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1. Introdução
2. Breve histórico das políticas sociais no Brasil
3. Público e privado num contexto de desigualdade social
4. A crise do Estado e sua influência nas relações entre o público e o privado
5. Perspectivas
1. Introdução
As relações público-privado nas políticas sociais podem ser encaradas a partir de dois pontos
de vista. Em primeiro lugar, pode-se analisar os movimentos com relação ao grau de
universalidade no atendimento dos serviços sociais. Em segundo, cabe verificar a repartição
de tarefas entre o setor estatal e as empresas privadas.
O caso da previdência social é paradigmático. Até o início dos anos vinte, não havia sistema
previdenciário no Brasil. Os seus primórdios se dão com a criação de companhias privadas de
seguro do trabalho, em 1919, mas é com as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs),
criadas em 1923, que vai começar a se estabelecer um sistema previdenciário no país. As
CAPs eram sociedades civis, organizadas por empresas e financiadas pelo governo federal,
empresas e trabalhadores. Dada sua natureza, apenas nas grandes empresas havia condições
para sua implantação. A forma de financiamento levava a que a qualidade e a quantidade dos
serviços fossem diferenciados em função do porte das empresas e do nível salarial de seus
empregados. (Ver, p. ex., Braga e Paula, 1986)
um maior controle estatal, bem como tendem a se homogeneizar os serviços, embora apenas
no interior de cada categoria.
Essa situação, no entanto, vai se modificando, gradativamente, a partir de 1963, com a criação
do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural - FUNRURAL. Ao longo da década de 70, dá-
se a inclusão de trabalhadores autônomos, empregadas domésticas e empregadores rurais.
No caso da saúde, também se verifica essa tendência de universalização dos serviços. Dada a
crescente participação da medicina previdenciária em relação às ações de saúde pública, a
expansão dos serviços de saúde deu-se, desde a década de 30, em benefício dos segurados da
Previdência Social. Dessa forma, seu grau de universalização e uniformidade evoluiu pari
passu com a ampliação da cobertura previdenciária.
Por outro lado, a ampliação da oferta de serviços públicos de saúde se dá com a participação
crescente do setor privado, através de convênios, o que é uma outra dimensão da relação
público-privado nas políticas sociais. Cabe aqui observar que, mais do que a questão da
estatização versus privatização, o que importa considerar são as formas específicas em que se
dão as relações entre o Estado e, no caso, as empresas do setor de saúde.
1 Isto não significa ignorar os efeitos positivos, embora insuficientes, da universalização do acesso e da
expansão dos serviços. As últimas décadas no Brasil mostram uma melhoria crescente em quase todos os
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Se a queda de qualidade dos serviços que acompanha a ampliação de sua cobertura pode ser,
até certo ponto, entendida como resultado dos desequilíbrios provocados pela magnitude da
demanda insatisfeita e pela escassez de recursos, seus efeitos sobre a relação entre o público e
o privado passam pelo quadro de extremas desigualdades sociais prevalecentes no país.
Nesse contexto, a universalização do acesso a serviços públicos, com sua -- até certo ponto --
inevitável queda de qualidade, tem implicado na progressiva evasão das camadas médias dos
serviços públicos em direção aos serviços privados.
A universalização do acesso aos serviços de saúde, por exemplo, tem sido limitada pela
incapacidade da oferta expandir-se na mesma proporção. Isso tem levado a um aumento na
demora do atendimento e uma queda na qualidade dos serviços. Em conseqüência, os grupos
sociais de maior poder aquisitivo deixam de utilizar esses serviços, e passam crescentemente
para o mercado privado, particularmente através de seguros de saúde privados, num processo
que foi caracterizado como universalização excludente. (Magalhães, 1993; Faveret Filho e
Oliveira, 1990)
Esse movimento pode ser compreendido a partir de dois pontos de vista. Em primeiro lugar,
ele representa a reação de uma sociedade extremamente segmentada socialmente à tentativa
de universalização dos serviços. Por outro, tem um efeito socialmente positivo, na medida em
que a contribuição da “classe média” é menos do que correspondente aos benefícios a que ela,
teoricamente, tem direito. Ou seja, a contribuição à previdência social do típico trabalhador de
classe média não cobre sequer aos benefícios que ele recebe em termos de aposentadoria.
Portanto, a exclusão da classe média do sistema de saúde pública não deixa de ter um efeito
positivo do ponto de vista distributivo. Mesmo assim, evidencia a dificuldade de se atingir
padrões de efetiva universalidade em contextos de marcada desigualdade de renda 2. (Draibe,
s. d., p. 81 e seguintes)
indicadores sociais, apesar da manutenção de um quadro de dualismo estrutural. (Possas, 1989; Monteiro, 1995)
Essa melhoria parece se verificar até mesmo em áreas inesperadas, como a nutrição infantil. (Monteiro et alli,
1993)
2 Note-se que alguns estudos comparativos internacionais têm concluído que o próprio efeito redistributivo do
Welfare State depende da estrutura de distribuição de renda e da riqueza. (Magalhães, 1993, p. 188-189)
Teríamos, desta forma, um tipo de causação circular, em que o efeito redistributivo das ações estatais tenderia a
ser tanto maior qunaot menores as desigualdades existentes.
