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Qualidade, função e valor do desenho industrial.

Todos já estão convencidos de que um objeto de uso — seja um móvel, um


interruptor elétrico, uma máquina de costura, um automóvel ou um telefone —, para ter
uma qualidade estética, deve ser funcional. Mas o juízo que se formula com essa
simples afirmação é muito complexo; e implica, antes de tudo, uma ideia do belo, uma
poética. Julgamos belo um objeto funcional, feio um objeto que seja muito
ornamentado: o ornamento é um crime, dizia Adolf Loos. Todavia, sabemos que: 1) o
ornamento não é necessariamente um obstáculo para a função, e, portanto, se um objeto
é belo porque funciona bem, também um objeto ornamentado, desde que funcione bem,
deveria poder ser belo, embora contrário, nós o julguemos feio; 2) o nosso julgamento é
válido em relação às ideias estéticas de nosso tempo, porque todos concordamos que um
objeto tardo-gótico ou barroco, ainda que ornamentadíssimo e muito longe de ser
funcional, tem ou pode ter um valor estético; 3) o nosso julgamento leva em conta a
tecnologia que produziu o objeto: a técnica do artesanato, que produziu o tardo-gótico,
atingia seu objetivo estético no ornamento, a técnica industrial atinge seu objetivo
estético na funcionalidade sem adornos. Perguntemo-nos agora em que consiste o valor
estético dos objetos ornamentadíssimos do passado. Eles contém — gravadas,
modeladas ou pintadas — imagens que podemos facilmente referir ao mundo exterior, à
natureza: flores, folhas, figuras, elementos arquitetônicos, muito embora, no mais das
vezes numa escala diferente, aludam a uma dimensão espacial que não é propriamente a
do objeto: uma criança de bronze sobre a tampa de um tinteiro, embora não seja maior
do que o polegar, evoca em nossa mente as dimensões reais de um menino. Assim,
aquelas imagens alteram, aliás eliminam, os limites “de fato” do objeto. Esse limite “de
1 fato” tinha sido determinado por exigências
Qualidade,práticas:
função eo valor
tamanho de um copo
do desenho está em
industrial.
relação com a quantidade de líquido que se presume deva conter. Também a forma está,
originariamente, em relação com exigências práticas: com o tipo de bebida, com o
movimento da mão que pegará o copo e o levará à boca. Esses dois elementos, tamanho
e forma, definem a porção de espaço que o objeto ocupa materialmente. Mas o olho não
percebe o objeto isolado no espaço, percebe-o em um contexto: surge portanto um
problema de relação. Através das imagens do ornamento o artista põe o objeto em
relação com o mundo, subtrai-o ao limite de sua singularidade. Para o artista que
produziu o objeto tardo-gótico ou do Renascimento ou barroto, o mundo era a natureza,
a história, a cultura literária: por isso substituía a superfície do copo, que isolava o
objeto, por uma superfície na qual podiam crescer, em miniatura, flores e árvores, e
desenrolar-se caçadas ou cenas da mitologia. Portanto, aquelas imagens naturalistas
eram meio com o qual o artista superava o particularismo do objeto e o considerava na
sua relacionalidade. E se existem, certamente, objetos nos quais o ornamento é um friso
ou um emaranhado de formas geométricas, não se deve esquecer que as formas
geométricas são assumidas como símbolos de espaço, de modo que o problema
permanece.

O objeto, por exemplo o copo de que já falamos, é realmente afuncional ou


propriamente antifuncional? Se beber é apenas ingerir um líquido para matar a sede,
aquele cálice ornamentadíssimo decerto não é funcional; mas ele serve, no banquete,
para brindar a saúde dos convivas e, no rito religioso, para celebrar um sacrifício.
Evidentemente, tanto o brinde quanto a oferta de um sacrifício são atos que implicam,
na origem, o ato de beber para saciar a sede, mas o brinde é uma função social, o
sacrifício é uma função religiosa, e no que diz respeito a essas funções a taça e o cálice
são funcionais e o são exatamente na medida em que não são, formalmente, simples

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recipientes. O ornamento, portanto, é funcional em relação a uma ordem de funções que
exigem que o recipiente não seja apenas um recipiente, mas um objeto em relação com
aquilo que se pensa ser o mundo; somente assim o objeto pode superar o limite da
função estritamente prática e satisfazer uma função simbólica que tem uma importância
social incontestável.

Consideremos agora um objeto produzido pela indústria. Este não é


ornamentado; sua dimensão e sua forma são rigorosamente estudadas em relação com
sua função mecânica; uma forma “bela” não é sobreposta à forma “útil”. Mas não é
verdade de modo algum que a forma adira perfeitamente à função específica. A função
específica de um telefone ou de um aparelho de rádio é transmitir nitidamente o som, e
pode-se dar ao telefone a forma de um grupo de tritões e nereidas, ou ao rádio a forma
de um estojo do século XVI, sem diminuir totalmente a funcionalidade; sabemos,
porém, que isso seria um erro estético. Não se cometerá esse erro porque o que
realmente se quer não é que forma realize a função mecânica, mas que a represente. Na
realidade, não se quer que a forma daqueles objetos mantenha com a função a relação
do copo com a função de beber, mas a relação do copo com a função do brinde ou do
rito sacrificial: a função mecânica, portanto, também é, no pensamento do homem
moderno, uma função simbólica. O homem moderno, o homem das grandes cidades,
não identifica seu ambiente com a natureza, mas como mundo das coisas artificiais,
feitas pelo homem para o homem mediante uma tecnologia da qual sente orgulho como
de uma criação própria: ele quer, portanto, inserir o objeto no contexto de um mundo
não natural, mas social.

