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SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula G.; NUNES, João Arriscado.

Introdução
Século XVII – Europa – transformação da ciência em única forma de conhecimento válido:
debates epistemológicos + questões sociais e políticas e econômicas > processo longo e
controverso.
Dois argumentos: conhecimento como forma de desenvolvimento tecnológico OU
conhecimento como forma de busca do bem, felicidade, continuidade entre sujeito e objeto.
Vitória: primeiro argumento > em parte pela ascendência do capitalismo e transformações
sociais que ele carrega.
Essa transformação epistemológica consuma-se no SÉCULO XIX > novo exclusivismo
epistemológico > “destruição criadora” > isso leva, no domínio do conhecimento, a dois
processos paralelos.
Primeiro processo: emergência de uma concepção a-histórica do próprio conhecimento
científico;
Segundo processo: “destruição criadora” > provoca epistemicídio > morte dos outros
conhecimentos, dos conhecimentos alternativos que leva também à liquidação ou
subalternização dos grupos sociais produtores desses conhecimentos.

Perturbações: esse processo conheceu perturbações > maioria da população vive no Sul (Sul
sociológico, não geográfico) > por isso, não é cabível ignorar seus conhecimentos emergentes
e determinar problemas relevantes para a ciência baseando-se apenas nos interesses e
prioridades definidos pelo Norte.

Ciências sociais: Teorias, categorias, metodologias criadas para lidar com as questões das
sociedades modernas do Norte > necessário outras perspectivas para lidar com as questões do
Sul > características, dinâmicas históricas e experiências sociais diferentes.
Crise epistemológica da ciência moderna: reconhecimento de que há outras formas de
conhecimento + reconhecimento da disjunção entre modelização (criação de modelos
fundados em teorias e assentados em investigações empíricas) e previsão (capacidade de
prever a partir da aplicação dos modelos em ambientes controlados e confinados) –
dificuldade de lidar com a COMPLEXIDADE dos processos e situações.

Crise: duas consequências: cresce influência e importância da complexidade como conceito


transversal + crescem as consequências não previstas ou não desejadas dos usos e aplicações
das ciências e tecnologias (“sociedade de risco”).
Resposta à crise: processo de debate interno no campo da ciência > abertura para diálogo com
outros conhecimentos e saberes > busca de novas configurações de conhecimentos.
História canônica da ciência ocidental: benefícios e efeitos capacitantes que a ciência moderna
e o desenvolvimento tecnológico trouxeram para todo o mundo > outro lado da história:
epistemicídios em nome de uma visão científica do mundo > desperdício e destruição de muita
experiência cognitiva humana.
Bondade intrínseca da ciência: e as suas aplicações perversas por atores econômicos, políticos
e militares poderosos? A ciência é indiferente a considerações morais, os responsáveis por seu
“mau uso” são sempre os atores.
História da ciência: sucessos e benefícios + consequências e efeitos perversos e negativos >
consequências benéficas ou negativas: podem variar dependendo das posições e experiências
históricas diferentes > cientistas/leigo; colonizador/colonizado.
Necessário: recuperação/reconstrução dessas outras versões da história > só assim, história da
ciência deixará de ser a história da expansão da ciência moderna ocidental para abrir novos
caminhos para histórias globais e multiculturais do conhecimento.
Retorno ao questionamento e debate aberto: problemas criados pelo desenvolvimento
tecnológico – questões éticas, políticas, ambientais, sociais, de saúde da biotecnologia, dos
transgênicos, dos fertilizantes, das barragens – precisam ser enfrentados e precisam incluir no
debate e na pesquisa os atores envolvidos diretos e indiretamente nessas questões.

Constituição do “sistema-mundo moderno/colonial” = visou reduzir a compreensão do mundo


à compreensão ocidental do mundo por meio de projetos “civilizadores” ou chamados
libertadores ou emancipatórios.
Conhecimentos dos povos “conquistados”: reduzidos à manifestações de irracionalidade, de
superstições ou, quando muito, de saberes práticos e locais que para serem
relevantes/válidos, precisariam se submeter à logica do “conhecimento verdadeiro”, à logica
da ciência moderna.
“[...] a construção da natureza como algo exterior à sociedade [...] obedeceu às exigências da
constituição do novo sistema econômico mundial centrado na exploração intensiva dos
recursos” (p. 6).

