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A FRUTEIRA

Vermeer pintou Leitora à janela (ver encarte) mais ou menos na mesma época em
que pintou Oficial e moça sorridente. Vemos a mesma sala no andar de cima, a
mesma mesa, a mesma cadeira, a mesma mulher usando até o mesmo vestido,
novamente a esposa Catharina Bolnes, ou assim creio. Embora a ação dos dois
quadros seja diferente, ambos narram mais ou menos a mesma história: a corte
entre um homem e uma mulher. A história é visível em Oficial e moça sorridente,
no qual vemos a conquista em andamento. Em Leitora à janela, por sua vez,
vemos apenas a mulher. O homem tem sua presença no quadro, mas só in
absentia: na carta que a mulher lê. Ele está longe, talvez a meio mundo de
distância. Ela lê à janela por causa da luz, mas dessa vez a janela não está apenas
entreaberta. Está escancarada. O homem está lá fora, em algum lugar, e só pode
lhe falar por cartas. Sua ausência física induz Vermeer a construir um clima
diferente. O brilho da conversa leve foi substituído pela tensão internalizada,
quando a moça se concentra em palavras que nós, espectadores, não temos
permissão de ler.

Se os dois quadros dividem espaço e tema, diferem nos objetos que mostram.
Leitora à janela não tem elementos em excesso, mas há mais objetos no quadro,
que participam mais da função de criar atividade visual. Para equilibrar a
movimentação desses objetos, Vermeer deixou a parede vazia. Vazia, mas longe de
ser um vácuo; com certeza, essa é uma das paredes vazias mais ricamente
texturizadas da arte ocidental. A análise radiográfica revela que Vermeer
pendurara naquela parede um quadro com um cupido (ele o usou mais tarde em
Senhora diante do virginal), para que o leitor soubesse que ela lê uma carta de
amor, mas depois decidiu-se contra uma dica simbólica tão óbvia e apagou-o.
Para dar à sala a sensação de profundidade e volume, usou a técnica
convencional das cortinas, uma pendendo sobre a janela aberta, a outra puxada
de lado em primeiro plano, como se aberta para revelar o quadro (era prática
costumeira pendurar cortinas sobre os quadros para protegê-los da luz e de
outros danos). A mesa está coberta, desta vez com um tapete turco ricamente
colorido - esses tapetes eram valiosos demais para pôr no chão, como fazemos
hoje -, amontoado de um lado para dar vitalidade à cena. E ali, inclinado sobre o
tapete, no meio da mesa, está um objeto que, como o chapéu do oficial, aponta
para o mundo mais vasto, para onde talvez tenha ido o amante ou marido: um
prato de porcelana sob um monte de frutas.

Nossos olhos vão, primeiro, para a moça, mas o prato competiu pela atenção dos
contemporâneos de Vermeer. Era um prazer admirar fruteiras como essa, mas
elas ainda eram raras e caras, e poucos podiam comprá-las. Uma ou duas
décadas antes, os pratos chineses raramente apareciam em quadros holandeses;
avancemos uma década ou duas e estarão por toda parte. A década de 1650 foi
exatamente o momento em que a porcelana chinesa ocupou seu lugar na arte
holandesa, assim como na vida holandesa. De fato, esses pratos fizeram parte do
surgimento de um gênero de pintura recentemente popular, as naturezas-mortas,
que os artistas holandeses do século XVII transformaram numa forma de arte. O
artista escolhia objetos de tipo parecido (frutas) ou que tivessem o mesmo tema
plausível (o apodrecimento, sinal de vaidade) e arrumava-os na mesa de um jeito
visualmente agradável. Uma grande fruteira chinesa seria exatamente o tipo de
coisa que serviria para unificar objetos menores, como frutas, e juntá-los num
monte dinâmico. O desafio da natureza-morta era tornar a cena tão real que
enganasse os olhos e levasse a pensar que não era um quadro; o artista esperto
talvez pintasse até uma mosca na cena, como se a mosca também tivesse se
enganado. Criar a realidade em trompe l'oeil era exatamente o desafio com que
Vermeer brincou durante toda a sua vida de pintor.

A fruteira na mesa diante de Catharina está ali para deliciar os olhos, mas
Vermeer usa a natureza-morta de frutas esparramadas para transmitir o
derramar de emoções na mente dela ao ler a carta do amante distante - talvez até
nas distantes Índias Orientais holandesas - e esforçar-se para controlar os
pensamentos. Sua postura e seus modos sugerem uma pessoa calma, mas nem
ela consegue manter firmes as ideias. Do mesmo modo, as frutas se derramam da
fruteira diante dela. É claro que é tudo armado e encenado. O amante é fictício, a
folha de papel que a modelo segura podia não ter nada escrito, e o tapete, o prato
e a cortina foram todos habilidosamente posicionados. Mas o mundo é real, e é
atrás disso que estamos. Essa fruteira, muito adequada num quadro pintado na
cidade que criou a cerâmica de Delft, será a porta pela qual sairemos do ateliê de
Vermeer e seguiremos pelo corredor das rotas comerciais que vão de Delft à
China.

DEZESSEIS GRAUS abaixo do Equador, a 200 quilômetros do litoral da África,


uma ilha vulcânica rompe a superfície totalmente vazia do Atlântico Sul. A
Companhia das Índias Orientais britânica incorporou a ilha de Santa Helena ao
Império Britânico no século XVIII. Construíram Jamestown na baía que era
conhecida como Church Bay ("baía da Igreja", hoje baía Jamestown), a sotavento
da ilha. A principal razão da fama da ilha é ser o lugar para onde os britânicos
desterraram Napoleão depois de derrotá-lo na Batalha de Waterloo, em 1815, na
cena final do longo drama que levou à ascendência da Grã-Bretanha como maior
potência mundial do século XIX.

Antes que os ingleses ocupassem Santa Helena, a ilha servia de escala para os
navios de todos os países que faziam a longa viagem de volta da Ásia à Europa.
Por estar diretamente no rumo dos ventos alísios de sudeste que levavam os
navios para o norte depois do cabo da Boa Esperança, era um lugar de refúgio,
onde embarcações e tripulações podiam se recuperar das doenças e tempestades
que assolavam as viagens marítimas; um porto seguro para descansar, consertar
avarias e abastecer-se de água doce antes do último trecho até a casa. A
navegação moderna não precisa dessas ilhas e hoje passa ao largo de Santa
Helena, deixando-a, em sua lonjura oceânica, para só turistas visitarem.

A única embarcação na baía da Igreja em plena manhã do primeiro dia de junho


de 1613 era inglesa, um pequeno navio da Companhia das Índias Orientais
chamado Pearle. O Pearle chegara à baía da Igreja duas semanas antes, junto com
um comboio de seis navios que voltavam da Ásia para Londres. Havia mais um
navio inglês no comboio, o Solomon, mas os outros quatro navegavam os mares
para a Companhia das Índias Orientais holandesa. Muito embora os holandeses e
os ingleses entrassem em guerra várias vezes no século XVII, os comandantes de
ambos os lados preferiam pôr de lado as divergências e navegar juntos para se
proteger dos verdadeiros concorrentes, os espanhóis e portugueses. Os seis navios
passaram duas semanas em Santa Helena, descansando e recuperando-se para o
último trecho da viagem de volta à Europa. Mas quando partiram na madrugada
de 1° de junho deixaram o Pearle para trás. Metade da tripulação de 52 homens
do Pearle estava doente quando o navio chegou a Santa Helena, e, em sua
maioria, os homens ainda estavam fracos demais para trabalhar. Naquela manhã,
os barris d'água do Pearle ainda estavam sendo enchidos e embarcados. John
Tatton, o comandante, não teve escolha senão retardar a partida até a manhã
seguinte, na esperança de alcançar o restante da frota.
Tatton e a tripulação estavam ocupados preparando o Pearle depois que os outros
partiram quando, ainda pela manhã, dois grandes navios portugueses foram
avistados contornando a ponta sul da baía. Eram carracas, os grandes navios
armados de transporte que os portugueses construíam para levar mercadorias
pelos oceanos. Tinham feito a viagem inaugural a Goa, pequena colônia de
Portugal no litoral oeste da Índia, e estavam no caminho de volta a Lisboa com um
grande carregamento de pimenta. Tatton entendeu que o Pearle não era páreo
para essas duas grandes embarcações, os maiores navios de madeira já fabricados
pelos europeus. O melhor ato de bravura seria sair do alcance de seus canhões, e
ele içou as velas e fugiu. A saída apressada fez com que abandonasse na ilha os
barris d'água e a metade adoecida da tripulação. Mas Tatton não pretendia
apenas levantar âncoras e correr. Seu plano era outro. Ele seguiu em desabalada
perseguição do resto do comboio anglo-holandês, na esperança de convencer Jan
Derickzson Lam, o almirante holandês, a dar meia-volta com a frota e retornar
para capturar as duas carracas na baía da Igreja.

