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Guedes, Jair, Trump e OCDE: a compulsão de alto custo social

- Luiz Roberto Alves -

Este texto se destina aos que dirigem, legislam, julgam e palpitam sobre o destino do país. E que
ainda portam sensibilidade diante da educação das gerações, saúde no cotidiano, previdência
para jovens e velhos, bem-estar social para todos, especialmente os pobres, desempregados e
historicamente marginalizados. Noutras palavras, aqueles e aquelas que entendem o que seja um
país da diversidade e da desigualdade.

Entre os anos de 2006 e 2007 este pesquisador trabalhou sobre as publicações da OCDE,
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a partir dos documentos
disponíveis nas universidades de Florença, Berna e na sua sede parisiense. Essa organização é
aquela para a qual Trump sugere a entrada a Bolsonaro, “bastando” para tal que o Brasil perca a
classificação de “país em desenvolvimento” junto à Organização Mundial do Comércio, que
garante intercâmbios comerciais mais justos para produtores e exportadores. A despeito de ser
entendida como a instituição que norteia o comportamento do G-7, de fato a OCDE dita certas
regras e normas para dezenas de países, que orbitam em torno de seus textos de análise
econômica [1].

A OCDE deixou de ser assessora para ser a proprietária de um discurso autocrata, cuja narrativa
mítica dirige, impõe e conduz. O objetivo bolsonarista de hoje é simples: deixa de realmente “estar
em desenvolvimento” para parecer rico, ou orbitar em torno dos ricos. Talvez ser país rico no
gogó, com o privilégio de se encontrar ocasionalmente com Trump e outros trinta e cinco
dirigentes de nações. Por enquanto, somente Chile e México representam a América Latina.

Naquele momento, 2007-08, a pesquisa tratou de pensar os textos dos especialistas da OCDE
sob o ângulo da formação educacional e do trabalho da juventude europeia, o que permitiu refletir
sobre o trabalho da juventude brasileira e seus problemas de formação e emprego.[2] Os textos
principais do trabalho foram os conhecidos Economic Outlook e os documentos temáticos sobre
saúde e educação. Os primeiros eram semestrais e os últimos saíam ao sabor das encomendas
do G-7, G-8 e do grupo completo, os chamados países de renda alta (pouquíssimos de renda
média), para os quais o senhor Jair Bolsonaro olha como raposa para as uvas maduras.

A convivência de uma semana exaustiva com centenas de sindicalistas dos vários continentes no
Fórum Social Mundial de Nairobi, 2007, ajudou o pesquisador a delinear caminhos a partir da crise
e dos rearranjos do Capitalismo não só entrevistos como vistos e sentidos naquele momento. Mais
importante ainda, o que significaria, a partir de então, a formação exigida e a precariedade da
renda dos jovens, com alguma saída mirífica ao empreendedorismo. Mas basta ver filas colossais
de jovens em busca de uma vaga com carteira assinada (e até não assinada) para se entender o
Brasil profundo das novas gerações. Nele, os adolescentes são expulsões por variadas razões, de
modo que de cem meninos e meninas que iniciaram o primeiro ano fundamental, quinze chegam
ao fim da educação básica. Como se sabe, o desemprego dos jovens é três vezes maior que o
dos adultos, até entre membros da OCDE. E a reengenharia dos capitais garante que os salários
dos jovens se desgarrem de sua formação. Aliás, a combinação da reforma trabalhista com a
reforma da previdência converge para um ponto central: a precariedade substantiva dos que
entregam sua vida no mundo do trabalho. Bolsonaro concorda bastante com isso.
Dando um salto dentro do tema, que é a suposta ida do Brasil ao clube dos ricos, cabe ir ao foco
do novo movimento de ensaio-e-erro do governo eleito por mais de 54 milhões de brasileiros e
brasileiras. E, sem medo de errar, que fique claro que a OCDE, apoiada pelo Banco Mundial e
outros organismos do capital internacional, tem um discurso canônico, religioso, do qual ninguém
pode ficar de fora, a saber: a integração positiva das nações - e de cada uma em particular - só se
realiza por meio de uma equação neoliberal contundente, segundo a qual deve haver regulação
internacional da economia e da moeda, que exige reestruturação das políticas sociais,
questionamento da política de relações de trabalho e bem-estar e a aplicação de um ferrolho nos
Estados que gastam muito com previdência e assistência social. Lembremo-nos de que em uma
de suas reuniões gerais, em 2007, a OCDE decidiu estreitar relações com China, Brasil, África do
Sul, Índia e Indonésia a fim de trazer esses países aos quadros do clube; no entanto, deixou claro
que isso ocorreria, literalmente, “ quando essas nações tivessem adotado as práticas, políticas e
standards” do clube capitaneado pelos mais ricos.