Essa construção [da natureza como externa – e eventualmente, dicotômica – à sociedade]


sustentou-se a partir do paradigma científico que emerge com a ciência moderna e se ampara
na separação entre natureza (recurso) e cultura (sociedade) (CITA).
Relação conhecimento e poder = produção do Ocidente como forma de conhecimento
hegemônico exigiu a criação de um Outro, constituído como um ser intrinsecamente
desqualificado, um repositório de características inferiores em relação ao saber e poder
ocidentais e, por isso, disponível para ser usado e apropriado – produção da alteridade colonial
como espaço da inferioridade.
Ciência: ofereceu ao poder imperial, em diversas manifestações históricas, os recursos
necessários para desarmar a resistência dos povos e grupos sociais “conquistados”.
Século XVIII-XIX: invenção do selvagem como ser inferior +imposição da ideia de progresso
científico e tecnológico como imperativo para atingir o “desenvolvimento”.
Criação do outro como ser desprovido de cultura e saber: supria a exigência colonial de
transportar “civilização” e a sabedoria verdadeira para os povos (assim, considerados
ignorantes).
Selvagem: lugar da inferioridade > destruição dos conhecimentos nativos tradicionais e
inculcação dos conhecimentos “verdadeiros”
Natureza: lugar da externalidade > e por isso, também inferior (exterior não pertence, se não
pertence, não é igual, portanto, é inferior) > natureza é recurso incondicionalmente disponível.
Estratégias de conhecimento: são estratégias de dominação e poder > selvagem e natureza são
“natureza selvagem” para domesticação > distinção entre recursos humanos e recursos
naturais ambígua no século XVI e ambígua hoje > transformado em recursos: serve para ser
explorado até a exaustão.
Impérios coloniais: levaram seus modos de vida ditos “civilizados” para as colônias > paisagem
plural de saberes foi obscurecida > criação mimética de “pequenas Europas” cm instituições,
formas de vida europeias impostas > instituições e práticas locais desprezadas.

Século XX > movimentos nacionalistas > inspira debates sobre caráter e função da ciência >
esses debates levam a discussões sobre as políticas do conhecimento – sem se restringir ao
uso do conhecimento para o desenvolvimento e emancipação dos povos colonizados – mas, ao
contrário, trazer o direito das diversas formas de conhecimento existir sem marginalização ou
subalternidade por parte da ciência oficial – que é defendida e apoiada pelo Estado.
Esses novos debates > foram interrompidos com a independência dos territórios coloniais já
que a partir disso, o foco tornou-se “vencer o subdesenvolvimento” > por isso, o enfoque foi
aplicar os resultados científicos já alcançados no Norte, principalmente > reflexão fora de cena,
ciência volta ao seu lugar de primazia.
Nesse momento: ciência enquadrada num esquema estatocêntrico e determinista > recheada
de positivismo sem raízes apoiada na invenção, na inovação e na difusão > neste período:
ciência populariza-se, ganha caráter de objeto de consumo > “ciência-mercadoria”.
Mudanças políticas 80/90: imposição de reformas neo-liberais – muitas impostas por agências
internacionais como Banco Mundial e FMI que valorizam o conhecimento e querem a
imposição do conhecimento científico “do Norte” > por isso, a “ciência-mercadoria” é imposta
e se torna vetor na subordinação do Sul ao Norte.

Discussões novas > só ressurgem com o debate produzido pela crítica feminista e pelos
estudos pós-coloniais e pós-modernos > mas nesse ponto, a influência da racionalidade e da
cientificidade ocidentais já tinham transformado a ciência moderna em ponto de referência
central na avaliação das ‘outras’ culturas locais e sistemas de conhecimento.
“Esta capacidade de reproduzir ad eternum o Outro através da dicotomia cultural e
epistêmica, entre o saber científico e os saberes alternativos, rivais, tem sido o garante da
perpetuação da noção de subdesenvolvimento até aos nossos dias”.

Novos termos: “conhecimento local”, “conhecimento indígena” “etnociência” > formas de


reconhecer a pluralidade de sistemas de produção de saber e sua importância nos processos
de desenvolvimento.
Crise do saber científico moderno: está no fato dele perpetuar a relação de desigualdade
colonial, recorrendo à aposta numa monocultura do saber.
Saber ocidental: é entronado como entidade coerente, autoridade dinâmica, neutra, objetiva.
“Outros” saberes: “conhecimento local” > dito restrito, circunscrito, local, sem aplicação para
além dele; “conhecimento tradicional” > dito homogêneo, estático, particular > Encobre-se “o
fato de que os grupos sociais renovam os seus conhecimentos constantemente em função de
novas experiências e de novos desafios postos por circunstâncias históricas novas”.

Século XX > com movimentos nacionalistas: reacender debates em torno do caráter e função
da ciência > debates sobre políticas do conhecimento > afirmar o direito das diferentes formas
de conhecimento a uma existência sem marginalização ou subalternidade por parte da ciência
oficial – defendida e apoiada pelo Estado.
Questionar da concepção hegemônica do saber científico moderno: a partir das últimas
décadas do século XX, sobretudo no Sul > reavivar a polêmica sobre a pluralidade
epistemológica do mundo > aponta para a necessidade de uma mudança paradigmática no
campo da produção do saber científico.
Debate sobre pluralidade epistemológica do mundo: duas vertentes > vertente interna: que
questiona o caráter monolítico (único, de unicidade) do cânone epistemológico e interroga as
práticas internas da ciência, dos modos de fazer e da relevância epistemológica, social e
politica > vertente externa: exclusivismo epistemológico da ciência, relações entre a ciência e
outros conhecimentos.