O Pearle alcançou o Wapen van Amsterdam, nau capitânia de Lam, depois do


anoitecer. Lam "ficou muito contente e fez sinais para que a frota seguisse",
contou Tatton depois. Entretanto, nem todos os navios holandeses obedeceram à
ordem de dar meia-volta. O Bantam e o Witte Leeuw (Leão Branco) viraram e foram
com o comandante, mas o Vlissingen deixou de avisar se recebera a mensagem,
assim como o outro navio inglês, o Solomon. Lam não desanimou. Quatro contra
dois talvez não fosse tão esmagador quanto seis contra dois, mas sua frota tinha a
vantagem da surpresa.

Depois de um dia e meio de dura navegação contra o vento, o quarteto anglo-


holandês chegou de volta a Santa Helena. Lam e Tatton acertaram ao contar com
a surpresa. Jeronymo de Almeida, comandante da frota portuguesa, devia ter visto
o Pearle fugir, mas tirara o navio inglês da cabeça e não se preparara para o seu
retorno. A nau capitânia Nossa Senhora de Nazaré estava ancorada com o flanco
exposto ao mar aberto. Ao lado, estava ancorado o Nossa Senhora do Monte do
Carmo, na verdade, preso pelo navio maior.

Lam atacou antes que os portugueses pudessem reposicionar as carracas para


melhor se defender. Mandou o Bantam e o Leão Branco para a proa e a popa do
Nazaré, em ângulos que tornavam quase impossível aos portugueses usar o
canhão contra eles, e depois levou o Wapen diretamente contra o navio. Mais
tarde, Tatton escreveu que Lam deveria ter tentado negociar a rendição
portuguesa, mas parece que o holandês só queria a captura. "Cobiçoso demais",
foi a avaliação de Tatton.

O ataque do Bantam à proa do Nazaré "esfriou bastante a coragem de Portugal",


de acordo com Tatton. Então Roeloff Sijmonz Blom, comandante do Leão Branco,
atirou na popa do Nazaré, perfurando-o acima da linha-d'água. Blom levou o Leão
Branco até mais perto para cortar os cabos da âncora da carraca, na esperança de
obrigá-la a seguir para a praia. A tripulação do Carmo, impotente atrás do Nazaré,
ainda assim conseguiu passar um cabo substituto para o outro navio e prendê-lo
de novo. Preparando-se para abordar a nau capitânia, Blom deixou o Leão Branco
paralelo ao Nazaré e ao Carmo. Quando o fez, os artilheiros a estibordo trocaram
fogo com o Carmo.

As opiniões divergem a respeito exatamente do que aconteceu depois. Alguns


disseram que os portugueses acertaram um tiro direto no paiol de pólvora do Leão
Branco. Outros insistiram que um canhão defeituoso no convés inferior do Leão
Branco explodiu. Seja qual for a causa, a explosão destruiu a popa do navio. O
Leão Branco afundou em minutos. Tatton acreditava que Blom, a tripulação de 49
homens e mais dois passageiros ingleses a bordo tivessem morrido na explosão ou
se afogado na baía, embora na verdade alguns tenham sido salvos e levados de
volta a Lisboa para repatriação.

Depois de perder um navio inteiro com carga e tripulação, o almirante Lam não
podia se dar ao luxo de arriscar mais nada. Ordenou a retirada dos outros navios.
Tatton conseguiu levar o Pearle até suficientemente perto da margem norte da
baía para, antes de ir embora, recolher 11 homens da tripulação abandonada, que
tinham se reunido ali na esperança do resgate. Os infortúnios dessa viagem só
terminariam no desfecho dos acontecimentos. Quando passou pelo canal de Texel
a caminho do Zuider Zee (hoje Ijsselmeer), o mar interior de Amsterdã, o Bantam
encalhou e se rompeu. Foi péssima sorte para Lam. O número de navios da VOC
que afundaram nesse canal pode ser contado nos dedos de uma só mão, e um dos
dedos foi esse. (A frota portuguesa teve resultado um pouco melhor. O almirante
Almeida conseguiu levar ambos os navios de volta a Lisboa, mas o Carmo ficou
tão avariado que foi retirado de serviço.)

Quando o Leão Branco afundou, em 33 metros d'água, um grande carregamento


foi com ele para o fundo. O manifesto do navio ainda existe nos arquivos
holandeses e nele é possível verificar exatamente o que se perdeu. O documento
lista 15 mil sacos de pimentai, 312 quilos de cravo, 77 quilos de noz-moscada e
mais 1.317 diamantes com o peso total de 480,5 quilates. O manifesto foi redigido
no cais de Bantam, porto comercial da VOC na extremidade mais ocidental de
Java. Dada a mania de exatidão nos detalhes e de contabilidade minuciosa da
VOC, não há razão para suspeitar de que houvesse no porão algo que não tivesse
sido registrado antes nos livros da companhia. É por isso que os arqueólogos
marinhos que mergulharam para resgatar os restos do Leão Branco em 1976
ficaram surpresos com o que acharam. Sabiam que as especiarias teriam
apodrecido há muito tempo e que os diamantes estariam perdidos nas areias do
porto. Não esperavam encontrar carga. Pretendiam recuperar os objetos de metal
do navio, principalmente o canhão. Ainda assim, ali, na lama, sob o casco
avariado do navio, estavam espalhadas milhares de peças da mesma coisa que,
em 1613, era sinônimo da China: porcelana.

Será que a porcelana fora largada em cima do navio naufragado por outros navios
que aliviaram a carga enquanto ancorados? É possível, mas havia porcelana
demais num lugar só; e, quando as peças foram levadas à superfície, o estilo e as
datas indicavam que tinham sido produzidas durante o reinado do imperador
Wanli, que terminou em 1620. Todos os indícios, exceto o manifesto do navio,
indicam que essa carga era do Leão Branco. O que a explosão destruiu,
paradoxalmente se salvou. Se os fardos de porcelana cuidadosamente embalada
tivessem chegado às docas de Amsterdã, como deveriam, teriam sido vendidos e
revendidos, quebrados e rachados e, finalmente, jogados fora. Esse é o destino
comum de quase toda a porcelana que chegou aos Países Baixos no século XVII.
Há peças espalhadas pelo mundo, em museus e coleções particulares, que
sobrevivem como restos individuais isolados das circunstâncias que os levaram à
Europa, separados dos carregamentos dos quais fizeram parte. Sem querer, a
explosão do Leão Branco salvou desse destino esse carregamento específico. É
verdade que a maioria das peças recuperadas está quebrada, mas o irônico é que
sobreviveram mais do que seria possível nos quatro séculos entre 1613 e o
presente. Podem estar danificadas, mas ainda estão juntas (hoje no Rijksmuseum,
em Amsterdã), e isso significa que podem nos mostrar como era um carregamento
de porcelana no início do século XVII.

As PRIMEIRAS PEÇAS DE PORCELANA CHINESA que chegaram à Europa


espantaram todos os que as viram ou manusearam. Quando instados a descrever
o material de que eram feitas, os europeus só conseguiam pensar em cristal. A
superfície vitrificada era dura e lustrosa, os desenhos sob a superfície, bem-
definidos, as cores, vivas e brilhantes. O material das peças mais delicadas era tão
fino que se podia ver a sombra da mão do outro lado quando se erguia um prato
ou xícara contra a luz.

O estilo que mais chamou a atenção dos europeus foi o azul e branco: fina
porcelana branca pintada com azul de cobalto e revestida com um esmalte
perfeitamente transparente. Esse estilo, na verdade, foi uma evolução tardia na
história da cerâmica chinesa. Os ceramistas de Jingdezhen, cidade oleira na
província interiorana de Jiangxi, que atendia regularmente às encomendas
imperiais, só desenvolveram a tecnologia necessária para queimar a verdadeira
porcelana no século XIV. A produção de porcelana exige elevar a temperatura do
forno a até 1.300 graus centígrados, suficientemente alta para transformar a
mistura do esmalte numa transparência vítrea e fundi-la ao corpo da peça. Presos
permanentemente entre os dois, ficavam os desenhos e padronagens azuis que
tanto atraíam o olhar. A produção europeia mais próxima era a faiança, cerâmica
queimada à temperatura de 900 graus centígrados e coberta com um fino esmalte
de óxido. A faiança tem a aparência superficial da porcelana, mas faltam-lhe a
finura e a translucidez. Os europeus aprenderam a técnica no século XV com
ceramistas islâmicos, que a desenvolveram para fabricar substitutos mais baratos
das importações que pudessem competir com a louça chinesa. Só em 1708 um
alquimista alemão conseguiu reproduzir a técnica de fabricar a verdadeira
porcelana numa cidade perto de Dresden, chamada Meissen, palavra que logo
também virou sinônimo de porcelana fina.