Nenhum deles entrou até agora, depois de doze anos. Os conflitos abertos no Chile, na República
Tcheca, na Turquia e no México dão mostra das exigências sociais para ir à mesa lauta dos ricos
e exigem de nossos economistas, agentes públicos e âncoras da mídia, ingênuos e de pouca
leitura, cuidado ao dizer que a entrada na OCDE trará altos investimentos para garantir as
reformas. Ora, a exigência se faz pelo contrário. Sem o ferrolho das reformas ninguém entra. Ao
menos de acordo com os documentos disponíveis desde os anos de 1990, aqueles que mais
ajudam a compreender a contemporaneidade.

Então, com que roupa o Brasil se apresentará na mesa dos supostos ricos, visto que tem de
realizar duas violências sociais e econômicas? A primeira se constitui das perdas no comércio
internacional, que precisam ser contabilizadas e auditadas antes da aventura bolsonarista. A
segunda exige certa terra arrasada nas conquistas sociais dos mais pobres ou, ao contrário, que
imediatamente – ou magicamente - os mais pobres deixem de sê-lo. Alguém tem clareza disso?
Ora, a inteligência brasileira deve ousar dizer que a conversa do Trump é uma burla, é um engodo
a Bolsonaro, pois (America first!) serão perdidas as vantagens comerciais e o país, ao
candidatar-se para a OCDE poderá ficar na fila de espera por muito tempo, tendo voado o
passarinho da mão sem conseguir pegar outro.

A maior crítica que se faz ao grupo de economistas encastelado em Paris, base da OCDE, é que
ele se entende como “comunidade epistêmica” e, nesse sentido, seus textos se constituem
cânones da economia do mundo, isto é, ninguém vai ao clube sem enquadramento no
conhecimento gerado pelos experts de Paris. Ninguém vai ao céu sem a OCDE. E os que
fraquejam em concessões sociais (vide os Economic Outlook dos anos de 1990 e sequência)
recebem punições, como nas narrativas religiosas e estórias dramáticas.

