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A cruz da que ê n c i a
s l a i c o s n a p e r m a n
argume n t o
c a t ó l i c o s e m l o c a i s
de sí m b o l o s
públi c o s b r a s i l e i r o s
Arte sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens
Borges
Guilherme
resumo abstract
partir de certas pautas, objeções e repertórios de Porto Alegre, resolveu entrar na polêmica
bastante semelhantes. São essas justificativas por uma via semelhante à de seu colega do
e retóricas, utilizadas reiteradamente por inte- Rio de Janeiro:
grantes episcopais, que serão reproduzidas
e destrinchadas a seguir. “[...] lembremos a destruição de uma das
maiores estátuas de Buda, esculpida em
PNDH-3: PEDRA DE ESCÂNDALO pedra, no século V. Pois, em 2001, ini-
ciando o Novo Milênio, os ‘donos do poder’
Sem demora, passa-se a palavra a Dom no Afeganistão julgaram não poder tolerar
Orani João Tempesta, arcebispo do Rio de essa ‘idolatria’ e decretaram que ela não
Janeiro, em artigo escrito logo no início de fazia parte da cultura do momento. Hoje
2010 sobre aquele que ele nomeou “o plano esses governantes são execrados. [...] Não
da intolerância”: podemos impunemente despir o Brasil de
seus valores religiosos e culturais, a título
“Entre tantos acontecimentos intolerantes de equipará-lo aos países de outras tradi-
em todos os cantos do mundo, um deles ções. Temos que lutar pelo que é nosso”
foi simbólico: no início deste milênio, em (Grings, 2010).
março de 2001, foi destruída uma das maio-
res estátuas de Buda em pé já esculpidas Nos dias que antecederam o artigo de
pelo homem. Ficava no vale do Bamiyan, Grings, já havia sido divulgado um pronun-
a 240 km de Cabul, no Afeganistão, e era ciamento contrário ao PNDH-3 assinado por
do século V da Era Cristã. Era também mais de 40 bispos e propagado oficialmente
declarada como patrimônio da humani- por várias arquidioceses:
dade pela Unesco. [...] Não poderão com
decretos retirar do coração do nosso povo “[...] prosseguindo a tradição profética da
suas raízes, suas devoções, sua cultura e Igreja Católica no Brasil, que, nos momentos
seus sentimentos. [...] Em nosso atestado de mais significativos da história de nosso país,
batismo está uma missa celebrada no alvo- sempre se manifestou em favor da democra-
recer do Brasil, Terra de Santa Cruz! [...] cia, dos legítimos direitos humanos e do bem
Trata-se, antes de tudo, de uma questão de comum da sociedade, [...] nos vemos no dever
preservação da memória de nossa história de manifestar publicamente nossa rejeição
e das raízes culturais da nossa identidade a determinados pontos deste Programa. [...]
brasileira. [...] Além de sua história pro- Os símbolos religiosos expressam a alma
fundamente ligada à fé cristã e católica, do povo brasileiro e são manifestação das
o povo brasileiro, em sua grande maioria, raízes históricas cristãs que ninguém tem o
professa a fé que recebeu dos seus ante- direito de cancelar” (“Manifesto dos bispos
passados e se identifica com os símbolos sobre o PNDH-3”, 2010).
que a expressam” (Tempesta, 2010).
As três citações se inserem num rol
No mês seguinte à declaração de Tem- bastante amplo de manifestações que, con-
pesta, Dom Dadeus Grings, então arcebispo trárias à retirada de símbolos religiosos de
verificável na realidade social. Essa tentativa luto dos adeptos do catolicismo decresceu,
de incorporação da multiplicidade no inte- transitando de 125,5 milhões de indivíduos
rior de um núcleo católico, ao absolutizar em 2000 para 123,3 milhões em 2010. Uma
as referências valorizadas pela Igreja, leva à perda de 2,2 milhões de fiéis no mesmo
minoração do contraditório pela recusa em período em que a população do país teve
reconhecer a existência de discrepâncias e um aumento de mais de 20 milhões.
descontinuidades inconciliadas. Quando se verifica essas informações do
Tempesta defende que os crucifixos em IBGE e se as coloca em contraste com as
recintos estatais estão ali por exprimir o falas do Episcopado, se vê nitidamente, no
caráter real do país: “É como se fosse o discurso católico, a estratégia que Ernesto
DNA de nossa civilização: 99% dos genes Laclau classifica como homogeneização de
são comuns a todos nós. As diferenças são uma massa heterogênea (Laclau, 2011, p.
mínimas e quase nem se notam”. O arce- 202). Há claro descompasso entre os dados
bispo afirma, assim, com todas as letras, censitários, que revelam um cenário reli-
a ideia de que haveria uma uniformidade gioso cada vez mais plural, e as palavras
religiosa a perpassar o território brasileiro dos bispos, que procuram idealizar uma
de cabo a rabo. A liderança eclesiástica não identidade católica que irmanaria todos que
leva em conta os dados demográficos que se reconhecem como brasileiros.
