos na realização
de outro objetivo ainda mais valorizado;
 No seu ponto de partida, todo objetivo de uma ação deve ser considerado ter mais valor
para o jogador do que seus custos e ser apto a proporcionar um lucro, i.e., um resultado
cujo valor é maior do que o valor da oportunidade antecedente; e toda ação também
invariavelmente corre o risco de resultar em um prejuízo se um agente descobrir, em
retrospecto, que ao contrário de suas expectativas o resultado que foi alcançado na
prática, na verdade possui um valor menor do que o valor que a alternativa abdicada
teria proporcionado.
A soma desses objetivos é dita estratégia, e ela tem por finalidade derrotar o
contendente. Para Lasker (que além de contribuir filosoficamente para o xadrez foi o segundo
Campeão Mundial) o xadrez é um microcosmos intelectual da luta de toda vida, científico e
artístico.
Para Garry Kasparov, 13° Campeão Mundial, “As etapas do desenvolvimento
enxadrístico são análogas ao caminho que cada enxadrística percorre desde principiante às
categorias superiores1”. Indo além, percebemos como a biografia de um indivíduo (indiferente
de tempo, geografia e sociedade) encerra em si a biografia de sua espécie. Isso é bonito e nos
dá uma visão da profundidade que tem o xadrez.
Porém, xadrez é mais que uma luta. Embora seja um sistema puramente feito pelo
homem, é uma ciência, com princípios, dados registrados, hipóteses passíveis de prova
definitiva: derrota ou vitória (sofisma ou verdade). Pode ser visto, se quiseres, como pura
técnica: um conjunto de conhecimentos e princípios aplicados com fronteiras que sempre são
alargadas e crescente refinamento. Assim, xadrez pode ser analogado a um sistema finito num
universo físico. Portanto, com o objetivo de dominá-lo, basta descobrir suas regras como um
químico descobre a dinâmica por trás da matéria. Quando alguém reproduz uma partida de um
sutil técnico, tem uma sensação de jus e a impressão de que o mestre penetrou na realidade
muito profundamente, no valor das peças de xadrez.

Ademais, e isto é muito importante, xadrez é uma arte criadora. Encerra em si esse
elemento que, em minha opinião, deleita a natureza humana além de uma luta: a Beleza. Existe
a beleza de uma sutil realização técnica, comparável a uma boa tocata Réquiem de Mozart. E
existe a beleza produzida pela desenfreada imaginação do mestre criador que ignora as
restrições das regras clássicas explodindo-as como o romantismo de um Tchaikovsky. É
lastimável que, diferente do que acontece com a música ou pintura, o xadrez requeira, do seu