Os compradores europeus ficaram maravilhados com o efeito do azul sobre o


branco. Embora pensemos nas linhas e desenhos em azul-cobalto escuro sobre o
fundo branco puro como a quintessência do que é chinês, essa é uma estética
emprestada, ou pelo menos adaptada. Na época em que os ceramistas chineses
começaram a produzir a verdadeira porcelana, a China estava sob domínio
mongol. Os mongóis também controlavam a Ásia Central e permitiam que as
mercadorias se movimentassem por terra de uma ponta a outra do seu império
continental. Havia muito tempo, o gosto persa pendia para a cerâmica chinesa, ali
disponível desde o século VIII. Incapazes de igualar a brancura da cerâmica
chinesa, seus ceramistas desenvolveram uma técnica para mascarar a argila
cinzenta com um esmalte branco opaco que parecia chinês. Sobre essa base
branca, pintavam desenhos decorativos azuis, usando o cobalto local para obter a
cor. O efeito era admirável. Depois que a Pérsia e a China ficaram ligadas de
forma mais direta pelo domínio mongol no século XIII, os ceramistas chineses
tiveram muito mais acesso ao mercado persa. Sempre sensíveis às exigências do
mercado, ajustaram a aparência dos seus produtos para atender o gosto persa.
Parte dessa adaptação foi incorporar ao projeto das peças a ornamentação com
cobalto. Como o cobalto chinês é mais claro que o persa, os ceramistas de
Jingdezhen começaram a importar cobalto persa para produzir uma cor que, na
opinião deles, atrairia os compradores persas.

A porcelana azul e branca surgiu desse longo processo de inovação. Vendia bem
na Pérsia, em parte devido à proibição do Corão de comer em pratos de ouro ou
prata. Os ricos queriam servir os hóspedes com louça cara e, se estavam proibidos
de apresentar a comida em metais preciosos, precisavam de algo igualmente
bonito e caro, mas que não existisse na época do Corão. A porcelana de
Jingdezhen cumpriu a tarefa. Os compradores mongóis e chineses também
ficaram encantados com a aparência dessa porcelana. O que reconhecemos hoje
como "porcelana chinesa" nasceu desse cruzamento intercultural aleatório de
fatores materiais e estéticos, que transformou a produção de cerâmica no mundo
todo. Os ceramistas sírios da corte de Tamerlão, por exemplo, começaram a fazer
seus produtos parecerem chineses no início do século XV. Quando o comércio
global de cerâmica se expandiu para o México, o Oriente Médio e a península
Ibérica, no século XVI, e para a Inglaterra e os Países Baixos, no século XVII, os
ceramistas de todos esses lugares seguiram a mesma trilha. Todos tentaram,
embora durante muito tempo também sem sucesso, imitar a aparência e a
delicadeza do azul e branco chinês. No século XVII, as bancas de cerâmica dos
bazares fora da China estavam cheias de imitações de segunda linha que sequer
se aproximavam do produto original.

Os leitores holandeses ouviram falar de porcelana chinesa em 1596 por meio de


Jan Huygen van Linschoten, holandês que foi à Índia a serviço dos portugueses.
Itinerário, seu livro de sucesso, inspirou a geração seguinte de comerciantes
mundiais holandeses. Van Linschoten viu a porcelana chinesa nos mercados de
Goa. Embora nunca tenha ido à China, conseguiu recolher informações
razoavelmente sólidas sobre a mercadoria. "Ninguém acreditará caso se fale das
porcelanas lá feitas" - ele fala da China com base no que descobriu em Goa - "nem
daquelas que são exportadas todo ano para a Índia, Portugal e Nova Espanha e
outros lugares! "Van Linschoten soube que a porcelana era produzida "no interior"
- onde ficava Jingdezhen - e que somente o material de segunda linha era
exportado. As melhores peças, "tão maravilhosas que nenhum vidro cristalino se
compara a elas", eram mantidas no país, para a corte.

Os comerciantes indianos levavam porcelana chinesa para o subcontinente desde


o século XV, pelo menos. Eles a adquiriam de mercadores chineses no sudeste da
Ásia, que a traziam de portos ao longo do litoral sudeste da China, para onde, por
sua vez, os negociantes de cerâmica a levavam desde o interior. De repente, o
desenvolvimento da rota comercial marítima em torno da África abriu um mercado
na Europa. Os portugueses foram os primeiros europeus a adquirir porcelana
chinesa em Goa, e não demorou para ampliarem suas rotas comerciais até o sul
da China, onde podiam negociar diretamente com os atacadistas chineses. Era
nessa rota que os holandeses queriam entrar, e logo conseguiram. Mas a primeira
grande remessa de porcelana chinesa para Amsterdã não foi um empreendimento
holandês. Foi resultante da rivalidade luso-holandesa em alto-mar, ao largo de
Santa Helena, aliás. Onze anos antes do naufrágio do Leão Branco, uma frota de
navios holandeses capturou ali o português San Iago, em 1602. O navio foi
capturado sem dificuldade e levado a Amsterdã com toda a carga. No cais daquela
cidade surgiu o primeiro grande tesouro de porcelana a chegar à Holanda, e
compradores de toda a Europa brigaram por uma peça. Os holandeses
chamaram-na de kraakporselein, "porcelana de carraca", em homenagem à
carraca portuguesa da qual fora tirada.

O próximo grande carregamento de porcelana a chegar aos Países Baixos veio no


ano seguinte, da mesma maneira. O Santa Catarina foi capturado ao largo de
Johore, no estreito de Málaca, na rota marítima que liga o oceano Índico ao mar
da China Meridional. Foi a captura mais famosa do novo século. O Santa Catarina
levava 100 mil peças de porcelana, num peso total de mais de 50 toneladas.
(Havia também 1.200 fardos de seda chinesa, que venderam bem porque a
produção de seda da Itália caíra naquele ano.) Compradores enviados pelas
cabeças coroadas do norte da Europa correram para Amsterdã, com ordem de
pagar o preço que fosse pedido.

A captura do San Iago e do Santa Catarina e o naufrágio do Leão Branco foram


conflitos da grande guerra que os holandeses travavam, não tanto contra os
portugueses, mas contra os espanhóis. Entre 1580 e 1640, quando as coroas se
uniram, os portugueses foram sócios minoritários dos espanhóis, e assim, aos
olhos dos holandeses, transformaram-se também em alvos legítimos de ataques.
Mas a Espanha era o arqui-inimigo: era ela o Estado que ocupara os Países Baixos
no século XVI e empregara violência espetacular para sufocar o movimento de
independência holandesa. Ainda que a trégua assinada em 1609 entre a Espanha
e as Províncias Unidas desse fim, por algum tempo, às hostilidades diretas nos
Países Baixos, fora da Europa a luta entre o reino espanhol e a república
holandesa continuou a ser travada.

Entretanto, a rivalidade em alto-mar - os espanhóis, com certa razão, chamavam-


na de "pirataria" - não estava ligada apenas à luta holandesa pela independência
em seu país. Tinha a ver com a redefinição da ordem global. Suas raízes têm de
ser buscadas em 1493, o ano seguinte à primeira viagem de Colombo às Índias
Ocidentais. À luz das novas terras descobertas do outro lado do Atlântico, o papa
decretou, naquele mesmo ano, que a Espanha gozaria de jurisdição exclusiva
sobre todas as terras recém-descobertas que ficassem a oeste de um meridiano
norte-sul traçado a 100 léguas das ilhas de Cabo Verde, ao largo do Marrocos, e
que Portugal ficaria com todas as terras a leste dessa linha. Todos os outros
Estados europeus foram excluídos do direito ao comércio ou à posse nas regiões
recém-descobertas. No ano seguinte, Espanha e Portugal alteraram os termos da
bula papal de 1493 quando assinaram o Tratado de Tordesilhas. Esse acordo
moveu a linha 270 léguas mais para oeste, possivelmente porque os portugueses
sabiam, ou pelo menos desconfiavam, que um pedaço da América do Sul poderia
projetar-se para leste dessa linha (estavam certos: era o Brasil).