Pluralidade interna da ciência: questionamentos quanto à neutralidade da ciência, explicitando


a dependência da investigação científica de escolhas > escolhas sobre os temas, problemas,
modelos teóricos, metodologias, linguagens, imagens e formas de argumentação >
caracterização das culturas materiais das ciências, modos de relacionamento dos cientistas
com os contextos institucionais (Estado, entidades financiadoras, interesses econômicos,
interesses públicos) > interrogar condições e limites da autonomia das atividades científicas
(explicitando as relações entre ciência e contexto social/cultural que ocorrem).
Práticas e narrativas científicas: são plurais! > novas abordagens epistemológicas, sociológicas
e históricas: pulverizaram a pretensa unidade epistemológica da ciência.

Diferenciação e especialização das ciências: processo histórico influenciado por dois outros
processos > primeiro processo: a suposta separação entre ciência (investigação) e tecnologia
(aplicação) para atribuir as consequências – boas ou ruins – da ciência à forma como se
escolhe aplica-la, garantindo à ciência sua NEUTRALIDADE; mas ciência e tecnologia são
interdependentes e tem implicações mútuas (“tecnociência”) > segundo processo: demarcação
da ciência e outros modos de relacionamento com o mundo; Fronteira entre ciência (razão,
rigor, luzes) e opinião (ignorância, irracionalidade) > ciência e opinião como processo de fusão
e de emergência de uma opinião iluminada pela ciência e de uma ciência sensível aos
problemas do mundo e dos cidadãos.

Fronteiras internas da ciência: redução da ciência à um modelo epistemológico único


(matemático) > gerou resposta: diversificação, multiplicidade de “ecologias de práticas” com
modelos epistemológicos distintos > diferentes ciências invocando diferentes modelos de
cientificidade e sendo atravessadas por tensões entre esses modelos.
Fronteiras: territórios de passagem > são modos de dar autonomia e legitimidade às ecologias
de práticas distintas, sem precisarem se submeter a modelos epistemológicos estranhos.

Crítica: ciência moderna como garantia da permanência do estatuto hegemônico do atual


sistema econômico capitalista.
Pela defesa da pluralidade epistemológica: novas configurações de saberes que a ciência
moderna neutralizou ou ocultou na história.
Todo conhecimento é situado (todos os conhecimentos são contextuais): todos os
conhecimentos > incluindo o científico > tem suas capacidades para realizar determinadas
tarefas em contextos sociais delineados por lógicas particulares.
A atual reorganização global da economia capitalista está assentada na produção contínua e
persistente de uma diferença epistemológica > essa diferença não reconhece outros saberes,
criando uma hierarquia epistemológica que leva à marginalizações, silenciamentos, exclusões e
liquidações > esse “diferença epistemológica” se assenta também (além da diferença
capitalista) na diferença colonial e sexista.
Luta cultural: cultura cosmopolita e pós-colonial (pensamento anti-fundacionalista baseado na
recriação de discursos identitários) x multiculturalismo emancipatório (pluralidade de
conhecimentos) > luta contra uma monocultura do saber.

Especialista e leigo: especialista como detentor do conhecimento e cidadão como mero


observador e consumidor da ciência.
Conhecimento técnico e não-técnico: fronteira fluida e complexa > afirmar a separação dos
dois é defender uma visão, um projeto específico de organização (de hierarquização) do saber
e do poder (projeto este que afirma o rigor, a eficácia e racionalidade apenas do técnico).
Apenas aspectos não-técnicos da ciência (sociais e éticos) > seriam relegados para o domínio
do conhecimento “leigo” > integração dos cidadão na agenda científica para que eles (os
cidadãos) possam ser atores no debate dos impactos sociais das decisões técnicas.
Soluções técnicas se chocam com conhecimento prático e a experiência sócio-cultural dos
cidadãos: esse choque pode ser politizado pela mobilização dos cidadãos > aí essas solução são
questionadas > inclusive no interior da ciência (por outros cientistas e técnicos) > isso
demonstra a pluralidade interna da ciência.
Não existe UMA solução técnica para problemas complexos: existem VÁRIAS possíveis solução
> a escolha por uma solução específica é sempre política, social, cultural e/ou econômica.
Fronteira social x técnico: móvel e complexa > as decisões precisam ser tomadas levando em
conta isso e com a contribuição de todos os atores (cientistas, técnicos e cidadão) > e levando
em conta, principalmente, aqueles que terão de viver com as consequências das decisões
tomadas.

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