A técnica artesanal do ornamento diferenciava os objetos, a técnica mecânica da


2 indústria torna-os idênticos: de Qualidade, função
fato, à técnica doe valor do desenho
artesanato industrial.
correspondia uma
concepção da vida como autonomia econômica do indivíduo, à técnica da indústria
corresponde uma concepção da vida que coloca o indivíduo como uma unidade na série:
o standard dos objetos depende da necessidade que se sente de estabelecer um certo
modo de vida comum. A forma dos objetos corresponde assim a uma funcionalidade
prática e psicológica; isso não quer dizer que coincidam sempre. Frequentemente a
forma do objeto constituí um invólucro, que certamente protege o mecanismo interno
mas também nos protege do mecanismo, o qual seria enfadonho ver, mas cuja presença
e eficiência queremos, de algum modo, perceber através da forma externa do objeto.

Mas voltemos à questão do espaço, isto é, da relação entre o objeto idealizado e


construído segundo as técnicas modernas e a nossa concepção do espaço. Dando ao
objeto uma forma correspondente à função queremos substancialmente afirmar que o
objeto é aquilo que é, e nada mais: damos a ele uma forma que equivale a um nome,
uma forma que o caracteriza enquanto objeto. Nós o subtraímos assim do contexto
naturalista, da obrigação de uma relação com as árvores, o céu, a história; mas não o
dispensamos totalmente de situar-se num sistema de relações. Entretanto, sabemos que
aquele objeto é feito em uma série e que existem milhares de exemplares dele
perfeitamente idênticos: é uma relação mental, mas é uma relação. Além disso, sabemos
que aquele objeto está em relação conosco, com determinadas exigências da nossa
existência e do nosso trabalho: queremos que aquele objeto seja a imagem de uma
tecnologia na qual temos fé porque confiamos a ela a solução da maior parte dos nossos
problemas, uma tecnologia, aliás, que já constitui um mito da sociedade moderna;
pedimos a ela que cumpra sua função com a clareza, a presteza e a precisão que
consideramos típicas do homem no nosso tempo; estabelecemos com aquele objeto o

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mesmo tipo de relação que estabelecemos com as pessoas com as quais tratamos de
nossos negócios e com as quais, justamente, não nos interessa manter relações
sentimentais, mas de correção, utilidade, colaboração. A relação, enfim, que
estabelecemos com aquele objeto é uma relação “social”, porque na realidade
concebemos o mundo como a dimensão na qual vive e opera uma comunidade, na qual
se articula a dialética da sociedade ativa. Vimos que a relação entre o objeto produzido
pelo artesanato e o mundo natural ocorria por analogias formais: como ocorrerá, na
prática, a relação entre o objeto produzido pela indústria e a dimensão ou o espaço
social? Antes de mais nada, é preciso ter em conta que uma das características da
tecnologia moderna é a especificidade de cada procedimento no âmbito de uma
metodologia geral, que fixa o tipo e o modo do comportamento operacional do homem
moderno. Essa metodologia se concretiza num determinado processo, que é a
elaboração do projeto: o que caracteriza o objeto moderno, produzido mediante técnicas
industriais, é justamente o fato de ser um objeto projetado, isto é, executado em todos os
seus pormenores numa fase conceitual e depois impresso do mesmo modo como se
imprime o texto de um livro. Evidentemente, o projeto deve ser “viável” isto é, deve
prever in nuce 1os meios e as fases de execução; mas a viabilidade técnica não é o único
fator da elaboração do projeto. Na medida em que se quer que o objeto corresponda a
uma função, deve-se considerar essa função como inerente à vida social moderna e
inevitavelmente correlata a todas as demais funções; devem-se levar em conta as
condições de consumo, isto é, a possibilidade de inserção daquele objeto no contexto da
economia da sociedade. Na prática, o projetista deve imaginar um quadro preciso da
vida moderna e em seguida estabelecer o lugar do objeto que quer projetar no conjunto
desse quadro. Assim o objeto nasce, ao mesmo tempo, como objeto específico,
correspondente a uma função particular, e como objeto “relacionado” ao conjunto
3 Qualidade,
dinâmico das funções. Também o aspecto função e valor
que chamamos do desenho
simbólico industrial.
das funções sociais
é, e vimos isso, uma necessidade prática, para que a sociedade crie seus símbolos na
medida em que eles concretamente sirvam a ela.