O Tratado de Tordesilhas nada dizia sobre onde cairia a linha de demarcação do


outro lado do globo, já que nenhum dos lados do tratado tinha chegado lá. Assim,
Portugal e Espanha partiram rapidamente em direções opostas na corrida em
volta do mundo, Portugal pelo oceano Índico, a Espanha pelo Pacífico. Sabiam que
a China estava lá, do outro lado do globo, e quem conseguisse marcar presença
naquela região do mundo poderia ganhar o maior de todos os prêmios. O governo
chinês não se entusiasmou com a ideia de deixar algum desses Estados firmar pé
em seu solo. Os estrangeiros só tinham permissão de ficar na China como
visitantes temporários que integrassem embaixadas diplomáticas. O conceito de
embaixada diplomática era suficientemente elástico e assim entendido por ambos
os lados, de modo que as embaixadas dos Estados vizinhos que iam prestar
"tributo" ao trono chinês funcionavam de fato como delegações comerciais. Os
embaixadores tinham permissão de comerciar, desde que o volume se mantivesse
dentro de limites modestos. Os comerciantes tinham de ser embaixadores, e era
isso o que os portugueses queriam ser. Chegaram à China antes dos espanhóis e
fizeram o máximo esforço para criar canais oficiais de comunicação com a corte
chinesa. Constantemente rechaçados, tiveram de improvisar com o comércio
ilegal, ao abrigo das ilhas mais distantes. Finalmente, um acordo não oficial, em
meados do século XVI, deu-lhes uma base numa estreita península do litoral sul
conhecida como Macau, e lá se instalaram, criando uma base colonial minúscula
para controlar o comércio com a China e o Japão.

Na virada do século XVII, os navios da VOC também estavam no mar da China


Meridional, sondando o litoral ao norte de Macau até a província de Fujian, em
busca de um lugar onde pudessem estabelecer o comércio com a China. Como já
tinha um acordo comercial em Macau com um grupo de "francs", como eram
chamados os europeus naquela época (a palavra vinha do árabe), o governo chinês
não estava interessado em fazer concessões a outro grupo. Mas os mercadores
chineses privados estavam ansiosos para negociar com todos os francs, e algumas
autoridades se dispunham a ser compreensivas se o preço fosse bom. Dentre
essas autoridades chinesas, o mais famoso era Gao Cai, eunuco imperial
encarregado de cobrar os impostos alfandegários marítimos. Como a receita da
alfândega ia diretamente para a conta da família imperial e não passava pelo
ministro das finanças, o eunuco Gao torcia as regras da burocracia em benefício
de seu superior. Em 1604, ele criou um entreposto comercial particular a
sotavento de uma ilha perto do litoral, onde seus agentes podiam comerciar com
os holandeses em troca de belos presentes para ele e para o imperador. O
governador da província logo soube do esquema e mandou a marinha interromper
o contrabando do eunucoii.

A ausência de Estados fortes comparáveis à China no sudeste da Ásia fez com que
fosse uma região mais promissora para os holandeses encontrarem uma base. Os
espanhóis (instalados em Manila, nas Filipinas) e os portugueses eram muito
poucos para dominar os milhares de ilhas da área, de modo que os holandeses
agiram rapidamente e tomaram dos portugueses, em 1605, as chamadas Ilhas das
Especiarias. Quatro anos depois, a VOC criou sua primeira feitoria comercial
permanente em Bantam, na extremidade mais oriental da ilha de Java. Depois de
capturar Jacarta, a leste, a companhia transferiu sua sede para lá e rebatizou a
cidade de Batávia. Agora, a Holanda tinha, do outro lado do globo, uma base para
desafiar o monopólio ibérico do comércio asiático. O novo esquema funcionou bem
para a companhia. O valor das importações holandesas vindas da região cresceu
quase 3% ao ano.

O Leão Branco tornou-se uma das primeiras e mais espetaculares baixas da


Holanda na guerra para dominar o comércio com a Ásia. O navio fizera a viagem
inaugural de Amsterdã à Ásia - uma distância de cerca de 14 mil milhas náuticas
(25 mil quilômetros) - já em 1601, um ano antes da formação da VOCiii. Voltou
para casa em julho do ano seguinte. A tensão crescente com as embarcações
portuguesas em águas asiáticas justificou a instalação de seis novos canhões de
bronze, na proa e na popa. Quando seguiu para a segunda viagem à Ásia, em
1605, o Leão Branco navegava como navio da VOC. O novo acordo comercial está
gravado nas costas do canhão de cobre que os arqueólogos pescaram na baía em
1976. O mestre fundidor Hendrick Muers inscreveu seu nome e a data - Henricus
Muers me fecit 1604 - e, acima, aplicou as iniciais entrelaçadas da companhia,
VOC, mais um A, insígnia da Câmara de Amsterdã.

O Leão Branco completou a segunda viagem e, depois, em 1610, partiu para a


malsinada terceira. Descarregou em Bantam e foi transferido para um esquadrão
naval encarregado de sufocar um levante de comerciantes de noz-moscada nas
Ilhas das Especiarias. O Leão Branco passou aquele inverno fazendo parte de uma
frota para caçar os navios espanhóis que passassem ao largo de Manila. Cinco
foram capturados. O navio passou o verão fazendo o transporte entre as ilhas e
depois foi mandado de volta a Bantam para receber o carregamento para a
terceira viagem de volta a Amsterdã. Em 5 de dezembro de 1612, partiu como um
dos quatro navios sob o comando do almirante Lam. Em 1° de junho do verão
seguinte, partiu de Santa Helena, no último trecho da viagem. Já sabemos o resto
da história.

A pirataria holandesa provocou protestos diplomáticos de outras nações


europeias, não só de Portugaliv. Em 1603, quando os holandeses capturaram o
Santa Catarina, Portugal exigiu a devolução do navio com todo o seu
carregamento, insistindo que fora uma captura ilegal. Os diretores da VOC
sentiram que tinham de criar para si uma argumentação de defesa que fosse além
de glorificar a capacidade de continuar roubando. Precisavam de princípios
jurídicos internacionais para provar que estavam certos em suas ações, e
contrataram Huig de Groot, jovem advogado brilhante de Delft (também conhecido
pela versão latina de seu nome, Grotius ou Grócio), para redigir uma peroração
que justificasse a pretensão de que a captura não era pirataria, mas sim um ato
cometido em defesa dos interesses legítimos da companhia.

Em 1608, Grócio entregou aos diretores da VOC o que queriam. De jure praedae,
traduzido como Da lei do apresamento, argumentava que o bloqueio naval
espanhol dos Países Baixos, então em vigência, era um ato de guerra. Essa
provocação deu aos holandeses o direito de tratar os navios portugueses e
espanhóis como naus beligerantes. Um desses navios capturado na guerra era
butim legítimo, e não captura ilegal. No ano seguinte, Grócio ampliou Da lei do
apresamento e criou sua obra-prima, Mare liberum, mar aberto, ou, no título
completo, A liberdade dos mares ou o direito que pertence aos holandeses de
participar do comércio das Índias Orientais. Em Mare liberum, Grócio apresenta
vários argumentos novos e ousados. No mais ousado de todos, ninguém pensara
antes: todos os povos têm o direito de comerciar. Pela primeira vez, a liberdade
comercial foi considerada um princípio do direito internacional, como tem sido
desde então. A partir desse princípio fundamental, segue-se que nenhum Estado
tem o direito de impedir os naturais de outro Estado de usar as rotas marítimas
para o comércio. Se o comércio era livre, então os mares em que comerciavam
também eram livres. Portugal e Espanha não tinham base para abolir esse direito
com o monopólio do comércio marítimo na Ásia. Grócio não aceitara o argumento
de que tinham conquistado o monopólio por meio da obra que realizavam ao levar
o cristianismo aos nativos daquelas regiões do mundo onde comerciavam. Além de
não se sobrepor à liberdade comercial, para Grócio o dever de converter os pagãos
infringia o princípio de que todos deviam ser tratados igualmente. "A crença
religiosa não elimina nenhuma lei humana ou natural da qual derive a soberania",
afirmou. O fato de algum povo recusar-se a aceitar o cristianismo "não é causa
suficiente para justificar a guerra contra ele, nem para espoliá-lo de seus bens". E
o custo de convertê-los não podia ser pago impedindo-se que outras nações
comerciassem com eles. Armada com uma interpretação do argumento de Grócio
que a beneficiava, a VOC permitiu que seus comandantes usassem a força sempre
que fossem impedidos de comerciar.