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Duas outras características da sociedade brasileira têm efeito, ainda, sobre as relações entre o
público e o privado. Uma delas é o padrão clientelista, que implica não apenas numa
utilização de recursos públicos para atender a interesses eleitorais privados, como numa
distribuição seletiva desses recursos3. A outra é o padrão corporativista, que reforça a
manutenção de benefícios e direitos conquistados por grupos sociais específicos, em
detrimento dos demais4.
A crise dos Estados Nacionais deste fim de século se caracteriza, antes de tudo, por uma
profunda crise fiscal. As causas últimas dessa crise têm sido motivo de acirradas discussões.
Embora seja impossível, no âmbito deste trabalho, examinar essa questão em profundidade,
cabe lembrar que, na verdade, a crise fiscal foi precedida, temporalmente, por uma crise do
próprio processo de acumulação capitalista -- ou seja, por um decréscimo das taxas de
crescimento dos produtos nacionais e da produtividade das empresas privadas da maioria dos
países. O argumento inicial dos assim chamados neo-liberais era de que essa queda de produto
e de produtividade era causada pela ação do Estado, mas pode muito bem ser argumentado
que foi essa perda de dinamismo econômico, historicamente anterior, que provocou a crise
fiscal do Estado.
Seja como for, a crise fiscal dos Estados Nacionais é, hoje, um dado a ser considerado,
independentemente de quais sejam suas reais causas. A essa crise fiscal se soma a perda de
capacidade regulatória desses mesmos Estados Nacionais, enfraquecidos pelos conhecidos
processos que têm sido enquadrados no conceito de globalização.
3 Sobre a simbiose contraditória entre clientelismo e Estado do Bem Estar na América Latina, bem como seus
efeitos sobre as relações público-privado, ver Marques-Pereira (s. d., especialmente, p.113 e seguintes).
4 Não pretendemos, aqui, utilizar esses conceitos com a usual conotação meramente normativa. A esse respeito e
sobre a necessidade de levar esses componentes em conta em qualquer proposta realista de mudança, ver Reis
(1993). No entanto, essas duas características da sociedade brasileira têm óbvias implicações quanto às relações
entre o público e o privado.
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Mas, essas são questões demasiadamente complexas para serem adequadamente abordadas
neste trabalho. O que parece indubitável é que nos deparamos com uma situação em que as
relações entre o público e o privado terão que ser profundamente revistas, uma vez que
nenhum dos dois lados da equação parece estar em condições de cumprir o que têm,
historicamente, prometido.
5. Perspectivas
Diante desse quadro, quais têm sido as propostas de solução? Por um lado, a esquerda tem
tido uma posição dúbia. Um setor tem defendido posições corporativistas e estatistas,
dificilmente conciliáveis com a visão universalista e socialista que supostamente defendem.
Outros, particularmente aqueles que têm experimentado o poder, têm adotado medidas que
não diferem muito do ideário “neo-liberal”6. Outros setores da esquerda têm defendido um
padrão de atuação em que movimentos sociais organizados e organizações não-
governamentais assumam funções tradicionalmente consideradas como estatais -- posto que
públicas.
Por seu turno, a direita tem defendido a redução e o retraimento do Estado, sem apresentar
propostas minimamente viáveis para solucionar os problemas da baixa taxa de aumento da
produtividade e da decrescente taxa de absorção da mão de obra.
As empresas parecem estar crescendo muito mais em função da crise fiscal do Estado do que
de sua capacidade produtiva. Os setores sociais engajados numa ação social de novo tipo
estão, eles mesmos, em risco de descenso social. Além disso, no caso do Brasil, o setor
privado tem escassa tradição de ações de interesse público e forte tendência a se apropriar de
parcelas do próprio aparelho estatal.
Diversos autores têm trazido à tona a questão das implicações sociais da crise do Estado, que
leva à necessidade de profundos reordenamentos econômicos e sociais para fazer frente aos
problemas fiscais e do mercado de trabalho, apontando, alguns deles, para a necessidade da
emergência de novos padrões de solidariedade social. Só o futuro dirá se seremos capazes de
enfrentar esse desafio de forma adequada.
5 Na verdade, talvez devêssemos estar nos perguntando mais sobre o por quê do setor privado estar sendo tão
incompetente em cumprir o seu papel e, menos, sobre a chamada crise do Estado.
6 Por exemplo, através da privatização de empresas municipais.
BIBLIOGRAFIA