apontam para a queda contínua, e cada vez Nesse exercício de pensar com o auxí-
mais expressiva, no número de cidadãos lio de dados demográficos, é interessante
que se declaram católicos. notar, ainda, o crescimento recente, mas
O Instituto Brasileiro de Geografia e vertiginoso, do número de evangélicos no
Estatística (IBGE) aponta que o declínio país. No ano de 2000, aproximadamente
começou de certa forma tímido: em 1940, o 26,2 milhões se diziam evangélicos, o que
instituto apurava o número de 95% para o constituía 15,4% da população. Em 2010, os
porcentual de católicos no Brasil; no decê- evangélicos passaram a ser 42,3 milhões,
nio seguinte, esse número caiu para 93,7%; ou 22,2% dos brasileiros. Um aumento de
no ano de 1960, os católicos eram 93,1% do 61,45% em dez anos. Tais dados despertam
total da população; em 1970, 91,1% dos bra- atenção aqui, na medida em que líderes de
sileiros se declaravam católicos; uma década confissões evangélicas se manifestam dis-
depois, esse número passava para 89,2% criminados pela exibição de imagens cató-
e, em 1991, diminuiu para 83,3%. Com o licas em estabelecimentos públicos, assim
início do novo milênio, vieram os declives como criticam, por exemplo, o feriado ofi-
vertiginosos: em 2000, a porcentagem dos cial de 12 de outubro e as capelanias nas
que se declaravam católicos diminuiu em Forças Armadas. Desse modo, por trás da
quase 10% e foi parar em 73,6% da popu- imagem de um Brasil em que todos são
lação nacional; o mesmo padrão de queda harmonicamente congregados pelo cato-
continuou uma década depois, quando se licismo, há, sim, lutas encarniçadas entre
chegou às estatísticas atuais de 64,6% de uma religião cada vez menos majoritária
católicos em cerca de 190 milhões de bra- e suas concorrentes em ascensão. E o que
sileiros. Pela primeira vez, o número abso- não falar do recrudescimento das dispu-
CRUCIFIXO TAMBÉM É CULTURA política. Não é católica a lei que nos rege.
Da nossa fé prescindem os depositários da
Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio autoridade. Leigas são nossas escolas; leigo,
de Janeiro nas décadas de 1920 e 1930, foi o ensino. Na força armada da República, não
o principal idealizador do monumento em se cuida da religião. Enfim, na engrenagem
honra ao Cristo Redentor, assentado no cume do Brasil oficial não vemos uma só mani-
do morro do Corcovado, na capital flumi- festação de vida católica. O mesmo se pode
nense. Em 11 de outubro de 1931, um dia dizer de todos os ramos da vida pública”
antes da abertura oficial da estátua, houve o (Leme, 1916, p. 18).
encerramento do Congresso do Cristo Reden-
tor, realizado especialmente para a ocasião. A partir de 1921, com a transferência
No pronunciamento que marcou o final do de Leme para o Rio de Janeiro, capital
congresso, Leme assim falou: federal, a carta passou a ser efetivada como
um programa de ação dos bispos católi-
“Nós queremos que Ele Reine sobre o Brasil. cos, válido para todo o país. A relevância
E Cristo reinará! [...] Amanhã eles irão sagrar do documento pode ser medida pelo fato
a Cristo Rei do Brasil. Ó pátria, ajoelha-te de que, mais de duas décadas após sua
junto à Cruz do Redentor, junto à cruz onde divulgação, o padre Ascânio Brandão ainda
nasceste grande e cresceste imensa. Brasil! afirmava que ali estava “a Carta Pastoral
Ó pátria, ajoelha-te junto à Cruz do Reden- do Brasil” (Azzi & Grijp, 2008, p. 12). Já
tor. Ó Pátria, conserva-te de joelhos diante a revista A Ordem, maior publicação da
de Cristo Redentor porque assim poderás imprensa católica na época, publicava tre-
apresentar-te de pé diante das outras nações, chos da carta nos seus números, sempre
adorando um só Cristo Redentor [...]. Cristo antecedidos com a sugestão “palavras que
vence, Cristo reina, Cristo impera” (O Jor- devem ser dez, vinte, cem vezes meditadas”
nal, 1931, p. 2). (Grinberg, 1999, p. 59). De fato, o escrito
de Leme foi o documento que mais inspi-
Previamente a esse discurso, em 1916, rou e propulsou as orientações eclesiásticas
ao tomar posse da arquidiocese de Olinda, no Brasil até o período que antecedeu a
Leme redigira uma carta pastoral para sau- abertura do Concílio Vaticano II. E quais
dar seus novos diocesanos. Ainda que vol- eram as implicações de ter essa carta do
tada aos fiéis da cidade pernambucana, a arcebispo, também chamada de um “clarim
mensagem manifestava a ambição de Leme de guerra, de guerra santa” (Rosário, 1962,
em abarcar territórios para além de suas p. 61), como o principal documento do Epis-
circunscrições municipais: copado durante quatro décadas? Para uma
melhor análise das declarações do clero na
“Desconhecendo ainda as circunstâncias polêmica do PNDH-3, será proveitosa uma
locais de nossa arquidiocese, queremos resposta a essa indagação.
tratar daquilo que no Brasil de hoje mais Para Scott Mainwaring, a carta pasto-
necessário se nos afigura. [...] católicos não ral de Leme deu início a uma nova era na
são os princípios e os órgãos da nossa vida trajetória da Igreja no Brasil, ao período
Bibliografia