Os diretores da VOC também perceberam que a melhor maneira de dominar o


comércio de porcelana era adquiri-la pelos canais comerciais regulares, em vez de
roubá-la dos outros navios. Começaram a informar aos comandantes que partiam
para Bantam que não deviam nem pensar em voltar sem porcelana chinesa. Em
1608, enviaram a lista de compras: 50 mil manteigueiras, 10 mil pratos, 2 mil
fruteiras e mais saleiros, potes de mostarda e várias terrinas e travessas, mil de
cada, mais um número não especificado de jarras e xícaras. Esse pedido foi um
pico na demanda ao qual os mercadores chineses a princípio não conseguiram
atender. Em vez disso, a procura fez os preços subirem. "A porcelana aqui em
geral vem tão cara", observou consternado o chefe de operações de Bantam em
1610, numa carta aos diretores da VOC. Pior ainda, sempre que uma frota de
navios holandeses chegava ao porto, os mercadores chineses "imediatamente
elevam tanto os preços que não consigo calcular o lucro a ser obtido". A única
maneira de controlar essa volatilidade dos preços era suspender todas as novas
compras e negociar com os chineses o aumento da oferta. "Daqui para a frente,
ficaremos atentos à porcelana e tentaremos conseguir dos chineses que tragam
muito", escreveu ele, "pois o que têm trazido até agora não é muito e, na maior
parte, é inferior." Ele decidiu não comprar nada do que lhe ofereceram naquele
ano. "Só mercadorias muito especiais servirão", decidiu.

No inverno de 1612, quando o Leão Branco estava sendo carregado no cais de


Bantam, os fornecedores chineses atendiam ao padrão mais elevado exigido pela
VOC. O Wapen van Amsterdam, nau capitânia da frota dizimada de Lam, levou
apenas cinco barris de porcelana; cada um dos quais continha cinco pratos
grandes. Eram compras especiais, presentes para autoridades da VOC. O outro
navio holandês que chegou ao destino, o Vlissingen, é que levava o principal
carregamento de porcelana. Dele saíram 38.641 peças, variando de travessas
grandes e caras e jarras para aguardente a galheteiros modestos, mas atraentes, e
pequenos castiçais. A carga valia 6.791 guilderes; essa quantia não era
inimaginável, considerando que, na época, um artesão hábil conseguia apurar 200
guilderes por ano, mas ainda assim era substancial. Foi o início de um comércio
longo e crescente de porcelana. Em 1640, para escolher uma data e um navio ao
acaso, só o Nassau levou para Amsterdã 126.391 peças de porcelana. A carga
mais lucrativa do navio não era a porcelana, e sim a pimenta, da qual o Nassau
levava 9.164 sacos; mas era a mercadoria que criava a maior presença na
sociedade holandesa. Na primeira metade do século XVII, os navios da VOC
levaram para a Europa um total de bem mais de 3 milhões de peças.

Os CERAMISTAS chineses produziam para o mercado de exportação do mundo


todo. Também produziam para o mercado doméstico, em quantidade e qualidade
bem além do que remetiam para o exterior. Os chineses da dinastia Ming
gostavam tanto de possuir a linda porcelana azul e branca quanto os chefes de
família holandeses, mas eles a adquiriam guiados por padrões de gosto muito
mais complexos.

Wen Zhenheng foi um dos principais conhecedores e árbitros do bom gosto de sua
geração (morreu em 1645). Morava na metrópole cultural de Suzhou quando o
Leão Branco explodiu e afundou. Sua cidade produzia e consumia as obras de arte
e objetos culturais mais finos que se podia encontrar na China, assim como os
mais comerciais. Wen estava no lugar perfeito para produzir o seu famoso manual
de bom gosto e consumo cultural, o Tratado das coisas supérfluas. Bisneto do
maior artista do século XVI, ensaísta por mérito próprio e membro de uma das
famílias mais ricas e exclusivas de Suzhou, Wen tinha todas as credenciais
necessárias para fazer as avaliações da sua classe sobre o que era feito ou não na
sociedade bem-educada e sobre o que se devia possuir e evitar; eis o tema do
Tratado das coisas supérfluas. Esse guia do certo e do errado na compra e no uso
de coisas belas era a resposta às orações de leitores que, ao contrário de
cavalheiros finos como Wen, não eram suficientemente instruídos ou bem-
nascidos para conhecer essas coisas desde o berço. Era para os novos-ricos que
ansiavam ser aceitos por seus superiores na sociedade. Por parte de Wen, foi
também um modo esperto de lucrar com a ignorância deles, pois o livro vendeu
bem.

Na seção sobre objetos decorativos, Wen Zhenheng estabelece um padrão


altíssimo para a porcelana de boa qualidade. Admite que a porcelana é algo que o
cavalheiro deve colecionar e exibir, mas duvida que algo produzido depois do
segundo quarto do século XV tenha valor, pelo menos como algo desejável que os
amigos saibam que possuímos. A peça de porcelana perfeita, declara, deveria ser
"azul como o céu, lustrosa como espelho, fina como papel e sonora como um
carrilhão", embora ele tenha o bom-senso de se perguntar se perfeição assim já foi
atingida, mesmo no século XV. Ele deixa algumas peças do século XVI passarem
pelo seu exame, mas só na medida em que sejam apenas para uso cotidiano. O
anfitrião deveria servir o chá aos convidados em xícaras produzidas pelo ceramista
Cui, por exemplo. (O forno particular de Cui, em Jingdezhen, produziu porcelana
fina, tanto azul e branca quanto multicolorida, no terceiro quarto do século XVI.)
Mas na verdade, queixa-se Wen, as xícaras são um pouco grandes demais para
serem elegantes. Só deveriam ser usadas se não houvesse coisa melhor à mão.

Possuir objetos de alto valor cultural era um negócio traiçoeiro para os que
lutavam para subir a escada do status. Mesmo quem tivesse uma peça de
porcelana que Wen considerasse fina o bastante para ser possuída, ainda
precisaria tomar cuidado para não usá-la da maneira errada nem na hora errada.
Por exemplo, ao arrumar um vaso para os outros verem, o único móvel onde se
poderia colocá-lo seria "uma mesa de estilo japonês", como ele a descreve. O
tamanho dessa mesa depende do tamanho e do estilo do vaso, e isso, por sua vez,
depende do tamanho da sala onde o vaso é exibido. "Na primavera e no inverno, é
adequado usar vasilhas de bronze; no outono e no verão, vasos de cerâmica",
insiste ele. Nada mais é aceitável. "Valorize o bronze e a cerâmica, e considere
baratos o ouro e a prata", ensina. Os objetos feitos de metais preciosos deveriam
ser evitados não para esfriar o pecado do orgulho, como advertia o Corão, mas
para pôr em seu lugar os meramente ricos, sem educação nem bom gosto. "Evite
vasos com anéis", aconselha também, "e nunca os arrume em pares". Era tudo
muito complicado.

Entre as muitas regras, Wen incluía algumas para as flores que se podia pôr no
vaso. Essas advertências terminam com o grave conselho de que "mais de duas
hastes e a sala acabará parecida com uma taberna". A exuberância das exibições
florais com que os europeus enchiam alegremente as suas porcelanas chinesas
recém-adquiridas e que os artistas holandeses adoravam pintar quando não
retratavam cenas de taberna (e, às vezes, nelas também) teria parecido a Wen de
um mau gosto total, irremediavelmente típica da classe baixa. Imaginem o horror
que sentiria com a maneira como os europeus usavam suas xícaras. Wen admitia
como aceitável oferecer frutas e nozes ao tomar chá numa das xícaras do
ceramista Cui, por exemplo, mas nunca laranjas. As laranjas eram perfumadas
demais para serem servidas com o chá, assim como o jasmim e a cássia. Na
guerra que Wen travava contra o mau gosto, os europeus perderiam facilmente.

Os europeus não podiam conhecer nada desses jogos de status. Eram novos
demais na arte de possuir porcelana para se preocupar com algo além de pôr as
mãos nela. Também tinham suas regras, mas o terreno cultural das posses de
luxo, pelo menos nas questões cerâmicas, ainda não fora tão revolvido. As
preciosas peças de porcelana que saíram do porão do Vlissingen e foram leiloadas
em 1613 nos armazéns da VOC eram desejadíssimas, fosse qual fosse o estilo ou
mesmo a qualidade. Os únicos valores culturais que transmitiam era serem raras,
caras e exclusivas. Sem experiência com porcelana, os europeus puderam deixar
que as novas aquisições migrassem para o nicho imaginado pelos compradores.
Os pratos chineses começaram a aparecer à mesa na hora das refeições, já que a
porcelana era facílima de limpar e não passava o gosto da comida de ontem para o
jantar de hoje. Também foram exibidos como curiosidades caras provindas do
outro lado do mundo. Decoravam mesas, cristaleiras, lareiras e até a verga das
portas. (A atenção cuidadosa aos portais das pinturas de interiores holandeses da
segunda metade do século XVII revelará pratos ou vasos pousados neles.) Não
faria sentido restringir a colocação de vasos finos às mesas baixas de estilo
japonês, já que os europeus não faziam ideia do que era isso. Eles os colocavam
onde queriam.