1
G. Kasparov, My Great Predecessors Vol. 1, Londres, 2003
apreciador, um período de instrução correspondente ao nível de beleza que esteja se buscando
captar.
O xadrez reflete algo mais que uma guerra. Simboliza também um mundo de aventuras
de reis e rainhas e de esforçados cavaleiros. A fábula das moedas de outro que choveram sobre
o GM romântico americano Marshall por seu famoso sacrifício de dama contra Levitsky,
recorda o sonho de El Dourado, a terra de ouro avistada pelos Conquistadores. Caíssa, a nume
do xadrez, é filha não apenas de Ares, mas também de Afrodite.
O xadrez, então, significa muitas coisas para os homens, alguns dos quais dedicaram
sua atenção a ele pela vida inteira.
“Do Xadrez se tem dito que a vida não é suficientemente longa para ele, mas isso é culpa da
vida, não do Xadrez” – W. E. Napier
Semelhante jogo, e semelhante devoção merecem nossa atenção, porque vemos no
xadrez o funcionamento da mente e o coração humanos. Em que consiste o mistério dessa
qualidade especial, suficiente para haver fornecido um meio criador durante toda uma vida de
um gênio?
Devemos prestar crédito aos teóricos psicanalistas que indicaram como o “jogo dos
reis” oferece um meio para a alta expressão de impulsos humanos básicos. Segundo Reider: “É
como se no ápice da partida o jogador experimentasse uma espécie de união mística com reis e
rainhas, com sua aleatória vida familiar, e, ao participar de sua régia riqueza, reconquistasse
parte de sua omnipotência perdida.”
Reuben Fine abandonou o pináculo do mundo enxadrístico para se converter em
psicanalista. Sua famosa monografia2 alude, entre outras coisas, ao simbolismo sexual que há
no xadrez. Mas gostaria de ir além destas opiniões para apresentar uma teoria de como a
sexualidade, em seu sentido mais amplo, se manifesta no pensamento enxadrístico. Para fazer
isso, terei de remontar-me a uns vinte e cinco séculos.
Os antigos chineses concebiam na natureza dos princípios complementares que em
ação alternativa produz “tudo o que chega a ser”: o yin e o yang. O yin feminino tem
passividade, profundidade, obscuridade, frieza. O yang masculino tem atividade, altura, luz e
calor. Que isso tem de ver com xadrez?
No pensamento enxadrístico dos grandes mestres, tal como é expressado em seu estilo
de jogo, há também um dualismo entre os princípios masculino e feminino (que existe dentro
de cada indivíduo, homem ou mulher).
Quando o polo masculino domina completamente, o pensamento flui até a análise
penetrante, o raciocínio científico e a habilidade técnica. No polo feminino, há em vez disso os
elementos de fé, intuição, a criadora maestria artística cujo caminho estético está, às vezes, em
desafio com a lógica. A tendência criadora se rebela contra o afã de reduzir (minha eleição desta
última palavra revela meu próprio gosto) o xadrez a um exercício científico genérico, técnico,
mais que uma individual busca artística.
No passado a mencionada polaridade esteve nitidamente exemplificada por Tarrasch
contra Chigorin. As partidas do Dr. Tarrasch eram formosos exemplos de jogo científico; suas
jogadas eram previsíveis se conhecesse as regras, os postulados defendidos por ele; e da forma
como ele mesmo explica em suas obras deixada a nós, são instrutivas até hoje. Mas as partidas

2
R. Fine, The Psychology of the Chess Player, Dover, 1966.
de Chigorin podem ser desfrutadas sempre como uma experiência criadora e original. A
preferência é uma questão de gosto, comparável a eleição que alguém faça diante de uma flor:
escrever um tratado botânico ou um poema? Em nenhum grande jogar de hoje domina uma
tendência com exclusão de sua oposta, mas esta polaridade básica tem suas concreções
modernas.
Do entrecruzamento de ambas se produzem as obras do xadrez moderno: “tudo o que
chega a ser”.
Mikhail Botvinnik disse: “Xadrez é a arte que expressão a ciência da lógica”. Em
outras versões está como: “Xadrez é a materialização da Lógica”. Bom, percebemos que xadrez
tem em sua essência muitas facetas, mas todas têm em comum a presença da Lógica. Nossa
mente é atraída por padrões e lógica, não atoa as áreas do conhecimento humano que mais usam
da lógica são as mais desenvolvidas. Mas em especial no xadrez é mais cativante ainda! Pois é
onde nosso intelecto pode medir forças, usando da lógica, e realizar uma guerra de ideias contra
outrem. Isso faz toda a diferença. Todas as outras artes usam da lógica (pelo menos as que
fazem parte de tradições memoráveis), mas ao tocarmos, e.g., não nos pomos a prova contra
ninguém no ato mesmo de usar a lógica da sinfonia.
E o xadrez possibilita o que nosso íntimo quer, batalhar ideias contra outrem nas
mesmas condições e manifestar nossa engenhosidade. Não usando da força ou poder bélico,
mas de uma lógica robusta e implacável. Sim, o xadrez tem sua mecânica interna que não
necessariamente é a mesma dos silogismos presentes nos Analíticos e Tópica de Aristóteles,
mas sua mecânica usa, a seu modo, da lógica pura, às vezes até de temas geométricos e
algébricos, e a possibilidade de isso ser uma batalha a dá uma elegância e beleza artística
inigualável! Xadrez é uma guerra de ideias!

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