A metodologia da elaboração do projeto tende, portanto, a identificar-se com


todo o modo de comportamento do homem moderno: quer-se projetar ou planejar tudo,
da forma da cidade à forma dos utensílios de cozinha, e quer-se planejar, por meio de
progressivas reformas das instituições jurídicas e políticas, a própria existência da
comunidade. Existem necessariamente um lógica, um elo daquela coerência: somente
quando cumprir essa condição o objeto adquirirá direito de existência no espaço da
existência humana. Ora, na base da metodologia moderna está a busca de certos
elementos simples que podem combinar-se segundo esquemas associativos ou
combinatórios infinitos: somente quando a forma do objeto se fundamentar nesses
elementos simples e os combina num esquema associativo correto, o objeto poderá
explicar sua própria função específica no âmbito daquela função geral, unitária e
continua que é o comportamento social do homem moderno.

Resta, porém, uma pergunta: existe uma ordem de forma precisa, um princípio
definido de estilo que possam ser identificados como característicos dos objetos
produzidos segundo a metodologia projetística do desenho industrial? Não existe:
1
Nota da digitação: "In nuce é uma expressão latina, que significa literalmente "em uma noz".
Foi dita por Plínio, o Velho, referindo-se a uma versão da Ilíada, que, de tão resumida, caberia dentro de
uma noz. Significa, portanto, "de forma concisa", "em suma". Também pode ter o sentido de algo que está
em seu estágio inicial, embrionário, e sobre o qual é possível intuir ou elaborar hipóteses acerca dos seus
desenvolvimentos futuros. A expressão normalmente se aplica a ideias, teorias ou conceitos apresentados
de maneira muito sintética ou ainda em fase embrionária de desenvolvimento." (Fonte: Wikipédia).

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nenhuma analogia formal poderia ser identificada na configuração dos objetos que, com
uma infinita variedade de tipos, forma a fenomenologia do desenho industrial. Ao
contrário, quando um objeto nos parece concebido segundo aquilo que é chamado, com
condenação implícita, “estilo design”, podemos estar certos de que ele implica um erro
de projetação, ostenta a função em vez de representa-la, é a caricatura de si mesmo,
como no caso de certas carrocerias monstruosas dos automóveis americanos. E no
entanto reconhecemos num golpe de vista o objeto que foi produzido por um
procedimento projetístico conforme à metodologia moderna de elaboração do projeto,
ou seja, vemos de imediato se um objeto foi bem desenhado ou não. Essa intuição
depende obviamente da possibilidade ou não de estabelecer com o objeto uma relação
de simpatia psicológica: em outros termos, do fato de objeto, além de representar uma
determinada função, nos representar também como agentes ou protagonistas da função e
nos representar naqueles que consideramos serem os traços essenciais da nossa figura
social. Justamente porque a nossa personalidade social nos interessa mais do que a
nossa personalidade natural, preferimos nos sentir em uníssono com os objetos que
formam o ambiente da nossa existência social mais do que com a paisagem ou céu; e
visto que não sabemos ou não queremos nos reconhecer na unidade da natureza,
queremos ao menos nos reconhecer na singularidade dos objetos. Assim se explica o
fetichismo ou o mitologismo do objeto, que sem dúvida constitui um aspecto do
desenho industrial e faz dele, muito mais do que um processo produtivo tecnicamente
perfeito, um problema estético e um modo absolutamente legítimo de expressão
artística.

Uma última observação: se olharmos para trás, na história das formas, as únicas
que revelam uma certa afinidade, não tanto em si quanto no processo que as produziu,
4 com as dos objetos produzidos peloQualidade, função esão
desenho industrial valor do desenho
as formas industrial.
das armas. Estas,
como bem se sabe, se ajustam não só a uma função precisa e extremamente complexa
de ataque e de defesa, mas também a toda uma série de importantes funções
psicológicas e simbólicas ligadas à condição de tensão e de perigo em que se encontra o
combatente. Por razões evidentes, as armas, em todas as épocas da história,
representaram o maximum qualitativo das tecnologias de produção existentes: de fato,
da qualidade da arma depende a vida da pessoa. Ora, o esforço do desenho industrial é
dirigido a levar todos os objetos que servem à vida civil moderna ao nível das armas
antigas: ele também se baseia no princípio de que tais objetos são decisivos e essenciais
para a vida da comunidade, tal como aquelas armas eram essenciais e decisivas para a
vida dos combatentes. E não é só: aqueles objetos são considerados como o
prolongamento, a ampliação, a integração das possibilidades da pessoa, do mesmo
modo como a arma antiga era o prolongamento, a ampliação e a integração do braço e
do gesto do guerreiro. Isso significa, no fundo, que a sociedade moderna, ou aquela
parte eleita dela que aspira a uma educação contínua e progressiva, considera como área
de máximo empenho aquela em que se desenrola a existência ativa da comunidade; e
identifica nos objetos que compõe o instrumental dessa existência civil as suas armas
mais autênticas e pacíficas.

1961

ARGAN, G. C. Projeto e destino. 2ª. ed. São Paulo: Ática, 2001. 125-130 p

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