Essas coisas eram importantíssimas para Wen Zhenheng. No seu mundo de


complexas distinções de status, a superioridade dos refinados em relação aos
vulgares vivia ameaçada de perder-se sempre que os ricos sem cultura impunham
seu poder sobre os meramente bem educados. A riqueza não era proteção contra a
vulgaridade. Ao contrário, como o crescente número de novos-ricos da era
comercial em que Wen viveu apressava-se a viver com ostentação sem aprender a
viver bem, seria mais provável que a riqueza produzisse vulgaridade do que
ajudasse alguém a comprar o caminho para escapar dela. Os não educados
comiam em pratos de ouro e prata, sem a mínima consciência de que se
comprometiam com uma ostentação grosseira. Lavavam os pincéis caligráficos em
vasilhas de porcelana recém-fabricadas, quando na verdade não deviam usar
porcelana, mas jade ou bronze; Wen só permitia o uso de vasos d'água de
porcelana se tivessem sido produzidos antes de 1435. Eram regras duras.
Favoreciam os culturalmente bem informados, com conhecimentos que os
meramente ricos não tinham esperança de obter - a menos, ironicamente, que
comprassem um exemplar do Tratado das coisas supérfluas. Na guerra do status,
os recém-chegados sempre corriam riscos, já que não tinham acesso à escrita das
regras. Por outro lado, pelo menos, podiam participar do jogo. Os pobres, afinal de
contas, nunca teriam essa oportunidade.

Se Wen Zhenheng tivesse ido às docas do Grande Canal que cortava a cidade para
inspecionar os carregamentos de cerâmica que eram remetidos para os
holandeses, acharia ridículo o que encontraria. A maioria era porcelana de
carraca, feita para exportação. Vista pelos olhos de Wen, a porcelana de carraca
era grossa demais e mal pintada, e os motivos da decoração não tinham nenhuma
delicadeza. Era apenas o tipo de lixo que se pode impingir a estrangeiros
desinformados. Um cavalheiro de Suzhou jamais sonharia em servir petiscos em
travessas malpintadas, com "item de excelente qualidade" escrito no fundo (marca
inscrita em muitas exportações), nem frutas cristalizadas em pratos com pé,
esmalte leitoso com furinhos e datas falsas do século XV na base, nem chá fino
em xícaras feitas no ano anterior. Um guia esnobe de Beijing de 1635 admite que
os ceramistas de Jingdezhen ainda são capazes de produzir, de vez em quando,
uma "peça fina" que não envergonhe o dono, mas observa que o verdadeiro
conhecedor sabe que deve manter distância das peças contemporâneas. Em
dúvida, a porcelana antiga seria geralmente a opção mais segura.

Se, pelos padrões chineses, os europeus eram maus juízes do que saía dos navios
da VOC, pelos seus próprios padrões eram juízes excelentes. Afinal, com que
comparariam a porcelana chinesa senão com os pratos e jarros de cerâmica
grosseira e quebradiça que os ceramistas italianos e flamengos produziam? Esses,
os vasilhames chineses superavam em fineza, durabilidade, estilo, cor e em todas
as outras características da cerâmica. Reproduzi-las estava além da capacidade de
todos os artesãos europeus, e era por isso que, assim que um navio da VOC
chegava à Holanda, aparecia gente de toda parte para comprá-los.

No início do século XVII, quando a porcelana começou a chegar ao norte da


Europa, os preços que atingia eram tão altos que estavam fora do alcance da
maioria. Em 1604, quando Shakespeare fez o cômico Pompeu de Medida por
medida regalar Escalo e Angelo com o longo relato da última gravidez de Mistress
Overdone, sua patroa, conta a eles que ela pedira ameixas-pretas. "Só tínhamos
duas na casa, que naquela época tão distante estavam, por assim dizer, numa
fruteira, um prato de uns 3 pence; Vossas Honras já viram tais pratos; não são
pratos chineses, mas são pratos muito bons. "Como alcoviteira, Mistress Overdone
ganhava o bastante para comprar bons pratos, mas não porcelana chinesa.
Apenas uma década depois, quando a porcelana chinesa começou a inundar o
mercado europeu, e os preços começaram a cair, essa fala já não serviria. Como
observou, passados exatamente dez anos, o autor de uma história de Amsterdã, "a
abundância de porcelana cresce diariamente", de modo que os pratos chineses
"passaram a estar conosco no uso quase cotidiano da gente comum". Em 1640,
um inglês que visitou a cidade pôde declarar que "qualquer casa de indiferente
qualidade" era bem suprida de porcelana chinesa.

Toda essa oferta de porcelana se devia ao que o escritor de Amsterdã chamou de


"essas navegações", que mudavam a vida material dos europeus em tal ritmo e de
tantas maneiras que muitas vezes os surpreendiam. Foi por isso que, em 1631,
René Descartes foi levado a chamar Amsterdã de "inventário do possível". O
viajante inglês John Evelyn ficou igualmente impressionado com a cidade quando
a visitou, uma década depois. Maravilhou-se com a "reunião inumerável de navios
e embarcações que passam continuamente diante dessa cidade, que é certamente
o concurso mais movimentado de homens mortais agora sobre a face de toda a
Terra e a mais dedicada ao comércio". Por mais notável que fosse, Amsterdã não
era uma grande exceção, se comparada a outros centros urbanos da Europa.
Quando Evelyn visitou Paris três anos depois, espantou-se com "todas as
curiosidades naturais ou artificiais imagináveis, indianas ou europeias, para luxo
ou uso" que "pode-se obter por dinheiro". Num mercado ao longo do Sena,
admirou-se principalmente com uma loja chamada Arca de Noé, na qual
encontrou um sortimento maravilhoso de "armários, conchas, marfins, porcelana,
peixes secos, insetos raros, pássaros, quadros e mil extravagâncias exóticas". A
porcelana era uma das extravagâncias que agora era fácil comprar.

O crescimento explosivo do mercado dos fabricantes orientais logo começou a


afetar a produção. Durante séculos, os ceramistas chineses tinham dado muita
atenção à importância de dar forma a seus produtos de acordo com o gosto
estrangeiro, achatando a forma esférica de um vaso para que parecesse um frasco
turco ou pondo divisórias em pratos para adequá-los ao hábito alimentar dos
japoneses. Quando a demanda europeia cresceu, os comerciantes de porcelana
chinesa dos portos do sudeste da Ásia aprenderam do que os europeus gostavam
e levaram esse conhecimento aos fornecedores no continente, para que
reprojetassem seus produtos. Na hora de suprir o mercado externo, os ceramistas
de Jingdezhen não se preocupavam com os padrões do bom gosto chinês de Wen
Zhenheng. Queriam saber o que venderia, e dispunham-se a mudar a produção
na temporada seguinte para se ajustar ao gosto europeu. Por exemplo, na década
de 1620, quando as tulipas turcas viraram moda no norte da Europa, os
ceramistas de Jingdezhen pintaram tulipas nos pratos. Sem nunca ter visto uma
tulipa de verdade, os pintores de porcelana produziram flores quase
irreconhecíveis como tulipas, mas isso não tinha importância. A questão é que
reagiram imediatamente à mudança do mercado. Quando veio a famosa queda do
mercado de tulipas, em 1637, a VOC correu para cancelar todos os pedidos de
pratos enfeitados com tulipas, por medo de ficar com o estoque encalhado.

Um dos híbridos mais notáveis a surgir nas olarias de Jingdezhen, projetado


especificamente para agradar o gosto europeu, é o grande prato de sopa que os
holandeses chamavam de klapmuts. O formato desse prato lembrava o chapéu
barato de feltro usado pela classe baixa da Holanda, daí o nome. A julgar pelo
grande número de klapmutsen no porão do Leão Branco, esse item era popular, e
o nome, embora indicasse algo pouco sofisticado, pegou.