Por isso, as grandes fissuras e conflitos, que levam presentemente os textos da OCDE a se
tornarem pessimistas residem nas distâncias entre o diverso e o pensamento único, as
expressões regionais e locais dos países-membros e as estruturas em que devem se encaixar
para se manter como membros da organização. A Alemanha apresenta fissuras regionais, bem
como a Turquia, República Tcheca, Hungria, Chile. As pressões populares, locais e regionais, são
o horror da OCDE, pois problematizam os cânones. Desde o fim dos anos de 1990 a Europa é
fortemente criticada porque seus “intra-regional developments continue to exhibit strong diversity”.
Imagine-se o que terá de ser feito no país mais diverso e desigual do planeta, o Brasil, para
garantir a mesa dos países ricos?
Pelas propostas da OCDE, qualquer ação social dos governos deve sujeitar-se ao olhar e à
consideração dos capitais em movimento internacional
Quem ler os últimos documentos saídos de Paris verá muito mais problemas e incômodos que
soluções: questões de gênero longe de equilíbrio, crescimento lentíssimo quase generalizado,
conflitos nas bases do trabalho, reformas sem apoio local-regional em razão da diversidade
econômica, cultural e ocupacional das gentes etc. As propostas da OCDE, nos marcos do
ultraliberalismo, são as mesmas de sempre: ferrolho social, incremento de reformas
previdenciárias, desregulamentações orçamentárias, cuidado com ambientalistas visionários,
flexibilizações dos modos de contratação de trabalhadores, privatização da res publica e controles
débeis do sistema crescentemente privatista. Noutras palavras, as políticas monetária e fiscal – a
par do deus-mercado - devem submeter todas as políticas sociais. A gestão social só pode ser um
ator coadjuvante. Mais: qualquer ação social dos governos deve sujeitar-se ao olhar e à
consideração dos capitais em movimento internacional. Por exemplo, a educação que importa é a
básica, fundamentada no treinamento dos jovens e adultos. Treinamento, o grande mal da
educação para Paulo Freire, embora o nosso ensino médio não ofereça, salvo boas exceções,
nem educação humanista, nem treinamento para o trabalho. Quanto à saúde, o Brasil nunca
esteve muito mal nas análises da OCDE, o que dependeu das formas e modelos de abordagem.
Há ótimos textos do IPEA sobre o assunto. No entanto, seu investimento e retornos na saúde
cotidiana das populações sinalizam as garantias de recursos orçamentários e o SUS ainda é uma
política de grande importância. No entanto, o que dizer das desvinculações ora propostas por
Guedes-Bolsonaro sem que se tenha, no mínimo, equacionadas as disparidades locais e
regionais? Será que o Brasil profundo interessa, minimamente, a esses governantes e à troupe de
economistas, agentes públicos e âncoras de mídias? Várias analogias podem ser feitas, como
fenômenos simbólicos, na educação, na literatura, nas expressões culturais populares, no futebol.
Neste último, veja-se o tempo da criação e da invenção nas seleções nacionais e nas equipes
estaduais e veja-se agora, o tempo das normas, modelos e supostas táticas. Mediocridade e
ruína. Como disse o craque Casagrande, o Brasil está contaminado por modelos táticos. Trump se
propõe a jogar um modelão sobre o presidente do Brasil e seu governo. E deixará as táticas para
que os experts da OCDE exijam seu cumprimento.

A pobreza demasiada perturba o capitalismo porque não se movem lucros e bens

A despeito de tudo, parece que os senhores Guedes e Jair não acompanham os textos da OCDE
depois que ela fracassou redondamente nas previsões dos PIBs de 2007 e sequência. Imaginou
7% para os EUA e de fato ele foi ao chão, no interior da crise conhecida. Chega a ser simpática a
última análise da OCDE sobre o Brasil, 2018, especialmente pela ótica da necessidade de investir
e de buscar a garantia de quem trabalha e sofre na pobreza, a despeito dos mesmos diapasões
liberais. Em ambiente de pobreza demasiada o capitalismo moderno se perturba, porque não se
movem seus lucros e bens. Parece, de fato, que estamos em 1998 nos olhares de Guedes e
Bolsonaro. A sanha reformista (sem desprezar a necessidade de pensar, com justiça e equidade,
a questão previdenciária e a luta renhida contra corrupção, inflação e desemprego) parece uma
parada de leitura há 20 anos atrás.

A proposta de Trump é um engodo, já anunciado nas críticas anteriores que fez ao Brasil dos
privilégios comerciais. Países ricos em diversidade de toda ordem devem buscar parâmetros mais
inteligentes que a submissão ou o decalque de políticas monetárias. Políticas com alguma
originalidade. Se os campos das culturas, das artes, do antigo futebol ou das peladas, das
criações estéticas populares e certas experiências educacionais do Brasil são capazes de sinalizar
sucesso, alegria e dignidade coletiva, por que vamos cair no bico da America first? Lembremo-nos
de que a America de Trump não é la nuestra América. E ninguém precisa ser nacionalista para
desconfiar das burlas. Tampouco precisa ser para expressar esperançamento nas criações de um
povo da Terra Brasilis, como cantou Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim.

[1] A OCDE é a reorganização de uma instituição europeia internacional que vem dos anos
imediatamente posteriores à segunda guerra mundial. Em 1960 ela se expande com o nome que
hoje tem.

[2] Trabalho, Cultura e Bem-Comum (leitura crítica internacional). São Paulo: Fapesp, Annablume,
2008.

Luiz Roberto Alves é Professor e Pesquisador da ECA-USP, aposentado. O apoio do CNPq, da


bolsa Erasmus Mundus (CE) e a publicação final pela Fapesp foram decisivos para o trabalho que
dá base a esta reflexão.

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