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recipientes. O ornamento, portanto, é funcional em relação a uma ordem de funções que
exigem que o recipiente não seja apenas um recipiente, mas um objeto em relação com
aquilo que se pensa ser o mundo; somente assim o objeto pode superar o limite da
função estritamente prática e satisfazer uma função simbólica que tem uma importância
social incontestável.
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mesmo tipo de relação que estabelecemos com as pessoas com as quais tratamos de
nossos negócios e com as quais, justamente, não nos interessa manter relações
sentimentais, mas de correção, utilidade, colaboração. A relação, enfim, que
estabelecemos com aquele objeto é uma relação “social”, porque na realidade
concebemos o mundo como a dimensão na qual vive e opera uma comunidade, na qual
se articula a dialética da sociedade ativa. Vimos que a relação entre o objeto produzido
pelo artesanato e o mundo natural ocorria por analogias formais: como ocorrerá, na
prática, a relação entre o objeto produzido pela indústria e a dimensão ou o espaço
social? Antes de mais nada, é preciso ter em conta que uma das características da
tecnologia moderna é a especificidade de cada procedimento no âmbito de uma
metodologia geral, que fixa o tipo e o modo do comportamento operacional do homem
moderno. Essa metodologia se concretiza num determinado processo, que é a
elaboração do projeto: o que caracteriza o objeto moderno, produzido mediante técnicas
industriais, é justamente o fato de ser um objeto projetado, isto é, executado em todos os
seus pormenores numa fase conceitual e depois impresso do mesmo modo como se
imprime o texto de um livro. Evidentemente, o projeto deve ser “viável” isto é, deve
prever in nuce 1os meios e as fases de execução; mas a viabilidade técnica não é o único
fator da elaboração do projeto. Na medida em que se quer que o objeto corresponda a
uma função, deve-se considerar essa função como inerente à vida social moderna e
inevitavelmente correlata a todas as demais funções; devem-se levar em conta as
condições de consumo, isto é, a possibilidade de inserção daquele objeto no contexto da
economia da sociedade. Na prática, o projetista deve imaginar um quadro preciso da
vida moderna e em seguida estabelecer o lugar do objeto que quer projetar no conjunto
desse quadro. Assim o objeto nasce, ao mesmo tempo, como objeto específico,
correspondente a uma função particular, e como objeto “relacionado” ao conjunto
3 Qualidade,
dinâmico das funções. Também o aspecto função e valor
que chamamos do desenho
simbólico industrial.
das funções sociais
é, e vimos isso, uma necessidade prática, para que a sociedade crie seus símbolos na
medida em que eles concretamente sirvam a ela.
Resta, porém, uma pergunta: existe uma ordem de forma precisa, um princípio
definido de estilo que possam ser identificados como característicos dos objetos
produzidos segundo a metodologia projetística do desenho industrial? Não existe:
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Nota da digitação: "In nuce é uma expressão latina, que significa literalmente "em uma noz".
Foi dita por Plínio, o Velho, referindo-se a uma versão da Ilíada, que, de tão resumida, caberia dentro de
uma noz. Significa, portanto, "de forma concisa", "em suma". Também pode ter o sentido de algo que está
em seu estágio inicial, embrionário, e sobre o qual é possível intuir ou elaborar hipóteses acerca dos seus
desenvolvimentos futuros. A expressão normalmente se aplica a ideias, teorias ou conceitos apresentados
de maneira muito sintética ou ainda em fase embrionária de desenvolvimento." (Fonte: Wikipédia).
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nenhuma analogia formal poderia ser identificada na configuração dos objetos que, com
uma infinita variedade de tipos, forma a fenomenologia do desenho industrial. Ao
contrário, quando um objeto nos parece concebido segundo aquilo que é chamado, com
condenação implícita, “estilo design”, podemos estar certos de que ele implica um erro
de projetação, ostenta a função em vez de representa-la, é a caricatura de si mesmo,
como no caso de certas carrocerias monstruosas dos automóveis americanos. E no
entanto reconhecemos num golpe de vista o objeto que foi produzido por um
procedimento projetístico conforme à metodologia moderna de elaboração do projeto,
ou seja, vemos de imediato se um objeto foi bem desenhado ou não. Essa intuição
depende obviamente da possibilidade ou não de estabelecer com o objeto uma relação
de simpatia psicológica: em outros termos, do fato de objeto, além de representar uma
determinada função, nos representar também como agentes ou protagonistas da função e
nos representar naqueles que consideramos serem os traços essenciais da nossa figura
social. Justamente porque a nossa personalidade social nos interessa mais do que a
nossa personalidade natural, preferimos nos sentir em uníssono com os objetos que
formam o ambiente da nossa existência social mais do que com a paisagem ou céu; e
visto que não sabemos ou não queremos nos reconhecer na unidade da natureza,
queremos ao menos nos reconhecer na singularidade dos objetos. Assim se explica o
fetichismo ou o mitologismo do objeto, que sem dúvida constitui um aspecto do
desenho industrial e faz dele, muito mais do que um processo produtivo tecnicamente
perfeito, um problema estético e um modo absolutamente legítimo de expressão
artística.
Uma última observação: se olharmos para trás, na história das formas, as únicas
que revelam uma certa afinidade, não tanto em si quanto no processo que as produziu,
4 com as dos objetos produzidos peloQualidade, função esão
desenho industrial valor do desenho
as formas industrial.
das armas. Estas,
como bem se sabe, se ajustam não só a uma função precisa e extremamente complexa
de ataque e de defesa, mas também a toda uma série de importantes funções
psicológicas e simbólicas ligadas à condição de tensão e de perigo em que se encontra o
combatente. Por razões evidentes, as armas, em todas as épocas da história,
representaram o maximum qualitativo das tecnologias de produção existentes: de fato,
da qualidade da arma depende a vida da pessoa. Ora, o esforço do desenho industrial é
dirigido a levar todos os objetos que servem à vida civil moderna ao nível das armas
antigas: ele também se baseia no princípio de que tais objetos são decisivos e essenciais
para a vida da comunidade, tal como aquelas armas eram essenciais e decisivas para a
vida dos combatentes. E não é só: aqueles objetos são considerados como o
prolongamento, a ampliação, a integração das possibilidades da pessoa, do mesmo
modo como a arma antiga era o prolongamento, a ampliação e a integração do braço e
do gesto do guerreiro. Isso significa, no fundo, que a sociedade moderna, ou aquela
parte eleita dela que aspira a uma educação contínua e progressiva, considera como área
de máximo empenho aquela em que se desenrola a existência ativa da comunidade; e
identifica nos objetos que compõe o instrumental dessa existência civil as suas armas
mais autênticas e pacíficas.
1961
ARGAN, G. C. Projeto e destino. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 2001. 125-130 p