Os chineses não tinham uso para pratos como esses. O problema era a sopa. Ao
contrário da sopa europeia, a sopa chinesa mais parece um caldo que um cozido;
é bebida, e não entrada. A etiqueta, portanto, permitia levar o prato à boca para
tomá-la. É por isso que as vasilhas de sopa chinesas têm as laterais altas e
verticais: para tornar mais fácil beber pela beirada. A etiqueta europeia proíbe
erguer a vasilha, daí a necessidade de uma colher grande projetada especialmente
para esse fim. Mas tente pôr uma colher europeia numa vasilha de sopa chinesa,
e ela vira: os lados são altos demais, e o centro de gravidade não fica
suficientemente baixo para equilibrar o peso do cabo do talher. Vem daí a forma
mais plana do klapmuts, com uma beirada larga na qual o europeu poderia
descansar a colher sem acidentes.

Os consumidores chineses não estavam muito interessados na louça de


exportação feita para europeus. Se alguma peça circulava dentro da China, era só
como curiosidade. Provavelmente, as poucas porcelanas de carraca que surgiram
em dois túmulos chineses do início do século XVII chegaram à posse de seus
donos por essa razão. Uma travessa decorada no estilo europeu foi encontrada no
túmulo de um príncipe Ming que morreu em 1603, e dois pares de pratos no estilo
klapmuts foram achados enterrados junto a um alto funcionário de província.
Ambos os túmulos ficam na província de Jiangxi, onde se localizava Jingdezhen, o
centro de fabricação de porcelana, o que ajuda a explicar como esses homens
obtiveram as peças. Por que as quiseram, só podemos tentar adivinhar. Talvez
achassem o estilo das carracas algo exótico, estrangeiro e atraente, que por acaso
estava disponível no local. Aqui há uma convergência fascinante: em lados opostos
do continente eurasiano, a classe alta adquiria porcelana de carraca; os chineses,
por acharem que incorporavam um estilo ocidental exótico, os europeus porque
lhes parecia ser a coisa mais puramente chinesa.

Na década de 1610, quando os navios da VOC começaram a entregar com mais


regularidade os carregamentos de cerâmica, os pratos chineses fizeram mais do
que decorar mesas, encher bufês e empoleirar-se em guarda-roupas: surgiram nos
quadros holandeses. O primeiro quadro holandês a mostrar um prato chinês foi
pintado por Pieter Isaacsz em 1599, vários anos antes de os primeiros grandes
leilões de carregamentos portugueses capturados tornarem esses objetos
disponíveis para compradores holandeses. O primeiro quadro a mostrar um
klapmuts é uma natureza-morta de Nicolaes Gillis, pintada dois anos depois. Gillis
arrumara um monte de frutas, nozes, jarras e travessas numa mesa. Para nós,
parece igual a qualquer outra natureza-morta holandesa, mas, para o observador
de 1601, mostrava uma porcelana chinesa do tipo que só os mais ricos podiam
comprar e que a maioria do povo holandês jamais vira, muito menos tocara, na
vida real. Gillis não teria como possuir a peça que pintou. Ainda se passariam
mais dois anos para o carregamento do San Iago chegar a Amsterdã, e mais uma
década para o preço da louça chinesa chegar ao alcance dos compradores
comuns. Portanto, é provável que a tenha pintado por encomenda do proprietário:
não apenas uma natureza-morta, então, mas o retrato de uma propriedade
valiosa.

Em meados do século XVII, a casa holandesa era decorada com porcelana. A arte
imitou a vida, e os pintores puseram pratos chineses em cenas domésticas para
dar um toque de classe e uma pátina de realidade. Em Delft, a porcelana chinesa
começou a ficar disponível antes da época de Vermeer. A nau capitânia da
Câmara de Delft da VOC, a Wapen van Delft, foi duas vezes à Ásia e voltou em
1627 e 1629 com um carregamento total de 15 mil peças de porcelana, algumas
das quais ficariam no local. A maior coleção pessoal da cidade pertencia a
NiclaesVerburg, diretor da Câmara de Delft. Verburg podia comprar todos os tipos
de itens que os seus navios levavam a Roterdã e suas balsas transportavam até
Delft, pois ao morrer, em 1670, era o homem mais rico da cidade.

Embora não estivesse no mesmo nível de Verburg, Maria Thins aspirava ter uma
casa que atendesse aos padrões de gosto elegante da época. A se acreditar nas
telas de Vermeer, a casa dos Thins-Vermeer possuía várias peças requintadas. O
klapmuts de Leitora à janela também aparece em Jovem adormecida, logo, é
provável que pertencesse à família. A casa talvez também possuísse um jarro
chinês azul e branco, porque há um deles atrás do alaúde, na mesa de Moça
interrompida em sua música. Entretanto, não poderia ter vindo diretamente da
VOC, já que um artesão europeu resolveu adorná-lo acrescentando uma tampa de
prata. Também há um pote para gengibre no estilo carraca sobre a mesa do lado
esquerdo de Mulher com colar de pérolas. O reflexo recurvado da janela invisível à
esquerda sobre a superfície do vaso mostra por que Vermeer, tão cativado pela
luz, devia gostar de pintar algo tão lustroso como um pote chinês. Na mesma
mesa, bem diante da mulher com o colar, há uma pequena vasilha de bordas altas
- prova de uma quarta peça chinesa na coleção Thins-Vermeer?

As PORCELANAS QUE OS NAVIOS DA VOC levavam para a Europa eram itens


caros de consumo ostentatório que só caíam nas mãos dos que podiam pagar.
Para o resto, os produtores europeus de cerâmica lançaram substitutos das
importações, para aproveitar o gosto pelas coisas chinesas. Entre os mais bem-
sucedidos, estavam os ceramistas e fabricantes de azulejos de Delft. Eram
descendentes de italianos de Faenza (cidade que deu nome à louça colorida
conhecida como faiança) que tinham emigrado para Antuérpia no século XVI em
busca de trabalho e continuaram rumo ao norte para fugir da tentativa militar
espanhola de suprimir a independência holandesa. Levaram consigo a técnica de
produção de cerâmica e conseguiram construir fornos nas renomadas cervejarias
de Delft, muitas das quais forçadas a fechar quando o gosto da classe
trabalhadora passou da cerveja para o gim. Nessas novas olarias, começaram a
fazer experiências com imitações da nova estética da cerâmica que vinha da
China, e os compradores gostaram do que eles produziram.

Os ceramistas de Delft não conseguiram atingir a qualidade da louça azul e


branca chinesa, mas conseguiram produzir imitações passáveis, a preço baixo. A
cerâmica de Delft tornou-se o substituto, de preço acessível, para as pessoas
comuns que queriam porcelana chinesa mas, nos primeiros anos do comércio da
VOC, não podiam nem sonhar em comprar mais do que algumas poucas peças.
Os ceramistas de Delft não só imitaram; eles também inovaram. Seu maior
sucesso na faixa inferior do mercado foram os ladrilhos azuis e brancos para a
parede das novas casas que a burguesia de Delft construía. O azul desses
ladrilhos transpirava um atraente aroma chinês, e o estilo dos desenhos pintados
em sua superfície duplicava vagamente o que as pessoas consideravam que seria
chinês. Anthony Bailey explica isso muito bem, em sua biografia de Vermeer:
"Raramente o plágio a distância produziu resultado tão original: a criação de um
tipo de arte popular."A indústria floresceu. Na época em que Vermeer pintava, um
quarto da força de trabalho da cidade estava empregada, de um modo ou de outro,
no comércio de cerâmica. A porcelana de Delft vendia bem e extensamente entre
os que não podiam comprar as peças chinesas, e o nome da cidade viajou com o
produto. Na Inglaterra, os pratos de louça passaram a ser chamados de "china",
mas na Irlanda chamavam-se "delph".

Os azulejos de Delft aparecem em cinco quadros de Vermeer. Como os pintores e


fabricantes de ladrilhos de cerâmica pertenciam à mesma guilda, a dos artesãos
de São Lucas, da qual Vermeer era diretor, com certeza ele conhecia os donos das
olarias. Talvez conhecesse até alguns pintores de cerâmica, que gozavam de uma
posição um pouco mais alta que a dos fabricantes de ladrilhos comuns. Parece
que Vermeer gostava dos estranhos esboços que decoravam os azulejos - prédios e
navios, cupidos e soldados, homens urinando e anjos fumando -, já que reproduz
alguns em seus quadros. Parece que adorava o azul-cobalto que usavam, que se
tornou uma de suas marcas registradas como colorista. Talvez, no uso do azul-
cobalto e nas recriações detalhadas da luz sobre a superfície brilhante,
comecemos a ver os primeiros sinais de um estilo decorativo conhecido como
chinoiserie que dominaria o gosto europeu no século XVIII.

Sem provas concretas, ainda podemos imaginar que, como artista que vivia e
trabalhava numa das sedes das câmaras da VOC, Vermeer tenha visto exemplos
de pinturas chinesas. Sabemos que várias pinturas chinesas foram parar na
coleção de NiclaesVerburg, diretor da VOC em Delft, mas é improvável que fossem
mostradas fora de sua casa. Ainda assim, algumas imagens do que os chineses
consideravam belo devem ter sido levadas por marinheiros curiosos e circulado no
âmbito público. John Evelyn conta ter visto gravuras estrangeiras incomuns na
Arca de Noé, em Paris. Haveria entre elas pinturas chinesas? Quando um satirista
de Amsterdã divertiu os leitores imaginando "uma pintura em que 12 mandarins
foram esboçados com um único traço do pincel", supunha que os leitores
conhecessem as pinceladas fluidas e ousadas dos artistas chineses. Se as
pinturas chinesas circulavam nos Países Baixos, com certeza Vermeer teria
conseguido vê-las.

A circulação de objetos decorativos não ia só da China para a Europa. Os objetos


e pinturas europeus também circulavam na China. Em 5 de março de 1610,
enquanto o Leão Branco fazia a terceira viagem de Amsterdã para a Ásia e alguns
anos antes que Wen Zhenheng começasse a escrever o Tratado das coisas
supérfluas, um negociante de arte conhecido como "mercador Xia" visitou um dos
seus melhores fregueses. Li Rihua era um renomado pintor amador e rico
colecionador de arte, e morava em Jiaxing, cidadezinha no delta do rio Yang-tsé, a
sudoeste de Xangai. Li frequentava os mesmos círculos sociais da família Wen, e é
provável que conhecesse o autor do Tratado das coisas supérfluas. Era um dos
fregueses fiéis do mercador Xia e há muitos anos comprava dele pinturas e
antiguidades. Xia acabara de voltar de Nanjing, o centro do comércio de
antiguidades e curiosidades, do outro lado do delta do Yang-tsé. Levou um
sortimento de raridades para que Li examinasse: uma taça de vinho de porcelana
da década de 1470; um conta-gotas d'água, do tipo que os calígrafos usavam para
diluir a tinta, com o formato de um tigre agachado; e dois brincos esverdeados do
tamanho do polegar. Xia garantiu a Li que os brincos eram de um tipo raro de
cristal, de um forno que só produziu essas coisas na década de 950, insinuando
que esperava que valessem bom preço.

Li gostou da maioria das coisas ofertadas, mas logo percebeu que o mercador Xia
estava errado a respeito dos brincos. Decidiu divertir-se com Xia, fingindo
examiná-los com a devida atenção e depois lhe afirmando que eram feitos de
vidro. Além de não serem antiguidades do século X, os brincos nem eram
chineses. Como Li escreveu depois em seu diário: "Esses itens eram trazidos para
cá em navios estrangeiros vindos do sul - itens de fabricação estrangeira, de fato.
Os objetos de vidro que vemos hoje em dia são todos obra dos estrangeiros do
oceano Ocidental [Atlântico], que os fazem derretendo pedras, e não tesouros
produzidos naturalmente." Li divertiu-se ao levar a melhor sobre o mercador Xia,
mas não por maldade. Sabia que a falsificação fazia parte do jogo de compra e
venda de antiguidades e apreciou bastante o fato de que, dessa vez, o vendedor é
quem foi enganado, não o freguês. O mercador Xia partiu depois de devidamente
repreendido, talvez mais envergonhado por ter pago caro pelos brincos em Nanjing
do que por tentar vendê-los a alguém tão atento quanto Li Rihua.

Esse caso demonstra que os chineses não ficavam curiosos com objetos
estrangeiros? De modo algum. Temos de perceber o que Li fazia ao colecionar.
Para ele, a razão era descobrir objetos que confirmassem a autoridade cultural
dos antigos; era por isso que, para ele, a autenticidade era tão importante. Ele
queria coisas que o ligassem a uma época melhor, sempre no passado. O que o
caso mostra é que os artigos estrangeiros circulavam na China no século XVII. Se
chegavam a Nanjing e depois circulavam nas mãos de mercadores ambulantes até
as cidades próximas, devia haver algum tipo de mercado para eles. Não
circulavam na mesma escala que as manufaturas estrangeiras na Europa, mas
também chegavam à China em volume muito menor. Além disso, ao contrário da
Europa, onde cerca de um século de saques e comércio pelo mundo afora
ensinara os europeus a se tornarem conhecedores de curiosidades estrangeiras, a
demanda desses objetos na China não estava bem desenvolvida. As coisas
estrangeiras não eram recusadas pelos colecionadores chineses. Wen Zhenheng
encoraja os leitores de Tratado das coisas supérfluas a adquirir alguns objetos
estrangeiros. Recomenda pincéis e papel de escrita da Coreia e defende a posse de
uma grande variedade de objetos japoneses, desde leques, réguas de bronze e
tesouras de aço a caixas laqueadas e móveis finos. A origem estrangeira não era
uma barreira para a valorização.

Se os objetos estrangeiros eram um "problema" na China, isso não se devia a


algum profundo desdém chinês pelas coisas vindas de fora. Tinha a ver com a
natureza flexível das próprias coisas. Os objetos de beleza eram valorizados na
medida em que transmitissem significados culturais; no caso das antiguidades,
significados relativos ao equilíbrio, ao decoro e à veneração do passado. As
antiguidades eram valorizadas porque punham os donos em contato físico com
um passado áureo do qual o presente se afastara. Dado o fardo de significado que
os objetos tinham de transmitir, era difícil discernir que valor atribuir a objetos
vindos de fora. A raridade era uma qualidade apreciada, e a curiosidade com
coisas maravilhosas ou estranhas, um impulso louvável no colecionador, mas o
impulso essencial de colecionar era se pôr em contato com os valores centrais da
civilização. É por esse motivo que Wen podia recomendar aos leitores objetos
coreanos ou japoneses. A China tinha uma longa história de interação cultural
com a Coreia e com o Japão, e por isso as coisas coreanas e japonesas podiam ser
consideradas parte do mesmo éthos civilizatório das coisas chinesas. Eram
diferentes, mas a diferença era sutil. Não passava do estranho para o bizarro.

Não se podia dizer o mesmo dos objetos europeus. Li Rihua não era indiferente ao
que havia além do litoral da China; na verdade, o seu diário contém numerosas
observações sobre o que ouvira dizer a respeito dos navios e marinheiros
estrangeiros que perambulavam pelas águas costeiras chinesas. Mas os objetos
que vinham das terras estrangeiras não tinham lugar em seu sistema simbólico.
Não incorporavam valores. Eram apenas curiosidades. Ao contrário, na Europa as
coisas chinesas tiveram impacto maior. Lá, a diferença tornou-se um convite à
compra. Os europeus sentiram-se inclinados a incorporar essas coisas ao espaço
onde viviam e, além disso, até a rever os seus padrões estéticos. A fruteira que
Vermeer pôs no primeiro plano de Leitora à janela é uma coisa estrangeira,
aninhada, por sua vez, no tapete turco, outra coisa estrangeira. Esses objetos não
provocavam desprezo nem ansiedade. Eram bonitos, vinham de lugares onde se
faziam coisas bonitas e podiam ser comprados. Era tudo, e isso bastava para fazer
com que valesse a pena comprá-los.

Se nas salas europeias havia lugar para objetos estrangeiros, esse lugar não
existia nas salas chinesas. Em última análise, não era uma questão de estética
nem de cultura. Era a relação com o mundo mais vasto a que cada uma delas
podia se dar ao luxo. Os mercadores holandeses, com todo o apoio do Estado
holandês, percorriam o planeta e traziam às docas do Kolk indícios maravilhosos
de como deveria ser o outro lado do mundo. O povo de Delft via os pratos chineses
como símbolos de sua boa sorte e exibia-os alegremente em suas casas. É claro
que eram bonitos, e ter prazer com a beleza era o que os chefes de família
holandeses gostavam. Mas os pratos também eram o símbolo de uma relação
positiva com o mundo.

O que Li Rihua vê, ao olhar além das docas de sua Jiaxing natal, além do litoral
infestado de piratas? De onde estava, aquele mundo maior era uma fonte de
ameaça, não uma promessa de riqueza, menos ainda de prazer ou inspiração. Ele
não tinha razões para possuir símbolos dessa ameaça e colocá-los em seu ateliê.
Por outro lado, para os europeus, valia a pena todo o perigo e toda a despesa para
pôr as mãos em mercadorias chinesas. E é por isso que, quatro anos depois do
naufrágio do Leão Branco, o almirante Lam voltou ao mar da China Meridional
para saquear navios ibéricos e capturar embarcações chinesas, na esperança de
obter mais.

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